quarta-feira, 1 de janeiro de 2025 By: Fred

{clube-do-e-livro} LANÇAMENTO: DIALÉTICA DA COLONIZAÇÃO - ALFREDO BOSI - FORMATOS : PDF E TXT

ALFREDO BOSI

DIAL�TICA DA COLONIZA��O


3� edi��o 1 - reimpress�o

&8*mT)

COMPANHIA DAS LETRAS


Copyright � 1992 by Alfredo Bosi
Capa:

Ettore Bottini

sobre foto de Maureen Bisilliat
Prepara��o:

Mareia Copo/a

Revis�o:

Carmen Sim�es da Costa
Eliana' Antonioli

1� edi��o (1992) com 3 reimpress�es
Dados Internacionais de Cataloga��o na Publica��o (cip) (C�mara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Bosi, Alfredo, 1936Dial�tica
da coloniza��o / Alfredo Bosi. � S�o Paulo : Companhia das Letras, 1992,
ISBN 85-7164-276-1

1. Brasil � Civiliza��o 2. Brasil � Coloniza��o 3. Brasil � Hist�ria � Per�odo colonial 4. Cultura � Brasil I. T�tulo
92-2347 CDD-981
�ndices para cat�logo sistem�tico:
1. Brasil: Civiliza��o 981
2. Brasil: Hist�ria Social 981
1996 Todos os direitos desta edi��o reservados �
EDITORA SCHWARCZ I.TDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 72
04532-002 � S�o Paulo � sp
Telefone: (011) 866-0801
Fax: (011) 866-0814

Para
Celso Furtado
Jacob Gorender
Pedro Casald�liga,
pensamento que se fez a��o.


�NDICE

Agradecimentos...................................................... 9


1. Col�nia, culto e cultura............................................ 11


2. Anchieta ou as flechas opostas do sagrado.................... 64


3. Do antigo Estado � m�quina mercante........................ 94


4. Vieira ou a cruz da desigualdade................................ 119


5. Antonil ou as l�grimas da mercadoria.......................... 149


6. Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar................ 176


7. A escravid�o entre dois liberalismos............................ 194


8. Sob o signo de Cam............................................... 246


9. A arqueologia do Estado-provid�ncia........................... 273


10. Cultura brasileira e culturas brasileiras......................... 308
Post-scriptum 1992.................................................. 347
Olhar em retrospecto............................................... 377
Notas.................................................................. 385
Cr�dito das ilustra��es.............................................403



AGRADECIMENTOS

Este livro foi escrito em diferentes momentos. O seu ponto de partida est� nos cursos de
Literatura Brasileira que venho ministrando na Universidade de S�o Paulo desde 1970.
Algumas passagens j� sa�ram em vers�es que alterei a fundo ou apenas retoquei. A
maior parte dos textos, por�m, achava-se in�dita. Cabe-me agradecer � Funda��o
Guggenheim, que me concedeu, em 1986, uma bolsa para pesquisar em arquivos de
Roma e de Lisboa. Sou especialmente grato a amigos que me facultaram o acesso a
obras esgotadas ou raras: Helena Hirata, Jaime Ginzburg, Jos� Sebasti�o Witter, Marcus
Vin�cius Mazzari, Almuth Gr�sillon, Sandra Teixeira Vasconcelos e Eduardo Portella.
Na pesquisa iconogr�fica recebi ajuda sol�cita de Maureen Bisilliat, Ruy Gama, Olivier
Toni, Cl�udio Veiga, Pe. Pedro Am�rico Maia, Aloysio de Oliveira Ribeiro, Emanoel
Ara�jo e S�rgio da Costa Franco. A Ariovaldo Augusto Peterlini devo conselhos de
ex�mio lati-nista; a Dora e Jos� Paulo Paes, o presente de lupas providenciais; a
Viviana, a leitura dos primeiros manuscritos; a Herm�nia Guedes Ber-nardi, a dedica��o
com que preparou os originais; enfim, a Ecl�a a generosidade de sempre, ' 'puro orvalho
da alma'', com que acompanhou todos os passos deste trabalho.

A. B.
9

1 COL�NIA, curro E CULTURA
O novo � para n�s, contraditoriamente, a liberdade e a submiss�o.


Ferreira Gullar

COLO-CULTUS-CUITURA

Come�ar pelas palavras talvez n�o seja coisa v�. As rela��es entre os fen�menos
deixam marcas no corpo da linguagem. As palavras cultura, culto e coloniza��o
derivam do mesmo verbo latino colo, cujo partic�pio passado � cultus e o partic�pio
futuro � culturus.
Colo significou, na l�ngua de Roma,, eumorp,_eu ocupo a terra� e, por extens�o, eu
trabalho, eu cultivo o campo} Um herdeiro antigo de colo � incola, o habitante; outro �
inquilinus, aquele que reside em terra alheia. Quanto a agr�cola, j� pertence a um
segundo plano sem�ntico vinculado � id�ia de trabalho.
A a��o expressa neste colo, no chamado sistema verbal do presente, denota sempre
alguma coisa de incompleto e transitivo. E o movimento que passa, ou passava, de um
agente para um objeto. Colo � a matriz de col�nia enquanto espa�o que se est�
ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar.
' 'Colonus � o que cultiva uma propriedade rural em vez do seu dono; o seu feitor no
sentido t�cnico e legal da palavra. Est� em Plau-to e Cat�o, como col�nia [...]; o
habitante de col�nia, em grego m. �poikos, que vem estabelecer-se em lugar dos
incolae'.'1

N�o por acaso, sempre que se quer classificar os tipos de coloniza��o, distinguem-se
dois processos: o que se atem ao simples povoa



mento, e o que conduz � explora��o do solo. Colo est� em ambos: eu moro; eu cultivo.
Na express�o verbal do ato de colonizar opera ainda o c�digo dos velhos romanos. E, a
rigor, o que diferencia o habitar e o cultivar do colonizar? Em princ�pio, p deslocamento
que os agentes sociais fazem do seu mundo de vida para outro onde ir�o exercer a
capacidade dejavrar ou fazer lavrar o solo alheio. O incola que emigra torna-se colonus.
Como se fossem verdadeiros universais das sociedades humanas, a produ��o dos meios
de vida e as rela��es de poder, a esfera econ�mica e a esfera pol�tica, reproduzem-se e
potenciam-se toda vez que se p�e em marcha um ciclo de coloniza��o.
Mas o novo processo n�o se esgota na reitera��o dos esquemas originais: h� um plus
estrutural de dom�nio, h� um acr�scimo de for�as que se investem no des�gnio do
conquistador emprestando-lhe �s vezes um t�n�s �pico de risco e aventura. �
coloniza��o d� um ar de recome�o e de arranque a culturas seculares.
O tra�o grosso da domina��o � inerente �s diversas formas de colonizar e, quase
sempre, as sobredetermina. Tomar conta de, sentido b�sico de colo, importa n�o s� em
cuidar, mas tamb�m em mandar. Nem sempre, � verdade, o colonizador se ver� a si
mesmo como a um simples conquistador; ent�o buscar� passar aos descendentes a
imagem do descobridor e do povoador, t�tulos a que, enquanto pioneiro, faria jus. Sabe-
se que, em 1556, quando j� se difundia pela Europa crist� a leyend� negra da
coloniza��o ib�rica, decreta-se na Espanha a proibi��o oficial do uso das palavras
conquista e conquistadores, que s�o substitu�das por descubrimiento e pobladores, isto
�, colonos.
O surto de poderosas estruturas pol�ticas na Antig�idade foi coe-t�neo daqueles
verdadeiros complexos imperiais que se seguiram a guerras de conquista. Os imp�rios
do Oriente M�dio, de Alexandre e Romano contam-se entre as mais velhas
concentra��es de poder estatal que conhecemos. No caso particular de Roma, a
organiza��o central resistiu at� que as invas�es dos b�rbaros atomizaram a Europa e
abriram a via de sua feudaliza��o.
Quanto � g�nese dos sistemas, h� mais de uma hip�tese. As tens�es internas que se d�o
em uma determinada forma��o social resolvem-se, quando poss�vel, em movimentos
para fora dela enquanto de


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sejo, busca e conquista de terras e povos coloniz�veis. Assim, o desequil�brio
demogr�fico ter� sido uma das causas da coloniza��o grega no Mediterr�neo entre os
s�culos oitavo e sexto antes de Cristo. E a necessidade de uma sa�da para o com�rcio,
durante o �rduo ascenso da burguesia, entrou como fator din�mico do expansionismo
portugu�s no s�culo XV.3 Em ambos os exemplos, a coloniza��o n�o pode ser tratada
como uma simples corrente migrat�ria: ela � a resolu��o de car�ncias e conflitos da
matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condi��es, o dom�nio sobre a natureza e o
semelhante que tem acompanhado universalmente q chamado processo civilizat�rio.
Se passo agora do presente, colo, com toda a sua garra de atividade e poder imediato,


para as formas nominais do verbo, cultus e cultura, tenho que me deslocar do aqui-eagora
para os regimes me.-diatizados- do passado e do futuro.
Para o passado. Como adjetivo deverbal, cultus atribu�a-se ao campo que j� fora
arroteado e plantado por gera��es sucessivas de lavradores. Cultus traz em si n�o s� a
a��o sempre reproposta de colo, o cultivar atrav�s dos s�culos, mas principalmente a
qualidade resultante desse trabalho e j� incorporada � terra que se lavrou. Quando os
camponeses do L�cio chamavam culta �s suas planta��es, queriam dizer algo de
cumulativo: o ato em si de cultivar e o efeito de incont�veis tarefas, o que torna o
partic�pio cultus, esse nome que � verbo, uma forma significante mais densa e vivida
que a simples nomea��o do labor presente. O ager cultus, a lavra, o nosso ro�ado
(tamb�m um deverbal), junta a denota��o de trabalho sistem�tico a, qualidade obtida, e
funde-se com esta no sentimento de quem fala. Cultus � sinal de que a sociedade que
produziu o seu alimento j� tem mem�ria. A luta que se travou entre o sujeito e o
objeto'do suor coletivo cont�m-se dentro do partic�pio, e o torna apto � designar a
inerencia de tudo quanto foi no que se passa agora. Processo e produto conv�m no
mesmo signo.
Quanto a cultus, us, substantivo, queria dizer n�o s� o trato da terra como tamb�m o
culto dos mortos, forma primeira de religi�o como lembran�a, chamamento ou
esconjuro dos que j� partiram. A Antropologia parece n�o ter mais d�vidas sobre a
preced�ncia do enterro sagrado em rela��o ao amanho do solo; enquanto este data
apenas do Neol�tico e da Revolu��o Agr�cola (a partir de 7000 a. C, apro


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ximadamente), a inuma��o dos mortos j� se fazia nos tempos do Homem de Neanderthal h�
oitenta mil anos atr�s. Diz Gordon Childe:
Quanto �s no��es m�gico-religiosas conservadas pelas comunidades neo-l�ticas em geral,
podemos aventurar algumas conjecturas. A assist�ncia aos mortos, cuja origem remonta � idade
paleol�tica, deve ter adquirido uma significa��o mais profunda na idade neol�tica. No caso de
v�rios grupos neol�ticos, na realidade n�o se descobriu enterro algum. Mas, em geral, os mortos
eram sepultados cuidadosamente em tumbas edificadas ou escavadas, quer agrupadas em
cemit�rios pr�ximos aos povoados, quer cavadas perto das casas individuais. Normalmente
provia-se o morto de utens�lios ou armas, vasilhas com comida e bebida e artigos de toucador.
No Egito pr�-hist�rico, os vasos funer�rios eram pintados com figuras de animais e objetos. E
de presumir que tinham o mesmo significado m�gico das pinturas, figuras talhadas nas cavernas
dos ca�adores da idade paleol�tica. Na �poca hist�rica, essas figuras foram transladadas para os
muros das tumbas, acrescentando-se-lhes legendas, as quais mostram que tinham por objeto
assegurar ao morto o gozo cont�nuo dos servi�os representados por elas. Tal assist�ncia denota
uma atitude para com os esp�ritos dos antepassados que remonta aos per�odos mais antigos.
Mas, agora, a terra na qual repousam os antepassados � considerada como o solo do qual brota
cada ano, magicamente, o sustento aliment�cio da comunidade. Os esp�ritos dos antepassados
devem ter sido considerados, seguramente, como cooperadores na germina��o das plantas
cultivadas. O culto � fertilidade, os ritos m�gicos praticados para ajudar ou obrigar as for�as da
reprodu��o, devem ter-se feito mais importantes do que outros nos per�odos neol�ticos. Nos
campos da idade paleol�tica encontram-se figurinhas, talhadas em pedra ou marfim, com os
caracteres sexuais muito acentuados. Figurinhas semelhantes, s� que agora modeladas
geralmente em argila, s�o muito comuns nos povoados e tumbas neol�ticas. Com freq��ncia
chamam-nas "deusas da fecundidade". Por acaso a terra, de cujas entranhas brota o p�o, teria
sido concebida � semelhan�a de uma mulher com cujas fun��es geradoras o homem estava
certamente familiarizado?4
Conv�m amarrar os dois significados desse nome-verbo que mostra o ser humano preso � terra e
nela abrindo covas que o alimentam vivo e abrigam morto:

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.cu/tus (1): o que foi trabalhado sobre a terra; cultivado; ' cultus (2): o que se trabalha sob a
terra; culto; enterro dos mortos; ritual feito em honra dos antepassados.
A possibilidade de enraizar no passado a experi�ncia atual de um. grupo se perfaz pelas
media��es simb�licas?" E o gesto, o canto, a dan�a, o rito, a ora��o, a fala que evoca, a fala que
invoca�No mundo arcaico tudo isto � fundamentalmente religi�o^ v�nculo do presente com o
outrora-tornado-agora, la�o da comunidade com as for�as que a criaram em outro �empo e que
sustem a sua identidade.
A esfera do culto, com a sua constante reatualiza��o das origens e dos ancestrais, afirma-se
como um outro universal das sociedades humanas juntamente com a luta pelos meios materiais
de vida e as conseq�entes rela��es de poder impl�citas, literal e metaforicamente, na forma ativa
de colo.
Na funda��o de algumas col�nias gregas n�o era raro apontar-se o des�gnio dos deuses,
decifrado pelos or�culos, como a sua causa primeira. Apoio Archegeta � o deus que preside, em
Delfos, � funda��o das col�nias. As motiva��es expressas dos colonizadores portugueses nas
Am�ricas, na �sia e na �frica inspiram-se no projeto de dilatar a F� ao lado de dilatar o


Imp�rio, de camoniana mem�ria. E os puritanos que aportaram �s praias da Nova Inglaterra
tamb�m declararam to perform the ways of God.
A coloniza��o � um projeto totalizante cujas for�as motrizes poder�o sempre buscar-se no n�vel
do colo: ocupar um novo ch�o, explorar os seus bens, submeter os seus naturais. Mas os agentes
desse processo n�o s�o apenas suportes f�sicos de opera��es econ�micas; s�o tamb�m crentes
que trouxeram nas arcas da mem�ria e da linguagem aqueles mortos que n�o devem morrer.
Mortos bifrontes, � bem verdade: servem de aguilh�o ou de escudo nas lutas ferozes do
cotidiano, mas podem intervir no teatro dos crimes com vozes doridas de censura e remorso.
Sar�tiago de Compostela excita os matamoros nas lutas da reconquista ib�rica; a Cruz vencedora
do Crescente ser� chantada na terra do pau-brasil, e subjugar� os tupis, mas, em nome da mesma
cruz, haver� quem pe�a liberdade para os �ndios e miseric�rdia para os negros. O culto
celebrado nas miss�es jesu�ticas dos Sete Povos ser� igualmente rezado pelos bandeirantes, que,
ungidos por seus capel�es, ir�o massacr�-las sem piedade. Atender� o Deus

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dos mission�rios e dos profetas pelo mesmo nome que o deus dos guerreiros e dos
fariseus? A quest�o nodal � saber como cada grupo em situa��o l� a Escritura, e
interpreta, do �ngulo da sua pr�tica, os discursos universalizantes da religi�o.
Os s�mbolos, os ritos, as narrativas da cria��o, queda e salva��o, o que fazem se n�o
recompor, no sentido de uma totalidade ideal, o dia-a-dia cortado pela divis�o
econ�mica e oprimido pelas hierarquias do poder?
De cultum, supino de colo, deriva outro partic�pio: o futuro, cul-turus, o que se vai
trabalhar, o que se quer cultivar.
O termo, na sua forma substantiva, aplicava-se tanto �s labutas do solo, a agri-cultura,
quanto ao trabalho feito no ser humano desde a inf�ncia; e nesta �ltima acep��o vertia
romanamente o grego pai-deia. O seu significado mais geral conserva-se at� nossos
dias. Cultura � o conjunto das pr�ticas, das t�cnicas, dos s�mbolos e dos valores que se
devem transmitir �s novas gera��es para garantir a reprodu��o de um estado de
coexist�ncia social. A educa��o � o momento institucional marcado do processo.
A termina��o -urus, em culturus, enforma a id�ia de porvir ou de movimento em sua
dire��o. Nas sociedades densamente urbanizadas cultura foi tomando tamb�m o sentido
de condi��o de vida mais humana, digna de almejar-se, termo final de um processo cujo
valor � estimado, mais ou menos conscientemente, por todas as classes e grupos. Como
ideal de status, j� descolado do antigo culto religioso, aparece tardio em Roma,
espelhando o programa, igualmente tardio, dapaideia que s� se autodefine a partir do
s�culo iv a. C, conforme esclarecem os estudos capitais de Jaeger e de Marrou.5
Paideia: ideal pedag�gico voltado para a forma��o do adulto na polis e no mundo.
Cultura sup�e uma consci�ncia grupai operosa e operante que I desentranha da vida
presente os planos para o futuro^ Essa dimens�o de projeto, impl�cita no mito de
Prometeu, que arrebatou o fogo dos c�us para mudar o destino material dos homens,
tende a crescer em �pocas nas quais h� classes ou estratos capazes de esperan�as e
propostas como na Renascen�a florentina, nas Luzes dos Setecentos, ao longo das
revolu��es cient�ficas e t�cnicas ou no ciclo das revolu��es socialistas. O vetor moderno
do titanismo, manifesto nas teorias de evolu��o social, prolonga as certezas dos
ilustrados e prefere conceituar oiltura em oposi��o a natureza, gerando uma vis�o
erg�tica da

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Hist�ria como progresso das t�cnicas e desenvolvimento das for�as produtivas. Cultura
aproxima-se, ent�o, de colo, enquanto trabalho, e distancia-se, �s vezes polemicamente,
de cultus. O presente se torna mola, instrumento, potencialidade de futuro. Acentua-se a
fun��o da produtividade que requer um dom�nio sistem�tico do homem sobre a mat�ria
e sobre outros homens. ^Aculturar um povo se traduziria, afinal,, em sujeit�-lo ou, no
melhor dos casos, adapt�-lo tecnologica-mente a um certo padr�o tido como superior.
Em certos regimes Industrial-militares essa rela��o se desnuda sem pudores. Produzir �
controlar o trabalhador e o consumidor, eventualmente cidad�os. Economia j� � pol�tica


em estado bruto. Saber � poder, na equa��o crua de Francis Bacon.
Uma certa �tica, que tende ao reducionismo, julga de modo estrito o v�nculo que as
superestruturas mant�m com a esfera econ�mico-pol�tica. E preciso lembrar, por�m, que
alguns tra�os formadores da cultura moderna (tra�os mais evidentes a partir da
Ilustra��o) conferem � ci�ncia, �s artes e � filosofia um car�ter de resist�ncia, ou a
possibilidade de resist�ncia, �s press�es estruturais dominantes em cada contexto. Nas
palavras agon�sticas do historiador Jakob Burckhardt, para quem o poder � em si
maligno]

a cultura exerce uma a��o constantemente modificadora e desagrega-dora sobre asjduas
institui��es sociais est�veis [Estado e Igreja]� o texto � dos meados do s�culo xrx],
exceto nos casos em que estas j� a tenham subjugado e circunscrito de todo a seus
pr�prios fins. Mas quando assim n�o se d�, a cultura constitui a cr�tica de ambas, o
rel�gio que bate a hora em que forma' e subst�ncia j� n�o mais coincidem.6
Esse vetor da cultura como consci�ncia de um presente minado por graves
desequil�brios � o momento que preside � cria��o de alternativas para um futuro de
algum modo novo. Em outro contexto ideol�gico Ant�nio Gramsci prop�s a cr�tica do
senso comum ea consci�ncia da historicidade da pr�pria vis�o do mundo como pr�requisitos
de uma nova ordem cultural.7
A partir do s�culo xvill aproximam-se e, �s vezes, fundem-se as no��es de cultura e
progresso.

As Luzes n�o se apagaram pelo fato de as terem refletido criticamente o pensamento
hegeliano-marxista, a sociologia do conhecimento
e uma certa fenomenologia avessa ao racionalismo cl�ssico.8 E, se me

o- .

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culiar a todas as sociedades humanas. Novas terras, novos bens abrem-se � cobi�a dos
invasores. Reaviva-se o �mpeto predat�rio e mercantil que leva � acelera��o econ�mica da
matriz em termos de uma acumula��o de riqueza em geral r�pida e gr�vida de conseq��ncias
para o sistema de trocas internacional. Pode-se calcular o que significou para a burguesia
europ�ia, em pleno mercantilismo, a maci�a explora��o a�ucareira e mineira da Am�rica Latina.
Se o aumento na circula��o de mercadorias se traduz em progresso, n�o resta d�vida de que a
coloniza��o do Novo Mundo atuou como um agente modernizador da rede comercial europ�ia
durante os s�culos xvi, xvn e xvm. Nesse contexto, a economia colonial foi efeito e est�mulo dos
mercados metropolitanos na longa fase que medeia entre a agonia do feudalismo e o surto da
Revolu��o Industrial.
Duas cita��es de Karl Marx parecem-me aqui obrigat�rias:
O descobrimento das jazidas de ouro e prata da Am�rica, a cruzada de exterm�nio, escraviza��o
e sepultamento nas minas da popula��o abor�gine, o come�o da conquista e o saqueio das �ndias
Orientais, a convers�o do continente africano em zona de ca�a de escravos negros, s�o todos
fatos que assinalam os albores da era de produ��o capitalista. Estes processos id�licos
representam outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumula��o origin�ria. Atr�s
deles, pisando em sua pegadas, vem a guerra comercial das na��es europ�ias, cujo cen�rio foi o
planeta inteiro.9
Onde predomina o capital comercial, implanta por toda parte um sistema de saque, e seu
desenvolvimento, que � o mesmo nos povos comerciais da Antig�idade e nos tempos modernos,
se acha diretamente relacionado com os despojos pela viol�ncia, com a pirataria mar�tima, o
roubo dos escravos e a submiss�o; assim sucedeu em Cartago e em Roma, e mais tarde entre os
venezianos, os portugueses, os holandeses etc.10
Marx via com lucidez que o processo colonizador n�o se esgota no seu efeito modernizante de
eventual propulsor do capitalismo mundial; quando estimulado, aciona ou reinventa regimes
arcaicos de trabalho, come�ando pelo exterm�nio ou a escravid�o dos nativos nas �reas de maior
interesse econ�mico. Quando � agu�ado o m�vel da explora��o a curto prazo, implantam-se nas
regi�es coloniz�veis estilos violentos de intera��o social. Estilos de que s�o exemplos, diversos
entre si, a encomienda mexicana ou peruana, o engenho do Nordeste bra


20

sileiro e das Antilhas, a hacienda platina. Sem entrar aqui na quest�o espinhosa dos conceitos
qualificadores da economia colonial (feudal? semifeudal? capitalista?), n�o se pode negar o
car�ter constante de coa��o e depend�ncia estrita a que foram submetidos �ndios, negros e
mesti�os nas v�rias formas produtivas das Am�ricas portuguesa e espanhola. Para extrair os
seus bens com mais efic�cia e seguran�a, o conquistador enrijou os mecanismos de explora��o e
de controle. A regress�o das t�ticas parece ter sido estrutural na estrat�gia da coloniza��o, e a
mistura de colono com agente mercantil n�o � de molde a humanizar as rela��es de trabalho.
Contradit�ria e necessariamente, a expans�o moderna do capital comercial, assanhada com a
oportunidade de ganhar novos espa�os, brutaliza e faz retroceder a formas cruentas o cotidiano
vivido pelos dominados.
O genoc�dio dos astecas e dos incas, obra de Cortez e de Pizarro, foi apenas o marco inaugural.
Os recome�os foram numerosos. Cito um exemplo, decerto menos conhecido. Nos meados do
s�culo xrx, a Argentina conheceu a sangrenta conquista dei desierto � custa dos �ndios e
mesti�os patag�es.


Pagava-se em moeda inglesa o par de orelhas de �ndio, mas, como em pouco tempo viam-se
muitos ind�genas com as orelhas cortadas, e ainda vivos, recorreu-se ao expediente mais eficaz
de pagar pelo par de test�culos de �ndio. Os autores desse genoc�dio, ami�de aventureiros
internacionais, acumularam fabulosas fortunas. Outros, com as terras assim arrebatadas,
passaram a se alistar no patriciado.u
Comenta, em seguida, o historiador Manuel Galich:
Por que essa ambi��o de terra? Certamente, para centuplicar o gado vacum, porque se havia
centuplicado o seu valor no mercado ingl�s. Pois j� n�o se contavam s� o couro, o sebo, os
chifres e os cascos. Tamb�m a carne passou a ser um grande neg�cio, no exterior, desde que o
franc�s Thillier descobriu a sua conserva��o pelo frio e surgiram as companhias exportadoras
como The River Plate Fresh Co. ou La Negra. Chama a aten��o e d� o que pensar a
circunst�ncia de que a �poca da conquista dei desierto coincida com a abertura do mercado
internacional de carne e com a grande inven��o do frigor�fico (1876). Um passo progressista do
capitalismo, sem d�vida.

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Os contempor�neos do ciclo das conquistas ib�ricas n�o ignoraram a extens�o do crime.
Frei Bartolom� de Las Casas, dominicano, publicou em Sevilha a Brev�sima relaci�n de
Ia destrucci�n de las �ndias (1552), onde estima em 15 milh�es o n�mero de �ndios
mortos entre 1492 e 1542. E um seu prov�vel leitor, o primeiro dos humanistas leigos,
Michel de Montaigne, deixou, no Livro m dos Essais (1588), estas palavras de fogo:
Quem jamais p�s a tal pre�o o servi�o da mercancia e do tr�fico? Tantas cidades
arrasadas, tantas na��es exterminadas, tantos milh�es de homens passados a fio de
espada, e a mais rica e bela parte do mundo conturbada pelo neg�cio das p�rolas e da
pimenta: mec�nicas vit�rias. Jamais a ambi��o, jamais as inimizades p�blicas
empurraram os homens uns contra os outros a t�o horr�veis hostilidades e calamidades
t�o miser�veis.12
A barbariza��o ecol�gica e populacional acompanhou as marchas colonizadoras entre
n�s, tanto na zona canavieira quanto no sert�o bandeirante; da� as queimadas, a morte
ou a prea��o dos nativos. Diz Gilberto Freyre, insuspeito no caso porque apologista da
coloniza��o portuguesa no Brasil e no mundo: "O a��car eliminou o �ndio". Hoje
poder�amos dizer: o gado expulsa o posseiro; a soja, o sitiante; a cana, o morador. O
projeto expansionista dos anos 70 e 80 foi e continua sendo uma reatualiza��o em nada
menos cruenta do que foram as incurs�es militares e econ�micas dos tempos coloniais.
Carl Siger, autor de um Essai sur Ia colonisation (Paris, 1907), fez uma curiosa defesa
dos m�todos coloniais, que considerava aut�nticas "v�lvulas de seguran�a" {soupapes
de s�ret�) das metr�poles:
Les pays neufs sont un vaste champ ouvert aux activit�s individuelles, violentes, qui,
dansjes metr�poles, se heurteraient � certains pr�ju-g�s, � une conception sage et r�gl�e
de Ia vie et qui, aux colonies, peu-vent se d�velopper plus librement et mieux affirmer,
par suite, leur valeur. Ainsi les colonies peuvent, � un certain point, servir de soupapes
de s�ret� � Ia soci�t� moderne. Cette utilit� serait-elle Ia seule, elle est immense.13
Uma economia ao mesmo tempo presa ao capitalismo europeu e assentada sobre o
trabalho escravo parecia, no ju�zo de Marx, uma anomalia. E o que diz um trecho
sugestivo das Forma��es econ�micas pr�-capitalistas: "Se falarmos, agora, dos
propriet�rios deplanta22
tions na Am�rica como capitalistas, e que eles sejam capitalistas, isto se basear� no fato
de eles existirem como anomalias em um mercado mundial baseado no trabalho livre".14
A rigor, o termo anomalia, aplicado por Marx ao regime dos latif�ndios escravistas
americanos, pressup�e a vig�ncia de uma norma �(nomos), ou lei exemplar, que, no
caso, era o modo de produ��o capitalista da Inglaterra nos meados do s�culo xix; modo
cuja precon-di��o fora, precisamente, a passagem compuls�ria do servo do campo a
assalariado. Na cabe�a do par�grafo citado, Marx afirmara, categ�rico: "A produ��o de
capitalistas e trabalhadores assalariados �, portanto, um produto fundamental do
processo pelo qual o capital se transforma em valores".


A longa vida de um sistema de trabalho n�o assalariado nas fazendas do Brasil e do Sul
dos Estados Unidos aparecia, ao autor de O capital em plena segunda metade do s�culo
xix, como algo aber-rante, uma sobrevida prestes a extinguir-se em face do crescimento
mundial das for�as produtivas abertamente capitalistas.
Entretanto, se o objetivo � conhecer a situa��o interna e peculiar �s forma��es
colonizadas, a verdade nua � que tal anomalia durou longamente e vincou fundo a nossa
exist�ncia social e psicol�gica. Ainda Marx, em outro contexto: "Os horrores b�rbaros
civilizados do so-bretrabalho s�o enxertados nos horrores b�rbaros da escravid�o".15 Foi
ao longo dessa enxertia ao mesmo tempo moderna e retr�grada que se gestaram as
pr�ticas pol�ticas do povo brasileiro. Se Marx tem raz�o no uso do termo, ent�o cabe-
nos estudar a fenomenologia de uma situa��o an�mala.
Para efeito de um mapeamento geral poder-se-ia descrever o Brasil-Col�nia como uma
forma��o econ�mico-social cujas caracter�sticas de base foram as seguintes:
1) Predominou uma camada de latifundi�rios com seus interesses vinculados a grupos
mercantis europeus dentre os quais se destacavam os traficantes de escravos africanos;
dada essa depend�ncia estrutural, tornava-se invi�vel a perspectiva de um capitalismo
interno din�mico na �rea colonizada. A express�o capitalismo colonial deve ser
entendida como uma dimens�o mercantil e reflexa.
2) A for�a de trabalho se constitu�a basicamente de escravos; de onde a possibilidade de
qualificar como escravismo colonial o nosso sistema econ�mico, como o fez Jacob
Gorender, em obra hom�nima,

25


aplicando a mesma express�o �s Antilhas e ao Sul dos Estados Unidos das plantagens
(termo pelo qual o autor traduz plantations).
3) A alternativa para o escravo n�o era, em princ�pio, a passagem para um regime
assalariado, mas a fuga para os quilombos. Lei, trabalho e opress�o s�o correlatos sob o
escravismo colonial. Nos casos de alforria, que se tornam menos raros a partir do
apogeu das minas, a alternativa para o escravo passou a ser ou a mera vida de
subsist�ncia como posseiro em s�tios marginais, ou a condi��o subalterna de agregado
que subsistiu ainda depois da aboli��o do cativeiro. De qualquer modo, ser negro livre
era sempre sin�nimo de depend�ncia.
4) A estrutura pol�tica enfeixa os interesses dos senhores rurais sob uma administra��o
local que se exerce pelas c�maras dos homens bons do povo, isto �, propriet�rios. Mas o
seu raio de poder � curto. � o rei que nomeia o governador com mandato de quatro
anos, tendo compet�ncia militar e administrativa enquanto preside os corpos armados e
as Juntas da Fazenda e da Justi�a com crit�rios estabelecidos pela Coroa e expressos
em regimentos e em cartas e ordens regias. As juntas se comp�em de funcion�rios reais:
provedores, ouvidores, procuradores e, ao tempo das minas, intendentes; a sua a��o �
controlada em Lisboa (a partir de 1642, pelo Conselho Ultramarino). De 1696 em
diante, at� as c�maras municipais sofrer�o interfer�ncia da metr�pole que nomear� os
juizes de fora sobrepondo-se � institui��o dos juizes eleitos nas suas vilas. Os
historiadores t�m salientado a estreita margem de a��o das c�maras sob a onipresen�a
das Ordena��es e Leis do Reino de Portugal: a tens�o entre as oligarquias e a
centraliza��o crescente da Coroa ser� um dos fatores da crise do sistema pol�tico desde
os fins do s�culo xvm. Feita a Independ�ncia, o mando-nismo local poder� afirmar-se e
obter legitima��o formal mediante a presen�a dos bachar�is nos parlamentos e nas
assembl�ias provinciais. 16
5) O exerc�cio da cidadania � duplamente limitado: pelo Estado absolutista e pelo
esquema interno de for�as. O instituto da representa��o praticamente inexiste, situa��o
que pouco se altera, quantitativamente ao menos, com as independ�ncias nacionais no
come�o do s�culo xix. No Brasil-Imp�rio a centraliza��o administrativa n�o chega a ser
contrastada pelo sistema eleitoral, que � censit�rio e indireto.
6) O clero secular vive imprensado entre os senhores de terra e a Coroa da qual
depende econ�mica e juridicamente merc� do siste


ma de padroado: da� formarem-se os tipos do capel�o-de-fazenda e do padre-
funcion�rio. S� quando o pacto colonial entrar em crise, entre fins dos Setecentos e
primeiro quartel dos Oitocentos, � que v�o aparecer as figuras do padre liberal e do
padre radical.
7) Quanto �s ordens religiosas, especialmente os jesu�tas, empenhados na pr�tica de
uma Igreja supranacional, cumprem o projeto das miss�es junto aos �ndios. Essa
possibilidade, aberta no in�cio da coloniza��o, quando era moeda corrente a id�ia do


papel cristianiza-dor da expans�o portuguesa, passaria depois a exercer-se apenas �s
margens ou nas folgas do sistema; enfim, a longo prazo sucumbir� sob a press�o dos
bandeirantes e � for�a do Ex�rcito colonial. Aos jesu�tas sobraria a alternativa de
ministrar educa��o human�stica aos jovens provenientes de fam�lias abastadas.
8) A cultura letrada � rigorosamente estamental, n�o dando azo � mobilidade vertical, a
n�o ser em raros casos de apadrinhamento que confirmam a regra geral. O dom�nio do
alfabeto, reservado a poucos, serve como divisor de �guas entre a cultura oficial e a vida
popular. O cotidiano colonial-popular se organizou e se reproduziu sob o limiar da
escrita.
9) A cria��o popular disp�s de condi��es de produzir-se:
d) ou em espa�os ilhados vistos hoje, retrospectivamente, como arcaizantes ou r�sticos;
b) ou na fronteira com certos c�digos eruditos ou semi-eruditos da arte europ�ia: na
m�sica, nas festas e na imagin�ria sacra, por exemplo. O romance de cordel, caso de
cria��o de fronteira, � tardio, o que se explica pelos entraves � alfabetiza��o e �
impress�o em todo o per�odo colonial.
Em s�ntese apertada, pode-se dizer que a forma��o colonial no Brasil vinculou-se:
economicamente, aos interesses dos mercadores de escravos, de a��car, de ouro;
politicamente, ao absolutismo reinol e ao mandonismo rural, que engendrou um estilo
de conviv�ncia patriarcal e estamental entre os poderosos, escravista ou dependente
entre os subalternos.

25


A DIAL�TICA DO CULTO E DA CULTURA NA CONDI��O COLONIAL

O que pesa e importa quando se pesquisa a vida colonial brasileira como tecido de
valores e significados � justamente essa complexa alian�a de um sistema agromercantil,
voltado para a m�quina econ�mica europ�ia, com uma condi��o dom�stica tradicional,
quando n�o francamente arcaica nos seus mores e nas suas pol�ticas.
Distingo os termos sistema e condi��o para marcar nitidamente as notas desse acorde
que parece justo e consonante a alguns ouvidos, mas dissonante e desafinado a outros.
Por sistema entendo uma totalidade articulada objetivamente. O sistema colonial, como
realidade hist�rica de longa dura��o, tem sido objeto de an�lises estruturais de f�lego,
como o fizeram, com t�nicas diversas, Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodr�, Celso
Furtado, Fernando Novais, Maria Sylvia Carvalho Franco e Jacob Gorender,17 para citar
apenas alguns de seus maiores estudiosos.
A vida econ�mica nos tr�s primeiros s�culos da coloniza��o portuguesa no Brasil
travou-se por meio de mecanismos que podem ser quantificados, pois se traduzem em
n�meros de produ��o e circula��o, isto �, em cifras de bens e de for�a de trabalho.
Muito antes de se pensar em hist�ria quantitativa o poeta Greg�rio de Matos, em um
ardido soneto barroco que dedicou � cidade da Bahia nos fins do s�culo xvn, falava em
maquina mercante, � letra, nau de mercadorias, express�o que se poderia, por
meton�mia, estender a toda a engrenagem comercial vigente na Col�nia.
-Na forma��o do sistema exigiram-se reciprocamente tr�fico e senzala, monop�lio e
monocultura. No plano internacional determinou-se o ciclo de fluxo e refluxo da
mercancia colonizada na linha das flutua��es do mercado e sob o imp�rio da
concorr�ncia entre os Estados metropolitanos. Em suma, a reprodu��o do sistema no
Brasil e o seu nexo com as economias centrais cunharam a frente e o verso da mesma
moeda.
Quanto ao termo condi��o, atinge experi�ncias mais difusas do que as regularidades da
produ��o e do mercado. Condi��o toca em modos ou estilos de viver e sobreviver. Fala-
se naturalmente em condi��o humana, n�o se diz jamais sistema humano. E n�o por
acaso.
A condi��o senhorial e a condi��o escrava supunham um desempenho de pap�is no
sistema produtivo, objeto de uma an�lise funcio


26

nal da economia do a��car, mas n�o se reduziam ao exerc�cio das a��es correspondentes
a esses mesmos pap�is. Condi��o traz em si as m�ltiplas formas concretas da exist�ncia
interpessoal e subjetiva, a mem�ria e o sonho, as marcas do cotidiano no cora��o e na
mente, o modo de nascer, de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar, de rezar,
de cantar, de morrer e ser sepultado.
Em nota anterior foram assinaladas algumas obras capitais para a compreens�o do
sistema. Quanto � condi��o colonial, � obrigat�rio lembrar os estudos cl�ssicos de
Gilberto Freyre e de S�rgio Buarque de Holanda. O primeiro dedicou-se a construir uma


antropologia existencial do Nordeste a�ucareiro em livros not�veis como Casa-grande
& senzala e Sobrados e mocambos. O segundo descreveu com min�cia e eleg�ncia os
h�bitos do sertanejo luso-tupi em an�lises pioneiras de nossa cultura material
{Caminhos e fronteiras) depois de ter empreendido uma s�ntese do processo colonizador
em Ra�zes do Brasil.
No trato dos comportamentos familiares e cl�nicos, os ensaios de Gilberto Freyre e de
S�rgio Buarque sugerem uma interpreta��o psicocultural do passado brasileiro. E uma
leitura da nossa hist�ria escorada na hip�tese geral de que o conquistador portugu�s j�
trazia em si tra�os de car�ter recorrentes, que S�rgio Buarque chama de determinantes
psicol�gicas, tais como o individualismo, qualificado como exalta��o extrema da
personalidade, o esp�rito aventureiro (da�, a �tica da aventura oposta � �tica do
trabalho), o nosso natural inquieto e desordenado, a cordialidade, o sentimentalismo
sensual, que se exerce sem peias no que Gilberto Freyre classifica de patriarcalismo
pol�gamo, a plasticidade social, a versatilidade, a tend�ncia � mesti�agem (que j� viria
dos cruzamentos com os mouros) intensificada pela car�ncia de orgulho racial, atributo
que comparece nas caracteriza��es de ambos os estudiosos.
Os v�rios modos da chamada assimila��o luso-africana e luso-tupi adquirem, vistos por
essa �tica, um relevo tal que acabam deixando em discreto ou subentendido segundo
plano os aspectos estruturais e constantes de assenhoreamento e viol�ncia que marcaram
a hist�ria da coloniza��o tanto no Nordeste dos engenhos e quilombos quanto no Sul
das bandeiras e miss�es.
Depois de feita plenamente justi�a � obra dos mestres, talvez n�o fa�a mal arriscar uma
prudente retifica��o sem�ntica de termos como assimila��o (Gilberto Freyre) e de
express�es como processo de feliz
21


aclima��o e solidariedade cultural {S. B. de Holanda) quando se aplicam aos contactos
entre colonizadores e colonizados. O uso desse vocabul�rio poder� levar o leitor menos
avisado a supor que os povos em intera��o se tornaram s�miles e solid�rios no seu
cotidiano, ilustrado pelo regime alimentar, pelos h�bitos sexuais, pelas t�cnicas de
produ��o e transporte etc. Releiam-se alguns textos de Casa-grande & senzala e Ra�zes
do Brasil sobre costumes africanos ou ind�genas que os senhores de engenho ou os
bandeirantes adotaram por for�a das novas condi��es de vida no tr�pico. Temos, na
maioria dos casos, exemplos de desfrute (sexual e alimentar) do africano e de sua
cultura por parte das fam�lias das casas-grandes, ou de simples apropria��o de t�cnicas
tupi-guaranis por parte dos paulistas. O colono incorpora, literalmente, os bens
materiais e culturais do negro e do �ndio, pois lhe interessa e lhe d� sumo gosto tomar
para si a for�a do seu bra�o, o corpo de suas mulheres, as suas receitas bem-sucedidas
de plantar e cozer e, por extens�o, os seus expedientes r�sticos, logo indispens�veis, de
sobreviv�ncia.
Desfrute no n�vel da pele e apropria��o daquelas t�cnicas do corpo, t�o bem descritas
por Mareei Mauss, n�o instauram um regime propriamente rec�proco de acultura��o. O
m�ximo que se poderia afirmar � que o colonizador tirou para si bom proveito da sua
rela��o com o �ndio e o negro.
Gilberto Freyre insiste, em Casa-grande & senzala, em louvar o senhor de engenho
luso-nordestino que, despido de preconceitos, se misturou, fecunda t poligamicamente,
com as escravas, dando assim ao mundo exemplo de um conv�vio racial democr�tico.
S�rgio Buar-que prefere atribuir a miscigena��o � car�ncia de orgulho racial^peculiar
ao colono portugu�s. Ainda aqui seria preciso matizar um tanto as cores para n�o
resvalar de uma psicologia social incerta em uma certa ideologia que acaba idealizando

o vencedor. A libido do conquistador teria sido antes falocr�tica do que democr�tica na
medida em que se exercia quase sempre em uma s� dimens�o, a do contacto f�sico: as
escravas emprenhadas pelos fazendeiros n�o foram guindadas, ipso facto, � categoria de
esposas e senhoras de engenho, nem tampouco os filhos dessas uni�es fugazes se
ombrearam com os herdeiros ditos leg�timos do patrim�nio de seus genitores. As
exce��es, raras e tardias, servem apenas de mat�ria de anedot�rio e confirmam
28

a regra geral. As atividades gen�sicas intensas n�o t�m conex�o necess�ria com a
generosidade social.
Nos textos erudit�ssimos de S�rgio Buarque uma sutil sublima-��o do bandeirismo,
visto em feliz continuidade com os processos de aclima��o do portugu�s � terra,
relativiza o contexto de agress�o e defesa que definiu objetivamente as incurs�es dos
paulistas e as rea��es que os ind�genas e os mission�rios lhes opuseram. Em abono de
sua leitura e subscrevendo a apologia que J�lio de Mesquita Filho faz da coloniza��o
portuguesa nos seus Estudos sul-americanos, chega o autor de Ra�zes do Brasil a
comparar a plasticidade dos lusitanos ao gr�o de trigo do Evangelho que aceita anular



se at� a morte para dar muitos frutos.18 Como poderiam suspeitar os negros presos no
eito e os �ndios ca�ados na selva que os senhores de engenho e os bandeirantes
estivessem cumprindo com eles algum rito sacrificial em que a v�tima imolada era o
pr�prio branco?
Os elementos de cultura material apontados ad nauseam como exemplos de adapta��o
do colonizador ao colonizado n�o deveriam ser chamados a provar mais do que podem.
Ilustram o uso e abuso do nativo e do africano pelo portugu�s tanto no n�vel do sistema
econ�mico global quanto nos h�bitos enraizados na corporeidade. Por que idealizar o
que aconteceu? Deve o estudioso brasileiro competir com outros povos irm�os para
saber quem foi melhor colonizado? N�o me parece que o conhecimento justo do
processo avance por meio desse jogo inconsciente e muitas vezes ing�nuo de
compara��es que necessariamente favore�am o nosso colonizador.
Importaria perguntar se, para al�m das adapta��es mais evidentes, n�o teriam o culto e a
cultura (e a arte que de ambos se nutre) suprido, pela sua faculdade de dar sentido �
vida, tudo quanto a rotina deixa insatisfeito ou intocado.
A reprodu��o de um certo esquema de h�bitos suportou, � certo, os andaimes da
estrutura colonial, mas teria essa m�quina de consumir, produzir e vender preenchido
todos os valores e ideais, todos os sonhos e desejos que colonizadores e colonizados
trouxeram do seu passado ou projetaram no futuro ainda que de maneira apenas
potencial? Em outras palavras: foi a coloniza��o um processo de fus�es e positividades
no qual tudo se acabou ajustando, car�ncias materiais e formas simb�licas, precis�es
imediatas e imagin�rio; ou, ao lado de

29


uma engrenagem de pe�as entrosadas, se teria produzido uma dial�tica de rupturas,
diferen�as, contrastes?
Quando se l�em as palavras de Marx sobre o papel da religi�o nas sociedades
oprimidas, capta-se melhor o movimento de certos grupos sociais para a express�o
imagin�ria dos seus desejos: ' 'alma de um mundo sem alma, esp�rito das situa��es sem
esp�rito".19 Como o Eros plat�nico, que � filho da Riqueza e da Pen�ria, n�o sendo uma
nem outra, mas vontade de livrar-se do jugo presente e ascender � frui��o de valores que
n�o pere�am, assim o labor simb�lico de uma sociedade pode revelar o negativo do
trabalho for�ado e a procura de formas novas e mais livres de exist�ncia. Os ritos
populares, a m�sica e a imagin�ria sacra produzidas nos tempos coloniais nos d�o
signos ou acenos dessa condi��o anelada. Em algumas de suas manifesta��es � poss�vel
n�o s� reconhecer o lastro do passado como entrever as esperan�as do futuro que agem
por entre os an�is de uma cadeia cerrada. A condi��o colonial, como o sistema, � reflexa
e contradit�ria.
Diz T. S. Eliot a respeito da din�mica mais geral instaurada entre a col�nia e a
metr�pole:
A cultura que se desenvolve no novo solo tornava-se, portanto, surpreendentemente
semelhante e diferente da cultura original: era complicada, por vezes, pelas rela��es que
fossem estabelecidas com uma ra�a nativa e, ainda mais, pela imigra��o de outros locais
que n�o fossem a fonte original. Dessa forma, surgiam tipos especiais de cultura-
simpatia e cultura-conflito entre as �reas habitadas pela coloniza��o e os pa�ses da
Europa de onde partiam os migrantes.20
H� casos de transplantes bem logrados, enxertias que vingam por gera��es e gera��es,
encontros afortunados; e h� casos de acordes dissonantes que revelam contrastes mal
resolvidos, superposi��es que n�o colam. De empatias e antipatias se fez a hist�ria
colonial.
Com a sua habitual perspic�cia Alphonse Dupront nos alertou para os impasses de uma
linguagem entre hist�rica e etnol�gica que se vale de termos latos como acultura��o,
assimila��o, encontro de culturas, capazes de exprimir (ou de encobrir) rela��es de
sentidos opostos:
H� encontros que matam. Ealaremos igualmente, a prop�sito deles, com uma esp�cie de
humor negro, de trocas de cultura? De resto, os antrop�logos responderiam: h�
assimila��o. Mas n�o � esta tamb�m uma forma de humor negro? E, como embusteiros
da vida que somos,

agruparemos sob a mesma ins�gnia verbal os processos de morte e os processos de
vida?21
A transposi��o para o Novo Mundo de padr�es de comportamento e linguagem deu
resultados d�spares. A primeira vista, a cultura letrada parece repetir, sem alternativa, o
modelo europeu; mas, posta em situa��o, em face do �ndio, ela � estimulada, para n�o


dizer constrangida, a inventar. Que o primeiro aculturador d� exemplo: Anchieta
comp�e em latim cl�ssico o seu poema � Virgem Maria quando, ref�m dos tamoios na
praia de Ipero�gue, sente necessidade de purificar-se. O mesmo Anchieta aprende o tupi
e faz cantar e rezar nessa l�ngua os anjos e santos do catolicismo medieval nos autos que
encena com os curumins. Uma antiga forma liter�ria, a epop�ia, nobilitada pela
Renascen�a italiana, molda conte�dos de uma situa��o colonial, no primeiro caso. No
segundo, por�m, o jesu�ta aguilhoado pelas urg�ncias da miss�o precisou mudar de
c�digo, n�o por motivos de mensagem, mas de destinat�rio. O novo p�blico e, mais do
que p�blico, participante de um novo e singular teatro, requer uma linguagem que n�o
pode absolutamente, ser a do colonizador.
E h� mais: Anchieta inventa um imagin�rio estranho sincr�tico, nem s� cat�lico, nem
puramente tupi-guarani, quando forja figuras m�ticas chamadas karaibeb�, literalmente
profetas que voam, nos quais o nativo identificava talvez os anunciadores da Terra sem
Mal, e os crist�os reconheciam os anjos mensageiros alados da B�blia. Ou Tu-pansy,
m�e de Tup�, para dizer um atributo de Nossa Senhora. De m�os dadas caminhavam a
cultura-reflexo e a cultura-cria��o.
E necess�rio acompanhar de perto o dinamismo peculiar � miss�o jesu�tica no Brasil
com toda a sua exig�ncia de fidelidade aos votos jurados na pen�nsula durante a Contra-
Reforma. Vir� o momento de se apartarem e se hostilizarem a cruz e a espada, que
desceram juntas das caravelas, mas que acabaram disputando o bem comum, o corpo e a
alma do �ndio.
O combate de morte entre o bandeirante de S�o Paulo e o jesu�ta, com a derrota final
deste em meados do s�culo XVIII, diz eloq�entemente de uma oposi��o virtual que
explode quando a pr�tica paternalista dos mission�rios e a crua explora��o dos colonos
j� n�o se ajustam mutuamente.
Anchieta considerava os portugueses os maiores inimigos da ca-tequese: ' 'os maiores
impedimentos nascem dos portugueses, e o pri


31


meiro � n�o haver neles zelo da salva��o dos �ndios [...] antes os t�m por selvagens.22
O que mais espanta os �ndios e os faz fugir dos Portugueses e por conseq��ncia das
igrejas, s�o as tiranias que com eles usam obrigando-os a servir toda a sua vida como
escravos, apartando mulheres de maridos, pais de filhos, ferrando-os, vendendo-os, etc.
[...] estas injusti�as e sem raz�es foram a causa da destrui��o das igrejas que estavam
congregadas e o s�o agora de muita perdi��o dos que est�o em seu poder.23
E denunciando os mamelucos chefiados pelo patriarca Jo�o Ramalho:
[...] nos perseguiam com o maior �dio, esfor�ando-se em fazer-nos mal por todos os
meios e modos, amea�ando-nos tamb�m com a morte, mas especialmente trabalhando
para tornar nula a doutrina com que instru�mos e doutrinamos os �ndios e movendo
contra n�s o �dio deles. E assim, se n�o se extinguir de todo este t�o pernicioso
cont�gio, n�o s� n�o progredir� a convers�o dos infi�is, como enfraquecer�, e de dia em
dia, necessariamente desfalecer�.24
Assim foi j� no primeiro s�culo da catequese. Os fatos confirmaram os temores do
mission�rio, que assim relata a fuga dos �ndios de S�o Tome:
Subitamente se alvoro�ou toda aquela gente de S�o Tome, e andava t�o revolta que
parecia andar o Dem�nio entre eles. Pregavam pelas ruas: ' 'Vamo-nos, vamo-nos antes
que venham estes Portugueses''. Vendo o Padre Gaspar Louren�o tal alvoro�o, f�-los
ajuntar, falando a eles, dando-lhes a entender qu�o mal faziam em deixar a igreja por
mentiras que lhes diziam, e eles chorando respondiam: "N�o fugimos da igreja nem de
tua companhia, porque, se tu quiseres ir conosco, viveremos contigo no meio desses
matos ou sert�o, que bem vemos que a lei de Deus � boa, mas estes Portugueses n�o nos
deixam estar quietos, e se tu v�s que t�o poucos que aqui andam entre n�s tomam
nossos irm�os, que podemos esperar, quando os mais vierem se n�o que a n�s, e �s
mulheres e filhos far�o escravos?", mostrando alguns deles os perigos e a�oites que em
casa de Portugueses tinham recebido, e isto diziam com muitas l�grimas e sentimento.25
A narrativa de Anchieta p�e em primeiro plano o contraste agudo entre a coloniza��o,
como prea��o, e o apostolado, que, no in�cio,

32

se entrosaram por necessidade. Ao que tudo indica, tratava-se de dois projetos distintos
cuja concilia��o foi sempre tempor�ria e diplom�tica, mas cujo dinamismo interno teria
que levar, como levou, ao aberto confronto.
O s�culo xvn est� pontuado de conflitos entre colonos e jesu�tas no Gr�o-Par�, no
Maranh�o, onde Ant�nio Vieira seria parte e testemunho, em S�o Paulo e, mais
dramaticamente, nas Miss�es dos Sete Povos do Uruguai. Mas a tens�o entre Igreja e
Estado n�o se limitou � ordem inaciana.
O poder eclesi�stico entra em lit�gio freq�ente com os interesses e a jurisdi��o civil. Os
motivos s�o naturalmente v�rios, e a tutela do �ndio reponta em mais de um caso.
Conto, para ilustrar, as tribula-��es da prelazia do Rio de Janeiro. O seu primeiro titular,
pe. Barto-lomeu Sim�es Pereira, morreu envenenado em 1598; o segundo, pe. Jo�o da


Costa, foi perseguido, expulso da cidade e deposto por senten�a da magistratura
colonial; o terceiro, pe. Mateus Aborim, tamb�m sucumbiu v�tima de pe�onha;
declinaram prudentes da honra prelat�cia o quarto e o quinto n�o assumindo o cargo
vacante; teve o sexto, o reverendo Louren�o de Mendon�a, que fugir para Portugal
escapando ao inc�ndio que os colonos atearam � sua casa ao queimarem um barril de
p�lvora em seu quintal; o s�timo, pe. Ant�nio de Mariz Loureiro (parente, quem sabe,
dos Mariz de alencariana mem�ria), amargou tal oposi��o que preferiu recolher-se �
capitania do Esp�rito Santo onde ensandeceu depois de sofrer tentativa de
envenenamento. Passo em sil�ncio a hist�ria do oitavo, o famoso dr. Manoel de Sousa e
Almada, pois aguda � a discrep�ncia das fontes quanto � sua inoc�ncia ou culpa: o fato �
que o seu pal�cio foi danificado por tiros de canh�o, o Tribunal de Rela��o da Bahia
absolveu os agressores e, para c�mulo dos agravos, foi o prelado coagido a pagar as
custas do processo; o mais se encontra parodicamente no 'Almada", poema her�i-
c�mico de Machado de Assis.26
A luta � material e cultural ao mesmo tempo: logo, � pol�tica. Se o que nos interessa �
perseguir o movimento das id�ias, n�o em si mesmas, mas na sua conex�o com os
horizontes de vida de seus emissores, ent�o poderemos reconhecer, na escrita dos
tempos coloniais, um discurso org�nico e um discurso eclesi�stico ou tradicional, para
adotar a feliz distin��o de Ant�nio Gramsci.

33


O discurso org�nico se produz rente �s a��es da empresa coloni-zadora, sendo, muitas
vezes, proferido pelos seus pr�prios agentes. � o escriv�o da armada que descobriu o
Brasil, Pero Vaz de Caminha. E o senhor de engenho e crist�o-novo Gabriel Soares de
Sousa, informante preciso e precioso ("�tonnant", no ju�zo de Alfred M�-traux), que
escreve com a m�o na massa. E o cronista minudente e empenhado dos Di�logos das
grandezas do Brasil. E Antonil, que, oculto sob este anagrama, e a si mesmo chamando-
se discretamente An�nimo Toscano, acabou contando indiscreto onde se achavam e
quanto valiam os nossos recursos em Cultura e opul�ncia do Brasil, exemplo de mente
pragm�tica e moderna a quem a roupeta de ina-ciano n�o impediu de entrar fundo nos
meandros cont�beis da produ��o colonial. E, enfim, o bispo ma�om Azeredo Coutinho,
que defende, em pleno limiar do s�culo xrx, a manuten��o do regime escravista para
maior seguran�a do a��car pernambucano e da Coroa lusa. Em todos manifesta-se
c�ndida e lisamente o prop�sito de explorar, organizar e mandar, n�o sendo crit�rio
pertinente para uma divis�o de �guas a condi��o de leigo ou de religioso de quem
escreve.
O outro discurso, de fundo �tico pr�-capitalista, resiste nas dobras do mesmo sistema
mercantil e, embora viva dos seus excedentes na pena de altos burocratas, nobres e
religiosos, n�o se mostra muito grato � fonte que lhe paga o �cio e lhe poupa os
cuidados do neg�cio, preferindo verberar nos colonos a sede de lucro e a falta de
desapego crist�o. E a mensagem que se depreende das s�tiras morais de Greg�-rio de
Matos e Guerra contra o mercador estrangeiro, o sagaz Bricho-te, e contra o usur�rio
novo-rico que alardeia av�s aristocr�ticos, o fidalgo caramuru. E a advert�ncia sombria
que sai das homilias de Ant�nio Vieira barrocamente cindidas entre a defesa dos bons
neg�cios e a condena��o dos abusos escravistas que eram a alma desses mesmos
neg�cios. E o sentimento que oscila, no Uraguai de Bas�lio da Gama, entre a
glorifica��o das armas coloniais, com Gomes Freire de Andrade � testa, instaurador do
novo pacto entre as pot�ncias de al�m-mar, e a poetiza��o dos selvagens rebeldes, afinal
os �nicos seres dignos de entoar o canto da liberdade.
A escrita colonial n�o � um todo uniforme: realiza n�o s� um gesto de saber pr�tico,
afim �s duras exig�ncias do mercado ocidental, como tamb�m o seu contraponto onde
se fundem obscuros sonhos de uma humanidade naturaliter christiana e valores de
liberda


de e eq�idade que a mesma ascens�o burguesa estava lentissimamente gestando. Onde
vislumbramos acenos contra-ideol�gicos descobrimos que o presente est� ou sob o olhar
do passado ou voltado para um futuro ideal, um olhar que se irradia do culto ou da
cultura.
Os fantasmas desse longo sonho intermitente rondam as tiradas milenaristas de Vieira,
as descri��es idealizadas dos Sete Povos feitas por mission�rios, as figuras sofridas e
indom�veis dos profetas do Alei-jadinho e alguma paisagem de fuga dos �rcades


mineiros. Como se v�, h� utopias e utopias, e s� a an�lise de cada contexto dir� como se
formaram, contra que e para quem se dirigiam.
Mas onde lan�a ra�zes essa v�ria fantasia se parece t�o s�faro o ch�o da cultura
colonial? O fil�sofo napolitano Giambattista Vi�o interpretava a fantasia dos povos em
termos de "mem�ria ou dilatada ou composta".27 O passado comum � remexido
livremente em cada gera��o at� que se formalize em mensagens novas. A mem�ria
extrai de uma hist�ria espiritual mais ou menos remota um sem-n�mero de motivos e
imagens, mas, ao faz�-lo, s�o os seus conflitos do aqui-e-agora que a levam a dar uma
boa forma ao legado aberto e poliva-lente do culto e da cultura.
A B�blia defende os judeus pela boca messi�nica de Vieira, a B�blia defende o mesmo
Vieira dos inquisidores, que alegam a escritura sagrada para abonar a sua acusa��o... e
afinal s�o todos, rabis, jesu�tas e dominicanos, peritos na exegese dos Livros. Isa�as,
Daniel e Jeremias profetas d�o ao mission�rio um verbo de a�oite para fustigar a
cupidez dos escravistas do Maranh�o, e, no entanto, � o fanado argumento paulino da
obedi�ncia dos servos a seus amos que Vieira endossa para negar aos quilombolas de
Palmares a gra�a de uma pol�tica de media��o sobre a qual o consultara el-rei. Do
cabedal da mem�ria saca o grande advogado armas para o escravo ou para o capital. O
passado ajuda a compor as apar�ncias do presente, mas � o presente que escolhe na arca
as roupas velhas ou novas.
Estranha religi�o meio barroca meio mercantil! Religi�o que acusa os vencedores,
depois entrega os vencidos � pr�pria sorte. Religi�o que abandona o verbo divino,
fr�gil, indefeso, �s manhas dos poderosos que dele saqueiam o que bem lhes apraz.
A arte � sacra ou profana � refaz a cara da tradi��o. Os santos macerados das imagens
devotas produzidas �s mancheias pela Contra-Reforma ib�rica inspiram alguns vultos
hier�ticos de Congonhas do

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Campo, obra do Aleijadinho maduro, nos quais j� houve quem divisasse a rebeldia dos
mineiros que o Reino jugulou. Naquele mesmo final de s�culo Virg�lio e Hor�cio
matizavam de flores silvestres a v�rzea tropical do ribeir�o do Carmo que os nossos
�rcades cantavam em sua lira. E na �ngreme Vila Rica as sombras ca�am longas dos
montes lavados de ouro.
A fantasia � mem�ria ou dilatada ou composta. Quem procura entender a condi��o
colonial interpelando os processos simb�licos deve enfrentar a coexist�ncia de uma
cultura ao r�s-do-ch�o, nascida e crescida em meio �s pr�ticas do migrante e do nativo,
e uma outra cultura, que op�e � m�quina das rotinas presentes as faces mutantes do
passado e do futuro, olhares que se superp�em ou se convertem uns nos outros.
A censura que Vieira movia �s cruezas da escravid�o nos engenhos do Nordeste
arrimava-se em um discurso universalista de cad�ncias prof�ticas ou evang�licas,
soando anacr�nico falar, nessa altura, de princ�pios liberais ou, menos ainda,
democr�ticos. A mensagem crist� de base, pela qual todos os homens s�o chamados
filhos do mesmo Deus, logo irm�os, contraria, em tese, as pseudo-raz�es do particularismo
colonial: este fabrica uma linguagem utilit�ria, fatalista, no limite racista,
cujos argumentos interesseiros cal�am o discurso do opressor. Ou seja, as raz�es
org�nicas da conquista, que, com poucas variantes, se reproporia em escala planet�ria
at� a �ltima fase do imperialismo colonial a partir dos fins do s�culo xrx.28
Entre n�s, os louvores aos donos de engenho, aos bandeirantes, aos capit�es e
governadores gerais, enfim, � Coroa com seu s�quito de f�mulos e burocratas s�o o
argumento p�fio mas inesgot�vel das academias baianas dos Esquecidos e dos
Renascidos, al�m de tema dileto dos linhagistas de S�o Paulo e de Pernambuco, focos
de nossa pros�pia desde o s�culo xvm. E s�o o motivo condutor de textos �picos
redigidos em tempos diversos: a Prosopop�ia, de Bento Teixeira, pastiche camoniano
oferecido a Jorge de Albuquerque Coelho, donat�rio de Pernambuco, no romper dos
Seiscentos; O valoroso Lucide-no, de fr. Manuei Calado, que canta em prosa e verso os
feitos de Jo�o Fernandes Vieira, o magnata portugu�s senhor de cinco engenhos
moentes e correntes e um dos chefes da resist�ncia contra os holandeses do Nordeste; o
Caramuru, de fr. Jos� de Santa Rita Dur�o, composto em honra do patriarca lusitano da
Bahia, Diogo Alvares Cor


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reia; enfim, Vila Rica, de Cl�udio Manuel da Costa, o poema que celebra a ordem civil
imposta ao arraial mineiro de Ant�nio Dias. Os dois �ltimos pertencem � literatura
neocl�ssica luso-brasileira que foi lida e, em parte, treslida pelos nossos rom�nticos do
Segundo Imp�rio � cata de precursores para o seu nacionalismo oficial. Era uma
interpreta��o equivocada: o epos setecentista ainda n�o se despregara da situa��o
colonial sem preju�zo dos seus louvores � paisagem e �s tradi��es da cr�nica
provinciana. A sua costela localista, bem vis�vel em Pernambuco depois da expuls�o
dos holandeses e na S�o Paulo p�s-bandeirista, tinha a ver com a ideologia


autonobilitadora dos estratos familiares que, em suas respectivas �reas de influ�ncia,
iriam constituir a classe dirigente do futuro Estado nacional.
Recapitulando: duas ret�ricas correram paralelas, mas �s vezes tangenciaram-se nas
letras coloniais, a ret�rica humanista-crist� e a dos intelectuais porta-vozes do sistema
agromercantil. Se a primeira aproxima cultura e culto, utopia e tradi��o, a segunda
amarra firmemente a escrita � efici�ncia da m�quina econ�mica articulando cultura e
colo. Postas em r�gido confronto, a linguagem humanista e a linguagem dos interesses
acordam sentimentos de contradi��o; mas examinadas de perto, no desenho de cada
contexto, deixam entrever mais de uma linha cruzada.

VOX POPULI VS. EPOS COLONIAL: UM PAR�NTESE CAMONIANO
Modem colonialism startedwith the fifteenth century voyages ofthe Portuguese along
the west coast of�frica, which in 1498 brought Vasco da Gama to �ndia.
International encyclopedia ofthe social sciences, 1968, vol. 3, verbete "Colonialism".
Ezra Pound afirmava que os poetas s�o antenas. Em um texto denso e complexo como
Os Lus�adas � poss�vel detectar os primeiros sinais de um contraste ideol�gico que
preludia a dial�tica da coloniza��o. No poema d�-se mais do que um simples conv�vio
de pontos de vista diferentes. Cam�es concebe a empresa mar�tima e conquista-dora sob

o signo do dilaceramento. Observador e participante, autor
37


e ator, o poeta vai construindo a epop�ia da viagem do Gama com materiais
diferenciados: nela entram, com igual direito, o sonho premonit�rio e o mito exemplar,
a mem�ria das rotas e derrotas atl�nticas e o drama contempor�neo, encarnados �s vezes
em figuras hier�-ticas que beiram a alegoria.
O narrador soube dialetizar a subst�ncia �pica do tema no exato momento em que ela se
al�aria ao cl�max da glorifica��o. Pois era bem de gl�ria que se tratava: gl�ria de dom
Manuel, gl�ria de Vasco da Gama, gl�ria dos her�is da navega��o africana, gl�ria de
Portugal.
Conv�m seguir de perto os passos que conduzem � hora capital da partida para as
�ndias:
A fala de Vasco da Gama ao rei de Melinde come�a no Canto III. Nessa altura, o
capit�o narra a hist�ria de Portugal interpretada como luta incessante, e afinal vitoriosa,
contra os mouros e contra a nobreza de Castela. Desse combate de s�culos emergiu a
Casa de Aviz, e a mat�ria do Canto IV � precisamente a alian�a da burguesia, dita
"povo", com dom Jo�o I, que tornaria vi�vel a. pol�tica dos descobrimentos,

que foi buscar na roxa Aurora
os t�rminos, que eu vou buscando agora (IV, 60).
Movendo-se no encal�o do cl�max o poeta acelera o ritmo da narra��o e encurta o ciclo
africano, todo voltado que est� para a apoteose do Gama. A tese, que j� � a afirma��o
do projeto expansionista do Reino, arma-se com a for�a irresist�vel do mito. O rei d.
Manuel, "cujo intento/ foi sempre acrescentar a terra cara", n�o desvia um s� minuto o
pensamento ' 'da obriga��o que lhe ficara/ dos antepassados"; n�o repousa o esp�rito
nem de dia, nem de noite, pois � vig�lia cuidosa sobrev�m sonhos perfeitamente
aleg�ricos, ' 'onde imagina��es mais certas s�o".
E com que sonha o Venturoso? "Morfeu em v�rias formas lhe aparece.'' Sonha que se
eleva a uma esfera alt�ssima de onde contempla outros mundos e long�nquas na��es. V�
que do Oriente extremo nascem duas fontes, origem de rios caudalosos. Esbo�a-se aqui
a pintura de uma terra agreste, selv�tica, ainda n�o pisada por p�s humanos. Do meio
das �guas saem em largos passos dois velhos, "de aspecto, inda que agreste, venerando''.
E de admirar a beleza pl�stica dessa transforma��o on�rica: os fios das �guas s�o barbas
e cabelos dos

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anci�os. A cor ba�a da pele diz que ambos v�m de regi�es tropicais, e a fronte cercada
de ramos assim como a gravidade do rosto assinalam a condi��o de realeza. As palavras
que eles dirigem a d. Manuel decifram o mist�rio da sua identidade: s�o os rios sagrados
da �sia, o Ganges e o Indo, fontes que descem dos c�us para oferecer � soberania
portuguesa os seus "tributos grandes".
O epis�dio solda id�ias caras ao vate: a dist�ncia e a estranheza de um mundo hostil,
"cuja cerviz nunca foi domada", e a pot�ncia fatal da Coroa portuguesa a que se rendem
pressurosamente, e at� "com �mpeto", a natureza e os homens de mais longes terras.


O sonho de d. Manuel deve ser prenuncio de bom sucesso, pois faz parte da economia
ideol�gica da epop�ia. E um sonho onde imagina��es mais certas s�o, frase que define
cabalmente toda alegoria enquanto figura resolvida em conceitos e no esquema finalista
do texto. De resto, a liga��o do epis�dio com o te/os do poema perfaz-se imediatamente
mal se esvaem os fantasmas da noite. D. Manuel desperta e logo convoca os seus leais
conselheiros (sempre os h� para adivinhar os desejos dos reis) que lhe decifram
prestantes "as figuras da vis�o". N�o h�, a partir desse momento, qualquer lapso para
hesita��es, pois, ato cont�nuo, os s�bios ' 'determinam o n�utico aparelho'', e o
Venturoso entrega �s m�os de Vasco da Gama a chave da empresa.
Afastadas as sombras do sonho, o relato corre l�pido e �lacre para a cena da partida na
qual deveriam soar todas as trompas e os clarins da musa camoniana. Abre-se um
espa�o de festa, um ' 'alvoro�o nobre", um "juvenil despejo", com soldados vestidos de
muitas cores e, ondeando ao vento, os a�reos estandartes.
No entanto, se o cen�rio se faz jubiloso, o clima emotivo que o permeia �, para surpresa
do leitor �pico, todo feito de medo e pesar. J� a prece ritual dos navegantes fala em
"aparelhar a alma para a morte''. Impetra-se o favor divino, mas a resposta do c�u �
incerta. A narrativa inflecte para o mundo interior do her�i, at� ent�o s� conhecido,
monoliticamente, como o forte Capit�o empenhado nas gl�rias do Reino:
Certifico-te, � Rei, que se contemplo Como fui destas praias apartado Cheio dentro de
d�vida e receio Que apenas nos meus olhos ponho o freio

(IV, 87)

39


Profeta Ezequiel.
' 'Osprofetas do Aleijadinho n�o s�o barrocos, s�o b�blicos.
Giuseppe Ungaretti


Soldado romano, oficina do Aleijadinho. As figuras caricatas dos Passos: arte de fronteira entre o erudito e o
popular.



Com a d�vida e o receio j� est�o dados os primeiros passos para a figura��o do
momento antit�tico do epis�dio. O trabalho espiritual de Vasco da Gama n�o �, ali�s,
uma express�o solit�ria. Ele se acompanha de um verdadeiro coro de trag�dia, o coro
dos que ficam, velhos, inv�lidos, crian�as e, principalmente, mulheres, nas quais a
saudade antecipada cede ao lamento, e o lamento � aberta revolta. Os sentimentos do
Gama afinam-se com uma ang�stia coletiva bem concreta. A sua d�vida e o seu receio
fundem-se com a d�vida e o receio de todos os que n�o est�o partindo para a aventura
de al�m-mar, mas que sofrer�o na pele as conseq��ncias desta no cotidiano da vida
portuguesa. A indecis�o, tra�o anti-her�ico por excel�ncia, dobra o her�i subjetivamente
e marca objetivamente a rota insegura da viagem.

Em t�o longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres c'um choro piadoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
M�es, Esposas, Irm�s, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desespera��o e o frio medo
De j� nos n�o tornar a ver t�o cedo

(IV, 89)
Ressalte-se a clara oposi��o entre as certezas e as alv�ssaras que o sonho de d. Manuel
despertara nos conselheiros da corte e o acento posto agora no termo d�vida e no seu
adjetivo duvidoso que por tr�s vezes comparecem em um contexto apertado de cinco
est�ncias:
Cheio dentro de d�vida e receio (IV, 87); Em t�o longo caminho e duvidoso (IV, 89);
Como, por um caminho duvidoso (IV, 91).
Duvidoso � express�o interior do car�ter d�bio de toda viagem feita � ventura.
As mulheres trazem as inflex�es mais pat�ticas ao coro de despedida. A voz das m�es �
feita do choro lutuoso de quem teme a morte do filho no fundo do mar,


onde sejas de peixes mantimento.
A voz das esposas diz bem da exig�ncia apaixonada e bravia que nega ao amado, em
nome do "n�s", o direito de partir:


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Por que is aventurar ao mar iroso Esta vida que � minha e n�o � vossa? Como, por um
caminho duvidoso, Vos esquece a afei��o t�o doce nossa? Nosso amor, nosso v�o
contentamento, Quereis que com as velas leve o vento?

(IV, 91)
�pico? L�rico? Dram�tico? �pico na historicidade coral que serve de pano de fundo �
express�o dos sentimentos; �pico este aventurar ao mar iroso, �pico este caminho todo
sombra e risco, �pico este vento que leva para onde quer as velas portuguesas. L�rica
esta voz do eterno feminino, sempre dulc�ssima entre as mais amargas queixas, das


quais a mais pungente � a que vem do esquecimento: "como [...] vos esquece a afei��o
t�o doce nossa?". L�rico este amor, este v�o contentamento, intui��o da fragilidade de
um la�o que as ondas podem desfazer em um s� instante. Enfim, dram�tica a
interpela��o da mulher ao homem, interlocutor mudo e cindido entre as adversas
paix�es do amor e da gl�ria; dram�tico o conflito que lavra entre as fam�lias assim
la�eradas e se aprofunda entre os dois modos de conceber a exist�ncia, o dos que partem
e o dos que permanecem. �pico-l�-rico-dram�tico o texto inteiro, na verdade po�tico,
sobrevoando as parti��es ret�ricas e relativizando o sentido dos grandes g�neros que
afinal recobrem modos m�ltiplos de dizer as rela��es sociais e abrigam no seu bojo os
tons mais variados da m�sica afetiva.
O coro alcan�a dimens�es c�smicas quando os montes respondem em eco �s vozes das
mulheres, dos velhos e dos meninos.
Mas o anticl�max ainda est� por vir. N�o basta o pranto coletivo: � necess�rio que o
poeta cl�ssico nos d� o discurso, eloq�ente e inteiro, e nos diga a verdade pelo
encadeamento implac�vel das raz�es. Este logos, que contradiz os fastos nacionais de
viagem, Cam�es vai desentranh�-lo do passado, da hist�ria portuguesa recalcada, da
hist�ria do povo. � a fala do Velho do Restelo.
O Velho, um dos muitos que se quedaram meros espectadores na praia, ' 'entre a gente'',
povo no meio do povo, rejeitar� sem apelo a empresa navegadora no preciso momento
em que as naus se lan�am ao mar.29

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A fala do Velho destr�i ponto por ponto e mina por dentro o fim org�nico dos Lus�adas,
que � cantar a fa�anha do Capit�o, o nome dos Aviz, a nobreza guerreira e a m�quina
mercantil lusitana envolvida no projeto.
Nada ficar� de p�. Ao motivo nobre da Fama, t�o invocado na t�pica renascentista, o
Velho dar� o nome real de vontade de poder:


0 gl�ria de mandar, � v� cobi�a
desta vaidade, a quem chamamos Fama!

O valor feudal da honra, ainda viv�ssimo nos Quinhentos, ser� desmistificado como
"fraudulento gosto,/ que se ati�a com uma aura popular'', soberba express�o de esc�rnio
lan�ada contra a demagogia dos poderosos que excitam o fanatismo da massa para faz�la
engrossar a sua pol�tica de guerra:
Chamam-te Fama e Gl�ria soberana, Nomes com que se o povo n�scio engana (IV, 96).
O velho interpela sarc�stico:


A que novos desastres determinas De levar estes Reinos e esta gente? Que perigos, que
mortes lhe destinas, Debaixo dalgum nome preeminente? Que promessas de reinos e de
minas De ouro, que lhe far�s t�o facilmente? Que famas lhe prometer�s? Que
hist�rias? Que triunf�s? Que palmas? Que vit�rias?

A viagem e todo o des�gnio que ela enfeixa aparecem como um desastre para a
sociedade portuguesa: o campo despovoado, a pobreza envergonhada ou mendiga, os
homens v�lidos dispersos ou mortos, e, por toda parte, adult�rios e orfandades. ' 'Ao
cheiro desta canela/ o reino se despovoa", j� dissera S� de Miranda.
A mudan�a radical de perspectiva (que dos olhos do Capit�o passa para os do Velho do
Restelo) d� a medida da for�a espiritual de um Cam�es ideol�gico e contra-ideol�gico,
contradit�rio e vivo.
Da condena��o passa o Velho � maldi��o, brado �ltimo da impot�ncia do cora��o que
n�o se rende. Ele execrar� toda ambi��o que, desde a ruptura com o estado de paz do
�den e a Idade do Ouro, lan�ou o g�nero humano nas eras de ferro do trabalho e da luta.
So


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bre as figuras m�ticas de Prometeu, D�dalo e �caro, her�is civilizadores do mundo
grego, o Velho far� incidir a mesma luz crua que revela o orgulho e a hybris.
Denunciar�, enfim, a subst�ncia mesma do progresso e da t�cnica, como se toda
aventura tit�nica precipitasse fatalmente na ru�na os seus empreendedores. A nau eo
fogo, as grandes inven��es de um passado remoto que iriam cal�ar o �xito do projeto
colonial moderno, s�o estigmas de um destino funesto:

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela p�s em seco lenho! Digno da
eterna pena do Profundo, Se � justa a justa Lei que sigo e tenho!
Trouxe o filho de J�peto do C�u O fogo que ajuntou ao peito humano, Fogo que o
mundo em armas acendeu Em mortes, em desonras (grande engano!) Quanto melhor
nos fora, Prometeu, E quanto para o mundo menos dano, Que a tua est�tua ilustre n�o


tivera Fogos de altos desejos que a movera!

(IV, 102-3)
No largar da aventura mar�tima e colonizadora o seu maior escritor org�nico se faria
uma consci�ncia perplexa: "M�sera sorte! Estranha condi��o!" (iv, 104).
O momento negativo passa depressa, por�m, ao menos na superf�cie dos fatos. As
palavras duras do Velho calam na alma dos navegantes, mas navegar � preciso:


Estas senten�as tais o velho honrado Vociferando estava, quando abrimos As asas ao
sereno e sossegado Vento, e do porto amado nos partimos. E, como � j� no mar
costume usado, A vela desfraldando, o c�u ferimos, Dizendo "Boa viagem!'1 Logo o
vento Nos troncos fez o usado movimento

(V, 1)
O sonho aleg�rico de d. Manuel preparou taticamente a viagem dos conquistadores: os
rios sagrados da �ndia afluir�o para um mar do


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mado pelos portugueses. Quanto aos que ficam na margem, renegam chorando o
andamento brutal das coisas e, pela voz do Velho, lembram os mitos da primeira idade,
afetando com um sinal de menos as figuras dos her�is que trouxeram o progresso
material aos homens. Mas a Hist�ria na qual se defrontam vencidos e vencedores segue

o seu curso, o "usado movimento".30
SOB O LIMIAR DA ESCRITA

O Velho do Restelo e a gente do povo que assistiam � partida de Vasco da Gama seriam
provavelmente, meio s�culo depois, os migrantes sem eira nem beira que demandariam
terra e trabalho na �ndia, na �frica e no Brasil. E as suas vozes j� n�o encontrariam um
poeta da altura de Lu�s de Cam�es para ouvi-las e traz�-las � p�gina impressa.
Sob o limiar da escrita tem vivido, desde o s�culo xvi, uma cultura que se gestou em
meio a um povo pobre e dominado. Em um espa�o de ra�as cruzadas e popula��es de
diversas origens a sua linguagem acabou ficando tamb�m mesti�a, a tal ponto que hoje
beira o anacronismo falar de cultura negra ou de cultura ind�gena ou mesmo de cultura
r�stica em estado puro.
No come�o, naturalmente, o grau de distin��o �tnica era alto. Os cronistas do primeiro
s�culo ainda presenciaram as cerim�nias tupis dos habitantes da costa; Jean de L�ry,
Hans Staden e Fern�o Car-dim informem por todos. E os ritos afro-baianos, que os
estudiosos do s�culo xix j� documentam, certamente remontam a s�culos anteriores.
Mas com o tempo a simbiose cabocla, mulata ou cafuza foi prevalecendo em todos os
campos da vida material e simb�lica: na comida, na roupa, na casa, na fala, no canto, na
reza, na festa... A acultura��o �, sem d�vida, o tema por excel�ncia da antropologia
colonial.
Um primeiro desbaste conceituai cumpre fazer nesse terreno. H� express�es
acentuadamente primitivas ou arcaicas, isto �, formas de cultura material e espiritual
peculiares ao homem que sempre viveu sob o limiar da escrita. E h� express�es de
fronteira que se produzem pelo contacto da vida popular com os c�digos letrados para
c� trazidos ao longo de todo o processo colonizador. Uma cerim�nia de an


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tropofagia entrevista por Hans Staden quando cativo dos tupinam-b�s n�o �,
evidentemente, do mesmo estofo que a cena de uma guerra posta em um auto escrito em
tupi por Anchieta e cantado e dan�ado pelos mesmos1 tupinamb�s, j� expostos �
catequese e, eventualmente, aprendizes do alfabeto latino. Outro par dessemelhante: um
rito africano de escravos ouvido com horror por Nuno Marques Pereira, no come�o do
s�culo xvm, e por ele chamado de calundu e exorcizado no seu Peregrino da Am�rica,
n�o � a mesma coisa que uma prociss�o de enterro promovida pela Confraria de Nossa
Senhora do Ros�rio dos Homens Pretos de Vila Rica poucos anos depois. Ainda: uma
imagem de Exu ou o desenho geom�trico riscado por uma tece-l� guarani n�o �
evidentemente uma imagem sacra imitada � arte devota portuguesa por algum santeiro
mulato de capela de engenho. Enfim: um ponto cantado no candombl� nag� de Salvador


n�o � a ladainha � Virgem entoada pelos confrades da Irmandade de S�o Jos� dos
Homens Pardos em alguma vila encravada nas Gerais.
S�o todas, por�m, cria��es que podem, com igual direito, ser chamadas populares,
independentemente da sua raiz �tnica ou das suas filia��es remotas, mesmo porque
origem n�o � determina��o. O certo � que o homem pobre e dominado foi o portador,
quando n�o o agente direto, dessas express�es, tanto as primitivas como as de fronteira,
tanto as puras quanto as mistas, tanto as proibidas quanto as toleradas ou estimuladas; e
todas se eq�ivalem antropologicamente. E papel da an�lise formal discernir os
componentes (chamados em geral tra�os} de estilo que entram em cada rito, narrativa
ou figura; e � trabalho da interpreta��o hist�rico-social colher os significados e os
valores que organizaram essas cria��es simb�licas.
Da maior parte das express�es da cultura n�o letrada se poder� dizer que s�o um
complexo de formas significantes cujo sentido comum � o culto, a devo��o. S�o
institui��es regradas de tal modo que a comunidade possa atualizar em si o sentimento
da pr�pria exist�ncia e da pr�pria identidade.
Tudo o que � necess�rio necessariamente retorna.
A repeti��o das f�rmulas, o re-iterar dos ritmos, o risco abstrato do desenho ind�gena, a
expressividade fixa e retida na m�scara africana, os rituais em toda parte ciosamente
id�nticos a si mesmos, a marca��o regular de cada part�cipe no coro e na dan�a � tudo
reflete uma vontade de conjurar, com f�rmulas poucas e pregnantes, a temi


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da e adorada transcend�ncia (dos mortos, dos deuses, do Outro) que segura nas m�os o
destino da pessoa e do grupo.
A medida, por�m, que o processo de acultura��o vai recebendo novos est�mulos da
matriz colonizadora, descola-se do fundo religioso-popular comum uma vontade de
estilo j� afetada pela cultura erudita. O barroco mineiro dos Setecentos estiliza-se e
aligeira-se, se comparado � arquitetura religiosa baiana do s�culo anterior, gra�as a uma
verdadeira recoloniza��o urbana que levas e levas de portugueses promoveram na zona
do ouro rec�m-descoberto. As forma��es art�sticas das Minas aparecem como tardias ou
defasadas quando postas em confronto linear com a hist�ria dos estilos europeus
respectivos; no entanto, n�o se tratava de uma arte de simples imitadores nem de uma
cultura deslocada e epig�nica, mas de um casamento original de novas necessidades
internas de express�o com modelos ainda prestigiosos vindos de Portugal e da It�lia.
Nessa arte de fronteira, os afetos vividos no cotidiano colonial, a venera��o, o medo, o
amor... se traduzem mediante uma economia de formas vindas de espa�os e tempos
distantes, mas nem por isso menos d�cteis e capazes de compor imagens fortes e coesas.
A sensibilidade do mesti�o em uma cidade colonial e a arte portuguesa dos Seis-
Setecentos entram nas figuras do Aleijadinho em uma s�ntese na qual manifestamente �

o estilo alto que rege a orquestra. Mas n�o importa aqui fazer a soma aritm�tica dos
fatores estil�sticos (tanto de culto, tanto de popular); importa determinar em cada caso a
perspectiva e o sentido das formas.
A rela��o de for�as inverte-se quando os exemplos s�o tomados a imagens sacras
an�nimas, a cantos e dan�as de Carnaval de rua, a hinos de prociss�o ou a narrativas do
romanceiro ib�rico transmitidas oralmente. Nesses casos todos de fronteira � a
inspira��o colonial popular que trabalhou, a seu modo, conte�dos de raiz remotamente
europ�ia e letrada.
UMA LITANIA CABOCLA NA GRANDE S�O PAULO

Lembro, a prop�sito, uma cerim�nia religiosa a que assisti na noite de Santo Ant�nio de
1975 quando presente a uma festa em honra do padroeiro.

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A capelinha, que ainda l� est�, ergue-se a uns cem metros da via Raposo Tavares,
naquele estir�o onde a estrada sobe de Vargem Grande. Ou, com maior justeza, fica na
Vila Camargo, no quintal da casa de Nh�-Leonor. Nem o lugar nem os empregos dos
moradores permitem falar em bairro rural. L� ningu�m planta para comer ou vender,
todos trabalham na cidade ou nas constru��es dos arredores. S�o h� muitos anos
assalariados e consumidores do supermercado e dos programas de televis�o.
Nh�-Leonor oferecia ent�o o churrasco de um boi que mandava matar todo ano para
cumprir uma promessa feita ao santo. Pelas dez horas chegou o capel�o, que n�o �,
como se sabe, um padre (a dona da casa j� tinha brigado, fazia tempo, com os padres
irlandeses de Cotia, modernos demais para o seu gosto), mas, no caso, um gordo
cinq�ent�o de tez rosada e olhinhos sorridentes que vinha de S�o Roque acompanhado


de dois rapazes mais uma preta magra de meia-idade.
O capel�o se postou com seus ac�litos junto ao altarzinho azul cheio de estrelas de
purpurina e deu come�o � reza puxando um ter�o alto e forte. Os fi�is, quase todos
mulatos de p� no ch�o e tresan-dando a pinga, e algumas mulheres menos mal vestidas
que os homens respondiam pelo mesmo tom e altura. Ia a coisa assim bonita e simples,
at� que, recitadas as cinco dezenas de ave-marias e os seus padre-nossos, chegou a hora
do remate com o canto da Salve Rainha. O capel�o come�ou a entoar nesse instante
hino � Virgem, em latim ("Salve Regina, mater misericordiae"...), e, o que estranhei, foi
seguido de pronto sem qualquer hesita��o pelos presentes. Depois veio o espantoso,
para mim: a reza, tamb�m entoada, de toda a extensa ladainha de Nossa Senhora
igualmente em latim. Eu olhava e n�o acabava de crer: aqueles caboclos que eu via
mourejando de serventes nas obras do bairro estavam agora ali acaipirando lindamente a
poesia medieval do responso:
"Esp�co justi�a" � ora pro nobis
(Speculum justitiae)
"Sedi sapien�a" � ora pro nobis
(Sedes sapientiae)
"Rosa mistia"� ora pro nobis
(Rosa m�stica)
"Domus aura"� ora pro nobis
(Domus �urea)
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Espelho de justi�a, sede da sabedoria, rosa m�stica, casa de ouro, estrela da manh�, arca
da alian�a, refugio dos pecadores, consoladora dos aflitos, rainha dos anjos, rainha dos
profetas, rainha da paz..., todos os atributos com que a piedade vem h� s�culos
honrando a figura materna de Maria se cantaram na voz grave do capel�o; depois, em
primeira voz, pela preta alta que parecia improvisar a melodia com torneios de moda de
viola e gestos a um s� tempo compostos e arrou-bados de adora��o; em segunda voz,
pelos rapazes e pelos fi�is todos em um coral de arrepiante beleza.
Quando sa� da capela perguntei ao mestre de reza quem lhe ensinara o of�cio.
Respondeu-me que seu pai, tamb�m capel�o nos s�tios de Sorocaba e Ara�ariguama. A
noite estava gelada, a lua ia alta, mas os caminh�es de carga ainda rangiam pesados
sobre o asfalto l� perto.
O que pensar dessa fus�o de latim lit�rgico medieval posto em pros�dia e em m�sica de
viola caipira, e da sua resist�ncia � a��o per-tinaz da Igreja Cat�lica que, desde o
Vaticano II, decretou o uso exclusivo do vern�culo como idioma pr�prio para toda sorte
de celebra��o?
Na verdade, a presen�a daquele capel�o singularmente anacr�nico j� dizia muito da
autonomia do culto popular em face da hierarquia oficial. A velha s�ntese de pr�ticas
luso-coloniais e cultura r�stica parece manter o seu dinamismo interior nas cerim�nias
daqueles caipiras afinal j� bastante urbanizados em termos de economia e cotidiano.
Eles fazem resist�ncia passiva �s inova��es do centro eclesi�stico que, rio caso
brasileiro, se tem voltado para uma linguagem pastoral politizada e, nas d�cadas de 70 e
80, rente aos discursos da oposi��o ao regime dominante.
A devo��o, mais talvez que outras esferas da vida em sociedade, propicia fen�menos de
persist�ncia simb�lica que, em alguns momentos cr�ticos de rea��o � prepot�ncia do
Estado modernizante, tomou a forma de uma obstinada re-arcaiza��o da comunidade
inteira. Foi o caso de certos movimentos ao mesmo tempo regressistas e prof�ticos,
tradicionalistas e rebeldes, como Canudos e o Contestado, de car�ter milenarista.31
Tudo leva a crer que, nesses cruzamentos da cultura letrada envolvente com a n�o
letrada envolvida, a situa��o das �reas coloniais

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apresente aquele conv�vio de extremos: os projetos mais agressivos do capitalismo
ocidental se plantam por entre modos de viver antigos e, nesta ou naquela medida,
resistentes. Que esse coabitar do arcaico com o modernizador n�o seja um paradoxo
conjuntural, mas um fen�meno recorrente na hist�ria da coloniza��o, � hip�tese que s�
novas pesquisas de campo e de texto poder�o confirmar.
Um corte sincr�nico feito na hist�ria popular de momentos em que a coloniza��o
retoma o seu �mpeto revelaria campos de for�a nos quais o novo interrompe ou
desagrega o antigo e o primitivo. Ou ent�o, o antigo adapta a si, sem maiores traumas,
alguns tra�os modernos onde quer que a cultura tradicional tenha deitado ra�zes e
guarde ainda condi��es de sobreviver.


A sugest�o te�rica dada por Oswaldo Elias Xidieh, um dos mais argutos estudiosos do
nosso folclore, � esta: onde h� povo, quer dizer, onde h� vida popular razoavelmente
articulada e est�vel (Simone Weil diria enraizada), haver� sempre uma cultura
tradicional, tanto material quanto simb�lica, com um m�nimo de espontaneidade,
coer�ncia e sentimento, se n�o consci�ncia, da sua identidade. Essa cultura, basicamente
oral, absorve, a seu modo e nos seus limites, no��es e valores de outras faixas da
sociedade, quer por meio da Igreja e do Estado (desde os tempos coloniais), quer por
meio da escola, da propaganda, das m�ltiplas ag�ncias da ind�stria cultural; mas, assim
fazendo, n�o se destr�i definitivamente, como temem os saudosistas e almejam os
modernizadores: apenas deixa que algumas coisas e alguns s�mbolos mudem de
apar�ncia.32
N�o h� d�vida de que, nos traumas sociais e nas migra��es for�adas, os sujeitos da
cultura popular sofrem abalos materiais e espirituais graves, s� conseguindo sobrenadar
quando se agarram � t�bua de salva��o de certas engrenagens econ�micas dominantes.
Tal sobreviv�ncia n�o d�, nem poderia dar, resultados felizes em termos de cria��o
cultural, pois � conduzida �s cegas pelos caminhos de explora��o do sistema. O
migrante que chega � cidade ou � terra alheia � um homem mutilado, um ser reduzido
ao osso da priva��o. A figura de Fabiano, o cabra de Vidas secas, n�o � um mito
liter�rio inventado por Graciliano Ramos. A sua conduta oscilar� entre o mais
humilhado conformismo e surtos de viol�ncia..., at� que um dia certas condi��es de
emprego, de vizinhan�a ou de grupo familiar puderem reconstituir aquele tecido de
signos e pr�ticas que se chama vida po


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pular. Para ele, toda situa��o de al�vio ou melhora parecer� obra da fortuna. E quase
sempre o tecel�o procurado para urdir os fios da sorte ser�, ainda, o culto, as "seitas",
como se diz hoje para nomear as v�rias igrejas de cunho pentecostal e milenarista que se
multiplicaram rapidamente a partir dos anos de 60. More algu�m nos bairros pobres das
redondezas de S�o Paulo, do Rio de Janeiro, de Buenos Aires ou de Lima, e ver� no que
resultou essa condi��o peculiar do migrante, nem mais folcl�rica nem ainda totalmente
absorvida pela ind�stria cultural que oferece infinitamente mais do que o povo pode
consumir. O capitalismo sempre desenraizou, de um lado, e reutilizou, de outro (e s� na
medida estrita do seu interesse), a for�a de trabalho do homem que emigra das zonas
tradicionais ou marginais. E de que fonte vem este bebendo energias para viver, ainda
que de raro em raro, um palmo acima do ch�o frio da necessidade? Na maioria dos
casos, s� daquela alma do mundo sem alma que plasmou a cren�a e o rito, a palavra e o
canto, a prece e o transe, e que s� a devo��o comunit�ria alcan�a exprimir.

O SENTIDO DAS FORMAS NA ARTE POPULAR

Voltando ao problema do cruzamento de culturas que a coloniza��o instaura: nem
sempre � f�cil determinar precisamente o que � culto e o que � popular nas formas
simb�licas de fronteira.
Nas pe�as an�nimas da imagin�ria sacra, o modelo remoto pode ser de origem g�tica
tardia, ou barroca ib�rica, mas o talho que faz a alma do rosto cria uma expressividade
intensa, reconcentrada e fixa, quase-m�scara, que trai um modo arcaico-popular de
esculpir o ser do homem no lenho ou na terracota. S�o palavras de Leonardo da Vinci: '
'Aprende com os mudos o segredo dos gestos expressivos''.
Na procura das constantes formais n�o basta verificar que o princ�pio da redund�ncia
parece conatural � arte do povo. Tra�os, linhas, cores, pontos de dan�a, ritmos, frases
mel�dicas, ecos, versos inteiros ou estribilhos, motivos de abertura, de gancho e de
fecho voltam, de fato, na maioria das cria��es populares. Quando percorremos as modas
e trovas recolhidas por S�lvio Romero nos Cantos populares do Brasil z por Amadeu
Amaral nas Tradi��es populares, a evid�ncia do ritornello nos toma de assalto. A
tenta��o de citar � irresist�vel. Um

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exemplo, entre tantos, de parlenda que se recita como jogo infantil em nosso Nordeste
desde o come�o do s�culo XK:

Amanh� � domingo, p� de cachimbo, Galo monteiro Pisou na areia; A areia � fina Que
d� no sino; O sino � de ouro Que d� no besouro; O besouro � de prata Que d� na
mata; A mata � valente Que d� no tenente; O tenente � mofino, Que d� no menino;
Menino � valente Que d� em toda gente.33
A recorr�ncia, que se firma pelo som (domingo-cachimho; monteiro-areia), rege, a
partir do primeiro d�stico, a parlenda inteira na qual se entremeiam a rima e o leixa-pren
medieval. D�o-se as m�os em m�tua ajuda o som e o sentido, at� sobrevir a imagem
coral onde o mais pequenino � o menino �, porque � valente, d� em toda gente,


fechando o cerco aberto pelo mais fino � a areia � que dava no sino. A necessidade da
repeti��o � t�o forte que o significado geral acaba acolhendo cadeias internas arbitr�rias
(sino que d� no besouro, mata valente...) para que o retorno sonoro e sint�tico se
mantenha firme.
Como bem se sabe, processos iterativos ocorrem tamb�m na arte culta, embora
veladamente, na medida em que o vetor ideol�gico mo-dernizante, posto em movimento
pela revolu��o rom�ntica, ressaltou os valores de originalidade de um "eu" criador
liberto de esquemas formais cerrados. A an�lise det�m-se, �s vezes, neste passo: ver no
texto o que � recorrente, e o que n�o �, o que � sim�trico, o que � assim�trico etc. Cabe �
interpreta��o buscar o sentido cultural do movimento expressivo, dizendo de qual
percep��o parte e para quais valores se inclina o artista quando retoma um tra�o ou uma
palavra.
O fundamento social da repeti��o pode ser o desejo de manter um acorde comunit�rio
em torno de afetos e id�ias que se partilham;

53


neste caso, o seu lastro psicol�gico vem da mem�ria, que grava melhor tudo quanto se
disp�e de modo sim�trico ou, pelo menos, recorrente.
Repare-se na const�ncia da figura��o do Bom Jesus na devo��o luso-brasileira. O Bom
Jesus � e n�o � um ser humano como todos n�s. H� um corte austero no seu talhe, seja o
de Iguape, seja o de Pirapora, seja o de Perd�es, e em todas as suas variantes o car�ter
frontal e hier�tico se mant�m severamente. Mas nesse porte sagrado, pr�prio de um
Deus, a paix�o marcou as fei��es do Ecce Homo. Bra�os ca�dos, m�os atadas, cabe�a
ferida de espinhos, as cinco chagas, olhos fundos: a criatura entregue � f�ria do destino.
O cetro, entre n�s a cana verde (alguns o chamam Bom Jesus da Cana Verde), � a senha
da realeza degradada em irris�o.
Reproduzir sempre o mesmo, corpo e fei��es, � obedecer aqui a uma necessidade
interna de percep��o social. O Bom Jesus, a humanidade que perdoa porque � divina, a
divindade que padece porque � humana, o Bom Jesus deve aparecer sempre igual a si
mesmo, � m�o que o esculpe e ao crente que vai depois fit�-lo e vener�-lo.
As varia��es de material (um dia madeira, outro gesso, enfim cart�o impresso), de
tamanho ou de acabamento refletem diferen�as de �poca e de meios t�cnicos, mas em
nada alteram a imagem, que se refaz em nome da sua identidade religiosa. E a
identidade que exige a reitera��o, em um primeiro tempo, e n�o vice-versa. Nas
paulisti-nhas de barro queimado feitas em S�o Paulo desde o s�culo XVIII, os santos s�o
reconhecidos por certos caracteres ou objetos indefect�veis: S�o Bento, pela barba
escura e pela cobra que envolve o sai�o; Santa Gertrudes, pelo cora��o de Jesus cavado
no peito; S�o Jos�, pelas botas, livro e l�rio; S�o Gon�alo do Amarante, pela viola ou o
livro; Santo Ant�nio, pelo h�bito franciscano e o Menino ao colo...34
O retorno de certos componentes refor�a o intuito expressivo de base. Basta �s vezes o
reaparecimento de uma �nica marca para identificar a divindade: � o caso de um Xang�
pernambucano que Lu�s Saia reconheceu sob as esp�cies do Menino Jesus em cujo
ventre os devotos do candombl� tinham pintado uma faixa vermelha. O signo, motivado
embora n�o figurativo, expressivo mas abstrato, cor e tra�o, meio s�mbolo, meio �ndice,
dizia aos fi�is que aquela imagem, ainda que n�o parecesse a todos, era Xang�.^ A
identidade sagrada estava garantida por aquele �nico tra�o distintivo, a cor vermelha,
que n�o

54

falta desde que se trate daquela entidade. O que volta, significa, e s� volta porque
significa.
As artes pl�sticas altas, da Renascen�a aos neocl�ssicos, tamb�m fogem aos riscos da
indistin��o. Mas os caminhos do artista s�o outros. O que faz o escultor acad�mico �
conduzir o acabamento, a rifi-nitura do material, at� �s �ltimas, diferenciando e
apurando as linhas de superf�cie a fim de obter a almejada individualiza��o no plano e
em cada pormenor. O m�rmore deve moldar-se flex�vel ao realismo das pregas que
tornam ic�nica at� a orla do panejamento... E verdade que o artesanato urbano europeu


tamb�m se comprazia nesse virtuosismo da min�cia (lembro alguns pres�pios
napolitanos do s�culo xviii, dos quais h� um soberbo exemplar no Museu de Arte Sacra
em S�o Paulo); mas � for�a convir que, nesse caso, j� se tratava de uma sutil penetra��o
do maneirismo e do barroco, logo da arte erudita, na imagin�ria cat�lica semipopular,
sempre mais cont�gua, na It�lia, �s t�cnicas experimentadas pelo artista culto.
O fundamental, nesta altura, � reter o car�ter duplo da arte n�o letrada em nossa
condi��o colonial: certa rigidez quase esquem�tica da composi��o geral, pelo que
muitos analistas falam em abstra��o arcaica versus figurativismo ou realismo do artista
urbano culto; e, ao mesmo tempo, a expressividade antes ontol�gica do que psicol�gica.
Rigidez e expressividade tornam a imagem sacra an�nima um objeto misterioso, um
enigma em que o tosco e o solene guardam a mesma face.
Eormalmente o hier�tico leva a reproduzir e a conservar posturas e linhas. O que �
solene n�o pode, por natureza, variar; tende � boa forma, � Gestalt, que se perpetua.
Assim � para toda express�o que chega a ser t�pica, alta ou baixa, sublime ou grotesca.
Dentro desse molde interno bastante amplo e d�ctil, que j� traz em si as potencialidades
da arte toda, pois funde abstrato com expressivo, a cultura popular est� generosamente
aberta a m�ltiplas influ�ncias e sugest�es, sem preconceito de cor, classe ou na��o. E, o
que � rico de conseq��ncias, sem preconceito de tempo. A cultura do povo � localista
por fatalidade ecol�gica, mas na sua dial�tica humilde � virtualmente universal: nada
refuga por princ�pio, tudo assimila e refaz por necessidade. As chegan�as e os congos
com que, desde o s�culo xviii at� nossos dias, se representam as lutas entre crist�os e
mouros sob a �gide de Carlos Magno e seus pares s�o exemplos

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not�rios de sincronia popular. Quanto � imagin�ria sacra, an�lises estil�sticas mais
detidas revelam tra�os bizantinos, g�ticos e barrocos em pe�as devotas paulistas do
s�culo XIX.36
E justamente este sincretismo democr�tico que faltou �s vezes aos estilos consumados
da cultura erudita sobretudo quando se codificaram no interior de institui��es fechadas e
auto-reprodutoras. Muito do que parece invari�vel na arte popular, e como tal
qualificado de t�pico, � apenas fidelidade vivida subjetivamente como boa forma; ao
passo que, na educa��o acad�mica, houve durante muitas gera��es um tipo de reitera��o
coatora que deu na imita��o pela imita��o, na etichetta {piccola �tica...), ou seja, na
f�rmula repetida t�o-s� porque social e politicamente prestigiada. Uma coisa � viver
espont�nea e fervorosamente a pr�pria tradi��o; outra � exibi-la de maneira afetada,
pedante, esnobe. S. nob.: sine nobilitate, express�o que se apunha, nos antigos col�gios
ingleses, aos nomes dos alunos de fi-dalguia suspeita.
Quanto � expressividade: na arte arcaico-popular costuma ser to-talizante; na arte
cultista tendia a multiplicar pormenores que se ostentavam por si mesmos,
comprazendo-se o artista no requinte da c�pia diante do modelo.
E o caso de perguntar: o que acontece na imagin�ria sacra an�nima quando algum
detalhe anat�mico vem isolado ou agigantado? Este vale como figura em que a parte diz

o todo. E o que se d� nos ex-votos encontr�veis junto ao p� dos cruzeiros nordestinos e
estudados finamente por Lu�s Saia na obra citada: m�os e p�s de tamanho acrescido e
tratados plasticamente com maior cuidado remetem � gra�a da cura alcan�ada. N�o � a
parte que se mostra a si mesma, maneiris-ticamente; � a sa�de do homem inteiro que se
agradece e se representa. O esquema de base continua sendo o da expressividade do
todo.
Os ex-votos depostos ao p� dos cruzeiros de acontecido (cruzes erguidas em s�tios onde
se deram mortes tr�gicas) s�o, ao mesmo tempo, objeto de promessas feitas a santos
cat�licos e esculturas de anti-qu�ssima estampa africana. E desafiam o int�rprete a
enfrentar o problema do conv�vio dos tempos.
A arte popular brasileira, em estado de acultura��o colonial, tem vivido pelo menos dois
tempos: o da catequese e o da religiosidade negra. A catequese � apenas tradicionalista,
entre tardo-medieval e barroca, mas o rito afro � manifestamente arcaico. O catolicismo
cambiou
signos com grandes estilos art�sticos da Hist�ria ocidental, de que � componente
efetivo: da�, a sua tend�ncia a deslizar do puramente aleg�rico para o figurativo realista
e, sob o influxo da Renascen�a, a admitir c�nones de perspectiva e representa��o
cl�ssica. Mas a arte ritual bantu ou sudanesa trazida pela m�o do escravo n�o sofreu
esse processo de atualiza��o estil�stica: continuou simb�lica e ani-mista. De certa
maneira, a acultura��o colonial conseguiu fundir as duas vertentes na modelagem do
objeto sagrado popular: enformou o ethos cat�lico da promessa, inerente ao ex-voto,


com o talhe arcaico da m�scara africana.
Se a catequese do nosso povo n�o foi propriamente uma ilus�o, como a definiu Nina
Rodrigues,37 com certeza foi parcial, tendo que compor-se dentro de um complexo
religioso mais difuso e arcaico do que o catolicismo oficial. O exemplo do ex-voto vale
como cultura de fronteira entre os dois universos, podendo ser qualificado tamb�m em
termos de acultura��o formal, na express�o de Roger Bastide, ou ainda de
reinterpreta��o de uma cultura pela outra, segundo a via te�rica aberta por Herskovits.
OS PROFETAS E O CALUNDU

Mantendo inalterados alguns esquemas tradicionais, a arte que vive sob o limiar da
escrita parece sobreviver fora da Hist�ria ou, pelo menos, fora do ritmo da hist�ria
ideol�gica da Europa Ocidental que, por sua vez, se reflete com nitidez na vida mental
das classes dominantes da Col�nia.
Na verdade, existe uma certa porosidade, na cultura de fronteira, em rela��o a formas
simb�licas de outros tempos, mesmo long�nquos; o que indica uma diversa qualidade de
consci�ncia hist�rica, isto �, a presen�a de uma sincronia ampla e sagaz que procura o
seu bem onde este se encontra. "Os profetas do Aleijadinho n�o s�o barrocos",
exclamou Giuseppe Ungaretti depois de rev�-los numa viagem que fez a Minas em
1968 em companhia do fot�grafo S�rgio Frederico,' 's�o b�blicos.'' Como n�o existe
uma estatu�ria b�blica, o que o olho de �guia do poeta viu foi a express�o em pedra de
uma religiosidade mais solene, coral e, ao mesmo tempo, mais intr�pida e livre do que o
consentiram os modelos maneiristas da escultura dos Setecentos.

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O pleno reconhecimento da arte colonial brasileira s� se fez poss�vel quando a crise do
gosto acad�mico burgu�s come�ou a dar os seus estertores no final da belle �poque.�
O modernismo, profundamente cindido entre o primordial e o novo, na sua �nsia de
redes-cobrir o Brasil, redimiu o barroco mineiro do olhar desdenhoso com que o
maltratara o crit�rio neocl�ssico transplantado pela Miss�o Art�stica Francesa em 1816.
Louvando os m�ritos desta, assim diz um seu historiador entusiasta:
As institui��es, sentimentos e pensamentos coloniais, apoiados no barroco, no jesu�tico,
no plateresco e no churrigueresco, foram substitu�dos por sentimentos e a��es
neocl�ssicos. Isto na arquitetura.
Na pintura, o antigo, a mitologia e a hist�ria substitu�ram a obra quase que
exclusivamente sacra dos "santeiros" pictoriais da Col�nia e do �ltimo Vice-Reinado.39
Repare-se, por duas vezes, a id�ia de substitui��o operada pela nova escola trazida por

d. Jo�o Vi. Do barroco religioso e popular (os santeiros) pelo neocl�ssico leigo e
modernizante. E, como se sabe, muito de nossa arquitetura civil, principalmente no Rio
de Janeiro oito-centista, iria conformar-se com este �ltimo padr�o. A partir da Reg�ncia
e, mais acentuadamente, ao longo do Segundo Reinado, tamb�m a nossa pintura dita
nacional se enquadraria nas regras do academismo franc�s. Gon�alves de Magalh�es, o
rom�ntico arrependido, e Ara�jo Porto Alegre foram disc�pulos diretos de Debret. N�o
admira, portanto, que um regionalista rom�ntico, nascido e criado em Ouro Preto,
Bernardo Guimar�es, tenha dito dos profetas de Congonhas do Campo palavras de
absoluta incompreens�o est�tica misturadas embora de espanto pelo vigor excepcional
do Aleijadinho:
E sabido que estas est�tuas s�o obras de um escultor maneta ou aleijado da m�o direita,
o qual, para trabalhar, era mister que lhe atassem ao punho os instrumentos.
Por isso, sem d�vida, a execu��o art�stica est� muito longe da perfei��o. N�o � preciso
ser profissional para reconhecer neles a incorre��o do desenho, a pouca harmonia e a
falta de propor��o de certas formas. Cabe�as mal contornadas, propor��es mal
guardadas, corpos por demais espessos e curtos, e outros muitos defeitos capitais e de
detalhe est�o revelando que esses profetas s�o filhos de um cinzel tosco e ignorante.
Todavia, as atitudes em geral s�o caracter�sticas, imponentes e majestosas, as
montagens dispostas com arte, e por vezes o
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cinzel do rude escultor soube imprimir �s fisionomias uma express�o digna dos
profetas.
O sublime Isa�as, o terr�vel e sombrio Habacuc, o melanc�lico Jeremias s�o
especialmente not�veis pela beleza e solenidade da express�o e da atitude. A n�o
encar�-los com vistas minuciosas e escrutadoras do artista, esses vultos ao primeiro
aspecto n�o deixam de causar uma forte impress�o de respeito e mesmo de assombro.
Parece que essas est�tuas s�o c�pias toscas e incorretas de belos modelos de arte, que o
escultor tinha diante dos olhos ou impressos na imagina��o.40


O que a sensibilidade rom�ntica do narrador Bernardo Guimar�es n�o poderia deixar de
admirar incide precisamente na expressividade totalizante: o sublime, o terr�vel, o
sombrio, o melanc�lico, as atitudes em geral, express�o digna dos profetas, beleza e
solenidade de atitude, forte impress�o de respeito e assombro. Mas, ao mesmo tempo, o
que o crit�rio da academia rejeitava era o tratamento pl�stico, que, afinal, garantia
aquela mesma for�a expressiva; era o gesto criador que n�o podia (nem precisava)
assumir a propor��o anat�mica, a perspectiva de Donatello, o virtuosismo do detalhe
mim�tico, a doce harmonia das curvas em fecho... justamente porque a sua l�gica
po�tica reclamava outras formas simb�licas e outra qualidade de execu��o final. O
coment�rio do �ltimo per�odo, que presume a exist�ncia de "belos modelos de arte" dos
quais os projetos seriam "c�pias toscas e incorretas'', d� a medida da distor��o est�tica
de um olhar endurecido pela f�rmula neocl�ssica.
O desentendimento parece, aqui, estrutural. O crit�rio erudito em causa conhece uma
hist�ria pr�pria, que mergulha nas lutas culturais da matriz europ�ia: � a oposi��o entre
as Luzes com seus padr�es neocl�ssicos e o ' 'obscurantismo'' barroco, devoto e
semipopular, visto sumariamente como um todo a ser superado. O esp�rito dessa luta,
quando penetra a ideologia da classe dominante no pa�s colonizado, se manifesta sob a
forma de julgamentos cortantes dos outros estratos culturais, n�o s� puramente
populares como tamb�m os que se exprimem na fronteira entre o iletrado e o culto. O
elitismo se tornaria, assim, um componente inarred�vel do processo ideol�gico latino-
americano na medida em que as id�ias gerais da evolu��o, progresso e civiliza��o n�o
se casavam com os valores da democracia social e cultural.
O gosto oficial do s�culo xix e do come�o do s�culo xx separou, por for�a da pr�pria
divis�o de trabalho e de poder, os valores

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do colonizador e os do colonizado, deca�dos a n�o-valores. Assim, o colonizado viveu
sempre ambiguamente o seu pr�prio universo simb�lico tomando-o como positivo (em
si) e negativo (para o outro e para si como introje��o do outro).
Um dos prop�sitos deste ensaio � sugerir que a cis�o cultural que acompanha o processo
de moderniza��o das elites conheceu outras formas, aparentemente mais duras, no
interior da situa��o colonial.
E not�rio o fato de que os primeiros jesu�tas demonizaram, de plano, as pr�ticas
religiosas tupis fazendo exce��o ao nome Tup� arbitrariamente assimilado ao Deus
b�blico. Com os ritos africanos a atitude de recusa foi ainda mais radical.
Lendo a alegoria barroca de Nuno Marques Pereira, o Comp�ndio narrativo do
Peregrino da Am�rica, sa�do em 1718, encontro um epis�dio que mostra como a
diferen�a religiosa se resolvia em pr�ticas de puro e simples exorcismo.
O Peregrino hospeda-se na casa de um generoso senhor de engenho. De noite, por�m,
n�o consegue pregar olho com o ru�do que fazem os escravos nas suas dan�as religiosas.
Eis o que acontece:
Perguntou-me como havia eu passado a noite. Ao que respondi: "Bem de agasalho,
por�m desvelado; porque n�o pude dormir toda a noite' '. Aqui acudiu ele logo,
perguntando-me que causa tivera. Respondi-lhe que fora procedida do estrondo dos
atabaques, pandeiros, canz�s, botijas e castanhetas; com t�o horrendos alaridos, que se
me representou a confus�o do inferno [...] 'Agora entra o meu reparo (lhe disse eu).
Pois, senhor, que cousa � Calundus?" "S�o uns folguedos, ou adivinha��es (me disse o
morador) que dizem estes pretos que costumam fazer nas suas terras, e quando se acham
juntos tamb�m usam deles c�, para saberem v�rias cousas; como as doen�as de que
procedem, e para adivinharem algumas cousas perdidas; e tamb�m para terem ventura
em suas ca�adas e lavouras, e para outras cousas.
A explica��o do fazendeiro, na verdade uma boa li��o de antropologia, colhe em termos
simples as fun��es integradoras do rito que se transplantou da �frica e se manteve nas
condi��es adversas do eito e da senzala.41 Mas o Peregrino n�o se convence nem se
rende; ao contr�rio, condena a toler�ncia do hospedeiro a ponto de cham�-lo de
excomungado, nome que estende aos escravos por crime contra o primeiro
mandamento, pecado de idolatria e culto do diabo, exata


60

mente como fizera, uma gera��o atr�s, o poeta Greg�rio de Matos em seu julgamento
dos costumes afro-baianos:

Que de quilombos que tenho com mestres super/ativos, nos quais se ensina de noite os
calundus e feiti�os!
O que sei � que em tais dan�as Satan�s anda metido, e que s� tal padre-mestre pode
ensinar tais del�rios.


("Queixa-se a Bahia por seu bastante procurador, confessando que as culpas, que lhe
increpam, n�o s�o suas, mas sim dos viciosos moradores que em si alberga.")


O nosso inquisitorial Peregrino das palavras passa � a��o. Manda chamar o "Mestre dos
Calundus", provavelmente o babala�, pergunta-lhe o que faz, e d�-lhe uma aula de
estapaf�rdia etimologia para provar o car�ter demon�aco das suas artes:
' 'Dizei-me, filho (que melhor fora chamar-vos pai da maldade), dizei-me que cousa �
Calundus?" O qual com grande repugn�ncia e vergonha me disse: que era uso de suas
terras, com que faziam suas festas folguedos e adivinha��es. "N�o sab�eis (lhe disse eu)
esta palavra de Calundus o que quer dizer em Portugu�s?" Disse-me o preto que n�o.
"Pois eu vos quero explicar (lhe disse eu) pela etimologia do nome, que significa.
Explicado em Portugu�s, e Latim, � o seguinte: que se calam os dois. Calo duo. Sabeis
quem s�o estes dois que se calam? Sois v�s, e o diabo. Cala o diabo, e calais v�s o
grande pecado que fazeis, pelo pacto que tendes feito com o diabo; e o estais ensinando
aos mais fazendo-os pecar, para os levar ao Inferno quando morrerem, pelo que c�
obraram junto convosco."42
Aterrados todos, o morador, o pai-de-santo e os escravos, mandou o Peregrino que
fizessem
vir todos os instrumentos com que se obravam aqueles diab�licos folguedos. O que se
p�s logo em execu��o, e se mandaram vir para o terreiro; e no meio dele se fez uma
grande fogueira, e nela se lan�aram todos. Ali foi o meu maior reparo, por ver o
horrendo fedor e grandes

61


estouros que davam os tabaques, botijas, canz�s, castanhetas e p�s de cabras; com um fumo t�o
negro, que n�o havia quem o suportasse: e estando at� ent�o o dia claro, se fechou logo com
uma lebrina t�o escura, que parecia se avizinhava a noite. Por�m eu, que fiava tudo da Divina
Majestade, lhe rezei o Credo; e imediatamente com uma fresca vira��o tudo se desfez.
Vem depois uma longa narra��o forrada de outros casos de com�rcio com o demo por
meio de idolatrias ou de atos libidinosos na pr�tica dos quais muitas almas se danaram
para todo o sempre.
O que ressalta neste epis�dio do Peregrino da Am�rica � a luta sem quartel da religi�o
oficial contra os ritos de origem africana; luta que culmina em um verdadeiro auto-de-f�
dos instrumentos sagrados dos cativos. E � digno de nota o recurso final do Peregrino
para dissipar a nuvem f�tida que cobriu a luz do dia: ele recitou o Credo exatamente
como quem lan�a contra o advers�rio uma f�rmula de magia, ' 'e imediatamente com
uma fresca vira��o tudo se desfez".
Na acultura��o colonial n�o � raro que o protagonista mais moderno fa�a regredir o
pr�prio ethos a est�gios arcanos.
Se procurarmos extrair um significado comum e mais geral dos desencontros apontados,
surpreenderemos a dial�tica de um complexo formado de tempos sociais distintos, cuja
simultaneidade � estrutural, pois estrutural � a compresen�a de dominantes e
dominados, e estrutural � a sua contradi��o. O olho do colonizador n�o perdoou, ou mal
tolerou, a constitui��o do diferente e a sua sobreviv�ncia. A rigidez ortodoxa selada
pelo Concilio de Trento abominava as dan�as e os cantos afro-brasileiros. Mais tarde, o
gosto acad�mico de molde franc�s desprezaria a maneira arcaico-popular do barroco
mineiro ainda sobrevivente na arquitetura religiosa do s�culo XD�. Sempre uma cultura
(ou um culto) vale-se de sua posi��o dominante para julgar a cultura ou o culto do
outro. A coloniza��o retarda, tamb�m no mundo dos s�mbolos, a democratiza��o.
R>i preciso esperar at� o primeiro quartel do s�culo xx, quando as pontas de lan�a da
intelig�ncia europ�ia, em um momento de forte autocr�tica do imperialismo ocidental,
repensaram a arte popular, o estilo do barroco americano e as culturas africanas para
que recebessem um olhar de simpatia as forma��es simb�licas do homem colonizado. A
antropologia anti-racista de Franz Boas, que aqui chega pelas m�os de G. Freyre, as
vanguardas parisienses das artes pl�sticas

62
incluindo a valoriza��o do art n�gre, e pouco depois a releitura dos barrocos feita pela
estil�stica alem� e espanhola: eis algumas vertentes cr�ticas, entre si d�spares, que
contribu�ram para despertar um sentimento novo nas elites intelectuais da Am�rica
Latina. Um sentimento que, embora pudesse confundir-se em alguns aspectos com o
nacionalismo, ent�o na pauta dos pa�ses ex-coloniais, na verdade transcendia esse
quadro de ideologia militante enquanto se voltava para as potencialidades universais da
arte e da religi�o. Da� a converg�ncia feliz de cosmopolitismo e enraizamento nas
manifesta��es de vanguarda desses anos de renascimento latino-americano e afro



antilhano.

63


2
ANCHIETA
OU
AS FLECHAS OPOSTAS DO SAGRADO

A poesia de Jos� de Anchieta, imersa que est� na devo��o cat�lica, corre o risco de ser
lida como um todo homog�neo. Mas, examinada de perto, revela diferen�as internas de
forma e sentido que vale a pena aprofundar.

ALEGORIA E CATEQUESE

Quando escrevia para os nativos, ou para colonos que j� entendiam a l�ngua geral da
costa, o mission�rio adotava quase sempre o idioma tupi. O trabalho de acultura��o
ling��stica �, nesses textos, a marca profunda de uma situa��o historicamente original.
O poeta procura, no interior dos c�digos tupis, moldar uma forma po�tica bastante
pr�xima das medidas trovadorescas em suas variantes populares ib�ricas: com o verso
redondilho forja quadras e quintilhas nas quais se arma um jogo de rimas ora alternadas,
ora opostas.
Redondilhos, quintilhas, conson�ncias finais: estamos no cora��o das praxes m�tricas
da pen�nsula, agora transplantadas para um p�blico e uma cultura t�o diversos.

Jand�, rubet�, Iesu, Jand� rekob� meeng�ra, oimomboreausukat�, Jand� amotareymb�ra.

Jesus, nosso verdadeiro Pai, senhor da nossa exist�ncia, aniquilou nosso inimigo.1

64

As palavras s�o tupis (com exce��o de Iesu), tupi � a sintaxe: mas o ritmo do per�odo,
com seus acentos e pausas, n�o � ind�gena, � portugu�s. O ritmo, mas n�o a m�sica
toda, pois a corrente dos sons prov�m do tupi.
Aculturar tamb�m � sin�nimo de traduzir.
O projeto de transpor para a fala do �ndio a mensagem cat�lica demandava um esfor�o
de penetrar no imagin�rio do outro, e este foi o empenho do primeiro ap�stolo. Na
passagem de uma esfera simb�lica para a outra Anchieta encontrou �bices por vezes
incontorn�-veis. Como dizer aos tupis, por exemplo, a palavra pecado, se eles careciam
at� mesmo da sua no��o, ao menos no registro que esta assumira ao longo da Idade
M�dia europ�ia? Anchieta, neste e em outros casos extremos, prefere enxertar o
voc�bulo portugu�s no tronco do idioma nativo; o mesmo faz, e com mais fortes raz�es,
com a palavra missa e com a invoca��o a Nossa Senhora:
Ejor�, Santa Maria, xe an�ma rausub�l Vem, Santa Maria, protetora dos meus!
Tais casos s�o, por�m, at�picos. O mais comum � a busca de alguma homologia entre as
duas l�nguas com resultados de valor desigual:
Bispo � Pai-gua�u, quer dizer, paj� maior. Nossa Senhora as vezes aparece sob o nome
de Tupansy, m�e de Tup�. O reino de Deus � Tup�retama, terra de Tup�. Igreja,
coerentemente � tup��ka, casa de Tup�. Alma � anga, que vale tanto para toda sombra
quanto para o esp�rito dos antepassados. Dem�nio � anhanga, esp�rito errante e


perigoso. Para a figura b�blico-crist� do anjo Anchieta cunha o voc�bulo karaibeb�,
profeta voador...
A nova representa��o do sagrado assim produzida j� n�o era nem a teologia crist� nem a
cren�a tupi, mas uma terceira esfera simb�lica, uma esp�cie de mitologia paralela que
s� a situa��o colonial tornara poss�vel.
Come�ando pela arbitr�ria equa��o Tup�-Deus judeu-crist�o, todo o sistema de
correspond�ncias assim criado procedia por atalhos incertos. Tup� era o nome, talvez
onomatopaico, de uma for�a c�smica identificada com o trov�o, fen�meno celeste que
teria ocorrido a primeira vez com o arrebentamento da cabe�a de uma personagem m�


65


tica, Ma�ra-Mon�.2 De qualquer modo, o que poderia significar, para a mente dos tupis,
fundir o nome de Tup� com a no��o de um Deus uno e trino, ao mesmo tempo todo-
poderoso, e o vulner�vel Filho do Homem dos Evangelhos?
O paradoxo crist�o aparece a nu em versos como estes:
Pitanginamo ereik�, Tup�namo eik�bo b�. �s uma criancinha, embora um Deus
tamb�m.
Aqui a homologia com Tup� revela-se cabalmente inadequada. Problema similar cria a
palavra que o poeta inventou para traduzir nos seus autos, como se disse acima, a no��o
de anjo. Karaibeb� presta-se a duas interpreta��es diversas: Kara� � tanto o homem
branco (at� hoje no Paraguai kara�serve de tratamento respeitoso, e vale senhor), quanto

o profeta-cantor guarani, a santidade que vai de tribo em tribo anunciando a Terra sem
Mal. Mas em que pensariam os �ndios acoplando kara� � id�ia de v�o expressa em
bebei Nos seus pr�prios xa-m�s n�mades e videntes, mas agora dotados de asas? Ou
ent�o em portugueses alados? No Auto de S�o Sebasti�o Anchieta se encanta com a
fantasia de um reino de anjos: karaibeb� rupape\
A acultura��o cat�lico-tupi foi pontuada de solu��es estranhas quando n�o violentas. O
c�rculo sagrado dos ind�genas perde a unidade fortemente articulada que mantinha no
estado tribal e reparte-se, sob a a��o da catequese, em zonas opostas e inconcili�veis.
De um lado, o Mal, o reino de Anhanga, que assume o estatuto de um amea�ador Anti-
Deus, tal qual o Dem�nio hipertrofiado das fantasias medievais. De outro lado, o reino
do Bem, onde Tup� se investe de virtudes criadoras e salv�ficas, em aberta contradi��o
com o mito original que lhe atribu�a precisamente os poderes aniquiladores do raio.
Narra Anchieta este caso de convers�o de um �ndio velh�ssimo ("que creio passa de
cento e trinta anos"), morador da aldeia de Itanha�m:
[...] falamos-lhe que o quer�amos batizar para que sua alma n�o se perdesse, mas que
por ent�o n�o pod�amos ensinar-lhe o que era necess�rio por falta de tempo, e que
estivesse preparado para quando volt�ssemos. Folgou ele tanto com esta not�cia, como
vinda do C�u, e teve-a tanto em mem�ria, que agora quando viemos e lhe perguntamos
se
66

queria ser Crist�o, respondeu com muita alegria que sim, e que j� desde ent�o o estava
esperando [...] O que se lhe imprimiu foi o mist�rio da Ressurrei��o, que ele repetia
muitas vezes dizendo: "Deus verdadeiro � Jesus, que saiu da sepultura e subiu ao C�u, e
depois h� de vir, muito irado, a queimar todas as cousas" [...] Chegando � porta da igreja

o assentamos em uma cadeira onde estavam j� seus padrinhos com outros crist�os a
esper�-lo. A� lhe tornei a dizer que dissesse diante de todos o que queria; e ele
respondeu com grande fervor que queria ser batizado, e que toda aquela noite estivera
pensando na ira de Deus, que havia de ter para queimar todo o mundo, e destruir todas
as cousas, e de como hav�amos de ressuscitar todos.
Depois do batismo o velho �ndio sup�s ' 'que dali subiria ao C�u, e tendo voltado � sua

casa come�ou a chorar, e seus filhos e netos com ele". 3
A narrativa nos d� um exemplo de fus�o de Cristo que ressuscita individualmente e
Tup� que destr�i em dimens�es c�smicas. E singular este novo Tup� que entra na
economia humanizada da Encar-na��o crist�: tem m�e, Tupansy, a qual � tamb�m sua
filha, Tup� rajyra (lembremos Dante, "Vergine Madre Figlia dei tuo Figlio", no Canto
XXXIII do Para�so); e tem casa e reino.
No universo escuro de Anhanga perfilam-se os maus h�bitos: no caso, a antropofagia, a
poligamia, a embriaguez pelo cauim e a inspira��o do fumo queimado nos marac�s.
Para falar s� do primeiro: o ritual de devora��o do inimigo remetia, na verdade, a um
bem substancial para a vida da comunidade, sendo um ato de teor eminentemente sacral
que dava a quantos o celebravam nova identidade e novo nome. Mas essa fun��o
sacramentai da antropofagia era exorcizada pelo catequista que via nela a obra de
Satan�s, um v�cio nefando a que o �ndio deveria absolutamente renunciar. Para
qualificar esse e outros rituais Anchieta forjou o termo angaipaba, composto, segundo a
an�lise de Maria de Lourdes de Paula Martins, de ang (alma), a�b (m�) e aba (sufixo
nominal), algo que soava como coisas da alma perversa, com que o mission�rio
reificava a no��o de pecado tornando assim mais vis�vel o objeto da sua execra��o.
Com o fim de converter o nativo Anchieta engenhou uma poesia e um teatro cujo
correlato imagin�rio � um mundo manique�sta cindido entre for�as em perp�tua luta:
Tup�-Deus, com sua constela��o familiar de anjos e santos, e Anhanga-Dem�nio, com a
sua coorte

67


de esp�ritos mal�volos que se fazem presentes nas cerim�nias tupis. Um dualismo
ontol�gico preside a essa concep��o totalizante da vida ind�gena: um de seus efeitos
mais poderosos, em termos de acultura��o, � o fato de o mission�rio vincular o ethos da
tribo a poderes exteriores e superiores � vontade do �ndio.
Est� claro que essa demoniza��o dos ritos tupis n�o produzia uma pr�tica religiosa de
que emergisse a figura da pessoa moral como sujeito de suas a��es. O catec�meno era
visto (e se via) como um ser possu�do por for�as estranhas das quais o viria salvar um
deus ex-machina pregado pelo abar�, o padre, e distribu�do pelos sacramentos com a
ajuda de entes sobrenaturais como os anjos e as almas dos santos.
Nos autos assiste-se � dramatiza��o de um processo que se instaura de fora para dentro
da vida tribal. J� apontei a sua estrutura dualista, longamente sustentada e variamente
desdobrada pelos trabalhos posteriores de acultura��o.
Caberia ainda insistir em uma distin��o pr�via: os mission�rios fizeram uma partilha
t�tica no conjunto das express�es simb�licas dos nativos. Colheram e retiveram das
narrativas correntes s� aquelas passagens m�ticas nas quais apareciam entidades
c�smicas (Tup�), ou ent�o her�is civilizadores (Sum�), capazes de se identificarem, sob
algum aspecto, com as figuras pessoais e b�blicas de um Deus Criador ou de seu Filho
Salvador. Como, ao que se sabe, os tupis n�o prestavam culto organizado a deuses e
her�is, foi relativamente f�cil aos jesu�tas inferir que eles n�o tivessem religi�o alguma
e preencher esse vazio teol�gico com as certezas nucleares do catolicismo, precisamente
a cria��o e a reden��o.
Essa impress�o � geral, figurando n�o s� nos textos jesu�ticos como em outras fontes,
independentes: Hans Staden, Jean de L�ry, Andr� Thevet, Gabriel Soares de Sousa,
Gandavo. Cito uma passagem exemplar da Informa��o do Brasil e de suas capitanias
(1584) de An-chieta:
Nenhuma criatura adoram por Deus, somente os trov�es cuidam que s�o Deus, mas nem
por isso lhes fazem honra alguma, nem comu-mente t�m �dolos, nem sortes, nem
comunica��o com o dem�nio, posto que t�m medo dele, porque �s vezes os mata nos
matos a pancadas, ou nos rios, e, porque lhes n�o fa�a mal, em alguns lugares medonhos
e infamados disso, quando passam por eles, lhes deixam alguma flecha ou penas ou
outra coisa como por oferta.

68
Linhas abaixo, falando dos feiticeiros {paj�s), o mission�rio admite que estes, sim,
teriam parte com o demo.4
A ordem das observa��es tanto dos mission�rios como dos cronistas �, em geral, a
mesma:
a) negam redondamente a exist�ncia de religi�o entre os tupis;
b) referem o medo aos trov�es que seriam tomados como uma manifesta��o de uma
divindade, Tup�;
c) narram casos de persegui��o e morte dos �ndios por esp�ritos maus, Anhanga


ejuripari, identificados com dem�nios;
d) enfim, reportam-se a influ�ncia dos paj�s e dos cara�bas.
A medida, por�m, que avan�avam no conhecimento da vida ind�gena, os mission�rios
foram percebendo que aquela absoluta aus�ncia de rituais consagrados a Tup� ou a
Sum� estava a indicar que se deveria buscar em outro locus simb�lico o cerne da
religiosidade tupi. O centro vivo, doador de sentido, n�o se encontrava nem em liturgias
a divindades criadoras, nem na lembran�a de mitos astrais, mas no culto dos mortos, no
conjuro dos bons esp�ritos e no esconju-ro dos maus. Eis a fun��o das cerim�nias de
canto e dan�a, das bebe-ragens (cauinagens), do fumo inspirado e dos transes que cabia
ao paj� presidir.
Eram essas pr�ticas verdadeiramente ricas de significado, esses os ritos que atavam a
mente do �ndio ao seu passado comunit�rio ao mesmo tempo que garantiam a sua
identidade no interior do grupo. A antropofagia n�o podia entender-se fora da cren�a no
aumento de for�as que se receberiam pela absor��o do corpo e da alma de inimigos
mortos em peleja honrosa.
A� estava, portanto, o alvo real a ser destru�do pela prega��o je-su�tica. O m�todo mais
eficaz n�o tardou a ser descoberto: generalizar o medo, o horror, j� t�o vivo no �ndio,
aos esp�ritos malignos, e estend�-lo a todas as entidades que se manifestassem nos
transes. Enfim, diabolizar toda cerim�nia que abrisse caminho para a volta dos mortos.
A doutrina cat�lica oficial, nesse limiar da modernidade leiga ou heterodoxa, que � o
s�culo da Renascen�a e da Reforma, procurava apagar os vest�gios animistas ou
medi�nicos do comportamento religioso. E o tempo da persegui��o implac�vel � magia,
tempo de ca�a �s bruxas e aos feiticeiros, de resto n�o s� na Espanha e em Portugal.

69


Compreende-se, nesse contexto, a escolha do diabo como protagonista de tantos autos
de Anchieta. E compreende-se, mais ainda, que o Anjo do Mal apare�a com ares t�o
familiares nas cenas grotescas ou jocosas de improp�rios, ou nas justas finais comuns
nestes acidentados mist�rios tupi-medievais.
Era preciso circunscrever o lugar do Mal, cerc�-lo, venc�-lo e sotop�-lo �s hostes do
Bem. Exemplar, a fala de Guaixar�, rei dos maus esp�ritos, no auto intitulado Na Festa
de S�o Louren�o. Nem � sup�rfluo notar que o nome de Guaixar� se deve ao fato de
assim chamar-se o her�i tamoio do Cabo Frio que atacou por duas vezes os lusos
sediados em S�o Sebasti�o do Rio de Janeiro (1566) e em S�o Louren�o (1567). O
outro chefe tamoio, Aimbir�, aparecer� representado como Satan�s:

Molestam-me os virtuosos irritando-me muit�ssimo os seus novos h�bitos Quem os ter�
trazido para prejudicar nossa terra?
Eu somente nesta aldeia estou como seu guardi�o, fazendo-a seguir as minhas leis
Daqui vou longe visitar outras aldeias.
Quem sou eu? Eu sou conceituado, sou o diab�o assado, Guaixar� chamado, por a�
afamado.
Meu sistema � agrad�vel.
N�o quero que seja constrangido,
nem abolido.
Pretendo
alvoro�ar as tabas todas.
Boa cousa � beber at� vomitar cauim. Isso � apreciad�ssimo. Isso se recomenda, Isso �
admir�vel!
70
S�o aqui conceituados os mo�aracas
beberr�es
Quem bebe at� esgotar-se o cauim,
esse � valente,
ansioso por lutar.
E bom dan�ar,
adornar-se, tingir-se de vermelho,
empenar o corpo, pintar as pernas,
fazer-se negro, fumar,
curandeirar...
De enfurecer-se, andar matando, comer um ao outro, prender tapuias, amancebar-se,
ser desonesto, espi�o ad�ltero, n�o quero que o gentio deixe.
Para isso
convivo com os �ndios,
induzindo-os a creditarem em mim.
V�m inutilmente afastar-me



os tais padres agora,
apregoando a lei de Deus.5

A tradu��o, por dever de estrita literalidade, ro�a �s vezes o prosaico. Mas que ardido
folheto de cordel renderia nas m�os de um poeta popular nordestino este elenco de
vanglorias do coisa-ruim!
Tudo quanto a fala de Guaixar� vai nomeando como obras suas, o que representa se n�o

o pr�prio sistema ritual dos tupis? E a ingest�o do licor fermentado, � a dan�a
prolongada noite adentro, s�o os adornos, � a pintura corporal vermelha e negra, � a
tatuagem, � a em-plumagem, � o fumo, s�o as consultas ao paj�-or�culo, � a
antropofagia.
Acende-se aqui o conflito entre culturas. As religi�es que tendem a edificar a figura da
consci�ncia pessoal unit�ria, como o juda�smo e o cristianismo, temem os rituais
m�gicos, tanto os naturalistas quanto os xaman�sticos, suspeitando-os de fetichistas ou
idolatras. Da�, a recusa de gestos que lembrem fen�menos medi�nicos ou de possess�o e
o horror de atos que fa�am submergir no transe a identidade pessoal. H� uma tradi��o
multissecular de luta judeu-crist� (a que n�o escapou o islamismo) para depurar o
imagin�rio; tradi��o
71


que remonta � lei mosaica, aos profetas, �s Cartas paulinas. E o medo do polite�smo
ressurgente levou, na sua din�mica, � a��o extrema dos iconoclastas. A liturgia crist�
europ�ia, na sua vertente mais moderna, protestante, afinava-se, desde o s�culo xvi, pelo
tom asc�tico de um calvinismo avesso a figuras e a gestos e, no limite, refrat�rio a
qualquer simbologia que n�o fosse o verbo descarnado das Escrituras. A rela��o com o
transcendente a� se fazia mediante a leitura direta do texto, a nua palavra da B�blia, s�
interrompida, em raros e bem marcados entretempos, pela s�bria entoa��o do canto
sacro: nada mais. Foi nesse momento hist�rico de viragem para um culto mais
intelectualizado que o crist�o da Europa entrou em contacto com as pr�ticas animistas
da �frica e da Am�rica. As flechas do sagrado cruzaram-se. Infelizmente para os povos
nativos, a religi�o dos descobridores vinha municiada de cavalos e soldados, arcabuzes
e canh�es. O re-contro n�o se travou apenas entre duas teodic�ias, mas entre duas
tecnologias portadoras de instrumentos tragicamente desiguais. O resultado foi o
massacre puro e simples, ou a degrada��o com que o vencedor p�de selar os cultos do
vencido.
No caso luso-brasileiro, a ponte entre a vida simb�lica dos tupis e o cristianismo
acabou-se fazendo gra�as ao car�ter mais sens�vel, mais d�ctil e mais terrenal do
catolicismo portugu�s se comparado com o puritanismo ingl�s ou holand�s dominante
nas col�nias da Nova Inglaterra. A devo��o popular ib�rica n�o dispensava o recurso �s
imagens; antes, multiplicava-as. Por outro lado, valia-se muit�ssimo das figuras
medianeiras entre o fiel e a divindade, como os anjos bons e os santos, os quais afinal
s�o almas de mortos que intercedem pelos vivos.
Nessa linha de media��es tang�veis, a catequese no Brasil valorizou, quanto p�de, a
pr�tica dos sacramentos, sinais corp�reos da rela��o entre os homens e Deus. E, ao lado
da linguagem simb�lica do p�o e do vinho (a Eucaristia), da �gua (o Batismo), do �leo
(a Confirma��o ou Crisma) e dos corpos (o Matrim�nio), difundiam-se ve�culos
modestos, mas constantes, os objetos ditos sacramentais, como o incenso e a �gua
benta, as rel�quias, as medalhas, os ros�rios e ter�os, os santinhos, os escapul�rios, os
c�rios e os ex-votos, um sem-n�mero de signos que tornavam acess�vel a doutrina
ensinada aos �ndios e negros da Col�nia.

72

Refor�ados pelo temor comum aos maus esp�ritos, os jesu�tas puseram-se a atacar no
cora��o os ritos de chamamento dos mortos que cimentavam as rela��es entre os
membros da tribo. Substitu�ram as cerim�nias tupi-guaranis por uma liturgia coral e
pinturesca que se desdobrava em prociss�es e vias-sacras nos adros dos templos, al�m
de um fervoroso devocion�rio de cunho popular onde legi�es de anjos e almas do
Para�so podiam ser invocadas para acorrer �s necessidades do fiel, mantendo-se sempre
a intermedia��o hierarquizada da Igreja.
O princ�pio mais geral da media��o, realizado por entidades espirituais (algumas
diurnas e noturnas como os anjos da guarda), permitiu que o catolicismo ib�rico, ainda


medieval no s�culo XVI, constru�sse uma ponte pratic�vel com m�os de ida e volta
entre os cultos dos colonizadores e a mente dos colonizados. Mas o efeito desse
contacto, propiciado pela cren�a comum na exist�ncia dos esp�ritos, n�o se daria sob a
�gide de uma uni�o fraterna de povos que o destino um dia aproximou... Como o regime
do encontro foi, desde o in�cio, a domina��o, as cerim�nias ind�genas de rela��o com os
mortos foram vistas, pela �tica dos viajantes e mission�rios, como sintomas de barb�rie
e, mais comumente, ca�ram sob a suspeita de demoniza��o. O processo colonial impedia
que a acultura��o simb�lica se fizesse livre, lisa e horizontalmente sem desn�veis e
fraturas de sentido e valor.
Sob o olhar do colonizador os gestos e os ritmos dos tupis que dan�am e cantam j� n�o
significam movimentos pr�prios de fi�is cumprindo sua a��o coletiva e sacral (que � o
sentido do termo liturgia), mas aparecem como resultado de poderes violentos de
esp�ritos maus que rondam e tentam os membros da tribo. A qualquer hora pode
sobrevir Anhanga, a sombra errante que espreita os homens, amea�a recorrente. Nos
autos de Anchieta o Mal vem de fora da criatura e pode habit�-la e possu�-la fazendo-a
praticar atos-coisas perversos, an-gaipaba.
O apelo, ali�s antiq��ssimo, ao besti�rio ilustra o teor regressivo do processo inteiro. A
figura do diabo � animalizada em mais de um passo. A natureza que n�o se p�de domar
� perigosa. Os esp�ritos infernais chamam-se, Na festa de S�o Louren�o: boiu�u, que �
cobra-grande; mboitiningu�u, cobra que silva, cascavel; andiragua�u, morceg�ovampiro;/
tfg#<znz, jaguar ou c�o de ca�a; jib�ia; soco; suku-riju, sucuri, cobra que
estrangula; taguat�, gavi�o; atyrabeb�, taman73



du� grenhudo; guabiru, rato-de-casa; guaiku�ka, cu�ca, rato-do-mato; kururu, sapocururu;
sarigu�ia, gamb�; mborabor�, abelha-preta; mia-ratakaka, cangamb�; seb�i,
sanguessuga; tamarutaka, esp�cie de lagosta, ta/assuguaia, porco.
Tudo quanto no reino animal metia medo ou dava nojo ao europeu vira signo d�bio de
entidades funestas em ambos os planos, o natural e o sobrenatural. O mal se espalha nos
matos ou se esconde nas furnas e nos p�ntanos, de onde sai � noite sob as esp�cies da
cobra e do rato, do morcego e da sanguessuga. Mas o perigo mortal se d� quando tais
for�as, ainda exteriores, penetram na alma dos homens. Aqui o olho inquisidor acusa
modos de possess�o coletiva em todas as pr�ticas da tribo que potenciam a vitalidade do
corpo at� os espasmos do transe. O cauim salivado na boca das velhas fermenta o
sangue, sobe � cabe�a e arrasta o �ndio � lux�ria e � brutalidade. A iguais excessos leva

o fumo que expira dos sagrados marac�s, cabe�as-caba�as onde moram e de onde falam
os ancestrais. � bebida e ao tabaco junte-se o mais potente dos excitantes, a carne crua
dos her�is mortos em guerra. Para o mission�rio a� se enla�avam em n� viperino os
pecados capitais da ira, da gula e da impenitente soberba. A cate-quese vai coisificar
como gestos de Anhanga esses e outros rituais vividos no interior das comunidades
ind�genas.
Outra rela��o de exterioridade imp�e-se com toda a evid�ncia no poema joco-s�rio "O
pelote domingueiro", prov�vel n�cleo dram�tico do Auto da prega��o universal, o mais
representado dentre os textos de Anchieta durante as suas andan�as pelas vilas do
litoral.
A alegoria do poema persegue a id�ia da gra�a divina que Ad�o recebeu do alto. O
pelote, isto �, o belo capote envergado aos domingos, � esse dom de que o primeiro
homem foi revestido no �den, mas perdeu quando deixou que o Anjo do Mal o furtasse.
Atente-se para a seq��ncia: o bem, ofertado de fora para dentro, como o traje est� para
o corpo, � tamb�m subtra�do ao homem por injun��es externas, no caso a esperteza
rapinante do capeta ("A cobra ladra e malina/ com inveja do moleiro/ apanhou-lhe o
domingueiro."). Mais tarde, isto �, com a vinda de Jesus Cristo, o novo Ad�o �
ressarcido da sua perda original: s� ent�o recobra a honra com o uso do pelote.
O homem recebeu de gra�a, foi roubado de chofre, enfim recu74


perou, tamb�m sem iniciativa sua, o dom da vida eterna. "Gra�a", "divinos does", tudo
s�o sin�nimos de gratuidade:

Ele, deram-lho de gra�a, porque "Gra�a" se chamava e com ele passeava, mui galante,
pela pra�a. Mas furtaram-lhe, � rama�a, ao pobre do moleiro, o pelote domingueiro.
Os pobretes cachopinhos ficaram mortos de frio, quando o pai, com desvario, deu na
lama de focinho. Cercou todos os caminhos o ladr�o, com seu bicheiro, e raspou-lhe o
domingueiro.
De gra�a lhe foi tomado, mas custou muito dinheiro ao neto, que foi terceiro para ser
desempenhado. Foi mui caro resgatado (ditoso de ti, moleiro!) teu pelote domingueiro.6


O pre�o do resgate, quem o pagou n�o foi o pecador, mas ' 'o neto do moleiro", Jesus
Cristo, sa�do da estirpe de Ad�o. A alma �, ainda e sempre, o palco de uma justa entre
pot�ncias mal�volas e be-n�volas que a transcendem e a objetivam.
O auto Na vila de Vit�ria ser� talvez o exemplo mais coerente do processo aleg�rico
trabalhado por Anchieta. Nele n�o h�, a rigor, personagens: s�o vozes, ou porta-vozes,
que remetem a entes pol�ticos, morais ou religiosos. � a Vila, � o Governo, � a
Ingratid�o, � o Temor, � o Amor de Deus, sem falar nos indefect�veis anjos do mal,
L�cifer e Satan�s, que desta vez se insultam um ao outro antes de ca�rem com
estrondosa derrota sob as mil�cias celestes de S�o Maur�cio e do arcanjo Miguel.

75


Se por alegoria entende-se um m�todo de pensar e dizer que se fixa no abstrato das
grandes no��es (recobrindo a riqueza das diferen�as vividas pela experi�ncia), ent�o as
figuras emblem�ticas desse auto ilustram com justeza a defini��o do processo. As falas
morali-zantes do Governo e do Temor escondem e, ao mesmo tempo, buscam resolver
por alto algumas tens�es pol�ticas agudas que, nos �ltimos anos do s�culo, dilaceravam
a capitania do Esp�rito Santo.
A vila de Vit�ria conheceu, nesse momento, a amb�gua e inc�moda situa��o de ser, a
um s� tempo, cabe�a de uma capitania portuguesa vacante, em 1589 (pela morte do seu
donat�rio, Vasco Fernandes Coutinho), e uma cidade feita juridicamente castelhana pela
uni�o dos Estados ib�ricos sob Filipe n, desde 1580. Governava a capitania dona Lu�sa
Grimaldi, dama da nobreza monegasca, vi�va de Fernandes Coutinho, quando estalou
um movimento pr�-castelhano que se interessava em fazer reverter diretamente � Coroa

o senhorio do Esp�rito Santo. O partido contr�rio, luso, pretendia assegurar aos parentes
pr�ximos do morto a reg�ncia de Vit�ria, reclamando assim um estatuto especial para a
vila, "um t�tulo novo/ com nova go-verna��o''.
Em meio a tanta disc�rdia os jesu�tas apoiaram, discreta mas firmemente, o partido de
Filipe li, fazendo gest�es diplom�ticas junto a dona Lu�sa para que se mantivesse no
leme da capitania, mas sempre formalmente sujeita ao poder central espanhol.
O auto reflete o momento sob os v�us de uma alegoria pol�tico-religiosa. A cidade fala
como grave matrona, a vi�va Grimaldi certamente, perplexa e dividida entre o bom
zelo, acaso indiscreto, dos herdeiros de seu marido e a obedi�ncia � autoridade de
Castela; esta afinal tudo vence pela boca de um sisudo conselheiro rotulado sem
maiores mist�rios de Governo, e prestante te�rico do direito divino dos monarcas,
"porque a verdadeira f�/ � governo descansado" (w. 712-3).
As rixas e tudo quanto pudesse saber a diss�dio aparecem como sentimentos inspirados
pelo Maligno e, mais particularmente, pela figura cardeal do auto, a Ingratid�o, uma
velha sinistra que j� fora barreg� de L�cifer e de Ad�o, instilando em ambos a revolta
contra Deus.
Na abertura do auto L�cifer atribui �s suas pr�prias artimanhas a ciz�nia que lavrou na
hora da sucess�o. O topos � o do mundo �s avessas:
76
qui�n pudiera, sino yo, viniendo ac� dei infierno, dei verano hacer invierno? Pues todo
se revolvia sobre ei mando y ei gobierno...
�T� no ves
mis enganos, mi doblez?
que procuro, tan de priesa
todo modar ai rev�s
y de cabeza pies,
de los pies hacer cabeza?
(w. 92-102)

Ao diabo atribui-se, portanto, o papel de subversivo por excel�ncia. No centro do auto
altercam-se em falas joco-s�rias a Ingratid�o, que tem evidente parte com o demo, e um
Embaixador jesu�ta, pr�-castelhano, mandado do Paraguai para retirar da vila de Vit�ria
as rel�quias de S�o Maur�cio que a cidade, enquanto insubmissa, se mostrara indigna de
abrigar.
Como o processo � todo figurado e rebatido para uma cena em que se movem entes
emblem�ticos, o espectador n�o v� nem conhece de perto o drama hist�rico real, nem
sequer os atos pol�ticos dos grupos supostamente possu�dos pela megera Ingratid�o. Os
tra�os externos desta s�o, a um s� tempo, tem�veis e ris�veis, segundo uma velha praxe
c�mico-ret�rica de mimar as atitudes socialmente reprov�veis com falas e gestos
grotescos que, por hip�tese, agradariam a p�blicos iletrados. A moral e o circo
enla�ados a servi�o de um interesse pol�tico.
A Ingratid�o entra em cena sobra�ando um velho tacho que ela revolve sem parar,
imagem das intrigas que continuamente provoca:
Eu sou a que sempre sou mexedora d'arrutdos (w. 951-2).
A sua fala � insolente e descomposta; mal v� o Embaixador castelhano, cobre-o de
improp�rios:
O castelhano que escarras, blasonador andaluz (w. 862-3).
77


O orgulho ferido de Embaixador dita-lhe resposta � altura:

�Oh, v�lgame San Francisco! Pens�me que eras drag�n, o aqu�l bravo can�n, que se
llama basilisco, o ei fiero tarrac�nP

(w. 877-81)
A Ingratid�o � uma velha bojuda que se vangloria de ter sido engravidada pelo Anjo do
Mal e pelo primeiro dos homens, embora (e a� o grotesco toca as fronteiras do
monstruoso) a sua prenhez n�o finde com a hora do parto:
N�o sabes que cada dia
pairo, sem nunca parir,
com mui estranha alegria? (w. 1019-21)
Cada ato de trai��o cometido pelos s�ditos rebeldes de Vit�ria � um novo parto da
Ingratid�o cujo estado habitual � por ela mesma descrito:


Sim, mas sempre hei de ficar prenhe, sem parir de todo, porque sempre h�o de pecar os
homens, por algum modo, enquanto o homem durar

(w. 1069-73)
A inspira��o dos motivos internos e a sua seq��ncia obedecem � l�gica do pensamento
m�tico, mas tudo vem preso a um ponto de vista aleg�rico-pol�tico fundamente
enraizado na din�mica dos interesses e do poder.
Vem � mem�ria a alegoria dantesca da Loba, a �ltima e mais terr�vel das feras que
barram ao poeta o acesso ao deleitoso monte do Para�so; a Loba, que os int�rpretes
remetem ora � fraude, ora � avidez, ora ao mais grave pecado da trai��o cometida a frio
contra o amigo e benfeitor. H� caracteres comuns �s duas concep��es. A figura anchietana
comp�e-se paradoxalmente, como a Lupa do Inferno, do vazio e do cheio, saco
sem fundo, fauce hiante e magr�m voraz, gr�vida dos pr�prios desejos nunca saciados,
sempre ressurgentes:
78
Pareces mora encantada que agora vienes de Argel, ei vientre como tonei, y Ia cara i
tan chupada y seca como papel!

Explica a Ingratid�o:

A raz�o
� porque a Ingratid�o tem uma tal qualidade que, cheia de maldi��o, esgota a fonte e
ben��o da divina piedade

(w. 1028-38)
Em Dante:
Ed una lupa, che di tutte brame sembiava carca nella sua magrezza E Loba que de
todos os desejos parece gr�vida na sua magreza.
(Inf., i, 49-50)
E mais abaixo:
e ha natura si mavagia e ria, che mai non empie Ia bramosa voglia, e dopo 7 pasto ha
piu fame che pr�a t�o m� e perversa tem a natureza que o seu feroz desejo n�o sacia e ao

fim do pasto volta mais faminta
(Inf., 97-9)
Tanto a velha megera quanto a Loba cruzam-se fecundamente, nascendo novos males
desses acasalamentos:


Ingratid�o
Tu n�o sabes que emprenhei do formoso Lucifer quando quis tamanho ser como Deus,
eterno rei, e ter supremo poder?



Depois foi meu barreg�o e me tomou por amiga o ingrato padre Ad�o. N�o v�s se
tenho raz�o de ter tamanha barriga?

(w. 1001-10)
Note-se com que habilidade Anchieta aproxima, em clave grotesca, barreg�o e barriga.
Em Dante:
Mo/ti son li animali a cui s 'ammoglia, e piu saranno ancora... E muitas s�o as bestas
com que cruza e mais ser�o ainda...
(Inf., i, 100-1)
A ingratid�o e a trai��o aparecem como v�cios tornados afins pela cupidez que os leva a
semear nos homens atos de infidelidade. Mais uma vez, na alegoria, o cotidiano dos
grupos sociais e os seus desejos e conflitos reduzem-se a extremos de fun��o exemplar:
ou degradam-se ao n�vel do bestial, ou sublimam-se pelo mecanismo ideol�gico que
consiste em assumi-los figuradamente pelo ' 'discurso sobre uma coisa para fazer
entender outra''.
Para a consci�ncia moderna e, especialmente, para a est�tica de filia��o idealista que vai
do humanismo de Goethe a Croce e ao primeiro Luk�cs, o uso da alegoria � res�duo de
uma antiga subordina��o da arte a outros fins � religiosos, pol�ticos ou morais; e, como
tal, converte-se em uma nega��o da autonomia po�tica. Alegoriza-��o, para essa linha
de pensamento, � o dom�nio do abstrato sobre o concreto da livre express�o do sujeito.
A revis�o desse julgamento dr�stico come�a com Walter Benjamim8 � com seus ensaios
sobre o drama barroco que a cr�tica liter�ria contempor�nea passa a atribuir � alegoria
um sentido ideologicamente complexo de forma revelado-ra (e n�o necessariamente
mistificadora) da desumaniza��o que v�m suportando, h� mil�nios, os oprimidos.
Haveria, na sem�ntica das imagens aleg�ricas, um ju�zo radical do Poder, esse outro-
esfinge, que despreza os homens enquanto pessoas singulares e diferenciadas, e a todos
apaga sob a cara vazia das grandes abstra��es. Benjamin quer surpreender essa for�a
denunciante da alegoria no verso moderno de
80
Baudelaire, na prosa nua de Kafka, no teatro did�tico de Brecht, no Angelus Novus de
Paul Klee.
� problem�tico trabalhar com essa intui��o cr�tica de Benjamin para reavaliar o auto
anchietano, no qual o aleg�rico � cifra de uma vis�o legitimista do mesmo poder. Para o
teatro do jesu�ta valeria antes a afirma��o de Luk�cs: ' 'A velha alegoria, determinada
por uma transcend�ncia religiosa, tinha a miss�o de humilhar a realidade terrena,
contrapondo-a � ultramundana ou celeste, at� a sua plena nu-lidade".9
Falando para nativos ou colonos Anchieta parece ter feito um pacto com as express�es
mais hier�ticas da cultura arcaico-popular: aquelas cren�as e aqueles ritos em que n�o
reponta, porque n�o pode determinar-se com clareza, a consci�ncia da pessoa moral
livre. Nas entranhas da condi��o colonial concebia-se uma ret�rica para as massas que
s� poderia assumir em grandes esquemas aleg�ricos os conte�dos doutrin�rios que o


agente aculturador se propusera incutir.
A alegoria exerce um poder singular de persuas�o, n�o raro terr�vel pela simplicidade
das suas imagens e pela uniformidade da leitura coletiva. Da� o seu uso como
ferramenta de acultura��o, da� a sua presen�a desde a primeira hora da nossa vida
espiritual, plantada na Contra-Reforma que unia as pontas do �ltimo Medievo e do
primeiro Barroco.
A for�a da imagem aleg�rica n�o se move na dire��o das pessoas, enquanto sujeitos de
um processo de conhecimento; move-se de um foco de poder ao mesmo tempo distante
e onipresente, que os espectadores an�nimos recebem, em geral passivos, n�o como um
signo a ser pensado e interpretado, mas como se a imagem fora a pr�pria origem do seu
sentido.
Mais do que um simples ' 'outro discurso'', como a define o seu �timo grego, a alegoria
� o discurso do outro, daquele outro que fala e nos cala, faz temer e obedecer, mesmo
quando os fantoches grotescos da sua representa��o (Diabo ou Megera) nos fa�am rir.
A alegoria foi o primeiro instrumento de uma arte para massas criada pelos intelectuais
org�nicos da acultura��o.

81


S�MBOLO E EFUS�O

Depois de conhecer o teatro de Anchieta o leitor moderno da sua l�rica se surpreende
com certos momentos de intensa personaliza��o e ardente acento subjetivo que o poeta
consegue dar � sua fala quando, em vez de pregar ao tupi e ao colono, diz as suas
pr�prias tens�es espirituais mediante a rela��o eu-tu que a alma entret�m com Jesus
Cristo.
A exterioridade pura, que confinava com o sublime do sagrado ou com o grotesco do
demon�aco no cen�rio constru�do para os autos, cede lugar, em algumas l�ricas
compostas em espanhol ou em portugu�s, a uma introje��o viva do transcendente. A f�
atinge o n�vel da experi�ncia.
; | TJuas linhas de forma��o po�tica combinam-se para dizer o sentimento de intimidade
com o divino: (a) a pr�tica de s�mbolos tomados � vida cotidiana; (b) a prolifera��o da
linguagem m�stico-efusiva.
A primeira � a via pela qual se busca revelar o transcendente pela atribui��o de aura ao
imanente � via sacramentai por excel�ncia. Deus se faz sens�vel e nome�vel nos
m�ltiplos sinais dos corpos e mediante a fala do alimento, da bebida, do calor e do
�xtase amoroso. Deus � p�o, � vianda, � bolo macio chamado foga�a, � divino bocado,
� fonte que embebeda, � deleite de namorados, �fogo gastador. E mais: todo grau de
parentesco, afetivo ou carnal, conv�m para traduzir a rela��o entre o humano e o divino,
como se depreende dos vocativos que se enfeixam nesta passagem de "Ao Sant�ssimo
Sacramento":

Meu bem, meu amor, meu esposo, meu senhor, meu amigo, meu irm�o, centro do meu
cora��o, Deus e pai!
Pois com entranhas de m�e quereis de mim ser comido, roubai todo o meu sentido,
para v�s!


Cristo � simultaneamente pai, m�e, irm�o e esposo, amigo e senhor! Trata-se,
evidentemente, de uma tentativa de aproxima��o que

82

superp�e e funde modos relacionais muito distintos, e at� formalmente incomposs�veis,
fora de todo sistema dogm�tico e dentro de uma l�gica do cora��o capaz de abrigar em
si tend�ncias contr�rias, movimentos paradoxais. N�o por acaso a �ltima frase diz:
"roubai todo o meu sentido, para v�s!".
No empenho de dar algum nome ou contorno singular ao ser amado, toda a vida do
corpo � metaforizada, e sublimada toda a vida de rela��o. Transp�em-se para o ideal de
um conv�vio homem-deus o ardor e a energia que produz o contacto f�sico do crente
com a mat�ria e com o semelhante. Realismo e misticismo encontram um lugar de
converg�ncia no rito sacramentai. E tamb�m verdade que esse processo de assimila��o
universal do corpo pela alma amorosa requer, na mente asc�tica do jesu�ta, o correlato
dom�nio sobre os instintos que, por si mesmos, entregues a suas pr�prias tend�ncias,
n�o resgatariam a opacidade do sangue e do sexo, e por isso devem aparecer como fogo


impuro que outro fogo, m�stico, combater�:

Este manjar aproveita para v�cios arrancar.

Tudo quanto se condenava como inspira��o diab�lica na vida das comunidades tupis �

o uso e a celebra��o tribal da comida e da bebida, da dan�a e do canto, da ora��o e do
transe � reverte positivamente � Eucaristia como express�o de um culto de teor
interpessoal que se vale do alimento para santific�-lo.
E o p�o-corpo, � o vinho-sangue de um homem-deus fraterno e salvador.
Em termos de psicologia hist�rica, dar-se-ia aqui um embate entre dois processos de
misticismo que se distinguiriam em grau? Uma �tica da consci�ncia religiosa crist�,
pela qual o sagrado j� � marcada-mente pessoal, v� como sat�nicas (regressivas) certas
pr�ticas rituais arcaicas onde parece eclipsar-se todo sentimento da criatura humana
como um ser uno, consciente, autocentrado. O ideal da visto intellec-tualis, que a
teologia crist� herdou dos neoplat�nicos, recusa-se ao transe �brio, descentrado e plural
dos paj�s tupi-guaranis. A uni�o eucar�stica rejeita com horror a cruenta refei��o
antropof�gica. O la�o matrimonial �nico renega a poligamia. O monote�smo, duramente
conquistado, olha com suspeita para o velho culto dos esp�ritos dispersos pelos ares,
pelas �guas, pelas matas.
83


O turbilh�o das dan�as tupis abre-se em m�ltiplas vis�es, ao passo que a prece e a
liturgia crist� procuram repousar na contempla��o do Deus �nico: a unidade do "eu"
que ora corresponderia � unicidade do divino para quem se ora.
O demon�aco avulta sob a conota��o de idolatria polim�rfica ("o nome do diabo �
Legi�o'', diz o Evangelho) que cinde a alma do fiel, turva a luz da sua mente, rompe
com a sua identidade e a degrada � cegueira e � anomia da carne crua e dos instintos
sem peia.
H� seguramente muito que aprofundar na avers�o que certas pr�ticas ind�genas (e,
mutatis mutandis, africanas) inspiraram aos sacerdotes crist�os. Talvez fosse o pavor de
recair em algum escuro e vertiginoso po�o pr�-hist�rico submerso mas n�o abolido
aqu�m do limiar da consci�ncia individual? Sacer queria dizer tamb�m, no velho latim,
tremendo e nefando {auri sacra fames), aquilo que n�o se deve sequer nomear.
No entanto, a piedade cat�lica desse mesmo s�culo da Contra-Reforma explorou de
modo intenso a imagina��o material do C�u e do Inferno, e fez reacender afetos cujo
dinamismo pudesse tocar a so-leira do transporte m�stico. Anchieta e todos os jesu�tas
do seu tempo s�o disc�pulos diretos de In�cio de Loyola, o fundador da companhia,
cujos Exerc�cios espirituais induzem a alma do praticante a vis�es me-todicamente
aterradoras do Al�m, assim como a preparam para sentir arroubos de contri��o e
adora��o.
De qualquer modo, por�m, os processos de sublima��o crist� mant�m n�tidas as
diferen�as que os separam dos rituais tupis. Se os esp�ritos espalhados pela selva
baixam na tribo que os invoca, inspirando-lhe vis�es violentas e c�leres como o clar�o
do raio, o Deus dos crist�os, "que est� nos c�us", rogado em solit�ria oratio e em bemcom-
posta meditatio, vir� � mente serena do fiel sob a forma absolutamente humana de
Cristo. Se nas cerim�nias tupis h� a difus�o do sagrado com a perda de identidade
anterior (a cada ritual antrop�fago seguia-se uma renomea��o dos seus participantes),
no itiner�rio crist�o ortodoxo busca-se a mais perfeita realiza��o da alma individual que
os te�logos medievais, mestres de In�cio de Loyola, denominavam visto beatifica. A
contempla��o �, em princ�pio, uma experi�ncia provada no deserto da solid�o, uma
conquista propiciada pela as-cese das pot�ncias afetivas e imagin�rias, uma luta �rdua
que prepara

84

o encontro com o Tu igualmente solit�rio e solid�rio: beata solitudo sola beatitudo.
Lendo o poema ' 'Ao Sant�ssimo Sacramento'', percebe-se que, para o eu l�rico, o fim
�ltimo das opera��es simb�licas que transmu-tam o p�o, o vinho, o calor e o beijo, �
sempre a vis�o de Deus. O contacto f�sico com as esp�cies consagradas abre caminho
para ' 'o mais espiritual dos sentidos" (Santo Agostinho), isto �, a vista, o meio corporal
destinado � contempla��o. /
O repasto do p�o, ato unitivo por excel�ncia, � o pen�ltimo passo da viagem m�stica,
apenas um mediador provis�rio da f�, etapa necess�ria � criatura que ainda n�o

alcan�ou, em vida, a evid�ncia imediata do sagrado:
enquanto a presen�a tarda
do vosso divino rosto,


o sabroso e doce gosto
deste p�o
seja minha refei��o
e todo meu apetite
seja gracioso convite
de minh'alma,
ar fresco de minha calma,
fogo de minha frieza,
fonte viva de limpeza,
doce beijo
mitigador do desejo
com que a v�s suspiro e gemo,
esperan�a do que temo
de perder.
A meta final � o conhecimento direto da divindade, a sua intui��o face a face:
Comendo de tal penhor, nele tenha minha parte e depois, de v�s me farte com vos ver!
85


O estado de plenitude continua sendo, como em toda teologia de fundo augustiniano, o
mirar e ad-mirar sem v�us o ser eternamente vivo.
Por que essa via se constr�i por s�mbolos e n�o por alegorias? Porque, segundo a
fecunda perspectiva de Goethe, "a Id�ia se faz, na imagem, ativa e inexaur�vel''. Para
exprimir a no��o de uma felicidade suprema haver� sempre novos modos concretos e
imag�sticos de dizer, e sempre fica algum fundo residual para comunicar. O s�mbolo,
para Goethe, amplia a capacidade de formar a Id�ia, ao passo que a alegoria fecha o
horizonte das significa��es, e pode, no limite, reduzir a figura a fetiche. Na alegoria a
representa��o se concentra na fixidez enigm�tica do destino perante o qual n�o restaria
ao sujeito mais do que curvar-se humildemente, ou perscrut�-lo no desejo de entrever
um sentido j� dado desde e para sempre.
O trabalho da alma que produz novos s�mbolos e novas analogias sofre a opacidade dos
limites humanos, mas alenta a esperan�a de desfazer as resist�ncias do signo at� aceder
� intui��o da luz sempre viva. � a proposta do itinerarium mentis in Deum de S�o Boa-
ventura, o roteiro do fiel errante que presidiu � concre��o po�tica da viagem dantesca
atrav�s dos c�rculos foscos do Inferno e das sombras viol�ceas do Purgat�rio. Depois
vir� a hora da meridiana claridade. ' 'Agora vemos por espelho e em enigma, mas ent�o
veremos face a face", na li��o de Paulo aos cor�ntios.
A segunda linha de forma��o po�tica seguida por Anchieta l�rico n�o se estende nesse
eixo que vai da figura � face, mas deseja atalhar o mais rapidamente poss�vel os
percursos que separam os meios significantes do fim, e se lan�a impaciente � proje��o
das puls�es afetivas.
Nesta linguagem, que se poder� chamar efusiva, comp�s Anchieta algumas passagens
em espanhol, muito provavelmente a sua l�ngua de inf�ncia. Provavelmente, pois h�
quem afirme que ele aprendeu a falar em basco, ensinado por seu pai.
S�o poemas que dispensam o uso de correlatos simb�licos (o fogo, a comida, a bebida)
e procedem a uma opera��o dial�gica na qual � o �mpeto dos afetos que identifica o eu
do enunciado. Nesses textos � secund�ria, se n�o ausente, a tela mediadora das figuras.

86

O fen�meno, aparentemente s� ps�quico, compreende-se melhor se visto � luz da
hist�ria cultural. A velha piedade g�tica, encadeada em s�ries aleg�ricas e emblemas
doutrin�rios que at� hoje se podem admirar nos baixos-relevos das catedrais, vai
cedendo a um gesto mais moderno do eu, a uma fala veemente e individualizada. J� nos
Exerc�cios espirituais do fundador da Companhia de Jesus, o ver-para-pensar, de
inequ�voca estirpe tomista, aparece cruzado com um sentir para pensar-se que afina o
tom na prosa intimista da Imitatio Christi e na piedade sens�vel difusa ao longo do '
'outono da Idade M�dia''.
O poema, em vez de compor-se como sintaxe de imagens, flui como fala animada,
ress�o daquela devotio moderna dos m�sticos flamengos que pelas �guas das medita��es
de Thomas de Kempis ume-deceram a terra dura dos textos asc�ticos de In�cio de


Loyola.
Cristo fala ao poeta, e este lhe responde em di�logo cerrado de tal forma que a marca da
primeira pessoa se desloca de um para outro, e o centro do discurso nunca se afasta do
sujeito:


Yo nac� porque tu mueras, porque vivas morir�, porque rias llorar�, y espero porque
esperes, porque ganes perder�.

("O Menino nascido ao Pecador")
Trata-se, formalmente, de um "trovar encadenado", para usar a express�o do poeta
espanhol Juan de Encina em sua Arte de poesia castellana entre medieval e
renascentista. As figuras ret�ricas envolvem aqui a��es-verbos e pares de conceitos
antit�ticos, que visam a relativizar a dist�ncia entre a criatura e o seu redentor,
apertando os nexos existentes entre ambos:


Tu naces, iy yo no muerol Yo vivo, iy t� morir�s, Nino, pr�ncipe de paz! Digo que ser
tuyo quiero... iNo s� que te diga m�s!

O di�logo p�e a nu o quanto h� de dram�tico no ato mesmo do resgate. E como estamos
distantes daquela rela��o m�gica e externa em que o diabo tomava e Deus restitu�a ao
moleiro o pelote do-mingueiro! Aqui, o sacrif�cio de Cristo {para que vivas, morrerei)
n�o

87


ARTE �

DE GRAMMA


TICA DA LINGVA MAIS

VSADA NA COSTA DO BRASIL.

FeitapeloP. lofephde ^Anchieta Tkeologo
& Prouincial qtiefoy daCompanhia
del E s v* nas
partes do rBraJV.

Das letras. Cap. L

E S T A lingoa do Brafil n�o ha f. 1. s.z. rr. dobrado'nem muta com liquida,
vtcra, pra, &c. Em lugar do s.in principio,ou m�dio di&ionis ferue, �. com
zeura, vt Q4(�, (at�. ' �jj Alg�as partes da ora��o fe acab�o em til, o qual
n�o he,m. nem,n. ainda q na pron�-cia��odifnr�opouco, vt, TttAinstpd*trud*.
^ N�o ha h�a confoante continuada com outra na mefma di��o: excepto,
mb. nd. ng. vt oAimemb�r, C�imond�, Aime�ng. % Acrecentandofe alg�a
part�cula depois da vitima
A con


Fac-s�mile do in�cio do primeiro cap�tulo da Arte de Gram�tica de Anchieta.
Uma imagem rara: Anchieta sorrindo.
�leo do s�culo XVII conservado no Museu Padre Anchieta. S�o Paulo.



� correspondido pelo pecador (tu nasces, e eu n�o morro!). E, no entanto, apesar de
admitir-se o desencontro moral, o desejo da uni�o m�stica imp�e-se e reitera-se: Digo
que ser teu quero...

Nas redondilhas maiores de "Jesus e o Pecador" atualiza-se uma tend�ncia original da
nova espiritualidade: a declara��o tensa das dist�ncias � seguida por uma confiss�o
dr�stica da impot�ncia verbal, aquele expressivo no s� que, �ndice pelo qual o eu
moderno, mais perplexo que o medieval, reconhece as fronteiras da sua linguagem e
suspeita que at� mesmo a poesia pode n�o ter palavras diante do Outro. Ao mesmo
tra�o, sofrido com resigna��o ou desespero, emprestariam auras diversas l�ricos
barrocos, rom�nticos e os expressio-nistas de nosso tempo:

Digo que eres todo bueno, digo que eres creador, digo que eres redentor, digo que eres
amor lleno, digo que eres todo amor, digo que eres mi Senor, digo que muerto ser�s,
digo que das vida y paz, digo que es sin fin tu honor... �N� s� qu� te diga m�s!

No seu cancioneiro reconhece Anchieta a pr�pria incapacidade de dizer quem � Deus
depois de ter reiterado, por nove vezes, a forma verbal "digo", preposta a cada s�rie no
cl�max de predica��es em seu louvor. A l�gica do discurso m�stico leva
necessariamente a dizer a inefabilidade do seu objeto.
Em outros textos h� uma fala voltada para manter a intimidade a dois, melodia feita de
queixumes e protestos instantes para que a alma reparta com Cristo as dores da cruz,
al�m de manifesta��es de uma linguagem paraverbal, ou transverbal, em que,
misturados a pontos de interroga��o, a exclama��es e a retic�ncias, irrompem
"suspiros", "sangue", "l�grimas", "cuidados", "gozo", "chagas", "gemidos".10 A tudo
rege o convite impaciente: "Venid!".

Venid a suspirar con Jesu amado, los que quereis gozar de sus amores, pues muere por
dar vida a sus pecadores.
90
Tendido est� Ia cruz, corriendo sangre sus santas //ag�s hechas /�mpios banos, con que
se da rem�dio a nuestros danos.
Venid, que ei buen pastor ya di� su vida, con que libro de muerte su ganado, y da/e de
beber a su costado.

O novo estilo l�rico-religioso tem seu ponto alto no uso do paradoxo, variante obrigada
na express�o do inef�vel. Tal figura prolonga a ret�rica dos contrastes do Cancioneiro
geral e antecipa o jogo ma-neirista dos primeiros barrocos. O que n�o se consegue
dizer, porque � infinito, tenta-se sugerir pela seq��ncia dos opostos {morte/vida),
for�ando um novo senso feito de contra-sensos.
Uma contradi��o fundamental � projetada no drama do Calv�rio (morte) que se
identifica com a salva��o dos homens (vida).
Outro par de contr�rios, � primeira vista inconcili�veis, infini-to/finito, resolve-se no
canto � Eucaristia onde o absoluto se abriga no mais pequenino bocado de p�o:

iOhl Dios infinito, por nos humanado, veos tan chiquito que estoy espantado


Por eso peleo contra mi sentido, porque Io comido es Dios que no veo.
La carne que me vesti pasar� muy cruda muerte porque deseo tenerte sempre vivo par
de mi, preso con amor muy fuerte.


"Pelejo contra o meu sentido." Enfim, a luta sup�e a liberdade de acolher ou de recusar

o amor do outro, seja embora este outro o Deus onipotente. Tampouco falta � l�rica
espanhola de Anchieta essa dimens�o temer�ria da alma que diz "no" ao convite do
amigo:

iNo! Quien muri� por damos vida, muchas veces me llam�, mas yo dtjole de no, no, no,
no, no! Dtjome que no pecase, pues por me salvar muri�, mas yo dtjole de no, no, no,
no, no!

Confrontando esta passagem de recusa t�o ardidamente pessoal com a alegoria grotesca
da Ingratid�o, que Anchieta figurou no Auto de vila de Vit�ria, ficam patentes as
diferen�as de estilo e de horizonte cultural.

REATANDO OS FIOS

O mission�rio que se volta para o �ndio, prega-lhe em tupi e comp�e autos devotos (e,
por vezes, circenses) com o fim de convert�-lo, � um difusor do salvacionismo ib�rico
para quem a vida do selvagem estava imersa na barb�rie e as suas pr�ticas se inspiravam
diretamente nos dem�nios.
As cerim�nias ind�genas resumiam-se, em �ltima inst�ncia, ao fen�meno da tenta��o
vitoriosa. O mal se abatia, como uma cobra, sobre os participantes dos cantos, das
dan�as, da cauinagem, do rito antropof�gico. O fora dominando o dentro, a pura
exterioridade, a mais brutal reifica��o: esta a imagem que os jesu�tas conceberam e nos
legaram das festas tupis. N�o admira, portanto, que as mensagens fundadoras e originais
do cristianismo, como a igualdade de todos os homens e o mandamento do amor
universal, tenham sofrido, no processo de catequese, um alto grau de entropia. A
pedagogia da convers�o apagava os tra�os progressistas virtuais do Evangelho fazendo-
os regredir a um substituto para a magia dos tupis. No entanto, a poesia do Anchieta que
escreve l�ricas sacras j� estava entrando em outro tempo hist�rico e psicol�gico, o
tempo da pessoa que escolhe aceitar ou recusar o amor de um Deus pessoal e
entranhadamente humano.
Estamos t�o resignados a pensar com "realismo" (se assim foi, � porque n�o poderia
deixar de ter sido), que n�o nos perguntamos

92

se, na verdade, o que aconteceu n�o ter� significado uma franca regress�o da
consci�ncia culta europ�ia quando absorvida pela pr�xis da conquista e da coloniza��o.
Como nas cruzadas e nas guerras santas, a religi�o e a moral coletiva degradam-se
r�pida e violentamente a pura ferramenta do poder; e o que se ganha em efici�ncia t�tica
perde-se em qualidade no processo de humaniza��o.
O caso de Anchieta parece exemplar porque se trata do nosso primeiro intelectual
militante. O fato de ter vivido inspirado pela sua ineg�vel boa-f� de ap�stolo apenas
torna mais dram�tica a constata��o desta quase-fatalidade que divide o letrado
colonizador em um c�digo para uso pr�prio (ou de seus pares) e um c�digo para uso do
povo. L� o s�mbolo e a efus�o da subjetividade; aqui, o didatismo aleg�rico r�gido,
autorit�rio. L� a m�stica da devotio moderna; aqui, a moral do terror das miss�es. E
depois vir� o Uuminismo que se combinar� com a ditadura recolonizadora; e o
liberalismo que se casar� com a escravid�o...
Anchieta fala n�o s� l�nguas v�rias, mas linguagens distintas conforme o seu audit�rio.


O universalismo crist�o, peculiar � mensagem evang�lica dos primeiros s�culos, precisa
de condi��es hist�ricas especiais para manter sua coer�ncia e pureza. No processo de
transplante cultural a alian�a do cristianismo com estratos sociais e pol�ticos dominantes
� letal para a sua integridade.
A cis�o, que este ensaio aponta, entre um teatro de catequese como exterioridade e uma
l�rica do sentimento religioso, talvez sirva de est�mulo para repensar os contrastes
internos do intelectual' 'que vive em col�nias".


3

DO ANTIGO ESTADO � M�QUINA MERCANTE
A troca torna sup�rflua a gregariedade e a dissolve.
Marx, Fundamentos da cr�tica da economia pol�tica
Come�o pelo estudo do soneto de Greg�rio de Matos, "A Bahia", escrito no �ltimo
quartel do s�culo XVII:

Triste Bahia! � qu�o dessemelhante Est�s e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo
a ti, tu a mi empenhado, Rica te vi eu j�, tu a mi abundante.
A ti trocou-te a m�quina mercante, que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me
trocando e tem trocado Tanto neg�cio e tanto negociante.
Deste em dar tanto a��car excelente Pelas drogas in�teis, que abelhuda Simples
aceitas do sagaz Brichote.
Oh se quisera Deus que de repente Um dia amanheceras t�o sisuda Que fora de
algod�o o teu capote!


Uma primeira aproxima��o ao texto, de car�ter abrangente, encontra dois movimentos
de sentido oposto. Pelo primeiro, o eu l�rico entra em simpatia com o tu, a cidade da
Bahia, animada e personalizada. Pelo segundo, vem a separa��o: o eu, agora juiz,
invoca um castigo para o outro, chamando a interven��o de uma terceira pessoa,

94

Deus, mediador poderoso e capaz de executar a pena merecida. A primeira onda de
significa��o move os quartetos; a segunda, os tercetos.
Como se constr�i estilisticamente o efeito inicial de empatia entre Greg�rio e a sua
cidade? De v�rias maneiras, come�ando pelo acorde que abre o soneto: Triste Bahia!. A
express�o � nominal e � exclama-tiva. O nome pr�prio, quando ilhado, carente de
qualquer rela��o fr�sica direta, tende a concentrar em si mesmo todo opathos investido
pelo sujeito que o profere. Sabemos a arcana deriva��o indo-europ�ia: de numen,
nomen. Assim nomeia-se a Bahia, o espa�o de vida, n�o como alheio ou estranho � voz
do poeta, mas imantado pela for�a das suas paix�es; n�o o nome em si, men��o abstrata,
mas o nome-para-o-eu, o nome sofrido, o nome a que o tom exclamativo d� graus de
canto; o nome qualificado, triste. Amb�guo, ali�s, este adjetivo: denota estado de alma
depressivo e melanc�lico; mas tamb�m conota � se posto no contexto inteiro do soneto

� a id�ia de infelicidade, que partilha com outros nomes da nossa l�ngua, como
desgra�ado e miser�vel sobre os quais paira igualmente uma sombra de culpa. A Bahia
n�o est� s� magoada; tamb�m � um exemplo lastim�vel de mudan�a para situa��o pior,
de cuja responsabilidade n�o pode isentar-se. Triste como quem perdeu o antigo estado,
sim, mas triste tamb�m como a crian�a geniosa e de maus costumes com quem a m�e
ralha em desabafo: ' 'Mas � triste esse menino!''. O sentido pleno s� se apreende quando
finda a leitura.
A mesma aura aflita circunda o per�odo que desdobra a mensagem contida na ap�strofe

inicial: "[...] � qu�o dessemelhante/ Est�s e estou do nosso antigo estado!".
Selando o contraste, que separa o passado e o presente, vem o predicado central: qu�o
dessemelhante. A diferen�a est� radicada no eixo do tempo: houve um antigo estado,
cuja perda � o motivo gerador de todo o discurso. Neste primeiro quarteto, importa
assinalar que a mudan�a arrastou consigo a Bahia e Greg�rio, o tu eo eu. � sobre essa
identifica��o profunda de sujeito e objeto que assenta a liricidade do texto: as
contradi��es da hist�ria social falam aqui pela voz do indiv�duo.
O senso de empatia do poeta com a sua terra avulta pela �nfase nas reitera��es: est�s,
estou, estado; sintagmas a que se confiou o papel de instituir a semelhan�a mantida no
curso das transforma��es.
O mesmo dos seres tem de enfrentar o outro dos tempos; o que provoca o jogo qui�stico
e barroco do m�tuo espelhamento:


95


pobre ^ abundante
O poeta v� a cidade; a cidade v� o poeta � no presente �, assim como ambos j� se
reconheceram no passado: eu vejo a ti, tu a mim; te vi eu j�, tu a mim. A qualidade do
ser, refletida nos olhos de cada um, � o que mudou com o passar dos anos: da antiga
riqueza caiu-se na pobreza de hoje.1
Da lamenta��o centrada no par eu-tu, fortemente atado nos quatro primeiros versos, o
poeta move-se para o ato de acusar as for�as que os arrancaram, a ele e � Bahia, da grata
abund�ncia em que ambos viviam outrora. O segundo quarteto � obsessivo na den�ncia
do agente respons�vel pelo desastre comum. As palavras que o. designam cercam um
universo de referentes bem determinado, e que a express�o m�quina mercante enfeixa
soberbamente.
O que vem a ser esta m�quina mercante?
Ao p� da letra, s�o os navios do com�rcio, muitos deles brit�nicos, franceses e batavos,
que traziam mercadorias de luxo, principalmente da �ndia e da Europa. Aportavam na
barra de Todos os Santos, aqui, n�o sem esc�rnio, dita larga, jogando o poeta com o
duplo sentido f�sico e moral do termo e insinuando a liberalidade perigosa com que o
porto se rendia aos tratantes de fora.
Figuradamente: "m�quina mercante" soa, aos nossos ouvidos de hoje, como uma arguta
meton�mia do sistema inteiro, o mercantilismo. Deixo para o momento da interpreta��o
hist�rica a discuss�o desta segunda possibilidade.
Mas o que faz a m�quina mercante? Greg�rio conjuga plastica-mente, em v�rios tempos
e aspectos, o verbo que melhor condiz com a sua a��o proteiforme: trocar. A m�quina
trocou, foi trocando e tem trocado, porque ela n�o s� agiu em um passado remoto e j�
definido,

96

como tamb�m continuou operando ao longo do tempo, e os seus efeitos, multiplicados
por "tanto neg�cio e tanto negociante", mostram-se ainda ativos no presente. O mercado
� o lugar comum do bul�cio onde ningu�m pode permanecer quieto sob pena de cair fora
da sua posi��o. Trocar tem, nesse passo, o significado preciso, e hoje um tanto raro, de
mudar, alterar, com reg�ncia de objeto direto: a m�quina mercante trocou-te, isto �,
transformou a cidade da Bahia e os seus moradores.
J� se viu qual foi o vetor dessa metamorfose: a Bahia e o poeta, de pr�speros que eram,
acabaram endividados. (Um par�ntese para quem cr� no amavio subliminar dos sons: o
grupo consonantal, Ittl, que se dissemina em tantas palavras deste segundo quarteto, nas
v�rias formas de trocar e no verbo entrar, � o mesmo que abre a palavra triste, a qual,
por sua vez, � cabe�a do poema e signo do seupathos dominante.)
A esperteza da m�quina mercante, esse engenho danoso, a Coisa por excel�ncia, levou a
Bahia a entregar-se; e aqui se d� a passagem do l�rico sofrido (Triste Bahia!) ao sat�rico
encrespado. A simpatia recolhe-se; e o olho, moralista, volta-se, agora juiz severo,
contra a pr�diga, a remissa e descuidada ' 'senhora Dona Bahia'' de outro poema n�o


menos famoso. No trato com o negociante, n�o soube a cidade permutar com siso o seu
ouro branco em ouro em p�:

Deste em dar tanto a��car excelente Pelas drogas in�teis...

A opera��o de barganha foi lesiva, colonialmente lesiva, ao produtor de mercancia
tropical. Do lado de l� s� vieram os ourop�is de um luxo funesto. A Col�nia foi
simpl�ria; ao passo que o mercador ingl�s, o Brichote (depreciativo de British, �
portuguesa?), foi sagaz. As atribui��es est�o vincadas com o estilete dos atributos:
excelentes versus in�teis; simples versus sagaz. A culpa n�o estaria apenas na in�pcia da
Bahia, mas na sua curiosidade vaidosa e f�til, que o ep�teto abelhuda traduz
comicamente. Sem contar o travo doce de mel que um derivado de abelha comporta...
No terceto de fecho a v�tima torna-se r�. A triste Bahia deve ser castigada e
canonicamente reduzida a penitente. Que passe de abelhuda a sisuda, de f�tua a
recolhida, de pr�diga a austera. A convers�o ter� seu penhor no trajo, signo vis�vel de
mod�stia ou de vaidade

97


nas mulheres. Que a Bahia deixe de envergar sedas e veludos e se contente com um
simples capote de algod�o, esse pano barato que os escravos tecem e s� os mais pobres
vestem:

Oh se quisera Deus que de repente Um dia amanheceras t�o sisuda Que fora de
algod�o o teu capotei
GREG�RIO EM SITUA��O: ESTAMENTO, RA�A, SEXO

Greg�rio lastima t�o desconsoladamente a mudan�a que caberia perguntar aos
historiadores da sociedade colonial o que se deva entender por esse Antigo Estado que a
Bahia teria vivido, e que a M�quina Mercante atalhou brutalmente.
As flutua��es mercantis do s�culo XVII s�o relativamente bem conhecidas. Depois dos
estudos de Roberto Simonsen, Magalh�es Go-dinho e Fr�deric Mauro2 sobre o auge e a
decad�ncia da economia no Nordeste colonial, sabemos que a crise do pre�o do a��car
se agravou no meio do s�culo, quando as planta��es das Antilhas lograram concorrer
vantajosamente com os mecanismos portugueses de comercializa��o. Segundo Mauro,'
'em Lisboa os pre�os passam de 3000 r�is a arroba, em 1650, a 2400 em 1688".3
Greg�rio, observador in loco, diz melhor:
O A��car j� se acabou? Baixou.
E o dinheiro se extinguiu? Subiu.
Logo j� convalesceu? Morreu.
A Bahia aconteceu

o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
baixou, subiu e morreu."
("Ju�zo anat�mico dos achaques que padece o corpo da Rep�blica, em todos os
membros e inteira defini��o do que em todos os tempos � a Bahia.")
A primeira metade do s�culo XVII (que corresponde ao tempo de inf�ncia do poeta) viu
crescerem os engenhos e consolidar-se uma pequena nobreza luso-baiana. Esta
beneficiava-se do franco amparo das leis metropolitanas, que chegavam at� mesmo a
sustar a execu��o

98

de d�vidas quando os empenhados fossem produtores de a��car. Era como se a Coroa
pensasse: "Para os senhores de engenho, tudo!".
Mas a pol�tica protecionista declinou depressa na segunda metade da cent�ria � medida
que a economia portuguesa entrava na �rbita da Inglaterra e perdia a sua independ�ncia
contra a qual iria asses-tar golpe de mestre o Tratado de Methuen em 1703; ent�o
come�a a valer a frase antol�gica do historiador Alan K. Manchester: Portugal became
virtually England's vassal.4

A passagem do Antigo Estado � M�quina Mercante � acusada por uma abertura efetiva
da barra de Salvador a navios estrangeiros, depois de passado mais de meio s�culo em
que s� navios portugueses gozavam legalmente dessa regalia. Leis taxativas de d.


Sebasti�o (1571) e de Filipe II (1605), que tinham proibido a descida de negociantes
flamengos, ingleses e franceses �s costas da Cpl�nia, foram relaxadas por d. Jo�o rv
logo depois da Restaura��o de 1640. A pol�tica anti-castelhana deste �ltimo convertia-
se, de fato, em pol�tica de alian�a com a Gr�-Bretanha.
Greg�rio de Matos viveu por dentro os efeitos da viragem. A sua fam�lia, de antiga
fidalguia lusa, e senhora de um engenho de tamanho m�dio no Rec�ncavo, perdeu,
como tantas outras, o sustento oficial irrestrito que a escudara nos primeiros dec�nios do
s�culo. Com a queda fulminante dos pre�os do a��car a nova situa��o passou a
favorecer tr�s grupos econ�micos: as companhias estrangeiras, em primeiro lugar;
depois, alguns latifundi�rios de maior calibre que conseguiam sobreviver � crise
aumentando a produ��o e mantendo a es-cravaria (provavelmente, a nobreza caramuru,
como o s�tiro a chama, ressentido); enfim, e parcialmente, a s�lida classe dos
intermedi�rios, os comerciantes rein�is j� enraizados nas pra�as maiores da Bahia e do
Recife, aos quais o exclusivo colonial necessariamente protegia.5
Como intelectual e clerc, Greg�rio n�o se situava estritamente no lugar social da
produ��o ou da circula��o de bens materiais. Cabia-lhe um quinh�o no aparelho
administrativo, no caso a burocracia colonial ou a Igreja. A�, de fato, franquearam-lhe
carreira decorosa o estamento de origem, os t�tulos obtidos em Coimbra de doutor in
utroque jure al�m do brilho do literato consumado. Foi vig�rio-geral da S� da Bahia e
seu tesoureiro-mor a partir de 1681 quando ainda gozava do valimento de dom Gaspar
Barata, primeiro titular daquela arquidiocese.

99


Mas logo os costumes livres e a l�ngua ferina causaram-lhe embara�os e desafetos. A
crer no que refere o seu primeiro bi�grafo, o licenciado Manuel Pereira Barreto, o poeta
perdeu os dois cargos, viveu algum tempo como advogado, esperdi�ando afinal �s
mancheias o patrim�nio familiar: ' 'Vendeu j� necessitado por tr�s mil cruzados uma
sorte de terra, e recebendo em um saco aquele dinheiro o mandou vazarem a um canto
da casa, donde se distribu�a para gastos, sem regra nem vigil�ncia".6
O ber�o fidalgo e o exerc�cio de profiss�o liberal prestigiada concorreram para formar
em Greg�rio um ponto de vista bastante peculiar que, por�m, n�o o subtrai de todo �
figura do intelectual tradicional desenhada por Ant�nio Gramsci.7
O pensador marxista italiano descreveu os dois grupos ideol�gicos fundamentais que
coexistem em sociedades onde o modo de pensar capitalista e burgu�s ainda est�
lutando, palmo a palmo, com institui��es e valores herdados ao antigo regime. Nessas
forma��es hist�ricas, o intelectual eclesi�stico (em contraste com o org�nico, rente ao
sistema produtivo) resiste, "cultural e passionalmente, aos valores do mercantilismo e da
impessoalidade funcional, apegando-se aos velhos direitos do sangue e do nome e �s
honras e aos privil�gios de ordens estamentais fechadas como a Nobreza, a Igreja, os
Tribunais, as Armas, a Inquisi��o e a Universidade.
A tend�ncia do letrado tradicional �, na �poca barroca, a de uma divis�o existencial: a
rela��o com a estrutura social fica cindida entre a auto-identifica��o com um tipo
humano considerado ideal (o nobre, o chevalier, o gentleman, o honn�te homme, o
hidalgo, o discreto, o cortigiano ou galantuomo, o nosso colonial homem bom) ea
repulsa ao vil cotidiano dos outros homens cujas necessidades e interesses se descrevem
com o mais cru naturalismo confinante quase sempre com a barb�rie.
Olhando de fora e de cima o jogo da competi��o venal, o homem culto assentado nos
v�rios degraus hier�rquicos se constitui idealmente a si mesmo. E a autoposizione
gramsciana, que isenta da guerra suja do lucro e aparta todo um grupo social da
mercancia e do trabalho manual, atividades ambas desprezadas pelo fidalgo dos
Seiscen-tos. A esse desd�m, de natureza estamental, soma-se o correlato preju�zo racial
contra o judeu; e, na Col�nia, contra o mesti�o. Um � mercador, o outro tem sangue de
escravo.

100

O n� do preconceito fica inextric�vel quando a desigualdade produzida pela divis�o
social se combina com discrimina��es de ra�a ou de credo. Na Col�nia, ambos, o
opressor e o oprimido, receberam o selo de uma dupla determina��o.
Gramsci vinculava a pretens�o de autonomia do cl�rigo � consist�ncia de grupos
tradicionais ainda prestigiados e favorecidos no interior do Estado. Tudo indica que, no
caso do Brasil seiscentista, essa rela��o se estreitou nos momentos de depress�o da
economia agro-mercantil. Ent�o, a sa�da honrosa para um herdeiro letrado se procurava
na burocracia ou na esfera do clero, firmemente atado � Coroa pelo regime do padroado.
Araripe Jr., que observou Greg�rio por uma lente tainiana, sempre � procura da


faculdade dominante do escritor, viu com nitidez o seu fundo ressentimento para com as
desordens da Bahia dos fins do s�culo, mas atribuiu-o a singularidades de car�ter. A
interpreta��o, por ser difusa e psicologizante, n�o d� conta inteira do sistema de
rela��es sociais que se depreende analisando os estratos atingidos pela verve do poeta.
N�o se tratava de um rancor cego, de uma atra b�lis projetada, a torto e a direito, contra
pessoas entre si diversas. S� aparentemente os grupos feridos pela pena do s�tiro nada
tinham em comum: de fato, o que aproximaria, � primeira vista, o magano estrangeiro e

o vig�rio mulato do Passe? Ou o senhor de terras cioso de sua estirpe nativa e �
merceeiro crist�o-novo enricado em curto prazo? Esses objetos das flechas de Greg�rio
aparecem, ao leitor distante, apenas como indiv�duos dispersos cujos v�cios atra�ram os
remo-ques do seu sarcasmo e aceraram as l�minas do seu verso. Da�, a tenta��o forte de
recair no registro moral de Araripe Jr.; ou ent�o, em alguma sorte de formalismo
voltado para as estruturas do discurso sat�rico tomado em si mesmo, e para o qual os
tipos de escarmentados pelo poeta seriam antes topoi de uma longa tradi��o liter�ria do
que forma��es hist�rico-sociais circunscritas no espa�o e no tempo.
Novamente, � o conhecimento hist�rico do ponto de vista do escritor que nos vai
impedir de entrar no labirinto de hip�teses arbitr�rias. O filho d'algo em apuros n�o
tolera o comerciante for�neo nem u o desenvolto mercador crist�o-novo. O que est� em
jogo n�o � uma "' forma irritada de consci�ncia nacionalista ou baiana, mas uma rija
oposi��o estrutural entre a nobreza, que desce, e a mercancia, que sobe. O antagonismo
vem do Medievo, que j� lan�ara as pechas de vil�o
101

e tratante contra o homem de neg�cios e o onzeneiro, mas acirra-se e toma corpo
doutrin�rio nos Seiscentos, quando j� vai acesa a longa batalha que levar� a aristocracia
de rold�o. Mais do que nunca, nobreza e burguesia disputam o poder pol�tico; mais do
que nunca, a tradi��o crispa-se e afronta a modernidade. Dizia frei Amador Ar-rais,
carmelita descal�o e anti-semita, morto em 1600: ' 'N�o deve ser o Pr�ncipe mercador,
porque � baixeza de mau cheiro".8
Se o soneto "A Bahia" acusa o sagaz brichote, a glosa ao mote "Efeitos s�o do cometa"
n�o poupar� "o Holand�s muito ufano" nem "os Franchinotes" que nos invadem "com
engano sorrateiro/ para nos levar dinheiro/ a troco de assoviotes".
De outro lado, v�m grimpando pelos interst�cios do sistema colonial os a�ambarcadores
do porto (a Arte de furtar'j� fala em "atra-vessadores") e os migrados de sangue
suspeito, que souberam poupar e investir, e agora det�m nas m�os a isca do cr�dito e da
moeda corrente, nesta cidade onde a baixa do ouro doce multiplicou d�vidas e
empenhos:

Estupendas usuras nos mercados: Todos os que n�o furtam, muito pobres: Eis aqui a
cidade da Bahia.

("Aos Srs. Governadores do Mundo...")
A ascens�o r�pida de um "sota-tendeiro de um crist�o novo" est� contada nas quadras
de "� cidade da Bahia". A� narra-se a hist�ria de um pobre mas ousado vendedor de
chitas que, ajudado pelos parentes, mas sobretudo pelo pr�prio desejo de ganho, ' 'entra
pela barra dentro'' (outra vez o enlace do audaz intruso com a remissa Bahia), salta em
terra, monta loja e armaz�m, engana, despista, casa-se com rica herdeira e acaba
vereador do pelouro, ' 'que � not�vel dignidade":

J� temos o Canasteiro que inda fede aos seus beirames, Metamorf�sis em homem
grande: eis aqui o personagem.

O que machuca os brios de Greg�rio �, acima de tudo, ver a pretens�o do vendeiro
(afinal realizada) de ocupar aqueles postos de car�ter honor�fico secularmente
reservados aos ' 'homens bons''. Ent�o,

102

acabaram-se as diferen�as de ber�o? Tudo o dinheiro h� de alcan�ar; tudo, comprar?

Adeus, Povo .da Bahia; digo, canalha infernal: e n�o falo na Nobreza, tabula em que
se n�o d�. Porque o Nobre, enfim, � nobre: quem honra tem, honra d�: p�caros, d�o
picardias; e ainda lhes fica que dar.
No Brasil, a Fidalguia no bom sangue nunca est�; nem no bom procedimento: pois
logo em qu� pode estar?
Consiste em muito dinheiro, e consiste em o guardar: cada um o guarde bem para ter
que gastar mal.

(' 'Despede-se o Autor da Cidade da Bahia na ocasi�o em que ia degredado para Angola
de pot�ncia, pelo Governador D. Jo�o de Alencastre".)
Que a oposi��o sobredeterminante em Greg�rio seja o par nobre/ign�bil (e n�o:



brasileiro/estrangeiro) resulta claro de s�tira hilariante que dirige contra o ' 'Fidalgo da
terra'', o ' 'Ad�o de massap�'', s�mbolo daquela pequena mas poderosa classe de senhores
baianos nos quais j� era consider�vel a dose de sangue ind�gena. A estes, que viriam a
ser a futura classe dirigente nacional, e cujos interesses iriam com o tempo apart�-los
dos rein�is, o poeta n�o perdoa justamente os fumos de pros�pia que a riqueza e as
vit�rias contra os holandeses estavam alimentando. S�o exemplos not�veis: "A fidalguia
do Brasil", que se fecha com o decass�labo em torpe idioma "Cob� p�, ari-cob�, cob�,
pa�"; "A fidalguia ou enfidalgados do Brasil", al�m do soneto ' 'A Cosme Moura Rolim
insigne mordaz contra os filhos de Portugal".
O tema n�o varia: o antigo bugre, ' 'alarve sem raz�o, bruto sem f�", arroga-se o direito
de exibir t�tulos; e do contraste entre a altura

103


Corjxrrisj \sujcmi donojiSortisfeorufctl

' 'A ti trocou-te a m�quina mercante, que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto neg�cio e tanto negociante.
Greg�rio de Matos. ' 'A Bahia


da sua presun��o e a rudeza do seu tronco, exposta no n�vel da bizar-ria l�xica, � que
Greg�rio extrai o efeito c�mico imediato.
Mais delicada, se n�o espinhosa, � a quest�o do negro e, dentro desta, a quest�o do
mulato. A ojeriza que o �ltimo inspira a Greg�rio faz entrever uma sociedade onde o
grau de mesti�agem era j� o bastante alto para que se destacasse do conjunto da
popula��o um grupo de pardos livres.
O preconceito de cor e de ra�a irrompe, cruel, quando surge algum risco de
concorr�ncia na luta pelo dinheiro e pelo prest�gio. O que era latente e difuso torna-se
patente e localizado. Em nosso poeta, o punctum dolens � sempre a quest�o da honra,
privil�gio que, no c�digo do antigo regime, s� pode ser compartilhado por pares de
linhagem. Ora, a diferen�a de cor � o sinal mais ostensivo e mais ' 'natural" da
desigualdade que reina entre os homens; e, na estrutura colonial-escravista, ela � um
tra�o inerente � separa��o dos estratos e das fun��es sociais. Para o estamento em crise,
de onde provinha Greg�rio, o mundo j� fora posto �s avessas pelos brichotes, pelos
judeus e pelos netos de Caramuru quando passaram � frente de homens de velha cepa
surgida ao tempo das cruzadas. Mas o c�mulo do absurdo acontecia nessa triste cidade
onde mesti�os forros, agre-gando-se a fam�lias abonadas, ou conquistando postos no
F�rum e na S�, recebiam afinal defer�ncias que a ele, branco, nobre e douto, eram
recusadas!

N�o sei para que � nascer neste Brasil empestado um homem branco e honrado sem
outra ra�a,
Terra t�o grosseira e crassa, que a ningu�m se tem respeito, salvo quem mostre algum
jeito de ser Mulato.
Aqui o c�o arranha o gato, n�o por ser mais valent�o mas porque sempre a um c�o
outros a�odem.
106

As copias seguintes s�o particularmente ferozes, pois investem contra a Rela��o, isto �,
contra os tribunais de justi�a que seguiam a praxe de processar, com as devidas multas,

o senhor branco quando este assassinava o seu escravo, de novo chamado "c�o":
Os brancos aqui n�o podem mais que sofrer e calar, e se um negro v�o matar, chovem
despesas.
N�o lhe valem as defesas do atrevimento de um c�o, porque a�ode a Rela��o sempre
faminta.


Nem sempre � mais humana a saudade do Antigo Estado. Mer-cancia, pele negra,
mesti�agem, sangue semita: tudo o que n�o � "nobreza" e "pureza" vira alvo de um
esc�rnio implac�vel.

EROS RETALHADO

Uma reflex�o � parte merece a chamada poesia burlesca na qual a mulher negra e a
mesti�a se convertem em objeto misto de lux�ria
e desprezo.


Aqui o preconceito, t�o direto nos passos referidos acima, dobra-se e complica-se
porque desce ao subterr�neo de uma pr�tica er�tica onde se geram, �ntima e
simultaneamente, a atra��o f�sica, a repulsa e o sadismo.
As ricas observa��es de Gilberto Freyre sobre a licen�a sexual nos engenhos
nordestinos, alinhadas no �ltimo cap�tulo de Casa-grande & senzala, procuram dar
conta dessa terr�vel ambival�ncia; e, embora as conclus�es do soci�logo sejam
otimistas, quando afirma a exist�ncia de uma democracia racial luso-brasileira, basta ler
as trovas fesce-ninas de Greg�rio para repor em p� a pergunta de base: a fus�o que se
deu na pele e na carne significou tamb�m emparelhamento
social?9
Alguma resposta se obt�m quando se confrontam os versos chulos e a l�rica amorosa de
Greg�rio cultista e idealizante. Dedicada � mulher branca e bem-posta, esta poesia
decanta, refina e sublima os

107


impulsos er�ticos. Reescreve, para tanto, f�rmulas de tradi��o alta, que v�m dos
proven�ais, do ' 'stilnovo'' com a sua vis�o da ' 'donna ange-lo'' e de Petrarca, at� se
cristalizar em Cam�es e amaneirar-se nos espanh�is dos Seiscentos que Greg�rio
secunda com seu virtuosismo.
As �guas n�o se misturam.
De um lado, as amadas distantes, merecedoras de "finezas mil", damas "rigorosas" e
"tiranas", "cru�is", que trazem nomes aureo-lados por s�culos de poesia palaciana: dona
Angela, ' 'anjo no nome, ang�lica na cara"; dona Teresa, "astro do prado, estrela
nacarada"; dona Vict�ria, "rosa encarnada"; dona Francelina, "enigma escondido' ', '
'milagre composto de neve incendida em sangue"; dona Maria dos Povos, sua futura
esposa,' 'discreta e formos�ssima Maria'', efigia-da como S�lvia depois das n�pcias ' 'por
raz�o de honestidade''..., sem contar as donzelas de apelidos �rcades, as Cl�ris, as Hlis,
as Marfidas, que saltam das �clogas de Guarini para habitar os versos l�nguidos do
nosso baiano. E a vig�ncia de um "antigo estado" no reino da conven��o l�rico-amorosa.
Para dizer as "m�goas" e as "penas", os "pesares" e os "tor-mentos" desses amores, tanto
mais belos quanto mais ingratos, Greg�rio disp�e de uma ret�rica flex�vel que joga com
os recursos da coin-cidentia oppositorum. Valores d�spares atraem-se mutuamente em
express�es acopladas produzindo o efeito de s�bitas transforma��es: "Horas de inferno,
instantes de alegria"; "o gosto corre, a dor apenas passa"; "pensamentos ligeiros �
esperan�a,/ ao mal constantes"; "que � morte a cor do meu contentamento"; "amoroso
desd�m, zelosa pena"; "despojo sou de quem triunfo hei sido"...
Presidida pelo nume da dist�ncia f�sica, essa � uma poesia da perda e n�o da posse, da
ren�ncia, n�o do gozo: ' 'Essas luzes de amor ricas e belas,/ V�-las basta uma vez, para
admir�-las,/ Que v�-las outra vez, ser� ofend�-las".
E do outro lado?
L� desfilam as negras e as mulatas que a carta de alforria lan�ara ao meretr�cio havia
muito incubado na senzala. Estas s�o: a Maria Vie-gas, a quem o poeta descomp�e e
decomp�e em d�cimas grotescas intituladas ' 'Anatomia horrorosa que faz de uma negra
chamada Maria Viegas"; a Babu, a Macotinha, a In�cia, a Antonica, a Lu�sa �apata,
"mulata esfaimada", a Chica, "desengra�ada crioula", a Viv�ncia e tantas outras que se
confundem em uma galeria de fantasmas l�bri


108

cos onde n�o se conseguem ver rostos de mulher, mas t�o-s� exibi��es escatol�gicas de
partes genitais e anais.
Como interpretar essas figura��es contr�rias e extremas? Certamente n�o basta, no caso
dos versos obscenos, remontar a uma linhagem de naturalismo cru, na esteira do que fez

o grande fi-l�logo russo Mikhail Bakhtin com Rabelais, decifrado � luz das fontes
populares da Idade M�dia e do Renascimento.10 A cr�tica latino-americana tem, �s
vezes, abusado, isto �, usado mecanicamente, do conceito de ' 'carnavaliza��o'' que
aquele estudioso prop�s dentro de um sistema de rela��es bem firmes entre texto e

contexto. Em Greg�rio de Matos, o discurso nobre e o improp�rio chulo n�o s�o duas
faces da mesma moeda, n�o s�o o lado s�rio e o lado jocoso do mesmo fen�meno
er�tico. Representam duas ordens opostas de intencionali-dade, porque opostos s�o os
seus objetos.
A dignifica��o ou o aviltamento da mulher tem cor e tem classe neste poeta arraigado
em nossa vida colonial e escravista. O uso de termos considerados vulgares faz-se
precisamente em situa��es nas quais a mulher pertence �quela "gentalha'', �quela'
'canalha'' social e racialmente depreciada. Ou ent�o, no caso que demanda uma pesquisa
hist�rica singular, pertence ao mundo, hoje estranho para n�s, das mo�as encerradas �
for�a em conventos, obrigadas pelos pais a tomarem h�bito para ocultar algum "mau
passo", enfim banidas de casa por irm�os cobi�osos da sua parte na heran�a.
H�, portanto, uma desclassifica��o objetiva da mulher que nunca se tomaria por
esposa, situa��o que a cor negra pot�ncia, e � qual corresponde uma viol�ncia �mpar de
tom, de l�xico, em suma, de estilo.

M. Bakhtin descreve em termos topogr�ficos certos processos de desmistifica��o
peculiares ao grotesco e correntes na linguagem de Gar-gantua. Rabelais inverte
posi��es, destrona o alto e p�e-no de cabe�a para baixo. O sublime decai a pe�a de
esc�rnio. Trata-se de um jogo de perspectivas em torno do mesmo objeto, o direito e o
avesso est�tico e moral de personagens em geral subtra�das � cr�tica pela censura
pol�tica ou clerical. Os nomes proibidos do corpo e os termos que designam as fun��es
vitais servem a Rabelais, como serviam aos buf�es das cortes medievais, de v�lvulas de
escape para investir contra o pesado ritual das conveni�ncias.
N�o � assim em Greg�rio, que opera um n�tido corte entre dois campos de experi�ncia e
de significa��o. O registro chulo n�o � um
109


fator congenial a toda a obra do poeta baiano (diversamente do que ocorre em Rabelais),
mas apenas um modo setorial de usar a linguagem para marcar a ferro e fogo aqueles
que caem na mira da sua irris�o.
As fontes de Greg�rio s�o outras, remotas como texto, mas pr�ximas e familiares at�
hoje no uso coloquial. O recurso ao turpil�-quio com inten��o de ultraje sempre foi
empregado nos chamados g�neros c�micos de "estilo baixo"; o que, para al�m do
Medievo, j� vem atestado desde a Antig�idade. Um erudito estudioso dos rituais
hierog�micos e dos himeneus licenciosos da Gr�cia arcaica, o fil�logo Armando Plebe,
demonstrou, em La nascita dei c�mico,11 como os povos mediterr�neos passaram do
gesto franco dos cortejos f�licos, aus-piciadores de sementeiras fecundas, ao riso
malicioso dos ritos nup-ciais secretos, para, enfim, explodir em motejos desbocados nas
in-vectivas que pontuam a s�tira e a com�dia na polis cl�ssica e alexandrina. Os �rg�os
e atos da vida sexual tornam-se, quando nomeados, s�mbolos de agressividade.
Nem tudo, por�m, s�o extremos. E � curioso descobrir, no meio do cancioneiro lascivo
de Greg�rio, certos passos em que aquela oposi��o sem matizes entre mulher branca e
mulher negra cede a uma hesitante ambig�idade que cava no texto um momento feliz de
auto-analise.
Lembro as redondilhas de "A mesma Cust�dia mostra a diferen�a entre amar e querer''.
Cust�dia era uma ' 'graciosa mulata'' apaixonada pelo filho de Greg�rio, o jovem
Gon�alo de Matos. Dividido entre a cobi�a e o respeito por uma mulher que pretendia
ser antes sua nora que am�sia, o trovador comp�e um arrazoado sutil tentando provar �
mo�a e a si mesmo que experimenta por ela um afeto mais puro e mais alto do que o vil
desejo de possu�-la. O gosto das distin��es conceituais marcadas em termos de an�lise
moral dos movimentos da alma � vivo na l�rica barroca, tendendo quase sempre ao
especioso. Nem devemos esquecer que a ossatura l�gica desse pensamento � ainda o
formalismo classificador da velha escol�stica que a educa��o contra-reformista
reentronizou nas letras ib�ricas:

Amor generoso tem o amor por alvo melhor, sem cobi�a ao que � favor, sem temor ao
que � desd�m.
110
Amor ama, amor padece sem pr�mio algum pretender, e anelando a merecer, n�o lhe
lembra o que merece.
Cust�dia, se eu considero que o querer � desejar, e amor � perfeito amar, eu vos amo,
n�o vos quero.


(III, 700-3)
Tudo bem definido com eleg�ncia na dic��o e justeza nas predi-ca��es. Amor aqui,
desejo l�,' 'eu vos amo'', "n�o vos quero''. A consci�ncia moral parece assegurada, assim
como a limpa virtude do poeta. Mas, na vig�sima e derradeira quadra, os conceitos
claros e distintos se misturam, e o que resta � a proje��o de uma turva coexist�ncia:


Por�m j� vou acabando por nada ficar de fora digo que quem vos adora, vos pode


estar desejando.

Compare-se este d�bio resultado obtido pela mulata Cust�dia com o ciclo de poemas
escritos para abrandar os rigores de Brites, dama n�vea e soberba que afinal o enjeitaria
por um pretendente mais mo�o e de melhores costumes. Nestas d�cimas o topos volta a
ser buscado na tradi��o proven�al. O trovador tece loas ao Amor, que � tanto mais
perfeito quanto menos correspondido:

Todo amante, que procura ser em seu amor ditoso, tem ambi��o ao formoso, n�o amor
a formosura: quem idolatra a luz pura da beleza rigorosa, com fineza generosa ama
sempre desprezado, porque o ser eu desgra�ado n�o vos tira o ser formosa.

Um veio platonizante cruza o poema consumando a cis�o de Eros em corpo e alma. Ou
ardor sensual, ou adora��o. Dois pesos e duas

111


medidas, portanto. A libido, torrente selvagem que poderia igualar os objetos do desejo,
democratizando a rela��o universal entre homem e mulher, corre aqui pelos meandros
de um sujeito mentalmente preso � experi�ncia da coloniza��o escravista, e que vive,
at� o fundo da carne, os preconceitos tatuados na pele da mulher:

Sou um sujo e um patola, de mau ser, m� propens�o, porque se gasto o tost�o � s� com
negras de Angola, um s�tiro salvajola, a quem a Universidade n�o melhorou
qualidade, nem ju�zo melhorou, e se acaso l� estudou, foi loucura e asnidade.

(IV, 964)

DEUS BIFRONTE
O teor da poesia dita sacra de Greg�rio de Matos tamb�m se ressente de uma divis�o
interna: a consci�ncia moralista e a via m�stica, preponderando aquela sobre esta.
A matriz dos mais c�lebres sonetos devotos do nosso poeta encontra-se na confiss�o de
uma desobedi�ncia praticada contra um Ser superior: transgress�o que se codifica em
pecados contra os mandamentos b�blicos. Um preceitu�rio moral, rigorista nas
apar�ncias e na classifica��o dos atos perversos, reifica as rela��es entre os homens e
dentro do homem, correndo o risco de engessar a vida interior do fiel que se aperta entre
a culpa objetivada e a ang�stia do remorso.
A experi�ncia cat�rtica do amor a um deus feito carne, que areja e d� liberdade � grande
l�rica religiosa, inibe-se e estiola quando todo o peso da consci�ncia recai sobre o negror
da a��o j� cumprida. A sa�da que se apresenta � a pr�tica manifesta da absolvi��o
confessional, que o Concilio de Trento encarecera e ritualizara.
O medo da morte eterna, aliviado e, de algum modo, controlado pelo mecanismo
eclesi�stico da expia��o formalizada, revela o fundo dessa religiosidade que atravessou
todo o barroco jesu�tico. A Col�


112

nia n�o teve um Pascal que ironizasse, em nome de uma rela��o homem-Deus mais
livre e pessoal, a casu�stica manhosa gerada pelo car�ter externo do tr�plice liame:
pecador, pecado, penit�ncia.
Uma intersec��o viva de s�tira social e c�digo moral contra-reformista, que faria as
del�cias de um historiador das mentalidades, � o longo romance intitulado "Queixa-se a
Bahia por seu bastante procurador, confessando que as culpas, que lhe increpam, n�o
s�o suas, mas sim dos viciosos moradores que em si alberga", poema que se expande
pela seria��o dos dez mandamentos da lei mosaica. Cada pecado � coisificado em um
ou mais atos, dispostos no espa�o e no tempo da sua Bahia: os calundus e os feiti�os,
esperan�a do povo, pecam por idolatria contra o primeiro mandamento; as falsas juras,
contra o segundo; os gestos desleixados dos homens durante a missa e os adornos
vistosos das mulheres, contra o terceiro; os maus h�bitos dos filhos, contra o quarto; as
l�nguas ferinas, contra o quinto; os bailes e toques lascivos, contra o sexto; os furtos dos
novos-ricos, contra o s�timo; e assim por diante.
Em contabilidade t�o mi�da cada falta do pecador lhe acresce e agrava cumulativamente


o d�bito; para resgat�-lo � necess�rio impetrar uma gra�a infinita, ou ent�o conjur�-la
com uma prece no fundo mais aliciante que piedosa:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada. Cobrai-a, e n�o queirais, Pastor divino, Perder
na vossa ovelha a vossa gl�ria.
A remiss�o depende aqui de uma permuta pela qual o gesto de perdoar, que deveria ser
um ato de dar absolutamente (per-donare), converte-se em um ganho para Deus, ao
passo que o ato de condenar resultaria em perda da sua gl�ria. Pede-se a Deus, em
suma, que n�o fa�a um mau neg�cio... A mesma id�ia, embora mais rica de matizes, j�
est� em Quevedo, que assim fecha o Salmo xm da s�rie Ias tr�s musas:
Confieso que he ofendido
ai Dios de los ej�rcitos de suerte
que en otro que El no hallara Ia venganza
igual Ia recompensa con mi muerte;
pero, considerando que he nacido
su viva semejanza,
espero en su piedad cuando me acuerdo

que pierde Dios su parte si me pierdo.

113


Mas sob a superf�cie das transa��es e dos jogos de consci�ncia, aprendidos nos tratados
romanos de Casos Morais, avulta a sombra da dana��o, patente nas imagens terr�veis do
Ju�zo Final, de amplitude c�smica, e na certeza barroca do destino humano desfeito "em
terra, em fumo, em p�, em sombra, em nada''. A poesia apocal�ptica recebe em Greg�rio

o tom dos sermonistas do tempo quando desenvolviam o tema amea�ador dos
"nov�ssimos" (isto �, �ltimos) est�gios do destino humano, morte, ju�zo, inferno ou
para�so.
O terceto e o soneto abaixo transcritos apelam para aquelas duas fontes do imagin�rio
barroco, o memento homo e o dies irae:
Todo o lenho mortal, baixei humano, Se busca a salva��o, tome hoje terra, Que a terra
de hoje � porto soberano.


("No dia da quarta-feira de cinzas")

0 alegre dia entristecido, O sil�ncio da noite perturbado, O resplendor do sol todo
eclipsado, E o luzente da lua desmentido.
Rompa todo o criado em um gemido. Que � de ti, mundo? onde tens parado? Se tudo
neste instante est� acabado, Tanto importa o n�o ser, como haver sido.
Soa a trombeta da maior altura,
A que vivos e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, de outros ventura.
Acabe o mundo, porque � j� preciso, Erga-se o morto, deixe a sepultura, Porque �
chegado o dia do ju�zo.


("Ao dia do Ju�zo")
O c�lculo dos m�ritos e dem�ritos e a tentativa de aplacar o juiz n�o conseguem sufocar


o terror renascente da morte e do castigo universal; ao contr�rio, deixam ver o subsolo
fri�vel da moral tradicionalista dos Seiscentos, que vive uma hora de sombras e
ang�stias extremas, "porque � chegado o dia do ju�zo".
114

Mas conv�m perguntar, para sair das grandes abstra��es meta-hist�ricas, que mundo �
esse que deve acabar em cat�strofe?
O homem de letras criado na forma mentis da Contra-Reforma enfrenta a mar�
mercantil internacional que ascende, embora ainda se ache longe do seu pico s�
conquistado pela burguesia entre os s�culos XVIII e xix.
A vis�o de um corpo social bem-ordenado,12 que os estamentos ib�ricos ensinam ao
Greg�rio estudante de leis e c�nones em Coimbra, n�o se ajusta harmoniosamente �
rapidez brutal com que se d�o na inculta col�nia as mudan�as de fortuna e de estado.
At� mesmo a oposi��o ' 'natural'' de branco e preto borra-se na Bahia mesti�a onde
fazem carreira clerical mulatos desenvoltos e apaniguados. Enfim, o corte dr�stico entre
Honra e Neg�cio perde o gume sempre que investe, s�frega, a m�quina mercante. E o
que sobrou do patrim�nio erodido e malgasto do filho d'algo em crise vai cair nas garras
do unha-te. Como resistir se o mal penetrou nas juntas do sistema e nas entranhas do


sujeito?
O modo �nico de resistir � maldizer, � moralizar, � repetir a cada um que � p�, e a p�
reverter�, � convocar para o aqui-e-agora o dia do julgamento. Morte, ju�zo, inferno ou
para�so. Nesse momento tremendo em que todo o cosmos se comover�, se falharem os
sentimentos de perfeita contri��o, salve-se o pecador ao menos pela imperfeita atri��o,
que � um arrependimento movido n�o tanto por amor a Deus quanto por medo �s penas
do inferno, mas ainda assim, no dizer caviloso dos casu�stas, suficiente para lograr o
divino perd�o.
Ora, desde que o temor ao castigo � mais forte do que a vontade do Bem, bloqueia-se a
via amorosa m�stica, e s� resta o moralismo ou o terror. O c�digo de preceitos se
enrijece com vistas � transgress�o cujo fantasma ronda obsedante a alma do pecador:

Deus me chama co 'o perd�o por aux�lios e conselhos, eu ponho-me de joelhos e
mostro-me arrependido; mas como tudo � fingido, n�o me valem aparelhos.
Sempre que vou confessar-me, digo que deixo o pecado, por�m torno ao mau estado,
em que � certo o condenar-me:
115



mas l� est� quem h� de dar-me a pago do proceder: pagarei num vivo arder de
tormentos repetidos sacril�gios cometidos contra quem me deu o ser.

A vigil�ncia coibidora atrai a tenta��o e ambas ro�am-se mutuamente buscando o
amplexo imposs�vel. Nesse conflito, que vexa e oprime a consci�ncia, o instinto de
morte espreita a sua vez. O desejo negado e a repress�o infeliz, frustres e ressentidos um
com o outro, s� esperam a hora em que o corpo vivo passe a cad�ver enquanto a cria��o
se rompe em gemidos de agonia:

Acabe o mundo, porque � j� preciso.

Contudo, se o tom entre legalista e catastr�fico, dominante nos poemas sacros, fosse
exclusivo, n�o se daria aquela cis�o apontada no come�o do t�pico. Pois existe,
felizmente, um outro modo de poetar "a Io divino", que j� vimos em contexto bem
diverso na l�rica espanhola de Anchieta. Em Greg�rio essa maneira tampouco � original,
e trai curiosamente o glosador capaz dos mais surpreendentes exerc�cios de osmose.
Transpassa na voz feminina que ditou o longo e sutil "Solil�quio de madre Violante do
C�u ao Divin�ssimo Sacramento: glosado pelo poeta para testemunho de sua devo��o, e
cr�dito da Ve-ner�vel Religiosa".
Desta vez o centro inspirador do texto n�o est� na ang�stia da falha reiterada nem no
medo � pena eterna, mas na mem�ria da Paix�o de Cristo, recriada no sacramento por
for�a de um ato gratuito de amor e sem rela��o alguma com o grau de m�rito do fiel.
Greg�rio, como o seu coet�neo Baltasar Graci�n, suspende, ainda que por breve tempo,

o veio da s�tira pessimista para entregar-se � certeza m�stica, assim expressa no
Comulgatorio daquele ardido prosador barroco: "No hay horror donde hay amor".13
No "Solil�quio", gratuidade e espontaneidade humanizam o fen�meno religioso,
mudam o teor dos sentimentos, liberam as imagens. As met�foras, m�rbidas e terrosas
nos poemas apocal�pticos, fazem-se n�tidas e alegres, misturando ar e luz em express�es
leves como "arrebol", "c�ndido Oriente", "c�ndidos l�rios", "fonte cla116


ra", "epiciclos de neve", "sol nascente", "cristal puro e fino", "divina neve", "gala" e
"bizarria".
N�o por acaso um dos esquemas de l�gica po�tica mais fortes do texto � o que
contrap�e a escurid�o dos c�us sobrevinda � morte de Jesus � luminosidade do Sol que

o p�o da Eucaristia recobre. A luz est� no sacramento como encerrada em um inv�lucro
material, em si opaco, que se declara em linguagem cultista um ' 'emblema'' e um
"enigma":
E suposto o pensamento se pasma do escuro enigma, mais o mist�rio sublima vendo-
vos no Sacramento: ali meu entendimento conhecendo-vos t�o claro, melhor esfor�a o
reparo de que estais t�o luzido, quando melhor compreendido Enigma de amor mais
raro.
Que no Sacramento estais todo, e toda a divindade, conhe�o com realidade, suposto
que o disfar�ais: para que vos ocultais nesse mist�rio t�o raro, se a maravilha reparo,


penetrando-vos atento, mais claro ao entendimento, que sendo � vista t�o claro?

(Texto 3 � Glosa) (vol. I, pp. 84-5)
Para figurar t�o radiosa interioridade (que o sud�rio ' 'sanguino-samente escuro"
escondera), as met�foras pregnantes s�o as de "fogo ativo" e "infinito ardor", imagens
m�sticas e er�ticas por excel�ncia aqui trazidas ao foco do sujeito e do seu corpo, o
"peito amante":


Arde meu peito em calor, se bem estou anelando, quando estou abrasando em tanto
fogo de amor, que um peito amante verbera,
117


quem o favor n�o espera de tanto carinho ao rogo, se a chamas de ativo fogo nunca
vos negais esfera!

(Texto 8 � Glosa) (I, 94-5)

Vinde a meu peito, Senhor, fareis do divino humano
e por timbre de poder fareis do humano divino.

(Texto 19 � Glosa) (I, 94-5)
A transcend�ncia calada na iman�ncia, o Deus-Homem que ' 'a cada um transformou/
passando o divino a humano", � o pressuposto do primeiro conceito de fraternidade
universal na medida em que postula que todos os homens foram criados e remidos pelo
mesmo
Deus.
Mas esse movimento ideal para dignificar a pessoa em si mesma n�o conseguiu transpor
os versos da lira sacra para penetrar a s�tira de um cotidiano colonial feito de senhores,
tratantes e escravos.


118
4
VIEIRA
OU
A CRUZ DA DESIGUALDADE

A verdadeira fidalguia � a a��o. O que fazeis, isso sois, nada mais.
Vieira, Serm�o da Terceira Dominga do Advento
Greg�rio de Matos e Ant�nio Vieira foram contempor�neos. H� testemunhos de que se
conheceram e estimaram no per�odo baiano de ambos, que coincidiu com os �ltimos
anos de vida de um e de outro: o poeta morreu em 1696, o pregador no ano seguinte.
Comparado com o ' 'piccolo mondo'' de Greg�rio, s�tiro e cronista das mazelas da
Bahia, o universo de Vieira se mostra mais largo. Jesu�ta, conselheiro de reis, confessor
de rainhas, preceptor de pr�ncipes, diplomata em cortes europ�ias, defensor de crist�os-
novos e com igual zelo mission�rio no Maranh�o e no Par�, Vieira traz em si uma
estatura e um horizonte internacional. O interesse que ainda hoje desperta a sua obra
extensa e v�ria (207 serm�es, textos exeg�ticos, profecias, cartas, relat�rios pol�ticos...)
s� tem a ganhar se for norteado por um empenho interpretativo que consiga extrair dela
a riqueza das suas contradi��es, que s�o as do sistema colonial como um todo, e que s�
a experi�ncia brasileira, de per si, n�o explica.
Leitor e amador de Vieira h� pelo menos trinta anos, tento nestas p�ginas riscar o
desenho breve de algumas linhas mais fortes que comp�em a sua fisionomia. Os seus
olhos negros e viv�ssimos, cercados de olheiras sofridas, eram olhos postos no futuro:
cada tra�o desse rosto vincado parece acusar uma luta, perdida sempre, que outra luta
vai substituir sem tr�gua nem desalento. N�o foi por acaso que

119


ele disse, buscando em v�o persuadir nobres e clero a pagarem im-. postos na tarefa
ingente de reconstruir o Reino: ' 'A verdadeira fidal-guia � a a��o".
Vieira, ao contr�rio do poeta saudoso do ' 'Antigo Estado'', sabia que a maquina
mercante viera para ficar, irrevers�vel, inexor�vel. E que, sendo in�til lastimar a sua
intrus�o nos portos da Col�nia, importava domin�-la imitando os seus mecanismos e
criando, na esfera do poder mon�rquico luso, uma estrutura similar que pudesse venc�la
na concorr�ncia entre os imp�rios.
Esse projeto o situa no centro nervoso da pol�tica colonial do tempo. Enquanto valido e
conselheiro de d. Jo�o IV, inspira ao rei a funda��o de uma Companhia das �ndias
Ocidentais assentada principalmente em capitais judaicos. A empresa se faz, a despeito
da Inquisi��o, e come�a a funcionar em novembro de 1649, quando larga do Tejo a
primeira frota. Lan�ava-se uma ponte atl�ntica regular entre Lisboa e os portos da Bahia
e do Rio de Janeiro, entregando-se � Companhia o monop�lio de certos alimentos de
alto consumo na Col�nia: vinho, azeite, farinha, bacalhau. Em contrapartida, obrigava-
se a nova empresa a escoltar as frotas carregadas de a��car e tabaco que corriam perigo
de assalto quando se dirigiam para o Reino.
Em todo o plano Vieira seguia de perto o modelo estrat�gico das pot�ncias rivais, a
Inglaterra e a Holanda: aquela, com a Companhia das �ndias Orientais fundada por
Elisabeth I em 1599, n�cleo do primeiro imp�rio brit�nico; esta, com uma institui��o de
igual nome, em 1602, seguida pela Companhia das �ndias Ocidentais t�o ativa na
invas�o do nosso Nordeste.1
Mas a sociedade ib�rica do s�culo xvn n�o conhecia ainda a plena hegemonia do
pensamento burgu�s, que j� se impusera com vigor nas pr�ticas econ�micas e na cultura
da Inglaterra e da Holanda protestantes. Vieira prega em clima hostil ou suspeitoso,
tendo que convencer os seus ouvintes (d. Jo�o rv, os nobres, os te�logos, os letrados de
Coimbra, o Santo Of�cio) da ortodoxia e da licitude de um empreendimento a ser
financiado em boa parte por banqueiros e mercadores de extra��o crist�-nova. O que
resultou, em termos de ret�rica barroca, foi uma singular simbiose de alegoria b�blico-
crist� e pensamento mercantil, que serpeia no estranho Serm�o de S�o Roque pre120


gado na Capela Real, em 1644, por ocasi�o do primeiro anivers�rio do pr�ncipe d.
Afonso.
Em um primeiro momento, a linha de argumenta��o persegue o topos das falsas
apar�ncias. O que a alguns parece risco, seria, na verdade, a fonte de salva��o para
todos. O paradoxo do rem�dio perigoso vem ilustrado com hist�rias e exemplos
tomados � Escritura e ao F/os Sanctorum.
S�o Roque, nobre franc�s, volta � p�tria depois de ter peregrinado pela It�lia que movia
ent�o guerra � Fran�a. Os seus parentes n�o o reconhecem e, supondo-o espi�o,
prendem-no. As apar�ncias o incriminam. No entanto, os fatos acabam provando que
t�o-s� de Roque lhes viria o melhor apoio nos reveses da luta. O que mais tememos � o


que nos salva.
Ou ent�o:
Andavam os ap�stolos na barquinha de S�o Pedro lutando com as ondas: parte de terra
Cristo a socorr�-los; e eles come�aram a tremer cuidando que era fantasma. Fantasma?
Pois como assim? N�o era Cristo que os ia socorrer? N�o era Cristo que os ia livrar do
perigo? Pois como lhes pareceu que era um fantasma? Forque assim como h�
fantasmas que parecem rem�dios, assim h� rem�dios que parecem fantasmas. Cou-sa not�vel,
que o mesmo que lhes metia medo como perigo, os livrou da tempestade como
rem�dio.2
Est� urdida e est� lan�ada a rede das analogias. Resta agora tecer o �ltimo termo, que
surge como fio novo, mas j� preparado pelo trabalho da narra��o: "O rem�dio temido,
ou chamado perigoso, s�o as duas Companhias mercantis, Oriental uma, e outra
Ocidental, cujas frotas poderosamente armadas tragam seguras contra Holanda as
drogas da �ndia e do Brasil".
A luta externa acresce lembrar o embate entre as duas na��es da pen�nsula: ' 'E Portugal
com as mesmas drogas tenha todos os anos os cabedais necess�rios para sustentar a
guerra interior de Castela, que n�o pode deixar de durar alguns anos".
Postas as coisas nesses termos, o que impede a na��o portuguesa de executar plano t�o
prudente como o das companhias? Ser� um preconceito de sangue? Ou escr�pulo de
religi�o?
Afinal, o que se pede aos banqueiros crist�os-novos � um mediador neutro e universal,
que n�o tem ra�a, nem p�tria, nem f�: o

121


dinheiro. E Vieira toma de empr�stimo � linguagem do realismo pol�tico a id�ia
pragm�tica dos meios que as raz�es de Estado sempre legitimam:
Este � o rem�dio por todas as suas circunst�ncias n�o s� aprovado, mas admirado das
na��es mais pol�ticas da Europa, exceto somente a portuguesa, na qual a experi�ncia de
serem mal reputados na F� alguns de seus comerciantes, n�o a uni�o das pessoas, mas a
mistura do dinheiro menos crist�o com o cat�lico, faz suspeitoso todo o mesmo
rem�dio, e por isso perigoso.
S� Portugal se obstina em ignorar o exemplo das "na��es mais pol�ticas da Europa''. S�
Portugal se prop�e nesciamente a distinguir entre dinheiro fiel e infiel, dinheiro pio e
�mpio, dinheiro nobre e ign�bil...
O racioc�nio avan�a agora por um caminho de franca subordina��o do perigo ao
rem�dio. Concede-se ao interlocutor poderoso e temido, no caso, � Inquisi��o, que os
detentores do capital, os crist�os-novos, podem ser at� perversos, mas afirma-se que �
suma sabedoria voltar contra o mal as armas do pr�prio mal, tornando-as in�cuas ou
taticamente �teis. Eazer o contr�rio, expulsar os mercadores judeus de Portugal para
Holanda, seria engrossar as fileiras do herege batavo que j� rondava, c�pido, os
engenhos de Pernambuco.
Vieira estabelece um distinguo bem escol�stico: a santidade dos fins desejados por Deus
nada tem a ver com a imperfei��o dos meios contingentes que nascem da fraqueza
humana. E lembra a hist�ria do profeta Elias, que recebeu p�o n�o s� das m�os dos
anjos como das unhas dos corvos: ' 'A servir � F� com as armas da infidelidade, oh que
pol�tica t�o crist�! Alcan�ar a F� as vit�rias, e pagar � infidelidade os soldos, oh que
cristandade t�o pol�tica!".
E o dinheiro de Judas, supremo traidor, n�o foi por acaso bem aproveitado para comprar
um campo de sepultura aos peregrinos da Cidade Santa? Cristo, reza a lenda medieval,
apareceu a d. Afonso Henriques e pediu-lhe que gravasse no escudo de Portugal as suas
cinco chagas e mais os trinta dinheiros, ' 'para que entendamos que o dinheiro de Judas
crist�mente aplicado nem descomp�e as chagas de Cristo, nem descomp�e as armas de
Portugal. Antes, compostas juntamente de um e de outro pre�o, podem tremular
vitoriosas nossas

122

bandeiras na conquista e restaura��o da F�, como sempre fizeram em ambos os
mundos".
Da distin��o entre fins e meios, que passam a operar em ordens de valor pr�prias,
decorrer� um intervalo, bem moderno, entre os princ�pios �tico-religiosos e as pr�ticas
imediatas da pol�tica. Vieira n�o recua diante desse espa�o profano aberto pelo fundador
da ci�ncia burguesa do poder, o secret�rio florentino: ' 'A raz�o � porque a bondade das
obras est� nos fins, n�o est� nos instrumentos. As obras de Deus s�o todas boas; os
instrumentos de que se serve podem ser bons e maus".
Vieira, conselheiro do moderno pr�ncipe-mercador; Vieira, conselheiro do chefe de


Estado absoluto.

O DISCURSO DA A��O ENTRE A POL�TICA E A TEOLOGIA

Como pregador da Corte, o jesu�ta tem acesso aos estratos do privil�gio. Mas a sua
m�quina orat�ria deve, paradoxal e temer�ria, investir precisamente contra as regalias e
as isen��es de que gozavam os nobres e os religiosos nessa fase de reerguimento do
Imp�rio duplamente amea�ado: pela Espanha, no xadrez europeu; pela Holanda, na
estrat�gia atl�ntica e colonial.
O seu problema ret�rico fundamental � este: como compor um discurso persuasivo, isto
�, suficientemente universal nos argumentos para mover particularmente a fidalguia e o
clero a colaborar na reconstru��o do Reino, at� ent�o escorada sobretudo pela burguesia
e pelos crist�os-novos?
Em termos ideol�gicos: como p�r em xeque os preconceitos an-timercantis e antisemitas
que, como se sabe, j� afloravam nos di�logos morais de um frei Amador Arrais
e repontam, entre n�s, nas s�tiras de Greg�rio de Matos?
E preciso considerar o �bvio e lembrar que a a��o de Vieira se deu em pleno antigo
regime, antes que a cr�tica das Luzes come�asse a arranhar a metaf�sica social
incrustada nos estamentos. Vieira falava a um audit�rio para o qual o nobre era
ontologicamente nobre; o clero, clero in aeternum\ o vil�o, vil�o; o crist�o, crist�o; o
judeu, judeu. Assim o quisera a vontade .divina, assim o estabelecia a natureza das
coisas.

123


O seu empenho pol�tico o obrigava a induzir os ouvintes a uma reestrutura��o
conceituai de valores, inquietantemente dial�tica (o que � nobre? o que n�o o �?) e uma
redistribui��o das pessoas e dos grupos: quem � nobre? quem n�o o �? Da� vem a
estranha modernidade de alguns textos seus, que podem parecer fora de contexto se a
refer�ncia � o universo hier�rquico e contra-reformista da pen�nsula ib�rica nos
Seiscentos. O seu discurso, ag�nico e torcido, faz pensar que aquela cultura nada tinha
de homog�neo nem de est�tico.
Sigo aqui a ordem das raz�es do Serm�o da Primeira Dominga do Advento pregado na
Capela Real em 1650.
O tema, como pedia o tempo lit�rgico em v�speras de Natal, � o do novo nascimento de
cada homem, mat�ria de ress�os messi�nicos, mas aqui tratada como uma exorta��o a
agir em prol da constru��o de um novo indiv�duo na arena da luta social.
O segundo nascimento de cada crist�o depender� da sua vontade e do seu trabalho.
Todo homem traz em si mesmo o poder de corrigir a desigualdade que reina no mundo
do acaso:
Homens humildes e desprezados do povo, boa nova! Se a natureza ou a fortuna foi
escassa convosco no nascimento, sabei que ainda haveis de nascer outra vez, e t�o
honradamente como quiserdes: ent�o emen-dareis a natureza, ent�o vos vingareis da
fortuna.3
A honra do estamento, que por m� sorte n�o se recebeu no sangue, h� de conquist�-la o
esfor�o de onde prov�m a a��o honesta:
Se havemos de tornar a nascer, por que n�o trabalharemos muito por nascer muito
honradamente? N�o nascer honrado no primeiro nascimento tem a desculpa que Deus
nos fez. Ipse fecit nos (Si XCK, 3). N�o nascer honrado no segundo, nenhuma desculpa
tem: tem a gl�ria de sermos n�s os que nos fizemos. Ipse nos.
A ordem natural, tida por definitiva, � apenas um primum mobile da nossa exist�ncia
individual. O Advento prop�e um ' 'segundo tempo", um re-nascimento que se enra�za
no cora��o da vontade e do projeto. E nesse tempo, outro, feito de consci�ncia operosa,
que se conquista o valor. Termos medieval-barrocos tradicionais como honra, fidalguia,
nobreza, s�o ressemantizados por Vieira, que passa a integr�-los na esfera do trabalho,
liberando-os portanto da pura sujei��o � heran�a familiar e estamental.

124

Nesta virada axiol�gica o p�lo positivo chama-se a��o; e o contravalor mais funesto,
omiss�o. O elogio da vita activa resolve-se sob a forma de uma sintaxe em cadeia em
que o discurso em galope pot�ncia o m�rito do homem em estado de alerta ao mesmo
tempo que agrava o dem�rito do relapso:
Des�amos a exemplos mais p�blicos.
Por uma omiss�o perde-se uma mar�, por uma mar� perde-se uma viagem, por uma
viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um Estado: dai conta a Deus de
uma �ndia, dai conta a Deus de um Brasil por uma omiss�o. Por uma omiss�o perde-se


um aviso, por um aviso perde-se uma ocasi�o, por uma ocasi�o perde-se um neg�cio,
por um neg�cio perde-se um reino: dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de
tantas vidas, dai conta a Deus de tantas fazendas, dai conta a Deus de tantas honras, por
uma omiss�o.4
Quantas simetrias internas, quantos paralelos, quantas figuras que transp�em para a
prosa paren�tica o leixa-pren da l�rica medieval! Tudo s�o recursos de �nfase que visam
� meta suprema do orador: persuadir; e, persuadindo, mover o nobre, que ocupa lugar
pree-minente no Estado, a sacrificar o seu tempo de �cio e compartir de bom grado as
tarefas da remiss�o econ�mica do Reino. O que os velhos tratadistas de ret�rica, a
come�ar em Quintiliano, chamam de inventio, fase de busca, em aberto, de t�picos e
motivos, conhece em Vieira um largo espectro de possibilidades, tal � a prontid�o com
que desentranha das minas da mem�ria vozes e imagens para animar o tema proposto.
Passagens b�blicas, f�bulas, anedotas, prov�rbios, epis�dios tomados a vidas de santos,
tudo lhe serve, tudo lhe aproveita para dar ao argumento o esplendor do concreto:
O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o pr�ncipe e o ministro com uma
omiss�o matam de um golpe uma monarquia. Estes s�o os escr�pulos de que n�o se faz
nenhum escr�pulo; por isso mesmo s�o as omiss�es os mais perigosos de todos os
pecados.
A omiss�o � um pecado que se faz n�o fazendo [...] Estava o profeta Elias em um
deserto metido em uma cova, aparece-lhe Deus e diz-lhe: Quid hic agis, Elia? E b*em
Elias, v�s aqui? Aqui, Senhor! Pois aonde estou eu? N�o estou metido em uma cova?
N�o estou retirado do mundo? N�o estou sepultado em vida? Quid hic agis? E que fa�o
eu? N�o estou disciplinando, n�o estou jejuando, n�o estou contemplando e orando a
Deus? Assim era. Pois se Elias estava fazendo peni


125


t�ncia em uma cova, como o repreende Deus e lho estranha tanto? Porque ainda que
eram boas as obras as que fazia, eram melhores as que deixava de fazer. O que fazia era
devo��o, o que deixava de fazer era obriga��o. Tinha Deus feito a Elias profeta do povo
de Israel, tinha-lhe dado of�cio p�blico; e estar Elias no deserto, quando havia de andar
na corte; estar metido em uma cova, quando havia de aparecer na pra�a; estar
contemplando no C�u, quando havia de estar emendando a Terra; era muito grande
culpa.5
O tempo v�lido � o tempo oportuno, kair�s, gr�vido de a��o. Momento irrevers�vel, eis

o que se entende por esta frase terr�vel: "O tempo n�o tem restitui��o alguma".
E em seq��ncia de elos apertados:
Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escr�pulo aos ministros � dos
pecados do tempo. Porque fizeram o m�s que vem o que se havia de fazer o passado;
porque fizeram amanh� o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois o que se
havia d� fazer agora; porque fizeram logo o que se havia de fazer j�.6
Tudo quanto fr. Amador Arrais, Tome de Jesus, Heitor Pinto e os autores m�sticos
portugueses que des�guam na Nova Floresta de Manuel Bernardes exaltam sumamente
(a contempla��o do que � eterno, o apartar-se e alongar-se das coisas mundanas, o viver
em solitu-de) poder� cair, segundo Vieira, na conta da in�rcia culposa. A defesa do
neg�cio oposto ao �cio acaba invertendo o sentido da categoria-eixo do antigo regime, a
nobreza, que de valor herdado passa a virtude conquistada na labuta.
No Serm�o da Terceira Dominga do Advento os atos humanos ganham preced�ncia
sobre os t�tulos e determinam a qualidade destes. O que define o homem � o predicado,
n�o a subst�ncia calada nas coisas. Nessa nova ontologia Vieira atribui �s coisas, isto �,
�s realidades n�o humanas, o serem conhecidas por sua "ess�ncia"; quanto aos seres
humanos, por�m, a sua determina��o obt�m-se pela "a��o": "[...] porque cada um � o
que faz, e n�o � outra coisa. As cousas definem-se pela ess�ncia; o Batista definiu-se
pelas a��es; porque as a��es de cada um s�o a sua ess�ncia".7 Vieira reporta-se aqui ao
modo ativo ou actancial pelo qual Jo�o Batista se nomeia a si mesmo quando
perguntado sobre a sua identidade: "Eu sou a voz que clama no deserto''. Como se v�,
no texto evang�lico, o Batista se defi126
ne pelo predicado verbal que assinalava a sua a��o de clamar ou pregar. Pode-se
aproximar este passo de Vieira de outros, constantes no Serm�o da Sexag�sima, em que
o orador deprecia a categoria do nome quando n�o inclui em si a fun��o verbal: s� vale

o pregador que prega, e n�o aquele que apenas traz o t�tulo. Para o voluntarismo inaciano
o agir constitui a ess�ncia da alma racional e livre. Na segunda metade do s�culo
XVII a Igreja de Roma, diretamente inspirada pela teologia ativista e pragm�tica da
Companhia de Jesus, condenou v�rias proposi��es do m�stico espanhol Miguel de
Molinos cujo Guia espiritual pode considerar-se o texto fundamental do quietismo
cat�lico. Ao mesmo tempo, na Fran�a, os jansenistas sofriam processos movidos pelos

jesu�tas que os acusavam de ensinar uma doutrina subje-tivista na qual a f� bastaria ao
crente mesmo quando desacompanhada das obras externas e dos rituais p�blicos de
piedade.
Vieira � dr�stico: "Cada um � as suas a��es, e n�o outra coisa".
O serm�o, pregado aos nobres, insiste em dar prioridade ao fazer, e n�o � subst�ncia,
mas pouco se det�m em especula��es de ordem metaf�sica que, naquela altura do
s�culo, dividiam os te�logos em correntes inconcili�veis, os voluntaristas (partid�rios de
uma extens�o maior a ser concedida ao princ�pio do livre-arb�trio) e os quie-tistas, que
viam um abismo entre o poder da Gra�a e a iniciativa do homem.
O horizonte do nosso orador � pragm�tico, passando rapidamente das m�ximas
universais �s aplica��es particulares que lhe interessavam de perto: "Oh que grande
doutrina para o lugar em que estamos! Quando vos perguntarem quem sois v�s, n�o
vades revolver o nobili�rio de vossos av�s, ide ver a matr�cula de vossas a��es. O que
fazeis, isso sois, nada mais". E recorrentemente: "A verdadeira fidal-guia � a a��o".8
No Serm�o de Santo Ant�nio pregado na igreja das Chagas de Lisboa em 1642, Vieira
aperta os cravelhos do seu instrumento ret�rico para demover o clero e a nobreza de seu
apego ao injusto sistema de isen��o tribut�ria, t�o nocivo ao er�rio real quanto oneroso
para o Terceiro Estado, a� chamado "povo". Este serm�o, talvez o mais ardido de
quantos Vieira dirigiu aos desfrutadores do privil�gio, conduz at� os extremos da
consci�ncia poss�vel do tempo o princ�pio moral da eq�idade com que os tr�s estados
deveriam contribuir para sus-ter o Reino.

127


O universalismo, necess�rio ao �nus da prova, deita aqui ra�zes em duas realidades
historicamente d�spares: o sistema nacional-mercantil, de um lado; e as propostas de
fraternidade contidas no Evangelho, de outro.
Vendo misturadas as �guas dessas fontes, talvez o nosso primeiro sentimento seja de
estranheza, se n�o de indigna��o. A hist�ria das mentalidades nos sofreia, por�m, esse
gesto de impaci�ncia. Engels fala, em um ardoroso ensaio juvenil, da "franqueza
cat�lica", capaz de abrigar as mais gritantes contradi��es, e exp�-las ingenuamente,
atitude ainda poss�vel em forma��es a um tempo mercantis e tradicionais, mas que foi
sendo superada pela ' 'hipocrisia protestante'' nos s�culos xviii e xix, quando os
utilitaristas norte-americanos sa�ram a campo para provar, com a B�blia e Calvino na
m�o, a pureza do lucro e a santidade do industrialismo liberal.9
O discurso de Vieira parece, nessa ordem de raz�es, avan�ado e moralmente impec�vel.
Pede o concurso de todos para aliviar os �nicos sacrificados: "N�o sejam os rem�dios
particulares, sejam universais; n�o carreguem os tributos somente sobre uns, carreguem
sobre todos".10 "A lei de Cristo � uma lei que se estende a todos, com igualdade, e que
obriga a todos sem privil�gio: ao grande e ao pequeno: ao alto e ao baixo: ao rico e ao
pobre: a todos mede pela mesma medida.''
Mas n�o � s�. A Lei de Cristo, revelada, n�o suprime a Lei Natural, presente nas
consci�ncias de todos os homens. Ambas exigem estreita eq�idade, ambas ensinam que
os bens, universalmente distribu�dos por Deus, devem ser universalmente retribu�dos
pelos tr�s estados, cujo lugar comum � o Estado. O jusnaturalismo vem acionado por
Vieira numa linha antiaristocr�tica, isto �, em benef�cio da alian�a Coroa-burguesia.
O privil�gio peca, de todo modo, contra as leis divinas: as escritas no texto sagrado e as
inscritas na natureza das coisas e dos homens.
A analogia com os fen�menos c�smicos � a chuva que cai igualmente sobre os justos e
os injustos � conduz Vieira a um singular desdobramento do exemplo escolhido. No
que � celeste, a chuva contempla sem distin��o a todos os homens; mas, ao cair neste '
'elemento grosseiro'' que � a Terra, a �gua reparte-se de maneira desigual:

128

escorrendo dos montes deixa secos os cimos, ao passo que, alagando os vales, p�e os
moradores das baixadas em grave risco de enchentes e afogamentos... Assim, toda lei
que vem do alto (do c�u sobrenatural e do c�u natural) � justa e isenta. O Armamento �
uno, sempre igual, como conv�m �s esferas lisas e incorrupt�veis da astronomia ptolomaica.
A Terra, ao contr�rio, crespa e revolta de acidentes, � que produz a
disparidade, as montanhas e os mangues, o ch�o seco e o solo encharcado: "Se
amanhece o sol, a todos aquenta; se chove o c�u, a todos molha. Se toda a luz ca�ra a
uma parte e toda a tempestade a outra, quem o sofrer�? Mas n�o sei que injusta
condi��o � a deste elemento grosseiro em que vivemos, que as mesmas igualdades do
c�u, em chegando � Terra, logo se desigualam".
Chove o c�u com aquela ampla igualdade distributiva que vemos; mas em a �gua


chegando � Terra, os montes ficam enxutos, e os vales afogando-se: os montes escoam

o peso da �gua de si, e toda a for�a da corrente desce a alagar os vales; e queira Deus
que n�o seja teatro de recrea��o para os que est�o olhando do alto, ver nadar as cabanas
dos pastores sobre os dil�vios de suas ru�nas. Ora, guardemo-nos de algum dil�vio
universal, que quando Deus iguala desigualdades at� os mais altos montes ficam
debaixo da �gua.
Entra, a partir da �ltima frase, uma severa advert�ncia, quase uma amea�a aos grandes
deste mundo: "O que importa � que os montes se igualem com os vales, pois os montes
s�o a quem amea�am principalmente os raios, e reparta-se por todos o peso, para que
fique leve a todos".11
O que move o discurso � o car�ter inventivo do procedimento anal�gico. O orador extrai
sempre novas raz�es eq�itativas da natureza; daquela mesma natureza que daria, mais
tarde, � ret�rica do puro capitalismo liberal raz�es simetricamente opostas: a um Rui
Barbosa, por exemplo, a desigualdade social parecer� legitimada pelo modelo biol�gico
pelo qual s�o t�o diferentes entre si as esp�cies vegetais e animais, sem esquecer a
indefect�vel compara��o com os cinco dedos da m�o...
Vieira, contrapondo a justi�a de cima � injusti�a de baixo, n�o s� afirma que a lei da
igualdade � superior ao acaso da desigualdade, como exorta os homens a mudarem o
estado em que vivem, abandonando ' 'o que s�o para chegarem a ser o que devem''.
129


O serm�o introduz a cunha da norma �tica mais geral no tronco do privil�gio, tal como
este veio se constituindo no dia-a-dia da Hist�ria portuguesa. E como a sua inten��o
manifesta � mudar o quadro de rela��es desse cotidiano, sotop�e a sua conting�ncia e a
sua imperfei��o ao princ�pio mais alto do dever-ser, que � o ideal da res publica: "Se os
tr�s estados do Reino, atendendo a suas preemin�ncias, s�o desiguais, atendam a nossas
conveni�ncias, e n�o o sejam''. "Deixem de ser o que s�o, para serem o que � necess�rio,
e iguale a necessidade os que desigualou a fortuna."
Ao clero pede "que ceda as suas imunidades e pague liberalmente � Coroa".
Do nobre sentencia: ' '� justo que os que se sustentam dos bens da Coroa n�o faltem �
mesma Coroa com os seus pr�prios bens".12
E o que dizer do Terceiro Estado? Vieira comenta com sal: "Sobre os of�cios, sobre os
que menos podem, caem de ordin�rio os tributos; n�o sei se por lei, se por infelicidade,
e melhor � n�o saber por qu�".
A suspens�o ir�nica da frase (' 'n�o sei [...] o melhor � n�o saber por qu�") esconde a
cr�tica � domina��o nas entrelinhas, mas sugere o bastante para tornar-se vis�vel a todos
os ouvintes. No Serm�o XVI do Ros�rio o tom ser� mais direto e vibrante, alcan�ando a
nota do prof�tico:
Tanto que Deus apareceu no mundo, t�o pequeno como um cordeiro como eu O hei de
mostrar com o dedo, os montes e outeiros se h�o de abater, e derrubar por si mesmos, e
encher os vales, e n�o h� de haver altos e baixos na Terra, tudo h� de ser igual. E que
montes e outeiros s�o estes? Os montes s�o a primeira nobreza, e do primeiro poder; os
outeiros s�o os da segunda.13
Para ler com exatid�o filol�gica a passagem acima, � preciso perguntar, antes de mais
nada, o que Vieira entendia pelo termo povo, ou, mais especificamente, por Terceiro
Estado.
A consulta a outros serm�es seus pregados em Portugal d� uma resposta ampla quanto �
extens�o do conceito; e negativa, quanto � sua compreens�o. Entrariam no Terceiro
Estado todos quantos, por exclus�o, n�o pertencessem �s duas ordens seladas pelo
privil�gio: a nobreza, primeira e segunda, que inclu�a tamb�m os oficiais de armas e a
alta magistratura; e o clero em geral. O car�ter heterog�neo

130

do universo restante salta aos olhos, sobretudo para n�s, hoje, que em pleno capitalismo
industrial opomos, ponto por ponto, burguesia e classe oper�ria. O crit�rio de Vieira e
de seu s�culo era, evidentemente, outro, e mais ajustado a uma forma��o social que
praticava ainda estilos de vida tradicionais, para n�o dizer semifeudais, no interior de
uma estrutura econ�mica j� francamente mercantil. Assim, o corte mais ostensivo se
fazia entre os grupos do privil�gio, de cepa fortemente hier�rquica, e todos os demais,
isto �, o "povo".
Mas quem s�o esses outros? O orador congrega no mesmo elenco os injusti�ados e
oprimidos pelos dois primeiros estados: junta assim os negociantes, os lavradores, os


art�fices, os jornaleiros (assalariados) e os f�mulos ou criados de casa. Soma os
"burgueses'', representados pelos mercadores e pequenos propriet�rios de terra, e os
"oper�rios", no caso, todos os trabalhadores da cidade e do campo, al�m dos artes�os e
dos bra�ais. Eis o Terceiro Estado.
Para compreender bem o quadro social portugu�s � de leitura obrigat�ria o Serm�o da
Quinta Dominga da Quaresma. Vieira aqui adota o m�todo de compor pela
enumera��o. Arrolam-se os signos e distribuem-se de modo polarizado: os objetos de
luxo, de um lado; os seres humanos explorados, de outro. O processo visa, no seu
conjunto, a um efeito teatral. E a plena evidentia barroca.
A elocu��o �, desde o in�cio, gestual. O orador finge estar penetrando, junto com os
ouvintes por ele convidados, em um pal�cio de ricos fidalgos cujo escudo sobre a
portada exibe le�es e �guias, alegorias da ' 'f� cat�lica cristian�ssima'' da fam�lia:
Entremos e vamos examinando o que virmos parte por parte. Primeiro que tudo vejo
cavalos, liteiras e coches: vejo criados de diversos calibres, uns com libres, outros sem
elas: vejo galas, vejo j�ias, vejo baixe-las: as paredes vejo-as cobertas de ricos tapizes:
das janelas vejo ao perto jardins, e ao longe vejo quintas; enfim vejo todo o pal�cio e
tamb�m o orat�rio; mas n�o vejo af�.E por que n�o aparece a f� nesta casa? Eu o direi
ao dono dela. Se os vossos cavalos comem � custa do lavrador, e os freios que
mastigam, as ferraduras que pisam, e as rodas e o coche que arrastam s�o dos pobres
oficiais, que andam arrastados sem cobrar um real; como se h�-de ver a f� na vossa
cavalari�a? Se o que vestem os lacaios e os pajens, e os socorros de outro ex�rcito
dom�stico masculino e feminino dependem das mesadas do mercador que vos assiste, e
no princ�pio do ano lhe pagais com esperan�as e no

131


fim com desespera��es a risco de quebrar; como se h�-de ver a f� na vossa fam�lia? Se
as galas, as j�ias e as baixelas, ou no Reino, ou fora dele, foram adquiridas com tanta
injusti�a e crueldade, que o ouro e a prata derretidos, e as sedas se se espremeram,
haviam de verter sangue; como se h�-de ver a f� nessa falsa riqueza? Se as vossas
paredes est�o vestidas de preciosas tape�arias, e os miser�veis a quem despistes para as
vestir a elas, est�o nus e morrendo de frio; como se h�-de ver a f�, nem pintada nas
vossas paredes? Se a Primavera est� rindo nos jardins e nas quintas, e as fontes est�o
nos olhos da triste vi�va e �rf�os, a quem nem por obriga��o, nem por esmola
satisfazeis, ou agra-deceis o que seus pais vos serviram; como se h�-de ver a f� nessas
flores e alamedas? Se as pedras da mesma casa em que viveis, desde os telhados at� os
alicerces est�o chovendo os suores dos jornaleiros, a quem n�o faz�eis f�ria, e, se
queiram buscar a vida a outra parte, os pren-d�eis e obrig�veis por for�a; como se h�-de
ver a f�, nem sombra dela na vossa casa?14
Protestos semelhantes Vieira os lan�a contra os sacerdotes que adornam os templos de
Lisboa com ouro, prata e gemas preciosas, quando, dentro e fora desses teatros de
pompa, a vida n�o concorda com a cren�a; antes, desmente-a e a destr�i:
O ouro e os brocados, de que se vestem as paredes, s�o objeto vulgar da vista: a
harmonia dos coros, suspens�o e eleva��o dos ouvidos: o �mbar e alm�scar, e as outras
esp�cies arom�ticas que vaporam nas ca�oulas, at� pelas ruas rescendem muito ao
longe, e convocam pelo olfato o concurso. E isto Terra, ou C�u? C�u �, mas com muita
mistura de Terra. Porque no meio desse culto celestial, exterior e sens�vel, o desfazem e
contradizem tamb�m sensivelmente, n�o s� as muitas ofensas que fora dos templos se
cometem, mas as p�blicas irrever�ncias com que dentro neles se perde o respeito � f� e
ao mesmo Deus.
Queres que te diga, Lisboa minha, sem lisonja, uma verdade muito sincera, e que te
descubra um engano, de que tua piedade muito se gloria? Esta tua f� t�o liberal, t�o rica,
t�o enfeitada e t�o cheirosa, n�o � f� viva: pois que �? E f� morta, mas embalsamada.
As alegorias barrocas da Gl�ria, que o pal�cio e a catedral ostentam em toda a sua
magnific�ncia, esvaziam-se de qualquer significado religioso quando representam
apenas a opul�ncia in�qua, e n�o a f� cujos poderes pretendiam exaltar.15

132

O mesmo estilo espetaculoso dos Seiscentos que edifica uma arquitetura feita de '
'maravilhas'' com falsas portas, falsas janelas e fundos de trompe l'oeilms ab�badas
policr�micas; a mesma liturgia p�s-tridentina, que deseja converter as almas por meio
dos sentidos, prodigalizando figuras e ornamentos, musicando solenemente as missas e
os orat�rios, e n�o desdenhando sequer os amavios do olfato ao espalhar pelas naves
dos templos os aromas do incenso e do alm�scar; enfim, o mesmo esp�rito do tempo, que
multiplica em frenesi as imagens e os sons, volta-se em Ant�nio Vieira contra si
pr�prio, condena asceticamente o "culto exterior e sens�vel", e surpreende, no meio das
galas, a morte e a mumif�ca��o da subst�ncia religiosa que essa pletora de signif�cantes


deveria representar: "Esta tua f� t�o liberal, t�o rica, t�o enfeitada e t�o cheirosa, n�o �
f� viva: pois que �? E f� morta, mas embalsamada".
Gra�as a um movimento dial�tico a ret�rica do grande jesu�ta constr�i e faz aluir, pedra
a pedra, o gran teatro dei mundo. E por tr�s da sua fachada monumental o ouvinte
entrev�, entre indignado e compungido, o lavrador fam�lico, os artes�os � m�ngua e sem
paga, o mercador fraudado; e das paredes vertem as alfaias o suor e o sangue dos
jornaleiros mortos de frio.
O palco � italiana da nobreza perde, de repente, a dist�ncia que protegia a m�quina das
suas ilus�es. O orador reconhece os efeitos enganosos da perspectiva, e os denuncia:
Se retrat�ssemos em um quadro a figura deste enigma, ver�amos que em diferentes
perspectivas os escuros faziam os longes, e os claros os pertos. Mas se cheg�ssemos a
tocar com a m�o a mesma pintura achar�amos que toda aquela diversidade que fingem
as cores, n�o � mais que uma ilus�o de vista, e um sonho dos olhos abertos, e que tanto

o remontado dos longes, como o vizinho dos pertos, tudo tem a mesma dist�ncia.16
Quem aprendeu as artes da fic��o tornou-se mestre na ci�ncia do desengano. E pr�prio
de tempos saturados de maneirismo explorar as �ltimas potencialidades dos estilos j�
cl�ssicos para desmascarar os seus artif�cios mais secretos. A voz concitada do pregador
cult�ssi-mo (e por isso mesmo posto al�m do cultismo) desnuda os bastidores e, l� do
fundo, faz surgir em sua pat�tica rudeza os oper�rios daquela civiliza��o requintada e
cruel.
133


Ao devassar as mis�rias da opulenta Lisboa, ao expor os abusos do primeiro e do
segundo Estado, Vieira produziu um discurso de teor universalista b�blico (da B�blia dos
profetas) e crist�o. A velha proposta escol�stica da justi�a distributiva aqui refor�a
taticamente as lutas do estrato mercantil, judaico ou n�o, mas tamb�m adverte aos
detentores do privil�gio que o trabalho das m�os estava sendo t�o explorado quanto no
regime da servid�o.
O projeto pol�tico de Vieira em Portugal, favor�vel � alian�a entre a Coroa e o Terceiro
Estado, soa para n�s como progressista, quando comparado com o vetor reacion�rio da
Inquisi��o e de boa parte da nobreza.
Cabe perguntar agora como a sua apologia da vida ativa e dos produtores de riqueza
enfrentou as quest�es espinhosas (e, em parte, novas para o europeu) do trabalho �ndio e
do trabalho negro na sociedade colonial.

�NDIOS
A defesa dos �ndios contra os colonos do Maranh�o � o assunto do Serm�o da Epifania
pregado na Capela Real, em 1662, perante a rainha vi�va dona Lu�sa, que regeu os
neg�cios da monarquia durante a minoridade de d. Afonso VI.
Conv�m lembrar as circunst�ncias que precederam � fala de Vieira. Ele e outros
mission�rios estavam retornando a Lisboa expulsos pelos colonos ap�s uma s�rie de
atritos causados pela quest�o do cativeiro. O pregador, valendo-se da presen�a da
regente e do menino, futuro rei, pede que os jesu�tas voltem ao Maranh�o e possam
implantar miss�es aut�nomas em rela��o aos senhores de escravos.
O serm�o � exemplar como xadrez de conflitos sociais, dados os interesses em jogo,
obrigando o discurso ora a avan�ar at� posi��es extremas, ora a compor uma linguagem
de compromisso. No fundo, o pregador acha-se dividido entre uma l�gica maior, de raiz
universalista, tendencialmente igualit�ria, e uma ret�rica menor, que trabalha adhoc,
particularista e interesseira. O efeito � um misto de ardor e diplomacia, veem�ncia e
sinuosidade, que define a grandeza e os limites do nosso jesu�ta.

134

O contraste se faz tanto mais agudo quanto mais absoluta se prop�e a doutrina inicial da
igualdade de todos os povos, trazida, a certa altura, ao primeiro plano do serm�o. Para
argumentar, Vieira alega as raz�es da natureza, que t�m por si a for�a da evid�ncia, e as
raz�es das Escrituras, que se abonam com a autoridade da revela��o.
As verdades naturais, primeiro:
As na��es, umas s�o mais brancas, outras mais pretas, porque umas est�o mais vizinhas,
outras mais remotas do sol. E pode haver maior inconsidera��o do entendimento, nem
maior erro do ju�zo entre os homens, que cuidar eu que hei-de ser vosso senhor, porque
nasci mais longe do sol, e que v�s haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais
perto?!17
Depois, os depoimentos da tradi��o crist�: reza esta que um dos Reis Magos, de nome
Belchior, era negro; e os outros dois, brancos; todos, por�m, foram salvos por Deus da


f�ria de Herodes, "que os homens de qualquer cor, todos s�o iguais por natureza, e mais
iguais ainda por f�".
A filia��o comum e universal dos homens em rela��o a um Deus criador e �nico � o
aval da irmandade de todos: ' 'E entre crist�o e crist�o n�o h� diferen�a de nobreza, nem
diferen�a de cor. N�o h� diferen�a de nobreza porque todos s�o filhos de Deus; nem h�
diferen�a de cor porque todos s�o brancos". Esta �ltima senten�a, que naturalmente
causa esp�cie, � esclarecida adiante pela doutrina segundo a qual o batismo limpou
espiritualmente a todos, sem distin��o.
Posto o discurso nessa chave, o que dele se seguiria, caso fosse mantido o seu grau de
coer�ncia interna? Sobreviria a condena��o pura e simples do que se praticava ent�o no
Brasil, ou seja, tomaria forma l�gica o rep�dio a qualquer tipo de cativeiro. Para a�
caminha o �mpeto dos argumentos �ticos. Para a� levam os s�miles com a dupla rota da
estrela de Bel�m, a qual primeiro conduziu os magos a Cristo (figura da convers�o dos
gentios) e, em seguida, os desviou do caminho onde Herodes os faria matar � figura da
liberta��o dos mesmos �ndios das garras dos colonos. Analogamente, essa viria a ser a
dupla miss�o dos jesu�tas: levar a boa nova �s almas dos tupinamb�s e defender os seus
corpos quando amea�ados de cair �s m�os dos brancos.
Do ponto de vista da ortodoxia Vieira sabia-se respaldado por v�rios documentos de
papas favor�veis � liberdade dos �ndios, a co


135


me�ar pela arquicitada bula Sublimis Deus, emitida por Paulo m em 1537, quando ia
acesa na Espanha a pol�mica teol�gica em torno da verdadeira natureza dos homens
americanos:
Pelas presentes Letras decretamos e declaramos com nossa autoridade apost�lica que os
referidos �ndios e todos os demais povos que daqui por diante venham ao conhecimento
dos crist�os, embora se encontrem fora da f� de Cristo, s�o dotados de liberdade e n�o
devem ser privados dela, nem do dom�nio de suas cousas, e ainda mais, que podem usar,
possuir e gozar livremente desta liberdade e deste dom�nio, nem devem ser reduzidos �
escravid�o; e que � irrito, nulo e de nenhum valor tudo quanto se fizer em qualquer
tempo de outra forma.
No entanto, esse ideal, n�tido a absoluto enquanto jus naturale e enquanto verdade de f�,
j� fora abandonado pelo compromisso pol�tico dos padres (confessado pelo pr�prio
Vieira) de "descer" com os portugueses ao sert�o, domesticar e reduzir os abor�gines �
obedi�ncia; enfim, traz�-los a Bel�m do Par� e a S�o Lu�s para trabalharem a metade do
ano nas ro�as dos colonos. Na pr�tica, logo que a produ��o aumentava, exigiam-se mais
bra�os e mais longo tempo de servi�o. Como os jesu�tas resistissem a essas requisi��es
abusivas e como reservassem a outra metade do ano para catequizar os mesmos �ndios
nas aldeias, acabaram expulsos do Par� e do Maranh�o, motivo principal das queixas de
Vieira � regente dona Lu�sa.
A homilia n�o esconde o ponto doloroso da quest�o inteira: sob pretexto de guerra justa,
a Igreja permitira o cativeiro do �ndio. Assim, os mesmos pastores a quem fora entregue

o cuidado das ovelhas tangeram-nas para a goela dos lobos:
N�o posso, por�m, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito
culpados. E por qu�? Porque devendo defender os gentios que trazemos a Cristo, como
Cristo defendeu os Magos, n�s acomodando-nos � fraqueza de nosso poder, e � for�a do
alheio, cedemos da sua justi�a, e faltamos � sua defesa [...] Cristo n�o consentiu que os
Magos perdessem a p�tria, porque reversisunt in regionem suam (Mt 2, 12); e n�s n�o
s� consentimos que percam a sua p�tria aqueles gentios, mas somos os que � for�a de
persuas�es e promessas (que se lhes n�o guardam) os arrancamos das suas terras,
trazendo as povoa-��es inteiras a viver ou a morrer junto das nossas. Cristo n�o
consentiu que osMagos perdessem a soberania, porque reis vieram e reis tornaram; e
n�s n�o s� consentimos que aqueles gentios percam a soberania
natural com que nasceram e vivem isentos de toda sujei��o; mas somos os que,
sujeitando-os ao jugo espiritual da Igreja, os obrigamos, tamb�m, ao temporal da coroa,
fazendo-os jurar vassalagem. Finalmente, Cristo n�o consentiu que os Magos perdessem
a liberdade, porque os livrou do poder e tirania de Herodes, e n�s n�o s� n�o lhes
defendemos a liberdade, mas pactuamos com eles e por eles, como seus curadores, que
sejam meios cativos, obrigando-os a servir alternada-mente a metade do ano.18
A contradi��o, de que Vieira se mostra bem consciente, e que o pungia como um


remorso, espelha a condi��o amb�gua da Igreja colonial.
Como poderia uma institui��o, que vivia dentro do Estado mon�rquico, e � custa dos
excedentes deste, desenvolver um projeto social coeso � revelia das for�as que
dominavam esse mesmo sistema?
A tens�o acaba se resolvendo de um de dois modos, ambos infelizes para os jesu�tas. Ou

o compromisso, ou a resist�ncia. Na primeira op��o, tal como se deu no Maranh�o, todo
o processo revelou-se inst�vel, pois se estabeleceu entre um modelo de subsist�ncia de
ritmo lento, a aldeia da miss�o, e um modelo de produ��o agromercan-til, o engenho, a
fazenda de algod�o ou de fumo. Era fatal que este �ltimo exigisse cada vez mais a for�a
de trabalho do primeiro; nesse momento, o pacto entre o colono e o jesu�ta mostra a sua
precariedade, e o enfrentamento se d� no interior de um esquema assim�trico de
poderes.
Na vila de S�o Paulo de Piratininga, a resist�ncia levou ao fim que se sabe: o choque e a
expuls�o j� se haviam dado em 1640, depois de escaramu�as repetidas contra os
bandeirantes. As miss�es do Sul terminariam tragicamente nos meados do s�culo xvin.
No Norte, apesar do apoio inicial dado por d. Jo�o rv a Vieira, os padres n�o puderam
executar livremente o seu plano de aldeamentos no sert�o, pois o capit�o-mor ordenou
que se restringissem ' 'ao ensino de Doutrina e Latim'' avocando para si a quest�o do
trabalho ind�gena (1653-5). Vieira, infatig�vel, apelou � Coroa e obteve um regimento
prop�cio � a��o dos mission�rios, mas a tr�gua durou pouco.19 Os colonos os enxotam
precipitadamente de Bel�m e de S�o Lu�s depois de s�rias vexa��es (1661). Tornando a
Lisboa e pregando � regente, em 1662, Vieira j� n�o recebe o mesmo favor que
alcan�ara nos tempos de d. Jo�o rv: a Lei de 12 de setembro de 63 imp�e uma
137


r�gida separa��o entre as atividades temporais e as espirituais, cabendo aos religiosos
apenas o exerc�cio destas. Confirma-se a palavra do serm�o: "Querem que aos ministros
do Evangelho perten�a s� a cura das almas, e que a servid�o e o cativeiro dos corpos
seja dos ministros do Estado. Isto � o que Herodes queria".20
Vieira cairia em desgra�a nesse mesmo ano, vindo a Inquisi��o a proibir-lhe, por causa
dos seus escritos messi�nicos, que pregasse em terras portuguesas.21
Mas voltemos � fase do compromisso, de que Vieira se penitencia em certo momento,
mas que afinal mant�m e justifica em outros. Como consegue o orador casar os
argumentos universais com o discurso particularista que visa a dar conta do acordo
inicial com os colonos? Na verdade, apenas justap�e aquelas verdades-limite a que
chegara e os pretextos da ideologia corrente com a qual deve negociar: ' 'N�o � minha
ten��o que n�o haja escravos, antes procurei nesta corte, como � not�rio e se pode ver
de minha proposta, que se fizesse, como se fez, uma junta dos maiores letrados sobre
este ponto, e se declarasse, como se declararam por lei (que l� est� registrada) as causas
do cativeiro l�cito".
O arrazoado vale-se da mem�ria de pactos antigos fundados em uma distin��o cavilosa:
cativeiro l�cito, cativeiro il�cito.
Houve, ent�o (e esse � o objeto do mea culpa yk transcrito), houve uma fase de
coniv�ncia com o colono, uma acomoda��o da "fraqueza' ' do menos forte (o
mission�rio) � for�a do mais poderoso (o senhor das terras). Esse pacto formou a sua
culpa subjetiva (covardia), mas, ao mesmo tempo, foi a condi��o para a sua
sobreviv�ncia pol�tica, objetiva. A l�gica do direito natural e o kerygma crist�o pedem a
liberdade dos irm�os; mas a ret�rica dos interesses quer distinguir entre o cativeiro l�cito
e o il�cito.
O discurso tem uma estrutura interna conseq�ente, mas traz no subsolo um processo
hist�rico feito com as pr�ticas efetivas do orador e dos ouvintes. O serm�o ora sobe com
as mar�s altas da raz�o uni-versalizante, ora desce em concess�es aos m�ltiplos
interesses dos grupos de press�o. Aqui o universal se contrai e se deprime, e � por isso
que Vieira se peja de ter cedido ao pacto com o poderoso.
O mesmo acontece no Serm�o da Primeira Dominga da Quaresma, pregado no
Maranh�o pouco antes dos incidentes j� relatados. A� tamb�m se maldiz a escravid�o,
qualificando-a de pacto demo


n�aco: "Basta acenar o Diabo com um tijupar de pindoba e dois tapuias; e logo estar�
adorado com ambos os joelhos". A� se amea�a aos senhores de �ndios com as penas do
inferno: ' 'Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em estado de
condena��o, e todos ides diretos ao Inferno''. A� se formulam princ�pios gerais de
conduta antiescravista: "Todo o homem que deve servi�o ou liberdade alheia, e
podendo-a restituir, n�o restitui, � certo que se condena: todos ou quase todos os
homens do Maranh�o, devem servi�os e liberdades alheias, e podendo restituir, n�o


restituem; logo todos ou quase todos se condenam". Mas, apesar do gesto de indigna��o
("Ide � Turquia, ide ao Inferno, porque n�o pode haver turco t�o turco na Turquia, nem
dem�nio t�o endemoninhado no Inferno, que diga que um homem livre pode ser cativo.
H� algum de v�s s� com o lume natural, que o negue?"), chega o momento da proposta
conciliadora que Vieira apresenta aos colonos renitentes.
Em s�ntese:
H� tr�s tipos de �ndios no Maranh�o: os escravos que j� est�o na cidade; os que vivem
nas aldeias de el-rei como livres; e os que moram nos sert�es.
1) Os escravos da cidade. Estes servem diretamente aos colonos. Como foram herdados
ou havidos de m�-f�, devem ter o direito de escolher entre sair do seu cativeiro ou
continuar nos trabalhos que ora fazem. A proposta, no caso, � oferecer-lhes a liberdade
de ir para "as aldeias de El-Rei", que s�o miss�es jesu�ticas apoiadas moralmente pela
Coroa.
2) Os escravos das aldeias de el-rei. O pregador os tem como livres: nada h� a propor.
3) Os que vivem nos sert�es. Destes (na verdade, a grande mina das bandeiras e dos
colonos) s� poderiam ser tirados aqueles que j� estivessem cativos de tribos inimigas e
na imin�ncia de serem mortos. Os colonos os libertariam trazendo-os � cidade como
escravos. E o que se chamava "opera��o de resgate", pela qual os portugueses levavam
consigo os condenados, os "�ndios de corda".
O car�ter freq�entemente arbitr�rio do "resgate" aparece no modo escarninho com que o
trata Vieira: "Comprar ou resgatar (como dizem) dando o piedoso nome de resgate a
uma venda t�o for�ada ou violenta, que talvez se faz com a pistola nos peitos".22

139


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5 KHF.U!)FNris.S. imB� <\HlCURSII.AURNoUiii* PFsibtMO

Ant�nio Vieira. �leo de autor desconhecido, s�culo XVIII.
' 'O c�u strella o azul e tem grandeza, Este, que teve a fama e a gl�ria tem, Imperador da l�ngua
portuguesa, Foi-nos um c�u tamb�m.


Fernando Pessoa, ' 'Ant�nio Vieira'' (Mensagem)


Pormenor de uma imagem inacabada de Santa Catarina, de dois metros de altura, procedente do povo
das Miss�es de S�o Louren�o.



O orador ainda concede que sejam retirados do sert�o os �ndios "vendidos como
escravos de seus inimigos, tomados em justa guerra, da qual ser�o juizes o governador
de todo o estado, o ouvidor-geral, o vig�rio do Maranh�o ou Par�, e os prelados das
quatro religi�es, Carmelitas, Franciscanos, Merced�rios, e da Companhia de Jesus".
Conforme o julgamento dessas autoridades, iriam para a cidade os cativos em guerra
considerada justa; e para as aldeias, os demais. Quanto a estes, a proposta � que vivam
nas aldeias seis meses por ano, alternando-os com outros tantos reservados para
tratarem de suas lavouras e fam�lias.
Da� se infere que rigorosamente escravos dos colonos ficariam os �ndios de corda e os
de ' 'guerra justa'', al�m daqueles que, consultados, preferissem continuar sujeitos aos
portugueses do Maranh�o.
No caso de resgate, o orador vai at� o pormenor do pre�o: duas varas de algod�o, que
valem dois tost�es. A proposta deveria ser assinada por todos e* submetida � aprecia��o
do rei.
Vieira, ao que parece, jogava em um bem certo (a libera��o dos �ndios da cidade e a
seguran�a dos �ndios das aldeias mission�rias) contra um mal incerto: a compra de
�ndios por motivo de ' 'guerra justa", que deveria sempre ser avaliada pelo crit�rio final
das autoridades coloniais e das ordens religiosas sobre as quais contava influir.
A concess�o prometida a interesses futuros era a isca pela qual esperava persuadir os
colonos a soltar as "ataduras da injusti�a". Deslocava-se o eixo da discuss�o para o
conceito de "guerra justa"; o que era uma forma de contornar o problema fundamental
da lici-tude, ou n�o, do cativeiro, quest�o que as m�ximas do Direito Natural e os
Evangelhos j� tinham solvido pela negativa radical.
No fecho da hom�lia, depois de tentada a media��o com o interlocutor, volta a
antinomia dr�stica do bem e do mal: a consci�ncia, de um lado; os interesses, do outro.'
E a indigna��o sobe de ponto: "Saiba o mundo que ainda h� consci�ncia, e que n�o � o
interesse t�o absoluto e t�o universal senhor de tudo, como se cuida".23
E com "morras!" ao dem�nio e � ambi��o, e vivas a Deus e � consci�ncia termina este
serm�o em que a l�gica e a ret�rica esgri-mem para perfazer uma dif�cil opera��o
triangular: o menos forte entre os fortes (o jesu�ta) se prop�e convencer o mais forte (o
colono) a poupar o mais fraco dos tr�s, o �ndio.24

142
NEGROS

Um hiato mais embara�oso entre a doutrina evang�lica e as praxes coloniais se abre
quando os escravos j� n�o s�o amer�ndios, mas africanos.
O corpus, neste caso, s�o alguns dos serm�es de Vieira pregados sobre a devo��o do
ros�rio. Como se sabe, muitas irmandades reunidas em torno do culto de Nossa Senhora
do Ros�rio, tanto na Bahia como em Pernambuco, eram constitu�das exclusivamente de
pretos, distinguindo-se de outras, como as do Sant�ssimo Sacramento, que aceitavam s�
brancos, ou as da Senhora das Merc�s, formadas por mulatos.


A escravid�o negra � tema espec�fico dos serm�es xiv, xvi, XX e xxvii do Ros�rio.
Vieira entra no mundo do escravo pelo atalho mais curto e direto da descri��o
existencial do seu cotidiano: como vive o negro o ' 'doce inferno" dos engenhos de
a��car? De que maneira o tratam os senhores brancos? Quais os passos do seu dia-a-dia,
desde que nasce at� que morre?
Ao desdobrar concretamente as quest�es, o orador firma um princ�pio de analogia na
esfera dos valores, um eixo que vai norte�-lo pelo serm�o adentro ministrando-lhe um
esquema de apoio para toda a argumenta��o: a vida do escravo semelha a Paix�o de
Cristo.
A linguagem da identifica��o torna-se particularmente forte e envolvente quando os
ouvintes a quem o serm�o se destina s�o os pr�prios escravos. � o que acontece com o
Serm�o xiv do Ros�rio pregado � irmandade de pretos de um engenho baiano em 1633.
Mediante o uso intensivo do s�mile, a narra��o dos trabalhos e das penas sofridas �
sentida e re-sentida pelos negros, seus sujeitos, e, ao mesmo tempo, deslocada e
sublimada, enquanto se projeta no corpo humano de Jesus Cristo que, assim, se torna o
mesmo a quem se fala e o Outro de quem se fala.
O tr�nsito da iman�ncia subjetiva � transcend�ncia aciona-se a partir de um presente
vivido e sofrido, aqui e agora, mas � luz de um passado exemplar que a palavra lit�rgica
faz reviver: o drama da Paix�o. Estreitas correspond�ncias asseguram coes�o interna ao
enunciado:

143


Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: porque pade-ceis em um modo
muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paix�o.
A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho � de tr�s. Tamb�m
ali n�o faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paix�o: uma vez servindo para

o ceptro do esc�rnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A paix�o de
Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais s�o as vossas
noites e os vossos dias. Cristo despido, e v�s despidos: Cristo sem comer, e v�s
famintos: Cristo em tudo maltratado, e v�s maltratados em tudo.25
Vieira n�o se contenta em insistir na pena f�sica: a sua palavra fere com rigor a divis�o
social que est� na raiz do trabalho compuls�rio. Imp�e-se, nessa altura, a nomea��o das
duas classes antag�nicas, os senhores e os escravos; eles e v�s:
Eles mandam e v�s servis; eles dormem e v�s velais; eles descansam, e v�s trabalhais;
eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que v�s colheis deles � um trabalho sobre
outro. N�o h� trabalhos mais doces que o das vossas oficinas; mas toda essa do�ura para
quem �? Sois como abelhas, de quem disse o poeta. Sic vos non vobis mellificatis apes.
O mesmo passa nas vossas colm�ias. As abelhas fabricam o mel, sim; mas n�o para si.26
Marx diria dois s�culos depois: "Por certo, o trabalho humano produz maravilhas para
os ricos, mas produz priva��o para o trabalhador. Ele produz pal�cios, mas choupanas �
o que toca ao trabalhador. Ele produz maravilhas para os ricos, mas produz priva��o
para o trabalhador. Ele produz beleza, por�m para o trabalhador s� fealdade"."
Na constru��o de Vieira refor�am-se mutuamente o discurso da sensibilidade, que v� e
exprime intensamente a dor do escravo, e o discurso do entendimento, capaz de acusar o
car�ter in�quo de uma sociedade onde homens criados pelo mesmo Deus Pai e remidos
pelo mesmo Deus Filho se repartem em senhores e servos. Chegando a esse grau de
conhecimento, emp�rico e racional, a intelig�ncia declara o seu limite, expondo a nu a
impossibilidade de atinar com t�o grande desraz�o. No Serm�o xxxvn do Ros�rio, a
perplexidade do orador � claro signo de uma consci�ncia que se confessa incapaz de
penetrar o porqu� da viol�ncia social: "Estes homens n�o s�o filhos do mesmo Ad�o e
da mesma Eva? Estas almas n�o foram resgatadas com
144

o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos n�o nascem e morrem, como os nossos? N�o
respiram o mesmo ar? N�o os cobre o mesmo c�u? N�o os aquenta o mesmo sol? Que
estrela � logo aquela que os domina, t�o triste, t�o inimiga, t�o cruel?".28
Vieira adverte o absurdo imanente na disparidade dos destinos, que nem as leis naturais,
nem a f� na Reden��o logram resolver. A opress�o parece obnubilar at� a ordem do
intelig�vel: ' 'N�o h� escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miser�veis, que n�o
seja para mim mat�ria de profunda medita��o".
"Comparo o presente com o futuro, o tempo com a Eternidade, o que vejo com o que
creio, e n�o posso entender que Deus, que criou estes homens tanto � sua imagem e
semelhan�a, como os demais, os predestinasse para doces infernos, um nesta vida, outro

na outra."29
O �ltimo per�odo � fulgurante como um raio de pensamento moderno, virtualmente
ilustrado, que rasgasse por breves instantes as sombras do conformismo colonial:
"comparo [...] e n�o posso entender' '.
Os outros serm�es do Ros�rio d�o respostas, entre si contr�rias, � mesma estupefa��o. E
preciso ver os textos mais de perto.
No Serm�o XX, a desigualdade � sentida como queda humana de um estado inicial,
criado e desejado por Deus, no qual n�o haveria senhores nem escravos.
' 'F�-los Deus a todos de uma mesma massa, para que vivessem unidos, e eles se
desunem; f�-los iguais, e eles se desigualam; f�-los irm�os e eles se desprezam do
parentesco."30
O desenvolvimento deste serm�o � rico de fermentos libert�rios que, tomados em si,
fora do contexto seiscentista, pareceriam francamente ilustrados e rousseau�stas: "[...] os
homens, pervertendo a igualdade da natureza, a distinguiram com dois nomes t�o
opostos, como s�o os de senhor e escravo". Ou ent�o: "Entre os homens, dominarem os
brancos aos pretos, � for�a, e n�o raz�o ou natureza".31
Na "filosofia da Hist�ria" de Vieira a miss�o de Cristo, "novo Ad�o'', teria sido a de
romper a teia de iniq�idade em que ca�ram os homens e, assim, recuperar a condi��o
fraterna original. Pelo veio tomista, a lei natural concorda com a lei da raz�o, e se
reconhece, de forma sublimada, na lei revelada. O texto � categ�rico:

W


O fim por que Jesus Cristo veio ao mundo, foi para reformar os erros de Ad�o e seus
filhos, e para os restituir � igualdade em que os tinha criado, desfazendo totalmente e
reduzindo � primeva e natural uni�o as distin��es e diferen�as que a sua soberba entre
eles tinha introduzido.32
Uma teologia da reden��o universal daria, portanto, sentido re-parador e "progressista"
� vinda de Cristo: "restituir os homens � igualdade''.
Mas... no Serm�o XXVII, aquele mesmo embara�o causado pelo absurdo da escravid�o
desfaz-se mediante uma outra teoria da Hist�ria, radicalmente oposta � que se esbo�ava
linhas atr�s: Vieira apela agora para a no��o do sacrif�cio compensador. E a opress�o,
que, naqueles textos, fora julgada um grave pecado dos homens, acha, neste, meios de
justificar-se na esteira de um discurso providencialista.
O orador, ent�o angustiado pelo teor inintelig�vel da divis�o social, sai, agora, em busca
de uma verdade sobrenatural e p�e-se a sondar ' 'os ju�zos ocultos desta t�o not�vel
transmigra��o (da �frica para o Brasil), e os seus efeitos".
A explica��o que o entendimento n�o atingia ("comparo [...] e n�o posso entender")
reponta aqui sob a forma elusiva de "des�gnio da Provid�ncia''. Tudo quanto se acusara,
no Serm�o xx, como obra da mal�cia humana, resgata-se, neste xxvn, enquanto fruto de
um plano divino. A passagem dos negros para a Am�rica ter� redimido as suas almas,
que, na �frica, teriam perecido no paganismo ou sob o Imp�rio do Isl�o.
O velho discurso salvacionista, gestado ao tempo das cruzadas contra os �rabes, e
reativado pelos descobrimentos atl�nticos e �ndi-cos, reinstaura a distin��o neoplat�nica
de corpo e alma, aquele mesmo princ�pio que Vieira atacara duramente quando a via
servir de apoio � pol�tica dos colonos maranhenses. Aqui, por�m, a ret�rica dua-lista
vem a calhar e tem a sua fun��o: s� os corpos trazidos de Angola sujeitam-se �s penas
do cativeiro; as almas, n�o. Essas purgam-se pacientemente nos engenhos de a��car
conquistando a salva��o para uma outra vida, que o pregador pinta com galas e cores de
festa: "Mas � particular provid�ncia de Deus que vivais de presente escravos e cativos
para que por meio do cativeiro temporal consigais a liberdade, ou alforria eterna".33

146

A bem-aventuran�a final � comparada engenhosamente �s Sa-turnais romanas, quando,
por alguns dias, senhores e escravos trocavam as roupas, e os primeiros serviam aos
�ltimos, invertendo a ordem que os regia o ano todo:
Antigamente entre os deuses dos gentios havia um que se chamava Saturno, o qual era
deus dos escravos, e quando vinham as festas de Saturno, que por isso se chamavam
Saturnais, uma das solenidades era que os escravos naqueles dias eram os senhores que
estavam assentados, e os senhores os escravos que os serviam de p�. Mas acabada a
festa, tamb�m se acabava a representa��o daquela com�dia, e cada um ficava como
dantes era. No C�u n�o � assim; porque tudo l� � eterno e as festas n�o t�m fim. E quais
ser�o no C�u as festas dos escravos? Muito melhores que as Saturnais. Porque todos
aqueles escravos que neste mundo servirem a seus senhores como a Deus, n�o s�o os


senhores da Terra que os h�o-de servir no C�u, sen�o o mesmo Deus em Pessoa, o que
os h�-de servir. Quem se atrevera a dizer nem imaginar tal cousa, se o mesmo Cristo o
n�o dissera? Beati servi Mi, quos, cum venerit Dominus, invenerit vigilantes (Lc 12,
37): "Bem-aventurados aqueles escravos a quem o Senhor no fim da vida achar que
foram vigilantes em fazer a sua obriga��o".34
Repare-se no fecho do �ltimo per�odo. O texto da Vulgata, citado por Vieira, termina
com a palavra vigilantes; o que d� como tradu��o literal: "Bem-aventurados aqueles
servos a quem o Senhor, quando vier, achar vigilantes". Mas, ao vert�-lo, o orador
acrescenta: ' 'em fazer a sua obriga��o''. Com isto, a palavra do evangelista Lucas �
solicitada a dizer mais do que, rigorosamente, afirma no contexto, onde a ' 'vigil�ncia''
do servo quer lembrar a vig�lia do fiel, que, no breu da noite, espera pela vinda do
Salvador. A expectativa faz as almas atentas, p�e-nas em estado de alerta, torna-as
ativas, e n�o descuidadas como as virgens loucas da par�bola. Vieira, por�m, acentua a
nota do trabalho como condi��o sine qua non; id�ia que j� se insinuara em uma cl�usula
anterior com o verbo no futuro do optativo: ' 'porque todos aqueles escravos que neste
mundo servirem a seus senhores como a Deus...".
O paradigma da Paix�o vem aqui torcido por um vi�s resolutamente ideol�gico. A cruz,
que humanizara o Redentor e hipostasiara a obla��o de Jesus na pena do cativo, acaba
sendo interpretada como sinal de um sacrif�cio v�lido em si mesmo, propiciat�rio por si
mes


147


mo, em aberta oposi��o a todo o relato evang�lico, que acusa a farsa do julgamento, a
viol�ncia da senten�a, a hipocrisia dos fariseus, a impiedade dos saduceus, a bo�alidade
da massa exigindo a crucifix�o do inocente, enfim a covardia de Pilatos ao entregar �
f�ria dos sacerdotes e dos esbirros um homem de quem dissera n�o ter nele encontrado
culpa alguma.
A moral da cruz-para-os-outros � uma arma reacion�ria que, atrav�s dos s�culos, tem
legitimado a espolia��o do trabalho humano em benef�cio de uma ordem cruenta.
Cedendo � ret�rica da imola��o compensat�ria, Vieira n�o consegue extrair do seu
discurso universalista aquelas conseq��ncias que, no n�vel da pr�xis, se contraporiam,
de fato, aos interesses dos senhores de engenho.
A condi��o colonial erguia, mais uma vez, uma barreira contra a universaliza��o do
humano.

148
5
ANTONIL
OU
AS L�GRIMAS DA MERCADORIA

N�o me temo de Castela, temo-me desta canalha.

Vieira em carta ao pe. Manoel Lu�s de 21 de julho de 1695
Em janeiro de 1681 embarcava no porto de Lisboa com destino � Bahia um jovem
sacerdote da Companhia de Jesus nascido em Luc-ca e que se assinava latinamente
Johannes Antonius Andreonius.
Vinha para o Brasil a convite do ent�o septuagen�rio padre Ant�nio Vieira que ele
conhecera em Roma como pregador c�lebre, valido de Clemente x (que, chamando-o '
'amado filho'', o isentara da Inquisi��o portuguesa) e t�o caro a Cristina da Su�cia que o
escolhera para seu confessor.
Na Col�nia Andreoni ascendeu rapidamente na hierarquia da ordem. Primeiro, lente de
ret�rica no semin�rio baiano; depois, diretor de estudos, mestre de novi�os, secret�rio
particular de Vieira quando este ocupava o cargo de visitador geral, reitor do Real
Col�gio da Bahia, enfim provincial, o posto m�ximo da Societas Jesu entre n�s.
Os seus confrades logo advertiram nele o gosto do c�lculo, uma aptid�o saliente para
descrever e rotular toda esp�cie de mat�rias e sobretudo uma per�cia cont�bil que o
recomendava �s tarefas bem regradas da administra��o.
Serafim Leite, que reconstituiu a carreira de Andreoni, refere-se a um trabalho de
estat�stica que este organizou quando secret�rio.x A partir do Livro de Entrada no
Noviciado, fez assentamentos de todos os membros que passaram pela prov�ncia entre
1566 e 1688. Gra


149


�as tamb�m � sua dilig�ncia, temos um cat�logo de superiores e mestres, al�m de uma
codifica��o minudente dos usos e praxes correntes nos col�gios compilada sob o
did�tico t�tulo de O costumeiro. As suas Cartas Anuas, enviadas regularmente ao padre
geral em Roma, s�o modelos de seca precis�o e revelam escr�pulos de cronista.
Provavelmente a mesma fidelidade de historiador, arrimado ao devido respeito pelos
vultos consagrados da Companhia, ter� ditado o oferecimento que fez da sua obra
maior, Cultura e opul�ncia do Brasil por suas drogas e minas, �queles ' 'que desejam
ver glorificado nos altares ao vener�vel padre Jos� de Anchieta, sacerdote da
Companhia de Jesus, mission�rio ap�stolo e novo taumaturgo do Brasil".
E por certo o dever de prestar a can�nica � e p�blica � homenagem a quem fora o
lustre da ordem no s�culo, o mesmo Vieira, o ter� induzido a compor as p�ginas
elogiosas, posto que brev�ssimas, que dedicou � sua biografia logo depois da sua morte,
em 1697, e que s� vieram a ser traduzidas do original latino duzentos anos mais tarde,
quando as remiu do esquecimento a Biblioteca Nacional estampando-as em seus Anais.2
Tudo parece, pois, correto na vida e na obra de Jo�o Ant�nio Andreoni. Cumpre, no
entanto, registrar que a sua pontual defer�n-cia prestada �quele singular homem de
g�nio (cujos passos ele perseguira anos a fio desde Roma at� a nossa Bahia) n�o o levou
a sentir, pensar ou agir em conson�ncia com os ideais mais caros de Vieira. Antes pelo
contr�rio. O exato escriba, fiel na c�pia das letras e das cifras, foi infiel ao esp�rito do
seu protetor. Quase um traidor.
Vamos � Hist�ria.
O embate dos jesu�tas com os colonos no Maranh�o e no Par� conta-se apenas como um
entre os muitos epis�dios no curso de uma guerra que durou s�culo e meio entre duas
for�as concorrentes nos fins, a conquista do �ndio, mas d�spares nos seus recursos
materiais. Prova bastante dessa despropor��o deram os malogros de Vieira e dos seus
companheiros naquelas miss�es do Norte. Mas foi em S�o Paulo de Piratininga, sede
das bandeiras, que os atritos se multiplicaram desde a funda��o da vila at� as repetidas
vexa��es e expuls�es dos mission�rios ao longo do s�culo xvn. Serafim Leite e, do
outro lado, um apologista do sertanismo, Afonso d'Escragnolle Taunay, narram com
pormenores as fases de um s� e fundamental desencontro que s� co


150

nheceria desfecho com a destrui��o dos Sete Povos, obra da ilustra��o pombalina.
Interessa, aqui, a participa��o de Andreoni.
O conselho e a decisiva media��o deste e de seu confrade italiano Jorge Benci (autor da
Economia crist� dos senhores no governo dos escravos) acabaram delineando uma
posi��o nova, deveras indul-gente para com os mamelucos de S�o Paulo, entre alguns
inacianos e junto �s autoridades da Companhia na It�lia. Essa atitude veio a ' 'amortecer
a resist�ncia inquebrant�vel dos jesu�tas � escraviza��o do gentio", nas palavras do
mesmo Serafim Leite.
Vieira n�o podia deixar de ressentir-se amargamente com as manobras de Andreoni e


Benci refor�adas pelo sacerdote holand�s Jacob Rolland, que chegaria a escrever uma
Apologia dos paulistas... O grande lutador queixou-se, mais de uma vez, da pol�tica de
conluio dos padres estrangeiros, isto �, n�o portugueses, em tudo oposta � fibra dos
jesu�tas em S�o Paulo, sempre ciosos dos seus aldeamentos e sempre hostis �s incurs�es
rapinosas dos bandeirantes.
A documenta��o que pude consultar no Arquivo Romano da Companhia de Jesus p�e a
nu as diverg�ncias entre Vieira, octogen�rio, doente e isolado quando visitador na
Bahia, e o grupo sorrateiramente liderado por Andreoni. Este sabotava, sempre que lhe
era dada oportunidade, os projetos daquele que o trouxera da Europa e o honrara com
rasgados elogios franqueando-lhe segura carreira na institui��o.3
Al�m das �reas de atrito devidas a quest�es de poder dentro da prov�ncia (Andreoni,
como italiano, n�o poderia legalmente ocupar cargos de dire��o), avultava a
discord�ncia aguda sobre a liberdade dos �ndios.
Vieira, combatente na linha de fogo desde os anos de 50 e 60 no Maranh�o, voltara da
Europa, passados vinte e tantos anos, cada vez mais animoso e disposto a denunciar os
abusos praticados pelos colonos e sertanistas. Em 1687 ainda oferecia-se aos superiores
para ir como simples mission�rio �s aldeias da Amaz�nia... Um ano depois, compondo
uma "Exposi��o dom�stica", concitava os padres do Col�gio baiano a deixarem o apego
aos cargos docentes ou burocr�ticos e a cursarem "a universidade de almas dos bosques
e gentilida-des". Em 1690, vendo em perigo a miss�o dos quiriris, destina-lhe todos os
proventos auferidos por suas obras, os Serm�es, que se acha


is


vam em vias de publica��o em Portugal e j� eram requisitados na Espanha, na Fran�a e
na It�lia.
Mas o seu campo de a��o estava minado. Este fim dos Seiscentos foi precisamente o
momento em que os paulistas descobriram o ouro por tanto tempo buscado em v�o. A
sorte pendia para os bandeirantes, logo para S�o Paulo; e, com a sorte, a riqueza, o
prest�gio, a influ�ncia junto � Coroa que, desde os meados do s�culo, distribu�a cartas
regias aos sertanistas estimulando-os a cometer a empresa dos adiamentos e acenandolhes
com a outorga de patentes e honrarias aos que fossem bem-sucedidos. Conta
Varnhagen:
Ao cabo de muitos trabalhos e de tentativas infrut�feras encontraram-se afinal, em
Itaberaba, as primeiras minas que deram resultados decididamente vantajosos, e abriram
caminho ao descobrimento das demais. Esse primeiro descobrimento devemos assign�lo
ao ano d� 1694, em que chegou a S�o Paulo, trazida por um Duarte Lopes, a grande

4

nova.
1694 � tamb�m o ano em que se redigem e assinam, na vila de S�o Paulo, as novas
Administra��es dos �ndios. O texto recebe a anu�ncia do pe. Alexandre de Gusm�o,
provincial, que pede assessoria jur�dica a Andreoni, ent�o seu secret�rio e muito
acreditado pelos seus estudos de Direito Civil em Perugia.
Vieira percebe imediatamente que se trata de uma capitula��o dos padres aos interesses
dos mamelucos. Em maio re�ne-se o Col�gio da Bahia para escolher um procurador que
fosse a Lisboa e a Roma discutir com os superiores o teor do acordo paulista. Vieira
teria manifestado em conversa informal a sua prefer�ncia por um candidato; o grupo
majorit�rio, manobrado por Andreoni, acusa-o de aliciamento de eleitores, gest�o
reputada como falta grave pelas constitui��es jesu�ticas. Vieira � punido: privam-no de
voz ativa e passiva, pro�bem-no de votar e ser votado. Inconformado, queixa-se em
carta a amigos daquela sua ' 'escravid�o dom�stica'' e acha for�as para emitir um longo
voto em separado abertamente contr�rio �s Administra��es. Recorre, enfim, do arb�trio
que sofrer� ao geral, Paolo Oliva, seu velho admirador desde os tempos romanos em
que ambos emu-lavam pregando ao papa. Mas a repara��o solene que Oliva lhe faz em
missiva afetuosa e reverente s� chegaria tarde demais � Bahia onde Vieira morrera fazia
tr�s anos.

152
Testemunham a sua lucidez o Voto sobre as d�vidas dos moradores de S�o Paulo
acerca da administra��o dos �ndios e a carta ao padre Manoel Lu�s, datada de 21 de
julho de 1695, onde se queixa de ' 'um padre italiano que nunca viu �ndio e s� ouviu aos
paulistas, como outro, flamengo, chamado Rolando..." O padre italiano ser� Andreoni
ou Giorgio Benci, presente �s negocia��es de Alexandre de Gusm�o com os principais
da vila. Enfim, irrompe o desabafo sem peias: "N�o me temo de Castela, temo-me desta
canalha".5
No Voto desmascara a perman�ncia da escravid�o dos nativos agora debaixo do


especioso nome de ' 'administra��o''; concedida por autoridade real, esta se converteria
em ' 'licen�a e liberdade p�blica'' para se cativarem os �ndios.
No pacto firmado em Piratininga, diz Vieira, ' 'todo o �til se concedia aos
administradores e todo o oneroso carregava sobre os miser�veis �ndios, a quem em
todas as voltas ou mudan�as sempre a roda da fortuna leva debaixo".
No seu arrazoado toma Vieira como autoridade a doutrina de te�logos moderados no
trato da quest�o ind�gena: Joseph de Acosta que, no Deprocuranda indorum sa/ute, de
1588, defendera a via apost�lica em termos que lembram os argumentos de Bartolom�
de Las Casas, embora prudentemente n�o lhes fa�a men��o alguma; e Juan de
Solorzano Pereyra, analista do regime das encomiendas e autor de uma De indiarum
gubernatione, em que perfilha as den�ncias de Acosta �s pr�ticas violentas dos
primeiros conquistadores espanh�is: "ijes�s mio, qu� desorden, cu�nta fealdad!".6
N�o cabe aqui entrar no cipoal das doutrinas �ticas por onde se enredou a escol�stica
tardia em torno da licitude do dom�nio colonial sobre os amer�ndios. Importa apontar a
forma��o de um pensamento contr�rio � senten�a aristot�lica de que ' 'h� homens
naturalmente escravos". Francisco de Vitoria (inspirador de Grotius e um dos
precursores do Direito Internacional moderno), Francisco Su�rez e Lu�s Mo-lina
procuraram restringir a extens�o do conceito de "guerra justa" de que se abusava ent�o
para legitimar a conquista do �ndio em toda a Am�rica. E nessa tradi��o jur�dica que se
inspira o Voto do nosso veterano combatente.
Quando visitador, entre 88 e 91, Vieira tinha composto um Regimento das Aldeias em
que vedava aos reitores dos col�gios servirem-se do trabalho dos �ndios, ainda que
remunerado, para prevenir abusos

153


que dessem margem a suspeitas sobre a lisura da a��o catequ�tica. Morto Vieira,
Andreoni, designado provincial no ano seguinte (1698), solicita ao padre geral
Tamburini que revogue aquele dispositivo alegando que, se os demais senhores de
engenho se valiam do �ndio, por que s� os religiosos n�o poderiam faz�-lo?
Andreoni, legalista, pleiteava a generaliza��o do trabalho ind�gena, quer em condi��es
de escravatura regulada por Administra��es formais, quer em regime de assalariado
semi-servil:
"Sed si locantur aliis, quare nos illis utemur pretio statim laboris soluto?" [Mas, se os
�ndios s�o alugados a outros, por que n�o nos utilizaremos n�s deles, sendo o pre�o do
trabalho liberado, desde j�, de qualquer regra?]7
A proibi��o alcan�ada por Vieira foi supressa pelo geral em 1704 nos termos da peti��o
de Andreoni:
"Possunt Nostri uti opera Indorum soluto pretio". Isto �: "podem os Nossos usar dos
trabalhos dos �ndios a pre�o livre''.
Se em Vieira ainda se manifestam escr�pulos motivados por sua forma��o escol�stica (a
teologia impl�cita no antigo Direito Natural das Gentes limitava os poderes do
colonizador), em Andreoni a consci�ncia moral j� est� inteiramente dobrada �s raz�es
do mercantilismo colonial. E entre estas raz�es, contaria a da concorr�ncia com outros
detentores do capital: ao passo que Vieira lutara, desde mo�o, para que a Coroa lusa
estendesse as m�os aos judeus e os poupasse das extors�es do Santo Of�cio, Andreoni
traduziu na velhice a obra anti-semita de Gian Pietro Pinamonti, Synagoga desenganada
onde se repta o povo hebreu a renegar a lei mosaica, uma ' 'lei diab�lica''.
Dizia Pinamonti, mal escondendo os motivos de seus preconceitos:
I Giudei, se s'ha da parlare sinceramente, non sono esperti in altr'arte che in quella di far
denari.8
Certamente as esperan�as messi�nicas de Vieira postas no Quinto Imp�rio e na
realiza��o terrena das promessas b�blicas de um Reino feito de justi�a deviam
desagradar � ortodoxia estreita de Andreoni, tanto mais que por elas o seu malogrado
autor j� havia padecido dois anos de c�rcere inquisitorial.

154
O fato � que a derradeira obra de Vieira, a Clavis Prophetarum, ou De regno Christi in
Terris consummato, que ele deixara inacabada, continua in�dita, pois os aut�grafos se
perderam, embora se saiba que foram custodiados em cofre chaveado pelo pr�prio
Andreoni logo depois da morte de seu autor. Mas sabe-se tamb�m que dois familiares
da Inquisi��o, avisados a tempo por um solerte denunciante, interceptaram no porto de
Lisboa a preciosa carga que deveria seguir para Roma. Andreoni, reitor do Col�gio, foi
a �ltima pessoa que viu, na Bahia, os originais da Clavis Prophetarum, manuscritos que
lera com aten��o e que comentaria em um parecer urdido de louvores convencionais e
abertas ressalvas. Cinco dias depois da morte de Vieira, escreveu ao padre geral Tirso
Gonz�lez uma carta cujo teor � assim resumido por Francisco Rodrigues:


O P. Andreoni exprimia francamente ao Geral os seus receios. Dizia que Vieira
propugnava opini�es singulares, que haviam de p�r embara�os � aprova��o da obra, e
chegara por esse motivo a sugerir ao P. Vieira que se apresentasse a um concilio
universal; s� nele se poderia convenientemente discutir a sua doutrina para ser admitida
ou rejeitada. Agora, insistia Andreoni, se por essas opini�es corria perigo a obra, o
melhor seria omiti-las, e publicar tudo o mais, que era dign�ssimo de sair � luz e havia
de ser lido com prazer e admira��o.9
O mist�rio continua indecifrado: quem impediu que os �ltimos escritos prof�ticos de
Vieira chegassem a seu destino?
Quando teriam come�ado a incubar os sentimentos de animad-vers�o de Andreoni para
com o seu padrinho? Quem pesquisa deve contentar-se com sinais escritos. Examinando
as cartas de Andreoni conservadas no Arquivo Romano, deparei com esta, datada de 26
de junho de 1690 e dirigida ao admonitor do geral, o pe. F�zio. Traduzo do italiano as
passagens que se referem a Vieira:
Muito Reverend�ssimo Padre em Cristo.
Escrevo com tanta verdade como se devesse morrer depois de ter dito algumas missas e
depois de ter ouvido alguns que gemem. O Nosso Reverendo Padre Geral tem um
alt�ssimo conceito do P. Ant�nio Vieyra nosso visitador h� j� tr�s anos, porque imagina
que governa t�o bem quanto prega, mas � extravagant�ssimo nas id�ias e infeliz na
pr�tica. O seu g�nio � v�rio e inconstante. Nasceu em Lisboa, veio ao Brasil,

155


passou-se ao Maranh�o, voltou a Portugal, girou pelo mundo na Holanda, na Fran�a, na
It�lia, voltou a Portugal e da� ao Brasil, e como aqui se v� pouco amado, diz que est�
escrevendo ao Pe. Geral para regressar a Portugal. Do Maranh�o o lan�aram fora os
Portugueses com tumulto. Em Portugal foi um dos principais respons�veis pela divis�o
daquela Prov�ncia em duas, com tanto arrependimento e com tanta desuni�o de �nimos,
que ainda hoje, estando as duas Prov�ncias reunidas, persiste a parcialidade. Tr�s anos
antes de ser visitador quis fazer nesta Prov�ncia do Brasil vice-prov�ncia o Rio de
Janeiro, e disto tratou com o atual Reverendo Padre Nosso, o qual com suma prud�ncia
julgou a causa muito imatura [...] Este Padre � de g�nio muito nacional contra os
Brasileiros. Eu n�o nego que os europeus sejam melhores quando v�m com esp�rito de
mission�rios, como v�m ordinariamente da It�lia, da Fran�a e da Alemanha, mas
quando v�m com m�s inten��es em busca de morada, servem pouco [...] Os Brasileiros

o conhecem e fremem, e n�o o podem ver.
O seu modo de governar � pol�tico e depois de ter lan�ado fora quem o aconselhava
bem, traz pr�ximos de si alguns de bem pouca edifica��o, que se acomodam com o
tempo e tudo lhe aprovam, e se diz que buscam a sua conveni�ncia; principalmente d�
ouvidos ao P. Ignatio Fava, homem not�rio pela sua pouca sinceridade, soberba, esp�rito
vingativo, e de mau odor nos tr�s principais col�gios da Prov�ncia, em mat�ria de
castidade, tanto que por sua causa muito deu o que falar entre os alunos; e saiba Vossa
Paternidade que escrevendo assim digo pouco em compara��o do que dizem os outros,
velhos e jovens; e o mesmo Pe. Visitador me disse que o comiss�rio do Santo Of�cio o
advertiu sobre o modo com que se havia no confession�rio [...] e contudo agora se serve
tanto deste homem que a ele se atribuem todos os conselhos precipitados [...]
O R Provincial e o P. Reitor s�o como o bedel e o subministro, porque tudo quer saber e
faz e desfaz com preju�zo da observ�ncia. Foi pregador amigo de conversa��o, e me
parece que os jovens n�o recebem da sua boca a melhor edifica��o, e sobre este ponto
fala-se muito e com pouco decoro da sua idade, e com ju�zos e conjecturas bastantes. Na
administra��o da justi�a mostrou-se muito parcial, desculpando, cobrindo e defendendo
os que s�o do seu g�nio; e comportando-se antes como advers�rio do que como juiz
contra outros, e n�o quer ouvir. Eu era seu conselheiro... hoje n�o tem quem lhe diga ou
se atreva a dizer-lhe o que � necess�rio [...] Creia-me, meu Padre, que a observ�ncia na
juventude cai por terra. Tabaco, chocolate, mesadinhas
entre os alunos de Filosofia, e o que � pior, disse-me o Pe. Reitor: em mat�ria de
castidade e de pobreza a coisa n�o pode ser mais livre [...] Se o Pe. Geral n�o der
rem�dio, n�o duvido que o dar� Santo In�cio.
Sob a capa de zeloso da Companhia, quantas flechas envenenadas! As viagens de
Vieira, feitas todas em cumprimento de miss�es, algumas perigosas, onde primava pelo
seu desinteresse pessoal, s�o contadas, uma a uma, como provas de um ' 'g�nio v�rio e
inconstante' '. A sua expuls�o pelos colonos maranhenses, sabidamente causada pelo


rancor dos que n�o toleravam o mission�rio intransigente na defesa da lei, � aqui
lembrada como se fora mais uma ocasi�o de desordem: "Do Maranh�o o lan�aram fora
os Portugueses com tumulto' '. As suas opini�es sobre a divis�o administrativa da
Companhia em Portugal e do Brasil entram apenas como sementes de ciz�nia. N�o
retrata; detrata o visitador pintando-o homem egoc�ntrico, injusto, conivente com os
aduladores, mesmo quando corruptos, protervo com os superiores a quem menoscaba.
Nem � dif�cil ouvir aqui a nota ressentida do antigo conselheiro preterido... Como
orientador de seminaristas, a imagem de Vieira � a de um velho parcial e relapso a
ponto de o pio Andreoni, escandalizado, invocar, em tom de velada amea�a, o socorro
de Santo In�cio caso o geral n�o d� paradeiro a tantos desmandos.

DO ANTI-VIEIR� A ANTONIL

Neste Andreoni rente ao bom senso, respeitoso de tudo quanto estivesse firme e
estabelecido, refrat�rio a utopias e profecias, con-ciliante e diplomata com senhores de
engenho e preadores de �ndios, escondia-se literalmente o nosso primeiro economista:
aquele Antonil que est� quase inteiro em Ant�nio; aquele An�nimo que se prezava de
Toscano e Luqu�s (de onde o L de Antonil, segundo Capistrano, que decifrou o enigma
da autoria), estrangeiro, n�o portugu�s, j� n�o barroco, mas racional e objetivo. E
tocamos a defini��o do car�ter intelectual do autor de Cultura e opul�ncia do Brasil no
parecer de sua mais simp�tica estudiosa, Alice Canabrava: objetividade.110
157


Seria neutra essa objetividade? N�o, no fundo; mas sim, considerando a apar�ncia
"natural" que acaba assumindo toda domina��o social. Ser objetivo significava, naquele
contexto de viol�ncia j� consolidada havia s�culo e meio, aceitar o fato de que os
moradores de S�o Paulo utilizavam o bra�o �ndio conquistado � for�a em suas entradas
pelo sert�o, e que dispunham de poder bastante para conti-. nuar a faz�-lo, como, na
verdade, o fizeram. Ser objetivo era pensar, naturalmente, do ponto de vista do senhor
de escravos no Nordeste ou do bandeirante no Sul. Essa perspectiva, que nos serm�es
indignados de Vieira aparece t�o sofrida e contradit�ria, Antonil a assume
tranq�ilamente, como puro espelho que era uma pr�tica estruturalmente colonial.
O seu livro n�o vai al�m da racionalidade do guarda-livros de uma empresa
agroexportadora. A arte cont�bil se diz, em l�ngua tos-cana, ragioner�a. N�o vai al�m
das coisas e dos n�meros, mas vai at� o fim e at� o fundo, o que permite coer�ncia na
interpreta��o do todo.
Quando a utilidade a curto prazo se torna crit�rio absoluto de a��o, os valores do "justo"
e do "verdadeiro" caem rapidamente na �rbita dos c�lculos imediatos. Essa � a raz�o
inerente ao discurso mercantil-colonial. Esse, o pensamento que ditou, de ponta a ponta,

o livro mais enxuto e pragm�tico jamais escrito sobre as nossas riquezas coloniais,
Cultura e opulencia do Brasil por suas drogas, e minas, com varias noticias curiosas
do modo de fazer o Assucar; plantar, & beneficiar o Tabaco; e tirar Ouro das Minas;
& descubrir as da Prata; e dos grandes emolumentos, que esta Conquista da America
Meridional d� ao Reyno de PORTUGAL com estes, & outros g�neros, & Contratos
Reaes. "Obra de Andr� Jo�o Antonil."

O pseud�nimo do autor � anagrama quase perfeito de Jo�o Ant�nio Andreoni.
A obra editou-se em Lisboa pela Oficina Real Deslandesiana, com as devidas licen�as
civis e eclesi�sticas, no ano de 1711. � not�ria a sua fortuna acidentada. A edi��o foi
seq�estrada por decreto de d. Jo�o v, a pedido do Conselho Ultramarino, sob as
alega��es que abaixo transcrevo:
Nesta Corte saiu proximamente um livro impresso nela com o nome suposto e com o
t�tulo de Cultura e Opulencia do Brasil, no qual, entre outras coisas que se referem
pertencentes �s f�bricas e provimentos

158

dos engenhos, cultura dos canaviais e benef�cio dos tabacos, se exp�em tamb�m muito
distintamente todos os caminhos que h� para as minas do ouro descobertas, e se
apontam outras que ou est�o para descobrir ou por beneficiar. E como estas
particularidades e outras muitas de igual import�ncia se manifestam no mesmo livro,
conv�m muito que se n�o fa�am publicadas nem possam chegar � not�cia das na��es
estranhas pelos graves preju�zos que disso podem resultar � conserva��o daquele estado,
da qual depende em grande parte a deste Reino e a de toda a Monarquia, como bem se
deixa considerar.
Pareceu ao Conselho Ultramarino representar a V. Majde. que ser� muito conveniente a


seu real servi�o ordenar que este livro se recolha logo e se n�o deixe correr, e que ainda
que para isso se dessem as licen�as necess�rias como foram dadas sem a pondera��o
que pede um neg�cio t�o importante que respeita � conserva��o e utilidade do estado
p�b�co a bem da Real Coroa de V. Majde., � muito justo que se revoguem, e porque �
mais seguro e mais prudente prevenir o dano futuro antes de chegar a produzir os seus
efeitos do que remediar o que j� se experimenta.
Confiscada no ano da sua publica��o, a obra s� veio a ser reim-pressa, e mesmo assim
parcialmente, em 1800, quando frei Jos� Ma-riano da Concei��o Veloso incluiu a parte
relativa aos engenhos no volume Fazendeiro do Brasil. A segunda edi��o completa
sairia no Rio de Janeiro em 1837.
Fruto sazonado do ideal mercantilista, o trabalho de Antonil levou a tais extremos de
perfei��o o m�todo de desdobrar �til e utilita-riamente o mapa da mina, que a sua
difus�o acabaria pondo em risco (a crer nas palavras do Conselho Ultramarino) um dos
princ�pios sagrados do velho regime colonizador, o segredo;11 o qual n�o deveria ser
franqueado ao seu mais astuto inimigo, a concorr�ncia internacional, sempre �vida de
boas informa��es sobre o produto e o seu mercado... De fato, d. Jo�o V ordenou que
toda a edi��o fosse queimada.
Os leitores de Antonil s�o un�nimes em reconhecer o seu senso da realidade econ�mica
e a sua capacidade de observar com aten��o, distinguir com perspic�cia, descrever com
precis�o, narrar com ordem e nitidez. Cada coisa � como que protocolada no seu justo
lugar, sem pressa mas tamb�m sem rodeios. Age quodagis, Festina lente... parecem ter
sido as m�ximas que presidiram � composi��o do livro.
A palavra-chave torna sempre � mente do comentador: objetividade, servid�o ao objeto.
E sem jogo f�cil de palavras: o sujeito do

159


texto de Antonil � o objeto. A lavra do a��car. O Engenho Realmoen-te e corrente. A
lavra do tabaco. As minas de ouro. A abund�ncia do gado e courama e outros
contratos reais que se rematam nesta conquista.

Nesse universo cerrado de produ��o e circula��o de mercadorias, como aparecem os
seres humanos?
Como instrumentos prop�cios � cria��o de riquezas, marcados pela necessidade e pelo
dever, que lhes d�o afinal a sua identidade. Senhor ou escravo, o homem de Antonil �,
em primeiro lugar, um corpo e uma alma �til � mercancia com a qual confunde o tempo
da sua vida, a luz da sua mente e a for�a do seu bra�o.
Como quem arruma um feixe de obriga��es, uma a uma, e as ata com m�o firme, assim
comp�e Antonil a figura do senhor de engenho. Tudo neste s�o deveres, tudo cuidados,
tudo vig�lias.
Como se h� de haver o senhor de engenho... � o cabe�alho de muitos t�tulos enfileirados
que recomendam ao fazendeiro ora a compra de terras f�rteis de massap�, ora o olho
vivo nas aguadas e na lenha (alma das fornalhas!), ora evitar vizinhos "trapaceiros,
desinquietos e violentos", futuros armadores de pleitos e demandas...
Os conselhos v�o do gra�do ao mi�do n�o poupando sequer a intimidade dom�stica
que, se desleixada, carrear� amargos dissabores ao administrador negligente.
Nem deixe os pap�is e as escrituras que tem na caixa da mulher ou sobre uma mesa
exposta ao p�, ao vento, � tra�a e ao cupim, para que depois n�o seja necess�rio mandar
dizer muitas missas a Santo Ant�nio para achar algum papel importante que
desapareceu, quando houver mister exibi-lo. Porque lhe acontecer� que a criada ou
serva tire duas ou tr�s folhas da caixa da senhora para embrulhar com elas o que mais
lhe agradar, e o filho mais pequeno tirar� tamb�m algumas da mesa, para pintar caretas,
ou para fazer barquinhos de papel, em que naveguem moscas e grilos; o� finalmente, o
vento far� que voem fora da casa sem penas. (cap. II)
� de presumir que o conselheiro se dirigisse a senhores bisonhos no of�cio de
administrar, ricos homens que ainda n�o separavam com rigor o escrit�rio da empresa e
os aposentos dom�sticos, o espa�o econ�mico p�blico e os refolhos da vida privada.
Nem param a� as advert�ncias. Que o senhor de engenho nunca se mostre arrogante e
soberbo com seus lavradores, pois a insol�ncia

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gera a revolta e o desejo de revidar. Que a todos contemple com trato af�vel, conselho
que estende �s senhoras de engenho ' 'as quais, posto que mere�am maior respeito das
outras, n�o h�o de presumir que devem ser tratadas como rainhas, nem que as mulheres
dos lavradores h�o de ser suas criadas e aparecer entre elas como a Lua entre as estrelas
menores" (cap. ffl).
Sejam os senhores ativos no trabalho, prudentes nos neg�cios e morigerados nos
prazeres, que assim o requer a manuten��o dos seus bens, entre os quais Antonil elenca
primeiro as terras e as m�quinas, depois as alim�rias, enfim os escravos e as escravas.


Transparece ao longo do texto um cuidado extremo com as rela��es sociais travadas no
mundo fechado do engenho. Nem a depend�ncia dos lavradores de partido (moedores
de cana que se obrigam a fornec�-la aos engenhos reais), nem o tratamento cotidiano
dado aos escravos ficar�o entregues ao acaso. A falta de um crit�rio expl�cito de deveres
e direitos levaria os fortes ao arb�trio, os fracos ao abuso. Da�, a necessidade de um
esp�rito de contrato que, de certo modo, parece mais moderno e (arrisco a palavra) mais
civilizado que o dom�nio cego dos regimes de puro favor e de servid�o.
Antonil formaliza as obriga��es de ambos os lados. Racionalizar os comportamentos na
esfera do trabalho serve aqui de ponte entre um mercantilismo tosco e arcaico e as
Luzes que mal come�am a raiar na Europa dos Setecentos.
Discorrendo, por exemplo, sobre os arrendat�rios e as aperrea-��es que enleiam o
fazendeiro no t�rmino � sempre litigioso � dos contratos, adverte o autor: ' 'E para
isso seria boa preven��o ter uma f�rmula ou nota de arrendamentos, feita por algum
letrado dos mais experimentados, com declara��o de como se haver�o despejando
acerca das benfeitorias, para que o fim do tempo do arrendamento n�o seja princ�pio de
demandas eternas" (Livro I, cap. li).
Com os oficiais, preciosos no desempenho de fun��es t�cnicas, o melhor contrato �
sempre um sal�rio ajustado na hora certa, pago com a devida pontualidade e acrescido
de algum abono (' 'algum mimo") no fim da safra: assim proceder� o senhor com o
feitor-mor, o feitor de moenda, o feitor de partido, o mestre-de-a��car, o soto-mestre, o
purgador do a��car e o caixeiro de engenho, cujas soldadas, em mil r�is, s�o objeto de
informa��es acuradas. Que tudo se sujeite a regra e tudo se cumpra � risca. No caso
especial do soto- banqueiro,

161


ajudante do soto-mestre, a sua condi��o de ' 'mulato ou crioulo escravo da casa'' veda
remunera��o em dinheiro; mas, como a sua tarefa concorre para o melhor preparo das
purgas, Antonil n�o deixa de recomendar ao senhor de engenho que lhe d� tamb�m, no
fim da safra, algum mimo, "para que a esperan�a deste limitado pr�mio o alente
novamente para o trabalho" (cap. vi).

* * *

E o espinho da escravid�o � como o sentiu o nosso jesu�ta, antigo secret�rio de Vieira?
Em momento nenhum do seu longo discurso em torno da vida nos engenhos Antonil se
pergunta sobre a natureza, a origem ou a licitude da escravid�o em si mesma. O
cativeiro aparece-lhe como uma quest�o defacto sobre cujo m�rito n�o cabe discutir.
Certamente essa posi��o faria parte da sua "objetividade". A escravid�o existe, a
escravid�o � �til ao com�rcio do a��car, que outro predicado ainda se lhe deve atribuir?
A ratio calculante n�o se demora em indaga��es que correriam o risco de resvalar para

o solo fugidio da metaf�sica. Se h� alguma pergunta pertinente a formular, �: como se h�
de haver o senhor de engenho com os seus escravos para que a produ��o dos a��cares se
fa�a de modo rendoso e rent�vel?
Acicatado por essa quest�o pr�tica, que � a quest�o dos meios, Antonil p�e-se a
raciocinar com a sua costumeira efic�cia e clareza. O cap�tulo IX do Livro I d� a
resposta geral e os seus desdobramentos particulares.
A abertura tem uma for�a e uma concis�o �mpares: Os escravos s�o as m�os e os p�s do
senhor de engenho, porque sem eles n�o � poss�vel fazer, conservar e aumentar
fazenda, nem ter engenho corrente.
E a crua evid�ncia da necessidade, dir� o int�rprete realista; e dela viria a sua l�gica de
ferro. ' 'Necessidade, sim, mas de quem?", retrucar� o leitor interessado em ver as id�ias
disporem-se na trama social, pensadas pelos seus pr�prios agentes hist�ricos.
Necessidade dos senhores de engenho, necessidade dos mercadores de a��car,
necessidade dos traficantes de negros, necessidade da burocracia colonial, necessidade
do er�rio portugu�s, necessidade da Inglaterra e de outros compradores de g�neros
tropicais: necessidade do sistema colonial, eis tudo.

162
Mas de que lugar social fala o autor de Cultura e opul�ncia do Brasil? Da Igreja
enquanto institui��o religiosa universal? Do Corpus Mysticum? Da pr�xis
evangelizadora onde se situaria como mission�rio? A rigor, n�o. Antonil fala a partir do
mesmo sistema colonial, onde os jesu�tas tamb�m possu�am engenhos; e, entre eles, o
famoso Engenho de Sergipe do Conde em Santo Amaro que serviu de campo de
observa��o ao An�nimo Toscano, conforme ele mesmo afirma no pro�mio da obra:
E porque algum dia folguei de ver um dos mais afamados que h� no Rec�ncavo, � beira-
mar da Bahia, a que chamam o engenho de Sergipe do Conde, movido de uma louv�vel
curiosidade, procurei, no espa�o de oito ou dez dias que a� estive, tomar not�cia de tudo

o que o fazia t�o celebrado, e quase rei dos engenhos reais.

Nascido de observa��es diretas, o texto d� informes id�neos aos futuros empres�rios
que quiserem empregar seus cabedais no fabrico do a��car: "[...] e quem de novo entrar
na administra��o de algum engenho, tenha estas not�cias pr�ticas, dirigidas a obrar com
acerto, que � o que em toda a ocupa��o se deve desejar e intentar".
Um livro-canal, portanto: de jesu�tas senhores de engenho para senhores de engenho,
jesu�tas ou n�o.
Nessa �rea de intersec��o cabe ao projeto econ�mico do fazendeiro a zona central e
comum. E pelos seus interesses que o autor avalia os escravos, discernindo o bo�al e o
ladino; o arda, o mina e o congo; o mulato e o retinto; o servi�al e o rebelde.
O jesu�ta Antonil faz coincidir os bons tratos dados pelo senhor ao escravo com o
melhor relacionamento entre ambos no engenho. Parece um mentor da psicologia
industrial do seu tempo quem diz: ' 'O certo � que, se o senhor se houver com os
escravos como pai, dando-lhes o necess�rio para o sustento e o vestido, e algum
descanso no trabalho, se poder� tamb�m depois haver como senhor, e n�o estranhar�o,
sendo convencidos das culpas que cometerem, de receber com miseric�rdia o justo e
merecido castigo".
Em outras palavras: ser paternal, ser ben�volo com o escravo, � caridade �til, que, cedo
ou tarde, reverter� para o bem do fazendeiro.
O pragmatismo de Antonil revela at� certa dose de ast�cia quando, no fecho do
cap�tulo, insinua que a mais segura reprodu��o natural da for�a de trabalho tem a ver
com a generosidade das esmolas

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ofertadas �s negras. Estas aceitar�o de bom grado conceber e dar � luz muitos filhos (a
prole escrava, t�o cara aos senhores) � medida que lhes chegar em abund�ncia o de
comer e o de beber:
Ver que os senhores t�m cuidado de dar alguma coisa dos sobejos da mesa aos seus
filhos pequenos � causa de que os escravos os sirvam de boa vontade e que se alegrem
de lhes multiplicar servos e servas. Pelo contr�rio, algumas escravas procuram de
prop�sito o aborto, s� para que n�o cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que
elas padecem.

* * *

A mistura de ass�duo cumprimento dos deveres de estado, aplica��o no trabalho, lisura
nos neg�cios, observ�ncia ao culto religioso e, em tudo, esp�rito de ordem e economia
n�o lembrar� acaso a �tica calvinista que Max Weber, em estudo memor�vel, mostrou
como prop�cio ao esp�rito do capitalismo? E mais: a certeza de que a prosperidade na
terra � promessa de bens eternos, porque Deus ajuda a quem
se ajuda?
Em v�rias passagens da obra topamos com signos dessa conhecida s�ndrome ideol�gica,
ora juntos, ora separados. Mas Antonil era um jesu�ta! E nossa mem�ria classificadora
estranhar� qualquer conex�o entre a mais radical das seitas protestantes e a mais
ortodoxa e romana das ordens cat�licas.
No entanto... como negar o que h� de comum? Algum veio do ethos mercantil,
promanado da renascen�a comunal, veio a alimentar homens t�o diversos como Calvino
e In�cio de Loyola, e trouxe um sabor de "modernidade" racionalista que um tardio
disc�pulo da Contra-Reforma n�o s� conserva mas pot�ncia s�culo e meio depois. Essa
fonte � a nova religi�o da iman�ncia, a sobrevaloriza��o dos cuidados terrenos, o elogio
da raz�o previdente, provida e prudente, a defesa dos atos industriosos, a r�gida
administra��o do tempo, enfim o respeito pela vita activa.
Antonil � jesu�ta, mas nada tem a ver com os esplendores barrocos da sua ordem em
Roma, em N�poles ou em Lisboa. A sua forma��o intelectual � cl�ssica, burguesa,
toscana: Lucca, a sua p�tria, velha comuna que sempre alimentou o com�rcio mar�timo
de G�nova e sempre contou com pr�speros banqueiros entre os seus cidad�os mais
ilustres.

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QUANDO O OBJETO VIRA SUJEITO, QUANDO O SUJEITO VIRA OBJETO

Uma das pr�ticas objetivas da Economia tradicional consistia em observar os sujeitos da
produ��o. Vivendo na Bahia, Antonil foi atra�do pela atividade febril dos engenhos de
a��car a ponto de passar dias a fio entrevistando um velho mestre ' 'que cinq�enta anos
se ocupou nesse of�cio com venturoso sucesso'', al�m de outros oficiais de nome, ' 'aos
quais miudamente perguntei o que a cada qual pertencia'', para enfim tudo coletar e
dispor em um bem ordenado livro.
A manufatura do ouro branco o fascinava. As coisas, n�o os homens. As coisas que


movem os homens a produzi-las dia e noite. As m�quinas que obedecem a leis de ferro,
infringidas as quais, sofrem os homens riscos de mutila��o e de morte. Esse � o
universo de Cultura e opul�ncia do Brasilque faria as del�cias do jovem Marx analista
da reifica��o do trabalhador fabril.
O engenho tem, no cora��o, as casas das m�quinas. A casa da moenda, a casa da
fornalha, a casa das caldeiras, a casa de purgar. A cana que se planta e colhe vai
aliment�-las; o a��car que se produz e vende para o ultramar sair� delas. Antonil nos
contar�, passo a passo, a carreira da cana at� virar o doce e alvo cristal que toda a
Europa aprendeu a consumir desde os primeiros anos da coloniza��o. A cana, a garapa,

o melado, o a��car: etapas de uma hist�ria de metamorfoses em que o sujeito � a coisa a
produzir-se, e o objeto os corpos cativos, sombras que rondam o engenho alumiadas
pelo fogo das fornalhas acesas noite e dia.
Os escravos s�o os p�s e as m�os dos senhores, e esta figura redu-tora lhes tira a
integridade de atores. S�o constru��es verbais passivas e impessoais que Antonil
enfileira para descrever o plantio da cana: a terra ro�a-se (quem a ro�a?), queima-se
(quem o faz?), alimpa-se (quem?). Que a cana n�o se abafe; que se plantem os olhos da
cana em p�, ou que se deite em peda�os; deita-se tamb�m inteira, uma junto � outra,
ponta com p�; e cobrem-se com terra moderadamente... Dir� a gram�tica tradicional que
em todos esses casos o sujeito � a terra ou a cana; e aqui a raz�o formal do gram�tico
coincide com a do economista da era mercantil. O objeto exterior ganha foros de sujeito
na linguagem de Antonil. Ao mesmo tempo, o agente real (o escravo que ro�a, queima,
alimpa, abafa, deita, cobre...) omite-se
165


por um jogo perverso de perspectivas no qual a mercadoria � omni-presente e todo-
poderosa antes mesmo de chegar ao mercado, e precisamente porque deve chegar ao
mercado inteira, branca e brunida.
Vinda a hora da safra, tampouco nos � dado ver homens inteiri�os na faina do eito.
"Quando se corta a cana, se metem at� doze ou dezoito foices no canavial.'' Metem-se
foices a ceifar, e a meton�-mia do instrumento pelo trabalhador diz o que deveras
importa ao olhar do autor: as canas a cortar, n�o os obreiros que as cortam. Depois, �
preciso contar os feixes, opera��o de c�lculo; mas como acomod�-la "� rudeza dos
escravos bo�ais, que n�o sabem contar?". Usando seus dedos e m�os. Dez feixes para
cada dedo. Cinco dedos tem a m�o: a m�o vale cinq�enta feixes. Duas m�os t�m cem
feixes. E sete m�os t�m trezentos e cinq�enta feixes, ' 'e tem por obriga��o cada escravo
cortar num dia trezentos e cinq�enta feixes'', ou seja, sete m�os.
Atada em feixes e levada em carros de bois, bate a cana �s portas da casa de moer, "com

o artif�cio que engenhosamente inventaram". � a vez de uma descri��o t�cnica
minudent�ssima da moenda: per�odos sobre per�odos articulados em torno da m�quina
por excel�ncia do engenho, onde rodas de eixo dentadas se entrosam e desentrosam e
reentrosam para melhor espremer a cana e extrair o sumo, o caldo, que se recolher� para
ferver.
Quase no fecho dessas p�ginas metodicamente obsessivas, em que o olho de Antonil
parece medusado por aquelas engrenagens que n�o param nunca de rodar, vislumbra-se
r�pida a imagem de uma negra "bo�al'' que, vencida de sono ou emborrachada,' 'passa
mo�da entre os eixos". A escrava distra�da escapa, �s vezes, se interv�m a tempo a m�o
prestante da companheira que lhe corta o bra�o com um fac�o, caso o feitor prevenido
n�o se tenha esquecido de encost�-lo junto � moenda para evitar o pior.
O leitor curioso dos velhos saberes tecnol�gicos do Brasil pr�-industrial acompanhar�
com prazer o curso das observa��es incisivas de Antonil, que era escritor de pulso, dos
melhores da nossa prosa colonial. Dos dentes da moenda passar� � casa da fornalha com
suas bocas ardentes cingidas de arcos de ferro e encimadas de bueiros ' 'que s�o como
duas ventas por onde o fogo resfolega''. Ver� a lenha empilhada no forno a queimar
noite adentro. Conhecer� os diversos tipos de caldeiras, par�is e tachos da casa dos
cobres edificada em cima das fornalhas onde se ferve a garapa limpando-a das escumas
(a primeira
delas tem por nome cacha�a...) e juntando-lhe a cinza da decoada para que melhor se
filtre at� alcan�ar o grau perfeito de cozimento, ' 'a tempera do melado". Com este
enchem-se as f�rmas e procede-se � �ltima opera��o, o branqueamento. S� ent�o
separa-se o a��car que n�o se cristalizou (o "mel") do cristal de a��car. Para purgar
aplicam-se ao produto camadas de barro, no caso, a argila puxada das terras ala-gadi�as
do Rec�ncavo. O a��car mal purgado, escuro, � o mascavo. Ao bem purgado dava-se o
nome de branco macho, o mais prezado e de mais alto custo. Antonil leva o relato do


processo at� �s fases derradeiras da secagem e do encaixotamento do a��car, n�o
omitindo sequer os pre�os ent�o vigentes da mercadoria j� despachada e posta na
alf�ndega de Lisboa.
Com listas de valores em contos de r�is parece assim findar prosaicamente �
objetivamente � essa parte principal da obra rente ao fabrico do ouro branco no
Engenho de Sergipe do Conde. No entanto, virada a �ltima p�gina do und�cimo
cap�tulo, e conferido o montante anual "do que importa todo o a��car da col�nia", ou
seja, 2535:142$800 (dous mil quinhentos e trinta e cinco contos, cento e quarenta e
dous mil e oitocentos r�is), n�o pouca surpresa causar� ao leitor o t�pico seguinte
intitulado pateticamente: ' 'Do que padece o a��car desde o seu nascimento na cana, at�
sair do Brasil''.
A passagem tamb�m poderia chamar-se: nascimento, paix�o e morte da cana-de-a��car
do Brasil a Portugal. A cana, que vimos seguindo em suas transforma��es de natureza
trabalhada a mercadoria vendida, reassume neste fecho-s�ntese o seu estatuto verdadeiro
de sujeito. E de sujeito sofredor, cujo calv�rio reitera o sacrif�cio por excel�ncia, o
paradigma da paix�o de Cristo. O holocausto propiciat�rio serve agora para o novo
regime de salva��o, que � o mercado europeu, c�u aberto � economia colonial.
As fases da produ��o do a��car que figuram nas p�ginas precedentes (cortar em
peda�os, plantar, ceifar, amarrar, arrastar, moer, espremer, ferver, bater, cozer, purgar
com barro, repartir com ferros, en-caixotar e remeter para o alto destino dos emp�rios
internacionais) repetem-se neste finale mediante a analogia com o ser vivo, animado e
humanizado, a quem se infligem torturas indiz�veis, mas necess�rias, pois "� reparo
singular dos que contemplam as cousas naturais ver que as que s�o de maior proveito ao
g�nero humano n�o se reduzem � sua perfei��o sem passarem primeiro por not�veis
apertos".

167


�a�
Moenda de um engenho d'�gua. Desenho de Franz Post (1612-80).
' 'Chegadas � moenda, com que for�a e aperto, postas entre os eixos, s�o obrigadas a dar quanto t�m de
substancial''
Antonil, Cultura c opul�ncia do Brasil



A esta narra��o dos tormentos padecidos pela cana � que prefiro transcrever a resumir, t�o
costurada � a sua sintaxe e t�o preciso o seu l�xico � n�o falta um qu� de s�dico: aquele
exerc�cio brutal de crueldade a que o capitalismo arcaico submete a natureza e o homem.

DO QUE PADECE 0 A��CAR DESDE
O SEU NASCIMENTO NA CANA, AT� SAIR DO BRASIL

� reparo singular dos que contemplam as cousas naturais ver que as que s�o de maior proveito
ao g�nero humano n�o se reduzem � sua perfei��o sem passarem primeiro por not�veis apertos;
e isto se v� bem na Europa no pano de linho, no p�o, no azeite e no vinho, frutos da terra t�o
necess�rios, enterrados, arrastados, pisados, espremidos e mo�-dos antes de chegarem a ser
perfeitamente o que s�o. E n�s muito mais o vemos na f�brica do a��car, o qual, desde o
primeiro instante de se plantar, at� chegar �s mesas e passar entre os dentes a sepultar-se no
est�mago dos que o comem, leva uma vida cheia de tais e tantos mart�rios que os que
inventaram os tiranos lhes n�o ganham vantagem. Porque se a terra, obedecendo ao imp�rio do
Criador, deu liberalmente a cana para regalar com a sua do�ura aos paladares dos homens, estes,
desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma cana, com seus
artif�cios, mais de cem instrumentos para lhe multiplicarem tormentos e penas.
Por isso, primeiramente fazem em peda�os as que plantam e as sepultam assim cortadas na
terra. Mas, elas tornando logo quase milagrosamente a ressuscitar, que n�o padecem dos que as
v�em sair com novo alento e vigor? J� abocanhadas de v�rios animais, j� pisadas das bestas, j�
derrubadas do vento, e alfim descabe�adas e cortadas com fouces. Saem do canavial amarradas;
e, oh!, quantas vezes antes de sa�rem da� s�o vendidas! Levam-se, assim presas, ou nos carros
ou nos barcos � vista das outras, filhas da mesma terra, como os r�us, que v�o algemados para a
cadeia, ou para o lugar do supl�cio, padecendo em si confus�o e dando a muitos terror.
Chegadas � moenda, com que for�a e aperto, postas entre os eixos, s�o obrigadas a dar quanto
t�m de sust�ncia? Com que desprezo se lan�am seus corpos esmagados e despeda�ados ao mar?
Com que impiedade se queimam sem compaix�o no baga�o? Arrasta-se pelas bicas quanto
humor saiu de suas veias e quanta sust�ncia tinham nos ossos; trateia-se e suspende-se na
guinda, vai a

170

ferver nas caldeiras, borrifado (para maior pena) dos negros com de-coada; feito quase lama no
cocho, passa a fartar �s bestas e aos porcos, sai do parol escumado e se lhe imputa a bebedice
dos borrachos. Quantas vezes o v�o virando e agitando com escumadeiras medonhas? Quantas,
depois de passado por coadores, o batem com batedeiras, experimentando ele de tacha em tacha

o fogo mais veemente, �s vezes quase queimado, e �s vezes desafogueado algum tanto, s� para
que chegue a padecer mais tormentos? Crescem as bateduras nas temperas, multiplica-se a
agita��o com as esp�tulas, deixa-se esfriar como morto nas f�rmas, leva-se para a casa de
purgar, sem terem contra ele um m�nimo ind�cio de crime, e nela chora, furado e ferido a sua t�o
malograda do�ura. Aqui, d�o-lhe com barro na cara; e, para maior ludibrio, at� as escravas lhe
botam, sobre o barro sujo, as lavagens. Correm suas l�grimas por tantos rios quantas s�o as
bicas que as recebem; e tantas s�o elas, que bastam para encher tanques profundos. Oh,
crueldade nunca ouvida! As mesmas l�grimas do inocente se p�em a ferver e a bater de novo
nas tachas, as mesmas l�grimas se estilam � for�a de fogo em lambique; e, quando mais chora
sua sorte, ent�o tornam a dar-lhe na cara com barro, e tornam as escravas a lan�ar-lhe em rosto
as lavagens. Sai desta sorte do purgat�rio e do c�rcere, t�o alvo como inocente; e sobre um

baixo balc�o se entrega a outras mulheres, para que lhe cortem os p�s com fac�es; e estas, n�o
contentes de lhos cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgam de lhe
fazer os mesmos p�s em migalhas. Da�, passa ao �ltimo teatro dos seus tormentos, que � outro
balc�o, maior e mais alto, aonde, toda a gente sentida e enfadada do muito que trabalhou
andando atr�s dele; e, por isso, partido com quebradores, cortado com fac�es, despeda�ado com
toletes, arrastado com rodos, pisado dos p�s dos negros sem compaix�o, farta a cmeldade de
tantos algozes quantos s�o os que querem subir ao balc�o. Examina-se por remate na balan�a do
maior rigor o que pesa, depois de feito em migalhas; mas os seus tormentos grav�ssimos, assim
como n�o t�m conta, assim n�o h� quem possa bas-tantemente ponder�-los ou descrev�-los.
Cuidava eu que, depois de reduzido ele a este estado t�o lastimoso, o deixassem; mas vejo que,
sepultado em uma caixa, n�o se fartam de o pisar com pil�es, nem de lhe dar na cara, j� feita em
p�, com um pau. Pregam-no finalmente e marcam com fogo ao sepulcro em que jaz; e, assim
pregado e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido e revendido, preso, confiscado e
arrastado; e, se livra das pris�es do porto, n�o livra das tor-mentas do mar, nem do degredo,
com imposi��es e tributos, t�o seguro

171


de ser comprado c vendido entre crist�os como arriscado a ser levado para Argel entre mouros.
E, ainda assim, sempre doce e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao paladar dos seus
inimigos nos banquetes, sa�de nas mezinhas aos enfermos e grandes lucros aos senhores de
engenho e aos lavradores que o perseguiram e aos mercadores que o compraram e o levaram
degradado nos portos e muito maiores emolumentos � Fazenda Real nas alf�ndegas.
Lembro a distin��o inicial deste livro: a coloniza��o como projeto voltado para a satisfa��o das
necessidades materiais do presente {colo: eu cultivo, eu trabalho); e a coloniza��o como
transplante de um passado prenhe de imagens, s�mbolos e ritos de car�ter religioso {cultus: a
mem�ria dos antepassados).
Antonil tem a mente centrada no aqui-e-agora da produ��o e no amanh� da mercancia. A causa
final do seu pensamento � a a��o de colonizar enquanto colo. Mas Johannes Antonius
Andreonius � tamb�m sacerdote, um jesu�ta italiano que bebeu do po�o das �guas medievais e
barrocas do catolicismo. O seu imagin�rio guarda a lembran�a da hist�ria arquet�pica que foi e �
a obra redentora do Salvador operada mediante o sacrif�cio cruento no calv�rio e na cruz. A
tradi��o crist� ministra-lhe o fio da narrativa e as met�foras da dor. Cultus d� sentido e
profundidade a colo. Sem cultus, colo tende a amesquinhar-se e virar pedestre utilitarismo.
Colonizar � tamb�m reviver os signos de uma arcana identidade figurada pelo culto.
Mas at� neste casamento de passado e presente, de religi�o e economia, Antonil � o Anti-Vieira.
O secret�rio que copia a letra e trai o esp�rito. O pregador, estreante e ainda novi�o, falara em
1633 aos pretos da Irmandade do Ros�rio em um engenho baiano. Seria o mesmo Sergipe do
Conde? E no serm�o j� descrevera os trabalhos da moen-da e das fornalhas com palavras
tomadas ao imagin�rio do inferno medieval. Mas o sujeito de Ant�nio Vieira n�o era a cana: era

o escravo.
Depois de ter provado com abund�ncia de cita��es do Velho e do Novo Testamento que os
negros s�o filhos do mesmo Deus que criara e remira a humanidade toda, Vieira toca o ponto
que deveria afetar os seus ouvintes, a semelhan�a do escravo de engenho com o Cristo
crucificado:
N�o h� trabalho, nem g�nero de vida no mundo mais parecido � cruz e paix�o de Cristo, que o
vosso em um destes engenhos [...] Em um
172
engenho sois imitadores de Cristo crucificado: Imitatoribus Christi cru-cifixi, porque padeceis
em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua
paix�o. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho � de tr�s. Tamb�m
ali n�o faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paix�o: uma vez servindo para o
ceptro de esc�rnio, e outra vez para a esponja em que Lhe deram o fel. A paix�o de Cristo parte
foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais s�o as vossas noites e os vossos
dias. Cristo despido, e v�s despidos; Cristo sem comer, e v�s famintos; Cristo em tudo
maltratado, e v�s maltratados em tudo. Os ferros, as pris�es, os a�outes, as chagas, os nomes
afrontosos, de tudo isto se comp�e a vossa imita��o, que se for acompanhada de paci�ncia,
tamb�m ter� merecimento de mart�rio. S� lhe faltava � cruz para a inteira e perfeita semelhan�a

o nome de engenho; mas este mesmo lhe deu Cristo n�o com outro sen�o com o pr�prio
voc�bulo. Tor-cular se chama o vosso engenho, ou a vossa cruz, e a de Cristo, por boca do
mesmo Cristo, se chamou tamb�m torcular: Torcular calcari so/us.n Em todas as inten��es e
instrumentos de trabalho parece que n�o achou o Senhor outro que mais parecido fosse com o

seu, que o vosso. A propriedade e energia desta compara��o, � porque no instrumento da cruz, e
na oficina de toda a paix�o, assim como nas outras em que se espreme o sumo dos frutos, assim
foi espremido todo o sangue da humanidade sagrada.13
No t�pico seguinte vem a compara��o do engenho com o inferno, e mais particularmente com
os vulc�es Etna e Ves�vio, de que Antonil se aproveitaria literalmente sem qualquer men��o da
fonte:
E que cousa h� na confus�o deste mundo mais semelhante ao Inferno que qualquer destes
vossos engenhos, e tanto mais, quanto de maior f�brica? Por isso foi t�o bem recebida aquela
breve e discreta defini��o de quem chamou a um engenho de a��car doce inferno. E
verdadeiramente quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente
ardentes: as labaredas que est�o saindo a borbot�es de cada uma pelas duas bocas, ou ventas,
por onde respiram o inc�ndio: os et�opes, ou ciclopes banhados em suor t�o negros como
robustos que subministram a grossa e dura mat�ria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e
ati�am; as caldeiras ou lagos ferventes com os cachoes sempre batidos e rebatidos, j� vomitando
escumas, exalando nuvens de vapores mais de calor, que de fumo, e tornando-os a chover para
outra vez os exalar: o ru�do das rodas, das cadeias, da gente toda da

173


cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo sem
momento de tr�guas, nem de descanso: quem vir enfim toda a m�quina e aparato
confuso e estrondoso daquela babil�nia, n�o poder� duvidar, ainda que tenha visto
Etnas e Ves�vios, que � uma semelhan�a de Inferno.14
Antonil, descrevendo as fornalhas, chama-lhes "bocas verdadeiramente tragadoras de
matos, c�rcere de fogo e fumo perp�tuo e viva imagem dos vulc�es, Ves�vios e Etnas
[repare-se o mesmo uso do plural], e quase disse, do Purgat�rio ou do Inferno".
H�, por�m, uma diferen�a significativa na rela��o que ambos estabelecem entre o fogo e

o escravo. Vieira nos pinta homens v�lidos, robustos "et�opes", ciclopes banhados em
suor exercendo vigorosamente a for�a dos seus m�sculos e a habilidade das suas m�os: '
'sub-ministram a grossa e dura mat�ria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e
ati�am".
Antonil amontoa junto �s fornalhas pretos sifil�ticos, ' 'os escravos boubentos e os que
t�m corrimentos, obrigados a esta penosa exist�ncia para purgarem com suor violento os
humores g�licos de que t�m cheios os seus corpos''. E, ao lado dos escrofulosos, aponta
� execra��o os fac�noras presos em grossas correntes, que l� est�o cumprindo pena de
trabalhos for�ados pela sua ' 'extraordin�ria maldade, com pouca ou nenhuma esperan�a
de emenda".
Mas, ao contemplar o caldo de cana fervido, com que l�stima o v� borrifado com
decoada pelos negros! Como deplora que a sua escuma sirva � divers�o de escravos
pingu�os! Na hora da purga, "at� as escravas lhe botam, sobre o barro sujo, as
lavagens", e n�o s� uma, muitas vezes, as pretas lhe batem afrontosamente na cara.
Quando o a��car sai, j� branco, das f�rmas, "t�o alvo como inocente", outras mulheres
com requintes de crueldade lhe cortam os p�s com facas. Nos balc�es escravos ferozes e
vingativos, ' 'gente sentida e enfadada do muito que trabalhou", partem-no,
espeda�ando-o, arrastando-o e pisando-o sob ' 'os p�s dos negros sem compaix�o''. Se a
mercadoria tem inimigos, estes s�o os oper�rios que nela desafogam os seus rancores...
S�o as coisas a fazer e por vender que interessam a Antonil. O componente fetichista da
mente mercantil vem ao primeiro plano no seu discurso e aparece quase em estado puro.
174

O s�culo xvm, que com ele desponta, ser� racionalista e prestar� culto � utilidade como
bem supremo: n�o por acaso come�a entre n�s com a Cultura e opul�ncia do Brasil por
suas drogas e minas e termina com as obras escravistas de um bispo avesso �s tradi��es
je-su�ticas, o abastado senhor de engenho Jos� Joaquim da Cunha d'Aze-redo Coutinho
que vira rebrotar nos seus Campos dos Goitac�s a lavra das canas �m crise desde os
tempos de Antonil. De um ao outro, no arco de uma cent�ria, j� n�o se ouvir�o sequer
os ecos dos clamores mission�rios de Vieira ainda penetrados dos ideais universalistas
que enformaram o Direito Natural das Gentes.
Aquele sonho salv�fico e ecum�nico, desejoso n�o s� dos bra�os mas das almas dos
novos gentios, parece ter-se esva�do para sempre na vig�lia do nosso primeiro


economista a quem s� comoviam as l�grimas da mercadoria.
Roma, 1986 � S�o Paulo, 1989


6
UM MITO SACRIFICIAL: O INDIANISMO DE ALENCAR

� pr�prio da imagina��o hist�rica edificar mitos que, muitas vezes, ajudam a
compreender antes o tempo que os forjou do que o universo remoto para o qual foram
inventados.
Acreditando nessa proposi��o, arrisco-me a revisitar um lugar-comum dos
comparatistas liter�rios que afinam o indianismo brasileiro pelo diapas�o europeu da
romantiza��o das origens nacionais. L�, figuras e cenas medievais; c�, o mundo
ind�gena tal e qual o surpreenderam os descobridores. C� e l�, uma opera��o de retorno,
um esfor�o para bem cumprir o voto micheletiano de ressuscitar o passado, alvo
confesso da historiografia rom�ntica. At� que ponto esse paralelismo se sustem?
A aproxima��o de ambas as vis�es do passado mant�m-se v�lida na esfera ampla da
hist�ria das mentalidades. Houve, de fato, uma corrente de saudosismo, de filia��o
ancien regime, tardia mas nem por isso menos intensa, que cruzou as letras europ�ias na
fase p�s e anti-revolucion�ria. As obras de Chateaubriand, de Xavier de Mais-tre e de
sir Walter Scott ilustram os seus momentos de vigor em mat�ria de imagina��o e estilo.
No caso brasileiro, um dos veios centrais do nosso romantismo, o alencariano, tamb�m
mostrou-se receoso de qualquer tipo de mudan�a social, parecendo esgotar os seus
sentimentos de rebeldia ao jugo colonial nas como��es pol�ticas da Independ�ncia.
Passado este ciclo, qualquer medida que avan�asse no sentido de alargar a t�o estreita
margem de liberdade outorgada pela Carta de 23 assumia ares de subvers�o.l Assim, a
reforma eleitoral e a quest�o servi/ ficaram bloqueadas desde a vit�ria do Regresso em
1837 (o termo foi cunha


176

do e assumido prazerosamente pelos conservadores) at� a subida da mar� liberal nos
anos 60: precisamente os tr�s dec�nios que viram o surgimento e o cl�max da nossa
literatura rom�ntica.
Observa-se em todo esse per�odo uma esp�cie de encruamento das posi��es liberal-
radicais que levaram � abdica��o de Pedro I e aos sucessos tumultuosos da Reg�ncia. O
fen�meno, que j� foi diagnosticado em termos de consolida��o do poder escravista, n�o
� de todo estranho �s formas paradoxais pelas quais uma figura de n�tido corte
rousseau�sta como o bon sauvage acabou compondo o nosso imagin�rio mais
conservador. Gigante pela pr�pria natureza, o �ndio entrou in extremis na sociedade
liter�ria do Segundo Imp�rio.
Remonte-se um pouco no tempo. O processo da independ�ncia gerou, ao desencadear-
se, uma dial�tica de oposi��o. Mesmo considerando que os estratos dominantes foram
os arquitetos e os benefici�rios da p�tria dei criollo,2 � for�a convir que contradi��o
houve, tanto no n�vel dos interesses materiais coibidos pelo antigo monop�lio, quanto
no delicado tecido da vida simb�lica. Viveu-se uma fase de tens�o aguda entre a


Col�nia que se emancipava e a Metr�pole que se enrijecia na defesa do seu caducante
Imp�rio. O primeiro quartel do s�culo xix foi, em toda a Am�rica Latina, um tempo de
ruptura. O corte na��o/col�nia, novo/antigo exigia, na moldagem das identidades, a
articula��o de um eixo: de um lado, o p�lo brasileiro, que enfim levantava a cabe�a e
dizia o seu nome; de outro, o p�lo portugu�s, que resistia � perda do seu melhor
quinh�o.
Segundo esse desenho de contrastes, o esper�vel seria que o �ndio ocupasse, no
imagin�rio p�s-colonial, o lugar que lhe competia, o papel de rebelde. Era, afinal, o
nativo por excel�ncia em face do invasor; o americano, como se chamava,
metonimicamente, versus o europeu.
Mas n�o foi precisamente o que se passou em nossa fic��o rom�ntica mais significativa.
O �ndio de Alencar entra em �ntima comunh�o com o colonizador. Peri �, literal e
voluntariamente, escravo de Ceei, a quem venera como sua Iara, ' 'senhora'', e vassalo
fidel�ssi-mo de dom Ant�nio. No desfecho do romance, em face da cat�strofe iminente,

o fidalgo batiza o ind�gena, dando-lhe o seu pr�prio nome, condi��o que julga
necess�ria para conceder a um selvagem a honra de salvar a filha da morte certa a que
os aimor�s tinham condenado os moradores do solar:
177


Sc tu fosses crist�o, Per�...
O �ndio voltou-se extremamente admirado daquelas palavras.


� Por qu�?... perguntou ele.
Por qu�?... disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses crist�o, eu te confiaria a
salva��o de minha Cec�lia, e estou convencido de que a levadas ao Rio de Janeiro �
minha irm�.
O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou de felicidade, seus l�bios tr�mulos
mal podiam articular o turbilh�o de palavras que lhe vinham do �ntimo d'alma.
� Peri quer ser crist�o! exclamou ele.
D. Ant�nio lan�ou-lhe um olhar �mido de reconhecimento.
O �ndio caiu aos p�s do velho cavalheiro, que imp�s-lhe as m�os sobre a cabe�a.
S� crist�o! Dou-te o meu nome!
(O guarani, parte IV, cap. X)
A convers�o, acompanhada de mudan�a de nome, ocorre igualmente com o �ndio Poti,
de Iracema, batizado como Ant�nio Felipe Camar�o, o futuro her�i da resist�ncia aos
holandeses. E Arnaldo, o s�sia r�stico de Peri de O sertanejo, � agraciado com o
sobrenome do capit�o-mor durante este di�logo edificante:
E para si, Arnaldo, que deseja? � insistiu Campeio.
� Que o sr. Capit�o-Mor me deixe beijar sua m�o; basta-me isso.
� Tu �s um homem, e de hoje em diante quero que te chames Arnaldo Louredo
Campeio.
(O sertanejo, parte II, cap. XXI)
E o senhor colonial que, nos tr�s epis�dios, outorga, pelo ato da renomea��o, nova
identidade religiosa e pessoal ao �ndio e ao sertanejo.
Quanto aos aimor�s, que s�o os verdadeiros inimigos do conquistador no Guarani,
aparecem marcados pelos ep�tetos de b�rbaros, horrendos, sat�nicos, carniceiros,
sinistros, horr�veis, sedentos de vingan�a, ferozes, diab�licos...
Iracema, no belo poema em prosa que traz o seu nome, apaixona-se por Martim Soares
Moreno, o colonizador do Cear�, por amor de quem rompe com a sua na��o tabajara
depois de violar o segredo da jurema.
Nas hist�rias de Peri e de Iracema a entrega do �ndio ao branco � incondicional, faz-se
de corpo e alma, implicando sacrif�cio e aban


dono da sua perten�a � tribo de origem. Uma partida sem retorno. Da virgem de l�bios
de mel disse Machado de Assis em artigo que escreveu logo que saiu o romance: "N�o
resiste, nem indaga: desde que os olhos de Martim se trocaram com os seus, a mo�a
curvou a cabe�a �quela doce escravid�o".3
O risco de sofrimento e morte � aceito pelo selvagem sem qualquer hesita��o, como se a
sua atitude devota para com o branco representasse o cumprimento de um destino, que
Alencar apresenta em termos her�icos ou id�licos.


Creio que � poss�vel detectar a exist�ncia de um complexo sacri-ficial na mitologia
rom�ntica de Alencar. Comparem-se os desfechos dos seus romances coloniais e
indianistas com os destinos de Caroli-na, a cortes� de As asas de um anjo (remida e
punida em A expia-��o), de Luc�ola, no romance hom�nimo, e de Joana, em M�e. S�o
todas obras cujas tramas narrativas ou dram�ticas se resolvem pela imo-la��o volunt�ria
dos protagonistas: o �ndio, a �ndia, a mulher prostitu�da, a m�e negra. A nobreza dos
fracos s� se conquista pelo sacrif�cio de suas vidas.
Paradoxalmente: O guarani e Iracema fundaram o romance nacional.
N�o est� em causa, nestas observa��es, a sinceridade patri�tica do narrador, sentimento
que, de resto, n�o guardaria qualquer rela��o causai com o valor est�tico dos seus
textos. O que importa � ver como a figura do �ndio belo, forte e livre se modelou em um
regime de combina��o com a franca apologia do colonizador. Essa concilia��o, dada
como espont�nea por Alencar, viola abertamente a hist�ria da ocupa��o portuguesa no
primeiro s�culo (� s� ler a cr�nica da maioria das capitanias para saber o que
aconteceu), toca o inveross�mil no caso de Peri, enfim � pesadamente ideol�gica como
interpreta��o do processo colonial. Nada disso impede, por�m, que a linguagem
narrativa de Alencar acione, em mais de um passo, a tecla da poesia.
A beleza da prosa l�rica reverbera aqu�m ou, em outro sentido, al�m da representa��o
do dado emp�rico que a cr�nica realista busca espelhar. E o mito, que essa prosa
entretece, se faz aqu�m, ou al�m, da cadeia narrativa veross�mil.
Aqu�m: o mito n�o requer o teste da verifica��o nem se vale daquelas provas
testemunhais que fornecem passaporte id�neo ao discurso historiogr�fico. Ou al�m: o
valor est�tico de um texto m�tico

179


transcende o seu horizonte factual e o recorte preciso da situa��o evocada. O mito,
como poesia arcaica, � conhecimento de primeiro grau, pr�-conceitual, e, ao mesmo
tempo, � forma expressiva do desejo, que quer antes de refletir.
H� um n� apertado de pensamento conservador, mito indianis-ta e met�fora rom�ntica
na rede narrativa de O guarani. Ao tentar desfaz�-lo, o leitor cr�tico deve tomar o
cuidado de n�o emaranhar a an�lise dos valores do autor, tarefa que compete � hist�ria
das ideologias, com o julgamento dos seus tentos liter�rios mais criativos.
O mito � uma inst�ncia mediadora, uma cabe�a bifronte. Na face que olha para a
Hist�ria, o mito reflete contradi��es reais, mas de modo a convert�-las e a resolv�-las
em figuras que perfa�am, em si, a coincidentia oppositorum. Assim, o mito alencariano
re�ne, sob a imagem comum do her�i, o colonizador, tido como generoso feuda-t�rio, e

o colonizado, visto, ao mesmo tempo, como s�dito fiel e bom selvagem. Na outra face,
que contempla a inven��o, traz o mito signos produzidos conforme uma sem�ntica
anal�gica, sendo um processo figurai, uma express�o romanesca, uma imagem po�tica.
Na medida em que alcan�a essa qualidade propriamente est�tica, o mito resiste a
integrar-se, sem mais, nesta ou naquela ideologia.
Essas observa��es entendem distinguir o reconhecimento da situa��o ideol�gica e o
ju�zo de valor art�stico daqueles textos liter�rios em que as express�es mitopo�ticas
regem a linha narrativa.
Mas, feitas as devidas ressalvas, que o ser da poesia requer, o olhar do int�rprete
continua a perseguir o ponto de vista do narrador: � nele que a cultura de um
determinado contexto tacteia ou logra seu estado de cristaliza��o; � atrav�s dele que
fluem ou se estagnam certos valores peculiares a este ou �quele estrato social.
Na sua representa��o da sociedade colonial dos s�culos xvi e XVII Alencar submete os
p�los nativo-invasor a um tratamento antidial�-tico pelo qual se neutralizam as
oposi��es reais. O retorno m�tico � vida selvagem � permeado, no Guarani, pelo recurso
a um imagin�rio outro. O seu indianismo n�o constitui um universo pr�prio, paralelo �s
fantasias medievistas europ�ias, mas funde-se com estas. Duas paralelas, ensina a
geometria, nunca se tocam. Mas aqui n�o � bem de esp�rito geom�trico que estamos
falando...
A concep��o que Alencar tem do processo colonizador impede que os valores
atribu�dos romanticamente ao nosso �ndio � o hero�smo,
a beleza, a naturalidade � brilhem em si e para si; eles se cons-telam em torno de
um �m�, o conquistador, dotado de um poder in-fuso de atra�-los e incorpor�-los. N�o
sei de outra forma��o nacional egressa do antigo sistema colonial onde o nativismo
tenha perdido (para bem e para mal) tanto da sua identidade e da sua consist�ncia.
Augusto Meyer, em um soberbo estudo que dedicou a Alencar, tudo remete ao conceito
de tenuidade brasileira para dar conta desses e de outros singulares descompassos de
nossa cultura rom�ntica.4


Suspeitando, por�m, que o teor amb�guo desse nativismo n�o poderia, em raz�o do seu
modo de compor-se, manter sempre uma face homog�nea, busquei a exce��o, a rara
exce��o, e afinal a encontrei em uma breve passagem, uma nota etnogr�fica aposta �
lenda de Ubirajara. Boi a �ltima obra em que Alencar voltou ao assunto. Trata-se de
uma poetiza��o da vida ind�gena anterior ao descobrimento. A nota sugere uma leitura
da coloniza��o portuguesa como um feito de viol�ncia. Defendendo os tupis da pecha
de traidores com que os infamaram alguns cronistas, assim lhes rebate Alencar: ' 'Boi
depois da coloniza��o que os portugueses, assaltando-os como a feras e ca�ando-os a
dente de c�o, ensinaram-lhes a trai��o que eles n�o conheciam' '.
E verdade que esse ju�zo cortante n�o tem for�a retroativa, chega tarde e n�o pode
alterar a simbiose luso-tupi que Alencar armara t�o solidamente nos romances coloniais,
onde o destino do nativo era tratado como sacrif�cio espont�neo e sublime.
Mas a veem�ncia do tom (' 'assaltando-os como a feras e ca�ando-os a dente de c�o"
parecem express�es de mission�rios mcriminando colonos e bandeirantes) ganha
sentido se vista � luz das �speras pol�micas liter�rias que Alencar precisou travar, nos
seus �ltimos e sombrios anos de vida. Zoilos portugueses e penas intolerantes o
acusavam de inventar um selvagem falso, e, o que era pior, escrever em uma l�ngua
in�ada de americanismos, desviante do c�non da matriz. As respostas irritadamente
nacionalistas de Alencar se l�em no longo pref�cio que fez para um dos seus �ltimos
romances, Sonhos d'ouro, que saiu em 1872. O texto � um documento interessante de
pol�tica cultural bra-sileirista post festum.
Seria instrutivo esbo�ar um confronto da fic��o de Alencar com a poesia americana de
Gon�alves Dias, que a precedeu de uma gera��o.

181


A casa de Dom Ant�nio de Mariz. Do cen�rio da �pera II Guarani de Carlos Gomes, apresentada no Teatro Alia
Seda de Mil�o em 1870.
Aposento de Ceei. Do cen�rio da �pera II Guarani.


Figurino de Ceei.

Figurino de Peri.


Nos Primeiros cantos do maranhense lateja a consci�ncia do destino atroz que
aguardava as tribos tupis quando se p�s em marcha a conquista europ�ia. O conflito das
civiliza��es � trabalhado pelo poeta na sua dimens�o de trag�dia. Poemas fortes como
O canto do piaga e Depreca��o s�o agouros do massacre que dizimaria o selvagem mal
descessem os brancos de suas caravelas.
Pelo seu tom entre espantado e solene lembram esses cantos os press�gios que os vates
astecas anunciaram ao seu povo alguns anos antes da invas�o espanhola. S�o vozes de
gente prestes a sucumbir a ferro e fogo; e o modo pelo qual sobreviria a matan�a era t�o
incompreens�vel para as v�timas que s� palavras misteriosas de vis�o e agouro poderiam
diz�-lo.
Por interm�dio do paj�, o piaga divino em transe, falam os deuses ou, mais
precisamente, fala um espectro que viu o mundo �s avessas: o sol enegrecido, a coruja
piando de dia, copas da floresta a se agitarem em plena calma, e a lua ardendo em fogo
e sangue.

Tu n�o viste nos c�us um negrume Toda a face do sol ofuscar; N�o ouviste a coruja, de
dia, Seus estrtdulos torva soltar?
Tu n�o viste dos bosques a coma Sem aragem � vergar e gemer, Nem a lua de fogo
entre nuvens, Qual em vestes de sangue, nascer?
Em A vis�o dos vencidos, Miguel Le�n-Portilla transcreve press�gios que, inicialmente
redigidos em n�uatle pelos alunos de um mission�rio, frei Bernardino de Sahag�n, s�
conheceriam vers�o em espanhol nos meados do s�culo XX gra�as � erudi��o de Angel
Maria Garibay.5
Impressiona, nesses cantos mexicas, a obsess�o do fogo que sobe em pir�mides e
colunas contra o sol a pino; e, em um dado momento, o encrespar-se e o referver da
lagoa que se move por si mesma, "sem vento algum", como "sem aragem" se dobram os
ramos no poema brasileiro. Tanto na fala do xam� tupi como nas predi��es astecas
surgem do mar figuras monstruosas para exterm�nio de na��es impotentes: "Manit�s j�
fugiram da Taba/ � desgra�a! � ru�na! � Tup�!".

184

Como � de todo improv�vel que se tenha dado qualquer intera��o entre os ent�o
ignorados manuscritos em n�uatle e os poemas americanos do nosso grande rom�ntico,
s� nos resta considerar o vasto campo de afinidades de tema e de imagin�rio que a
cola��o das passagens revela � primeira leitura.
O jovem Gon�alves Dias ainda estava pr�ximo, no tempo e no espa�o, do nativismo
exaltado latino-americano. Talvez a familiarida-de do maranhense com a luta entre
brasileiros e marinheiros que marcou nas prov�ncias do Norte os anos da Independ�ncia
explique a aura violenta e aterrada que rodeia aqueles versos de primeira mocida-de. Em
Alencar, ao contr�rio, a imagem do conflito retrocederia para �pocas remotas passando
por um decidido processo de atenua��o e sublima��o. Gon�alves Dias nasceu sob o
signo de tens�es locais anti-lusitanas, que v�o de 1822 aos Balaios. Alencar formou-se


no per�odo que vai da maioridade precoce de Pedro II (de que seu pai fora um h�bil
articulador) � concilia��o partid�ria dos anos 50. O nacionalismo de ambos,
aparentemente comum, merece uma an�lise diferencial, pois forjou-se em cadinhos
pol�ticos diversos.
Sondar uma poss�vel g�nese dos modos que assumiu entre n�s o nativismo rom�ntico
decerto concorre para entender as formas opostas de tratar o destino das popula��es
conquistadas. E junto com a perspectiva ideol�gica, fruindo embora de um apreci�vel
grau de liberda-depo�tica, v�o-se tra�ando os respectivos esquemas de representa��o. O
po�tico supera (conservando) o ideol�gico, n�o o suprime.
Quanto �s figuras do desastre iminente concebidas pelo primeiro G. Dias, creio que o
seu modelo se encontre nas vis�es do Apocalipse joanino. E no livro-fecho do Novo
Testamento que aparecem, cont�guos na mesma vis�o, o sol escurecido em pleno dia e a
lua tinta de sangue.6 Seria nessa matriz que iriam colher os sinais c�smicos das grandes
cat�strofes os discursos escatol�gicos proferidos ao longo da hist�ria do cristianismo. E
de supor que tamb�m a voz do poeta brasileiro culto, falando embora pela boca do paj�,
tenha recorrido ao imagin�rio b�blico para predizer o fim de um mundo. Em paralelo, os
vates astecas anunciaram o seu pr�prio exterm�nio narrando os prod�gios que viram
antes da chegada dos invasores. A afinidade que resulta da leitura dos poemas de
Gon�alves Dias e dos agouros mexicas, em termos de figura��o, adv�m de um
sentimento comum de terror expresso por uma rede de sinais apocal�pticos no sentido
amplo e trans


185


cultural de imagens prenunciadoras de um cataclismo a um s� tempo social e c�smico.
O fim de um povo � descrito como o fim do mundo. O poeta guardou em seus �ltimos
versos aquela vis�o tr�gica da conquista. No derradeiro canto que dedicou ao selvagem,
a epop�ia inacabada dos Timbirar, retornam os vatic�nios do piaga; desta vez chora-se a
sorte da Am�rica, a Am�rica infeliz, com a sua natureza profanada e as suas gentes
vencidas:

Chame-lhe progresso Quem do exterm�nio secular se ufana; Eu modesto cantor do
povo extinto Chorarei nos vast�ssimos sepulcros Que v�o do mar aos Andes, e do Prata
ao largo e doce mar das Amazonas.

O que resultou do encontro foi uma na��o "que tem por base/ Os frios ossos da na��o
senhora/ E por cimento a cinza profanada/ Dos mortos, amassada aos p�s de escravos".
Quanto ao colonizador portugu�s, aparece como velho tutor e avaro, cobi�oso da beleza
de sua pupila, a Am�rica. E voltam os signos da convuls�o dos elementos naturais,
agora decifrados como estragos produzidos pelas armas de fogo do invasor branco.

Ardia o pr�lio, Fervia o mar em fogo a meia-noite, Nuvem de espesso fumo condensado
Toldava astros e c�us; e o mar e os montes Acordavam rugindo aos sons troantes Da
ins�lita pelejai

(Canto III)
Em dire��o oposta � dos Primeiros cantos e dos Timbiras, o romance hist�rico de
Alencar voltou-se n�o para a destrui��o das tribos tupis, mas para a constru��o ideal de
uma nova nacionalidade: o Brasil que emerge do contexto colonial. Da�, a aten��o que
merecem os modos pelos quais o narrador trabalhou a assimetria das for�as em presen�a
na sua primeira s�ntese romanesca. E minha hip�tese que o mito sacrificial, latente na
vis�o alencariana dos vencidos, se tenha casado com o seu esquema feudalizante de
interpreta��o da nossa hist�ria. Dentro de um contexto marcado pelas rela��es de
senhor e ser


186

vo, no qual o dom�nio do primeiro e a dedica��o do segundo parecem conaturais,
assumem uma l�gica pr�pria as personagens de O guarani ea doce escravid�o que
Machado de Assis viu em Iracema. Nas linhas que seguem procuro testar a justeza e os
limites da hip�tese aplicada ao romance: e retomo, nessa ordem de interroga��es, um
texto preparado para uma obra coletiva sobre o movimento rom�ntico.7

UM CASTELO NO TR�PICO?.

O quadro de um Brasil-Col�nia criado � imagem e semelhan�a da comunidade feudal
europ�ia aparece quase em estado puro no Guarani de Alencar. Mas a intui��o do
romancista foi al�m dos preconceitos do int�rprete da nossa Hist�ria; e o quase fez
brechas t�o largas no corpo do romance que o castelo de dom Ant�nio de Mariz se
acabou em ru�nas antes que a narra��o chegasse ao termo. Comecemos, por�m, pela sua
edifica��o.
As p�ginas com que se abre O guarani descrevem a paisagem que cerca o solar dos


Mariz. Trata-se de um cen�rio soberbo cujos aspectos se comp�em de uma hierarquia de
senhor e servo. Para o Para�ba do Sul, que rola majestosamente no seu vasto leito, aflui

o Paquequer, "vassalo e tribut�rio que, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se
humildemente aos p�s do suserano [...] escravo submisso, sofre o l�tego do Senhor".
O processo europeu de domina��o vai assimilar os dados da natureza: desenhar� na
selva formas g�ticas e cl�ssicas fazendo o rio correr no meio de arcarias de verdura e de
capiteis formados por leques de palmeiras.
Como situar o homem em um cen�rio assim grande e pomposo? Alencar oscilaria entre
um romantismo selvagem, pr�-social, que define o homem como um simples comparsa
dos dramas majestosos dos elementos, e a sua perspectiva hist�rica, mais coerente e
ass�dua, pela qual a natureza brasileira � posta a servi�o do nobre conquistador. O solar
do fidalgo est� fincado solidamente na paisagem que de todos os lados o protege: e, se a
muralha n�o � feita por m�o humana, � porque se utilizou a rocha cortada a pique. A
emin�ncia da pedra
187


e o abismo em redor oferecem � casa de dom Ant�nio seguran�a digna de um castelo
medieval:
Assim, a casa era um verdadeiro solar de fidalgo portugu�s, menos as ameias e a
barbac�, as quais haviam sido substitu�das por essa muralha de rochedos inacess�veis,
que ofereciam uma defesa natural e uma resist�ncia inexpugn�vel [...] entre os troncos
dessas �rvores, uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetr�vel.
A t�nica posta no indevassado, no fechamento, na inteira defesa, amarra os elementos
naturais � esfera da pequena comunidade que reproduz na selva o modelo da vida
medieva. Na transposi��o, o n�cleo do complexo patriarcal europeu reponta com uma
tipicidade ainda mais angulosa e pura. A impon�ncia e solenidade do castelo acachapase
e descarna-se sob a forma da casa-grande edificada com a arquitetura simples e
grosseira que ainda apresentam as nossas primitivas habita��es; tinha cinco janelas de
frente, baixas, largas, quase quadradas.

O simples, o grosseiro, o quadrado da frontaria n�o d�o, por�m, acesso a um estilo
novo, r�stico, de moradia. Abra-se a pesada porta de jacarand� e penetre-se no interior
do solar: respirava um certo luxo que parecia imposs�vel existir nessa �poca em um
deserto, como era ent�o aquele s�tio. As paredes s�o apenas caiadas, mas a decora��o �
her�ldica com bras�es d'armas, escudos e elmos de prata desenhados sobre o portal,
al�m de bordados no largo reposteiro de damasco vermelho.
O gosto do severo, e at� do triste, j� permeia o que viria a ser o kitsch colonial-
rom�ntico: que aqui disp�e cadeiras de couro de alto espaldar, na sala de jantar, e, na
alcova, objetos ex�ticos, uma guitarra cigana, uma gar�a real empalhada segurando com

o bico o cortinado de tafet� azul e uma cole��o de curiosidades minerais de cores
mimosas e formas esquisitas. Com blocos her�ldicos e res�duos da selva tropical
mudados em curiosidades recheiam-se as descri��es do nosso primeiro romance
hist�rico rom�ntico.
Nesse ambiente e no cen�rio para ele pintado, movem-se as pessoas que arrancam do
feudo ou da selva os tra�os definidores. Na intera��o dos caracteres, o princ�pio que
tudo rege � o que faz a natureza subordinar-se � comunidade fidalga, de tal sorte que a
nobreza original da primeira saia confirmada pelo valor inerente � �ltima. A
transgress�o do pacto entre comunidade feudal e ambiente primitivo
188

seria, a rigor, a �nica fonte de tens�o capaz de gerar um diss�dio no interior da obra.
Dom Ant�nio de Mariz, um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro, e que jurara
fidelidade � Coroa lusa perante o altar da natureza, aparece como o instaurador do elo:
a conquista das terras americanas funda um modo de viver em que a viol�ncia do
dom�nio aparece resgatada pela coragem das primeiras lutas contra a selva, os �ndios e
os piratas. Em dom Ant�nio, como em sua filha dileta, Cec�lia, a s�ntese colonial-
rom�ntica se perfaz de modo cabal: ambos admiram intensamente Peri, ambos
respeitam os selvagens, ao passo que dona Lauriana e seu filho, Diogo, que constituem


a fidalguia extremada, ver�o com desd�m o bugre, atitude que acabar� por ser fatal ao
equil�brio da hist�ria. Essa diferencia��o interna � pe�a forte da ideologia ao mesmo
tempo conservadora e nativista de Alencar: o senhorio da terra, direito da nobreza
conquistadora, deve reconhecer nos �ndios aquelas virtudes naturais de altivez e
fidalguia que seriam comuns ao portugu�s e ao abor�gine. Assim, a viola��o do �ltimo
pelo primeiro que, de fato, instaurou o contacto entre ambos, parece ceder a um
compromisso de honra entre iguais. Por isso, quando o jovem dom Diogo de Mariz
mata inadvertidamente uma �ndia na selva, o pai o repreende com dureza, porque
assassinar uma mulher � a��o indigna do nome que vos dei.
A ofensa n�o passaria impune: a vingan�a dos aimor�s ser� uma das molas do desenlace
de O guarani. A honra constitui, como se sabe, a pedra de toque das rela��es pessoais
pr�-burguesas. Ela demanda todos os sacrif�cios, n�o excetuado o da vida, mas
incorpora, na sua din�mica, a fatalidade da vingan�a, desde que esta n�o se manche com
a menor indignidade. O olho aristocr�tico discerne, zpriori, os homens capazes de viver
naturalmente, uma exist�ncia honrada, e os outros vil�es, de quem se podem esperar
a��es ign�beis. O que marca o indianismo de Alencar � a inclus�o do selvagem nessa
esfera de nobreza, na qual cabem sentimento de devo��o absoluta (de Peri a Ceei) e
tamb�m de �dio sem margens (dos aimor�s aos brancos do solar).
Tal sistema de expectativas de honra s� n�o reproduz simplesmente o modelo da
conviv�ncia entre fidalgos europeus, porque n�o � uma rela��o entre iguais: quem o
instalou pretende subjugar o outro ao seu pr�prio mundo de domina��o. Mas, como essa
premissa

189


fica, em geral, subentendida, o que aparece em primeiro plano � a intersec��o de fidalgo
e selvagem que se cruzam na posse das virtudes propriamente senhoriais: coragem e
altivez, abnega��o e lealdade.
Os predicados n�o se esgotam na forma��o dos tipos. N�o sendo inertes, a sua a��o vai
operando ao longo da hist�ria: � dif�cil contar as vezes em que, do primeiro ao �ltimo
cap�tulo, a aud�cia e o devo-tamento de Peri salvam os Mariz de morte certa e atroz.
Seguem-no de perto no cometimento de atos her�icos dom Ant�nio e dom �lvaro de S�

que do primeiro tinha recebido todos os princ�pios daquela antiga lealdade
cavalheiresca do s�culo XV, os quais o velho fidalgo conservava como o melhor legado
de seus av�s.

Peri �, ao mesmo tempo: t�o nobre quanto os mais ilustres bar�es portugueses que
haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Aviz, o rei cavalheiro, e servo
espont�neo de Cec�lia, a quem chama Ui�ra, isto �, senhora. Tamb�m Iracema, no
romance hom�nimo, torna-se mulher de Martim Soares Moreno, mas a rela��o de sexos
importa a� menos que a de dom�nio: a �ndia n�o � senhora, mas serva do conquistador, e
morrer� por sua causa.
Se o solar dos Mariz fosse, realmente, o que Alencar projetou fazer dele, um castelo no
tr�pico, bastaria a vingan�a dos aimor�s para provocar no interior do sistema o
desequil�brio que o levar� � cat�strofe. Mas esse fator, previs�vel, n�o � o �nico a
compor a trama. J� no primeiro cap�tulo, o leitor � informado de que o fundo da casa,
inteiramente separado do resto da habita��o por uma cerca, era tomado por dois
grandes armaz�ns ou senzalas, que serviam de morada a aventureiros e acostados. Eo
que fazem esses acostados junto a dom Ant�nio? A primeira vista, recebiam dele abrigo
e prote��o, mas, logo adiante, est� dito que recambiavam o fator assegurando ao fidalgo

o direito de metade dos lucros auferidos nas explora��es e cor-rerias pelo sert�o. O
pacto com mercen�rios faz entrar uma realidade nova: o ganho, o dinheiro; instituto
alheio � rede feudal de valores. A brecha, se bem pensada, teria ensinado a Alencar que
a Col�nia n�o repetia a Idade M�dia, mas abra�ava uma sociedade j� aberta, em
intera��o freq�ente com o mundo:
Quando chegava a �poca da venda dos produtos, que era sempre anterior � sa�da da
armada de Lisboa, metade da banda dos aventureiros ia � cidade do Rio de Janeiro,
apurava o ganho, fazia a troca dos objetos
necess�rios, e na volta prestava suas contas. Uma parte dos lucros pertencia ao
fidalgo, como chefe; a outra era distribu�da igualmente pelos quarenta aventureiros, que
recebiam em dinheiro ou em objetos de consumo.
O modelo da comunidade age, por�m, com mais for�a no esp�rito rom�ntico do que a
estrutura social que ele soube, afinal, apanhar com vigor.

Assim vivia, quase no meio do sert�o, desconhecida e ignorada, essa pequena
comunh�o de homens, governando-se com as suas leis, os seus usos e costumes...


Na verdade, os usos e os costumes do mercen�rio n�o podem ser os do castel�o: n�o
corre entre uns e outros aquela faixa de valores que enla�a o nobre e o ind�gena. Pela
porta do acordo feito com um homem da casta de Loredano, dom Ant�nio permitiu que
invadisse o seu espa�o hier�tico a cupidez e, com ela, a lux�ria e a trai��o.
Loredano, o filho de um pescador, sa�do das lagunas de Veneza, armar� ciladas mais
graves que os aimor�s: o que move a trama do vil�o n�o � a honra ferida, mas a auri
sacra fames e o desejo obsceno de possuir Cec�lia e torn�-la barreg� de aventureiro.
Boa parte das perip�cias, que fazem de O guarani um romance folhetinesco cheio de
ziguezagues no tempo, deve-se a esse elemento perturbador que maquina na sombra a
ru�na e a abje��o dos Mariz. Vista no conjunto, entretanto, a a��o dos mercen�rios antes
leva ao exerc�cio do romanesco (o perigo do Mal, encarnado com vivas cores por um
frade sa-cr�lego) que a uma altera��o substancial no sistema. Que rui materialmente,
mas permanece intacto nos seus valores mais �ntimos. Dom Ant�nio e a fam�lia n�o
fogem: resistem her�icos e, no momento extremo, fazem explodir o solar, atingindo
tamb�m os aimor�s; Cec�lia parte escoltada por Peri, a quem o batismo, ministrado no
�ltimo instante, tornaria digno de salvar sua senhora. Os mercen�rios importam como
fator de intriga, s�o geradores de suspense, �ndices de um Brasil aventuroso (nem
est�vel nem feudal) que acena com ouro e prata, as legend�rias minas de Rob�rio Dias...
mas, na economia total da obra, significam principalmente o filtro que revela, pelo
contraste do escuro sobre o claro, a pureza de Cec�lia, o despojamento de �lvaro de S�,
a nobreza selvagem de Peri, a generosidade inata de dom Ant�nio de Mariz.

191


As p�ginas finais descrevem a fuga de Cec�lia e Peri pela floresta e pelo rio. Cancelam-
se aqui os limites hist�ricos, desfazem-se os contornos da vida em sociedade; e a
narra��o volta-se para as fontes arca-nas do romance hist�rico: a lenda. O homem e a
natureza e, entre ambos, a natureza mais humana, a humanidade mais natural, a mulher.
O homem deve livrar a mulher da morte pela media��o da natureza protetora. E s� no
desfecho, em que a vida reflui para a selva salvadora, o romance perfaz a sua ambi��o
de recortar uma comunidade cerrada, natural. E como se o cronista, leitor de Walter
Scott, pusesse a Hist�ria entre par�nteses e imergisse em uma paisagem sem tempo. O
passado, subst�ncia da cr�nica, perde celeremente todo peso:
Ela mesma n�o saberia explicar as emo��es que sentia; sua alma inocente e ignorante
tinha-se iluminado com uma s�bita revela��o; novos horizontes se abriam aos sonhos
castos do seu pensamento. Volvendo ao passado admirava-se de sua exist�ncia, como
os olhos se deslumbram com a claridade depois de um sono profundo; n�o se
reconhecia na imagem do que fora outrora, na menina isenta e travessa.
Na solid�o da mata, na canoa que resvala sobre a �gua lisa do Para�ba, a narrativa se
arma sinuosamente para as formas do id�lio. A rela��o fundamental homem-mulher
franqueia, nesse momento de abertura � natureza, o intervalo de ra�a e de status que se
mantivera constante ao longo da hist�ria.
No meio de homens civilizados, [Peri] era um �ndio ignorante, nascido de uma ra�a
b�rbara, a quem a civiliza��o repelia e marcava o lugar de cativo. Embora para Cec�lia e
dom Ant�nio fosse um amigo, era apenas um escravo.
Aqui, por�m, todas as distin��es desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de
sua m�e, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando
pelo direito da for�a e da coragem.
Para Cec�lia, a presen�a desse homem, novo e inteiro, no seu estado natural, tem ares de
revela��o: ' 'Um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transforma��o
misteriosa da mulher".
O di�logo da senhora com o escravo cede a inflex�es confiantes e diretas de conversa
entre irm� e irm�o, que mal escondem outros tons, mais ardentes. E situa��es novas
ditam a Peri relatos em forma de mitos. O primeiro � alegoria amorosa, posto que
sublimada na inten��o do �ndio:

192

� Escuta, disse ele. Os velhos da tribo ouviram de seus pais que a alma do homem,
quando sai do corpo, se esconde numa flor, e fica ali at� que a ave do c�u venha busc�la
e lev�-la bem longe. � por isso que tu v�s o guanumbi, saltando de flor em flor,
beijando uma, beijando outra, e depois batendo as asas e fugindo.
� Peri n�o leva a sua alma no corpo, deixa-a nesta flor. Tu n�o ficas s�.
A fantasia do selvagem responde o projeto declarado de Alencar, a po�tica do amor
rom�ntico:
Qual � a menina que n�o consulta o or�culo de um malmequer, e que n�o v� uma

borboleta negra a sibila fat�dica que lhe anuncia a perda da mais bela esperan�a? Como
a humanidade na inf�ncia o cora��o nos primeiros anos tem tamb�m a sua mitologia;
mitologia mais graciosa e po�tica do que as cria��es da Gr�cia; o amor � o seu Olimpo
povoado de deusas ou deuses de uma beleza celeste ou imortal.
A situa��o final � epifania do grande mito do dil�vio: apresenta o evento primitivo de
sorte a reexpor a sua fun��o exemplar. O cata-clismo das chuvas, o perecimento de
todos os homens, a palmeira que sobrenadou, a salva��o de Tamandar� e de sua mulher
reiteram-se no epis�dio que fecha O guarani. Na hora do perigo supremo, o poder de
salvar vem do alto: o Senhor falava de noite a Tamandar�, e de dia ele ensinava aos
filhos da tribo o que aprendera no c�u. No romance, a for�a emana do interior do her�i:
Peri inspira-se na sua devo��o � mulher.
Do ponto de vista da estrutura do romance, a narra��o do novo dil�vio tem papel
decisivo � propicia o gesto do amor e abre a hist�ria para um espa�o indeterminado,
como os do pr�prio mito redivivo:
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte...
A oscila��o de Alencar, proposta no come�o destas linhas, entre a sua perspectiva
hist�rica e um romantismo selvagem, pr�-social, resolve-se, enfim, pelo segundo p�lo: o
primitivo natural � ainda mais remoto, mais puro, logo mais rom�ntico que a simples
evoca��o dos tempos antigos.


7

A ESCRAVID�O ENTRE DOIS LIBERALISMOS
It was freedom to destroy freedom. W. E. B. Du Bois
Senhores, se isso fosse crime, seria um crime geral no Brasil; mas eu sustento que,
quando em uma na��o todos os partidos pol�ticos ocupam o poder, quando todos os
seus homens pol�ticos t�m sido chamados a exerc�-lo, e todos s�o concordes em uma
conduta, � preciso que essa conduta seja apoiada em raz�es muito fortes; imposs�vel
que ela seja um crime, e haveria temeridade em cham�-la um erro.

Eus�bio de Queir�s, Fala � C�mara em 1852
Uma das conquistas te�ricas do marxismo foi ter descoberto que � nas pr�ticas sociais e
culturais, fundamente enraizadas no tempo e no espa�o, que se formam as ideologias e
as express�es simb�licas em geral.
O n�cleo tem�tico de A ideologia alem�, que Marx e Engels escreveram em 1846,
exp�e a rela��o �ntima que as representa��es de uma sociedade mant�m com a sua
realidade efetiva. As pr�ticas, tomando-se a palavra no seu sentido mais lato, s�o o
fermento das id�ias na medida em que estas visam a racionalizar aspira��es difusas nos
seus produtores e veiculadores. A ideologia comp�e retoricamen-te (isto �, em registros
de persuas�o) certas motiva��es particulares

194

e as d� como necessidades gerais. Nos seus discursos, o interesse e a vontade
exprimem-se, ou traem-se, sob a forma de algum princ�pio abstrato ou alguma raz�o de
for�a maior.
A cr�tica hist�rica do s�culo xx herdou esse olhar de suspeita.
Dizia Andrade Figueira, deputado escravista, ao combater na C�mara a proposta da Lei
do Ventre Livre:
"Serei hoje a voz dos interesses gerais, agr�colas e comerciais, diante do movimento que
a propaganda abolicionista pretende imprimir � emancipa��o da escravatura no Brasil.
Trata-se da conserva��o das for�as vivas que existem no pa�s e constituem
exclusivamente a sua riqueza. E quest�o de damno vitando".1
Para entender a articula��o de ideologia liberal com pr�tica escravista � preciso refletir
sobre os modos de pensar dominantes da classe pol�tica brasileira que se imp�s nos anos
da Independ�ncia e trabalhou pela consolida��o do novo Imp�rio entre 1831 e 1860
aproximadamente.
O que atuou eficazmente em todo esse per�odo de constru��o do Brasil como Estado
aut�nomo foi um ide�rio de fundo conservador; no caso, um complexo de normas
jur�dico-pol�ticas capazes de garantir a propriedade fundi�ria e escrava at� o seu limite
poss�vel.
N�o � finalidade destas linhas retomar o quadro hist�rico do sistema agroexportador que
caracterizou a sociedade brasileira do s�culo xrx. Obras not�veis j� o fizeram com
riqueza de dados e abona��es textuais. Sup�e-se aqui a sua leitura, n�o importando,


antes servindo de est�mulo, a diversidade das posi��es te�ricas que as enformam.2
O objetivo deste ensaio � desenhar o perfil ideol�gico que correspondeu, efetivamente,
ao regime de cativeiro a partir do momento em que o Brasil passou a integrar o mercado
livre.

UM FALSO IMPASSE: OU ESCRAVISMO OU LIBERALISMO

O par, formalmente dissonante, escravismo-liberalismo, foi, no caso brasileiro pelo
menos, apenas um paradoxo verbal. O seu cons�rcio s� se poria como contradi��o real
se se atribu�sse ao segundo termo, liberalismo, um conte�do pleno e concreto,
equivalente � ideologia burguesa do trabalho livre que se afirmou ao longo da revolu��o
industrial europ�ia.

195


Ora, esse liberalismo ativo e desenvolto simplesmente n�o existiu, enquanto ideologia
dominante, no per�odo que se segue � Independ�ncia e vai at� os anos centrais do
Segundo Reinado.
A antinomia tantas vezes acusada, e o travo de nonsense que dela poderia nascer (mas
como � poss�vel um liberalismo escravocrata?), merecem um tratamento rigoroso que os
desfa�a.
Para entender o car�ter pr�prio da ideologia vitoriosa nos centros de decis�o do Brasil
p�s-colonial, conv�m examinar a sua evolu��o interna que acompanha o ascenso dos
grupos escravistas. Formado ao longo das crises da Reg�ncia, o n�cleo conservador
definiu-se, pela voz dos seus l�deres, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Ara�jo Lima e
Hon�rio Hermeto, como o Partido da Ordem, no ano cr�tico de 1837 e logo ap�s a
ren�ncia de Feij�. A sua hist�ria � a de uma alian�a estrat�gica, flex�vel mas tenaz, entre
as oligarquias mais antigas do a��car nordestino e as mais novas do caf� no vale do
Para�ba, as firmas exportadoras, os traficantes negreiros, os parlamentares que lhes
davam cobertura, e o bra�o militar chamado sucessivas vezes, nos anos de 1830 e 40,
para debelar surtos de fac��es que espocavam nas prov�ncias. Ao radicalismo impotente
desses grupos locais op�s-se, desde o come�o, o chamado liberalismo moderado, que
exerceu, de fato, o poder tanto na fase regencial quanto nos anos iniciais do Segundo
Imp�rio. As divis�es internas n�o tocaram sua unidade profunda na hora da a��o.
O tr�fico, mais ativo do que nunca, trouxe aos engenhos e �s fazendas cerca de 700 mil
africanos entre 1830 e 1850. As autoridades, apesar de eventuais declara��es em
contr�rio, faziam vista grossa � pirataria que facultava o transporte de carne humana,
formalmente ilegal desde o acordo com a Inglaterra em 1826 e a lei regencial de 7 de
novembro de 1831. A �ltima qualificava como livres os africanos aqui aportados dessa
data em diante... Lembro a "Fala do Negreiro", personagem da com�dia de Martins
Pena, Os dous ou o ingl�s ma-quinista: ' 'H� por a� al�m uma costa t�o larga e algumas
autoridades t�o condescendentes!
Est�vamos em 1842.
A observa��o do comedi�grafo rima perfeitamente com os dados levantados por Robert
Conrad para aqueles mesmos anos:

196

Os juizes dos distritos em que os escravos eram desembarcados passavam a receber
comiss�es regulares, referidas como sendo fixadas em 10,8% do valor de cada africano
desembarcado. Os escravos eram trocados diretamente por sacas de caf� nas praias,
reduzindo assim a f�rmula econ�mica � "o caf� � o negro" � a uma realidade.3
Conrad ilustra com numerosos fatos a coniv�ncia dos governos regencial e imperial a
partir de 1837: "No regime de Vasconcelos o tr�fico escravista se desenvolve com uma
nova vitalidade que prosseguiu por aproximadamente 14 anos, sob regimes
conservadores e liberais, apoiado e sustentado pelas pr�prias autoridades cuja tarefa era
fazer cessar o tr�fico".4


Para conhecer o ponto de vista do outro lado (o governo ingl�s), o melhor testemunho �

o de Gladstone, primeiro-ministro, que, falando � C�mara dos Comuns em 1850,
desabafava: "Temos um tratado com o Brasil, tratado que esse pa�s dia a dia quebra, h�
vinte anos. Forcejamos por assegurar a liberdade dos africanos livres; trabalhamos at�
conseguir que os brasileiros declarassem criminosa a importa��o de escravos. Esse
acordo � incessantemente transgredido".5 O tratado anglo-brasileiro de 1826 j�
arrancara, de resto, protestos nacionalistas desde a sess�o da C�mara de 1827, em que se
prop�s nada menos que a sua impugna��o. O representante de Goi�s, brigadeiro Cunha
Matos, aplaudido por v�rios colegas, deplorou que os brasileiros tivessem sido '
'for�ados, obrigados, submetidos e compelidos pelo governo brit�nico a assinar uma
conven��o onerosa e degradante sobre assuntos internos, dom�sticos e puramente
nacionais, da compet�ncia exclusiva do livre e soberano Legislativo e do augusto
, chefe da na��o brasileira' '.6 Clemente Pereira, cujas antigas bandeiras
ma��nicas e ilustradas eram not�rias, e que fora um dos pilares da Independ�ncia,
tamb�m se pronunciou contra a inger�ncia brit�nica no controle dos navios negreiros;
medida que verberou como ' 'o
f ataque mais direto que se poderia fazer � Constitui��o, � dignidade
nacional, � honra e aos direitos individuais dos cidad�os brasileiros".7 Para toda a
ret�rica desse per�odo vale a frase de Jos� de Alencar: ' 'ser liberal significava ser
brasileiro" (Cartas a Erasmo, vi).
1 A argumenta��o conseguiu, de fato, ser nacionalista e bravamente
fiel aos princ�pios do livre com�rcio. Em 1835, Bernardo Pereira de Vasconcelos, ainda
moderado, proporia emenda revogando a lei anr


197


tiescravista de 1831: a sua atitude recebeu apoio maci�o dos deputados � Assembl�ia
Provincial de Minas Gerais.
A defesa patri�tica do tr�fico n�o era, ali�s, apan�gio de parlamentares mineiros. Na
C�mara de Paris, onde � razo�vel supor que o liberalismo estivesse em casa sob a batuta
de Lu�s Filipe, a maioria dos deputados vetou o acordo que Guizot fizera, em 1841, com
a Inglaterra permitindo que fiscais da Marinha brit�nica inspecionassem navios
franceses suspeitos de carregar negros.8
Enrichessez-vouz! Entre os hesitantes, ainda �quela altura, estava Alexis de
Tocqueville.9 A defesa da integridade nacional st sobrepunha aos escr�pulos ent�o ditos
filantr�picos e, afinal, resguardava os tumbeiros.
O discurso dominante de 1836 a 1850 foi, entre n�s, uma variante pragm�tica de certas
posi��es j� assumidas pelos chamados patriotas ou liberais hist�ricos, que herdaram os
frutos do Sete de Setembro. E por que hist�ricos? Porque foram, sem d�vida, as lutas da
burguesia agroexportadora que tinham cortado os privil�gios da Metr�pole gra�as �
abertura dos portos em 1808; esses mesmos patriotas tinham garantido, para si e para a
sua classe, as liberdades de produzir, mercar e representar-se na cena pol�tica. Da�, o
car�ter funcional e t�pico do seu liberalismo. Quanto aos conservadores, assim autobatizados
de 1836 em diante, apenas secundaram os moderados, a cujo gr�mio at� ent�o
pertenciam, sucedendo-os nas pr�ticas do poder e baixando o tom da sua ret�rica.
Mantendo sob controle terras, caf� e escravos, bastava-lhes o registro seco, prosaico, �s
vezes duro, da linguagem administrativa. � o estilo da efici�ncia: o estilo saquarema de
Eus�bio, Itabora�, Uruguai, Paran�.
Com�rcio livre, primeira e principal bandeira dos colonos patriotas, n�o significava,
necessariamente, e n�o foi, efetivamente, sin�nimo de trabalho livre. O liberalismo
econ�mico n�o produz sponte sua, a liberdade social e pol�tica.
O com�rcio franqueado �s na��es amigas, que o t�rmino do exclusivo acarretou, n�o
surtiu mudan�as na composi��o da for�a de trabalho: esta continuava escrava (n�o por
in�rcia, mas pela din�mica mesma da economia agroexportadora), ao passo que a nova
pr�tica mercantil p�s-colonial se honrava com o nome de liberal. Da� resulta a
conjun��o peculiar ao sistema econ�mico-pol�tico brasileiro, e n�o s� brasileiro, durante
a primeira metade do s�culo XIX: liberalismo

198
mais escravismo. A boa consci�ncia dos promotores do nosso laissez-faire se bastava
com as franquezas do mercado.
Nesse bloco hist�rico n�o � de estranhar absolutamente que a supress�o do tr�fico
demorasse, como demorou, 25 anos para efetuar-se ao arrepio de tratados que
expressamente o proibiam. Quanto � aboli��o total, s� viria a ser decretada em 1888,
isto �, s� quando a imigra��o do trabalhador europeu j� se fizera um processo vigoroso
em S�o Paulo e nas prov�ncias do Sul.
Volto � compreens�o contextual, n�o abstrata, do termo liberalismo. Enquanto op��o


cultural, de corte europeu, afim � luta burguesa na Inglaterra e na Fran�a, o liberalismo
pol�tico se abriria, lentamente, ali�s, para um projeto de cidadania ampliada. Essa,
por�m, n�o era a situa��o brasileira onde a Independ�ncia n�o chegou a ser um conflito
interno de classes. O confronto aqui se deu, fundamentalmente, entre os interesses dos
colonos e os projetos recolonizado-res de Portugal, na verdade j� reduzido � quase-
impot�ncia depois da abertura dos portos em 1808. Os nossos patriotas ilustrados
cumpriram a miss�o de cortar o fio umbilical tamb�m na esfera jur�dico-pol�tica. Sob a
hegemonia dos moderados e, depois, dos regressistas, o liberalismo p�s-colonial deitou
ra�zes nas pr�ticas reprodutoras e autodefensivas daqueles mesmos colonos, enfim
emancipados. O seu movimento conservou as franquias obtidas na fase inicial,
antilusita-na, do processo, mas jamais pretendeu estend�-las ou reparti-las
generosamente com os grupos subalternos. O nosso liberalismo esteve assim apenas �
altura do nosso contexto.
' 'Liberalismo'', diz Raymundo Faoro,' 'n�o significava democracia, termos que depois se
iriam dissociar, em linhas claras e, em certas correntes, hostis."10
A pergunta de fundo � ent�o: o que p�de, estruturalmente, denotar o nome liberal,
quando usado pela classe propriet�ria no per�odo de forma��o do novo Estado?
Uma an�lise sem�ntico-hist�rica aponta para quatro significados do termo, os quais v�m
isolados ou variamente combinados:
1) liberal, para a nossa classe dominante at� os meados do s�culo XIX, p�de
significar conservador das liberdades, conquistadas em 1808, de produzir, vender e
comprar.
2) Liberal p�de, ent�o, significar conservador da liberdade, alcan�ada em
199


1822, de representar-se politicamente: ou, em outros termos, ter o direito de eleger e de
ser eleito na categoria de cidad�o qualificado.
3) Liberalp�de, ent�o, significar conservador da liberdade (recebida como instituto
colonial e relan�ada pela expans�o agr�cola) de submeter o trabalhador escravo
mediante coa��o jur�dica.
4) Liberal p�de, enfim, significar capaz de adquirir novas terras em regime de livre
concorr�ncia, ajustando assim o estatuto fundi�rio da Col�nia ao esp�rito capitalista da
Lei de Terras de 1850.
A classe fundadora do Imp�rio do Brasil consolidava, portanto, as suas prerrogativas
econ�micas e pol�ticas. Econ�micas: com�rcio, produ��o escravista, compra de terra.
Pol�ticas: elei��es indiretas e cen-sit�rias. Umas e outras davam um conte�do concreto
ao seu liberalismo. Que se tornou, por extens�o e diferencia��o grupai, o fundo mesmo
do ide�rio corrente nos anos 40 e 50.
A historiografia da Reg�ncia j� contou, por mi�do, a passagem do partido moderado, no
qual se encontravam todos, Evaristo e Feij�, Vasconcelos e Hon�rio Hermeto, para o
Regresso (termo adotado a partir de 1836), quando os �ltimos alijaram e substitu�ram os
primeiros, a pretexto de impor a ordem interna amea�ada pelas rebeli�es provinciais. E

o significado pontual da arquicitada profiss�o de f� de Vasconcelos, mentor da rea��o
que vai marcar o in�cio do Segundo Reinado:
Fui liberal, ent�o a liberdade era nova no pa�s, estava nas aspira��es de todos, mas n�o
nas leis, nas id�ias pr�ticas; o poder era tudo; fui liberal. Hoje, por�m, � diverso o
aspecto da sociedade: os princ�pios democr�ticos tudo ganharam e muito
comprometeram: a sociedade, que ent�o corria o risco pelo poder, corre agora o risco
pela desorganiza��o e pela anarquia. Como ent�o quis, quero hoje servi-la, quero salv�la,
e por isso sou regressista. N�o sou tr�nsfiiga, n�o abandono a causa que defendi no
dia de seus perigos, da sua fraqueza, deixo-a no dia em que t�o seguro � o seu triunfo
que at� o excesso a compromete. u
Em outras palavras, o discurso quer dizer: a pol�tica de centraliza��o � o ant�doto
necess�rio a uma divis�o do Pa�s, que, por seu turno (e a� vem a raz�o calada), seria
fatal ao novo centro econ�mico val-paraibano.
O percurso de Vasconcelos e o �xito pol�tico do Regresso fazem pensar que a
modera��o dos liberais de 1831 acabaria, cedo ou tarde,
assumindo a sua verdadeira face, conservadora. Os traficantes foram poupados; e os
projetos iluministas, raros e esparsos, de aboli��o gradual foram reduzidos ao sil�ncio.
Deu-se ao Ex�rcito o papel de zelar pela unidade nacional contra as tend�ncias
centr�fugas dos cl�s provinciais. Vencidos os �ltimos Farrapos, estava salva a
sociedade: no caso, o Estado aglutinador de latifundi�rios, seus representantes, tumbeiros
e burocracia. A ret�rica liberal trabalha seus discursos em torno de uma figura
redutora por excel�ncia, a sin�doque, pela qual o todo � nomeado em lugar da parte,


impl�cita.
Hermes Lima, no pref�cio que escreveu para a Queda do Imp�rio de Rui Barbosa,
entende o Regresso como um mecanismo pol�tico de estrat�gia dos grupos que se
destacaram do bloco liberal-moderado no exato momento (1835-7) em que a expans�o
do caf� no vale do Para�ba demandava maior ingresso de africanos. A propriedade
escrava e, no seu bojo, o tr�fico, passavam a ser, efetivamente, o eixo de uma economia
que se montara na esteira da libera��o dos portos e das franquias comerciais. // was
freedom to destroy freedom, na frase lapidar de Du Bois.
Nessa altura, os cafeicultores almejavam um Estado forte, uma administra��o coesa e
prestante ou, nos seus repetidos termos, precisavam manter, a todo custo, a unidade
nacional. Foi a bandeira do Regresso. O padre Feij�, renunciando ao cargo de regente
em meio a dificuldades extremas, fizera perigar o cumprimento desse des�gnio, na
medida em que supunha ser inevit�vel a tend�ncia separatista de algumas prov�ncias
mais turbulentas como Pernambuco e o Rio Grande do Sul. Somando-se a essa atitude
de desist�ncia de sua luta, outrora t�o ferrenha, contra as fac��es locais, teria havido no
padre paulista um maior empenho de honrar os acordos antitr�fico feitos com a
Inglaterra e sabotados por uma legi�o de coniventes. Em contrapartida, a ala saquarema,
que toma em 1837 o lugar de Feij�, reacende manu militari o ideal de um Imp�rio
unido, ao mesmo tempo que vai transigindo largamente com o com�rcio negreiro, o que
insufla alento �s bases do novo complexo agroexportador.
Tudo se apresenta imbricado: o centralismo se diz nacional t vale-se do Ex�rcito, que
toma vulto no per�odo; o tr�fico � util�ssimo � expans�o do caf�; enfim, o Partido da
Ordem abra�a todas essas bandeiras que, plantadas no centro do poder, a Corte
fluminense, ir�o manter-se firmes at�, pelo menos, os fins dos anos 50. O Partido Li


201


beral, em grande parte desertado, ora alterna com o Conservador, ora com este se
combina, mas, em ambos os casos, os discursos oficiais se alinham com os
compromissos olig�rquicos, sua moeda corrente. Joaquim Nabuco acertou em cheio ao
historiar a situa��o: a rea��o conservadora ' 'pretendia representar a verdadeira tradi��o
liberal do pa�s".12 E Oct�vio Tarq��nio de Sousa tamb�m advertiu os Mames entre Os
moderados e os regressistas: ' 'Bem consideradas, por�m, as coisas, nenhuma
diverg�ncia substancial os dividia: o 'regresso' de Vasconcelos n�o contradizia a
'modera��o' de Evaristo: era apenas uma evolu��o, uma transforma��o; o 'regresso'
consolidava por assim dizer a obra da 'modera��o' ",13 O tom apolog�tico n�o infirma a
justeza da an�lise...
Nada haveria, a rigor, de exc�ntrico, deslocado ou posti�o na linguagem daqueles
pol�ticos brasileiros que, usando o termo liberalismo em um sentido datado, pro domo
sua, legitimaram o cativeiro por um tempo t�o longo e s� o restringiram sob press�o
internacional. Uma proposta moderna e democr�tica sustentada pelas oligarquias rurais
� que teria sido, nos meados do s�culo xix, uma id�ia extempor�nea. Mas esse projeto
n�o se concebeu nem aqui, nem em Cuba, nem nas Antilhas inglesas e francesas que
viviam o mesmo regime de plantation, nem no reino do algod�o do Velho Sul
americano. Em todas essas regi�es, pol�ticos defensores do liberalismo econ�mico
ortodoxo velaram pela manuten��o do trabalho escravo.
Nem houve propriamente fic��es jur�dicas, � europ�ia, ocultando o latif�ndio, o tr�fico,
a escravid�o. Houve, sim, um uso bastante eficaz das institui��es parlamentares pelos
senhores de engenho e das fazendas. As C�maras serviam de instrumento � classe
dominante que, sem os canais jur�dicos estabelecidos, n�o controlariam a administra��o
de um t�o vasto pa�s. ' 'M�quina admir�vel'', assim chamou o nosso regime parlamentar
e mon�rquico um paladino da rea��o conservadora. u
No fim do Primeiro Imp�rio a oposi��o a d. Pedro i fora comandada por homens fi�is ao
parlamentarismo ingl�s como Bernardo Pereira de Vasconcelos que, ao mesmo tempo
(1829), escandalizava o reverendo Robert Walsh por sua atitude escravista: "Entre as
fraquezas de Vasconcelos est� advogar a causa do tr�fico de escravos; e o tratado com a
Inglaterra para sua aboli��o total em breve, e a nossa disposi��o em faz�-lo cumprir se
contam entre as suas reservas a nosso

202

respeito".15 Um ressentimento amargo contra os ingleses fiscais do oceano, e que lembra
a anglofobia dos confederados sulinos, n�o era peculiar a Vasconcelos apenas.
Mas nada turvava a admira��o pelos discursos da C�mara dos Comuns... Os gabinetes e
os Conselhos de Estado que congelaram, por largos anos, as id�ias de emancipa��o
(mesmo quando bafejadas pelo Imperador, como ocorreu nas Falas do Trono de 67 e
68) reuniam homens para os quais os chamados princ�pios liberais s� adquiriam um
sentido forte, e at� concitante e pol�mico, quando aplicados ao j� cl�ssico debate entre
constitucionais e absolutistas. A discuss�o n�o era acad�mica nem bizantina. A luta,


que fora crucial na Europa p�s-napole�nica at� a Revolu��o de 1830, encontrou aqui
variantes nas arremetidas dos patriotas contra o jugo da metr�pole e, pouco depois,
contra os �mpetos voluntariosos de Pedro I. O liberalismo � inglesa se fazia necess�rio
para que a classe economicamente dominante assumisse o seu papel de grupo dirigente.
Esse o alcance e limite do nosso liberalismo olig�rquico.
Analisando a conduta autodefensiva dos liberais, comentava Saint-Hilaire no ano em
que se fazia a Independ�ncia: "Mas s�o estes homens que, no Brasil, foram os cabe�as
da Revolu��o: n�o cuidavam sen�o em diminuir o poder do Rei, aumentando o pr�prio.
N�o pensavam, de modo algum, nas classes inferiores".16
O arguto observador poderia ter dito, utilizando o jarg�o da �poca: "Esses homens eram
liberais constitucionais".
Parlamentares ardidos em face da Coroa, antidemocratas confessos perante a vasta
popula��o escrava ou pobre. Nem rei, nem plebe: n�s.
O contrato social fechado e excludente, prop�cio aos homens que tinham concorrido
paira desfazer o pacto colonial, verteu-se em um documento solene. Foi a Constitui��o
de 1824. A carta, apesar de outorgada por um gesto autorit�rio de Pedro I, satisfez �
maioria dos novos pact�rios que detinham, de fato, o poder decis�rio da recente na��o.
Era uma alian�a entre os direitos dos beati possidentes e os privil�gios do monarca. O
liberalismo restrito do seu texto n�o destoava das cautelas da Carta restauradora
francesa que, em 1814, acolhera entre os seus mecanismos de governo a figura do Poder
Moderador teorizada por Benjamin Constant. As liberdades fru�das pelos citoyens
(cidad�os-propriet�rios) exorcizavam o fantasma de uma

203


igualdade tida por abstrata e an�rquica, e que, se realizada, somaria imprudentemente
possuidores e n�o-possuidores. E por que esse liberalismo a meias, corrente na Fran�a
cartista, n�o se ajustaria como uma luva � mais que ex�gua classe votante do Brasil-
Imp�rio? Por acaso as propostas levadas � Assembl�ia Constituinte em 1823 tinham ido
al�m da prote��o � agricultura, ao livre-c�mbio, ao com�rcio franco? Deixara-se intacta
a institui��o do trabalho for�ado. A Representa��o de Jos� Bonif�cio n�o chegou a ser
mat�ria de debate.
Promulgada a Lei Maior, logo engendrou-se o mito da sua into-cabilidade, t�nica dos
discursos da oligarquia at� o fim do regime. Os deputados conservadores preferiam,
ainda em 1864, chamar-se, pura e simplesmente, constitucionais. Assim fazendo,
abriram uma brecha para os liberais se apoderarem de um r�tulo que ficara vago e os
tentava: na mesma ocasi�o criou-se um grupo liberal-conservador...
A Carta virou um pend�o sacralizado pela aura dos tempos her�icos da Independ�ncia.
Por tr�s do seu pesado biombo auriverde, onde os mesmos fios de seda bordavam ramos
de caf� e de fumo e o escudo din�stico dos Bragan�a, aninhavam-se o voto censit�rio, a
elei��o indireta e o direito inviol�vel � propriedade escrava.
A t�tica centralizante da �ltima Reg�ncia, que a precoce maiori-dade de Pedro II viria
consumar, foi mais uma garantia para a burguesia fundi�ria; o fato de ter sido apressada
por alguns militantes da fac��o liberal n�o impediu que seus frutos fossem depressa
colhidos e longamente saboreados pelos saquaremas. A partir de 1843 a C�mara �
invadida por uma "cerrada falange reacion�ria".17
Rebatendo para as condi��es europ�ias: o regresso, difuso ou institu�do, foi tamb�m o
protagonista ideol�gico entre o Congresso de Viena e a Revolu��o de 48. A s�ntese
cortante de Eric Hobsbawm diz bem a situa��o: "O liberalismo e a democracia pareciam
mais advers�rios que aliados; o tr�plice slogan da Revolu��o Francesa � liberdade,
igualdade e fraternidade � expressava melhor uma contradi��o do que uma
combina��o".18
L�, uma pol�tica utilit�ria amarrou-se estruturalmente � espolia��o sem nome do novo
proletariado. Aqui, o nosso ide�rio constitucional se nutriu do suor e do sangue cativo.
C� e l� os poderes cunharam a moeda f�cil do nome liberal.
De qualquer modo, a especificidade reponta: o sistema de plan-tagem retardou ou fez
involuir ideais ou surtos de car�ter progressis


ta. No come�o do Segundo Reinado, a gera��o constitucional, abrigada � sombra do
caf� valparaibano, resistiu ao governo ingl�s em tudo o que dissesse respeito ao tr�fico.
Conhece-se a posi��o dr�stica de Vasconcelos que n�o mudou at� a sua morte em 1850.
Em 1843, o lobby dos escravistas espalhados pelas v�rias prov�ncias brasileiras parecia
a lord Brougham t�o eficiente quanto c�nico:
Em primeiro lugar, temos a declara��o expressa de um homem de bem do Senado do
Brasil, de que a lei que aboliu o tr�fico de escravos � notoriamente letra morta, tendo


ca�do em desuso. Em segundo lugar, temos uma peti��o ou memorial da Assembl�ia
Provincial da Bahia ao Senado urgindo pela revoga��o da lei: n�o que ela os incomode
muito, mas porque a cl�usula de que ' 'os escravos importados depois de 1831 s�o
livres" embara�a a transa��o da venda e torna inconveniente possuir negros h� pouco
introduzidos no pa�s. Eu encontro outra Assembl�ia Provincial, a de Minas Gerais,
pedindo a mesma coisa com iguais fundamentos. Depois de insistir nos perigos para o
pa�s da falta de negros, o memorial acrescenta: "Acima de tudo, o pior de todos esses
males � a imoralidade que resulta de habituarem-se os nossos cidad�os a violar as leis
debaixo das vistas das pr�prias autoridades!'' Eu realmente acredito que a hist�ria toda
da desfa�atez humana n�o apresenta uma passagem que possa rivalizar com esta �
nenhum outro exemplo de ousadia igual. Temos neste caso uma Legislatura Provincial,
que se apresenta por parte dos piratas e dos c�mplices, os agricultores, que aproveitam
com a pirataria, comprando-lhes os frutos, e em nome desses grandes criminosos insta
pela revoga��o da lei que o povo confessa estar violando todos os dias, e da qual eles
declaram que n�o h�o de fazer caso enquanto continuar sem ser revogada; pedindo a
revoga��o dessa lei com o fundamento de que, enquanto ela existir, resolvidos como
est�o a viol�-la, eles se v�em na dura necessidade de cometer essa imoralidade adicional
debaixo das vistas dos juizes que prestaram o juramento de executar as leis.19
O trabalho escravo era um fator estrutural da economia brasileira, tanto que o seu
controle interno se fazia cada vez mais r�gido. Em 1835, ainda antes de os regressistas
chegarem ao poder, o parlamento liberal-moderado votou uma lei que punia de morte
qualquer ato de rebeldia ou de ofensa aos senhores praticado por escravos.
Esse, o quadro nacional. Mereceria um estudo comparativo a resist�ncia � aboli��o nas
col�nias da Inglaterra, da Fran�a e da Holanda, pa�ses onde o pensamento liberal
burgu�s j� tomara a dianteira

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internacional. O governo brit�nico s� promoveu a alforria geral nos seus dom�nios em
1833, com indeniza��o plena aos propriet�rios, o que implicava reconhecimento aos
direitos destes. O parlamento holand�s decretou a aboli��o em Suriname a partir de 1?
de julho de 1863, pagando aos fazendeiros e "ficando os libertos sob prote��o especial
do Estado".20 Quanto aos escravos da Guiana e das Antilhas Francesas, tiveram de
esperar pelo decreto do Conselho Provis�rio de 27 de abril de 1848 para receberem a
liberta��o coletiva que tamb�m importou em ressarcimento aos senhores. De pouco
valera o belo gesto dos convencionais que tinham aplaudido de p� a aboli��o no
memor�vel Dezesseis do Pluvioso do Ano II da Revolu��o, 4 de fevereiro de 1794. Em
1802 Napole�o legaliza de novo a institui��o que ainda ag�entaria meio s�culo. C� e
l�...

LAISSEZ-FAIRE E ESCRAVID�O

H� uma din�mica interna no velho liberalismo econ�mico que, levando �s �ltimas
conseq��ncias a vontade de autonomia do cidad�o-propriet�rio, se insurge contra
qualquer tipo de restri��o jur�dica � sua esfera de iniciativa.
A doutrina do laissez-faire data da segunda metade do s�culo xviii, com o advento da
hegemonia burguesa, que assestou um golpe de morte nas corpora��es de of�cios e nos
privil�gios estamentais. Mas h� tamb�m um uso colonial-escravista dos princ�pios
ortodoxos; uso que, em retrospectiva, nos pode parecer abusivo ou c�nico, mas que
serviu cabalmente � l�gica dos traficantes e dos senhores rurais.
Um mercador da costa atl�ntica da �frica citava, em favor de seus direitos de livre
cidad�o brit�nico (free-born), a Magna Carta, a qual lhe conferia o poder inalien�vel de
comerciar o que bem entendesse, dispondo com igual franquia de todas as suas
propriedades m�veis, semoventes e im�veis.21 Esse direito, alegado por um negreiro em
1772, seria ainda a base de sustenta��o jur�dica dos parlamentares que, no Brasil de
1884, obstaram aos tr�mites da proposta do conselheiro Dantas que visava a alforriar os
escravos maiores de sessenta anos sem indeniza��o aos senhores. O minist�rio caiu; e o
Saraiva, que o sucedeu, teve que manter o princ�pio do pagamento obrigat�rio. Direito
individual � propriedade de homens: v�lido em 1772, v�lido em 1884.

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Celso Furtado viu com perspic�cia que os nossos economistas liberais, a partir do
visconde de Cairu, se mostraram mais fi�is a Adam Smith do que os pr�prios ingleses e
yankees; os �ltimos souberam, sob a influ�ncia de Hamilton, dosar livre com�rcio e
protecionismo industrial sempre que lhes conveio. Comparando as id�ias de Alexander
Hamilton com as de Cairu, diz Furtado: "Ambos s�o disc�pulos de Adam Smith, cujas
id�ias absorveram diretamente e na mesma �poca na Inglaterra. Sem embargo, enquanto
Hamilton se transforma em paladino da industrializa��o [...] Cairu cr�
supersticiosamente na m�o invis�vel e repete: deixai fazer, deixai passar, deixai
vender".22

A observa��o � v�lida sobretudo para o per�odo em que a hegemonia regressista casou


laissez-faire e trabalho escravo. Vasconcelos, que j� vimos defender abertamente o
tr�fico (a ponto de propor a suspens�o dos efeitos manumissores da lei de 1831!), era
ac�rrimo inimigo de qualquer medida oficial que amparasse a incipiente manufatura
brasileira em preju�zo da importa��o de produtos europeus. Porta-voz da mentalidade
agr�ria, vitoriosa nas elei��es de 1836, Vasconcelos recusava a pr�pria id�ia da
presen�a estatal na economia, valendo-se para tanto dos argumentos cl�ssicos:
A nossa utilidade n�o est� em produzir os g�neros e mercadorias, em que os
estrangeiros se nos avantajam; pelo contr�rio devemos aplicar-nos �s produ��es em que
eles nos s�o inferiores. Nem � preciso que a lei indique a produ��o mais lucrativa: nada
de dire��o do governo. O interesse particular � muito ativo e inteligente: ele dirige os
capitais para os empregos mais lucrativos: a suposi��o contr�ria assenta numa falsa
opini�o, de que s� o governo entende bem o que � �til ao cidad�o e ao Estado. O
governo � sempre mais ignorante que a massa geral da na��o, e nunca se ingeriu na
dire��o da ind�stria que n�o a aniquilasse, ou pelo menos a acabrunhasse [...] Favor e
opress�o significam o mesmo em mat�ria de ind�stria, o que � indispens�vel � guardar-
se o mais religioso respeito � propriedade e liberdade do cidad�o brasileiro. As artes, o
com�rcio e a agricultura n�o pedem ao governo se n�o o que Di�genes pediu a
Alexandre � retira-te do meu sol� eles dizem em voz alta � n�o temos necessidade
de favor: o de que precisamos � liberdade e seguran�a.23
Adam Smith e Say n�o teriam sido mais enf�ticos. Mutatis mutandis (ma non tropp�),
foi a linguagem da UDN e � a linguagem da UDR.

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Mas qual era, a partir do tratado de 1826, o principal �bice � pr�tica desse liberalismo
ortodoxo t�o cioso dos seus direitos? Era, precisamente, o controle do governo ingl�s
exercido sobre o mercado ne-greiro internacional. Vasconcelos indignava-se com a
prega��o �osphi-lanthropists, em plena atividade, e se desabafava nestas palavras
recolhidas por Walsh: ' 'Eles protestam contra a injusti�a desse com�rcio, dando como
exemplo a imoralidade de algumas na��es que o aceitam: n�o ficou, por�m,
demonstrado que a escravid�o chegue a desmoralizar a tal ponto qualquer na��o. Uma
compara��o entre o Brasil e os pa�ses que n�o t�m escravos ir� tirar qualquer d�vida a
esse respeito''. Acrescenta o reverendo, chocado: ' 'Em seguida sugeriu que o governo
brasileiro deveria entrar em acordo com a Inglaterra sobre a prorroga��o da lei".24 O
argumento de Vasconcelos escorava-se no confronto entre as condi��es de trabalho no
Brasil e na Europa, e voltaria com insist�ncia nos discursos liberal-regressistas, sendo
retomado por Jos� de Alencar nas tumultuosas sess�es que precederam � vota��o da Lei
do Ventre Livre.
Esbo�a-se aqui a s�ndrome do liberalismo olig�rquico brasileiro (e, no limite,
neocolonial): entrosamento do Pa�s em uma r�gida divis�o internacional de produ��o;
defesa da monocultura; recusa de toda interfer�ncia estatal que n�o se ache voltada para
assegurar os lucros da classe exportadora. E claro que a proibi��o do com�rcio ne-greiro
por parte do Estado (no caso, premido pela Inglaterra) restringiria a livre iniciativa do
vendedor e do comprador da for�a de trabalho. O mesmo pensamento fez escola entre
os escravistas do Old'South dos quais saiu uma pl�iade de economistas ortodoxos:
Thomas Cooper, autor de um manual smithiano bastante divulgado at� os meados do
s�culo xrx (Lectures on the elements ofpoli-tical economy, 1826); George Tucker,
primeiro titular de Economia da Universidade de Virg�nia; e, sobretudo, Jacob Newton
Cardozo, um dos redatores influentes da Southern Review, todos contestavam a id�ia de
que o bra�o cativo fosse unprofitable. Para os sulistas, aqueles que teimavam em julgar
a escravid�o pouco rent�vel decerto atinham-se a uma concep��o unilateral e abstrata da
nova ci�ncia, a qual crescia t�o lentamente porque
os economistas europeus, ao tentarem construir sistemas de aplica��o geral para todos
os pa�ses, continuam, no fundo, a supor que as suas

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circunst�ncias s�o naturais e universais. N�s sabemos que as riquezas das na��es
crescem a partir de fontes largamente diferentes. Por exemplo, a experi�ncia revela que
a escravid�o no Sul tem produzido n�o s� um alto grau de riqueza, como tamb�m uma
partilha maior de felicidade para o escravo do que ocorre em muitos lugares onde a
rela��o entre o empregador e o empregado � baseada em sal�rios.25
A mensagem pol�tica que aflora no texto � simples: deixai as coisas como est�o, deixainos
plantar nosso algod�o, alargar nossas fronteiras, comprar escravos do Norte, ganhar
dinheiro com o tr�fico etc.
Se o nosso regime escravocrata devia enfrentar a Inglaterra, o laissez-faire algodoeiro


do Sul desafiava a Uni�o, de onde partiam as leis restritivas: "Por volta de 1854", diz
John Hope Franklin no seu admir�vel From slavery to freedom, "os que se tinham
engajado no com�rcio africano de escravos tornaram-se t�o insolentes que advogavam
abertamente a reabertura oficial de sua atividade". Entre 1854 e 1860 n�o houve
conven��o comercial sulista que n�o considerasse a proposta de reabrir o tr�fico. Na
conven��o do Montgomery de 1858 desencadeou-se um debate furioso sobre o
problema. William L. Yan-cey, o comedor-de-fogo de Alabama, argumentava, com
certa l�gica, que "se � um direito comprar escravos na Virg�nia e lev�-los a Nova
Orleans, por que n�o � direito compr�-los em Cuba, no Brasil, ou na �frica, e lev�-los
para l�?". Nova Orleans era, em 1858, o grande mercado negreiro americano. Continua
Franklin:
No ano seguinte, em Vicksburg, a conven��o votou favoravelmente uma resolu��o
recomendando que "todas as leis, estaduais ou federais, que pro�bem o com�rcio
africano de escravos, deveriam ser revogadas". S� os estados do Sul superior {upper
South), que desfrutavam dos lucros obtidos pelo tr�fico dom�stico de escravos, se
opuseram � reabertura do tr�fico africano.26
O desrespeito � lei antitr�fico foi, nos Estados Unidos dos anos 50, t�o frontal quanto o
do Brasil nos anos 40. C� e l�, a liberdade, sem media��es, do capital exigia a total
sujei��o do trabalho.
It was freedom to destroy freedom: dial�tica do liberalismo no seu momento de
expans�o a qualquer custo.
Um erudito historiador baiano escreveu, em 1844, um libelo contra a deslealdade da
Inglaterra que, afetando ser amiga da nova na��o brasileira, agia em nosso desfavor
impedindo que a lavoura recebesse

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a preciosa m�o-de-obra africana. Trata-se do dr. A. J. Mello Moraes e do seu op�sculo:

A Inglaterra e seos tractados. Mem�ria, na qual previamente se demonstra que a
Inglaterra n�o tem sido leal at� o presente no cumprimento dos seus tractados. Aos srs.
deputados ge-raes da futura sess�o legislativa de 1845. Volta a� a indefect�vel
compara��o: ' 'Um ingl�s trata cem vezes pior um criado branco e seu igual do que n�s a
um dos nossos escravos".27 A proposta de Mello Moraes � simples e dr�stica: o gabinete
ingl�s ' 'ou h� de abandonar as suas col�nias, por n�o haver g�neros coloniais para
consumo, ou, se as quiser possuir, h� de admitir a escravid�o".28 Postulada a �ntima
rela��o entre produtos coloniais e cativeiro, nexo historicamente institu�do e
consolidado por tr�s s�culos, o bravo defensor da nossa lavoura exorta os deputados
gerais, em campanha eleitoral, a cortar as amarras que ligavam o governo imperial ao
brit�nico: ' 'O Brasil para ser feliz n�o tem necessidade de tratados com na��o alguma,
pois basta somente proteger a agricultura, animar a ind�stria manufatureira, libertar o
com�rcio, e franquear seus portos ao mundo inteiro. O Brasil n�o precisa dos favores da
Inglaterra".29 Poucas linhas atr�s, Mello Moraes via com esperan�a o aumento das
nossas exporta��es de caf� para os Estados Unidos. O esp�rito de 1808, que rompera
com o monop�lio portugu�s, demandava agora seu pleno desdobramento. Nada de
entraves.
Na esteira do processo de integra��o p�s-colonial dos pa�ses latino-americanos, o Brasil
deveria realizar o princ�pio mais geral do sistema dando o maior raio poss�vel de a��o,
legal ou ilegal, a quem de direito: ao senhor do caf�, ao senhor de engenho e aos seus
agenciadores da for�a de trabalho, os traficantes.
Para a classe dominante o �bice maior n�o vinha, ent�o, do nosso Estado constitucional,
que representava o latif�ndio e dele se servia: o obst�culo era interposto pela nova
matriz internacional, o novo exclusivo, a Inglaterra. Entende-se a reivindica��o do mais
desbrida-do laissez-faire; entende-se a hostilidade que despertava entre os propriet�rios

o controle da sua na��o por um Estado estrangeiro.
Mas como o denominador ideol�gico comum era o liberalismo econ�mico, que conhece
na �poca a sua fase �urea, s� restava � ret�rica escravista uma sa�da para o impasse:
mostrar que as id�ias mestras da doutrina cl�ssica, porque justas, deveriam aplicar-se
com justeza �s circunst�ncias, �s peculiaridades nacionais.
210
A aten��o e o respeito ostensivo ao particular, t�o insistentes nos escritos conservadores
de Burke, permeiam a ideologia rom�ntico-nacional que vai de Varnhagen a Alencar, de
Vasconcelos a Olinda, de Paran� a Itabora�. Ser� o topos maior da argumenta��o de
cunho protelat�rio: dar tempo ao tempo, j� que o Brasil n�o � a Europa, e � preciso
respeitar as diferen�as.
Filtragem ideol�gica e contemporiza��o, estas seriam as estrat�gias do nosso
liberalismo intra-olig�rquico em todo o per�odo em que se constru�a o Estado nacional.
Para racionalizar �s seus mecanismos de defesa, a ideologia do caf� valparaibano e a do


algod�o sulista, sua contempor�nea, jamais puseram em d�vida o fundamento comum,
que era o direito absoluto � propriedade e ao livre com�rcio internacional. O princ�pio
universal lhes servia tanto quanto ao liberal europeu. O que se acrescentava era uma
nova determina��o, a do ajuste das id�ias a interesses espec�ficos. O resultado dessa
extens�o foi, e tem sido, a not�ria guinada conservadora que as burguesias agr�rias
operam sempre que alguma sombra de amea�a se divisa no seu horizonte. Temos
exemplos bastantes de um discurso ultraliberal de direita para n�o estranharmos essa
qu�mica. Ainda neste 1988, um l�der do chamado "centr�o" junto � Assembl�ia
Nacional Constituinte jactava-se de ser reacion�rio em pol�tica, mas an�rquico em
economia: abaixo a interfer�ncia do Estado, tudo para a iniciativa privada!
No Brasil, por m�ngua de densidade cultural, a apologia do tr�fico e do cativeiro n�o
chegou a assumir formas t�o elaboradas como no Velho Sul americano, onde a
escravid�o foi chamada, um sem-n�mero de vezes, "pedra angular {comer-stone) das
liberdades civis".
Sigo a leitura convincente de Gunnar Myrdal em An American dilemma: "Politicamente
os brancos eram todos iguais enquanto cidad�os livres. Livre competi��o e liberdade
pessoal lhes estavam asseguradas. Os estadistas do Sul e os seus escritores martelaram
nessa tese, de que a escravid�o, e s� a escravid�o, produzia a mais perfeita igualdade e a
mais substancial liberdade para os cidad�os livres na sociedade".30
A presen�a ub�qua dos negros nivelava, sob um certo aspecto, todos os brancos, pois os
chamava para um espa�o comum, que os opunha, em bloco, � ra�a subordinada. O
trabalho escravo se constitu�a em condi��o primeira para a exist�ncia social do branco
livre e

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propriet�rio. � o racioc�nio de um escravista muito popular no per�odo pr�-b�lico,
Jefferson Davis. Do ponto de vista da l�gica da domina��o, um racioc�nio perfeito.
A combina��o de laissez-faire, soberbo individualismo dos senhores, patriarcalismo
gr�vido de arb�trio e favor, antiprotecionismo no que toca � ind�stria e elogio da vida
rural foi-se construindo soli-damente a partir dos anos de 1830, ' 'sob a dupla influ�ncia
da crescente lucratividade da escravid�o na economia de plantation e das arremetidas do
movimento abolicionista do Norte".31
Uma linguagem ao mesmo tempo liberal e escravista se tornou historicamente poss�vel;
ao mesmo tempo, reflu�a para as sombras do esquecimento a coer�ncia radical-ilustrada
da intelig�ncia que amadurecera no �ltimo quartel do s�culo xvin.
Em Cuba, outra �rea t�pica de latif�ndio exportador, a prosperidade da economia
canavieira, a partir desses mesmos anos 30, res-friou os ideais libert�rios e enrijeceu o
pensamento olig�rquico:
O corpo universal das id�ias foi remodelado e adaptado para descrever ou explicar a
condi��o dom�stica cubana. A elite exibiu um cosmopo-litismo e um refinamento
ins�litos para o seu tempo e lugar � tanto mais surpreendente na sua situa��o colonial.
Eor�ada a defender a escravid�o, essa elite postulou os direitos de propriedade e a
seguran�a da civiliza��o � eufemismos aceitos como argumentos raciais e econ�micos.
Os escravos africanos eram bens. A aboli��o amea�ava ser a ru�na e chegava-se at� a
arrazoar de um modo contorcido que o cativeiro era um meio de civilizar os africanos.
O racioc�nio e os argumentos n�o eram novos nem originalmente cubanos.32
Descontadas certas diferen�as culturais, salta � vista do historiador a forma��o de uma
ideologia liberal-escravista comum �s tr�s �reas em que a atividade agroexportadora se
fez mais intensa a partir dos anos de 1830: o Brasil cafeeiro, o Sul algodoeiro e as
Antilhas cana-vieiras, especialmente Cuba. Em todas, o bra�o escravo deu suporte ao
regresso olig�rquico. Essa nova decolagem da economia escravista n�o escapou ao olho
agudo de Tavares Bastos, que tudo via e tudo criticava postado no seu observat�rio
american�filo.33
Quanto �s forma��es sociais andinas e platinas, onde a presen�a do africano tinha sido
modesta ou nenhuma, constru�a-se, naquela altura e com as mesmas pedras de uma
ideologia excludente, o que

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o estudioso guatemalteco Severo Mart�nez Pel�ez chamou com precis�o Ia p�tria dei
criollo.34
A leitura que Franklin Knight fez do liberalismo cubano vale-se de conceitos como
remodelagem e adapta��o para qualificar os processos mediante os quais uma ideologia
de origem europ�ia penetrou nas mentes e nos cora��es do propriet�rio americano.
Filtrou-se t�o-somente o que convinha �s pr�ticas da domina��o local.
Cabe uma d�vida: teria o primeiro liberalismo ortodoxo brechas que permitissem algum
tipo de contempla��o com o trabalho escravo nas col�nias?



Evidentemente, a resposta cabe aos peritos em an�lise dos textos de Smith, Say e
Bentham. Contento-me em levantar uma ponta do v�u.
Adam Smith escreveu A riqueza das na��es nos anos 70 do s�culo xvili. A sua luta
antimercantilista � bem conhecida. Monop�lios, corpora��es, privil�gios, entraves
legais ou consuetudin�rios: eis os seus alvos maiores. Na �poca, o tr�fico era intenso e
explorado principalmente pela Marinha comercial inglesa. O cativeiro mantinha-se
como regra nos Estados Unidos e em todas as col�nias brit�nicas, holandesas, francesas,
espanholas e portuguesas. Smith pronuncia-se pela superioridade do trabalho
assalariado que lhe parece mais lucrativo al�m de �tico. Este, o princ�pio geral. Ao
tratar, por�m, das col�nias, a sua abordagem assume um tom neutro e utilit�rio. N�o se
l�, a�, uma cr�tica expl�cita da escravid�o do ponto de vista econ�mico. H� apenas o
registro de que a boa administra��o (good management) do escravo � sempre mais
rendosa do que os maus-tratos:
Mas, tal como o lucro e �xito do cultivo executado pelo gado depende muito da boa
administra��o desse mesmo gado, tamb�m o lucro e �xito da cultura executada pelos
escravos depender� igualmente de uma boa administra��o desses escravos; e, nesse
aspecto, os plantadores franceses, como penso ser do consenso geral, s�o superiores aos
ingleses.35
Um pouco adiante, repisa:' 'Esta superioridade tem-se traduzido especialmente na boa
administra��o dos seus escravos".36 Enfim: "Este tratamento n�o s� torna o escravo mais
fiel como ainda o torna mais inteligente e, portanto, mais �til".37 Os nossos prudentes
ec�nomos jesu�tas, Antonil e Benci, n�o tinham recomendado coisa muito diferente aos
senhores de engenho nordestinos no romper dos Setecentos...

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Uma hip�tese prov�vel � que, no seu fazer-se, entre emp�rico e ideal, a nova ci�ncia das
riquezas ainda n�o desenvolvera uma formula��o cabal e un�voca que desse conta tamb�m do
problema da rentabilidade do escravo nas col�nias. O valor atribu�do ao trabalho livre, cerne da
Economia Pol�tica, n�o suprimia, de todo, o veio utilitarista e a capacidade de relatar
idoneamente o que estava acontecendo, de fato, nas grandes fazendas do Novo Mundo.
Curiosa, nessa ordem de id�ias, � a forma pela qual o maior divulgador de Adam Smith, Jean-
Baptiste Say, enfrenta a quest�o crucial do cotejo do trabalho cativo com o assalariado. Say,
cujos textos foram can�nicos no Brasil e nos Estados Unidos durante o s�culo XK, acusa a
degrada��o a que descem senhores e escravos e advoga a industrializa��o e o trabalho livre. Ao
falar, por�m, das col�nias, procura relativizar o seu mestre Smith e os predecessores Steuart e
Tur-got no que toca ao custo do regime escravista; para tanto, exp�e, lado a lado, as posi��es
conflitantes:
Autores filantropos acreditaram que o melhor meio de afastar os homens dessa pr�tica odiosa
estava em demonstrar que ela � contr�ria a seus pr�prios interesses. Steuart, Turgot e Smith
concordam na cren�a de que o trabalho do escravo custa mais caro e produz menos do que o do
homem livre. Seus argumentos se reduzem ao seguinte: um homem que n�o trabalha e n�o
consome por conta pr�pria trabalha o m�nimo e consome o m�ximo que pode; n�o tem nenhum
interesse em dedicar a seus trabalhos a intelig�ncia e o cuidado capazes de assegurar seu
sucesso; o trabalho excessivo com que � sobrecarregado diminui sua vida, obrigando seu senhor
a onerosas substitui��es. Por �ltimo, � o servidor livre que administra a sua pr�pria manuten��o,
ao passo que cabe ao senhor a administra��o da manuten��o de seu escravo; ora, visto ser
imposs�vel que o senhor administre com tanta economia quanto o servidor livre, o servi�o do
escravo dever� custar-lhe mais caro.
Os que pensam que o trabalho do escravo � menos dispendioso do que o do servidor livre fazem
um c�lculo semelhante ao seguinte: a manuten��o atual de um negro das Antilhas, nas
habita��es em que s�o mantidos com mais humanidade, n�o custa mais de 300 francos.
Acrescentamos a isso o juro de seu pre�o de compra e estimemo-lo em 10%, pois se trata de um
juro perp�tuo. O pre�o de um negro comum, sendo de 2 mil francos, mais ou menos, o juro ser�
de 200 francos, calculados por cima. Assim, pode-se estimar que cada negro custa, por

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ano, 500 francos a seu senhor. Ora, num mesmo pa�s o trabalho de um homem livre custa mais
do que isso. Pode cobrar por sua jornada de trabalho uma base de 5, 6 ou 7 francos e �s vezes
at� mais. Tomemos 6 francos como m�dia e s� contemos trezentos dias de trabalho por ano.
Isso d�, como soma de seus sal�rios anuais, 1800 em vez de 500 francos.38
Nos par�grafos seguintes Say reproduz, sem contest�-la, a argumenta��o dos escravistas ao
lembrar a exig�idade real do consumo, pr�pria do cativo ("sua alimenta��o se reduz �
mandioca, � qual, na casa de senhores bondosos, se acrescentava de tempos em tempos um
pouco de bacalhau seco''); a indig�ncia de sua veste (' 'uma cal�a e um colete comp�em todo o
guarda-roupa de um negro"); a mis�ria de sua habita��o ("seu alojamento � uma cabana sem
nenhum m�vel"); enfim, a car�ncia desoladora a que se reduz a"sua vida pessoal: ' 'a doce
atra��o que une os sexos est� submetida aos c�lculos de um senhor''.
A somat�ria desses v�rios fatores resultar�, objetivamente, na alta rentabilidade das planta��es
coloniais:
R)i provavelmente por isso que os lucros de um engenho de a��car eram a tal ponto exagerados


que se afirmava, em S�o Domingos, que uma planta��o, em seis anos, devia reembolsar ao
propriet�rio o pre�o de compra, e que os colonos das ilhas inglesas, segundo o pr�prio Smith,
concordavam que o rum e o mela�o bastavam para cobrir os custos do engenho, todo o a��car
sendo puro lucro.39
Chegado a este ponto, em que a tese escravista j� foi apresentada como v�lida ou, ao menos,
exeq��vel, Say opera um corte brusco: "Seja como for, tudo mudou". A situa��o das Antilhas j�
� outra. Ele escreve em 1802, quando se d� uma queda no com�rcio colonial em virtude da
concorr�ncia do a��car de beterraba europeu. O trabalho livre parece-lhe alcan�ar a merecida
primazia, o que � um trunfo para a nova ortodoxia burguesa. Embora o seu pragmatismo
visceral * ainda observe que, nos engenhos de Cuba e da Jamaica, o trabalho do negro parece
ser, de fato, o mais apropriado (o europeu a� n�o resiste, o escravo tem menos ambi��o e menos
necessidade, o sol l� � ardente e o cultivo da cana, penoso), a linha de pensamento se volta para
as teses ilustradas que, desde o �ltimo quartel do s�culo xvin, vinham condenando os exclusivos
coloniais e o tr�fico negreiro como barreiras erguidas contra o progresso e a civiliza��o.

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A escravid�o n�o pode sobreviver muito tempo na proximidade de na��es negras
libertas ou mesmo de cidad�os negros, como existem nos Estados Unidos. Essa
institui��o contrasta como todas as outras e terminar� por desaparecer gradualmente.
Nas col�nias europ�ias, ela s� pode durar com o amparo das for�as da metr�pole, e
essa, tornando-se esclarecida, terminar� por retirar-lhe o apoio.40
A profecia de Say tardou a cumprir-se, n�o s� em rela��o �s col�nias (Cuba, Antilhas,
Guiana), quanto em rela��o aos Estados Unidos, j� independentes, e ao Brasil. E em
parte nenhuma o regime de cativeiro foi extinto sem contraste, por obra espont�nea dos
senhores: as fugas e rebeli�es dos negros, a luta de grupos abolicionistas e a a��o final
do Estado foram, em todos os casos, determinantes. As oligarquias resistiram enquanto
puderam.
O Trait� saiu em 1803. Em 1807 a Inglaterra pro�be o tr�fico. No entanto, a escravid�o
� restabelecida por Bonaparte depois da sangrenta revolta do Haiti. E o algod�o no
Velho Sul, o a��car em Cuba e o caf� no Brasil fariam recrudescer a pr�tica do trabalho
escravo e estimular o tr�fico com uma intensidade nunca vista. A primeira metade do
s�culo XK foi um per�odo febril do escravismo; e � � luz desse contexto afro-americano
da economia de plantagem que se pode entender a ideologia regressista dos liberais
brasileiros, e n�o s� brasileiros.

OLIGARQUIA E NEUTRALIZA��O IDEOL�GICA

Os interesses dos senhores rurais contavam com uma Carta que tamb�m servir� de
escudo aos moderados ap�s a Abdica��o. Antigos pais da p�tria, como Evaristo e
Bernardo de Vasconcelos, acabaram encalhando no areai de um sistema parlamentar de
baix�ssimo grau de representa��o: ' 'Nada de excessos, a linha est� tra�ada, � a da
Constitui��o. Tornar pr�tica a Constitui��o que existe no papel deve ser o esfor�o dos
liberais" � s�o palavras de um lutador hist�rico, Evaristo da Veiga, na sua Aurora
Fluminense de 9 de setembro de 1829.41 "Queremos a Constitui��o � n�o a
Revolu��o." O mesmo homem, que a historiografia da Reg�ncia costuma opor ao
regressismo, tra�ava com meridiana clareza a linha de separa��o entre o seu pr�prio
liberalismo, que defendia, e a democracia, que rejeitava: o princ�pio da soberania
popular era, no seu ju�zo,

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contr�rio: (1?) ao fato da desigualdade, estabelecida pela natureza entre as capacidades
e as pot�ncias individuais; (2?) ao fato da desigualdade de capacidades provocadas pela
diferen�a de posi��es; (3?) � experi�ncia do mundo que viu sempre os t�midos seguirem
aos bravos, os menos h�beis obedecerem aos mais h�beis, as inferioridades naturais
reconhecerem as superioridades naturais e obedecerem. O princ�pio da soberania do
povo, isto �, o direito igual dos indiv�duos � soberania, e o direito de todos os indiv�duos
de concorrer � soberania � radicalmente falso porque, sob pretexto de manter a
igualdade leg�tima, ele introduz violentamente a igualdade onde n�o existe e viola a
desigualdade leg�tima.42


E qual seria o locus partid�rio desses liberais que, exatamente como pensava Evaristo,
tinham por leg�tima a desigualdade?
A resposta deve buscar-se na mutante biografia pol�tica dos moderados de 31, dos
regressistas de 36, dos conservadores dos anos 40, dos conciliadores e ligueiros dos
anos 50.
Nabuco de Ara�jo foi primeiro conservador, depois conciliador e ligueiro, enfim
neoliberal. Paran�, Torres Homem e Rio Branco foram primeiro liberais, depois
conservadores de centro. Zacarias, Saraiva, Paranagu� e Sinimbu, primeiro
conservadores, depois liberais. Vasconcelos, Paulino de Sousa e Rodrigues Torres,
primeiro moderados, depois cardeais de conservadorismo. Para todos, e pouco importa
aqui o nome do grupo, a pr�pria no��o de liberdade fora uma heran�a transmitida pela
gera��o que os precedera entre 1808 e 1831.
Assentados nessa plataforma, convinha-lhes a fac��o eleitoral que, em cada conjuntura,
melhor os resguardasse. E o acerto da frase sar-d�nica: "Nada mais parecido com um
saquarema do que um luzia no poder".
At� meados do s�culo, o discurso, ou o sil�ncio de todos, foi c�mplice do tr�fico e da
escravid�o. O seu liberalismo, parcial e seletivo, n�o era incongruente: operava a
filtragem dos significados compat�veis com a liberdade intra-olig�rquica e descartava as
conota��es im-portunas, isto �, as exig�ncias abstratas do liberalismo europeu que n�o
se coadunassem com as particularidades da nova na��o.
Um testemunho abalizado do que chamo de filtragem ideol�gica � o de Eus�bio de
Queir�s, cujo nome est� associado � lei que proibiu finalmente o tr�fico em 1850,
depois de tantos enfrentamentos com o governo brit�nico. Falando do aspecto moral do
com�rcio negreiro,

217


Eus�bio, ministro da Justi�a e ex-chefe de pol�cia do Rio de Janeiro, procede a uma
descriminaliza��o dessa atividade:
Sejamos francos: o tr�fico, no Brasil, prendia-se a interesses, ou para melhor dizer, a
presumidos interesses dos nossos agricultores; e num pa�s em que a agricultura tem
tamanha for�a, era natural que a opini�o p�blica se manifestasse em favor do tr�fico: a
opini�o p�blica que tamanha influ�ncia tem, n�o s� nos governos representativos, como
at� nas pr�prias monarquias absolutas. O que h� pois para admirar em que os nossos
homens pol�ticos se curvassem a essa lei da necessidade? O que h� para admirar em que
n�s todos, amigos ou inimigos do tr�fico, nos curv�ssemos a essa necessidade?
Senhores, se isso fosse crime, seria crime geral no Brasil: mas eu sustento que, quando
em uma na��o todos os partidos pol�ticos ocupam o poder quando todos os seus homens
pol�ticos t�m sido chamados a exerc�-lo, e todos eles s�o concordes em uma conduta, �
preciso que essa conduta seja apoiada em raz�es muito fortes; imposs�vel que ela seja
um crime e haveria temeridade em cham�-la um erro.43
O tr�fico fora suspenso, mas a sua apologia ainda se fazia presente na boca daqueles
mesmos que tinham sido obrigados a proibi-lo de vez.
Uma posi��o mais crua se d� ao olhar do historiador quando este se volta do discurso
oficial para um depoimento sem rebu�os, feito pelo dono de uma velha casa comercial
do Rio, amargamente ressentido com as emiss�es banc�rias que jorraram depois da
extin��o do tr�fico (estaria ele envolvido no mercado negreiro?):
Antes bons negros da costa da �frica para felicidade sua e nossa, a despeito de toda a
m�rbida filantropia brit�nica, que esquecida da sua pr�pria casa deixa morrer de fome o
pobre irm�o branco, escravo sem senhor que dele se compade�a, e hip�crita ou est�lida
chora, exposta ao rid�culo da verdadeira filantropia, o fardo do nosso escravo feliz.
Antes bons negros da costa da �frica para cultivar os nossos campos f�rteis do que
todas as tet�ias da rua do Ouvidor, do que vestidos de um conto e quinhentos mil r�is
para as nossas mulheres [...] do que, finalmente, empresas mal avisadas muito al�m das
leg�timas for�as do pa�s, as quais, perturbando as rela��es da sociedade, produzindo
uma desloca��o de trabalho, t�m promovido mais que tudo a escassez e alto pre�o dos
v�veres.44

218
Jos� de Alencar, um dos campe�es do status quo nos debates de 1871, lamentaria, em
estilo menos brutal, os males da especula��o financeira, do jogo bolsista e do luxo
corruptor que o papel-moeda f�cil trazia aos costumes da Corte. E identificaria o ritmo
lento e pesado da velha economia (leia-se: o pleno dom�nio do tr�fico) com os seus
pr�prios valores de honra e austeridade. E a suma da sua pe�a, O cr�dito, levada � cena
em 1857, e que pode ser interpretada como a met�fora do nosso capitalismo acanhado.
Retomando a quest�o em uma das suas Cartas a Erasmo, dirigida ao mentor financeiro
do Imp�rio, o visconde de Itabora�, Alencar ressaltaria a conveni�ncia de aplicar-se o
novo cr�dito banc�rio � produ��o agr�cola, ou seja, a necessidade de se estreitarem os


v�nculos entre o poder monet�rio do Estado e a economia do latif�ndio. O escritor
alegava, em favor do seu projeto, a raz�o de ser o Brasil' 'um pa�s novo, onde se pode
dizer que a grande propriedade ainda est� em gesta��o'"... A infla��o, que, para a
ortodoxia de Itabora�, era um mal, subiria ao n�vel de mal necess�rio desde que
beneficiasse o senhor de terras. Reprodu��o e autodefesa com o suporte dos cofres
p�blicos: limites do que se poderia chamar a ideologia dominante p�s-colonial. Nessa
concep��o, o pecado da livre emiss�o s� era julgado mortal quando cometido fora do
leg�timo cons�rcio com o interesse da grande propriedade. Alencar, nas mesmas
Cartas, ainda verbera os impostos e a empregocracia, e condena, nos mesmos termos
de Cairu e Vasconcelos, a prote��o a "f�bricas e manufaturas n�o existentes nem
sonhadas no pa�s". Um liberalismo pr�-industrial coerente ajustava-se �s nossas rotinas
oli-g�rquicas.
Liberalismo ou conservadorismo? A neutraliza��o � vivida e formulada ao longo dos
anos 50. J� n�o h� lugar para profiss�es de f� ideol�gico-partid�rias, tal � a unidade de
valores subjacente aos interesses de fac��o. O senador Nabuco de Ara�jo, em pleno
tr�nsito da Concilia��o para a Liga, busca entender as causas desse indiferentis-mo
doutrin�rio pelo qual o nome liberal traduzia um conte�do conformista; e as identifica
naquilo que lhe parece ser a homogeneidade do corpo social brasileiro:
Eu concedo que em uma sociedade, onde h� classes privilegiadas, onde existem
interesses distintos e heterog�neos, onde ainda domina o princ�pio do feudalismo, a�
haja, como na Inglaterra, partidos que so


219


brevivem aos s�culos; mas onde os elementos s�o homog�neos, como em nossa
sociedade, na qual n�o h� privil�gios, na qual os partidos representam somente
princ�pios de atualidade que todos os dias variam e se modificam, a� os partidos s�o
prec�rios.45
O discurso, proferido em 13 de junho de 1857, deixa de nos parecer escandaloso, se
entendermos pela express�o nossa sociedade n�o o povo brasileiro em geral, mas
apenas aquele c�rculo de homens ele-g�veis economicamente qualificados e, portanto,
aptos para a a��o pol�tica nos termos da Carta de 1824. Dentro desse espa�o fechado
era, de fato, pertinente indagar: para que partidos ideol�gicos conflitantes, se tudo se
reduzia a um loteamento de cargos, influ�ncias e hon-rarias?
O marqu�s do Paran�, chefe do gabinete conciliador a que Na-buco servia, pensava da
mesma maneira quando reconhecia no ' 'estado em que se achava a sociedade'' o m�vel
da fus�o dos antigos liberais com os conservadores de sempre.
E tamb�m verdade que esse liberalismo corporativo assumia �s vezes um tom exaltado
quando alguma conjuntura o encostasse � margem do poder. Aparecia ent�o a ret�rica
democr�tica feita de puro ressentimento pessoal ou grupai, que engana, mas por breve
tempo. Um exemplo forte se tem no Libelo do povo, de Timandro, pseud�nimo de Sales
Torres Homem, diatribe contra o poder pessoal do imperador. O panfleto foi
considerado, em 1849, radical, mas o seu alvo n�o era a efetiva opress�o pol�tica do
regime: investia apenas contra a Casa de Bragan�a, descompunha a fam�lia reinante e,
por tabela, a tirania portuguesa. O autor passou-se mais tarde para as fileiras palacianas
e foi agraciado com o t�tulo de visconde de Inhomi-rim. Desses liberais dir� um filho de
mulher africana nas Trovas burlescas:
Se ardente campe�o da liberdade Apregoa dos povos a igualdade, Libelos escrevendo
formid�veis, Com frases de pe�onha impenetr�veis: J� do c�u perscrutando alta
emin�ncia, Abandona os trof�us da intelig�ncia, Ao som d'arg�m [argent?] se curva,
qual vil�o, O nome vende, a gl�ria, a posi��o:
220
� que o s�bio, no Brasil, s� quer lamban�a Que possa empantufar a larga pan�a!46

Na Prov�ncia, truncado a ferro e fogo o ciclo das revoltas, o quadro partid�rio tamb�m
estagnou em um adesismo larvar, sintoma da sua depend�ncia para com os ditames da
Corte. Assim ironiza as fac��es de sua terra maranhense um jornalista de pulso, Jo�o
Francisco Lisboa:
Em geral [...] t�m sido favor�veis ao governo central, e s� lhe declaram guerra, quando
de todo perderam a esperan�a de obter o seu apoio contra os partidos adversos que mais
h�beis ou mais felizes souberam acare�-lo para si. Quando o Exmo. Sr. Bernardo
Bonif�cio, importunado das rec�procas recrimina��es e dos indefect�veis protestos de
ades�o e apoio destes ilustres chefes, os interrogava ou sondava apenas, respondiam
eles, cada um por seu turno: � A divisa dos Cangamb�s � Imperador, Constitui��o e
Ordem. Os Mossorocas s� querem a Constitui��o com o Imperador, �nicas garantias


que temos de paz e estabilidade. Os Jaburus s�o conhecidos pela sua longa e inabal�vel
fidelidade aos princ�pios de ordem e monarquia; o Brasil n�o pode medrar sen�o �
sombra protetora do Trono. V�m os Bacuraus por derradeiro e dizem: N�s professamos
em teoria os princ�pios populares: mas somos assaz ilustrados para conhecermos que o
estado do Brasil n�o comporta ainda o ensaio de certas institui��es. Aceitamos pois sem
escr�pulos a atual ordem de cousas, como fato consumado, uma vez que nos garanta o
gozo de todas as regalias dos cidad�os. Estamos at� dispostos a prestar-lhe a mais franca
e leal coopera��o. [Jornal de Timon: "Partidos e elei��es no Maranh�o"]
O teor informativo do texto nos d� a imagem n�tida da situa��o no interior sob o
dom�nio do interesse olig�rquico que v�rios cl�s partilhavam. Mas a perspectiva j� �
cr�tica e, no seu movimento, dial�tica, pois aponta para um liberalismo superior que,
naquela altura, mal se vislumbrava, mas que j� pulsava e, cedo ou tarde, irromperia.

A FORMA��O DO NOVO LIBERALISMO
O lavrador brasileiro deve reconhecer que chegou j�, por imposi��o do destino, ao
regime do trabalho assalariado.
Quintino Bocayuva, A crise da lavoura, 1868 221


As institui��es existem, mas por e para 30% dos cidad�os. Proponho uma reforma no
estilo pol�tico. N�o se deve dizer: "consultar a na��o, representantes da na��o,
ospoderes da na��o''; mas ' 'consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos
30%". A opini�o p�blica � uma met�fora sem base; h�s�aopini�o dos 30%.

Machado de Assis, "Hist�ria de quinze dias", cr�nica, 15 de agosto de 1876

Ou o campo ou as cidades; ou a escravid�o ou a civiliza��o; ou os Clubes da Lavoura
ou a imprensa, os centros intelectuais, a mentalidade e a moralidade esclarecida do
pa�s.
Joaquim Nabuco, "O terreno da luta", in Jornal do Com�rcio, 19 de julho de 1884
Se o car�ter principal do acontecimento � poder situar-se com precis�o nas coordenadas
do espa�o e do tempo, o mesmo n�o se d� com o processo ideol�gico. Este n�o surge de
improviso ou por acaso, de um dia para o outro. Sua mat�ria-prima s�o id�ias afetadas
de valores, e id�ias e valores se formam lentamente com idas e vindas, no curso da
hist�ria, na cabe�a e no cora��o dos homens. No entanto, como a ponta do iceberg �
claro ind�cio da exist�ncia de massas submersas cuja profundidade n�o se pode calcular
a olho nu, tamb�m certas situa��es, rigorosamente datadas, ao se armarem, servem de
pista ao leitor de ideologias para detectar correntes que v�m de longe. A data exerce,
ent�o, o papel de signo ostensivo de uma viragem.
A historiografia � un�nime em assinalar o ano de 1868 como o grande divisor de �guas
entre a fase mais est�vel do Segundo Imp�rio e a sua longa crise que culminaria, vinte
anos mais tarde, com a Aboli��o e a Rep�blica.
A data de 1868 aqui importa porque nela se ouve um toque de reuni�o (o estilo hugoano
do tempo inspiraria imagens de clarinada e clangor de trompas) dos liberais, ent�o
revoltados com o gesto abrupto de Pedro II que acabara de demitir o gabinete de
Zacarias de G�is, majorit�rio no Parlamento.
A decis�o, embora traum�tica, n�o feria a lei maior, figurando entre as atribui��es do
Poder Moderador. Mas o seu efeito foi o de

222

um catalisador de for�as dispersas. E s�o as resson�ncias do ato que comp�em a nova
situa��o e valem como aquela ponta do iceberg. A rea��o dos pol�ticos, da imprensa,
dos intelectuais, dos centros acad�micos em todo o Pa�s, aparece como uma cadeia de
elos significativos e remete � pergunta pelos valores em causa. Que liberalismo � esse
que sai a campo em busca de um programa de reformas amplas, e j� n�o se sente um
mero ventr�loquo das dissid�ncias olig�rquicas?
A crise de 68 � o momento agudo de um processo que, de 65 a 71, levou � Lei do
Ventre Livre. Analisada por esse �ngulo, � uma crise de passagem do Regresso
agromercantil, emperrado e escravista, para um reformismo arejado e confiante no valor
do trabalho livre. Essa leitura dos fatos tem a sua verdade, mas � preciso que se distinga
com clareza a vertente liberal-radical(express�o que aparece, pela primeira vez, em
1866, na folha A Opini�o Liberal), do conjunto bastante h�brido que foi o Partido


Liberal at� a aboli��o completa em 1888.
Nos �ltimos dec�nios do Imp�rio as tend�ncias progressistas circulam pelo Partido
Liberal e pelo Republicano, mas n�o coincidem perfeitamente nem com um nem com o
outro. E haver� resist�ncias conservadoras, e at� escravistas, em ambos os gr�mios.47
A hist�ria do novo liberalismo, para continuar usando a express�o de Joaquim Nabuco,
pode ser apreendida tanto no ritmo da longa dura��o quanto no das conjunturas.
Pelo primeiro, que contempla o n�vel dos sistemas, a rela��o se faz entre a nova corrente
ideol�gica, vis�vel desde os anos 60, e o dinamismo econ�mico e social que a extin��o
do tr�fico instaurou no pa�s j� a partir de 1850. Os capitais, que montavam em cerca de
16 mil contos, liberados para afluir ao com�rcio, � manufatura, � rede de transportes ou
ao puro jogo da Bolsa, na verdade aceleraram o processo de urbaniza��o e o emprego
do trabalho assalariado. A situa��o foi alimentada, estruturalmente, pela cont�nua
expans�o agroexpor-tadora que a demanda internacional sustentou at� o fim do s�culo:
a exist�ncia de um mercado interno e de um p�lo urbano em desenvolvimento na
Regi�o Sudeste foi a condi��o necess�ria para a emerg�ncia de valores liberais mais
amplos do que os professados pelo discurso intra-olig�rquico. "Ou o campo ou as
cidades; ou a escravid�o ou a civiliza��o."48
Ainda em termos de infra-estrutura: na regi�o nordestina, esvaziada rapidamente pelo
tr�fico interno, e que vendia o bra�o negro

223


aos fazendeiros do Sul, o trabalho sob contrato j� se tornara fato consumado entre os
anos 60 e 70. Notava, ent�o, o primeiro ide�logo de nossa moderniza��o capitalista,
Tavares Bastos:
Apontarei o fato de j� estarem em Pernambuco, no Rio Grande do Norte e na Para�ba,
os homens livres, admitidos por sal�rio ao trabalho dos pr�prios engenhos e planta��es
de a��car. Digo o mesmo do Cear� quanto � nascente lavoura de caf�. N�o obstante a
c�lera e a exporta��o de escravos para o Sul, a produ��o daquelas prov�ncias n�o tem
diminu�do: a do Cear� tem aumentado muito. A sua agricultura vai-se melhorando,
introduzindo o arado e aplicando os motores a vapor. O senhor de engenho, nalgumas
localidades, quase que se vai tornando mero fabricante de a��car, sendo plantada por
vizinhos, ou lavradores agregados, grande parte da cana mo�da no engenho, o que � uma
divis�o econ�mica do trabalho.49
Uma das t�nicas das Cartas do solit�rio, escritas a partir de 1861 para o Correio
Mercantil, era a necessidade e a superioridade do trabalho livre.
Um pensamento liberal moderno, em tudo oposto ao pesado es-cravismo dos anos 40,
p�de formular-se tanto entre pol�ticos e intelectuais das cidades mais importantes,
quanto junto a bachar�is egressos das fam�lias nordestinas que pouco ou nada podiam
esperar do cativeiro em decl�nio.

O novo liberalismo ser� urbano, em geral; e ser� nordestino, em particular.50

Quanto �s tend�ncias ideol�gicas dos fazendeiros de caf� tidos por mais modernos
(principalmente os do Novo Oeste Paulista), seriam, na verdade, muito peculiares.
Neles, o que parece, � primeira vista, antiescravismo, �, a rigor, imigrantismo. O fato de
terem subido ao poder com a proclama��o da Rep�blica deu-lhes uma posi��o
hegem�nica que lhes permitiria resolver a quest�o do trabalho rural em termos pr�prios,
estreitos e pragm�ticos. Os seus planos confinaram mas n�o se confundiram com as
id�ias reformistas que v�o de Tavares Bastos a Rebou�as, de Quintino Bocayuva a
Joaquim Nabuco.
Distinguir entre correntes de opini�o e grupos partid�rios se faz uma necessidade
aguda quando se passa de uma perspectiva de longa dura��o � a que corre entre os
anos 60 e o fim do Imp�rio � para a an�lise mi�da das a��es e rea��es gremiais. Nos
vaiv�ns da petite histoire, que o leitor dos Anais do Parlamento poder� acompanhar,
224

n�o � raro ver membros do Partido Conservador, aliciados pela Coroa, defender a
liberta��o dos nascituros de mulher escrava (como o propuseram os gabinetes do
marqu�s de S�o Vicente e do visconde de Rio Branco), ou surpreender atitudes
retr�gradas entre os filiados ao Partido Liberal, como as do mineiro Martinho Campos,
que mais de uma vez se declarou escravocrata da gema.
Assim se deu tamb�m na quest�o da elei��o direta, reforma grata aos radicais de 60: as
opini�es se foram repartindo conforme os interesses regionais e cl�nicos e sem levar em
conta a cor partid�ria. Os velhos liberais moderados, que afinal a empreenderam, como


Sinirh-bu e Saraiva, apoucaram-na a tal ponto que, mantido o censo pecuni�rio e
liter�rio, reduziam o eleitorado a 1/20 da popula��o; o que provocou rea��es indignadas
em Silveira Martins, Saldanha Marinho e Jos� Bonif�cio, o mo�o, este �ltimo mestre de
dois estreantes no Parlamento, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. A interven��o do Andrada
na sess�o de 28 de abril de 1879 virou pe�a de antologia democr�tica: ' 'Neste
pa�s, a pir�mide do poder assenta sobre o v�rtice em vez de assentar sobre a base".
Ou ent�o, fazendo s�tira � cl�usula oficial que proibia o voto ao analfabeto: "Esta
soberania de gram�ticos � um erro de sintaxe pol�tica {apoiados e risos). Quem � o
sujeito da ora��o? (Hilaridade prolongada). N�o � o povo? Quem � o paciente? Ah!
descobriram uma nova regra: � n�o empregar o sujeito (bilaridade)".n
Mas qual o corte que separou, no fundo, os dois liberalismos? Se o tema da elei��o
direta foi o mais vistoso, o modo de tratar a quest�o servil ter� cavado um divisor de
�guas mais largo: este � o olhar retrospectivo de Joaquim Nabuco, que teoriza a hist�ria
do Imp�rio � luz da sua pr�tica abolicionista. A mem�ria do lutador traz ao primeiro
plano da crise institucional de 1868 as inquietudes sociais do pai, o senador: ' 'Eu
traduzia documentos do Anti-Slavery Rep�rter para meu pai que, de 1869 a 1871, foi
quem mais influiu para fazer amadurecer a id�ia da emancipa��o".52
A clivagem � fundamental, e assim se mant�m at� a hora em que a campanha se faria
irrevers�vel e o abolicionismo tomaria o vulto de um verdadeiro partido dentro dos
demais.
' 'Em 1884 deu-se a convers�o do partido liberal e em 1888 a do partido conservador."53

225


Andr� Rebou�as.

Jos� de Alencar.

' 'Trazendo de novo ao Parlamento o
seu leg�timo deputado do 1? e 3?
distritos, a briosa Prov�ncia de
Pernambuco d� uma tremenda li��o
aos negreiros da C�mara,
representados pelo seu chefe''.
Desenho de Agostini, na Revista Ilustrada. 13 de junho de 1885.


Joaquim Nabuco.



Joaquim Nabuco tem plena consci�ncia do contraste do novo pensamento com o velho
discurso regressista ou conciliador. S�o dois blocos hist�ricos que incluem toda a
sociedade civil e se manifestam sob a forma difusa da opini�o p�blica.
"A opini�o, em 1845, julgava leg�tima e honesta a compra de africanos transportados
trai�oeiramente da �frica, e introduzidos por contrabando no Brasil."54
No artigo "A reorganiza��o do Partido Liberal", volta a ser incisivo ao expor a dial�tica
do liberalismo em face da escravid�o:
A� est� uma profunda diverg�ncia entre o novo liberalismo e o antigo, o qual ainda
existe, em toda a sua for�a, mas felizmente tendo atingido ao seu limite de crescimento,
e devendo portanto declinar e n�o mais expandir-se. A primeira grande diverg�ncia foi
essa do abolicionismo, que op�s ao antigo esp�rito pol�tico do partido o esp�rito
verdadeiramente popular, e substituiu a luta das teses constitucionais sem alcance e sem
horizonte pela luta contra os poderosos privil�gios de classe, contr�rios ao
desenvolvimento da na��o. Pela primeira vez ent�o o Partido Liberal saiu do terreno das
discuss�es escol�sticas, que s� interessavam � classe governante, para entrar no terreno
das reformas sociais, que afetam as massas inconscientes do povo.55
N�o se tratava, pois, de um simples renascimento liberal, mas de uma ideologia de
oposi��o que metia a sua cunha dentro do pr�prio partido. Uma forma conscientemente
moderna de pensar os problemas do trabalho e da cidadania. Se ao observador da
Hist�ria Ocidental essa apologia do assalariado poder� parecer um tanto retarda-t�ria, �
porque o nosso capitalismo tamb�m era, na palavra de um seu int�rprete feliz, um
capitalismo tardio.% O autor da express�o, o economista Jo�o Manuel Cardoso de Melo,
estudando os limites internos � expans�o do antigo regime, concluiu que ' 'os �ltimos
anos da d�cada de Sessenta marcam a crise da economia mercantil-escravista cafeeira. E
como veremos, o momento decisivo da crise da economia colonial".57
A resposta � crise veio tanto dos movimentos abolicionistas urbanos (e nordestinos)
quanto, logo depois, da pol�tica imigrantista dos fazendeiros de S�o Paulo: as
motiva��es sociais e morais eram diferentes entre si, mas, por sendas opostas,
concorreram para o fim do cativeiro.

228

De qualquer modo, a ruptura do equil�brio pol�tico em 1868 n�o poderia ter levado a
medidas radicais pelo simples fato de o projeto imigrantista n�o estar, �quela altura,
amadurecido, mas apenas idealizado por alguns homens p�blicos mais sens�veis �
escassez, real ou potencial, da m�o-de-obra. As medidas pr�ticas viriam dois ou tr�s
lustros mais tarde.
Os textos pol�micos que exprimem o inconformismo liberal de 1868-9 ainda n�o trazem
como punctum dolens �nico a quest�o do trabalho; esta aparece como item de um
programa no qual a �nfase � dada � reforma eleitoral. O novo liberalismo, de extra��o
urbana, quer dar voz e voto aos seus virtuais eleitores:
' 'Atualmente a aspira��o mais ardente de todos os brasileiros esclarecidos, como tem


sido de todos os partidos de oposi��o, � liberdade ampla de elei��o; pronunciamento
franco da opini�o do pa�s nos com�cios eleitorais", diz em carta p�blica Jos� Ant�nio
Saraiva ao conselheiro Nabuco de Ara�jo que lhe pedira sua ' 'opini�o acerca das
reformas que devem figurar no programa liberal".58
A conjuntura excitava o debate preferencial sobre o tema da representa��o. A derrubada
do minist�rio Zacarias e a nomea��o de um gabinete confiado ao ultra visconde de
Itabora� tinham posto a nu a for�a real do Poder Moderador e a impot�ncia dos
deputados; em suma, a precariedade de todo o sistema partid�rio.
"Que o Sr. D. Pedro II tem de fato um poder igual ao de Na-pole�o m, � outra verdade
de que eu estou profundamente convencido. A constitui��o francesa, por�m, � a base do
poder daquele monarca, ao passo que o falseamento do voto � a origem do excessivo
poder do Imperador do Brasil", acusava Saraiva.
Mas conv�m atentar para um sintoma de nova mentalidade. O protesto dos liberais n�o
se esgotou no clamor por elei��es diretas e livres de tropelias provocadas pelos
coron�is. Nas ondas dessa mar� democr�tica tamb�m se imp�e e se move a id�ia do
trabalho assalariado como projeto a m�dio prazo. N�o � ainda a reivindica��o primeira.
Falta-lhe concre��o tem�tica; falta a resposta � grande pergunta: como substituir, aqui e
agora, o bra�o negro, sustento exclusivo do caf�? A liberdade dos nascituros mediante
indeniza��o � ainda a proposta-limite. Mas, de qualquer modo, o princ�pio do contrato
livre reponta e ser� incontorn�vel em mais de um contexto. Na carta de Saraiva:

229


Do falseamcnto das elei��es derivam todas as nossas dificuldades, bem como do trabalho
escravo todos os nossos atrasos industriais. S�o estes, pois, em meu humilde conceito, os dois
pontos cardeais para que devem convergir completamente a aten��o e o esfor�o do Partido
Liberal.
Com a elei��o livre, com a desapari��o do elemento servil, e com a liberdade de imprensa que
j� possu�mos, o Brasil caminhar� seguro para seus grandes e gloriosos destinos, e em um futuro
n�o muito remoto colocar-se-� entre as na��es mais adiantadas.
Com a escravid�o, por�m, do homem e do voto, n�o obstante a liberdade de nossa imprensa,
continuaremos a ser, como somos hoje, menosprezados pelo mundo civilizado, que n�o pode
compreender se progrida t�o pouco com uma natureza t�o rica.
A polaridade sem�ntica � esta: nossos atrasos versus na��es mais adiantadas. A consci�ncia
aguda do atraso se forma de Tavares Bastos a Nabuco, de Rebou�as a Rui Barbosa, em fun��o
do contraste entre cativeiro e trabalho livre. Com os olhos postos na Inglaterra e nos Estados
Unidos os nossos pol�ticos progressistas exercer�o uma cr�tica cerrada ao regime.
No Manifesto do Centro Liberal, lan�ado em mar�o de 1869, al�m da radiografia dos abusos
que se seguiram � subida dos conservadores, avulta a exig�ncia de reformas j� ent�o vistas
como o necess�rio meio-termo entre o regresso e a revolu��o:
Ou a reforma.
Ou a revolu��o.
A reforma para conjurar a revolu��o.
A revolu��o, como conseq��ncia necess�ria da natureza das coisas, da aus�ncia do sistema
representativo, do exclusivismo e oligarquia de um s� partido.
N�o h� que hesitar na escolha:
A reforma!
E o Pa�s ser� salvo.
Assinavam: Jos� Thomaz Nabuco de Ara�jo, Bernardo de Souza Franco, Zacarias de G�is e
Vasconcellos, Ant�nio Pinto Chichorro da Gama, Francisco Jos� Furtado, Jos� Pedro Dias de
Carvalho, Jo�o Lus-tosa da Cunha Paranagu�, Te�filo Benedicto Ottoni e Francisco Oc-taviano
de Almeida Rosa.59
Qual o conte�do dessa reforma salvadora? O programa se formulou em outro texto, subscrito
pelos mesmos nomes e publicado

230
inicialmente pelo Di�rio da Bahia em 16 de maio de 1869. Comp�e-se de cinco pontos, dos
quais o �ltimo �, literalmente, ' 'Emancipa��o dos escravos'', seguido por este coment�rio
restritivo: ' 'consistindo na liberdade de todos os filhos de escravos que nascerem desde a data
da lei, e na alforria gradual dos escravos existentes, pelo modo que ser� oportunamente
declarado".
Pode-se dizer que at� a deflagra��o da campanha abolicionista na C�mara e na imprensa, entre
1879 e 1880, as bandeiras liberais ser�o precisamente estas: a liberdade dos nascituros mediante
ressar* cimento e a emancipa��o gradual dos escravos restantes.
Mais adiante, o manifesto lan�a um par�grafo t�tico que denuncia o receio de dividir o novo
partido em alas divergentes, o que tornaria dif�cil a a��o do Centro Liberal em uma hora em que
a unidade anticonservadora se impunha:
A emancipa��o dos escravos n�o tem �ntima rela��o com o objeto principal do programa,


limitado a uma certa ordem de abusos; � por�m uma grande quest�o da atualidade, uma
exig�ncia imperiosa e urgente da civiliza��o desde que todos os Estados aboliram a escravid�o,
e o Brasil � o �nico pa�s crist�o que a mant�m, sendo que na Espanha essa quest�o � uma
quest�o de dias.
Certo, � um dever inerente � miss�o do Partido Liberal, e uma grande gl�ria para ele a
reivindica��o da liberdade de tantos milhares de homens que vivem na opress�o e na
humilha��o.60
As tintas renovadoras do programa ter�o sido obra da ala m�vel do partido. Refletem o
pensamento de Te�filo Ottoni, que dirigira uma experi�ncia de migra��o alem� no vale do
Mucuri, de Francisco Octaviano, de Tavares Bastos, de Nabuco de Ara�jo. A evolu��o
ideol�gica do �ltimo, que o filho acompanhou passo a passo em Um estadista do Imp�rio, faz
supor que alguma coisa de mais profundo acontecera desde o seu cauto compromisso com a
pol�tica senhorial at� a busca de uma alternativa moderna. A nova posi��o, de que foi paradigma

o discurso de sorites proferido em 17 de julho de 1868, abriu, conforme o ju�zo enaltecedor de
Joaquim Nabuco, ' 'a fase final do Imp�rio".61
A ora��o assesta um golpe de mestre no estreito formalismo jur�dico do sistema, precisamente
no trecho em que distingue entre legalidade e legitimidade das institui��es. O assunto da
pol�mica era,
231


como se sabe, a recente nomea��o por Pedro li de um gabinete conservador sem
respaldo na C�mara: ato legal, pois cabia � Coroa escolher e demitir minist�rios; mas
ato ileg�timo, porque a maioria absoluta do Parlamento era liberal.
Feita com clareza a distin��o, em nome da consci�ncia e da justi�a, Nabuco de Ara�jo
tamb�m a aplica � institui��o do cativeiro: ' 'A escravid�o, verbi gratia, entre n�s � um
fato autorizado pela lei, � um fato legal, mas ningu�m dir� que � um fato leg�timo,
porque � um fato condenado pela lei divina, � um fato condenado pela civiliza��o, � um
fato condenado pelo mundo inteiro".62
O que mudara, substancialmente?
O novo liberalismo j� tem plenas condi��es mentais para dizer que a escravid�o, ainda
que formalmente legal, � ileg�tima. O mesmo Nabuco, catorze anos antes desse
discurso, pensara e agira diversamente. Em 1854, quando ministro da Justi�a do
gabinete conciliador de Paran�, ele tinha pactuado com uma infame decis�o oficial que
prescrevera, isto �, cancelara os efeitos da lei de 7 de novembro de 1831, pela qual a
Reg�ncia conviera em declarar livres os africanos aqui desembarcados depois dessa
data. O ministro Nabuco n�o s� aceitara aquela aberta viola��o da lei de 1831 como a
defendera em termos da raz�o de Estado, aconselhando o presidente da prov�ncia de
S�o Paulo a lan�ar m�o dela no caso particular de um africano, de nome Bento, trazido
clandestinamente ao Brasil ap�s a cessa��o legal do tr�fico. O escravo tinha fugido e, ao
ser apreendido pela pol�cia, foi liberado pelo juiz de direito que conseguira apurar a data
de sua entrada. Nabuco de Ara�jo, por�m, justifica os direitos do senhor que o
reclamava, alegando ' 'o bem dos interesses coletivos da sociedade, cuja defesa incumbe
ao governo'', e remata: ' 'N�o conv�m que se profira um julgamento contra a lei, mas
conv�m evitar um julgamento em preju�zo desses interesses, um julgamento que
causaria alarma e exaspera��o aos propriet�rios".63
Em 1854, leg�timo era, para o ministro Nabuco, o interesse dos fazendeiros; e legal, mas
infring�vel, a lei que protegia a liberdade do africano. Em 1868, ao contr�rio, leg�tima
passa a ser, no seu discurso, a liberdade dos filhos de mulher escrava, e apenas legal,
logo pass�vel de reforma, o direito do senhor � propriedade do nascituro.
A invers�o do crit�rio tem um sentido forte: o liberalismo de 68 j� n�o � o liberalismo
de 54. O conte�do concreto da legitimidade,

252

que � o cora��o dos valores de uma ideologia pol�tica, tinha mudado. E o motor dessa
transforma��o fora o ideal civilizado do trabalho livre; n�o ainda a sua necessidade
absoluta e imediata, mas o seu valor. Nesse mesmo ano-chave de 1868 publicava
Quintino Bocayuva (liberal pr�-republicano) um folheto sobre a crise da lavoura, em
que advogava uma pol�tica de emigra��o chinesa a curto prazo, subsidiada pelo
Estado.64
Da� � batalha parlamentar de 1871 foi um passo que os novos liberais deram com �xito
e sem v�nculo obrigado com a sua cor partid�ria. Entre os 61 votantes a favor da Lei do


Ventre Livre, bem como entre os 35 que lhe foram contr�rios, figuravam membros de
ambos os partidos pol�ticos do Imp�rio. O caf� paulista votou contra. A mentalidade
empresarial dos fazendeiros do Oeste, j� em plena expans�o, n�o era, por�m, t�o
moderna, l�cida e progressista como a sup�s a historiografia paulista do s�culo XX. Era
ainda escravista.

REFORMA E ABOLI��O

No contexto maior do novo liberalismo, que dar� o tom ideol�gico ao fim do Imp�rio,
n�o � exato falar apenas de um abolicionismo. O plural � mais consent�neo com a
variedade de pontos de vista e de interesses espec�ficos que, afinal, concorreram para a
Lei �urea na forma pela qual se promulgou, e sem a indeniza��o t�o reclamada ainda
nos anos 80.
Joaquim Nabuco distinguiu, em Minha forma��o, cinco for�as entre os agentes daquele
desfecho:
1) os abolicionistas que fizeram a campanha no Parlamento, na imprensa e nos meios
acad�micos;
2) os militantes da causa, abertamente empenhados em ajudar as fugas em massa e
instruir os processos de alforria;
3) os propriet�rios de escravos, sobretudo nordestinos e ga�chos, que se puseram a
libert�-los em grande n�mero nos �ltimos anos do movimento;
4) os homens p�blicos (Nabuco os chama generosamente estadistas) mais ligados ao
governo, que, a partir da Fala do Trono de 1867, mostrou sua inten��o de resolver
gradualmente a quest�o servil;
5) a a��o pessoal do imperador e da princesa regente.
233


Quanto �s duas primeiras categorias, "formavam c�rculos con-c�ntricos, compostos
como eram em grande parte dos mesmos elementos. � a elas que pertence o grosso do
partido abolicionista, os l�deres do movimento".65
O depoimento � o que se pode considerar de id�neo em mat�ria de campanha
abolicionista. Nabuco se inclui no primeiro grupo, enquanto deputado do Partido
Liberal, defensor de medidas jur�dicas, fundador do jornal O Abolicionista (1881) e
autor de uma obra de combate densa e bela, O abolicionismo (1883). O seu testemunho
merece algumas reflex�es que incidam na caracteriza��o ideol�gica dos abolicionismos.
Pode-se come�ar pela sugest�o de Nabuco formando uma categoria ampla que abrace os
grupos conc�ntricos dos reformistas e dos militantes. E fazer outro tanto com os demais.
Deixando para o lugar oportuno o destaque das diferen�as internas, ter�amos dois perfis
de antiescravistas:

I

Para os primeiros, o desafio social e �tico que a sociedade brasileira teria de enfrentar
era o de redimir um passado de abje��o, fazer justi�a aos negros, dar-lhes liberdade a
curto prazo e integr�-los em uma democracia moderna.
No horizonte, viam um regime escorado na ind�stria, no trabalho assalariado, na
pequena e m�dia propriedade, no ensino prim�rio gratuito, no sufr�gio universal.
Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Jos� do Patroc�nio, Andr� Rebou�as, Lu�s Gama,
Ant�nio Bento e seus seguidores concebiam a aboli��o como medida mais urgente de
um programa que se cumpriria com a reforma agr�ria, a democracia rural (a express�o
� de Rebou�as) e a entrada dos trabalhadores em um sistema de concorr�ncia e
oportunidade.
As ra�zes culturais dessa perspectiva mergulham fundo no discurso dos filantropos
europeus da primeira metade do s�culo xrx, lidos e citados entre n�s desde os anos 50,
e, mais diretamente, nos modelos econ�micos ingleses e norte-americanos que
constitu�am o ideal do novo liberalismo.66

234

As raz�es de teor progressista j� se vinham articulando com nitidez no discurso que se
formou depois da supress�o do tr�fico. Os marcos mais ostensivos s�o as obras de dois
pontas-de-lan�a de nossa cr�tica social em um sentido j� francamente liberal-capitalista:
Tavares Bastos e Perdig�o Malheiro.
Ambos come�aram a escrever na d�cada de 60. As cartas do solit�rio saem em 1863. A
primeira parte de A escravid�o no Brasil, em 1866. E se quis�ssemos remontar um
pouco mais, at� os anos 50, o nome expressivo seria o do pioneiro dos nossos
empres�rios angl�fi-los, Irineu Evangelista de Sousa.
Tavares Bastos e Perdig�o Malheiro, membros ativos do Instituto dos Advogados,
forjaram as raz�es jur�dicas de um discurso que rompia os la�os com o conformismo
agroescravista. Os seus argumentos contra o latif�ndio e em prol do trabalho livre ir�o
colorir-se de matizes radicais e humanit�rios na campanha abolicionista dos anos 80,


mas a antinomia fundamental j� fora exposta em seus ensaios: ou progresso, ou
escravid�o.

E compreens�vel que haja atuado uma diferen�a de ritmo social entre as duas gera��es.
Quando Rebou�as, Nabuco e Patroc�nio desfecharam a campanha pela aboli��o
incondicional, o cativeiro se achava com os dias contados, e alguns pol�ticos mais
solertes do Oeste paulista j� tinham desencadeado o processo da imigra��o europ�ia.
Mas o contexto em que se inseriam Tavares e Perdig�o ainda dependia quase
inteiramente do bra�o negro. Comparem-se as estimativas: 1715 mil escravos em 1864
contra apenas 723 419 em 1887.
Em 1864, o liberalismo moderno, reformista, era um valor ideol�gico em busca de uma
armadura l�gica, mas n�o ainda um grito de alarme por um problema que exigisse
solu��o imediata; explica-se o gradualismo de algumas propostas daqueles dois
pioneiros. A partir de 1880, a urg�ncia saltava aos olhos da maioria: a campanha queria
construir o dia de amanh�.
E importante ressaltar que n�o s� de homens pol�ticos se fez a milit�ncia. Um
movimento intelectual forte, que retoma ' 'cientificamente" os ideais das Luzes, estava
em curso ao longo desses anos. S�lvio Romero resumiu-o com a express�o ' 'um bando
de id�ias novas", fixando tamb�m em 1868 o seu ponto de partida.67 Positivismo e
evolucionismo, Comte e Spencer, formam o eixo principal de refer�ncia. O trabalho
livre e um regime pol�tico mais representativo eram as metas a ser atingidas.

235


Os positivistas religiosos abra�aram logo as propostas mais radicais. Em 1884, Miguel
Lemos abre o livro O positivismo e a escravid�o moderna com uma dedicat�ria ao her�i
negro da rebeli�o de S�o Domingos: "A Santa Mem�ria/ do/ Primeiro dos Pretos/
Toussaint Louverture/ (1746-1803),/ Ditador do Haiti. Promotor e M�rtir/ da liberdade/
de sua ra�a".
A obra � uma cole��o de textos antiescravistas de Augusto Com-te. Traz em ap�ndice
os Apontamentos para a solu��o do problema servil no Brasil, escrito datado de 22 de
Shakespeare de 92 (30 de setembro de 1880) e assinado por Teixeira Mendes e outros
ortodoxos. Nele j� se repudia a imoralidade da criminosa heran�a colonial, acusa-se o
delito nacional que foi a Guerra do Paraguai, arg�i-se de ileg�timo o instituto da
propriedade escrava; enfim, prop�e-se que, libertado, o escravo se transforme em
oper�rio com n�mero de horas previsto em lei, folga semanal e sal�rio razo�vel.
Ter�amos aqui, em embri�o, as medidas sociais preconizadas pelos jacobinos e, mais
tarde, pelos tenentes disc�pulos do comtiano Benjamin Constant?
Em manifesto de 21 de Dante de 95 (5 de agosto de 1883), Miguel Lemos prega a
aboli��o imediata, sem indeniza��o aos senhores, e o aproveitamento dos libertos como
assalariados. Bom ortodoxo, pede ao imperador que aja como ditador, sem consultar o
Parlamento, ' 'que s� serve para garantir a liberdade das mediocridades intrigantes",
conforme j� advertira o augusto mestre.
H� uma estreita faixa de intersec��o ideol�gica que aproxima os novos liberais e alguns
l�deres rep�blicos radicais como Silva Jardim, Lu�s Gama e Raul Pomp�ia. Para todos o
div�rcio das �guas era a quest�o do trabalho livre. Guardavam, por isso, dist�ncia do
n�cleo paulista manobrado por fazendeiros ainda bastante conservadores na d�cada de
70 e princ�pios da seguinte. "Os vossos barretes fr�gios s�o coadores de caf�" � frase
de Pomp�ia lan�ada em rosto aos membros do Clube da Lavoura de Campinas � diz
bem de um diss�dio que se transformara em aberta oposi��o.
Ainda n�o foi explorado em toda a sua potencialidade o veio reformista social do
positivismo entre n�s. Ele fluir�, entre os oficiais jovens do Ex�rcito, dos jacobinos aos
tenentes, em sua �spera luta an-tiolig�rquica de que a Coluna Prestes e a Revolu��o de
30 ser�o os momentos mais complexos. Em outra vertente, os esquemas pol�ticos
comtianos emprestariam moldes organizat�rios a inquietudes sociais

236
modernas que viriam a codificar-se no trabalhismo ga�cho de um Lin-dolfo Collor, a
quem o positivista Get�lio Vargas nomeou primeiro ministro do Trabalho em 1931, e de
quem recebeu quase toda a nova legisla��o social. Legisla��o que, descontados os
incisos corporativos, em boa hora cancelados pela �ltima Constituinte, vem resistindo
h� mais de meio s�culo e ainda hoje serve de espinha dorsal aos direitos trabalhistas
brasileiros.
Cabe registrar uma diferen�a de modos de pensar a rela��o entre sociedade civil e
Estado. O positivismo ortodoxo (Miguel Lemos, Teixeira Mendes e, menos


enfaticamente, Benjamin Constant) sustentava o projeto de um Estado centralizante,
racionalizador e, no limite, tutelar. O evolucionismo de tipo spenceriano (de um S�lvio
Ro-mero, por exemplo) pendia para o liberalismo cl�ssico e acreditava na sabedoria da
sele��o natural que, mediante processos de concorr�ncia, premiaria os mais capazes.
Coerentemente: os positivistas ortodoxos queriam um presidente forte, um c�rebro ativo
na chefia do Estado; os evolucionistas, ao contr�rio, far�o o elogio do parlamentarismo
burgu�s com suas reformas espont�neas, lentas e graduais. Uns e outros, por�m (e este �
um signo da sua modernidade), propunham um modelo pol�tico que substitu�sse o do
velho Imp�rio olig�rquico e escravista.
Assim, voltando o nosso olhar para os anos cruciais de 1860-70, surpreenderemos um
tom geral de inconformismo, uma �nsia de renova��o, cujo alvo era desemperrar o
regime mon�rquico: foi nesse clima que o novo liberalismo se gestou; e foi esse
descontentamento que permitiu a filtragem ideol�gica diversificada das doutrinas
europ�ias.
A Guerra da Secess�o americana dividiu, tamb�m entre n�s, os dois campos: ao passo
que um Varnhagen, padroeiro da historiografia tradicional, mostrava simpatia pelos
fazendeiros do Sul, Tavares Bastos e Perdig�o Malheiro viam na luta do Norte e na
figura de Lincoln exemplos de uma nova mentalidade que devia ser imitada. Neste,
como em outros momentos de nossa hist�ria de id�ias, as rela��es entre os centros de
poder e as suas periferias merecem receber um tratamento que n�o as reduza �s
afirma��es de tudo ou nada. Glosando uma hip�tese de John Dewey sobre a forma��o
da consci�ncia pessoal, � poss�vel dizer que os grupos culturais e pol�ticos das na��es
dependentes n�o apenas sofrem como tamb�m escolhem e trabalham as influ�ncias dos
p�los dominantes do sistema.

237


O reformismo liberal, que vai em crescendo de 1868 em diante, resulta de um embate
interno cujas vari�veis econ�micas e sociais j� foram inventariadas: extin��o do tr�fico,
problemas de escassez da for�a de trabalho, aumento do mercado, urbaniza��o,
migra��o... Ao mesmo tempo, cada um desses aspectos do sistema traz em si uma face
internacional.
O confronto de nossas particularidades com o movimento da Hist�ria mundial, nessa
fase de ascenso do imperialismo, ora aponta para variantes de um grande esquema de
integra��o p�s-colonial (z que esteve sujeita a Am�rica Latina inteira), ora d� relevo a
certos aspectos diferenciados, raciais e culturais, que s�o tomados como pr�prios da
nova forma��o nacional. Este nacional, assim posto em evid�ncia, pode ser abstra�do

� e potenciado � tanto pelos conservadores, que o adotam como bandeira
tradicionalista (a p�tria dei criollo), quanto, em registro oposto, pelos reformistas, que
nele advertem um p�lo catalisador dos grupos descontentes: foi o nacionalismo radical
dos jacobi-nos do fim do s�culo; foi o nacionalismo cr�tico dos tenentes de 1922-30.
O nacionalismo conservador exprimiu-se de modo org�nico nos anos de apogeu do
Imp�rio escravista: est� nas p�ginas eruditas da Revista do Instituto Hist�rico e
Geogr�fico; permeia a rica messe documental da Hist�ria Geral do Brasil do visconde
de Porto Seguro; e � o cimento m�tico do romance indianista e colonial de Jos� de
Alencar.
No outro extremo, o nacionalismo reformista ou radical quer o progresso em termos de
eleva��o do Brasil ao plano da civiliza��o ocidental. Tavares Bastos prega uma pol�tica
nacional de migra��o, defende a abertura do Amazonas � cabotagem internacional, o
que de fato ocorre em 1866, ano em que tamb�m se instala o primeiro cabo
transatl�ntico entre a Europa e o Brasil. Perdig�o Malheiro, que mili-tava com Tavares
Bastos no Instituto dos Advogados, faz minucioso levantamento das leis antiescravistas
decretadas nos Estados Unidos, na Europa e nas col�nias inglesas, francesas e
holandesas das �ndias Ocidentais. O Brasil se tornaria uma grande na��o quando se
erguesse ao n�vel dos padr�es internacionais. A ret�rica de Jos� Bonif�cio, o Mo�o, e de
Castro Alves e Rui Barbosa, seus disc�pulos, ir� na mesma dire��o, que j� inclui
lamentos e protestos contra a cumplicidade dos brasileiros no massacre dos negros. � o
esp�rito de Vozes d'�frica
238
e de O navio negreiro. Algumas atitudes pol�ticas de d. Pedro li parecem indicar que,
embora hesitantemente, ele passou do p�lo nacional-conservador para o p�lo nacional-
reformista, guiado pelo religioso respeito que lhe inspiravam as culturas inglesa e
francesa.
De resto, h� coincid�ncias expressivas que, muito provavelmente, s�o mais do que...
meras coincid�ncias. Um dos argumentos dos escravistas brasileiros era a compara��o
que faziam entre a vida do nosso cativo e as agruras que ent�o sofriam os prolet�rios
europeus acorrentados a uma jornada de trabalho que ia de dezesseis at� dezoito horas

di�rias. Assim pensava Alencar. Viu-se, p�ginas atr�s, como um negociante do Rio de
Janeiro se referia aos escravos das f�bricas inglesas para melhor escarmentar os
philanthropists que combatiam a institui��o. � instrutivo seguir o discurso paralelo nos
debates que se travaram na Fran�a de Lu�s Filipe entre os advers�rios e os propugnadores
da escravid�o colonial nas Antilhas. Os deputados da Mar-tinica e de
Guadalupe encareciam o bom trato dado aos negros nas suas ilhas e deploravam a m�
sorte dos oper�rios dos sub�rbios parisienses.
Estes, por�m, cerraram fileiras e enviaram um abaixo-assinado � Assembl�ia
desmascarando as raz�es dos representantes coloniais. O documento vem citado no belo
pref�cio que Aim� C�saire fez � reedi��o dos textos do abolicionista Victor Schoelcher.
Vale a pena transcrev�-lo na �ntegra:
Messieurs les Deputes,
Les soussign�s ouvriers de Ia capitale ont l'honneur, en vertu de l'ar-ticle 45 de Ia
Charte Constitutionnelle, de venir vous demandei de bien vouloir abolir, dans cette
session, l'esclavage. Cette lepre, qui n'est plus de notre �poque, existe encore dans
quelques possessions fran-�aises. Cest pour ob�ir au grand pr�ncipe de Ia fraternit�
humaine, que nous venons vous faire entendre notre voix en faveur de nos malheu-reux
fr�res, les esclaves. Nous �prouvons aussi le besoin de protester hautement, au nom de
Ia classe ouvri�re, contre les souteneurs de l'es-clavage, qui osent pr�tendre, eux qui
agissent en connaissance de cause, que le sort des ouvriers fran�ais est plus d�plorable
que celui des esclaves. Aux termes du Code Noir, �dition de 1685, articles 22 et 25, les
possesseurs doivent nourrir et habiller leur b�tail humain; il resulte des publications
officielles faites par le minist�re de Ia Marine et des Colonies, qu'ils se d�chargent de ce
soin, en concedam le samedi

239


de chaque scmaine aux esclaves. Ceux de Ia Guyane fran�aise n'ont m�me qu'un samedi
n�gre par quinzaine, contrairement aux d�fen-ses de 1'article 24 du Code Noir et aux
p�nalit�s de 1'article 26.
Quels que soient les vices de 1'organisation actuelle du travail en France, l'ouvrier est
libre, sous un certain pount de vue, plus libre que les salari�s d�fenseurs de Ia propri�t�
pensante.
L'ouvrier s'appartient; nul n'a de droit de le fouetter, de le vendre, de le s�parer
violemrnent de sa femme, de ses enfants, de ses amis. Quand bien m�me les esclaves
seraient nourris et habill�s par leurs possesseurs, on ne pourrait encore les estimer
heureux, car comme l'a si bien r�sum� M. le duc de Broglie, il faudrait autant dire que
Ia con-dition de Ia bete est pr�f�rable � celle de l'homme, et que mieux vaut �tre une
brute qu'une cr�ature raisonnable. Fiers de Ia sainte et g�n�-reuse initiative que nous
prenons, nous sommes s�rs que notre p�ti-tion aura de 1'�cho dans Ia noble patrie, et
nous avons confiance dans Ia justice des deputes de France.
Paris, le 22 janvier 1844. Sign�: Julien Gall� et 1505 signatures.68
Comenta Aim� C�saire: ' 'Nesse dia de 22 de janeiro de 1844 � selada a alian�a de dois
proletariados: o proletariado oper�rio da Europa, o proletariado servil das col�nias".
Perdig�o Malheiro, em A escravid�o no Brasil, revela-se altamente informado dessa
recente campanha abolicionista francesa, mencionando numerosas vezes os trabalhos de
Victor Schoelcher (em especial a Histoire de l'esclavage pendant les deux dernieres
ann�es, 1847), de A. Cochin {De 1'abolition de l'esclavage, 1861), de Wallon (Histoire
de 1'esclavage dans l'Antiquit� et dans les colonies, 1847), al�m de relat�rios oficiais
editados pelas comiss�es parlamentares nos anos que precederam a aboli��o total nas
col�nias. A obra de Perdig�o ser�, por seu turno, refer�ncia obrigat�ria para os
argumentos abolicionistas de Joaquim Nabuco entre 70 e 80. H�, portanto, uma
coer�ncia interna no projeto reformista brasileiro, que soube incorporar, na sua justa
medida, informa��es vindas de movimentos franceses e ingleses que de pouco o
precederam. Essa liga��o estreita com a Europa liberal n�o altera (antes, refor�a) a
solidez doutrin�ria da nova ideologia que se exprime no Parlamento e na imprensa.
Do outro lado, a rea��o do velho marqu�s de Olinda � quest�o formulada em abril de 67
pelo chefe de gabinete, Zacarias de G�is

240
("Conv�m abolir diretamente a escravid�o?"), define o ethos agro-mercantil que ainda
n�o morrera. Respondeu Ara�jo Lima: "Os publicistas e homens de Estado da Europa
n�o concebem a situa��o dos pa�ses que t�m escravid�o. Para c� n�o servem suas
id�ias" '.69
Para o ultraconservador marqu�s a id�ia da aboli��o gradual ainda soava, em 1867 (e
apesar do apoio que lhe davam Pedro n e o presidente do Conselho), um eco de
ideologias ex�ticas. No entanto, o processo j� se fazia irrevers�vel, ' 'uma quest�o de
oportunidade e de forma'', como o governo respondera � comiss�o de intelectuais


franceses que lhe pedira a extin��o do trabalho servil. Os debates parlamentares em
1871 revelariam que o novo liberalismo n�o avan�aria sem dobrar tenazes resist�ncias.70

tf

Conv�m agora voltar os olhos para a participa��o tardia, mas eficaz, dos que detinham
os cord�is mais fortes da economia nacional: os fazendeiros do Centro-Sul.
� diferen�a das posi��es de Tavares Bastos, Nabuco, Rebou�as, Rui Barbosa, Lu�s
Gama, Patroc�nio e Ant�nio Bento, a consci�ncia social dos cafeicultores e de seus
porta-vozes no Parlamento se constituiu lentamente e sempre colada a seus planos
econ�micos de curto ou m�dio prazo. Se o objetivo dos primeiros era emancipar o
escravo o quanto antes, a meta dos �ltimos era, e foi coerentemente, passar do trabalho
escravo para o livre em tempo h�bil e sem maiores preju�zos. Se, a uma certa altura
(1886-8), os esfor�os de todos se cruzaram, provocando a Lei �urea, o sentido imanente
das a��es dos primeiros nunca se identificou com o das a��es dos segundos.

Os abolicionistas queriam libertar o negro; os cafeicultores precisavam substituir o
negro. Da�, a diferen�a de ritmo e de acento. Os abolicionistas aceleravam o processo,
porque pensavam em aliviar o sofrimento do escravo; os fazendeiros retardaram quanto
puderam a a��o do Estado, pois s� cuidavam do quantum de m�o-de-obra que ainda
lhes seria dado arrancar aos derradeiros cativos antes de despach�-los para o vasto
mundo da pura subsist�ncia ou do lumpen.
As cautelas do Partido Republicano Paulista, que tanto indignaram Lu�s Gama, e a sua
ades�o de �ltima hora s� se compreendem � luz do contexto pragm�tico de onde sa�ram.
Hoje, calados os louvo


241


res sem medida com que se exaltou a lucidez ou o esp�rito moderno dos fazendeiros do
Oeste Novo, pode-se reconstituir com isen��o os passos deveras prudentes dados pelos
homens do caf�, desde a sua aberta recusa � Lei do Ventre Livre (os votos de Rodrigo
Silva e Ant�nio Prado em 1871), at� o seu ingresso no movimento j� triunfante em
1887; ent�o, o problema da for�a de trabalho j� fora equacionado em termos de
imigra��o europ�ia maci�a subvencionada pelos governos imperial e provincial.
Os estudos de Conrad e Gorender, que ratificam, por sua vez, pontos de vista de
Joaquim Nabuco e Jos� Maria dos Santos, p�em a nu a relut�ncia dos republicanos
paulistas, muito sens�veis nos anos 70 no que tocasse a medidas dr�sticas.
Em oposi��o aos liberais p�s-68, como Andr� Rebou�as, que propunham o regime da
pequena propriedade, a extin��o imediata do trabalho compuls�rio e a moderniza��o
via ind�stria, os republicanos da grande lavoura centraram baterias no seu projeto de
descentraliza��o olig�rquica. Cada prov�ncia, de acordo corh o esp�rito do Manifesto de
1873, deveria resolver, a seu modo e no tempo favor�vel, o problema da substitui��o do
bra�o escravo. Nessa altura, o tr�fico interprovincial ainda trazia levas consider�veis de
negros do Nordeste para S�o Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Em 1870, dizia-se na Assembl�ia Legislativa de S�o Paulo, que esta era a Prov�ncia que
menos deveria recear a diminui��o de bra�os, pois a� estavam se concentrando todos os
escravos do Norte do Imp�rio. Nessa ocasi�o, Paulo Egydio defendia a legitimidade do
com�rcio de escravos, considerando-o ' 'uma ind�stria muito leg�tima e consagrada entre
n�s". Manifestava-se contra a restri��o dessa liberdade pela sobrecarga de impostos:
meia sisa, impostos imperiais e municipais, gravando as vendas.71
A aboli��o, que para as prov�ncias do Norte e Nordeste e para os profissionais urbanos
poderia vir sem maiores traumas, n�o interessava ainda aos fazendeiros de S�o Paulo
que apenas esbo�avam os seus projetos de migra��o. Um dado de fato: at� 1880 o
governo provincial de S�o Paulo nada gastou com a vinda de bra�os europeus. Para os
bandeirantes do caf� a ideologia conveniente parecia ainda ser a beatitude physiocratica
que j� irritava os primeiros defensores sistem�ticos da ind�stria nacional. Estes, citando
exemplos franceses

242
e yankees, lutavam por uma pol�tica protecionista que escorasse a nascente ind�stria.
Mas em v�o. O caf� mantinha a primazia absoluta. A Associa��o Industrial clamava
pela "prote��o regeneradora das Leis do Estado, sem a qual elas irremediavelmente
tombar�o no abismo em que j� tem-se afundado muitas das suas irm�s".72
Ao constituir-se, o Partido Republicano Paulista receava confundir as suas �guas com a
mar� montante do novo liberalismo do qual, por�m, recebera alguns apoios
significativos, rescaldos da crise pol�tica de 1868. Mas para p�r as coisas no seu devido
lugar, advertia a Comiss�o do Partido aos 18 de janeiro de 1872:
Aproveitando-me da oportunidade, pedimos a vossa aten��o e esfor�o no intuito de
neutralizar os meios com que insidiosamente procura o obscurantismo, consorciado com


a m�-f�, desconceituar os sect�rios da democracia, apresentando-os como
propugnadores de doutrinas fatais [sic] ao pa�s. Entre as armas de que se t�m servido h�
uma que, manejada com h�bil pertin�cia, pode chegar a seu alvo. Referimo-nos ao
boato, adrede espalhado, de que o partido republicano proclama e intenta p�r em pr�tica
medidas violentas para a realiza��o da sua pol�tica e para a aboli��o da escravid�o [...]
Cumpre n�o esquecer que, se a democracia brasileira consubstanciasse em suas
reformas pr�ticas semelhantes pensamentos, alienaria de si a maior parte das ades�es
que tem, e as simpatias que espera atrair. Sendo certo que o partido republicano n�o
pode ser indiferente a uma quest�o altamente social, cuja solu��o afeta todos os
interesses, � mister entretanto ponderar que ele n�o tem e nem ter� a responsabilidade
de tal solu��o, pois que antes de ser governo estar� ela definida por um dos partidos
mon�rquicos.73
A partir desse momento separavam-se em S�o Paulo a propaganda republicana e a
campanha abolicionista. No Congresso Republicano de 73 as posi��es se aclaram e
precisam:
Se o neg�cio for entregue a nossa delibera��o [diz o Manifesto de 18 de abril] n�s
chegaremos a ele do seguinte modo:
1?) Em respeito aos princ�pios da uni�o federativa cada prov�ncia realizar� a reforma de
acordo com seus interesses particulares, mais ou menos lentamente, conforme a maior
ou menor facilidade na substitui��o do trabalho escravo pelo trabalho livre;
2?) Em respeito aos direitos adquiridos e para conciliar a propriedade de fato com o
princ�pio da liberdade, a reforma se far� tendo por base a indeniza��o ou resgate.74

243


Lu�s Gama protestou com veem�ncia, mas a sua voz perdeu-se abafada por um sil�ncio
constrangido. Essa seria a linha de neutralidade dos republicanos agr�rios, definida
principalmente por Moraes Barros, Campos Salles, Francisco Glycerio, Jo�o Tibiri�� e
Prudente de Moraes. O pragmatismo deste formulou-se de modo t�tico em sua
interven��o parlamentar quando se discutia o Projeto Saraiva (em maio de 85), que
resultou na Lei dos Sexagen�rios:
Posso dizer, e creio que n�o serei contestado pelo representante da minha prov�ncia; na
prov�ncia de S�o Paulo, especialmente no Oeste que � a sua parte mais rica e pr�spera, a
quest�o principal n�o � a da liberdade do escravo. Os paulistas n�o fazem resist�ncia,
n�o fazem quest�o disto, do que eles fazem quest�o s�ria, e com toda raz�o, � da
substitui��o e perman�ncia do trabalho (apoiados de Ant�nio Prado, Rodrigo Silva e
Martim Francisco), e desde que o governo cure seriamente de empregar os meios que
facilitem a substitui��o do trabalho escravo, desde que facilite a aquisi��o de bra�os
livres que garantam a perman�ncia do trabalho, a conserva��o e desenvolvimento da sua
lavoura, os paulistas estar�o satisfeitos e n�o far�o quest�o de abrir m�o dos seus
escravos, mesmo sem indeniza��o, porque para eles a melhor, a verdadeira indeniza��o
est� na facilidade de obter trabalhadores livres, est� na substitui��o do trabalho.75
O texto, em sua pesada redund�ncia, fala por si. A ades�o franca � campanha
abolicionista da parte dos paulistas do Oeste estava, pois, condicionada a um subs�dio
oficial que fosse bastante copioso para a obten��o dos bra�os livres. O subs�dio veio em
abund�ncia: entre 87 e 88 chegariam aos nossos portos quase 150 mil imigrantes.
Proclamada a Rep�blica, sob o dom�nio do caf�, p�e-se em marcha i grande imigra��o.
Resolvera-se o problema do trabalho assalariado. Mas n�o a quest�o do ex-escravo, a
quest�o do negro. Para este, o liberalismo republicano nada tinha a oferecer. Foi o que
logo perceberam os militantes do novo liberalismo que ainda se mantiveram fi�is �
monarquia, Nabuco e Rebou�as, cuja correspond�ncia traz cont�nuas acusa��es ao aovo
regime, plutocr�tico. Nabuco escreve a Rebou�as, que se auto-exilaria para a �frica no
dia mesmo da proclama��o da Rep�blica:
Com que gente andamos metidos! Hoje estou convencido de que n�o havia uma parcela
de amor do escravo, de desinteresse e de abnega��o

244

em tr�s quartas partes dos que se diziam abolicionistas. Foi uma especula��o mais! A
prova � que fizeram esta Rep�blica e depois dela s� advogam a causa dos bolsistas, dos
ladr�es da finan�a, piorando infinitamente a condi��o dos pobres. E certo que os negros
est�o morrendo e pelo alcoolismo se degradando ainda mais do que quando escravos,
porque s�o hoje livres, isto �, respons�veis, e antes eram puras m�quinas, cuja sorte
Deus tinha posto em outras m�os (se Deus consentiu na escravid�o); mas onde estariam
os propagandistas da nova cruzada? Desta vez nenhum seria sequer acreditado [...]
Est�vamos metidos com financeiros, e n�o com puritanos, com f�mulos de banqueiros
falidos, mercen�rios de agiotas etc; t�nhamos de tudo, menos sinceridade e amor pelo


oprimido. A transforma��o do abolicionismo em republicanismo bolsista � t�o
vergonhosa pelo menos como a do escravagismo.76
Mas j� em 1884 Nabuco percebia a oposi��o entre o reformismo agr�rio dos novos
liberais e a pol�tica do latif�ndio: "Estamos no reinado do caf�, e � o caf� que maiores
embara�os levanta ao resgate dos escravos".77
Era tamb�m o pensamento de um mulato humilhado e ofendido pela Rep�blica do
Kaphet, Lima Barreto. Mas aqui j� entramos em uma outra hist�ria: a hist�ria do negro
e do mesti�o depois da aboli��o. Quem a estudar dever� desfazer outro n�: n�o o que
atou liberalismo e escravid�o, mas o que ata liberalismo e preconceito.

245


8
SOB O SIGNO DECAM

Quando o Segundo Reinado ia ao meio, o velho mas ainda robusto conservadorismo das
oligarquias se v� desafiado por uma corrente progressista, impaciente com a estagna��o
pol�tica, defensora da ind�stria e do trabalho livre, confiante na democracia yankee,
enfim desejosa de parear o Brasil com o n�vel dos centros capitalistas. Para esse
movimento de id�ias, que Joaquim Nabuco chamou de novo liberalismo, o mito do bom
selvagem n�o tinha muito o que dizer. Era um s�mbolo de outros tempos, forjado pela
cultura da Independ�ncia, e que s� poderia sobreviver como assunto de ret�rica escolar.
Aos olhos da nova gera��o, o futuro era a �nica dimens�o a ser contemplada; e os
poemas de Castro Alves diriam eloq�entemente das esperan�as postas no s�culo grande
e forte, segundo os ep�tetos do seu modelo, Victor Hugo.
Mas nos por�es baflentos dessa casa que se queria moderna e escancarava as janelas
para o sol do porvir, escondia-se um morto, ou melhor, um agonizante, que incomodava
a uns e movia a indigna��o de outros: o cativeiro do negro.
Alencar ainda pudera fundir �ndio e portugu�s a golpes de folhetim ou no embalo da sua
prosa l�rica. Mas negro e branco riscavam-se em um xadrez de oposi��es sem matizes.
E para uma ideologia cr�tica, qual imagin�rio?
Aquele vago sentimento de disson�ncia entre as figura��es da Am�rica e da Liberdade,
que j� se advertia nos Timbiras de Gon�alves Dias, assume em Castro Alves e nos seus
imitadores um espa�o amplo de sentido e a dignidade de tema.

246

Um primeiro sintoma de mudan�a percebe-se no tratamento que a nova poesia d� �s
descri��es da natureza americana; esta perde a condi��o de morada id�lica do selvagem
para tornar-se pano de fundo de cenas que a mancham. Uma poesia em que o hino �
paisagem tropical serve de prel�dio � execra��o de uma sociedade indigna da moldura
que a cerca, eis um �ndice forte de que o olhar cambiou de rumo e perspectiva. "Ao
romper d'alva", "Am�rica" e o quadro da floresta pujante que abre ' A cachoeira de
Paulo Afonso'' s�o poemas trabalhados no registro da contradi��o, pois dissociam
francamente o mundo natural, visto como ed�nico, e o inferno social que a cupidez dos
escravistas nele instaurou. E como se a t�pica do para�so americano se houvesse
mantido com toda a exuber�ncia de sons e cores com que a trataram Gon�alves Dias,
Alencar e Varela, mas t�o somente para produzir no leitor ainda rom�ntico a estrid�ncia
do contraste:

E as palmeiras se torcem torturadas, Quando escutam dos morros nas quebradas O
grito de afli��o.

("Ao romper d'alva")
Creio que pela primeira vez em nossa literatura rom�ntico-nacional seguiam linhas
conflitantes de valor o sentimento da natureza e a vis�o da p�tria. No final do poema '
'Am�rica'' figura uma c�lula tem�tica que seria desenvolvida com brio na composi��o



do Navio negreiro e das Vozes d'�frica:
O p�tria, desperta.........................
N�o manches a folha de tua epop�ia No sangue do escravo, no imundo balc�o!


A na��o brasileira � � enquanto terra de escravos � uma n�doa no cen�rio feito de
ondas de luz, verdes matas, c�u de anil. E o retinir dos ferros do cativo destoa da
imensa orquestra, � um som discorde e vil.
A partir desta segunda mar� liberal (e cada vez mais intensamente com as atitudes
cr�ticas da Escola do Recife, dos realistas e dos naturalistas), a fisionomia do Brasil iria
perdendo aquele car�ter de eterno vi�o tropical para deixar ver os sulcos de um povo
carente, dividido

247


em ra�as e classes. Basta olhar a galeria dos nossos inconformistas. De Tavares Bastos a
Joaquim Nabuco, de Raul Pomp�ia a Euclides da Cunha, de L�cio de Mendon�a a Cruz
e Sousa, de Lu�s Gama a Lima Barreto, de Andr� Rebou�as a Manuel Bonfim, a
imagem da na��o vai-se ensombrando de tal modo que o chamado ufanismo da belle
�poque, bem pesadas as coisas, seria antes res�duo da cultura oficial do que uma
corrente fecunda de pensamento. No limiar da Segunda Revolu��o Industrial e da
expans�o imperialista, a ex-Col�nia se olhava no espelho da civiliza��o e, ao voltar-se
para si mesma, do�a-lhe a evid�ncia do contraste.
Em 1868, ano do Navio negreiro e das Vozes d'�frica, a mazela mais deprimente, o
nervo exposto, era a escravid�o. Os porta-vozes das oligarquias preferiam trat�-la como
se fora assunto exclusivo da ordem privada, mat�ria relativa ao instituto inamov�vel da
propriedade. Assim a tematizara Alencar na sua com�dia O dem�nio familiar, onde a
alforria � concedida pelos senhores com a dupla fun��o de punir o moleque intrigante,
expulsando-o do aconchego patriarcal, e livrar a fam�lia de um motivo permanente de
confus�es e desgostos... Na sess�o legislativa de 1871, o conselheiro Jos� Martiniano de
Alencar combateria o Projeto da Lei do Ventre Livre com argumentos de liberal
ortodoxo, cioso da autonomia do paterfam�lias perante o Estado imperial que estaria
intervindo no c�rculo familiar a que, por direito de compra, pertencia o escravo. A
crian�a filha de pais cativos deveria, segundo os apelos que o senador dirige aos seus
pares, permanecer junto � m�e para ser melhor tutelada � sombra da senzala.
Os novos liberais, ao contr�rio, insistem em dar � causa a sua leg�tima dimens�o
p�blica. Os seus temas ser�o o trabalho, a liberdade e a cidadania.
No meio dos embates sobre a quest�o dos nascituros, que j� se prop�e por volta de
1866, cai o gabinete liberal de Zacarias por um ato legal, mas autorit�rio, de Pedro II.
As oposi��es radicalizam o seu discurso tangenciando ideais democr�ticos. Fundam
clubes e jornais, promovem atos de protesto em todo o pa�s. Os estudantes de Direito da
Academia de S�o Paulo convidam o jovem Castro Alves para declamar versos
libert�rios. Por um feliz acaso, ele dir�, com enorme �xito, os poemas mais belos da sua
pena abolicionista, O navio negreiro e Vozes d'�frica, escritos em S�o Paulo, o primeiro
aos 18 de abril, o segundo aos 11 de junho.

248

Esta a circunst�ncia p�blica que viu nascer um e outro texto, e seria purismo negar a sua
presen�a ativa na qualidade orat�ria de ambos, que sem d�vida ganham em for�a
quando lidos em voz alta e pontuados de gestos largos e expressivos. Se poss�vel, diante
de um audit�rio emp�tico.
Por tudo isso, tocar com a m�o a corrente da Hist�ria parece uma experi�ncia acess�vel
a qualquer leitor dos poemas sociais de Castro Alves. Os pol�ticos e ide�logos
reformistas logo reconheceram no vate um pioneiro dos seus ideais: os testemunhos de
Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco afinaram, desde a d�cada de 70, o diapas�o de uma
fortuna cr�tica entusi�stica que iria em crescendo at� Euclides da Cunha e Manuel


Bonfim. No s�culo XX militantes dos movimentos negros, como Edison Carneiro, e
comunistas ortodoxos, como Jorge Amado, tomaram-no como precursor.
Vozes d'�frica e O navio negreiro foram compreendidos e amados como falas de
rebeldia e, com certeza, uma abordagem da recep��o de ambos confirma essa leitura.
No entanto, o uso que gera��es sucessivas de admiradores fazem de um poema est�
longe de exaurir os seus significados. Em alguns casos uma s� descodifica��o, sempre
reiterada, deixa na sombra a verdade de outras conota��es igualmente v�lidas e capazes
de dialetizar o sentido uniforme que o consenso estabeleceu.
O protesto e a den�ncia expressos nos dois poemas s�o reais e vividos, e a sua
eloq��ncia mana da mais pura indigna��o. Mas qual a mira visada por aquelas estrofes
de sangue, areia e fogo?
Se respondermos que tratam do sistema escravista, no seu aqui-e-agora, estaremos
sendo pouco fi�is ao seu sentido imanente. Um objeto desse teor conviria, antes, ao
poema brechtiano avant Ia lettre de Heinrich Heine, Das Sklavenschijf que Augusto
Meyer verteu com m�o destra sob o t�tulo de "O navio negreiro". Come�a assim:

O sobrecarga Mynherr van Kock Calcula no seu camarote As rendas prov�veis da
carga, Lucro e perda em cada lote.
Borracha, pimenta, marfim
E ouro em p�... Resumindo, eu digo:
Mercadoria n�o me falta,
Mas o negro � o melhor artigo.
249



Seiscentas pe�as barganhei � Que pechinchai � no Senegal, A carne � rija, os
m�sculos de a�o, Boa liga do melhor metal.
Em troca dei s� aguardente, Contas, lat�o � um peso morto! Eu ganho oitocentos por
cento Se a metade chegar ao porto.
Se chegarem trezentos negros Ao porto Rio de Janeiro (sic) Pagar� cem ducados por
pe�a A casa Gonzales Peneiro, (sic)1
Teria o nosso poeta conhecido a vers�o francesa em prosa do texto de Heine que saiu na
Revue des Deux Mondes, bastante lida pelos intelectuais brasileiros do tempo? Augusto
Meyer cr� que sim. Mas acentua as diferen�as de tom e de perspectiva que os estremam.
Heine fala do com�rcio negreiro de modo objetivo, seco, escarninho; Castro Alves o faz
com uma dic��o orat�ria e pat�tica.
A pergunta mais geral que este ensaio tenta responder incide sobre o modo de pensar a
escravid�o que enforma a poesia de Castro Alves. A diversidade apontada em rela��o a
Heine serve de est�mulo para colher o sentido �ntimo de um texto sem conceder que a
sua interpreta��o se ponha como j� dada, de uma vez por todas, a partir das
circunst�ncias para as quais o poema foi escrito e declamado: no caso, a partir de um
momento da campanha abolicionista.
Em outras palavras: suponho leg�timo distinguir, para efeito de an�lise e compreens�o
do poema, a fun��o hist�rica que este desempenhou, a sua fortuna pol�tica, e o seu
dinamismo sem�ntico interno.
Para tanto, fa�o a leitura de "Vozes d'Africa", poema irm�o de "O navio negreiro", e que
leva �s �ltimas conseq��ncias um certo estilo tr�gico e m�tico de tratar o fen�meno total
do cativeiro.

VOZES D'�FRICA

Deus! 6 Deus! onde est�s que n�o respondes? Em que mundo, em qu'estrela tu
t'escondes
Embu�ado nos c�us? H� dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde ent�o
corre o infinito...
Onde est�s, Senhor Deus?...
250
Qual Prometeu tu me amarraste um dia Do deserto na rubra penedia

� Infinito gal�!
Por abutre � me deste o sol ardente, E a terra de Suez � foi a corrente Que me ligas
te ao p�... �
O cavalo estofado do Bedutno Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areai. Minha garupa sangra, a dor poreja, Quando o chicote do simoun
dardeja
O teu bra�o eternal.
Minhas irm�s s�o belas, s�o ditosas... Dorme a �sia nas sombras voluptuosas
Dos har�ns do Sult�o, Ou no dorso dos brancos elefantes Embala-se coberta de

brilhantes,
Nas plagas do Hindust�o.
Por tenda tem os cimos do Himalaia... O Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais... A brisa de Misora o c�u inflama; E ela dorme nos templos do Deus
Brama,


� Pagodes colossais...
A Europa � sempre Europa, a gloriosa!... A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortes�. Artista � corta o m�rmor de Carrara; Poetisa � tange os hinos de
Ferrara,
No glorioso af�!...
Sempre a l�urea lhe cabe no lit�gio... Ora uma c'roa, ora o barrete-fr�gio
Enflora-lhe a cerviz. O Universo ap�s ela � doudo amante Segue cativo o passo
delirante
De grande meretriz
Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada 251

Em meio das areias desgarrada,
Perdida marcho em v�o! Se choro... bebe o pranto a areia ardente; Talvez... p'ra que meu
pranto, � Deus dementei
N�o descubras no ch�o...
E nem tenho uma sombra de floresta... Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador... Quando subo �s Pir�mides do Egito Embalde aos quatro c�us chorando
grito:
"Abriga-me, Senhor!..."
Como o profeta em cinza a fronte envolve, Velo a cabe�a no areai que volve
O siroco feroz... Quando eu passo no Saara amortalhada... Ai! dizem: "L� vai �frica embu�ada
No seu branco albornoz..."
Nem v�em que o deserto � meu sud�rio, Que o sil�ncio campeia solit�rio
Por sobre o peito meu. L� no solo onde o cardo apenas medra Boceja a Esfinge colossal de
pedra
Pitando o morno c�u.
De Tebas nas colunas derrocadas As cegonhas espiam debru�adas
O horizonte sem fim... Onde branqueja a caravana errante, E o camelo mon�tono, arquejante
Que desce de Efraim...
N�o basta inda de dor, � Deus terr�vel! E, pois, teu peito eterno, inexaur�vel
De vingan�a e rancor?... E o que � que fiz, Senhor? que torvo crime Eu cometi jamais que
assim me oprime
Teu gl�dio vingador?!...
Foi depois do dil�via.. Um viandante, Negro, sombrio, p�lido, arquejante, Descia do Arara...
252
E eu disse ao peregrino fulminado: "Cam... ser�s meu esposo bem-amado... Serei tua Elo�..."
Desde este dia o vento da desgra�a Por meus cabelos ululando passa
O an�tema cruel. As tribos erram do areai nas vagas, E o N�mada faminto corta as plagas
No r�pido corcel.
Vi a ci�ncia desertar do Egito...
Vi meu povo seguir � Judeu maldito �
Trilho de perdi��o. Depois vi minha prole desgra�ada Pelas garras d'Europa � arrebatada �
Amestrado falc�o!...
Cristo! embalde morreste sobre um monte... Teu sangue n�o lavou de minha fronte
A mancha original. Ainda hoje s�o, por fado adverso, Meus filhos � alim�ria do universo,
Eu � pasto universal...
Hoje em meti sangue a Am�rica se nutre � Condor/que transformara-se em abutre,
Ave da escravid�o Ela juntou-se �s mais... irm� traidora Qual de Jos� os vis irm�os, outrora,
Venderam seu irm�o.
Basta, Senhor! De teu potente bra�o Role atrav�s dos astros e do espa�o
Perd�o p'ra os crimes meus!... H� dois mil anos... eu solu�o um grito... Escuta o brado meu l�
no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...


Para maior clareza de exposi��o conv�m desdobrar a an�lise do texto em tr�s planos que no
processo po�tico evidentemente se entre-cruzam: o plano da subjetividade (do sujeito e entre os


sujeitos), o do tempo e o do espa�o.

255


Quem s�o estas vozes que falam e a quem falam? Quando falam? De onde falam?

AS VOZES

Fazer o continente negro dizer-se, dar-lhe o registro de primeira pessoa, foi um passo
adiante no tratamento de um tema que, pela sua posi��o em nosso drama social, tendia a
ser elaborado como a voz do outro.
A prosopop�ia (do gr. prosopon = lat. persona), pela qual a gente africana alcan�a o
estatuto de um ser individual, de um eu narrante e imprecante, � a figura-chave que
sustem as estrofes todas e as mant�m imersas no mesmo clima tonai do come�o ao fim
do texto.
No curso da hist�ria cultural do Ocidente, esse procedimento se tornou um vezo na
literatura pol�tica p�s-1789, e sobretudo p�s-napole�nica, que passou a ver os povos e
as na��es como entes vivos, org�nicos, pessoas coletivas em nome das quais o bardo
rom�ntico deveria falar. Leia-se, por exemplo, "O s�culo" de Castro Alves, onde tomam
corpo e alma as na��es oprimidas, a Pol�nia e a Su�cia, a Hungria e o M�xico. O nosso
s�culo, dizia Mazzini, � o s�culo das nacionalidades.
A combina��o de uma �frica arcana (' 'h� dois mil anos...") com uma �frica-sujeito ("te
mandei meu grito") � a novidade primeira do poema, e a sua for�a, pois d� ao pret�rito
mais obscuro e ao mito cercado de enigmas o poder magn�tico da presen�a imediata em
que se resolve todo ato de interlocu��o. A �frica �, desde sempre, um ser animado e,
pela atualiza��o do eu po�tico, um ser que tem consci�ncia da sua identidade e da sua
hist�ria.
Um leitor nada rom�ntico, Jos� Ver�ssimo, mesmo quando louva o poema, trai o seu
distanciamento ao referir o processo mesmo da personaliza��o. Elogia a' 'eloq��ncia da
melhor esp�cie'' de Castro Alves, mas nela acusa uma "idealiza��o art�stica da situa��o
do continente maldito e das reivindica��es que o nosso ideal humano lhe atribui' \2
A nota do cr�tico tende a desconstruir o que est� constru�do li-ricamente, isto �, a
separar a situa��o da �frica e a voz do autor. Falando de ' 'continente maldito'', de um
lado, e ' 'nosso ideal humano' ', de outro, Jos� Ver�ssimo tentava desfazer analiticamente

o gran254


de impacto da enuncia��o do poema, que � aquele efeito de comunh�o entre sujeito e
objeto produzido pelos acordes da abertura. Da primeira � �ltima palavra, a
personifica��o � inscind�vel da subjetiva-��o. O recorte feito a frio por um leitor
prosaico n�o atinge o cerne do procedimento, e a humaniza��o da �frica resiste na sua
qualidade de conquista rom�ntica: povo e poeta sofrem e imprecam em un�ssono.
Tratando-se de uma opera��o de linguagem eminentemente pro-jetiva, o enlace do eu
com a ra�a estigmatizada se d� no cora��o mesmo do sujeito. O poeta que faz seus os
brados de um povo amaldi�oado pelos deuses e pelos homens � tamb�m um ser maldito.
Em "Ahasverus e o G�nio", Castro Alves j� se identificara com a figura do precito, o
m�sero Judeu:


Sabes quem foi Ahasverus?... � o precito, o m�sero Judeu, que tinha escrito na fronte o
selo atroz! Eterno viajor de eterna senda... Espantado a fugir de tenda em tenda
Fugindo embalde a vingadora voz!
0 G�nio � como Ahasverus... solit�rio A marchar, a marchar, no itiner�rio Sem termo
do existir.
Fagundes Varela, em par�frase ao Childe Haroldde Byron, tamb�m j� se reconhecera na
figura do Judeu Errante que se tingia de tons melodram�ticos no romance de folhetim
de Eug�ne Sue. A in-troje��o de uma recusa existencial dr�stica vai fundo no poeta
ingl�s e se verteu com brio na voz brasileira do nosso Varela:

E este enojo perenal, cont�nuo, Que em toda a parte me acompanha os passos, E ao dia
incende-me as art�rias quentes, Me aperta � noite nos minados bra�os!
S�o estas larvas de mart�rio e dores � S�cias constantes do judeu maldito! � Em cuja
testa, dos tuf�es crestada, Lab�u de fogo cintilava escrito!!


Quem de si mesmo desterrar-se pode?

255


Aquele tom passional exacerbado, que nos parece peculiar � obra da segunda gera��o
rom�ntica, diferencia-se, mas n�o se esvai de todo na poesia tr�gica das ' 'Vozes". A
dana��o de uma ra�a pelos s�culos dos s�culos seria tratada nos versos de Castro Alves
com certos acentos de titanismo que lembram Vigny ou Lord Byron: "CamL. ser�s meu
esposo bem-amado./ Serei tua Elo�...".
A semelhan�a n�o cancela a diferen�a, por�m. Se nos pusermos � escuta do som mais
fundo que sai destas vozes da �frica e do eu r�probos, ouviremos antes a s�plica ou o
clamor impotente do que o desafio promet�ico. A impress�o nos vem do sil�ncio do
interlocutor. Os rogos da �frica e do poeta formam um todo, mas o seu destinat�rio �
um deus absconditus. "Deus! � Deus! onde est�s que n�o respondes!/ Em que mundo,
em qu'estrela tu t'escondes/ Embu�ado nos c�us?" A express�o de desespero diante de
um Tu que se fecha surdo e mudo reitera-se no centro do poema ("Embalde aos quatro
c�us chorando grito [...]/ Escuta o brado meu l� no infinito,/ Meu Deus! Senhor, meu
Deus!!...").
Nesse contexto soa como uma palavra de sarcasmo a invoca��o ao "Deus clemente"
que, na oitava estrofe, n�o descobre as l�grimas da �frica que a areia ardente bebeu
para sempre.

O TEMPO DA ORIGEM: A DANA��O DE CAM

O destino do povo africano, cumprido atrav�s dos mil�nios, depende de um evento
�nico, remoto, mas irrevers�vel: a maldi��o de Cam, de seu filho Cana� e de todos os
seus descendentes. O povo africano ser� negro e ser� escravo: eis tudo.
O poema incorpora a vers�o m�tica da origem do cativeiro que � relatada no Livro do
G�nesis. Transcrevo, em seguida, o passo b�blico fundamental onde a lenda encontrou
sua formula��o can�nica:
Os filhos de No�, que sa�ram da arca, foram Sem, Cam e Jaf�; Cam � o pai de Cana�.
Esses tr�s foram os filhos de No� e a partir deles se fez o povoamento de toda a terra.
No�, o cultivador, come�ou a plantar a vinha. Bebendo vinho, embriagou-se e ficou nu
dentro de sua tenda. Cam, pai de Cana�, viu a nudez de seu pai e advertiu, fora, a seus
dois irm�os. Mas Sem e

256

Jaf� tomaram o manto, puseram-no sobre os seus pr�prios ombros e, andando de
costado, cobriram a nudez de seu pai; seus rostos estavam voltados para tr�s e eles n�o
viram a nudez de seu pai. Quando No� acordou de sua embriaguez, soube o que lhe
fizera seu filho mais jovem. E disse:

� Maldito seja Cana�!
Que ele seja, para seus irm�os, o �ltimo dos escravos.
E disse tamb�m:

� Bendito seja lahweh, o Deus de Sem, e que Cana� seja seu escravo!
Que Deus dilate a Jaf�,
que ele habite nas tendas de Sem,

e que Cana� seja teu escravo!

(G�nesis, 9, 18-27)
A narra��o da Escritura prossegue dando o elenco das gera��es de Cam, Sem ejaf�.
"Camitas" seriam os povos escuros da Eti�pia, da Ar�bia do Sul, da N�bia, da
Tripolit�nia, da Som�lia (na verdade, os africanos do Velho Testamento) e algumas
tribos que habitavam a Palestina antes que os hebreus as conquistassem.
Alguns comentadores distinguem dois estratos n� reda��o de G�nesis, 9, e l�em a
men��o a Cana� ("Maldito seja Cana�") como uma substitui��o tardia de Cam, operada
no texto quando as tribos de Israel conseguiram dominar os cananeus no tempo do rei
Davi. As terras de Cana�, "filho de Cam", viriam-a ser enfim a p�tria do povo judeu; e
os cananeus seriam exclu�dos da salva��o messi�nica para castigo de seus pecados (de
lux�ria, sobretudo), ao passo que os hebreus receberiam de lahweh o direito de
escraviz�-los.
O Livro dos Juizes diz que os cananeus foram submetidos � cor-v�ia pelas tribos de
Israel (Jz 1,29). Josu� (17,10) reporta-se ao mesmo fato: "Os cananeus que habitavam
Gazer n�o foram expulsos e permaneceram no meio de Efraim at� o dia de hoje,
sujeitos a trabalhos for�ados''. Logo, a origem do triste destino dos cananeus foi a
guerra. O narrador de G�nesis, 9, teria criado um mito etiol�gico, calcado talvez na
tradi��o do pecado original de Ad�o, para dar conta da institui��o do cativeiro. O
problema continua em p� e cabe aos exegetas a busca de sua solu��o, tanto mais que os
cananeus eram... semitas.

257


Restaria, por outro lado, investigar como a maldi��o de Cam passou a ser atribu�da a
todos os africanos quando a expans�o ultramarina portuguesa fez ressurgir a figura do
escravo a partir do s�culo XV.3 Trata-se de uma pesquisa em torno da arqueologia das
id�ias a que apenas se pode acenar em um ensaio sobre a poesia social do nosso Castro
Alves.
O fato � que se consumou em plena cultura moderna a explica��o do escravismo como
resultado de uma culpa exemplarmente punida pelo patriarca salvo do dil�vio para
perpetuar a esp�cie humana. A refer�ncia � sina de Cam circulou reiteradamente nos
s�culos xvi, xvii e xviii, quando a teologia cat�lica ou protestante se viu confrontada
com a generaliza��o do trabalho for�ado nas economias coloniais. O velho mito serviu
ent�o ao novo pensamento mercantil, que o alegava para justificar o tr�fico negreiro, e
ao discurso salvacionista, que via na escravid�o um meio de catequizar popula��es
antes entregues ao fetichismo ou ao dom�nio do Isl�o. Mercadores e ide�logos
religiosos do sistema conceberam o pecado de Cam e a sua puni��o como o evento
fundador de uma situa��o imut�vel.4
Pode parecer um caminho paradoxal, mas foi pela retomada do mito da dana��o que o
vate libert�rio de 1868 deu forma po�tica �s suas "Vozes d'�frica". O esquema
construtivo que adotou d� as costas �s tradi��es �picas das prosopop�ias nacionais.
Agora n�o h� musas a invocar, h� apenas um deus inacess�vel que, interpelado, se embu�a
e cala. A divindade hebraica se comporta como o Zeus vingador da religi�o
ol�mpica, mas a v�tima compartilha com Prometeu somente a sorte infeliz, n�o o
orgulho do semideus consciente da sua bela aventura junto aos homens. Iahweh pune
como Zeus, mas a �frica de Cam, contrariamente a Prometeu, baixa a cabe�a e chora
sem sequer merecer o consolo que ao tit� acorrentado trouxeram as piedosas nereidas na
trag�dia de Esquilo:

Qual Prometeu tu me amarraste um dia Do deserto na rubra penedia

� Infinito gal�! Por abutre � me deste o sol ardente, E a terra de Suez � foi a
corrente
Que me ligaste ao p�...
Cerca de um m�s antes da composi��o das "Vozes", Castro Alves escrevera o poema
"Prometeu", em que o her�i se ergue "inda

258

arrogante e forte, o olhar no sol cravado,/ sublime no sofrer, vencido � n�o domado''.
Esses tra�os de resist�ncia, que faziam de Prometeu a alegoria do povo, apagam-se em
meio aos lamentos perdidos dos africanos. Aqui triunfa o absurdo de um castigo por
uma culpa remota: da� a tragicidade da situa��o de um continente inteiro � merc� de
uma c�lera onipotente:

N�o basta inda de dor, � Deus terr�vel?! E, pois, teu peito eterno, inexaur�vel
De vingan�a e rancor?... E o que � que fiz, Senhor? que torvo crime Eu cometi jamais
que assim me oprime


Teu gl�dio vingador?!

Como aconteceu depois de consumada a mancha original de Ad�o e Eva, toda a
descend�ncia do pecador viria marcada pela queda. Em ambas as situa��es arquet�picas

o pecado se identifica com o conhecimento do proibido. A nudez de Ad�o. A nudez de
No�. A nudez do pai. A nudez do patriarca. Com uma diferen�a, que afinal � tudo: n�o
se d� remiss�o alguma para a estirpe de Cam. O novo Ad�o, como a teologia medieval
chamou a Cristo, viria restabelecer a primeira alian�a do Criador com a sua criatura,
mas a maldi��o do filho de No� n�o se resgataria jamais: narrada em um tempo m�tico,
permaneceu fora da Hist�ria. Vigoram no dom�nio do arcaico os poderes cegos do
inconsciente sobre aquela consci�ncia dos pr�prios atos que torna homem o homem. A
�frica ignora o motivo da sua pena: "E o que � que fiz, Senhor? que torvo crime/ Eu
cometi jamais que assim me oprime/ Teu gl�dio vingador?!".
O efeito do an�tema se reproduz de gera��o em gera��o, de tal modo que a seq��ncia
dos tempos, apesar de bem pontuada ao longo do poema (Foi depois do dil�vio; desde
este dia; vi a ci�ncia desertar do Egito; vi meu povo seguir, depois vi minha prole
desgra�ada), em nada altera a intensidade da maldi��o original. O tempo aberto e
vectorial da Hist�ria � quer na vers�o crist� da salva��o, quer na vers�o leiga do
progresso � n�o tem como penetrar nesse outro tempo mitol�gico, fechado em si, para
o qual o Filho de Deus ter� morrido em v�o.
Cristo! embalde morreste sobre um monte... Teu sangue n�o lavou de minha fronte A
mancha original.
259


Ainda hoje s�o, por fado adverso, Meus filhos � alim�ria do universo, Eu � pasto
universal.
Observe-se a contraposi��o: o apelo ao redentor {Cristo!) cai no vazio que representa o
seu sacrif�cio impotente; mas a nomea��o do destino {fado adverso) � o reconhecimento
de um poder que s�culos de cristianismo n�o puderam contrastar {Ainda hoje...).
Confirma-se a hip�tese de que um arca�smo de perspectiva rege o poema todo. A
admiss�o final da exist�ncia de uma culpa {perd�o p 'ra os crimes meus!) entra nessa
l�gica do terror que ainda procura algum sentido moral para o infort�nio de milh�es e
milh�es de seres humanos. Mais eloq�ente do que as palavras fala a mudez da Esfinge
colossal de pedra que fita o morno c�u na entrada do deserto. A Esfinge n�o faz
perguntas: ela � a pergunta.
O poeta est� posto diante do Mal como absurdo, car�ncia de sentido. A sua imagina��o
trabalha com materiais m�ticos, hist�ricos e liter�rios, que, apesar da sua apar�ncia
dispersiva, acabam incidindo, todos, no esc�ndalo milenar da escravid�o africana.
As estrofes que personificam os outros continentes t�m muito de convencional, sem
d�vida, mas obedecem � l�gica interna do mito origin�rio que concedia privil�gios aos
irm�os de Cam. A novidade, para n�s, leitores dos rom�nticos brasileiros, n�o est� na
figura��o da Europa gloriosa nem na imagem da �sia imersa em vol�pias..., mas na
acusa��o � Am�rica que, de p�tria da Liberdade que era, se converteu em irm� traidora,
ave da escravid�o. O par de opostos Am�rica/Europa, constru��o do indigenismo
exaltado, perde a sua fun��o nacionalista e ing�nua por for�a da nova consci�ncia
abolicionista, e � substitu�do pelo par �frica/Am�rica, no qual o primeiro � o oprimido,

o segundo o opressor. Precisamente como no arroubado _/?�<*/� do "Navio negreiro".
Em ' 'Vozes d'�frica'' a oposi��o � tematizada no sentido de rea-tualizar a id�ia de
rejei��o universal da gente negra, logo numa perspectiva m�tica e tr�gica; em outro
poema, escrito um ano antes da morte de Castro Alves, "Sauda��o a Palmares", o tom
ser� outro, desafiante e rebelde, e o imagin�rio do bandido nobre anunciar� uma vis�o
revolucion�ria da hist�ria do negro afro-brasileiro; vis�o que nem o poeta p�de
aprofundar, nem o nosso intelectual negro ou mesti�o viria a assumir nas gera��es que
se lhe seguiram.
260

Nessa regress�o a um tempo que percorre sempre o c�rculo tra�ado pelas origens
entende-se a presen�a no poema de uma figura misteriosa, da qual n�o h� men��o na
B�blia: Elo�, inven��o l�rica de Alfred de Vigny. ' 'Elo� ou Ia soeur des anges'' � um
myst�re publicado em 1824. Elo� � um anjo que nasceu de uma l�grima derramada por
Jesus quando chorou a morte de L�zaro, aquele a quem iria logo depois ressuscitar.
Uma l�grima de pura compaix�o subiu ent�o aos c�us e se transformou em mais uma
encarna��o do Eterno Feminino que desde o Fausto habita a fantasia do homem
contempor�neo como s�mbolo de piedade infinita.
No poema de Vigny a miseric�rdia da mulher se volta para o mais belo dos arcanjos,


L�cifer. Do seu reino de treva ele a chama e lhe mostra a sua alma orgulhosa e nobre, '
'que chora sobre o escravo e o furta ao senhor''. Elo�, atra�da por L�cifer, deseja salv�-lo
e empreende uma perigosa viagem at� a sua morada. Mas, em vez de redimi-lo, � ela
que cai sob o seu dom�nio "J'ai cru t'avoir sauv�. � Non c'est moi qui t'entra�ne".
Elo�, nascida embora de uma l�grima do Redentor, perde-se para sempre. Assim
tamb�m a �frica, desposando o maldito, n�o encontrar� remiss�o. Mito e poesia entram,
nas "Vozes d'�frica", como formas de ler a hist�ria do cativeiro negro. E, � medida que

o poema se fez conhecido e amado, ele come�ou a integrar essa mesma hist�ria, pois a
imagem do real acaba sendo parte da realidade.
A IMAGEM DO DESERTO � FECUNDA
' 'A palavra c�o n�o morde'' � � um dos postulados da l�gica moderna. Os caracteres
do signo nada teriam a ver com o objeto designado, o que em �ltima an�lise constitui
uma renovada afirma��o do teor convencional ou n�o natural da linguagem.
No extremo oposto, uma cerrada especula��o est�tica que se desdobrou de Vi�o a
Herder e dos rom�nticos aos simbolistas postula o car�ter fortemente motivado do signo
verbal. Trata-se de uma antiga oscila��o, j� pensada luminosamente no Cr�tilo
plat�nico, entre uma teoria da linguagem como conven��o e uma teoria da linguagem
por natureza.

261


Cruz e Souza.
"Tu �s dos de Cam, maldito, r�probo, anatematizado!
Emparedado"


VP

1^

Lima Barreto.

'E tive a sensa��o de estar em pa�s estrangeiro.'' Recorda��es do Escriv�o Isa�as Caminha


O leitor de ' 'Vozes d'�frica'' depara-se em mais de uma estrofe com uma imagem
obsessiva, a do deserto, que � coerente com a representa��o do cen�rio onde se
desenrola a trag�dia de Cam e da sua estirpe. O repetir-se mon�tono dessa figura
responde a uma necessidade estrutural do poema, centrado na experi�ncia de um tempo
m�tico no qual as origens n�o cessam de repropor-se. Uma composi��o que lembra, pela
sua insist�ncia tem�tica, o Bolero de ftavel. S�mbolo do desespero sem fim de todo um
povo, a palavra deserto e os seus sin�nimos e variantes est�o saturados de motiva��o
psicol�gica e moral.
O que impressiona, por�m, quando nos acercamos do uso que Castro Alves faz do
signo, n�o � tanto a sua correspond�ncia �ntima com o referente, nem o seu grau de
expressividade alcan�ado pelo tom que rege o poema inteiro; o que causa admira��o no
leitor anal�tico � a riqueza de conota��es que o poeta soube extrair de um s�mbolo
estreitamente atado � id�ia de esterilidade. Se a palavra c�o n�o morde, tampouco a
palavra deserto � infecunda...
A sua for�a de irradia��o � t�o ativa na sem�ntica do poema que ultrapassa os confins
atribu�dos � morada dos filhos de Cam e penetra o espa�o infinito do Tu. Os c�us da
divindade transformam-se em um cosmos ermo onde se perdem os gritos do continente:
"Deus! � Deus! onde est�s que n�o respondes!". Os c�us tamb�m est�o desertos.
Mas � s� na segunda estrofe que aparece a palavra. Vem associada, sob a forma de uma
curiosa contaminatio, com o mito de Prometeu. Repare-se nos termos da homologia:
Cam est� para Prometeu como Iahweh para Zeus; a penedia do deserto para o rochedo
do C�u-caso; o sol ardente para o abutre; o istmo de Suez para as algemas do tit�. A
grandiosidade das imagens talvez fira o nosso gosto contempor�neo, em geral mais
intelectualizado: "Victor Hugo est le plus grand poete fran�ais, h�las!", queixava-se
Andr� Gide, e outro tanto dizia M�rio de Andrade de Castro Alves. Mas o que aqui se
contempla � a polival�ncia do signo. O deserto como instrumento do castigo divino.
Na terceira estrofe desenvolve-se um �nico s�mile: o cavalo do Bedu�no cai morto no
areai assim como a �frica sangra vergastada pelo simum. Quem brande o l�tego � a
pr�pria divindade: "o chicote do simum dardeja/ O teu bra�o eternal". O deserto das
"Vozes" � o Sahara b�blico, e a percep��o hebraica da paisagem africana do


264

mina toda a representa��o espacial do poema. Comanda os fios da Hist�ria o Senhor do
Velho Testamento, cioso da alian�a com a gente de Israel e ao mesmo tempo vingador
dos seus inimigos. A rela��o Iahweh-�frica/(Cam)-deserto reitera-se com novos
matizes nas estrofes que se seguem � descri��o da �sia e da Europa.
Na oitava estrofe o deserto volta como o lugar do desgarramen-to, significado a que se
junta uma conota��o particularmente s�dica: a areia em fogo bebe as l�grimas da v�tima,
"talvez... p'ra que meu pranto, � Deus clemente, n�o descubras no ch�o...".
J� houve quem notasse, em rela��o ao verso que abre a estrofe seguinte, "E nem tenho
uma sombra de floresta...", que o poeta reduziu um continente inteiro � sua faixa est�ril,


como se ignorasse que h� regi�es de imensas florestas no Centro e no Sul da �frica,
zonas de onde tamb�m se arrancaram escravos para a Am�rica. O reparo concerne �
geografia e � hist�ria do cativeiro, mas n�o afeta, antes ajuda a entender a partilha
existencial e est�tica de Castro Alves. Na poesia das "Vozes " era a meton�mia que
importava, a parte pelo todo, o deserto pelo continente. A contra��o imagin�ria do
espa�o real permitiu que opathos tr�gico prevalecesse e multiplicasse os seus modos
figurais: o areai semelha a cinza que o profeta espalha na cabe�a, � mortalha de p� que
lembra o albornoz do bedu�no, � sud�rio, � solo s�faro onde mal vinga o cardo, �
cen�rio de tribos errantes, � ch�o movedi�o do N�mada faminto.
A fantasia po�tica disseminada no texto inspirou-se no Velho Testamento, � certo, mas
conv�m dialetizar a afirma��o. Para os hebreus os longos anos de caminhada pelo
deserto, entre a fuga do Egito e a chegada a Cana�, representam, como se l� no Livro do
�xodo, um tempo de prova��o, sofrido mas cheio de esperan�a. � o momento de
passagem para a Terra Prometida, o lugar de encontro com o Deus que lhes d� o man� e
sela com o seu povo o pacto da alian�a. Mois�s e Iahweh dialogam, face a face. No
deserto de Cam n�o h� promessa nenhuma de liberta��o, s� agonia e amea�a de
cativeiros futuros. Deus est� ausente ou mudo.
No entanto, "Vozes d'�frica" e "O navio negreiro" deram o arranque � primeira
campanha abolicionista em uma semicol�nia de senhores e escravos chamada Brasil.

265


O EX�LIO NA PELE

Afonso Henriques de Lima Barreto � o primeiro grande escritor mulato do Brasil que se
formou depois do Treze de Maio.
A situa��o de intelectual discriminado pela cor e pela origem, nesse contexto p�s-1888,
deu-lhe uma perspectiva que n�o se confunde com a linha do horizonte divisada pelos
abolicionistas. Ao contr�rio, acabou sendo o seu reverso. Lu�s Gama, Andr� Rebou�as e
Jos� do Patroc�nio, militantes da gera��o que precedeu � de Lima Barreto, acreditavam
lutar pela liberta��o de sua ra�a. Mas, na verdade, salvo algumas id�ias gerais de
Rebou�as sobre uma futura democracia rural (que figurava tamb�m entre os projetos de
Nabuco), pode-se dizer que o limite daquela generosa campanha foi, precisamente, o
que veio a suceder no dia seguinte � Lei �urea: os escravos foram lan�ados a pr�pria
sorte.

Como se deve entender, concretamente, essa �ltima express�o? Extinto o regime legal
do trabalho cativo, restaram �s suas v�timas poucas sa�das:
� ou a velha condi��o de agregado;
� ou a queda no l�mpen, que j� crescia como sombra do proletariado branco de
origem europ�ia;
� ou as franjas da economia de subsist�ncia.
Interessa aqui a primeira alternativa pela qual os pobres livres obtinham favores
aleat�rios dos seus padrinhos. Era uma cadeia de rela��es sociais que vinha do Imp�rio
e que deixara vincos fundos na alma do nosso intelectual mesti�o ou negro. Dois
exemplos fortes bastam: Machado de Assis e Cruz e Sousa, o maior romancista e o
maior poeta do s�culo xrx brasileiro, provaram, nos seus anos de inf�ncia e
adolesc�ncia, os altos e baixos dessa condi��o de afilhados sem a qual, de resto,
dificilmente teriam varado as barreiras da pele e da classe.
Depois do Treze de Maio, qual poderia ser a expectativa de negros e mulatos agregados,
subprolet�rios ou marginais?
T�r��o se sustentava historicamente o mito da reden��o de um povo inteiro. S� se
concebem esperan�as de resgate coletivo quando se vive, ou se cr� viver, um tempo
gr�vido de promessas: � a espera

266

messi�nica de um dia que vir� para tudo julgar, libertar, salvar. Mas, sobrevindo este
Dia D, � o presente que se imp�e com o fardo das suas contradi��es.
Lima Barreto olhou na cara este seu presente, que foi a nossa Rep�blica Velha. Como
um observador que se sabe vencido mas n�o submisso � m�quina social.
O que me parece admir�vel nas suas passagens de cr�tica ideol�gica � o igual
distanciamento que soube manter em rela��o �s duas for�as que disputavam a primazia
no regime rec�m-instaurado. Lima desconfiava tanto dos senhores do caf� quanto dos
militares florianis-tas. O contexto ati�ava paix�es sect�rias, e os intelectuais se
alinhavam ora num ora noutro partido, dando � sua ades�o um colorido geral


nacionalista. Lima Barreto, n�o: "Uma rematada tolice que foi a tal rep�blica. No fundo,

o que se deu em 15 de novembro foi a queda do partido liberal e a subida do
conservador, sobretudo da parte mais retr�grada dele, os escravocratas de quatro
costados".
E logo adiante: "Toda a nossa administra��o republicana tem tido um constante objetivo
de enriquecer a antiga nobreza agr�cola e conservadora, por meio de tarifas, aux�lios �
lavoura, imigra��o paga, etc."5
Essa lucidez em face dos interesses que moviam a Rep�blica do Kaphet voltava-se com
a mesma pung�ncia contra o lado oposto, a solu��o militarista, que a esfinge de
Floriano encarna, pesadamente, no Triste fim de Policarpo Quaresma. E em torno do
marechal ele entrevia a falange dos cadetes jacobinos; e por tr�s do marechal,
arrastando-se, morna e est�pida, a burocracia fardada que se multiplica em todo o
per�odo.
O s�tiro dos bruzundangas olhava de longe. N�o poderia engajar-se, como via fazer
Olavo Bilac, cantor pontual de um patriotismo infanto-juvenil, ora negaceando ora
coqueteando com a oligarquia, ou como fizera Raul Pomp�ia, t�o arroubado nos seus
ideais rep�blicos que s� alguns militares sanspeur et sans reproche poderiam
idealmente realizar.
H� um lugar social vivido conscientemente por Lima Barreto, que lhe d� peso e
densidade pr�pria e resiste a diluir-se nas pr�ticas e nos discursos dominantes.
Desse observat�rio exerce tamb�m o seu olhar de cr�tico da cultura. N�o o enganava a
falsa oposi��o, tematizada na belle �poque,
267

entre cosmopolitismo e nacionalismo, degradados tantas vezes em formas subliter�rias
de gr�-finismo e caboclismo. Ambos os epifen�me-nos, comuns a culturas de extra��o
neocolonial, s�o objeto de recusa e enj�o por parte de um homem a quem j� se rotulou
de xen�fobo quando, no entanto, bem se conhecem as suas simpatias pela Revolu��o
Russa e, antes desta, pelo anarco-sindicalismo.
Ele sabia que as incurs�es de Coelho Neto pelas falas da ro�a e at� da senzala vinham
sempre escoltadas por aspas. Faziam parte daquele universo de cita��o de onde os
letrados exibem aos seus pares o dom�nio que exercem sobre o outro: o outro,
subjugado e trazido ao palco do estilo. Lima Barreto sentia-se rigorosamente na pele
desse outro, por isso o deprimia aquela mistura sertanejo-parnasiana de curiosidade,
folclorismo e poder cultural. Era o pudor de quem prova em si a condi��o de objeto de
um favor que a consci�ncia moderna j� tem como derrogat�rio.
Tampouco vejo mesticismo nacional nos seus romances. Entre as suas rar�ssimas
personagens abertas ao humano universal h� duas mulheres estrangeiras: Olga, filha de
italianos, que soube respeitar at� o fim e contra todos o quixotismo de Quaresma; e a
imigrante russa Margarida, vi�va de um mulato, avessa aos preconceitos que dobrariam
Clara dos Anjos na obra hom�nima.6 Afinal de contas, o seu nacionalismo (como o seu
internacionalismo) era o dos pobres. As rela��es entre cultura e na��o formulam-se em
Lima Barreto sob um �ngulo novo e, com certeza, progressista. Aqui se imp�e a
releitura do fecho de Quaresma. O anticl�max � devastador, n�o s� em termos
psicol�gicos, mas tamb�m como funeral de uma ideologia que o contato com o real
fizera esboroar.
O major est� preso porque denunciara em carta ao marechal o massacre de alguns
prisioneiros antiflorianistas. Solit�rio, no calabou�o, vive a cruz da contradi��o:
E quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decep��es. Onde estava
a do�ura de nossa gente? Pois ele n�o a viu combater como feras? Pois n�o a via matar
prisioneiros, in�meros?
A p�tria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no sil�ncio de um
gabinete. Nem a f�sica, nem a moral, nem a intelectual, nem a pol�tica que julgava
existir, havia. A que existia de fato era a do Tenente Ant�nio, a do doutor Campos, a do
homem do Itamarati.

268

E bem pensando, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a P�tria? N�o teria levado
toda a sua vida norteado por uma ilus�o, por uma id�ia ao menos sem base, sem apoio,
por um Deus ou uma Deusa cujo imp�rio se esva�a? N�o sabia que essa id�ia nascera da
amplifica��o da crendice dos povos greco-romanos de que os ancestrais mortos
continuariam a viver como sombras e era preciso aliment�-las para que n�o
perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Cou-langes... Lembrou-se
de que essa no��o nada � para os Menenan�, para tantas pessoas... Pareceu-lhe que essa
id�ia como que fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das nossas


subservi�ncias psicol�gicas, no intuito de servir �s suas pr�prias ambi��es [...]
Certamente era uma no��o sem consist�ncia racional e precisava ser revista.
Curiosamente, a mesma certeza de historicidade vigente no conceito de p�tria iria levar
um certo pensamento centralizador a compor � ao longo da Rep�blica Velha � uma
figura org�nica, positiva, de Estado-Na��o. Para esse limite convergem, por exemplo,
os planos de salva��o nacional de Alberto Torres, Oliveira Viana e Azevedo Amaral.
Mas em Lima Barreto o que anima a reflex�o sobre nacionalismos e patriotismos � o
sentimento do relativo, do prec�rio, do manipul�vel, que tais no��es cont�m e, mais do
que tudo, � o temor de uma ideologia servil � tirania armada que o fanatismo engendra.
H�, por isso, um alcance libert�rio no desabafo de Policarpo, capaz de acusar no seu
discurso os conquistadores e as nossas subservi�ncias psicol�gicas.
Nem mesticismo nem nacionalismo de Estado, ao menos nos termos em que este acabou
sendo constru�do pelos cr�ticos antiliberais da Constitui��o de 1891-No ataque �
sociedade do Brasil-Rep�blica, a experi�ncia pessoal de Lima Barreto e a sua admira��o
pelas vertentes revolucion�rias da Europa deram-lhe acesso a um �ngulo independente
de vis�o.
Procuro agora a outra ponta do dilema. Se toda explora��o liter�ria do pobre, do mulato,
do caboclo, do nosso povo, o constrangia, de igual modo o irritava a sua contraparte,
fatal nas burguesias perif�ricas, que � o mimetismo de modas e signos comprados aos
centros de prest�gio.
O homem de cultura, pobre mas j� livre havia duas gera��es, sofre mal a tutela do rico
em quem reconhece um travo de menosprezo, e se desgosta ao ver o servilismo com que

o rico lambe os p�s do
269


mais rico. Da�, os rasgos de impaci�ncia de Lima ao surpreender, a cada passo, o fetiche
do estrangeirismo que medusava o Rio do seu tempo. Na hierarquia de posi��es, onde
se recobriam e ajustavam dinheiro, status e ra�a, s� aquele que ocupava o �ltimo degrau
conseguia ver, de baixo, os avessos de uma pr�tica dependente.
Mas do�a nele um desejo de que a sua palavra de escritor, rompendo com os vezos
florais da �poca, fizesse obra de transpar�ncia absoluta. A luta pela autenticidade da
express�o, a ser conquistada custasse o que custasse, o compelia a desfazer, a partir da
�tica individual, o n� que lhe armavam o gosto e os preconceitos do seu tempo. Sabe-se

o quanto os seus textos de fic��o se modelaram sob o fogo da auto-analise. Um discurso
confessional, sem reservas nem per�fra-ses, toma corpo desde a abertura das
Recorda��es do escriv�o Isa�as Caminha: ' 'A tristeza, a compreens�o e a desigualdade
de n�vel mental do meu meio familiar agiram sobre mim de modo curioso: deram-me
anseios de intelig�ncia. Meu pai [...]".
A confiss�o do narrador transcende o caso singular. � testemunho e coment�rio de
situa��es t�picas. E preciso voltar � constata��o inicial. N�o se desenhava para o escritor
negro ou mulato p�s-88 o mesmo futuro ideal a que visavam os militantes filhos de
escravos nos dec�nios de 70 e 80. A arena passara da senzala ao mercado de trabalho. O
jovem Isa�as, nem bem lan�ado fora da placenta familiar, se quebra na cidade grande
contra um meio hostil:
Achei t�o cerrado o cipoal, t�o intrincada a trama contra a qual me fui debater, que a
representa��o de minha personalidade na minha consci�ncia se fez outra, ou antes,
esfacelou-se a que tinha constru�do. Fiquei como um grande paquete moderno cujos
tubos da caldeira se houvessem rompido e deixado fugir o vapor que movia suas
m�quinas.
O texto � a met�fora da condi��o do intelectual mesti�o ou negro que se percebe ao
mesmo tempo livre e confinado. Onde quer que v�, Isa�as sente-se como que exilado
sob a cor da pele. As suas qualidades pessoais, os momentos em que poderiam brilhar a
sua intelig�ncia e encanto aparecem como "tufos vivos, profusamente iluminados' ', mas
perdidos naquela paisagem fosca e ba�a contemplada da janela do trem que leva o
mocinho pobre para a capital: s�o apenas "rebentos de vida numa pele doente".
270
A pele, figura da identidade, �rea de fronteira entre o olhar do outro e o espa�o �ntimo,
vai repontar em outro contexto. Isa�as, desde que conseguira o lugar de cont�nuo em um
jornal carioca, n�o se arrisca a sair da sua nova casca, pois teme recair na anomia do
limbo social: "Tinha atravessado um grande bra�o de mar, agarrava-me a um ilh�u e n�o
tinha coragem de nadar de novo para a terra firme que barrava o horizonte a algumas
centenas de metros. Os mariscos bastavam-me e os insetos j� se me tinham feito grossa
a pele...''. Aqui � o social que recobre a carne com as escaras deixadas pela luta
cotidiana.
Em um epis�dio anterior, Isa�as, vendo recusados sem motivo aparente os seus pedidos


de emprego, entrara em si com o sentimento de viver em estado de s�tio: ' 'E tive a
sensa��o de estar em pa�s estrangeiro' '.
Trabalhando com um imagin�rio mais complexo e em um tom mais vibrante, Cruz e
Sousa dissera a mesma sensa��o de estranheza no ' 'Emparedado'', escrito poucos anos
antes das Recorda��es.
Para o poeta simbolista, o problema se formulava em termos da situa��o do artista
negro, ao qual o subdarwinismo da �poca negava a possibilidade de subir ao n�vel da
intelig�ncia criadora. Na linguagem febril do "Emparedado", a trag�dia do intelectual
negro se localiza no bojo de uma cultura ainda informe, como a brasileira, que se dobra
� ditadora ci�ncia de hip�teses.
O racismo evolucionista, enquanto relegava o negro a uma posi��o inferior na escala do
g�nero humano, fez as vezes do mito de Cam racionalizado e introjetado mundialmente
entre os fins do s�culo xrx e a Primeira Guerra Mundial:
Nos pa�ses novos, nas terras ainda sem tipo �tnico absolutamente definido, onde o
sentimento d'Arte � silv�cola, local, banalizado, deve ser espantoso, estupendo o
esfor�o, a batalha formid�vel de um temperamento fatalizado pelo sangue e que traz
consigo, al�m da condi��o invi�vel do meio, a qualidade fisiol�gica de pertencer, de
proceder de uma ra�a que a ditadora ci�ncia d'hip�teses negou em absoluto para as
fun��es do Entendimento e, principalmente, do entendimento art�stico da palavra
escrita.
Deus meu! por uma quest�o banal da qu�mica biol�gica do pig-mento ficam alguns mais
rebeldes e curiosos f�sseis preocupados, a ru


271


minar primitivas erudi��es, perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de
uma sabedoria infinita, esmagadora, irrevog�vel! Mas que importa tudo isso? Qual � a
cor da minha forma, do meu sentir? Qual � a cor da tempestade de dilacera��es que me
abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?

� Tu �s dos de Cam, maldito, r�probo, anatematizado!
("Emparedado", prosa final das Evoca��es)
Uma vez mais e por vias transversas cinde-se o mito unificador da na��o brasileira,
vindo � luz da consci�ncia infeliz a imagem de suas fraturas de ra�a e de classe.
Tanto no poema em prosa de Cruz e Sousa quanto em numerosas passagens ficcionais e
cr�ticas de Lima Barreto pode-se admirar a a��o de uma intelig�ncia aguda, capaz de
afrontar os dogmas do imperialismo racial.7
Ambos arrancam das entranhas da pr�pria condi��o de escritores pobres e marginais
uma rara lucidez contra-ideol�gica. Estava se formando, no per�odo, uma cultura de
resist�ncia (estimulada, em Lima Barreto, pelo contacto com grupos anarquistas e
socialistas): um ide�rio que em nada condizia com a vis�o oficial e amena da Rep�blica
nascente.
O Treze de Maio n�o � uma data apenas entre outras, n�mero neutro, nota��o
cronol�gica. E o momento crucial de um processo que avan�a em duas dire��es. Para
fora: o homem negro � expulso de um Brasil moderno, cosm�tico, europeizado. Para
dentro: o mesmo homem negro � tangido para os por�es do capitalismo nacional,
s�rdido, brutesco.
O senhor liberta-se do escravo e traz ao seu dom�nio o assalariado, migrante ou n�o.
N�o se decretava oficialmente o ex�lio do ex-cativo, mas este passaria a viv�-lo como
um estigma na cor da sua pele.
272

9

A ARQUEOLOGIA
DO ESTADO-PROVID�NCIA
Sobre um enxerto de id�ias de longa dura��o

Em mem�ria de Jo�o Cruz Costa

A significa��o do positivismo na hist�ria do Brasil ultrapassa os limites da hist�ria de
um sistema filos�fico.
Otto Maria Carpeaux, "Notas sobre o destino do positivismo", in Rumo, I, 1943
toda a��o principia mesmo �por uma palavra pensada Guimar�es Rosa, Grande
sert�o: veredas

Em um cap�tulo da sua obra sobre o atraso econ�mico pensado em escala mundial,
Alexander Gerschenkron trabalha a quest�o das ideologias que atuaram nos processos
de desenvolvimento nacional posteriores � Revolu��o Industrial inglesa. A sua hip�tese
� fecunda. Teria havido, em cada caso, uma din�mica peculiar de valores capaz de


acelerar o passo da forma��o social retardada; e as teorias que integraram esse conjunto
de fatores desencadeantes variaram de acordo com a constela��o cultural de cada na��o
que cruzou o limiar da moderniza��o.1
Na Fran�a de Napole�o m quase todos os empres�rios que lograram exercer uma
influ�ncia econ�mica duradoura pertenciam a um grupo bem definido: n�o eram
bonapartistas, mas "socialistas" san-simonianos. O utopista franc�s, de que Augusto
Comte foi disc�pulo e secret�rio entre 1817 e 1824, idealizava a sociedade do futuro
como

273


uma esp�cie de Na��o-Estado corporativa na qual os l�deres da ind�stria assumiriam
fun��es pol�ticas de relevo. O termo d�v�loppe-ment no sentido forte de progresso
material e social j� comparece em Saint-Simon e no jovem Comte. Para estabelecer o
sistema seria indispens�vel instaurar uma economia planejada que regulasse o
desenvolvimento da na��o como um todo. A Lei interviria, se preciso, at� o limite de
abolir o instituto da heran�a, um dos maiores �bices criados ao progresso por manter
privil�gios individuais em detrimento da solidariedade social. Os industriais e os seus
financiadores seriam os mission�rios de um novo credo, que Saint-Simon julgava ainda
crist�o, e pelo qual "as classes mais numerosas e sofredoras" seriam incorporadas e
protegidas pela s�lida uni�o de Ind�stria e Governo. Quanto aos ganhos pecuni�rios que
a produ��o trouxesse para o capital, poderiam ser redimidos de qualquer mancha ego�sta
pela institui��o de uma sociedade altru�sta, termo cunhado ent�o, para designar um
regime pr�spero e distributivo. A recompensa do m�rito iria para os fortes; a assist�ncia
ben�vola, para os fracos. Nascia, deste modo, o ideal reformista do Estado-Provid�ncia:
um vasto e organizado aparelho p�blico que ao mesmo tempo estimula a produ��o e
corrige as desigualdades do mercado.
Da ortodoxia econ�mica Saint-Simon e Comte s� aproveitariam o conselho de manter
sempre em equil�brio a balan�a da receita e despesa do Estado; mas, em oposi��o ao
liberalismo dominante na �poca, ambos aspiravam � vig�ncia de for�as morais e
pol�ticas capazes de retificar a "licenciosidade" e o "empirismo industrialista". O
capitalismo na Fran�a come�ava, portanto, a auto-regular-se mediante um projeto de
alian�a dos empres�rios com um Estado previsor e provedor, tra�ando um caminho em
parte distinto do capitalismo ingl�s, cujos impasses foram sendo contornados pela
press�o sistem�tica dos trabalhadores organizados nas trade unions. O sansimonismo,
que atraiu a burguesia industrial de forma��o polit�cnica, adotou uma estrat�gia
reformista que seria invi�vel sem a participa��o direta do aparelho estatal.
As inspira��es religiosas do credo industrialista encontraram sua express�o na Nova
Cristandade de Saint-Simon, que o Comte criador de outra seita n�o perfilharia,
apartando-se do mestre. Um dado pitoresco mas significativo: pouco antes de sua morte,
Saint-Simon instou junto a Rouget de Lisle, o j� ent�o idoso autor da Marseillaise,
274

para que compusesse um novo hino, uma Marselhesa Industrial. Rouget aquiesceu.
Neste hino os homens que ele outrora chamara enfants de Ia patrie chamam-se agora a
si mesmos enfants de l'industrie, os verdadeiros nobres que assegurariam a felicidade
universal' 'espalhando as artes e submetendo o mundo �s pac�ficas leis da ind�stria".
Comenta Gerschenkron: ' 'N�o h� not�cias de que Ricardo tenha inspirado a algu�m a
mudan�a do God save the King em God save In-dustry".2
Do caso franc�s passa o autor a analisar a moderniza��o alem�. Nesta, os valores
solicitados a catalisar o projeto capitalista n�o se inspiraram na tradi��o republicana dos
ideais de 89, mas, como se sabe, na m�stica nacionalista. Friedrich List, economista de


peso, converteu o discurso empresarial de Saint-Simon na linguagem de um poder
p�blico centralizador de que Bismarck seria o paladino. O caminho alem�o passou pelo
protecionismo oficial � ind�stria. Foi nessa Pr�ssia entre moderna e autorit�ria que se
adotou, pela primeira vez, o termo que conheceria uma longa fortuna: Estado de bem-
estar, Wohl-fahrsstat.
Enfim, o marxismo teria induzido na R�ssia pr�-revolucion�ria dos anos 90 um
consenso favor�vel � industrializa��o pesada, via Estado imperial, que se concretizou
plenamente quando o bolchevis-mo subiu ao poder e se p�s a forjar com m�o de ferro a
economia sovi�tica.
Os exemplos da Fran�a, da Alemanha e da R�ssia servem ao historiador para ilustrar a
sua tese: o desenvolvimento t�cnico e econ�mico das na��es europ�ias n�o foi um
subproduto autom�tico da Revolu��o Industrial, pois dependeu tamb�m de fatores
ideol�gicos e, em senso lato, culturais. Foram modos de pensar diferenciados que se
puseram em confronto com situa��es arcaicas, pr�-industriais, peculiares a cada
forma��o. Desse jogo de for�as modernizantes e tradicionais, situado no tempo e no
espa�o, teriam resultado estilos nacionais de desenvolvimento.
Em que medida certos ideais positivistas constitu�ram a arqueologia da moderniza��o
brasileira, tal como se deu, promovida por um Estado centralizador? E a pergunta a que
este ensaio tenta responder.

275


O MOLDE POSITIVISTA NO BRASIL

Os estudos pioneiros de Cruz Costa e Ivan Lins narraram as vi-cissitudes do Apostolado
Positivista no Rio de Janeiro e as posi��es dos seus dois sacerdotes, Miguel Lemos e
Teixeira Mendes, entre o ocaso do Imp�rio e os primeiros anos da Rep�blica.3 Foram
pelo menos duas d�cadas de intensa milit�ncia comtiana que, por�m, n�o tardou a
romper as suas rela��es com a dire��o francesa do movimento ent�o representada por
Pierre Laffitte.
O motivo da ruptura � edificante e merece an�lise, pois n�o se resume em mais um
epis�dio bizarro e avulso como tantos outros que comp�em o anedot�rio positivista de
nossa cr�nica filos�fica. Miguel Lemos discordou da coniv�ncia de Laffitte com um
correligion�rio brasileiro, dr. Ribeiro de Mendon�a. Este, fazendeiro no vale do Para�ba
e dono de escravos, transgredira o princ�pio do mestre que condenava a institui��o do
cativeiro. Miguel Lemos o advertiu e houve por bem exclu�-lo do Apostolado. Mas
Laffitte, consultado, preferiu tomar uma atitude conciliante, o que indignou os
ortodoxos provocando afinal a dissid�ncia do n�cleo brasileiro em 1883.
No fogo dos embates Miguel Lemos e Teixeira Mendes publicaram um op�sculo que
reunia todos os textos abolicionistas de Comte fazendo-os preceder de uma dedicat�ria
a Toussaint Louverture, o her�i da insurrei��o negra nas Antilhas francesas.
O antiescravismo dos nossos ortodoxos sempre combinou os seus argumentos com a
propaganda do regime republicano adotando para ambas as causas o mesmo discurso de
cr�tica ao imobilismo do Imp�rio. A monarquia, segundo o mestre de Montpellier, ainda
se achava presa �s fases teol�gica e metaf�sica da Hist�ria, as quais deveriam, por obra
de leis inderrog�veis inscritas na pr�pria natureza das coisas, ser ultrapassadas pela fase
positiva. Sociedade industrial, j� n�o mais feudal nem militar, trabalho livre e ditadura
republicana constituiriam o novo sistema.
O Apostolado, que se manteve sempre ao largo dos partidos pol�ticos, ganhou alguma
audi�ncia no interregno florianista, quando a falange dos cadetes disc�pulos de
Benjamin Constant, ditos '' jaco-binos", ainda p�de intervir na condu��o do Estado.
Mas, consolidada a presen�a paulista nos governos de Prudente de Moraes e Campos
Salles, e gra�as � hegemonia do liberalismo nos anos que precederam

276

a Guerra Mundial, o positivismo, enquanto seita, viu reduzido o seu campo de
influ�ncia. Da�, os limites cronol�gicos que lhe imp�em os seus historiadores fixando-
os em torno de 1900.
O lado exc�ntrico da Igreja Positivista com suas vestes talares, o seu calend�rio paralelo
e as suas interven��es t�picas � contra a vacina obrigat�ria, contra a ' 'pedantocracia''
nacional que exigia diplomas profissionais � substituiu, em geral, a tarefa de pesquisar
um fen�meno mais enraizado que Cruz Costa reconheceu como a persist�ncia de uma
doutrina difusa na Rep�blica Velha e, quem sabe, no Brasil pol�tico que a sucedeu.
Dizia Cruz Costa retomando observa��es de Carpeaux: "Se o positivismo � ainda, como


as outras doutrinas, produto de importa��o, nele h�, no entanto, tra�os que revelam a
sua mais perfeita adequa��o ao condicionalismo da nossa forma��o, �s realidades
profundas do nosso esp�rito".4
De qualquer maneira, a opini�o de que a fase �urea do positivismo no Brasil se
encerrara com a vit�ria do regime republicano ganhou foros de verdade consabida.
No entanto, os trabalhos de f�lego de S�rgio da Costa Franco e de Joseph Love e a
recente erudi��o universit�ria ga�cha v�m rees-tudando com brio a quest�o da
modelagem mental do positivismo no Rio Grande do Sul at� 1930. A nossa
historiografia pol�tica come�a a aclarar os modos pelos quais um ide�rio importado
(teria havido algum que n�o o fosse?) p�de nutrir uma ideologia de longa dura��o capaz
de legitimar a a��o intervencionista do poder p�blico em um contexto local e, depois da
Revolu��o de Trinta, nacional.5
Este ensaio visa a contemplar os processos de escolha, filtragem e ajuste pelos quais a
intelig�ncia' 'colonizada'' � capaz de levar adiante um projeto econ�mico e ideol�gico.
Tudo come�a no tempo do abolicionismo.
O epis�dio da cis�o que o Apostolado operou em 1883, rejeitando a autoridade mundial
de Laffitte, despertou minha aten��o quando me pus a estudar o gradiente ideol�gico do
nosso abolicionismo.6 As diferen�as entre as express�es cautas e dilat�rias dos
republicanos de S�o Paulo em face da quest�o servilt as rea��es varonis dos
propagandistas ligados, direta ou indiretamente, aos n�cleos positivistas do Rio de
Janeiro e do Rio Grande do Sul, se afiguraram, desde o in�cio, objetivas e coerentes com
os interesses e as vontades pol�ticas dos grupos em quest�o.

277


Os republicanos que fizeram a Conven��o de Itu e criaram o partido em S�o Paulo eram
cafeicultores ou bachar�is envolvidos no sistema agroexportador. O seu objetivo,
sempre reafirmado, era assegurar o uso da m�o-de-obra escrava at� o momento em que
a imigra��o europ�ia a substitu�sse. Para o caso de a pol�tica imperial os colher de
surpresa e decretar a aboli��o, eles pleiteavam um ressarcimento pelos danos que a
alforria geral acarretasse aos seus neg�cios. Nabuco os chamava, sem rebu�os, de
"cafezistas".
Os republicanos do Rio, quer positivistas ortodoxos (Miguel Lemos, Teixeira Mendes),
quer seus simpatizantes (Quintino Bocayuva, Benjamin Constam, Silva Jardim, Lopes
Trov�o, Raul Pomp�ia), eram profissionais liberais que milhavam nas suas �reas, como

o Ex�rcito, a Escola e a Imprensa: homens de doutrina que viam com desconfian�a as
manobras evasivas dos homens do caf�.
Por algum tempo unidos na luta antimon�rquica, os dois grupos n�o eram farinha do
mesmo saco. At� mesmo o positivismo de alguns porta-vozes da oligarquia cafeeira foi-
se revelando heterodoxo, se n�o at�pico, colorindo-se de matizes evolucionistas. Cruz
Costa e Raymundo Faoro entreviram com perspic�cia a vig�ncia de um ' 'spen-cerismo
paulista''. Pesquisas recentes confirmam a justeza da express�o mostrando a presen�a
forte de Darwin, Haeckel e Spencer no discurso dos m�dicos republicanos, como
Miranda Azevedo e Pereira Barreto, que atuaram na pol�tica do estado paulista jurando
pela cartilha da livre concorr�ncia de que resultaria a sele��o natural dos mais aptos.7
A oposi��o, n�o s� te�rica mas pol�tica, entre spencerismo e com-tismo explode com
todo o ardor pol�mico na pena de S�lvio Romero, cujo panfleto Doutrina contra
doutrina (1891) ataca frontalmente os positivistas ga�chos, que ele reputava t�o
indesej�veis quanto os ja-cobinos e os socialistas, ao mesmo tempo que louva a
industrios� ' 'democracia paulista'' em nome dos princ�pios do evolucionismo. A hist�ria
da Rep�blica Velha at� 1930 ensina que esse contraste n�o se reduzia aos humores de
S�lvio Romero, mas tinha muito a ver com os grupos pol�ticos do Brasil real.
Na quest�o do escravo, S�lvio Romero, embora abolicionista, julgara precipitada a a��o
do Estado que promulgou a Lei �urea. Adotando o lema darwiniano de que "a natureza
n�o faz saltos", o cr�tico sergipano preferiria que se tivessem deixado em liberdade as
for�as
278
em conflito do qual adviriam naturalmente as solu��es corretas para salvar o
"organismo nacional".
A posi��o contr�ria, assumida por Miguel Lemos, Teixeira Mendes, J�lio de Castilhos e
os ortodoxos ga�chos, encarecia o car�ter su-perorg�nico da sociedade, onde os mais
s�bios, elevados a conselheiros do Executivo, deveriam interferir para orientar e, se
preciso, retificar o curso das a��es humanas. Para Comte a escravid�o colonial n�o era
fruto da evolu��o biol�gica da esp�cie, mas uma ' 'anomalia monstruosa" que deveria
ser extirpada. Ao Estado republicano caberia faz�-lo.


Coerentemente, o n�cleo positivista do Rio de Janeiro rejeitou, desde o primeiro
momento, as propostas de ressarcir os senhores cujos escravos fossem alforriados por
efeito de lei. Indenizar significaria admitir publicamente os direitos de propriedade de
um homem sobre o outro. Os africanos, estes sim, � que mereceriam plena compensa��o
pelos s�culos de trabalho for�ado a que os submetera a coloniza��o europ�ia na
Am�rica.8
J� em texto publicado em A Gazeta da Tarde, de 8 de outubro de 1880, Teixeira
Mendes exprimia seu solene descaso pela "ru�na poss�vel de um punhado de
escravocratas'' e defendia um projeto de aboli��o imediata.
No contexto ga�cho lan�ava J�lio de Castilhos as Bases do programa dos candidatos
republicanos reunidos no Segundo Congresso partid�rio (1884), onde se exigia a
aboli��o imediata e pronta, sem indeniza��o. Em artigo sa�do em 30 de julho do mesmo
ano, Castilhos procurava desmascarar os argumentos economicistas dos senhores de
escravos:
Os cegos sup�em que a nossa riqueza est� ligada � for�a do bra�o escravo. O bra�o que
n�o � livre, n�o tem for�a. Um pa�s de doze milh�es de habitantes que faz a sua riqueza
depender do trabalho �nico de um milh�o e meio de desgra�ados cativos, � uma na��o
de �nfima ordem. O Rio Grande do Sul n�o deve esperar pela futura lei, precisa
antecipar-se, como o fizeram Cear� e Amazonas. Aboli��o completa da escravid�o na
p�tria brasileira^

A coes�o doutrin�ria do Apostolado e dos rep�blicos ga�chos invalida as afirma��es de
S�rgio Buarque de Holanda sobre o respeito que os positivistas teriam sempre
demonstrado pelo direito de pro


279


priedade.10 Teixeira Mendes diria incisivamente: ' 'A civiliza��o moderna n�o pode
manter, em rela��o � propriedade, os princ�pios que dominavam na sociedade antiga. O
bem geral � a lei suprema das na��es, e todas as institui��es humanas devem se basear
na moral e na raz�o''.u Prop�e, em seguida, um esbo�o de legisla��o trabalhista que,
"para a �poca e para as condi��es locais, era verdadeiramente revolucion�rio".12
Nessa altura, os cadetes da Escola Militar do Rio de Janeiro, disc�pulos de Benjamin
Constant, lan�avam manifesto � na��o, escorados em "raz�es positivas", contra o
predom�nio da economia escravista na vida brasileira.13
Mas acertou, em parte, aquele mesmo insigne historiador quando disse que os
positivistas nutriam ' 'um secreto horror � nossa realidade nacional".14 O que � verdade,
e essa atitude dos ortodoxos, de resto nada sigilosa, pois timbravam em public�-la
fartamente, os honra perante a nossa consci�ncia de p�steros, pois navegar contra a
mar�, sustentando causas antip�ticas aos interesses da classe dominante, � sinal de
inconformismo salutar. N�o � raro acontecer, por�m, que o historicismo puro sinta
embara�o ao lidar com a dial�tica da negati-vidade que lhe parece deslocada ou
extravagante. Para a l�gica histo-ricista o radical tem ares impertinentes ou, no melhor
dos casos, quixotescos.
O discurso dos disc�pulos militares de Benjamin Constant alimentar� os jacobinos, os
chamados radicais da Primeira Rep�blica, e sabemos o quanto a sua a��o foi
neutralizada, a partir de 1894, pelas presid�ncias paulistas formadas no velho
liberalismo. Os jovens oficiais, nem bem passado o governo de Floriano Peixoto,
acabaram exclu�dos do sistema de poder.15 Essa r�pida marginaliza��o dos militantes
comtianos mais ostensivos em plano nacional concorreu para que a nossa historiografia
de id�ias tomasse por findo o ciclo da atua��o positivista nos primeiros anos do s�culo

xx. Mas basta atentar para a ideologia difusa no Ex�rcito republicano e nos estratos
dirigentes ga�chos para verificar que os esquemas mentais n�o cessam abruptamente de
funcionar, resistindo enquanto servirem como ve�culos �teis para racionalizar interesses
e vontades. O ide�rio reformista, comum aos tenentes e aos l�deres do Partido
Republicano Rio-Grandense, ir� fundamentar o programa da Alian�a Liberal vitoriosa
em outubro de 30. E n�o ser� apenas aleat�rio o fato de o pai de Lu�s Carlos Prestes,
280

o capit�o Ant�nio Prestes, ter sido, juntamente com Prot�sio Vargas, irm�o de Get�lio,
um dos fundadores do Centro Positivista de Porto Alegre em 1899O
POSITIVISMO NO SUL E
A ARQUEOLOGIA DO ESTADO'-PROVID�NCIA
A doutrina do Partido Republicano Rio-Grandense compunha-se de algumas id�ias
diretamente inspiradas no credo pol�tico de Augusto Comte.
N�o se tratava, a rigor, de uma idiossincrasia local. As mesmas id�ias enfermavam os
projetos estatizantes dos colorados uruguaios, cujo l�der, o presidente Jorge Batlle,
conheceu o comtismo de Pierre Laffitte nas mesmas reuni�es da rua Monsieur-le-Prince


que Miguel Lemos freq�entara no come�o dos anos 80. Valores afins constavam do
programa radical de Hip�lito Yrigoyen, presidente da Argentina em 1916.
Uma ideologia ga�cho-platense? � perguntar� um historiador cioso de demarca��es
regionais. A resposta � estrutural. O Rio Grande do Sul, o Uruguai e a Argentina,
ressalvadas as diferen�as de escala, eram forma��es s�cio-econ�micas similares. Nas
tr�s, a economia pecu�ria e exportadora, firmemente implantada ao longo do s�culo xix,
teve de enfrentar, desde os fins deste, a alternativa menor, mas din�mica, da policultura
voltada para o mercado interno e das novas atividades urbanas de ind�stria e servi�os.
Agricultores operosos, carentes de cr�dito oficial, industriais de pequeno e m�dio porte
estabelecidos nas cidades maiores e uma crescente classe de assalariados vindos com as
grandes migra��es europ�ias passaram a constituir p�los de necessidades e projetos n�o
raro opostos aos dos velhos estan-cieiros e ganaderos.
Da� terem-se formado, nas tr�s regi�es cont�guas, grupos de press�o que demandavam
pol�ticas de Estado resistentes, quando n�o francamente contr�rias ao laissez-faire
prop�cio ao setor olig�rquico-exportador. Que estilos ideol�gicos poderiam ent�o
responder �s exig�ncias dessas novas camadas sociais?
Quando pensamos hoje em modelos de pensamento interven-cionista, temos presentes
as duas principais teorias negadoras do libe


281


ralismo cl�ssico: o marxismo em suas v�rias linhas e o reformismo p�s-1929 de filia��o
keynesiana. Mas, se remontamos ao s�culo xix, vemos que foi do industrialismo ut�pico
de Saint-Simon e do positivismo social de Comte que fluiu uma primeira vertente
ideol�gica voltada para retificar o capitalismo mediante propostas de integra��o das
classes a ser cumprida por uma vigilante administra��o p�blica dos conflitos. A sua
inspira��o profunda � �tica e, tanto em Saint-Simon quanto em Comte, evoluiu para um
ideal de ordem distribu-tivista.
O positivismo social, transferido quase em estado puro para o contexto republicano
ga�cho (ou variamente combinado com o ra-cionalismo krausista no Uruguai colorado),
deu � nova configura��o econ�mica modelos de a��o pol�tica cuja coer�ncia interna
ainda hoje impressiona.
O que distinguiu a teoria e a pr�tica do castilhismo ga�cho do fil�o maior, burgu�s e
progressista, que desaguou na Lei �urea e na proclama��o do novo regime?
Precisamente, a sua tend�ncia de atribuir ao poder p�blico a fun��o de promover e, no
limite, controlar os rumos do desenvolvimento econ�mico.
As suas matrizes doutrin�rias podem reconhecer-se em v�rias passagens do Curso de
filosofia positiva e, mais pontualmente, no seu �ltimo volume, que ambiciona construir
uma teoria da F�sica Social.l6 A� ficam patentes as diverg�ncias de Comte em rela��o ao
que ele chama dogmatismo da economia pol�tica ortodoxa. O erro fundamental desta foi
ter dissociado os fatores econ�micos de uma vis�o global da sociedade, convertendo-os
em abstra��es "metaf�sicas". Um dos princ�pios liberais que Comte julgava
particularmente funesto seria o de conceber os processos de produ��o, circula��o e
consumo de mercadorias somente em fun��o dos interesses individuais. A absolutiza��o
do desejo de lucro, aceso egoisticamente em cada agente da vida social, tende a
gerar um estado de anomia ou de viol�ncia desenfreada que t�o-s� uma prudente e
en�rgica administra��o p�blica conseguiria evitar: ' 'A economia pol�tica tem seu modo
especial de sistematizar a anarquia: e as f�rmulas cient�ficas que ela emprestou aos
nossos dias v�m apenas agravar tal perigo tendendo a faz�-lo mais dogm�tico e mais
amplo".17
Criticando os disc�pulos r�gidos de Adam Smith e de Say, advertia Comte: "Les plus
classiques d'entre eux se sont efforc�s de repr�


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senter dogmatiquement, surtout de nos jours, le sujet general de leurs �tudes comme
enti�rement distinct et independam de 1'ensemble de Ia science, dom ils s'attachent
toujours � 1'isoler parfaitement".18
Em outras palavras, Comte deplorava uma das conseq��ncias t�picas da divis�o do
trabalho intelectual nas sociedades industriais: a atomiza��o das �reas cient�ficas e, no
caso, a independ�ncia da economia em rela��o � ci�ncia da sociedade, que ele pr�prio
batizara com o nome de Sociologia. E, tratando-se de economia pol�tica, esse
isolamento teria surtido efeitos particularmente hostis ao seu ideal de integra��o.


Os nossos comtianos do Sul propunham-se harmonizar as for�as que a iniciativa privada
p�e em movimento. Para tanto, defendiam o modelo de um regime presidencialista
austero e prestante a que o sufr�gio universal (incluindo o voto das mulheres, dos
analfabetos e dos religiosos) daria larga margem de representatividade.
A amplitude m�xima do corpo eleitoral permitiria que se confiasse maior delega��o de
poderes aos escolhidos pelo voto a descoberto, segundo o princ�pio de "viver �s claras".
A ditadura republicana, assim auspiciada, e aceita religiosamente pelo Partido
Republicano Rio-Grandense, teria como contrapeso democr�tico a atua��o de uma
Assembl�ia de Representantes, tamb�m eleita diretamente, � qual caberia o papel
exclusivo de discutir, emendar e votar o or�amento proposto pelo Executivo.19
Esse esquema de fun��es pol�ticas foi transposto para a Constitui��o do Rio Grande que
J�lio de Castilhos redigiu inteiramente em 1891. Os republicanos ga�chos sempre se
referiram � sua lei magna (ali�s, exemplo de linguagem s�bria e concisa) em termos de
venera��o. Eram ' 'os sagrados princ�pios da Carta de 14 de julho''. E quantas
resson�ncias n�o despertaria a data escolhida para sancionar a sua Constitui��o
republicana!
Entre outras recomenda��es de Comte figurava a da continuidade administrativa.
Castilhos converteu-a em artigo que permitia a reelei��o do presidente desde que este
obtivesse tr�s quartas partes dos votos. Esse procedimento conferia ao ocupante do
Poder Executivo uma legitimidade de teor plebiscit�rio.
Traduzidos em leis e em decretos, citados respeitosamente nos documentos dos
presidentes e dos intendentes municipais (prefeitos) durante a Rep�blica Velha, os
princ�pios serviram, de fato, como

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s instrumentum regni do PRR no seu prop�sito expl�cito de ' 'governar acima dos
interesses ego�stas de cada classe'' e, ao mesmo tempo, ' 'representar todos os grupos
sociais".
Dizia Borges aos deputados: ' 'Destarte um mesmo v�nculo pol�tico congrega todas essas
diferentes c�lulas do organismo do Estado, mantendo a unidade de pensamento no meio
da mais vasta descentraliza��o administrativa" (Mensagem de 20 de setembro de 1900).
Os historiadores da oposi��o entre republicanos e liberais divergem quanto � origem e
ao significado do conflito. S�rgio da Costa Franco e Joseph Love, entre outros,
entendem o PRR como uma agremia��o mista de pequena burguesia urbana, fazendeiros
da Serra abastados, mas sem tradi��es de casta, colonos �talo-ga�chos que formavam
uma pequena classe m�dia rural e profissionais liberais. Do outro lado, estaria a velha
elite de estancieiros da Campanha, regionalista, fiel ao Partido Liberal e alijada do
poder com o Quinze de Novembro; contavam com a simpatia de algumas antigas e
pr�speras col�nias de origem alem�. Esta � a interpreta��o cl�ssica, que nos remete ao
nexo entre a ideologia e o locus dos atores pol�ticos. Pesquisadores recentes, de extra��o
universit�ria (Geraldo Muller, Sandra Pesavento �, mais matizadamente, Dutra
Eonseca), menos inclinados a admitir a aura de progressismo antiolig�rquico que aquela
vers�o reconhece na praxe do PRR, preferem tratar o diss�dio em termos de luta entre
fra��es da classe dominante: � uma leitura dos fatos que aproxima os partidos inimigos
sob o r�tulo geral de burguesia ga�cha. Aqui, a �nfase recai sobre o processo de
acumula��o capitalista, certamente comum aos des�gnios econ�micos de ambas as
fac��es; l� ganham relevo as diferen�as de estrat�gia pol�tica e de enraizamento
cultural. O n� da quest�o est� nas rela��es do Estado com a vida econ�mica. Castilhos,
Borges e os intelectuais do PRR mantiveram-se, em geral, coerentes com o ideal
comtiano da passagem da fase militar-feudal para a fase industrial da Humanidade.
Basta percorrer os Anais da Assembl�ia dos Representantes para apreender o ritmo
regular das propostas do Executivo.

* * *

Em primeiro lugar, o PRR sempre fez a defesa do imposto territorial, que foi
aumentando lenta e seguramente desde a sua cria��o

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em 1902 por iniciativa de Borges, influ�ncia de Castilhos, e sob vivos protestos dos
criadores sulinos. Comte manifestara aberta prefer�ncia pelos impostos chamados
diretos.
N�o por acaso, medidas similares de tributa��o da terra estavam sendo tomadas pelo
presidente Batlle no vizinho Uruguai em um corpo-a-corpo flex�vel e brioso com os
ganaderos.20 O governo colorado n�o s� taxou os campos de gado como buscou
recuperar para o patrim�nio p�blico as tierras fiscales que estavam nas m�os de
latifundi�rios grileiros. O paralelo da pol�tica fundi�ria de Batlle com as interven��es de
Castilhos e Borges na retomada pelo Estado das terras devolutas � flagrante e mereceria


estudo em detalhe.
A tese segundo a qual o imposto territorial era o mais justo, acercando-se da proposta
radical de um imposto �nico e progressivo, j� aparecia com todas as letras fia Economia
pol�tica de Stuart Mill, obra considerada pelos republicanos da Assembl�ia como
variante inglesa do positivismo social. ' 'A terra � um bem por natureza comum a todos
os homens'', sentencia Mill, e a cita��o desorientava os liberais acostumados a abonar-se
com frases do mesmo autor para ressalvar os interesses do indiv�duo contra o Estado...
Cada partido escolhia e filtrava o que podia, e como podia, das fontes prestigiosas do
tempo.
Tributar a propriedade e, por an�logas raz�es, a sua transmiss�o a herdeiros mortis
causa ou inter vivos justificava-se eticamente, pois n�o seria eq�itativo conceder' 'o uso
exclusivo, por indiv�duos, de uma cousa primitivamente comum a todos, e porque o
propriet�rio territorial � de alguma sorte o locat�rio da sociedade tomada em seu
conjunto''.
O texto, de autoria de Leroy-Beaulieu, � invocado por Borges de Medeiros na sua
Mensagem � Assembl�ia lida em 15 de outubro de 1902, como argumento em favor da
proposta de instituir o imposto territorial no estado. Esse tributo n�o era cobrado no
Brasil-Imp�rio. Castilhos e a bancada republicana ga�cha instaram pela sua cria��o nos
debates da Assembl�ia Nacional Constituinte de 1891.
A consulta aos Anais da Assembl�ia nos mostra que era de praxe avalizar com fontes
doutrin�rias europ�ias toda proposta de majora��o de tributos sobre terras ou legados. A
oposi��o liberal tendia ao regionalismo defensivo e chamava o fisco de "insaci�vel".
Quando veio � baila o tema do imposto �nico, o deputado Gaspar Saldanha n�o se
conteve e protestou com veem�ncia na sess�o de 23 de novem


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bro de 1920: ' 'Vejo na exclusividade do imposto sobre a terra uma subvers�vel [sic]
orienta��o socialista".
O mesmo parlamentar, criticando as pol�ticas p�blicas do PRR, atribui os seus erros ' 'a
certa doutrina filos�fica, que j� no M�xico deu frutos semelhantes ao que agora est�
produzindo aqui. Ali, o partido de los cient�ficos manteve a ditadura de Porf�rio D�az,
que afinal caiu. E esta preocupa��o 'cient�fica', � esta 'obsess�o' filos�fica que tem
trazido como conseq��ncia os mais profundos males" (27 de dezembro de 1922).
A apologia do novo aumento calculado pelo valor venal do im�vel � ent�o feita, com
estat�sticas precisas � m�o, pelos deputados Lin-dolfo Collor e Get�lio Vargas, ambos
de extra��o castilhista. Anos depois, os discursos proferidos por Vargas quando
presidente do estado (1928-30), embora em tempos de concilia��o com os pecuaristas
da Campanha, ainda conservariam tra�os de cr�tica � estrutura fundi�ria ga�cha que os
tributos mal podiam arranhar:
As grandes extens�es territoriais, onde apascenta o gado, atendido por um
reduzid�ssimo pessoal jornaleiro, �s vezes mal alimentado e mal pago, contribuem para
aumentar o pauperismo das cidades. E preciso retalhar os latif�ndios, dividi-los em
pequenas glebas e cuidar da cultura intensiva dos campos.21
Um ideal, como se v�, inspirado no modelo da pequena propriedade da zona colonial.

* * *

Em segundo lugar, � propor��o que os republicanos aumentavam a taxa��o sobre a terra
(de resto, bastante m�dica a crer nos quadros comparativos tra�ados por Lindolfo
Collor), concediam isen��es �s incipientes manufaturas locais.
Em quase todas as sess�es legislativas realizadas entre 1900 e 1930, a maioria responde
favoravelmente a pedidos de pequenos e m�dios empres�rios que requerem ao Estado a
outorga de franquias tanto para instalar suas ind�strias quanto para exportar os seus
produtos.
Criou-se nesses anos uma tradi��o fiscal de incentivo � manufatura a que os comtianos
se apegavam ciosamente salientando a necessidade de o Rio Grande entrar para a era
industrial. Mais tarde,

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ao longo do dec�nio de 30, com a subida ao poder central da Gera��o de 1907,22 essa
diretriz se combinaria com as teses do protecionismo � ind�stria e da substitui��o das
importa��es.
Os liberais regionalistas da Campanha viam com desagrado tantas isen��es aos
empres�rios de Porto Alegre, dadas, como acusava Gaspar Saldanha, ' 'a granel'', e
exigiam igual benepl�cito para a pecu�ria. Nessa �rea de fric��es Borges de Medeiros
foi, mais de uma vez, esquivo aos reclamos dos estancieiros, ao passo que o seu
disc�pulo e sucessor Get�lio Vargas soube atender com boa dose de pragmatismo ora
aos industriais, ora aos pecuaristas, segundo pedisse a conjuntura.
O debate travado entre Gaspar Saldanha e os borgistas Lindolfo Collor e Get�lio Vargas


ilustra as posi��es em choque. O representante liberal da oligarquia queixava-se das
extors�es fiscais com que o Estado estaria agravando os fazendeiros, ' 'vexames
tribut�rios impostos � classe dos criadores, que � taxada como nenhuma outra". Em
resposta, Lindolfo compara a pol�tica fiscal ga�cha com o ascenso do imposto em S�o
Paulo, provando, com n�meros oficiais � m�o, que em um estado regido pelas teorias do
laissez-faire a tributa��o paga pelos cafeicultores era proporcionalmente superior � que
reca�a sobre os pecuaristas do Sul. Saldanha contra-ataca lembrando que a receita
paulista se reinvestia em gastos destinados a financiar a mesma lavoura do caf�. Collor
retruca jocosamente: "Em que outra coisa poderia o governo bandeirante investir?".
Get�lio a�ode em apoio do confrade republicano perguntando-se, em nome da efici�ncia
do estado, de onde poderia este haurir recursos para cumprir as suas obriga��es
administrativas se n�o da cobran�a de impostos (sess�o de 27 de dezembro de 1922).
Toda a argumenta��o de Get�lio baseia-se no pressuposto de que o governo eleito por
sufr�gio universal n�o deve confundir-se com este ou aquele setor particular da
economia. A a��o republicana volta-se para alcan�ar um equil�brio supraclassista. O
Estado, como queria o mestre, � o c�rebro da na��o, e, gra�as a esta posi��o central no
corpo da sociedade, cabe-lhe regular os movimentos de cada �rg�o de tal modo que
nenhum se sobreponha aos demais. O discurso de Vargas n�o radicaliza o confronto
entre as partes: o seu lugar parece ser o do s�bio ordenador que s� interv�m quando as
car�ncias de uma classe (no caso, a dos industriais) exigem, pela intermedia��o dos po


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deres p�blicos, a supl�ncia de outra classe (a dos estancieiros).^carreira ideol�gica de
Get�lio Vargas seria coerente com o princ�pio de um Estado suficientemente forte para
mediar tanto os conflitos entre setores das classes dominantes como as tens�es entre
estas e os trabalhadores.
Segundo Comte, o progresso cumpre-se quando se passa de uma situa��o de
desequil�brio ou, mesmo, de desordem para um estado em que reine uma justa
propor��o entre os elementos do conjunto. Para reorganizar o todo social, ' 'a s� pol�tica,
filha da moral e da raz�o' ', n�o destr�i o �rg�o que cresceu em excesso, mas vai
conserv�-lo retificando as suas dimens�es e integrando-o em uma nova ordem, superior.
No caso da pol�tica econ�mica de uma na��o, o Estado visar� a obter uma
"diferencia��o organizada" das atividades produtivas, o que � outro modo de dizer que o
progresso destas sup�e a efetiva��o de uma certa ordem p�blica:
A intensidade dessa fun��o reguladora, longe de dever diminuir � medida que a
evolu��o humana se processa, deve, ao contr�rio, tomar-se cada vez mais indispens�vel,
desde que seja convenientemente concebida e exercida, de vez que seu princ�pio
essencial � insepar�vel do pr�prio princ�pio do desenvolvimento. E, pois, a
predomin�ncia habitual do esp�rito de conjunto que constitui necessariamente a
caracter�stica invari�vel do governo considerado sob qualquer aspecto.23
A F�sica Social cont�m v�rias passagens de cr�tica aos princ�pios do liberalismo cl�ssico
sempre referido como economia pol�tica. Para Comte,' 'a aus�ncia de toda e qualquer
interven��o reguladora'', quando erigida em dogma, ' 'eq�ivale evidentemente, na
pr�tica social, a uma esp�cie de solene demiss�o que essa pretensa ci�ncia se d� perante
cada dificuldade um pouco mais grave que o desenvolvimento industrial vier a
produzir".24
Essa formula��o de princ�pio ajustava-se como a m�o e a luva ao caso rio-grandense
cuja economia, diversificada e dirigida para o mercado interno, se ressentia com a
hegemonia do caf� paulista a que o governo central sacrificava os estados de segundo
escal�o. Borges de Medeiros, j� em 1901, antes portanto das sucessivas valoriza��es do
caf� com que a Uni�o tutelaria um produto de exporta��o por excel�ncia, atacara
duramente essa pol�tica particularista que se fazia em detrimento da policultura e da
ind�stria nascente:

288

�, conforme a geral convic��o, a monocultura do caf� a principal ru�na econ�mica do
pa�s. De fato, a superabund�ncia desse produto, subjei-ta [sic] ainda � concorr�ncia de
similares nos mercados consumidores, determinou a sua excessiva deprecia��o.
Hoje � a preocupa��o dominante fomentar ativamente o desenvolvimento de novas
culturas, das quais se cr� depender a �nica solu��o da chamada quest�o econ�mica".23

* * *

Em terceiro lugar, al�m de implantar a taxa��o da terra e a isen��o � manufatura, os
republicanos defenderam mais de uma vez a socializa��o dos servi�os p�blicos,


express�o tamb�m lida em Comte.
Entrando em rota de colis�o com empresas estrangeiras, analogamente ao que faziam na
mesma �poca BatUe e Yrigoyen em �spero di�logo com o imperialismo brit�nico,
Borges e os seus correligion�rios promoveram a encampa��o do porto de Rio Grande e
da via f�rrea Porto Alegre�Uruguaiana, em 1919-No mesmo ano o Estado toma a
iniciativa de explorar as minas de carv�o de Gravata!
Essas medidas podem soar precoces, pois estamos habituados a situar o nosso
nacionalismo estatizante entre os anos de 1930 e 1950, mas, a rigor, formam sistema
com uma doutrina que pretende coibir os abusos do mercado por meio de uma
disciplina que "prev� para prover"; logo, interv�m.
Quando Borges transferiu as vias f�rreas das m�os da Compag-nie Auxiliaire de
Chemins de Fer au Br�sil para a administra��o estadual, alegou raz�es de utilidade
p�blica. A presteza com que se teriam dado os tr�mites da encampa��o irritou os
maragatos que arg�i-ram o processo inteiro de autorit�rio; ainda desta vez foi Get�lio
Vargas que subiu � tribuna da Assembl�ia para justificar o procedimento do governo
republicano:
Se o corpo de bombeiros, ao ver uma casa tomada pelo fogo, em vez de extinguir as
chamas fosse primeiramente solicitar licen�a ao dono do pr�dio que se achava ausente,
quando este regressasse j� nada mais teria a fazer.26
A insatisfa��o dos usu�rios em rela��o ao mau desempenho da empresa belga vinha de
longe. O governo dos castilhistas ensaiara submeter � Assembl�ia um projeto de
encampa��o de v�rios servi�os b�


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sicos desde o in�cio da d�cada de 10. O arrazoado inicial de Borges, exposto em sua
Mensagem de 1913, tem um inequ�voco teor sociali-zante. Tr�s passagens me parecem
aqui de cita��o obrigat�ria:
1) "A municipaliza��o � a morte do monop�lio, e portanto � necess�rio municipalizar
todos os servi�os que a iniciativa particular n�o possa explorar se n�o mediante
monop�lios.
Est�o nesse caso os relativos ao suprimento d'�gua, aos esgotos, � ilumina��o, � energia
el�trica, aos tramtvays, etc. Os mesmos princ�pios h�o de regular a organiza��o dos
servi�os p�blicos, nacionais e estaduais" (sess�o de 26 de setembro).
Borges toma como bom exemplo o municipalismo ingl�s, que resiste "apesar da famosa
escola de Manchester, a cidade-m�e do laissez-faire e da iniciativa individual".
Mais adiante:
2) "Presidindo ao livre jogo das for�as econ�micas, compete ao Estado exercer uma
a��o reguladora na medida das necessidades indicadas pelo bem p�blico.
Deriva-se dessa concep��o o princ�pio que aconselha a subtrair da explora��o particular,
privilegiada, tudo quanto se relaciona com o interesse da coletividade: � a socializa��o
dos servi�os p�blicos [grifo de B. de M.], servindo essa designa��o gen�rica para
exprimir que a administra��o de tais servi�os deve estar a cargo exclusivamente do
poder p�blico, em que pese aos preconceitos econ�micos dominantes ainda em certas
classes sociais".
Enfim, esta asser��o que n�o poderia ser mais incisiva:
3) "Pelos caminhos de ferro o Estado, se n�o � senhor absoluto do mercado, ao menos
n�o � escravo dele".27
A uma certa altura da pol�mica sobre a estatiza��o do porto de Rio Grande, a oposi��o
liberal invocou a autoridade de Spencer para condenar a inger�ncia do Estado na vida
econ�mica. Get�lio n�o hesitou em responder que, ao compor um de seus derradeiros
livros, The man versus the State (que � de 1884), Spencer "j� descambava para o
decl�nio mental colocando o indiv�duo numa posi��o de eterna luta contra o Estado''. Na
mesma ocasi�o Get�lio procura convencer o seu advers�rio de que "nos pa�ses novos
como o nosso, onde a iniciativa � escassa e os capitais ainda n�o tomaram o incremento
preciso, a interven��o do governo em tais servi�os � uma necessidade real" (sess�o de
20 de novembro de 1919);

Revendo os textos militantes do Apostolado Positivista, Tocary Assis Bastos destacou
dois princ�pios que j� contemplavam diretamente a a��o antimonopolista do Estado:

� Que toda opera��o industrial que n�o puder ser executada pela iniciativa individual,
completamente livre, sem monop�lios nem privil�gios, e cuja utilidade social estiver
provada, deve ser realizada pela Uni�o ou pelos Estados, conforme os casos, porque
tanto aquela, como estes, abrir�o m�o oportunamente de seus privil�gios, o que n�o
acontece com,as empresas particulares.

� Que o regime das companhias, sendo oneroso pelos altos dividendos que os
acionistas visam e pela agiotagem a que os diretores ficam propensos, a fim de
aparentar esses lucros fabulosos n�o deve merecer encorajamento do governo e,
portanto, a concess�o de privil�gios e monop�lios �s sociedades an�nimas � uma
circunst�ncia agravante na infra��o da pol�tica financeira republicana.28
As estatiza��es levadas a termo por Borges de Medeiros achavam-se no p�lo oposto �
rotina privatizante da pol�tica federal. � o que p�e em relevo o mesmo historiador
lembrando esta aberta condena��o de Campos Salles � tentativa do governo baiano de
gerir a Estrada de Eerro de S�o Francisco. O presidente manifestava a sua avers�o �
proposta em termos que os neoliberais extremados de nossos dias assinariam com
entusiasmo:
Na minha mensagem ao Congresso solidamente baseado em dados fornecidos pelo
minist�rio [de Joaquim Murtinho, liberal convicto], condenei formalmente o regime da
administra��o do Estado nas empresas de estradas de ferro, fazendo ao mesmo tempo a
franca apologia da administra��o particular fecundada pelo est�mulo do pr�prio
interesse. N�o h� distin��o entre a administra��o da Uni�o e a dos Estados quanto � sua
natureza. Ambas s�o a nega��o da gest�o particular. O ato de arrendamento da estrada a
um Estado seria portanto o rep�dio de id�ias t�o recentemente emitidas. Creio que isso
desabonaria a orienta��o de meu governo.29
A concess�o do servi�o de vias f�rreas a companhias inglesas foi a pr�tica comum em
toda a Rep�blica Velha que, neste particular, n�o alterou um quadro de intera��es com o
imperialismo herdado do Segundo Imp�rio: exemplos not�rios s�o a Pernambuco
Tramway e Western do Nordeste, a S�o Paulo Railway e a Rio Claro Railway
291


em S�o Paulo e a The Rio de Janeiro Tramway e a Leopoldina Railway na capital.
A polaridade de comtismo ga�cho e liberalismo paulista/federal ganha aqui uma
consist�ncia palp�vel, que lhe vem de uma recorrente adequa��o dos princ�pios gerais
�s medidas t�picas que as conjunturas iam propondo aos diferentes atores pol�ticos. Um
testemunho da consci�ncia que esses agentes tinham da sua identidade � e da oposi��o
que a refor�ava � l�-se nas palavras com que Jo�o Neves da Fontoura acompanhou o
seu voto de pesar pela morte de Rui Barbosa: "Pertencemos, os republicanos riograndenses,
a uma corrente de id�ias estruturalmente diversa daquela por que se
norteou na vida p�blica o insigne brasileiro".30
Quando teria irrompido ou quando se teria expresso formalmente pela primeira vez o
diss�dio entre as duas perspectivas, protecionismo versus livre-cambismo, em uma clave
antiimperialista?
S�rgio da Costa Franco nos remete �s sess�es finais do Congresso Nacional
Constituinte, em 1891, fazendo-nos ouvir as vozes n�tidas da diverg�ncia. J�lio de
Castilhos e o seu grupo comtiano opuseram-se ent�o a um conv�nio bilateral que
isentava de tarifas "uma vasta pauta de artigos industriais e agr�colas dos Estados
Unidos, muitos dos quais em concorr�ncia com o produto nacional equivalente''. A
bancada positivista, mesmo somada com alguns simpatizantes, era minorit�ria: e nesta,
como em outras faixas de atrito com os liberais, foi vencida.31
O sentimento de que as ind�strias locais e o mercado interno mereciam prioridade e
prote��o se reavivaria toda vez que os positivistas se defrontassem com a quest�o
abrangente do desenvolvimento nacional. Uma pesquisa necess�ria, que a bela Hist�ria
de Ivan Lins j� encetou, seria acompanhar a biografia p�blica e os ideais econ�micos de
l�deres progressistas como Jo�o Pinheiro, Aar�o Reis e Saturnino de Brito em Minas
Gerais; Serzedelo Correia e Amaro Cavalcanti, ambos disc�pulos de Benjamin Constant,
no Rio de Janeiro; Moniz Freire, no Esp�rito Santo; Barbosa Lima em Pernambuco. Ivan
Lins examina o papel que numerosos engenheiros, urbanistas e militares de forma��o
positivista desempenharam nos principais estados do pa�s. O que marcou as carreiras de
todos foi a conjuga��o de saber e interven��o nas pol�ticas p�blicas. A constru��o de
Belo Horizonte, cidade planejada pelos comtianos Aar�o Reis e Saturnino de Brito, �
um

292

paradigma dessa cultura tecnopol�tica. De Aar�o Reis, professor na Escola Polit�cnica
do Rio, � o Tratado de economia pol�tica, finan�as e contabilidade,i2 em que o
"verdadeiro socialismo" � descrito e professado em termos positivistas.
N�o por acaso, os argumentos protecionistas derrotados no Congresso seriam
pontualizados, anos depois e em outro contexto, por Jorge Street e Roberto Simonsen,
mentores das associa��es industriais na sua luta pelos interesses da produ��o nacional.
De qualquer modo, o discurso industrialista, com maior ou menor �nfase
antiimperialista, s� receberia acolhimento oficial ao longo do consulado getu�ano que


foi incorporando, lenta e pragmaticamente, as sugest�es aventadas pela ala marchante
dos nossos empres�rios. O dirigismo estatal e o progressismo burgu�s encontrariam, a
partir dos meados da d�cada de 30, uma zona de intersec��o de que ambos se
beneficiaram.33
Conv�m lembrar que o pendor industrializante dos homens de 30 era temperado por um
respeito, igualmente comtiano, pelo ideal do equil�brio or�ament�rio. De Castilhos a
Borges de Medeiros e deste ao primeiro Vargas, a austeridade no trato das finan�as
p�blicas e o lema "Nenhuma despesa sem receita" eram tomados como "t�tulo de honra"
das administra��es republicanas. Essa atitude, que neles se devia a um imperativo
doutrin�rio, explica as suas medidas econ�micas sempre cautelosas que podem ser
interpretadas, fora desse contexto, como simplesmente cl�ssico-liberais: o que seria um
erro de perspectiva. Escrevia Osvaldo Aranha, quando ministro da Fazenda no Governo
Provis�rio, dirigindo-se ao seu velho mestre Borges de Medeiros: ' 'As revolu��es s�o,
em geral, e t�m sido, em todo o mundo, esbanja-doras, mas a nossa foi a primeira que
fez economia".34
S� a modelagem positivista-castilhista da Gera��o de 1907 d� conta do aparente
paradoxo da economia brasileira dos anos 30 que foi, ao mesmo tempo, saneadora
ortodoxa das finan�as, industrialista e centralizadora.
Os industriais avan�ados n�o se congregavam em um partido e s� se manifestavam
episodicamente pelos seus �rg�os de classe, situa��o que permitiu ao Executivo chamar
os empres�rios a exercer a fun��o de consultores da pol�tica econ�mica oficial. Esse
esquema pr�-tecnocr�tico funcionou regularmente a partir de 1931 com a cria��o do
Minist�rio do Trabalho, Ind�stria e Com�rcio confiado a um casti


293


lhista convicto e met�dico, Lindolfo Collor. As delibera��es do governo eram, em
geral, precedidas de encontros de comiss�es mistas de industriais e altos funcion�rios.
Get�lio defendia essas pr�ticas da sua gest�o concebendo-as em um quadro moderno e
internacional em que a tomada de decis�es pelo Executivo se estava fazendo no �mbito
de comit�s de peritos: ' 'A �poca � das assembl�ias especializadas, dos conselhos
t�cnicos integrados � administra��o".35
Recapitulando: a pr�xis republicana no Rio Grande, ampliada pelo grupo que subiu ao
poder com a Revolu��o de Outubro, interferia no processo de acumula��o da burguesia
ora mediante instrumentos fiscais, tributando ou isentando, ora mais diretamente, pela
encampa��o de redes de transportes segundo o lema da socializa��o dos servi�os
p�blicos. Que essa pol�tica n�o era contingente, mas animada de esprit g�om�trique,
prova-o o tratamento que deu, antes e depois de 1930, � ent�o chamada quest�o social,
isto �, � classe oper�ria.

* * *

A f�rmula de Comte que presidia �s rela��es do capital com o trabalho virou clich�: a
incorpora��o do proletariado � sociedade moderna. E aqui chegamos � quarta
adapta��o fundamental do positivismo pelo PRR.
Muito do que se afirma sobre a influ�ncia dos modelos corporativos na legisla��o
trabalhista do Estado Novo se esclarece melhor pelo estudo das medidas tuteladoras que
j� figuravam no ide�rio do Apos-tolado Positivista, na vers�o que lhes deu J�lio de
Castilhos e nas interven��es pontuais de Borges de Medeiros.
Castilhos, quando redator da Constitui��o de 91, dera o primeiro passo para formalizar a
incorpora��o auspiciada pelo mestre: "Ficam suprimidas quaisquer distin��es entre os
funcion�rios p�blicos de quadros e os simples jornaleiros, estendendo-se a estes as
vantagens de que gozarem aqueles", � o artigo 74 daquele diploma legal.
Enquanto deputado � Constituinte Nacional, Castilhos n�o conseguira fazer aprovar a
tese da equipara��o salarial que chocava os liberais. Mas, como chefe inconteste dos
rep�blicos ga�chos, bastou a sua palavra para que o artigo passasse a constar da lei
maior do estado.
Morto Castilhos, a pol�tica social seguida por Borges de Medeiros como presidente
cinco vezes reeleito do Rio Grande se pautaria por dois princ�pios complementares:

294

� o primeiro, que, no contexto do Brasil olig�rquico, se poderia chamar progressista,
consistia em acolher e sancionar com a autoridade do Executivo certas reivindica��es
t�picas dos trabalhadores urbanos que j� demandavam redu��o da jornada, melhores
condi��es de vida na f�brica e sal�rios menos vis;
� o segundo, que certamente se pode chamar de centralizador, e que atribu�a ao Estado
a fun��o de mediar e, nos casos extremos, arbitrar os conflitos entre oper�rios e patr�es.
A hist�ria das greves no Rio Grande j� est� em boa parte contada, sabendo-se que
Borges procurou, mais de uma vez, atender aos reclamos dos oper�rios ao mesmo


tempo que mandava coibir as manifesta��es tidas por violentas. Cumpria assim o papel
de tribunal privilegiado da quest�o trabalhista, o que se converteria em institui��o
quando Vargas e Lindolfo Collor criaram o Minist�rio do Trabalho.36
O papel do governo estadual na greve de 1917, por exemplo, ilustra a tend�ncia que
seria, mais tarde, qualificada de paternalista. Borges ent�o aparece, aos olhos dos
sindicatos da capital ga�cha, como seu protetor, n�o s� por ter apoiado eficazmente as
suas demandas como tamb�m por haver tabelado os pre�os dos g�neros de primeira
necessidade. A atitude do governo do PRR afastava-se, nesse ponto, do tratamento
sistematicamente feroz que as oligarquias de outros estados davam ent�o �s greves
oper�rias.
Se analisarmos a estrutura da Consolida��o das Leis do Trabalho, a nossa familiar CIT,
promulgada em 1943, e que com poucas mudan�as ainda rege as rela��es legais entre o
capital e o trabalho, constatamos a vig�ncia desse duplo registro, progressista e
autorit�rio, que punge como uma contradi��o mal resolvida.
Os t�tulos da lei que contemplam os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, ajustam-
se � linha reformista e humanit�ria que veio de Saint-Simon e integrou-se na moral
social positivista. Pressup�em que se deva reconhecer o trabalho, dignificar a pobreza,
proteg�-la dos interesses ego�stas de que � useiro o empirismo industrialista:
express�es todas forjadas por Augusto Comte.
Os dispositivos trabalhistas que aquele c�digo acolheu se vieram afinando, ao longo do
s�culo xrx, pela pauta das trade unions e dos sindicatos europeus. Coincidem, �s vezes
literalmente, com os programas m�nimos dos partidos socialistas que se organizaram
pouco a pouco na Argentina e no Uruguai, onde as leis sociais foram preco


295


ces, e mais episodicamente entre n�s, gra�as � lideran�a de oper�rios chegados com as
grandes migra��es dos anos 90.
Fazem parte dessa pauta: a redu��o da jornada, as t�o ansiadas oito horas, que s� se
alcan�aram no s�culo XX; a regulamenta��o do trabalho noturno, incluindo a sua
proibi��o �s mulheres e aos menores; o repouso semanal; as f�rias; o sal�rio-
maternidade, as medidas de seguran�a e higiene na f�brica e, tardiamente, o sal�rio
m�nimo.
Em rela��o ao sal�rio m�nimo, cuja proposta j� se fazia nas circu-lares do Apostolado,
incorrem em equ�voco os historiadores que o taxam de institui��o copiada do fascismo
italiano. Ao contr�rio: nos termos da Carta dei Lavoro, ' 'La determinazione dei sal�rio
� sotratta a qualsiasi norma generale e affidata all'accordo delle parti nei con-tratti
colettivi" (Declara��o XII).37
O direito de greve, desde que exercido sem viol�ncia, � uma reivindica��o comum �s
doutrinas socialistas moderadas e ao ide�rio dos positivistas religiosos. Vem ao caso
mencionar os artigos de Teixeira Mendes solid�rios com os grevistas da Companhia
Paulista de Estradas de Ferro em 1906.38
A conquista de uma legisla��o social coesa tem a ver com os estilos locais e nacionais
de moderniza��o a que se refere Gerschenkron para encarecer a pertin�ncia dos fatores
culturais e ideol�gicos no desenvolvimento de cada forma��o capitalista. Na Inglaterra,
oprimum mobile foi a organiza��o sindical e a sua press�o junto � C�mara dos Comuns;
na Fran�a, o sansimonismo filtrado pelos industriais cauda-t�rios da pol�tica tuteladora
de Napole�o ni; na Alemanha, a via prussiana de Bismarck nos anos 80.
Entre n�s, quase tudo o que houve de sistem�tico em termos de Direito do Trabalho,
portanto no plano do Estado, ou visando � sua interven��o, recebeu o selo positivista.
S�o as famosas circulares enviadas a d. Pedro II e aos presidentes republicanos pelo
Apostolado; � a inclus�o de um inciso trabalhista na Constitui��o ga�cha por obra de
Castilhos; � a gest�o eficaz de Borges de Medeiros induzindo os patr�es a aceitarem as
exig�ncias dos grevistas em 1917; e �, sobretudo, a codifica��o operada por Lindolfo
Collor, a pedido de Vargas, e que endossou sugest�es de velhos militantes socialistas
como Evaris-to de Morais, Joaquim Pimenta e Agripino Nazareth, primeiros con^
sultores "de esquerda" do Minist�rio do Trabalho.39

296

\

A transi��o do regime escravo para o assalariado foi o catalisador inicial das id�ias pr�trabalhistas
dos nossos comtianos. No programa do Partido Republicano Hist�rico
redigido por J�lio de Castilhos constam os seguintes itens: regime de oito horas de
trabalho nas oficinas do Estado e nas ind�strias; regime de f�rias aos trabalhadores;
prote��o aos menores, mulheres e velhos; direito de greve; "tribunal de arbitragem para
resolver os conflitos entre patr�es e empregados"; aposentadoria.40 Em s�ntese, � uma
agenda, de leis sociais a cargo de um Estado previsor que n�o quer deixar ao arb�trio do


capital decidir sobre as condi��es dos novos assalariados egressos do cativeiro.
No artigo abolicionista ' 'Organizemos a vit�ria", dizia Castilhos:
Libertar os escravos � � arranc�-los � explora��o secular de que tem sido v�tima a ra�a
oprimida, que lan�ou, com o seu suor e seu sangue, os primeiros fundamentos da
nacionalidade brasileira. O problema � complexo, dissemo-lo; e, ao vir tomar parte na
comunh�o brasileira a grande massa de libertos, faz-se mister cerc�-los de cuidadas
garantias, a fim de que a liberdade consagrada na lei n�o continue a ser iludida pela
opress�o sistematizada dos chefes pr�ticos da ind�stria [...] Ao legislador cumpre, pois,
regular por tal forma a nova situa��o dos libertos em face dos chefes agr�colas, que, sem
preju�zo destes, n�o possa perigar a liberdade dos primeiros.41
Ressalta, no texto, um reconhecimento l�cido de que, abandonadas ao jogo do mercado,
as rela��es entre assalariados {o proletariado liberto) e os empres�rios e dirigentes (os
chefes pr�ticos da ind�stria; os chefes agr�colas) correriam o risco de uma opress�o
sistematizada. E h�, tamb�m, a atribui��o ao legislador de pr�-formar as condi��es em
que se vai dar o trabalho livre, a nova situa��o dos libertos; o que constitui um modelo
m�nimo de Estado-Provid�ncia.
Castilhos escrevia em 1887 sob o influxo direto de Comte e dos ortodoxos do
Apostolado.42 Os seus disc�pulos reunidos no Bloco Acad�mico Castilhista seriam os
futuros idealizadores do Estado dirigista de 30.
Progressismo e autoritarismo. Este �ltimo registro, que vem da alta centraliza��o do
Partido Republicano Rio-Grandense, enfermar� a CIT sancionada em pleno Estado
Novo.
A lei, aberta aos direitos do oper�rio, enquanto trabalhador, fechou-se aos seus direitos,
enquanto cidad�o.
297


Augusto Com te.
' Em todo estado normal da humanidade. cada cidad�o constitui realmente um funcion�rio p�blico.
Discours surTensemble du positivisme


'




J�lio de Castilhos.
' 'Ficam suprimidas quaisquer
distin��es entre os funcion�rios
p�blicos de quadros e os simples
jornaleiros. estendendo-se a estes as
vantagens de que gozarem
aqueles.

Constitui��o do Estado do Rio
Grande do Sul. art. 74: 14 de julho
de 1891

CENTRO P0ZIT1VISTA BRAZILE1S0

IvF.PCUUCA OC.UKNT.M. �rokM E PBOGtj-.io Vi.- pui fiWWJM

o pozrnvfsiio
A ESCRAVID�O MODERNA

Trt�:ho< �-�tra�do� *� rVnr.i* .Io
AU�U.lu CM.IU-. *�--�;.lv-dv ,*>.UUf.:!.i. �,V.tUV.JJ.
rw!i.iiV(u fi -tu- -i~> 'U �WfBvatuuj DO Iiraxl � nt..-�I.aoi de u:na :t..n'Ji �?��<(


MIGUEL LEMOS

I*ratl4enw PafPJbM ><�� >.�<�� J.i.k- Pbiarruta �J r.:o Jf Jant-Irtr

99*

IUQ Mi j.\.\".::r:o
%�ISS4

.

|
A' SANTA MEM�RIA

DO

PRIMEIRO DOS PRETOS
TOUSSAINT-LOUVERT�RE

(1746� 1803)

' Ditador do H�l�. rroniotor � Mai-Ur �Ia lilK-.-Ja�o do tua. ra�a

� PROV�NCIA DO CEAR�
\u Iwr�u braiilctro AO* i�rlni*inj imvl�lcju-�e �lu ifline udikuul


(25 DE MAR�O DE ISSt)

O. D. C. O Cciura Poiitiviso Eruiilciro.

O T�tulo v da Consolida��o das Leis do Trabalho absorve (a met�fora org�nica n�o �
casual) os sindicatos oper�rios e patronais na �rbita do minist�rio. Nos anos 30 as
associa��es s�o estimuladas a crescer, o que era esper�vel da pr�tica de apoio ao
cooperativismo seguida por Borges e Vargas quando presidentes do Rio Grande; mas,
ao mesmo tempo, s�o firmemente cooptadas pelo aparelho estatal. Ao poder p�blico
competir� reconhecer os sindicatos, legaliz�-los e prov�-los de fundos mediante a
aplica��o do imposto sindical obrigat�rio. O governo, por meio de seus �rg�os t�cnicos,
iria negociar com as entidades de classe nos momentos de crise, o que daria a t�nica do
tra-balhismo brasileiro at�, pelo menos, 1964. A CET construiu uma ponte de dupla
m�o entre a burocracia ministerial e o sindicato. Para Com-te, ' 'em todo estado normal
da humanidade, cada cidad�o constitui realmente um funcion�rio p�blico' \43
Uma quest�o paralela, ainda mal esclarecida pelos int�rpretes da nossa hist�ria social,
diz respeito � sobreviv�ncia tenaz do modelo centralizador ap�s a queda do Estado
Novo. Nem a Constituinte de 1946, cujo fito ostensivo era "redemocratizar o pa�s",
alterou a estrutura sindical herdada, nem as organiza��es oper�rias, ent�o dirigidas pela
esquerda ortodoxa, se empenharam em cancelar os aspectos corporativos da legisla��o
trabalhista. Mais um caso de enxertia institucional de longa dura��o?

* * *

Enfim, nenhum estudo sobre o papel do positivismo social na Am�rica Latina poder�
deixar na sombra a extrema valoriza��o que no seu discurso recebeu o projeto de um
ensino fundamental gratuito e leigo. Aqui, for�a � convir, comtianos e spencerianos
davam-se fraternalmente as m�os, pois os aproximava a f� inabal�vel na ci�ncia como
fautora do progresso e na educa��o como a sua via real.
No entanto, mesmo considerada a vig�ncia de valores comuns, ressalte-se que os
ortodoxos timbravam em defender algumas id�ias pr�prias hauridas diretamente dos
escritos can�nicos.
N�o cabe reconstituir neste ensaio o pensamento educacional de Comte; j� o fez de
modo exemplar um seu int�rprete franc�s, Paul Arbousse-Bastide, a quem devemos uma
an�lise detida do Discours sur l'ensemble du positivisme.44 Nesta obra Comte
estabelecia os

300
liames entre o ensino b�sico universalizado e a forma��o do bonpro-l�taire, express�o
que Arbousse-Bastide inventou por analogia ao bon sauvage. A certa altura do
Discours, est� dito:
Cada prolet�rio constitui, de mais de um ponto de vista, um fil�sofo espont�neo, assim
como todo fil�sofo representa, sob diversos aspectos, um prolet�rio sistem�tico.
A escola prim�ria gratuita � assim projetada no quadro mais amplo da educa��o
popular, que Comte prefere chamar ' 'prolet�ria'', na verdade a �nica de que os
governantes se deveriam encarregar, delegando aos diferentes grupos sociais quaisquer
projetos de ensino universit�rio. Que o Estado cuide da educa��o fundamental do povo


e se abstenha de concorrer para a prolifera��o de falsos doutores, esses portadores de
diplomas que engrossam as fileiras da pedantocracia.
Sabe-se que sa�ram de cabe�as positivistas as reformas educacionais do M�xico e do
Uruguai nos fins do s�culo xrx. Pela documenta��o que testemunha essa presen�a,
acess�vel hoje gra�as � obra panor�mica de Leopoldo Zea, Pensamiento positivista
latinoamericano, pode-se medir a intensidade com que id�ias de Comte, Littr� e Laffitte
moldaram n�o s� as pol�ticas p�blicas quanto as doutrinas pedag�gicas daqueles
projetos nacionais.45
Entre n�s, as estat�sticas comparadas mostram que nenhuma administra��o estadual
dedicou maior aten��o � escola prim�ria e ao ensino t�cnico-profissional do que o Rio
Grande castilhista e borgista. Por outro lado, a mesma pol�tica republicana, fiel �
doutrina, dispensava a exig�ncia de t�tulos aos cidad�os que pleiteassem o exerc�cio de
qualquer profiss�o liberal, o que retardou a cria��o de institui��es estatais de ensino
superior.
Analisando as mensagens do Executivo � Assembl�ia dos Representantes e os pareceres
desta, encontramos provas do interesse com que foi tratada a quest�o da escola
fundamental leiga e gratuita. Nos or�amentos propostos e religiosamente aprovados,
vinham as despesas com a educa��o, juntamente com as destinadas � rede vi�ria,
geralmente em primeiro lugar, consignando dota��es muito superiores �s dos outros
t�picos. E, para justificar essa primazia, alinhavam-se, indefect�veis, senten�as do
mestre de Montpellier.
O que dizer da qualidade dessa escola? Qualquer ju�zo id�neo a respeito penderia de
avalia��es comparativas dif�ceis hoje de tra�ar.

301


Valer� talvez como sinal do zelo do governo por uma boa forma��o docente o fato de
Borges de Medeiros ter enviado, em 1913, uma comiss�o de professores prim�rios a
Montevid�u, ' 'em miss�o de estudos", para conhecer de perto "os m�todos e trabalhos"
de instru��o uruguaia, estimada ent�o como a mais eficiente da Am�rica Latina: "Ir�
estudar tamb�m na Escola Normal de Montevid�u uma turma de alunos escolhidos entre
os melhores de nossa escola complementar".46
A tese constante nas falas de Borges e adotada para encarecer a necessidade de alocar
recursos crescentes para o ensino elementar era a de que o governo, assim agindo,
obedecia a "um postulado convertido em dispositivo constitucional". A rigor, a
vincula��o dos gastos reservados � instru��o com o or�amento p�blico ainda n�o era
artigo de lei na Rep�blica Velha, significando, pois, um avan�o regional da pol�tica
castilhista do Sul. S� com a Constitui��o de 1934 seria destinada uma verba percentual
espec�fica para o ensino prim�rio.
Quanto ao nexo de ensino e produtividade, � mat�ria obrigat�ria em todas as propostas
de funda��o de escolas t�cnicas. Repare-se que os seus argumentos de base pouco se
alteraram ao longo do s�culo xx. Mudem-se alguns voc�bulos e torneios antiquados de
estilo e leremos no texto abaixo um exemplo cabal do discurso desenvolvi-mentista de
nossos dias:
Atravessamos uma fase de franco evolvimento econ�mico, as ind�strias necessitam
abandonar os m�todos arcaicos, adotando os que a ci�ncia consagra como mais eficazes,
substituir os velhos instrumentos deficientes e quase imprest�veis pelas m�quinas que
multiplicam a a��o criadora, produzir muito e produzir melhor para, pela qualidade e
ba-rateza, conquistar os mercados consumidores e, para colimar este objetivo, carece
que o capital j� acumulado venha em seu aux�lio para, pelo trabalho, gerar novos
capitais, mas com taxas m�dicas, n�o absorventes dos lucros l�quidos que a terra lhes
concede.47
A sintaxe pesada do per�odo nos remete menos � canhestrice da reda��o burocr�tica do
que a uma cadeia de elos apertados entre causas e efeitos, meios e fins.
Desenvolvimento da ind�stria mais ensino t�cnico mais cr�ditos p�blicos = conquista
dos mercados consumidores. Esse programa de governo, que atava firmemente
instru��o e economia, dava o tim�o da nave republicana ao concurso de empre


302

s�rios modernos e s�bios planejadores. Sintomaticamente, coincidia com a pr�tica
administrativa de Jo�o Pinheiro, o presidente de Minas Gerais simp�tico ao Apostolado
Positivista, a quem os deputados ga�chos citavam como incentivador do ensino
profissional para as classes pobres.
Jo�o Pinheiro, filho de um caldeireiro italiano, Giuseppe Pigna-taro (de onde o seu
nome, � brasileira), realizou em Minas uma pol�tica de alternativa ao latif�ndio
agroexportador, promovendo a poli-cultura, a divis�o de terras para colonos e a
ind�stria. Foi adepto do Protecionismo, termo que grafava sempre com P mai�sculo. A


sua mensagem ao Congresso Mineiro de 1907 serviu como texto de autoridade �
Assembl�ia do Rio Grande para avalizar as propostas educacionais de Borges de
Medeiros. Jo�o Pinheiro dava ao seu ide�rio reformista e modernizante o nome de

economismo.48

De qualquer modo, o interesse pelo ensino t�cnico profissional esteve, desde o come�o,
no cerne dos projetos castilhistas e borgistas. Em 1913 foi criada uma "taxa
profissional" para assegurar recursos financeiros � execu��o de um programa de ensino
voltado para a forma��o de oper�rios especializados. Em 1896 alguns disc�pulos de
Ben-jamin Constant e ex-professores da Escola Militar de Porto Alegre fundaram nesta
cidade uma Escola de Engenharia. Institui��o aut�noma, embora amparada pelos
poderes p�blicos, a escola foi respons�vel pelo treinamento dos quadros t�cnicos do
estado nas �reas de engenharia, agronomia, zootecnia, veterin�ria, meteorologia,
qu�mica industrial, artes e of�cios e educa��o dom�stica e rural, ministrando cursos de
n�vel superior, m�dio e, com o tempo, prim�rio. Dentre os seus objetivos estava o de
formar oper�rios rurais, al�m de mestres e con-tramestres aos quais se garantiam
empregos nas empresas locais. Em 1934, com a cria��o da Universidade de Porto
Alegre (mais tarde, Universidade Federal do Rio Grande do Sul), a Escola de
Engenharia foi integrada no sistema de ensino oficial apesar do voto contr�rio do seu
principal fundador, Jo�o Simpl�cio Alves de Carvalho, comtiano ortodoxo. De 1914 a
1934 a escola publicou uma revista bimestral, Ega-tea, certamente o mais importante
�rg�o de divulga��o cient�fica da Rep�blica Velha. A revista espelhou os avan�os da
nossa moderniza��o cient�fica, agr�cola e industrial: o seu tem�rio ia do M�todo Montessori,
rec�m-formulado, � propaganda de novas m�quinas frigor�ficas, e da exposi��o
da f�sica ondulat�r�a de Hertz a conselhos �teis sobre a cultura de vinhedos e a ferragem
de cavalos.

303


Os intelectuais e pol�ticos fi�is ao positivismo no Rio Grande republicano souberam
abrir, nos seus melhores momentos, as trilhas que sulcam o processo civilizat�rio.

UM ENXERTO IDEOL�GICO DE LONGA DURA��O

O s�culo xix brasileiro nos legou tr�s ideologias de razo�vel consist�ncia: as tr�s
importadas, como era de esperar em na��es perif�ricas; mas as tr�s enraizadas no
cotidiano mental das nossas classes pol�ticas, como a sua longa dura��o faz supor.
A primeira enformou o conservadorismo das oligarquias do Segundo Imp�rio
assentadas nos engenhos nordestinos e fluminenses e, a partir dos anos de 1840, no caf�
valparaibano.
A segunda chamou-se novo liberalismo (em oposi��o � anterior que tamb�m se dizia
liberal) e lutou, dos anos 60 aos 80, pela aboli��o e pela reforma eleitoral. Nem sempre
fez a escolha republicana, defendendo, �s vezes, e pela voz dos seus melhores homens, a
monarquia parlamentar (Nabuco, Rebou�as, o primeiro Rui Barbosa). Proclamado o
novo regime, o liberalismo oficial patinou em solu��es puramente formais, sobretudo
porque a sua base era ainda a oligarquia rural: foi o caso da hegemonia paulista-mineira
entre 1892 e 1930. De qualquer maneira, cabe-lhe o m�rito de ter mantido o ideal (se
n�o a pr�tica) do sistema representativo.
Enfim, a terceira vertente, positivista, conheceu duas sa�das que afinal convergiram: o
radicalismo jacobino, que passou dos cadetes florianistas aos tenentes dos anos 20; e o
republicanismo ga�cho, o castilhismo-borgismo, de que trata este artigo.
O velho conservadorismo saquarema n�o morreu de todo: foi absorvido, como o a��car
no caf�, pela rotina dos partidos republicanos estaduais durante a Rep�blica Velha. Para
entend�-lo � preciso analisar o fen�meno do coronelismo em cada prov�ncia.
Quanto � terceira ideologia, s� veio a ocupar o poder nacional nos anos de 1930, quando
a coaliz�o t�tica de rep�blicos sulinos e tenentes arredou do centro das decis�es o
liberalismo olig�rquico j� declinante.
A firmeza com que o enxerto positivista vingou na mente dos nossos homens de Estado
provou-se pela sua capacidade de receber

304

e adaptar a si tend�ncias modernas poderosas como o reformismo social de esquerda e o
autoritarismo de direita. Quando Get�lio Vargas pediu a Lindolfo Collor que
constitu�sse uma comiss�o de consultores do novo Minist�rio do Trabalho, Ind�stria e
Com�rcio, o l�der cas-tilhista ga�cho n�o hesitou em convocar militantes socialistas,
industriais avan�ados e cultores do nacionalismo centralizador. Evaristo de Morais
sentou-se ent�o ao lado de Jorge Street e de Oliveira Viana, e todos, sob a batuta de uma
ideologia estatizante, que se dizia ' 'acima das classes", elaboraram o nosso Direito
Social, ao mesmo tempo progressista e autorit�rio, moderno e conservador; numa
palavra: positivista.
O molde comtiano, menos r�gido e dogm�tico do que � primeira vista parece ao leitor
do fil�sofo, revelou-se, em v�rias inst�ncias, flex�vel e pragm�tico s� endurecendo nas


horas de crise, isto �, quando grupos rebeldes da sociedade civil (comunistas e
integralistas, na d�cada de 30) tentaram abalar aquela ordem que o poder julgava
indispens�vel para consolidar o seu projeto modernizante. Mas, nas conjunturas de
folga, a coopta��o paternalista houve-se com efic�cia e estreitou as rela��es entre os
sindicatos e os aparelhos executivos e judici�rios do Estado que marcaram fundo o
nosso modelo trabalhista. Modelo que, no final das contas, acabou sendo o modo de ser
do nosso capitalismo sobretudo nos maiores centros urbanos.

AS PERPLEXIDADES DE ONTEM E DE HOJE

Tenho plena consci�ncia de escrever este fecho em um momento da hist�ria mundial,
logo tamb�m latino-americana e brasileira, que v� o ideal de um poder p�blico
reformista e planejador vulner�vel e vulnerado por todos os lados. As flechas da direita
e do centro n�o surpreendem naturalmente tanto quanto as lan�adas pelas esquerdas, ora
deprimidas com os sucessos do Leste Europeu.
As convic��es dirigistas dos republicanos que fizeram a Revolu��o de 30 talvez fossem
mais seguras que as dos social-democratas de hoje, mas tampouco eram absolutas: "N�o
sei, senhores deputados", dizia Osvaldo Aranha aos constituintes de 34, ' 'como a
ningu�m � dado saber, se a tend�ncia � a��o totalit�ria do Estado, que caracteriza a
nossa �poca, marca o fim de uma civiliza��o ou entreabre � m�


305


ser� conting�ncia dos povos contempor�neos, atormentados e empobrecidos, uma era de
repara��es e melhorias".
Adiante, por�m, reponta o aguilh�o das necessidades sociais para cuja satisfa��o o
Estado, e s� o Estado, deveria, segundo o lema de Comte, prever para prover.
Na rela��o �ntima das fun��es do Estado com as necessidades sociais e na sua
preemin�ncia sobre o conjunto da vida nacional assenta o Poder P�blico, hoje a sua
raz�o de ser. N�o � poss�vel o exerc�cio do Poder deixando � iniciativa privada a
solu��o dos problemas coletivos. Imp�e-se cada vez mais a participa��o, a coopera��o,
a interven��o do Estado nas atividades particulares, a fim de que delas frua � sociedade

o benef�cio material que a a��o humana pode criar [...] Essas atividades s�o dirigidas,
controladas, dominadas pelo arb�trio soberano, ego�s-tico e exclusivista, de firmas e
empresas que, sob as formas mais diversas, governam e monopolizam o mundo dos
neg�cios.49
No ato de instala��o da Assembl�ia, Get�lio Vargas traz ao primeiro plano os aspectos
institucionais da quest�o:
O Estado, qualquer que seja o seu conceito segundo as teorias, nada mais �, na
realidade, do que o coordenador e disciplinador dos interesses coletivos, a sociedade
organizada como poder, para dirigir e assegurar o seu progresso. Toda estrutura
constitucional implica, por isso, a estrutura das fun��es do Estado.
Uma pergunta s� aparentemente epis�dica: a quem iria essa mesma Assembl�ia
Nacional Constituinte delegar o poder presidencial? O escolhido foi Get�lio com 175
votos. Em segundo lugar, com 59 votos, os deputados e representantes de classe n�o
sufragaram um nome de oposi��o ao republicanismo ga�cho: votaram em ningu�m
menos do que Borges de Medeiros. O castilhismo, rejeitado em 91, era em 34 a pedra
angular do sistema pol�tico nacional.
* * #

Considerando que no Brasil a primeira experi�ncia de centraliza��o estatal foi augurada
e parcialmente cumprida a partir da Constitui��o rio-grandense de 1891, pode-se
afirmar que aquele modelo, vivo no Brasil de 1930 a 1964, e sobrevivente entre 64 e
nossos dias, j� � um ilustre centen�rio. Se dissermos ao fantasma de Augusto Comte

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que os mortos devem ser sepultados e esquecidos, ele provavelmente nos responder�
que, ao contr�rio, os fatos positivos ensinam que ' 'os mortos governam os vivos"; e nos
advertir� que, por medida pruden-cial, � de bom alvitre ainda "conservar melhorando"...
O conselho, vertido para "a m�sera conting�ncia dos povos contempor�neos" a que se
referia o solerte homem p�blico de 30, significa hoje: democratizar o Estado e elevar ao
mais alto grau poss�vel a consci�ncia da cidadania. Este � o ideal republicano. A
alternativa an�rquica certamente estaria fora das cogita��es do mestre.

307


10
CUITURA BRASILEIRA E CULTURAS BRASILEIRAS*
DO SINGULAR AO PLURAL
Estamos acostumados a falar em cultura brasileira, assim, no singular, como se
existisse uma unidade pr�via que aglutinasse todas as manifesta��es materiais e
espirituais do povo brasileiro. Mas � claro que uma tal unidade ou uniformidade parece
n�o existir em sociedade moderna alguma e, menos ainda, em uma sociedade de classes.
Talvez se possa falar em cultura boror� ou cultura nhambiquara tendo por referente a
vida material e simb�lica desses grupos antes de sofrerem a invas�o e acultura��o do
branco. Mas depois, e na medida em que h� fra��es do interior do grupo, a cultura tende
tamb�m a rachar-se, a criar tens�es, a perder a sua primitiva fisionomia'que, ao menos
para n�s, parecia homog�nea.
A tradi��o da nossa Antropologia Cultural j� fazia uma reparti��o do Brasil em culturas
aplicando-lhes um crit�rio racial: cultura ind�gena, cultura negra, cultura branca,
culturas mesti�as. Uma obra excelente, e ainda hoje �til como informa��o e m�todo, a
Introdu��o � antropologia brasileira, de Arthur Ramos, terminada em 1943, divide-se
em cap�tulos sistem�ticos sobre as culturas n�o europ�ias (culturas ind�genas, culturas
negras, tudo no plural) e culturas europ�ias (culturas portuguesa, italiana, alem�...),
fechando-se pelo exame dos contactos raciais e culturais.
(*) Texto redigido entre 1979 e 1980. Fiz alguns retoques de linguagem, mas conservei inalterados os dados de base.
A vers�o inicial do ensaio foi publicada em Filosofia da Educa��o Brasileira, obra coordenada pelo saudoso
educador Durmeval Trigueiro Mendes (Rio de Janeiro, Civiliza��o Brasileira, 1981).

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Os crit�rios podem e devem mudar. Pode-se passar da ra�a para a na��o, e da na��o
para a classe social (cultura do rico, cultura do pobre, cultura burguesa, cultura
oper�ria), mas, de qualquer modo, o reconhecimento do plural � essencial.
A proposta de compreens�o que se faz aqui tem um alcance anal�tico inicial; e poder�
ter (oxal� tenha) um horizonte dial�tico final.
Se pelo termo cultura entendemos uma heran�a de valores e objetos compartilhada por
um grupo humano relativamente coeso, poder�amos falar em uma cultura erudita
brasileira, centralizada no sistema educacional (e principalmente nas universidades), e
uma cultura popular, basicamente iletrada, que corresponde aos mores materiais e
simb�licos do homem r�stico, sertanejo ou interiorano, e do homem pobre suburbano
ainda n�o de todo assimilado pelas estruturas simb�licas da cidade moderna.
A essas duas faixas extremas bem marcadas (no limite: Academia e Folclore)
poder�amos acrescentar outras duas que o desenvolvimento da sociedade urbano-
capitalista foi alargando. A cultura criadora individualizada de escritores,
compositores, artistas pl�sticos, dramaturgos, cineastas, enfim, intelectuais que n�o
vivem dentro da Universidade, e que, agrupados ou n�o, formariam, para quem olha de
fora, um sistema cultural alto, independentemente dos motivos ideol�gicos particulares


que animam este ou aquele escritor, este ou aquele artista. Enfim, a cultura de massas,
que, pela sua �ntima im-brica��o com os sistemas de produ��o e mercado de bens de
consumo, acabou sendo chamada pelos int�rpretes da Escola de Frankfurt, ind�stria
cultural, cultura de consumo.

Ter�amos em registro anal�tico: cultura universit�ria, cultura criadora extra-
universit�ria, ind�stria cultural e cultura popular. Do ponto de vista do sistema
capitalista tecnoburocr�tico, um arranjo poss�vel � colocar do lado das institui��es a
Universidade e os meios de comunica��o de massa; e situar fora das institui��es a
cultura criadora e a cultura popular.
E claro que esse esquema espacial de fora e dentro deve ser rela-tivizado, pois enrijece o
termo institui��o, definindo-o sempre em termos de organiza��o pr�pria das classes
dominantes. Na verdade, matizando a quest�o: um fen�meno t�pico de cultura popular
como a prociss�o do Senhor Morto na Semana Santa � tamb�m uma institui��o, em
sentido paralelo ao da institui��o do candombl� ou de um rito ind�gena. Ou, falando da
cultura criadora personalizada, uma obra

309


teatral � um g�nero p�blico institu�do, queira ou n�o o seu autor. Mas, se us�ssemos
desse crit�rio sociol�gico, tudo viraria institui��o, tudo codifica��o social coercitiva e
borrar�amos anti-historicamente a nossa primeira distin��o: sistemas culturais
organizados para funcionar sempre como institui��es (a Escola, uma Empresa de
Televis�o, por exemplo) e manifesta��es mais rentes � vida subjetiva ou grupai: um
poema; uma roda de samba; um mutir�o...

SITUA��O DA CULTURA UNIVERSIT�RIA

No quadro acima delineado podemos reconhecer a cultura universit�ria como um setor
privilegiado, isto �, protegido e incrementado quer pelos grupos particulares, que dele
fazem um investimento, quer pelo Estado, que arca, no Brasil, com boa parte do �nus da
instru��o superior. A cultura universit�ria, meta priorit�ria dos jovens das classes alta e
m�dia, tem uma for�a de auto-reprodu��o s� compar�vel, hoje, � das grandes empresas
de comunica��o de massa. Para alguns, ela �, mesmo, um dos apoios fundamentais do
aparelho do Estado enquanto a Universidade n�o cessa de produzir pessoal habilitado
para as carreiras burocr�ticas ou burocratiz�veis do pa�s.
� importante, por isso, analis�-la mais de perto para verificar como nela operam certas
tend�ncias que se cristalizam como vis�es da realidade, e que cortariam toda a cultura
brasileira.
A primeira observa��o diz respeito ao decr�scimo r�pido e talvez irrevers�vel dos
estudos human�sticos tradicionais (Grego, Latim, Filologia, Franc�s), hoje acantonados
em um ou outro curr�culo de Letras. O resultado dessa restri��o � o desaparecimento de
um certo tipo de forma��o letrada cl�ssica, que tinha, uns quarenta anos atr�s,
prestigiosa presen�a no ensino m�dio al�m de constituir o fundo comum do clero e da
magistratura, dois estratos cuja posi��o na sociedade era preeminente. A rela��o �ntima
entre cultura cl�ssica e status social desapareceu na sociedade contempor�nea. E a
Universidade, coerentemente, foi abandonando o ensino daquelas disciplinas, seguida, a
curto prazo, pela Igreja.
O aprendizado de Grego, Latim, Filologia Cl�ssica e Vern�cula, Franc�s, Direito
Romano e mat�rias afins foi deslocado na sua posi��o-chave de formador dos mestres
secund�rios, dos sacerdotes e dos juristas. Essas disciplinas viraram especializa��es,
sendo ministradas sem

310

a aura que outrora as circundava, e despossu�das, portanto, do poder que ent�o as
investia.
Uma conseq��ncia not�vel desse esvaziamento foi, durante a d�cada de 60 sobretudo,
uma tend�ncia a considerar estrutural e acro-nicamente a cultura ling��stica, liter�ria,
jur�dica e, at� mesmo, religiosa. Quer dizer: o sentimento de que as Letras, as Leis e os
Ritos atravessaram fases e estilos diversos foi cedendo lugar a uma abordagem a-
hist�rica que se restringia � an�lise de textos a que se aplicavam categorias formais
supostamente universais. Perdendo-se a sensibilidade ao contexto preciso do texto,



perde-se a capacidade da interpreta��o hist�rica concreta. Os estudos liter�rios viram-se,
pelo menos no per�odo agudo dessa tend�ncia, � merc� de uma violenta sincroniza��o
das formas e dos significados que eram recortados como se fossem todos
contempor�neos da nossa consci�ncia est�tica ou das nossas pr�prias ideologias. Os
resultados s�o amb�guos. L�-se o que n�o poderia estar historicamente presente no
texto. N�o se l� o que estava concretamente nele. O que s�o desvantagens cient�ficas
graves. Em compensa��o: procura-se extrair do passado liter�rio um c�digo ou uma
mensagem intelig�vel para a nossa mentalidade, recuperando-se, de maneira
surpreendente, escritos h� muito sepultos sob o peso de uma erudi��o sem horizontes. A
cultura letrada tem vivido, nos �ltimos anos, de descobertas ou releituras dos cl�ssicos
nessa perspectiva estrutural-sincr�nica, baseada s� na an�lise imanente do texto.
Esse anti-histori�ismo teve um significado preciso: assinalou a se-nesc�ncia da primeira
vis�o do mundo apontada (o tradicionalismo humanista), embora guarde em comum
com a velha ret�rica um ponto que me parece nevr�lgico, e que n�o tem sido explorado:

o ato de subtrair o texto � conting�ncia dos tempos, sejam eles passados ou
contempor�neos. A velha ret�rica tamb�m absolutizava o texto, trazendo-o do passado
ao presente, imune e isento dos condicionamentos sociais; o mesmo, mutatis mutandis,
faz o estruturalismo acr�-nico: nega-se a estud�-lo como express�o de um dado
momento social e o insere, sem media��es, no sistema de id�ias e de valores
contempor�neo do analista. Os extremos se tocam: o esp�rito classificat�rio, aristot�lico,
da velha ret�rica tende a conciliar-se com o rigor das parti��es estruturais, assim como
j� se aliavam, no s�culo xix, filologia e positivismo.
311


Mas, ressalvadas as semelhan�as, volta a diferen�a. Os estudos cl�ssicos, vern�culos e
jur�dicos, encastelavam-se em uma posi��o que, al�m de formcdista, era normativa. O
mapeamento das formas liter�rias implicava o seu uso estrito como crit�rio moral e
est�tico de corre��o. O crit�rio normativo era t�o arraigado, ao menos dentro das
institui��es, que sobreviveu ao pr�prio Romantismo, movimento da sensibilidade
ocidental antiformalista por excel�ncia. Mas esse valor entrou em crise com a
configura��o da nova ret�rica, estruturalista, que j� n�o pode ser normativa, mas apenas
anal�tica ou descritiva.
A situa��o, a partir dos anos 60, no que respeita � cultura letrada e jur�dica, � esta:
adotam-se t�cnicas de an�lise formal ou imanen-te, mas abandona-se o pressuposto da
normatividade na medida em que n�o se concede mais foro especial a qualquer
forma��o hist�rica determinada. (E, se algum privil�gio se concede, ser� ao dos modos
absolutamente contempor�neos de express�o. A tend�ncia a sincronizar tudo des�gua
em tudo submeter ao foco subjetivo do int�rprete imerso na sua temporalidade.)
Na d�cada de 70 (muitos acentuam 68 como data da viragem), o mero invent�rio das
estruturas ling��sticas come�a a ser considerado insuficiente. O estruturalismo j� n�o
satisfaz � din�mica real que, em �ltima inst�ncia, tamb�m permeia os estudos
universit�rios. Toda cultura superior acaba procurando avidamente significados e
valores no seu trabalho, e � precisamente nessa busca que as tend�ncias formalistas
come�am a alterar-se, cindindo-se: em um movimento para dentro, de enrijecimento
extremo e epig�nico; e em uma supera��o que desemboca na nega��o da nega��o: a
an�lise formal � ent�o relacionada com o sentido da express�o e da comunica��o,
sentido inter-pret�vel ora em termos psicanal�ticos ora em termos hist�rico-sociais.
Nesse momento, os estudos liter�rios e ling��sticos, que, em 60, espelhavam a vis�o
tecnicista dominante, passaram a secundar uma cultura de resist�ncia, a qual coincide,
no Brasil, com os anos de abertura pol�tica nos meados dos anos 70.
Recapitulando o processo, em termos estritos de situa��o universit�ria brasileira. Os
velhos estudos cl�ssicos e filol�gicos foram substitu�dos por um formalismo em geral
n�o normativo, ou em pol�mica com o normativismo gramatical e l�xico. O
esvaziamento do prest�gio cl�ssico-vern�culo acompanhou-se de uma considera��o
positiva, se n�o apolog�tica, de todas as formas e gostos contempor�neos: hou


312

ve um momento em que os letrados prestavam seu culto a qualquer manifesta��o da
chamada cultura de massa, porque esta lhes era contempor�nea, tout court. Finalmente,
os aplicadores do m�todo saem � procura de valores: se alguns ainda se comprazem na
sua pr�pria atividade estruturante, cultuando o fetichismo da letra, a est�tica da
materialidade formal, o valor imanente do procedimento jur�dico, outros s� encontram
significado na rela��o do texto com a experi�ncia intersubjetiva que ele revela e produz.
Um reconhecimento do terreno encontra hoje precisamente a co-presen�a dos extremos
a que me referi no texto "Um testemunho do presente": "O paroxismo dos ataques


secunda o paroxismo das manifesta��es epig�nicas".*
De qualquer maneira: nas faculdades human�sticas e jur�dicas ainda convivem, lado a
lado, ou lado contra lado, as t�cnicas anal�ticas mais estreitas e a cr�tica ideol�gica mais
geral.
Na esfera mais ampla das Ci�ncias Sociais a consci�ncia dos riscos ideol�gicos deste ou
daquele m�todo � particularmente viva. O puro tecnicismo e o puro historicismo t�m
conseq��ncias especialmente graves no n�vel interpretativo. Na d�cada de 70, a
evid�ncia da alian�a entre t�cnica neutra e opress�o ideol�gica despertou nos
pesquisadores uma profunda desconfian�a em rela��o �s receitas positivistas e
funcionalistas que vinham sendo aplicadas metodicamente desde a funda��o dos cursos
de ci�ncias sociais em todo o Brasil, a partir de 30. A imbrica��o de sociologia e
pensamento dial�tico �, mais do que nunca, um problema de pol�tica cultural vivido por
toda a faixa dos cientistas sociais que pretendem fazer do seu conhecimento um
instrumento eficaz de transforma��o.
Mas a tecnoburocracia n�o seria o que � se n�o procurasse igualmente contra-atacar,
respondendo �s inquieta��es da cultura cr�tica de modo bastante preciso e conseq�ente.
Mencionemos cinco de suas medidas mais eficazes:

� Em primeiro lugar, implantou-se em todos os graus de ensino um corpo de doutrina
s�cio-pol�tica forrado de ideais neocapita-listas. As disciplinas intituladas Organiza��o
Social e Pol�tica do Brasil(primeiro e segundo graus) e Estudos de Problemas
Brasileiros (segundo, terceiro e quarto graus) convergem para a apresenta��o serena
(*) "Um testemunho do presente", pref�cio a Carlos Guilherme Mota, Ideologia da cultura brasileira, 2* ed., S�o
Paulo, �tica, 1977.

313


de uma Na��o-Estado em plena fase de melhoramento t�cnico e de progresso social,
onde h� lugar para todos, desde que trabalhem e cumpram assiduamente os seus deveres
na ocupa��o a que se destinam. A ideologia do Brasil Grande e do Milagre Brasileiro
permeava, at� pouco tempo (e na escola prim�ria tende a permear por muito tempo,
dada a in�rcia de sua estrutura), essa doutrina��o cuja dosagem assim t�o alta n�o se
administrava desde os tempos do Estado Novo.

� Em segundo lugar, e coincidindo com o esp�rito das provid�ncias acima referidas, os
�rg�os centrais da Administra��o Escolar substitu�ram o estudo de Hist�ria Geral, de
Geografia Geral, de Hist�ria do Brasil e de Geografia do Brasil, constantes dos
curr�culos tradicionais do ensino m�dio, por uma disciplina h�brida chamada Estudos
Sociais, que, al�m de sofrer dos inconvenientes metodol�gicos do seu teor vasto e
indiferenciado, acarretou uma competi��o no mercado de trabalho entre licenciados de
v�rias �reas, como Ci�ncias Sociais, Hist�ria, Geografia, Pedagogia, e ultimamente a
mesma Estudos Sociais em n�vel de bacharelado, com sens�vel preju�zo para cada uma
dessas �reas que, de per si, foram sendo apartadas de seu lugar espec�fico no curso
secund�rio.
� Em terceiro lugar, a disciplina Filosofia desapareceu abruptamente dos cursos
m�dios. A reflex�o te�rica e cr�tica por excel�ncia, capaz de perscrutar a significa��o
das ci�ncias da Natureza, das ci�ncias do Homem, o andamento da cultura e suas
implica��es ideol�gicas, � afinal alijada no per�odo crucial de forma��o do adolescente
e, por motivos an�logos, praticamente desaparece dos curr�culos superiores. N�o poucas
faculdades de Filosofia suprimiram de seu quadro de licenciatura, pura e simplesmente,
a disciplina de Filosofia. Aqui, o golpe do poder tecnoburocr�tico foi mais estrondoso e
ostensivo do que em qualquer outro setor da educa��o superior brasileira.
� Em quarto lugar, a predomin�ncia econ�mica dos Estados Unidos da Am�rica do
Norte refletiu-se diretamente na gradual exclus�o do ensino de Franc�s at� como l�ngua
opcional nos cursos m�dios e, mesmo, superiores. A maioria absoluta das faculdades de
Letras aboliu o ensino de Franc�s. Trata-se de outro rev�s sofrido por um dos
instrumentos mais completos de que disp�em as ci�ncias humanas no mundo moderno.
Para as faculdades de Filosofia, Letras e Ci�ncias Humanas, o resultado � extremamente
infeliz, sendo dif�cil suprir a lacuna pelas tradu��es, insuficientes em n�mero,
insatisfat�rias na qualidade. Hoje uma cultura letrada ou human�stica sem Franc�s
eq�ivale a uma cultura cl�ssica sem Latim.
O que sobrou do ensino das l�nguas modernas, incluindo o mesmo Ingl�s, se tem feito,
em geral, por t�cnicas pragm�ticas de dom�nio da conversa��o b�sica, tipo Y�zigy ou
Ensino Programado, mediante esquemas behavioristas. Essas t�cnicas levam sobre os
velhos m�todos de tradu��o a vantagem de criar logo certos automatismos
audiolinguais, mas barram ao aluno, durante um tempo demasiado longo, o acesso �
literatura e � cultura veiculadas pelas respectivas l�nguas. O instrumento torna-se fim


em si, o que � a defini��o da tec-nocracia. A preocupa��o pelo dom�nio de algumas
(poucas) estruturas fon�ticas e sint�ticas fundamentais, embora v�lida, deixa na sombra

o aprendizaao do vocabul�rio culto, tarefa �rdua que n�o pode ser postergada sob pena
de o estudante sair de seus cursos formativos sem ter tido a oportunidade de ler os
autores importantes que se expressaram naqueles idiomas. Ali�s, � o que tem acontecido
de modo
sistem�tico.
� Em quinto lugar, o vestibular unificado que se estrutura mediante alternativas e sem
reda��o (esta veio em 77, parcialmente) orientou, nos �ltimos quinze anos, pelo menos,
um ensino colegial e, especificamente, os cursinhos pr�-universit�rios, numa linha
maci�amente informativa com evidente preju�zo da finalidade do curso m�dio, que �
formativa e axiol�gica.
As cinco medidas oficiais mencionadas acima afetam a din�mica interna, curricular, do
aprendizado universit�rio e secund�rio das disciplinas humanas. Mas � claro que a
mentalidade burocr�tica que as ditou n�o se restringiu a deslocamentos e supress�es no
n�vel da organiza��o interna dos cursos. Ela agiu drasticamente na macroestrutura do
sistema universit�rio, apoiando, se n�o propiciando, a multiplica��o de institui��es
superiores de car�ter privado, a maioria delas puramente mercantil. Voltadas para o
ensino das disciplinas humanas e sociais (Pedagogia, Hist�ria, Letras, Estudos Sociais,
Comunica��es), consideradas de baixo custo operacional, essas faculdades particulares
concorreram para um empobrecimento sens�vel da forma��o do nosso magist�rio tanto
no plano informativo como no plano cr�tico. Em geral, o ensino das Ci�ncias Humanas
e das Letras, nessas institui��es privadas, limita-se � tarefa de repetir receitas de
manuais, fazendo-se particularmente pesada e amea�adora a repress�o ideol�gica dos
seus �rg�os diretores.
313


Se retomamos os dados importantes da situa��o em que se acham os estudos liter�rios,
filos�ficos e sociais, reconhecemos um campo de tens�es, hoje radicalizadas, entre um
modo de ler a cultura bastante pr�ximo das cad�ncias pragm�ticas do neocapitalismo
em sua fase mais selvagem de implanta��o, e um modo de ler a mesma cultura em um
registro cr�tico no qual a mira � a desmistifica��o das ideologias subjacentes. Mais uma
vez: a aliena��o coexiste com uma linguagem de protesto contra as ilus�es do
desenvolvimentismo e as suas m�scaras autorit�rias. E mais uma vez: � um corte
ideol�gico que separa as vertentes.
Semelhantes tens�es se formam no desenrolar do processo cultural total da sociedade
brasileira. Podem ser detectadas tamb�m fora do ensino letrado ou human�stico em
senso estrito. O tecnicismo e a sua den�ncia s�o constantes tamb�m em �reas lim�trofes
entre as Ci�ncias Humanas e as Ci�ncias Biol�gicas (como a Psicologia, a Medicina, a
Sa�de P�blica), ou entre as Ci�ncias Humanas e as Ci�ncias Exatas (Economia,
Administra��o, Demografia, Engenharia, Arquitetura, Urbanismo). Em todos esses
setores, que contam com uma tradi��o cient�fica crescente durante a evolu��o do
capitalismo, irrompe hoje o conflito entre os tecnocratas e os estudiosos que desejariam
p�r a sua especialidade a servi�o da democracia social.
Depois de largos anos de pol�tica desenvolvimentista, anos em que as ci�ncias foram
estimuladas pelo Estado e pela empresa privada a trabalharem no planejamento racional
da sociedade, os seus cultores mais l�cidos se viram diante de um sistema gerido por
for�as que, por si, n�o visam �quela democratiza��o dos bens culturais: as empresas
multinacionais de Engenharia, Urbanismo, Administra��o ou Farm�cia n�o visam sen�o
ao lucro: o Estado forte, por sua vez, n�o visa sen�o a mais poder e a mais seguran�a.
Pouco importa que todos estilizem as suas express�es ideol�gicas por meio de uma
ret�rica, j� batida, do desenvolvimentismo.
Nestas p�ginas n�o cabe especificar os modos pelos quais se resolve em cada uma
daquelas �reas a tens�o entre tecnocratas e cr�ticos. O objeto, aqui, � outro, e, por for�a,
mais globalizante: apontar, na pr�tica da cultura universit�ria, a contradi��o entre
tend�ncias especulares e tend�ncias cr�ticas. Chamamos especulares as primeiras,
porque espelham a rede dos interesses dominantes, arrastando, portanto, consigo a for�a
dos fatos.

316

N�o se trata, ali�s, de uma contradi��o acad�mica que se manifeste apenas nas salas de
aulas, ou nos semin�rios de p�s-gradua��o. Os cursos universit�rios des�guam nas
carreiras liberais, nas profiss�es t�cnicas, no caldo de cultura da imprensa; enfim, nos
v�rios espa�os da sociedade civil e do aparelho burocr�tico. Entre um curso de
Medicina e a pr�tica m�dico-mercantil das cl�nicas particulares h�, em geral, um
processo de r�pida adapta��o ao real, que � a sociedade de classes brasileira. As
informa��es e os elementos t�cnicos mais funcionais viram logo rotina. A passagem dos
bancos universit�rios �s pr�ticas profissionais faz-se na base das f�rmulas feitas, das


receitas j� fornecidas pelos usufruidores da situa��o, no caso, as ind�strias
farmac�uticas e as firmas de equipamentos hospitalares. Esse mundo do receitu�rio �o
resultado cabal da cultura especular. O que ter� sido, talvez, objeto de problematiza��o,
pesquisa e cr�tica durante os vaga-res do ensino superior cristaliza-se, na hora h do
ramerr�o profissional, em frase feita, esquema funcional, c�lculo mec�nico que basta
manipular e dar a consumir. Temos que estar atentos a essa brutal simplifica��o que a
sociedade de consumo contempor�nea opera com os resultados da cultura acad�mica.
O mundo do receitu�rio � a forma formada da cultura dominante e vigora em todas as
carreiras a que a Universidade d� acesso. E particularmente deprimente quando se pensa
na passagem, em geral en-tr�pica, da cultura universit�ria para o meio secund�rio. O
que se transmite aos alunos do gin�sio (e aqui atingimos o cerne da din�mica
educacional), o que se estratifica em termos de instru��o fundamental, �, quase sempre,
a f�rmula final, reduzida, reificada, da antepen�ltima tend�ncia da cultura superior.
Com a agravante de que a rotina do curso secund�rio inclui uma dose de in�rcia das
estruturas muito mais duradoura que a do ensino universit�rio.
A mudan�a de um pensamento inovador em linguagem esque-m�tica, abstrata, e
satisfeita de si mesma, � um dos problemas mais angustiantes da difus�o da cultura em
uma sociedade de consumo. Pensadores como Adorno e Umberto Eco aprofundaram o
tema da "institucionaliza��o das vanguardas": a cr�tica que se transforma em
mercadoria, que vira moda, e � dilu�da pelo abuso verbal, integrando-se afinal na boa
consci�ncia dos bem pensantes..., perdendo, enfim, o seu alvo modificador do status
quo. A neutraliza��o de todas as poss�veis dissid�ncias em um amplo e flex�vel
processo modernizante pa


317


rece ser um recurso quase fisiol�gico das sociedades neocapitalistas que �s vezes
punem, aleatoriamente, algumas express�es ou atitudes mais inconvenientes, isto �,
mais capazes de despertar ou agu�ar a consci�ncia das contradi��es.
O sistema parece ter uma certa margem de indulg�ncia para com tudo quanto n�o fira, a
rigor, a sua autoconserva��o econ�mica. A liberaliza��o contempor�nea dos costumes e
da linguagem inclui-se nessa margem de toler�ncia. Mas a aus�ncia de qualquer
filosofia coerente de valores (al�m da autoconserva��o) empresta uma certa
instabilidade, e mesmo incoer�ncia, aos padr�es das v�rias censuras: pol�tica,
jornal�stica, liter�ria, cinematogr�fica, teatral etc. O neocapita-lismo
desenvolvimentista, mesmo na sua fase politicamente autorit�ria, n�o tem outra moral,
outro esquema de valores que o das apar�ncias. E � pr�prio da ideologia da
moderniza��o trocar �s vezes de apar�ncia para vender melhor. Da�, aquela
inconsist�ncia das normas que regulam a express�o verbal, forma por excel�ncia de
nossa cultura; da� tamb�m a pr�tica de incorporar ao discurso oficial o jarg�o da cultura
cr�tica. Um exemplo probante dessa facilidade de assimila��o ret�rica v�-se na
linguagem meio sociol�gica meio dial�tica que permeia o �ltimo Plano Setorial de
Cultura (1975-9), que ora nos rege, e que foi preparado pela Secretaria do Minist�rio de
Educa��o e Cultura:
Toda educa��o atuante e racionalmente exercida mant�m com a sociedade a que serve
uma rela��o dial�tica de concord�ncia e assimila��o, de cr�tica e de supera��o. Assim,
a educa��o pode atuar tamb�m como motor do processo social, e o projeto educativo
deve ser concebido em vista da realiza��o de uma sociedade mais conforme �s
exig�ncias de atualiza��o da pessoa humana. Neste ponto concorda-se com o Relat�rio
Faure quando afirma que existe uma correla��o estreita, simult�nea e diferida, entre as
transforma��es s�cio-econ�micas e as estruturas e os modos de educa��o, e que
tamb�m esta contribui funcionalmente para o movimento da hist�ria. Al�m disso, a
educa��o, pelo conhecimento que oferece do meio em que se exerce, pode ajudar a
sociedade a tomar consci�ncia de seus pr�prios problemas e, � condi��o de centrar seus
esfor�os sobre a forma��o de homens completos, pode concorrer grandemente para a
transforma��o e humaniza��o da sociedade, [grifos nossos]
O texto � perfeitamente h�brido. Temos um discurso personalista, um discurso
sociol�gico funcionalista e um certo vislumbre da dia


l�tica pela qual se negam ou se refor�am mutuamente educa��o e sociedade,
superestrutura e infra-estrutura.
O exemplo foi aduzido apenas para acentuar a tese principal destas p�ginas, que afirma
a exist�ncia de correntes d�spares (especular e cr�tica), a sua coexist�ncia e, mais ainda,


o car�ter centr�peto do sistema cultural. Este consegue, �s vezes, trazer para o seu
discurso as cad�ncias da oposi��o, tendo, naturalmente, o cuidado de dilu�-las em um
ide�rio progressista e desenvolvimentista vago herdado da situa��o anterior (1945-64),

quando, por�m, esse ide�rio ainda se combinava com um estilo pol�tico mais
democr�tico.

A CUHVRA FORA DA UNIVERSIDADE
Nesta altura, vale a pena insistir em que existem faixas culturais fora da Universidade.
Para tanto, � indispens�vel reter o conceito antropol�gico do termo cultura como
conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de uma dada forma��o social; e, ao
mesmo tempo, abandonar o conceito mais restrito, pelo qual cultura � apenas o mundo
da produ��o escrita provinda, de prefer�ncia, das institui��es de ensino e pesquisa
superiores.
Na verdade, a vida cultural letrada se faz, hoje, mais do que nunca, dentro da
Universidade, ou em torno dela. Abram-se as revistas e os suplementos dos jornais mais
informados: as suas se��es de cultura alimentam-se de artigos, entrevistas, resenhas e
reportagens escritas pelos intelectuais, ou sobre os intelectuais, das maiores
universidades do pa�s (Rio de Janeiro, S�o Paulo, Campinas, Bras�lia, PUC-Rio, PUC-
S�o Paulo...). A cidade j� n�o mais promove aquele tipo de vida cultural e liter�ria
tang�vel at� os anos 40, quando a Universidade apenas come�ava a se implantar e n�o
tinha ainda absorvido profissionalmente os intelectuais. Hoje, a divis�o social do
trabalho parece ter especializado tamb�m a vida do esp�rito que encontra vias
privilegiadas nas institui��es de ensino superior.
Mas como essa cultura, por difundida que seja, ainda � privil�gio da minoria, cabe
perguntar se a cultura brasileira n�o se articula e se exprime em outros lugares, tempos
e modos que n�o os da vida acad�mica.

319


Ora, o que caracteriza a cultura extra-universit�ria � precisamente o seu car�ter difuso,
mesclado intimamente com toda a vida psicol�gica e social do povo. Exatamente o
oposto da pr�tica acad�mica, que � concentrada e especializada, versando, o mais das
vezes, sobre materiais secund�rios ou terci�rios, j� trabalhados pela literatura espec�fica
dos temas. A Universidade � o lugar em que a cultura se formaliza e se profissionaliza
precocemente. Tecnicista, ou mesmo cr�tica, essa cultura chega logo � cunhagem de
f�rmulas e se nutre dessas f�rmulas at� que sobrevenham outras que as substituam.
Trata-se de um universo que produz discursos marcados, tematizados. Cultura na
Universidade � falar ' 'sobre alguma coisa'', de modo programado.
No mundo extra-universit�rio, os s�mbolos e os bens culturais n�o s�o objeto de an�lise
detida ou de interpreta��o sistem�tica. Eles s�o vividos e pensados, esporadicamente,
mas n�o tematizados em abstrato.

A IND�STRIA CULTURAL

Fora da Universidade, os bens simb�licos s�o consumidos principalmente atrav�s dos
meios de comunica��o de massa.
Trata-se de um processo corrente de difus�o na sociedade de consumo. O homem da rua
liga o seu r�dio de pilha e ouve a m�sica popular brasileira ou, mais freq�entemente,
m�sica popular (ou de massa) norte-americana. A empregada dom�stica liga o seu
radinho e ouve a radionovela ou o programa policial ou o programa feminino. A dona
de casa liga a televis�o e assiste �s novelas do hor�rio nobre. O dono da casa liga a
televis�o e assiste com os filhos ao jogo de futebol. As crian�as ligam a televis�o e
assistem aos filmes de bangue-bangue. Quase todos ouvem o rep�rter da noite. A
m�sica e a imagem v�m de fora e s�o consumidas maci�amente. Em escala menor, o
jornal, ou a revista, d� a not�cia do crime, ou comenta as manobras da sucess�o ou os
horrores da seca ou a geada do Paran�. Em escala menor ainda, o casal-vai ao cinema:
assiste ao policial, � fic��o cient�fica, � com�dia ligeira, � chanchada. Os adolescentes
l�em hist�rias em quadrinhos. As adolescentes l�em as fotonovelas. Tudo isto �
fabricado em s�rie e montado na base de algumas receitas de �xito r�pido. H�
revistinhas femininas populares e de classe m�dia que atingem a tiragem de 500 mil
exemplares semanais, com mais de um mi


320
lh�o de leitoras virtuais. Isso � a cultura de massa ou, mais exatamente, cultura para as
massas. Certos programas de r�dio e de TV disp�em de uma audi�ncia semelhante, se
n�o maior.
Os processos psicol�gicos envolvidos nesses programas s�o, em geral, os de apelo
imediato: sentimentalismo, agressividade, erotismo, medo, fetichismo, curiosidade. H�
uma dosagem de realismo e conservadorismo que, ao mesmo tempo, excita o desejo de
ver, mexe com as emo��es prim�rias e as aplaca no happy end. Tudo o que � posto em
crise no decorrer do programa ou do texto ilustrado � reestruturado no final. Umberto
Eco refere-se, com justeza, a estruturas de consola��o para qualificar o sentido desses


procedimentos chama-tivos que mant�m a aten��o de milh�es de consumidores
culturais.
Em termos diacr�nicos, n�o parece que esse tipo de consumo de bens simb�licos tenha
mudado muito da d�cada de 60 para a de 70. A censura e a massifica��o persistem;
persistem as receitas de sucesso junto ao grande p�blico; continua a publicidade intensa
e insidiosa lan�ando m�o de todos os recursos para motivar e estimular a venda de seus
produtos. Talvez uma an�lise mais mi�da encontre uma ou outra altera��o no quadro,
mas nada de substancial.
O que se percebe, por�m, como novidade importante � a posi��o cr�tica do intelectual
diante da ind�stria cultural. A atitude adesista e at� mesmo entusi�stica, comum na
d�cada de 60, �poca �urea das leituras sobre mass communication, passou a ser cr�tica a
partir de 70. Multiplicam-se nas faculdades disserta��es e teses que procuram denunciar
a ideologia conformista dos grandes programas de TV ou de certas figuras-�dolo dos
quadrinhos mais vendidos. Sob a �gide de Adorno, faz-se uma den�ncia radical da
ind�stria cultural, den�ncia que se estende a todos os meios de comunica��o, e que
acaba sendo um vezo contra-ideol�gico bastante pronunciado. Chega-se at� ao
sacril�gio de arranhar a idolatria futebol�stica acionada pela propaganda oficial. Essa
posi��o de desconfian�a, por parte da cultura de resist�ncia, n�o altera, por�m, como se
pode perceber facilmente, o quadro objetivo estat�stico que continua contando com o
�xito garantido pela efici�ncia da ind�stria cultural e do seu respectivo mercado.
A aprecia��o negativa da cultura para massas, formalizada pelos estudiosos da Escola
de Frankfurt, como Horkheimer, Adorno e, em outro registro, Herbert Marcuse, foi
chamada de apocal�ptica, por Umberto Eco, numa divis�o de intelectuais em
apocal�pticos e integra321



dos. Para compensar as cr�ticas mais radicais, h� os que lembram o car�ter socializador
dos meios de massa, que dariam a todas as classes o mesmo n�vel de informa��o e, vez
por outra, ministrariam elementos para que o espectador forme um ju�zo desalienado a
respeito do sistema em que vive. Igualmente, os defensores insistem no car�ter
pedag�gico que alguns programas assumem, quando elaborados por pessoas de cultura
art�stica ou cient�fica mais complexa. Historicamente, na verdade, fica em aberto o
julgamento de um processo de comunica��o que ainda est� bem longe de ter esgotado
todos os seus frutos. No caso brasileiro contempor�neo, a censura pol�tica e a
massifica��o est�tica e ideol�gica, peculiar aos programas de grande audi�ncia, ainda
n�o autorizam o espectador mais alerta e exigente a nutrir maiores esperan�as.
Mas uma pol�tica de educa��o de um n�mero alto de brasileiros talvez deva passar
for�osamente pelos meios de comunica��o de massa. O que n�o significa que s�o esses
meios, na sua pura materialidade e quantidade, que v�o transformar, no sentido positivo
de humanizar e socializar, a mentalidade dos seus usu�rios. Eles a transformar�o na
linha determinada pela filosofia de valores pr�pria do projeto pol�tico-social que os
utilizar. At� o momento, essa linha tem sido neocapitalista modernizante, com fases
mais ou menos acentuadas de conformismo ou inova��o. N�o se deve esperar da cultura
de massas e, menos ainda, da sua vers�o capitalista de ind�stria cultural, o que ela n�o
quer dar: li��es de liberdade social e est�mulos para a constru��o de um mundo que n�o
esteja atrelado ao dinheiro e ao status.
CULTURA POPULAR

A cultura escolar e a cultura para as massas s�o forma��es institucionalizadas pelo
Estado e pela empresa com o fim de transmitir conhecimento ou preencher horas de
lazer de uma fra��o ponder�vel da popula��o brasileira. S�o organiza��es modernas e
complexas que administram a produ��o e a circula��o de bens simb�licos. O seu
crescimento tem uma rela��o direta com o crescimento econ�mico do pa�s: a sua
mentalidade b�sica, tamb�m.
Mas, se nos ativermos fielmente � concep��o antropol�gica do termo cultura, que �, de
longe, a mais fecunda, logo perceberemos

322

que um sem-n�mero de fen�menos simb�licos pelos quais se exprime a vida brasileira
tem a sua g�nese no cora��o dessa vida, que � o imagin�rio do povo formalizado de
tantos modos diversos, que v�o do rito ind�gena ao candombl�, do samba-de-roda �
festa do Divino, das Assembl�ias pentecostais � tenda de umbanda, sem esquecer as
manifesta��es de piedade do catolicismo que compreende estilos r�sticos e estilos
cultos de express�o.
Nessa complexa gama cultural, a institui��o existe (no sentido sociol�gico cl�ssico do
termo), isto �, as manifesta��es s�o grupais e obedecem a uma s�rie de c�nones, mas
elas n�o disp�em da rede do poder econ�mico vinculante, nem de uma for�a ideol�gica
expansiva como a Universidade e as empresas de comunica��o. S�o microinsti-tui��es,


dispersas no espa�o nacional, e que guardam boas dist�ncias da cultura oficial. Servem
� express�o de grupos mais fechados, apesar de seus membros estarem tamb�m
expostos � cultura escolar ou aos meios de comunica��o de massa.
A tend�ncia dos estudos sociol�gicos convencionais, de filia��o evolucionista, � rotular
de residuais todas as manifesta��es habitualmente chamadas folcl�ricas. Estabelecido
firmemente esse ponto de vista, tudo o que estiver sob o limiar da escrita, e, em geral,
os h�bitos r�sticos ou suburbanos, � visto como sobreviv�ncia das culturas ind�genas,
negra, cabocla, escrava ou, mesmo, portuguesa arcaica: culturas que se produziram
sempre sob o ferrete da domina��o.
E extremamente importante repensar o processo de forma��o de toda essa cultura que
viveu e ainda vive sob o limiar da escrita. Certa vertente culta, ocidentalizante, de fundo
colonizador, estigmatiza a cultura popular como f�ssil correspondente a estados de
primitivis-mo, atraso, demora, subdesenvolvimento. Para essa perspectiva, o fatal (que
coincide, no fim, com o seu ideal mais caro) � o puro desaparecimento desses res�duos,
e a integra��o de todos os seus sujeitos nas duas formas institucionais mais poderosas: a
cultura para as massas e a cultura escolar. Trata-se de uma vis�o linearmente
evolucionista que advoga, com a autoridade da ci�ncia oficial, a causa dos vencedores.
Em outro extremo, a vertente rom�ntico-nacionalista, ou rom�n-tico-regionalista, ou
rom�ntico-populista (os matizes mudam conforme a conjuntura) toma por valores
eternamente v�lidos os transmitidos pelo folclore, ignora ou recusa as suas vincula��es
com a cultura de massa e a cultura erudita, e identifica as express�es grupais com

323


um m�tico esp�rito do povo, ou mais ideologicamente, com a Na��o, fazendo pender
para um excessivo particularismo o que, na concep��o oposta, se perdia num abstrato
universalismo.
O problema se complica extraordinariamente hoje em dia quando precisamos considerar
as imbrica��es que ocorrem entre a cultura popular e a cultura de massa (ou
popularesca, na express�o de M�rio de Andrade), ou ainda entre a cultura popular e a
cultura criadora dos artistas. Urge cavar, em �ltima an�lise, uma teoria da acultura��o
que exorcize os fantasmas elitista e populista, ambos agressivamente ideol�gicos e fonte
de arraigados preconceitos.
Uma teoria da cultura brasileira, se um dia existir, ter� como sua mat�ria-prima o
cotidiano f�sico, simb�lico e imagin�rio dos homens que vivem no Brasil. Nele sondar�
teores e valores. No caso da cultura popular, n�o h� uma separa��o entre uma esfera
puramente material da exist�ncia e uma esfera espiritual ou simb�lica. Cultura popular
implica modos de viver: o alimento, o vestu�rio, a rela��o homem-mulher, a habita��o,
os h�bitos de limpeza, as pr�ticas de cura, as rela��es de parentesco, a divis�o das
tarefas durante a jornada e, simultaneamente, as cren�as, os cantos, as dan�as, os jogos,
a ca�a, a pesca, o fumo, a bebida, os prov�rbios, os modos de cumprimentar, as palavras
tabus, os eufemismos, o modo de olhar, o modo de sentar, o modo de andar, o modo de
visitar e ser visitado, as romarias, as promessas, as festas de padroeiro, o modo de criar
galinha e porco, os modos de plantar feij�o, milho e mandioca, o conhecimento do
tempo, o modo de rir e de chorar, de agredir e de consolar...
A enumera��o � acintosamente ca�tica passando do material ao simb�lico e voltando do
simb�lico para o material, pois o intento � deixar bem clara a indivisibilidade, no
cotidiano do homem r�stico, de corpo e alma, necessidades org�nicas e necessidades
morais.
Essa indivisibilidade � dif�cil de ser apreendida pelo observador letrado que, por n�o
viv�-la subjetivamente, procura recortar em partes ou t�picos a experi�ncia popular,
fazendo dela um elenco de itens separados, dos quais alguns seriam materiais, outros
n�o.
Mas a vida do corpo, a vida do grupo, o trabalho manual e as cren�as religiosas
confundem-se no cotidiano pobre de tal modo que quase se poderia falar em
materialismo animista como a filosofia subjacente a toda a cultura radicalmente
popular. A express�o, que j� usei uma vez para qualificar a perspectiva de Guimar�es
Rosa, exige

esclarecimento. Materialismo, enquanto o homem pobre conhece, por for�a das suas
obriga��es di�rias, o uso da mat�ria, lida com a terra ou com instrumentos mec�nicos,
que s�o o seu meio �nico de sobreviv�ncia. Da� lhe vem um realismo, uma praticidade,
um senso vivo dos limites e das possibilidades da sua a��o, que convergem para uma
sabedoria emp�rica muito arraigada, e que � a sua principal defesa numa economia


adversa. Ao homem pobre e � mulher pobre cabe, sempre, a tarefa de enfrentar a
resist�ncia mais pesada da Natureza e das coisas. Mas esse mundo da necessidade n�o �
absolutamente desencantado, para usar do atributo com que Max Weber qualificou o
universo da racionalidade burguesa. H�, na mente dos mais desva-lidos, uma rela��o
t�cita com uma for�a superior (Deus, a Provid�ncia); rela��o que, no sincretismo
religioso, se desdobra em v�rias entidades an�micas, dotadas de energia e
intencionalidade, como os santos, os esp�ritos celestes, os esp�ritos infernais, os mortos;
e assimila ao mesmo pante�o os �dolos provindos da comunica��o de massa ou,
eventualmente, as pessoas mais prestigiadas no interior da sociedade.
Assim, um cabal empirismo ou realismo no trabalho e na esfera econ�mica b�sica se
conjuga com um universo potencialmente m�gico, ora fasto, ora nefasto, constru�do de
acasos, azares, sortes, simpatias, maus-olhados, p�s direitos e p�s esquerdos, e se
concretiza nos objetos que a cr�tica racionalista se acostumou a considerar
supersticiosos: imagens, fotos, figas, fitas, amuletos, medalhas, bentinhos, pedras,
ervas, animais, que comp�em o sistema simb�lico do animismo brasileiro nas suas
faixas mais pobres, embora, a rigor, n�o exclusivamente nelas.
O materialismo animista (fundado, como a pr�pria an�lise sem�ntica da express�o nos
ensina, na jun��o dos opostos corpo/alma) transmitiu-se por s�culos e s�culos de vida
predominantemente rural. Por isso, � muito respeitoso dos ciclos da natureza, separando
bem as fases do ano, as idas e vindas da seca e da chuva, os fluxos e reflu-xos das
mar�s, as fases da lua, as partes do dia, os ciclos biol�gicos da mulher, as idades da vida
humana, dando a todos um peso, uma qualidade, um significado, cujo conhecimento �
parte integrante da sabedoria popular em toda parte do mundo.
O materialismo animista tem uma vis�o c�clica da Natureza e da Hist�ria, vis�o que
parece est�tica � cultura racionalista, mas que disp�e do seu dinamismo interno e tem
plena consci�ncia das passa


325


gens, dos riscos, do movimento incessante que ora apressa ora atrasa o cumprimento do
ciclo.
A mesma vis�o tende a aceitar com facilidade a cren�a na re-encarna��o, o que se prova
pelo alt�ssimo n�mero de cat�licos esp�ritas no Brasil inteiro. Para o materialismo
c�clico, nada morre, nem os mortos, todos podem voltar e estar junto de n�s, n�o h�
pecado nem pena definitiva, e tudo o que foi pode voltar a ser, se assim o quiserem as
for�as que regem o nosso destino. No cora��o de cada homem do povo convivem uma
resigna��o fundamental e uma esperan�a sempre renascente.
Seriam, portanto, caracteres constantes de nossa cultura popular: materialismo,
animismo, vis�o c�clica da exist�ncia (ou reversibi-lidade). Fica impl�cito no termo
popular que essa cultura �, acima de tudo, grupai, supra-individual, garantia, ali�s de
sua perpetua��o, que resiste � perda de elementos individuais.
Quanto �s potencialidades de expans�o de cada uma dessas faixas da cultura brasileira:
a cultura erudita cresce principalmente nas classes altas e nos segmentos mais
protegidos da classe m�dia: ela cresce com o sistema escolar. A cultura de massa, ou
ind�stria cultural, corta verticalmente todos os estratos da sociedade, crescendo mais
significativamente no interior das classes m�dias. A cultura popular pertence,
tradicionalmente, aos estratos mais pobres, o que n�o impede o fato de seu
aproveitamento pela cultura de massa e pela cultura erudita, as quais podem assumir
ares popularescos ou populistas em virtude da sua flexibilidade e da sua car�ncia de
ra�zes.

RELA��ES ENTRE AS CULTURAS BRASILEIRAS

N�o podendo, neste tipo de ensaio, desenvolver especificamente o tema, ali�s mat�ria
ampl�ssima dentro da Antropologia Cultural, limito-me a indicar algumas combina��es
de aspectos que operam entre si os subconjuntos assinalados.

Cultura erudita e cultura de massa

Aparentemente opostas do ponto de vista da sua formaliza��o, a cultura erudita e a
cultura de massa podem, no entanto, tocar-se

326

em mais de um ponto. O profissional de n�vel universit�rio, especialmente se t�cnico,
ou tecnocrata, se fascina pelos produtos da ind�stria cultural, que acionam uma
verdadeira pletora de elementos mec�nicos e eletr�nicos, e, na verdade, multiplicam e
distribuem objetos que s� se tomaram poss�veis depois de acuradas pesquisas da cultura
universit�ria. H�, pois, uma evidente contig�idade entre a pesquisa cient�fica e os
produtos el�tricos, �pticos, ac�sticos, mec�nicos, farmac�uticos, cir�rgicos etc, que
constituem o consumo especializado de toda a tecnologia e integram, sob a forma de
publicidade, a cultura para massas.
Mas n�o � s� no ambiente tecnicista que convergem a forma��o universit�ria e o
consumo alto. Tamb�m no mundo das letras e das artes. No Brasil, por exemplo, alguns
escritores e compositores de m�sica de vanguarda estabeleceram, desde os fins da


d�cada de 50, um projeto de aproveitamento das conquistas da eletr�nica e do
computador, dando ao acaso e �s suas combina��es um peso est�tico dominante. Esta
rela��o �ntima com os meios t�cnicos levou alguns ide�logos experimentalistas a
condenar toda forma de arte que n�o se valesse dos recursos mais modernos de
programa��o e comunica��o. Entrava nesse campo de prest�gio sobretudo a televis�o,
que, na teoria-matriz de Marshall McLuhan, teria revolucionado a percep��o de todos os
homens, estourado as barreiras entre as classes sociais e institu�do a Aldeia Global
{Global Village), que retribalizou eletronicamente a humanidade e fez t�bua rasa das
mil e uma diferen�as regionais e culturais que caracterizam, h� mil�nios, os povos do
planeta. Temos, aqui, um caso expressivo de incorpora��o dos mass media a um projeto
de origem letrada, erudita.
Nas �reas profissionais mais ligadas �s ci�ncias aplicadas, como a Engenharia e a
Economia, a cultura de massas � fonte importante de informa��o e de valores para um
alto n�mero de pessoas que prescindiram, em toda a sua hist�ria intelectual, do corpus
da cultura hu-man�stica. Com isso a cultura de massa, apesar do nome, acaba sendo
tamb�m a cultura m�dia dos t�cnicos.
Tal inter-rela��o pode dar-se no sentido inverso. A cultura de massa, a ind�stria de
objetos simb�licos em s�rie, vale-se da cultura erudita, lan�a m�o dela, para transformar
em moda e consumo n�o poucas de suas representa��es. E o fen�meno do kitsch,
estudado por Abra-ham Moles, que consiste em divulgar, junto aos consumidores das

527


classes alta e m�dia, palavras, gostos, melodias, enfim, bens culturais produzidos
inicialmente pela chamada cultura superior.
A Universidade, por sua vez, � chamada a colaborar para, com as devidas adapta��es ou
concess�es a um presum�vel gosto m�dio, fornecer imagens, palavras e id�ias para
fasc�culos de grande venda, ou para jornais e revistas de classe m�dia ou alta. Hoje
assistimos a uma solicita��o intensa dos setores universit�rios pelas empresas de
comunica��o em busca de assunto. A ind�stria cultural, principalmente nas suas faixas
de consumo mais exigentes, virou divulgadora, dilui-dora ou exploradora do trabalho
universit�rio cr�tico e criador. Algumas figuras universit�rias, antes circunscritas � vida
acad�mica e � produ��o para reduzid�ssimo p�blico, viraram, em pouco tempo,
personagens do consumismo cultural, diminuindo o intervalo que h� n�o pouco tempo
separava a escola superior do leitor m�dio desses peri�dicos. Esse uso dos meios de
difus�o n�o partiu, por�m, da Universidade; chegou a ela, solicitou-a e at� certo ponto
assimilou-a ao projeto modernizante em curso.

Cultura de massa e cultura popular

O poder econ�mico expansivo dos meios de comunica��o parece ter abolido, em v�rios
momentos e lugares, as manifesta��es da cultura popular, reduzindo-as � fun��o de
folclore para turismo. Tal � a penetra��o de certos programas de r�dio e TV junto �s
classes pobres, tal � a apar�ncia de moderniza��o que cobre a vida do povo em todo o
territ�rio brasileiro, que, � primeira vista, parece n�o ter sobrado mais nenhum espa�o
pr�prio para os modos de ser, pensar e falar, em suma, viver, tradicional-populares. O
que seria uma fatalidade do neocapitalismo introjetado em todos os pa�ses de extra��o
colonial.
A cultura de massa entra na casa do caboclo e do trabalhador da periferia, ocupando-lhe
as horas de lazer em que poderia desenvolver alguma forma criativa de auto-express�o:
eis o seu primeiro tento. Em outro plano, a cultura de massa aproveita-se dos aspectos
diferenciados da vida popular e os explora sob a categoria de reportagem po-pularesca e
de turismo. O vampirismo � assim duplo e crescente: destr�i-se por dentro o tempo
pr�prio da cultura popular e exibe-se,

328

para consumo do telespectador, o que restou desse tempo, no artesanato, nas festas, nos
ritos. Poder�amos, aqui, configurar com mais clareza uma rela��o de aparelhos
econ�micos industriais e comerciais que exploram, e a cultura popular, que � explorada.
N�o se pode, de resto, fugir � luta fundamental: � o capital � procura de mat�ria-prima e
de m�o-de-obra para manipular, elaborar e vender. A macumba na televis�o, a escola de
samba no Carnaval estipendiado para o turista, s�o exemplos de conhecimento geral.
No entanto, a dial�tica � uma verdade mais s�ria do que sup�e a nossa v� filosofia. A
explora��o, o uso abusivo que a cultura de massa faz das manifesta��es populares, n�o
foi ainda capaz de interromper para todo o sempre o dinamismo lento, mas seguro e
poderoso da vida arcaico-popular, que se reproduz quase organicamente em mi



croescalas, no interior da rede familiar e comunit�ria, apoiada pela socializa��o do
parentesco, do vicinato e dos grupos religiosos.
O povo assimila, a seu modo, algumas imagens da televis�o, alguns cantos e palavras do
r�dio, traduzindo os significantes no seu sistema de significados. H� um filtro, com
rejei��es maci�as da mat�ria impertinente, e adapta��es sens�veis da mat�ria
assimil�vel. De resto, a propaganda n�o consegue vender a quem n�o tem dinheiro. Ela
acaba fazendo o que menos quer: dando imagens, espalhando palavras, desenvolvendo
ritmos, que s�o incorporados ou re-incorporados pela generosa gratuidade do imagin�rio
popular.
O torcedor do Corinthians poder� ter adquirido, � custa de suadas presta��es, um
televisor �ltimo-tipo com controle remoto ou mudan�a digital, mas nem por isso deixar�
de acender a sua vela a Nossa Senhora Aparecida ou, mesmo, a uma das muitas
entidades da macumba, para conseguir a vit�ria do seu time.
Ou que importa que nos arrasta-p�s suburbanos se dance o �ltimo i�-i�-i� lan�ado pelo
com�rcio musical yankee, se o comportamento dos jovens no baileco ou no namoro
corresponde a uma rela��o quase ritual entre os sexos que reproduz uma secular
educa��o moral sertaneja?
Esse esquema de rea��o peculiar ao meio receptor vai regulando, at� certo ponto, os
conte�dos e as formas dos pr�prios meios de comunica��o de massa, que procuram ir ao
encontro dos gostos do povo, tornando-se ent�o popularescos ou pseudotradicionalistas
(j� que n�o lhes � dado ser autenticamente tradicionais), como o fazem al


329


guns programas de r�dio e n�o poucas fotonovelas meio sentimentais, meio
modernizantes, meio moralizantes. O t�pico popular, com todas as suas tend�ncias para
a caricatura, � um modo pelo qual a ind�stria cultural projeta o povo como o outro. O
outro � o povo ao mesmo tempo explorado e intocado.
S�o, portanto, muito delicadas as rela��es entre cultura de massa e cultura popular. Do
ponto de vista do dinamismo capitalista, a flecha parece sempre ir no sentido de uma
desagrega��o da segunda pela primeira. Esse fen�meno existe, quer no plano moral,
quer no plano est�tico, mas, como a destribaliza��o do �ndio, � fruto mais de uma
investida t�cnico-econ�mica violenta do sistema capitalista do que de uma eventual
exposi��o do primitivo ou do r�stico a certas formas de cultura de massa.

Cultura erudita e cultura popular

O uso que a ind�stria de bens simb�licos faz do folclore se parece com a expropria��o.
Assim como a ind�stria tira a for�a de trabalho do despossu�do, pagando-lhe um sal�rio
m�nimo, a cultura para massas surripia quanto pode da sensibilidade e da imagina��o
popular para compens�-la com um lazer m�nimo, entrecortado de imagens e slogans de
propaganda.
E, no entanto, ou talvez por isso mesmo, porque somos uma sociedade de consumidores
de coisas, de not�cias, de signos, essa ind�stria cultural � a que nos penetra mais
assiduamente, nos invade, nos habita e nos modela. O consumidor culto � um voyeur
enfastiado, um perverso.
Mas... e a cultura erudita?
Esta, ou ignora pura e simplesmente as manifesta��es simb�licas do povo, de que est�,
em geral, distante, ou debru�a-se, simp�tica, interrogativa, e at� mesmo encantada pelo
que lhe parece forte, espont�neo, inteiri�o, en�rgico, vital, em suma, diverso e oposto �
frieza, secura e inibi��o peculiares ao intelectualismo ou � rotina universit�ria. A cultura
erudita quer sentir um arrepio diante do selvagem.
Desse contacto podem nascer frutos muito diferentes entre si, e que v�o do mais cego e
demag�gico populismo, que � a m� consci�ncia estert�rea do elitismo b�sico de toda
sociedade classista, � mais

330

bela obra de arte elaborada em torno de motivos populares, como a m�sica de Villa-
Lobos, o romance de Guimar�es Rosa, a pintura de Portinari e a poesia negra de Jorge
de Lima.
Para entrar no cerne do problema, s� h� uma rela��o v�lida e fecunda entre o artista
culto e a vida popular: a rela��o amorosa. Sem um enraizamento profundo, sem uma
empatia sincera e prolongada, o escritor, homem de cultura universit�ria, e pertencente �
linguagem redutora dominante, se enredar� nas malhas do preconceito, ou mitizar�
irracionalmente tudo o que lhe pare�a popular, ou ainda projetar� pesadamente as suas
pr�prias ang�stias e inibi��es na cultura do outro, ou, enfim, interpretar� de modo
fatalmente etnoc�ntrico e colonizador os modos de viver do primitivo, do r�stico, do


suburbano.
Os equ�vocos do olhar etnoc�ntrico e as interpreta��es, simp�ticas, mas distorcidas, da
antropologia nacionalista (ultimamente, populista), significam, em �ltima inst�ncia, um
ver-de-fora-para-dentro; uma proje��o, uma estranheza mal dissimulada em
familiaridade. Essa estranheza, e os ju�zos que dela prov�m, tem ancestrais conhecidos
nos cronistas e nos catequistas dos s�culos iniciais da coloniza��o. Quem n�o leu, ou
em Gabriel Soares de Sousa, ou em G�ndavo, ou em algum jesu�ta, a afirma��o de que a
l�ngua dos tupis carecia de tr�s letras, F, R, L e, por isso, eles n�o podiam ter nem F�,
nem Rei, nem Lei? Os enganos e os preconceitos da filologia colonialista v�m de longe;
outro observador, do s�culo xvm, preocupado com os h�bitos religiosos dos afrobrasileiros,
procura na etimologia da palavra calundu a explica��o do mal, e a interpreta
estapafurdiamente como latina e significando calo duo, isto �, ' 'calam os dois'', e,
quando dois calam, algum mau pensamento por certo deve estar circulando em ambas
as cabe�as; calam possu�dos por Satan�s, o dem�nio mudo. Mesmo Greg�rio de Matos,
t�o familiar � vida afro-baiana, atribu�a ao dem�nio, ao padre-mestre Satan�s, a a��o
dos candombl�s, e os arrolava entre os pecados contra o Primeiro Mandamento.
A partir da Independ�ncia, a cultura erudita muda de tom, passando � exalta��o nativista
do tipo alencariano que, a rigor, se vale dos mitos e das imagens tupis para enfunar uma
ideologia nacional-conservadora. De qualquer modo, por�m, o interesse pelo selvagem
e, j� na segunda metade do s�culo xrx, pelo negro e pelo sertanejo, ganha corpo, saindo
� busca de uma metodologia, que se empresta da Sociologia e da Etnologia nascentes.
Ent�o, a cultura alta brasilei


331


ra assimila, o quanto pode, algumas no��es do evolucionismo de Dar-win a Haeckel,
repartindo drasticamente a nossa popula��o em estratos primitivos, arcaicos e
modernos. Obras fundamentais s�o, desse ponto de vista, O Selvagem, do general Couto
de Magalh�es (1877), Uanimisme f�tichiste des negres de Bahia, de Nina Rodrigues
(1900), e Os sert�es, de Euclides da Cunha (1902), tratando respectivamente do �ndio,
do negro e do sertanejo brasileiro.
Como se articulam nesses livros cl�ssicos e na literatura etnol�gica do tempo o interesse
pela cultura popular e a ci�ncia preconcei-tuosa e colonialista dos fins do s�culo xrx? E
ler os ricos ensaios escritos a cavaleiro dos dois s�culos por grandes estudiosos do nosso
folclore e da nossa literatura oral, um S�lvio Romero, um Jo�o Ribeiro. O �ndio, o
negro, o mesti�o, mulato ou caboclo s�o vistos como seres dignos de simpatia, embora
mais toscos, mais rudes, mais instintivos, em suma, mais primitivos, e, palavra que
escapa, inferiores aos brancos. Sublinha-se o seu car�ter pr�-l�gico ou n�o l�gico
(preconceito que vem sendo desfeito no s�culo xx) e postula-se uma s�rie de altera��es
negativas ou degenerescentes peculiares � mesti�agem. Em Nina Rodrigues, m�dico, a
aten��o a esse aspecto patol�gico e delinq�ente d� o tom ao enfoque, que em Euclides,
seu disc�pulo, � compensado por uma franca admiss�o do valor pessoal, da energia
f�sica e expressiva dos sertanejos observados de perto em Canudos. Um misto de
interesse, condescend�ncia e atribui��o de inferioridade cerebral institui uma
perspectiva que lembra, mutatis mutandis, a atitude de alguns cronistas do s�culo xvi.
Uma constante, que me parece curiosa e capaz de desdobramentos v�rios, � a atribui��o
ao primitivo de caracteres naturais mais pronunciados que os encontr�veis nas
popula��es civilizadas brancas: a for�a, o desejo, a intui��o. A cultura erudita sente um
fasc�nio pelo que lhe parece ser a energia inconsciente dos povos selvagens e das
popula��es iletradas: energia que se estaria perdendo no processo da civiliza��o. Ainda
e sempre, Rousseau, presente, e, na palavra de L�vi-Strauss, ' 'fundador das ci�ncias
humanas''. O tema do cruzamento entre culturas � proposto especificamente por alguns
escritores modernistas como M�rio de Andrade, Oswald de Andrade, Raul Bopp e
Cassiano Ricardo. Fique apenas o registro de duas tend�ncias: o nacionalismo est�tico e
cr�tico de M�rio de Andrade e o antropofagismo de Oswald de Andrade. M�rio
inclinava-se a uma fus�o de per�cia t�cnica supranacional com a sondagem de uma

332

psicologia brasileira semiprimitiva, mesti�a, fluida, rom�ntica. Oswald pregava uma
incorpora��o violenta e indiscriminada dos conte�dos e das formas internacionais pelo
processo antropof�gico brasileiro, que tudo devoraria e tudo fundiria no seu organismo
inconsciente, entre an�rquico e matriarcal. Ambas as teses, apesar de t�o distintas na
sua formula��o, podem avizinhar-se enquanto postulam uma assimila��o de c�digos
europeus por um presumido car�ter (ou n�o-car�ter) nacional brasileiro, que se
explicaria por uma combina��o de mentalidade pr�-l�gica (a express�o era tomada a
L�vy-Bruhl) e formas civilizadas sobrepostas por motivos hist�ricos: coloniza��o,


catequese etc. Os modos pelos quais essas hip�teses (em que a Antropologia ainda se
entregava a uma discut�vel psicologia dos povos) serviram �s obras liter�rias do
modernismo devem ser objeto da an�lise, da interpreta��o e da hist�ria da poesia e da
prosa brasileira coet�neas. Para o fio de nosso discurso, importa sublinhar que o
modernismo, especialmente na sua vers�o paulista ou concentrada em S�o Paulo,
trabalhou a rela��o entre cultura erudita e cultura popular segundo um vetor
decididamente mitopo�tico. Cultura popular � entendida pelo autor de Macuna�ma e
pelo autor do Manifesto Antropof�gico, em primeiro lugar, como express�o da
sensibilidade tupi, articulada em lendas, mitos e ritos recontados pelos cronistas, pelos
jesu�tas e por alguns antrop�logos contempor�neos. Em um segundo tempo, um
estudioso infatig�vel como M�rio de Andrade se p�s a pesquisar tamb�m o mundo do
negro e do mesti�o, j� ent�o como folclorista quase profissional; mas j� n�o era o
momento her�ico das defini��es modernistas fundamentalmente primitivistas. A
explora��o do Brasil pobre moderno seria obra dos romancistas regionalistas,
particularmente os nordestinos e os ga�chos que constituem a nossa melhor tradi��o
neo-realista. De S�o Paulo, regi�o industrial, capitalista, ponta-de-lan�a da
moderniza��o cultural, saiu a flecha do primitivismo radical, como se a alternativa real
fosse a expressa no famoso trocadilho oswaldiano: "tupy or not tupy, that is the
question". Mas essa alternativa era, apenas, uma alternativa est�tica do modernismo da
d�cada de 20: primitivismo puro ou futurismo, eis a quest�o desse modernismo. Deve,
provavelmente, haver uma rela��o estrutural entre momentos hist�ricos
ultramodernizantes e programas est�ticos irra-cionalistas ou, como se prefere dizer hoje,
contraculturais. O apelo para fundir t�cnica e irracionalismo se fez ouvir
sintomaticamente nos

333


fins da d�cada de 60, per�odo em que o Brasil viveu uma primeira onda de satura��o do
consumo tecnol�gico e dos meios de comunica��o de massa. N�o por acaso � o
momento �ureo do tropicalismo que reprop�e a volta ao pensamento antropof�gico do
modernismo. Evidentemente, agora os �ndios tupis s�o substitu�dos pelas massas cujos
modos de sentir e dizer passam a integrar, por exemplo, o conto e o teatro da viol�ncia.
A cultura erudita busca renovar-se pelo aproveitamento mais ou menos bruto, mais ou
menos elaborado, do que lhe parece ser a espontaneidade e a vitalidade populares.
Nesse processo, o risco mais comum � repetir, talvez sem as riquezas da fantasia
est�tica modernista, o fen�meno ideol�gico e psicol�gico da proje��o, de que os
modernistas, ali�s, n�o escaparam: proje��o de neuroses, desequil�brios, preconceitos,
recalques e desrecalques do intelectual na mat�ria popular assumida como v�lvula de
escape da subjetividade pequeno-burguesa. Mas n�o ser� esse risco uma tend�ncia
profunda de toda cultura engendrada no seio de uma sociedade de classes? Se assim for,

o tema crucial das rela��es entre cultura erudita e cultura popular dever� come�ar por
um autodiagn�stico da cultura erudita. At� o momento, as observa��es mais felizes que
conhe�o sobre o comprometimento do intelectual com sua classe est�o na obra de
Ant�nio Gramsci, os Cadernos do c�rcere, que seria necess�rio repensar para ver o
quanto s�o aplic�veis �s situa��es precisas da vida cultural brasileira.
Mais simples, porque abstrato e unilateral, � o confronto que certa cultura erudita,
centrada em si mesma, faz com as manifesta��es folcl�ricas: ela as desclassifica
enquanto cultura, acentuando, no seu julgamento, o teor simples, pobre, elementar,
grosseiro, vulgar, ou as formas mon�tonas, repetitivas, n�o originais, dessas mesmas
express�es. Trata-se aqui de um caso de pura e triste ignor�ncia e, o mais das vezes, de
confus�o que a pseudocultura faz entre o folclore, que ela na verdade desconhece, e
algumas de suas contrafa��es exibidas pelos meios de comunica��o de massa.
Os intelectuais puramente acad�micos assim como os profissionais tecnicistas est�o, em
geral, satisfeitos com as suas conquistas no esfor�o de se adequarem ao estilo
internacional de vida e contentes com os rendimentos econ�micos e sociais que lhes tem
dado o seu status. Por isso, podem passar a vida sem conhecer a cultura popular, sem
ocupar-se dela, sem entrar em contacto real com ela, bloqueados
334

que est�o, al�m do mais, pela pr�pria barreira de classe ou de cor. Quando muito,
vendo-a transposta para a televis�o, ou no intervalo de lazer de suas excurs�es tur�sticas,
recebem uma imagem no n�vel do espet�culo, imagem que s� acentua o ponto de vista
elitista de desprezo ou de pena pelo atraso do povo brasileiro.
O ponto nevr�lgico do problema � sempre aquele: s� h� uma rela��o v�lida e fecunda
entre o homem erudito e a vida popular � a rela��o amorosa. O populismo, descontada
a sua simpatia f�cil para com o objeto povo, � sempre um uso da cultura popular, uso
fatalmente passageiro, de superf�cie, pois o intelectual (mesmo o adepto da
contracultura) n�o tem condi��es ou projeto efetivo de partilhar o que Jacques Loew


chamava de ' 'comunidade de destino'' com o pobre. O populismo jornal�stico, ficcional,
teatral etc. vale-se verbalmente ou iconicamente de fragmentos do cotidiano popular,
como o populismo pol�tico se vale episodicamente (ali�s, periodicamente) das
aspira��es e ilus�es eleitorais da massa.
O horizonte do elitismo �, naturalmente, outro. Assentado em um esquema de frui��o,
ele goza voluptuosamente dos seus bens culturais que receberam a chancela de os
melhores pelos bem pensantes universit�rios de todo o mundo. Ele comprou o melhor e
quer patentear a excel�ncia da escolha sempre que pode: � a cultura de cita��es, que
sempre apoia o menor vest�gio de uma id�ia com a san��o incon-trast�vel de ' 'como
dizia fulano'' e, se poss�vel, acrescenta o momento feliz e ciosamente arquivado em que,
em conversa informal e amistosa, fulano lhe dizia, dizia que...
No seu culto, tantas vezes involunt�rio, da autoridade (afinal, o elitismo quer-se, pelo
menos, liberal), o intelectual, consumidor alto, introjetou t�o profundamente um
esquema de domina��o que j� n�o se apercebe dele. Na sua aliena��o, consegue excluir
do seu universo a exist�ncia concreta do dominado. Conhece-o de cita��o. Senta-se na
poltrona requintada feita pelo art�fice que ele nunca ver�. Recebe os emolumentos, ou
honor�rios, que prov�m dos impostos de uma popula��o de poucas letras, com a qual
n�o tem tempo nunca de conversar. Mas pouco se inquieta com isso. Ele prossegue
firmemente na sua carreira e nas suas mais �ntimas convic��es que s�o exatamente as
mais p�blicas e correntes da ideologia pseudo-racional dominante. Embora seja tema
ingrato caracterizar esse tipo de cultura, n�o devemos ceder ao idealismo de ignorar que
ela est� metodicamente espa


335


lhada em milhares de cabe�as de profissionais egressos das nossas universidades
estatais e particulares, cabe�as freq�entemente planejado-ras e executivas de nossa vida
material e desse poderoso sistema simb�lico que se chama propaganda. O seu motivo
mais presente � a frui��o do consumo alto, sofisticado, para usar de um adjetivo que n�o
sai da boca desses usu�rios privilegiados. N�o � preciso repetir que o povo s� entra
nesse universo como consumo do pitoresco, do malicioso, passageiramente aproveitado
como desrecalque barato a que a alta burguesia brasileira nunca foi refrat�ria. Ainda n�o
foi estudada em profundidade, por exemplo, a ideologia entre epicurista e m�rbida das
publica��es porno-gr�-finas de alto pre�o que constituem, n�o raro, o �nico alimento
est�tico do lazer que se permitem os executivos nacionais. Nela h� um tal
entrela�amento de dinheiro, status, luxo e corpo humano que dificilmente se pode
deixar de pensar em alta prostitui��o. E volta o esquema fundamental de domina��o,
agora em estilo mais exibicionista e seguro de si.
Mas... e a cultura popular receber� alguma coisa da cultura erudita ou institucional?
Historicamente, n�o podemos esquecer que as camadas pobres da popula��o brasileira
(�ndios, caboclos, negros escravos, e depois forros, mesti�os suburbanos, subprolet�rios,
em geral) foram colonizadas pela cultura r�stica ou, eventualmente, urbana dos
portugueses, e pelo catolicismo ritualizado dos jesu�tas; e agora, j� em plena
mesti�agem e em plena sociedade de classes capitalistas, est�o sendo recolonizadas pelo
Estado, pela Escola Prim�ria, pelo Ex�rcito, pela ind�stria cultural e por todas as
ag�ncias de acultura��o que saem do centro e atingem a periferia. A cultura expansiva �
a dominante, � a cultura letrada repartida e dilu�da pelos meios oficiais ou privados, pela
Escola e pela F�brica. At� onde as imagens, as id�ias e os valores dessas ag�ncias
culturais estar�o penetrando no imagin�rio e condicionando o sistema de valores do
povo? Ter�o a mesma for�a, por exemplo, que teve a religi�o cat�lica com seus ritos e
preceitos durante os tempos coloniais?
Os exemplos de passagem de formas da cultura aristocr�tica medieval para a cultura
popular sertaneja s�o conhecidos: os pares de Fran�a projetaram-se nas cavalhadas
nordestinas e valem como paradigma aos crentes rebeldes do Contestado. O Carnaval,
de origem europ�ia, serve de espa�o e de tempo prop�cio � express�o da m�sica negra e
mulata nos maiores centros urbanos. O candombl� nag� assi


336

mila, no seu sincretismo fundamental, os santos crist�os �s entidades sobrenaturais
africanas. O exemplo norte-americano dos Negro Spi-rituals � probante: para exprimir a
esperan�a de libera��o da sua ra�a � do seu povo, os negros se valem do livro sagrado
de seus dominadores, a B�blia. Um grande antrop�logo, Herskovits, insistiu nesse
fen�meno da reinterpreta��o, pelo qual toda cultura dominante � absorvida e
descodificada pela cultura dominada, de tal modo que, nesta �ltima, j� n�o fica da
cultura superior nada a n�o ser, talvez, o desejo que t�m os dominados de apreender os
dons e os poderes dos seus patr�es. A refac��o do culto pelo iletrado � mat�ria


permanentemente aberta aos estudiosos da cultura popular. Veja-se a sorte da modinha
no Brasil: passou dos sal�es burgueses �s serestas de bairros. Veja-se essa coisa
complexa e surpreendente que � a literatura de cordel: o cantador, homem que domina o
alfabeto e est� nos confins da cultura escolar e da cultura de massas, volta-se para um
p�blico, muitas vezes iletrado ou semi-analfabeto, para explorar conte�dos e valores do
homem r�stico, j� n�o em estado puro, mas em permanente con-tacto com a vida
urbana. Ele tamb�m, de certo modo, reinterpreta em termos m�gicos ou religiosos os
acontecimentos exteriores � esfera estritamente sertaneja, e que v�o desde a chegada do
homem � Lua at� a descida de Roberto Carlos no inferno. Remeto aqui os interessados
aos bel�ssimos estudos de M�rio de Andrade sobre as dan�as dram�ticas do Brasil e
sobre os cruzamentos culturais da arte do Aleija-dinho. Outra fonte de informa��o e
interpreta��o � a obra de Roger Bastide (v. as refer�ncias bibliogr�ficas finais).

DA UNI�O � CRIA��O

O levantamento, em chave anal�tica, encontrou tr�s conjuntos culturais bem
diferenciados, e aponta, em seguida, os seus cruzamentos: cultura erudita (concentrada
nas universidades), ind�stria cultural e cultura popular. Acrescenta uma quarta faixa,
muito menos uniforme pela sua pr�pria g�nese: a cultura criadora individualizada. Esta
�ltima vive precisamente, mas de modo mais intenso e mais dram�tico, a rela��o
intelectual-sociedade, com todas as conseq��ncias do desen-raizamento e do
desencantamento pr�prios dos sistemas de classes e do consumismo que marcam a vida
de rela��o em nosso pa�s.

337


Foto de Maureen BisiUiat.
' 'O que vive choca. tem dentes, arestas, � espesso.
O que vive � espesso
como um c�o. um homem.
como aquele rio.
Jo�o Cabral de Melo Neto, O c�o sem plumas


Foto de Maureen Bisilliat.
Obras-primas como Macuna�ma, de Mario
de Andrade. Vidas secas, de Graciliano Ramos.
GRANDE SERT�O VEREDAS, de Guimar�es Rosa. e
Morte e vida severina, de Jo�o Cabral de Melo
Neto nunca poderiam ter-se produzido sem que
seus autores tivessem atravessado longa e
penosamente as barreiras ideol�gicas e
psicol�gicas que os separavam do cotidiano ou
do imagin�rio popular.



No sistema de classes regido por um Estado que oscila entre um liberalismo econ�mico
e um autoritarismo pol�tico, a sorte das culturas brasileiras parece, � primeira vista, j�
selada. Estimuladas, repro-duzem-se a cultura universit�ria (tecnicista) e a ind�stria
cultural. Ignoradas, quando n�o exploradas, as v�rias formas de cultura popular.
Absorvidas, at� um limite, as manifesta��es criadoras individuais. Reprimidas, as
formas abertamente cr�ticas em qualquer faixa se pronunciem.
A institui��o da censura � o signo ostensivo que mais preocupa os intelectuais. A este
n�o, cheio de viol�ncia e arb�trio, conv�m acrescentar o sim planejador e impositivo que
tem significado o est�mulo que o Estado oferece ao ensino destinado a reproduzir, pura
e simplesmente, com maior ou menor efici�ncia, o tipo de profissional que o mercado
requer. Esse pragmatismo de curto f�lego, que sacrifica de pronto as Ci�ncias Humanas
e Sociais e os projetos cient�ficos mais desinteressados nas suas v�rias �reas, � �til ao
sistema imperialista quando conjugado com o Estado autocr�tico; para essa alian�a nada
mais inc�modo do que o florescimento de uma cultura t�cnica nacional auto-suficiente
ou de uma cultura cr�tica organizada: uma e outra viriam p�r em risco o triunfo da
tecnologia importada e da ret�rica pol�tica vigente para uso interno.
Vistas as coisas por esse prisma, fica bastante restringida a cren�a na democratiza��o da
cultura brasileira por obra da simples multiplica��o da rede escolar. No m�ximo, poderse-
ia dizer que essa multiplica��o possa repartir mais intensamente um certo modo de
instru��o que, n�o inovando sequer nos setores de t�cnica mais elementar, apenas
transmite a um n�mero maior de crian�as e adolescentes o mundo do receitu�rio a que
nos referimos p�ginas atr�s. A escola fundamental (hoje atando o prim�rio e o gin�sio
antigos) e o colegial deveriam ser, em um regime plenamente democr�tico, uma via de
acesso sempre renovada � Natureza, uma introdu��o larga ao conhecimento do Homem
e da Sociedade, uma ocasi�o constante de desenvolvimento da pr�pria linguagem, como
express�o subjetiva e comunica��o in-tersubjetiva; enfim, um despertar para o que de
mais humano e belo tem produzido a imagina��o pl�stica, musical e po�tica no Brasil
ou fora do Brasil. Este ideal, que forma o ser consciente das conquistas do g�nero
humano, n�o pode ser barateado nem trocado por esquemas inertes ou migalhas de uma
informa��o cient�fica ou hist�rica.

340
Esse ideal deve reger a escola �nica que o Estado democr�tico tem o dever estrito de
proporcionar a todas as crian�as e a todos os adolescentes brasileiros. O Estado
neocapitalista, j� que dificilmente chega a ser democr�tico, n�o pode ser menos que
liberal.
Mas todas essas afirma��es, porque entram no espa�o problem�tico do dever-ser,
acabam constituindo um discurso propriamente pol�tico. Discurso de fins, discurso de
valores. Nem poderia ser de outra maneira. Uma teoria da cultura brasileira ou � um
espelho do sistema, uma duplica��o das suas desigualdades e da sua irracionalidade de
base, ou � um discurso que entra em tens�o com esse mesmo sistema depois de t�-lo


atravessado estruturalmente com os olhos postos na sua transforma��o.
No cora��o desse dever-ser, dessa pol�tica de propostas, aparece o processo cultural na
sua imbrica��o de correntes eruditas, correntes criadoras personalizadas, correntes da
ind�stria e do com�rcio dos bens simb�licos e correntes de express�o popular. Se o
projeto educacional brasileiro fosse realmente democr�tico, se ele quisesse penetrar, de
fato, na riqueza da sociedade civil, ele promoveria a um plano priorit�rio tudo quanto
significasse, na cultura erudita (universit�ria ou n�o), um dobrar-se atento � vida e �
express�o do povo; e, igualmente, tudo quanto fosse uma reflex�o sobre as
possibilidades, ou as imposturas, veiculadas pela ind�stria e pelo com�rcio cultural.
Friso as duas dire��es: uma, de acolhimento e entendimento profundo das
manifesta��es e aspira��es populares; outra, de controle e de cr�tica, ou, positivamente,
de orienta��o das mensagens veiculadas pelos meios que atingem a massa da popula��o.
A principal a��o do projeto educador, tal como se revela admi-ravelmente na teoria e na
pr�tica de Paulo Freire, � levar o homem iletrado n�o � letra em si (letra morta ou letal),
mas � consci�ncia de si, do outro, da natureza. Essa consci�ncia � o verdadeiro
vestibular das Ci�ncias do Homem, das Ci�ncias da Natureza, das Artes e das Letras.
Sem ela, o letrado cair� no mundo do receitu�rio e da manipula��o.
A cultura fundamental deve ser um prolongamento e uma reflex�o do cotidiano. E na
experi�ncia com a terra, com o instrumento mec�nico, com a m�quina, com o seu grupo
de trabalho, com a pr�pria fam�lia, que o homem se inicia no conhecimento do real e do
drama da vida em sociedade, que as disciplinas escolares formalizam, �s vezes
precocemente.

341


A erudi��o e a tecnologia mais moderna n�o tiram, por si s�s, o homem da barb�rie e da
opress�o. Apenas d�o-lhe mais um ' 'meio de vida'', isto �, um meio de defesa e ataque
na sociedade da concorr�ncia.
At� o momento presente, e excetuando algumas conquistas ocasionais, o Estado
modernizante brasileiro tem trabalhado em conex�o com o crescimento capitalista, �s
vezes um passo adiante, intervindo na implanta��o da rede universit�ria, �s vezes um
passo atr�s, n�o conseguindo fornecer �s ind�strias e ao mercado de trabalho o n�mero
ideal de t�cnicos e profissionais que a divis�o de trabalho vai exigindo. Mas, quando se
d� esta �ltima alternativa, o Estado tecno-burocr�tico se desaperta e cede �s entidades
particulares a fun��o de ensinar e formar aqueles profissionais. E de democr�tico
planejador passa, num abrir e fechar de olhos, a liberal capitalista.
Uma filosofia da educa��o brasileira n�o deveria ser elaborada abstratamente fora de
uma pr�tica da cultura brasileira e de uma cr�tica da cultura contempor�nea. E
importante, pois, fazer a descri��o e a interpreta��o daqueles subconjuntos
diferenciados (cultura erudita, de massa, popular, criadora individualizada); e ver como
se in-terpenetram em formas hist�ricas concretas, multiplamente determinadas pelo
contexto econ�mico, pelas rela��es de classes, pelo dinamismo interno dos grupos e, at�
mesmo, pela sensibilidade individual dos criadores e dos receptores das v�rias culturas.
S� nessa altura da an�lise e da interpreta��o hist�rica � que se pode responder �
pergunta-matriz: educar, sim, mas para qual cultura? Presume-se que o estudo pr�vio
tenha dado elementos para responder � outra pergunta, tamb�m pr�via: estamos
educando e sendo educados em qual cultura?

Tratando-se de um projeto democr�tico-socializante a resposta � pergunta pelos fins n�o
deixar� de ser pluralista e o mais abrangente poss�vel. Educar para o trabalho junto ao
povo, educar para repensar a tradi��o cultural, educar para criar novos valores de
solidariedade; e, no momento atual, mais do que nunca, p�r em pr�tica o ensino do
maior mestre da Educa��o brasileira, Paulo Freire: educar para a liberdade.

342
A cria��o cultural ''individualizada"


� relativamente mais f�cil tra�ar as linhas de for�a atuais (ou pro-jet�veis) das faixas
culturais institucionalizadas, como a Universidade, a Igreja, os Meios de Massa, do que
mapear o presente e, mais ainda, o futuro da cultura criadora representada pelos
escritores e artistas.
A literatura, ou a m�sica, ou a pintura, ou o teatro est�o e n�o est�o dentro das
institui��es sociais, na medida em que vivem, ao mesmo tempo, tempos diversos e n�o
raro conflitantes, como o tempo corporal da sensibilidade e da imagina��o e o tempo
social da divis�o do trabalho.
A cria��o de um poema, de um romance, de um quadro, de um drama �,
freq�entemente, resultado de tens�es muito fortes no interior do indiv�duo criador,
tens�es dentre as quais � modelo exemplar o compromisso (bem ou mal resolvido) entre


as for�as an�micas ansiosas por exprimirem-se e a tradi��o formal j� historicizada que
condiciona os modos de comunica��o. A express�o pessoal t a comunica��o p�blica
s�o duas necessidades que acabam regulando a linguagem do criador e situando o seu
trabalho na intersec��o do corpo e da conven��o social.
Nessa luta, a obra � tanto mais rica e densa e duradoura quanto mais intensamente o
criador participar da dial�tica que est� vivendo a sua pr�pria cultura, tamb�m ela
dilacerada entre inst�ncias altas, internacionalizantes e inst�ncias populares. Obras-
primas como Ma-cuna�ma de M�rio de Andrade, Vidas secas de Graciliano Ramos,
Grande sert�o: veredas de Guimar�es Rosa e Morte e vida severina de Jo�o Cabral de
Melo Neto nunca poderiam ter-se produzido sem que seus autores tivessem atravessado
longa e penosamente as barreiras ideol�gicas e psicol�gicas que os separavam do
cotidiano ou do imagin�rio popular.
As contradi��es de nossa forma��o social est�o pontualizadas no romance memorialista
e regionalista de Jos� Lins do Rego e na epop�ia ga�cha de Erico Ver�ssimo. A classe
m�dia e a pobreza suburbana encontraram sua voz no primeiro Dyon�lio Machado e nos
contos de Dalton Trevisan e Jo�o Ant�nio. A viol�ncia burguesa combinada
estrategicamente com o seu oposto e correlato sim�trico, os bas-fonds gr�-finos, fala
pelas narrativas de Rubem Fonseca. O regionalismo n�o

343


est�, como supuseram alguns mal-avisados, t�o morto que n�o seja capaz de renascer
nos romances e contos de Bernardo Elis, �pico de Goi�s, ou de ajustar-se �s atmosferas
de estranheza nas p�ginas s�brias de J. J. Veiga. As pontes continuam lan�adas ou em
constru��o na m�sica de Adoniran Barbosa, de Chico Buarque, de Gilberto Gil, de
Caetano Veloso, de Milton Nascimento, de Geraldo Vandr�, de Clementina de Jesus, de
Edu Lobo, de S�rgio Ricardo e de tantos outros. O teatro de Guarnieri, de Boal, de
Oduvaldo Viana Filho, de Pl�nio Marcos, de Ariano Suassuna tem, apesar das
diferen�as de orienta��o est�tica, realizado a poss�vel media��o entre p�blico culto e
tem�tica, se n�o linguagem, popular. Nas artes do espet�culo (diferentemente da arte da
escrita, de consumo individualizado) fica ainda mais dif�cil falar de cultura erudita
separada da cultura de massa e da cultura popular. A presen�a f�sica, a voz, o gesto, a
procura de uma comunica��o interpelante e provocadora e envolvente produzem uma
forma nova de arte que aspira, no fundo, a superar aquelas barreiras h� tanto tempo
erguidas pela divis�o social.
Para esse universo e, em geral, para todo trabalho criador, o essencial � assumir uma
atitude de respeito e de esperan�a. N�o � o Estado, nem a Universidade, nem a Igreja,
nem a Imprensa, nem qualquer das institui��es conhecidas que dever� encarregar-se do
destino das letras e das artes. O clima natural destas � o da liberdade de pesquisa formal
e de descoberta de temas e perspectivas. A arte tem seus modos pr�prios de realizar os
fins mais altos da socializa��o humana, como a autoconsci�ncia, a comunh�o com o
outro, a comunh�o com a natureza, a busca da transcend�ncia no cora��o da iman�ncia.

REFER�NCIAS BIBLIOGR�FICAS DE APOIO
N�o se trata, aqui, absolutamente, nem de uma Bibliografia sobre os temas, que seria
extens�ssima, nem sequer de uma lista de Livros consultados, mas unicamente de
cita��o de obras de apoio que estiveram imediatamente presentes durante a elabora��o
do ensaio, servindo-lhe de fonte indispens�vel de consulta.

344
Amaral, Amadeu. Tradi��es populares. 2? ed. S�o Paulo, Hucitec, 1976. A primeira edi��o � de 1948, recolhendo
artigos escritos ou in�ditos na d�cada de 20.
Andrade, M�rio de. "O Aleijadinho" (1928). In Aspectos das artes no Brasil. S�o Paulo, Martins.
____Dan�as dram�ticas do Brasil. S�o Paulo, Martins, 1959. 3 vols. Obra p�stuma organizada por Oneyda
Alvarenga, escrita entre 1928 e 1934.
Bastide, Roger. Estudos afro-brasileiros. S�o Paulo, Perspectiva, 1975. Reuni�o de v�rios estudos escritos entre 1944
e 1953.
Bosi, Ecl�a. Cultura de massa e cultura popular. Leituras de oper�rias. Petr�polis, Vozes, 1972.
____' 'Problemas ligados � cultura das classes pobres". In A cultura do povo. Valle, Ed�nio
et alii. S�o Paulo, Cortez e Moraes, 1979Couto
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de 1875.
Cunha, Euclides da. Os sert�es. S�o Paulo, Cultrix, 1972. A primeira edi��o � de 1902.
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Gramsci, Ant�nio. Obras escolhidas. Lisboa, Estampa, 1974.
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primeira edi��o � de 1943.
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Weil, Simone. A condi��o oper�ria e outros estudos sobre a opress�o. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
Xidieh, Oswaldo Elias. Narrativas pias populares. S�o Paulo, USP, Instituto de Estudos Brasileiros, 1967.



POST-SCRIPTUM 1992
A horaj� � tardia, e a op��o entre o bem e o mal bate-nos � porta.


Norbert Wiener
O ensaio "Cultura brasileira e culturas brasileiras" foi redigido entre 1979 e 1980.
Passados doze anos da sua elabora��o, preferi deix�-lo quase intacto sem apor emendas
de fundo que pareceriam remendos novos em roupa usada. Que ao menos sobrasse o
car�ter hist�rico do seu testemunho.
Mas a situa��o que aquelas p�ginas descreviam mudou, em parte, e conv�m repensar
alguns aspectos em que as altera��es foram significativas.
Mantendo firme o eixo do texto, que girava em torno da qualidade plural da cultura,
creio que se possa hoje ir um pouco adiante na an�lise diferencial dos conjuntos ent�o
examinados.
Com os olhos fitos principalmente na cultura letrada, universit�ria ou n�o, e em amplos
setores da comunica��o de massa, o observador atual percebe uma tal ou qual apar�ncia
de desintegra��o, que o gosto dos r�tulos vem atribuindo � p�s-modernidade vigente
nas sociedades capitalistas a partir dos meados dos anos 70.
Desintegra��o � a palavra; mas em qual sentido vem aqui adotada? Para come�ar,
fa�amos um exerc�cio de mem�ria. Evoquem-se as abordagens sistem�ticas e os
conceitos fortes e bem travados que presidiam � leitura dos processos simb�licos at� os
anos 60. Sociologia weberiana, funcionalismo, marxismo, estruturalismo e semiologia
di


547


vidiam entre si as convic��es dos intelectuais dentro e fora da Universidade. Os
cientistas sociais escudavam-se em modelos que conduziam as suas observa��es
particulares � unidade, � continuidade, ao centra-mento da perspectiva; em suma, a uma
interpreta��o coerente dos significados.
O que ter� acontecido com esses esquemas de unifica��o e de fechamento do sentido?
Ca�ram ou v�m caindo sob suspeita de abstra��o, quando n�o de autoritarismo. Um
exemplo ilustre: Roland Barthes, saudoso talvez do anarco-surrealismo ou enfarado do
seu longo namoro com o m�todo estrutural, disse em aula magna que a L�ngua,
enquanto sistema, � "fascista". E na esteira dessa condena��o provocadora (com sabor
de maio de 68) receberiam o mesmo lab�u a Ci�ncia, a Universidade, a Escola em geral,
para n�o falar da Empresa, da Igreja e do Estado, institui��es que outras filosofias j�
haviam contestado. Mas o que Barthes e logo depois os seus repetidores no mundo
inteiro estavam afrontando era, em �ltima inst�ncia, a id�ia de sistema com tudo o que
ela implica de uno, completo, vinculante.
O olhar do observador cultural vaga hoje pelos reinos do m�ltiplo, do ambivalente, do
esparso, do aleat�rio, do centr�fugo. Uma quest�o de nova sensibilidade, de novo ethos?
Continuemos, por�m, no plano descritivo. A Antropologia deste final de mil�nio abeira-
se, dentro e fora do Brasil, das minorias, da diferen�a e do at�pico, e o seu prazer maior
seria desafiar a vetusta certeza aristot�lica segundo a qual n�o existe ci�ncia do
individual, individuum est ineffabile. Aqui o magist�rio aliciante de Foucault se mostra
eficaz e ub�quo tanto nos c�rculos universit�rios quanto nos seus subprodutos
jornal�sticos. A Sociologia universit�ria (ou sont les neiges d'antan?), esteada em
classes e fun��es, modelos e tipos que tudo amarravam, jaz sem galas � m�ngua de
assunto que lhe seja peculiar. O que dela restou vai sendo filtrado ad hoc pela Hist�ria
Social, que vivia como sua prima pobre at� os anos 60, mas agora cresce e se dilata,
embora � custa de um certo emiettement de pesquisas documentais e orais, conforme
advertiu aos seus leitores um perplexo editorial da revista Annales.
O ideal de uma Hist�ria das Sensibilidades propiciou uma decidida virada para o estudo
dos fen�menos em que a esfera do institucional se encontra com as puls�es do sujeito:
terreno movedi�o explo


348

rado at� bem pouco pela Psicologia Social. Faz-se hist�ria dos sonhos, das fantasias, das
compuls�es, das pervers�es sexuais, dos fetichismos, dos bruxedos e das suas
repress�es desde a aurora dos tempos modernos. E for�a-se, o quanto e at� onde se
pode, o limite que antes estremava, e ora aproxima, a cr�nica hist�rica e a prosa de
fic��o.
A queda dos muros que separavam as Ci�ncias do Homem estimulou a ambi��o de
forjar uma nova escrita que se comporia, em aparente paradoxo, de microan�lises
pontuais e prazerosa fluidez conceituai: algo que lembra aquela emiss�o de notas
descont�nuas, cada uma de per si contingente, que j� foi vezo dileto do impressionismo


na cr�nica liter�ria do s�culo xix. Mutatis mutandis, porque n�o h� retornos no sentido
cabal do termo.
Mas no n�vel instrumental, isto �, no campo dos meios de que o saber disp�e, quanta
coisa mudou! A expans�o das t�cnicas inform�ticas, que passaram a reger n�o s� as
comunica��es como tamb�m um sem-n�mero de opera��es da ind�stria e dos servi�os,
aparece hoje como o car�ter mais saliente da reprodu��o cultural. No Primeiro Mundo
fala-se correntemente de erap�s-industrialpara dizer de um novo tempo de aparelhagem
baseada na computa��o e na automa��o. Cibern�tica, Inform�tica e Rob�tica entram
como vari�veis de peso em todo contexto que se preze de p�s-moderno.
Na pr�tica da erudi��o e da pesquisa cient�fica s�o not�rios os efeitos considerados
positivos das novas t�cnicas. Os informes s�o procurados, obtidos, fixados, dispostos,
indexados, combinados, multiplicados e retransmitidos, numa palavra, processados,
com uma rapidez extraordin�ria, o que facilita todo tipo de capta��o e arranjo de dados
em qualquer ramo do conhecimento.
A era da reprodutibilidade t�cnica, anunciada no c�lebre ensaio de Walter Benjamin,
estaria atingindo o cl�max? Tudo indica que os meios eletr�nicos continuar�o a ser
acionados at� os confins extremos da robotiza��o pela qual se atribuiriam � ' 'm�quina''
(hesito em usar esta velha palavra) as fun��es ativas e corticais da inven��o e da
organiza��o do pensar. Atualmente, at� onde me consta, os computadores, que os
franceses chamam ordinateurs, s�o eficazes reatores, pois recebem e executam
programas que o engenho humano lhes prop�e. Mas... a fic��o cient�fica j� chegou l�.
Se � verdadeiro dizer, seguindo a "raz�o p�s-moderna", que uma quantidade maior de
informa��o obtida em menor lapso de tempo

349


se transmutaria, a certa altura, em melhor qualidade do processo intelectual envolvido,
ent�o h� deveras a esperan�a de que os usu�rios peritos nos meios ultramodernos
produzam obras de ci�ncia e arte cada vez mais belas, profundas e complexas n�o s� na
sua prepara��o e apresenta��o material como tamb�m pelo seu valor cognitivo e
expressivo.

Sara vera gloria? I posteri diranno.

Alessandra Manzoni
Por enquanto, nas institui��es de ensino e pesquisa tidas em alto conceito e nas ag�ncias
mais sofisticadas de ind�stria cultural, os progressos trazidos pela inform�tica se
resumem na agiliza��o dos meios de entesourar e transmitir signos. Da� prov�m os
efeitos de ordem, precis�o, nitidez e velocidade que s�o percebidos e louvados como
sinais de moderniza��o, afinal coincidentes com a p�s-modernidade alegada. Tais
efeitos provocam a impress�o de que o n�vel cultural do pa�s est� ascendendo, ao menos
nas suas faixas internacionalizadas.
Seria mais justo afirmar que o andamento (dito timing) dessa cultura vem-se acelerando
desde os anos 70 e pondo-se em sincronia com o tempo norte-americano, europeu
ocidental e nip�nico. Quanto ao problema substantivo da qualidade, que remete �
quest�o crucial dos valores, sabe-se que as coisas s�o um pouco mais complexas.
O que motiva o trabalho do conhecimento � a vontade de valor. Por essa express�o
entendo as aspira��es que levam os indiv�duos e os grupos � procura do saber e � sua
comunica��o. S� o que vale, vale a pena. Os in-formes em si e por si mesmos n�o
produziriam uma teoria nova do real, ou daquela zona do real que interessa a algu�m
perscrutar. S� o sentimento do valor guia o esfor�o de compreender os homens e as
coisas, elege os temas, bebe na fonte os dados originais, desperta �reas amortecidas da
mem�ria, aviva as brasas ocultas sob a cinza do vivido, agu�a a percep��o dos liames
formais e quase compele a mente ao desenho de certas conclus�es. (E, para que a
ci�ncia resultante n�o regrida a simples m�scara do interesse que a motivou, faz-se
ainda necess�ria a vig�ncia de um metavalor, a vontade de verdade, que torna o sujeito
honesto em face do seu objeto.)

350

Nessa ordem de reflex�es, a pergunta pela qualidade da cultura letrada recente n�o
incide tanto na efic�cia vis�vel dos meios eletr�nicos em uso, quanto na identifica��o
dos valores e das id�ias mestras que est�o sendo objeto de desejo dos consumidores das
novas tecnologias. Qual seria, no plano axiol�gico, o equivalente do mosaico de tantas e
tantas informa��es t�o celeremente estocadas e reproduzidas? Minha resposta � mera
tentativa: A dispers�o emp�rica de signos e temas corresponde a vontade e ao discurso
do descentramento.

A cultura dita superior e os seus canais de divulga��o vivem hoje uma dissipa��o
in�dita de �cones, �ndices e s�mbolos, o que d� a impress�o de ciclone, ou de turbilh�o,
de resto j� experimentada pelas vanguardas futuristas da Segunda Revolu��o Industrial.


De onde, a primeira equa��o que proponho:
/w-moderno = plus-mo�cmo
Na hora da interpreta��o dessa bateria de est�mulos imag�sticos e sonoros recorre-se, �s
vezes sem plena consci�ncia do processo, a uma singular mesmice de id�ias.
O efeito-dispers�o vem da pletora de objetos de prazer e de interesse que o mercado
lan�a ao homem culto e ao consumidor de bens simb�licos sequioso de novos assuntos.
A massa de bits dispon�veis sobre um n�mero alto de mat�rias explor�veis gera um
cogumelamento de sub-�reas de especializa��o. Folhear uma revista de difus�o
cient�fica, o cat�logo de uma grande editora americana ou francesa, ou o elenco de
disciplinas e eventos de uma universidade moderna produz vertigens e depress�es
cognitivas. A informatiza��o urge ent�o como rem�dio para aliviar a sensa��o de caos
que a sarabanda de mensagens acorda at� no mais glut�o dos leitores; ao mesmo tempo,

o uso do computador funciona como um convite para acrescer, ad infini-tum e
adlibitum, programas, acervos, mem�rias e arquivos. A Babel exige alerta, esp�rito de
reordena��o constante; o qual esp�rito, por sua vez, incita os babel�nios a constru�rem
novos patamares cada vez mais amplos para elevar a sua torre eletroinform�tica. O c�u
� o limite. O m�ltiplo e o unificado tentam ultrapassar um ao outro em uma corrida
aparentemente sem ponto de chegada.
351


O espa�o-tempo do consumidor culto satura-se com doses crescentes de polui��o
informativa. O aspecto patol�gico do processo resulta da impot�ncia de se dar forma
intelig�vel �s demasias de conte�do que proliferam como c�lulas avulsas no tecido da
vida mental contempor�nea. O receptor, cujas resist�ncias internas nem sempre s�o
bastantes, pode ficar literalmente intoxicado de signos-imagens, signos-palavras,
signos-opini�es, signos-ju�zos, signos-est�mulos...
Trata-se do mercado congesto de uma civiliza��o que produz por produzir ou, mais
exatamente, produz para que possam sobreviver os seus mecanismos de propaganda e
venda de imagens e s�mbolos. O profissional, t�cnico ou liberal, que se v� imerso neste
m�vel contexto, onde se alarga a olhos vistos a dist�ncia entre informa��o e disciplina
intelectual, defende-se na trincheira da sua especializa��o, n�o raro a pre�o de uma
in�pia cultural e pol�tica que pode beirar a idiotia.
Um engenheiro de produ��o assaz renomado entre os seus pares dizia-me com o
desplante c�ndido dos n�scios que a psican�lise � a �ltima supersti��o do s�culo xix,
opini�o confortada por uma doutora em comportamento sexual de ratos engaiolados, a
qual asseverava que Freud escreveu contos para bab�s ansiosas. No outro canto do sal�o
(era uma festa acad�mica), uma sisuda titular de Semi�tica lan�ava do alto dos seus
sememas um an�tema contra as Ci�ncias Exatas que, a seu ver, n�o passariam de h�beis
arranjos bin�rios. Mais de um jornalista mal egresso da sua p�s-gradua��o decretava o
ingl�rio passamento de Hegel e Marx atribuindo a causa mortis de ambos a golpes de
automa��o. Em geral, uns e outros abonavam-se com cita��es de um autor japon�s tido
por genial que j� constatara o fim da Hist�ria, o �bito das ideologias e a entrada na era
p�s-ut�pica.
Os exemplos t�m ar caricato, mas � pelos extremos que o estilo de uma �poca
aparentemente sem estilo se mostra com maior veracidade.
O discurso sobre este saber em migalhas e sobre as fraturas que cortam o terreno da
cultura superior levou-nos a contemplar uma situa��o espiritual de descentramento que
se poderia chamar tamb�m de recusa da totalidade. Esta atitude tende, pela sua repeti��o
tantas vezes inconsciente, a virar monotonia ideol�gica.
Trata-se de uma esp�cie nova e estranha de simplifica��o mental que conviria analisar
de perto, pois nada tem a ver com os modelos de coes�o sem�ntica que a precederam.

352

At� os anos 60 a unidade te�rica das Ci�ncias do Homem fundava-se no suposto de que
os fen�menos sociais e simb�licos se enuclea-vam em torno de estruturas. O marxismo
nos dava uma explica��o sist�mica que, come�ando pelas rela��es de produ��o,
delineava um esquema de classes em conflito. Era tang�vel a inteireza de vis�o do
mundo que da� decorria soldando uma Antropologia evolucionista com a cr�tica da
Economia Pol�tica cl�ssica, e abrindo caminho para uma pr�xis transformadora, tudo �
luz do materialismo hist�rico. Por sua vez o estruturalismo, que avan�ou pelos anos 70,
relegava entre par�nteses os acidentes diacr�nicos, n�o escondia o seu desd�m pelas


veleidades subjetivas, e n�o s� mantinha como ossificava a imagem de um Sistema
composto de elementos ao modo dos fonemas e mor-femas recortados pela Ling��stica
estrutural. Os elementos valiam conforme a sua posi��o na sintaxe do objeto, fosse este
um totem australiano ou um poema sibilino de Mallarm�.
Em ambos os casos vinha � tona a id�ia de um uno todo internamente articulado, s�
acess�vel ao rigor cient�fico, o que desqualificava leituras de sabor aleat�rio ou
impressionista.
Hoje, ao contr�rio, � o desejo do descont�nuo e do descentrado, com suas figuras
correlatas, que d� um ar de fam�lia �s express�es culturais. O pendor para o informe e o
at�pico, para o desgarrado e o eventual, para o mutante e o vol�til, trai um gosto difuso
que se assume como j� n�o mais moderno e, da�, � falta de melhor termo ou de
imagina��o conceituai, p�s-moderno.
O arb�trio, o capricho autocomplacente, o trocadilho que surte de acasos fon�ticos, a
chulice, a mistura de registros tomada como um valor em si e o alheamento de qualquer
v�nculo epist�mico ocupam o lugar das doutrinas abrangentes e das certezas positivas
ou dial�ticas. H� teses universit�rias que s�o fieiras de alus�es e cita��es: as melhores
padecem de uma erudi��o tur�stica e carente de nexos l�gicos; as piores fazem
concorr�ncia ao samba do crioulo doido. N�o poucos romances se exibem autoencomiasticamente
como pastiches e colagens estil�sticas. Um artigo da grande
imprensa ou uma not�cia de telejornal apresenta como verdade objetiva a soma
aritm�tica de duas opini�es que, a rigor, apenas mencionam aspectos d�spares de uma
dada situa��o. O princ�pio, em si razo�vel, de que � preciso conhecer mais de um ponto
de vista degrada-se quando se concede o mesmo peso � vers�o do criminoso e � da
v�tima, ou � palavra do c�mplice

353


e � do queixoso. O interesse bruto das partes � aceito, sem media��es, como testemunho
v�lido a ser entregue a massa inerme dos leitores e espectadores. Barateia-se o ju�zo de
verdade confundindo-o com p pin�amento de detalhes inflados e subtra�dos ao seu
contexto de significa��o. A pressa de informar de qualquer modo impele o jornalista a
desistir precocemente de achar um crit�rio que fa�a justi�a � trama dos fatos e das
palavras, opera��o que demandaria trabalho e paci�ncia. Para n�o ' 'perder tempo''
renuncia-se a habitar o tempo da reflex�o, o ir-e-vir das partes ao todo, e deste �s partes,
alvo digno por excel�ncia do esp�rito cient�fico. Quem testar� a honestidade do
simulacro?
Parece haver um certo ethos recorrente na cultura atual que en-forma h�bitos cognitivos,
est�ticos, �ticos e pol�ticos. Sobre os �ltimos, mat�ria entre todas ingrata, � escusado
insistir: quem acompanhou pela TV as manobras eleitorais da campanha presidencial de
89 e, logo depois, o marketing dos planos e contraplanos econ�micos, j� recebeu uma
imagem clara do que vem sendo,, no circo pol�tico, a "p�s-modernidade brasileira"; e,
se for dotado de veia c�tica, conr cluir� qaeplus �a changeplus c 'est Ia m�me chose,
frase que ao cabo dilui a consist�ncia de todos os r�tulos.
' 'Em pol�tica, o que parece �'', dizia o finado ditador portugu�s Ant�nio de Oliveira
Salazar, que ningu�m suspeitaria de p�s-moderno avant Ia lettre.' Dir�amos, antes, que
tal senten�a achada na boca de um homem sabidamente conservador seria maquiav�lica,
jesu�tica, barroca... Mas entrevemos com desconforto alguma semelhan�a entre aquele
seu ju�zo e a cena contempor�nea. O grande teatro do mundo das cortes de Viena, Madri
e Versailles n�o passava de ing�nuo trompe-l'oeil st comparado ao triunfo ultramoderno
do simulacro. Agora sim, o que parece �, ou, pelo menos, tem de ser. A recente Guerra
do Golfo projetou-se nos lares do mundo inteiro como um espet�culo fe�rico de video
game. O fulgor dos m�sseis explodindo nos c�us de Bagd� impediu que o horror f�sico
da sangueira, que � a verdade nua da guerra, fosse visto por bilh�es de espectadores. O
planeta virou um tel�o descomunal (atente-se para o uso do termo cen�rio entre
pol�ticos e economistas) onde a antiga arte de aparecer foi potenciada pelos meios
formidandos da comunica��o de massa.
Se assim �, por que insistir na denomina��o p�s-moderno aplicada � atual ind�stria das
apar�ncias? Afinal, n�o se trataria apenas

354

da exaspera��o de certas tend�ncias do capitalismo e do Estado modernos j� descritas e
deploradas pelos fil�sofos da Teoria Cr�tica? Ben-jamin, Bloeh, Horkheimer e Adorno
j� n�o teriam posto em relevo com um misto de agudeza e melancolia os tra�os de
aliena��o, des-cartabilidade, individualismo c�nico, apatia pol�tica, preval�ncia do
imediato, consumismo, brutalidade fria no trato das rela��es er�ticas, indiferen�a
pesada pela quest�o da verdade � temas que M�nima moralia ea Dial�tica da
Ilustra��o versaram luminosamente? Os tempos recent�ssimos disporiam t�o-s� de mais
recursos t�cnicos para multiplicar a ocorr�ncia desses comportamentos em escala


inimagin�vel nas d�cadas de 30 e 40.
Chamaram-lhes, por isso, apocal�pticos. Vieram depois os integrados, com Marshall
McLuhan � frente. Com o tempo a pol�mica arrefeceu nos c�rculos do Primeiro Mundo
anestesiados pelas ondas de crescimento dos anos 70 e 80 e pelas sedu��es do
neoliberalismo. Mas o equil�brio desta civiliza��o plus-modema. parece ainda prec�rio.
Em um largo e profundo movimento de autodefesa, a intelig�ncia que ainda n�o
renunciou � possibilidade de compreender o todo vem agindo dialeticamente, n�o se
importando em parecer defasada com a corrida geral pelos meios desvinculados dos
seus fins. E aqui se formula uma segunda equa��o que traz em si o trabalho da
negatividade:
p�s-modetno = anti-modemo
A revolu��o mundial do verde, que tomou impulso precisamente na d�cada de 70,
radicaliza-se contra os efeitos da industrializa��o cega e suja. Three Miles Island e
Chernobyl foram cat�strofes de alta visibilidade, mas n�o piores do que a dissemina��o
do lixo at�mico, as manchas �cidas, o efeito estufa, o envenenamento das �guas, o risco
dos agrot�xicos, o inferno das megal�poles.
A "modernidade" da agress�o ao ambiente suscita protestos em todo o planeta, e a
esperan�a de que uma ind�stria limpa venha substitu�-la ainda � remota. Os recursos
n�o renov�veis da Terra continuam a ser dissipados e, nesse particular, a consci�ncia
dos povos pobres d� um tom dram�tico ao debate que o Norte j� n�o pode igno


355


rar. A dial�tica da coloniza��o encontra aqui um dos seus desdobramentos de longo
alcance.
H� alguma coisa de inquietante e promissor sob os fogos dos embates ecol�gicos. E a
vontade de instaurar um conv�vio honesto entre a sociedade e a natureza. P�e-se em
d�vida a tradi��o puramente er-g�tica da raz�o evolucionista que prega o dom�nio de
todos os seres vivos pelo Homo faber. Os ambientalistas v�em mais longe que os
produtivistas, e pedem ao capital e � tecnocracia que parem para pensar. A linha do seu
horizonte persegue o que Simone Weil exigia da cultura do s�culo XX: que instaurasse
um novo pacto do homem com o universo que o rodeia e o constitui. Entende-se o
anticonsumismo austero professado pelos cr�ticos do desperd�cio obsceno que as classes
altas ainda cometem, e que amea�a arruinar a casa de todos. A pol�mica que o relat�rio
preparado para o Clube de Roma {The li-mits ofgrowth, MIT, 1972) provocou ainda n�o
foi interiorizada pelos agentes da superprodutividade.
Uma nova ci�ncia, para qual a �tica n�o � uma palavra v�, uma nova tecnologia e novas
pol�ticas p�blicas j� est�o surgindo estimuladas por essa consci�ncia que em alguns
casos chega tarde demais.
Assim, o que o />/#*-moderno desintegra na sua indiferen�a pela totalidade, o
antimo�ctnisxz. tenta recuperar. O que o avan�o da ra-tio instrumental continua a
desunir (separando corpo e alma, economia e �tica, meio e fim), uma nova mentalidade
centrada na consci�ncia do mundo da vida se esfor�a por reimergir no fluxo da
experi�ncia.
Se o projeto da modernidade ficou � na hip�tese de Habermas � ainda inconcluso,
logo aberto e pass�vel de diferencia��es, ent�o ser� uma alegre tarefa da mem�ria
rastrear no pensamento que se formou da Renascen�a �s Luzes uma tradi��o "moderna"
de equil�brio entre Homem e Natureza, indiv�duo e sociedade. Leonardo, Montaig-ne,
Vi�o, Montesquieu, Rousseau, Goethe, Schiller, Humboldt...
Uma civiliza��o que foi capaz de sustentar, em meio a lutas fra-tricidas e em pleno surto
feroz do capitalismo, o ideal dos Direitos do Homem e do Cidad�o; e que conseguiu
harmonizar, mediante a inven��o da arte, a paix�o libert�ria e as regras imanentes da
forma nas sinfonias de Beethoven e nos poemas de Blake; e que pensou o destino do ser
humano com a densidade e a beleza do Fausto, de Guerra e paz e dos Irm�os
Karamazov: eis um passado que n�o se encontra

apenas atr�s de n�s, mas dentro de n�s. � o que o homem de hoje pode lembrar sempre
que est�o em jogo a sua identidade e a sua dignidade. Neste sentido, a cultura
contempor�nea est� livre para escolher as suas matrizes, as suas estrelas-guia. O ato da
escolha se imp�e: aquele "escolher a escolha" que S�ren Kierkegaard definia, no Aut
Aut, como o primeiro passo da exist�ncia �tica fora da qual o tempo do sujeito se escoa
pelo ralo da curiosidade l�bil e da desconversa. E preciso escolher. Vivre n 'estplus qu
'un stratageme, dizia Louis Aragon em um dos poemas de Le cr�ve-coeur. Da tradi��o


de modernidade s� deveria interessar o que aponta para algum sentido que aproxime
inteligentemente as coisas e os signos, que fa�a habit�vel o planeta, que torne feliz (ou,
pelo menos, digno) o conv�vio entre os homens.
A p�s-modernidade que aceita o del�rio do consum�vel e do descart�vel, do imediato e
do competitivo, n�o tem recursos mentais e morais para enfrentar a dissipa��o dos bens,
a disparidade das rendas, o desequil�brio dos poderes e status. A recusa ideol�gica de
olhar para o todo natural-humano, que nos constitui e nos convida a ser-no-mundo, pode
dar-se ares de mod�stia epistemol�gica (oxal� fosse); mas, a longo prazo, quem a
sustenta como programa de pensamento e a��o ir� perdendo todo crit�rio de valor, e se
ver� c�mplice das for�as da desintegra��o e da morte. Diz o povo que o peixe fora
d'�gua come�a a apodrecer pela cabe�a.
Levar adiante certas an�lises pacientes da Fenomenologia seria provavelmente uma
atitude salutar hoje, depois que nos livramos das redu��es do marxismo vulgar e do
evolucionismo linear. Essa op��o n�o significa que a intelig�ncia deva submergir no
Lethes dos desme-moriados, pois j� se descobriu, de novo, que Mnemosyne � m�e das
musas, e que o futuro se desentranha das leituras do mundo que herdamos dos que
pensaram e agiram antes de n�s. Sinto que muitos desejariam livrar-se do pesadelo da
Hist�ria, seguindo ao p� da letra o lema radical de Nietzsche. N�o lhes faltam raz�es.
Entretanto, tamb�m aqui se faz preciso escolher. Qual passado lan�ar fora do barco para
alivi�-lo de um peso morto? E qual passado eleger como lastro bastante para que a nave
resista �s insol�ncias da intemp�rie?
H� um p�s-moderno que empurra o modernismo de ontem e anteontem a um grau
hiperb�lico; e h� um p�s-moderno que rejeita os efeitos traumatizantes da raz�o
instrumental que um fil�sofo ale


357


m�o irado chamou (no bicenten�rio da kantiana Cr�tica) de raz�o c�nica.
As duas equa��es propostas formam um sistema contradit�rio e simult�neo:
P�s-moderno = plus-moderno P�s-moderno = anti-moderno

P�S-MODERNO = PLUS-MODERNO

At� mesmo um leigo em Ci�ncias F�sico-Matem�ticas sabe que a evolu��o da
Inform�tica e da Rob�tica s� se fez vi�vel em continuidade com as pesquisas e as
descobertas da Estat�stica e da Eletr�nica que se v�m desenvolvendo desde os meados
do s�culo xrx. Foram as necessidades de grandes estados como o Imp�rio Brit�nico, a
R�ssia dos czares e os Estados Unidos que solicitaram, para a apura��o de censos e
depois com fins militares, uma tecnologia capaz de lidar com grandes n�meros. Durante
a �ltima Guerra Mundial, armaram-se os primeiros computadores. Nesses mesmos anos,
Norbert Wiener preparava a sua obra-prima, Cibern�tica. Mas os desdobramentos da
Teoria da Informa��o e os usos maci�os do hardware e do software s� se generalizaram
a partir de 70. De onde, a impress�o de novidade absoluta que justificaria a atribui��o
de /w-modernidade a um tipo de ind�stria que �, rigorosamente, ultramodemo.
L�-se na edi��o para grande p�blico de O uso humano de seres humanos de Wiener
(1950):
A tese deste livro � a de que a sociedade s� pode ser compreendida atrav�s de um
estudo das mensagens e das facilidades de comunica��o de que disponha; e de que, no
futuro desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunica��o, as mensagens
entre o homem e as m�quinas, entre as m�quinas e os homens, e entre a m�quina e a
m�quina, est�o destinadas a desempenhar papel cada vez mais importante.
Uma previs�o cuja veracidade o nosso cotidiano de 1992 comprova a cada momento.

358

As tecnologias de ponta s�o o resultado de esfor�os ingentes de cientistas e t�cnicos
que, ao longo dos �ltimos quatro s�culos (desde Galileu, pelo menos), n�o cessaram de
sondar as propriedades e as aplica��es da mat�ria e da energia, termos que ainda se
usam, por for�a de h�bito, apesar de todos os impasses te�ricos da ci�ncia
contempor�nea. O que ter�amos de novo, nas �ltimas d�cadas, em termos de �nfase
cultural? A t�nica vem incidindo nos processos de comunica��o e de linguagem;
primazia que contribuiu para envolver os cientistas sociais, os artistas e os escritores
que at� meados deste s�culo viviam, em geral, de costas para as inova��es tecnol�gicas.
Os �xitos da Inform�tica e da Cibern�tica constru�ram uma ponte de dupla m�o entre as
Ci�ncias F�sico-Matem�ticas, em particular a Eletr�nica, e os estudos centrados nos
sinais de que a Ling��stica e a Semi�tica s�o o fulcro. As artes voltadas para o grande
p�blico, a M�sica e o Cinema e, naturalmente, o ve�culo de comunica��o por excel�ncia
do mundo atual, a televis�o, interagem com as t�cnicas inform�ticas, o que lhes d�,
formalmente, um modo de aparecer ultramoderno. N�o foi por acaso que empreguei o
adv�rbio formalmente; a racionaliza��o extrema com que os meios eletr�nicos
trabalham hoje as mensagens que lhes s�o propostas nos faz lembrar que as primeiras


m�quinas de calcular do Ocidente nasceram sob o signo da matem�tica cartesiana:
Pascal e Leibniz foram os seus criadores e ambos o fizeram no contexto do
racionalismo cl�ssico que teme as paix�es e a imagina��o como loucas da casa. A
racionaliza��o dos computadores e dos sintetizado-res � filha de uma ci�ncia num�rica,
ordenadora, calculadora, em suma, formalizadora. O paradoxo, que � afinal a verdade
do mundo contempor�neo, reside no fato de que os meios de massa ultramoder-nos s�o

o ve�culo apropriado para emitir as mensagens mais irracionais, em que todas as paix�es
(e sobretudo as mais desregradas e infa-mantes) e todos os del�rios da imagina��o se
manifestam com viol�ncia n�o raro energum�nica. A dial�tica do racionalismo cl�ssico
segue como uma sombra a dial�tica das Luzes. A demente estertora quando todas as
celas s�o igualmente quadradas. Abstra��o na t�cnica: imedia��o da vontade. A
passividade da m�quina estimula e d� vaz�o ao mais grotesco voluntarismo. Fa�o o que
quero porque a m�quina � eficiente, n�o pensa e s� obedece aos meus comandos.
Quando a raz�o � automatizada, s� consegue reiterar as pr�prias regras intestinas; ent�o,
a vontade, que a domina, degrada-se em ve359



leidade e n�o encontra, no discurso instrumental, argumentos que a esclare�am e
detenham os seus gestos de capricho. Essa liberdade abstrata se cr� onipotente e, como
temia Hegel, pode cometer qualquer crime; e as raz�es que alega para faz�-lo parecem
racionaliza��es de um delinq�ente.
Pascal, visitado pela gra�a, mudou de rumo: depois de suas inven��es geom�tricas e
mec�nicas perseguiu a imagem de um ser humano que, para ser humano, n�o fosse ni
ange ni bete, nem puro esp�rito nem pura mat�ria, e advertira, sagaz: quem quer fazer-se
de anjo, vira besta. O c�rebro, quando calculador solit�rio, � a sede de uma ordem
amea�adora: racional e obtusa, d�cil e perigosa como os aut�matos. Pascal ainda, com a
simplicidade dos esp�ritos livres: "Os grandes pensamentos v�m do cora��o".

P�S-MODERNO = ANTI-MODERNO

' 'A hora j� � muito tardia, e a op��o entre o bem e o mal bate-nos � porta.'' Assim fecha
Norbert Wiener o seu livro pioneiro sobre a automa��o.
O verdadeiro cientista tamb�m nos insta a escolher. N�o foi por acaso que se instaurou,
no cerne da intelig�ncia dos anos 70, uma cultura de resist�ncia, a que j� me referi no
ensaio sobre as variantes culturais no Brasil. A resist�ncia prossegue apesar dos altos e
baixos conjunturais. Meio ambiente, Direitos Humanos, Democracia como valor
substantivo, Desarmamento, Renda M�nima universalizada... Dir-se-ia que a luta para
salvar as rela��es fundamentais entre o homem e a natureza, o homem e o homem,
originou-se de uma rea��o interna �s sociedades industriais contempor�neas que emitem
anticorpos contra a patologia da moderniza��o.
Seria este antimodernismo o impulso da boa negatividade contra a m� positividade que
produziram os donos do capital e do poder? A cultura de resist�ncia se v� a si mesma
como rea��o n�o reacion�ria. Ela combate para que o Homo sapiens do terceiro mil�nio
n�o pague com a doen�a, a sujeira, a desintegra��o e a morte o pre�o de um crescimento
cego e desigual entre os povos e no bojo de cada forma��o nacional.

360
A ' 'modernidade'' do s�culo XX que se desviou por aqueles caminhos que foram ter nos
campos de concentra��o nazistas, no sacrif�cio de Hiroxima pela bomba at�mica, nas
ditaduras do Leste, na Guerra do Vietn�, na Guerra do Golfo, decorreu de uma
combina��o de vontade de poder e uso de tecnologias novas indiferentes aos valores da
humaniza��o e da socializa��o. S� nos resta denunciar a in-consci�ncia feroz que se
ocultou sob a fachada de racionaliza��o.
Uma raz�o mais alta, que s� opera a partir de um certo grau de integra��o, e s�
recomenda o agir tendo em vista a salvaguarda de valores universais, poder� levar
adiante o que foi o ideal de verdade constru�do por homens como Leonardo, Galileu,
Newton e Einstein. Para um f�sico da tempera de Amp�re a palavra cibern�tica
designava uma arte que, segundo o �timo grego (kybem�tes: piloto), deveria ' 'assegurar
a todos os cidad�os a possibilidade de fruir plenamente dos benef�cios deste mundo".1
A cultura de resist�ncia, porque n�o desiste de pensar as partes como express�es de um


todo, olha pela al�a da mira o mesmo alvo de Amp�re.

BRASIL 92

Quem j� n�o ouviu dizer em tom de esc�rnio que as elites brasileiras se acreditam
engolfadas no p�s-moderno sem ter sequer atravessado a plena modernidade? As
burguesias perif�ricas continuariam ent�o sofrendo de um incur�vel provincianismo no
momento mesmo em que afetam acertar o passo com os centros do Primeiro Mundo.
Mas n�o se ocultaria talvez um sutil preconceito, que se ignora a si mesmo, nessa
propens�o de ver o nosso pa�s mental como substancialmente retardado e, da�, medir
cada conjuntura nacional pelo metro do intervalo que, necessariamente, nos distanciaria
dos pa�ses avan�ados?
A petrifica��o do conceito de col�nia n�o seria respons�vel por essa obsess�o do
descompasso que �s vezes empana a nitidez do olhar? Metr�pole e col�nia: haveria
sempre e for�osamente duas linhas temporais paralelas � uma, longa, que j� fez um
percurso consider�vel em dire��o ao desenvolvimento, merecendo, portanto, o selo da
modernidade; e a outra, mais curta, cujo ritmo lento a impediria de alcan�ar jamais a
extens�o da primeira?

361


Antes de tentar responder a essas indaga��es embara�osas, mas capitais, conviria ler o
que S�rgio Solmi, o prefaciador da edi��o italiana dos M�nima moralia, diz do seu "caso
nacional", lembrando que a It�lia tamb�m se industrializou tardiamente em rela��o �
Inglaterra e � Fran�a:
O mundo que Adorno nos descreve � a moderna sociedade americana; e o termo de
compara��o de que disp�e � a Alemanha nazista ou pr�-nazista. O ambiente em que
vive, quando redige M�nima moralia, � o da imigra��o alem� nos Estados Unidos. E
preciso ter presentes essas circunst�ncias para uma avalia��o integral do seu livro. O
nosso pa�s apresenta, em mais de um aspecto, um panorama muito diferente do que est�
sob os olhos de Adorno quando escreve estas p�ginas. Por outro lado, seria err�neo
subestimar tudo o que h� de comum entre uma sociedade monopolista avan�ada como a
dos EUA e uma sociedade burguesa suigeneris como a nossa. Apesar de todas as
diferen�as de n�vel estrutural, existe alguma coisa como um esp�rito do tempo. E isso �
ainda mais verdadeiro hoje, quando o aparato t�cnico e os instrumentos da difus�o da
cultura de massa determinam uma koin� cultural que muitas vezes se antecipa ao
desenvolvimento da economia. A exporta��o do way oflife americano encontra um
terreno particularmente favor�vel justamente onde n�o existem � e talvez n�o existam
nunca � as condi��es econ�micas onde se desenvolveu. O destino dos povos atrasados
n�o � nada alvissareiro. Eles correm o risco de se acharem assimilados sem ter avan�ado
um s� passo, e de sofrerem todas as desvantagens do presente somadas �s do passado.
N�o obstante as apar�ncias, o mundo descrito nestas p�ginas � tamb�m o nosso. Valha
como advert�ncia aos cr�ticos apressados: de re vestra agitur.2
Retenha-se esta id�ia fecunda para o entendimento do Terceiro Mundo, e que j� se
formulava em textos de Trotski: o atraso tecno-econ�mico na corrida capitalista n�o
impede, por si mesmo, a eclos�o de grupos ideol�gicos progressistas (antes, os punge),
reformistas ou ut�picos; nem bloqueia o surgimento de vanguardas art�sticas e culturais
em senso lato.
S�rgio Solmi fala em esp�rito do tempo, express�o cara aos cul-turalistas e aos
hegelianos; fala em difus�o, termo que corrige o evo-lucionismo linear; e, o que me
parece muito perspicaz, d� o justo relevo � antecipa��o de correntes culturais e de
cria��es imagin�rias em rela��o ao ritmo lento da infra-estrutura.

362

Teoricamente, o que est� em causa nos confrontos de centro e periferia � o verdadeiro
alcance do determinismo econ�mico. Na medida em que se atribuem � linguagem e �
cultura graus de liberdade que n�o as reduzam a epifen�menos dos sistemas de
produ��o, corrigem-se as teses simplistas que dividem as culturas em avan�adas e
atrasadas conforme os �ndices de industrializa��o e urbaniza��o dos seus respectivos
pa�ses.
De qualquer modo, o jogo arriscado do tudo-ou-nada desserve a complexidade do tema
e n�o ajuda a compreens�o das situa��es particulares.


As reflex�es constantes em outros cap�tulos do presente livro � sobre o pensamento
avan�ado de Vieira em face da nobreza e do clero portugu�s, sobre o "novo liberalismo"
do Segundo Reinado e sobre o positivismo social na Rep�blica Velha � sugerem que a
difus�o das id�ias n�o encontra barreiras em um sistema cultural progressivamente
mundializado a partir dos descobrimentos e da expans�o europ�ia dos s�culos xvi e xvn.
A irradia��o do pensamento � ou pode ser universal. Mas a pergunta formulada no
in�cio do t�pico reponta: subsistir� uma diferen�a espec�fica no modo de atua��o das
id�ias quando se desenvolvem em um contexto colonizado?
S� a an�lise das conjunturas evitaria o risco de uma resposta precipitada. Nos pa�ses
pobres e dependentes as id�ias transplantadas dos centros modernos ora caem no vazio
da impertin�ncia e se estiolam na ret�rica dos ep�gonos e acad�micos, ora conseguem
vingar e, para surpresa dos c�ticos, dar frutos apreci�veis e duradouros.
Qual a raz�o dessa diferen�a de sorte?
No primeiro caso, trata-se do que John Dewey definiu agudamente como id�ias inertes,
que, na verdade, n�o passam de bolhas de espuma, poeiras de aster�ides errantes que
brilham e apagam como objetos err�ticos sem luz pr�pria nem energia capaz de
congregar pessoas em torno de uma a��o coerente. Nonadas. Pode ser que durem um
pouco mais em c�rculos provincianos, pois nestes a posse de um jarg�o exot�rico ou
pseudo-original d� aura de prest�gio a certos grupos letrados, mas continuam sendo o
que s�o, palavras ocas, vana verba.
Formou-se na literatura brasileira uma picante tradi��o de s�tira a essa far�ndola verbal
ignorante do nosso contexto. Com alvos e acentos

363


diversos, a cr�tica das nossas compuls�es mim�ticas se acha em textos de Machado de
Assis, Raul Pomp�ia, Araripejr., Manuel Bonfim, Lima Barreto, M�rio de Andrade,
Oswald de Andrade, tendo-se estilizado com talho fino de l�mina no desprezo que
Graciliano Ramos votava � linguagem posti�a e ' 'safada'' da velha Rep�blica das Letras.
Eis um assunto � espera de um bom historiador de id�ias no Brasil.
Pelo simples fato de existir e realimentar-se ao longo de mais de um s�culo, essa
tradi��o cr�tica {que n�o se confunde com o nacionalismo vulgar ej� se desenhou nas
primeiras op��es democr�ticas e abolicionistas) revela a capacidade que t�m as
culturas ex-coloniais de exercer uma consci�ncia alerta em face das meras repeti��es de
id�ias geradas nos centros dominantes. Quem elege entre doutrinas opostas (monarquia
parlamentar ou ditadura republicana; conformismo bel-le �poque ou anarcosindicalismo...)
n�o � um receptor passivo, um gorila condenado a imitar os gestos dos
bichos mais evolu�dos. T�o verdadeiro quanto o "transoceanismo" dos nossos letrados
advertido por Capistrano de Abreu � o pensamento que o reconhece buscando formas de
dialetiz�-lo.
Mas, na disjuntiva que foi proposta linhas acima, � a segunda alternativa que nos
importa. Pode acontecer que id�ias e correntes de opini�o, nascidas fora da na��o
dependente, se enxertem em situa��es carentes de modelos conceituais. A medida que
essas id�ias v�o sendo adaptadas ao movimento que as escolheu e as solicitou, a mundializa��o
da cultura toma formas novas e singulares.
As id�ias trazidas de fora deixam de ser inertes dependendo da correla��o oportuna que
as adotou. Filtradas por novos receptores, passam a animar, �s vezes por longo tempo,
as institui��es que nelas se inspiraram. Assim ocorreu, por exemplo, com as no��es de
regra e sistema que migraram dos c�digos napole�nicos de Direito e Administra��o
para quase todos os estados europeus do s�culo xix e aportaram intactas � Am�rica
Latina. Assim aconteceu com o positivismo educacional no M�xico e no Uruguai, t�o
ativo no come�o do s�culo XX que deixou marcas em duas ou tr�s gera��es. Assim se
deu, na abertura dos tempos modernos, com as doutrinas de livre exame da B�blia que,
nascidas na Alemanha de Lutero e na Genebra de Calvino, atingiram r�pida e
duradouramente os crist�os da Escandin�via, da Holanda, da Esc�cia e das col�nias
americanas onde lan�aram ra�zes institucionais fundas. Id�ias que n�o se confinaram
nos seus espa�os originais.

Como nos fen�menos de clima a altitude local corrige a latitude geral, assim tamb�m
um correto entendimento dos processos t�picos de difus�o e filtragem ideol�gica
relativiza a teoria do evolucionismo linear pelo qual toda economia atrasada s� ter�
id�ias retardadas.
Isto posto, como vem reagindo a intelig�ncia brasileira � dial�tica ultra/antimodernista
que parece constituir a p�s-modernidade em escala internacional?
O Brasil de hoje � um pa�s diferenciado o bastante para dar lugar tanto aos que se


negam a pagar um indevido ' 'pre�o do progresso' ', quanto aos consumidores �vidos de
toda introdu��o de h�bitos, modas e signos importados a qualquer custo. Entre n�s e,
creio, em toda parte do mundo, coabitam apocal�pticos e integrados.
Rejeitando o modelo de desenvolvimentismo, imposto manu mi-litari pelo golpe de 64,
os movimentos que combateram e ainda combatem pelo respeito aos Direitos Humanos
e em defesa do equil�brio entre natureza e civiliza��o, tentam dissipar certas ilus�es,
vividas pela ideologia burguesa ou pela vulgata marxista, que emparelham aumento do
parque industrial com democracia, ou estatiza��o com justi�a social.
A cultura de resist�ncia � democr�tica (e, no limite, se confunde com a "desobedi�ncia
civil"), porque nasceu sob o signo da ditadura; � ecol�gica, porque v� os estragos do
industrialismo selvagem no campo e na cidade; e � distributivista, porque se formou em
um pa�s onde h� uma das maiores concentra��es de renda do mundo. Quando
enfermada por doutrinas religiosas (em particular, a Teologia da Liberta��o, formulada
no come�o dos anos 70 na Am�rica Latina), � aberta �s correntes progressistas que
militam ao seu lado e contra os mesmos alvos. Quando leiga, � respeitosa dos valores
que chamam os crentes a lutar pela igualdade e pela liberdade. Em ambos os casos,
prov�m de uma escolha pol�tica que n�o renunciou a detectar algum sentido no aparente
caos da hist�ria contempor�nea.
Em perspectiva oposta � dissipa��o />/#.r-moderna, a cultura de resist�ncia v� a
sociedade dos homens plenamente humanizados como um valor a atingir; e essa marca
teleol�gica a ensina a apreciar nos meios t�cnicos precisamente o que s�o: instrumentos,
objetos �teis, produtos da intelig�ncia pr�tica, e n�o fins em si mesmos. N�o � preciso
dizer que, no jogo de mensagens descart�veis peculiar � bolsa de valores do
neocapitalismo, essa posi��o intelectual pode ser julgada,

365


a qualquer momento, como passadista. Ocorre que a natureza, o corpo e a mente dos
homens t�m um longu�ssimo passado e, talvez, um n�o menos longo futuro, para cuja
defesa se torna indispens�vel a a��o da mem�ria. Por isso, tamb�m faz parte da cultura
de resist�ncia o resgate da lembran�a que alimenta � sentimento do tempo e o desejo de
sobreviver.
Ainda � o criador da ci�ncia da automa��o, Norbert Wiener, quem melhor esclarece as
rela��es entre passado e presente: ' 'Uma tradi��o de saber � como um bosque de
sequ�ias que pode viver milhares de anos, e o seu lenho de hoje representa a chuva e o
sol de muitos s�culos atr�s".

DA TEORIA DA DEPEND�NCIA AO REFORMISMO INTERNO
A pergunta pela condi��o objetiva do homem brasileiro nos anos recentes � uma fonte
de perplexidades. A tenta��o do pessimismo � dif�cil de esconjurar. O contexto mundial
dos anos 80, visto em n�meros brutos, nos amea�a e deprime. Juntamente com os outros
pa�ses da Am�rica Latina e com a maioria das na��es do Terceiro Mundo (hoje
denominado Sul em oposi��o �s riquezas do Norte), o Brasil entrou em recess�o
econ�mica vis�vel a olho nu. A pobreza cresceu significativamente afetando pelo menos
dois quintos da popula��o. A estagna��o nas atividades industriais gerou desemprego e
subem-prego. A mis�ria rural, especialmente dram�tica no interior do Nordeste, causou
a migra��o de 15 milh�es de brasileiros na �ltima d�cada. Houve queda geral na
qualidade de vida de que s�o �ndices a desnutri��o, a mortalidade infantil, a car�ncia de
saneamento b�sico, o precar�ssimo atendimento m�dico-hospitalar para as massas, a m�
qualidade do ensino fundamental nas escolas p�blicas, o d�ficit de moradias e as
mazelas cr�nicas do transporte urbano.3
A interpreta��o hol�stica, que nos foi legada pelas Ci�ncias Sociais no in�cio dos anos
70, ou seja, a teoria da depend�ncia, entrou em crise, tendo sido relativizada ou
desertada pelos seus pr�prios criadores. Era uma variante latino-americana das
doutrinas antiimperia-listas na medida em que atava estreitamente o nosso
subdesenvolvimento ao desenvolvimento do Norte. A sua �nfase anticolonialista foi
substitu�da por uma prioridade diversa, quando n�o oposta: � pre


366

ciso olhar para dentro de cada na��o pobre e "p�r ordem na casa". E um ide�rio que,
dizendo-se abertamente social-democrata, ou evitando este r�tulo por motivos
ideol�gicos v�rios, acabou espalhando-se nas cabe�as pol�ticas da grande maioria dos
intelectuais brasileiros, quer liberais, quer ex-esquerdistas.
Em termos descritivos, por�m, a situa��o da Am�rica Latina, que a teoria da
depend�ncia analisava, n�o mudou dos anos 70 para o dec�nio atual; antes, piorou; o
que mudou foi a sua interpreta��o e, da�, o teor dos projetos elaborados para sair da
crise. O reformismo interno, preconizado hoje pela imprensa liberal e por muitos
socialistas arrependidos, se apresenta e se v� a si mesmo como uma ideologia mais
pragm�tica, mais eficiente, mais �gil, mais exeq��vel e (por que n�o diz�-lo sem


rebu�os?) mais moderna do que o socialismo defendido at� bem pouco. A social-
democracia, que n�o se reduz � sigla partid�ria que a endossou explicitamente, � a
pr�pria express�o, t�mida outrora, desenvolta agora, da perplexidade de uma cultura
pol�tica j� n�o mais anticapitalista, porque aceita todos os desdobramentos da
modernidade, mas ainda n�o cabalmente integrada, pelo simples fato de que a sociedade
brasileira � um terreno minado de desequil�brios de toda ordem. Ent�o, em que integrar-
se? Como integrar-se? A um ideal, a um modelo que s� estaria sendo realizado na
Europa Ocidental ou no Jap�o? A um receitu�rio aplic�vel a curto prazo?
As respostas a essas indaga��es s�o um convite ao estabelecimento de agendas t�ticas,
um apelo ao reformismo imediato. Sem for�ar a compara��o, que de resto n�o
representaria, a meu ver, desdouro para ningu�m, eu diria que a social-democracia
brasileira, aterrada por uma crise nacional sem precedentes, parece adotar o lema
comtiano de ' 'conservar melhorando''. O positivismo cultuava os princ�pios
republicanos de 1789, mas tinha horror �s revolu��es sangrentas e a todo tipo de
anarquia, embora n�o fosse nem imobilista nem retr�grado. Comte e os seus disc�pulos
acreditavam na for�a decisiva da intelig�ncia, na fun��o ordenadora dos cientistas, em
particular dos "engenheiros sociais", e pregava uma progressiva e harmoniosa
incorpora��o do operariado � sociedade industrializada que viera superar os est�gios
feudais e militares da humanidade. O fil�sofo se pronunciou, mais de uma vez, pela
interfer�ncia supletiva, moderada, ainda quando en�rgica, do Estado, mas respeitava
como dogma o equil�brio or�ament�rio partilhando com os economistas cl�ssicos o
receio

367


da infla��o. O seu reformismo era convicto; as suas t�ticas, graduais, pois cria no
advento da Era positiva como se cr� numa revela��o divina que o tempo n�o desmente
jamais.
A intera��o no sistema primeiro-mundista (alguns j� recomendam abertamente a
associa��o com a economia norte-americana) se daria mediante o exerc�cio infatig�vel
da compet�ncia no trabalho, que melhoraria o n�vel da produ��o, e da austeridade, que
faria aumentar a poupan�a interna no momento em que se obtivesse alguma estabilidade
monet�ria. Virtudes profissionais e c�vicas, portanto, que apagariam da nossa mem�ria
vexada a frase dita pelo general De Gaul-le: "O Brasil n�o � um pa�s s�rio".
Empres�rios din�micos, competitivos e, presume-se, honestos; trabalhadores c�nscios
dos seus deveres, ass�duos, proficientes; funcion�rios pontuais, sol�citos, zelosos pelo
�xito dos seus departamentos e institui��es: eis o seio de Abra�o a que aspiram os
reformistas cansados de ver industriais c�pidos e impatri�ticos, trabalhadores
desqualificados ou importunamente reivindicativos, e sobretudo funcion�rios morosos,
relapsos e irrespons�veis, inclu�dos aqui os m�dicos, os professores e demais agentes do
servi�o p�blico. De novo, seriedade e efici�ncia, isto �, disposi��es morais e
profissionais que, no interior da vida p�blica, iriam reverter o nosso quadro de pobreza,
estagna��o, infla��o, corrup��o, numa palavra, atraso. Regular os conflitos, trabalhar
para merecer cr�dito l� fora, imitar o exemplo japon�s ou alem�o, ou, proposta dos
modestos, ver como funcionam os tigres da �sia, ou ainda, baixando mais as
expectativas, conferir a ' 'experi�ncia chilena'' e a ' 'sa�da mexicana''.
Esse estilo de pensar, ao qual n�o faltam as melhores inten��es e uma declarada avers�o
� parolagem da velha esquerda, tem um projeto que n�o mira a p�s-modernidade em si,
ainda bem long�nqua, mas a entrada na modernidade tout court, a qual estaria sendo
bloqueada, n�o pela depend�ncia externa, mas, acima de tudo, pela persist�ncia de
certos comportamentos do homem brasileiro. Quer dizer: do pol�tico brasileiro, do
empres�rio brasileiro, do trabalhador brasileiro, do funcion�rio brasileiro.
Uma quest�o de "cultura nacional" (de novo), refrat�ria aos apelos do esp�rito capitalista
tal como o descreveu em termos inesquec�veis o g�nio de Max Weber?

368

Um sentimento irritado de culpa e um conseq�ente desejo de purga��o pelo trabalho
substituem o �lan revolucion�rio de uma gera��o atr�s pelo sobrolho franzido, a palavra
severa e o dedo em riste contra a des�dia cr�nica da vida p�blica brasileira.
A imagem de um sistema internacional vinculante � t�o n�tida nas obras de Celso
Furtado e de Fernando Henrique Cardoso at� o princ�pio dos anos 70 � � como que
arredada ou posta entre cautos par�nteses a fim de que avulte, em primeiro plano, uma
teia psicos-social interna, uma rede de condutas mal orientadas contra as quais a
tenta��o � aplicar uma bateria skinneriana de choques ou, se a rea��o for positiva, de
est�mulos-recompensa.
Produ��o em regime de competi��o seria a meta colimada pelo novo reformismo que j�


perdeu a paci�ncia com vis�es ut�picas e quer ver, o quanto antes, efeitos de uma

pol�tica de resultados.

Mas por que um projeto t�o realista e sensato encontra tantas dificuldades de realiza��o
em um pa�s afinal capitalista?
A situa��o concreta ficou um tanto emaranhada, mas n�o por motivos de psicologia
nacional, que hoje s� aparecem na mais mofi-na das subliteraturas. O enredamento vem
de outros fatores.
Em primeiro lugar, os regimes de produ��o e controle necess�rios para compor o
modelo eficaz de modernidade proposto pelos social-democratas n�o coincidem, ali�s,
conflitam, com os valores ditos p�s(/>/�x)-modernos vigentes nas camadas altas e, por
difus�o, nas camadas m�dias da sociedade, que favorecem um ethos feito de dissipa��o,
informalidade, desgarramento, capricho, desculpabiliza��o e, se quisermos usar
uma palavra acusat�ria, irresponsabilidade. Assim, a mesma cultura moderna, que quer
jogar na lata de lixo da Hist�ria a f� nas virtudes revolucion�rias da classe oper�ria,
precisa pedir aos jovens de todas as classes que creiam e esperem firmemente na
reden��o pelo trabalho, visto pela �tica burguesa convencional como estrada �nica para
a obten��o da felicidade individual.
Erg�tico tanto quanto o marxismo, o reformismo prop�e-se transferir para o campo das
motiva��es pessoais a esperan�a em uma transforma��o material da sociedade. Para
persuadir indiv�duos � necess�rio usar a ret�rica do liberalismo, o que j� vem ocorrendo
assidua-mente. Mas a social-democracia ainda �, ou se cr�, bandeira de uma vis�o
globalizante da sociedade pela qual o aumento da produ��o tamb�m deveria reverter-se
em fator de eq�idade na hora h da distribui369



��o. Esse ideal de sintonia entre industrialismo e justi�a (seria indiscreto lembrar Saint-
Simon e Comte?) exige uma regula��o constante e alerta da descontinuidade social e
requer de cada indiv�duo a intro-je��o de raz�es supra-individuais; pede, numa palavra,
uma ordem-para-o-progresso.
Ora, o homem />/#.r-moderno se deleita com os bens e os sinais do progresso, mas n�o
quer pagar tributo � ordem, a n�o ser que a compensa��o seja imediata e abundante, o
que no Brasil � caso raro. Ao jovem nascido depois de 70 basta-lhe a regra imanente do
computador na qual busca antes o prazer do jogo e a liberdade com-binat�ria do que um
padr�o coercitivo de trabalho. A p�s(plus)-modernidade das classes alta e m�dia alta
quer mais tempo livre, mais lazer, mais consumo, mais griffes descart�veis, mais
gadgets, mais kits eletr�nicos, mais video games, mais shows alucinantes de sons e
imagens; e n�o precisamente novos e estritos deveres c�vico-profissionais com vistas a
um decr�scimo problem�tico da pobreza nacional.
A pedagogia reformista toma hoje ares neoconservadores, for�osamente bem-
comportados em face da anomia intelectual e moral, que. virou moeda corrente, a partir
de 70. A novidade te�rica desse "moderno" social-democr�tico parece agora pouca ou
nenhuma: todos ainda nos lembramos do que significa ' 'racionaliza��o'' no l�xico
weberiano. Mas a novidade pol�tica, no caso brasileiro, � apreci�vel: talvez pela
primeira vez alguns tra�os peculiares � moderniza��o cl�ssica internacional venham a
ser preconizados pela maioria dos agentes pol�ticos brasileiros independentemente do
seu matiz ideol�gico.
Mas vejamos de perto a natureza dos contrastes que a ret�rica produtivista tem de
enfrentar. E s� abrir qualquer um dos jornais de grande p�blico de S�o Paulo ou do Rio.
S�o parte consp�cua de uma imprensa que se quer moderna e, com certeza, influi nas
mentes e nos cora��es de alguns milh�es de leitores cultos ou semicultos. O que vamos
encontrar? Na segunda e na terceira p�ginas, editoriais sisudos que louvam o trabalho
controlado, a economia austera, a administra��o proba, a escola rigorosa, a pol�tica
respons�vel, um basta � infla��o, ao desperd�cio, � corrup��o, ao golpismo etc. Fala
nesses textos o superego social-democrata do centro. Mais adiante, v�m os cadernos de
"cultura", lazer, cotidiano, turismo, dinheiro e moda. A� se amontoa toda sorte de iscas
para o consumo desbragado, para o uso e abuso do descart�vel, para a especula��o
associai, para a trans


gress�o, a anomia, a pervers�o, a barb�rie. S�o instrumentos de uma orquestra imensa
que, aparentemente, n�o podem afinar-se. ' 'Vamos tocando!", � a sua lei imanente. Que
leitores deveriam cumprir religiosamente o grande pacto da austeridade, da poupan�a,
da produtividade? Os mesmos nos quais se excita o desejo de tudo comprar e vender,
tudo consumir e consumar, e para os quais o jornal monta um espet�culo de venalidade
universal, irrespons�vel pelos efeitos daquele v�rtice de nonsense?
A orquestra n�o pode parar. N�o h� s�ntese, s� aglutina��o. O mercado internacional,



objeto �ltimo do desejo de moderniza��o, precisa de uma legi�o de homens e mulheres
que com seus bra�os, m�os e olhos prestantes fa�am e refa�am sem interrup��o as
partes daquele "todo" vend�vel, logo mutante e substitu�vel. Aliciar sem o menor pudor
os instintos dos consumidores usando a vanguarda da propaganda e do com�rcio �^>/�jmoderno,
sem d�vida, mas n�o dispensa a constitui��o daquele ex�rcito mudo que na
retaguarda opere just in time e com o devido autocontrole. Mas para o Brasil pobre qual
viria a ser o sentido desse trabalho coletivo que se quer modernizar? At� agora, tem sido
entrar mais eficazmente em uma vasta engrenagem de produzir desigualdades.
Seguramente, pede a justi�a que se diga, n�o � esta a inten��o dos social-democratas,
alihonourable men, que juntam em suas falas competitividade e eq�idade.
Mas, bem pesadas as coisas, o grande �bice para a vit�ria do re-formismo n�o vem da
oposi��o entre a "moralidade" moderna do trabalho e a "amoralidade" ultramoderna do
consumo: essa combina��o, embora inst�vel, logra manter-se em pa�ses ricos e
altamente industrializados como a Alemanha e o Jap�o, onde a maior parte da
popula��o age como se estivesse persuadida de que vale a pena lutar duramente para
gozar dos frutos de um mercado copioso e diferen�ado. Em numerosas firmas nip�nicas
o purgat�rio do trabalho �rduo � aceito como condi��o necess�ria para adentrar o
para�so do consumo.
E no outro lado, no lado dos de abajo (valha a express�o latino-americana), que a
m�stica da produ��o e da alta qualidade industrial n�o consegue, entre n�s, empolgar
sen�o uma reduzida faixa de oper�rios qualificados. O achatamento salarial, que vem
aviltando todas as economias perif�ricas, � um dado de realidade demasiado brutal e
pr�ximo da massa dos trabalhadores para que uma linguagem produtivista os conven�a
a colaborar pronta e documente com os proje


371


tos do neocapitalismo. O moderno de alguns diz pouco ou nada ao cotidiano esqu�lido
da maioria.
A estrat�gia oficial vem apostando ultimamente na reforma educacional como esperan�a
�nica de sair do baixo patamar de desenvolvimento onde vegeta grande parte do povo
brasileiro. Mas, repito, faltam ao pobre as motiva��es imediatas e fortes para tentar
coletivamente o salto no escuro para as luzes redentoras. Nem parece haver condi��es
culturais objetivas para empreender uma formid�vel lavagem cerebral de tipo asi�tico
que reverta o estado de indiferen�a da maioria absoluta dos brasileiros.
Caso, por�m, um movimento dessa natureza viesse a desencadear-se, ver�amos a busca
de alguma unidade e alguma coer�ncia no campo dos valores e um correlato discurso de
integra��o social, provavelmente j� n�o mais nacionalista no estilo dos anos 30 a 50,
mas pro-dutivista, neoliberal e competitivo. Entretanto, por ora, e se acertamos o alvo
nas observa��es iniciais deste escrito, � na dire��o contraria que v�o as coisas, tanto no
interior da cultura letrada quanto nas v�rias ag�ncias da ind�stria cultural: basta abrir os
jornais e as revistas de maior tiragem para avaliar o grau de dispers�o, decomposi��o,
inconsist�ncia e anomia que vivem o Brasil mental e o Brasil moral.
A linguagem da moderniza��o, que aqui e ali se faz ouvir com insist�ncia, � assaz vaga
e ret�rica, pois carece de conte�dos sociais precisos, resumindo-se em propostas de
atualiza��o t�cnica tidas como passos no sentido da... p�s-modernidade. Por outro lado,
a precariedade das nossas teorias de conjunto em face da deteriora��o da economia
latino-americana, acrescida � perplexidade que em muitos suscitou a crise do Leste
Europeu, v�m lan�ando mais �gua no moinho da raz�o c�tica. Com isso se
desestimulam os esfor�os de s�ntese, a disciplina intelectual a longo prazo, a procura de
metas globalizan-tes, enfim a pr�pria vontade de mudar o que est� a�.
Toda crise pol�tica � uma crise cultural que envolve diretamente representa��es e
valores coletivos. Da� a extrema oportunidade de aprofundar o significado �tico das
forma��es de resist�ncia que est�o presentes na equa��o cr�tica: p�s-moderno =
antimoderno. S�o elas que entendem desmontar os mecanismos perversos do que Vi�o
chamou de barb�rie da reflex�o, express�o paradoxal j� no seu tempo dominado pela
mente cartesiana. Barb�rie da reflex�o: aquele momento

372

cruel da Hist�ria em que a raz�o instrumental alheia ao sentido do todo natural-humano
serve aos poderes da opress�o e da destrui��o.
A ci�ncia e a pr�tica ambientalista, a milit�ncia no campo dos Direitos Humanos,
inclu�do o direito de viver em uma comunidade internacional, a cren�a na democracia
como valor substantivo, a garantia de renda m�nima universalizada fazem parte desse
complexo de id�ias e valores que tamb�m no Brasil se prop�e como agenda de
sobreviv�ncia com dignidade.
Se o cora��o da intelig�ncia se voltar firmemente para esse ide�rio, os planos t�ticos de
crescimento econ�mico dever�o assumir, na mente dos planejadores e executivos, o seu


justo lugar de instrumentos. Meios necess�rios � consecu��o material de fins que os
transcendem de todos os lados.
A mediocridade e o vazio do social-liberalismo apregoado pelos c�rculos oficiais e pelas
ag�ncias privadas anexas devem-se � falta de uma reflex�o aturada sobre os valores de
fundo e as suas prioridades. A impress�o que deixam os discursos pragm�ticos sobre a
efic�cia e a competitividade necess�rias a retomada do crescimento � a de que esses
meios tomam na cabe�a dos que os professam o lugar de valores-fins. Ora, � justamente
como valores-fins do processo de humaniza-��o que essas qualidades inerentes ao
capitalismo cl�ssico perderam o seu apelo e a sua confiabilidade. Elas j� provaram
copiosamente na Alemanha e no Jap�o do Eixo fascista, por exemplo, que, por serem
instrumentais, podem servir a qualquer forma��o ideol�gica, inclusive �s mais
incompat�veis com a pr�tica da cidadania. De resto, depois dos anos 70 e 80, todos
sabemos, na Am�rica Latina, que n�o h� rela��o �ntima entre produtivismo �
democracia. Quando o crescimento � tomado como um fim, os outros valores ou s�o
descartados ou lhe s�o subordinados.
A desintegra��o intelectual e a anomia �tico-pol�tica evidentes nos �ltimos anos
atingiram mais fundamente a cultura de n�vel universit�rio e as ag�ncias de ind�stria e
com�rcio de bens simb�licos. Como pude observar em estudo anterior, a Universidade e
os meios de comunica��o avizinharam-se nos anos 70; e esse contacto estreitou-se na
d�cada de 80. Chegou-se, �s vezes, a um estado de quase-indiferencia��o, havendo
aulas e semin�rios que imitam o estilo ' 'descontra�do' ' de programas de televis�o, ao
passo que estes glosam ou saqueiam, � sua maneira, discursos elaborados na academia.

373


A mesmice procura contrabalan�ar a dispers�o, e o faz por algum tempo, mas n�o
consegue (nem se prop�e) impedir as tend�ncias � dissipa��o e ao descentramento que
atacam por dentro a vida da cultura.

* * *

Enquanto p�los de moderniza��o, a Universidade e a m�dia tendem a crescer e a receber
uma certa aten��o do Estado e da sociedade civil; aten��o que evidentemente n�o se d�
ao cotidiano simb�lico popular.
As rela��es entre este tertius e as demais forma��es culturais foram objeto de an�lise no
ensaio precedente; revendo-as n�o me pareceu que devesse acrescentar-lhes nada de
substancial. As condi��es de enraizamento sem as quais a cultura popular n�o sobrevive
continuaram prec�rias e at� mesmo agravaram-se, considerando o que foi a ' 'd�cada
perdida'' para o Brasil e toda a Am�rica Latina. Mas o que subsistiu mostra, � evid�ncia,
que os caracteres nucleares da cultura popular (flexibilidade, reversibilidade,
materialismo ariimista, grega-riedade) ainda asseguram a sua identidade.
Quanto ao uso que da vida simb�lica do povo fazem os pesquisadores universit�rios e
os meios de massa � cata de assunto, diz respeito, em primeiro lugar, aos pr�prios
vaiv�ns ideol�gicos da cultura dominante. Esta pretende dar sentidos aos seus objetos. E
for�osamente a cultura dominante que faz leituras, ora redutoras, ora abertas, da vida
popular. A rejei��o elitista, a cr�tica raci�nalista ou a ades�o rom�ntica n�o concernem
aos significados internos vividos pelo povo; a rejei��o, a cr�tica ou a ades�o deixam
entrever apenas movimentos ideol�gicos das camadas letradas; enquanto pontos de
vista, guardam um nexo direto com a divis�o em classes de nossa sociedade.
Uma tarefa mais �rdua do que a de avaliar os modos pelos quais a Universidade ou a
Imprensa v� o ethos da pobreza seria a de desvendar as poss�veis mudan�as internas que
estariam afetando as representa��es, os s�mbolos e os sentimentos que constituem o
cotidiano popular. Nesse campo de conhecimento, temos avan�ado pouco.
No terreno do imagin�rio o que se vem constatando � o conv�vio de uma religiosidade
arcaica e providencialista com certos comportamentos e at� mesmo certas express�es
leigas pr�prias da racionalida


374

de moderna. Assim, por exemplo, os devotos das seitas carism�ticas e pentecostais, que
continuam em franca expans�o juntamente com os terreiros de umbanda e de
candombl�, aliam muitas vezes o pensamento m�gico e a experi�ncia do transe a
condutas orientadas pelas normas econ�micas do individualismo concorrencial que a
todos condiciona.
Ir ao fundo da quest�o significaria descobrir na intencionalida-de real das pr�ticas
religiosas o que h� de defesa (pessoal, familiar, grupai, racial), o que h� de resist�ncia �s
amea�as de um dia-a-dia inseguro, o que h� de consola��o e o que h� de f� enquanto
viv�ncia gratuita do sagrado.
As abordagens sociol�gicas e psicanal�ticas ortodoxas pecam pelo vezo das redu��es


dr�sticas, que se sup�em desmistificadoras, mas que n�o apanham os modos de ser e de
aparecer inerentes aos processos simb�licos. Pretendem alcan�ar sempre o que estaria
"por tr�s" desses comportamentos e acabam tocando o que estes, fenomenologicamente,
n�o s�o.
No outro extremo, a hermen�utica de fundo existencial deseja sondar os fen�menos na
sua interioridade, o que, sem d�vida, � insubstitu�vel, mas se arrisca a abstra�-los da
rede de condi��es, meios e fins que lhes d�o inteligibilidade social.
Essa disjun��o de olhares (ou de fora, ou de dentro), que s� uma renovada e livre
Antropologia poderia superar, tem sido respons�vel por enfoques unilaterais da cultura
popular. Entre n�s padecem dessas leituras mutuamente excludentes n�o s� as
manifesta��es religiosas como todas as linguagens simb�licas do pobre, sejam elas
pl�sticas ou musicais, l�dicas ou dram�ticas, resignadas ou rebeldes.
H�, portanto, os que v�em o pobre cada vez mais atado ao processo consumista em
curso, dando por agonizante a identidade da cultura arcaico-popular. E h� os que
percebem nesta uma rede simb�lica d�ctil, vivaz e resistente � coisifica��o das rela��es
humanas operada pela universaliza��o da mercadoria.
Registro aqui apenas mais uma formula��o perplexa da renas-cente quest�o da cultura
popular. A sua relev�ncia no contexto atual de crise da modernidade convencional n�o �
pequena.

375


OLHAR EM RETROSPECTO

Se h� um fio que costura os ensaios deste livro, � uma id�ia que se poderia assim
formular sinteticamente:
A coloniza��o � um processo ao mesmo tempo material e simb�lico: as pr�ticas
econ�micas dos seus agentes est�o vinculadas aos seus meios de sobreviv�ncia, � sua
mem�ria, aos seus modos de representa��o de si e dos outros, enfim aos seus desejos e
esperan�as.
Dito de outra maneira: n�o h� condi��o colonial sem um enlace de trabalhos, de cultos,
de ideologias e de culturas.
As rela��es entre essas inst�ncias fundamentais de todo processo civilizat�rio (que o
marxismo resumiu nos n�veis da infra e da supe-restrutura) aparecem, ao longo do
tempo, afetadas por determina��es positivas de ajuste, reprodu��o e continuidade.
Armam-se, por�m, situa��es nas quais s�o as assimetrias e, no limite, as rupturas que se
d�o aos olhos do historiador e do antrop�logo da vida colonial.
Nessa lavra de antigas semeaduras e novos transplantes, nem sempre os enxertos s�o
bem logrados. As vezes o presente busca ou precisa livrar-se do peso do passado;
outras, e talvez sejam as mais numerosas, � a for�a da tradi��o que exige o ritornello de
signos e valores sem os quais o sistema se desfaria.
Arrisca-se, de todo modo, a perder-se em f�rmulas cerebrinas quem se propuser
descobrir leis geom�tricas ou invariantes que teriam regido as intera��es entre a
metr�pole e a col�nia, ou, mirando no eixo vertical, entre o econ�mico e o simb�lico.
Uma dial�tica de potencialidades, ora atualizadas, ora frustres, dir� melhor como as
coisas se passaram.

377


A conquista do Novo pelo Velho Mundo juntou pr�ticas de viol�ncia e barb�rie, como a
reinven��o do trabalho escravo, e est�mulos ao progresso, como em geral se considera o
tr�nsito do feudalismo ao lento, �rduo mas irrevers�vel ascenso da burguesia que
ocorreu nos s�culos posteriores aos descobrimentos.
Enquanto m�quina mercante e sistema, a coloniza��o preparava o surto do capitalismo
mundial em que o pa�s futuro iria ingressar na qualidade de na��o dependente. Mas,
enquanto condi��o, a vida cotidiana nas col�nias reproduzia, intra muros, velhos estilos
de pensar, sentir e dizer. A ideologiza��o desse lastro existencial seria mais tarde
respons�vel por vezos conservadores como o luso-tropicalismo, o bandeirismo e
algumas s�ndromes tenazes de regionalismo de classe. Caberia distinguir o que est� vivo
e o que est� morto em cada uma dessas tend�ncias, separando com cuidado tudo quanto
remete � mem�ria de experi�ncias enraizadas, que a arte decanta, e o que j� virou
reifka��o, auto-engano cl�nico, fonte de preconceito.
Voltando aos efeitos principais da a��o colonizadora na esfera das cria��es simb�licas:
temos ora reflexos de inova��es eruditas ib�ricas ou italianas, vis�veis na arte
maneirista, arc�dica e neocl�ssica; ora express�es de fronteira, em cuja realiza��o o
imagin�rio do art�fice se-miculto se conformava apenas parcialmente aos padr�es
est�ticos de uma institui��o potentemente unit�ria como era a da Igreja tridentina.
No primeiro caso, o olhar do historiador contempla fen�menos de importa��o e difus�o
de motivos e temas comuns entre os intelectuais dos estratos dominantes. No segundo,
por�m, adverte certas singulares alian�as que os estilos r�stico e letrado operam quando
concorrem no gesto de afei�oar sentimentos de uma devo��o popular viva e inteira.
Dessa arte de fronteira s�o exemplos as figuras dos Passos em Congonhas do Campo, as
paulistinhas do s�culo XK e os romances de cordel que at� hoje se reproduzem.
Vistas em retrospecto, as correntes de pensamento e a��o que se realizaram, de fato,
produzindo na cena hist�rica o que Maquiavel chamava de venta effettuale, acabaram
resolvendo-se em posi��es claramente antag�nicas. Se a abertura a v�rias dire��es
vigora em tempos de paz, na hora da guerra a escolha se imp�e. Ent�o o m�ltiplo se
reduz a um imperioso ou isto ou aquilo.
Voltemos � Hist�ria.

378

I. O que pretendiam os jesu�tas?
Transplantar para o Novo Mundo um culto universalista � Ide e pregai a boa nova a
todos os povos �, de base crist�-medieval e animado pelos fervores salvacionistas
ib�ricos. O projeto da Companhia, j� esbo�ado nas Constitui��es de Loyola, percorre
sem mudan�as de fundo os escritos mission�rios de N�brega, de Anchieta, de Sim�o de
Vasconcelos, de Vieira, de Montoya e dos fundadores das redu��es paraguaias. Os seus
planos revelaram-se, a m�dio e longo prazo, incompat�veis com a expans�o dos
"portugueses de S�o Paulo' ' e com os interesses estrat�gicos dos Estados espanhol e
luso ao sul do continente. Assim, esses complexos coloniais, a Companhia, de um lado,

as bandeiras e o Ex�rcito, de outro, vieram a chocar-se, do que resultou o massacre da
obra civilizadora dos Sete Povos seguida em breve tempo pela expuls�o dos jesu�tas.
O contraste entre uma ordem religiosa militante e uma frente econ�mica predat�ria,
sublimada como l�gica imanente � conquista na pros�pia dos linhagistas e no epos
ilustrado (� ler a Nobiliarquia paulistana, o Uruguai e Vila Rica), pode ser interpretado
como o primeiro momento forte da dial�tica da coloniza��o mercantil. O dom�nio
material e moral sobre o trabalho ind�gena deu o conte�do bruto a uma antinomia de
visadas e vontades pol�ticas.

II. Um segundo recontro, ainda em fun��o da almejada m�o-de-obra, iria travar-se entre
os anos 60 e os 80 do s�culo xix.
O pa�s j� alcan�ara a independ�ncia no plano jur�dico e gravitava, como as demais
forma��es colonizadas, ao redor do imperialismo brit�nico. A quest�o nodal era entrar,
ou n�o, no regime de trabalho livre, e aceder, ou n�o, aos mecanismos do capitalismo
pleno.
A linguagem do escravismo, dura e pragm�tica, honrava-se com o nome ent�o sagrado
de liberal. O adjetivo, posto naquele contexto, n�o era de todo impr�prio nem paradoxal
na medida em que recobria os princ�pios do livre com�rcio e da n�o-inger�n�ia do
Estado na �rbita da produ��o. Ambos os lemas tinham recebido o aval de Adam Smith
e, entre n�s, de um smithiano precoce e convicto, o Visconde de Cayru, abridor de
portos e portas. A esse liberalismo afinal j� moderno, em confronto com o antigo pacto
monopolista, mas ainda conservador, enquanto agr�rio e escravista, vai opor-se o
liberalismo no379



vo de Tavares Bastos, Joaquim Nabuco, Rui e Andr� Rebou�as, pro-pugnadores de um
mercado de trabalho assalariado, logo abolicionistas. Duas ideologias: uma, rente aos
neg�cios cl�nicos do a��car e do caf� valparaibano, a que o teatro parlamentar dava ares
de vontade geral; a outra, aberta para um horizonte amplo, internacional. Uma, agarrada
ao presente imediato e, da�, aparentemente mais sensata e pr�xima das suas ra�zes; a
outra, clarividente e lungimirante, e por isso malvista pela primeira como
descompassada e importuna em face da realidade nacional.

III. Sobrevindo a Aboli��o e a Rep�blica, pareciam vitoriosas as correntes que haviam
apostado no futuro. A cr�tica demolidora que realistas, evolucionistas e positivistas
tinham desfechado contra o ra-merr�o do Imp�rio surtira efeitos vis�veis na forma das
institui��es e n�o s� na ret�rica dos discursos.
Novamente, por�m, o historiador se depara com uma divis�o de �guas.
No ramo principal, os interesses da classe dominante manobram uma estrutura
federativa, pseudonacional, garantindo-se com um Estado padrinho da lavoura cafeeira
� qual tudo o mais se subordina. Reedita-se, nessa Rep�blica que j� nasceu Velha, o
modelo da hegemonia saquarema do Segundo Reinado com a agravante de se ter
consolidado o coronelismo provinciano.
O liberalismo darwiniano das maiores agremia��es estaduais, o PRP e o PRM, o Partido
Republicano Paulista e o Partido Republicano Mineiro, alia a estreiteza sufocante das
paix�es regionalistas ao cos-mopolitismo dos seus enfants g�t�s, logo terribles, mistura
interessante que ainda se entremostra nos vaiv�ns e nas ambig�idades dos modernistas
de 22*
Em ramos perif�ricos, grupos pol�ticos e culturais existencialmente distintos do eixo
privilegiado orientam-se para outros estilos de pensamento que, embora t�o europeus
quanto os de seus antagonistas,
(*) N�o me pareceu necess�rio explicitar as vis�es do Brasil que os modernistas produziram, nem o seu jogo polar de
primitivismo e internacionalismo de tupi e not tupi, pois j� o fiz nos ensaios ' 'Moderno e modernista no Brasil'' e
"Situa��o de Macuna�ma'', inclu�dos em C�u, Inferno (�tica, 1989). Valeria a pena matizar a descri��o com uma
refer�nia � ideologia modernizante do Partido Democr�tico, fundado por dissidentes do PRP, intelectuais que
namoraram a Revolu��o de 30, mas logo tornaram ao velho aprisco movidos pelos vapores ultrapaulistas de 32.

380

lhes permitiam conceber o Estado-Na��o como um sistema ainda a construir: uma
forma��o integrada e ' 'org�nica'', um pa�s menos pendente de uma s� classe e do seu
destino. O positivismo social que juntou os republicanos ga�chos da Gera��o de 1907 e
a fronda dos tenentes constituiu uma animosa posi��o alternativa que tornou poss�vel o
movimento de 30. Ainda uma vez, um modo totalizante de ver a sociedade brasileira
iria contrapor-se aos h�bitos mentais de uma oligarquia cuidosa de si e cada vez menos
capaz de gerir o complexo pol�tico e econ�mico da na��o.
Os castilhistas do Sul, escorados nos tenentes (esp�cie de neoja-cobinos que cultuavam
a mem�ria de Benjamin Constant e de Flo-riano Peixoto), conquistaram o poder central
e absorveram taticamente alguns tra�os ideol�gicos de doutrinas que � � direita e �


esquerda � rejeitavam os dogmas do laissez-faire deveras abalados com a crise de 29.
Edificou-se ent�o o Estado-Provid�ncia brasileiro, que, para bem e para mal, ainda se
mant�m em p�.
A filia��o estrangeira de todas essas vertentes, n�o exclu�das as nacionalistas radicais,
levou-me a julgar pouco estimulante a discuss�o em torno das suas origens. Bastaria, de
resto, examinar as passagens que as id�ias-m�es efetuaram na trama das culturas
ocidentais desde a Idade M�dia e, com maior vigor e rapidez, a partir da forma��o de
um sistema mundial no s�culo xvi, para livrar-nos do apego � considera��o do locus
matricial desta ou daquela teoria. Importa seguir pela hist�ria social adentro os
caminhos da difus�o ideol�gica, e analisar os contextos espec�ficos que solicitaram e
foram incorporando a si certos esquemas de valores, ao mesmo tempo que filtravam as
mensagens que lhes soavam estranhas.
O Portugal dos nautas e mercantes, a Espanha dos inquisidores, a Roma dos jesu�tas, a
Inglaterra de Smith e de Spencer, a Fran�a da Enciclop�dia ou de Comte, a Alemanha
de Bismarck, a R�ssia de Le-nin, a It�lia do fascio... converteram-se em topoi quase
m�ticos de onde irradiaram movimentos ideol�gicos para as outras na��es da Europa e
para a Am�rica. A situa��o colonial ter� apenas aprofundado, sobretudo no imagin�rio
das elites, o sentimento da dist�ncia ou da alteridade �tnica. Mas � medida que se iam
articulando estruturas comuns � expans�o do capitalismo urbano e industrial, as
enxertias provaram a sua necessidade. A l�gica das fun��es patenteia-se e, com ela, as
suas arestas e viol�ncias, pois aqui, como em toda parte, a marcha

381


da moderniza��o n�o consegue ocultar por muito tempo os seus aspectos pseudoracionais.
A dial�tica da coloniza��o perseguida nestas p�ginas n�o � tanto a gangorra de
nacionalismo e cosmopolitismo (que se observa tamb�m em culturas europ�ias) quanto
a luta entre modos de pensar lo-calistas, espelho dos c�lculos do aqui-e-agora, e projetos
que visam � transforma��o da sociedade recorrendo a discursos originados em outros
contextos, mas forrados de argumentos universais.

* * *

Este sum�rio n�o seria fiel ao esp�rito do livro se deixasse em branco um dos seus
passos de m�todo reiterados: o reconhecimento da presen�a de la�os m�ticos que
amarram express�es culturais v�rias, n�o s� as conservadoras, tamb�m as que
exerceram fun��es progressistas.
A virtude da significa��o realimenta-se de met�foras e alegorias que gera��es pret�ritas
elaboraram. Quem lida com redes simb�licas, como s�o poemas, serm�es e romances,
acaba descobrindo, na malha das frases, imagens trazidas pela mem�ria social ("o que
lembro, tenho' ', diz Guimar�es Rosa) e ecos de velhas melodias que entoaram
movimentos da alma renascentes, o amor e o �dio, a esperan�a e a ang�stia. Os
fantasmas assomam vivos nas id�ias, ensina Vi�o, e o que outrora foi �mpeto agora �
raz�o.
Na hist�ria da coloniza��o ou�o o di�logo n�o raro abafado entre a escrita da mente e os
impulsos da paix�o; e vejo a osmose que o imagin�rio do poeta e do profeta entret�m
com as figuras da tradi��o. Recordem-se os mitos tit�nicos e o seu avesso nas vozes
contradit�rias d' Os Lus�adas, os pecados e as penas medievais na Bahia barroca de
Greg�rio de Matos, a cruz do negro de engenho em Vieira, o calv�rio da cana em
Antonil, o apocalipse nativo em Gon�alves Dias, a imola��o volunt�ria do guarani em
Alencar, a sina de Prometeu e o signo de Cam em Castro Alves, as sombras do ser
murado e da alma exilada em Cruz e Sousa e em Lima Barreto.
Situa��es vividas ou imaginadas no circuito apartado da experi�ncia individual ou
grupai deram � escrita, que as revelou, a sua pot�ncia primeira, aquele corpo de
intui��es e afetos que nada pode substituir. Mas a viv�ncia original precisou
absolutamente da media��o de uma forma que a universalizasse, sem a qual n�o teria
franqueado o limiar da express�o liter�ria. O que se vive n�o se diz sem que se constitua
um ponto de vista.

Da conjun��o de for�a e forma significante, de evento e palavra, nasce a simboliza��o,
que se mant�m e se transmite na hist�ria do culto e da cultura.
As met�foras, que irrompem na zona magn�tica das transla��es, e as alegorias, que
tendem a cristalizar o sentido, s�o protoconceitos, quase-conceitos, "universais
fant�sticos" (Vi�o) de que os homens se Valeram e se valem sempre que aguilhoados
pelas suas car�ncias de comunica��o. Nesses �timos, vitais para o exerc�cio da


significa��o, resultaria em gesto precoce de abstra��o reduzir as figuras a universais
l�gicos, a puros conceitos. E ent�o que imagens m�ticas de outros tempos se atualizam
na mem�ria das culturas tentando fazer justi�a � densidade sempre nova da condi��o
humana.
No caso da forma��o colonial brasileira, essas transfer�ncias simb�licas, que varam
tempos e lugares, operam com experi�ncias sociais peculiares � nossa hist�ria; mas,
enquanto modos de produzir significados e valores, elas confirmam uma constante do
processo de acultura��o tal como o conhecemos desde, pelo menos, a Antig�idade
oriental e mediterr�nea.

* * *

Enfim, � propor��o que o nosso olhar se move no rumo da vida mental contempor�nea,
uma teia de signos tecnicamente nova marca a sua presen�a imperiosa: s�o os meios de
comunica��o de massa. Dos meados do s�culo XX em diante, passa a ser colonizada
em escala planet�ria a alma de todas as classes sociais.
Colonizar quer dizer agora massificar a partir de certas matrizes poderosas de imagens,
opini�es e estere�tipos.
Apesar dos mil e um estudos cient�ficos e de todos os hosanas ou maldi��es que h�
meio s�culo pairam sobre a ind�stria cultural e, particularmente, sobre a televis�o,
continua em aberto a tarefa da intelig�ncia que pretenda decifrar o que vem acontecendo
com as mentes e os cora��es de um p�blico vast�ssimo e, de algum modo, ainda
trabalhado pela cultura erudita ou pela cultura popular.
O �ltimo cap�tulo deste livro � sobre o car�ter plural das culturas � e o seu p�s-escrito
nasceram dessa perplexidade, que o curso dos anos s� tem feito crescer.
Que a dial�tica da civiliza��o tenha gerado esparsos pensamentos, palavras e atos de
uma cultura de resist�ncia ainda n�o vencida pelas for�as da desintegra��o � eis um
t�nue lume de esperan�a que bruxuleia no termo deste percurso.


383


NOIAS

1. COL�NIA, CULTO E CULTURA (pp. 11-63)
(1) Ensina Augusto Magne: "Colo prov�m de Kwelo, mover-se � volta de, circular. O sentido da raiz se depreende
com clareza do segundo elemento de compostos como os substantivos masculinos gregos bou-k�los, boiadeiro; ai-
p�los, cabreiro; amph�-p�los, criado, referente a pessoa que se move em torno de boi, cabra, dono de casa, e cuida
deles. O sentido de 'tomar a seus cuidados', manifesto nestes compostos, explica parte das acep��es latinas de colo;
pelo contr�rio, a acep��o agr�cola se explica pelo car�ter rural da classe que dominava em Roma durante o per�odo
mais antigo. Enquanto nas l�nguas cong�neres, a raiz Kwel-tem o sentido de 'mover-se', 'achar-se habitualmente em',
o latim col-se especializou no sentido de 'habitar' e 'cultivar'; compare-se o significado de 'ocupar-se com' dos
compostos acima sinalados. As duas acep��es aparecem igualmente abonadas desde a �poca mais antiga por terem
conex�o entre si para uma popula��o rural" (Dicion�rio etimo-l�gico da l�ngua latina. Rio de Janeiro, MEC, 1962,
vol. IV).
(2) A. Magne, ibidem. No Lexicon totius latinitatis, Aegidio rbrcellini distingue, com defini��es lapidares, col�nia e
munic�pio. "Col�nia diffcrt a munic�pio: municipes enim sunt eives alicuius municipii, legibus suis et suo jure
utentes: coloni sunt eives unius civitatis in aliam dedueti, et eius jure utentes, a qua sunt propagati" [Col�nia difere de
munic�pio: os municipes em verdade s�o cidad�os de um munic�pio, os quais se valem de suas pr�prias leis e do seu
pr�prio direito; os colonos s�o cidad�os de uma cidade levados para outra, e que usam do direito daquela cidade de
onde se espalharam]. E especificando uma acep��o de col�nia: "Col�nia est pars civitatis, aut sociorum dedueta in
aliquem locum, colendi et inhabitandi gratia: itemque ipse locus" [Col�nia � a parte de uma cidade [estado] ou de
uma sociedade deslocada para algum lugar a fim de cultiv�-lo e habit�-lo; col�nia � igualmente o pr�prio lugar] (4?
ed., P�dua, Typis Seminarii, 1940, pp. 692-3).
(3) Consulte-se Vitorino Magalh�es Godinho, Economia dos descobrimentos henri-quinos, Lisboa, 1962.
(4) Gordon Childe, Los origenes de Ia civilizaci�n, 2* ed., M�xico, Rondo de Cultura Econ�mica, 1959, pp. 129-30.
Sobre a ancianidade dos ritos funer�rios, veja-se a sucinta mas bem fundamentada exposi��o de Henri Gastaut, '
'Alguns coment�rios a respeito do culto do cr�nio'', in A unidade do homem. Invariantes biol�gicos e universais
culturais, org. Centro Royaumont para uma Ci�ncia do Homem, S�o Paulo, Cultrix/Edusp, 1978, vol. III, pp. 254-6.
385


(5) Cf. Wernerjaeger, Paideia. A forma��o do homem grego, S�o Paulo, Martins Fontes, 1979 (a primeira edi��o
alem� � de 1936); Henri-Ir�n�e Marrou, Histoire de l'�ducation dans lAntiquit�, Paris, Seuil, 1948.
(6) Em Riflessioni sulla storia universale, Mil�o, Rizzoli, 1966, p. 81.
(7) Em // materialismo storico, Roma, Ed. Riuniti, 1975, passim.
(8) Refiro-me aqui a toda a cr�tica progressista que vem, desde os anos 20 deste s�culo, relativizando as certezas do
pensamento burgu�s ilustrado e dos seus desdobramentos positivistas ou evolucionistas: Max Scheler, Mannheim, W.
Benjamin, M. Horkheimer, Th. W. Adorno, Sartre, Merleau-Ponty.
(9) El capital, M�xico, Bondo de Cultura Econ�mica, vol. II, p. 638.
(10) Op. cit., vol. III, p. 320.
(11) Em Rex Gonz�lez y P�rez, Argentina ind�gena, v�speras de Ia conquista, Buenos Aires, 1972, citado por M.
Galich, Nuestrosprimerospadres, Havana, Casa de Ias Am�ricas,
1979, p. 390.
(12) Sobre o conhecimento de Las Casas por Montaignc, ver "Bartolom� de Las Casas y M. de Montaigne: escritura
y lectura dei Nuevo Mundo'', in Revista Chilena de literatura, n� 37, Santiago, Universidad de Chile, abr. 1991-O
tema da leyenda negra foi retomado com brio por Gustavo Guti�rrez em Dios o ei oro en las �ndias. Siglo XVI, Lima,
Instituto Bartolom� de las Casas Rimac, 1989.
(13) "Os pa�ses novos s�o um vasto campo aberto �s atividades individuais, violentas, que, nas metr�poles, se
chocariam contra certos preconceitos, contra uma concep��o prudente e regrada de vida, mas que, nas col�nias,
podem desenvolver-se mais livremente e melhor afirmar, em conseq��ncia, o seu valor. Assim, as col�nias podem,
em certa medida, servir de v�lvulas de seguran�a para a sociedade moderna. E essa utilidade, fosse embora a �nica,
seria imensa'' (apud Aim� C�saire, Discours sur le colonialisme, Paris, Pr�sence Afri-caine, 1955, p. 20).
(14) Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, p. 110.
(15) O capital, vol. I, p. 260.
(16) O tema da centraliza��o e, como seu correlato, o da tradi��o autorit�ria foram superiormente tratados por
Raymundo Faoro em Os donos do poder. Forma��o do patronato pol�tico brasileiro. Porto Alegre, Globo, 1958.
(17) Caio Prado Jr., Forma��o do Brasil contempor�neo, S�o Paulo, 1942; Nelson Wer-neck Sodr�, Forma��o da
sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Jos� Olympio, 1944; Celso Furtado, Forma��o econ�mica do Brasil, Rio de
Janeiro, Fundo de Cultura, 1959; Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, S�o Paulo,
Hucitcc, 1979; Jacob Gorender, O escravismo colonial, S�o Paulo, �tica, 1977; Maria Sylvia Carvalho Franco,
"Organiza��o social do trabalho no per�odo colonial", in rev. Discurso, n? 8, S�o Paulo, USP � Depto. de Filosofia,
Hucitec, 1978.
(18) Em Ra�zes do Brasil, 3* ed., Rio de Janeiro, Jos� Olympio, 1956, p. 188. A tese mais geral do autor assenta na
hip�tese de que "na capacidade para amoldar-se a todos os meios, em preju�zo, muitas vezes, de suas pr�prias
caracter�sticas raciais e culturais, revelou o portugu�s melhores aptid�es de colonizador do que os demais povos,
porventura mais in-flexivelmente aferrados �s peculiaridades formadas no Velho Mundo" (idem, ibidem).
(19) K. Marx, Critique ofHegefs philosophy ofright, Cambridge, University Press, 1970, p. 131.
(20) T. S. Eliot, Notas para uma defini��o de cultura, Rio de Janeiro, Zahar, 1965, p. 64.
(21) Em Lacculturazione. Per un nuovo rapporto tra ricerca storica e scienze umane, 3? ed., Turim, Einaudi, 1971,
p. 89386


(22) Em Cartas, informa��es, fragmentos hist�ricos e serm�es {1554-94), Rio de Janeiro, Academia Brasileira de
Letras, 1933, p. 334.
(23) Idem, ibidem.
(24) Idem, ibidem.
(25) Idem, p. 375.
(26) Cf. Eduardo Hoornaert, ' 'Rio de Janeiro, uma igreja perseguida'', in Revista Eclesi�stica Brasileira, Petr�polis,
Vozes, 1971; Am�rico Jacobina Lacombe, "A Igreja no Brasil colonial", in Hist�ria geral da civiliza��o brasileira,
dir. S. B. de Holanda, Difel, 1977, t. I, vol. 2. Sobre a situa��o na Bahia, o livro exemplar de Thales de Azevedo,
Igreja e Estado em tens�o e crise, S�o Paulo, �tica, 1978.
(27) O texto de Vi�o pode-se traduzir assim: "Nas crian�as � vigoros�ssima a mem�ria; portanto, � vivida at� o
excesso a fantasia, que nada mais � do que mem�ria ou dilatada ou composta" (Lascienza nuova. Livro I, se��o 2%
senten�a L. Bari, Laterza, 1953. A edi��o segue o texto de 1744).
(28) 'Thistoire nous montre tous les peuples sup�rieurs en civilisation fondant des colonies, m�s par une force

instinetive et parfois malgr� eux'' {Enciclop�dia Larousse do s�culo XIX, verbete "colonisation").

(29) Por que o poeta escolheu para ser porta-voz dos descontentes a figura de um anci�o an�nimo do qual n�o se sabe
mais que a idade avan�ada e o "aspecto venerando"? O lastro da experi�ncia entrou decerto como um motivo forte,
mas tamb�m pesou outro fator, o da raridade dessa mesma experi�ncia. O pouco que sabemos da composi��o
demogr�fica de Portugal na �poca autoriza a estimar que a esperan�a de vida n�o deveria ir al�m dos quarenta anos.
Vasco da Gama n�o completara trinta anos de idade quando d. Manuel lhe confiou a chefia da frota indica. Cabral
tinha 32 anos quando aportou �s costas brasileiras. Calcule-se a mocidade das tripula��es. A senectude trazia uma
aura de sabedoria inco-mum que, cm face do atrevimento dos jovens nautas, faria o contraponto de prud�ncia e apego
� terra.
(30) Em A literatura portuguesa e a expans�o ultramarina, Hernani Cidade se det�m no que chama expressivamente
' 'as sombras do quadro''. O autor alinha v�rios passos liter�rios e hist�ricos que exprimem tristeza, ang�stia ou
mesmo aberta indigna��o pelos males sobrevindos com a empresa do Ultramar. Entre os ' 'acordes da grande elegia''
encontram-se trechos do Cancioneiro geral �e Garcia de Resende, das D�cadas de Jo�o de Barros e do Soldado
pr�tico de Diogo de Couto; mais tarde a lancinante Hist�ria tr�gico-mar�tima com a sua narra��o de doze naufr�gios
daria testemunho cabal dos desastres portugueses no Atl�ntico e no Indico. O lado funesto da aventura expansionista
era bem conhecido de Cam�es: perj�rios, saques, matan�as (que envolveram at� mesmo tenta��es de antropofagia
por parte de n�ufragos portugueses fam�licos...), estupros, fugas, suic�dios � em suma, farta mat�ria para compor
uma antiepop�ia da coloniza��o.
(31) Lembro tr�s obras exemplares: O messianismo no Brasil e no mundo, de Maria Isaura Pereira de Queiroz (S�o
Paulo, Dominus, 1965); Messianismo e conflito social, de Maur�cio Vinhas de Queiroz (2? ed., S�o Paulo, �tica,
1977); e Os errantes do novo s�culo, de Duglas Teixeira Monteiro (S�o Paulo, Duas Cidades, 1976). Por tr�s de
todas, Os sert�es de Euclides da Cunha, de 1902.
(32) O. E. Xidieh, Narrativas pias populares (1967) e Semana santa cabocla (1972), ambas publica��es do Instituto
de Estudos Brasileiros da Universidade de S�o Paulo. "Cultura Popular", diz Xidieh, "� um fen�meno que se marca
historicamente, mas cuja data de instaura��o s� pode ser estabelecida, sociol�gica e antropologicamente, mediante a
constata��o de situa��es em que novos e velhos modelos de vida socioculturais entram em confli387



to. Quando a hist�ria 'fala', o fato j� foi consumado [...] Ora, o que pretendemos sublinhar � que a cultura popular, n�o
sendo mais a cultura primitiva, perpetua, no entanto, por heran�a ou por descoberta, in�meros de seus tra�os c
padr�es: a tradi��o, a analogia, a considera��o dos fatos da natureza, a disposi��o m�gica perante o mundo, o
sentido da repeti��o. Mas um ditado popular expressa tamb�m a sua din�mica: 'De hora em hora Deus melhora' e
est� a indicar a sua possibilidade de renova��o e de reelabora��o" ("Cultura popular", texto inserto no folheto da
Feira Nacional da Cultura Popular, S�o Paulo, Sesc, 1976, p. 14).

(33) Em S�lvio Romero, Folclore brasileiro. Cantos populares do Brasil, 3? ed., Belo Horizonte/S�o Paulo,
Itatiaia/Edusp, 1985, p. 294. Ver o coment�rio de Jo�o Ribeiro em O folclore, xxvii.
(34) Ver Imagens religiosas de S�o Paulo, de Eduardo Etzel, S�o Paulo, Melhoramentos, 1971.
(35) Lu�s Saia, Escultura popular brasileira, S�o Paulo, Gaveta, 1944.
(36) V. Etzel, op. cit.
(37) Nina Rodrigues, "Ilus�es da catequese", in Revista do Brasil, 1896; e Os africanos no Brasil, 5? ed., S�o Paulo,
Nacional, 1977 (escrito em 1916).
(38) O primeiro ensaio de an�lise art�stica e interpreta��o social da obra do Aleijadi-nho deve-se a M�rio de Andrade,
"O Aleijadinho" (1928), integrado mais tarde nos Aspectos das artes pl�sticas no Brasil. A �tica de M�rio de
Andrade valoriza o expressionismo pl�stico e a condi��o mulata do escultor.
(39) Morales de los Rios, citado por Afonso T�unay, in A miss�o art�stica de 1816, Rio de Janeiro, MEC, 1956, p.
51.
(40) Em O seminarista, "romance brasileiro", publicado em 1872. Para a cr�tica desse passo, leia-se o artigo de
Lourival Gomes Machado, "Muito longe da perfei��o", in Barroco mineiro, S�o Paulo, Perspectiva, 1978.
(41) Segundo Pierre Verger, o termo candombl� s� teria sido adotado no Brasil a partir do come�o do s�culo XIX ou,
mais precisamente, desde 1826. "Antes dessa data, em todo Brasil, o termo mais comum para as pr�ticas religiosas
coletivas de origem africana parece ter sido Calundu, uma express�o angolana. Outro termo corrente � batuque, mas
aqui rituais religiosos e divertimentos seculares se confundem" {Not�cias da Bahia � 1850, Salvador, Corrupio,
1985, p. 227).
(42) Nuno Marques Pereira (Bahia, 1652 � Lisboa, 1731), Comp�ndio narrativo do Peregrino da Am�rica. Em que
se tratam v�rios discursos espirituais, e morais, com muitas advert�ncias e documentos contra os abusos que se
acham introduzidos pela mal�cia diab�lica no Estado do Brasil. 6?ed., Rio de Janeiro, Academia Brasileira de
Letras, 1939, vol. l,p. 123.
2. ANCHIE7A OU AS FLECHAS OPOSTAS DO SAGRADO (pp. 64-93)
{\)Joseph de Anchieta S. J. � Poesias. Manuscrito do s�culo XVI, em portugu�s, castelhano, latim e tupi,
transcri��o, tradu��o e notas de Maria de Lourdes de Paula Martins, S�o Paulo, Comiss�o do IV Centen�rio, 1954, p.

556.
(2) Veja-se a reconstru��o das cren�as tupi-guaranis feita por Hel�ne Clastres, in Terra sem mal (S�o Paulo,
Brasiliense, 1978). At� o momento n�o h� acordo entre os antrop�logos sobre o grau de pertin�ncia da equa��o
Deus=Tup�, que � parcialmente admitida por H. Clastres, cujo eixo de interpreta��o gira em torno das cren�as
apocal�pticas dos guaranis (de onde o relevo dado � figura destruidora de Tup�), mas que � tida por arbitr�ria e
imaginada pelos jesu�tas segundo as leituras de Alfred Mctraux, Egon Schaden e L�on Cadogan. Confor388


me o ju�zo de Curt Nimuendaju, que conviveu intimamente com os nandeva-guarani no come�o do s�culo XX, a
correspond�ncia entre Tup� e o Deus criador crist�o � um produto da ' 'fantasia dos mission�rios'', n�o encontrando
respaldo nas narrativas colhidas por ele pr�prio: de consulta imprescind�vel s�o As lendas da cria��o do mundo
como fundamentos da religi�o dos apapocuva-guarani, S�o Paulo, Hucitec/Edusp, 1987 � o original alem�o saiu
em Berlim, 1914.

(3) Carta ao geral Diogo Lainez, de S�o Vicente, a 16 de abril de 1563, em Cartas, informa��es, fragmentos
hist�ricos e serm�es. Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp, 1988, pp. 199-200.
(4) Cartas, informa��es..., cit., p. 339.
(5) Poesias, cit., pp. 684-6.
(6) Poesias, cit., pp. 684-6.
(7) Tarra�n ou tarrasc�n. ' 'Aumentativo de tarasca (fr. tarasque; prov. mod. tarasco): fantasma; ser fant�stico;
serpente monstruosa, de boca enorme, em atitude de morder, que, em certas regi�es, aparecia por ocasi�o da
prociss�o de Corpus Christi. Em portugu�s a palavra come�a a surgir no s�culo XVI'' (Edith Pimentel Pinto, O auto
da ingratid�o, S�o Paulo, Conselho Estadual de Artes e Ci�ncias Humanas, 1978, p. 258).

(8) Walter Benjamin, A origem do drama barroco, S�o Paulo, Brasiliense, 1984. O original alem�o � de 1925.
(9) George Luk�cs, Est�tica, I, vol. 4 (cap. "S�mbolo y alegoria"), Barcelona, Grijal-bo, 1967, p. 405.
(10) Diz Helmut Hatzfeld:'' S�o Jo�o da Cruz efetivamente considera o lirismo um grito estilizado e esclarece na
introdu��o de sua Llama de amor viva que �s vezes um poema deve conter exclama��es como oh! e ah! para
exprimir adequadamente o inef�vel. Da mesma maneira declara Val�ry: 'Poesia � um intento de representar por meio
de linguagem articulada aquelas coisas, ou coisa, que se trata de exprimir vagamente por meio de gritos, l�grimas,
car�cias, beijos, suspiros etc' " (Est�dios liter�rios sobre m�stica espanola, Madri, Gredos, 1968, p. 329).
3. D� ANTIGO ESTADO � M�QUINA MERCANTE (pp. 94-118)
(1) O belo soneto de Francisco Rodrigues Lobo,' 'formoso Tejo meu'', vem de imediato � mem�ria, pela semelhan�a
do jogo estil�stico:
Fermoso Tejo meu, qu�o diferente Te vejo e vi, me v�s agora e viste: Turvo te vejo a ti, tu a mim triste Claro te vi
eu j�, tu a mim contente. A ti foi-te trocando a grossa enchente A quem teu largo campo n�o resiste: A mim
trocou-me a vista em que consiste O meu viver contente ou descontente.
J� que somos no mal participantes, Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera Que foramos em tudo semelhantes1.
Mas l� vir� a fresca primavera:
Tu tomaras a ser quem eras de antes,
Eu n�o sei se serei quem de antes era.


389


Se h� identidade de formas l�xicas e gramaticais, n�o h�, por�m, analogia de fun��o. No soneto de Rodrigues Lobo a
palavra l�rica invoca e evoca o p�trio rio tocada por um sentimento de uni�o: "Oh! quem me dera/ Que f�ramos em
tudo semelhantes!''. Em Greg�rio, censura e castigo apartam duramente o homem e a sua cidade. Mais uma vez, um
poeta maneirista dos Seiscentos vale-se de um procedimento ilustre para nobilitar a sua dic��o, tornando-a rica de
reminisc�ncias cl�ssicas. Mas, na concha ac�stica do seu espa�o po�tico, o eco assume outra finalidade de sentido.

(2) Ver Roberto Simonsen, Hist�ria econ�mica do Brasil(1500-1820), 3? ed., S�o Paulo, Nacional, 1957; Magalh�es
Godinho, "Portugal, as frotas do a��car e as frotas do ouro" in Revista de Hist�ria, n? 15, 1953, pp. 69-88; Fr�d�ric
Mauro, Nova hist�ria e Novo Mundo, S�o Paulo, Perspectiva, 1969(
3) Mauro, op. cit., p. 112.
(4) Apud Celso Furtado, Forma��o econ�mica do Brasil, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1959, p. 46.
(5)
Queixa-se a Bahia dos invasores
"Eu me lembro que algum tempo
(isto foi no meu princ�pio)
a semente, que me davam,
era boa, e de bom trigo.
Por cuja causa meus campos
produziam pomos lindos,
de que ainda conservam
alguns remotos ind�cios.
Mas depois que v�s viestes
carregados como ouri�os
de sementes invejosas,
algumas de maus v�cios;
logo declinei convosco,
e tal volta tenho tido,
que o que produzia rosas
hoje s� produz espinhos"

(6) Cf. a "Vida do excelente poeta l�rico, o doutor Greg�rio de Matos e Guerra", transcrita no s�timo volume das
Obras completas de Greg�rio de Matos, org. James Amado, Salvador, Ed. Jana�na, pp. 1689-721.
(7) Cf. Gli intellettuali e 1'organizzazione delia cultura, Roma, Ed. Riuniti, 1977, pp. 3-23.
(8) Di�logos, Lisboa, S� da Costa, 1944, p. 167. P�ginas atr�s, fr. Amador Arrais j� exclamara: "Bem-aventurada a
terra, cujo rei � nobre!" (p. 132).
(9) Abdias do Nascimento retoma o problema do sentido de mesti�agem em "Nota breve sobre a mulher negra",
inserta em O quilombismo, Petr�polis, Vozes, 1980, pp. 229-44.
(10) M. Bakhtin, La cultura popular en Ia Edad Media y en ei Renacimiento. El contexto de Fran�ois Rabelais, trad.
esp., Barcelona, Barrai Ed., 1974, A edi��o russa � de 1965.
(11) Bari, Ed. Laterza, 1956.
(12) Ver para todo esse t�pico a an�lise complexa e abrangente de Jo�o Adolfo Hansen em A s�tira e o engenho,
Greg�rio de Matos e a Bahia do s�culo XVII, S�o Paulo, Companhia das Letras, 1989.
(13) Graci�n, ElComulgatorio � Meditaci�n X�/F[l655], Barcelona, Ed. Labor, 1947, p. 163.
390
4. VIEIRA, OU A CRUZ DA DESIGUALDADE (pp. 119-48)
(1) Cf. o estudo de Artur C�zar Ferreira Reis, "O com�rcio colonial e as companhias privilegiadas", in Hist�ria geral
da civiliza��o brasileira (dir. S�rgio Buarque de Holanda). I, A �poca colonial, 2 vols., S�o Paulo, Difel, 1977, pp.
311-51.
(2) Serm�es, Porto, Lello, vol. m, t. 8, pp. 55 ss. Todas as cita��es de Vieira foram tiradas dessa edi��o.
(3) Idem, I, 1, pp. 42 ss.
(4) Idem, I, 1, pp. 56-7.
(5) Idem, i, 1, pp. 57-8.
(6) Idem, I, 1, p. 58.
(7) Idem, I, 1, p. 212.
(8) Idem, I, 1, p. 208.

(9) Em Esbo�o de uma cr�tica da economia pol�tica. O texto de Engels foi publicado pela primeira vez nos Deutsch
Franz�sische Jahrb�cher, em Paris, 1844. A tradu��o para o portugu�s de que me vali � de Maria Filomena Viegas
com revis�o de Jos� Paulo Netto, in revista Temas de Ci�ncias Humanas, n? 5, S�o Paulo, Hucitec, 1979.
(10) Serm�es, cit., m, 1, p. 155.
(11) Idem, III, 1, p. 157.
(12) Idem, m, 1, p. 158.
(13) Idem, iv, 11, p. 372. .
(14) Idem, II, 4, pp. 203-4.
(15) A presen�a de um veio antibarroco ou, mais precisamente, anticultista, na obra, em �ltima inst�ncia, barroca, de
Vieira est� a exigir um estudo que avalie o peso da raz�o mercantilista no discurso do grande pregador. A
perplexidade que perpassa o ensaio de Ant�nio Jos� Saraiva sobre o Serm�o da Sexag�sima me parece um sinal de
que as contradi��es de Vieira j� come�am a inquietar os seus leitores modernos. V. O discurso engenhoso; S�o
Paulo, Perspectiva, 1980, pp. 113-24.
(16) Serm�es, cit., pp. 210-1.
(17) Idem, I, 2, p. 44.
(18) Idem, I, 2, pp. 42-3(
19) Ler, a prop�sito, o estudo de Jos� Oscar Beozzo, Leis e regimentos das miss�es, S�o Paulo, Loyola, 1983. Para o
levantamento dos textos, incluindo v�rias cartas de Vieira, � ainda indispens�vel a Hist�ria da Companhia de Jesus
no Brasil, de Serafim Leite, Lisboa Rio de Janeiro, 1938, esp. tomos ffl e iv.
(20) Serm�es, cit., I, 2, p. 32.
(21) Ver a Defesa perante o Tribunal do Santo Of�cio com introdu��o e notas de Her-nani Cidade, Salvador,
Publica��es da Universidade da Bahia, 1957, 2 t.
(22) Idem, I, 3, p. 16.
(23) Idem, I, 3, p. 20.
(24) "Segundo a Informa��o que por ordem do Conselho Ultramarino deu sobre as coisas do Maranh�o ao mesmo
conselho, Vieira informou que a popula��o ind�gena do Maranh�o diminu�ra de 2 milh�es entre 1615 e 1652! Ora, a
popula��o portuguesa no Maranh�o n�o passava de oitocentas pessoas em 1650. Esses n�meros na verdade se
comparam com os que Bartolom� de Las Casas deu em rela��o � matan�a dos �ndios na conquista espanhola na
regi�o do Caribe'' (Eduardo Hoornaert et alii, Hist�ria da Igreja no Brasil. Primeira �poca, Petr�polis, Vozes, 1977,
p. 88).
(25) Serm�es, cit., rv, 11, p. 315.
391

(26) Idem, IV, 11, p. 315.
(27) Marx, nos Manuscritos econ�micos e filos�ficos, trad. Octavio Alves Velho, Rio
de Janeiro, Zahar, p. 77.
(28) Serm�es, cit., rv, 12, p. 330.
(29) Idem, IV, 12, p. 331.
(30) Idem, iv, 12, p. 81.
(31) Idem, IV, 12, p. 91.
(32) Idem, iv, 12, p. 82.
(33) Idem, IV, 20, p. 357.
(34) Idem, IV, 20, p. 358.
5. AN70NIL OU AS L�GRIMAS DA MERCADORIA (pp. 149-75)
(1) Serafim Leite, Hist�ria da Companhia de Jesus no Brasil, t. Viu, Lisboa/Rio, INL,
1949.
(2) � o Compendium vitaepereximiipatris Antonii Vieyrae, cujo aut�grafo se encontra no Arquivo da Companhia em
Roma (Lusit�nia 58 (2), 520-7). Nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, xix (1897), publicou-se com o
t�tulo de "Carta do p. reytor do Collegio da Bahia em que d� conta ao p. geral da morte do p. Ant�nio Vieyra e refere
as principais ac�oens de sua vida. Bahia, 20 de julho do ano de 1697".
(3) V. a carta de Vieira ao bispo de Pernambuco, em Cartas, ed. da Universidade de Coimbra, m, 554.
(4) Em Hist�ria geral do Brasil, 9? ed., S�o Paulo, Melhoramentos, 1978, t. rv, vol. 2, p. 98.
(5) Cartas, ed. de L�cio de Azevedo, Universidade de Coimbra, 1928, vol. m, p. 670.
(6) Exclama��o de Acosta, apud Lewin Hanke, Arist�teles e os �ndios americanos, S�o Paulo, Martins, s. d., p. 116.
(7) Apud Serafim Leite, Hist�ria da Companhia de Jesus no Brasil, cit., t. Vil, p. 111. Traduzo o adv�rbio statim por
' 'desde j�'', mas poderia vert�-lo por ' 'estavelmente, regularmente", conforme me alertou o latinista Fl�vio
Vespasiano DiGiorgi que considera esta alternativa tamb�m condizente com a pretens�o de Andreoni.
(8) Em Ia Sinagoga disingannata, ovvero viafacile a mostrare a qualunque ebreo Ia fidsit� delia sua setta e Ia perita
delia legge Cristiana, Bolonha, per il Longhi, 1694. A tradu��o de Andreoni saiu em Lisboa pela Officina da Musica
em 1720.
(9) Em Francisco Rodrigues, "O p. Ant�nio Vieira. Contradi��es e aplausos. � luz de documenta��o in�dita", in
Revista de Hist�ria, Lisboa, 1922, xi, p. 114. Encontra-se no Arquivo Romano o aut�grafo do Index
manuscriptorump. Antonii Vieyrae, quaepost mortem in eius cub�culo inventa sunt. Bahiae, 22Juli 1697, que � a lista
dos aut�grafos encontrados na cela de Vieira e encerrados por Andreoni no cofre que remeteu � sede italiana da
Companhia.
(10) Ver a substanciosa introdu��o de Alice Canabrava � oitava edi��o de Cultura e opul�ncia do Brasil, S�o Paulo,
Nacional, 1967.
(11) Foi o que viu com acuidade Jos� Paulo Paes em "A alma do neg�cio" (Mist�rio em casa, S�o Paulo, Comiss�o
de Literatura, 1961).
(12) Isa�as, Lxm, 3. A B�blia de Jerusal�m verte este passo com a frase: "Sozinho pisei a dorna". Isa�as refere-se �
cuba onde as uvas eram esmagadas pelos p�s dos vinhateiros. Informa-nos Ruy Gama que ' 'prensas de t�rculo foram
usadas nos engenhos de a��car mais primitivos anteriormente � inven��o da moenda de tr�s rolos verticais"
(Engenho e tecnologia, S�o Paulo, Duas Cidades, 1983, p. 97).
392

(13) Vieira, Serm�es, Porto, Lello & Irm�o, 1959, vol. IV, tomo 11, pp. 305-6.
(14) Idem, p. 312. Conservamos a pontua��o desta edi��o.
6. UM MITO SACRIFICIAL: O INDIANISMO DE ALENCAR (pp. 176-93)
(1) O leitor encontrar� farto exempl�rio do pensamento regressista brasileiro, dominante at� a d�cada de 1860,
consultando os Anais do Parlamento impressos no Rio de Janeiro pela Tipografia Villeneuve. V. adiante o cap�tulo
"A escravid�o entre dois liberalismos".
(2) A express�o � tirada de um cl�ssico da historiografia latino-americana, La p�tria delcriollo, de Severo Mart�nez
Pel�ez, que a aplicou � forma��o nacional da Guatemala (Costa Rica, Editorial Centroamericana, 1973).
(3) Machado de Assis, "Iracema, por Jos� de Alencar", in Di�rio do Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1866.
(4) Augusto Meyer, ' 'Alencar e a tenuidade brasileira'', in Jos� de Alencar, Fic��o completa e outros escritos, Rio de
Janeiro, Aguilar, 1964, vol. II, pp. 11-24.
(5) Edi��o brasileira: Porto Alegre, L&PM, 1985.

(6) Apocalipse, cap. vi. Para compreender a linguagem pr�pria do apocalipse tupi-gu�rani, a fonte � sempre Curt
Nimuendaju, As lendas da cria��o e destrui��o do mundo, j� citado. Nada indica que G. Dias pudesse ter not�cia
dessas lendas que Nimuendaju iria colher e traduzir s� no come�o do s�culo XX. De qualquer modo, as figuras dos
relatos guaranis, centradas na eros�o e principalmente no dil�vio, n�o correspondem aos sinais catacl�s-micos
evocados no "Canto do piaga".
(7) Por volta de 1972, a pedido de Anatol Rosenfeld, escrevi um ensaio intitulado "Imagens do Romantismo no
Brasil". E o primeiro t�pico desse estudo que, com alguns acr�scimos, vem aqui inserto sob o intert�tulo: Um castelo
no tr�pico?.
7. A ESCRAVID�O ENTRE DOIS LIBERALISMOS (pp. 194-245)
(1) A. Figueira, Anais do Parlamento, Rio de Janeiro, Tip. Villeneuve, 1871, Ap�ndice, p. 26.
(2) Casa-grande & senzala e Sobrados e mocambos, de Gilberto Freyre; Forma��o do Brasil contempor�neo, de
Caio Prado Jr.; Hist�ria do caf� no Brasil, de Affonso de Taunay; Capitalismo e escravid�o, de Eric Williams;
Forma��o econ�mica do Brasil, de Celso Furtado; Grandeza e decad�ncia do caf� no vale do Para�ba, de Stanley
Stein; Capitalismo e escravid�o no Brasil meridional, de Fernando Henrique Cardoso; As metamorfoses do escravo,
de Oct�vio Ianni; Da senzala � col�nia, de Em�lia Viotti da Costa; Homens livres na ordem escravocrata, de Maria
Sylvia Carvalho Franco; A forma��o do povo no complexo cafeeiro, de Paula Beiguelman; Os �ltimos anos da
escravatura no Brasil, de Robert Conrad; e O escra-vismo colonial, de Jacob Gorender nos d�o a an�lise do processo
pelo qual os senhores de engenho e os fazendeiros de caf� regularam a vida econ�mica da nova na��o e compuseram,
desde a ruptura com o pacto colonial, a sua hegemonia em estreita conex�o com o com�rcio internacional e o tr�fico
negreiro. Quanto � obra pol�tica dessa classe, encontrou int�rpretes de pulso em Tavares Bastos (Aprov�ncia, Cartas
do solit�rio), Joaquim Nabuco (Um estadista do Imp�rio), Jos� Maria dos Santos (A pol�tica geral do Brasil), Victor
Nunes Leal (Coronelis-mo, enxada e voto), Raymundo Faoro (Os donos do poder), Jos� Hon�rio Rodrigues
(Concilia��o e reforma no Brasil) e S�rgio Buarque de Holanda (Do Imp�rio � Rep�blica).
393


(3) R. Conrad, Os tumbeiros, S�o Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 103-4.
(4) Ibidem, p. 118. Veja-se tamb�m a an�lise de Stanley Stein: "O aumento das importa��es de escravos na d�cada de
1840 beneficiou tanto os fazendeiros como os cofres p�blicos; em 1848 perto de 60% das contribui��es do munic�pio
de Vassouras, Prov�ncia do Rio de Janeiro, procediam de impostos sobre a venda de escravos" {Grandeza e
decad�ncia do caf� no vale do Para�ba, S�o Paulo, Brasiliense, 1961, p. 161).
(5) O. Duque-Estrada, A aboli��o {esbo�o hist�rico). Rio de Janeiro, Leite Ribeiro & Maur�lio, 1918, p. 28.
(6) L. Bethell, A aboli��o do tr�fico escravo no Brasil, S�o Paulo, Edusp, 1976, pp. 73-4.
(7) Ibidem, p. 74.
(8) W. Cohen, Fran�ais et Africains. Les Noirs dans le regard des Blancs {1530-1880), Paris, Gallimard, 1981, pp.
42-9, 271-8.
(9) A preocupa��o maior de Tocquev�le parece ter sido a de garantir a passagem imediata do liberto para a condi��o
oper�ria; o que explicaria esta sua proposta (que Aim� C�-saire julga ' 'c�nica") de proibir aos alforriados a posse da
terra a fim de apressar a sua entrada na classe prolet�ria: "Se os negros emancipados, n�o podendo nem permanecer
na vagabundagem, nem obter para si um pequeno lote de terra, fossem obrigados para viver a alugar os seus servi�os,
� muito veross�mil que a maior parte deles acabaria ficando nos engenhos... Atente-se mais de perto para a quest�o e
se ver� que a interdi��o tempor�ria de possuir a terra � n�o s�, de todas as medidas excepcionais a que se pode
recorrer, a mais eficaz, mas tamb�m a menos opressiva. Interditando temporariamente aos negros a posse da terra, o
que se faz? N�s os colocamos artificialmente na posi��o em que se acha naturalmente [sic] o trabalhador da Europa.
Seguramente n�o h� nisso tirania, e o homem ao qual se imp�e essa restri��o ao sair do cativeiro n�o parece ter o
direito de queixar-se". V. Victor Schoel-cher, Esclavage et colonisation, com pref�cio de Aim� C�saire, Paris, PUF,
1948, p. 9(
10) R. Faoro, "Existe um pensamento pol�tico brasileiro?", in Estudos Avan�ados, S�o Paulo, (I):44, out./dez. 1987.
(11) Apud Joaquim Nabuco, Um estadista do Imp�rio, 2? ed., Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1975.
(12) Idem, ibidem.
(13) O. T�rq��nio de Sousa, Evaristo da Veiga, Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp, 1988, p. 153.
(14) P. Silva, "O Brasil no Reinado do sr. d. Pedro II", in Escritos pol�ticos e discursos parlamentares, Rio de
Janeiro, Garnier, 1862, p. 28 (escrito em l�ngua francesa e publicado na Revue des Deux Mondes, de 15 de abril de
1858).
(15) O. T�rq��nio de Souza, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp, 1988, p.
77.
(16) Saint-Hilaire, A segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a S�o Paulo, trad. rev. e pref�cio de
Vivaldi Moreira, Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp, 1974, p. 94.
(17) J. Nabuco, Um estadista..., op. cit., p. 77.
(18) E. Hobsbawm, A era das revolu��es. Europa. 1780-1848, 5? ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 262.
(19) J. Nabuco, O abolicionismo, 4? ed., Petr�polis, Vozes, 1977, pp. 117-8.
(20) P. Malheiro, A escravid�o no Brasil, 2? ed., Petr�polis, Vozes, 1976, vol. II, p. 301.
(21) A treatise upon tradefrom Great-Britain to �frica; humbly recommended to the attention of government by an
African merchant, Londres, R. Baldwin, n? 47, Patcr-Nostcr Row, 1772.
(22) C. Furtado, Forma��o econ�mica do Brasil, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1959, p. 123.
394

(23) Citado, elogiosamente, por S�lvio Romero, na Hist�ria da literatura brasileira 5? ed., Rio de Janeiro, J.
Olympio, 1953, vol. v, pp. 1727-9. A refer�ncia ao pedido que Di�genes fez a Alexandre (' 'Retira-te do meu sol!") j�
estava nos escritos de Bentham contra o protecionismo � ind�stria nacional...
(24) R. Walsh, Not�cias do Brasil, Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp 1985 p. 109.
(25)J. Dorfman, The economic mindin American civilization, Nova Yotk, Augustes M. K�lley Publishers, 1966. Ver
especialmente o cap�tulo "The Southern tradition of laissez-faire''. A involu��o do liberalismo do Sul para uma
ideologia escravista total chamou a aten��o de um ensa�sta contempor�neo, lido por Marx e Engels, John Cairnes,
que escreveu The slave power, em 1863.
(26) J. H. Franklin, From slavery tofreedom, 5? ed., Nova York, Alfredo Knopf, 1980.
(27) A. J. Mello Moraes, A Inglaterra e seos tractados... (op�sculo), Bahia, Tip. Correio Mercantil de F. Vianna e
Comp., 1844, p. 26.
(28) Ibidem, p. 33.
(29) Idem, ibidem, p. 41.

(30) G. Myrdal, An American dilemma: the negro problem in a modem democracy, Nova York, Harper & Brothers,
1944, p. 442.
(31) Ibidem, p. 441.
(32) F. W. Knight, "Slavery, race and social strueture in Cuba during the 19th Cen-tury", in R. B. Toplin, org.,
Slavery and race relations in Latin America, Connecticut, Green-wood Press, 1970, p. 221. A fus�o de liberalismo,
nativismo antiespanhol e defesa da escravid�o em Cuba foi tamb�m observada por Eug�nio D. Genovese em O
mundo dos senhores de escravos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, pp. 75-80.
(33) T. Bastos, Cartas do solit�rio, 4? ed., S�o Paulo, Nacional, 1945, Carta xi.
(34) S. Mart�nez Pel�ez, La p�tria delcriollo, Costa Rica, Editorial Universit�ria Cen-troamericana, 1973.
(35) A. Smith, A riqueza das na��es, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1983 vol II p 137.
(36) Ibidem, p. 139(
37) Idem, ibidem, p. 138.
(38)Jean-Baptiste Say, Tratado de economia pol�tica, S�o Paulo, Nova Cultural, 1986, Livro I, cap. 19.
(39) Ibidem.
(40) Idem, loc. cit.
(41) O. T�rq��nio de Sousa, Evaristo da Veiga, cit., p. 61.
(42) Em O Independente, 14 de mar�o de 1832, apud Augustin Wernet, Sociedades pol�ticas (1831-2), S�o Paulo,
Cultrix, 1978, p. 67.
(43) Apud J. Nabuco, O abolicionismo, op. cit.
(44) Apud J. Nabuco, Um estadista..., op. cit., pp. 217-8.
(45) J. Nabuco, Um estadista..., op. cit., p. 319.
(46) L. Gama (Getulino), Primeiras trovas burlescas, 3? ed., S�o Paulo, Tip. Bentley J�nior & Comp., 1904.
(47)J. M. V. Santos, A pol�tica geral do Brasil, S�o Paulo, J. Magalh�es, 1930, pp. 133-54.
(48) J. Nabuco, "O terreno da luta", in Jornal do Com�rcio, 19 de julho de 1884.
(49) T. Bastos, Cartas do solit�rio, op. cit., p. 268.
(50) "Na regi�o nordestina de Pernambuco, por exemplo, onde o trabalho escravo predominara nas fazendas da
�poca da Independ�ncia, j� na d�cada de 1870 o trabalho livre
395


tornara-se mais importante" ( Peter L. Eisenbcrg, "A aboli��o da escravatura: o processo nas fazendas de a��car cm
Pernambuco", in Estudos Econ�micos, S�o Paulo, 2(6):181, dez. 1972).

(51) Apud S. B. de Holanda, Do Imp�rio � Rep�blica, 4� ed., S�o Paulo, Difel, 1985, p. 204.
(52) J. Nabuco, Minha forma��o, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1957, p. 34.
(53) Ibidem, p. 201.
(54) Idem, ibidem, p. 59.
(55) Em O Pa�s, 9 de dezembro de 1886; transcrito por Paula Beiguelman, Joaquim Nabuco. Pol�tica, S�o Paulo,
�tica, pp. 136-7.
(56) J. M. Cardoso de Melo, O capitalismo tardio, S�o Paulo, Brasilicnse, 1982.
(57) Ibidem, p. 72.
(58) O Centro Liberal, Bras�lia, Ed. Senado Federal, 1979, p. 44.
(59) Ibidem, p. 1000.
(60) Idem, ibidem, p. 102.
(61) Um estadista..., op. cit., p. 662.
(62) Idem, ibidem.
(63) Irata-se de uma carta confidencial do ministro Nabuco a Saraiva quando este presidia � prov�ncia de S�o Paulo.
A data � 22 de setembro de 1854 (Um estadista..., op. cit., p. 207).
(64) Q. Bocayuva, A crise da lavoura, Rio de Janeiro, Tip. Perseveran�a, 1868.
(65) J. Nabuco, Minha forma��o, cit., p. 196.
(66) Richard Granam. A Gr�-Bretanha e o in�cio da moderniza��o no Brasil. S�o Paulo, Brasilicnse, 1973. Para os
detalhes dos projetos de reforma agr�ria, a leitura mais enri-quecedora � a dos artigos de Andr� Rebou�as, escritos a
partir de 1874 para o Jornal do Com�rcio, e depois reunidos nesta obra capital do novo liberalismo, A agricultura
nacional. Estudos econ�micos. Propaganda abolicionista e democr�tica, Rio, Lamoureux, 1883.
(67) S�lvio Romero. Explica��es indispens�veis (Pref�cio), in T. Barreto, V�rios escritos, Ed. do Estado de Sergipe,
1926, pp. xxni-xxiv. Euciides de Cunha fala em Era Nova para caracterizar o per�odo p�s-68 (� margem da hist�ria).
(68) "Senhores Deputados, os abaixo-assinados oper�rios da capital t�m a honra, em virtude do artigo 45 da Carta
Constitucional, de vir solicitar-vos que vos digneis abolir, nesta sess�o, a escravid�o. Essa lepra, que n�o � mais de
nossa �poca, existe ainda em algumas possess�es francesas. E para obedecer ao grande princ�pio da fraternidade
humana que n�s vimos fazer-vos ouvir a nossa voz em favor de nossos infortunados irm�os, os escravos. Sentimos
tamb�m a necessidade de protestar em alta voz, em nome da classe oper�ria, contra os mantenedores da escravid�o,
que ousam pretender, eles que agem em conhecimento de causa, que a sorte dos oper�rios franceses � mais deplor�vel
que a dos escravos. Pelos termos do C�digo Negro, edi��o de 1685, artigos 22 e 25, os propriet�rios devem alimentar
e vestir o seu gado humano; resulta das publica��es oficiais feitas pelo minist�rio da Marinha e das Col�nias que eles
se desincumbem dessa obriga��o concedendo o s�bado de cada semana aos escravos. Os da Guiana francesa n�o t�m
mais do que um s�bado negro por quinzena contrariamente �s proibi��es do artigo 24 do C�digo Negro e �s
penalidades do artigo 26.
Quaisquer que sejam os v�cios da atual organiza��o do trabalho na Fran�a, o oper�rio � livre, sob certo ponto de vista,
mais livre que os assalariados defensores da propriedade pensante.
O oper�rio se pertence a si mesmo; ningu�m tem o direito de a�oit�-lo, de vend�-lo, de separ�-lo violentamente de
sua mulher, de seus filhos, de seus amigos. Mesmo que os escravos fossem nutridos e vestidos por seus propriet�rios,
n�o se poderia ainda estim�-los
396

felizes, pois, como t�o bem o resumiu o senhor duque de Broglic, seria preciso para tanto dizer que a condi��o de
animal � prefer�vel � do homem, e que mais vale ser um bruto que uma criatura racional. Orgulhosos da santa e
generosa iniciativa que tomamos, estamos seguros de que nossa peti��o encontrar� eco na nobre p�tria, e temos
confian�a na justi�a dos deputados da Fran�a. Paris, 22 de janeiro de 1844. Assinado: Julien Gall� e 1505
assinaturas." (V. Schoelchcr, Esclavage et colonisation, pref�cio de Aim� C�saire, Paris, PUF, 1948, p. 11.)

(69) J. Nabuco, Um estadista..., cit., p. 613.
(70) O tipo de mentalidade que Machado de Assis ironiza � e auto-ironiza enquanto narrador � � o de parte da
classe dominante que, ainda nos �ltimos anos do regime imperial, sustentou in abstracto a norma liberal moderna, ao
mesmo tempo que racionaliza o uso do trabalho escravo, seu maior suporte econ�mico e pol�tico. Nesse contexto, o
liberalismo cl�ssico alardeado �, visto de fora, um desprop�sito, mas nem por isso deixa de ter conseq��ncias para o
cotidiano da burguesia nacional. Esta �, em s�ntese, a hip�tese que Roberto Schwarz prop�s c testou com felicidade

em seu estudo sobre Machado de Assis, Ao vencedor as batatas (S�o Paulo, Duas Cidades, 1977).

(71) Atas da Assembl�ia Legislativa de S�o Paulo de 1870, apud Emflia Viotti Costa, Da senzala � col�nia, S�o
Paulo, Difel, 1966, p. 132.
(72) In Biblioteca da Associa��o Industrial, "O trabalho nacional e seus advers�rios'', Rio de Janeiro, 1881, p. 13,
apud Edgard Carone, O pensamento industrial no Brasil (1880-1945), S�o Paulo, Difel, 1977, p. 151.
(73) J. M. Santos, Os republicanos paulistas e a aboli��o, S�o Paulo, Martins, 1942, pp. 118-9.
(74) Ibidem, p. 150.
(75) Idem, ibidem, p. 225.
(76) Carta a Rebou�as, Rio de Janeiro, 1? de janeiro de 1893, transcrita cm Joaquim Nabuco, Cartas a amigos, S�o
Paulo, Ip�, vol. I, p. 219(
77) Jornal do Com�rcio, 11 de setembro de 1884.
8. SOB O SIGNO DE CAM (pp. 246-72)
(1) O original de Heine pertence ao ciclo Gedichte, 1853-54. Os par�nteses com sic s�o do tradutor brasileiro.
Comenta Augusto Meyer comparando o texto de Heine, primeiro com "Les n�gres et les marionettes" de B�ranger, e
depois com o poema de Castro Alves: "Heine tratou o tema com uma objetividade realista que n�o se observa nos
outros. Para ele a quest�o do escravo integrava-se na quest�o das rela��es de classe e da estrutura econ�mica do
capitalismo. J� num escrito de 1832, coligido em Franz�sische Zustade, ao criticar o liberalismo in�cuo de certos
c�rculos da nobreza alem�, representados no caso pelo conde Moltkc, dizia o poeta: "O conde Moltke certamente
considera a escravid�o o grande esc�ndalo da nossa �poca, e uma aberta monstruosidade. Mas, na opini�o de Myn
Heer van der Null, traficante de Rotterdam, o com�rcio de escravos � uma atividade natural, justificada; o que, pelo
contr�rio, lhe parece monstruoso, s�o os privil�gios da aristocracia, os t�tulos e bens de heran�a, o absurdo
preconceito da nobreza de sangue" (A. Meycr, "Os tr�s navios negreiros", in Correio da Manh�, 19/8/67). Agrade�o
a Marcus Vin�cius Mazzari a gentileza de ter-me obtido a tradu��o e o artigo de Augusto Meycr.
(2) Em artigo publicado ao Jornal do Com�rcio, 14 de agosto de 1899(
3) L�-se uma alus�o ao castigo de Cam na cr�nica de Zurara que narra as primeiras
397


capturas de escravos nas costas d'�frica. A teologia escol�stica, codificada nos s�culos anteriores aos
descobrimentos ib�ricos (c. 1100-1400), n�o precisou elaborar um discurso que justificasse a escravid�o. Santo
Tom�s vincula o cativeiro � guerra, e a guerra � degenera��o que os homens sofreram por causa do pecado original:
"in statu innocentiae non fuisset tale dominium hominis ad hominem" (S. X, I, 9.96, 4c). Santo Tom�s fala de modo
gen�rico sobre "o dom�nio de um homem sobre outro"; concretamente, o que a teologia do seu tempo conheceu foi a
servid�o feudal da qual a escravid�o negra, colonial e mercantil, dos tempos modernos iria diferen�ar-se sob v�rios
aspectos.

(4) Exemplos numerosos dessa interpreta��o do cativeiro africano acham-se em The problem ofslavery in Western
culture, de David B. Davis, Ithaca, Cornell University Press, 1966. A teologia conservadora das miss�es cat�licas e
protestantes recorreu, durante o s�culo XDC, � maldi��o de Cam para justificar as suas atitudes colonialistas na
�frica. V. Albert Per-bal, "La race n�gre et Ia mal�diction de Cham", in Revue de l'Universit� de'Ottawa, vol. iv,
1940, pp. 156-77.
(5) In Careta, Rio de Janeiro, 24/1/1920; transcrito em Coisas do reino dojambon, S�o Paulo, Brasiliense, p. 110.
(6) Ver as observa��es de D. Brookshaw em Ra�a e cor na literatura brasileira, Porto Alegre, Mercado Aberto,
1983, p. 169(
7) Para a an�lise do tema na obra de Lima Barreto, ver o ensaio de Zcnir Campos Reis, "Vidas em tempos escuros",
in Nossa Am�rica, S�o Paulo, Memorial da Am�rica Latina, n? 3, jul./ago. 1990, pp. 32-8.
9. A ARQUEOLOGIA DO ESTADO-PROV1D�NCIA (pp. 273-307)
(1) A. Gerschenkron, Economic backwardness in Historicalperspective, Massachusetts, The Belknap Press, 1966, pp.
22 ss.
(2) Gerschenkron, op. cit., p. 24.
(3)J. Cruz Costa, Contribui��o � hist�ria das id�ias no Brasil, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1956; I. Iins, Hist�ria do
positivismo no Brasil, S�o Paulo, Nacional, 1964.
(4) Op. cit., p. 285. Na interpreta��o de Carpeaux, seriam os lados autorit�rios de nossa hist�ria pol�tica que melhor
teriam assimilado a mensagem positivista.
(5) S�rgio da Costa Franco, J�lio de Castilhos e sua �poca, 2? ed., Porto Alegre, Editora da Universidade, 1988 (a
primeira edi��o saiu em 1967); Joseph Love, O regionalismo ga�cho, S�o Paulo, Perspectiva, 1975. Trabalhos
universit�rios de m�rito s�o: Sandra Jatahy Pesavento, A burguesia ga�cha. Domina��o do capital e disciplina do
trabalho. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988; Guilhermino C�sar et alii (org. J. Dacanal e S. Gonzaga), RS:
economia e pol�tica, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1979; D�cio Freitas et alii, RS: cultura e ideologia. Mercado
Aberto, 1980 (ver, em particular, o ensaio de Nelson Boeira, "O Rio Grande de Augusto Comte"); H�lgio Trindade,
"La 'Dictature R�publicaine' au Rio Grande do Sul: positivisme et pratique politique au Br�sil'', in Cahiers du Br�sil
Contemporain, n? 12, Paris, Maison des Sciences de l'Homme, dez. 1990; H�lgio Trindade, Poder Legislativo e
autoritarismo no RGS, Porto Alegre, Sulina, 1980; C�li Regina Pinto, Positivismo. Um projeto pol�tico alternativo
(RS: 1889-1930), Porto Alegre, LP&M, 1986; Pedro C�zar Dutra Fonseca, Vargas: o capitalismo em constru��o, S�o
Paulo, Brasiliense, 1989-Anterior � safra ga�cha � o artigo de Tocary Assis Bastos, "O positivismo e a realidade
brasileira", em que o A. vincula as medidas intervencionistas dos anos 30 e 40 aos valores positivistas de Get�lio e de
seus assessores diretos (in Revista Brasileira de Estudos Pol�ticos, Belo Horizonte, 1956).
398

(6) V. "A escravid�o entre dois liberalismos".
(7) V. Terezinha Collichio, Miranda Azevedo e o darwinismo no Brasil, S�o Paulo, Edusp, 1988. Ver tamb�m uma
nota incisiva de Miguel Lemos que, na qualidade de Presidente Perp�tuo da Sociedade Positivista, verbera certas
opini�es de Pereira Barreto sobre os benef�cios que os africanos teriam recebido com o tr�fico. Aos artigos do m�dico
paulista, publicados em 1880 na Prov�ncia de S�o Paulo, M. Lemos contrap�e a doutrina categ�rica de Comte (em O
Positivismo e a escravid�o moderna, Rio de Janeiro, Sociedade Positivista, 1884, p. 6).
(8) Miguel Lemos, O positivismo e a escravid�o moderna, Boletim do Centro Positivista Brasileiro, Rio de Janeiro,
1884. Comte propunha que as Antilhas francesas fossem entregues aos negros libertos de todo o continente
americano. Veja-se tamb�m: A incorpora��o do proletariado escravo: protesto da Sociedade Positivista do Rio de
Janeiro contra o recente projeto do governo, onde Miguel Lemos exclama indignado:' 'N�o! Mil vezes n�o! Como
indeniza��o nem o ar que respiramos podem reclamar" (Recife, Typographia Mercantil, 1883, p. 3).
(9) Em Id�ias pol�ticas de J�lio de Castilhos (org. Paulo Carneiro), Senado Federal, 1982, pp. 163-4.
(10) S. B. de Holanda, "Da ma�onaria ao positivismo", in O Brasil mon�rquico, S�o Paulo, Difel, 1977, n, p. 290.
(11) Em A incorpora��o do proletariado na sociedade moderna, 2? ed., Rio de Janeiro, Templo da Humanidade,

1908, p. 10.

(12) Cruz Costa, op. cit., p. 247.
(13) In A cruzada. Rio de Janeiro, julho de 1883.
(14) S. B. de Holanda, Ra�zes do Brasil, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1936, p. 120.
(15) Para entender as tens�es entre os jacobinos e o governo de Prudente de Moraes, consulte-se o estudo de Suely
Robles de Queiroz, Os radicais da Rep�blica, S�o Paulo, Brasiliense, 1986.
(16) O Cours de ph�osophie positive saiu entre 1830 e 1842. H� testemunhos de sua leitura no Brasil a partir dos
anos 50.
(17) Cours de ph�osophie positive. Paris, J. Bailli�re et Fils, 1877, rv, 200.
(18) "Os mais cl�ssicos dentre eles se esfor�aram por representar dogmaticamente, sobretudo em nossos dias, o
assunto geral dos seus estudos como inteiramente distinto e independente do conjunto das ci�ncias, do qual eles
timbram sempre em isol�-lo perfeitamente" (Cours, rv, 191).
(19) Vale a pena seguir a cerrada argumenta��o de Jo�o Neves da Fontoura em defesa do conceito comtiano de
ditadura republicana. Em discurso proferido na Assembl�ia ga�cha, em 11 de outubro de 1927, Jo�o Neves faz a
apologia reverente do Apostolado, de Ben-jamin Constam e de Castilhos. A pe�a � um corpo de doutrina que
comprova o elo ga�cho entre o grupo ortodoxo inicial e os homens de 1930.
(20) V. Milton Vanger, EI pa�s modelo. Jos� Batlle y Ord�nez, 1907-1915, Montevid�u, Arca, 1983.
(21) Get�lio Vargas, "Discurso de abertura do m Congresso Rural", in Correio do Povo, Porto Alegre, 25 de maio de
1929.
(22) Deve-se a Joseph Love a cunhagem da express�o Gera��o de 1907, em que se incluem pol�ticos da segunda leva
republicana, admiradores de J�lio de Castilhos (que, morto em 1903, j� se transformara em mito) e apaniguados por
Borges de Medeiros. Eram sete os nomes principais: Get�lio Vargas, Flores da Cunha, Osvaldo Aranha, Jo�o Neves
da Fontoura, Lindolfo Collor, Maur�cio Cardoso e Firmino Paim Filho. A maioria deles integrou o Bloco Acad�mico
Castilhista em 1907, ano em que entraram para a vida p�blica. Todos
399


foram deputados estaduais ou federais do PRR; todos seriam participantes ativos da Revolu��o de 30 ocupando
postos-chave no Governo Provis�rio.

(23) Cours, rv, 189(
24) Cours, IV, 202.
(25) Mensagem de Borges de Medeiros � Assembl�ia, lida em 24 de setembro de 1901.
(26) Texto constante do Parecer da Comiss�o, lido em 23 de novembro de 1920.
(27) Trata-se de uma variante da frase de Henry George: "Quando os governos n�o dirigem diretamente as Estradas
de Ferro, s�o por elas dirigidos". A senten�a vem transcrita na revista Egat�a de dezembro de 1914, �rg�o da Escola
de Engenharia de Porto Alegre que ministrava ent�o subs�dios t�cnicos para cal�ar os projetos de encampa��o dos
servi�os p�blicos.
(28) In A pol�tica positiva e a liberdade banc�ria, princ�pios de n? 14 e 15 � Publica��o n? 81 do Apostolado
Positivista no Brasil, apud Tocary Assis Bastos, cit., pp. 141-2.
(29) Campos Sales, Da propaganda �presid�ncia, S�o Paulo, 1908, p. 301, apud Tocary Assis Bastos, cit., p. 149.
(30) Anais, sess�o de 30 de novembro de 1923.
(31) Costa Franco, J�lio de Castilhos e sua �poca, cit., pp. 93-5.
(32) Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1918.
(33) Cf. N�cia Vilela Luz, A luta pela industrializa��o no Brasil, S�o Paulo, Difel, 1961', Edgard Carone, O
pensamento industrial no Brasil (1888-1943), S�o Paulo, Difel, 1977. Um dado importante: em 1934 foi criado por
Get�lio o Conselho Federal de Com�rcio Exterior onde se teria gestado o projeto de substitui��o das importa��es que
se concretiza poucos anos depois.
(34) Carta datada do Rio de Janeiro, maio de 1932, apud John Wirth, A pol�tica do desenvolvimento na era de
Vargas, Rio de Janeiro, FGV, 1974, p. XXI.
(35) Discurso proferido em 4 de maio de 1931, transcrito em A nova pol�tica do Brasil, Rio de Janeiro, J. Olympio,
1938, I, p. 11. As rela��es entre o Governo Provis�rio e os industriais paulistas ficam bem esclarecidas nos textos de
Jorge Street, o pioneiro dos nossos empres�rios protecionistas. V. Id�ias sociais de Jorge Street, volume organizado
por Evaristo de Morais Filho, Senado Federal, 1981.
As medidas racionalizadoras que o consulado getuliano implantou foram extensas e abrangeram de modo sistem�tico
todas as esferas do Estado. Cf. "O Governo Provis�rio de 1930 e a reforma administrativa", de Beatriz de Souza
Wahrlich, in Revista de Administra��o P�blica, dez. de 1975, pp. 5-68. Para conhecer por dentro a a��o do poder
p�blico entre 30 e 45, creio que o melhor depoimento seja o de Gustavo Capanema, editado por Simon Schwartzman,
cm O Estado Novo: um auto-retrato. Universidade Nacional de Bras�lia, 1983.
(36) V. "As greves no RGS (1890-1919)", de S�lvia Ferraz Petersen, em RS: economia e pol�tica, cit.
(37) Para uma vis�o mais geral do problema, v. o ensaio de Roberto Rowland, ' 'Classe oper�ria e Estado de
compromisso: origens estruturais da legisla��o trabalhista e sindical'', in Estudos Cebrap, a� 8, 1974, pp. 5-40.
(38) V. "Os positivistas e as greves'', in Cruz Costa, O positivismo na Rep�blica, pp. 56-66.
(39) Entendem-se melhor as articula��es t�ticas entre positivismo e reformismo socialista no Brasil lendo o ensaio de
Evaristo de Morais Filho, estudioso do jovem Comte e perito em Direito do Trabalho: "Sindicato e sindicalismo no
Brasil desde 30", in Tend�ncias do Direito P�blico, Rio de Janeiro, Forense, 1976. V. tamb�m A inven��o do
trabalhismo de �ngela de Castro Gomes, Rio de Janeiro, IUPERJ, 1988.
(40) In Id�ias pol�ticas de J�lio de Castilhos, pp. 478-9400
(41) O artigo saiu no jornal republicano A Federa��o, em 4 de outubro de 1887; esse di�rio, mais tarde editado por
Lindolfo Collor, � um exemplo impressionante de imprensa doutrin�ria que se reproduziu durante toda a Rep�blica
Velha.
(42) Miguel Lemos, rec�m-chegado das reuni�es da rua Monsieur-le-Prince, dissera, categ�rico: "O industrialismo,
quando n�o regulado, torna-se uma for�a imoral e perturbadora, que pode determinar com o tempo a decomposi��o
de uma sociedade" (apud Ruyter Demaria Boiteux, "A quest�o social e o positivismo", in Anais da IV Reuni�o de
Positivistas, Rio de Janeiro, 1981, p. 101.
(43) Discours sur 1'ensemble du positivisme, p. 165.
(44) P. Arbousse-Bastide, La doctrine de 1'�ducation universelle dans Ia philosophie dAuguste Comte, 2 vols., Paris,
PUF, 1957.
(45) Caracas, Ayacucho, 1980.
(46) Mensagem � Assembl�ia, setembro de 1913.

(47) Parecer da Comiss�o de Or�amento em resposta � mensagem do Executivo, dado em 10 de novembro de 1908.
(48) V. Id�ias pol�ticas de Jo�o Pinheiro, volume organizado por Francisco de Assis Barbosa para o Senado Federal
em 1980.
(49) Osvaldo Aranha, "Discurso na Assembl�ia Nacional Constituinte", de 30 de abril de 1934, in Moacyr Flores,
Osvaldo Aranha, Porto Alegre, IEL, 1991, pp. 61-2.
POST-SCRIPTUM 1992 (pp. 347-75)
(1) Li a cita��o em Nombre etpens�e, de A. Kondratov, Moscou, �ditions Mir, 1967, p. 7.
(2) S�rgio Solmi, pref�cio a Minima moralia, Turim, Einaudi, 1954, pp. XVI-XVII.
(3) Um apanhado id�neo da situa��o presente l�-se no trabalho coletivo coordenado por H�lio Jaguaribe, Brasil:
reforma ou caos (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989). Para uma vis�o abrangente do Terceiro e Quarto Mundo, veja-se
Desafio ao Sul, relat�rio final da South Commission (Lisboa, Ed. Afrontamento, 1991).
401


�NDICE ONOM�STICO

Aborim, pe. Mateus, 33
Acosta, Joseph de, 153, 392
Adorno, Theodor, 317, 321, 355, 362, 386
Afonso VI, rei de Portugal, 121, 134
Agostinho, santo, 85
Aleijadinho, Ant�nio Francisco Lisboa, dito,
35, 36, 48, 58, 337, 388 Alencar, Jos� de, 176, 177, 179, 180, 181,
185, 186, 187, 189, 190, 193, 197, 208,
211, 220, 238, 239, 246, 247, 248, 382,
393 Alencastre, d. Jo�o de, 103 Almeida Rosa, Francisco Octaviano de, 230,
231 Alves de Carvalho, Jo�o Simpl�cio, 303 Amado, James, 390 Amado, Jorge, 249 Amaral, Amadeu, 52 Anchieta,
pe. Jos� de 31, 47, 64, 65, 66, 67,
68, 70, 73, 74, 75, 80, 81, 82, 84, 86, 90,
91,92,93, 116, 150,379,388 Andrade, Gomes Freire de, 34 Andrade, M�rio de, 264, 324, 332, 333, 337,
343, 364, 388 Andrade, Oswald de, 332, 333, 364 Antonil, Jo�o Ant�nio Andreoni, dito Andr�
Jo�o, 34, 149, 150, 151, 152, 153, 154,
155, 157-67, 169, 172-5, 213, 382, 392 Aragon, Louis, 357 Aranha, Osvaldo, 293, 305, 399, 401 Araripe Jr., Trist�o
de Alencar, 100, 364 Ara�jo Lima, Pedro de, 196, 241
Ara�jo Porto Alegre, Manuel Jos� de, 58 Arbousse-Bastide, Paul, 300, 301, 401 Arrais, Amador, 102, 123, 126, 390
Assis Bastos, Tocary, 291, 398, 400 Azeredo Coutinho, Jos� Joaquim da Cunha
de, 34 Azevedo, Jo�o L�cio de, 392 Azevedo, Miranda, 278 Azevedo, Thales, 387 Azevedo Amaral, In�cio Manuel,
269
Bacon, Francis, 17
Bakhtin, Mikhail, 109, 390
Barata, d. Gaspar, 99
Barbosa, Adoniran, 344
Barbosa, Francisco de Assis, 401
Barbosa, Rui, 129, 201, 225, 230, 234, 238,
249, 292, 304, 380 Barbosa Lima, Alexandre Jos�, 292 Barreto, Manuel Pereira, 100 Barreto, T., 396 Barros, Jo�o de,
387 Barros, Moraes, 244 Barthes, Roland, 348 Bastide, Roger, 57, 337 Bastos, Jos� Tavares, 212, 224, 230, 231, 235,
237, 238, 241, 248, 380, 393, 395 Batlle, Jorge, 281,285, 289 Baudelaire, Charles, 81 Beethoven, Ludwig van, 356
Beiguelman, Paula, 393, 396 Benci, Jorge, 151, 153, 213

403


Benjamin, Walter, 80, 81, 349, 355, 386, 389
Bentham, Jeremy, 213, 395
Bento, Ant�nio, 234, 241
Beozzo, Jos� Oscar, 391
B�ranger, Pierre Jean de, 397
Bernardes, Manuel, 126
Bethell, L., 394
Bilac, Olavo, 267
Bismarck, Otto von, 275, 296, 381
Blake, Willian, 356
Bloch, Ernst, 355
Boal, Augusto, 344
Boas, Franz, 62
Bocayuva, Quintino, 221, 224, 233, 278, 396
Boeira, Nelson, 398
Boiteux, Ruyter Demaria, 401
Bonfim, Manuel, 248, 249, 364
Bonif�cio, Bernardo, 221
Bonif�cio, Jos�, 204, 225, 238
Bopp, Raul, 332
Borges de Medeiros, Ant�nio Augusto, 284, 285, 287, 288, 289, 290, 291, 293, 294, 295, 296, 302, 303, 306, 399,
400
Braga, Roberto Carlos, 337
Brecht, Bertolt, 81
Brito, Saturnino Rodrigues de, 292
Broglie, duque de, 397
Brookshaw, 398
Brougham, lord, 205
Buarque de Holanda, Chico, 344
Buarque de Holanda, S�rgio, 27, 279, 387, 391, 393, 396, 399
Burckhardt, Jakob 17
Burke, Edmund, 211
Byron, lord, 255
Cabral, Pedro �lvares, 387
Cabral de Melo Neto, Jo�o, 337, 343
Cadogan, L�on, 388
Cairnes, John, 395
Cairu, visconde de, 207, 219, 379
Calado, Frei Manuel, 36
Calvino, Jo�o, 164
Caminha, Pero Vaz de, 34
Cam�es, Lu�s de, 37, 43, 44, 46, 108, 387
Campos, Martinho, 225
Campos Reis, Zenir, 398
Campos Salles, Manuel Ferraz de, 244, 276,
291,400 Canabrava, Alice P., 157, 392 Capanema, Gustavo, 400 Capistrano de Abreu, Jo�o, 157, 364 Cardim,
Fern�o, 46
Cardoso, Fernando Henrique, 369, 393 Cardoso, Maur�cio, 399 Cardoso Melo, Jo�o Manuel, 228, 396 Cardozo,
Jacob Newton, 208 Carlos Magno, rei dos francos, 55 Carneiro, Edison de Souza, 249 Carone, Edgard, 397, 400
Carpeaux, Otto Maria, 273, 277, 398 Castilhos, J�lio de, 279, 283, 284, 285, 292,
293, 294, 296, 297, 298, 399 Castro Alves, Ant�nio de, 238, 246, 248,
249, 254, 255, 256, 258, 260, 264, 265,
382, 397 Castro Gomes, Angela de, 400 Cavalcanti, Amaro, 292 C�saire, Aim�, 239, 240, 386, 394, 397 C�sar,
Guilhermino, 398 Chateaubriand, Francisco de Assis, 176 Chichorro da Gama, Ant�nio Pinto, 230 Childe, Gordon


14, 385 Cidade, Hernani, 387, 391 Clastres, Hel�ne, 388 Clemente X, papa, 149 Cochin, A., 240
Coelho, Jorge de Albuquerque, 36 Coelho Neto, Henrique Maximiano, 268 Cohen, W., 394 Collichio, Terezinha, 399
Collor, Lindolfo, 237, 286, 287, 294, 295,
296, 305, 399, 401 Comte, Augusto, 235, 236, 273, 274, 276,
279, 281, 282, 288, 289, 294, 295, 298,
300, 301, 306, 367, 370, 381 Conrad, Robert, 196, 197, 242, 393, 394 Constam, Benjamin, 203, 236, 237, 276,
278,280,292,303,381,399 Cooper, Thomas, 208 Correia, Diogo �lvares, 36 Correia, Serzedelo, 292 Costa, Cl�udio
Manuel da, 37 Costa, Cruz, 276, 277, 278


Costa, pe. Jo�o, 33
Costa, Jo�o Cruz, 398, 400
Costa, S� da, 390
Costa Franco, S�rgio da, 277, 284, 292, 398,
400 Coutinho, Jos� Joaquim da Cunha d'Azevedo,
175 Coutinho, Vasco Fernandes, 76 Couto, Diogo de, 387 Couto de Magalh�es, Jos� Vieira, 332 Croce, Benedetto,
80 Cruz e Sousa, Jo�o da, 248, 266, 271, 272,
382 Cunha, Eudides da, 248, 249, 332, 387, 396 Cunha, Flores da, 399
Dantas, Conselheiro, 206
Dante Alighieri, 80
Darwin, Charles, 278, 332
Davis, Davis B., 398
Davis, Jefferson, 212
De Gaule, Charles, 368
Debret, Jean Baptiste, 58
Dewey, John, 237, 363
Dias Carvalho, Jos� Pedro, 230
Dias, Ant�nio, 37
D�az, Porfirio, 286
DiGiogi, Fl�vio Vespasiano, 392
Dorfman, ]., 395
Du Bois, William Edward Burghardt, 201
Dupront, Alphonse 30
Duque-Estrada, Os�rio, 394
Dur�o, frei Jos� de Santa Rita, 36
Dutra Fonseca, Pedro C�sar, 284, 398
Eco, Umberto, 317, 321
Einstein, Albert, 361
Eisenberg, Peter L., 396
Eliot, T. S., 30, 386
�lis, Bernardo, 343
Elisabeth I, rainha da Inglaterra, 120
Encina, Juan de, 87
Engels, Friedrich, 128, 194, 391, 395
Etzel, Eduardo, 388
Fagundes Varela, Lu�s Nicolau, 247, 255
Faoro, Raymundo, 199, 278, 386, 393, 394
Faya, pe. Ignatio, 156
Feij�, pe., 200, 201
Fernandes Vieira, Jo�o, 36
Ferreira Filho, Jo�o Ant�nio, 343
Ferreira Reis, Artur C�zar, 390
Figueira, Andrade, 195, 393
Filipe II, rei da Espanha, 76, 99



Filipe, Lu�s, rei da Fran�a, 198, 239
Flores, Moacyr, 401
Fonseca, Rubem, 343
Fontoura, Jo�o Neves da, 292, 399
F�zio, pe., 155
Franco, Bernardo de, 230
Franco, Maria Sylvia Carvalho 26, 386, 393
Franklin, John Hope, 209, 395
Frederico, S�rgio, 57
Freire, Napole�o Moniz, 292
Freire, Paulo, 341,342
Freitas, D�cio, 398
Freyre, Gilberto 22, 27, 62, 107, 393
Furtado, Celso 26, 207, 369, 386, 390, 393,
394 Furtado, Francisco Jos�, 230
Galich, Manuel 21, 386
Galileu Galilei, 359, 361
Gall�, Julien, 240, 397
Gama, Bas�lio da, 34
Gama, Lu�s, 234, 236, 241, 244, 248, 266,
395 Gama, Ruy, 392
Gama, Vasco da, 38, 39, 42, 46, 387 G�ndavo, Pero de Magalh�es, 68, 331 Garibay, Angel Maria, 184 Gastaut,
Henri, 385 Genovese, Eug�nio D., 395 George, Henry, 400
Gerschenkron, Alexander, 273, 275, 296, 398 Gide, Andr�, 264 Gil, Gilberto, 344 Gladstone, William Ewart, 197
Glyc�rio, Francisco, 244 Goethe, Johann Wolfgang von, 80, 86, 356 G�is, Zacarias de, 217, 229, 248

405


G�is e Vasconcellos, Zacarias de, 217, 222,
229, 230, 240, 248 Gomes Machado, Lourival, 388 Gon�alves de Magalh�es, Domingos Jos�, 58 Gon�alves Dias, Ant�nio, 181,
185, 246,
247, 382, 393 Gonz�lez, Tirso, 155 Gonz�lez y P�rez, Rex, 386 Gorender, Jacob 23, 26, 242, 386, 393 Graci�n, Baltasar, 116,390
Graham, Richard, 396 Gramsci, Ant�nio 17, 33, 100, 101, 334 Grimaldi, Lu�sa, 76 Grotius, Hugo de Groot, dito, 153 Guarnieri,
Gianfrancesco, 344 Guimar�es, Bernardo, 58, 59 Guizot, Fran�ois, 198 Gusm�o, Alexandre de, 152, 153 Guti�rez, Gustavo, 386
Haeckel, Ernst, 278, 332
Hamilton, Alexander, 207
Hanke, Lewin, 392
Hansen, Jo�o Adolfo, 390
Hatzfeld, Helmut, 389
Hegel, Friedrich, 352, 360
Heine, Heinrich, 249, 250, 397
Herder, Johann Gottfried, 261
Hermeto, Hon�rio, 196, 200
Herskovits, 57, 337
Hertz, Gustav, 303
Hobsbawm, Eric, 204, 394
Homem, Francisco de Torres Sales, 217, 220
Hoornaert, Eduardo, 387, 391
Hor�cio, 36
Horkheimer, Max, 321, 355, 386
Hugo, Victor, 246, 264
Humboldt, Wilhelm von, 356
Ianni, Oct�vio, 393
Itabora�, visconde de, 211, 219, 229
Jaeger, Werner, 16, 386 Jaguaribe, H�lio, 401 Jesus, Clementina de, 344 Jesus, Tome de, 126 Jo�o I, rei de Portugal, 38
Jo�o IV, rei de Portugal, 120, 137 Jo�o v, rei de Portugal, 158, 159 Jo�o VI, Dom, 58, 99
Kafka, Franz, 81 Kempis, Thomas de, 87 Kierkegaard, S�ren, 357 Klee, Paul, 81 Knight, Franklin, 213, 395 Kondratov, A., 401
Lacombe, Am�rico Jacobina, 387 Laffitte, Pierre, 276, 277, 281, 301 Lainez, Diogo, 389
Las Casas, frei Bartolom� de, 22, 153, 391 Leal, Victor Nunes, 393 Leibniz, Gottfried Wilhelm, 359 Leite, Serafim, 149, 150, 151,
391, 392 Lemos, Miguel, 236, 237, 276, 278, 279,
281,399,401 Lenin, Vladimir Ilitch Ulianov, dito, 381 Le�n-Portilla, Miguel, 184 Leonardo da Vinci, 356, 361 Leroy-Beaulieu, 285
L�ry, Jean de, 46, 68
L�vi-Strauss, Claude, 332
Lima Barreto, Afonso Henriques de, 245, 248, 266, 267, 268, 269, 364, 382, 398
Lima, Hermes, 201
Lima, Jorge de, 331
Lins, Ivan, 276, 292
Lisboa, Jo�o Francisco, 221
Lisle, Rouget de, 274, 275
List, Friedrich, 275
Littr�, �mile, 301
Lobo, Edu, 344
Lobo, Francisco Rodrigues, 389, 390
Lopes Trov�o, Jos�, 278
Lopes, Duarte, 152
Loureiro, Ant�nio de Mariz, 33
Love, Joseph, 277, 284, 398, 399
Loyola, In�cio de, 84, 87, 164
Lu�s, pe. Manoel, 149, 153
Lu�sa, rainha de Portugal, 134, 136
Luk�cs, Gy�rgy, 80, 81, 389
McLuhan, Marshall, 327, 355


Machado, Dyon�lio, 343
Machado de Assis, Joaquim Maria, 33, 179,
187, 222, 266, 364, 393, 397 Magalh�es Godinho, Vitorino, 98, 385, 390 Magne, Augusto, 385 Maistre, Xavier de, 176 Malheiro,
Agostinho Marques Perdig�o, 235,
237, 238, 240, 394 Mallarm�, St�phane, 353 Manchester, Alan K., 99 Mannheim, 386



Manuel, rei de Portugal, 38, 39, 42, 45, 387 Manzoni, Alessandra, 350 Maquiavel, Niccol�, 378 Marcos de Barras, Pl�nio, 344
Marcuse, Herbert, 321 Marrou, Henri-Ir�n�e, 386 Martins, Maria de Lourdes de Paula, 67, 388 Martins Pena, Lu�s Carlos, 196
Marx, Karl, 20, 144, 165, 194, 352, 386,
392, 395 Matos, Cunha, 197 Matos, Gon�alo de, 110 Matos, Greg�rio de 26, 34, 61, 94, 95, 96,
98, 99, 100, 101, 102, 103, 105, 106, 107,
108, 109, 110, 112, 114, 115, 116, 119,
123, 331, 382, 390 Mauro, Fr�d�ric, 98, 390 Maus, Mareei 28 Mazzari, Marcus Vin�cius, 397 Mazzini, Giuseppe, 254 Mello
Moraes, A. J., 210, 395 Mendes, Teixeira, 236, 237, 276, 278, 279,
280, 296 Mendon�a, reverendo Louren�o, 33 Mendon�a, L�cio de, 248 Mendon�a, Ribeiro de, 276 Merleau-Ponty, Maurice, 386
Mesquita Filho, J�lio de 29 M�traux, Alfred, 34, 388 Meyer, Augusto, 181, 249, 250, 393, 397 Moles, Abraham, 327 Molina, Lu�s,
153 Molinos, Miguel de, 127 Moltke, Helmut von, 397 Montaigne, Michel de, 22, 356, 386 Monteiro, Douglas Teixeira, 387
Montesquieu, 356 Montoya, 379
Moraes, Prudente de, 244, 276 Morais, Evaristo de, 296, 305, 400 Moreira, Vivaldi, 394 Muller, Geraldo, 284 Murtinho, Joaquim,
291 Myrdal, Gunnar, 211, 395
Nabuco, Joaquim, 202, 222, 223, 224, 225,
228, 230, 231, 233, 234, 235, 240, 241, 242, 244, 245, 246, 248, 249, 266, 304, 380, 393, 394, 395, 396, 397
Nabuco de Ara�jo, Jos� Tomaz, 217, 219,
229, 230, 231, 232
Napole�o I, imperador da Fran�a, 206, 216
Napole�o III, imperador da Fran�a, 273, 296
Nascimento, Abdias, 390
Nascimento, Milton, 344
Nazareth, Agripino, 296
Nh�-Leonor, de Vila Camargo, 49
Nietzsche, Friedrich, 357
Nimuendaju, Curt, 389, 393
N�brega, Manuel da, 379
Novais, Fernando, 26, 386
Oliva, Paolo, 152
Oliveira Viana, Francisco Jos� de, 269, 305
Ottoni, Te�filo Benedicto, 230, 231
Paes, Jos� Paulo, 392
Paim Filho, Firmino, 399
Paran�, marqu�s do, 211, 217, 220, 232
Paranagu�, Jo�o Lustosa da Cunha, 217, 230
Pascal, Blaise, 359, 360
Patroc�nio, Jos� do, 234, 235, 241, 266
Paulo III, 136
Paulo Netto, Jos�, 391
Pedro I, imperador do Brasil, 203
Pedro II, imperador do Brasil, 204, 214, 248,
296 Peixoto, Floriano, 280, 381 Pel�ez, Severo Mart�nez, 213, 393, 395 Perbal, Albert, 398 Pereira, pe. Bartolomeu Sim�es, 33
Pereira, Clemente, 197 Pereira, Nuno Marques, 47, 60, 388

407


Pereira Barreto, Lu�s, 278, 399
Pesavento, Sandra Jatahy, 284, 398
Pessoa, Fernando, 140
Petersen, S�lvia Ferraz, 400
Petrarca, Francesco, 108
Pignataro, Giuseppe, 303
Pimenta, Joaquim, 296
Pimentel Pinto, Edith, 389
Pinamonti, Gian Pietro, 154
Pinheiro, Jo�o, 292, 303
Pinto, C�li Regina, 398
Pinto, Heitor, 126
Plauto, 18
Plebe, Armando, 110
Pomp�ia, Raul, 236, 248, 267, 278, 364
Portinari, C�ndido, 331
Porto Seguro, visconde de, 238
Pound, Ezra, 37
Prado, Ant�nio, 242
Prado Jr., Caio, 26, 386, 393
Prestes, Ant�nio, 281
Prestes, Lu�s Carlos, 280
Queir�s, Eus�bio de, 217, 218 Queiroz, Maria Isaura Pereira de, 387 Queiroz, Maur�cio Vinhas de, 387 Queiroz, Suely Robles de,
399 Quevedo, Francisco de, 113 Quintiliano, 125
Rabelais, Fran�ois, 109, 110
Ramalho, Jo�o 32
Ramos, Arthur, 308
Ramos, Graciliano, 51, 343, 364
Ravel, Maurice, 264
Rebou�as, Andr�, 224, 230, 234, 235, 241,
242, 244, 248, 266, 380, 397 Rego, Jos� Lu�s do, 343 Reis, Aar�o, 292, 293 Resende, Garcia de, 387 Ribeiro, Jo�o, 332, 388
Ricardo, Cassiano, 332 Rio Branco, visconde de, 217 Rios, Morales de los, 388 Rodrigues, Francisco, 155, 392 Rodrigues, Jos�
Hon�rio, 393 Rodrigues, Nina, 57, 332, 388
Rodrigues Torres, Joaquim Jos�, 217
Rolland, Jacob, 151
Romero, S�lvio, 52, 235, 237, 278, 332, 388,
395,396 Rosa, Guimar�es, 273, 324, 331, 343, 382 Rosenfeld, Anatol, 393 Rousseau, 332, 356 Rowland, Roberto, 400
S� de Miranda, Francisco de, 44 Sahag�n, Bernardino, 184 Saia, Lu�s, 52, 56, 388 Saint-Hilaire, Auguste de, 394 Saint-Simon,
Claude Henri, 274, 275, 282,
295, 370 Salazar, Ant�nio de Oliveira, 354 Saldanha, Gaspar, 285, 287 Saldanha Marinho, Joaquim, 225 Santos, Jos� Maria dos,
242, 393, 395, 397 S�o Vicente, marqu�s de, 225 Saraiva, Jos� Ant�nio, 206, 217, 225, 229,
391, 396 Sartre, Jean-Paul, 386 Say, Jean-Baptiste, 201, 213, 214, 215, 216,
282, 395 Schaden, Edon, 388 Scheler, Max, 386 Schiller, Friedrich von, 356 Schoelcher, Victor, 239, 240, 394, 397 Schwarz,
Roberto, 397 Schwatzman, Simon, 400 Scott, Walter, 176, 192 Sebasti�o, d., 99 S�rgio Ricardo, 344 Siger, Carl, 22
Silva, Jo�o Manuel Pereira da, 394 Silva, Rodrigo, 241 Silva Jardim, Ant�nio de, 236, 278 Silveira Martins, Gaspar, 225 Simonsen,
Roberto, 98, 293, 390 Sinimbu, Jo�o Lins Vieira de, 217, 225 Smith, Adam, 206, 213, 214, 282, 381, 395 Soares de Sousa, Gabriel,
34, 68, 331 Sodr�, Nelson Werneck, 26, 386 Solmi, S�rgio, 362, 401 Solorzano Pereyra, Juan de, 153 Sousa, Irineu Evangelista, 235

408

Sousa, Oct�vio Tarq��nio, 202, 394, 395
Sousa, Paulino de, 217
Sousa e Almada, Manoel de, 33
Spencer, Herbert, 235, 278, 290, 381
Staden, Hans, 46, 68
Stein, Stanley, 393, 394
Steuart, 214
Street, Jorge, 293, 305
Su�rez, Francisco de, 153
Suassuna, Ariano, 344
Sue, Eug�ne, 255
Tamburini, 154


Taunay, Afonso d'Escragnolle, 150, 388, 393
Teixeira, Bento, 36
Thevet, Andr�, 68
Tibiri��, Jo�o, 244
Timandro, pseud�nimo de Francisco Sales
Torres Homem, 220 Tocqueville, Alexis de, 198, 394 Toplin, R. B., 395 Torres, Alberto, 269 Trevisan, Dalton, 343 Trindade,
H�lgio, 398 Trotski, Leon, 362 Tucker, George, 208 Turgot, Anne Robert Jacques, 214
Ungaretti, Giuseppe, 57
Val�ry, Paul, 389
Van der Null, Myn Heer, 397
Vandr�, Geraldo, 344
Vanger, Milton, 399
Vargas, Get�lio, 237, 286, 287, 288, 289,
290, 293, 294, 295, 296, 305, 306, 399,
400 Vargas, Prot�sio, 281 Varnhagen, Francisco Adolfo de, 152, 211,
237 Vasconcelos, Bernardo Pereira de, 196, 197,
200, 202, 203, 205, 207, 208, 211, 216,
217,219 Vasconcelos, Sim�o de, 379 Veiga, Evaristo, 216
Veiga, Jos� J., 344
Veiga e Barros, Evaristo Ferreira da, 200, 202, 216,217
Velho, Octavio Alves, 392
Veloso, Caetano, 344
Veloso, Jos� Mariano da Concei��o, 159
Verger, Pierre, 388
Ver�ssimo, �rico, 343
Ver�ssimo, Jos�, 254
Viana Filho, Oduvaldo, 344
Vi�o, Giambattista, 35, 261, 356, 382, 383, 387
Viegas, Maria Filomena, 391
Vieira, pe. Ant�nio 33, 34, 35, 119, 120, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138,
139,142, 143,144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 157,158, 162, 172,174, 175, 363, 379, 391, 392, 393
Vigny, Alfred de, 256, 261
Vilela Luz, N�cia, 400
Villa-Lobos, Heitor, 331
Vinci, Leonardo da, 52
Viotti da Costa, Em�lia, 393, 397
Virg�lio, 36
Vit�ria, Francisco de, 153
Wahrlich, Beatriz de Souza, 400 Wallon, Henri, 240 Walsh, Robert, 202, 208, 395 Weber, Max, 164, 325, 368 Weil, Simone,
51,356 Wernet, Augustin, 395 Wiener, Norbert, 358, 360, 366 Williams, Eric, 393 Wirth, John, 400
Xidieh, Oswaldo Elias, 51, 387
Yancey, William L., 209 Yrigoyen, Hip�lito, 281, 289
Zea, Leopoldo, 301 Zurara, Gomes Eanes de, 39

409


CR�DITO DAS ILUSTRA��ES

p. 40 Aleijadinho: Passos e profetas, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Belo Horizonte: Editora
Itatiaia; S�o Paulo: Edusp, 1984.
p. 41 Barroco n? 4, Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, 6? Festival de Inverno de
Ouro Preto, 1972. Foto: Maur�cio Andr�s e Daniel Ribeiro de Oliveira.
p. 88 Museu Padre Anchieta, S�o Paulo. Foto: Ivson.
p. 89 Poesias, Jos� de Anchieta, Comiss�o do IV Centen�rio da Cidade de S�o Paulo, 1954.
pp. 104/105 Acervo Emanuel Ara�jo. Foto: Ivson.
p. 140 Museu Padre Anchieta, S�o Paulo. Foto: Ivson.
p. 141 Revista do Servi�o do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional, n? 5, 1941. Foto: Eric Hess.
pp. 168/169 Engenho e tecnologia, Ruy Gama, S�o Paulo, Livraria Duas Cidades, 1983.
p. 182 Vida de Carlos Gomes, �tala Gomes Vaz de Carvalho, Rio de Janeiro, Editora A Noite, 1935.
p. 183 Do sonho � conquista � Revivendo um g�nio da m�sica: Carlos Gomes, Juvenal Fernandes, S�o
Paulo, Fermata do Brasil, 1978.
p. 226 Alencar: �leo de Alberto Henschel, Museu de Hist�ria Nacional, Rio de Janeiro. In Do sonho �
conquista...
Rebou�as: �leo de T�lio Mugnaini, Museu Paulista, S�o Paulo. In Do sonho � conquista...
p. 227 Vida de Joaquim Nabuco, Carolina Nabuco, Jos� Olympio.
p. 298 Comte: Historia de Ia filosofia, Nicolas Abbagnano, tomo III, Barcelona, Montaner y Simon,
1956. Castilhos: Acervo S�rgio da Costa Franco. Foto: Ivson.
p. 338 O c�o semplumas, Jo�o Cabral de Melo Neto e fotos de Maureen Bisilliat, Rio de Janeiro, Editora
Nova Fronteira, 1984.
p. 339 A Jo�o Guimar�es Rosa, ensaio fotogr�fico de Maureen Bisilliat, 3* ed., 1979411

Todos os esfor�os foram feitos para localizar a origem e a propriedade do material iconogr�fico publicado neste livro. No
caso de qualquer d�vida quanto ao uso de algum texto ou foto, a Editora Companhia das Letras, expressando o seu pesar
por qualquer erro que tenha sido inadvertidamente cometido, ficar� contente em poder fazer as necess�rias corre��es nas
futuras edi��es.





O Grupo Amigos dos Livros e Outros  tem o prazer de lançar hoje mais um livro digital para atender aos  deficientes visuais !

 DIALÉTICA DA COLONIZAÇÃO - ALFREDO BOSI
SINOPSE:
Colonização, culto, cultura. Três palavras que se aparentam pela raiz verbal comum. Colonização diz o processo pelo qual o conquistador ocupa e explora novas terras e domina os seus naturais. Culto remete à memória dos deuses e dos antepassados que vencedores e vencidos celebram. Cultura é não só a herança de valores mas também o projeto de um convívio mais humano. A cada conceito responde uma dimensão temporal: o presente, o passado e o futuro.Em capítulos que vão de Anchieta à indústria cultural, Alfredo Bosi, o conceituado autor da clássica História concisa da literatura brasileira, persegue com sensibilidade as formas históricas que enlaçaram colonização, culto e cultura: Dialética da colonização é o resultado deste percurso sui generis na história do pensamento brasileiro

DOAÇÃO DO NOSSO ASSOCIADO MOISÉS DE OLIVEIRA

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Este e-book representa uma contribuição do grupo Amigos dos Livros  para aqueles que necessitam de obras digitais, como é o caso dos deficientes visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.

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