Wagner,
com muita saudade
Sum�rio
Capa
Rosto
Apresenta��o � 1� edi��o
Berlim, Alemanha � Abril de 1928
Buenos Aires, Argentina � Abril de 1928
1 Na fortaleza vermelha
2 Frieda Behrendt � presa
3 � sua frente, o Cavaleiro da Esperan�a
4 Lua de mel em Nova York
5 Do mundo inteiro, rumo ao Rio
6 Come�a a conspira��o
7 �A Revolu��o est� nas ruas�
8 Um espi�o entre os comunistas
9 Mister Xanthaky entra em cena
10 Miranda e Ghioldi v�o falar
11 Diante de Filinto, um nome: Olga de Tal
12 A pol�cia suicida Barron
13 O embaixador do Brasil na Gestapo
14 Uma �estrangeira nociva�
15 Rebeli�o na Pra�a Vermelha
16 Nos por�es da Gestapo
17 Dona Leoc�dia enfrenta a Gestapo
18 Com Sabo, na fortaleza nazi
19 Escravid�o em Ravensbr�ck
20 A caminho da morte
S�o Paulo, Brasil � Julho de 1945
Ep�logo
Fontes
Sobre Olga
Posf�cio
Caderno de imagens
Cr�ditos das imagens
Sobre o autor
Cr�ditos
Apresenta��o
� 1a edi��o
A hist�ria que voc� vai ler agora relata fatos que
aconteceram exatamente como est�o descritos neste livro:
a vida de Olga Benario Prestes, uma hist�ria que me fascina
e atormenta desde a adolesc�ncia, quando ouvia meu pai
referir-se a Filinto M�ller como o homem que tinha dado a
Hitler, �de presente�, a mulher de Lu�s Carlos Prestes, uma
judia comunista que estava gr�vida de sete meses.
Perseguido por essa imagem, decidi que algum dia
escreveria sobre Olga, projeto que guardei com avareza
durante os anos negros do terrorismo de Estado no Brasil,
quando seria inimagin�vel que uma hist�ria como esta
passasse inc�lume pela censura.
Logo que iniciei a investiga��o para escrever este livro,
em 1982, percebi que as dificuldades para recompor o
retrato de Olga seriam muito maiores do que supunha. No
Brasil n�o havia praticamente nada sobre ela � e
surpreendi-me ao descobrir que at� mesmo a historiografia
oficial do movimento oper�rio brasileiro, produzida por
partidos ou pesquisadores marxistas, relegara
invariavelmente a ela o papel subalterno de �mulher de
Prestes� � e nada mais do que isso. Em tudo o que pude ler
n�o encontrei mais do que alguns par�grafos vagos e
superficiais. A essa circunst�ncia se somava outro
obst�culo: se estivesse viva, Olga teria hoje 77 anos � e
como sua milit�ncia pol�tica se deu muito precocemente, a
maioria das pessoas que conviveram com ela estava morta.
Os poucos sobreviventes que testemunharam sua saga �
na Alemanha ou no Brasil � eram, no m�nimo, octogen�rios,
nem todos com mem�ria ou condi��es de sa�de para
desenterrar detalhes de epis�dios acontecidos meio s�culo
antes.
Minha primeira e �bvia investida foi sobre Lu�s Carlos
Prestes. As tardes de s�bado que lhe roubei no Rio de
Janeiro produziram p�ginas e p�ginas de preciosas
informa��es, muitas delas in�ditas. E ao lutar para romper a
barreira que ele se impunha para evitar falar de quest�es
pessoais, muitas vezes me comovi ao perceber que o r�gido
comunista que transmitia a imagem de um homem de a�o
n�o escondia sua emo��o ao revelar min�cias da
personalidade de sua falecida mulher ou rememorar
passagens da curta e emocionante vida em comum que
tiveram. Dono de mem�ria prodigiosa, Prestes foi capaz de
reviver com precis�o a hora de um embarque ou as exatas
palavras de um di�logo ocorrido h� cinquenta anos. Foram
poucos os casos de informa��es dadas por ele que,
verificadas em processos e documentos oficiais da �poca,
resultaram incorretas. Dos rolos de fita gravada de seus
depoimentos surgiram novos fatos e personagens da revolta
comunista de 1935, em cuja busca parti em seguida.
Simultaneamente, o jovem advogado e bibli�filo Ant�nio
S�rgio Ribeiro (um dos maiores estudiosos de Carmen
Miranda em nosso pa�s) vasculhava cole��es de jornais e
revistas da �poca, planilhas de voos e de movimentos de
navios em portos.
O passo seguinte exigiu uma viagem � Rep�blica
Democr�tica Alem� (rda), onde, ao contr�rio do que
ocorrera no Brasil, localizei um verdadeiro tesouro. Hero�na
nacional cujo nome batiza dezenas de escolas e f�bricas,
Olga teve sua mem�ria carinhosamente preservada pelos
comunistas de sua terra. Nos arquivos do Instituto de
Marxismo-Leninismo, no Comit� de Resistentes Antifascistas
ou nos pequenos museus montados no campo de
concentra��o de Ravensbr�ck e no campo de exterm�nio de
Bernburg (ambos preservados tais como foram encontrados
pelas tropas aliadas), obtive c�pias de todos os documentos
e fotografias referentes a Olga Benario. Com a preciosa
ajuda de Alexandre Fischer e Katharina Schneider,
int�rpretes destacados pelo governo da rda para auxiliar-me
na pesquisa, n�o s� selecionei e reproduzi todo o material
dispon�vel, como entrevistei creio que todos os velhos
militantes ainda vivos que tinham convivido com Olga na
Juventude Comunista, nos anos 1920 e, uma d�cada depois,
nas pris�es e campos de concentra��o nazistas. N�o me
esquecerei jamais das l�grimas que a entrevista arrancou
dos olhos de Gabor Lewin, j� velhinho, em cuja casa
esvaziamos juntos, a dez graus abaixo de zero, uma garrafa
de conhaque franc�s. Quando perguntei se se confirmava a
lenda de que Olga despertava paix�es fulminantes em seus
companheiros da Juventude Comunista, Lewin p�s-se a
chorar. Foi Herta, sua mulher, velhinha como ele, quem
desfez meu desconforto ao dizer, sorridente: �Olga foi a
grande paix�o da vida do Gabor�. No modesto apartamento
de Ruth Werner, tenente-coronel honor�ria do Ex�rcito
Vermelho e uma das maiores escritoras alem�s, obtive
c�pias de depoimentos que ela tomara no fim dos anos
1950 de sobreviventes de Neuk�lln, Barnimstrasse,
Lichtenburg e Ravensbr�ck (muitos dos quais j� falecidos) e
n�o utilizara integralmente em seu livro Olga Benario.
Meu trabalho em Berlim Oriental teria sido infinitamente
mais dif�cil sem a ajuda do jovem �talo-germano-brasileiro
Dario Canale (que eu havia entrevistado em 1967 no Brasil,
quando ele esteve preso nos c�rceres da Pol�cia Federal sob
a acusa��o de �subvers�o�). Dario ajudou-me na busca e
sele��o de material sobre Olga e Otto Braun, levou-me a
conhecer a pris�o de Moabit, em Berlim Ocidental, e acabou
por obrigar sua sogra, Elfriede Br�ning, a convidar suas
amigas, militantes comunistas desde o come�o do s�culo,
para jantares em sua casa, onde eu as esperava de
gravador na m�o.
Al�m dos documentos obtidos, as entrevistas feitas por
mim na Rep�blica Democr�tica Alem� com pessoas que
conviveram com Olga sob o nazismo foram valios�ssimas
para a reconstitui��o de sua passagem pelo Brasil. Durante
os anos que passou em Barnimstrasse, Lichtenburg e
Ravensbr�ck, ela contou com pormenores �s companheiras
de pris�o sua experi�ncia brasileira: a paix�o por Prestes, o
deslumbramento com o Brasil, a expectativa seguida da
frustra��o com a revolta fracassada, a emo��o que lhe
provocara a solidariedade dos companheiros no pres�dio da
rua Frei Caneca, no Rio. Como sua passagem pelo Brasil se
tornara, para mim, a parte mais obscura da investiga��o,
pressionei os amigos de Olga em Berlim at� a irrita��o com
perguntas sobre cada momento de seus dezessete meses
no Rio de Janeiro � e em alguns casos obtive depoimentos
torrenciais.
De Berlim parti para Mil�o, onde dediquei tempo integral
ao Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano
(mantido pela Funda��o Giangiacomo Feltrinelli e guardado
pelas unhas e os dentes de Jos� Lu�s del Roio), no qual est�
depositada boa parte da mem�ria oper�ria e comunista
brasileira. As entrevistas e investiga��es feitas na Europa e
no Brasil remetiam-me a outros endere�os: o National
Archives e os arquivos do Departamento de Estado, em
Washington � e o primeiro recesso parlamentar dispon�vel
foi dedicado �s pesquisas nos Estados Unidos. Com a ajuda
de Ralph Waddey, funcion�rio anglo-baiano do
Departamento de Estado, e abusando da infind�vel
paci�ncia de Richard Gould, diretor do Departamento
Legislativo e Diplom�tico do National Archives, fiz um
fascinante mergulho na papelada que me custou a modesta
quantia de cinquenta centavos de d�lar cada c�pia
xerogr�fica: al�m de incont�veis documentos secretos
referentes � vida de minhas personagens, havia material
abundante sobre a repress�o � revolta comunista de 1935
no Brasil. Ironicamente eu iria encontrar, no cora��o de
Washington, relatos copiosos sobre as torturas infligidas
pela pol�cia brasileira ao dirigente comunista alem�o Arthur
Ewert, pistas indiscut�veis sobre a a��o de espi�es na
dire��o do Partido Comunista brasileiro e detalhes sobre o
desmantelamento da revolta de 1935 � tudo isso escrito
por um agente do governo norte-americano. Para meu
espanto, pude ver depositados em Washington (e
dispon�veis a cinquenta cents) documentos internos do
Partido Comunista brasileiro desconhecidos aqui e que
tinham sido misteriosamente baldeados para os Estados
Unidos.
De volta ao Brasil, retomei as entrevistas, revi datas e
dados com Prestes e com outros entrevistados e continuei �
cata de sobreviventes de 1935 que pudessem dar
depoimentos ou, pelo menos, ajudar-me a conferir as
informa��es de que dispunha. Foi nessa �poca que me
lembrei de uma frase de um antigo chefe de reportagem,
que costumava dizer que �ao rep�rter, como ao goleiro, n�o
basta trabalhar direito � � preciso ter sorte�. Eu tive, e
muita. Foram golpes de sorte, por exemplo, que me levaram
a duas personagens desta hist�ria, Tuba Schor e Celestino
Paraventi. Ela eu descobri casualmente: seu filho Nelson foi
o m�dico que realizou o parto de minha ex-mulher, quando
nasceu Rita, nossa filha � e ao saber que eu escrevia sobre
a vida de Olga, colocou-me em contato com a m�e. Quanto
a Paraventi, foi ele quem me descobriu: ao assistir a uma
entrevista que eu dera ao rep�rter Ney Gon�alves Dias, na
tv Manchete, sobre o livro em curso, ele procurou seu
sobrinho Jos� Gregori, meu colega de bancada na
Assembleia Legislativa, para oferecer-me seu delicioso
depoimento sobre a passagem de Olga por S�o Paulo.
No Rio de Janeiro, o fot�grafo e pesquisador Paulo C�sar
de Azevedo, que j� vinha colaborando com o meu trabalho
atrav�s de pesquisas em arquivos p�blicos, decidiu requerer
oficialmente ao Minist�rio das Rela��es Exteriores
autoriza��o para consultar documentos reservados
referentes � deporta��o de Olga. Um ano de espera e de
reiteradas reclama��es, entretanto, n�o foram suficientes
para que as portas da burocracia do Itamaraty se abrissem.
Eu j� havia recebido do professor Ricardo Maranh�o c�pias
de documentos que comprovavam o comprometimento de
diplomatas brasileiros com a Gestapo, mas senti-me no
direito de obter, oficialmente, toda a correspond�ncia sobre
o assunto. Foi preciso que interviesse pessoalmente na
demanda o pr�prio chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro para
que eu pudesse receber, ainda que previamente censurado,
o material solicitado.
Ao contr�rio do que ocorrera no Itamaraty at� a
interven��o de Saraiva Guerreiro, obtive do Superior
Tribunal Militar (stm) todas as facilidades para pesquisar em
seus arquivos. A partir da intermedia��o de seu sobrinho e
meu velho amigo Fl�vio Bierrenbach, o almirante de
esquadra J�lio de S� Bierrenbach, presidente do stm,
determinou que se liberasse rigorosamente tudo o que
havia nos arquivos do tribunal sobre a revolta de 1935,
incluindo a� documenta��o in�dita, que se encontrava
lacrada desde o encerramento daquele que foi o primeiro
processo do Tribunal de Seguran�a Nacional. Vladimir
Sacchetta, meu grande colaborador na parte brasileira
deste livro, passou uma semana em Bras�lia vasculhando
setenta volumes para selecionar centenas de documentos e
ilustra��es que, dias depois, seriam fotografados e
reproduzidos por Paulo C�sar de Azevedo. Sacchetta, al�m
disso, j� me franqueara o arquivo de seu pai, Herm�nio
Sacchetta, e toda a documenta��o sobre o tema que havia
recolhido em Londres, no Public Record Office.
A leitura de toda essa papelada me obrigaria a uma nova
viagem, dessa vez a Buenos Aires, onde a boa vontade do
correspondente da revista Veja, Jos� Meirelles Passos,
aproximou-me de Rodolfo Ghioldi, o velho dirigente do
Partido Comunista argentino e do Comintern. Apesar de
devastado por um enfisema pulmonar que quase o impedia
de falar (e que o mataria meses depois), Ghioldi recebeu-me
em companhia de sua mulher, Carmen, para cinco horas de
entrevista gravada, ao fim das quais presenteou-me com
uma verdadeira rel�quia que guardava no fundo de um
cofre: um envelope contendo fotografias in�ditas, feitas no
Brasil em 1935.
A falta de dinheiro e de tempo para empreender novas
viagens obrigou-me a utilizar o correio e o telefone
internacional para conferir dados ou buscar novas
informa��es � foi assim que recorri ao professor Boris
Koval, do Instituto do Movimento Oper�rio, em Moscou, ao
Memorial Yad Vashem, em Israel, e, por mais duas vezes, a
Richard Gould, do National Archives. Simultaneamente,
minha conta de telefone engordava com interurbanos dados
a v�rios pontos do pa�s para reconfirmar datas e dados ou
mesmo para buscar as exatas palavras usadas num
determinado di�logo. A tudo isso acrescentei documentos
que chegavam �s minhas m�os remetidos por an�nimos
militantes comunistas de v�rios pontos do pa�s, que,
alertados por notas de jornais ou not�cias de televis�o sobre
meu trabalho, generosamente tomavam a iniciativa de me
procurar, interessados n�o s� em me ajudar, mas em
enriquecer a verdadeira arqueologia em que me meti para
reconstituir com a maior fidelidade poss�vel esta hist�ria de
amor e de intoler�ncia.
Este livro n�o � a minha vers�o sobre a vida de Olga
Benario ou sobre a revolta comunista de 1935, mas aquela
que acredito ser a vers�o real desses epis�dios. N�o vai
impressa aqui uma s� informa��o que n�o tenha sido
submetida ao crivo poss�vel da confirma��o. Qualquer
incorre��o que for localizada ao longo desta hist�ria,
entretanto, deve ser debitada exclusivamente � minha
impossibilidade de confront�-la com vers�es diferentes. E
certamente haver� incorre��es, at� porque eu pr�prio
cheguei a iniciar investiga��es a partir de vers�es
aparentemente verdadeiras, mas que depois seriam
desmentidas por novas pesquisas ou entrevistas. Um
exemplo: tenho em minhas m�os o depoimento de uma
sobrevivente de Ravensbr�ck que jura ter visto Olga ser
fuzilada naquele campo de concentra��o. A seguran�a das
declara��es leva-me a crer que ela de fato viu alguma
mulher sendo fuzilada l� e sup�s tratar-se de Olga. A
verdade, no entanto, � que Olga n�o foi fuzilada em
Ravensbr�ck. Outro exemplo: um eminente historiador
brasileiro assegurou-me que Paul Gruber nunca passou de
uma personagem de fic��o inventada pelo Comintern para
confundir os servi�os de intelig�ncia capitalistas. De novo,
fatos, documentos e testemunhos comprovaram que Gruber
n�o s� existiu em carne e osso como desempenhou papel
importante no desfecho da revolta de 1935. E houve, ainda,
situa��es em que, colocado diante de vers�es contradit�rias
sobre determinado epis�dio, fui levado por investiga��es e
evid�ncias a optar por uma delas. N�o apenas como
referencial, nesses casos, mas para introduzir-me por inteiro
na �poca em que esta hist�ria se passa, recorri � extensa
bibliografia que vai ao final deste volume, de import�ncia
capital para quem pretenda conhecer melhor o per�odo. As
raras passagens deste livro em que foi necess�ria a
recria��o referem-se sempre a cen�rios de determinados
fatos � nunca a fatos em si. E, ainda assim, a recria��o se
deu a partir de depoimentos de testemunhas.
Antes de entregar os originais � gr�fica, submeti meu
trabalho aos olhos de tr�s dos mais brilhantes e impiedosos
jornalistas deste pa�s � Lu�s Weis, Raimundo Rodrigues
Pereira e Ricardo Setti � e � m�o vigilante de Vladimir
Sacchetta, indiscutivelmente uma das maiores autoridades
no estudo da mem�ria do movimento oper�rio brasileiro. E,
por fim, recebi a ajuda do talentoso Claudio Marcondes,
encarregado de homogeneizar a grafia de palavras e de
fazer a prepara��o do texto que iria para a composi��o.
Claudio acabou por propor altera��es essenciais para a
clareza deste livro. Roubei deles preciosas horas de trabalho
e lazer � e n�o me arrependi: a partir de suas cr�ticas,
observa��es e obje��es, sentei de novo � m�quina para
corrigir os erros.
Embora a responsabilidade por tudo o que voc� vai ler
agora seja exclusivamente minha, eu devo este livro �
colabora��o generosa dos entrevistados (cujos nomes v�o
relacionados ao final), de cada um dos nomes citados ao
longo desta apresenta��o, e a Abelardo Blanco, Abel
Cardoso J�nior, Alberto Dines, Alexandre Lob�o, Ali Ahmad,
Ana Maria de Castro, Beatriz Sardenberg, Bernd W�nning,
Birgit Koyne, Bruno Kiesler, C�lia Valente, Christiane
Barckhausen, Daphne F. Rodger, Dieter Koyne, Edith Heise,
Edmond Petit, Eric Nepomuceno, Fl�vio Kothe, Gerhard
Desombre, Giocondo Dias, Heitor Ferreira Lima, Herbert
R�sser, Horst Brasch, In�s Etienne Romeu, Jamile Salom�o,
Jasmina Barckhausen, John W. F. Dulles, Jos� Ant�nio
Penteado Vignolli, Jos� Carlos Bruni, Jos� Eduardo de Faro
Freire, Jos� Sebasti�o Witter, Karen Elsab Barbosa, Karl
Burkert, Kerry Fraser, Le�ncio Martins Rodrigues, Lothar
G�nther, Lutz Ellrodt, Manoel Moreira, Marco Aur�lio Garcia,
M�rcia Madrigali, Maria Beatriz Paula Dias, Maria da Guia
Santiago, Maria Vit�ria Menezes Camargo, Marisa Teixeira
Pinto, Marisa Zanatta, Martina John, Moacir Werneck de
Castro, Nicolau Tuma, Pedro Alves de Brito, Peter Skomroch,
R�gis Barbosa, R�gis Fratti, Ricardo Gontijo, Ricardo
Zarattini, Rita Magalh�es Marques, Roberto Braga, Roberto
Drumond, Samuel Krakowski, Samuel Soares, Sergio Miceli,
Siegfried K�llner, S�lvia Oliva Ara�jo, S�lvio Tendler, Suely
Campos Cardoso, Susana Camargo, Tib�rio Canuto, Vera
Maria Tude de Souza, Werner B�necke e Werner Thiele.
F. M.
Agosto de 1985
Berlim, Alemanha
� Abril de 1928
Tudo aconteceu em menos de um minuto.
Pontualmente �s nove horas da manh� de 11 de abril de
1928, o guarda Gunnar Blemke atravessou o sal�o de
audi�ncias revestido de mogno da pris�o de Moabit, no
centro de Berlim, levando pelo bra�o, algemado, o professor
comunista Otto Braun, de 28 anos. N�o que Otto fosse
considerado um preso perigoso; as algemas se justificavam
por ser um acusado de �alta trai��o � p�tria�, encarcerado
havia um ano e meio, aguardando julgamento. O guarda
caminhou com ele em dire��o � mesa onde se encontrava o
secret�rio superior de Justi�a, Ernst Schmidt, que deveria
interrogar Otto Braun. A seu lado, o escriv�o Rudolph
Nekien lutava para n�o cochilar sobre a m�quina de
escrever. Na outra ponta do sal�o, bem em frente � mesa
de Schmidt, um pequeno audit�rio destinado ao p�blico e
aos advogados, e isolado por um bala�stre de madeira,
estava ocupado por meia d�zia de adolescentes, mo�as e
rapazes. �Pensei que fossem estudantes de direito�, diria o
guarda mais tarde. Blemke estufou o peito diante da
autoridade e anunciou:
� Apresentando o preso Otto Braun.
Nesse instante ele sentiu algo duro encostado em sua
nuca. Virou a cabe�a e viu uma pistola negra apontada
contra seu rosto por uma linda mo�a de cabelos escuros e
olhos azuis, que exigiu com voz firme:
� Solte o preso!
No audit�rio, os jovens dividiram-se em dois grupos e se
atiraram sobre o secret�rio Schmidt e o escriv�o Nekien,
que foi derrubado com viol�ncia. Schmidt deu um salto,
conseguiu bater a ponta do sapato sobre o bot�o de alarme
instalado no ch�o � e recebeu uma coronhada no rosto,
dada por um garoto enorme, de barba ruiva e cabelos
escorridos at� quase os ombros. A jovem de olhos azuis que
comandava o grupo mantinha a pistola apontada para a
cabe�a do guarda. Depois de desarm�-lo, caminhou de
costas em dire��o � porta, protegendo o preso com seu
corpo e gritando para seus companheiros:
� Para a rua! Para a rua! Quem se mexer leva chumbo!
O guarda e os dois funcion�rios foram colocados de cara
contra a parede. Com gestos r�pidos, a mo�a mandou que o
grupo sa�sse. O bando j� disparava rumo ao port�o
principal, levando o preso para a cal�ada, quando seu
�ltimo grito ecoou na sala:
� O primeiro a se mover leva chumbo!
E sumiu pelo corredor. Ap�s saltar os degraus da escada
na porta da pris�o, o grupo se dispersou, cada um fugindo
por uma rua diferente. A jovem guardou a pistola na sacola
de l� a tiracolo e atravessou correndo o parque Fritz-Schloss
para, no outro extremo, ao lado de um gin�sio de esportes,
atirar-se num pequeno furg�o verde que a esperava de
portas abertas. Na dire��o ia um jovem narigudo e atr�s,
sentado no fundo da carroceria e com as m�os ainda
algemadas, estava Otto Braun, encolhido e assustado.
O calhambeque amea�ava desmontar pelas ruas de
Berlim. Agora precisavam sair das imedia��es da pris�o,
cujas sirenes de alarme podiam ser ouvidas a quarteir�es. O
carro tomou o rumo sul da cidade. Evitando as ruas mais
movimentadas, margeou o pequeno Cemit�rio Bl�cher e
cruzou o canal Schiffarts. Quando entrou no bairro de
Neuk�lln, a mo�a, Otto e o narigudo puderam afinal respirar
aliviados. Em Neuk�lln estavam em casa.
Na hora do almo�o, uma edi��o extra do di�rio Berliner
Zeitung am Mittag j� dava detalhes, sob escandalosa
manchete, do que chamava de �ousada cena de faroeste�
ocorrida de manh� em Moabit. O jornal anunciava em
primeira m�o o nome da linda jovem que comandara o
�assalto comunista�: Olga Benario.
�Ousada cena...�
� noite, no pequeno apartamento que a Juventude
Comunista conseguira na rua Zieten para escond�-los, Olga
lia e relia, ao lado de seu namorado Otto Braun, o notici�rio
dos jornais e parava sempre na mesma express�o. De fato,
ousadia era o �nico substantivo capaz de traduzir n�o
apenas o que havia feito naquela manh�, mas o sentimento
que movia a maioria dos adolescentes comunistas do bairro
oper�rio de Neuk�lln. Olhando para a rua atrav�s das
cortinas do quarto � meia-luz, ela contemplava mais uma
manifesta��o desse estado de esp�rito. Meia hora antes as
tropas da pol�cia haviam percorrido a regi�o, colando em
postes e muros o enorme cartaz que o promotor superior de
Justi�a da Alemanha mandara imprimir �s pressas,
oferecendo a recompensa de 5 mil marcos a quem desse
informa��es sobre o paradeiro do escritor Otto Braun e da
datil�grafa Olga Benario. Agora ela podia ver l� embaixo, na
rua, o nanico Gabor Lewin e a agitada Emmy Handke, seus
companheiros, arrancando todos os cartazes.
Que outro nome dar, sen�o ousadia, para o que acontecia
a poucas quadras dali, no sal�o dos fundos da Cervejaria
M�ller? Indiferentes ao cerco que a pol�cia montara em
Neuk�lln para apanhar os dois, os militantes do Rot Front, a
Frente Vermelha da Juventude Comunista, decidiram fazer
um ato pol�tico para comemorar a liberta��o de Braun. A
primeira a falar foi uma garota de trancinhas. �s centenas
de pessoas que se aglomeravam no sal�o � mo�as,
rapazes, velhos oper�rios com suas mulheres e crian�as de
colo �, ela comunicou que todos os envolvidos na
liberta��o de Braun estavam em seguran�a, e arrancou
aplausos demorados quando revelou que a a��o fora
realizada com armas descarregadas.
� N�o t�nhamos a inten��o de ferir ningu�m... Se
houvesse alguma rea��o por parte dos fascistas de Moabit,
certamente a esta hora estar�amos pensando em libertar,
al�m do professor Braun, nossos companheiros que
invadiram a pris�o. A verdade � que um bando de garotos
com armas descarregadas colocou de joelhos os fascistas
que mant�m na pris�o milhares de trabalhadores alem�es...
�s onze da noite, uma tropa de choque invadiu a
Cervejaria M�ller e evacuou o sal�o a golpes de cassetete.
De seu quarto, Olga podia ver o alvoro�o que a escaramu�a
provocou na rua Zieten. Ao seu lado, Otto dormia,
indiferente � excita��o que tomava conta da companheira.
O notici�rio do r�dio ligado em volume quase inaud�vel
aumentou a ins�nia da mo�a: todos os programas
comentavam o fato do dia � a invas�o da pris�o de Moabit.
Mas tanto os jornais como o r�dio transmitiam uma certeza
tranquilizadora: de todos os participantes da a��o, s� ela
fora identificada pela pol�cia.
Sobre os outros havia, no m�ximo, vagas descri��es
f�sicas. Assim, Rudi K�nig era apresentado como �um
moreno forte, de cabelo escovinha, que agarrou o escriv�o
Nekien pela garganta�; Margot Ring era �uma ruiva
gordinha, de quinze anos no m�ximo�; aquele que as
testemunhas identificavam como �o grandalh�o de cabelos
longos que deu a coronhada na cabe�a do secret�rio da
Justi�a� era o doce Erich Jazosch; um funcion�rio do tribunal
que se encontrava � porta da pris�o na hora da fuga
descrevera Erik Bombach como �uma crian�a de um metro
e meio de altura, carregando uma pistola em cada m�o�; a
magrela Klara Seleheim, por causa do cabelo aparado rente,
era tratada como �algu�m que n�o sabemos se � uma
mocinha ou um rapaz�, como dizia um locutor.
Se desconhecia a identidade daqueles jovens, sobre Olga
e Otto a pol�cia sabia tudo. Por isso, as semanas seguintes
foram de grande tens�o para os dois. O cerco policial
apertava e, por maior que fosse a solidariedade das fam�lias
oper�rias de Neuk�lln, aumentavam tamb�m os riscos de
pris�o. Pacatas casas de metal�rgicos e padeiros eram
transformadas em aparelhos para que os jovens pudessem
esconder-se por quatro, cinco dias. A seguran�a deles ficou
a cargo do Departamento de Ordem, uma se��o geheim
(secreta) e semimilitarizada da Juventude Comunista.
Experimentado em proteger a organiza��o contra ataques
terroristas de direita ou da pol�cia, o Departamento de
Ordem funcionava como uma c�lula clandestina dentro da
Juventude Comunista legal. Eram seus membros que se
encarregavam de arranjar novos aparelhos e de transferir
Olga e Otto de uma casa para outra quando pressentiam a
aproxima��o da pol�cia.
As sess�es de cinema em Berlim passaram a ser
precedidas, assim que as luzes se apagavam, da exibi��o
de um slide reproduzindo o cartaz com as fotos de Olga e
Otto e a oferta de 5 mil marcos a quem informasse sobre o
paradeiro deles. O p�blico, invariavelmente, explodia em
aplausos para os dois jovens e, invariavelmente, acendiamse
as luzes e o cinema era ocupado por policiais armados.
Quando a escurid�o retornava, come�avam as vaias, os
assovios e as bolas de papel voando. O que mais intrigava a
pol�cia � que ningu�m apareceu para candidatar-se a uma
recompensa equivalente a dois anos de sal�rio de um
trabalhador.
Nos primeiros dias de julho, o juiz Franz Vogt, do Supremo
Tribunal, convocou a imprensa ao seu gabinete � ao lado do
sal�o de audi�ncias que havia sido invadido tr�s meses
antes � para apresentar um novo cartaz-comunicado,
assinado pelo promotor superior de Justi�a da Alemanha.
Nele, o Poder Judici�rio retirava a recompensa de 5 mil
marcos, �pois, segundo informa��es fornecidas pela pol�cia,
as citadas pessoas conseguiram fugir, dirigindo-se para o
exterior�.
Dessa vez a pol�cia acertara: dias antes, Olga e Otto
haviam viajado de carro, acompanhados por membros do
Departamento de Ordem da Juventude Comunista, at� a
cidade de Stettin, na fronteira com a Pol�nia. De l�
embarcaram num trem rumo a Moscou. No momento em
que o juiz Vogt recebia os rep�rteres em Berlim, o casal
encontrava-se dentro do trem, na fronteira da Pol�nia com a
urss, exibindo passaportes falsos a um jovem soldado
sovi�tico de tra�os orientais, que ostentava um capacete
branco com a estrela vermelha. Emocionada por estar
�entrando em territ�rio prolet�rio�, Olga n�o resistiu �
tenta��o de um aceno carinhoso para aquele �soldado do
povo�. Para sua decep��o, o soldado fingiu que n�o viu. O
trem arrancou lentamente em dire��o a Moscou.
Buenos Aires, Argentina
� Abril de 1928
Ap�s duas semanas montado no lombo de um boi,
atravessando o pantanoso chaco paraguaio, o capit�o Lu�s
Carlos Prestes, de trinta anos, aproximava-se em uma balsa
do porto de Buenos Aires. Mi�do, com menos de um metro e
sessenta, os doze meses que acabara de passar na
cidadezinha de La Gaiba, no Oeste boliviano, haviam
deixado Prestes com p�ssima apar�ncia. A barba longa e
cerrada escondia o rosto magro, de ma��s saltadas, ainda
ressentido de repetidas crises de impaludismo. A chegada �
capital portenha marcava definitivamente o fim de uma
aventura que ficaria gravada para sempre na hist�ria do seu
pa�s, o Brasil.
Um ano antes, levando nos ombros a divisa de general
revolucion�rio, e tendo ao lado seu companheiro de
epopeia, o general Miguel Costa, Prestes conduzira at� o
ex�lio boliviano sua tropa de 620 homens. L� entregara seu
arsenal ao major Carmona Rod�, representante do governo
de La Paz: noventa fuzis Mauser, quatro metralhadoras
pesadas (uma das quais inutilizada), dois fuzismetralhadoras
descalibrados e cerca de 8 mil balas. Com a
deposi��o volunt�ria das armas, lavrada numa pequena ata
subscrita pelo major boliviano e os dois militares brasileiros,
chegava ao fim uma campanha de dois anos e seis meses
de dura��o, em que foram percorridos, a p� ou em lombo
de burro, nada menos que 25 mil quil�metros atrav�s de
doze estados brasileiros. Embora exilados e desarmados,
todos, sem exce��o, sabiam que entravam para a hist�ria
de cabe�a erguida. Ao cabo da jornada, aquele ex�rcito de
esfarrapados ficara conhecido em todo o continente como
�a invicta Coluna Prestes� � o contingente rebelde que
afrontara as tropas bem armadas e os generais do
presidente Artur Bernardes sem sofrer uma �nica derrota.
Para as centenas de milhares de brasileiros que com ela
travaram contato direto ou que dela tiveram not�cia, seu
chefe, o general Lu�s Carlos Prestes, era o Cavaleiro da
Esperan�a.
O mineiro Artur da Silva Bernardes tomara posse na
Presid�ncia da Rep�blica em 1922 sob estado de s�tio �
provocado pelo levante militar do Forte de Copacabana, no
Rio de Janeiro, conhecido como �Dezoito do Forte� � e sob
estado de s�tio governaria durante os quatro anos de seu
mandato. Extremamente autorit�rio, Bernardes afastou do
poder as oligarquias descontentes, decretou a interven��o
federal nos estados da Bahia e do Rio de Janeiro, e seu
relacionamento dif�cil com a corpora��o militar acabou por
gerar conspira��es que explodiram durante todo o seu
governo. A repress�o aos movimentos rebeldes quase
sempre era pretexto para a ado��o de medidas autorit�rias
de car�ter geral � como a dur�ssima lei de imprensa
assinada em novembro de 1923, conhecida como �Lei
Infame� � que atingiam as liberdades democr�ticas como
um todo.
Foi nesse clima que surgiu a Coluna � embora Prestes,
pessoalmente, n�o a tivesse visto nascer. Quando o general
Isidoro Dias Lopes e o ent�o major Miguel Costa levantaram
suas tropas em S�o Paulo, no dia 5 de julho de 1924, ele
servia como capit�o-engenheiro no Batalh�o Ferrovi�rio de
Santo �ngelo, cidadezinha do Rio Grande do Sul pr�xima �
fronteira com o Uruguai. Os dois militares paulistas
pretendiam marchar contra a capital federal, ent�o no Rio
de Janeiro, buscar apoio entre os militares das guarni��es
cariocas e depor o governo Bernardes. Acuados em S�o
Paulo por tropas federais, os dois seguiram para o Sul �
frente de 2 mil homens, em dire��o a Foz do Igua�u, no
Paran�. Na madrugada de 28 para 29 de outubro, o capit�o
Prestes deixa um curto bilhete despedindo-se da m�e, dona
Leoc�dia, e comanda a insurrei��o do Batalh�o Ferrovi�rio
de Santo �ngelo em apoio aos revoltosos paulistas,
articulando rebeli�o simult�nea no Terceiro Regimento de
Cavalaria da cidade de S�o Lu�s, a oitenta quil�metros de
dist�ncia.
Alertado a tempo, o governo consegue apagar parte do
rastilho que se espalhava pelo estado e aborta os levantes
dos quart�is de Uruguaiana, Alegrete e Cachoeira,
frustrando o plano de Prestes de tomar todo o Rio Grande
do Sul. Seguindo ent�o para S�o Lu�s, Prestes ali instala seu
quartel-general. Em seguida ocupa as cidades de S�o
Nicolau, Santo �ngelo, Santiago do Boqueir�o e S�o Borja.
Ao contabilizar armas e homens, ele se d� conta da
fragilidade militar dos rebeldes: n�o passam de 1500, entre
civis e militares. As armas nem sequer s�o suficientes para
a metade dos combatentes: oitocentos fuzis Mauser e uns
poucos fuzis-metralhadoras. Para enfrent�-los j� estavam a
caminho de S�o Lu�s as tropas do governo: 14 mil soldados,
treinados e bem armados.
A desigualdade de for�as provoca a primeira manifesta��o
do g�nio militar que seria a marca de Prestes ao longo dos
dois anos seguintes. Ele faz chegar aos ouvidos do inimigo a
not�cia de que concentraria suas for�as em S�o Lu�s, ao
mesmo tempo que come�a a despachar a tropa rumo ao
norte. Quando os efetivos oficiais tomam a cidade, n�o h�
mais um s� rebelde no lugar: Prestes estava com seus
homens a duzentos quil�metros de dist�ncia, vadeando as
matas do rio Uruguai. Para chegar a Foz do Igua�u, onde
pretendia juntar-se aos revoltosos de S�o Paulo, ele �
obrigado a se valer muito mais da ast�cia do que da for�a;
sem perder um s� homem, consegue infligir consider�veis
baixas �s for�as governamentais apenas com armadilhas e
emboscadas. Mesmo em combate, cada tiro disparado por
seus comandados tem que ser autorizado por ordem
superior, para economizar a muni��o. A chegada triunfal de
Prestes e seus homens a Foz do Igua�u, no dia 1o de abril de
1925, d� novo �nimo aos paulistas ali acantonados,
reduzidos por obra de sucessivas deser��es quase � metade
do contingente que sa�ra de S�o Paulo em 5 de julho.
Investidos da patente de general, Lu�s Carlos Prestes e
Miguel Costa juntam suas for�as e rompem a p� o sert�o
brasileiro, na esperan�a de p�r fim �ao despotismo dos
bernardescos� � nome com que tratavam os seguidores do
presidente da Rep�blica.
Avan�ando como podia, a serpente humana
ziguezagueava pelo pa�s. Quando conseguiam potrear
manadas de cavalos em alguma fazenda, os soldados de
Prestes montavam por algumas semanas, ou meses. Se n�o
encontravam cavalos, seguiam a p�. Se havia comida,
comiam; por�m, o mais comum era viajarem por dias com
pouca �gua e quase sem alimento, sustentando-se com
farinha e rapadura. In�meras vezes o estoque de rem�dios
da tropa era integralmente utilizado para atender �s
miser�veis popula��es encontradas pelo caminho. A
trag�dia das condi��es de vida dessa gente que a Coluna
cruzava pelo interior horrorizava os comandantes, ambos
nascidos em fam�lias da classe m�dia: mesmo tendo
convivido com a pobreza do Sul, defrontavam-se com um
Brasil ainda mais faminto, miser�vel, atrasado. Ao ver
criancinhas arrancando ra�zes do ch�o para fazer a �nica
refei��o do dia, Prestes se convencia ainda mais da
necessidade de mudar a face do pa�s.
A Coluna engrossava a cada povoado. A r�gida disciplina
imposta � tropa por Prestes tornava os soldados respeitados
pelo povo. Em geral, as primeiras medidas tomadas ap�s a
ocupa��o de uma cidade eram a liberta��o dos presos e a
queima dos arquivos dos cart�rios, onde estavam os
documentos que �comprovavam� o monop�lio das
propriedades da terra pelos latifundi�rios e a explora��o dos
direitos dos camponeses. � exce��o dos casos de
sentenciados por crimes brutais, como estupro seguido de
morte, os presos eram postos em liberdade ap�s breve
entrevista com os oficiais da Coluna. Contra a vontade de
Prestes, um contingente de meia centena de mulheres
acompanhava a tropa em sua marcha pelo pa�s. A press�o
da soldadesca vencera e o comandante n�o conseguiu
impedir que elas seguissem. Muitas pariram filhos ao longo
da marcha, crian�as que haviam sido geradas no come�o da
jornada.
Apesar da invencibilidade militar, a falta de um programa
pol�tico claro, propondo algo mais que a derrubada de Artur
Bernardes, ia aos poucos minando o moral dos oficiais e
soldados. Afinal, haviam se passado quase dois anos e
milhares de quil�metros tinham sido percorridos, mas os
pr�prios comandantes, a come�ar de Prestes, sabiam que a
Coluna, ainda que vitoriosa, n�o mudaria as estruturas
sociais do Brasil simplesmente derrubando o ditador. Do
cora��o do Nordeste a Coluna desceu em dire��o ao Sul do
Mato Grosso, praticamente refazendo o trajeto inicial da
subida. Quando as tropas chegaram a San Mathias, na
Bol�via, para depor o que restara de suas armas nas m�os
do major Carmona Rod�, o caderno de notas de Louren�o
Moreira Lima, o historiador oficial da Coluna, registrava, em
n�meros exatos: de S�o Lu�s, no Rio Grande do Sul, at� ali,
tinham sido vencidas 3742,5 l�guas. Ou seja, 24947,5
quil�metros.
Nos primeiros meses em territ�rio boliviano, Prestes
cuidou dos interesses da tropa, repatriando os soldados que
desejavam retornar ao Brasil e tratando de conseguir
trabalho para os que n�o queriam ou n�o podiam voltar.
Marx, L�nin e o triunfo da Revolu��o Bolchevique no outro
lado do mundo, dez anos antes, eram nomes e not�cias sem
muito significado para o capit�o exilado. At� o dia que, no
final de 1927, recebe na cidade boliviana de Puerto Su�rez,
a poucos quil�metros da fronteira com o Brasil, a visita de
Astrojildo Pereira, um dos fundadores, em 1922, do Partido
Comunista � Se��o Brasileira da Internacional Comunista, o
primeiro nome oficial da organiza��o. As perip�cias da
Coluna haviam causado grande sensa��o entre os
opositores do governo brasileiro, inclusive os comunistas. A
bagagem de Astrojildo vai entupida de livros, quase todos
em franc�s, das edi��es L�Humanit�: obras de Marx e L�nin,
resolu��es da Internacional Comunista, textos de Engels e
exemplares avulsos do peri�dico Correspondance
Internationale, editado pelo comando da Internacional
Comunista, sediado em Moscou. Depois de dois dias de
conversas com Prestes, Astrojildo entrega-lhe os livros e se
despede com um dissimulado convite:
� Nesses volumes o senhor encontrar� um pouco da
ci�ncia que trar� as solu��es para os problemas do nosso
tempo: o marxismo.
Prestes n�o assume qualquer compromisso com o partido.
Quer primeiro conhecer a tal ci�ncia, e passa os primeiros
meses de 1928 aproveitando o tempo dispon�vel para
mergulhar na farta literatura comunista que recebera.
Nessa �poca come�a a pensar em sair da Bol�via e tentar
destino melhor para seus companheiros. Acaba decidindo
transferir-se para a vizinha Argentina. Al�m de ficar mais
perto do Rio Grande do Sul � e, portanto, da efervesc�ncia
pol�tica brasileira �, o clima existente no pa�s era mais
democr�tico do que o existente na Bol�via. E, claro, na
Argentina mais desenvolvida economicamente, havia
melhores ofertas de trabalho para ele e para o que restara
de sua tropa. No final do primeiro semestre de 1928 est�o
todos instalados em Buenos Aires.
J� sem a barba que lhe varria o peito no tempo da Coluna,
Prestes torna-se o centro das aten��es dos revolucion�rios
de v�rios pa�ses que, de passagem por Buenos Aires,
aconselham-se com o mitol�gico comandante da Coluna
invicta. Paraguaios, chilenos, uruguaios e bolivianos e �
para espanto de Prestes, da m�e e das quatro irm�s que
viviam com ele � at� turistas brasileiros apareciam por l�,
acompanhados de guias de ag�ncias de viagens, para ver o
�fen�meno� de perto. A casa era, igualmente, um centro de
conspira��o de patr�cios seus que lutavam para derrubar o
governo brasileiro.
Prestes se aproxima e torna-se amigo do jornalista Rodolfo
Ghioldi, dirigente do Partido Comunista argentino e do
Comintern. E, numa das muitas reuni�es na casa deste, na
calle M�xico, em Buenos Aires, fica conhecendo um certo
Kleiner, tamb�m chamado de R�stico � na verdade,
codinomes de Augusto Guralsky, enviado especial da
Terceira Internacional para contatar na Argentina o capit�o
brasileiro, cujo trabalho pol�tico interessava aos dirigentes
sovi�ticos. Os contatos com o Partido Comunista brasileiro
tamb�m se tornam mais frequentes e, em 1929, o prest�gio
de Prestes no Brasil � tal que o partido o convida para
disputar as elei��es � Presid�ncia da Rep�blica, no ano
seguinte. Contudo, ele s� aceita discutir o convite se a
candidatura resultar de um consenso entre os tenentes da
Coluna � e o plano malogra.
Em mar�o de 1930 � eleito o paulista J�lio Prestes para
suceder a Washington Lu�s na Presid�ncia, num pleito t�pico
da Rep�blica Velha, com voto a descoberto, fraudes e um
contingente restrit�ssimo de eleitores. Mas ele n�o toma
posse. Uma insurrei��o, que come�a de forma espont�nea
na Para�ba e � conduzida nacionalmente pela Alian�a
Liberal, leva Get�lio Vargas ao Pal�cio do Catete. Lu�s Carlos
Prestes sente imediatamente as consequ�ncias da mudan�a
no Brasil ao ser preso em Buenos Aires e libertado em
seguida. Junto com a m�e e as irm�s exila-se em
Montevid�u e, da capital uruguaia, pede filia��o ao Partido
Comunista. Por�m, o partido que o cortejara meses antes
agora o rejeita. Os dirigentes comunistas brasileiros � que
pouco antes haviam destitu�do o secret�rio-geral Astrojildo
Pereira, acusando-o de opor-se ao �obreirismo� proposto
pelo Comintern � impedem que Prestes seja aceito.
O presidente Get�lio Vargas tenta coopt�-lo, oferecendolhe
a patente de capit�o do Ex�rcito que lhe fora cassada,
mas Prestes rejeita a proposta e recebe de seus tenentes a
patente honor�ria de general. Cada dia mais, ele se
convence de que s� uma revolu��o popular poder� mudar
os destinos do Brasil. E � com esse projeto na cabe�a que
aceita um convite da Terceira Internacional para mudar-se,
com a fam�lia, para a Uni�o Sovi�tica. Sem barba e sem
bigode, trajando um discreto terno cinza e levando � m�o
um elegante chap�u de feltro, Lu�s Carlos Prestes embarca
no navio Eub�e, que larga do porto de Montevid�u, no dia 1o
de outubro de 1931, com destino a Moscou.
1
Na fortaleza vermelha
Com os corpos mo�dos ap�s 72 horas no trem, Olga e Otto
chegaram ao Hotel Desna, na capital sovi�tica. Ao contr�rio
do Lux, destinado a receber estrangeiros ilustres que
aportavam em Moscou, n�o havia nenhuma pompa no
Desna, que era limpo e discreto. Ao preencher a ficha de
entrada, Olga notou que, por curiosa coincid�ncia,
exatamente cinco anos antes ela entrara pela primeira vez
em uma organiza��o comunista.
Foi no ver�o de 1923, em Munique, sua cidade natal,
poucos meses depois de seu 15o anivers�rio. A Juventude
Comunista havia sido proibida pela pol�cia e entrara na
clandestinidade. Seus militantes, adolescentes de no
m�ximo dezoito anos, resolveram ent�o criar o Grupo
Schwabing, que se reunia uma vez por semana numa velha
serraria nos sub�rbios da capital da Baviera. Certa tarde, a
reuni�o � interrompida por barulhos suspeitos do lado de
fora. Os encarregados da seguran�a saem, temendo a
chegada da pol�cia, e deparam com a jovem magrela, alta,
de trancinhas escuras, pedindo para fazer parte do
Schwabing. Convidada a entrar na serraria, Olga �
submetida a uma sabatina pelos l�deres do grupo. Quando
indagam seu endere�o e o nome dos pais, ela responde:
� Sou filha do advogado Leo Benario. Mas n�o tenho
culpa disso.
Para a maioria dos comunistas alem�es, n�o apenas a
direita era considerada inimiga. Eles colocavam no mesmo
saco e tratavam com o mesmo desprezo os socialdemocratas
� e o dr. Benario era um social-democrata. Para
os jovens comunistas do Schwabing, filhos de oper�rios,
aquela era uma presen�a inusitada: nunca, at� ent�o, um
jovem da burguesia b�vara tinha batido �s suas portas para
pedir filia��o.
O preconceito era injustificado. Embora fosse um dos
juristas mais respeitados da Baviera e personalidade
influente no Partido Social-Democrata local, o advogado
judeu Leo Benario era um liberal de ideias avan�adas. A
pr�pria Olga diria mais tarde que havia se transformado
numa comunista n�o pela leitura da teoria marxista, mas
folheando os processos em que o pai defendia os
trabalhadores de Munique. �Ali vi de perto a mis�ria e a
injusti�a que s� conhecia, superficialmente, nos livros�,
repetia sempre. Em contraste com sua considera��o pelo
pai, nas poucas vezes em que se referia � m�e, ela o fazia
com frieza e economia de palavras. Filha de abastada
fam�lia judaica, Eug�nie Gutmann Benario era uma elegante
dama da alta sociedade que via com horror a perspectiva de
sua filha tornar-se comunista. A import�ncia da av� materna
em sua vida era ainda menor. Olga lembrava-se apenas de
um prosaico presente que dela recebera, durante a crise
que sobreviera com a Primeira Guerra Mundial � uma
galinha garnis�, �til numa �poca em que os ovos estavam
racionados �, e da pergunta com que a velha
sistematicamente reagia a toda novidade que a neta lhe
trouxesse da rua, como num press�gio da trag�dia que se
abateria sobre a Alemanha: �Isso � bom ou mau para os
judeus?�.
Ao falar do pai, Olga nunca escondia o carinho que sentia
por ele. Era, sim, um burgu�s social-democrata; mas
diferenciado. Ao dr. Benario recorriam invariavelmente os
trabalhadores que pretendiam fazer demandas judiciais
contra os patr�es e que n�o tinham dinheiro para pagar
advogados. Com Leo Benario, pagava quem pudesse. Para
os que nada podiam pagar, trabalhava de gra�a. �E com
mais afinco�, costumava lembrar Olga. A observa��o da
clientela que frequentava a elegante resid�ncia da Karlplatz,
no centro da cidade, levava a jovem a interessar-se cada
vez mais pela sorte daquela gente. Pelo escrit�rio do pai
passavam diariamente, e discutiam � frente da adolescente,
os mais abastados e os mais miser�veis habitantes de
Munique. �A luta de classes ia me visitar todos os dias em
casa�, ela brincava.
E visitas n�o faltavam � trazidas pela dram�tica situa��o
econ�mica que decompunha o pa�s desde o fim da Primeira
Guerra. A brutal espiral inflacion�ria chegou a tal ponto que
um d�lar, que em meados de 1922 valia mil marcos, passou
a custar 350 milh�es de marcos j� no ano seguinte. O ativo
operariado alem�o estava � beira da mis�ria e a classe
m�dia se proletarizava velozmente. A aparente falta de
sa�da para a crise fazia com que os sindicatos de
trabalhadores, controlados na maioria por comunistas e
social-democratas, perdessem for�a junto � popula��o
oper�ria. Olga acreditava que tinha a solu��o, pelo menos a
sua solu��o: dedicar-se mais e mais � causa comunista. J�
na primeira tarefa que lhe deram, naquele ver�o de 1923,
ela mostrou aos garotos do Schwabing que n�o estavam
diante de uma burguesinha entediada. Destacada para uma
colagem clandestina de cartazes, Olga, aos quinze anos,
revelou-se a mais eficiente da turma, a� inclu�dos os mais
velhos e mais fortes. Eficiente e ousada: pela primeira vez
tamb�m o centro, e n�o s� a periferia de Munique,
amanheceu pichado. Ela chegara a locais movimentados,
onde a presen�a de policiais assustava at� os militantes
mais experientes. �Medo e prud�ncia s�o palavras que ela
n�o conhece�, disseram os novos amigos no dia seguinte.
A integra��o deu-se em pouco tempo. Al�m de decidida e
corajosa, ela trazia do lar burgu�s algo que faltava aos
filhos de oper�rios: uma excelente forma��o escolar. Muitos
dos cl�ssicos, de que a maioria ali s� tinha ouvido falar em
palestras, ela j� os havia lido. E em pouco tempo notaram
outra forte caracter�stica, que os mais resistentes a sua
presen�a no Schwabing atribu�ram ao �radicalismo pr�prio
dos filhos da burguesia�: a intoler�ncia contra qualquer
pessoa que n�o fosse militante comunista. In�meras vezes
ela seria advertida pelos mais velhos para evitar
comportamentos que n�o passavam de provoca��es
juvenis, como andar pelas ruas exibindo no peito um broche
vermelho com a foice e o martelo dourados.
No final de 1923, quando trabalhava como vendedora na
Livraria Georg M�ller, ela ouviu falar pela primeira vez no
professor Otto Braun. A partir da descri��o que faziam dele,
sobretudo as mulheres, Olga passou a fantasiar, criando um
mito em torno do jovem, bonito e inteligente Otto que,
comentavam em voz baixa, trabalhava secretamente como
agente dos sovi�ticos. Quando, por fim, uma amiga comum
promove o encontro dos dois, Olga tem uma surpresa. Na
verdade, o que ela imaginava de Otto era a caricatura de
um revolucion�rio de folhetim: barba crescida, roupa
desalinhada, cabelos longos e desalinhados. No caf� onde
se conhecem ela depara com um homem elegante,
fumando cachimbo, gravata meticulosamente amarrada,
cabelos repartidos e fixados com brilhantina, cal�a passada
com capricho, botinas de camur�a escovadas.
Embora tivesse apenas 22 anos, sete a mais do que ela,
Otto j� era um militante experiente. Inclusive naquilo que
mais a encantava, a a��o armada. Na frustrada revolu��o
popular de 1919, uma tentativa de repetir o fen�meno russo
de dois anos antes, ele fora enviado pelo partido a uma
miss�o secreta, cujo objetivo era interceptar e desbaratar
um comboio de tropas que o governo central enviara para
tomar Munique, ent�o capital da �Rep�blica da Baviera�.
N�o obstante o �xito de sua tarefa, continuaram sendo
enviados refor�os contra os insurgentes e Munique ainda
resistiria por mais um m�s, com Otto � frente de um grupo
de combatentes. Perdera a guerra, mas gabava-se de ter
dado cabo de uns tantos �social-democratas direitistas�. A
batalha de Munique chegara ao final com Otto na pris�o � a
sua primeira e mais curta pris�o.
Os encontros entre os dois tornaram-se frequentes e o
fasc�nio rec�proco cada vez maior. Ela imaginava estar
diante de um homem perfeito, que conseguia juntar uma
s�lida forma��o te�rica com a experi�ncia militar. Sem
contar que era um rapaz bel�ssimo. Otto tamb�m estava
encantado com aquela figura, meio menina, meio mulher,
algu�m com uma sede de a��o e de teoria como ele nunca
vira antes. O final da tarde passou a ser esperado com
ansiedade por ambos. Quando faltava meia hora para Olga
deixar o balc�o da livraria, ele aparecia com seu cachimbo e
cachecol elegante para conversas que se estendiam at� a
madrugada.
Otto come�ou a orientar as leituras de Olga e a indicarlhe,
al�m dos te�ricos indispens�veis � sua forma��o
comunista, alguns jornais e revistas de grupos marxistas de
Berlim. E se surpreendia com a insist�ncia com que ela
pedia manuais de estrat�gia militar, depoimentos de
grandes generais e relatos de batalhas famosas. A
militarista que os suaves olhos azuis ocultavam j� emergira
nas reuni�es do Grupo Schwabing, criticando
frequentemente o desinteresse dos outros pelas t�cnicas
militares e a aus�ncia de treinamento regular para todos os
militantes. �N�s vamos sentir falta dessa experi�ncia
quando estivermos cara a cara com o inimigo�, advertia.
Suas desaven�as com os rapazes do grupo, entretanto, s�
se tornavam �speras quando percebia que estava
recebendo tarefas secund�rias pelo fato de ser uma garota.
Ao final da discuss�o, Olga resmungava para quem quisesse
ouvir: �Quero que voc�s saibam que nestes momentos ser
mulher � uma chatea��o!�.
Quanto mais lia os cl�ssicos marxistas e militava no
Schwabing, mais firme tornava-se sua decis�o de trocar
Munique por Berlim. A clientela fina e perfumada da Livraria
Georg M�ller, as discuss�es com os pais e a pr�pria casa
come�am a ficar insuport�veis. As not�cias da agita��o
pol�tica na capital, que lia nos jornais de Berlim,
incendiavam sua imagina��o. Uma fantasia que tinha nome
pr�prio: Neuk�lln, o bairro oper�rio de Berlim, a �Fortaleza
Vermelha� da esquerda alem�. Depois de meses de
insist�ncia com Otto, ela afinal recebeu dele um aceno. Foi
num fim de tarde em que os dois passeavam de m�os
dadas por um parque nos arredores de Munique. Ele pr�prio
n�o parecia estar muito seguro do acerto do convite:
� Consultei o partido e � poss�vel mudarmos para Berlim.
Mas e sua fam�lia? Como voc� vai resolver isso com seu pai?
Ela enfureceu-se com a pergunta:
� Viajo na hora que o partido decidir!
Na verdade, n�o era apenas a pol�tica que a empurrava
para Berlim. Ela estava apaixonada por Otto. Os fins de
semana que passaram juntos em cabanas cobertas de neve
revelaram-lhe o homem doce, carinhoso e paciente que se
escondia por tr�s do grave professor de marxismo. Passar
os dias ao lado dos jovens oper�rios comunistas de Neuk�lln
e as noites nos bra�os de Otto era tudo o que Olga Gutmann
Benario queria para sua vida naqueles dias.
S� depois de ter na m�o o bilhete de trem de segunda
classe, e arrumado suas roupas na pequena mala de
madeira, � que ela informou aos pais que viajaria na mesma
noite. Foi um jantar silencioso, do qual a m�e n�o quis
participar. Olga tentou, bravamente, partir sem brigar com o
velho Leo. Depois de quase tr�s horas de discuss�o, ela
finalmente levantou-se. O beijo de despedida que o pai lhe
deu � porta de casa dizia que no fundo ele, em seu lugar,
talvez fizesse o mesmo.
Vinte e quatro horas depois, da janela do s�t�o de um
pequeno sobrado, Olga contemplou a rua Weser: ent�o ela
estava ali, no cora��o de Neuk�lln. Para quem passara a
inf�ncia e a adolesc�ncia no confort�vel bangal� dos
Gutmann Benario, na Karlplatz, em Munique, aquele
c�modo min�sculo estava muito longe de merecer o nome
de apartamento. Tr�s passos dados com suas longas pernas
eram suficientes para trombar com as paredes. Como
mob�lia, duas camas, uma mesinha de canto, uma cadeira e
uma c�moda com gavetas, que fazia as vezes de guardaroupa.
Nos v�os entre um e outro m�vel, t�buas apoiadas
em tijolos vergavam sob tantos livros, pap�is e documentos.
Por algum tempo, esta seria a casa de Olga e Otto.
Percebendo a surpresa da namorada diante da mod�stia das
acomoda��es, ele ironizou:
� Nesse quarto j� come�amos economizando o dinheiro
do despertador.
� que o bonde come�ava a circular �s seis da manh� e
passava debaixo da janela do apartamento, fazendo um
barulho capaz de acordar os defuntos. Em sua primeira
manh� berlinense, Olga tomou consci�ncia de que a
mudan�a n�o era apenas de endere�o e de cidade. Durante
o caf� da manh� � algumas bolachas e uma garrafa de
leite �, Otto revelou-lhe que seu trabalho clandestino para
o partido implicava certos cuidados que envolveriam a
ambos. Abriu uma pasta de couro e tirou alguns
documentos de identidade, explicando pacientemente a
uma Olga maravilhada com o clima de mist�rio:
� Como eu, a partir de agora voc� ter� uma nova
identidade. Meus registros na pol�cia est�o sob o nome de
Arthur Behrendt, caixeiro-viajante nascido em Augsburg em
28 de setembro de 1898. E desde ontem voc� passou a ser
Frieda Wolf Behrendt, minha mulher, nascida em 27 de
setembro de 1903, em Erfurt. Aqui est�o os seus
documentos e um atestado de que residimos atualmente no
n�mero 11 da rua Erhard, na cidade de Leipzig. Muito
cuidado e boa sorte, senhora Behrendt.
Otto disse mais: seu trabalho ilegal provavelmente os
manteria afastados por semanas, �s vezes meses.
Aproximou-se dela, com um carinho:
� Isso significa que, embora vivendo juntos, t�o cedo n�o
poderemos casar.
Ela reagiu agressiva:
� Ent�o � bom que voc� saiba que eu n�o quero me
casar.
Foi preciso pouco tempo para que Olga deixasse de ser a
adolescente de Munique para se transformar numa mulher.
Em tudo � menos na apar�ncia de menina que lhe davam
as tran�as, destacando ainda mais seus belos olhos. No
mais, uma mulher: na vida com Otto, na milit�ncia di�ria, no
progresso fulminante que fazia dentro dos quadros da
Juventude Comunista de Neuk�lln.
Alguns meses ap�s chegar a Berlim, ela j� era a secret�ria
de Agita��o e Propaganda da mais importante base oper�ria
do Partido Comunista alem�o, o bairro vermelho de
Neuk�lln. Durante o dia, reuni�es, passeatas e atividades de
rua. � noite, intermin�veis assembleias nos fundos do velho
pr�dio da rua Zieten, onde funcionava a cervejaria da
fam�lia M�ller. O mesmo sal�o que durante o almo�o era
tomado por trabalhadores das imedia��es para a r�pida
refei��o de batata-salsicha-e-cerveja, � noitinha virava sede
da Juventude Comunista do bairro. Ningu�m precisava de
senha para entrar. Como a maioria daquela gente ainda n�o
tinha idade para beber, M�ller reagia maquinalmente
quando aparecia alguma cara nova diante do gasto balc�o
de m�rmore. Apertando os olhos entre o vasto bigod�o e a
calva que lhe tomava a cabe�a, dizia apenas:
� Juventude? D� a volta pelo corredor, � l� nos fundos.
Olga j� conhecia bem, de hist�rias que ouvira em
Munique, tanto a cervejaria como seu dono. Mais do que
isso, sabia at� o canto em que, durante muitos anos, Rosa
Luxemburgo e Karl Liebknecht � dois destacados dirigentes
do Partido Comunista alem�o, assassinados em 1919 �
conspiraram politicamente. Quando piorava a situa��o
financeira dos M�ller � Wilhelm, a mulher e uma filha �, a
not�cia corria pelo meio oper�rio, at� mesmo de fora de
Neuk�lln. Durante algumas semanas, as cervejarias da
regi�o se esvaziavam em benef�cio de M�ller; a freguesia se
multiplicava, at� que suas finan�as voltassem ao normal. E
o mesmo sal�o dos fundos, onde se realizavam atos
pol�ticos, assembleias e reuni�es clandestinas, duas vezes
por semana era transformado, das oito e meia �s onze e
meia da noite, em sala de aula. �s ter�as-feiras, semana
sim, semana n�o, Olga ensinava rudimentos de teoria
marxista aos seus companheiros. Ali se conseguia o prod�gio
de realizar quatro, cinco reuni�es simult�neas, tratando de
temas diferentes. Muitas vezes ela tinha de ser r�spida e
exigir que algu�m escolhesse outra hora para rodar
panfletos no mime�grafo que a organiza��o mantinha num
canto do sal�o.
Dia ap�s dia, trabalho duro: panfletagens na esta��o
ferrovi�ria de G�llitzer, passeatas de apoio �s greves nas
f�bricas do bairro, ou de protesto contra a imposi��o de
horas extras de trabalho. Tudo isso no escasso tempo que
lhe sobrava do emprego de onde vinham os poucos marcos
que a sustentavam em Berlim: das oito da manh� �s seis da
tarde, Olga era datil�grafa da Representa��o Comercial
Sovi�tica, um emprego que lhe fora conseguido pelo
partido. Embora o trabalho l� fosse muito tedioso,
comparado com suas atividades na Juventude Comunista,
ela se orgulhava de poder trabalhar �ao lado dos
revolucion�rios�. Mesmo sabendo que isso provavelmente
era mera fantasia, Olga via em cada um daqueles pacatos
burocratas de palet� e gravata �um bolchevique de a�o�.
O tempo exigido por uma vida t�o febril tinha que ser
roubado de alguma coisa. E, �s vezes, sua vida amorosa
com Otto parecia empobrecer. As poucas horas da semana
em que conseguiam ficar juntos, em geral j� pela
madrugada, acabavam sendo gastas em... trabalho. N�o s�
para ficar mais tempo com o companheiro, mas tamb�m
pelo aprendizado pol�tico, Olga conseguiu, ap�s muita
insist�ncia, ser sua secret�ria. Era ela, ent�o, quem
datilografava os extensos textos te�ricos que Otto ditava ou
deixava prontos, manuscritos, sobre a cama. Nessa tarefa
ela come�ou a compreender melhor a luta que se
avizinhava em seu pa�s, o desenvolvimento da revolu��o
em outros pa�ses e, � claro, a estrutura interna do Partido
Comunista alem�o.
O amor e a admira��o que tinham um pelo outro n�o
diminu�ra � ao contr�rio, queriam-se cada vez mais. No
entanto, a atividade pol�tica, somada � paix�o pela
milit�ncia, reduzia a minutos o tempo que tinham para
namorar. E quando discutiam nunca era por diverg�ncias
pol�ticas, mas por algo que chegava a irritar Olga: o ci�me
que Otto sentia dos rapazes da Juventude Comunista. Ci�me
justificado, diria qualquer um de seus sessenta
companheiros do grupo de Agita��o e Propaganda. A cada
dia Olga tornava-se mais atraente. At� o jeito meio
desengon�ado de andar dava-lhe um encanto especial.
Al�m disso, uma caracter�stica agu�ava ainda mais o desejo
dos rapazes: sua independ�ncia. Olga era dona de seu nariz
e fazia apenas o que acreditava ser importante. Na pol�tica
e na vida pessoal.
Essa independ�ncia, por�m, n�o a impedia de aprender
cada vez mais com Otto. Este n�o lhe ensinava apenas as
teorias de Marx, L�nin, Engels e Karl Liebknecht. Conselhos
que, dados por alguma amiga, teriam como resposta um
palavr�o, na boca de Otto vinham com outro sentido. N�o
era apenas um comunista experiente quem falava. Em
doses homeop�ticas, Otto Braun convenceu Olga de que
uma militante n�o precisava ser descuidada e malvestida �
no pequeno e improvisado toucador do casal, junto � pia do
quarto, os poucos vidros de col�nia e perfume eram dele.
Nas conversas na cama, noite adentro, crescia uma mulher
mais tolerante com os n�o comunistas. E, mais do que isso,
Olga aos poucos ia deixando de lado seus preconceitos
moralistas contra companheiros que fumassem, bebessem
ou gastassem o pouco tempo livre nos grandes sal�es de
baile, s�bado � noite. Com o tempo ela pr�pria j� come�ou
a se sentir atra�da pelas divers�es do grupo.
De um sentimento, entretanto, nem mesmo os conselhos
de Otto conseguiram livr�-la: o horror ao casamento formal,
sacramentado em cart�rio. Ela associava a ideia do
casamento ao que considerava a pior deforma��o burguesa:
a depend�ncia econ�mica da mulher, o sexo obrigat�rio, a
conviv�ncia for�ada. Quando algu�m indagava por que n�o
se casava com Otto, j� que aparentemente viviam t�o bem,
ela tinha a resposta pronta:
� N�o nos casamos exatamente por isto: porque nos
amamos. Eu jamais serei propriedade de algu�m.
Mas que n�o se confundisse essa compreens�o das
rela��es homem-mulher com qualquer outra liberalidade.
Quando ouvia alguma amiga contar como vantagem que
levara para a cama tantos rapazes, ela perdia a serenidade.
Nesses momentos emergia uma Olga intolerante, quase
puritana:
� Saiba que ceder aos instintos � multiplicar o bordel
burgu�s. E quem diz isso n�o sou eu; � L�nin.
Conversa encerrada. Como contestar L�nin? E se no grupo
algu�m tivesse comportamento que considerasse �imoral�,
Olga n�o hesitava em levar o problema � dire��o da
Juventude Comunista, e isso na avan�ada Berlim dos anos
1920.
Essa face r�gida n�o impedia que continuasse
despertando paix�es entre os jovens de Neuk�lln. Paix�es e,
claro, ci�me. Como o de Ruth, que obrigou o namorado
Martin Weiser, um jovem aprendiz de ourives, a abandonar
o grupo de estudos marxistas dirigido por Olga no sub�rbio
de Falken.
Nesse grupo, Olga conheceu outro rapaz que tamb�m se
encantaria por ela, o tip�grafo Kurt Seibt. Kurt era
empregado de uma gr�fica e acabara de filiar-se ao
sindicato da categoria. Inspirado por Olga, entrou para a
Juventude Comunista e passou a ser uma esp�cie de
assistente da professora. Como ela, Kurt acreditava que a
militariza��o clandestina da organiza��o era o passo
seguinte ap�s os cursos te�ricos e a organiza��o dos jovens
nos bairros oper�rios. Por orienta��o dela, Kurt encarregouse
da organiza��o das mil�cias jovens em cada um dos
quarteir�es do bairro de Kreuzberg, pr�ximo a Neuk�lln.
Apesar de importante, o novo posto trazia a desvantagem
de mant�-lo afastado da atraente professora.
Quando se encontrou de novo com Olga, depois de
assumir a nova miss�o, Kurt pediu-lhe autoriza��o para
organizar uma brigada que reprimisse pela for�a um grupo
de jovens nazistas que importunava o trabalho em
Kreuzberg. Os insultos, as interrup��es das aulas, os sacos
de excrementos e urina que atiravam dentro das salas de
reuni�o s� seriam contidos a socos, argumentava Kurt. Olga
relutou bastante e tentou dissuadi-lo da ideia, insistindo em
que deveria tentar atrair os jovens nazistas para as suas
ideias, em vez de espanc�-los. Mas, ao perceber que a
doutrina��o pouco adiantava, ela pr�pria decidiu participar
da interven��o. Bastou uma �nica sess�o de sopapos,
ministrados por mo�as e rapazes, e os nazistas sumiram.
2
Frieda Behrendt � presa
No in�cio de 1926, o Partido Comunista reconheceu
formalmente os resultados do trabalho de Olga em Neuk�lln
e promoveu-a ao cargo de secret�ria de Agita��o e
Propaganda n�o s� do bairro � a fortaleza vermelha de
Berlim �, mas da Juventude Comunista em toda a capital
alem�. Juntamente com Gunter Erxleben, um garoto bem
mais jovem que ela, com a estudante Dora Mantay e outros
l�deres, Olga passava as noites organizando grupos de
picha��o, panfletagem e piquetes de apoio a movimentos
de oper�rios nas portas das f�bricas.
Suas interven��es eram sempre marcadas por ideias
engenhosas e imaginativas. Era preciso inventar meios de
burlar a pol�cia e evitar que a repress�o sobre os
comunistas fosse muito dura. Quando estourou naquele ano
uma greve de motoristas de t�xi em Berlim, as
manifesta��es de rua foram proibidas, mas assim mesmo a
Juventude Comunista decidiu organizar uma passeata de
solidariedade aos grevistas. Como n�o podiam sair em
conjunto da cervejaria de M�ller, pois seriam reprimidos
antes que chegassem ao centro da cidade, Olga preparou
um plano para enganar os policiais. �s tr�s horas da tarde,
quando o movimento era mais intenso nas principais ruas, o
centro de Berlim foi sendo tomado, aos poucos, por dezenas
de casais de jovens namorados, espalhados pelas esquinas,
olhando vitrines, parados nas portas de bares e sorveterias.
Em um dado momento algu�m assoviou alto e os casais,
obedecendo � ordem, tomaram a rua. Estava montada a
passeata, que momentos depois seria dispersada a golpes
de cassetete da cavalaria e jatos de �gua das carro�as-pipa
da pol�cia. Durante a repress�o, era comum que das janelas
das casas surgissem bandeiras vermelhas: tanto
comunistas, com a foice e o martelo no alto, saudando os
jovens, como nazistas, com a su�stica negra no centro,
apoiando a a��o policial.
Refregas como essa ocorriam �s dezenas em Berlim. A
atividade pol�tica da esquerda crescia na mesma propor��o
em que a direita se organizava. O Nationalsozialistische
Deutsche Arbeiterpartei, Partido Nacional Socialista Alem�o
dos Trabalhadores � ou, simplesmente, Partido Nazista �,
aumentava sua prega��o junto � classe m�dia e a setores
do operariado. Em contrapartida, os comunistas procuravam
multiplicar suas c�lulas. A revolu��o tinha triunfado havia
menos de dez anos na R�ssia, mas o isolamento pol�tico e a
dist�ncia geogr�fica da capital da rec�m-nascida Uni�o das
Rep�blicas Socialistas Sovi�ticas, somados ao crescimento
do Kommunistische Partei Deutschland, o Partido Comunista
alem�o, faziam com que Berlim deixasse de ser apenas a
capital do comunismo alem�o, ou europeu, para tornar-se a
meca da insurrei��o social.
O grau de estrutura��o do Partido Comunista na
sociedade era compar�vel ao de um Estado. Com centenas
de milhares de militantes espalhados por todo o pa�s, o
partido mantinha editoras de livros em todas as grandes
cidades (nem sempre ligadas oficialmente aos comunistas)
e publicava v�rias revistas semanais e dezenas de jornais
di�rios (regionais e nacionais), impressos em papel
produzido por ind�strias do pr�prio partido. A tiragem das
publica��es comunistas, oficiais ou n�o, superava de longe
a circula��o total da imprensa independente e dos outros
partidos pol�ticos. Incont�veis clubes e associa��es de
mulheres, jovens e intelectuais � quase todos de
�fachada�, sem qualquer liga��o oficial com a organiza��o
� funcionavam sob orienta��o tanto do partido como
diretamente da c�pula da Terceira Internacional em Moscou.
Internamente, a estrutura do Partido Comunista alem�o
assemelhava-se � de um governo. Dispunha de correio
pr�prio, divis�es de espionagem pol�tica e industrial e
gr�ficas destinadas exclusivamente � produ��o de
documentos falsos. A seguran�a das sedes do partido, dos
documentos e dos dirigentes era garantida por uma esp�cie
de Minist�rio da Defesa em miniatura. Para cada �rea de
produ��o da sociedade � ind�stria, agricultura, transportes,
energia � existia um departamento correspondente na
estrutura partid�ria, com especialistas de todos os tipos.
Duas divis�es, entretanto, mereciam especial aten��o por
parte da dire��o do Partido e do Comintern: a respons�vel
pelo enfrentamento com o Partido Social-Democrata e
aquela que supervisionava a atua��o da Juventude
Comunista.
Dentro da Juventude Comunista, o trabalho realizado pelo
n�cleo de Neuk�lln era sempre apresentado como um
exemplo de efici�ncia e dedica��o � causa comunista. E a
estrela mais fulgurante de Neuk�lln, a jovem Olga Benario,
era quem mais preocupava a dire��o naquele momento.
Temendo que a pol�cia desconfiasse da dupla identidade de
Otto, e que tentasse chegar a ele por interm�dio da
namorada, o partido aumentou a seguran�a em torno dela.
O ritmo de suas atividades foi reduzido e ela foi proibida de
participar de qualquer a��o arriscada. �Se p�em a m�o em
voc��, advertiam-na, �Otto cair� em seguida.� Al�m disso,
ela pr�pria tornara-se um alvo importante para a pol�cia:
semanas antes fora escolhida para ser a secret�ria pol�tica
da dire��o da Juventude Comunista em Neuk�lln, o cargo
mais importante depois do de secret�rio-geral.
Os receios de que Olga fosse usada como isca n�o se
concretizaram. Pior: tudo aconteceu exatamente ao
contr�rio do previsto. Certo dia, no come�o de outubro de
1926, Olga saiu mais tarde de uma reuni�o na cervejaria. J�
passava da meia-noite, mas ela decidiu voltar a p� para sua
nova casa, um pequeno apartamento no n�mero 25 da rua
Jung. Entrou e permaneceu encapotada at� o aquecedor
esquentar um pouco o quarto. Por volta de duas horas da
madrugada, ouviu baterem � porta e imaginou que Otto
tivesse esquecido a chave. Abriu e deparou-se com dois
policiais. O mais velho exibiu-lhe um documento timbrado e
perguntou:
� A senhorita � Olga Gutmann Benario?
� Sim, sou � respondeu at�nita.
� Por ordem do doutor Vogt, juiz do Supremo Tribunal, a
senhorita est� presa. Queira nos acompanhar.
No carro da pol�cia, a caminho do Departamento de
Investiga��es, ela p�de ler o mandado de pris�o preventiva.
Com base na Lei de Prote��o da Rep�blica, prendiam-na sob
suspeita de ter cometido v�rios crimes: �prepara��o de
empreendimento altamente trai�oeiro�, �tentativa de
altera��o pela viol�ncia da Constitui��o vigente� e
�participa��o em associa��o clandestina e hostil ao Estado,
para tentar minar a forma republicana de governo�. Apesar
do tom amea�ador das acusa��es, que pela lei poderiam
deix�-la mofando no xadrez por uns bons anos, Olga
percebeu, pela conversa dos dois guardas, que n�o era ela
o alvo. Na verdade, quem eles de fato procuravam j� havia
sido preso naquela manh�: Otto Braun.
Logo nos primeiros interrogat�rios ela notou que o
interesse da pol�cia pelas atividades de Braun era muito
grande e que a acusa��o que pesava sobre ele era mais
grave do que supunha: �suspeita de alta trai��o � p�tria��.
Olga sabia que esse era o termo jur�dico que os promotores
da pol�cia pol�tica utilizavam para enquadrar os acusados de
passar documentos secretos a pa�ses estrangeiros, ou fazer
espionagem em favor de outro governo.
Durante duas semanas, a prisioneira foi mantida
incomunic�vel e submetida a interrogat�rios desde o
amanhecer at� a madrugada, com r�pidas interrup��es
para o que chamavam de refei��es. A calma e a frieza com
que negava todas as acusa��es, as falsas e as verdadeiras,
impacientavam e irritavam os policiais que operavam em
rod�zio. A primeira not�cia do mundo exterior veio de
Munique: atrav�s de advogados que trabalhavam no
Departamento de Investiga��es, o pai mandou-lhe um
recado. Se ela concordasse, ele poderia deslocar-se at� a
capital para defend�-la na Justi�a. E se o envolvimento da
filha n�o fosse grave, ele poderia conseguir sua liberta��o
gra�as a amigos influentes do Partido Social-Democrata.
Olga percebeu que n�o havia maldade na oferta do pai, mas
apenas preocupa��o com seu destino. Ainda assim, recusou
polidamente a ajuda.
Logo que a incomunicabilidade foi suspensa, recebeu a
primeira visita. A Juventude Comunista de Neuk�lln fez uma
coleta entre os militantes, simpatizantes e amigos de Olga e
elegeu Gabor Lewin, um dos membros da dire��o, para
visit�-la e levar-lhe um riqu�ssimo farnel. O pacote,
minuciosamente vistoriado na entrada da pris�o de Moabit,
continha doces, biscoitos, panquecas, frutas e conservas
compradas na confeitaria mais refinada da cidade. Nos
poucos minutos da visita, ouviu um atarantado relat�rio
sobre as atividades da Juventude Comunista e as
provid�ncias que tomavam para protestar contra as duas
pris�es. Sempre aos sussurros, Olga respondeu com um
resumo da acusa��o e dos riscos que pesavam n�o tanto
sobre ela, mas principalmente sobre Otto, suspeito de
espionagem e trai��o. Burlando o carcereiro, que a cada
momento enfiava a cabe�a na sala, Olga rabiscou uma
mensagem dirigida aos jovens do partido e que seria lida
em assembleia naquela mesma noite, na Casa Karl
Liebknecht, a sede oficial de atos p�blicos do Partido
Comunista alem�o.
No come�o de dezembro, Olga come�ou a temer que sua
pris�o pudesse significar algo de mais s�rio. A total
aus�ncia de informa��es sobre o andamento de seu
processo, e principalmente sobre o de Otto, deixava-a
apreensiva. Na manh� de 2 de dezembro, exatos dois
meses ap�s sua pris�o, o carcereiro abriu a porta da cela e
ordenou:
� Pode arrumar suas coisas. A senhorita est� em
liberdade, por ordem do promotor do Supremo Tribunal.
Olga juntou as duas mudas de roupa que deixara
dobradas num canto da cela, rabiscou um �de acordo� ao p�
da ordem de soltura e em menos de cinco minutos estava
na rua. Correu para casa e logo ao entrar percebeu que
naqueles dois meses a pol�cia tivera tempo suficiente para
revistar cada cantinho das estantes, da velha c�moda, de
tudo. Manuscritos de Otto, livros, algumas de suas pr�prias
anota��es, tudo havia sido confiscado pela pol�cia pol�tica.
Deitou-se e dormiu por quase 24 horas. Acordou
sobressaltada na manh� seguinte com pancadas na porta.
�S�o eles de novo�, imaginou. Quando soltou a tranca, o
quarto foi invadido por mais de vinte garotas e rapazes da
Juventude Comunista. Olga passou uma �gua no rosto e
ficou as horas seguintes contando, repetidas vezes, como
tinham sido os dois meses em Moabit.
Os dias passavam sem not�cias de Otto Braun. Todas as
noites, ao dormir, Olga sentia um aperto no peito vendo os
objetos do namorado sobre a estante: os cachimbos, a bolsa
de fumo, dois pares de botas, uma echarpe de seda
pendurada no trinco do banheiro. Aquela aus�ncia era
diferente das anteriores, quando sabia que ele podia surgir
a qualquer momento, abra��-la em sil�ncio, pux�-la para a
cama � e s� muito tempo depois � que come�ariam a
contar as novidades. Agora ela sentia um forte
pressentimento de que ficaria sem Otto por muito tempo.
Entretanto, a atividade pol�tica era o melhor rem�dio
contra a ang�stia e a ansiedade. Atirou-se na agita��o,
dedicando-se a um trabalho que n�o implicava riscos de
nova pris�o: a prepara��o de encontros da Juventude
Comunista fora de Berlim. A saudade e a preocupa��o
eram, contudo, muito fortes, e duas semanas depois de
libertada ela decidiu ousar. Pegou o telefone e discou para o
gabinete do juiz Vogt, diretor da pris�o de Moabit. Quando a
secret�ria pediu-lhe que esperasse um instante at� o juiz
atender, ela tapou o fone com a m�o e comentou com sua
amiga Frieda:
� Acho que estou virando uma pessoa importante. O
fascista do Vogt vai me atender!
Se Vogt, ao dignar-se a atender o telefonema de uma
subversiva, esperava por alguma informa��o importante
sobre o processo de Otto, enganou-se. Olga queria
autoriza��o para visitar o namorado pelo menos uma vez
por m�s, reivindicava o direito de levar-lhe alimenta��o
especial regularmente e, por fim, requeria licen�a para uma
visita extra no Natal que se aproximava. Irritado com o
atrevimento da ex-presa, Vogt respondeu-lhe apenas que
fizesse um requerimento por escrito e o entregasse na
portaria da pris�o. E desligou o telefone. O pedido
datilografado foi entregue na mesma tarde e, para surpresa
dos funcion�rios da pris�o, pela pr�pria Olga. Na manh�
seguinte ela receberia pelo correio, frustrada, o taxativo
despacho assinado n�o por Vogt, mas pelo comiss�rio Kling,
um funcion�rio subalterno da pris�o: Otto Braun n�o era um
preso pol�tico, mas um acusado de alta trai��o e, portanto,
n�o tinha direito a alimenta��o especial; no Natal, segundo
a lei, ele poderia, como qualquer preso comum, receber
visitas e alimentos num pacote de cinco quilos no m�ximo;
quanto ao pedido de visita regular, estava recusado. Olga
leu o of�cio furiosa. Amassou o peda�o de papel, jogou-o no
lixo e disse em voz alta, para si mesma:
� �, parece que Otto s� sai de Moabit se o arrancarmos
de l�.
Olga sabia que o ano de 1927 prometia ser tumultuado. O
cerco do governo ao Partido Comunista apertava, embora a
organiza��o estivesse na legalidade. V�rias centenas de
presos pol�ticos abarrotavam os pres�dios e, n�o obstante o
crescimento econ�mico do pa�s em rela��o � crise de quatro
anos antes, multiplicavam-se os focos de mis�ria nos bairros
oper�rios. A solidariedade nacional e internacional aos
presos era grande, mas, do ponto de vista material,
sustentar tantas fam�lias era algo impens�vel.
E, o que era pior para Olga, Otto n�o podia ajud�-la a
pensar nas sa�das pol�ticas para a crise que amea�ava o
pa�s. Nas duas �nicas oportunidades em que o �fascista
Vogt� autorizara visitas, eles mal puderam conversar no
sal�o de audi�ncias de Moabit. Supondo que do encontro
pudesse vazar alguma informa��o importante, o juiz
colocou dois guardas de plant�o a cent�metros do casal,
ouvindo ostensivamente o que sussurravam.
O ano come�ara mal para ambos. Por meio de of�cio
carimbado com um �ultrassecreto� no meio da folha, o
Departamento I do Minist�rio do Interior, respons�vel pela
�rea de intelig�ncia e informa��o, transmitira � dire��o da
pol�cia nacional, sediada na cidade de Leipzig, a suspeita de
que Frieda Wolf Behrendt e Arthur Behrendt fossem, na
verdade, Olga Gutmann Benario e Otto Braun, �amantes e
c�mplices em um processo de alta trai��o� que tramitava
nos tribunais berlinenses. Os servi�os de informa��o
solicitavam dados mais precisos sobre �os dois casais�, tais
como fotografias, c�pias de todos os documentos e
verifica��o dos endere�os dados por eles. Como
recomenda��o final, determinavam que as investiga��es
fossem conduzidas �em car�ter absolutamente secreto�.
Em resposta, o relat�rio sum�rio de Heinz Junghans,
comiss�rio superior de pol�cia, n�o deixou qualquer d�vida
quanto � veracidade das suspeitas. Otto Braun e Arthur
Behrendt eram a mesma pessoa, assim como Olga Benario
e Frieda Wolf Behrendt. Al�m disso, o informe policial
declarava que o endere�o dado pelo casal ao registrar os
documentos falsos � a tal casa n�mero 11 da
Erhardtstrasse, em Leipzig � simplesmente n�o existia.
Junghans terminava advertindo que a perfei��o dos
documentos frios de Braun e Olga levava � suspeita de que
ambos tiveram acesso a uma gr�fica sofisticada, capaz at�
mesmo de imprimir passaportes e dinheiro. Se at� ent�o
apenas Otto estava envolvido at� a raiz dos cabelos, a partir
daquele momento Olga deixava de constar nos autos
apenas como sua �secret�ria� ou �namorada�.
O agravamento da situa��o judicial da filha logo chegou
aos ouvidos do advogado Leo Benario, em Munique, que
decidiu agir dessa vez sem consult�-la. Atrav�s de
requerimento dirigido ao procurador Neumann, chefe dos
promotores p�blicos do Supremo Tribunal de Justi�a, o pai
formulou um comovente apelo solicitando a exclus�o da
filha do processo movido contra Otto Braun.
Subscrevendo-se como �respons�vel perante a lei e
advogado de minha filha menor�, o jurista insistia em que,
se de fato houvera participa��o da garota no suposto crime,
ela certamente n�o podia ter consci�ncia do que fazia, por
n�o ter sequer completado dezoito anos � �poca do delito.
�Numa esp�cie de solicitude rom�ntica para com os
trabalhadores, esta jovem, completamente inexperiente na
vida pol�tica e econ�mica�, escreveu o pai, �pretendia
ajudar, por conta pr�pria, a esta classe do povo, e
especialmente � juventude da mesma.� Leo Benario
esclareceu que Olga n�o havia deixado a casa da fam�lia em
Munique para militar no Partido Comunista em Berlim, mas
porque haviam prometido a ela um emprego na capital.
Disse que n�o tentara ret�-la em casa pela for�a, pois �tais
medidas, hoje em dia, s�o in�teis com os jovens, e a
aplica��o da for�a provavelmente teria levado a resultado
oposto�. Terminava o of�cio reiterando o pedido de exclus�o
da filha, e encerrava a peti��o com uma sutil ironia: �Se �
que Olga teve alguma cumplicidade com Otto, foi apenas na
m�quina de escrever � e ainda assim faltava-lhe
consci�ncia do que fazia�.
A resposta seca do promotor-chefe dava mostras de que o
Judici�rio alem�o n�o se sensibilizara com os argumentos
paternos do dr. Benario. Um despacho de poucas linhas
tirou do advogado as �ltimas esperan�as de livrar a filha da
enrascada: �Uma vez aberto o inqu�rito contra sua filha
Olga Benario, n�o h� como suspender o processo�,
determinou o procurador Neumann.
Os meses seguintes transcorreram sem que a Justi�a
desse a p�blico qualquer not�cia sobre o processo. No final
do ano, Olga leu nos jornais que o Supremo Tribunal tinha
finalmente marcado para maio o julgamento de Braun como
�cabe�a do processo de alta trai��o � p�tria�. Agora sem
meias-palavras, ele era tratado explicitamente como
�espi�o a servi�o da Uni�o Sovi�tica�. Olga apavorou-se,
pois sabia que aquele n�o seria, jamais, um processo
regular. A nomea��o de um homem de extrema direita,
como o juiz Vogt, para a chefia do tribunal que julgaria Otto
era parte de uma articula��o governamental para �passar o
arado� nos comunistas, como ela costumava dizer nos atos
p�blicos. Com o julgamento, o que se pretendia era
comprometer o Partido Comunista aos olhos da opini�o
p�blica, imputando-lhe atos de trai��o � Alemanha e de
espionagem em favor da Uni�o Sovi�tica. �Nem todos os
advogados do mundo, juntos, conseguir�o impedir que Otto
seja condenado a vinte anos de pris�o�, ela falava para si
mesma pelas ruas da cidade, as m�os enfiadas nos bolsos
do casac�o de l�, o jornal com as not�cias do processo sob o
bra�o. �E, se ningu�m pode evitar sua condena��o, s� h�
uma sa�da: Otto n�o pode ser julgado�, conclu�a Olga. A
ideia reanimou-a. Ela sorriu e apressou o passo em dire��o
� cervejaria dos M�ller: �� isso, Otto Braun n�o ser� julgado
por um tribunal fascista�.
Olga n�o ignorava o quanto de fantasia sustentava esse
racioc�nio, que aquilo era um mecanismo interior para
aplacar o p�nico diante da iminente condena��o do
namorado. Afinal, Moabit n�o era uma pris�o qualquer, mas
uma fortaleza que ocupava toda uma quadra na regi�o
central de Berlim. Dificilmente um visitante de fora poderia
imaginar, vendo o pr�dio da rua, que a elegante e s�lida
constru��o de janelas g�ticas fosse uma pris�o de alta
seguran�a. Al�m de uma dezena de celas, no subsolo ou
protegidas por muralhas de tijolos no lado oeste do edif�cio,
Moabit abrigava meia d�zia de sal�es de audi�ncia e
instru��o judicial no t�rreo, todos de frente para a rua
Turms, onde ficava a entrada principal do complexo
carcer�rio. Para evitar que os presos, em dias de audi�ncias
ou interrogat�rios, circulassem na �rea aberta ao p�blico e
aos advogados, constru�ram-se pequenas saletas cont�guas
aos sal�es, ligadas �s celas por corredores subterr�neos.
Embora o sistema de seguran�a fosse rigoroso, Olga sabia
que, caso existisse uma �nica chance de arrancar Otto de
Moabit, essa chance estaria ali, no breve instante em que
fosse transferido da sala de espera para o sal�o de
audi�ncias. E isso aconteceria dali a poucas semanas, na
�ltima audi�ncia de Otto antes do julgamento.
Olga caminhava pelas ruas imaginando planos, assaltos,
sequestros, e se espantava com a indiferen�a dos outros �
sua ang�stia. �N�o � poss�vel, Dora�, resmungava com a
colega de milit�ncia, �nossa gente deve estar anestesiada.
H� um revolucion�rio sob o risco de passar d�cadas num
c�rcere gelado pelo crime de querer libertar o seu povo, e
essa gente que passa a nossa volta talvez nem saiba quem
� o escritor Otto Braun.� Desde o momento em que
despertava at� voltar para casa, tarde da noite, ela n�o
conseguia pensar noutra coisa: Otto n�o podia ficar em
Moabit at� o julgamento.
Olga ainda n�o sabia, ent�o, que esse desejo n�o era
apenas seu. Fantasia ou n�o, outros companheiros
planejavam a mesma coisa. Mais de uma vez disseram que
�Olga e o partido parecem pensar com uma s� cabe�a�, e
agora a frase seria de novo confirmada. Na �ltima semana
de mar�o ela foi chamada reservadamente � sede do
partido por um funcion�rio da se��o de contraespionagem.
Depois de esperar alguns minutos caminhando pelos
corredores, foi introduzida na sala do comando do
Parteischutzgruppen, o corpo de seguran�a dos dirigentes.
Ali recebeu instru��es no sentido de selecionar meia d�zia
de militantes do Departamento de Ordem da Juventude
Comunista e orient�-los para uma delicada e perigosa
miss�o, que chefiaria pessoalmente no dia 11 de abril, da� a
quinze dias: um assalto armado para tirar Otto Braun da
pris�o de Moabit.
3
� sua frente, o Cavaleiro da Esperan�a
Poucos dias depois de se instalarem no Hotel Desna, Olga
e Otto foram transferidos para o edif�cio de apartamentos
reservado aos jovens estrangeiros que se encontrassem em
Moscou a servi�o do kim, o Kommunisti Internationali
Molodoi, uma vers�o do Comintern para a Juventude
Comunista Internacional. Embora as instala��es fossem
mais modestas do que as do hotel, esses alojamentos
tinham a vantagem de coloc�-los em contato com jovens de
v�rios pa�ses, propiciando-lhes, concretamente, uma vis�o
do car�ter internacionalista da Revolu��o Russa. Dezenas
de idiomas e dialetos se confundiam num burburinho de
eslavos, latinos, negros e orientais oriundos das v�rias
rep�blicas sovi�ticas e de todos os cantos do planeta.
Os dois receberam um pequeno quarto com banheiro,
guarda-roupa e c�moda e, mal acabaram de se instalar,
foram informados de que, devido � forte tens�o por que
haviam passado, na clandestinidade de Berlim e na viagem
at� Moscou, teriam direito a tr�s semanas de f�rias no mar
Negro, aproveitando o ver�o. Eles pr�prios determinariam a
data da partida, mas antes da viagem seriam submetidos a
exames m�dicos � recomenda��o feita sobretudo a Otto,
suspeito de estar an�mico.
Os primeiros dias no alojamento do kim foram suficientes
para perceber que eram conhecidos da maioria dos
estudantes que ali viviam. Ou melhor: n�o que fossem
conhecidos, mas ali se sabia com detalhes a hist�ria da
linda alem� que invadira Moabit para arrancar das m�os do
juiz o seu namorado, um jovem dirigente comunista. Olga e
Otto se divertiam, no refeit�rio, quando entreouviam
algu�m recontando a a��o, a cada vers�o acrescida de
lances mais fantasiosos.
Duas semanas ap�s desembarcarem em Moscou, o guia
que os acompanhava levou-os para assistir, depois do
jantar, ao encerramento de um dos cursos pol�ticos dados
pelo kim. Quando os tr�s entraram no superlotado audit�rio
da Juventude Comunista Internacional, Olga imaginou que
aquele deveria ter sido um luxuoso teatro da �poca czarista,
tal a suntuosidade do lugar e a abund�ncia de m�rmores,
tapetes e cortinas de veludo azul caindo de um teto
alt�ssimo. N�o se encontravam mais poltronas vazias, e os
tr�s tiveram que se juntar aos grupos espremidos nos
corredores laterais. Quando a cerim�nia aproximava-se do
final, a mo�a que presidia os trabalhos pediu sil�ncio para
fazer uma comunica��o importante. A seguir, chamou ao
palco �a camarada Olga Sinek�, codinome que usaria
durante toda a sua estada na urss, �rec�m-chegada de
Berlim, onde comandara a liberta��o do professor Otto
Braun�. O sal�o veio abaixo. Sob palmas de centenas de
mo�as e rapazes ela caminhou at� o palco e, a princ�pio
meio nervosa, relatou brevemente os acontecimentos de 11
de abril. Desinibida pelos aplausos que recebia enquanto
falava, terminou com uma confiss�o:
� Eu gostaria que soubessem que ali eu cumpri duas
tarefas: uma do partido e outra do meu cora��o.
Foi a consagra��o. A partir daquele dia, o tempo passou a
ser escasso para atender a todos que lhe pediam para
contar a a��o de Moabit. Transformada pelos dirigentes do
kim numa esp�cie de exemplo do jovem comunista ideal,
Olga se desdobrava para atender aos compromissos que a
dire��o assumia por ela: falar em f�bricas, fazendas
estatais, escolas e programas de r�dio. A viagem de
descanso foi sendo adiada, e dois meses ap�s sua chegada
� Uni�o Sovi�tica ela soube que tinha sido eleita para o
Comit� Central da Juventude Comunista Internacional. O
novo cargo significava tamb�m novas obriga��es, e a
primeira delas era frequentar um curso intensivo de ingl�s e
franc�s e, nas horas livres, melhorar seus conhecimentos de
russo.
Ela n�o tinha um minuto para Otto. Quando, certa noite,
este contou-lhe que terminara todos os exames m�dicos e
sugeriu que partissem imediatamente para as f�rias, ela o
surpreendeu com uma recusa:
� Acho que voc� ter� que ir sozinho. O trabalho no kim
est� absorvendo todo o meu tempo e nesse momento n�o
posso e nem quero sair de Moscou.
Para espanto de Olga, Otto reagiu com uma explosiva
crise de ci�mes. Revoltada, ela repetiu, uma vez mais, que
n�o seria jamais propriedade de quem quer que fosse. Ele
esbravejava, querendo saber de que pa�s era o jovem que
certamente estava virando a cabe�a dela. Enfurecida, antes
de sair e bater a porta com viol�ncia, ela apontou
debochadamente para o pequeno busto de L�nin sobre uma
mesinha, e disse apenas:
� Seu tolo! O jovem que te provoca essa ciumeira � russo
mesmo, e j� est� morto. � esse a�...
Sempre que reapareciam os acessos de ci�me de Otto,
Olga sa�a para caminhar sozinha pelas ruas de Moscou, com
saudades do come�o do namoro, em Munique e Berlim. E
come�ava a rodar pelos quiosques de jornais e revistas da
rua Gorki, procurando algum exemplar atrasado do
Bandeira Vermelha, �rg�o oficial do Partido Comunista
alem�o, para esquecer as birras do namorado. O jornal, que
aparecia irregularmente nas bancas ou nos organismos
pol�ticos de Moscou, era o �nico meio de obter informa��es
sobre a Alemanha e, muito especialmente, Neuk�lln. De sua
antiga �fortaleza vermelha�, as not�cias esparsas davam
conta de lutas cada vez mais dif�ceis entre os jovens da
Juventude Comunista e os �fascistas da pol�cia�, em que
seus amigos quase sempre sa�am feridos ou presos. Toda
vez que lia coisas assim, Olga ficava ainda mais convencida
de que tivera raz�o ao insistir para que a Juventude
Comunista militarizasse parte de seus militantes. Sua
certeza de que a luta n�o seria apenas pol�tica era t�o forte
que passou a requerer autoriza��o, junto ao Bir� Pol�tico do
kim, para ingressar em cursos paramilitares na urss, em vez
de frequentar apenas as classes te�ricas.
Tanto pediu e tanto insistiu com seus superiores que,
meses depois, foi convocada para uma temporada fora da
capital. Durante o per�odo que passou em Borisoglebsk �
localidade a quinhentos quil�metros ao sul de Moscou, em
dire��o ao mar C�spio �, ela aprendeu a atirar com armas
pesadas e leves e a cavalgar, incorporada a uma unidade
regular do Ex�rcito Vermelho. Dez semanas depois, de volta
a Moscou, Olga encontraria em seu quarto uma carta
ressentida de Otto, queixando-se mais uma vez do pouco
tempo de que dispunham para ficar juntos. Ela sentia que
continuava a am�-lo, mas a conviv�ncia tornava-se cada dia
mais dif�cil. Otto era um homem ador�vel, sem d�vida um
verdadeiro comunista, mas nas rela��es afetivas
�comportava-se como um leg�timo pequeno-burgu�s�.
Foi durante uma dessas crises, no come�o de 1931, que
Olga teve uma agrad�vel surpresa. Seu velho e querido
amigo da Juventude Comunista de Neuk�lln, o pequenino
Gabor Lewin, que chefiara as patrulhas que arrancaram dos
postes os cartazes de �procurados� depois da a��o de
Moabit, n�o resistiu � saudade e decidiu visitar sua antiga
companheira em Moscou. Na verdade, a chance de
encontr�-la era �nfima: n�o falava uma s�laba de russo e
como endere�o dela tinha uma vaga indica��o de que vivia
�num pr�dio perto do rio Moscou�. Apesar disso, Gabor
chegou confiante � capital sovi�tica, determinado a
encontrar-se com sua grande paix�o plat�nica de anos
antes. Ele perambulou pelas ruas de Moscou como um
louco, procurando transeuntes com fei��es judaicas. �Afinal,
o i�diche � parecido com o alem�o e se encontrar algum
patr�cio aqui�, imaginou, �conseguirei trocar com ele
algumas palavras.� N�o conseguiu. No quarto dia de
peregrina��o, viu um chofer de t�xi que parecia ter �um
certo ar de judeu, com um nariz t�o grande quanto o meu�.
Atrav�s de m�mica e misturando alem�o e i�diche, tentou
sem sucesso conversar com ele. O passageiro que acabava
de entrar no t�xi, entretanto, era um oficial do Ex�rcito
Vermelho... que falava alem�o. Minutos depois, Gabor Lewin
estava na porta do alojamento do kim. Olga reconheceu a
perseveran�a do amigo e conseguiu-lhe hospedagem e
comida por dez dias � dez dias que gastaram conversando,
ele atualizando-a sobre as atividades da Juventude em
Neuk�lln e ela contando o turbilh�o em que sua vida se
transformara na capital sovi�tica.
A visita de Gabor e suas not�cias de Berlim aumentaram a
curiosidade de Olga a respeito de sua pr�pria situa��o
judicial na Alemanha. Meses depois da partida do amigo, ela
montou um estratagema para saber como andava sua ficha
na pol�cia berlinense. Como seu passaporte vencera poucas
semanas antes, dirigiu-se � embaixada alem� em Moscou
para solicitar a revalida��o do documento. O c�nsul alem�o,
Von Twardowski, comunicou-se com a Chancelaria em
Berlim pedindo instru��es e aproveitou para transmitir
algumas informa��es � pol�cia pol�tica: pelo passaporte
vencido, n�o era poss�vel saber como Olga entrara na urss
(ela dissera no consulado que o visto de entrada na Uni�o
Sovi�tica havia sido concedido numa folha solta e entregue
� pol�cia aduaneira ao entrar no pa�s); ela era portadora de
uma �autoriza��o de resid�ncia para estrangeiros�, ou seja,
n�o se naturalizara sovi�tica; Olga devia ter bons
advogados em Moscou, pois chegou � embaixada munida
de uma c�pia de certid�o da anistia de agosto de 1928, da
qual pretendia se beneficiar; e, finalmente, alegava
trabalhar como secret�ria do Instituto Marx-Engels, na
capital sovi�tica.
A resposta de Berlim informava que sua ficha policial
engordara muito desde 1928. A Justi�a alem� havia
transferido para ela, de modo arbitr�rio, todas as acusa��es
que levaram Braun � pris�o � inclusive a de �alta trai��o �
p�tria��. Olga ficou sabendo tamb�m que a anistia de 1928
n�o beneficiava nem a ela nem a Otto Braun. Contudo, dizia
a papelada enviada ao consulado, mesmo se tratando de
�comunista procurada� e de pessoa de �alta
periculosidade�, ela n�o havia renunciado ou sido despojada
da cidadania alem�. Assim, um m�s ap�s entrar com o
pedido, Olga recebeu em Moscou um passaporte alem�o
novinho em folha.
No final de 1931, Olga seria escalada para sua primeira
miss�o internacional: intervir, em nome do kim, na Juventude
Comunista francesa e ajudar a escolher novos dirigentes
para a Comiss�o Executiva da Juventude, em Paris, de modo
que a organiza��o tivesse orienta��o menos sect�ria que a
de ent�o. A not�cia de que ela ficaria fora da urss por tempo
indeterminado foi a gota d��gua para Otto. Os dois vinham
se encontrando cada vez menos e, embora vivessem juntos
e compartilhassem o quarto, n�o era incomum passarem
at� dois meses sem se ver. Ela prop�s ent�o que se
separassem e, ao concordar, Otto contou-lhe que vinha se
envolvendo com outra mulher em Moscou. Os dois
acertaram ent�o que, quando ela retornasse da viagem �
Fran�a, Otto j� teria desocupado o quarto. Ao se
despedirem, Olga percebe em si, pela primeira vez, o
sentimento que tanto condenava no companheiro: ci�me.
E foi remoendo-se de ci�me que ela, com o nome falso de
Eva Kruger, tomou o trem em Moscou que, depois de uma
s�rie de baldea��es, haveria de deix�-la em Paris. Na
esta��o ferrovi�ria da capital sovi�tica, Olga encontrou-se
com Ilze Unger, garota de sua idade e antiga companheira
da Juventude Comunista de Neuk�lln. As duas tomariam o
mesmo trem, mas tinham destinos e miss�es diferentes: Ilze
havia sido encarregada por Walter Ulbricht, dirigente do
Partido Comunista alem�o exilado em Moscou, de levar para
Berlim documentos secretos com orienta��o do Comintern
para a dire��o do partido, que ela transportava junto ao
corpo. Como medida de seguran�a, decidiram viajar
separadas. Na fronteira da urss com a Pol�nia, Ilze, para
despistar, flertou com os guardas da alf�ndega polonesa.
Um deles, desconfiado, interpelou-a:
� Voc� n�o � Olga Benario? Quero ver seus documentos.
As duas eram de fato muito parecidas: ambas eram altas,
tinham olhos azuis, cabelos escuros e a mesma idade. Ilze
identificou-se e disse ao soldado que n�o, que n�o era a
comunista procurada pela pol�cia:
� Ao contr�rio: nem eu nem meu noivo, que mora em
Moscou, gostamos dos comunistas.
Cinco bancos atr�s, Olga ouvia tudo e levantou um pouco
mais sobre o rosto o livro que fingia ler.
Na Fran�a ela n�o se limita a transmitir a orienta��o do kim
aos jovens comunistas, mas participa de manifesta��es de
rua at� ser detida. Colocada em liberdade, semanas depois
volta a ser presa e � deixada pela pol�cia na fronteira com a
B�lgica. Ajudada por comunistas belgas, ela chega a
Londres � e acaba sendo presa outra vez durante uma
manifesta��o no centro da capital brit�nica. Uma ficha
policial � aberta nos arquivos do Intelligence Service � o
servi�o secreto ingl�s. As impress�es digitais deixadas pela
jovem Eva Kruger em Londres fariam, anos depois, com que
sua pasta fosse substancialmente recheada com acusa��es
mais graves do que a de protestar em pra�a p�blica.
De volta a Moscou, � recebida com a not�cia de que o
Quinto Congresso da Juventude Comunista Internacional
acabara de aclam�-la como membro do seu Presidium, o
mais alto degrau na hierarquia de uma organiza��o
comunista. A escolha un�nime de seu nome se dera na
assembleia final do congresso, composta por jovens
comunistas de mais de cinquenta pa�ses. O pr�mio pela
promo��o viria logo em seguida: Olga fora escolhida pelo
Comintern, entre centenas de candidatas, para fazer o curso
de paraquedismo e pilotagem de avi�es na Academia
Zhukovski da For�a A�rea, sediada em Moscou. Sempre
registrada com o nome de Olga Sinek, ela foi inclu�da numa
turma mista de alunos do primeiro ano. Discreta, nada
revelou de si ou do seu passado. Nem mesmo para sua
melhor amiga no curso, Tamara Kojevnikova, uma georgiana
quatro anos mais mo�a que ela e que a tratava pelo
carinhoso apelido de Olya � Olguinha, em russo. Apenas o
sotaque denunciava sua origem alem�. Tamb�m ali, Olga
encontraria jovens de v�rios pa�ses do mundo, dessa vez
dedicando-se exclusivamente ao treinamento militar.
Ao tomar ch� com um grupo deles, na cantina dos oficiais,
ap�s um treinamento simulado de voo, Olga ouviu um
jovem latino-americano � argentino ou boliviano � contar
para os colegas, em um russo hesitante, a hist�ria que lera
no seu pa�s sobre uma aventura revolucion�ria na Am�rica
do Sul. Era a hist�ria de um batalh�o de mil e poucos
homens que percorrera a p� mais de 25 mil quil�metros,
enfrentando as tropas regulares de um governo �ditatorial�.
O relato, contado em detalhes pelo oficial estrangeiro,
mesclado de lances heroicos e batalhas sangrentas,
terminava com os guerrilheiros chegando ao fim sem
derrubar o governo, mas tamb�m sem sofrer uma �nica
derrota. O grupo, chamado de Coluna Prestes, levava esse
nome em homenagem ao seu l�der, o jovem capit�o Lu�s
Carlos Prestes. Olga ouviu o relato entre curiosa e
desconfiada:
� O camarada tem certeza de que eles andaram mesmo
vinte e cinco mil quil�metros a p�? Isso significa ir e voltar
de Moscou a Berlim quase dez vezes... a p�!
Como o piloto insistisse na veracidade do epis�dio,
ocorrido no Brasil, afirmando que qualquer latino-americano
em Moscou poderia confirm�-lo, Olga se conformou:
� J� imaginou se pud�ssemos estar l�, incorporados a
essa tal coluna invenc�vel?
O que Olga ou qualquer de seus colegas da academia n�o
sabiam � que o mitol�gico comandante da coluna invicta
estava ali mesmo, em Moscou, em seu apartamento perto
do bulevar Sadova, a poucas quadras da escola militar onde
tomavam ch�.
A fam�lia Prestes � a m�e vi�va, dona Leoc�dia, e os
cinco filhos solteiros, Lu�s Carlos, Clotilde, Helo�sa, L�cia e
L�gia � havia chegado a Moscou meses antes, em
novembro de 1931. O capit�o desembarcara no dia 7,
durante as comemora��es do 14o anivers�rio da tomada do
poder pelos bolcheviques. A m�e e as irm�s chegaram
poucos dias depois: para despistar a pol�cia, a fam�lia
dividira-se para sair de Montevid�u � ele embarcara no
navio Eub�e e, dois dias depois, as mulheres no Monte
Sarmiento. Apesar do rosto liso, sem a barba e o bigode da
�poca da Coluna, ele n�o conseguira passar inc�gnito pelas
duas escalas brasileiras do navio, em Santos e no Rio. No
primeiro porto, embarcaria o jornalista Oscar Pedroso Horta,
que o reconheceu mas manteve sigilo sobre a descoberta.
Quando o Monte Sarmiento escalou no Brasil, a pol�cia
invadiu as cabines de dona Leoc�dia e das filhas, alertada
pelo sobrenome amaldi�oado pelo governo. N�o havia o que
fazer: o Eub�e zarpara antes, levando a bordo Lu�s Carlos
Prestes, com passaporte que o identificava como um pintor
paraguaio.
Na Uni�o Sovi�tica, Prestes logo foi contratado como
engenheiro da Tzentralnij Soiuzstroy, a estatal respons�vel
pela fiscaliza��o de todas as obras de constru��o civil no
pa�s. E ficou revoltado, em seu trabalho de fiscal de obras,
com o grau de sabotagem de t�cnicos e engenheiros contra
as obras do novo governo. A vida em Moscou era
particularmente dura para a fam�lia. Prestes havia recusado
as regalias oferecidas pelo governo sovi�tico aos t�cnicos
estrangeiros, tais como sal�rio em d�lar e permiss�o para
fazer compras em lojas privativas. Ele preferiu receber em
rublos e viver como os milh�es de russos.
N�o era f�cil. O primeiro plano quinquenal estava em
vigor desde 1928, e para manter a estabilidade econ�mica
quase tudo era racionado. Um dos invernos que a fam�lia
passou em Moscou deu-lhes muito concretamente a medida
dos problemas que o pa�s atravessava: Helo�sa, uma das
irm�s de Prestes, de pequena estatura e cal�ando sapatos
n�mero 33, suportou temperaturas de at� cinquenta graus
abaixo de zero usando botas de neve n�mero 40 � o �nico
que havia em estoque. Essas dificuldades, no entanto,
fizeram dona Leoc�dia, criada em fam�lia rica, apaixonar-se
por aquele povo que ela chamava de �a verdadeira fortaleza
sovi�tica�. Para ela, nenhum inimigo, por mais �poderoso
que fosse, conseguiria dominar um povo cujos
trabalhadores chegaram a receber, como ra��o di�ria de
alimento, duzentos gramas de p�o preto � e mesmo assim
trabalhavam com entusiasmo. In�meras vezes ela viu,
numa cantina de f�brica perto de sua casa, oper�rios
trabalhando sob um frio glacial movidos a canecas de �gua
quente, porque at� o ch� estava racionado.
O filho Lu�s Carlos � ou apenas Carlos, como o tratavam
�, por seu lado, testemunhava os dur�ssimos processos de
depura��o do Partido Comunista, montados em assembleias
p�blicas, dentro das pr�prias f�bricas e centros de trabalho.
Cada membro da dire��o local tinha que ir ao palanque e ali
fazer sua autocr�tica. Durante os expurgos, em que quase 1
milh�o de militantes foram expulsos do Partido Comunista,
Prestes presenciou cenas terr�veis em que militares de
cabelos brancos choravam na tribuna durante as
autocr�ticas. Era a pol�tica que levaria aos chamados
�processos de Moscou�, atrav�s dos quais seria eliminada a
velha guarda bolchevique. Nas horas vagas, o capit�o
brasileiro comparecia a reuni�es do partido ou a
confer�ncias de dirigentes comunistas latino-americanos.
Foi num desses encontros na sede do Comintern que o
dirigente Dmitri Manuilski e a veterana Elena Stasova,
membro do Comit� Central do Partido Comunista desde o
tempo de L�nin, falaram pela primeira vez a Prestes de uma
jovem alem� chamada Olga Sinek, que fazia uma das mais
vertiginosas carreiras dentro da Juventude Comunista
Internacional.
Os momentos de divertimento da fam�lia Prestes eram
rar�ssimos, seja por falta de tempo, seja pelas dificuldades
impostas a todos pelo racionamento. Contudo, no final de
1934, o pr�prio Manuilski mandou organizar uma festa no
apartamento dos Prestes, a pretexto de comemorar a
entrada de Lu�s Carlos no Partido Comunista brasileiro. A
filia��o ocorrera no m�s de agosto � o mesmo partido que
o cortejara e em seguida o rejeitara havia sido obrigado a
aceit�-lo ap�s receber um curto telegrama de Moscou,
assinado pelo secret�rio da Terceira Internacional, Dmitri
Manuilski, ordenando que assim fosse feito. A
comemora��o, no entanto, aconteceria no dia 7 de
novembro, anivers�rio da Revolu��o e dia em que se
completavam tr�s anos da chegada de Prestes a Moscou. O
pequeno apartamento nas imedia��es do bulevar Sadova
estava apinhado de amigos, as quatro filhas de dona
Leoc�dia enfeitadas para a festa que contaria com a
presen�a de ningu�m menos que o pr�prio secret�rio do
Comintern. A certa altura os convidados se espantaram ao
v�-lo, sim, ele, dirigente mundial dos comunistas, ensaiando
passos de samba ao som de um disco que girava no
gramofone. Na verdade, apenas ele e Lu�s Carlos Prestes
sabiam, ali, que a festa era menos de comemora��o e mais
de despedida: tr�s semanas depois, o anfitri�o estaria
partindo de volta ao Brasil. Quando os convidados
come�aram a se retirar, Manuilski pediu a dona Leoc�dia
que fizesse um brinde, e ela devolveu a gentileza: levantou
o copo e disse para todos ouvirem:
� Eu desejo que meu filho Carlos se torne um
bolchevique t�o completo quanto o camarada Manuilski.
Nem dona Leoc�dia nem qualquer de suas filhas jamais
tinham ouvido falar em Olga Benario, Olga Sinek ou Eva
Kruger. Cinco dias ap�s a festa, no entanto, ela come�aria a
entrar para a fam�lia Prestes. Naquele inverno de 1934,
embora com apenas 26 anos, ela era considerada por seus
superiores o que dona Leoc�dia desejara para o filho no
brinde � uma bolchevique completa: falava com flu�ncia
quatro idiomas, conhecia a fundo a teoria marxista-leninista,
atirava com pontaria certeira, pilotava avi�es, saltava de
paraquedas, cavalgava e j� tinha dado provas indiscut�veis
de coragem e determina��o. Ainda assim, Olga se
surpreendeu quando um mensageiro entregou-lhe um
envelope lacrado contendo um bilhete de Dmitri Manuilski
convocando-a com urg�ncia � sede do Comintern. Ela
imaginou que por fim iriam destac�-la para dirigir a luta dos
jovens comunistas de Berlim contra os nazistas de Hitler,
agora no poder. Para melhor impressionar seus superiores,
Olga tirou o p� do uniforme que recebera na Academia da
For�a A�rea e foi ao encontro fardada.
Ao chegar ao imponente pr�dio do Comintern, no n�mero
36 da rua Mokovaia, Olga foi levada imediatamente �
presen�a do secret�rio. Caminhando de um lado para o
outro e olhando longe, como se se concentrasse mais na
neve que ca�a nas vidra�as do que no assunto que
abordava, Dmitri Manuilski desfez, de pronto, sua fantasia
de regressar � Alemanha. Ele falava da perspectiva de uma
revolu��o popular, mas na Am�rica Latina:
� Um dos mais corajosos comunistas que conhecemos
insiste em retornar a seu pa�s. Ele e seus companheiros de
partido nos convenceram de que este � o momento de levar
a revolu��o ao sop� do mundo. A dire��o da Internacional
Comunista esteve todo esse tempo reticente, mas afinal
decidimos autorizar a sua volta.
Ele andava vagarosamente pelo sal�o, como um professor
dando uma aula minuciosa:
� Aceitamos, mas impusemos uma condi��o: o Comintern
cuidar� de sua seguran�a pessoal. Depois de muita
discuss�o, e de analisarmos dezenas de nomes, conclu�mos
que s� uma pessoa tem condi��es de faz�-lo chegar a seu
pa�s em absoluta seguran�a: voc�. N�o quero que responda
neste momento. Pense bem e volte amanh�, � mesma hora.
Por raz�es de seguran�a, a �nica informa��o adicional que
podemos lhe transmitir neste momento � esta: se aceitar,
voc�s partem dentro de poucos dias para a Am�rica Latina.
Olga teve �mpetos de dizer ali, na hora, que estava pronta
para partir. Mas era disciplinada: se Manuilski lhe dava um
dia, ela adiaria o sim por um dia. Ao voltar, na tarde
seguinte, ela chegou com uma hora de anteced�ncia.
Esperou na antessala e foi o pr�prio Manuilski quem
apareceu para encontr�-la. No gabinete, ele perguntou sem
rodeios:
� Como �? A camarada Olga Sinek j� decidiu?
� Sabia desde ontem, camarada: estou pronta para partir.
O secret�rio do Comintern contou-lhe ent�o o que a
esperava. Antes do fim do m�s ela partiria para o Brasil,
cuidando da seguran�a do capit�o Lu�s Carlos Prestes, que
tentaria liderar em seu pa�s uma insurrei��o popular. A
hist�ria que ouvira sobre a coluna invenc�vel voltou � sua
mem�ria. Quando Dmitri Manuilski mandou que trouxessem
at� eles o Cavaleiro da Esperan�a, Olga, embora impass�vel,
decepcionou-se um pouco. Pelo que ouvira, esperava ver
um gigante latino. Ela emocionou-se ao cumprimentar, em
franc�s, o revolucion�rio brasileiro, mas achou-o um pouco
franzino para algu�m que comandara um ex�rcito por 25
mil quil�metros.
4
Lua de mel em Nova York
Quando Lu�s Carlos Prestes deixou o apartamento na noite
de 29 de dezembro de 1934, sua irm� ca�ula, L�gia,
acompanhou-o at� a porta do pr�dio. Prestes abra�ou-a e
pediu-lhe que tomasse conta da m�e. Ao retornar � casa,
L�gia notou que dona Leoc�dia tinha um ar de extrema
afli��o e quis saber o motivo. A m�e foi seca:
� Sinto que nunca mais verei meu filho.
� meia-noite, o espanhol Pedro Fern�ndez e a estudante
russa Olga Sinek � as novas identidades de Prestes e Olga
� ocuparam a cabine de um trem que partiu para
Leningrado, onde chegaram �s oito horas da manh� do dia
seguinte. Ali mesmo na esta��o ferrovi�ria compraram
outro bilhete, e � meia-noite, depois de passearem o dia
todo pela cidade, pegaram o trem que os deixaria no dia 31
em Helsinque, capital da Finl�ndia. Aquele n�o era,
evidentemente, o caminho mais curto para a capital
francesa, mas era sem d�vida o mais seguro. Para dois
clandestinos, atravessar a Pol�nia, a Tchecoslov�quia e a
Alemanha era pedir � pol�cia que os prendesse. Um risco
demasiado grande, sobretudo para Olga, cujas fotos
estavam espalhadas por todos os postos de fronteira de seu
pa�s.
De Helsinque, o casal embarcou para Estocolmo, na
Su�cia, e � meia-noite do dia 31 os dois estavam junto ao
portal� do navio, sobre as �guas geladas do mar B�ltico,
brindando o Ano-Novo que chegava. Prestes ergueu a ta�a
de ponche e brindou:
� Que 1935 seja o ano da revolu��o no Brasil!
Embora o destino deles fosse Paris, Olga preocupava-se
com a m� qualidade dos passaportes com que viajavam e
decidiu que passariam alguns dias em Amsterdam, na
Holanda, onde um contato poderia obter-lhes documenta��o
mais segura. Assim atravessaram o Sul da Su�cia de trem,
chegaram a Copenhague e dali seguiram de barco at� a
costa oriental da Inglaterra, onde fizeram uma r�pida
baldea��o, tomando um segundo barco que os levou de
volta ao outro lado do mar do Norte, em Amsterdam. Olga e
Prestes passaram tr�s semanas na capital holandesa
esperando o tal contato, que nunca chegava. Ela come�ou a
temer os riscos que a presen�a deles ali, por tanto tempo,
poderia acarretar. E decidiu que partiriam assim mesmo,
com os passaportes falsificados de forma grosseira, com
destino a Bruxelas, na B�lgica.
As primeiras semanas de viagem permitiram que os dois
se conhecessem melhor. Para Prestes foi uma surpresa
notar que aquela jovem que Manuilski e Elena Stasova
pintavam como uma comunista r�gida e disciplinada
dedicasse suas horas de descanso, a bordo de barcos ou de
trens, ou � noite, nos hot�is, tecendo delicadas pe�as de
croch�. Conversando sempre em franc�s � idioma em que
ele devorara na Escola Militar os comp�ndios de
engenharia, e os documentos que Astrojildo lhe presenteara
na Bol�via �, os dois passavam horas intermin�veis
rememorando as aventuras que cada um tinha vivido at�
ali. Apaixonada por estrat�gia militar, Olga era capaz de
ficar horas discutindo com Prestes cada opera��o da Coluna
invicta, cada emboscada, cada movimento da tropa. Ele
riscava mapas, rios e bivaques em guardanapos de papel de
vag�es-restaurantes, nas costas de folhetos de turismo. Ela
s� n�o se conformava com o desfecho da aventura
brasileira: por que n�o tentaram tomar o poder? Por que
n�o marcharam sobre o Rio de Janeiro, quando vinham do
Piau�?
Depois era ele o ouvinte atento. Olga falava sobre as
brigas com os pais, a entrada no Grupo Schwabing de
Munique, a sa�da de casa, as passeatas em Berlim, a
repress�o policial, as batalhas contra os nazistas. E, com
detalhes, sobre a ousada opera��o para libertar Otto Braun
da pris�o de Moabit, a clandestinidade, a fuga para Moscou,
a ascens�o vertiginosa dentro da Juventude Comunista
Internacional, os cursos militares. Prestes muitas vezes
interrompia um relato de Olga para confessar-lhe, t�mido,
que jamais conhecera algu�m t�o semelhante a sua pr�pria
m�e:
� Muitas de suas qualidades, de suas caracter�sticas �
dizia ele �, s�o id�nticas �s de minha m�e. N�o se trata de
semelhan�a f�sica, mas a forma de pensar, a maneira ou o
jeito de dizer alguma coisa s�o muito parecidos com os
dela. Isso � curioso, j� que voc� vem de uma sociedade
completamente distinta da de minha m�e, que nasceu e
viveu sempre no Brasil.
Se Olga soubesse da verdadeira paix�o que Prestes
devotava a dona Leoc�dia, traduziria aquelas palavras como
uma inconsciente ou mal disfar�ada declara��o de amor.
A crise generalizada que a Europa atravessava naquela
�poca fazia com que as viagens longas fossem um h�bito
pouco comum. O movimento de turistas era insignificante e
n�o raro os passageiros eram vistos como espi�es nazistas
ou do Comintern. E foi o medo de serem descobertos e
presos que levou Olga a querer sair tamb�m de Bruxelas,
uma cidade relativamente pequena, onde estariam muito
expostos. Como a log�stica da viagem estava a seu cargo,
foi ela quem resolveu que tomariam um trem at� Paris, a
�ltima escala planejada do p�riplo europeu. A partir dessa
cidade utilizariam a fachada criada pelo Comintern para que
chegassem inc�lumes ao Brasil: Prestes e Olga viajariam
como um jovem e rico casal em lua de mel e, portanto,
deviam se comportar como tal. Como primeira medida
nesse sentido, escolheram um hotel luxuoso, o Grand Hotel
du Louvre, uma majestosa constru��o de seis andares do
fim do s�culo xix, com janelas inspiradas em p�rticos
romanos, plantada na pra�a do Palais Royal, em frente ao
teatro da Com�die Fran�aise, no cora��o de Paris.
O contato que Olga perdera em Amsterdam e Bruxelas
apareceu finalmente em Paris, e por orienta��o dele os dois
viajaram de trem at� Rouen, no Norte da Fran�a. L�
procuraram Israel Abrah�o Anahory, c�nsul de Portugal, que
n�o era um militante comunista, mas tinha ideias
consideradas progressistas e tivera, no passado, liga��es
com grupos anarquistas de Lisboa. O fato de ser um
representante diplom�tico do governo direitista de Ant�nio
de Oliveira Salazar, que tomara o poder tr�s anos antes em
Portugal, afastava qualquer suspeita sobre suas atividades
clandestinas na Fran�a. No dia 8 de mar�o, Olga e Prestes
mudaram mais uma vez de nome e receberam o passaporte
portugu�s com que viajariam o resto do tempo. A partir
daquele momento ele passava a ser Ant�nio Vilar, lisboeta
de quarenta anos, comerciante, filho de Jos� Vilar e Angela
Gl�ria Vilar. Ela seria Maria Bergner Vilar, sua mulher. O
documento era v�lido por um ano, desde que utilizado em
qualquer pa�s da Am�rica do Sul, e mais um ano para
eventual retorno � Fran�a. Um ano e meio depois, a
descoberta do solid�rio delito cometido pelo c�nsul Anahory
lhe custaria a carreira diplom�tica e alguns meses de cadeia
em Lisboa.
Para tornar consistente a fachada de rec�m-casados, era
necess�rio acrescentar novos detalhes ao cen�rio, e para
isso Paris era a cidade ideal. O comerciante Ant�nio Vilar
era um homem rico e sa�a da Fran�a em lua de mel com sua
esposa Maria. Como gente rica veste-se ricamente, Prestes
e Olga gastaram mais alguns dias percorrendo afamados
costureiros parisienses para montar um guarda-roupa �
altura das personagens que representavam. Prestes a
acompanhava �s elegantes casas da alta moda e, para dar
mais realismo � farsa, fazia o tipo ciumento. Dava palpites
na escolha dos vestidos, reclamava dos decotes e do
comprimento das saias. Ele pr�prio teve que travestir-se
igualmente de homem de posses, e encheu algumas malas
de ternos bem cortados, chap�us de feltro e trajes a rigor
para as festas que tivessem que enfrentar no caminho. Para
que o �xito da miss�o fosse assegurado, dinheiro n�o foi
problema para eles.
Embora o passaporte obtido em Rouen fosse perfeito,
Olga resolveu aperfei�oar ainda mais sua apar�ncia de
legalidade. E concluiu que n�o haveria melhor forma de
faz�-lo do que ter carimbado nele um visto de entrada e
sa�da... nos Estados Unidos. O consulado norte-americano
em Paris concedeu sem problemas um visto de tr�nsito nos
eua, sem limita��o de prazo de perman�ncia, j� que o
destino final da viagem de lua de mel era Lima, no Peru.
Prestes saboreou o preenchimento da ficha de solicita��o do
visto, na qual fora obrigado a dizer que n�o era comunista
� uma esdr�xula exig�ncia da lei americana. E deliciou-se
com a advert�ncia final: �Qualquer resposta falsa a alguma
das perguntas acima constitui crime e sujeita o requerente
�s penas da lei�. Naquele formul�rio n�o havia uma s�
informa��o verdadeira, a come�ar pelo nome dos
requerentes.
A cobertura seria refor�ada com dois documentos falsos,
fornecidos pelo contato franc�s de Olga. O primeiro era uma
carta datilografada em papel timbrado de uma imagin�ria
Compagnie G�n�rale d��lectricit� Ateliers d�Orl�ans. No
of�cio dirigido a �monsieur Ant�nio Vilar� � e entregue na
portaria do Grand Hotel du Louvre �, o administrador da
empresa acertava a entrega a Vilar da representa��o de
seus produtos na Am�rica do Sul, �confirmando
entendimentos havidos anteriormente�. A segunda cartafantasma
era da Martin Zellermayer & Cie., de Viena,
concedendo a Ant�nio Vilar autoriza��o para vender os
motores de sua fabrica��o na Am�rica do Sul. As cartas,
al�m de confirmar a fachada segundo a qual Prestes era
Ant�nio Vilar, serviriam para a eventualidade de explicar a
origem da pequena fortuna em dinheiro que o casal levava
consigo.
Na terceira semana de mar�o, Olga e Prestes estavam
prontos para partir. Alugaram uma luxuosa su�te na primeira
classe do navio de passageiros Ville de Paris e embarcaram
em Brest, um pouco abaixo do porto do Havre. Na primeira
noite que passaram a bordo, o comandante enviou ao
camarote dos Vilar uma corbeille de flores e um delicado
cart�o convidando-os para uma ceia em sua cabine. Prestes
foi para o jantar desconfiado de que o capit�o do navio
fosse agente secreto do governo franc�s, e passou alguns
apertos durante o encontro: o homem havia morado em
Lisboa e conhecia muito bem a capital portuguesa. Toda vez
que ele tentava conversar sobre Lisboa, Olga tinha que
entrar no meio e despist�-lo com alguma desculpa. Por
sorte, o comandante estava muito mais interessado em
conversar com a bela �Maria� do que com o marido
portugu�s.
A fachada obrigava Olga e Prestes a intimidades
imprevistas. Um casal em lua de mel n�o apenas dorme no
mesmo quarto, mas na mesma cama. Al�m disso,
aproximava-os a afinidade intelectual e pol�tica, cada vez
maior entre os dois, al�m do fato de serem jovens, bonitos e
entusiasmados com a perspectiva de estarem �s portas da
revolu��o. Para um homem de 37 anos, Prestes vivera
precocemente toda sorte de experi�ncias pol�ticas: liderara
uma rebeli�o militar, conspirara contra governos, fora preso
e exilado, convivera com os mais importantes dirigentes
comunistas na Uni�o Sovi�tica. Mas o rigor, a disciplina e a
dedica��o � causa tinham cobrado dele um pre�o alto: at�
ent�o, Lu�s Carlos Prestes nunca tinha estado com uma
mulher. A orfandade prematura levou-o, aos dez anos de
idade, a tornar-se o chefe da fam�lia. O pouco tempo que lhe
sobrava da Escola Militar era dedicado aos estudos. A m�e
n�o permitira que ele trabalhasse: preferia ela faz�-lo, com
a condi��o de que o filho se entregasse aos livros e fosse o
primeiro aluno da classe. A vida da fam�lia suburbana do Rio
de Janeiro era t�o dif�cil que ele teve que obter permiss�o
especial para andar fardado fora da Escola Militar: Prestes
n�o tinha trajes paisanos para vestir. Durante a Coluna ele
se sentira na obriga��o, enquanto comandante, de dar o
exemplo de disciplina. E, ao contr�rio de muitos de seus
comandados, n�o se envolveu com as mulheres que
acompanharam a marcha. A pol�tica e a preocupa��o com a
educa��o das quatro irm�s tinham-lhe roubado todo o
tempo. E se Prestes chegara aos 37 anos sem ter tido uma
namorada, uma paix�o, uma mulher, n�o poderia haver
circunst�ncia mais prop�cia para come�ar: estava em altomar,
num camarote luxuoso, acompanhado de uma
bel�ssima mulher, comunista e revolucion�ria como ele.
Quando o Ville de Paris atracou no porto de Nova York, na
manh� de 26 de mar�o de 1935, o que at� ent�o fora uma
fic��o, montada pela Internacional Comunista, havia virado
realidade: como suas personagens Ant�nio Vilar e Maria
Bergner, Prestes e Olga eram marido e mulher.
Apaixonados, os dois passaram a lua de mel real em Nova
York. Foram a concertos, assistiram a filmes e aproveitaram
o fim do inverno em intermin�veis caminhadas pelo Central
Park. Como o objetivo da viagem aos Estados Unidos era s�
obter os carimbos no passaporte, o tempo estava
praticamente livre para o namoro. O contato parisiense
havia feito uma �nica recomenda��o: que despachassem a
bagagem pesada dos Estados Unidos para um tal Am�rico
Dias Leite, no Rio de Janeiro. Leite era um simpatizante do
Partido Comunista que certa vez, de passagem pela Fran�a,
escrevera a Prestes em Moscou, pedindo sua interfer�ncia
para conseguir um visto de entrada na Uni�o Sovi�tica. Na
mesma ag�ncia em que fizeram a remessa das malas, a
multinacional Wagons Lits Cook, Prestes e Olga
aproveitaram para comprar o restante das passagens �
sempre na primeira classe. Cinco dias ap�s a chegada os
dois deixaram o elegante Hotel Pennsylvania, em frente ao
Madison Square Garden, na S�tima Avenida. Ao afivelar as
malas, Prestes recolheu cuidadosamente da c�moda da
su�te um ma�o de pap�is de carta com o nome do hotel e o
colocou, protegido por uma pasta de cartolina, no fundo de
sua malinha de m�o. Horas depois o casal estava em um
trem, a caminho de Miami, de onde iniciariam a viagem ao
Brasil, passando por Santiago do Chile e Buenos Aires,
agora por via a�rea.
Na �poca, o voo de Miami at� Santiago do Chile era
demorado e cansativo. Como os avi�es de passageiros n�o
voavam � noite, o quadrimotor Sikorsky da Pan American
em que viajaram fez escalas � e obrigou os passageiros a
pernoitar � em Havana (Cuba), Kingston (Jamaica), Col�n
(Panam�), Guaiaquil (Equador) e Lima (Peru). Por n�o
possu�rem visto de entrada para o Chile, precisaram
oferecer alguns d�lares aos funcion�rios do consulado
chileno em Callao para que o visto sa�sse antes da
decolagem do avi�o. O voo terminou no dia 5 de abril na
capital chilena, onde permaneceram apenas o tempo
suficiente para comprar uma passagem a�rea para a
Argentina. Dessa vez o avi�o da Panagra Airways era um
pequeno Triford, com pouca autonomia de voo, o que os
obrigou a fazer escalas em Mendoza e C�rdoba antes de
chegarem a Buenos Aires.
A perman�ncia na capital argentina seria mais demorada
e envolvia cuidados especiais, pois ali pretendiam obter o
visto para a entrada no Brasil. Por meio de contatos, Prestes
acertara com o vice-c�nsul brasileiro, Manuel Paranhos, seu
amigo de inf�ncia, uma f�rmula para entrar no pa�s sem
problemas. Comunicou-se com a embaixada brasileira logo
que se instalou e soube, para sua sorte, que Paranhos
estava ocupando interinamente o posto de c�nsul-geral, o
que lhe dava maior mobilidade. Mas um mal-entendido
quase frustrou os planos. Temendo ser reconhecido, Prestes
avisou ao diplomata que uma jovem �alta e de cabelos
escuros� iria encontr�-lo num dos caf�s do centro da cidade,
levando os passaportes para serem visados. Ao ouvir
�cabelos escuros�, Paranhos entendeu que Olga era
morena. E n�o havia nenhuma morena no caf�, na hora
combinada. Como Olga era a �nica mulher
desacompanhada no lugar, �quela hora, o c�nsul arriscou e
decidiu abord�-la. Se, depois, precisasse de alguma
justificativa para o fato de ter concedido os vistos ao �casal
de portugueses�, Paranhos poderia usar a que recebeu das
m�os de Olga: uma carta escrita por um diplomata
portugu�s de Nova York, apresentando os Vilar e pedindo a
concess�o dos vistos. Era mais uma carta falsa,
cuidadosamente datilografada no papel subtra�do por
Prestes ao Hotel Pennsylvania.
Resolvido o problema dos vistos, restava saber qual o
meio mais seguro de cruzar a fronteira. Eles resolveram
seguir at� Montevid�u para discutir a quest�o com os
contatos do Comintern no Uruguai, e decidiu-se pela via
a�rea. Naquela �poca apenas uma empresa de avia��o
fazia linha para o Brasil. Era a francesa Lat�co�re,
antecessora da Air France, que realizava um voo mensal no
trajeto Santiago-Buenos Aires-Montevid�u-S�o Paulo-Natal-
Dacar-Casablanca-Paris. Embora fosse uma linha
exclusivamente postal, quando as aeronaves n�o estavam �
plena carga a Lat�co�re vendia passagens para os dois
�nicos assentos existentes. Prestes e Olga tiveram sorte:
em poucos dias sairia um avi�o e os lugares ainda estavam
dispon�veis. Como o voo do m�s de maio tinha sido
suspenso, se perdessem aquele s� teriam outra chance dali
a dois meses, em meados de junho.
Por se tratar de um correio a�reo, a Lat�co�re tinha
autoriza��o para que seus aparelhos voassem � noite.
Assim, na madrugada de 15 de abril os dois embarcaram no
Santos Dumont, um hidroavi�o de quatro motores, para
uma viagem que deveria durar cerca de seis horas at� o
hangar da Praia Grande, no litoral do estado de S�o Paulo.
Quando o dia amanheceu o avi�o voava baixinho,
margeando o litoral no limite do Rio Grande do Sul com
Santa Catarina. O Santos Dumont n�o possu�a janelas, mas
pequenas escotilhas, e foi atrav�s delas que Olga teve seu
primeiro alumbramento com o Brasil. Habituada � Europa,
ela nunca imaginara tal luminosidade � um sol fort�ssimo
batia sobre o verde-escuro da mata e o azul do mar,
divididos pelo risco branco e intermin�vel da areia da praia.
No meio da manh� o navegador Comet foi at� os dois para
informar que o avi�o faria um r�pido e imprevisto pouso
numa das praias de Florian�polis e que decolaria
novamente em poucos minutos. Olga, que j� tinha feito
amizade e distribu�do lembran�as de Nova York entre os
cinco membros da tripula��o, cochichou com Prestes:
� Essa escala ser� providencial. Se algum servi�o de
intelig�ncia tiver conhecimento da nossa rota, os policiais
estar�o � espera na Praia Grande. Vamos tentar descer em
Florian�polis.
E dirigiu-se ao comandante Givon para dizer-lhe que o
objetivo da viagem do casal era visitar parentes dela que
haviam emigrado para o Norte do Paran�. Como eles
levavam apenas bagagem de m�o, gostariam de descer
durante a parada do avi�o em Santa Catarina, o que lhes
pouparia v�rias horas de viagem. O piloto franc�s n�o fez
nenhuma obje��o.
N�o havia ningu�m no hangar mar�timo onde o hidroavi�o
atracou. Nenhuma fiscaliza��o de malas ou de documentos,
e bastou que Olga exibisse alguns d�lares para que logo
aparecesse um carro para lev�-los at� o centro da capital
catarinense. Dormiram em Florian�polis e no dia seguinte
tomaram um t�xi at� Curitiba. Mais um pernoite ali e de
manh� contrataram outro t�xi para lev�-los a S�o Paulo. No
meio do caminho, quando o carro atravessava a cidade de
Itapetininga, no interior do estado de S�o Paulo, Prestes
desentendeu-se com o motorista. Desde a sa�da de Curitiba
ele vinha reclamando que a viagem estava muito demorada
e que o homem era um p�ssimo motorista. Olga achou mais
prudente tomarem outro carro, mas por imprevid�ncia
Prestes esquecera de trocar d�lares por mil-r�is � era um
s�bado e os bancos estavam fechados. A solu��o foi pedir
ao motorista contratado em Itapetininga que pagasse a
corrida do outro, e quando chegassem a S�o Paulo
acertariam tudo com ele. J� era de noitinha quando
entraram na capital paulista. Olga ficou impressionada com
a altura de um arranha-c�u que podia ser visto a
quil�metros de dist�ncia, logo ap�s a sa�da da estrada, o
Edif�cio Martinelli. Com a noite fechada, Ant�nio Vilar e
Maria Bergner Vilar se hospedaram num confort�vel hotel
do largo do Arouche.
A poucas quadras dali, bo�mios experimentavam a
engenhoca que acabava de ser instalada no Caf� Paraventi,
uma m�quina t�o extravagante quanto o seu dono,
Celestino Paraventi. Para substituir a velha cafeteira
dourada, Paraventi importara da It�lia e apresentava pela
primeira vez aos brasileiros uma m�quina de coar caf� a
vapor. A partir de ent�o, os poetas, as atrizes e os
comunistas que frequentavam as mesinhas de m�rmore da
cal�ada da rua Quinze de Novembro n�o pediam mais um
cafezinho ao gar�om. Levantavam o indicador, diziam
apenas �Um expresso!�, e passavam horas bebericando
enquanto apreciavam o movimento.
O exc�ntrico milion�rio Celestino Paraventi, de 35 anos,
era ainda mais especial que a fauna que frequentava o caf�.
Al�m do estabelecimento, herdara do pai dezenas de
im�veis espalhados pela cidade e uma ind�stria de
torrefa��o de caf� na qual come�ara a produzir mais uma
modernidade europeia: caf� enlatado a v�cuo, que durava
meses sem estragar. Paraventi era o porto seguro a quem
recorriam os intelectuais pobres, os atores desempregados
e os bo�mios em geral quando em apuros financeiros, o que
lhe valeu o apelido de �Salvador�. N�o havia um panfleto,
pasquim ou jornal de oposi��o que n�o estampasse um
an�ncio do Caf� Paraventi. Enquanto durou, por exemplo, o
jornal anarquista O Homem do Povo, editado por Oswald de
Andrade e Patr�cia Galv�o, o an�ncio do caf� esteve l�. Mas
ele era particularmente generoso quando se tratava de
ajudar os comunistas. Alugava casas para a instala��o de
gr�ficas clandestinas, dava gorda contribui��o mensal para
os cofres do partido e sustentava fam�lias de militantes
presos. Quando lhe perguntavam se mantinha alguma
rela��o org�nica com o Partido Comunista, ele respondia
com uma gargalhada:
� Eu n�o tenho liga��o com o partido. O partido � que
tem liga��o comigo!
Sua fascina��o pela figura de Lu�s Carlos Prestes nascera
durante a Coluna. De S�o Paulo, pela imprensa ou atrav�s
de panfletos clandestinos, ele acompanhava cada
movimento da tropa, cada vit�ria sobre as for�as do
governo. Quando a Coluna se internou nas matas da Bol�via,
Paraventi ficou decepcionado. E quase levou a fam�lia a
intern�-lo num hosp�cio quando mandou avaliar a ind�stria,
a torrefa��o e a enlatadora � e anunciou que enviaria o
dinheiro apurado na venda de seu patrim�nio para Prestes,
exilado em Buenos Aires, �para que ele possa montar a
Coluna de novo e tomar o governo�. Mandou comunicar sua
decis�o ao capit�o, na Argentina, e da� a algumas semanas
o portador voltava com a resposta: Prestes agradecia mas
n�o o aconselhava a fazer aquilo. Se quisesse ajudar,
poderia mandar latas de caf� para Buenos Aires que ele, o
tenente Siqueira Campos e Orlando Leite Ribeiro, exmembros
da Coluna, se encarregariam de vend�-las e
reexport�-las de l�. O lucro obtido na opera��o seria
suficiente para sustent�-los no ex�lio. Embora nunca tivesse
estado com Prestes, Paraventi costumava dizer que o
comunismo do capit�o tinha �muita coisa de cristianismo�.
� Um sujeito como o Prestes, com essa voca��o, um
homem que larga tudo para acabar com a oligarquia, para
acabar com esses indiv�duos que querem tudo para si e
nada para os outros, deve ter alguma coisa de crist�o. Ele
pode at� n�o saber disso, mas tem.
Paraventi acabava de voltar de uma de suas
excentricidades naquele s�bado � noite � cantar can��es
italianas no programa Ch� no Ar, de Nicolau Tuma, da R�dio
Difusora � quando Olga Benario surgiu � sua frente no caf�.
Ele fora avisado por dirigentes do partido que talvez
recebesse �gente muito importante� nas pr�ximas semanas,
mas n�o percebeu o que acontecia quando aquela bela
mulher, vestida com eleg�ncia e falando um portugu�s com
sotaque carregado, procurou-o em uma das mesas. Olga
levava na bolsa um min�sculo bilhete de Prestes dizendo
que estava em S�o Paulo e que a portadora saberia indicar
o hotel em que se encontrava. Paraventi recolheu o casal e
sua bagagem no largo do Arouche e minutos depois iam os
tr�s, a bordo de um luxuoso autom�vel Lincoln do ano, para
a casa de campo que possu�a no ent�o distante bairro de
Santo Amaro, �s margens da represa Guarapiranga. No dia
seguinte, Ant�nio Maciel Bonfim, o Miranda, secret�rio-geral
do Partido Comunista, recebia no Rio de Janeiro um
emiss�rio de S�o Paulo, com a not�cia de que Lu�s Carlos
Prestes chegara ao Brasil.
5
Do mundo inteiro, rumo ao Rio
V�rios an�ncios falsos de que Lu�s Carlos Prestes estaria
retornando ao pa�s, publicados por jornais de esquerda e de
direita, no final de 1934 e nos primeiros dias de 1935,
haviam deixado a pol�cia brasileira excitada e vigilante. O
rastro da Coluna Prestes ainda estava vivo na paisagem
pol�tica do pa�s e havia uma esp�cie de venera��o nacional
pela figura do Cavaleiro da Esperan�a, obrigando Get�lio
Vargas a exigir da pol�cia pol�tica redobrada e rigorosa
precau��o.
N�o eram apenas os �rg�os de seguran�a que
aguardavam com ansiedade a volta de Prestes. Desde que a
viagem dele e de Olga fora decidida em Moscou, um
pequeno e seleto grupo de estrangeiros iniciava em v�rias
partes do mundo viagens t�o discretas e sinuosas como a
do casal Vilar, todos com o mesmo destino: Rio de Janeiro,
Brasil. Alguns vinham acompanhados de suas mulheres,
nem todos viajavam com seus verdadeiros nomes e os que
n�o se conheciam j� tinham pelo menos ouvido falar uns
dos outros. Uma identidade comum os unia: eram todos
comunistas, todos revolucion�rios profissionais a servi�o do
Comintern e vinham todos ao Brasil fazer a revolu��o.
De Xangai, na China, ap�s r�pida passagem por Moscou,
partiram os alem�es Arthur Ernst Ewert e sua mulher, Elise,
assessores pol�ticos, que viajavam com documenta��o
norte-americana em nome de Harry Berger e Machla
Lenczycki. De Buenos Aires, via Montevid�u, vieram Rodolfo
Ghioldi e sua mulher, Carmen, assessores pol�ticos, ele sob
o nome de Luciano Busteros, ela mantendo sua identidade
original. Dos Estados Unidos e com documenta��o aut�ntica
chegara o jovem Victor Allen Barron, radiotelegrafista e
t�cnico em radiocomunica��es. Tamb�m com
documenta��o genu�na veio da Europa o casal belga
Alphonsine e L�on-Jules Vall�e, respons�veis pelas finan�as
e assessores pol�ticos. Da Alemanha viriam os misteriosos
Franz Paul Gruber e Erika, sua mulher, ele especialista em
explosivos e sabotagem, ela datil�grafa e motorista.
Quando Prestes e Olga puseram os p�s no Brasil, estavam
todos vivendo desde o come�o do ano no Rio de Janeiro,
integrados � vida da cidade e morando em casas ou
apartamentos alugados na elegante Zona Sul carioca.
Pelo menos um dos membros da equipe � por sinal, o
mais graduado e experiente de todos �, Olga conhecia
bem. Uma das poucas mulheres inscritas no curso de
pol�tica da Divis�o Internacional da Universidade dos Povos,
em Moscou, durante seis semanas ela teve como instrutor
um corpulento e bem-humorado patr�cio seu, cujas fotos j�
vira publicadas tanto no Estrela Vermelha quanto na
imprensa de Berlim. Era Arthur Ewert, que viria a se
transformar num dos mais respeitados quadros pol�ticos
internacionais do Comintern.
Foi antes da Primeira Guerra Mundial que Ewert, ent�o um
jovem de vinte anos, nascido em Heinrichswalde, na Pr�ssia
Oriental, mudou-se para os Estados Unidos com sua
namorada, a tamb�m alem� Elise Saborowski. E n�o por
acaso escolheu Detroit para viver � como o grande polo
oper�rio criado pela industrializa��o, a cidade transformarase
num centro de agita��o pol�tica. Ewert trabalhava
durante meio ano como oper�rio da ind�stria do couro,
ajuntando dinheiro. Ao final do semestre pedia demiss�o e
dedicava os seis meses seguintes a passar metade do dia
enterrado em bibliotecas p�blicas e a outra metade fazendo
agita��o pol�tica nos sindicatos.
Em 1917 o casal mudou-se para Toronto, no Canad�, mas
seu nome s� apareceria em p�blico pela primeira vez dois
anos depois, quando a pol�cia, tentando impedir a
organiza��o do Partido Comunista, invadiu um �aparelho
subversivo� onde viviam Arthur Brown e Annie Bancourt,
prendendo os ocupantes do apartamento e recolhendo
armas e literatura marxista. Brown e Annie eram, na
verdade, os codinomes de Ewert e Elise, que ele chamava
carinhosamente de Sabo, diminutivo de seu sobrenome.
Depois de passar alguns meses numa pris�o para
�estrangeiros em situa��o irregular�, os dois foram
deportados ao pa�s de origem, os Estados Unidos. Ewert
voltou a frequentar os comunistas e anarquistas de Detroit;
anos depois estava de volta a Berlim, onde se filiou ao
Partido Comunista alem�o. Sua experi�ncia internacional,
somada ao conhecimento adquirido nas bibliotecas norteamericanas,
logo o elevaria � dire��o do Partido Comunista
alem�o, de cujo secretariado ele j� fazia parte desde 1923.
De Moscou os dirigentes sovi�ticos acompanhavam a
carreira do jovem, que em seguida foi convidado a viver na
capital sovi�tica, trabalhando diretamente com a dire��o do
Comintern. Ewert, que nessa �poca estava casado
legalmente com Elise, passou quatro anos como instrutor
graduado dos diversos centros de �forma��o de quadros� �
tanto os do Partido Comunista da urss como os que vinham
de v�rias partes do mundo.
Sua estrela sobe rapidamente. Em setembro de 1927 o
todo-poderoso Josef St�lin confia a Ewert poderes ilimitados
para intervir no Quinto Congresso do Partido Comunista
norte-americano, reunido em Nova York, em favor da
escolha de Jay Lovestone para a dire��o do partido nos
Estados Unidos, contra os grupos de Earl Browder e William
Foster. Ewert chega a Nova York no come�o de agosto. No
encerramento do congresso, em 8 de setembro, a vontade
de St�lin havia sido cumprida. A dura interven��o de Arthur
Ewert causaria alguns arranh�es � sua imagem p�blica. O
jornal The Militant, editado por uma fac��o trotskista de
oposi��o ao Partido Comunista norte-americano, publica
uma nota acusando Ewert de ter sido enviado por Moscou
para �roubar e dividir a conven��o do partido com o objetivo
de ajudar o grupo de Lovestone�. Para ele, no entanto, a
opini�o de um jornaleco esquerdista tinha pouco significado.
O que importava era a opini�o de St�lin, e esta tinha sido
t�o efusiva com o sucesso de sua miss�o em Nova York que,
ao retornar � urss, Ewert torna-se membro do Comit�
Executivo da Terceira Internacional. Em seguida � eleito
deputado pelo Partido Comunista alem�o ao Reichstag, o
parlamento de seu pa�s.
O brilho de sua estrela, no entanto, come�aria a ser
empanado em pouco tempo. Uma profunda diverg�ncia
sobre a concep��o da t�tica a ser seguida pelos comunistas
tomaria conta do Comintern e acabaria por envolv�-lo.
Ewert chegou ao Sexto Congresso da Internacional
Comunista, em Moscou, no ver�o de 1928, sob a acusa��o
de �conciliador�. O pecado atribu�do a ele: opor-se,
juntamente com seu amigo Gerhardt Eisler, outro ativo
militante comunista internacional, � linha defendida por
Ernst Th�lmann dentro do Partido Comunista alem�o, pela
qual o principal inimigo a ser combatido pelos comunistas
era o Partido Social-Democrata. St�lin � frente, o Sexto
Congresso da Internacional reitera e refor�a a tese do cerco
aos social-democratas, rebatizados de �social-fascistas�. Os
volumosos anais do congresso registrariam uma �nica,
solit�ria voz discordante. Sozinho na sua posi��o, embora
muitos dos dirigentes ali presentes concordassem
silenciosamente, Arthur Ewert insistia em que o Partido
Comunista alem�o teria, sim, que romper ideologicamente
com a social-democracia, mas sempre mantendo com ela a
unidade t�tica, tal como ele entendia que as duas pot�ncias
deviam fazer. Acusado de persistir em um desvio para o
qual j� havia arrastado mais da metade da dire��o do
Partido Comunista alem�o, Ewert come�a a cair em
desgra�a. Junto com ele v�o seu amigo Gerhardt Eisler e at�
mesmo um dos grandes da Revolu��o de Outubro, Nikolay
Bukharin, dirigente m�ximo do Comintern. Responsabilizado
por St�lin por n�o ter imposto a tempo a disciplina
partid�ria aos �conciliadores�, Bukharin � expulso primeiro
do Comintern e depois do Bir� Pol�tico do Partido Comunista
sovi�tico.
A vit�ria eleitoral de Hitler em 1933 comprovaria que, na
verdade, a raz�o estava com Ewert e que a divis�o entre
comunistas e social-democratas facilitava o caminho dos
nazistas. Mas isso s� aconteceria quatro anos depois. O
ostracismo de Ewert seria decretado em 1929 num discurso
de St�lin, amea�adoramente intitulado �Sobre o desvio
direitista no Partido Comunista (Bolchevique) da urss�,
pronunciado ante o pleno do partido. Ewert � premiado com
cita��es nominais de St�lin, que o chama de �conciliador
que agia � revelia do Comit� Central da Terceira
Internacional�. A puni��o pelos graves delitos viria em
seguida, atrav�s do seu afastamento tanto do Comintern
como do Partido Comunista alem�o.
Ewert passa um ano mergulhado na mais absoluta
obscuridade, at� que em fevereiro de 1930 o Imprecorr,
boletim que divulgava internacionalmente as atividades do
Comintern, publica a �ntegra de sua autocr�tica. As pessoas
que o conheceram sabiam que n�o havia sinceridade
naquele reconhecimento de �culpa� pol�tica. Habituado a
viver dentro da m�quina partid�ria, Ewert se sentia �rf�o e
desamparado politicamente fora dela. Como o pre�o da
volta era a autocr�tica, ele a fazia.
Como primeira tarefa ap�s a reabilita��o, Ewert foi
encarregado pelo Comintern, em 1931, de viajar at�
Montevid�u, no Uruguai, onde uma lega��o comercial da
Uni�o Sovi�tica, o Yuamtorg, funcionava como fachada para
as opera��es latino-americanas do Comintern. Seu trabalho
era avaliar as informa��es enviadas por Augusto Guralsky, o
R�stico, sobre o capit�o brasileiro Lu�s Carlos Prestes, cujo
nome havia sido indicado para viajar � urss. De volta a
Moscou, o informe de Ewert � ainda mais animador do que o
de Guralsky. Prestes era um grande quadro pol�tico que se
aproximava do marxismo e o Comintern n�o deveria perder
a oportunidade de t�-lo mais perto de si.
Logo em seguida Ewert seria mandado, agora em
companhia de Elise, para uma longa temporada na meca
dos agentes internacionais, comunistas e capitalistas:
Xangai, na China, onde estava instalada a dire��o do
clandestino Partido Comunista chin�s, que controlava
algumas regi�es �liberadas� no interior do pa�s.
Dezenas de milhares de russos brancos que emigraram
ap�s o triunfo da revolu��o em seu pa�s davam ao
importante porto chin�s uma apar�ncia ainda mais
metropolitana. Um enclave internacional instalado dentro da
cidade, governado e policiado por for�as francesas, norte
americanas, japonesas e chinesas, fazia de Xangai uma
mistura de cidade do Extremo Oriente com um pa�s europeu
ocidental. Traficantes e prostitutas de luxo das mais
diversas nacionalidades, espi�es que trabalhavam para
todas as pot�ncias (�s vezes para mais de uma ao mesmo
tempo), exilados, conspiradores e correspondentes de
grandes ag�ncias de not�cias davam � cidade um ritmo e
um colorido �nicos em toda a �sia.
Arthur Ewert e Elise chegam a Xangai para uma tarefa
que exigiria, como em Nova York, habilidade pol�tica e m�o
de ferro: tratava-se de controlar a rea��o do Partido
Comunista chin�s ao pacto que St�lin buscava assinar com
Chiang Kai-shek, chefe do Kuomintang � o partido no poder
na China e que combatia ferozmente os comunistas de Mao
Ts�-tung. Parte do brilho e da efici�ncia com que realizou a
miss�o o pr�prio Ewert atribuiria a um alem�o conhecido
pelo codinome chin�s de Li Teh, que se encontrava em
territ�rio chin�s havia quinze meses, tamb�m como enviado
do Comintern: Otto Braun, o ex-namorado de Olga Benario.
Logo ap�s terminar seu romance com Olga, Otto fora
enviado pela Internacional Comunista � efervescente China.
L� deveria inicialmente estabelecer contato com outro
agente que mais tarde ganharia notoriedade mundial como
chefe da rede de espionagem sovi�tica no Jap�o, Richard
Sorge, e ligar-se � dire��o do Partido Comunista chin�s. Sob
o nome de Hua Fu, Otto assinava artigos pol�ticos no jornal
comunista Revolution and War, e sob o pseud�nimo de Li
Teh atuava como conselheiro militar do Comit� Central do
Partido Comunista chin�s. Em Juichin, capital da regi�o
�sovietizada� de Kiangsi, Li Teh prestava assessoria militar a
Mao Ts�-tung e a Chu Teh na prepara��o da Longa Marcha.
No congresso do partido em Tsunyi, que sancionou a
lideran�a de Mao, a cadeira destinada ao marechal St�lin foi
ocupada pelo �camarada Li Teh�. E o �professor Albert List�,
que dividia com Lin Piao a dire��o da Academia Militar de
Yenan, do Partido Comunista chin�s, n�o era outro sen�o
Otto Braun.
Durante os tr�s anos que passou em Xangai, Ewert
ocupou-se mais ativamente com a mobiliza��o de
intelectuais para a produ��o de propaganda antijaponesa.
Ele se impressionara com o r�pido avan�o da revolu��o na
China e mais de uma vez declarou que o grau de
comuniza��o do pa�s era t�o grande e irrevers�vel que ele
pr�prio n�o via necessidade do trabalho de propaganda de
agentes do Comintern. E, de todas as tarefas do casal Ewert
na China, apenas uma terminou coberta pelo p� da hist�ria:
nunca se soube se ele teria ou n�o obtido �xito na tentativa
de aliciar para o trabalho de espionagem do Comintern um
de seus grandes amigos em Xangai, o brit�nico Roger Hollis,
que d�cadas depois, entre 1956 e 1965, viria a ser o chefe
do mi-5, o servi�o de intelig�ncia militar brit�nico. De
qualquer forma, a �ltima not�cia que a multinacional pol�cia
de Xangai obteve a respeito do casal � que na �poca j�
adotava os nomes de Harry Berger e Machla Lenczycki � �
que teriam deixado a cidade no dia 19 de julho de 1934 a
bordo do SS Yingchow com destino ao porto russo de
Vladivostok. A verdade � que iniciavam ali uma longa
viagem que terminaria, meses depois, num hotel da rua
Marqu�s de Abrantes, no Rio de Janeiro.
Na �ltima escala antes de aportar no Rio de Janeiro, Ewert
recebeu em Montevid�u um nome para procurar no Brasil:
Luciano Busteros, pseud�nimo do jornalista argentino
Rodolfo Ghioldi, membro suplente do Comit� Executivo do
Comintern, secret�rio do Bir� Latino-Americano da Terceira
Internacional e dirigente do Partido Comunista argentino.
Ghioldi, que conhecera Prestes e Ewert em 1931, em
Montevid�u, j� havia estado no Brasil, treze anos antes.
Naquela �poca, estava em Moscou quando a dire��o da
Internacional encarregou-o de viajar � capital brasileira,
onde um grupo de comunistas pretendia fundar um partido
e solicitava filia��o � Internacional Comunista. Ghioldi
deveria avaliar a situa��o e enviar um informe a Moscou
com um parecer sobre a concess�o ou n�o de agr�ment ao
partido que come�ava a nascer.
Ghioldi conviveu durante tr�s semanas com o grupo
brasileiro, considerado por ele �extremamente
interessante�. Com dois de seus componentes, o jornalista
Astrojildo Pereira e o farmac�utico Ot�vio Brand�o, Ghioldi
teve um contato maior e deles acabou se aproximando
mais. Tanto Astrojildo quanto Brand�o tinham antecedentes
anarquistas � ideia que havia exercido muita influ�ncia no
movimento oper�rio brasileiro �, mas � luz da Revolu��o
Russa reviram suas concep��es te�ricas, tornando-se
comunistas. A partir do informe favor�vel de Ghioldi, os
brasileiros foram acolhidos por Moscou e meses depois
eram discretamente distribu�dos em v�rios estados os
estatutos do Partido Comunista � sbic; as quatro letras finais
indicavam que aquela era a Se��o Brasileira da
Internacional Comunista. No Rio, Rodolfo e sua mulher,
Carmen Alfaya de Ghioldi � que inexplicavelmente viajava
com seu verdadeiro nome, embora o sobrenome do marido
fosse fartamente conhecido das pol�cias pol�ticas �,
instalaram-se de in�cio num apartamento no bairro do
Leblon, � espera do momento planejado para o in�cio da
conspira��o: a chegada de Prestes e Olga.
Tamb�m aguardando o casal e pronto para juntar-se aos
Berger e aos Ghioldi, encontrava-se no Rio o mais jovem dos
enviados do Comintern, o norte-americano Victor Allen
Barron, de 27 anos. Magro e alto, com ar de gal� de cinema,
Barron convivera desde garoto com o clima das lutas
oper�rias e da milit�ncia comunista que o pai, Harrison
George, levava para casa. Fichado pelas autoridades
policiais norte-americanas como �um dos mais importantes
agentes secretos do movimento comunista internacional�,
Harrison George era o representante nos Estados Unidos da
Internacional Sindical Vermelha, se��o do Comintern
encarregada das atividades no meio sindical. Ele estivera na
Am�rica Latina em 1926, como delegado � Segunda
Confer�ncia de Trabalhadores Portu�rios do Hemisf�rio
Ocidental, realizada em Montevid�u, quando foi fundada a
Confedera��o Latino-Americana de Sindicatos, com sede na
capital uruguaia. O pai Harrison e Edna Hill, sua mulher,
divorciaram-se quando Victor era beb�, e embora a m�e
desse ao garoto o sobrenome do novo marido, C. N. Barron,
ele acabou por ligar-se mais ao pai.
Ainda adolescente Victor trabalhou em uma empresa de
Yakima, no estado de Washington, como colhedor de
laranjas, mas logo depois mudou-se para Nova York, a fim
de ficar junto do pai e da milit�ncia pol�tica na cidade
grande. E foi gra�as � influ�ncia de Harrison George no
Partido Comunista norte-americano que Victor viajou para a
Uni�o Sovi�tica, onde estudou eletr�nica e especializou-se
em radiotelegrafia. No final de 1934, quando o Comintern
decidiu apoiar a planejada insurrei��o no Brasil, Victor Allen
Barron foi escolhido para uma miss�o espec�fica: montar
uma poderosa esta��o de r�dio clandestina para que os
revoltosos pudessem comunicar-se entre si, internamente,
no Brasil. A pot�ncia do equipamento deveria ser suficiente
tamb�m para atingir Moscou: atrav�s do r�dio o Comintern
acompanharia o desenrolar dos acontecimentos no Rio de
Janeiro.
Al�m dos Berger, dos Ghioldi e de Barron, outros dois
casais haviam aportado no Rio naquele come�o de 1935,
sob as ordens do Comintern. Para cuidar das finan�as da
opera��o vieram os belgas L�on-Jules Vall�e e sua mulher,
Alphonsine, com os nomes verdadeiros. Uma atribui��o
perigosa ficaria a cargo de um alem�o, Franz Paul Gruber �
lidar com explosivos e sabotagem. Sua mulher, Erika,
exerceria eventuais tarefas como datil�grafa ou motorista.
A dire��o do Comintern relutara durante v�rios meses em
aprovar a insurrei��o no Brasil. Apesar das dezenas de
informes e relat�rios triunfalistas que recebia de Miranda, o
secret�rio-geral do partido, o ceticismo dos dirigentes
sovi�ticos era grande. Maior ainda, por�m, era a sedu��o
que exercia sobre eles a perspectiva de ver um pa�s com as
dimens�es do Brasil, �rea de influ�ncia cada vez mais
cobi�ada pelos Estados Unidos, transformado numa
rep�blica popular e socialista. T�o grande era o otimismo de
Miranda com o que imaginava ser uma situa��o pr�revolucion�ria
que ele acabou por derrubar a incredulidade
do secret�rio do Comintern: Dmitri Manuilski chegou a
pregar em seu gabinete, no final de 1934, um gigantesco
mapa do Brasil coberto de alfinetes coloridos, indicando os
pontos do pa�s em que � segundo os relatos que recebia do
Partido Comunista brasileiro � a revolu��o explodiria. A
prova mais eloquente de que Miranda conseguira vencer a
descren�a de Moscou estava na larga experi�ncia da equipe
enviada ao Brasil. Apesar dos atritos com St�lin, Arthur
Ewert estava reabilitado. E a Uni�o Sovi�tica n�o destacaria
um pioneiro da revolu��o comunista internacional para uma
aventura inconsequente.
6
Come�a a conspira��o
Durou pouco o veraneio de Olga e Prestes na confort�vel
casa de Paraventi �s margens da represa Guarapiranga. Em
menos de uma semana o emiss�rio retornou do Rio com o
sinal verde de Miranda para que o casal rumasse para a
capital. Celestino Paraventi, que os cercara de todas as
gentilezas, insistiu nas vantagens de viajarem com ele, no
carro �ltimo tipo. �Nenhum policial vai imaginar que uma
limusine de v�rios contos de r�is est� levando dois
comunistas�, dizia bem-humorado. Ele at� se antecipara,
cometendo mais uma de suas loucuras: mandara um
mec�nico de confian�a furar cinco orif�cios no porta-malas
do autom�vel, para a eventualidade de transport�-los ali.
Mas os h�spedes fincaram p� e seguiram viagem com a
mesma discri��o com que tinham chegado at� S�o Paulo:
iriam para o Rio de t�xi.
A decis�o quase colocou tudo a perder. No meio da noite,
quando se aproximavam da divisa entre S�o Paulo e o
estado do Rio, uma barreira policial de rotina parou o carro.
A excessiva preocupa��o de Olga com sua bolsa despertou
a aten��o do policial, que resolveu fazer uma revista mais
rigorosa. L� dentro ele encontrou um min�sculo rev�lver
com cabo de marfim. Prestes tentou de tudo para evitar
problemas maiores: ofereceu dinheiro, conversou
amistosamente com o guarda, mas foi in�til. O policial
decidiu �confiscar� informalmente o rev�lver, opera��o que
acabou por faz�-lo esquecer de vistoriar os documentos do
casal. Dali at� o Rio de Janeiro, a �nica arma em poder dos
dois era a pistola de que Prestes nunca se separava.
O trajeto entre a entrada da cidade e o hotel no bairro de
Botafogo foi suficiente para maravilhar Olga Benario. Com
1,5 milh�o de habitantes, o Rio estava longe de ser uma
metr�pole cosmopolita como Nova York ou Berlim, mas ela
n�o teve d�vidas de que estava diante da mais bela cidade
que j� vira. Pela primeira vez Olga encontrava uma
paisagem natural t�o luxuriante. Da pra�a Paris, no come�o
do Flamengo, era poss�vel ter uma ideia geral daquele
exagero: � direita, montanhas cobertas de vegeta��o; �
esquerda, quil�metros de praias de areia fin�ssima.
Espremida no meio, a cidade, seus casar�es coloniais, os
bem recortados jardins imitando Versalhes e incont�veis
igrejas de todos os tamanhos e estilos. Ao fundo,
emoldurando aquela vis�o paradis�aca, o perfil do P�o de
A��car. Saindo da praia, o carro meteu-se no meio do
casario, tomou uma rua pequena com as duas cal�adas
pontilhadas de palmeiras alt�ssimas, e seguiu pela rua
Marqu�s de Abrantes, at� um pequeno hotel onde um
apartamento fora reservado para o casal Vilar.
No mesmo hotel onde haviam ficado Arthur Ewert e Elise,
Olga e Prestes passavam os dias selecionando an�ncios de
casas ou apartamentos para alugar. Como os Ewert
tivessem escolhido uma casa na rua Paul Redfern, em
Ipanema, a poucos passos da praia, Olga sugeriu, com uma
planta da cidade na m�o, que procurassem um im�vel nas
imedia��es. N�o demorou muito para que o encontrassem:
os classificados do Jornal do Brasil anunciavam uma casa de
dois andares na rua Bar�o da Torre, a duas quadras dos
Ewert. Propriedade do su��o Eurisch Sommer, a casa estava
alugada a um engenheiro qu�mico alem�o, funcion�rio dos
laborat�rios Bayer. Como muitos de seus patr�cios, ele
estava retornando � Alemanha: Hitler arrebanhava pelo
mundo os melhores quadros t�cnicos de seu pa�s,
provavelmente imaginando as necessidades que o esfor�o
de guerra iria demandar. O alem�o queria transferir o
contrato de aluguel, deixando para os novos inquilinos tudo
que havia na casa: m�veis, geladeira, fog�o, talheres,
pratos, panelas, roupa de cama � ficava at� a empregada
dom�stica. Al�m de todas essas facilidades, o fato de o
antigo morador ser estrangeiro facilitava a encena��o:
afinal, para a vizinhan�a, sa�ra uma fam�lia de estrangeiros
e entrava outra fam�lia de estrangeiros.
A circunst�ncia de que o sr. e a sra. Vilar n�o fossem
brasileiros n�o deveria, em princ�pio, causar maiores
preocupa��es. Nos doze meses anteriores � chegada deles,
dos Ewert, dos Vall�e, dos Ghioldi, dos Gruber e de Barron,
haviam entrado no Rio de Janeiro como imigrantes nada
menos que 15 mil estrangeiros, dos quais 11 mil eram
europeus. Olga e Prestes poderiam, assim, misturar-se
facilmente aos 1700 alem�es e 5 mil portugueses que
haviam trocado a Europa em crise por um Rio de Janeiro
onde as oportunidades pareciam ser mais animadoras. Al�m
disso, o bairro de Copacabana (do qual Ipanema fazia parte)
contava, entre seus 30 mil habitantes, com um n�mero
desproporcional de turistas e imigrantes de todas as partes
do mundo, o que certamente facilitaria a circula��o e as
atividades dos enviados do Comintern.
Devidamente instalados na casa da Bar�o da Torre, Olga e
Prestes encontraram-se pela primeira vez com seus
companheiros na casa dos Ewert, e ali mesmo distribu�ram
as tarefas iniciais, atribu�das ao casal Gruber: Erika
trabalharia como datil�grafa na casa de Ewert e, quando
necess�rio, como motorista dos Vilar. Gruber, t�cnico em
explosivos, instalaria num pequeno cofre da casa de Prestes
e Olga um violento sistema de alarme, para impedir o
acesso de estranhos ao dinheiro e � documenta��o ali
depositada. Victor Barron anunciou que come�ara a cumprir
sua tarefa desde o primeiro dia na cidade: depois de
minucioso levantamento das lojas especializadas em artigos
el�tricos, tanto do Rio como das cidades vizinhas, vinha se
dedicando a comprar em cada uma delas uma pe�a
diferente para o radiotransmissor que montava no quarto de
empregada, em seu apartamento alugado de Copacabana.
Como fachada, Barron passava por um playboy milion�rio
em intermin�veis f�rias no Rio de Janeiro. Sempre vestido
com bem cortados ternos de linho branco e chap�us e
gravatas importadas, ele completava o disfarce circulando
num car�ssimo carro do ano, um Graham Page. Para todos
os efeitos, Barron representava uma ind�stria norteamericana
de m�quinas e, nas horas vagas, era jornalista.
Apesar da aparente seguran�a em que se encontravam
todos, o grupo deliberou tomar uma iniciativa para afastar
de vez as suspeitas, da opini�o p�blica e da pol�cia, de que
Lu�s Carlos Prestes estivesse no Brasil. Nos primeiros dias de
maio uma multid�o lotou o Sal�o das Classes Laboriosas,
situado na rua do Carmo, no centro de S�o Paulo, para
participar de uma sess�o solene da rec�m-fundada Alian�a
Nacional Libertadora (anl). Logo depois de instalados os
trabalhos, o historiador comunista Caio Prado J�nior deu a
palavra ao tenente Tim�theo Ribeiro da Silva, que passou a
ler �um importante documento que acaba de ser enviado da
Espanha ao presidente da Comiss�o Provis�ria da Alian�a
Nacional Libertadora, comandante Hercolino Cascardo�.
Tratava-se de uma longa carta, datada do dia 25 de abril �e
escrita em Barcelona�, na qual Lu�s Carlos Prestes
anunciava sua ades�o � anl. Embora a data e a origem da
carta fossem falsas � Prestes n�o tinha estado em
Barcelona e no dia 25 de abril encontrava-se no Brasil �, o
seu conte�do era aut�ntico.
Nela, Prestes dizia estar acompanhando �pela leitura dos
jornais� a forma��o daquele movimento de massas e
justificava a demora em aceitar a indica��o de seu nome
para a presid�ncia de honra da anl, ocorrida na sess�o do
dia 30 de mar�o daquele ano. Seu inconfund�vel estilo duro
e agressivo afastaria as suspeitas de que o documento
pudesse ser ap�crifo: �Sem conhecer os iniciadores desse
movimento, e habituado j� ao uso desavergonhado e
demag�gico que fazem do meu nome os politiqueiros
brasileiros, quando desejam enganar as massas, esperei
receber informa��es mais completas antes de lhe escrever
estas linhas�, dizia ele, logo no in�cio. �Hoje tenho j� em
m�os dados mais seguros sobre a nova organiza��o e a
confirma��o de que meu nome surgiu, realmente, de
maneira espont�nea, do seio das pr�prias massas que
quiseram, evidentemente, desta maneira, dar � anl um
car�ter anti-imperialista, combativo, revolucion�rio.� Ap�s
copiosa an�lise da situa��o pol�tica brasileira, Prestes relata
sua experi�ncia de tr�s anos na urss, �ajudando a construir
o socialismo�, e dirige-se �ao povo do Brasil, a todos os
aderentes da anl, aos oper�rios, camponeses, soldados e
marinheiros, aos estudantes, aos intelectuais honestos, �
pequena burguesia das cidades, enfim, a todos os que
sofrem, cada dia mais, com a situa��o de mis�ria e de fome
em que se encontra o Brasil�. Interrompido a cada
par�grafo pelos aplausos, o tenente Tim�theo l�, por fim, a
ades�o triunfal: �Adiro � anl. Nela quero combater lado a
lado com todos os que, n�o estando vendidos ao
imperialismo, desejem lutar pela liberta��o nacional do
Brasil, com todos os que queiram acabar com o regime
feudal em que vegetamos e defender os direitos
democr�ticos que v�o sendo sufocados pela barb�rie
fascista ou fascistizante�.
Com pouco mais de um m�s de vida, a Alian�a Nacional
Libertadora alcan�ara indiscut�vel sucesso. Um ato
semelhante ao do Sal�o das Classes Laboriosas havia sido
realizado na v�spera no Est�dio Brasil, no centro do Rio de
Janeiro, e um dos fundadores da anl, o jornalista Benjamin
Cabello, lera a carta de Prestes para um p�blico muitas
vezes maior que o de S�o Paulo. Desde a Revolu��o de
1930, aquele era o primeiro movimento pol�tico de car�ter
nacional que surgia no pa�s, e dessa vez atraindo os mais
diversos setores sociais e pol�ticos, com um objetivo
comum: lutar contra o fascismo, o imperialismo, o
subdesenvolvimento e os grandes latif�ndios. Essa
verdadeira cruzada reuniu comunistas, socialistas, liberais,
crist�os, oper�rios, profissionais liberais, e um grande
n�mero de militares egressos das experi�ncias revoltosas
de 1922 e 1924.
A partir de seu lan�amento p�blico no final de mar�o de
1935, no Teatro Jo�o Caetano, no Rio, quando o jornalista
Carlos Lacerda prop�s o nome de Prestes para a presid�ncia
de honra, a anl incendiou o pa�s. Dezenas de milhares de
pessoas batiam �s portas de suas �assembleias estaduais�
para se filiarem e incorporavam-se aos atos p�blicos que se
multiplicavam pelas pra�as de todo o Brasil. Centenas de
n�cleos surgiram em v�rios estados, e os mais euf�ricos
avaliavam o n�mero de filiados em mais de 1 milh�o. A
cada dia, pelo menos 3 mil novos interessados pediam
inscri��o. A carism�tica e mitol�gica figura de Prestes na
presid�ncia de honra estimulava a agita��o aliancista, ainda
que a maioria daqueles que se agregavam � anl o
conhecesse apenas de fotos e desenhos, quase sempre com
a barba negra e as botas de cano alto do tempo da Coluna.
Como dirigentes nacionais do movimento foram
escolhidos o comandante da Marinha Roberto Sisson, seu
companheiro de arma Hercolino Cascardo (revolucion�rio de
1924 e de 1930 e ex-interventor do Rio Grande do Norte em
1931), o jornalista Benjamin Cabello, o m�dico Manuel
Ven�ncio Campos da Paz e o advogado Francisco
Mangabeira � todos de alguma forma ligados ao Partido
Comunista. Em S�o Paulo a dire��o caberia a Miguel Costa,
companheiro de Prestes no comando da Coluna, ao
historiador Caio Prado J�nior e ao intelectual Abguar Bastos.
No Rio Grande do Sul foram eleitos o m�dico e escritor
Dyon�lio Machado e o capit�o do Ex�rcito Agildo Barata,
ambos comunistas. A organiza��o da Alian�a no Nordeste
tamb�m ficaria entregue a militantes do Partido Comunista:
Sylo Meirelles, membro do Comit� Central, Agliberto Vieira
de Azevedo, aluno da Escola Militar do Realengo, e o
campon�s Greg�rio Bezerra. Embora congregando
lideran�as oper�rias e camponesas como Bezerra, a anl era
fundamentalmente um movimento sustentado por
militantes e dirigentes vindos da classe m�dia, a tal ponto
que o comandante Roberto Sisson chegou a se referir �
pequena burguesia como �a for�a revolucion�ria da Alian�a
Nacional Libertadora�. No entanto, para alguns de seus
dirigentes, como Caio Prado J�nior, a aproxima��o da anl
com o Partido Comunista permitiria que este realizasse o
trabalho de liga��o com as massas oper�rias. Em pouco
tempo a anl come�ava a dar cria: de seus n�cleos surgiriam
o Clube da Cultura Moderna, a Liga de Defesa da Cultura
Popular e a Uni�o Feminina do Brasil. A plataforma e,
principalmente, as atividades de rua dos aliancistas
passaram a ser divulgadas no Nordeste pelo di�rio recifense
Folha do Povo, no Rio de Janeiro por A Manh� e
A Marcha, e em S�o Paulo por A Plateia.
Simultaneamente ao trabalho desenvolvido pela Alian�a
no Brasil afora, o Partido Comunista se infiltrava nos
quart�is. A anistia de 1934 permitira que os jovens oficiais
participantes das revolu��es anteriores voltassem � ativa, e
muitos deles eram militantes comunistas. A dire��o
reconhecera que, paradoxalmente, era mais f�cil construir o
partido nos quart�is do que nas f�bricas, e empenhou-se
nisso. Os comunistas tinham bases em quase todas as
guarni��es mais importantes, aproveitando-se das divis�es
e do enfraquecimento da disciplina que a Revolu��o de
1930 provocara nas For�as Armadas. Todas as manh�s, cada
comandante era afrontado com a presen�a, sobre sua mesa
de trabalho, de um exemplar de jornal clandestino de
agita��o comunista. No Ex�rcito era o Uni�o de Ferro, na
Aeron�utica o Asas Vermelhas, na Marinha o Tri�ngulo
Vermelho. O forte impulso pequeno-burgu�s dos jovens
oficiais fazia com que se preocupassem exclusivamente
com a agita��o, descuidando de angariar o apoio de seus
camaradas � revolu��o popular que sonhavam organizar.
Nas discuss�es que tinham em casa diariamente, os dois
sozinhos, ou quando o grupo se reunia na casa de Arthur
Ewert, Olga e Prestes pressentiam que no Brasil os fatos
amea�avam desmentir as experi�ncias e a teoria
revolucion�rias: a vanguarda da revolu��o, pelo que
sabiam, era a classe oper�ria; mas ali o que surgia como
vanguarda era uma extra��o militar de origem pequenoburguesa.
Nem toda a jovem oficialidade, contudo, estava
comprometida com a revolu��o. No dia em que, metidos no
trabalho de aliciamento, os tenentes Lauro Fontoura, Edwar
Prado e Ilcon Cavalcante, do Centro de Prepara��o de
Oficiais da Reserva (cpor), tentaram ganhar para as ideias
de Prestes e da anl o jovem primeiro-tenente S�lvio Frota �
que, nos anos 1970, seria ministro do Ex�rcito e tentaria ser
presidente da Rep�blica � for�a �, o que come�ou como
uma pac�fica conversa pol�tica quase acaba em tiroteio. Ao
perceber que pediam sua ades�o a um movimento de
esquerda, S�lvio Frota desabotoou o coldre e bateu na
pistola, furioso:
� Olha, Fontoura, comunismo comigo � quest�o de vida
ou morte. Aqui no cpor, se tentarem fazer baderna, voc�s
ser�o recebidos a bala. Enquanto eu estiver vivo, comunista
n�o entra no cpor.
Quando informa��es sobre epis�dios assim chegavam �s
reuni�es do grupo, Rodolfo Ghioldi manifestava sua
preocupa��o com o peso cada vez maior dos militares na
Alian�a. �Temos que fazer honra aos militares, que � gente
de muita consci�ncia�, dizia ele, �mas se o proletariado n�o
tiver um papel preponderante, n�o vejo muito futuro na
organiza��o popular e na revolu��o.� Ghioldi reconhecia, no
entanto, que a arregimenta��o provocada pela anl n�o tinha
precedentes na Am�rica do Sul. Habituado a certa disciplina
no trabalho pol�tico, ele se surpreendia com a
heterogeneidade e o estilo da milit�ncia aliancista. Cada
reuni�o da dire��o comunista era temperada com um novo
epis�dio c�mico que ele presenciara ou ouvira contar. Um
dia era a hist�ria de um militante esp�rita do Rio Grande do
Norte: homem valente, tinha estado na Coluna e tomara um
munic�pio de armas na m�o, queria fazer uma reforma
agr�ria radical. Quando se encontrava com Ghioldi, metia a
m�o no bolso e exibia um ma�o de fotos emba�adas, que
ele jurava serem de almas de amigos mortos... que ele
mesmo fotografara. De outra feita Ghioldi tivera de cuidar
para que n�o dessem a palavra a certo aliancista, orador
fogoso, que terminava seus discursos nos atos p�blicos
dando �vivas � pequena burguesia�.
O crescimento da anl em todo o pa�s come�ou a assustar
o governo. O pretexto de que o presidente Get�lio Vargas
precisava para conter a mar� nacional contra si surgiria
mais depressa do que o esperado. No in�cio de junho a
Alian�a impediu, pela for�a, a realiza��o em S�o Paulo de
um com�cio da A��o Integralista Brasileira, organiza��o de
car�ter fascista dirigida por Pl�nio Salgado. Dias depois, os
integrantes de uma manifesta��o aliancista em Petr�polis,
no estado do Rio, organizaram uma passeata at� a porta da
sede local dos integralistas. A escaramu�a entre as duas
fac��es terminou com a morte do oper�rio aliancista
Leonardo Candu e, em consequ�ncia disso, a cidade foi
paralisada por uma greve geral. No dia 5 de julho, durante
os festejos do 13o anivers�rio da revolta dos tenentes do
Forte de Copacabana, anunciou-se que chegara �de Paris ou
de Barcelona� um manuscrito de Lu�s Carlos Prestes
comemorativo da data. A dire��o da anl tentou alugar o
mesmo Est�dio Brasil onde fora lida a primeira carta de
Prestes, mas Vargas conseguiu impedir a realiza��o do
com�cio. O mesmo se deu com o audit�rio da Feira de
Amostras. A incr�vel capacidade de mobiliza��o da Alian�a
no Rio de Janeiro colocou nas ruas dezenas de milhares de
pessoas que se deslocavam do est�dio para a feira, da feira
para a sede da anl, a poucos quarteir�es de dist�ncia uns
dos outros, em busca de um lugar para ouvir a carta do
Cavaleiro da Esperan�a. Da casa na Bar�o da Torre, Olga e
ele acompanhavam, pelo r�dio ou por informes de
militantes do partido, a movimenta��o popular no centro da
cidade. No meio da tarde veio a ordem para que os
manifestantes se dirigissem � C�mara dos Deputados. Um
representante do Paran�, Ot�vio da Silveira, o mesmo que
anunciara no Congresso Nacional a funda��o da Alian�a,
leria da tribuna o manifesto de Prestes. Com a cidade
tomada por tropas do Ex�rcito e agentes da pol�cia pol�tica,
a massa ocupou as galerias e as ruas em torno da C�mara.
O manifesto era dur�ssimo. Denunciava a �decomposi��o
do governo de Vargas e de seus asseclas nos estados� e
dizia que a luta que se travava no Brasil era �entre os
libertadores do pa�s, de um lado, e do outro os traidores a
servi�o do imperialismo�. Atribuindo � anl a condi��o de
herdeira dos tenentes de 1922, Prestes propunha a
organiza��o e prepara��o ativa das massas �para o
momento do assalto�, e anunciava que �a situa��o � de
guerra, e cada um deve ocupar o seu posto�. O audit�rio e a
multid�o que ouvia na rua deliraram quando o deputado
Ot�vio da Silveira leu as �ltimas linhas do documento:
�Abaixo o fascismo! Abaixo o governo odioso de Vargas! Por
um governo popular, nacional e revolucion�rio! Todo o poder
� Alian�a Nacional Libertadora!�. Do lado de fora, 150 mil
exemplares do jornal aliancista A Plateia, de S�o Paulo,
trazendo a �ntegra do manifesto, eram disputados
freneticamente pelos populares. A vaga humana seguiu at�
a sede da Alian�a, onde os que conseguiram entrar
inauguraram uma foto de Lu�s Carlos Prestes.
O manifesto era, sob medida, o pretexto de que Vargas
necessitava. Menos de uma semana ap�s sua leitura, no dia
11 de julho, o presidente da Rep�blica recorria � rec�meditada
Lei de Seguran�a Nacional para decretar a
ilegalidade, em todo o pa�s, da Alian�a Nacional Libertadora.
O golpe desferido pelo governo abalou o movimento. Boa
parte dos liberais que o compunham submeteu-se ao
decreto oficial e abandonou a Alian�a, partindo para a
cria��o de outros partidos ou grupos pol�ticos. A tentativa
de realizar, em S�o Paulo, um ato de protesto contra o
decreto de Vargas foi duramente reprimida pela pol�cia: o
ato nem chegou a come�ar. A partir de julho uma nova anl,
ilegal e mantida basicamente pelos comunistas
revolucion�rios, passava a funcionar nos subterr�neos.
Embora estivesse na clandestinidade, Olga Benario
aproveitava o fato de ser desconhecida da pol�cia brasileira
para circular com total desenvoltura. Quase sempre
acompanhada de sua amiga Sabo, mulher de Ewert, tornouse
frequentadora ass�dua da praia de Ipanema e dos teatros
e cinemas da cidade, pela qual a cada dia mais se
apaixonava. Nos cinemas, teatros e cineteatros espalhados
pelo centro e Zona Sul, as duas viam desde filmes
adocicados como A alegre divorciada, com Ginger Rogers e
Fred Astaire, at� as densas pe�as de Oduvaldo Vianna. De
quando em quando, o pr�prio Prestes arriscava um passeio
pela praia com Olga, na certeza de que suas �ltimas fotos
nos arquivos policiais mostravam um homem barbudo com
a longa cabeleira dividida ao meio.
Numa dessas incurs�es, entretanto, ele chegou a temer
que pudesse ser reconhecido. Caminhando entre as
banhistas que exibiam a �ltima moda chegada ao Rio � os
mai�s sem mangas que deixavam � mostra os sensuais
ombros femininos � deu de cara com o capit�o Paulo
Kruger da Cunha Cruz, que passara algumas semanas na
Coluna, no Maranh�o, e agora retornara �s fileiras do
Ex�rcito. O oficial, por�m, passou por eles sem sequer notar
a presen�a de Prestes, que comentaria com Olga:
� Ainda bem que ele estava mais interessado em voc� do
que em mim.
Vestida rigorosamente na moda para manter o disfarce,
Olga cortara o cabelo um pouco abaixo da linha do queixo e,
� sa�da dos teatros, atra�a a aten��o dos homens com seus
vestidos parisienses, que lhe conferiam uma silhueta fina e
elegante. Todos os seus vestidos chegavam ao tornozelo,
conforme as determina��es dos costureiros franceses.
Rapazes de chap�u panam� diminu�am a velocidade de
suas baratinhas quando a viam, para dirigir-lhe respeitosos
e enfatuados galanteios, que nem sempre Olga entendia
direito.
Para as primeiras semanas no Brasil, Olga foi obrigada a
comprar um guarda-roupa de emerg�ncia para ambos, pois
os ba�s despachados de Nova York chegaram com muito
atraso ao Rio de Janeiro. S� Am�rico Dias Leite, o
destinat�rio nominal da carga, poderia retir�-la no escrit�rio
carioca da Wagons Lits Cook, o que obrigou Olga a
incont�veis visitas com ele ao porto at� a chegada do
cargueiro. Para o endere�o de Dias Leite era enviada
tamb�m a correspond�ncia vinda da Europa � sempre em
nome de Ant�nio Vilar, ou de sua mulher, para essa
opera��o rebatizada de Yvonne Vilar.
Os programas sociais de Olga e Sabo somente eram
suspensos nas noites de quintas-feiras e domingos �
quando o �Estado-Maior da Revolu��o� se reunia na casa de
Ewert para avaliar o avan�o do trabalho. Nesses dias Elise
dava folga � empregada dom�stica Deolinda Elias, para que
pudessem conversar � vontade: l� estavam sempre Ewert, o
secret�rio-geral do partido Maciel Bonfim � o Miranda �,
Rodolfo Ghioldi e Prestes. Olga, que falava fluentemente
v�rios idiomas e conseguia se expressar com alguma
facilidade em portugu�s, trabalhava como int�rprete
simult�nea. Os encontros sempre come�avam no final da
tarde e terminavam antes da meia-noite, e eram regados a
salgadinhos e goles de u�sque. Quando o calor era muito
forte, Ewert brindava os convivas com uma inven��o sua:
um coquetel � base de vinho branco alem�o e suco de
abacaxi.
Foi numa dessas reuni�es que o comando revolucion�rio
decidiu aumentar as medidas de seguran�a em torno de
Prestes. A discri��o com que ele vivia era grande, todos
reconheciam, e, na eventualidade de uma invas�o policial,
os documentos importantes do grupo estariam a salvo pelo
diab�lico sistema de seguran�a montado por Gruber na
casa de Prestes e Olga: na portinhola do cofre, o alem�o
instalara grande quantidade de dinamite e de bombas
incendi�rias, ligadas a um min�sculo sistema de detona��o.
Quem tentasse abrir o cofre sem desativar o mecanismo
certamente voaria pelos ares com todo o conte�do �
dinheiro e documentos � e peda�os da pr�pria casa. Al�m
disso, havia a tranquilizadora presen�a de Olga, que
acompanhava Prestes por toda parte, sempre armada com
uma pistola.
Todos esses cuidados, no entanto, pareciam insuficientes.
Not�cias esparsas publicadas em jornais insinuavam que a
pol�cia desconfiava da presen�a de Lu�s Carlos Prestes em
territ�rio brasileiro. Era preciso fazer alguma coisa, tal como
as duas cartas, para convencer as autoridades de que
Prestes continuava no exterior. Arthur Ewert, como Olga, um
dos mais preocupados com os riscos que Prestes corria no
Brasil, chegou a sugerir que Rodolfo Ghioldi embarcasse no
dirig�vel Graff Zeppelin, ancorado no Rio de Janeiro, e fosse
a Moscou discutir a quest�o com o Comintern, mas a ideia
foi colocada de lado. Semanas depois o grupo saberia que
seus temores eram compartilhados pela alta dire��o
comunista, na Uni�o Sovi�tica.
Nos primeiros dias de setembro, agentes do Intelligence
Service, o servi�o secreto ingl�s, fizeram chegar �s m�os do
capit�o Filinto M�ller, o temido chefe da pol�cia do Distrito
Federal, a edi��o de 25 de agosto do di�rio Pravda, �rg�o
oficial do Partido Comunista da urss, que estampava uma
not�cia tranquilizadora para a pol�cia brasileira. Sob uma
fotografia de corpo inteiro de Lu�s Carlos Prestes � uma foto
antiga, em que ele ainda usava a barba e o cabelo longos
�, o jornal anunciava sua presen�a em Moscou e informava
que pela primeira vez um latino-americano era eleito
membro efetivo da Comiss�o Executiva da Internacional
Comunista. Prestes passava a fazer parte da c�pula
comunista mundial, entre outros, ao lado de St�lin, Dmitri
Manuilski, Georgi Dimitrov, Mao Ts�-tung, Dolores Ib�rruri (a
Pasionaria espanhola), Palmiro Togliatti e Bela Kuhn. Se
Prestes estava em Moscou no S�timo Congresso da
Internacional Comunista, no final de agosto, e se pretendia
retornar ao Brasil, isso s� aconteceria por volta do fim do
ano: a pol�cia brasileira sabia que, com todas as dificuldades
de transporte, uma viagem clandestina da Uni�o Sovi�tica
ao Brasil exigiria, no m�nimo, um par de meses. A tens�o
que tomara conta da pol�cia se desfez com a not�cia do
Pravda. O servi�o secreto ingl�s e o capit�o Filinto M�ller
tinham engolido a isca dos comunistas.
7
�A Revolu��o est� nas ruas�
Olga procurava n�o se intrometer nas quest�es internas
do Partido Comunista e da Alian�a, mas nem por isso
deixaria de manifestar mais de uma vez, a Prestes e a
Rodolfo Ghioldi, sua preocupa��o com alguns fatos que
considerava inexplic�veis. Ela n�o entendia, por exemplo,
como Miranda � a quem Ghioldi se referia como �um tipo
semianalfabeto e sem preparo pol�tico� � pudera chegar a
secret�rio-geral do partido, exercendo influ�ncia e
autoridade sobre tantos intelectuais e militantes com uma
longa hist�ria de lutas. E embora estivesse no partido havia
menos de dois anos, era ele quem dava as cartas, com
poder cada dia maior.
A ilegalidade da Alian�a Nacional Libertadora
transformara um movimento de massas de car�ter nacional
em um aparelho clandestino, praticamente controlado pelo
Partido Comunista, onde era dif�cil identificar quem era s�
aliancista e quem era tamb�m comunista. E a orienta��o
imposta aos que permaneceram na organiza��o era a de
trabalhar com afinco para a insurrei��o que Miranda tanto
anunciara aos dirigentes sovi�ticos. A Lu�s Carlos Prestes
cabia executar na anl as decis�es que o partido tomava.
O Partido Comunista se preparava em todos os sentidos.
Um pequeno mas minucioso servi�o de intelig�ncia foi
montado e por meio dele organizou-se um cadastro com os
nomes de todos os alcaguetes empregados pela pol�cia
pol�tica e dos policiais que militavam na A��o Integralista
Brasileira. Como muitos dos componentes da Coluna Prestes
tivessem ingressado na pol�cia ao retornarem do ex�lio, a
infiltra��o dos comunistas era rica e abundante.
Irregularmente circulava entre o comando revolucion�rio
uma esp�cie de boletim secreto revelando as mudan�as na
pol�cia: quem tinha sido transferido e quem fora admitido,
que investiga��es estavam sendo feitas por Filinto M�ller e
por seu lugar-tenente, o capit�o Miranda Correia, delegado
especial de Seguran�a Pol�tica e Social. Os recursos
materiais para manter a m�quina partid�ria em
funcionamento n�o constitu�ram problema para os
comunistas. Al�m do dinheiro trazido por Olga e Prestes e
dos fundos controlados por L�on Vall�e, o grupo recebia,
atrav�s da Argentina, gordas e regulares remessas de
d�lares � que podiam ou n�o ser verdadeiros, pois o
Comintern tinha � sua disposi��o alguns dos mais
talentosos gr�ficos alem�es. Por outro lado, os gastos
tamb�m eram grandes: um dos balancetes do partido
revelava que, em apenas um dos meses do segundo
semestre de 1935, a manuten��o do Partido Comunista
chegou a setenta contos de r�is � suficientes para a
compra de quinze autom�veis americanos de luxo.
A predomin�ncia do Partido Comunista sobre a Alian�a,
entretanto, somada � linha insurrecional que passou a
orientar o movimento, acarretaria a perda de alguns dos
mais valiosos aliados de Prestes. Em agosto ele recebe uma
carta do general Miguel Costa, seu companheiro da Coluna,
que partilhara com Caio Prado J�nior a dire��o da Alian�a
Nacional Libertadora em S�o Paulo. O militar faz uma
an�lise do momento pol�tico, n�o poupa cr�ticas a Prestes
pelo teor do manifesto de 5 de julho e se coloca contra a
tese da insurrei��o:
Vem o 5 de julho. Voc�, naturalmente pouco ou mal informado, supondo que
o movimento da ANL tivesse tanto de profundidade como de extens�o, lan�ou
o seu manifesto, dando a sua palavra de ordem de �todo o poder � ANL�.
Brado revolucion�rio, subversivo, s� aconselhado nos momentos que
devessem preceder a a��o. Grito que, para estar certo, deve ser respondido
pela insurrei��o [...] Veio o decreto do fechamento da ANL e este movimento
popular n�o reagiu nem com duas greves organizadas. Os companheiros do
Ex�rcito e da Marinha que se encontravam � frente da agita��o est�o uns
presos, outros transferidos para os confins do Judas. As sedes da ANL achamse
fechadas, seus membros t�m que se agitar na ilegalidade, com
movimentos muito mais lerdos, muito mais dif�ceis, muito menos eficientes.
Acho que a sua palavra, no momento, era indispens�vel. Mas, se voc�
tivesse, em vez de pregar o assalto ao poder, recomendado a mais viva
congrega��o em torno da Alian�a, n�o se teriam precipitado os
acontecimentos. Habituando-se a massa popular a cumprir as palavras de
ordem, aos poucos, ela cumpriria a da tomada do poder quando a dire��o,
mais tarde, assim o determinasse. Mas tal ordem s� deveria ser dada quando
o governo j� se encontrasse na impossibilidade material de reagir. O contr�rio
foi como atirar uma crian�a desarmada contra um elefante.
O tom da carta � de despedida. Miguel Costa termina
propondo a continua��o da luta dentro da legalidade,
mediante a cria��o de organiza��es partid�rias nos estados,
com programas id�nticos ao da anl, mas com outra
denomina��o, todas devidamente inscritas nos tribunais
eleitorais. Esses partidos, segundo a sugest�o, deveriam
manter uma organiza��o secreta, ao lado da fachada legal,
�para preparar uma rea��o efetiva das massas no caso de
um golpe fascista��. A resposta de Prestes s� viria em
meados de outubro. Numa carta de duzentas linhas
datilografadas, escrita em linguagem t�o am�vel quanto a
do general, Prestes concorda com algumas das cr�ticas
feitas pelo velho amigo, diverge em outros pontos, convidao
a permanecer na anl e imagina-o chefiando o governo de
S�o Paulo na condi��o de aliancista. Em um ponto, contudo,
a diverg�ncia permanece � Prestes mant�m a defesa
intransigente da tomada do poder:
Quanto ao tempo de que dispomos para a prepara��o da luta pelo poder,
segundo todas as informa��es que tenho de diversos pontos do pa�s, � coisa
que se torna cada dia mais pr�xima. Seria leviandade falar aqui de datas,
mas as condi��es objetivas indicam que de um momento para outro podemos
estar frente a acontecimentos de tal envergadura que sejamos obrigados a
p�r na ordem do dia a quest�o da tomada do poder. Por isso a import�ncia do
trabalho conspirativo, j� n�o s� de arregimenta��o, como de organiza��o do
movimento. Neste sentido pe�o-lhe que continue a apoiar e a ajudar, em tudo
o que lhe for poss�vel.
Cuidadoso com a seguran�a, Prestes termina a carta com
um despiste:
Naturalmente, se os acontecimentos se precipitarem teremos ocasi�o de nos
vermos e, portanto, de diretamente combinarmos as medidas de maior
import�ncia, porque no momento da luta ou pouco antes estarei no Brasil.
Pe�o-lhe transmitir aos companheiros de S�o Paulo as minhas sauda��es
revolucion�rias e abra�ar em meu nome os velhos companheiros da Coluna.
N�o havia d�vidas de que, para Prestes, a revolu��o
estava pr�xima. Nas semanas seguintes, entretanto, n�o
haveria o menor ind�cio de que algo de anormal estivesse
ocorrendo no pa�s. Curiosamente, not�cias �plantadas� em
jornais conservadores denunciavam a presen�a de Prestes
ora no Nordeste, ora em Tr�s Rios ou em Barra do Pira�, no
interior do estado do Rio. A cada alarme falso, o jornal
paulista A Plateia, que sobrevivera ao fechamento da
Alian�a Nacional Libertadora, estampava um desmentido:
�Prestes, toda gente o sabe, acha-se na Europa, tendo sido
as suas �ltimas cartas para o nosso pa�s datadas de
Barcelona e de Paris�.
Nem o pr�prio Prestes, no entanto, poderia imaginar que a
insurrei��o explodiria t�o cedo e de forma t�o imprevis�vel.
Ao meio-dia de 23 de novembro, os soldados e sargentos do
21o Batalh�o de Ca�adores de Natal, capital do Rio Grande
do Norte, tomaram a guarni��o militar da cidade,
prenderam os poucos oficiais que ali se encontravam, j� que
era s�bado, e entregaram o comando da unidade ao
sargento Dinis Henriques e ao cabo Estev�o. O governador
Rafael Fernandes, seu secretariado, os policiais de plant�o
na cidade e os oficiais que se encontravam fora do quartel
dividiram-se na fuga: parte escondeu-se na casa do c�nsul
honor�rio do Chile, alguns se espremeram no avi�o Croix du
Sud da companhia Lat�co�re, que estava na cidade, e o
restante decidiu resistir no quartel da For�a P�blica
estadual. Os oficiais presos foram encarcerados em navios
que se encontravam atracados no porto.
Uma �nica edi��o feita �s pressas do jornal Liberdade
anunciava que o poder estava nas m�os da Alian�a Nacional
Libertadora, que acabara de instalar o Governo Popular
Revolucion�rio, cujo comando era composto pelo oper�rio
Jos� Praxedes de Andrade, o sargento Quintino de Barros, o
carteiro Jos� Macedo, o estudante Jo�o Galv�o e o
funcion�rio p�blico Lauro Lago. Foi um misto de insurrei��o
pol�tica e carnaval: o povo aderiu � revolta, invadiu os
quart�is ocupados, roubou os fardamentos guardados nos
dep�sitos e saiu pelas ruas fantasiado de soldado. Os
transportes urbanos passaram a ser gratuitos por decreto
revolucion�rio. Os cofres dos bancos foram arrombados e o
dinheiro � milhares de contos, uma fortuna � expropriado
e distribu�do entre a popula��o. A �zona liberada� estendeuse
por mais meia d�zia de munic�pios do interior, mas a
revolu��o durou apenas cinco dias. Na quarta-feira, tropas
federais e de estados vizinhos retomaram a capital e as
cidades ocupadas, reempossaram o governador e
prenderam centenas de revoltosos.
Durante aqueles cinco dias o governo tivera que sufocar
outro levante militar feito em nome da Alian�a Nacional
Libertadora. No domingo, dia 24, os tenentes Lamartine
Coutinho e Sylo Meirelles tomaram o 29o Batalh�o de
Ca�adores de Recife, em Pernambuco, e resistiram durante
48 horas, no quartel e nas ruas da cidade, at� serem
cercados e dominados por tropas oficiais.
No Rio de Janeiro, Rodolfo Ghioldi empalideceu ao
comprar os jornais de domingo com as not�cias de Natal.
Correu � casa de Prestes, que acabara de ser informado dos
acontecimentos. Acompanhados de Olga, dirigiram-se �
casa de Ewert e decidiram entrar em contato com Miranda o
mais r�pido poss�vel, para que os quatro tomassem as
medidas necess�rias diante daqueles eventos inesperados.
Miranda, todavia, somente seria localizado no fim da tarde
de segunda-feira, dia 25. Prestes j� tinha opini�o formada a
respeito do que fazer, mas por uma quest�o de disciplina
partid�ria n�o quis agir sem antes deliberar com o
secret�rio do partido. A reuni�o acabou sendo realizada na
casa de Olga e Prestes, e entrou pela madrugada. Dela
participaram o casal, Ewert, Ghioldi e Miranda. A princ�pio,
Prestes era o �nico a defender o levante no Rio de Janeiro,
insistindo em que n�o poderiam abandonar os
companheiros de Natal e Recife. Ewert e Ghioldi apenas
ouviam e Miranda relutava. � medida que Prestes
relacionava as guarni��es dispostas � insurrei��o � a Vila
Militar, a Escola Militar, a Escola de Avia��o �, o secret�rio
do partido foi cedendo. No meio da reuni�o ele pr�prio j�
estava t�o seguro do triunfo da revolu��o que prop�s a
convoca��o de uma greve geral em apoio � revolta. Nesse
momento Rodolfo Ghioldi interrompeu o sil�ncio que
mantivera at� ali:
� Eu voto contra a insurrei��o e contra a greve geral. A
an�lise que fa�o indica que n�o temos condi��es de realizar
nem uma nem outra coisa. Tenho tido contato com os
companheiros e sei que isto s� existe no papel.
Ewert assentiu com a cabe�a. Foi a� que Prestes jogou
sobre a mesa aquilo que Ghioldi chamaria de �o �s de ouros
escondido na manga�. Solene, ele informou a seus
companheiros:
� A Marinha de Guerra est� comprometida conosco e se
fizermos o levante ela toma o poder ao nosso lado.
Os dois estrangeiros se espantaram com a not�cia e a
seguran�a com que foi dada. Ghioldi pediu que Prestes
fizesse a gentileza de repetir o que acabara de dizer. Prestes
insistiu:
� A Marinha de Guerra est� comprometida comigo para
tomar o poder.
Ghioldi e Ewert se curvaram ao argumento. E foi o
argentino quem falou:
� Se � assim, que se fa�a a insurrei��o.
O plano da revolu��o foi detalhado ali mesmo. Prestes
despacharia mensageiros de confian�a a todas as
guarni��es onde havia oficiais � espera de orienta��o e aos
navios da Armada nos quais o partido tinha bases
comprometidas com o levante. O 3o Regimento de
Infantaria, do capit�o Agildo Barata, se levantaria e suas
tropas se dividiriam em tr�s colunas: uma marcharia rumo
ao Arsenal da Marinha, para auxiliar o Batalh�o Naval; outra
se dirigiria ao Pal�cio do Catete, sede do governo, prenderia
o presidente Get�lio Vargas e quem estivesse com ele; uma
terceira tomaria o Pal�cio Guanabara, resid�ncia oficial do
presidente da Rep�blica. Prestes pediu que Miranda
conseguisse algu�m de confian�a para levar uma
mensagem ao capit�o Andr� Trifino Correia, comandante de
um batalh�o em Ouro Preto, no interior de Minas Gerais. E
ali mesmo escreveu um bilhetinho:
Meu caro Trifino:
Estamos frente � Revolu��o. Aqui n�o podemos esperar mais de dois ou
tr�s dias. Conto com a tua energia e decis�o no sentido de dirigir a Revolu��o
em Minas Gerais. Abra�a-te o
Prestes
Com a energia de um comandante, Prestes deu suas
ordens. Instruiu Miranda para que tomasse algumas
provid�ncias na manh� seguinte: primeiro, era necess�rio
arranjar uma nova casa para Olga e ele, na Zona Norte.
Desencadeado o levante, era importante que estivesse em
local de f�cil acesso ao complexo da Vila Militar, no sub�rbio
carioca. Miranda deveria tamb�m orientar Barron para que
este colocasse o aparelho de r�dio em condi��es de
funcionamento. Barron informaria ao Comintern, atrav�s de
mensagem cifrada em morse, da decis�o do levante. A
frequ�ncia em que a esta��o operaria fora distribu�da pelo
pr�prio Prestes, e Recife passaria a comunicar-se com eles a
partir do dia seguinte. Dias depois, entraria no ar o contato
do Bir� Latino-Americano do Comintern, em Montevid�u.
As not�cias que chegavam ao Rio no dia 26 de novembro
sobre os acontecimentos em Recife eram pouco precisas e
contradit�rias. Mas n�o havia d�vidas sobre o sucesso no
Rio Grande do Norte: tanto Natal como as cidades do
interior continuavam sob o controle do Governo Popular
Revolucion�rio � a �nica rea��o fora a de um certo
fazendeiro, o �coronel� Dinarte Mariz, que armara
pessoalmente sua tropa de jagun�os e os enviara para
tentar desalojar os revolucion�rios. Na manh� do dia 26, os
jornais davam destaque � decis�o do presidente Get�lio
Vargas de contra-atacar, decretando o estado de s�tio por
trinta dias em todo o pa�s, �para que o Estado pudesse
defender-se da insol�ncia comunista�. Prestes e Olga
tiveram um dia de atividade febril. Todos os contatos do
partido e os simpatizantes nos quart�is do Ex�rcito, da
Avia��o Militar e da Armada haviam sido avisados da
decis�o do levante. O presumido apoio da Marinha, mais os
levantes do Nordeste e do Norte, devem ter pesado
bastante na decis�o de Prestes, pois, semanas antes, ao
responder a uma carta do comandante Roberto Sisson, ele
dissera n�o acreditar que havia chegado o momento da
tomada do poder. Sisson estava entusiasmado com uma
greve de trabalhadores em Petr�polis, mas Prestes retrucara
prudentemente que �seriam necess�rios muitos Petr�polis�
para que surgissem as condi��es prop�cias.
No final da tarde todos os preparativos estavam
montados. Quando a noite caiu, Prestes e Olga mudaram-se
da casa de Ipanema para a que Miranda arranjara na rua
Correia de Oliveira, em Vila Isabel, a meio caminho da Vila
Militar, a mais importante guarni��o da capital. No
momento em que os revoltosos tomassem as unidades,
bastariam poucos minutos para que Prestes assumisse, da
Vila Militar, o comando do pa�s. Antes de partir, ele
improvisou num cart�o um salvo-conduto para Ewert, cujos
termos davam a medida da sua certeza quanto � vit�ria do
movimento:
Salvo-conduto
O portador deste, sr. Harry Berger (nacionalidade norte-americano [SIC]) �
pessoa para a qual exijo o maior respeito e considera��o.
Rio, 26/XI/35
Lu�s Carlos Prestes
Restava ainda uma �ltima provid�ncia: redigir o manifesto
que seria distribu�do � popula��o, convocando-a para a
revolta. E � com esse panfleto que o Partido Comunista
admite, pela primeira vez, a presen�a de Prestes no pa�s:
POVO BRASILEIRO!
[...] Est� sendo decidida a causa do Brasil e de todos os seus filhos.
Ningu�m poder� permanecer indiferente. N�o se trata de �movimento
comunista�, como apregoa a imprensa vendida ao imperialismo e � camarilha
de Vargas! � a Revolu��o Popular pela Liberta��o Nacional do Brasil que est�
em marcha, dirigida pela Alian�a Nacional Libertadora e seu glorioso chefe
Lu�s Carlos Prestes.
O Partido Comunista do Brasil (Se��o da Internacional Comunista) apoia
com todo o vigor, firmeza e decis�o esse heroico movimento revolucion�rio!
Povo brasileiro! Aproxima-se a hora da vit�ria sobre os seculares opressores
e exploradores do nosso pa�s!
Lu�s Carlos Prestes, o her�i anti-imperialista e antifeudal, o chefe querido
em torno do qual se unem todos os brasileiros, volveu a sua terra, est� entre
n�s e dirige os combates decisivos da Revolu��o Nacional Libertadora.
Comunistas e simpatizantes do Partido! Ocupai vossos postos de combate
com as armas nas m�os, com toda a iniciativa e decis�o. Ningu�m em casa!
Todos nas ruas, nas lutas, nas barricadas, com os soldados e marinheiros do
Brasil! [...] Oper�rios dos transportes e das ind�strias � �s greves e �s lutas
de ruas por vossas reivindica��es e pela liberta��o do Brasil! Camponeses,
colonos, assalariados agr�colas � � luta contra os grandes senhores da terra,
por vossas reivindica��es e para que a terra vos perten�a! Soldados e
marinheiros do Brasil! Com todo o povo libertador, libertemos a nossa p�tria
do jugo imperialista.
[...] Abaixo o governo de trai��o nacional de Vargas e sua camarilha
reacion�ria nos Estados!
Viva a Revolu��o Nacional Libertadora!
Viva o Governo Popular Nacional Revolucion�rio e seu glorioso chefe Lu�s
Carlos Prestes!
Por p�o, terra e liberdade!
Todo o poder � Alian�a Nacional Libertadora!
O Bureau Pol�tico do
Partido Comunista do Brasil
(Se��o da Internacional Comunista)
Movidos por alguma arte do instinto, Prestes e Olga
resolveram que n�o seriam levados para Vila Isabel por
Erika, a jovem mulher de Gruber que at� ent�o servia como
motorista do casal. Para isso, Prestes chamou um velho
amigo seu, o major V�tor C�sar da Cunha Cruz, naquela
�poca cursando a Escola de Comando e Estado-Maior do
Ex�rcito. Embora n�o fosse comunista, Cunha Cruz era de
total confian�a, e, sendo oficial do Ex�rcito, eliminava os
riscos de serem interceptados por alguma patrulha. A
viagem at� as imedia��es da Vila Militar transcorreu sem
nenhum contratempo.
� noite Victor Barron ligou pela primeira vez a enorme
esta��o de r�dio que lhe custara quase um ano de
peregrina��o a dezenas de lojas e cidades diferentes.
Quando as luzinhas coloridas acenderam e o aparelho
come�ou a funcionar, ele buscou em suas anota��es a
frequ�ncia em que deveria sintonizar a esta��o do
Comintern, instalada do outro lado do planeta, em Moscou.
N�o levou muito tempo para transmitir a mensagem cifrada
do comando revolucion�rio, informando que o levante fora
desencadeado. As ondas trouxeram at� o Rio, tamb�m
cifrado, um elogio que o encheu de orgulho. De Moscou, a
dire��o do Comintern desejava pleno �xito � empreitada e
cumprimentava
�o grande bolchevique Victor Barron por seu desempenho�.
A revolu��o comunista brasileira ia come�ar �s tr�s horas
da madrugada.
8
Um espi�o entre os comunistas
A revolu��o come�ou �s tr�s horas da madrugada e
acabou � uma e meia da tarde.
Nenhuma das guarni��es da Vila Militar se levantou. N�o
houve rebeli�o na Escola Militar. Nem no Arsenal da
Marinha. Tampouco no Batalh�o Naval. Preso em Minas
Gerais, o capit�o Trifino Correia sequer recebeu o bilhete de
Prestes: tanto o mensageiro que deveria contat�-lo quanto o
que se dirigia ao Rio Grande do Sul, com id�ntica miss�o,
foram apanhados pela pol�cia antes de sa�rem do Rio de
Janeiro. Rodolfo Ghioldi diria anos depois, melanc�lico:
� A greve geral imaginada por Miranda n�o conseguiu
paralisar ningu�m. E o prometido apoio da Marinha de
Guerra � revolu��o n�o mobilizou nem as barcas da
Cantareira.
A revolta se restringiu ao 3o Regimento de Infantaria,
situado na Praia Vermelha, e � Escola de Avia��o Militar, e
foi sufocada � for�a em poucas horas. O regimento, no
centro da Zona Sul do Rio de Janeiro, ficava espremido entre
tr�s morros. L� dentro, para combater e dominar trezentos
oficiais e cerca de 1700 soldados, o Partido Comunista e a
Alian�a Nacional Libertadora contavam, ao todo, com
menos de trinta homens, entre oficiais e soldados. A miss�o
de comandar a insurrei��o caberia ao valente e aguerrido
capit�o comunista Agildo Barata, que, no entanto, talvez
fosse a pessoa menos indicada para a tarefa: ele tinha sido
transferido do Sul para o Rio havia menos de um m�s e sua
�nica liga��o com a tropa do
3o Regimento residia no fato de estar ali cumprindo pena de
pris�o disciplinar por 25 dias, acusado de tentar organizar a
anl nos quart�is do Rio Grande do Sul.
Todas as tropas federais assentadas no Rio de Janeiro
tinham entrado em rigorosa prontid�o na noite de 23 para
24 de novembro, ap�s chegarem � capital federal
informa��es da tomada de Natal pelos revoltosos. A not�cia
de que Lu�s Carlos Prestes teria sido visto na cidade de
Barra do Pira� fez com que o Comando da Primeira Regi�o
Militar despachasse para l� uma companhia do 2o
Regimento de Infantaria, a fim de prevenir �qualquer
perturba��o da ordem ou surgimento de movimento
subversivo�. No 3o Regimento de Infantaria todo o efetivo
mantinha-se em estado de alerta: com as armas sempre �
m�o, a tropa fardada s� tinha permiss�o para recostar-se
nas camas, sem sequer tirar os coturnos. Os oficiais,
vigilantes, percorriam o quartel de pistola em punho,
madrugada adentro, e exigiam autoriza��o superior at�
para que os soldados fossem ao banheiro. Todos esses
cuidados levantam a suspeita de que o governo soubesse
que a rebeli�o come�aria ali, e �quela hora.
Na hora combinada, o tenente Francisco Leivas Otero
disparou para o ar rajadas de fuzil-metralhadora: era o sinal
para que cada rebelde, em sua companhia, prendesse o
comandante e os oficiais legalistas e assumisse o comando
da tropa. Agildo Barata, cumprindo sua pena no cassino dos
oficiais, prendeu ali mesmo o capit�o Lu�s M�ximo, que
entrou para a hist�ria do levante como o primeiro ref�m e a
primeira v�tima: quando um soldado tentava ajudar Barata a
desarm�-lo, a pistola do oficial legalista disparou, atingindoo
na perna. Ap�s meia hora de tiroteio infernal, os
revolucion�rios tinham o comando do 3o Regimento de
Infantaria. Mas a vit�ria seria ef�mera: �quela hora o
presidente Get�lio Vargas j� havia sido informado dos
acontecimentos por seu ajudante de ordens e futuro genro,
o tenente da Marinha Ern�ni do Amaral Peixoto, despertado
por um telefonema do tenente-coronel Eduardo Gomes,
relatando a exist�ncia de uma rebeli�o na Escola de Avia��o
Militar, ao lado da Vila Militar. Minutos depois, quando o
presidente se encaminhava para o Minist�rio da Guerra,
chegou a not�cia de que o 3o Regimento de Infantaria
tamb�m estava sendo tomado por uma insurrei��o.
O general Eurico Gaspar Dutra, comandante da Primeira
Regi�o Militar, determinou o cerco completo do quartel da
Praia Vermelha, onde a situa��o parecia mais grave. Em
poucos minutos os morros que cercavam a unidade militar,
a Praia Vermelha e a pra�a fronteiri�a ao 3o Regimento de
Infantaria foram tomados pelo Batalh�o de Guardas, por
uma Companhia Motorizada de Metralhadoras e um
Grupamento de Obuses. Pelo telefone requisitou-se o 1o
Batalh�o de Ca�adores, sediado em Petr�polis. Os rebeldes
s� perceberam que estavam cercados por volta de quatro
horas da madrugada. Quando uma patrulha tentou sair �
rua e abrir caminho para a tropa revolucion�ria, as
metralhadoras pesadas do Batalh�o de Guardas, instaladas
estrategicamente no topo do morro da Urca e no alto da
pedra da Babil�nia, cobriram o pr�dio de tiros. Tr�s ou
quatro novas tentativas de tomar a avenida Pasteur, �
frente do quartel, foram repelidas pelo fogo cruzado de
obuses de 155 mil�metros. Atrav�s das janelas arrancadas a
bala ou dos rombos provocados por tiros nas paredes,
policiais civis atiravam bombas de g�s lacrimog�neo no
interior do edif�cio.
A poucos metros de dist�ncia o general Eurico Gaspar
Dutra, protegido pela laje de um posto de gasolina,
conseguiu telefonar para o quartel e comunicar-se com um
dos oficiais legalistas presos, o coronel Afonso Ferreira.
Pouco depois Dutra enviou um emiss�rio com uma proposta
de rendi��o dirigida ao capit�o Barata, comandante dos
rebeldes. Era um bilhetinho curto e formal:
Senhor Comandante Revolucion�rio do 3o RI:
O general comandante da 1a RM � vosso comandante � vos concita a
depor imediatamente as armas e render-vos; vossa situa��o � insustent�vel e
� aconselh�vel evitar in�teis sacrif�cios.
27.XI.1935
Gen. Eurico Gaspar Dutra
Agildo Barata considerou �uma petul�ncia� a proposta de
rendi��o incondicional, mas percebeu, pelo tom do bilhete,
que o general j� se considerava vitorioso. Pelo r�dio do
quartel, entretanto, Barata tomara conhecimento de
�graves perturba��es da ordem� na Escola de Avia��o
Militar, no Campo dos Afonsos. Se at� aquele momento o
governo n�o havia utilizado a avia��o para desaloj�-los do
3o Regimento de Infantaria, isso podia ser um ind�cio de que
a Escola estivesse sob o controle dos rebeldes. O melhor,
portanto, era ganhar tempo e esperar. Nada de rendi��o.
Passou algum tempo at� que o mensageiro do general
Dutra, um sargento do Batalh�o de Guardas, pudesse sair
do quartel com a resposta de Barata. Utilizando uma
ambul�ncia que tirava feridos do pr�dio, o sargento
entregou a seu superior um peda�o de papel em que os
rebeldes repeliam a proposta:
Gen. Dutra
Comandante da 1a RM
Regimento sob nosso comando n�o se render� antes vermos governo
esfomeador Get�lio derrubado.
Concitamos prezado Companheiro salve Brasil ser entregue m�os
estrangeiros por Get�lio, Flores e Catervas.
Todo regimento conosco. Esperamos do chefe da 1a RM uni�o ponto de
vista, capaz livrar nossa p�tria garras Get�lio.
Movimento n�o � comunista! mas nacional, popular, revolucion�rio com o
mais digno dos nossos companheiros � frente: Lu�s Carlos Prestes.
Agildo Barata Ribeiro
Capit�o Comandante 3o RI Popular Revolucion�rio
�lvaro Francisco de Souza
Capit�o Comandante do 3o RI
Barata ainda n�o sabia, mas �quela altura, ao clarear do
dia 27, a revolta da Escola de Avia��o Militar havia sido
debelada e seus l�deres, os capit�es S�crates Gon�alves da
Silva e Agliberto Vieira e os tenentes Ivan Ribeiro e Dinarco
Reis, al�m de mais de uma centena de oficiais e soldados,
encontravam-se todos presos. No momento em que o
general Dutra lia a resposta de Barata � sua proposta de
rendi��o, o presidente Get�lio Vargas, vitorioso, j� percorria
os escombros da Escola de Avia��o Militar em companhia do
tenente-coronel Eduardo Gomes, que sa�ra da refrega com a
m�o ferida por um tiro de fuzil. Com a Escola de Avia��o
retomada, o governo concentrou mais for�as militares em
torno do 3o Regimento de Infantaria. Um dos pavilh�es
estava sendo devorado por chamas provocadas pelo
bombardeio pesado e �s onze horas da manh� os rebeldes
perceberam, no c�u, que estavam derrotados: avi�es
militares faziam amea�adores voos rasantes sobre o que
restava do quartel. Barata ordenou que um corneteiro
tocasse �cessar fogo� para reiniciar as conversa��es com
Dutra. Seus dois mensageiros foram presos e desarmados �
sa�da do pr�dio, e minutos depois o general e seus
comandados entravam no pr�dio para receber a rendi��o
dos insurretos. Um oficial que acompanhava Dutra n�o
conteve a provoca��o e perguntou:
� Quem � o filho da puta do Agildo Barata?
O capit�o revolucion�rio respondeu, furioso:
� O Agildo Barata sou eu! O filho da puta �s tu?
A revolu��o chegava ao fim com um palavr�o, duas
dezenas de mortos e centenas de presos. E os comunistas,
aliancistas e simpatizantes come�avam a ser vitimados pela
maior ca�ada policial que o pa�s conhecera. Os oficiais
derrotados deixaram o 3o Regimento de Infantaria
festivamente, de bra�os dados e dando vivas � revolu��o.
Na delegacia de pol�cia, para onde foram levados em �nibus
emprestados ao Ex�rcito pela companhia canadense de
eletricidade Light & Power, Agildo conversou alegremente
com os rep�rteres e contou detalhes da batalha da
madrugada. Quando os jornalistas quiseram saber as raz�es
do levante, ele n�o teve d�vidas em exibir o bilhete de
Prestes determinando a hora em que a revolta deveria
come�ar. Minutos depois, oficiais, cabos, sargentos e
soldados foram levados para a Casa de Deten��o, um
enorme pres�dio na rua Frei Caneca, no centro da cidade,
transformado em pris�o pol�tica.
O estado de s�tio decretado na antev�spera pelo
presidente da Rep�blica deixava o governo livre para
desencadear a repress�o. Investido de poderes absolutos, o
chefe de pol�cia do Distrito Federal, capit�o Filinto M�ller,
pro�be o porte de armas no Rio de Janeiro e estabelece que
ningu�m pode sair da cidade sem autoriza��o e salvoconduto
da Delegacia Especial de Ordem Social e Pol�tica,
chefiada por um homem de sua absoluta confian�a, o
tamb�m capit�o Em�lio Romano. As fichas de �extremistas�,
anarquistas, comunistas, socialistas, trotskistas e membros
ou meros simpatizantes da Alian�a Nacional Libertadora s�o
transformadas em mandados de pris�o. Os agitadores mais
not�rios e os suspeitos de comprometimento com o Partido
Comunista s�o levados para o quartel-general da Pol�cia
Especial, no morro de Santo Ant�nio. Em poucos dias j� se
sabe que �ir para o morro de Santo Ant�nio� significa ser
submetido �s mais brutais formas de tortura. Filinto M�ller
quer pegar a ponta do novelo da revolta de qualquer jeito, e
ningu�m est� a salvo: entre os primeiros alcan�ados pela
rede jogada sobre o pa�s est�o Roberto Sisson, Francisco
Mangabeira, os intelectuais Castro Rebelo, Lu�s Carpenter,
Le�nidas Resende e Maur�cio de Medeiros. Contra os
suspeitos de ideias extremistas, mas que n�o as colocaram
em pr�tica, Filinto imp�e uma pena mais branda: a perda do
emprego. Para dar o exemplo, um dos primeiros atingidos �
o pr�prio secret�rio da Educa��o do Distrito Federal, o
professor An�sio Teixeira. A pol�cia requisita ao Lloyd
Brasileiro o navio Dom Pedro I, e transforma-o em pris�o
flutuante, ao largo da ba�a da Guanabara. A voragem da
repress�o � grande: o navio logo est� cheio, assim como as
galerias de celas na Casa de Deten��o, onde centenas de
presos e suspeitos se amontoam � espera de uma acusa��o
formal. Uma caravana de �nibus da Light retira
quatrocentos soldados da Casa de Deten��o e leva-os at� o
cais Pharoux, no centro da cidade, de onde s�o embarcados
para a ilha das Flores, que a cada dia passaria a receber
novas levas de prisioneiros. No final do m�s, milhares de
pessoas haviam sido presas em todo o pa�s e os por�es do
Dom Pedro I receberam suas tr�s primeiras h�spedes: Maria
Werneck de Castro, Catharina Landeberg e Amanda Alberto
Abreu, dirigentes da Uni�o Feminina Brasileira, organiza��o
ligada � anl e acusada pelas autoridades de ser uma
fachada do Partido Comunista. O combate aos comunistas
ganha adeptos importantes: as investiga��es passam a
contar com a colabora��o de agentes do servi�o secreto
brit�nico, o Intelligence Service, e, comenta-se abertamente
entre os policiais cariocas, da assustadora Geheime
Staatspolizei, a Gestapo nazista. Um m�s depois de
desencadeada a repress�o aos comunistas, os cabe�as
ainda est�o � solta, e o estado de s�tio � prorrogado para
permitir que as investiga��es prossigam. O Natal encontra
um Brasil transformado em campo de batalha, imerso em
terror.
No dia 26 de dezembro o jovem m�dico Pedro Nava est�
passando de ambul�ncia pela rua Prudente de Moraes, em
Ipanema, a caminho do trabalho, e chama a aten��o do
motorista para a beleza de uma mo�a de apar�ncia
estrangeira que caminha pela cal�ada. Quando a mo�a
chega � esquina da rua Paul Redfern, Nava se surpreende
com a rea��o dela, que d� meia-volta e retorna correndo,
como se fugisse de algu�m. O m�dico espicha o pesco�o
para tentar identificar o que tanto aterrorizou a jovem e v�,
a meia quadra dali, dezenas de policiais � paisana, jogando
dentro de um cambur�o um casal tamb�m com jeito de
estrangeiro. A mo�a era Olga Benario, e a pol�cia de Filinto
M�ller chegara � casa de Sabo e Arthur Ewert.
Olga e Prestes haviam retornado � casa da rua Bar�o da
Torre na manh� do dia 27 de novembro, t�o logo chegou ao
aparelho da Vila Isabel a not�cia do fracasso da revolu��o. A
pol�cia estabelecera barreiras em cada esquina da cidade,
mas concentrara suas for�as nas imedia��es da Urca, perto
do 3o Regimento de Infantaria. Gra�as a isso, eles puderam
chegar a Ipanema, levados pelo major Cunha Cruz, sem ser
importunados. Os trinta dias que transcorreram at� a pris�o
de Ewert submeteram o casal a um regime de
clandestinidade rigorosa. Militantes do partido que ainda
n�o estavam �queimados� eram utilizados como pomboscorreio
entre a dire��o do Partido Comunista e o comando
revolucion�rio. As poucas reuni�es que realizaram foram
cercadas de um r�gido esquema de seguran�a. Ainda que
seu rosto daqueles dias � barbeado, sem bigodes e de
cabelo curto � tivesse pouco ou nada em comum com as
fotografias estampadas nos jornais, Prestes sabia que
estava sendo ca�ado nas ruas e n�o podia se arriscar. Olga
refor�ou a vigil�ncia em torno dele e sa�a raras vezes,
apenas para levar ou trazer alguma mensagem entre a casa
deles e a dos Ewert, a poucos passos dali. Em ocasi�es
muito especiais, quando a escolta de Prestes estava a cargo
de algu�m de absoluta confian�a e bem armado, ela se
dava ao luxo de passar parte da manh� com Sabo, tomando
banho de mar na praia de Ipanema.
Na manh� do dia 26 de dezembro ela levava alguns
apontamentos escritos pelo marido sobre a situa��o do
partido para que Ewert os visse, quando, ao chegar na
esquina da Paul Redfern, apavorou-se com a confus�o na
porta da casa dos amigos. Olga ainda p�de ver Arthur Ewert
ser atirado a pontap�s dentro de um cambur�o e v�rios
homens entrando atr�s dele. Sabo era arrastada � for�a e
levada para outro ve�culo. Brandindo amea�adoramente
metralhadoras e fuzis, os policiais afastavam os curiosos
que se aglomeravam � porta da casa. Olga temeu que, se
corresse demais, poderia chamar a aten��o de algu�m, mas
um segundo de demora poderia ser fatal: se a pol�cia j�
tivesse conseguido o endere�o deles, em instantes a casa
da Bar�o da Torre tamb�m estaria sendo invadida. Ela subiu
aos saltos a escada que levava ao segundo andar, onde
Prestes trabalhava. Misturando alem�o, portugu�s e
franc�s, agarrou-o pela m�o e gritou:
� Vamos sair daqui j�! Sabo e Ewert acabam de ser
presos neste instante. Eu vi a pol�cia lev�-los e agora podem
estar vindo para c�!
N�o havia tempo de pegar roupas, pap�is, coisas
pessoais, nada. Prestes juntou a papelada espalhada sobre
a mesa, atirou-a no cofre guardado pelos explosivos de
Gruber e bateu a portinhola com for�a. Olga ainda pensou
em levar consigo o cachorro policial que ganhara de
presente do marido, mas logo desistiu da ideia: seria um
desprop�sito fugir da pol�cia levando um cachorro pela m�o.
Os dois sa�ram pela rua aparentando naturalidade, mas
tentando ao mesmo tempo escapulir das imedia��es o mais
r�pido poss�vel. O primeiro t�xi que passou levou-os a
Copacabana, ao apartamento onde vivia Victor Barron. Ali,
em relativa seguran�a, poderiam entrar em contato com a
dire��o do partido, que estava providenciando novos
aparelhos em lugares diferentes da cidade, certa de que a
razia do capit�o Filinto M�ller acabaria chegando perto dos
cabe�as. Tanto Prestes quanto Olga sabiam o endere�o do
novo aparelho que lhes tinha sido reservado � uma casa
t�rrea na movimentada rua Nossa Senhora de Copacabana
�, mas, como ignoravam de que forma a pol�cia chegara
at� os Ewert, temiam que o esconderijo pudesse ter sido
�estourado� antes mesmo de ser ocupado. S� quando a
noite chegou, com a certeza de que a pol�cia n�o tinha
conhecimento do lugar, � que Victor Barron instalou o casal
no carro Graham Page e, depois de dar algumas voltas no
quarteir�o para certificar-se de que n�o estavam sendo
seguidos, nem a casa guardada, � que os deixou no local
em que passariam os pr�ximos quinze dias, at�
conseguirem outro mais seguro. Na manh� seguinte, Olga
levou para Prestes os jornais do dia e uma not�cia intrigante:
a imprensa n�o dava uma linha sequer sobre a pris�o de
Sabo e Arthur Ewert, o que permitia duas interpreta��es. Ou
Filinto sabia quem tinha nas m�os � e naquele momento
estaria usando seus costumeiros m�todos para arrancar-lhe
informa��es e, s� depois, exibi-lo aos jornalistas � ou ent�o
a pol�cia aceitara a fachada e n�o conseguira estabelecer
rela��o entre o �norte-americano� Harry Berger e a
frustrada insurrei��o do m�s anterior.
O pr�prio Ewert chegou a ter esperan�as de que a pol�cia
n�o descobriria sua verdadeira identidade. Que o cidad�o
norte-americano Harry Berger tivesse participado da revolta
n�o era assim t�o grave � o governo brasileiro com certeza
o trataria como a tantos estrangeiros �indesej�veis�: iria
deport�-lo simplesmente. Seria o diabo, no entanto, se
descobrissem que ali estava um dirigente da Terceira
Internacional e do Partido Comunista alem�o. No cambur�o,
a caminho do quartel da Pol�cia Especial, sua expectativa se
desfez.
At� ent�o, ningu�m lhe fizera, a ele ou a Sabo, qualquer
pergunta. Dezenas de policiais tinham invadido sua casa
trazendo um verdadeiro arsenal nas m�os: pistolas, fuzis,
metralhadoras. Enquanto ele e a mulher eram arrastados
para fora, quatro homens e o que ele entendeu serem duas
�testemunhas� � que chegaram junto com a equipe �
ficaram na casa, recolhendo tudo o que encontravam. No
cambur�o ele foi sentado num banquinho de lata e teve
cada uma das m�os algemada a um cano de ferro soldado
na carro�aria do ve�culo, atr�s da sua cabe�a. Um dos
quatro homens que se aboletaram com ele no carro policial
pareceu-lhe louro e esbranqui�ado demais para ser
brasileiro. Colocando no colo a metralhadora, o policial tirou
de um bolso do palet� um quebra-nozes de ferro e passou a
abrir avel�s que tirava do outro bolso. Subitamente, com a
mesma naturalidade com que partia as frutas natalinas, ele
segurou a m�o esquerda de Ewert, presa no cano pela
algema, ajustou o quebra-nozes em torno da falange de seu
polegar e, com toda a for�a, esmagou-lhe os ossos do dedo.
A dor empapou de suor o rosto de Ewert, que n�o emitiu um
�nico som. Mastigando peda�os de avel�, e sempre
impass�vel, o policial murmurou com a boca quase
encostada ao seu rosto:
� Du kommunistischer Hurensohn!
N�o foi o palavr�o que gelou Ewert. Aquela n�o era a
primeira e certamente n�o seria a �ltima vez que algu�m o
chamava de �comunista filho da puta�. Aquilo pronunciado
em alem�o perfeito, sem nenhum sotaque, entretanto, o
aterrorizou: se aquele era um policial alem�o, como parecia,
ele n�o sairia vivo do Brasil. E, se sa�sse, talvez fosse at�
pior: seria deportado para os por�es da Gestapo, em Berlim.
Ent�o era verdade � os nazistas estavam ajudando Filinto
M�ller.
Quando o capit�o Filinto M�ller selecionou os agentes
para a a��o na rua Paul Redfern, j� sabia quem era Harry
Berger. Uma semana antes, o delegado Ant�nio Canavarro
Pereira, um dos muitos policiais colocados a sua disposi��o,
trouxera at� seu gabinete um depoimento que merecia a
considera��o do chefe de pol�cia. Entre as dezenas de
comunistas presos, estava Josu� Francisco de Campos,
conhecido pelo codinome de Bag�, que fizera declara��es
interessantes. Bag� contou que meses antes tinha sido
convidado pelo Comit� Central do Partido Comunista para
assistir, num s�tio em Jacarepagu�, nas imedia��es do Rio, a
uma palestra feita por um estrangeiro, aparentemente
americano, sobre a Revolu��o Chinesa. Durante uma hora e
falando sempre em ingl�s, o estrangeiro mostrou ao
pequeno grupo de comunistas brasileiros, num mapa da
China pregado na parede, o que tinha sido a Grande Marcha
realizada por Mao Ts�-tung. De posse das informa��es
dadas por Bag�, Filinto M�ller entrou em contato com o
Intelligence Service na esperan�a de que este identificasse
o misterioso conferencista de Jacarepagu�. Foram
necess�rios poucos dias para que a ficha completa viesse �s
m�os de Filinto. O louro e corpulento especialista em
Revolu��o Chinesa era o ex-deputado comunista ao
Reichstag e ex-dirigente do Comintern Arthur Ernst Ewert,
que usava tamb�m os nomes de Harry Berger e Arthur
Brown. O servi�o secreto ingl�s havia acompanhado o
p�riplo de Ewert desde que ele sa�ra de Xangai com destino
a Amsterdam, usando o passaporte americano em nome de
Harry Berger. Da capital holandesa ele fora a Moscou com
outro passaporte, retornara a Amsterdam e da�, de novo
como Harry Berger, passara por Montevid�u at� chegar ao
Brasil, onde se juntaria a sua mulher. Embora controlando-o
de perto desde o navio que o trouxera de Montevid�u ao
Rio, e tendo chegado ao requinte de interrogar at� o dono
do caminh�o que transportou sua bagagem do porto do Rio
ao hotel da rua Marqu�s de Abrantes, o servi�o secreto
ingl�s perdera a pista de Ewert poucos dias depois. Mas n�o
havia qualquer d�vida de que o homem no s�tio dos
comunistas em Jacarepagu� era ele, Arthur Ewert, sob o
nome de Harry Berger. Com a cidade ocupada por milhares
de policiais, as sa�das fechadas e centenas de comunistas e
simpatizantes presos, Filinto M�ller n�o teve dificuldades
para chegar at� a casa da rua Paul Redfern.
Junto com uma montanha de pap�is, documentos,
manuscritos, manifestos, cartas e bilhetes apreendidos na
casa dos Ewert, a pol�cia obteve da dom�stica Deolinda
Elias informa��es sobre todos os frequentadores do
aparelho e, inclusive, um endere�o que ajudaria a pegar
outra ponta do novelo. A empregada declarou ao policial
Francisco Jullien que um dos casais estrangeiros que
participava das reuni�es noturnas � um senhor de cabelos
claros e sua esposa, uma estrangeira que mancava de uma
perna � vivia a poucos metros dali, na esquina da Paul
Redfern com a rua Prudente de Moraes: eram Alphonsine e
seu marido, L�on-Jules Vall�e, o homem das finan�as.
Deolinda disse mais: tamb�m a uma quadra e meia de
dist�ncia, na rua Bar�o da Torre, vivia o casal com quem os
Ewert tinham rela��es mais estreitas. Era a casa de Prestes
e Olga, que minutos depois seria esquadrinhada cent�metro
a cent�metro por um incomum aparato policial. Aparentando
saber que n�o corriam riscos, dois investigadores
arrombaram o cofre embutido na parede do quarto do casal.
Nem a lanterna Eveready entupida de dinamite nem a
bomba contendo meio quilo de trotil explodiram: os policiais
tiveram livre acesso ao dinheiro e a mais documentos,
cartas, panfletos, mapas e anota��es sobre a revolu��o que
n�o tinha dado certo. Longe de revelar incompet�ncia de
Paul Gruber, a falha no sistema explosivo � que a pol�cia
anunciou escandalosamente aos jornais como sendo uma
�m�quina infernal� � parecia deliberada e confirmava uma
suspeita que muitos membros do comando revolucion�rio j�
tinham, mas nunca haviam manifestado. Embora fosse
homem de confian�a do Partido Comunista alem�o e do
Comintern (meses antes de vir para o Brasil, Gruber foi
arrolado em processo num tribunal nazista como
�funcion�rio graduado� do Partido Comunista alem�o), ele
era, na verdade, um espi�o a servi�o do Intelligence
Service. A comprova��o disso s� surgiria quatro anos
depois, e ainda assim sob a forma de informa��o a que
raras pessoas tiveram acesso: preso nos �ltimos dias de
1940, Gruber corria o risco de ser deportado pelas
autoridades brasileiras para seu pa�s de origem. Ao tomar
conhecimento do fato, a dire��o do servi�o secreto ingl�s
entrou em a��o para salvar a pele de seu agente infiltrado
na c�pula comunista. O consultor diplom�tico do Foreign
Office � o Minist�rio das Rela��es Exteriores brit�nico �
procurou a embaixada brasileira em Londres e solicitou ao
embaixador Souza Le�o que interviesse em favor de Gruber,
�tendo em vista os servi�os prestados na den�ncia do
movimento comunista de 1935�. Souza Le�o transmitiu
imediatamente o apelo brit�nico � Presid�ncia da Rep�blica,
no Brasil, atrav�s de telegrama, concluindo a opera��o que
salvaria Gruber, n�o obstante ser agente infiltrado entre os
comunistas, de morrer numa masmorra nazista. Cuidadoso
como agente duplo, Gruber conseguiu confundir at� as
autoridades diplom�ticas e policiais dos Estados Unidos.
Poucos dias ap�s sua pris�o, o conselheiro da embaixada
americana no Brasil, William C. Burdett, transmitia ao
secret�rio de Estado Cordel Hull um informe �estritamente
confidencial� sobre a personagem, afirmando ter provas de
que ele recebera, �de fontes nos Estados Unidos�, nada
menos que 40 mil d�lares para financiar suas atividades no
Brasil. Colocado discretamente em liberdade, Gruber
desapareceu como se nunca tivesse existido.
O que foram exatamente os �servi�os prestados� por
Gruber ao Intelligence Service, depois retransmitidos por
Londres ao capit�o Filinto M�ller, s�o segredos que nenhum
dos dois lados jamais revelaria. A verdade � que tanto ele
como Erika, sua mulher, tinham conhecimento de
praticamente todos os planos da insurrei��o de 27 de
novembro.
9
Mister Xanthaky entra em cena
No come�o da tarde o capit�o Filinto M�ller foi
pessoalmente at� Ipanema examinar o tesouro ca�do nas
m�os da pol�cia e que ainda estava sendo classificado e
encaixotado por dezenas de agentes. Era inacredit�vel.
Al�m de d�lares americanos, florins holandeses, francos
franceses e pesos argentinos, a pol�cia apreendeu mapas e
regulamentos do Estado-Maior do Ex�rcito sobre �exerc�cios
de combate da avia��o�, �emprego de tiro� e �organiza��o
de liga��es e transmiss�es de campanha�. A papelada
deixada por Prestes e Olga no cofre era suficiente para
incriminar ou pelo menos deixar sob suspei��o centenas de
pessoas, algumas identificadas apenas por um codinome
mas muitas delas com nome, sobrenome e endere�o
completos. Filinto M�ller folheou, triunfante, documentos do
Comintern, pap�is secretos do Ex�rcito brasileiro, cartas
assinadas por Vilar ou Garoto a dirigentes do Partido
Comunista e da Alian�a Nacional Libertadora em todo o
pa�s, al�m de rascunhos de bilhetes de Prestes a Roberto
Sisson, Hercolino Cascardo e Agildo Barata contendo
instru��es para a revolta, esquemas detalhados sobre o
funcionamento de c�lulas comunistas, mapas indicativos
sobre como sintonizar a esta��o de r�dio montada por
Barron, bilhetes decodificando os codinomes de dirigentes
comunistas e de personalidades que ajudavam o partido,
cartas trocadas entre Prestes e o general Miguel Costa,
instru��es para o funcionamento dos comit�s estaduais do
Partido Comunista ap�s o fracasso da revolta, cartas dando
clara indica��o de que o prefeito do Distrito Federal, Pedro
Ernesto, era um aliado dos revoltosos, e, por fim, oito folhas
de papel alma�o em que Prestes treinara a maneira mais
regular de assinar seu novo nome: Ant�nio Vilar.
O acervo encontrado pela pol�cia na casa de Arthur Ewert
n�o era menos abundante. Arquivadas em pastas, l�
estavam orienta��es para os chefes de c�lulas em
sindicatos oper�rios, cartas trocadas entre dirigentes do
Partido Comunista e da anl em todo o pa�s, c�pias de
instru��es � c�pula do Partido Comunista, 91 livros e at�
cartazes e material did�tico sobre a Revolu��o Chinesa.
Alguns documentos chamaram especialmente a aten��o
dos policiais: os relat�rios minuciosos sobre a vida pessoal e
as atividades de delegados da pol�cia pol�tica (incluindo
detalhes sobre os encontros mantidos em determinado dia
pelo delegado especial do �rg�o, capit�o Miranda Correia) e
um pequeno peda�o de papel encontrado numa gaveta. Era
o salvo-conduto dado por Prestes a Berger na v�spera da
revolta. Antes de retornar ao seu gabinete, o capit�o Filinto
M�ller passou mais uma vez pela casa de Olga e Prestes e
deu uma enigm�tica ordem aos investigadores:
� Antes de fechar a casa, desamarrem aquele cachorro
que est� no quintal e levem-no para o meu gabinete.
Ao chegar � Chefatura, Filinto M�ller comunicou
oficialmente ao presidente Get�lio Vargas e ao ministro da
Justi�a, Vicente Rao, o resultado da opera��o realizada
naquela manh�. E, n�o obstante j� tivesse informa��es
suficientes do Intelligence Service sobre a verdadeira
identidade de Harry Berger, decidiu confirm�-las junto ao
Departamento de Estado norte-americano. Para isso, tinha
um pretexto formal: at� prova em contr�rio, o preso da rua
Paul Redfern e sua mulher eram cidad�os dos Estados
Unidos, portadores de passaportes leg�timos, emitidos em
Nova York. Imediatamente ap�s ser consultado pelo chefe
de pol�cia, o embaixador norte-americano no Brasil, Hugh
Gibson, transmitiu um telegrama cifrado ao secret�rio de
Estado Cordel Hull, pedindo instru��es. A primeira consulta
de Hull foi feita a J. Edgar Hoover, diretor do fbi, e deu
poucos resultados. N�o havia nenhuma ficha em nome de
�Harry Berger� nos arquivos do fbi, e a pasta de Arthur Ernst
Ewert era mag�rrima, contendo apenas uma vaga
refer�ncia, datada de cinco anos antes, dando-o como �um
proeminente comunista alem�o�. Um despacho de 1930,
assinado pelo pr�prio Hoover, lan�ava d�vidas at� mesmo
sobre a passagem de Ewert por Nova York em 1927, durante
a conven��o do Partido Comunista americano. O secret�rio
de Estado ordenou ent�o que Raymond Geist, c�nsul dos
Estados Unidos em Berlim, enviasse o mais r�pido poss�vel
a Washington �dados biogr�ficos, descri��o f�sica e
impress�es digitais� do misterioso americano (ou alem�o)
preso no Rio de Janeiro. As refer�ncias feitas pelo
embaixador Gibson � desenvoltura com que Berger lidava
com assuntos chineses remeteram as investiga��es de
Cordel Hull ao c�nsul dos eua em Xangai, Monnet Davis, a
quem foi feito, sempre em telegramas confidenciais,
id�ntico pedido: biografia, fotos e impress�es digitais de
Ewert/Berger.
Enquanto diplomatas e agentes secretos esquadrinhavam
arquivos em v�rios pontos do mundo, Arthur Ewert e sua
mulher Elise apanharam da pol�cia de Filinto M�ller durante
uma semana, sem que lhes fosse dirigida uma s� pergunta.
As equipes e os m�todos variavam a cada par de horas � e
ningu�m perguntava nada, nem mesmo os seus nomes. A
pol�cia queria primeiro quebrar o moral dos presos, para
depois come�ar os interrogat�rios. Isolados na pris�o do
morro de Santo Ant�nio, Ewert e Sabo resistiam
milagrosamente � viol�ncia de policiais alem�es e
brasileiros que se revezavam incessantemente. Ele estava
com o corpo coberto de hematomas produzidos por surras
de cassetetes de borracha, a m�o esquerda ainda inchada
pelo golpe aplicado com o quebra-nozes, o �nus e o p�nis
machucados por choques el�tricos e objetos introduzidos
durante as sess�es de tortura. Sabo tinha as costas, os
seios e as pernas cobertas por min�sculas queimaduras
feitas com pontas de cigarros e lanhos por todo o corpo,
deixados pelas chibatadas que lhe aplicava um jovem
policial alem�o.
Quando decidiram finalmente iniciar os interrogat�rios, a
viol�ncia aumentou, mas n�o adiantou nada. Nem mesmo
os piores supl�cios foram suficientes para arrancar qualquer
informa��o de Ewert ou de Elise. Os policiais resolveram
aplicar torturas alternadamente no marido e na mulher,
deixando sempre um ou outro testemunhando. Elise era
violentada por dezenas de soldados, � frente do marido.
Berger era submetido a um pelot�o de fuzilamento com
balas de festim. Elise era colocada dentro de um caix�o de
defunto e �enterrada� viva. Tudo isso sem que qualquer um
dos dois tivesse podido dormir um s� minuto desde o dia da
pris�o. Quando as sess�es de tortura se interrompiam, de
madrugada, para que outra equipe pudesse reiniciar o
trabalho, os dois eram obrigados a permanecer de p�,
impedidos de fechar os olhos. Em uma dessas noites, como
Ewert tivesse sido flagrado com a cabe�a pendida para tr�s,
de olhos fechados, o policial de plant�o ficou furioso: correu
at� o escrit�rio do pres�dio, apanhou uma pesada m�quina
de escrever e amarrou-a ao pesco�o do preso. Ewert passou
o resto da noite sem poder nem se curvar, com a m�quina
amea�ando quebrar-lhe o pesco�o.
Ele e a mulher acabaram por perder a no��o do tempo
que se passara desde a captura. Os policiais ficavam
intrigados com a obstina��o dos dois em n�o falar
absolutamente nada: afinal, os documentos encontrados na
casa revelavam praticamente todas as atividades de ambos
no Brasil. No come�o de janeiro, Ewert arriou pela primeira
vez. Foi quando dois policiais, um alem�o e um brasileiro,
deixaram-no sem roupas, com as pernas e os bra�os
abertos em xis, algemados � grade de uma das celas. O
alem�o trazia nas m�os um peda�o de arame liso, de cerca
de meio metro de comprimento, e ao agachar-se � sua
frente advertiu-o, falando em seu idioma:
� Agora quero ver se voc� fala ou n�o fala, comunista
filho da puta. N�s vamos assar voc� por dentro.
Falou e enfiou um palmo de arame dentro da uretra de
Ewert. O preso resistia, mas a� o policial brasileiro apareceu
com um pequeno ma�arico para solda, com o bico em
chamas. O alem�o segurou com delicadeza o p�nis de
Ewert, como um m�dico o faria, e passou a esquentar com o
ma�arico o peda�o de arame que ficara para fora. Da
garganta de Ewert o �nico som que os policiais ouviram foi
um mugido, como de um boi. Em seguida, seu corpo
desabou, pendurado na grade pelas m�os. O policial
brasileiro parecia feliz em ver algu�m t�o resistente e riu
admirado ao comentar com o nazista:
� �, doutor... Parece que desses teus patr�cios a� n�s n�o
vamos arrancar nada mesmo.
Os investigadores convenceram os capit�es Filinto M�ller
e Miranda Correia de que o casal n�o falaria. Se os chefes
quisessem, eles poderiam elimin�-los, mas estava claro que
Ewert e Elise morreriam sem dizer um nome sequer. Nem
mesmo o que a pol�cia j� sabia. No dia 6 de janeiro, Filinto
decidiu anunciar � imprensa a pris�o efetuada onze dias
antes. Para rechear o notici�rio, selecionou alguns dos 1300
documentos apreendidos na casa da Paul Redfern e
apresentou aos jornalistas uma detalhada biografia do casal
preso como sendo o resultado de investiga��es da pol�cia
brasileira � embora o �nico trabalho que aquilo custara �
pol�cia pol�tica tivesse sido o de traduzir o material enviado
pelo Intelligence Service, a Gestapo e o Departamento de
Estado. Ewert era apresentado como �o orientador das
atividades comunistas no Brasil e em toda a Am�rica do
Sul�. Como a pol�cia vinha negando a exist�ncia de tortura
aos presos pol�ticos, os jornalistas n�o puderam ver o casal.
As fotografias publicadas pela imprensa no dia seguinte
tinham sido feitas momentos ap�s a pris�o e mostravam um
Arthur Ewert corado e robusto, vestindo um elegante terno
branco.
Naquele mesmo dia, num lance de sorte, a pol�cia
conseguiria pegar outro inimigo importante. O capit�o
Miranda Correia ordenara que policiais disfar�ados
mantivessem sob rigorosa vigil�ncia um pr�dio de
apartamentos na avenida Paulo de Frontin, sob suspeita de
esconder um aparelho utilizado por intelectuais comunistas
� entre eles o jovem escritor baiano Jorge Amado. Um dos
�tiras� encarregados de vigiar o edif�cio teve sua aten��o
atra�da para um morador cuja fotografia ele supunha ter
visto nos arquivos policiais, e que circulava despreocupado
com sua jovem e bela mulher. Quando o casal foi preso para
averigua��es, a pol�cia descobriu que tinha nas m�os
ningu�m menos que o secret�rio-geral do Partido
Comunista, o baiano Ant�nio Maciel Bonfim, de 31 anos,
tamb�m conhecido como Adalberto de Andrade Fernandes
ou Miranda. At� ent�o nenhuma rela��o havia sido
estabelecida entre o Miranda citado nos documentos
encontrados nas casas de Prestes e Ewert e o Bonfim cuja
ficha policial, de cinco anos antes, dava-o modestamente
como �identificado por crime de subvers�o � anarquismo�.
Junto com ele foi presa sua companheira, Elvira Cupelo
Col�nio, de vinte anos, conhecida tamb�m como Elza
Fernandes ou simplesmente Garota. Analfabeta, Elvira
contou aos policiais que era empregada dom�stica at�
conhecer Bonfim numa praia do Rio e se apaixonar por ele.
Ao declarar que viera a p� de sua terra natal at� o Rio de
Janeiro, os policiais ficaram em d�vida se se tratava de uma
louca ou de uma experiente militante treinada por Moscou.
Ela era de Sorocaba, no interior de S�o Paulo, a 480
quil�metros de dist�ncia da capital federal.
O material recolhido no apartamento do chefe do Partido
Comunista brasileiro, embora menos copioso que o das
duas casas de Ipanema, era igualmente comprometedor:
dezenas de c�pias de cartas enviadas por Miranda aos
comit�s regionais do partido, relat�rios recebidos de todo o
pa�s e do exterior, question�rios dirigidos por ele a
dirigentes do partido em v�rios estados, devidamente
respondidos, manuais para a fabrica��o de bombas e
indica��es sobre como recorrer ao Socorro Vermelho
Internacional, organiza��o criada pela Terceira Internacional
para ajudar comunistas em apuros. No meio daquela
montanha de papel a pol�cia encontrou o �fil�-mignon�,
segundo a express�o de um delegado: minuciosos
balancetes contendo a contabilidade do Partido Comunista
nos �ltimos meses. Ali estavam registradas a entrada de
recursos do partido e, com pormenores dignos de um
caprichoso guarda-livros, todas as sa�das: desde os sal�rios
pagos aos dirigentes at� o dinheiro gasto na compra de
jornais, roupas e no pagamento dos alugu�is, contas de
�gua e luz dos aparelhos.
A not�cia da pris�o de Miranda e Elza, divulgada quatro
dias depois, deixou Prestes e Olga ainda mais apreensivos:
o secret�rio do partido era uma das poucas pessoas que
conheciam o endere�o do aparelho onde se escondiam
naquele momento, em Copacabana. Era chegada a hora de
mudar de casa outra vez. Como as pris�es se multiplicavam
em propor��o geom�trica, era preciso reduzir ao m�nimo o
n�mero de pessoas que soubessem do novo aparelho. Por
isso, decidiram eles mesmos procurar uma nova casa.
Depois de percorrer as p�ginas de an�ncios do Jornal do
Brasil, Olga e Prestes se detiveram numa pequena oferta
publicada na se��o �Casas e c�modos nos sub�rbios�:
Aluga-se por 220 mil-r�is uma boa casa, limpa e encerada, com dois quartos,
duas salas, fog�o a g�s, jardim, quintal com �rvores frut�feras, pr�pria para
fam�lia de tratamento. Rua Hon�rio, 279, bondes de Cachambi � M�ier.
Parecia ser o ideal. Tudo indicava que a pol�cia
concentrara suas investiga��es e vigil�ncia na Zona Sul e
no centro da cidade. Se era assim, nada melhor do que
trocar Copacabana pelo M�ier, um bairro oper�rio com 70
mil habitantes � o dobro da popula��o conjunta de
Copacabana e Ipanema. Manoel dos Santos, sapateiro e
militante do partido, foi encarregado de alugar a casa,
sabendo apenas que seria destinada a �um companheiro e
sua mulher�. Era uma casinha modesta, suficientemente
discreta para receber Prestes e Olga. Al�m deles, o pr�prio
Manoel e sua mulher, J�lia dos Santos, iriam morar l� at�
que o partido determinasse o novo destino do Cavaleiro da
Esperan�a. Apresentando-se como chefe da se��o de
l�mpadas da General Electric, Manoel procurou o portugu�s
Jos� Gomes, dono do im�vel. Sem fiador para avalizar a
opera��o, prop�s ao propriet�rio pagar antecipadamente
quatro meses de aluguel, e o neg�cio acabou sendo fechado
por 800 mil-r�is. Dois dias depois ele se mudava para o
M�ier, esperando a chegada dos novos h�spedes. Caso
algu�m perguntasse, ele e a mulher diriam que, para
diminuir o pre�o do aluguel, resolveram sublocar um dos
quartos a um casal, a quem tamb�m forneceriam almo�o e
jantar.
Apenas um dirigente do partido, cujo nome Prestes n�o
revelaria jamais, foi informado de que o aparelho de
Copacabana estava sendo trocado por outro �situado para
os lados do M�ier�. Em meados de janeiro Olga e Prestes
valeram-se outra vez da ajuda de Victor Barron � que n�o
havia sido importunado pela pol�cia, e cuja presen�a no
Brasil era aparentemente ignorada pelas autoridades �
para mudar de esconderijo. Barron esperou que anoitecesse
e discretamente levou-os no Graham Page at� as
imedia��es da casa da rua Hon�rio. Al�m de documentos
pessoais em nome de Ant�nio e Maria Bergner Vilar, Olga e
Prestes levavam pouca coisa para o novo endere�o: uma
pequena bolsa de m�o com meia d�zia de pe�as de roupa e
alguns documentos do partido. A partir daquele momento,
Prestes passaria a ter contato com a dire��o do partido �
Miranda fora substitu�do, depois de sua pris�o, por Lauro
Reginaldo da Rocha, o Bangu � atrav�s de mensageiros
que ele mesmo escolheria. Sua primeira recomenda��o foi
que a nova dire��o passasse desde ent�o a providenciar
outro aparelho para ele e Olga � caso houvesse qualquer
suspeita de que a pol�cia desconfiava da mudan�a para o
M�ier, eles deveriam sair de l� incontinenti.
A pretexto de apurar a origem dos passaportes norteamericanos
utilizados por Ewert e Elise, o governo dos
Estados Unidos entrou para valer nas investiga��es sobre a
�conex�o brasileira� do movimento comunista internacional.
O secret�rio de Estado Cordel Hull exigiu que um
investigador de seu pa�s passasse a trabalhar com a pol�cia
brasileira na elucida��o da �revolu��o comunista�. R. C.
Bannerman, chefe da Se��o de Agentes Especiais do
Departamento de Estado (um escrit�rio de investiga��es
que, �quela �poca, exercia algumas das fun��es hoje
atribu�das � cia � Ag�ncia Central de Intelig�ncia),
transmitiu a ordem ao embaixador Hugh Gibson, no Rio de
Janeiro. O �agente especial� escolhido foi o nova-iorquino
Theodore Xanthaky, um ex-banc�rio de 38 anos que, entre
1920 e 1922, trabalhara como �escriv�o� da embaixada
americana no Brasil. Xanthaky falava fluentemente
portugu�s e espanhol.
A primeira tarefa do �assistente especial� do
Departamento de Estado foi interrogar Ewert e Elise, presos
no morro de Santo Ant�nio. No fim da tarde de 14 de
janeiro, devidamente credenciado pelo embaixador
americano, Xanthaky procurou o capit�o Miranda Correia �
�o encarregado de todo o departamento anticomunista�,
diria o agente mais tarde, em seu relat�rio enviado a
Washington � para acertar seu encontro com os presos.
Provavelmente para evitar a curiosidade dos jornalistas que
passavam o dia em busca de not�cias na delegacia, Correia
pediu que Xanthaky retornasse �s dez da noite. Na hora
marcada o americano foi levado pelo policial Francisco
Jullien at� o morro de Santo Ant�nio. No caminho, Jullien
achou bom advertir o estrangeiro para a situa��o em que se
encontravam os dois presos:
� O casal est� meio arrebentado pelo pessoal do
interrogat�rio, e h� v�rios dias n�o temos permitido sequer
que durmam. Nem sei se isso vai adiantar: at� agora nem o
alem�o nem a mulher pronunciaram uma s� palavra. Nem
mesmo admitiram que s�o comunistas.
No port�o da pris�o, Xanthaky foi recebido pelo policial
Jos� Torres Galv�o, que se apresentou como �carcereirochefe�
daquele pres�dio. Sorridente, Galv�o n�o escondia
sua admira��o pela resist�ncia f�sica de Ewert e Elise:
� Mister Xanthaky, eu nunca vi nada parecido em todos
esses anos de pol�cia. O alem�o est� apanhando h� tr�s
semanas como um c�o danado e n�o abriu o bico. Nem ele
nem a mulher. Sou obrigado a tirar o chap�u: esse
comunista � fant�stico. Mas o senhor vai encontr�-los em
um bom estado. Hoje � tarde o capit�o Miranda Correia
mandou suspender o cacete at� de noite, porque ia
aparecer visita ilustre. Pode entrar que eles est�o
bonitinhos.
Theodore Xanthaky ficou impressionado com o que viu na
cela onde Galv�o o deixou. A pessoa que estava ali, sentada
sobre um caixote de madeira, n�o guardava a menor
semelhan�a com o alem�o robusto cujas fotos examinara na
embaixada. Ewert estava dramaticamente enfraquecido,
tinha o polegar esquerdo roxo e inchado como uma fruta, e
as marcas e cicatrizes espalhadas pelo corpo n�o deixavam
d�vidas sobre o que Galv�o lhe contara: o homem apanhara
como um animal. Ewert levantou os olhos e o visitante se
identificou:
� A embaixada recebeu uma informa��o an�nima de que
o senhor desejava comunicar-se conosco. Como est� de
posse de um passaporte americano, fizemos todo o esfor�o
poss�vel junto � pol�cia brasileira para que eu pudesse vir
at� aqui ouvir a sua hist�ria.
Arthur Ewert foi sincero, e respondeu em um ingl�s t�o
fluente quanto o de seu misterioso interlocutor:
� N�o pedi para ver ningu�m de nenhuma embaixada,
mas n�o posso deixar de reconhecer que � bom ver entrar
algu�m sem um chicote ou um porrete na m�o. H� dias que
n�o deixam a mim ou a minha mulher dormir um s�
instante, e temos sido violentamente surrados durante todo
esse tempo. Qualquer pessoa que possa interceder para
que acabe essa barbaridade ser� bem-vinda.
� O fato de o senhor possuir um passaporte americano
nos deixa preocupados com a sua sorte. O senhor tem
amigos ou parentes nos Estados Unidos com quem queira
comunicar-se?
Ewert sorriu pela primeira vez:
� Sim. Tenho um amigo nos Estados Unidos. Seu nome �
Earl Browder.
� O senhor gostaria que o Departamento de Estado se
comunicasse com o senhor Browder?
O alem�o sorriu de novo, ir�nico e desconfiado:
� Acho que n�o ouviu direito o nome do meu amigo. Earl
Browder � o secret�rio-geral do Partido Comunista
americano.
Xanthaky era um profissional. Logo entendeu que Ewert
sabia que, enquanto a visita durasse, n�o haveria torturas.
E procurou tirar proveito da situa��o. Mudou de assunto,
comentou uma entrevista publicada na revista americana
Harper�s sobre o inc�ndio do Reichstag, ocorrido em
fevereiro de 1933, falou de temas gen�ricos e sem
import�ncia. Quando imaginou que havia espa�o para
perguntas indiscretas, percebeu que o preso tamb�m era
um profissional. A uma indaga��o sobre o casamento dele
com Elise e a obten��o de passaportes �extralegalmente�,
Ewert cortou a conversa com uma pergunta seca, malhumorada:
� O senhor est� tentando me interrogar?
� N�o, eu n�o estou tentando interrog�-lo e o senhor tem
toda a liberdade de se recusar a responder a qualquer das
minhas perguntas. Mas se espera algum tipo de ajuda
nossa, ser� necess�rio estabelecer, para al�m de qualquer
d�vida, sua identidade verdadeira e a de sua esposa.
Mudando de t�tica, o agente americano fingiu sinceridade
e inventou uma nova hist�ria:
� N�s temos informa��es definitivas de que seu
passaporte foi obtido a partir de uma certid�o de
nascimento verdadeira e estamos, portanto, convencidos de
que o senhor � mesmo Harry Berger. Em rela��o � mulher
que o senhor diz ser sua esposa, por�m, a situa��o �
diferente: temos raz�es para acreditar que ela n�o se
chama Machla Lenczycki, como consta do passaporte.
Ewert perdeu a paci�ncia e falou pausadamente, com
firmeza:
� Senhor Theodore Xanthaky: eu e minha mulher
estamos sendo espancados h� v�rios dias por policiais
nazistas e por russos brancos emprestados � pol�cia
brasileira. Eles est�o tentando obter nomes e endere�os
que, sob nenhuma circunst�ncia, eu ou minha mulher
dar�amos. Nenhum de n�s disse rigorosamente nada �
pol�cia. E muito menos diremos ao senhor.
� Mas se o senhor se abrir comigo sua situa��o aqui na
pris�o poder� melhorar.
� N�o tenho nenhuma raz�o para me abrir com o senhor.
Tanto os policiais brasileiros como os alem�es j� sabem que
meu nome � Arthur Ernst Ewert e o da minha mulher � Elise
Saborowski Ewert. Eles j� sabem do meu passado. E as
informa��es que n�o t�m, n�o ser� de mim ou de minha
mulher que as ter�o. Nem eles nem o senhor.
� Mas quem financiou o movimento aqui no Brasil?
Ewert falava com cuidado, procurando lembrar-se das
informa��es de que a pol�cia dispunha:
� O senhor sabe que os partidos mais poderosos ajudam
os mais pobres, mas aqui n�s n�o precis�vamos de muito
dinheiro. Elise e eu viv�amos muito modestamente. Voc�s
criaram um mito sobre a a��o da Lega��o Comercial
Sovi�tica em Montevid�u, o Yuamtorg, nas revolu��es da
Am�rica do Sul. Aqui no Brasil as grandes doa��es eram
feitas � Alian�a Nacional Libertadora por proeminentes
brasileiros � um �nico indiv�duo, por exemplo, chegou a
doar cinquenta contos de r�is � anl.
Xanthaky queria saber mais informa��es sobre a revolta e
o envolvimento dos comunistas estrangeiros com os
militares. Ewert falou apenas o que era conhecido das
autoridades:
� A insurrei��o no Norte foi uma surpresa tanto para mim
como para Prestes. Eu, pessoalmente, n�o tive qualquer
contato com os militares brasileiros. Esta era uma tarefa
que cabia ao pr�prio Prestes.
O agente norte-americano percebeu que Ewert estava
querendo encerrar a conversa. Ao se levantar, o preso fez
lhe um pedido:
� Se for poss�vel, converse com os policiais para que
transfiram minha mulher para esta cela em que estou.
Embora ela, como eu, seja membro do Partido Comunista,
n�o teve nenhum papel ativo no Brasil. E caso eu venha a
ser deportado e a embaixada americana possa interferir
nisso, n�o gostaria de ir para a Alemanha. Seria o mesmo
que pular da frigideira para o fogo. Prefiro desembarcar em
algum porto franc�s.
Ao sair, Xanthaky dirigiu a Ewert uma ins�lita pergunta:
� O senhor e sua mulher t�m alguma religi�o?
Ele sorriu de novo:
� Quando nascemos �ramos crist�os.
J� era de madrugada quando Theodore Xanthaky iniciou
sua segunda miss�o daquela noite, mais simples e menos
demorada que a primeira: interrogar Elise Ewert. Logo ao
entrar na cela notou que tamb�m ela havia sido muito
espancada e machucada, embora parecesse estar em
melhores condi��es que o marido. Educadamente Sabo
repetiu ao agente da embaixada americana o que ele ouvira
de Ewert: o que os policiais nazistas e brasileiros n�o
conseguiram com pancadas ele n�o obteria com bons
modos. Xanthaky insistiu em saber mais sobre as atividades
dela no Brasil e os contatos do casal com dirigentes
comunistas e militares. Ela reiterou que nada tinha a dizer:
� Mesmo que soubesse algum nome e quisesse revel�-lo
ao senhor, pouco adiantaria. As pessoas com quem mantive
contato sempre se apresentavam com seus codinomes.
Algu�m que eu tenha conhecido como Adalberto, por
exemplo, certamente n�o se chama Adalberto, e ter� mais
meia dezena de nomes.
Xanthaky procurou memorizar o nome: Adalberto. E voltou
� carga:
� O servi�o secreto ingl�s nos informou que a senhora
utiliza tamb�m os nomes de Kathe Gussfeld, Ethel Chilles e
Edith Blaser. Isto � verdade? Essas informa��es d�o conta
tamb�m de que a senhora esteve nos Estados Unidos em
1926. Isto � verdade?
� N�o. Nada disso � verdade. Nem usei os nomes citados
pelo senhor nem estive nos Estados Unidos em 1926.
Xanthaky sabia que dali n�o surgiria nenhuma novidade e
resolveu ir embora. Na sa�da, transmitiu aos policiais Galv�o
e Jullien o pedido de Ewert para que a mulher fosse
transferida para sua cela. Foi Galv�o quem respondeu:
� Podemos tentar: se na porrada n�o conseguimos
arrancar nada deles, quem sabe tratando bem? Mas se eles
pensam que v�o passar a noite na farra, est�o enganados.
Vamos botar seis tiras alem�es l� dentro, para evitar
excessos e cochichos.
Ao entrar no carro de Jullien, de volta � Pol�cia Central,
Xanthaky escreveu em letras mi�das num ma�o de cigarros:
Adalberto. Quando leu o nome para o capit�o Miranda
Correia, o chefe da pol�cia pol�tica puxou de uma pasta a
foto de um homem de bigodinho fino, preso dias antes:
� O que a alem� lhe disse n�o foi um exemplo ao acaso.
O tal Adalberto j� foi engaiolado por n�s: � Ant�nio Maciel
Bonfim, o secret�rio-geral do Partido Comunista.
O americano, impositivo, exigiu de Miranda Correia que as
informa��es que lhe passava sobre a conversa com os
Ewert fossem mantidas em sigilo �para que eles n�o percam
a confian�a em mim�. Miranda Correia concordou:
� N�o se preocupe com isso, mister Xanthaky. Posso lhe
assegurar que o senhor � o primeiro e ser� o �nico estranho
aos quadros da nossa pol�cia a ter o privil�gio de falar com
os presos. Aqui o senhor tem carta branca para interrogar
quem quiser.
� E quanto a Prestes, o senhor tem not�cias dele?
� Como mister Xanthaky representa um governo que �
nosso aliado na luta contra o comunismo, posso dar-lhe em
primeira m�o uma informa��o confidencial�ssima: h� dias
prendemos um casal de belgas, L�on-Jules Vall�e e sua
mulher, Alphonsine. Eles levavam na bolsa uma fortuna em
dinheiro, cuja origem n�o souberam explicar. Nossos
homens acreditam que L�on nos levar� at� Prestes. Mandei
colocar o casal em liberdade com dois homens seguindo
seus passos. Acho que nos pr�ximos dias vamos botar a
m�o no chefe deles todos. A prop�sito, doutor, tanto a ficha
de Vall�e quanto qualquer outra que interesse est�o a sua
disposi��o. O doutor Jullien far� c�pias de tudo o que o
senhor quiser.
Xanthaky queria saber mais de Prestes:
� Que acontecer� ao capit�o Lu�s Carlos Prestes?
� A ordem que temos � de n�o traz�-lo vivo.
As primeiras luzes do dia apanharam Theodore Xanthaky
ao lado de um operador de c�digos da embaixada
americana, transmitindo um minucioso telegrama ao
Departamento de Estado sobre a conversa que mantivera
com Ewert e Elise.
10
Miranda e Ghioldi v�o falar
Ajudada pela Gestapo, pelo servi�o secreto do
Departamento de Estado e pelo Intelligence Service, a
pol�cia de Get�lio Vargas e Filinto M�ller ia aos poucos
fechando o cerco em torno de Prestes. As arrobas de
documentos apreendidos em aparelhos eram
esquadrinhadas, tabuladas e conferidas com declara��es
arrancadas com cassetetes e choques el�tricos nas pris�es
cariocas. Dois meses depois da revolta, o governo tinha um
mapa expressivo da rede montada por comunistas e
militares no Brasil. Faltavam poucas pe�as para que o
quebra-cabe�a estivesse completo. Nos pap�is encontrados
nos aparelhos de Prestes, Ewert e Miranda, as instru��es
internas e comunica��es entre os chefes do partido e os
militares que liderariam a revolta eram assinadas com uma
sigla � gin. A pol�cia sabia que eram as iniciais dos tr�s
homens mais importantes da revolta: G era Garoto,
codinome de Prestes; N era Negro, codinome dado a Arthur
Ewert. O I era a inicial de �ndio. Mas quem era �ndio? Em um
dos muitos depoimentos feitos � pol�cia, a controvertida
Elvira, mulher do secret�rio-geral do partido, disse que
�achava que era um estrangeiro�. A pol�cia s� via alguma
rela��o entre um dos dois codinomes e seu dono: Prestes
era uma pessoa mi�da � natural, portanto, que viesse a ser
chamado de Garoto. Mas no caso de Ewert a tese n�o valia
� afinal ele n�o era negro. E o �ndio quem seria?
A informa��o que permitiu chegar ao terceiro cabe�a da
revolta surgiu de forma inesperada: um amigo do delegado
Jullien contou-lhe que suspeitava do comportamento de um
jovem casal de latino-americanos que se mudara havia
pouco para um pr�dio defronte ao seu, na Zona Sul do Rio.
A pol�cia apurou com o porteiro que o homem era Luciano
Busteros, jornalista uruguaio, que ali vivia com sua mulher,
Carmen. Embora n�o houvesse qualquer registro sob o
nome Busteros nos arquivos brasileiros, alem�es, brit�nicos
ou americanos, Jullien mandou vigiar o pr�dio e, na primeira
oportunidade, fotografar o jornalista. Quando o retrato do
uruguaio moreno, de cabelos negros e �culos de aro
redondo foi exibido a Elvira Col�nio, ela n�o teve d�vidas
em assegurar:
� � esse a� o �ndio que voc�s procuram.
Rodolfo Ghioldi e sua mulher, desconfiados de que a casa
onde viviam estava sendo vigiada, decidiram fugir na noite
de 22 de janeiro. Tomaram um t�xi na porta do pr�dio e,
levando apenas uma valise de m�o, tocaram para a esta��o
de trem da Central do Brasil. Sem saber que estavam sendo
seguidos, compraram um bilhete para o trem noturno com
destino a S�o Paulo. Quando a composi��o come�ou a se
mover na plataforma, eles chegaram a supor que tivessem
conseguido enganar a pol�cia carioca. De madrugada o trem
parou na cidade de Jacare�, no estado de S�o Paulo, e os
dois desceram para fazer um lanche. O pr�prio Jullien, que
estava no trem, deu-lhes voz de pris�o na escada do vag�o.
Rodolfo passou o resto da noite tentando convencer o
policial de que algum engano havia sido cometido: ali
estava seu passaporte comprovando que ele n�o se
chamava Rodolfo Ghioldi nem era argentino. Mas em S�o
Paulo j� o esperava um delegado enviado do Rio por Filinto
M�ller em avi�o militar com a ficha completa do argentino
� era bobagem continuar tentando confundir os policiais.
Transportados no avi�o para o Rio de Janeiro, Rodolfo e
Carmen foram imediatamente levados � pol�cia pol�tica e
colocados na antessala do capit�o Miranda Correia, ao lado
de outros presos capturados naquele dia, todos guardados
por investigadores e soldados armados. Do lugar onde
estava sentada, Carmen podia ver, atrav�s de uma fresta
da porta entreaberta, parte do movimento na sala do
delegado. Subitamente ela arregalou os olhos, empalideceu
e sussurrou ao marido:
� Rodolfo, voc� n�o pode imaginar quem est� ali dentro,
conversando com os policiais, e acaba de apontar na tua
dire��o e dizer a um deles que voc� � mesmo Ghioldi, o
�ndio: Miranda. Ele est� trabalhando para a pol�cia.
�Se Miranda est� colaborando com a pol�cia�, imaginou
Ghioldi, ao ser chamado a depor, �eles j� devem saber de
tudo a respeito de todos n�s.� Talvez tenha sido essa
conclus�o que o levou a identificar t�o prontamente a
fotografia que o chefe da pol�cia pol�tica e o delegado Jullien
lhe exibiram. Ele disse sem pestanejar:
� Sim, eu conhe�o este homem. � L�on Vall�e, o
respons�vel pelas finan�as.
As esperan�as da pol�cia de que Vall�e pudesse lev�-los
at� Prestes n�o se materializavam. Duas semanas de
rigoroso controle dos seus passos s� renderam uma pista
falsa: o endere�o de um certo dr. Balestre, que depois
descobriu-se ser o m�dico que tratava da flebite de
Alphonsine Vall�e. Seis dias ap�s a pris�o de Ghioldi, na
noite de 28 de janeiro, L�on Vall�e caminhava com sua
mulher pelo centro do Rio de Janeiro, quando notou que dois
homens os seguiam. Familiarizado com o centro da cidade,
caminhou em dire��o � avenida Rio Branco e � rua
Gon�alves Dias, onde o intenso movimento de pedestres e
uma sequ�ncia de galerias entre a rua e a avenida
poderiam ajud�-los a escapar. Quando percebeu um leve
descuido dos investigadores, entrou em uma das galerias,
saiu pela avenida Rio Branco, tomou um t�xi e desapareceu.
O casal mandou o carro seguir para o aparelho onde estava
Eduardo Ribeiro Xavier, o Ab�bora, membro da dire��o do
partido, que semanas depois os tiraria do Brasil,
embarcando-os para Buenos Aires. Ao saber da fuga dos
Vall�e, Filinto M�ller, preocupado com a desenvoltura dos
comunistas, n�o quis correr mais riscos e mandou que
prendessem logo um tal americano residente em
Copacabana, cujo nome e endere�o Ghioldi fornecera, e que
estava sendo seguido havia seis dias. Minutos depois
policiais invadiam o pr�dio n�mero 972 da rua Nossa
Senhora de Copacabana e levavam preso um jovem e
esbelto norte-americano de quase dois metros de altura:
Victor Allen Barron.
A pris�o de um aut�ntico cidad�o norte-americano caiu do
c�u para a embaixada dos Estados Unidos, que ganhava,
assim, um pretexto legalmente indiscut�vel para intrometerse
ainda mais nas investiga��es da pol�cia brasileira.
Embora tivesse anunciado que estava tuberculoso, Barron
foi impiedosamente surrado pelos homens do tenente
Eus�bio de Queiroz Filho, que chefiava um batalh�o da
Pol�cia Especial apelidado com deboche pela popula��o de
�os cabe�as de tomate� � quinhentos lutadores
profissionais escolhidos a dedo entre os efetivos militares e
que se distinguiam das outras tropas pelo uso de um quepe
vermelho. Xanthaky foi destacado pela embaixada para
interrogar o americano e encontrou-o em estado lastim�vel
� apesar de o capit�o Filinto M�ller ter-lhe assegurado que
�ningu�m tocara um dedo no preso�. Durante o
interrogat�rio, Barron tentou negar qualquer liga��o com o
movimento revolucion�rio do final do ano anterior, e
declarou que estava no Brasil como representante comercial
da John Reiner & Co., uma ind�stria de motores de Nova
York. Ele teve dificuldades para explicar como mantinha o
elegante apartamento, seu fino guarda-roupa e um
autom�vel de luxo sem ter conseguido vender um s� motor
da empresa que dizia representar. Al�m disso, tinha contra
si o que Xanthaky considerava uma evid�ncia clara de
envolvimento pol�tico: os vistos de seu passaporte
revelavam que ele fizera o trajeto tradicional dos agentes
do Comintern, com passagens obrigat�rias por Amsterdam
e Montevid�u, �importantes centros de trabalho comunista�,
segundo o relat�rio de Xanthaky.
Embora suspeito de ser militante comunista, Barron era
um cidad�o norte-americano e merecia, portanto, cuidados
maiores por parte do agente da embaixada. No extenso
informe confidencial enviado ao secret�rio de Estado Cordel
Hull e assinado pelo embaixador Gibson, Xanthaky
procurava eximir-se de qualquer responsabilidade quanto ao
destino que a pol�cia pudesse dar a Barron:
Enfatizei � pol�cia a gravidade de se tratar mal cidad�os americanos. Recebi
garantias definitivas de que Barron n�o ser� mais submetido a torturas e que,
nas pr�ximas vezes, suspeitos americanos ser�o entrevistados pela
Embaixada antes de serem interrogados pela pol�cia e que n�o haver� mais
interrogat�rios severos em tais casos. Deram-me tamb�m garantias de que a
Barron ser� providenciado bom atendimento m�dico. Estou francamente
preocupado sobre tratar este caso.
Depois de ter visto o resultado do tratamento dado a
Ewert e Elise, Xanthaky parecia prever o risco de se deixar
nas m�os de Filinto M�ller o homem que supostamente
tinha not�cias sobre o paradeiro de Lu�s Carlos Prestes:
O caldeir�o comunista est� fervendo aqui, e se houver algum modo de se
estabelecer que Barron n�o esteve envolvido, h� certa urg�ncia em tir�-lo do
cen�rio. Ele, aparentemente, reluta ou � incapaz de nos ajudar; sua hist�ria
n�o soa bem e, do jeito que as coisas est�o no momento, a pol�cia tem raz�es
de sobra para consider�-lo um grave suspeito. Ele n�o parece disposto a
contribuir para a elucida��o do caso. Sua situa��o e suas atitudes s�o menos
uma manifesta��o de que � inocente do que uma reitera��o da frase: �Eles
n�o t�m nada contra mim�.
O pr�prio Cordel Hull telegrafaria confidencialmente ao
embaixador Gibson, dias depois de receber o relat�rio,
passando-lhe a ficha que o Departamento de Estado
levantara sobre os antecedentes de Barron: ele era filho do
l�der comunista Harrison George, que segundo a m�e,
divorciada dele, teria financiado a viagem do jovem �
Am�rica do Sul. A acusa��o da montagem de uma esta��o
de r�dio repetia o procedimento adotado pelo Comintern em
situa��es anteriores, como no caso da China. E quanto ao
alto padr�o de vida que Barron levava no Brasil, n�o havia
d�vidas: a empresa Reiner declarara firmemente que Barron
n�o conseguira fechar qualquer neg�cio na Am�rica do Sul,
o que aumentava as suspeitas de que o contrato servia
apenas para dar cobertura �s suas atividades subversivas. E
nem Barron nem sua fam�lia eram conhecidos como pessoas
de posses, que pudessem fazer viagens de luxo.
Provavelmente por desconhecer a pol�cia de Filinto M�ller, o
secret�rio de Estado norte-americano encerrava seu
telegrama tranquilo quanto ao destino de Barron:
O Departamento transmitir� outras informa��es quando for poss�vel.
Qualquer informa��o que voc� puder obter de Barron sobre suas atividades
no movimento comunista internacional ser�o bem-vindas. Em vista do que foi
dito e tamb�m em vista das garantias da pol�cia brasileira a respeito do
futuro tratamento a ser dado a Barron, o Departamento pensa que n�o h�
nenhuma necessidade atual de interven��o da Embaixada a seu favor.
Um dos informes remetidos por Xanthaky a Hull dava
claras indica��es de que Barron havia sido tra�do por
algu�m antes de ser preso. A pol�cia contou ao agente da
embaixada americana que dispunha de informa��es a
respeito de �um americano, jovem, encarregado da
montagem de uma esta��o de r�dio, e que era filho de um
certo Harrison George, que se divorciou v�rias vezes�. E, no
relat�rio enviado a Washington no in�cio de fevereiro de
1936, seria poss�vel perceber que Barron come�ava a
adotar a mesma t�cnica utilizada por Ewert e Elise: falar
apenas o que era do conhecimento da pol�cia. Ele
reconheceu que de fato viera ao Brasil para montar a
esta��o de r�dio � que j� tinha sido desativada, em 27 de
novembro, e transferida para um aparelho no sub�rbio, cujo
endere�o ele desconhecia �, que estava a servi�o do
Comintern e tinha transportado Prestes at� um ponto da
cidade. �Al�m disso�, ele repetiu dezenas de vezes a
Xanthaky e aos policiais que o espancavam, �voc�s n�o
ter�o nem uma v�rgula a mais de mim.�
Como a embaixada parecia desinteressar-se por Barron,
Xanthaky voltou � carga sobre os Ewert. Repetindo o que
fizera algumas vezes, passou � noite pela Pol�cia Central e
de l� foi levado por Jullien ao morro de Santo Ant�nio. Agora
Xanthaky n�o perguntava tanto pela �conex�o brasileira�,
mas estava �vido de informa��es sobre o Partido Comunista
americano. Ele passou rapidamente pela cela onde Elise
estava presa, conversou com ela durante alguns minutos e
dirigiu-se � de Ewert para interrog�-lo. Xanthaky era
obrigado a fazer horas de rodeios para obter uma
informa��o m�nima sobre algum acontecimento de cinco
anos antes, na China. Mas era o pr�prio Ewert quem o
desanimava:
� Senhor Xanthaky, essa informa��o a pol�cia de seu pa�s
j� tem...
Frustrado com a colheita insignificante, Xanthaky
preparava-se para sair quando Ewert dirigiu-lhe a palavra:
� Um dos policiais disse-me que Laval, o primeiroministro
franc�s, renunciou ao cargo. � verdade?
� Sim, � verdade. O novo premi� � Sarrault.
� E Daladier � membro do novo gabinete?
� Por que o senhor quer saber? Daladier � comunista?
Ewert sorriu:
� N�o, n�o � comunista, mas tem grandes inclina��es
liberais, o que � melhor do que nada.
A obstina��o de Ewert em manter sil�ncio absoluto sobre
informa��es importantes, apesar da crueldade do
tratamento que a pol�cia lhe dedicava, n�o era, por�m, um
comportamento generalizado entre os presos. Por ter se
passado para o lado inimigo, como garantiram alguns de
seus ex-companheiros, ou por ter sido massacrado nas
sess�es de tortura nos primeiros dias ap�s sua pris�o,
Ant�nio Maciel Bonfim, o Miranda, contou tudo o que sabia �
pol�cia. Falou demais na hora do choque el�trico e das
surras com chicote de arame, falou demais na hora dos
depoimentos formais, confirmou e reconfirmou o que a
pol�cia sabia e o que ela queria saber. Ele contou que
Bangu, seu sucessor na dire��o do partido, era Lauro
Reginaldo da Rocha; que, al�m de Garoto, Prestes usava
tamb�m o codinome Ant�nio, e que nessas ocasi�es s�
falava em espanhol nas reuni�es; que Negro, Berger e
Arthur Ewert eram a mesma pessoa: o representante da
Internacional Comunista no Brasil, que dirigia as reuni�es do
Partido Comunista e ditava orienta��o aos demais l�deres.
Embora na reuni�o que precedera a insurrei��o Miranda
tivesse alardeado sua capacidade de �parar o pa�s para
apoiar a revolta�, na pol�cia ele disse humildemente que
�pouco poderia fazer o partido que dirigia, para apoiar a
revolu��o, pelas poucas for�as com que contava�. E
identificou, um por um, os donos dos codinomes
encontrados na documenta��o apreendida na sua casa, na
de Ewert e na de Prestes, dando de quebra a posi��o que
cada pessoa ocupava no partido: Martins, Milion�rio e Nico
eram nomes de Hon�rio de Freitas Guimar�es, membro da
dire��o do partido; Gurgel era o m�dico Josias Leite;
Machado era Le�ncio Basbaun, residente na Bahia; Gusm�o
era Jos� Medina, membro do partido; Carlos e J�lio eram os
codinomes da mesma pessoa, o ex-militante Augusto
Besouchet; Emma e Antonia eram os codinomes da mulher
de Hon�rio de Freitas Guimar�es; Meo era a forma cifrada
de referir-se a Montevid�u; Ismar ou Almeida eram
codinomes de Ilvo Meirelles; Costa, Carlos e Firmo eram
nomes adotados no partido pelo major Carlos Costa Leite;
todos os documentos encontrados com a letra M, de
Miranda, ao final, eram de responsabilidade do Secretariado
Nacional do Partido Comunista; Nat era o codinome da
escritora Eneida de Moraes; Ramalho era o codinome de
Oswaldo Costa, jornalista e diretor do jornal A Manh�;
quanto a Miranda, Adalberto, Adalberto de Andrade
Fernandes, eram os codinomes dele pr�prio, Ant�nio Maciel
Bonfim, secret�rio-geral do Partido Comunista, Se��o
Brasileira da Internacional Comunista. Cada calhama�o que
a pol�cia colocava � sua frente ia sendo traduzido,
decodificado, explicado e identificado.
Mesmo sem ter tra�do o partido e sem que a pol�cia o
tivesse tratado com a mesma brutalidade aplicada a
Bonfim, o argentino Rodolfo Ghioldi tamb�m foi generoso
nas suas declara��es. Anos depois, Ghioldi diria que a
viol�ncia utilizada pela pol�cia contra si resumiu-se a
�amea�as e alguns golpes�. Mesmo assim, ele identificou
como sendo de L�on-Julles Vall�e a foto que lhe era exibida,
mesmo sem saber se ele havia ou n�o sido preso; trouxe �
tona um nome desconhecido dos policiais, o do americano
Victor Barron; reconheceu como sendo de Arthur Ewert
v�rios manuscritos apanhados pela pol�cia; revelou o
relacionamento existente entre o prefeito do Distrito
Federal, Pedro Ernesto, e Lu�s Carlos Prestes; deu o
endere�o do �ltimo aparelho de Prestes, na rua Nossa
Senhora de Copacabana, e disse que Prestes sa�ra de l� no
dia 19 de janeiro; contou que o dono dos aparelhos das ruas
S� Ferreira e Jos� Higyno era Benjamim Schneider. E
ofereceu de presente aos policiais uma informa��o
absolutamente nova: Prestes estava casado com uma
mulher clara, provavelmente estrangeira � pois sempre se
comunicava com ele em franc�s � e que ficava
permanentemente a seu lado. Ghioldi ignorava o sobrenome
da mulher, mas tinha absoluta certeza de seu nome: Olga.
11
Diante de Filinto, um nome: Olga de Tal
O n�mero de presos desde o dia 27 de novembro era t�o
grande e eles estavam espalhados por tantos pres�dios que
a pr�pria pol�cia perdera a no��o de quem ainda estava
solto ou quem j� havia sido capturado. Certamente por isso,
a partir das informa��es dadas por Rodolfo Ghioldi, o
delegado Ant�nio Canavarro Pereira enviou, no mesmo dia
do depoimento do dirigente comunista argentino, o seguinte
of�cio ao capit�o Miranda Correia:
Exmo. Sr.
Capit�o Delegado Especial de
Seguran�a Pol�tica e Social
Solicito a V. Sa. provid�ncias no sentido de que Olga de Tal, referida nas
declara��es de Rodolpho Ghioldi, compare�a a este cart�rio no dia 8 de
mar�o p. vindouro, �s 12 horas, para prestar declara��es.
Sauda��es,
O Delegado
Miranda Correia n�o recebeu o of�cio no mesmo dia. Ele
tinha viajado a S�o Paulo para assistir, no pres�dio Maria
Z�lia, a uma acarea��o entre dois dirigentes comunistas
citados em depoimentos de presos do Rio de Janeiro.
Embora o grosso da repress�o se concentrasse no Rio, S�o
Paulo tamb�m fora varrida pela pol�cia pol�tica. Com os
c�rceres entupidos, a pol�cia transformou numa gigantesca
pris�o a velha f�brica Maria Z�lia, no bairro do Br�s, para
alojar centenas de comunistas, aliancistas e simpatizantes
apanhados pelo arrast�o que se seguiu a novembro. E foi
para l� que o longo bra�o da repress�o de Vargas acabou
levando o milion�rio Celestino Paraventi, denunciado
anonimamente por ter dado guarida a Olga e Lu�s Carlos
Prestes em sua volta ao Brasil. Como ele pr�prio diria, entre
as centenas de presos do Maria Z�lia havia gente
�envolvida at� o fio do cabelo na revolta e gente que nem
sonhava por que tinha sido presa�. Longe de se atormentar
com a pris�o, Paraventi se divertia. De manh� juntava-se �
massa de presos e exibia seus dotes de tenor ao cantar com
os colegas de cadeia o hino da Alian�a Nacional Libertadora
e a �Internacional�.
E foi ali, no meio daquela confus�o, que Paraventi
come�ou a descobrir que �aquela hist�ria de comunismo
n�o me cheirava bem�. Rom�ntico, ele n�o conseguia
entender como � que, v�timas da mesma adversidade, os
comunistas dividiram-se, na cadeia, em tantas correntes e
tend�ncias diferentes, �cada um querendo comer o outro�.
Paraventi tentava descobrir e n�o encontrava ali �a
fraternidade e a compreens�o que Prestes me dissera
serem inerentes ao comunismo�. Desolado, ele decidiu
espiar uma reuni�ozinha de um grupo comunista num canto
da pris�o, �para ver de que grupo eles falavam mal�.
Quando chegou perto, um deles pediu sil�ncio e advertiu-o:
� Isto n�o � uma c�lula. � uma sess�o esp�rita. Se voc�
quiser pode assistir.
Mesmo n�o acreditando naquilo, Paraventi entrou na roda,
por falta do que fazer. Quando o esp�rito baixou, o homem
que o recebera bateu no ombro do jovem milion�rio:
� Voc� � um m�dium muito forte, vai ser muito �til ao
espiritismo.
Meses depois, ao ser libertado, Paraventi n�o deixaria de
ajudar os amigos comunistas, mas anunciava que havia
trocado �o comunismo pelo espiritismo�.
Miranda Correia fora obrigado a deixar �s pressas
esp�ritas e comunistas do Maria Z�lia para retornar ao Rio e
receber a informa��o dada por Ghioldi. Surpreso com a
novidade, decidiu: se Prestes estava casado, e com uma
estrangeira, o capit�o Filinto M�ller tinha que saber daquilo
imediatamente. Esta, ali�s, era a ordem que circulava entre
os delegados e chefes de equipes na repress�o aos
comunistas: qualquer suspeita, qualquer not�cia ou mera
cita��o do nome de Prestes em depoimentos devia ser
levada prioritariamente ao chefe da pol�cia.
Havia, na verdade, dois Filinto M�ller perseguindo Prestes.
Um era o temido e onipotente chefe de pol�cia da ditadura,
de quem o pr�prio presidente da Rep�blica e seu ministro
da Justi�a, Vicente Rao, cobravam diariamente a pris�o
imediata do antigo chefe da Coluna. As investiga��es
mostravam que n�o havia mais nenhum peixe gra�do �
solta, com exce��o de Prestes, o �ltimo e o mais importante
cabe�a da revolta de novembro. Embora a Chefatura de
Pol�cia do Distrito Federal fosse um cargo de baixo escal�o
na hierarquia da Rep�blica, a insurrei��o de novembro
acabara por atribuir a Filinto M�ller o poder e a import�ncia
de um vice-rei, um primeiro-ministro. Com agentes e espias
infiltrados em todas as reparti��es e gabinetes do governo,
ele detinha informa��es sobre as atividades de todas as
personalidades relevantes do pa�s. A repress�o aos
comunistas de Moscou exigia armas, homens,
equipamentos, ve�culos, e isso tornava a pol�cia do Rio um
sorvedouro de verbas que ele solicitava pessoalmente a
Get�lio Vargas e para as quais n�o havia limites. A cada
semana os jornais noticiavam que o presidente havia
autorizado a dota��o de mais alguns milhares de contos de
r�is para �o combate � subvers�o�. Filinto M�ller era, de
fato, um pouco ministro da Guerra, um pouco ministro da
Justi�a e um pouco ministro da Informa��o. E, sem ser
ministro de nada, participava das reuni�es do gabinete e
despachava pessoalmente com Get�lio Vargas. Com
homens, dinheiro e informa��es nas m�os, s� o pr�prio
Vargas reunia mais poderes que o chefe de pol�cia do Rio.
O outro Filinto que estava no encal�o de Lu�s Carlos
Prestes n�o era o policial ca�ando o comunista, mas o oficial
da Coluna Prestes � procura do antigo chefe para um acerto
de contas. Quase onze anos antes, em 14 de abril de 1925,
um boletim de guerra assinado pelo general Miguel Costa,
um dos comandantes da Coluna, anunciava � tropa algumas
promo��es por �bravura, intelig�ncia e capacidade de
comando�. O mesmo ato que elevava a tenente-coronel o
major Oswaldo Cordeiro de Farias promovia o capit�o Filinto
M�ller � patente de major das for�as revolucion�rias.
Prestes justificou a decis�o de mandar promover Filinto com
o argumento de que era necess�rio ter um oficial
comandando a artilharia dispon�vel: dois canh�es de 75
mil�metros e dois canh�es de montanha. E, al�m disso,
todos os soldados e sargentos da Artilharia tinham se
rebelado sob as ordens de Filinto, no quartel de Osasco, em
S�o Paulo.
Tanto a promo��o quanto a pr�pria perman�ncia de Filinto
na Coluna, no entanto, durariam muito pouco. Foram
necess�rios apenas nove dias para que Prestes descobrisse
que mandara promover o homem errado. Filinto escrevera
uma carta a seu superior imediato, o general Miguel Costa,
anunciando que iria a Assun��o, no Paraguai, para uma
visita � fam�lia, exilada naquela cidade, e prometia juntar-se
novamente � Coluna no estado do Mato Grosso. Mas
mandou outra carta, dirigida aos sargentos e soldados que o
acompanhavam desde o levante de 5 de julho, em S�o
Paulo, propondo a deser��o coletiva. Na segunda carta dizia
� tropa que para ele estava tudo acabado e que n�o tinha
mais esperan�as no sucesso da Coluna. Cada um fizesse o
que bem entendesse, pois ele, a partir daquele momento,
n�o se responsabilizava mais por nenhum dos seus
subordinados. O que o major Filinto M�ller n�o poderia
imaginar � que as duas cartas iriam cair nas m�os de
Prestes. Quando o chefe da Coluna tomou conhecimento
dos documentos, o rec�m-promovido major das for�as
revolucion�rias fugira para a Argentina (e n�o para o
Paraguai, como dissera), levando nos bolsos cem contos de
r�is da intend�ncia da Coluna. Furioso, Prestes exigiu do
general Miguel Costa, comandante da 1a Divis�o
Revolucion�ria, que o desertor fosse destitu�do da promo��o
recebida na semana anterior e que se distribu�sse
imediatamente outro boletim de guerra, expulsando-o da
Coluna. No mesmo dia chegava �s m�os de Louren�o
Moreira Lima, secret�rio de campanha da Coluna, a
execu��o da ordem de Prestes:
Boletim no 5
Acantonamento de Porto Mendes, Estado do Paran�, aos 25 de abril de
1925.
Para conhecimento desta Divis�o e devida execu��o, publico o seguinte:
Expuls�o de Oficial.
Seja exclu�do do estado efetivo das for�as revolucion�rias o capit�o Filinto
M�ller, por haver, covardemente, se passado para o territ�rio argentino,
deixando abandonada a localidade de Foz do Igua�u, que se achava sob a sua
guarda, resultando que as pra�as que compunham a mencionada guarda o
imitaram, neste gesto indigno, levando armas e muni��es pertencentes �
Revolu��o. Oxal� que esse oficial futuramente se justifique perante seus
companheiros que ainda lutam em defesa da Rep�blica, dessa acusa��o que
pesa na sua consci�ncia de filho desta grande P�tria.
Ass. General Miguel Costa
Comandante da 1a Divis�o Revolucion�ria
Durante onze anos, Filinto nutriu o �dio pela acusa��o que
Prestes mandara fazer-lhe naquele boletim: covarde,
desertor, indigno. Mas agora, em fevereiro de 1936, o
destino se encarregara de inverter as posi��es, e era ele
quem tinha o poder, os homens, as armas. O chefe de
pol�cia prometera a Vargas entregar-lhe �em quest�o de
dias� a cabe�a do antigo comandante da Coluna, e para isso
valia tudo: mais dinheiro, mais armas, mais algumas
centenas de atletas para ampliar a tropa dos �cabe�as de
tomate� do tenente Eus�bio de Queiroz. Em uma reuni�o
com seus chefes de turma de capturas, Filinto anunciou
solenemente que aquele que chegasse primeiro at� Prestes
e o prendesse � ou matasse � receberia dele,
pessoalmente, o pr�mio de cem contos de r�is.
Ironicamente, era a mesma quantia que, em 1925, Filinto
subtra�ra da Coluna e levara para o ex�lio.
O Rio entrava em fevereiro, mas nada havia que
identificasse a cidade com a �capital universal da alegria e
do Carnaval�, como escreveu um cronista mundano da
�poca. Primeiro por causa da chuva, que ca�a intermitente
havia semanas, tirando das ruas o colorido e a gra�a da
decora��o carnavalesca. Em seguida, porque o capit�o
Filinto M�ller n�o media a aplica��o de seu poder no cerco a
Prestes e a sua rec�m-revelada esposa, a estrangeira Olga
de Tal. N�o importavam as leis: o que valia eram as
portarias que fizeram com que o Carnaval de 1936 entrasse
para a hist�ria como o mais acabrunhado e sem alegria de
todos os tempos. J� no come�o do ano Filinto decretara que
durante a vig�ncia do estado de s�tio ningu�m poderia usar
m�scaras nos bailes, festejos carnavalescos e ranchos. Para
substitu�-las, o carioca importou o colar de havaiana: n�o
era a mesma coisa, mas pelo menos dava algum colorido �s
festas. Quando faltavam poucos dias para a �semana
gorda�, mais portarias com novas proibi��es: as batalhas de
confete s� seriam permitidas em clubes, desde que com
autoriza��o pr�via da pol�cia. Cada clube poderia realizar no
m�ximo tr�s batalhas. As m�scaras continuavam proibidas,
assim como todas as fantasias consideradas �atentat�rias �
moral das fam�lias�. Os ensaios de blocos e ranchos s�
podiam ser feitos ap�s a devida autoriza��o do chefe de
pol�cia, e teriam que se encerrar impreterivelmente �s dez
horas da noite. Filinto M�ller tentava reger a �capital
universal da alegria e do Carnaval� com o regulamento de
um convento de freiras.
Mas mesmo um Carnaval sem fantasias, sem m�scaras e
com pouco confete era uma novidade para uma alem� da
Baviera. Atrav�s das frestas da janela do quarto, Olga se
deliciava com os grupos que passavam desafiando a
autoridade da pol�cia, sambando com os rostos pintados e
pouqu�ssima roupa sobre o corpo. O pesado r�dio de
v�lvulas que haviam conseguido com o sapateiro Manoel
dos Santos repetia dezenas de vezes os poucos sucessos
daquele ano: �Querido Ad�o�, marchinha cantada por
Carmen Miranda, �� bom parar�, de Noel Rosa, cantada por
Francisco Alves, e a �Marchinha do grande galo�, de
Lamartine Babo, cuja interpreta��o de Almirante arrancava
gargalhadas dela no refr�o em que o cantor repicava o �c�
c� c� c� c� c� c��. Havia muito pouco o que fazer ali no
aparelho da rua Hon�rio, no M�ier. Mesmo habituados �
clandestinidade imposta a eles desde a chegada ao Brasil,
Olga e Prestes sabiam que daquela vez era imposs�vel sair
de casa. Quando os alto-falantes dos corsos da rua
paravam, os dois se deitavam no min�sculo quarto e Olga
punha-se a traduzir para Prestes poemas em alem�o e
trechos de Goethe e Schiller, seus autores prediletos.
A casa era muito modesta e os obrigava a cuidados
especiais para n�o serem identificados pelos vizinhos.
Dentro ficavam duas salinhas pequenas, dois dormit�rios e
uma cozinha. Nos fundos, num c�modo separado da casa, o
banheiro. Como os muros laterais do quintal eram muito
baixos e havia vizinhos de ambos os lados, eles s� podiam ir
ao banheiro � noite, atravessando o quintal pelas sombras e
com as luzes de fora apagadas. As roupas de Olga e de
Prestes � o luxuoso enxoval da lua de mel, comprado em
Paris � ficaram para tr�s, na casa de Ipanema, e eles foram
obrigados a improvisar. Uma pe�a de linho comprada por
dona J�lia, a mulher do sapateiro Manoel, acabou se
transformando num elegante vestido para Olga �
desenhado e cortado por Prestes e costurado por ela.
Mesmo submetidos a absoluta clandestinidade, os dois
n�o estavam isolados do mundo e da pol�tica. Dentro dos
jornais que Manoel trazia diariamente para casa vinham
pequenos pacotes feitos com papel de embrulhar p�o, que o
casal abria e lia avidamente: eram as not�cias mandadas
pelos espi�es que o Partido Comunista tinha dentro das
pris�es, nas delegacias de pol�cia e at� no gabinete de
Filinto M�ller. Quando a Coluna Prestes chegou ao fim,
centenas de soldados, cabos e sargentos voltaram ao Brasil
e n�o tinham como arrumar trabalho. O tenente Jo�o
Alberto, que participara da Coluna e que em 1930 decidira
ficar com Get�lio, fora nomeado pelo presidente, entre 1932
e 1933, para o cargo que depois seria ocupado por Filinto:
chefe de pol�cia do Distrito Federal. E foi ele quem se
encarregou de colocar como investigadores e comiss�rios
policiais os antigos combatentes da marcha a p� pelo Brasil
� muitos dos quais, fi�is a Prestes e a suas ideias, atuavam
como informantes do partido dentro da m�quina policial do
governo. Do pr�dio da rua da Rela��o, onde ficava o
gabinete de Filinto, do morro de Santo Ant�nio ou da pris�o
da rua Frei Caneca, os pap�is eram mandados para Ilvo
Meirelles, que os entregava a Manoel dos Santos. Muitas
vezes apareciam nos pacotes, junto com os resumos de
depoimentos ou revela��es sobre uma �batida� que a
pol�cia iria fazer, bilhetes de amigos de Prestes � que n�o
tinham como localiz�-lo, mas sabiam quem podia faz�-lo. O
pr�prio Pedro Ernesto, prefeito do Rio, chegou a utilizar os
misteriosos mensageiros para oferecer a Olga e Prestes uma
casa mais segura, para que os dois se escondessem. Tanto
esta como outras ofertas de ref�gios � Virg�lio de Melo
Franco, um deputado federal filho de liberais de Minas
Gerais, ofereceu sua casa a eles por duas vezes � eram
sistematicamente rejeitadas por Prestes, que justificava a
recusa explicando seus temores a Olga:
� Eles s�o gente muito boa, mas do ponto de vista de
classe eu n�o posso confiar neles. Sem querer, podem ser
instrumento de uma provoca��o. Porque hoje n�o sabem
onde estamos, mas saberiam para onde f�ssemos. E se
forem presos e torturados? N�o podemos arriscar.
Um dos jornais levados � rua Hon�rio por Manoel deixou
Olga e Prestes apreensivos. Uma pequena not�cia dava
conta de que o delegado Lineu Costa havia solicitado ao
capit�o Filinto M�ller a abertura de inqu�rito administrativo
para apurar a responsabilidade pela viola��o dos autos do
processo sobre a revolta. N�o havia d�vidas de que a pol�cia
come�ava a desconfiar dos espi�es comunistas dentro das
delegacias e nos cart�rios especiais nelas instalados para
ouvir os presos da insurrei��o. E foi atrav�s de um desses
informantes que Prestes ficou sabendo que Filinto M�ller em
pessoa estava dirigindo, de seu gabinete, a opera��o
policial-militar montada para prend�-lo e a sua mulher. O
relat�rio levado por Manoel dos Santos dizia que nos �ltimos
dias Get�lio Vargas tinha autorizado um novo refor�o dos
tais �cabe�as de tomate� � e que os homens come�ariam a
realizar uma �opera��o pente fino�, revistando rua por rua,
casa por casa. Filinto sabia que no tempo de garoto Prestes
tinha vivido alguns anos no bairro da Boca do Mato, pr�ximo
ao M�ier, e decidira come�ar a ca�ada por ali. O informe
garantia tamb�m que a pol�cia n�o tinha no��o do endere�o
onde o casal estava escondido � e que as duas �nicas
informa��es obtidas nesse sentido, dadas por Barron e por
um dirigente do partido durante uma sess�o de torturas,
eram muito vagas. Falavam apenas que Olga e Prestes
estavam escondidos �para os lados do M�ier�, o que n�o
ajudava muito � pol�cia. Uma �ltima not�cia da opera��o
soou como uma pilh�ria para Prestes: Filinto obrigava o
policial que estivesse chefiando as batidas a levar pela
coleira o cachorro policial Pr�ncipe, que Prestes dera de
presente a Olga e que fora deixado na casa da rua Bar�o da
Torre no dia da pris�o de Ewert. A pol�cia acreditava que,
pelo faro, o c�o poderia ajudar a localizar seus donos.
Dias depois, um novo relat�rio chegava com informa��es
mais precisas � e mais graves. Depois de bater toda a Boca
do Mato sem resultados, a pol�cia come�aria naquela
madrugada a esquadrinhar o M�ier. Comandando o
trabalho, Filinto dividira o mapa do bairro em quatro partes,
ficando cada uma delas entregue a um pelot�o de
cinquenta �cabe�as de tomate�, chefiados respectivamente
pelos policiais Jullien, Galv�o (o mesmo carcereiro que
levava Xanthaky para interrogar os Ewert no morro de Santo
Ant�nio), Carlos Lolotti e Paulo Brasil. Al�m dos quatro
chefes de grupo e dos duzentos soldados da Pol�cia
Especial, todos armados de metralhadoras, algumas
dezenas de policiais civis rondavam as esquinas, entravam
nos bares, vigiavam qualquer movimento suspeito. As
ordens de Filinto eram expressas: todas as ruas seriam
varejadas e, nelas, nem uma s� casa poderia deixar de ser
vistoriada. Antes de bater � porta da casa, os soldados
deveriam cerc�-la tamb�m dos lados e pelo fundo, para
evitar fugas. � menor suspeita de que tivesse sido
localizada a casa de Olga e Prestes, deveria ser dado um
tiro para o alto, e todos os grupos nas imedia��es
convergiriam para o local. Encontrada a casa, a ordem era
entrar atirando para matar.
Duas semanas depois de iniciada no M�ier, a opera��o
dera resultados p�fios. Em uma casa pegaram alguns livros
considerados subversivos e, de outra feita, um homem que
tentara escapulir da pol�cia chegou a causar certo alvoro�o
� mas era apenas um ladr�o comum, procurado pelo
delegado do bairro. Na madrugada do dia 5 de mar�o �
sempre sob uma chuva torrencial, que parecia n�o terminar
jamais � cinquenta soldados e tr�s policiais civis,
comandados pelo comiss�rio Jos� Torres Galv�o,
come�aram a vistoriar as casas da rua Hon�rio. Entraram
pela ponta da rua que come�ava no Engenho de Dentro,
onde havia cal�amento e o ch�o era plano. Por volta das
duas horas da madrugada ocorreu um pequeno incidente:
em uma das casas rastreadas morava um alto funcion�rio
do Tribunal do J�ri, que considerou a invas�o, �quela hora,
um desrespeito a seus direitos individuais. Galv�o
comunicou-se pelo r�dio de campanha de um dos carros
com o capit�o Filinto M�ller e recebeu uma ordem r�spida:
�Prenda o sujeito e quem mais se opuser �s buscas�. Cada
quarto, sala, cozinha, banheiro e quintal era revistado
rigorosamente. Velhos, mulheres e crian�as eram
despertados para que Galv�o pudesse ver se �o homem�
estava escondido ali. �s quatro horas da manh� o grupo
entrou na parte �ngreme da rua, onde o cal�amento ainda
n�o havia chegado. O dil�vio das �ltimas semanas tinha
aberto um sulco no meio da rua, por onde corria lama
grossa e vermelha. Naquele trecho os soldados tiveram que
subir a p�, pois os carros da pol�cia que ali haviam se
aventurado estavam atolados at� o meio da lataria. �s cinco
horas uma patrulha chegou � casinha do n�mero 279.
Repetindo o que vinham fazendo maquinalmente havia
tantos dias, cerca de dez soldados deram a volta pelos
fundos e dos dois lados, enquanto um grupo, com Galv�o �
frente, batia forte na porta de entrada. Dona J�lia acordou
sobressaltada e perguntou antes de abrir o trinco:
� Quem �?
Galv�o, do outro lado:
� Abra, � a pol�cia.
Ela abriu uma fresta e se assustou com a quantidade de
armas apontadas contra seu rosto. Um dos soldados que
estava de guarda na porta dos fundos gritou:
� Galv�o, tem algu�m tentando abrir a porta aqui de
tr�s!
Era Prestes, ainda de pijama e chinelos, que tentava
escapar pelo quintal. Quando ouviu o grito, voltou e quis
entrar no quarto, por cuja janela pensava saltar para a rua.
N�o houve tempo. Ao perceber quem era o homem que
tentava escapar, Galv�o deu a ordem aos soldados que se
espremiam na porta de entrada:
� Entrem atirando! � Prestes!
Um n�mero indefinido de soldados e policiais civis
avan�ou sobre dona J�lia, de metralhadoras engatilhadas,
em dire��o ao pequeno corredor por onde Prestes entrara.
Foi ent�o que aconteceu o inesperado. Uma mulher alta
pula na frente de Prestes, protegendo-o com seu corpo, e d�
um berro para os soldados. N�o era um pedido de
clem�ncia, mas uma ordem dada por Olga:
� N�o atirem! Ele est� desarmado!
O gesto inesperado deixou-os paralisados. Talvez por ser
mulher, talvez por ter gritado com tanta energia, a verdade
� que, se houve oportunidade para levar Prestes morto, ela
n�o tinha sido aproveitada. Galv�o chegou � porta e
disparou seu rev�lver para o alto � e segundos depois toda
a rua Hon�rio estava tomada por um ex�rcito de policiais
encharcados. Francisco Jullien apareceu trazendo Pr�ncipe
pela coleira e o c�o logo reconheceu os donos. Sem revelar
medo, Prestes pediu a Galv�o para mudar de roupa, mas
n�o conseguiu:
� O senhor vai assim mesmo.
Na rua, tentaram coloc�-los em carros separados, mas
Olga percebeu que aquilo significaria a morte de Prestes.
Agarrou-se ao marido com tamanha for�a que n�o houve
alternativa sen�o permitir que os dois fossem transportados
juntos para a sede da Pol�cia Central. Havia tantos policiais
guardando-os dentro do ve�culo que Olga teve que ir
sentada no colo do marido. O comboio atravessou a cidade
despertando os moradores das ruas por onde passava:
sirenes ligadas, tiros para o alto, garrafas de cacha�a
correndo nos caminh�es que transportavam os duzentos
soldados molhados.
A chegada do casal e de dona J�lia, que viera em outro
carro, transtornaria a vida do pr�dio da rua da Rela��o.
Homens armados de metralhadoras guardavam todas as
portas e os cruzamentos das ruas que davam acesso ao
edif�cio e, no port�o principal, o capit�o Miranda Correia,
protegido por forte escolta, esperava o cortejo. Ele j�
comunicara a pris�o de Prestes a Filinto M�ller, que preferiu
n�o estar presente � chegada de seu antigo comandante.
Ao ser informado, Filinto telefonara ao presidente Get�lio
Vargas para transmitir-lhe a not�cia e voltara a dormir.
Quando desembarcaram no sagu�o do edif�cio, Olga e
Prestes foram separados. Miranda Correia informou que eles
seriam ouvidos em salas diferentes. Prestes foi colocado
dentro de um pequeno elevador, sempre acompanhado por
policiais armados, e ela levada para outra sala. Quando a
porta gradeada do elevador se fechou, os dois se olharam
pela �ltima vez.
12
A pol�cia suicida Barron
Foi o tenente Eus�bio de Queiroz Filho, chefe dos
�cabe�as de tomate�, quem transmitiu a not�cia a Prestes,
minutos ap�s sua chegada � Pol�cia Central. E o fez de
forma provocadora e sorridente:
� � bom que o senhor saiba que foi o americano Victor
Barron quem o entregou. Mas parece que a consci�ncia do
gringo doeu muito e ele acabou de suicidar-se, saltando da
janela deste pr�dio.
A primeira suspeita de que Barron n�o era um suicida,
mas teria sido morto pela pol�cia, viria em uma declara��o
do pr�prio capit�o Filinto M�ller, horas depois. Ao conceder
uma entrevista aos jornalistas, para contar detalhes da
pris�o de Prestes e Olga, ele cometeu um lapso e revelou
que Barron tinha morrido sem dar o endere�o do
esconderijo do casal. A declara��o do chefe de pol�cia
comprovava que, apesar da viol�ncia a que foi submetido, o
americano nada acrescentara � vaga informa��o de que os
transportara �para os lados do M�ier�. Filinto M�ller foi
preciso ao conversar com os jornalistas:
� Barron obstinou-se em negativas. Era um homem
experimentado em situa��es dif�ceis, acostumado a
enfrentar e desorientar policiais. Al�m de repetir que havia
levado Lu�s Carlos Prestes de autom�vel para o Jardim do
M�ier, ele n�o quis adiantar mais nada.
Se Barron n�o denunciara Prestes � vers�o que o pr�prio
Prestes sustentou desde que recebeu a not�cia da sua morte
�, por que raz�o se mataria? De onde viria o
�arrependimento�? Entre os jornalistas que ouviram o
capit�o Filinto estava um correspondente da ag�ncia
noticiosa americana Associated Press que, al�m dessas,
fazia outras perguntas sem resposta: como pode algu�m
suicidar-se pulando do segundo andar, de uma janela que
n�o d� para o solo, mas para um p�tio superior interno, o
que reduz a queda, na realidade, para um pavimento? O
correspondente estrangeiro publicaria reportagem em
jornais dos Estados Unidos com mais indaga��es
desconcertantes: ainda que saltando do primeiro andar, a
morte talvez se justificasse caso Barron tivesse ca�do de
cabe�a no cimento e fraturado o cr�nio � mas o atestado
de �bito assinado pelo dr. Borges de Mendon�a e entregue �
embaixada americana dava como causa mortis �fratura de
costela, causando ruptura dos pulm�es e rim esquerdo,
acompanhada de hemorragia interna�. Sem pretender
incriminar ningu�m pessoalmente, os jornalistas
comentavam entre si que aqueles eram ferimentos t�picos
de quem tinha sido espancado.
Prestes ficara indignado com a not�cia da dela��o seguida
do �suic�dio� de Barron. Ao ser qualificado, tratou delegados
e investigadores com rispidez. Reagia �s perguntas com
monoss�labos, e � maioria delas recusava-se sequer a dar
respostas. Quando o escriv�o perguntou qual era sua
profiss�o, ele foi seco:
� Capit�o do Ex�rcito.
O funcion�rio, provocativo, corrigiu-o:
� O senhor quer dizer ex-capit�o, n�o?
Ele irritou-se:
� Ex-capit�o, n�o! Sou capit�o do Ex�rcito brasileiro!
Cercado pelos �cardeais� da pol�cia pol�tica � Bellens
Porto, Hymalaia Virgolino, Miranda Correia, Canavarro
Pereira �, Prestes deixou claro, desde os primeiros minutos
da pris�o, que n�o iriam arrancar qualquer informa��o dele,
decis�o que seria mantida at� o �ltimo instante de seu
longo per�odo de pris�o. Quando o delegado Bellens Porto
perguntou qual havia sido sua participa��o no movimento
de 27 de novembro, ele cortou:
� N�o tenho qualquer declara��o a prestar nesse sentido.
� Mas onde o senhor esteve no dia 27 de novembro de
1935?
� N�o tenho qualquer declara��o a prestar nesse sentido.
� Quais s�o as suas liga��es com o senhor Harry Berger,
ou Arthur Ernst Ewert?
� N�o tenho nada a informar aos senhores. S� posso
fazer declara��es a respeito da Coluna Prestes. Tudo quanto
tinha a declarar a respeito do que fiz ultimamente est� nos
meus manifestos p�blicos.
Ao final, Bellens Porto entregou-lhe a �ltima p�gina do
�depoimento� para que ele assinasse. Prestes irritou-se uma
vez mais:
� N�o assino! S� assinarei rubricando tamb�m as p�ginas
anteriores. Evitarei assim que se possam fazer enxertos,
atribuindo-me declara��es que n�o prestei!
Era a primeira vez que um preso se dirigia naquele tom �
c�pula da pol�cia. Os delegados atenderam ao pedido.
Quando acabou de rubricar folha por folha, assinou
finalmente a �ltima e declarou, em tom de enfado, para
quem quisesse ouvir:
� Tudo isso, afinal, n�o passa de uma palha�ada!
A �nica autoridade que n�o teve coragem de enfrentar
Prestes cara a cara foi Filinto M�ller. O chefe de pol�cia
chegou cedo a seu escrit�rio, espiou por uma fresta para
dentro da sala onde Prestes era interrogado por seus
principais subordinados, mas n�o quis ser visto por ele.
Duas �nicas visitas de estranhos � pol�cia foram permitidas
por Filinto: os majores Cordeiro de Farias e Riograndino
Kruel, que tinham participado da Coluna, apareceram no
pr�dio da Pol�cia Central logo de manh� e conversaram
alguns minutos com o antigo chefe. Ap�s a sa�da dos dois,
Prestes comentaria, amargo:
� Eu sei que n�o vieram aqui para solidarizar-se comigo,
mas para um reconhecimento: queriam certificar-se de que
sou eu mesmo.
De seu gabinete, Filinto M�ller saboreava a vit�ria.
Recebeu o ministro da Justi�a, Vicente Rao, que visitava a
Pol�cia Central por determina��o do presidente da
Rep�blica, para apresentar os cumprimentos de Vargas ao
capit�o e aos policiais que tinham prendido Prestes. A
pedido dos rep�rteres, fazem uma pose ao lado da mesa do
chefe de pol�cia, sobre cujo tampo estavam v�rios caixotes
contendo o material apreendido na rua Hon�rio. Lado a lado
estavam Rao, Filinto, Miranda Correia, Torres Galv�o e, aos
p�s do anfitri�o, o cachorro Pr�ncipe. Terminada a visita, o
chefe de pol�cia redige um telegrama circular dirigido a
todos os governadores de estados:
Tenho a honra de comunicar a Vossa Excel�ncia que a pol�cia desta Capital,
em dilig�ncia realizada hoje, efetuou a pris�o do chefe comunista Lu�s Carlos
Prestes, apreendendo copioso arquivo. Cordiais sauda��es.
Filinto M�ller
Chefe de Pol�cia
Filinto n�o exagerava ao utilizar a express�o �copioso�
para designar o farto material acumulado por Olga e Prestes
em t�o pouco tempo e apanhado pela pol�cia na rua
Hon�rio. Eram caixas e mais caixas de cartas, pap�is,
documentos, manifestos e recibos, que um dos autos de
apreens�o resumia de maneira eloquente:
[...] um mapa do Distrito Federal; uma proclama��o aos soldados, cabos,
sargentos e oficiais conscientes do 22o BC e da Pol�cia; uma proclama��o aos
oper�rios, camponeses, soldados, estudantes, pequenos comerciantes, povo
oprimido de Pernambuco; um impresso em papel rosa com o t�tulo �Aparemos
as unhas dos ladr�es do povo�; um cart�o de visitas em nome de Ant�nio
Vilar, Lisboa; uma proclama��o em papel rosa sob o t�tulo �Libertemos Harry
Berger, que sofre com sua companheira as piores torturas da Pol�cia Central e
no p�tio da Pol�cia Especial�; uma proclama��o impressa em papel verde aos
oficiais e sargentos do Ex�rcito; cinco folhas mimeografadas com t�tulo
�Come�ou a Revolu��o�; um impresso em papel branco com o t�tulo �Harry
Berger, um grande lutador antifascista e antiguerreiro�; tr�s folhas
mimeografadas com o t�tulo �Resolu��es do CC sobre as tarefas dos
comunistas na prepara��o e na realiza��o da revolu��o nacional�; duas
folhas datilografadas com o t�tulo �Contra as provoca��es policiais dirigidas
pelo Intelligence Service e contra a rea��o fascista do governo traidor e
tir�nico de Get�lio e comparsas, levantemos bem alto a bandeira de luta da
liberta��o do Brasil�; uma folha mimeografada com o t�tulo �Instru��es para o
trabalho sindical e prepara��o de greves na atual situa��o de estado de
s�tio�; uma folha de papel alma�o margeada por linhas azuis, manuscrita a
tinta, come�ando pela frase �reconhece um bilhete que escreveu a Berger
com o pseud�nimo de Gin�; quatro folhas mimeografadas com os termos de
declara��es prestadas na pol�cia por Adalberto Andrade Fernandes; uma folha
de identifica��o para pedido de visto em passaporte, em nome de Ant�nio
Vilar e de Maria Bergner, com duas fotografias � margem, passada pelo
consulado do Brasil em Buenos Aires em 11 de abril de 1935, acompanhada
de dois atestados m�dicos e dois certificados de antecedentes criminais,
todos com o carimbo do consulado geral do Brasil em Buenos Aires; um
passaporte da Rep�blica portuguesa concedido a Ant�nio Vilar e sua mulher,
Maria Bergner Vilar, em 8 de mar�o de 1935, em Rouen, na Fran�a; uma
centena de cartas em franc�s e em portugu�s, assinadas por �amigo Gar�,
�amigo Cleto�, �Amiguinha�, �Prado�, �Mel�, �Souza�, �G.�, �B.�
e �amigo S.�; uma folha datilografada com o t�tulo �C�pia do informe recebido
em 6 e datado de 5, sobre a Garota�; duas folhas datilografadas com o t�tulo
�C�pia do informe sobre as respostas da Garota ao �ltimo question�rio�, e
assinada a l�pis por �M.�; duas folhas datilografadas com o t�tulo �Respostas
da Garota�.
Dinheiro n�o havia muito na rua Hon�rio: pouco mais de
mil florins holandeses e 162 d�lares. At� aquele momento,
somados os d�lares, pesos, francos, florins, marcos e libras
apreendidos em v�rios aparelhos ou em poder dos
estrangeiros detidos, havia uma pequena fortuna nos cofres
da pol�cia. Mas n�o era dinheiro o que a pol�cia buscava. No
meio da ma�aroca de papel recolhida no aparelho do M�ier,
Filinto M�ller encontrou elementos para completar um
quebra-cabe�a que permitiria, meses depois, atribuir a
Prestes uma pena muito maior do que a que lhe seria
imposta por chefiar a rebeli�o comunista. Analisando
question�rios e relat�rios localizados na rua Hon�rio, a
pol�cia come�ava a desenterrar o que a imprensa batizaria
de �o tribunal vermelho� � o processo atrav�s do qual a
dire��o do Partido Comunista condenou � morte e executou
a jovem mulher de Miranda, Elvira Cupelo Col�nio, a Garota,
ou Elza Fernandes.
Nunca ficaria muito claro se Elvira era apenas uma
desequilibrada mental ou, como concluiu a c�pula
comunista, uma traidora que havia se passado para o lado
da pol�cia. Para muitas das presas da Casa de Deten��o,
onde ela foi recolhida, tratava-se apenas de uma
adolescente do interior, deslumbrada com o Rio de Janeiro e
a notoriedade alcan�ada pelo fato de ser mulher do mais
importante dirigente do Partido Comunista. Maria Werneck
de Castro, advogada que estava recolhida � ala feminina da
Deten��o, acusada de envolvimento na revolta, espantou-se
quando viu a jovem revelar, dentro da cela, o fim que
costumava dar ao dinheiro que recolhia dos militantes como
contribui��o para o partido. �s gargalhadas, Elvira
escandalizava as outras presas ao falar:
� Maria, sabe aquele dinheiro que fui buscar na sua casa,
dizendo que era ordem do Miranda? N�o era para o partido,
mas para eu comprar toalhas novas para a nossa casa. N�o
� a mesma coisa? N�s n�o somos todos comunistas?
Desequilibrada, despreparada ou agente infiltrada, a
pol�cia tratou de tirar proveito de Elvira. Os registros de
entrada e sa�da de presos da Casa de Deten��o,
manuscritos num grosso volume de capa negra, guardariam
para sempre pelo menos uma certeza: sem explica��o
aparente, Garota foi colocada em liberdade in�meras vezes,
sendo repetidamente detida pela pol�cia dois ou tr�s dias
depois. Por mais duras que fossem as recomenda��es de
Carmen Ghioldi, Maria Werneck de Castro, Nise da Silveira e
outras presas, de que a pol�cia fazia aquilo para transform�la
em isca e descobrir novos endere�os de aparelhos, Elvira
n�o parecia fazer caso das advert�ncias. E, a cada sa�da
sua, mais meia d�zia de dirigentes ca�a nas m�os de Filinto
M�ller. E como a pol�cia, em suspeita generosidade, permitia
que ela fizesse visitas regulares � cela onde o marido estava
detido, na Casa de Corre��o, ele tamb�m passou a ficar sob
a mira do partido.
Ainda durante o per�odo em que Olga e Prestes estavam
na rua Hon�rio, a dire��o decidiu tirar a d�vida a limpo. Em
uma de suas sa�das do pres�dio, o partido agarrou-a,
deixando-a sob a cust�dia de Francisco Meirelles, em sua
casa na estrada de Guaratiba. Por ser um dos poucos
estrangeiros experientes ainda em liberdade, L�on-Jules
Vall�e foi encarregado de redigir os question�rios a que
Garota seria submetida durante o processo que se iniciava.
Manuscritas por Vall�e em franc�s, as perguntas eram
levadas por mensageiros aos quatro membros do
Secretariado Nacional encarregados do caso: o secret�riogeral
Lauro Reginaldo da Rocha, o Bangu, Hon�rio de Freitas
Guimar�es, o Milion�rio, Adelino De�cola dos Santos, o
Tampinha, e Jos� Lago Molares, o Brito. O vaiv�m de
perguntas e respostas durou duas semanas, ao fim das
quais a dire��o concluiu que Elvira tinha efetivamente
colaborado com a pol�cia a troco da promessa de que ela e
o marido seriam libertados e enviados � terra natal dele, a
Bahia, onde sonhavam viver juntos. O resultado do
�inqu�rito� foi enviado � casa onde Olga e Prestes se
escondiam, no M�ier, juntamente com dois bilhetes de
Miranda, em que o dirigente preso reclamava, preocupado,
da aus�ncia da mulher, que havia muitos dias n�o o visitava
na cadeia. Sobre esses bilhetes, a dire��o do partido optou
por consider�-los falsos, �certamente escritos pela pol�cia
para nos confundir�, como diria o Milion�rio. A respeito do
�processo� de Elvira, Prestes foi duro: se o partido conclu�ra
que ela de fato havia tra�do, �por que tanta vacila��o em
executar a decis�o tomada pela dire��o?�, ele indagava em
sua mensagem escrita:
Fui dolorosamente surpreendido pela falta de resolu��o e vacila��o de voc�s.
Assim n�o se pode dirigir o Partido do Proletariado da classe revolucion�ria.
[...] J� formulei minha opini�o a respeito do que precisamos fazer. Por que
modificar a decis�o a respeito da Garota? H� ou n�o h� trai��o por parte
dela?
A sorte de Elvira estava lan�ada. A decis�o de executar a
senten�a foi finalmente tomada em reuni�o de que
participaram o Milion�rio, o Ab�bora (Eduardo Ribeiro
Xavier), o Tampinha, o Bangu (novo secret�rio do partido),
Manoel Severino Cavalcanti, o Gaguinho, e Francisco
Natividade Lyra, o Cabe��o. No final de fevereiro Elvira foi
transferida da estrada de Guaratiba para uma casa situada
em local ermo, pr�xima � estrada do Camboat�, no sub�rbio
carioca de Deodoro, onde j� a esperavam Milion�rio,
Gaguinho, Tampinha, Ab�bora e Cabe��o. Ao cair da tarde,
enquanto a jovem conversava com o grupo em uma salinha
dos fundos da casa, Cabe��o foi ao quintal, cortou um
peda�o de corda que servia de varal de roupas e sentou-se
ao lado de Elvira. Num gesto r�pido passou-lhe a corda em
volta do pesco�o e apertou. Garota quis resistir e tentou
erguer-se da cadeira, mas Cabe��o, um homem enorme,
atirou-se sobre ela e jogou-a no ch�o. Subjugada, Elvira foi
estrangulada pelo grupo. O �nico a n�o participar foi
Ab�bora, que diante da viol�ncia da cena p�s-se a vomitar
num canto da sala. O corpo foi carregado para outro
c�modo, onde Cabe��o, auxiliado pelos demais, dobrou-o
em dois, juntando os p�s � cabe�a e aterrorizando o grupo
com o ru�do dos ossos que se partiam. Nessa posi��o o
enfiaram dentro de um grande saco de aniagem, que foi
levado at� o quintal. Ali mesmo, ao p� de uma �rvore, Elvira
foi sepultada.
Se a suspeita de que Elvira tivesse sido morta provocou
sensa��o na imprensa brasileira, francamente governista, a
morte do americano Victor Barron foi aceita pelos jornais do
Rio e de S�o Paulo sem que se questionasse uma s�laba
sequer da vers�o policial que o dava como suicida. Al�m da
insist�ncia da Associated Press em apurar as verdadeiras
circunst�ncias em que ele morrera, no entanto, sua m�e,
Edna Hill, e v�rios intelectuais norte-americanos tanto
fizeram que a not�cia chegou �s primeiras p�ginas dos
grandes di�rios dos Estados Unidos. No dia 6 de mar�o Edna
Hill recebeu das m�os do carteiro em sua casa em Oakland,
na Calif�rnia, um telegrama expedido a cobrar pelo
secret�rio de Estado dos Estados Unidos, redigido em
apenas um par�grafo:
Lamento inform�-la que o embaixador americano no Rio de Janeiro, Brasil,
relatou-me telegraficamente que seu filho, Victor A. Barron, conseguiu evadirse
de sua guarda e suicidou-se no dia 5 de mar�o, ao pular para a �rea
pavimentada de um p�tio dois andares abaixo.
Cordel Hull
Secret�rio de Estado
Se Edna Hill tivesse lido o jornal The New York Times
daquela manh�, teria sabido mais cedo da trag�dia de seu
filho, e de forma mais dura. Seguindo o tratamento dado
inicialmente por toda a imprensa americana para o caso, o
di�rio nova-iorquino publicou a not�cia conforme a pol�cia
brasileira a divulgara:
COMUNISTA TRAI SEU CHEFE E DEPOIS SE MATA
Victor Allen Barron, americano, diz � pol�cia do Rio de Janeiro onde � o
esconderijo de Prestes.
Rio de Janeiro, 5 de mar�o � Desesperado pelo fato de ter dado a
informa��o que resultou na pris�o de Lu�s Carlos Prestes, suposto l�der da
rebeli�o radical de novembro �ltimo, o americano Victor Allen Barron, 27
anos, cometeu suic�dio hoje, aqui, jogando-se do segundo andar do quartelgeneral
da pol�cia. Seu cr�nio fraturou-se e ele foi levado a um prontosocorro,
onde faleceu logo ap�s ter chegado. Barron, de acordo com a
Embaixada americana daqui, era um cidad�o de Portland, Oregon, por�m
ultimamente vivia no n�mero 501 da rua Haro, em San Francisco. Ele chegou
ao Brasil em junho passado dizendo alternadamente ser operador de r�dio e
comerciante. A pol�cia local descreve-o como um comunista que foi preso h�
um m�s sob a acusa��o de haver participado da revolta, dirigindo um
autom�vel para os rebeldes, sobretudo para Prestes, transportando-o de um
lugar para o outro.
A pris�o de Prestes foi efetuada com a ajuda de seu pr�prio c�o, que a
pol�cia encontrou na casa de Harry Berger, suposto comunista americano, que
prenderam em dezembro. O c�o os levou at� a casa onde Prestes estava,
conduzindo-os at� seu dono. Prestes, conhecido como o Cavaleiro da
Esperan�a, cortou a barba enquanto estava clandestino. Ele foi encontrado
por mais de cem policiais, entre uniformizados e � paisana, que formaram um
verdadeiro cord�o de isolamento em volta do bairro.
A not�cia publicada pela Associated Press mudou o curso
dos fatos nos Estados Unidos. Reproduzida inicialmente
apenas pelo The Washington Star, a suspeita estava no dia
seguinte em todos os jornais, e motivou uma a��o
fulminante contra o governo, no sentido de que se apurasse
a verdadeira causa da morte de Barron. Acionado por Edna
Hill, o senador Albert Carter procurou o secret�rio de Estado
Cordel Hull pedindo provid�ncias em rela��o ao corpo
diplom�tico americano no Rio. N�o satisfeita, Edna Hill
colocou no correio, naquele mesmo dia, uma carta
endere�ada ao presidente Franklin Roosevelt:
Caro presidente Roosevelt:
Venho pedir ao senhor o favor de mandar investigar a causa da morte do
meu filho no Rio de Janeiro, Brasil. De maneira alguma eu acredito que ele
tiraria a pr�pria vida, a n�o ser que a puni��o a ele infligida fosse muito dura
de ser suportada. Sei que se tivesse uma chance de retornar para casa ele
teria sacrificado qualquer coisa em troca disso.
Ele amava sua casa e seu povo.
Eu n�o posso entender por que me contaram tr�s hist�rias a respeito de
sua morte; uma da imprensa, uma do embaixador no Brasil e outra do
senador Albert Carter.
O senhor poderia descobrir se ele deixou alguma mensagem para sua m�e?
E outra coisa, senhor presidente Roosevelt, para a qual eu gostaria de chamar
a sua aten��o: quando recebi o telegrama sobre a morte do meu filho, a
mensagem veio a cobrar � tive que pag�-la antes de ler. Al�m de ter sido
pesarosamente assaltada, fiquei numa situa��o embara�osa.
Estou escrevendo-lhe esta carta numa �ltima esperan�a de descobrir o que
realmente aconteceu para causar a morte de meu jovem filho, que tinha
apenas 26 anos.
Gostaria tamb�m de saber se o corpo tem uma cicatriz na perna, j� que n�o
tive qualquer chance de identific�-lo como meu filho, de modo algum.
Muito respeitosamente sua,
Sra. Edna Hill
44th Avenue no 1023
Oakland, Calif�rnia
O que Edna Hill supunha ser uma terceira vers�o, dada
pelo senador Albert Carter, era, na verdade, o rol de
suspeitas levantadas pelos jornais, comprovando que n�o
havia raz�es aparentes para Barron suicidar-se e que, ainda
que tentasse faz�-lo, seria imposs�vel que uma queda de
pouco mais de dois metros de altura causasse ferimentos
t�o graves. Tanto a carta de Edna Hill quanto as
manifesta��es feitas no Congresso americano eram
despachadas incontinenti pelo presidente Roosevelt para o
mesmo endere�o: a mesa de Cordel Hull, secret�rio de
Estado. Uma grande comiss�o foi montada para for�ar o
governo a apurar n�o s� a verdadeira causa da morte de
Barron, mas tamb�m a omiss�o da embaixada americana
no Brasil em proteger um cidad�o norte-americano.
Chefiada pelo advogado Charles Arthur, neto de Chester
Arthur, ex-presidente dos Estados Unidos, a comiss�o era
recheada de grandes nomes: Jeanette Rankin, a primeira
mulher a obter uma cadeira no Congresso americano, os
escritores Malcolm Cowley, John dos Passos, Sherwood
Anderson, Crane Brinton, Lilian Hellman, Theodore Dreiser e
Upton Sinclair, o compositor Aaron Copland, o historiador
Waldo Frank e o linguista Edward Sapir, entre outros. O
grupo dirigiu a Roosevelt e ao secret�rio de Estado e fez
publicar como mat�ria paga nos jornais de Washington e
Nova York um memorial em que o embaixador dos Estados
Unidos no Brasil, Hugh Gibson, era acusado de ter prestado
colabora��o extraoficial � pol�cia do Rio. �Estamos
inclinados a julgar o embaixador Gibson�, dizia o
documento, �como, no m�nimo, parcialmente respons�vel
pelas raz�es que causaram o �suic�dio� do sr. Barron.� O
extenso manifesto terminava com acusa��es graves:
� parte todas as vers�es, um fato fica claro e cristalino. Se Barron deu ou n�o
informa��es � pol�cia que ajudaram a prender Prestes, ou se ele foi
simplesmente assassinado, ou se foi torturado e coagido at� n�o poder mais
suportar viver, uma coisa � certa: em vez de cumprir o seu dever para com
este cidad�o americano, em vez de proteg�-lo dos m�todos da pol�cia, que
cheiram � Inquisi��o da �poca medieval, a embaixada americana no Brasil
realmente ajudou ou tentou dar ajuda � pol�cia de um governo estrangeiro
contra um cidad�o americano. A embaixada americana no Brasil fica,
portanto, acusada de coadjuvante no crime, em companhia da brutal pol�cia
do presidente Get�lio Vargas. Est�o os americanos negociando com os
brasileiros de modo livre e independente ou est�o engajados numa
conquista? Ser� que na diplomacia � esta a pol�tica da boa vizinhan�a? O
povo americano quer saber.
Por requerimento do deputado Vito Marcantonio, o
Capit�lio aprovou a instala��o de uma Comiss�o
Parlamentar de Inqu�rito para apurar as den�ncias de que a
embaixada americana no Rio de Janeiro se omitira ou
mesmo havia colaborado nos epis�dios que envolveram a
morte de Barron. Menos de uma semana depois o
Congresso aprovava a resolu��o n�mero 243, que obrigava
o Departamento de Estado a transmitir, �com a m�xima
urg�ncia�, as seguintes informa��es ao Congresso dos
Estados Unidos, para instruir a Comiss�o de Inqu�rito:
1) Todos os fatos a respeito da morte de Victor A. Barron,
cidad�o americano, que morrera sob a cust�dia da pol�cia
do Rio de Janeiro em 5 de mar�o de 1936.
2) O que foi feito pelo embaixador Hugh Gibson para
proteger o cidad�o Victor A. Barron.
3) Se o embaixador Hugh Gibson ajudou ou contribuiu
para a pris�o ou o interrogat�rio de Victor A. Barron.
4) Se o embaixador Hugh Gibson ou seus agentes
interrogaram o referido Victor A. Barron enquanto sob
cust�dia da pol�cia brasileira, com o prop�sito de obter
informa��es a respeito de suas atividades pol�ticas.
5) Toda e qualquer informa��o a respeito da conduta do
embaixador Hugh Gibson em rela��o � pris�o e morte de
Victor A. Barron.
O deputado Alexander Johnson, do Texas, um pol�tico
conservador que tentara por todos os meios obstruir a
constitui��o da Comiss�o de Inqu�rito, conseguiu convencer
o plen�rio a restringir as investiga��es, delineadas no
question�rio, � participa��o ou n�o da embaixada
americana na morte de Barron, impedindo que o Congresso
buscasse a verdade do tema central: Barron se suicidara ou
fora morto sob tortura? Ainda assim, o Congresso obrigou o
secret�rio Cordel Hull a remeter ao deputado Sam
McReynolds, presidente da Comiss�o de Assuntos
Estrangeiros da C�mara, um minucioso calhama�o sobre o
envolvimento da embaixada na chamada �conex�o
brasileira� do movimento comunista internacional. Como o
que se apurava era apenas o envolvimento de Hugh Gibson
e seus agentes, as respostas do Departamento de Estado
foram consideradas satisfat�rias e, no dia 26 de mar�o, o
plen�rio aprovou resolu��o do texano Johnson,
determinando o arquivamento do inqu�rito que nem sequer
fora iniciado.
Mas o esfriamento do �caso Barron� n�o tiraria o Brasil do
centro das press�es internacionais. A not�cia de que Arthur
Ewert e sua mulher Elise estavam sendo massacrados por
torturas nas pris�es brasileiras acabou vazando na
imprensa. Na imprensa estrangeira, claro, j� que os jornais
brasileiros, sem nenhuma exce��o, tinham se transformado
em porta-vozes do notici�rio oficial � incluindo-se a� at� os
di�rios que n�o tinham simpatias por Get�lio Vargas. No af�
de agradar ao governo, os jornais metiam no mesmo saco
anticomunismo e antissemitismo e alimentavam
diariamente entre a popula��o um verdadeiro �dio aos
estrangeiros em geral � e aos comunistas e judeus em
particular. E o estrangeiro que n�o o fosse era
automaticamente convertido em judeu pelo notici�rio dos
jornais. Foi assim que a not�cia da pris�o de Ewert foi dada
por O Globo em uma escandalosa manchete de oito colunas
de primeira p�gina:
FILHO DE ISRAEL E AGENTE DE MOSCOU!
Num bangalow verde, em Copacabana, residia o emiss�rio do Komintern,
com dinheiro e instru��es para a rebeli�o vermelha! Harry Bergen,
representante de St�lin! Apreendido em seu poder o arquivo da Alian�a
Nacional Libertadora e um salvo-conduto para entrar em reparti��es p�blicas!
Ewert n�o se chamava Bergen, n�o era judeu, n�o fora
preso em Copacabana, era advers�rio de St�lin e n�o tinha
salvo-conduto para entrar em reparti��o alguma, mas nada
disso tinha import�ncia. O essencial era envenenar a
popula��o com a monstruosa conspira��o judaicocomunista
que vinha de fora, n�o importava de onde, para
escravizar o Brasil.
Al�m das sucessivas den�ncias de torturas feitas por
membros do Congresso Nacional, como o deputado
paranaense Ot�vio da Silveira e o senador paraense Abel
Chermont � e que a imprensa nacional ignorava
olimpicamente �, um incidente entre o capit�o Filinto
M�ller e um pequeno grupo de ingleses ajudaria a mobilizar
a opini�o p�blica europeia em defesa dos Ewert. Nos
primeiros dias de mar�o desembarcaram no Brasil lady
Marian Cameron Campbell e lady Christine Hastings,
esposas de dois membros da C�mara dos Comuns da
Inglaterra. Acompanhadas de um secret�rio particular,
Richard Gavin Freeman, as duas senhoras anunciaram �
imprensa, no cais do porto, que vinham ao Brasil apurar, em
nome de institui��es de seu pa�s, den�ncias sobre torturas a
presos pol�ticos, especialmente estrangeiros. Avisado pelos
rep�rteres, Filinto M�ller foi em pessoa at� o Hotel Gl�ria,
onde a delega��o se hospedara, e, depois de decidir que
aquela viagem �era coisa de Moscou�, prendeu as ladies
Campbell e Hastings num dos apartamentos do hotel,
guardadas por dois policiais, e mandou que o aterrorizado
Freeman fosse atirado num dos xadrezes da Pol�cia Especial.
A situa��o perdurou por quatro dias at� que, quando
parecia transformar-se num incidente diplom�tico, o
embaixador ingl�s no Brasil conseguiu autoriza��o para que
os tr�s fossem libertados e imediatamente embarcados no
navio Arlanza, que zarpava para a Europa. A repercuss�o
n�o poderia ter sido pior. Semanas depois a revista brit�nica
The New Statesman and Nation publicava com destaque o
artigo intitulado �Uma desventura brasileira��, em que os
desafortunados turistas davam a sua vers�o do tratamento
que recebiam os presos no Brasil, vers�o devidamente
apimentada pelo depoimento sobre o que Richard Freeman
vira nas celas do morro de Santo Ant�nio e sobre a situa��o
dos Ewert.
O artigo agitou os meios pol�ticos londrinos: um telegrama
confidencial do embaixador brasileiro em Londres, R�gis de
Oliveira, informou ao chanceler Jos� Carlos de Macedo
Soares que a embaixada do Brasil na Inglaterra continuava
a receber �in�meras cartas de membros do Parlamento e de
outras pessoas de certa considera��o, insistindo sobre os
rumores que dizem correr a respeito de maus tratamentos
dados pela nossa pol�cia a um tal Arthur Ewert, antigo
membro do Reich, e a sua mulher�. A campanha, dizia o
diplomata, parecia inspirada �por uma tal Minna Ewert,
residente nesta capital, e que se intitula irm� da suposta
v�tima das nossas autoridades�. R�gis de Oliveira rogava a
Macedo Soares informa��es pormenorizadas a respeito do
casal. Embora Arthur Ewert estivesse � beira da loucura,
preso num socav�o de escada cujo teto era meio metro
inferior � sua estatura, a carta do ministro das Rela��es
Exteriores do Brasil, em resposta � consulta vinda de
Londres, era um primor de mentira e dissimula��o:
Arthur Ewert e sua mulher, Elisa Saborowsky Ewert, ou Machla Berger, est�o
presos no Rio de Janeiro desde dezembro do ano findo, sendo infundados
todos os rumores que correm nessa capital sobre os maus-tratos infligidos a
ambos pelas nossas autoridades policiais, que, agindo com a m�xima
energia, n�o necessitam, entretanto, fazer uso de meios violentos, t�o ao
agrado daqueles que, pleiteando medidas humanit�rias, s� conseguem
vencer pela tirania.
C�nscio da obra nefasta levada a efeito em nosso pa�s pelos agentes
moscovitas, nacionais e estrangeiros, o governo brasileiro trata apenas de
defender-se com a seguran�a e a energia dos fortes, fazendo cumprir a lei e
perseguindo, em seus redutos, aqueles que tentam subverter a ordem e
atacar as nossas institui��es.
A Berger e a sua esposa, bem como a todos os presos comunistas no Brasil,
concede a pol�cia toda a assist�ncia m�dica e judici�ria. Ainda assim,
obstinou-se Berger em fazer greve de fome, receando ser envenenado. Desta
forma, diminuiu consideravelmente de peso, acusando natural
enfraquecimento. Uma junta m�dica foi nomeada para examin�-lo, ficando
comprovado que Berger se encontrava em perfeito estado de sa�de,
necessitando apenas alimentar-se convenientemente.
Quanto a sua esposa Elisa Ewert (ali�s Machla Berger), goza tamb�m de
boa sa�de, tendo ficado h� dias ultimado o seu processo de expuls�o. A
pseudoesposa de Lu�s Carlos Prestes, Maria Bergner Vilar, que usa tamb�m o
nome de Olga Prestes, ser� tamb�m expulsa do territ�rio nacional.
Jos� Carlos de Macedo Soares
Ministro das Rela��es Exteriores
13
O embaixador do Brasil na Gestapo
Olga n�o ignorava que corria o risco de ser deportada.
Durante os dez dias no pr�dio da rua da Rela��o, ouvira
not�cias de que, desde a revolta, Get�lio Vargas devolvera �
Europa centenas de �estrangeiros indesej�veis�. Mas sabia
tamb�m que havia algo a seu favor: ningu�m conhecia sua
verdadeira identidade. De verdadeiro a pol�cia s� tinha seu
prenome, obtido durante o depoimento de Rodolfo Ghioldi.
Em todos os interrogat�rios a que fora submetida nos
primeiros dez dias de pris�o, ela se recusara a prestar
qualquer informa��o �s autoridades e repetia at� � irrita��o
as mesmas respostas:
� Nome?
� Maria Bergner Vilar.
� Nacionalidade?
� Brasileira.
Apesar do sotaque forte, ela dizia isso com firmeza e
naturalidade. Os policiais insistiam:
� Como? Brasileira?
� Sim, brasileira. Eu sou a mulher de Lu�s Carlos Prestes,
que � brasileiro. Portanto, sou brasileira.
A imprensa, a princ�pio, identificou-a como Olga Meirelles,
irm� do tenente Sylo Meirelles, companheiro de Prestes na
revolta. Depois o notici�rio garantia que seu verdadeiro
nome era Olga Berger, nascida em Ostende, na B�lgica, e
que conhecera Prestes quando trabalhava na lega��o
comercial sovi�tica em Bruxelas. Os dois teriam se casado
em Montevid�u, a caminho do Brasil. O jornal O Estado de S.
Paulo garantia, em furo de reportagem, que a mulher com
quem Prestes se casara era, na verdade, Olga Jazikoff
Pandarsky, extremista presa em S�o Paulo meses antes,
deportada por decreto do presidente Get�lio Vargas e que
retornara clandestinamente ao Brasil.
O mist�rio a respeito de seu verdadeiro nome e de seu
passado, no entanto, duraria pouco. A embaixada do Brasil
em Berlim mantinha estreitas e amistosas rela��es com o
comando da pol�cia secreta nazista, a Gestapo, e o
embaixador Jos� Joaquim Moniz de Arag�o brindava seus
superiores no Brasil com preciosas informa��es que obtinha
nos quart�is da organiza��o. Regularmente chegavam ao
Itamaraty contribui��es espont�neas de Arag�o contendo
relat�rios sobre as atividades da chamada �subvers�o
internacional� na Europa. Era com especial deleite que o
diplomata brasileiro identificava sobretudo os que fossem,
como ele dizia, �da ra�a israelita�. Poucos dias depois da
pris�o de Olga e Prestes, um alentado of�cio de Moniz de
Arag�o chegava ao gabinete do chanceler Jos� Carlos de
Macedo Soares, protegido pela advert�ncia confidencial,
deslindando o segredo que envolvia a mulher do chefe
comunista brasileiro:
Senhor Ministro:
Em aditamento ao meu of�cio no 136, de 16 do corrente m�s, enviei a Vossa
Excel�ncia no dia 23 deste m�s o telegrama de no 40 resumindo uma s�rie de
informa��es que me foram prestadas em car�ter estritamente confidencial
pelo servi�o secreto alem�o. O referido servi�o, ao me fornecer os aludidos
dados, mais uma vez pediu que fizesse notar sobre a inconveni�ncia de ser a�
divulgada a origem das comunica��es feitas em car�ter absolutamente
confidencial, pois isso poder� prejudicar a a��o dos informantes e exp�-los �
vingan�a por parte dos agentes da Terceira Internacional. As fichas de
identifica��o de Harry Berger, que obtive do servi�o secreto alem�o, e que
remeti anexas ao meu of�cio confidencial no 51, de 4 de fevereiro �ltimo,
foram publicadas pela maioria dos jornais do Rio de Janeiro e de diversos
estados, com a men��o de terem sido fornecidas pela pol�cia alem�.
Tratando-se de uma comunica��o que me foi feita, como disse,
confidencialmente, esse fato causou aqui desagrad�vel impress�o e confesso
que fiquei surpreendido ao me mostrarem exemplares de A Noite e de O
Globo com a reprodu��o das referidas fichas sem que nem ao menos
tivessem apagado as notas indicativas de serem provenientes da pol�cia de
Berlim. Respeitosamente devo insistir, a pedido das autoridades da Gestapo,
a fim de que no futuro esse fato seja evitado. Tratando-se de assunto de
nosso pr�prio interesse, estou certo de que Vossa Excel�ncia intervir� do
melhor modo no sentido indicado.
Desde que tive not�cias pelos jornais da pris�o de Lu�s Carlos Prestes e de
uma mulher que, segundo creio, at� agora a nossa pol�cia n�o tenha
conseguido identificar completamente, tratei de comunicar-me com a
Gestapo, fornecendo-lhes algumas fotografias estampadas em jornais nossos,
da mulher �que a� se faz chamar Maria Meirelles, Maria Bergner Vilar e Maria
Prestes. Depois de apuradas sindic�ncias o servi�o secreto alem�o informoume
ter podido identificar Maria Prestes, que a� se intitula esposa de Lu�s
Carlos Prestes. Para que Vossa Excel�ncia possa avaliar o trabalho feito, �
bastante indicar que a Gestapo consultou 25 mil fotografias e 60 mil fichas
at� conseguir estabelecer precisamente a identidade daquela mulher.
Tudo poderia ser mais simplificado se a nossa pol�cia pudesse atender ao
pedido reiterado que tenho feito de me serem remetidas fichas e fotografias
de agentes comunistas a� presos e bem assim dos que t�m sido expulsos
para que, talvez, possam melhor ser aqui identificados. Al�m do mais, como
retribui��o aos servi�os que me tem prestado a Gestapo, e pelo meu
interm�dio, seria justo, a meu ver, que conforme desejo que me t�m
manifestado, comunic�ssemos as c�pias de documentos apreendidos a� em
poder de extremistas e que eventualmente se refiram direta ou indiretamente
� a��o do comunismo na Alemanha. Pelas informa��es agora obtidas, e como
referi no meu telegrama no 40, Olga Meirelles, Olga Vilar, Maria Bergner ou
Maria Prestes, citada nos jornais brasileiros como esposa de Lu�s Carlos
Prestes, pode ser identificada como sendo Olga Benario, agente comunista da
Terceira Internacional deveras eficiente, de grande intelig�ncia e coragem.
Olga Benario � de ra�a israelita, tendo nascido em 12 de fevereiro de 1908,
em Munique, na Baviera. Desde o ano de 1925 que Olga Benario � conhecida
da pol�cia alem� como agente comunista extremamente ativa e eficiente. De
1926 a 1928 ela trabalhou na Delegacia Comercial dos Sovietes em Berlim,
cujos escrit�rios estavam instalados na sede da pr�pria embaixada. Nessa
ocasi�o ela tamb�m se entregou a servi�os de espionagem de car�ter militar,
interessando � defesa nacional. Em 1928 foi condenada � pena de tr�s meses
de pris�o por ter provocado e conseguido com viol�ncia, em 11 de abril
daquele ano, a fuga do agente comunista Otto Braun, com quem vivia e que
estava preso na pris�o de Moabit. Olga Benario fugiu depois de cumprir
aquela pena para a R�ssia, tendo tomado parte no Quinto Congresso
Internacional da Juventude Comunista, que se realizou em Moscou de 19 de
agosto a 18 de setembro de 1928. At� o ano de 1929 ela residiu na capital
sovi�tica. As suas rela��es com Lu�s Carlos Prestes devem datar do ano de
1935, depois da reuni�o em Moscou do Congresso Mundial da Terceira
Internacional.
Olga Benario tem usado os seguintes nomes para as suas atividades
comunistas:
Eva Kr�ger, solteira, nascida em Berlim em 12 de mar�o de 1908;
Olga Berger, solteira, nascida em Erfurt em 2 de abril de 1904;
Frieda Wolf Behrendt, casada, nascida em Erfurt em 27 de julho de 1903;
Maria Vilar ou Maria Prestes, nascida em 1908.
H� suspeitas aqui de que ela tenha servido de agente de liga��o entre
Arthur Ewert, ali�s Harry Berger, Lu�s Carlos Prestes e a Lega��o Sovi�tica em
Montevid�u, e de que foi especialmente encarregada de organizar a
propaganda da Juventude Comunista no Brasil. Considerando as liga��es que
Olga Benario manteve h� tempos passados com Otto Braun, anteriormente
citado, a pol�cia secreta alem� julgou �til fornecer-me informa��es detalhadas
sobre esse indiv�duo reputado como perigoso elemento de propaganda do
Comintern. Otto Braun, professor de curso elementar, nasceu em Ismaning,
pequena cidade perto de Munique, em 28 de setembro de 1900, e no ano de
1921 foi identificado como agente comunista muito ativo. Viveu em
companhia de Olga Benario, na Alemanha, de 1926 a 1928, isto �, at� a sua
fuga da pris�o de Moabit, desta capital. No ano de 1926 Braun tornou-se
muito conhecido nos meios comunistas alem�es, tendo exercido a chefia da
organiza��o do Partido Comunista na Tur�ngia, e dirigiu, em v�rias cidades
deste pa�s, cursos de forma��o de mil�cias vermelhas de choque do Partido
Comunista alem�o, fazendo v�rias confer�ncias sobre o papel da a��o
comunista na luta de classes e em favor da revolu��o sovi�tica internacional.
Em 1928 ele foi preso pela pol�cia alem� sob a acusa��o de crime de alta
trai��o, sendo, como disse, libertado � for�a com aux�lio de Olga Benario em
11 de abril de 1928. Na sua fuga atravessou a B�lgica e a Holanda, munido
de falsos documentos, indo refugiar-se na R�ssia, onde foi se juntar
novamente com Olga Benario. Nessas condi��es � muito poss�vel, como ali�s
sup�e a pol�cia secreta alem�, que ele tamb�m tenha agido no Brasil em
contato com os demais agentes de Moscou.
Otto Braun tem usado, entre outros, os seguintes nomes: Oscar Schumann,
Karl Wagner, Erwin Resch, Arthur Behrendt, Hans Landeburg. Junto Vossa
Excel�ncia encontrar� fotografias, em duplicata, de Olga Benario e de Otto
Braun, assim como c�pias das fichas de identifica��o e das impress�es
digitais de ambos. Todos esses documentos me foram fornecidos tamb�m
pelos servi�os da Gestapo.
Devo tamb�m informar a Vossa Excel�ncia que tendo procedido a uma
sindic�ncia no Departamento Consular desta Miss�o, cheguei � conclus�o de
que em �poca que n�o p�de ser determinada, Otto Braun veio solicitar
daquele departamento informa��es sobre os documentos exigidos e
possibilidades de poder viajar para o Brasil. Essa informa��o me foi prestada
pelo vice-c�nsul, sr. Carlos Meissner J�nior, tendo presente a fotografia que
lhe mostrei do referido indiv�duo. Esse fato vem, ainda mais, refor�ar a
suspeita sobre a possibilidade de estar ou ter estado Braun em nosso pa�s.
Tenho procurado exercer uma severa vigil�ncia no servi�o de vistos em
passaportes de viajantes que se destinem a portos brasileiros. Na maioria
esses indiv�duos s�o judeus e se apresentam como turistas exibindo
passagens de primeira classe e certificados banc�rios, quase todos
concedidos pelo Iwria Bank, desta capital. Deve ser considerado que as
aludidas passagens s�o, na maioria dos casos, tomadas em vapores
franceses cujo custo � inferior ao que cobram as companhias alem�s de
navega��o para a classe �nica ou mesmo de segunda classe. � estranh�vel
que certos indiv�duos, mesmo sendo sapateiros, alfaiates, marceneiros etc. se
intitulem genericamente comerciantes e pretendam ser considerados como
turistas, e embora exibam passagens de ida e volta n�o consta que nenhum
deles tenha regressado do Brasil.
Nessas condi��es tratei de saber exatamente detalhes sobre o Iwria Bank, e
pela investiga��o procedida posso afirmar que se trata de um banco israelita
bastante suspeito, pois parece se ocupar principalmente dos interesses
financeiros dos propriet�rios e profissionais israelitas que aqui ainda residem.
N�o h� d�vida que esse banco tem agido ilegalmente, facilitando a evas�o de
capitais de judeus para o estrangeiro, e h� fundada suposi��o de que
tamb�m opere no sentido de transferir dinheiro para a propaganda
comunista, principalmente na Tchecoslov�quia e possivelmente para outros
pa�ses. Nessas condi��es, determinei e espero merecer aprova��o de Vossa
Excel�ncia para que nosso Departamento Consular n�o mais aceite garantias
banc�rias daquele estabelecimento.
Rogo a Vossa Excel�ncia levar o que precede ao conhecimento de nossas
autoridades competentes, salientando o car�ter estritamente confidencial
com o qual me foram transmitidas as aludidas informa��es.
Aproveito o ensejo para renovar a Vossa Excel�ncia os protestos de minha
respeitosa considera��o.
Moniz de Arag�o
Aparentemente o chanceler Macedo Soares n�o levou a
s�rio as reiteradas recomenda��es de Moniz de Arag�o de
n�o dar publicidade �s informa��es. Menos de 24 horas
depois da chegada do of�cio ao Itamaraty, todos os dados
sobre a verdadeira identidade e os antecedentes pol�ticos
de Olga eram estampados no Correio da Manh�, do Rio, e
na Folha da Manh� e no Correio Paulistano, de S�o Paulo.
Quem passou o furo aos jornais teve o cuidado, no entanto,
de preservar a imagem p�blica do Itamaraty, omitindo as
propostas antissemitas de Moniz de Arag�o e ocultando,
igualmente, a intimidade com que ele se referia �s rela��es
da embaixada brasileira em Berlim com a pol�cia secreta
nazista. Os detalhes sobre o passado de Olga Benario
vieram a p�blico no mesmo dia em que ela era transferida
da rua da Rela��o, onde ficara em uma cela improvisada,
para um pres�dio coletivo. O temor reverencial que policiais
de todos os n�veis guardavam por Prestes parecia estenderse
tamb�m a sua mulher: apesar das amea�as e do
terrorismo psicol�gico, ningu�m lhe tocara um fio de cabelo.
Mas durante a mudan�a ela temeu que uma das promessas
da pol�cia poderia estar sendo cumprida: como se recusasse
a colaborar com seus interrogadores, os delegados tinham
prometido mand�-la para uma pris�o de criminosas comuns.
O receio de ser colocada junto com ladras e assassinas
explicava o ar de p�nico que Olga Benario estampava no
rosto quando foi deixada dentro de uma cela onde se
encontravam mais de dez mulheres. O medo, entretanto,
durou poucos minutos: ali estavam m�dicas, escritoras,
atrizes, algumas oper�rias, duas advogadas e, para
surpresa de Olga, sua amiga Sabo, a mulher de Ewert.
Todas, sem exce��o, estavam presas pelos mesmos motivos
que ela � envolvimento na revolta de 27 de novembro:
Maria Werneck de Castro, Nise da Silveira, Eneida de
Moraes, Rosa Meirelles, Beatriz Bandeira, Antonia Venegas,
Eug�nia �lvaro Moreira, Francisca Moura, Armanda �lvaro
Alberto, Valentina Barbosa Bastos, Haid�e Nicolucci,
Catarina Besouchet e Carmen Ghioldi. Atrav�s das grades
da cela, que ficava no segundo andar de um pavilh�o em
forma de U, Olga podia ver mais 48 cub�culos, menores que
o seu � o das mulheres era duplo �, onde se apinhavam
cerca de duzentos rapazes. O grande n�mero de militares
podia ser facilmente identificado pelos cabelos, cortados
rente, acima das orelhas. E eram raros os que aparentavam
mais de trinta anos. Olga sabia que ali estava uma �nfima
parte do total das v�timas da repress�o que se abatera
sobre o Brasil depois da frustrada rebeli�o que seu marido
chefiara. Na v�spera de ser transferida para a Casa de
Deten��o, na rua Frei Caneca, ela ouvira um policial ler num
dos jornais do Rio, para amedront�-la, um balan�o das
atividades da pol�cia divulgado pelo capit�o Filinto M�ller.
Em quatro meses a pol�cia realizara 3250 deten��es para
averigua��es, 441 buscas domiciliares (eufemismo utilizado
para designar as invas�es de resid�ncias, em geral � noite,
sem mandado judicial), e tinha levado aos xadrezes pouco
mais de 3 mil pessoas, sendo 901 civis e 2146 militares.
Tudo isso apenas na jurisdi��o oficial de Filinto, isto �, a
cidade do Rio de Janeiro.
A cela dupla das mulheres ficava na parte menor do U, ao
lado de uma pequena enfermaria. A posi��o dava �s suas
ocupantes o privil�gio de divisar todo o pres�dio, � exce��o
das duas celas que ficavam exatamente sob o piso, no
andar t�rreo. E como o chamado �sal�o das mulheres� havia
sido originalmente duas celas cuja parede divis�ria fora
posta abaixo, as presas contavam com conforto dobrado,
em rela��o aos homens: duas latrinas de barro vitrificado,
instaladas ao r�s do ch�o, e duas pias de ferro. Cortinas de
pano surrado, presas no alto em arames, garantiam a
privacidade das usu�rias das toaletes improvisadas. Na
parede oposta � que separava a cela da enfermaria tinha
sido instalado um �guarda-roupa� � na verdade uma
arma��o de cabos de vassoura coberta com len��is
pregados por tachinhas � que, muito mais do que guardar o
que quer que fosse, escondia um orif�cio cavado na parede,
possibilitando a comunica��o com os presos da cela vizinha.
Atrav�s do �perisc�pio�, como chamavam o buraco, as
presas que tivessem maridos ou namorados na Deten��o
podiam passar alguns minutos por dia ali, depois do banho
de sol dos homens, trocando r�pidas e furtivas declara��es
de amor. O p�tio central do pavilh�o, para onde davam as
portas de todas as celas e onde os presos tinham o direito
de circular �livremente� at� as sete da noite, quando eram
de novo trancafiados nas celas, tinha recebido a
denomina��o de Pra�a Vermelha. Era ali que se realizavam
os com�cios e os cursos de marxismo, de matem�tica
superior, de alfabetiza��o, de l�nguas, de hist�ria do Brasil
e, por exig�ncia de alguns tenentes revoltosos, aulas de
gin�stica.
Como a maioria dos presos estava ali desde novembro,
Olga encontrou a Casa de Deten��o funcionando com
organiza��o pr�pria. Havia o Coletivo, inst�ncia m�xima
entre os presos, eleito democraticamente por todos, que
tomava a iniciativa de mobilizar a popula��o do pres�dio em
suas reivindica��es, nos protestos coletivos e nas greves de
fome. Como os presos estrangeiros e os que tinham vindo
de outros estados n�o possu�am fam�lia no Rio de Janeiro, o
Coletivo se encarregava de recolher e redistribuir,
equitativamente, a comida extra recebida das visitas:
frutas, chocolates, bolos e doces.
Olga ainda estava procurando ambientar-se com suas
novas companheiras de pris�o quando apareceram na porta
da cela, guardadas por dois soldados armados, as
funcion�rias da cantina do pres�dio, trazendo o caldeir�o
com o rancho daquela noite, uma comida intrag�vel, e
distribuindo pratos de alum�nio e colheres entre as presas.
�quela hora o movimento do final da tarde na Pra�a
Vermelha j� terminara: �s sete da noite os carcereiros
corriam cela por cela, trancando � chave os pesados
ferrolhos das grades. Acabado o jantar, Olga ouviu um
vozeir�o anunciar de uma das celas do segundo andar, de
modo a que todo o pres�dio ouvisse:
� Agrade ou agrade, todos � grade! Vamos ouvir a pr anl,
a �Voz da Liberdade�!
Ela logo se acostumaria ao jeito brasileiro de enfrentar a
trag�dia da pris�o sob uma ditadura. Todos os dias,
religiosamente ap�s o jantar, ela ouviria a mesma frase:
estava no ar a �esta��o de r�dio� improvisada pelos presos.
De p�, os prisioneiros cantaram primeiro a �Internacional� e
depois o hino da Alian�a Nacional Libertadora, cuja m�sica
era a mesma do hino da Independ�ncia:
Alian�a, Alian�a,
Contra vinte ou contra mil!
Mostremos nossa pujan�a,
Libertemos o Brasil!
Este canto � preciso que brade,
Que n�o cesse o clamor desta voz!
No Brasil h� de haver liberdade,
Conquistada nas ruas por n�s!
Ainda meio intimidada, Olga cantou junto os dois hinos �
o primeiro em franc�s e o da Alian�a num portugu�s
carregado de sotaque. A� subiu numa das grades o jovem e
gordo m�dico Manuel Ven�ncio Campos da Paz J�nior,
locutor oficial da �Voz da Liberdade�, para transmitir
not�cias s�rias, que chegavam clandestinamente da rua, ou
deboches e piadas que um dos presos, Apar�cio Torelly, o
Bar�o de Itarar�, depois reconhecido como um dos maiores
humoristas brasileiros de todos os tempos, passava o dia
inventando em sua cela. Em homenagem � chegada de
Olga Benario, naquele dia o Bar�o tinha preparado uma
�not�cia� especial sobre o desafeto de seu marido. Campos
da Paz, que tinha como chefe da claque seu pr�prio pai, fez
suspense:
� E aten��o, aten��o, companheiros e camaradas, para
uma not�cia de �ltima hora que nos chega da rua: minutos
antes de enlouquecer, o presidente da Rep�blica decidiu
condenar � pris�o perp�tua o conhecido meliante Filinto
�Mula�!
Enquanto o programa da �R�dio Liberdade� se
desenrolava, Olga ia reconhecendo mais alguns rostos
familiares entre as barras de ferro das grades ou ali mesmo,
na sua cela. Ela conhecia o �locutor� Campos da Paz J�nior
de um encontro na praia com Am�rico Dias Leite, quando ia
buscar as cartas que chegavam de Paris para Yvonne Vilar.
Embora entendesse pouco portugu�s na �poca, ela p�de
perceber a mal�cia da pergunta feita a Dias Leite pelo
m�dico rechonchudo:
� Dias, voc� pensou que nos enganava, dizendo ter ido �
Europa para estudar? Agora eu vejo o bel�ssimo
contrabando de olhos azuis que voc� trouxe da Fran�a...
Entre suas companheiras de cela, al�m de Sabo e Carmen
Ghioldi, ela reconhecia a jovem advogada Maria Werneck de
Castro. Meses antes da pris�o, Prestes recomendara que
Olga procurasse o advogado Lu�s Werneck de Castro, marido
de Maria, para tentar legalizar oficialmente sua
perman�ncia no Brasil. E, no escrit�rio de Werneck,
conversara rapidamente com ela, sem se identificar como a
mulher de Prestes. Mas pouco depois viria o fracasso da
revolta, a clandestinidade, e os planos de permanecer
legalmente no Brasil se perderam.
Os primeiros dias na Casa de Deten��o, Olga passou-os
guardando certa reserva. Mesmo sabendo que todas as
presas ali eram revolucion�rias, comprometidas com a
mesma luta, o melhor era tomar cuidado. Ela acompanhara
de perto, junto com o marido, no aparelho do M�ier, as
suspeitas que o partido levantara contra Elvira e Miranda �
e isso a deixava especialmente desconfiada. Foi Maria
Werneck quem a procurou para quebrar o gelo, relembrando
o encontro havido meses antes. Uma semana depois de ter
chegado � pris�o da rua Frei Caneca, Maria Prestes, como
era tratada pelos presos, era uma figura popular na cadeia.
Nos primeiros dias de abril, Olga come�ou a desconfiar
que estivesse gr�vida, mas a princ�pio isso n�o a preocupou
demais. Tanto ela quanto as outras presas do sal�o de
mulheres estavam �s voltas com os traumas mentais que
Sabo trouxera do morro de Santo Ant�nio para a Deten��o.
Como uma das f�rmulas para abalar sua estrutura
emocional, os torturadores da Pol�cia Especial, onde ela
estivera presa por tr�s meses, aplicavam-lhe uma violenta
surra todas as noites, pontualmente �s tr�s da madrugada.
Essa regularidade na tortura deixara Sabo de tal forma
neurotizada que ali, na Deten��o, onde n�o havia castigos
f�sicos e estava entre amigos, as sequelas permaneciam. �s
tr�s em ponto, Sabo se punha a gritar, a pedir, em alem�o,
que n�o a matassem, que parassem de espancar seu
marido. Na primeira vez que isso aconteceu, todo o pres�dio
despertou, supondo que de fato algu�m estivesse sendo
torturado ali dentro. Em poucos minutos come�ou o
�caneca�o� � cada preso agarrou sua caneca de lata e
passou a bater ritmadamente nas grades, despertando at�
os detentos da Casa de Corre��o, em outro pavilh�o, e
atraindo centenas de soldados armados de metralhadoras
que imaginaram tratar-se de uma rebeli�o em massa. Com
o tempo os presos se acostumaram � gritaria da alem�. No
come�o as mulheres que dividiam a cela com ela
procuravam acudi-la em seu pesadelo, mas s� Olga tinha
condi��es de acalm�-la. Falando em alem�o,
carinhosamente, conseguia faz�-la dormir de novo, at� que,
semanas depois, Elise tivesse superado o trauma.
Poucos dias ap�s sua chegada � Deten��o, Olga
presenciou uma cena emocionante. Mais de cem presos que
haviam participado da rebeli�o em Natal e Recife chegaram
ao Rio a bordo do navio Manaos. Eram, exatamente, 114
homens e duas mulheres, que vieram no por�o de carga do
vapor, guardados por meia centena de soldados. A exemplo
do que acontecia na Deten��o, o Manaos trouxera
intelectuais, oper�rios, camponeses, estudantes e muitos
militares jovens. Depois de alguns dias reservados aos
interrogat�rios preliminares, os presos foram levados para a
rua Frei Caneca. No momento em que os guardas abriram
os port�es de ferro do pavilh�o para que entrasse a
multid�o de nortistas e nordestinos, os presos puseram-se
de p� em suas celas e come�aram a entoar os hinos:
primeiro o hino nacional brasileiro, depois a �Internacional�
e finalmente o hino da Alian�a. Quando as grades das celas
foram abertas para que os novos h�spedes pudessem se
instalar, o orador oficial do pres�dio, o argentino Rodolfo
Ghioldi, foi encarregado pelo Coletivo de fazer a sauda��o
aos revolucion�rios que chegavam.
A orienta��o que Ghioldi recebera era taxativa: tinha que
ser um discurso otimista, triunfalista, para levantar o moral
daquela gente que tinha viajado em condi��es horrorosas. O
argentino retrucou que a realidade n�o permitia muito
otimismo: os tempos eram de Hitler, Mussolini, Filinto M�ller.
A dire��o n�o quis discutir: ele que usasse seu talento e
fizesse um discurso animador. Ghioldi cumpriu a tarefa com
brilho, e arrancava palmas e l�grimas emocionadas
enquanto, de cuecas e pendurado na sacada do segundo
pavimento, anunciava em castelhano casti�o que Francisco
Franco, Hitler, Get�lio e Mussolini estavam com seus dias
contados; que o glorioso Ex�rcito Vermelho de St�lin
esmagaria o nazifascismo como uma barata repelente.
Provisoriamente estavam eles ali na Deten��o, mas, na
verdade, detinham o futuro em suas m�os. O horizonte era
vermelho e estava pr�ximo da humanidade. N�o parecia um
discurso burocr�tico, feito de encomenda, mas uma
declara��o sincera, lavrada com calor e paix�o. Eram raros
os presos, antigos ou rec�m-chegados, que n�o tinham o
rosto coberto de l�grimas ao aplaudir o argentino com ar de
gal�. Ghioldi acabou de falar e recolheu-se, ele pr�prio
emocionado, � sua cela. Em seguida entrou um dos
nortistas, um jovem semicalvo, de cabelos escuros e ar
tenso, e se apresentou:
� Muito prazer, senhor Ghioldi, meu nome � Graciliano
Ramos. Estou muito contente e o felicito por suas palavras
t�o bonitas. Mas reconhe�a, aqui entre n�s, com
sinceridade: o senhor n�o acredita em uma �nica v�rgula do
que acabou de falar, n�o?
Disciplinado, Ghioldi foi obrigado a mentir:
� N�o, se�or Ramos. Eu acredito em rigorosamente tudo
o que falei para voc�s.
Graciliano n�o se convenceu:
� N�o sei exatamente qual � a sua hist�ria, mas eu sou
do Nordeste e conhe�o bem o meu povo. E este � um povo
que est� t�o atrasado, t�o embrutecido pela mis�ria, que
creio que n�o poder� fazer a revolu��o jamais.
O comunista argentino insistia, aparentemente convicto:
� Mas, se�or Ramos, o mujique russo era muito mais
atrasado que o nordestino e, no entanto, fez uma revolu��o
que vai mudar a face do mundo. A revolu��o n�o depende
apenas do grau cultural de um povo. E sem esses
camponeses russos, atrasados e embrutecidos, n�o teria
existido a Revolu��o Russa.
Graciliano Ramos deixou a cela de Ghioldi em sil�ncio,
sem contestar.
O clima no pres�dio mudou com a chegada dos
revolucion�rios do Norte. N�o apenas porque a presen�a
deles praticamente duplicara a popula��o carcer�ria, mas
principalmente pela alegria e pelo deboche que faziam com
todos os temas. At� os militares que tinham vindo no
Manaos eram menos exigentes com a disciplina que os do
Rio. E foi com os nortistas que chegou � Deten��o e foi
implantada com festas a �ltima maravilha das
comunica��es: o �merdafone�. A novidade � segundo se
soube, inventada por um engenhoso sargento marxistaleninista
de Pernambuco � consistia em segurar a corda de
descarga das privadas num determinado ponto, de forma a
que o n�vel da �gua fosse mantido no fundo do vaso
sanit�rio, como se ele estivesse seco. Duas latrinas de celas
diferentes, mantidas assim, transformavam-se
milagrosamente em um excelente meio de comunica��o,
que exigia apenas que o usu�rio perdesse o nojo de meter o
rosto dentro daquele buraco malcheiroso para falar e ouvir o
que era dito na outra ponta. O suposto autor da inven��o
gabava-se, aos berros, ao anunci�-la aos presos:
� Isto � muito mais avan�ado que o telefone. N�o fosse o
cheiro de merda, eu, e n�o Alexandre Graham Bell, passaria
para a hist�ria!
Olga integrou-se ao Coletivo como se fosse uma
brasileira. Dias ap�s sua chegada, a exibi��o do coral
feminino ensaiado por ela passou a ser atra��o obrigat�ria
nos programas di�rios da pr anl. As mulheres cantavam a
�Internacional� em franc�s, a maioria lendo a letra que ela
copiara v�rias vezes em peda�os de papel, durante o dia, e
encerravam a programa��o entoando, em italiano, o
�Bandiera Rossa�:
Avanti popolo! A la riscorsa!
Bandiera Rossa! Bandiera Rossa!
Bandiera Rossa che trionfer�!
E viva il comunismo per la libert�!
A �ltima estrofe era cantada em coro por trezentas e
tantas vozes, num estrondo que muitas vezes valeu
puni��es aos membros do Coletivo:
Viva Lenine, abasso il r�!
Viva Lenine, abasso il r�!
Um m�s depois de ter sido transferida para a rua Frei
Caneca, Olga anunciou �s companheiras de cela que n�o
tinha mais d�vidas: estava esperando um filho de Prestes.
Sua primeira preocupa��o foi tentar comunicar isso ao
marido. Ela procurou o chefe da carceragem, acompanhada
da m�dica Nise da Silveira, presa como ela, para informar
que a partir daquele momento exigia os cuidados
necess�rios a uma gr�vida. E quis saber se podia escrever a
Prestes para comunicar-lhe que seria pai ainda naquele ano.
O policial n�o fez muito caso e disse apenas que ela
escrevesse e que ele ia ver se era poss�vel fazer chegar a
carta �s m�os do chefe comunista. Seguindo a orienta��o
do guarda, ela escreveu n�o uma, mas dezenas de cartas
ao marido, sempre em franc�s e sempre encerradas com
um carinhoso la tienne � a tua. Cartas que ele nunca
receberia. A not�cia da gravidez da mulher de Prestes
transformou o pres�dio. Todos queriam ajudar a diminuir as
dificuldades de uma gesta��o dentro da cadeia. Os presos
que recebiam visitas come�aram a pedir aos parentes que
trouxessem comidas especiais e vitaminas, sempre
seguindo as prescri��es de Nise da Silveira, que a vida
acabava de transformar de psiquiatra em ginecologista e
obstetra.
Cada um contribu�a como podia. Carmen Ghioldi, ex�mia
bordadeira, arranjou agulhas e linha de croch� e passou a
produzir um min�sculo guarda-roupa para o beb�. Por uma
curiosa esp�cie de premoni��o, ningu�m fazia roupas
masculinas, mas sempre para menina. Rosa Meirelles, uma
das presas, contou a Olga que o tenente ga�cho Jos� Gay
da Cunha, preso em uma das celas do t�rreo, era
desenhista. Olga havia sido apresentada a ele de longe,
atrav�s da grade, por Rosa, e se lembrava do rapaz alto, de
nariz adunco, que lhe abanara a m�o l� de baixo:
� Muito prazer! Ent�o voc� � a Maria Prestes?
� Sim, sou eu. E voc�, � tenente do Terc�rro ou da
Esc�la?
No seu portugu�s tedesco, terc�rro era o 3o Regimento de
Infantaria, e esc�la era a Escola de Avia��o Militar, de cujo
levante o tenente-aviador Gay da Cunha participara. Dias
depois ele fora � enfermaria, com suspeita de intoxica��o
provocada pelo jantar da noite anterior, e se valera do
descuido do guarda para chegar � grade da cela das
mulheres. Olga aproveitou a oportunidade para fazer-lhe um
pedido: queria que ele desenhasse, em pequenos peda�os
de papel, os avi�es existentes na Avia��o Militar do Brasil,
para que Carmen Ghioldi pudesse bord�-los nos babadores
e camisinhas do beb�. Os desenhos foram feitos com
capricho, contrabandeados para a cela das mulheres, e,
poucos dias depois, um pacotinho com roupas min�sculas
descia do sal�o das mulheres at� o piso t�rreo, atrav�s do
�voador�, para que Gay da Cunha conferisse se os bordados
respeitavam seu tra�o original.
O �voador�, outro produto da inventividade nordestina,
era um sistema de linhas e roldanas, feitas com os carret�is
vazios das linhas de croch� de Carmen Ghioldi, que servia
para o transporte de bilhetes e volumes pequenos, de
pouco peso, entre a Pra�a Vermelha e as celas do primeiro
andar. Em geral era utilizado para levar e trazer mensagens
que n�o podiam ser transmitidas aos gritos, ou para a
remessa e devolu��o dos �deveres de casa� dos cursos de
marxismo e filosofia que Olga e Rodolfo Ghioldi ministravam
� maioria dos presos. Quando era necess�rio fazer alguma
comunica��o entre celas de um mesmo piso, o �voador�
obrigava a uma opera��o dupla: o carretel era atirado para
algu�m no p�tio, que recebia a mensagem e a transmitia
para a cela cujo n�mero vinha indicado no bilhete.
Foi atrav�s do �voador� que Olga recebeu um min�sculo
recorte do jornal O Globo com a not�cia de que Prestes,
ouvido na v�spera pelo juiz Barros Barreto, assumira
integral responsabilidade pelo levante de 27 de novembro,
eximindo todos os seus companheiros, estrangeiros ou
dirigentes do Partido Comunista, de qualquer participa��o
na organiza��o da revolta. Pelo mesmo recorte, Olga p�de
perceber o medo que seu marido inspirava ao governo. O
jornal publicava declara��es de Eus�bio de Queiroz,
nomeado comandante do quartel-general da Pol�cia
Especial, em que o militar revelava as medidas de
seguran�a tomadas para guardar �o chefe vermelho�:
� � muito perigoso aproximar-se do morro de Santo
Ant�nio, que est� minado e eletrificado. Debaixo de um
�chap�u de sol�, no alto do morro, est� instalada uma
guarni��o com tr�s metralhadoras, tornando praticamente
imposs�vel a fuga do prisioneiro. As cercas de arame
farpado est�o ligadas a uma rede de alta voltagem, o que
constitui s�rio perigo para a vida daqueles que tentarem
contrafazer a ordem estabelecida.
Quando as not�cias sobre o marido n�o vinham pelo
�voador�, Olga recebia instru��es para estar a tal hora no
guarda-roupa de sua cela, porque algu�m iria transmitir-lhe
pelo �perisc�pio� novidades vindas de fora. Muitas vezes ela
tinha que esperar horas na fila � especialmente se antes
dela estivesse Valentina Bastos, sua colega de cela.
Valentina era apaixonada pelo marido, o milion�rio Adolfo
Barbosa Bastos, o Beb� Chor�o, preso sob a acusa��o de ter
contribu�do com uma verdadeira fortuna para os cofres do
Partido Comunista, embora nunca tivesse sido militante da
agremia��o. Valentina e Adolfo passavam muito tempo
trocando declara��es de amor atrav�s do �perisc�pio�,
ainda que o m�ximo que conseguissem ali fosse acariciar as
pontas dos dedos um do outro. Para a utiliza��o do
�perisc�pio� sem levantar suspeitas dos guardas era preciso
montar um dispositivo que envolvia quase todos os presos.
Durante as conversas ou namoros pelo orif�cio da parede,
pelo menos uma das descargas de privada do pres�dio
precisava ser acionada, para que seu ru�do abafasse as
vozes dos que falavam � artif�cio que levou a jornalista
Haid�e Nicolucci a batizar aqueles momentos de �a hora da
pororoca�.
Com o passar das semanas, a gravidez de Olga ficava
mais evidente. Em uma de suas muitas visitas ao cart�rio
onde eram tomados os depoimentos dos presos do levante,
Olga dirigiu-se aos rep�rteres que a cercavam em busca de
not�cias e anunciou que dentro de alguns meses daria � luz
um filho de Lu�s Carlos Prestes. Um fato, entretanto,
impedia que ela e seus companheiros de pris�o pudessem
desfrutar a perspectiva da maternidade. A amea�a de
expuls�o do Brasil era cada vez mais concreta. Nos
primeiros dias de maio o delegado Eurico Bellens Porto,
encarregado por Filinto M�ller de presidir o inqu�rito policial
sobre a revolta, anunciava que seu trabalho chegava ao fim:
centenas de pessoas � brasileiros e estrangeiros, civis e
militares � haviam sido indiciadas como participantes do
levante, mas, no que se referia �s tr�s mulheres presas na
Casa de Deten��o, suas conclus�es eram amb�guas.
Primeiro ele dizia n�o ter como puni-las no Brasil, pois a
nenhuma delas havia sido imputado qualquer crime. �N�o
encontro elementos bastantes que permitam incluir como
indiciadas com atua��o definida as estrangeiras Elisa Ewert,
Carmen Alfaya de Ghioldi e Maria Bergner Prestes�,
lamentava Bellens Porto em of�cio dirigido a Filinto M�ller.
Mas se a lei n�o previa qualquer puni��o para as tr�s, pior
para a lei. O inadmiss�vel era colocar em liberdade as
mulheres dos tr�s chefes comunistas. Bellens Porto arranjou
uma forma ainda mais dura de penalizar as tr�s: �Trata-se
evidentemente de elementos indesej�veis, cuja
perman�ncia em territ�rio nacional n�o � aconselhada. Por
estas raz�es, data venia, lembro a V. Excia. a conveni�ncia
de contra elas serem instaurados competentes processos de
expuls�o�.
14
Uma �estrangeira nociva�
Embora a amea�a de expuls�o fosse cada vez mais
iminente, uma ponta de esperan�a permitia que Olga
sonhasse ter seu filho no Brasil: apesar do estado de s�tio
que acabava de ser renovado, apesar do clima de
anticomunismo e de hostilidade aos judeus que se
disseminava no Brasil, apesar da indisfar�ada simpatia que
o governo Vargas manifestava pelo nazismo na Alemanha, a
Constitui��o brasileira, que continuava em vigor, garantia
�s mulheres que estivessem esperando filhos de pais
brasileiros o direito de t�-los no pa�s. N�o lhe importava
continuar na pris�o, pois sabia que um dia tanto ela quanto
Prestes acabariam sendo libertados. O que a aterrorizava
era a perspectiva de ser enviada ao seu pa�s de origem.
Para ela que, al�m de judia, era comunista, cair nas m�os
de Hitler seria o fim de tudo.
Mesmo que as leis brasileiras lhe fossem favor�veis, as
not�cias que Olga recebia pelo �voador� ou atrav�s do
�perisc�pio� eram desanimadoras. De todos os casos de
expuls�o de estrangeiros �indesej�veis� de que tivera
not�cia � e eram centenas e centenas �, um,
particularmente, Olga acompanhara de perto, ainda em
liberdade, pelo notici�rio dos jornais, e ficara estarrecida
com seu desfecho. Depois de manter presa durante quatro
meses, sob a vaga acusa��o de �subvers�o�, o governo
Vargas decidira deportar uma garota de dezessete anos,
Genny Gleizer, judia romena, apesar da manifesta��o de
centenas de sindicatos e associa��es de estudantes e
intelectuais, tanto do Brasil como do exterior. Durante o
processo de expuls�o de Genny, a opini�o p�blica
testemunhara alguns gestos comoventes de solidariedade.
Quando se anunciou, por exemplo, que se ela casasse com
um brasileiro as leis a protegeriam da deporta��o, v�rios
escritores e intelectuais se ofereceram como volunt�rios.
Num com�cio pela liberta��o de Genny, no centro de S�o
Paulo � onde tinha sido presa �, o estudante Paulo Em�lio
Salles Gomes anunciou que sairia do palanque diretamente
para o cart�rio, em busca de um juiz que oficializasse seu
casamento com a garota. Chegou tarde. O jornalista Arthur
Piccinini, que acompanhava o �caso Genny� para o di�rio A
Plateia, tomara-lhe a frente e havia solicitado ao Ju�zo de
Paz do bairro da S�, na capital paulista, a publica��o dos
proclamas para seu matrim�nio. Insens�vel a tudo isso, em
outubro de 1935 o governo deportou Genny Gleizer para a
Europa.
Os comunistas brasileiros sabiam que esse poderia ser o
destino da mulher de Prestes e se preparavam para o pior.
O Comit� Brasileiro do Socorro Vermelho Internacional
conseguiu fazer chegar aos n�cleos da organiza��o em
todos os portos da Europa manifestos dando conta da
situa��o pol�tica brasileira e das sucessivas deporta��es
que o governo vinha fazendo de �extremistas� europeus
para seus pa�ses de origem � especialmente para os pa�ses
dominados pela vaga nazifascista. Assim, o apelo dos
comunistas brasileiros era de que os estivadores de portos
europeus vistoriassem todos os navios procedentes do
Brasil para tirar de seus por�es os estrangeiros deportados.
A mobiliza��o de uma categoria profissional
tradicionalmente politizada, como os portu�rios, chegava a
paralisar os portos da Europa cada vez que um navio vindo
do Brasil atracava para reabastecer ou descarregar algum
produto. Quando as autoridades tentavam impedir as
buscas nos por�es dos navios, os portos entravam
simultaneamente em greve at� a revoga��o da ordem.
Numa �nica a��o, realizada no porto do Havre, na Fran�a,
conseguiu-se retirar do conv�s de carga de um navio da
Marinha Mercante dezessete deportados � alem�es,
italianos, portugueses e poloneses. Nos armaz�ns e nos cais
dos portos da Espanha ainda republicana um pequeno
panfleto circulava de m�o em m�o, aos milhares, inspirado
neste pedido feito pelos comunistas brasileiros:
Aos camaradas da Se��o Espanhola do
Socorro Vermelho Internacional
O reacion�rio governo brasileiro, em guerra aberta e cruel contra os antiimperialistas
do pa�s, vai deportar dezenas e dezenas de militantes
estrangeiros. N�s vos participamos esse fato, para que estejais vigilantes em
rela��o a todos os navios procedentes do Brasil e faciliteis o desembarque na
Espanha dessas v�timas da rea��o brasileira. Sobretudo, n�s vos pedimos que
fa�ais todos os esfor�os no sentido de evitar que os nacionais de pa�ses
fascistas cheguem a estes. Eles querem desembarcar na Espanha ou na
Fran�a, o que vos solicitamos providenciar.
Sauda��es Revolucion�rias
Comit� Regional de S�o Paulo do
Socorro Vermelho Internacional
O endurecimento da repress�o no Brasil justificava os
temores do Socorro Vermelho. Prestes estava amea�ado de
ser processado como chefe da rebeli�o, como mandante da
morte de Elvira Col�nio e como desertor do Ex�rcito. Por
ordem de Filinto M�ller, o prefeito Pedro Ernesto, do Distrito
Federal, havia sido preso. Ant�nio Maciel Bonfim, ap�s saber
do desaparecimento da mulher e que, provavelmente, ela
teria sido executada por ordem da dire��o do Partido
Comunista, tornara-se ainda mais loquaz em seus
depoimentos � pol�cia. No m�s de abril de 1936, Olga foi
retirada de sua cela e levada aos escrit�rios burocr�ticos da
Casa de Deten��o para ser acareada com o antigo
secret�rio-geral do partido. As duas figuras eram t�o
importantes para o processo que o delegado Bellens Porto
dirigiu pessoalmente a audi�ncia. Olga n�o s� se recusou a
reconhecer Miranda como sequer aceitou rubricar as folhas
do auto de reconhecimento. Bonfim, ao contr�rio, disse sem
hesitar que reconhecia aquela mulher como a mesma que
encontrara em reuni�es junto com Prestes, Ewert e Ghioldi.
Sem nenhum pudor, acrescentou que a pol�cia poderia
encontrar mais declara��es suas a respeito das atividades
da alem� nas declara��es que prestara anteriormente ao
delegado Ant�nio Canavarro Pereira. Impass�vel, Olga ouvia
tudo aquilo tentando de novo encontrar resposta para uma
pergunta que fizera a si mesma e a Prestes: �Como aquele
homem conseguira chegar ao mais alto posto de um partido
comunista?�. Ao relatar aos companheiros de pris�o,
pessoalmente ou pelo �voador�, o comportamento de
Bonfim na acarea��o, ela percebeu que as suspeitas n�o
eram apenas suas. At� o discreto e retra�do Graciliano
Ramos, que parecia participar pouco da vida do pres�dio e
passava as horas enterrado na cela, fazendo anota��es em
blocos de papel, j� manifestara espanto pelo despreparo e o
exibicionismo suspeito de Ant�nio Maciel Bonfim.
No final de maio Olga engordara bastante: a barriga
estufava e come�ava a aparecer sob o vestido. Foi nessa
�poca que o governo decidiu promover comemora��es
c�vicas pela passagem dos primeiros seis meses da revolta
de novembro, ent�o batizada de Intentona Comunista.
Comandantes do Ex�rcito, da Marinha e da Avia��o Militar
fizeram pronunciamentos relembrando os epis�dios e
organizaram visitas aos t�mulos dos militares mortos no
levante. Os jornais noticiavam que a sede nacional do
Rotary Club dedicaria a sua reuni�o-almo�o daquele m�s,
marcada para o dia 27, �ao estudo do problema da defesa
contra o extremismo, havendo convidado o capit�o Miranda
Correia, delegado de Seguran�a Pol�tica e Social, para fazer
uma confer�ncia sobre o assunto�. Como convidados de
honra, compareceriam ao �gape os ministros Vicente Rao,
da Justi�a, o general Jo�o Gomes, da Guerra, o contraalmirante
Aristides Guilhem, da Marinha, e o chefe de
pol�cia, capit�o Filinto Str�mbling M�ller. A partir de ent�o o
governo passaria a difundir a vers�o de que os revoltosos
tinham matado pra�as e oficiais legalistas durante o sono,
na madrugada de 27 de novembro. O exame das necr�psias
das duas dezenas de mortos, no entanto, n�o oferecia
nenhum ind�cio de que tal acusa��o fosse procedente.
Mas as comemora��es n�o se dariam apenas entre os
vencedores. � sua maneira, dentro do pres�dio, os
derrotados de 27 de novembro tamb�m receberiam
presentes pela passagem da data. O autor da surpresa seria
o sargento J�lio Alves, dono de incr�vel habilidade manual
para o trabalho com metal. Nos �ltimos meses J�lio Alves
recomendara a um capit�o nascido em Minas Gerais que
pedisse a seus parentes para aumentar as remessas de um
certo queijo que lhe traziam de presente, quando das
visitas, e que vinha acomodado em latas redondas, do
tamanho de uma bola de futebol. Menos que o conte�do,
J�lio Alves queria mesmo era as latas, de metal macio e f�cil
de trabalhar, que ele transformava em fogareiros e panelas
para uso nas cozinhas clandestinas das celas. Dessa vez, no
entanto, ele se superou. No fim da tarde de 27 de maio o
�voador� funcionou sem parar, depositando em cada uma
das 49 celas da Casa de Deten��o um pequenino embrulho
de papel contendo o presente com que o sargento Alves
comemorava o meio anivers�rio da revolta: uma gazua
esculpida no metal das latas de queijo, capaz de abrir sem
dificuldades qualquer uma das fechaduras das celas. Cada
gazua vinha acompanhada de uma advert�ncia rabiscada
no papel de embrulho: �S� usar em caso de extrema
necessidade. Se pegam isso conosco, pode dar fuzilamento.
Viva a Revolu��o prolet�ria!�. Apar�cio Torelly, o Bar�o de
Itarar�, espalhou pelo pres�dio a not�cia de que as gazuas,
al�m de abrirem portas, tinham o cond�o de juntar
marxistas e crist�os:
� Elas foram feitas pelo sargento J�lio Alves,
indiscutivelmente comunista, e foram benzidas pelo padre
Nascimento, aparentemente crist�o.
Padre Nascimento era uma das figuras mais folcl�ricas do
pres�dio. Quando entrou pela primeira vez no pavilh�o da
Deten��o, tinha a m�o esquerda levantada, com o punho
cerrado, e na direita arrastava uma canastra de frutas e
queijos para os presos. Diretor de uma creche para �rf�os
na cidade de Niter�i, foi preso por ingenuidade, enquanto
percorria as lojas da cidade pedindo contribui��es aos
comerciantes para �as fam�lias dos pobres comunistas
presos em novembro�. Algu�m o denunciou e ele foi levado
preso ao Rio de Janeiro. Quando chegou � rua Frei Caneca,
os policiais o amea�avam:
� Agora, padre filho da puta, vamos coloc�-lo com os
comunistas e o senhor vai ver de perto quem s�o os
dem�nios para quem pedia dinheiro.
A forma que a pol�cia encontrou para martiriz�-lo foi
obrig�-lo a assistir �s sess�es de torturas na Casa de
Corre��o, pavilh�o vizinho ao da Deten��o. Depois de uma
dessas experi�ncias, ele parou em frente � cela de Olga
Benario, olhou fixo para a barriga arredondada da alem� e
jogou-se ao ch�o, de joelhos, com as m�os postas,
perguntando pateticamente a ela:
� Diga-me, senhora: haver� Deus?
Entre as den�ncias que havia contra ele, estava o crime
de ligar o r�dio de ondas curtas do orfanato nas
transmiss�es da R�dio Moscou e da R�dio Republicana da
Espanha, ap�s o jantar, e chamar os �rf�os para ouvirem os
programas junto com ele. Naquela �poca, as transmiss�es
da R�dio Moscou come�avam com a execu��o da
�Internacional�. Os meninos ficaram de tal forma habituados
que, quando padre Nascimento se esquecia, havia sempre
um deles a pux�-lo pela batina:
� Padre, est� na hora de ouvir o samba!
O samba era a �Internacional� comunista.
Padre Nascimento detinha o t�tulo de aluno mais ass�duo
de todos os cursos ministrados na cadeia. Estudava
marxismo com Olga Benario, filosofia com Ghioldi, aprendia
russo e ingl�s com Raphael Kemprad, russo branco criado
na Alemanha e preso no Rio ningu�m soube por que,
xadrez, damas, geografia pol�tica e hist�ria do Brasil com
quem os ensinasse. Quando duas turmas se reuniam ao
mesmo tempo, ele pedia a algu�m que lhe fizesse um
resumo da aula e o enviasse a sua cela pelo �voador�. S�
uma classe ele se recusava a frequentar, alegando
�quest�es de consci�ncia�: as intermin�veis sess�es de
gin�stica impostas pelos tenentes. Mas era pregui�a
mesmo.
Como a maioria dos presos, padre Nascimento tinha
especial predile��o pelos cursos ministrados por Rodolfo
Ghioldi. O argentino, que planejara passar o seu per�odo na
cadeia �o mais discretamente poss�vel�, era bombardeado
por pedidos de presos que queriam conhecer melhor a
chamada �teoria revolucion�ria�. O que significa revolu��o
anti-imperialista? O que quer dizer revolu��o democr�tica?
O que � a alian�a oper�rio-camponesa? O que quer dizer
que o proletariado � a classe dirigente e que o Partido
Comunista � a vanguarda do proletariado? O que � o apra
peruano? O que foi a Revolu��o Mexicana? Encerrado em
seu cub�culo, ele recebia pelo �voador� as perguntas mais
estapaf�rdias, e n�o tinha rem�dio sen�o sair de seu
pretendido anonimato. Quando as celas estavam trancadas,
ele ajudava os presos a fazer o �dever de casa�, muitas
vezes passado por Olga, atrav�s de bilhetinhos. Abertas as
portas, ele falava abertamente, para todos, algo que Olga
nunca se animou a fazer. Embora falasse sobre Am�rica
Latina, filosofia marxista, Revolu��o Chinesa, ele preferia
dissertar sobre o movimento campon�s... do Brasil. Ao cabo
de alguns meses, falando um portugu�s sofr�vel, Ghioldi
chegou a escrever um ensaio de mais de cem p�ginas sobre
o problema agr�rio brasileiro. A partir das entrevistas que
ele fazia �s dezenas com os revolucion�rios vindos do
campo, havia se transformado em um especialista no
assunto.
Mesclando depoimentos sobre o que testemunhara na
Uni�o Sovi�tica com rudimentos de teoria marxista, Olga
Benario preferia falar para grupos menores, dentro do sal�o
das mulheres. � sua volta sentavam-se desde modestos
sapateiros at� oficiais do Ex�rcito e advogados, como
Hermes Lima, que d�cadas depois (em 1962) viria a ser
primeiro-ministro do Brasil, e depois ministro do Supremo
Tribunal Federal, at� ser cassado em 1969. Olga dava sua
aula e ditava, ao final, uma s�rie de perguntas para os
alunos. Em tr�s dias eles deviam devolver, pelo �voador�,
os question�rios respondidos. A aula seguinte seria
dedicada a discutir a compreens�o que cada um tinha tido
do tema ensinado. As turmas eram t�o heterog�neas que,
mesmo sendo estrangeira, em algumas das sabatinas ela se
dava ao requinte de fazer corre��es de erros de gram�tica e
concord�ncia nas provas.
A vida no pres�dio s� se transformava nos dias de visitas,
que aconteciam um domingo por m�s. Havia presos que se
preparavam durante tr�s semanas para aqueles minguados
cinquenta minutos. Ao chegar o dia, os homens se
barbeavam, as mulheres se perfumavam, e a excita��o era
t�o grande que �s cinco da manh� a maioria estava de p�,
mesmo aqueles que n�o tinham quem os visitasse.
Terminadas as visitas, o clima de festa ainda se mantinha
por algumas horas: era a troca de not�cias, uns querendo
saber da sa�de dos parentes dos outros, pais indicando com
a m�o o tamanho dos filhos. Depois vinha a redistribui��o
dos cigarros, chocolates, queijos e goiabadas vindos de fora
e em seguida um clima de depress�o baixava sobre o
pres�dio. Aos poucos os grupos iam se desfazendo, cada
preso procurava o seu cub�culo e, acocorados sobre as
camas toscas, punham-se a ler e reler dezenas de vezes as
mesmas cartas. Quem apurasse o ouvido poderia perceber
solu�os vindos de dentro de celas de calejados
revolucion�rios. Era o �nico dia do m�s em que a �Voz da
Liberdade� n�o ia para o ar.
As visitas permitiam tamb�m que o pres�dio fosse arejado
por not�cias de fora. Foi num dia de visitas que se soube que
o homem que prendera Olga e Prestes, Josu� Torres Galv�o,
fora assassinado com cinco tiros por um soldado, no pr�prio
quartel da Pol�cia Especial. Menos de 24 horas depois do
crime, o assassino, Hernani de Andrade, chefe de um grupo
de capturas, se suicidaria misteriosamente. Em surdina,
diziam os visitantes, a not�cia que corria � que os dois
haviam se desentendido sobre quem ficaria com a
recompensa de cem contos de r�is prometida por Filinto
M�ller para o policial que prendesse Prestes. E foi tamb�m
num dia de visitas que Olga Benario ficou sabendo que o
governo estava firmemente decidido a deport�-la para a
Alemanha. O Instituto dos Advogados tentara designar, para
defend�-la, um advogado de seu Departamento de
Assist�ncia Judici�ria, Dyonisio da Silveira, mas ele recusouse
a aceitar o encargo. Pela primeira vez, ent�o, o governo
permitiu que Olga escrevesse uma carta a Prestes. E s� a�
ele soube que sua mulher estava gr�vida. Na resposta a
Olga, fez-lhe duas recomenda��es: que procurasse um
m�dico homeopata para tratar-se durante a gravidez �
Prestes sempre se tratou pela homeopatia � e que
indicasse o dr. Heitor Lima como seu advogado. Embora
estivesse, como dissera o Bar�o de Itarar�, �gr�vida a olho
nu�, Olga teve que ser submetida a um exame ginecol�gico,
feito pelo m�dico Orlando Carmo, indicado pela pol�cia, para
comprovar formalmente seu estado. Mesmo n�o havendo
d�vidas de que a Constitui��o lhe assegurava o direito de
permanecer no pa�s, estando para dar � luz o filho de um
brasileiro, n�o faltaram juristas a teorizar sobre o acerto da
decis�o de Vargas e Filinto M�ller de expuls�-la do Brasil.
Quando algu�m lembrava a garantia constitucional, a
resposta era sempre a mesma: �Bem, mas estamos sob
estado de guerra, n�o �?�. Consultado pelos jornais, o
jurista Cl�vis Bevil�cqua foi obrigado a dar voltas e voltas
para justificar a decis�o do governo:
� A quest�o j� foi estudada em todos os seus aspectos
em face do direito civil. �, por�m, diverso, o caso ora em
debate. Estamos agora no terreno do direito internacional
com um car�ter punitivo. Essa puni��o, no entanto, visando
a expulsanda, vai atingir o nascituro. Al�m disso, estamos
em um per�odo de estado de guerra, e a expuls�o de que se
cogita envolve o ponto de vista do interesse p�blico, que
est� acima de todos os demais interesses.
A quest�o do �interesse p�blico� a que se referia
pomposamente Cl�vis Bevil�cqua n�o passava, na verdade,
de um despacho administrativo assinado por Dem�crito de
Almeida, um delegado auxiliar, e por Filinto M�ller, um
capit�o na chefia da pol�cia, que entenderam que a
expuls�o de Olga, �al�m de justa, � necess�ria � comunh�o
brasileira�. Mesmo sabendo que a deporta��o poderia
significar a morte de m�e e filho, Bevil�cqua n�o resistiu �
ironia ao declarar que s� via uma sa�da para impedir a
expuls�o de Olga:
� S� por quest�o de humanidade... No tempo em que
havia a pena de morte, n�o se executava a senten�a
quando a paciente estava gr�vida. Aguardava-se o
nascimento da crian�a. Era tamb�m uma quest�o de
humanidade...
Conforme mandava a lei, Olga teve que manifestar por
escrito seu desejo de ser defendida por Heitor Lima, que no
mesmo dia recebeu a comunica��o dessa decis�o, em of�cio
que lhe foi dirigido pelo capit�o Miranda Correia. Mesmo
sendo um liberal sem a mais remota liga��o com as ideias
dos revoltosos de novembro, Lima respondeu ao policial
afirmativamente:
Senhor Capit�o
Afonso de Miranda Correia
Delegado de Seguran�a Pol�tica e Social
A resposta ao vosso of�cio comporta tr�s ordens de considera��es.
Em primeiro lugar, a �conduta do governo, facilitando a defesa dos
indiciados em crimes contra a ordem pol�tica e social, quando o Estado de
Guerra lhe facilitaria, com apar�ncias de legitimidade, a coarcta��o do direito
de defesa, deve ser posta em relevo. Quero assinalar esse fato, que satisfaz a
consci�ncia jur�dica nacional.
Em segundo lugar, se, salvo casos especial�ssimos, ao advogado n�o � l�cito
recusar o seu minist�rio a quaisquer acusados, por mais horrendo que seja o
delito a eles atribu�do, mais imperativo, instante e compuls�rio � o dever de
assist�ncia, quando se trata de presos incomunic�veis, feridos pelo rep�dio
geral, numa situa��o adequada � infring�ncia das f�rmulas sem cuja
observ�ncia toda condena��o ser� in�qua, porque n�o representar� a
dedu��o l�gica e jur�dica dos debates livres entre acusa��o e defesa.
Sobreleva ainda que, num per�odo em que ao advogado n�o se outorgam
imunidades, a recusa do patroc�nio redundaria em ato de covardia.
Em terceiro lugar, e finalmente, � uma mulher que invoca o meu nome.
Bastaria tal circunst�ncia para que eu, fiel � atitude de combate pela
mitiga��o do infort�nio feminino na face da terra, e empenhado em resgatar,
em parcela m�nima embora, os crimes da civiliza��o masculina contra a
mulher, nos quais como homem tenho a minha parte de responsabilidade,
bastaria tal circunst�ncia, repito, para que eu acudisse ao apelo. Leio, por�m,
nos jornais, que a indiciada se prepara para o acontecimento culminante na
vida da mulher: a maternidade. Est�, portanto, nimbada de uma aur�ola que
a torna, por assim dizer, sagrada. Quaisquer, pois, que fossem os riscos da
tarefa, eu os afrontaria, dedicando-me a ela enquanto encontrar na lei
recursos para o desempenho da minha miss�o.
Sauda��es,
Heitor Lima
A primeira medida tomada pelo advogado, tr�s dias
depois de aceitar a defesa de Olga � ou Maria Prestes,
como ele insistiu em trat�-la durante todo o processo �, foi
entrar com um pedido de habeas corpus junto � Corte
Suprema. N�o para coloc�-la em liberdade, que disso nem
se cogitava, mas para tentar impedir que se consumasse a
expuls�o j� determinada pelo ministro da Justi�a, Vicente
Rao, com base na exposi��o de motivos que lhe fizera
Filinto M�ller. Quanto mais Heitor Lima remexia as
montanhas de depoimentos e den�ncias do processo da
revolta, tanto mais se materializava a certeza de que a
decis�o da expuls�o se resumia a uma vingan�a pessoal de
Get�lio Vargas e Filinto M�ller. N�o contra ela, que nenhum
dos dois conhecia, mas contra o marido e pai de seu filho,
Lu�s Carlos Prestes. N�o havia, em todo o processo, uma s�
acusa��o, uma �nica imputa��o de qualquer delito que ela
pudesse ter praticado no Brasil. Nem sequer sua extradi��o
havia sido pedida pelo governo de Adolf Hitler. Get�lio e
Filinto tomavam espontaneamente a decis�o de enviar ao
Reich nazista uma judia, comunista e gr�vida de quatro
meses. Contra a Constitui��o, exibiam o par�grafo de tr�s
linhas da Lei de Seguran�a Nacional que o pr�prio Rao
redigira meses antes:
A Uni�o poder� expulsar do territ�rio nacional os estrangeiros perigosos �
ordem p�blica ou nocivos aos interesses do pa�s.
Cuidadoso ao evitar tratar da quest�o do antissemitismo,
mas com coragem suficiente para qualificar o presidente da
Rep�blica de �homem de surpreendentes defeitos, em
quem falece a vis�o de conjunto, reveladora do estadista�,
Heitor Lima protocolou na secretaria da Corte Suprema o
pedido de habeas corpus, que terminava assim:
Se o habeas corpus for concedido, que suceder�? Presa e incomunic�vel
continuar� a paciente. Prosseguir� o inqu�rito, no qual a pol�cia v� fortes
elementos para a condena��o. O Poder Judici�rio, tomando conhecimento das
provas que a pol�cia afirma irrefrag�veis contra a paciente, conden�-la-�.
Ficar� assim Maria Prestes reduzida � condi��o de nada fazer de nocivo �
ordem p�blica. Mas, embora presa e condenada, muito poder� fazer de �til,
como esposa e m�e.
A presente peti��o n�o vai selada, nem devidamente instru�da, porque a
paciente se encontra absolutamente desprovida de recursos. O vestido que
traz hoje � o mesmo que usava quando foi presa, e o pouco dinheiro, os
valores e as roupas que a pol�cia apreendeu na sua resid�ncia at� hoje n�o
lhe foram restitu�dos.
Requer, pois, o impetrante, que esta Egr�gia Corte Suprema:
1o � Determine que o presente pedido se processe sem custas.
2o � Solicite do Sr. Ministro da Justi�a informa��es sobre o alegado neste
requerimento, do qual lhe remeter� c�pia.
3o � Requisite os autos do processo de expuls�o.
4o � Ordene o comparecimento da paciente para a sess�o de julgamento.
5o � Fa�a submeter a paciente a uma per�cia m�dica, no sentido de
precisar o seu estado de gravidez.
6o � Solicite que o Sr. Chefe de Pol�cia informe se, no inqu�rito a que,
juntamente com Lu�s Carlos Prestes, responde a paciente, � Maria Prestes
acusada de v�rios delitos contra a ordem pol�tica e social.
7o � Conceda afinal a ordem de habeas corpus, a fim de que a paciente
n�o seja expulsa do territ�rio nacional, sem preju�zo do processo ou
processos a que esteja respondendo ou venha a responder.
O advogado,
Heitor Lima
A primeira rea��o da Corte Suprema ao habeas corpus
veio de seu presidente, o ministro Edmundo Lins, e n�o era
muito animadora. A resposta ao pedido do advogado de que
a a��o se processasse sem custas foi dada do pr�prio punho
do ministro, no alto da primeira folha do habeas corpus:
Pague o selo devido e volte, querendo.
E. Lins
O troco do advogado Heitor Lima foi dado � altura. No
mesmo dia, e tamb�m de pr�prio punho, ele replicava,
feminista como sempre, ao p� do pedido:
Se a justi�a masculina, mesmo quando exercida por uma consci�ncia do mais
fino quilate, como o insigne presidente da Corte Suprema, tolhe a defesa a
uma encarcerada sem recursos, n�o h� a hist�ria da civiliza��o brasileira de
recolher em seus anais judici�rios esta n�doa: a condena��o de uma mulher,
sem que a seu favor se elevasse a voz de um homem no Pal�cio da Lei. O
impetrante satisfar� as despesas do processo.
Heitor Lima
O desfecho do pedido n�o poderia ser mais tr�gico.
Designado relator do processo, o ministro Bento de Faria
indeferiu, uma por uma, todas as solicita��es do advogado.
E, alegando que o instituto do habeas corpus estava
suspenso pelo estado de s�tio e pelo estado de guerra
decretados por Get�lio Vargas, decidiu simplesmente n�o
tomar conhecimento do pedido. Votaram com o relator o
presidente da Corte Suprema e os ministros Hermenegildo
de Barros, Pl�nio Casado, Laudo de Camargo, Costa Manso,
Ot�vio Kelly e Ataulpho de Paiva. Os tr�s ministros restantes
� Eduardo Esp�nola, Carvalho Mour�o e Carlos Maximiliano
� criaram um artif�cio para evitar simplesmente
desconhecer o pedido: conheceram, mas negaram o habeas
corpus. Por unanimidade, o tal �Pal�cio da Lei� a que se
referira Heitor Lima condenava Olga Benario � morte.
15
Rebeli�o na Pra�a Vermelha
Nem nas noites que se seguiam �s visitas se viu tanta
depress�o no pres�dio da rua Frei Caneca. A not�cia de que a
Corte Suprema decidira, por unanimidade, ignorar o pedido
de habeas corpus para Olga estourou como uma bomba
entre os presos. A Pra�a Vermelha estava deserta e pela
primeira vez a �Voz da Liberdade� n�o iria ao ar num dia de
semana. Havia, entretanto, uma diferen�a: dessa vez o
choro tinha dado lugar ao �dio. Quem apurasse o ouvido na
noite de 17 de junho na Casa de Deten��o n�o escutaria
solu�os, mas vozes conspirando baixinho em todas as celas.
O Coletivo decidira que Olga n�o seria levada sem
resist�ncia dos presos, e todos tinham que se preparar para
isso.
Um epis�dio ocorrido tr�s ou quatro dias ap�s a decis�o
da Justi�a serviu para mostrar que a pol�cia de Filinto M�ller
esperava alguma forma de rea��o dos presos e estava
vigilante. �s tr�s horas da madrugada os presos foram
despertados por uma barulheira de m�veis e objetos caindo,
ru�dos que vinham de tr�s da enfermaria, onde ficava a
pequena capela que separava o chamado �pavilh�o dos
prim�rios�, ou Casa de Deten��o, do outro, denominado
Casa de Corre��o. O barulho que acordou os presos serviu
para revelar, antes do tempo, o dispositivo de prontid�o que
Filinto M�ller montara em torno do pres�dio, para prevenir
eventuais revoltas contra a decis�o de deportar Olga
Benario. Em poucos minutos dezenas de guardas armados
de metralhadoras ocuparam a Pra�a Vermelha, com fileiras
de bombas de g�s lacrimog�neo penduradas nos cintur�es.
Tr�s soldados receberam ordens para entrar na cela onde
estavam Hercolino Cascardo, Alcedo Cavalcanti, Agildo
Barata e Sebasti�o da Hora, participantes de uma comiss�o
nomeada pelo Coletivo para reivindicar melhores condi��es
para os presos junto ao diretor da Deten��o, Aloysio Neiva.
Supunha-se que eles estivessem liderando uma rebeli�o
contra a sa�da de Olga. Os presos, por sua vez, acreditavam
que toda aquela movimenta��o policial se devia
exatamente a isto: estavam tentando isolar as lideran�as
para tirar Olga da cela sem resist�ncia dos presos. Mesmo
desarmados, Agildo e Cascardo se atiraram sobre os
soldados, tentando tomar-lhes os fuzis. Para generalizar a
confus�o, come�ou, ensurdecedor, o �caneca�o�. Filinto
M�ller foi chamado em casa e chegou � Frei Caneca
comandando duas companhias de �cabe�as de tomate�,
que isolaram todas as ruas nas imedia��es do complexo
carcer�rio. No sal�o das mulheres Olga foi escondida dentro
do guarda-roupa que protegia o �perisc�pio�, e suas
companheiras de cela j� tinham decidido: se algu�m
entrasse para retir�-la, reagiriam com as �nicas armas
dispon�veis: as unhas e os dentes. S� ao nascer do dia,
quando as tropas conseguiram impor a ordem dentro do
pavilh�o, � que se soube a origem do ru�do que quase
provocara uma trag�dia: uma ratazana esbarrara em uma
pe�a de madeira do altar improvisado da capela, fazendo
cair ao ch�o tur�bulos, imagens, garrafas de �gua benta e
um pesado orat�rio de madeira.
Tanto a not�cia da �rebeli�o� como a da decis�o da Corte
Suprema chegaram ao cub�culo onde Prestes se encontrava
encerrado, no morro de Santo Ant�nio, atrav�s do mesmo
sistema pelo qual ele vinha se informando sobre o que se
passava no pa�s desde o dia de sua pris�o � embora
submetido a regime de rigorosa incomunicabilidade.
Soldados e carcereiros que o acompanharam na Coluna, ou
que simplesmente admiravam o mito do Cavaleiro da
Esperan�a, ocultavam no meio da comida que lhe era
servida, embrulhados em papel imperme�vel, min�sculos
cilindros feitos com as colunas de jornais, cortadas
cuidadosamente e que, depois de enroladas, passavam a
ter a dimens�o de um cigarro. Ap�s a comida ele se enfiava
debaixo dos cobertores e, � medida que desenrolava os
pequenos tubos, lia os jornais do dia. Lia tudo, at� os
an�ncios. Como sua solit�ria n�o possu�a sanit�rio � ele era
obrigado a usar o do comandante, sempre acompanhado de
escolta �, Prestes simplesmente atirava sob o colch�o as
tiras de jornais lidos. A cada quinze dias o comandante do
Quartel General da Pol�cia Especial, tenente Eus�bio de
Queiroz, fazia pessoalmente uma revista na cela do preso
ilustre, e encontrava aquele monte de papel sob o colch�o.
Talvez temendo levar uma descompostura de Prestes, nunca
teve coragem de adverti-lo pela quebra da
incomunicabilidade � Queiroz preferia fingir que nada vira.
Minutos depois da vistoria, aparecia um soldado para retirar
os peda�os de jornais. Foram esses contrabandos de
not�cias que permitiram a Prestes ter informa��es sobre as
condi��es de sa�de e a situa��o jur�dica de sua mulher.
Cada vez que Olga era levada do pres�dio para depor nos
cart�rios onde se preparava o processo, ele podia v�-la nas
fotografias, permanentemente acompanhada de policiais e
sempre elegante � o cabelo preso atr�s, em coque, uma
pequena bolsa que recebera de presente de uma amiga e o
mesmo vestido de sempre, cortado por ele na
clandestinidade do M�ier. Ao ler as descri��es que a
imprensa fazia dela, ou os di�logos havidos entre ela e os
rep�rteres, o cora��o do l�der comunista se apertava. Dizia
o Correio da Manh�:
Sorridente ante as perguntas da autoridade, Olga, no entanto, ficou um tanto
perturbada com a presen�a dos fot�grafos. Nas suas declara��es, sempre
calma, Olga falou regularmente o portugu�s, fazendo pausas antes de
responder, evidentemente para pensar. Quando chegou � Chefia de Pol�cia,
Olga foi alvo da curiosidade geral: trajava um vestido branco, estava sem
chap�u, trazendo os cabelos repartidos ao meio e atados atr�s por uma fita.
Sapatos pretos, de salto baixo e uma bolsa de couro cinzento completavam a
modesta toilette da bela extremista que usou v�rios nomes como agente de
Moscou em diversas cidades da Europa.
No Di�rio da Noite, o tratamento era semelhante:
� sa�da do gabinete do delegado Dem�crito de Almeida, Olga Benario foi
interpelada por nosso rep�rter. Como sempre, fugiu a todas as perguntas
sobre sua atividade e sobre o aux�lio que haja prestado a Lu�s Carlos Prestes.
Revelando-se sentimental, disse que �levarei com honra, at� o fim, o nome
do meu marido�. Como lhe pergunt�ssemos onde e de que forma se dera o
seu casamento com Lu�s Carlos Prestes, esquivou-se, dizendo apenas que de
fato era casada com ele, acrescentando chamar-se Maria Bergner e contar 28
anos de idade. Queixou-se de estar sendo v�tima de persegui��o por parte
das autoridades brasileiras, que procediam em rela��o a ela de maneira
inclemente. Satisfazendo � curiosidade da reportagem, Olga declarou:
� A pol�cia vai praticar um ato absurdo contra uma mulher que est� para
ser m�e.
Mas Prestes n�o era, � claro, o �nico preocupado com a
sorte da mulher e da crian�a. Desde o dia da pris�o do
casal, no Rio de Janeiro, uma gigantesca campanha vinha
sendo conduzida na Europa pela m�e dele, dona Leoc�dia, e
por sua irm�, L�gia. Na noite de 7 de mar�o, o apartamento
da fam�lia Prestes em Moscou receberia de novo uma visita
importante, dessa vez portadora de p�ssimas not�cias.
Dmitri Manuilski fora pessoalmente, em nome do Comit�
Executivo do Comintern, informar � fam�lia que Prestes e
Olga tinham ca�do nas m�os de Get�lio Vargas e Filinto
M�ller. Dona Leoc�dia, que ignorava at� que o filho tivesse
se casado, resolveu na mesma hora que n�o ficaria mais um
dia sequer na Uni�o Sovi�tica: partiria no primeiro trem
para a Espanha, acompanhada de uma das quatro filhas �
e L�gia foi a escolhida. Decidiram-se pela Espanha por ser
um pa�s que estava sob um governo de frente popular,
democr�tico, que facilitaria a entrada das duas mulheres
com passaportes brasileiros vencidos havia muito tempo,
pois o Brasil n�o mantinha rela��es diplom�ticas com a
Uni�o Sovi�tica.
M�e e filha percorreram o territ�rio espanhol de ponta a
ponta, organizando com�cios nas principais cidades, pedindo
a liberta��o dos presos pol�ticos do Brasil e, especialmente,
do chefe do levante e dos estrangeiros amea�ados de
deporta��o. Em Madri o embaixador brasileiro, que resistia
� ideia de conceder passaportes novos para as duas,
acabou capitulando quando uma multid�o passou a reunirse
todas as tardes � porta da embaixada, exigindo em coro
�el pasaporte para la madre y la hermana de Prestes�. A
campanha durou mais de um m�s, come�ando em Madri e
percorrendo todas as capitais provinciais. Nas cidades
maiores aparecia no palanque, para encerrar os com�cios, a
lend�ria figura de Dolores Ib�rruri, La Pasionaria.
Da Espanha as duas rumaram para a Fran�a, onde
encontraram uma Paris coberta de cartazes enormes,
exigindo a liberta��o de Prestes e de Olga, �ref�ns do
nazifascismo brasileiro�. Da Fran�a partiram para Londres,
onde a viscondessa de Hastings, a mesma que Filinto
prendera e expulsara do Brasil, hospedou as duas mulheres
e organizou com�cios, no Hyde Park, para milhares de
pessoas. No dia da chegada � Inglaterra, dona Leoc�dia e
L�gia receberam a visita protocolar de lorde Listowell,
membro da C�mara dos Lordes, e um dos primeiros a
subscrever, semanas antes, um manifesto dirigido a Get�lio
Vargas, pedindo a redemocratiza��o do Brasil. Lorde
Listowell apareceu � frente de dona Leoc�dia vestido a
car�ter, de fraque, cartola e bengal�o, e trazendo nos
bra�os uma corbeille de l�rios brancos para as visitantes.
Mas dona Leoc�dia e L�gia sabiam que, para atingir o Brasil,
a campanha teria que mobilizar a opini�o p�blica norteamericana.
Voltaram, ent�o, a Paris, para tentarem obter
um visto de entrada nos Estados Unidos. Quando foram
recebidas pelo embaixador americano, as duas mulheres
perceberam que ele tinha sobre a mesa um volumoso
dossi� sobre a repercuss�o da campanha feita por elas na
Espanha, Inglaterra e Fran�a. O embaixador bateu a m�o
sobre a papelada e perguntou a dona Leoc�dia:
� A senhora quer que eu lhes d� vistos de entrada para
que possam fazer isto nos Estados Unidos?
O visto, evidentemente, foi negado. Tentaram de novo no
consulado americano em Londres, insistiram em Bruxelas,
voltaram a tentar em Genebra, mas sempre sem resultados.
Decidiram manter a campanha na Europa. O �Comit� de
Paris� pela liberta��o de Prestes e Olga era um dos mais
ativos e tinha como seus principais dirigentes os escritores
Andr� Malraux e Romain Rolland, que participavam de todos
os com�cios e eram oradores obrigat�rios nas manifesta��es
de rua. Todos os pa�ses da Europa contavam com pelo
menos um comit� instalado, e tamb�m na Am�rica Latina,
na Austr�lia e na Nova Zel�ndia havia mobiliza��es pela
liberta��o do casal. Cada not�cia que chegava do Brasil era
vertida para o franc�s e retransmitida para todos os
comit�s, pelo mundo afora. Manifestos, cartazes e volantes
eram despachados para v�rios pontos do mundo, pedindo a
institui��es e personalidades que pressionassem o governo
brasileiro para que Olga e Prestes fossem libertados.
Durante o m�s de julho os presos da Deten��o foram
mantidos por Get�lio Vargas sob um macabro suspense. A
expuls�o de Elise Ewert e de Carmen Ghioldi j� havia sido
decretada e ambas apenas aguardavam as provid�ncias
burocr�ticas para que o ato se consumasse. Sobre Olga,
contudo, nenhuma manifesta��o oficial. A tens�o durou at�
o dia 28 de agosto, quando um recorte de jornal introduzido
clandestinamente no pres�dio correu de m�o em m�o at�
chegar ao sal�o das mulheres, trazendo a temida not�cia:
O presidente da Rep�blica assinou decreto na pasta da Justi�a expulsando do
territ�rio nacional, por se ter constitu�do elemento nocivo aos interesses do
pa�s e perigoso � ordem p�blica, a alem� Maria Bergner Vilar, que tamb�m
usa os nomes de Frieda Wolf Behrendt, Olga Bergner, Olga Meireles, Eva
Kruger, Maria Prestes e Olga Benario.
Mas os dias foram passando e, para surpresa geral, Olga
permanecia na Casa de Deten��o, juntamente com Elise
Ewert e Carmen Ghioldi. A demora, na verdade, tinha uma
explica��o: temendo a mobiliza��o do Socorro Vermelho nos
portos europeus, Filinto M�ller n�o queria correr o risco de
ver toda a sua trama para vingar-se de Prestes e agradar
aos nazistas frustrar-se num ataque de estivadores
comunistas ao navio que transportasse Olga � Alemanha.
Em contato permanente com a dire��o do porto do Rio de
Janeiro, ele esperaria quanto tempo fosse necess�rio para
que atracasse no Brasil algum navio que se dirigisse �
Alemanha sem escalas. O atraso no embarque permitiu uma
�ltima tentativa para salvar Olga e sua crian�a, j� no s�timo
m�s de gravidez. No dia 15 de setembro, o advogado Lu�s
Werneck de Castro, marido de Maria Werneck, a
companheira de cela de Olga, impetrou junto � Corte
Suprema um novo pedido de habeas corpus para suspender
a expuls�o. A peti��o explicava que Olga encontrava-se em
adiantado estado de gravidez e solicitava que fossem
sustados temporariamente os efeitos do decreto de Vargas.
Werneck de Castro pedia, na verdade, o adiamento da
expuls�o at� que a paciente fosse examinada por uma junta
m�dica de tr�s membros, nomeados pelo juiz-relator do
habeas corpus, para determinar se ela estava ou n�o em
condi��es de empreender viagem at� a Europa. Com isso o
advogado pretendia atingir dois alvos: se a Corte Suprema
concedesse o solicitado, a sonolenta burocracia judici�ria
brasileira acabaria permitindo que ela tivesse o beb� no
Brasil. Deport�-la depois, tendo no colo um beb� rec�mnascido
e cidad�o brasileiro, seria outra quest�o para o
governo enfrentar, imaginava Werneck. Em segundo lugar,
ele acreditava que, mesmo recusado, o pedido poderia
estimular o presidente da Rep�blica, que se reuniria dali a
alguns dias com seu minist�rio, a indultar a pena imposta a
Olga. A Corte Suprema, a exemplo do que fizera
anteriormente, desconheceu o pedido. E na reuni�o
ministerial, de que participou o capit�o Filinto M�ller, nem
sequer se colocou o assunto em pauta.
A not�cia de que o atraso no embarque de Olga se devia �
espera de Filinto por um meio de transporte a salvo dos
portu�rios europeus acabou chegando aos ouvidos de Heitor
Lima, autor do primeiro pedido de habeas corpus. A �nica
chance de impedir que Olga ca�sse nas m�os de Hitler era
tentar embarc�-la num navio que fosse obrigado a fazer
escalas na Europa � um navio de passageiros, de linha
regular, portanto. O advogado p�s-se a arquitetar um plano,
escrevendo uma dram�tica carta � mulher do presidente da
Rep�blica:
Exma. Sra. Darcy Vargas
Somente impelido por m�veis relevantes ousaria um patr�cio vosso a dirigirvos
a palavra, sem pr�via apresenta��o. Como advogado de Maria Prestes fui
hoje incumbido por um grupo de m�es brasileiras de encaminhar � minha
constituinte a import�ncia com que possa adquirir uma passagem de primeira
classe, e ainda cercar-se, durante a travessia e no porto de desembarque, dos
cuidados exigidos pelo seu delicad�ssimo estado de sa�de, preservando assim
a vida do filho que vai nascer.
Imediatamente dirigi ao ilustrado ministro da Justi�a uma carta, solicitandolhe
que me facilitasse o desempenho de t�o honrosa incumb�ncia. Todavia,
por muito que confie na intelig�ncia do professor Vicente Rao, n�o devo
esquecer que a mentalidade viril � a menos apta a perceber os problemas
femininos. Desbastado e polido por muitos s�culos de civiliza��o, guarda o
homem ainda, sob a pompa verbal e a hipocrisia das maneiras, os instintos
cavern�rios que desde a noite dos tempos lhe mostraram na companheira a
escrava inerme, a servi�o de seus prazeres e caprichos.
A f�bula de que a mulher � um enigma foi inventada precisamente para
justificar as atrocidades da civiliza��o masculina contra ela. N�o h� nada
mais facilmente acess�vel que a alma da mulher. O homem, por�m, finge n�o
entend�-la a fim de furtar-se a uma soma de enormes deveres para com ela.
Neste epis�dio tinha eu, pois, de dirigir um apelo aos sentimentos maternais
da primeira dama da sociedade brasileira, rogando a sua interven��o junto ao
nobre presidente da Rep�blica, simplesmente para que se permitisse que o
gesto dessas m�es que se cotizaram para mitigar o infort�nio de Maria
Prestes n�o se perdesse.
A mulher brasileira � inexced�vel na dedica��o, na piedade, na toler�ncia.
N�o sabe odiar; o que mais sabe, o que sabe sempre � orientar, socorrer,
acudir e perdoar. Numa palavra: s� sabe amar. Eu amesquinharia a atitude
dessas almas sublimes se me atrevesse a qualific�-la; v�s, por�m, sentir-lheeis
a grandeza suprema. Em nome das m�es brasileiras que me procuraram,
insisto pela vossa interfer�ncia. O Brasil j� se habituou a considerar-vos uma
figura tutelar, pronta sempre a cooperar em todas as iniciativas humanit�rias.
Singela, despretensiosa e natural como sois, n�o � o mundanismo que vos
atrai aos lugares onde se cuida do infort�nio alheio, mas o puro sentimento
de solidariedade humana, o vosso esp�rito harmonioso, o vosso fino e
comovido cora��o.
Provai ainda uma vez que a vossa generosidade excede a vossa beleza:
tereis sido, ent�o, imensamente generosa.
Heitor Lima
Heitor Lima esperava que, envolvendo a mulher do
presidente da Rep�blica na trama, Filinto M�ller n�o teria
poderes para impedir que Olga embarcasse num navio de
passageiros. Mas, como n�o houve qualquer resposta �
carta, a sorte estava lan�ada. Agora s� restava aguardar o
dia da deporta��o. No dia 21 de setembro de 1936 o capit�o
Filinto M�ller chamou seus principais assessores ao gabinete
da rua da Rela��o, juntamente com Aloysio Neiva, diretor da
Casa de Deten��o, para transmitir-lhes uma informa��o e
uma ordem. Na madrugada do dia 23 atracaria no cais do
porto do Rio de Janeiro o navio La Coru�a, fretado pela
companhia navegadora alem� Hamburg-S�damerikanische
Dampfschiffahrt-Gesellschaft, com uma �nica finalidade:
recolher Olga Benario Prestes e Elise Ewert. O cargueiro
permaneceria no Rio apenas durante o dia 23 e n�o havia
perspectivas, t�o cedo, de que outro navio pudesse fazer o
trajeto previsto para o La Coru�a, que rumaria diretamente
para Hamburgo, no Norte da Alemanha. Dois policiais
brasileiros que falavam o alem�o correntemente haviam
sido destacados para acompanhar as presas durante a
viagem. A ordem, portanto, era retirar as duas mulheres da
Casa de Deten��o. � for�a, se fosse necess�rio.
Pouco depois do jantar apareceu � porta do sal�o das
mulheres o policial Carlos Brandes, homem insinuante, que
frequentava as rodas da alta sociedade carioca
apresentando-se como �alto funcion�rio do Itamaraty�, e
que a esquerda garantia ser o representante do Intelligence
Service no Brasil. Vinha acompanhado de dois funcion�rios
graduados do gabinete de Filinto M�ller e protegido por tr�s
policiais armados. Apoiou as duas m�os na grade da cela
feminina e disse, delicadamente:
� Boa noite. A pol�cia soube que dona Olga n�o passou
bem o dia de hoje e fomos encarregados de transferi-la para
um hospital com recursos... Se ela n�o tiver melhor
atendimento, poder� ter um parto prematuro...
O homem n�o acabou de completar a frase. Cerca de dez
mulheres puseram-se de p� e come�aram a bater
freneticamente com as canecas na grade de ferro. N�o se
sabe se foi Maria Werneck de Castro ou Beatriz Bandeira
quem berrou em dire��o � Pra�a Vermelha:
� Levantem-se! O canalha do Brandes est� aqui para
levar a Maria Prestes!
Dentro de cada cela, o encarregado pelo Coletivo tratou
de pegar o presente que o sargento J�lio Alves distribu�ra no
dia 27 de maio � a gazua. Em poucos minutos as celas
foram abertas, os presos espalhados �s centenas pelo p�tio
central. Os que n�o conseguiram localizar, na confus�o, a
preciosa chave falsa, n�o tiveram d�vidas: fizeram as
camas em peda�os e, com os trav�es de madeira,
arrebentaram os ferrolhos enferrujados. Os presos sa�am
das tocas como animais furiosos, seminus, cada um deles
levando nas m�os o que poderia ser usado como arma:
garrafas de leite vazias, tamancos de madeira, peda�os de
camas quebradas. Brandes tentou ser en�rgico, mantendo
por�m a vers�o original. Em frente ao sal�o das mulheres,
gritou para baixo:
� Eu n�o vim aqui para discutir com os senhores, vim
cumprir uma miss�o. Os senhores est�o assumindo uma
grav�ssima responsabilidade ao tentar reter esta senhora
aqui! Parece at� que est�o fazendo isto de caso pensado,
para que ela aborte, perca o filho e depois a pol�cia seja
responsabilizada por tudo. Estou dizendo aos senhores que
ela vai para um hospital.
Um grito mais forte se sobrep�s � zoeira que vinha de
baixo:
� Para um hospital em Berlim, seu nazista filho da puta!
Brandes e seus acompanhantes j� estavam cercados
pelos presos que tinham arrombado ou aberto as portas das
celas do primeiro andar, mas ele ainda tentou parlamentar,
dirigindo-se ao m�dico Campos da Paz, pai:
� Doutor Campos da Paz, eu apelo ao senhor para que
acalme seus companheiros e explique a eles que eu n�o
seria capaz de uma a��o menos digna!
Como resposta, mais gritos e insultos:
� Fascista filho da puta! Para tirar Maria Prestes daqui
voc�s ter�o que nos matar a todos, um por um!
O rosto empapado de suor, Brandes insistia:
� Eu lhes dou a minha palavra de honra que esta mulher
vai ser imediatamente internada numa maternidade! Estou
disposto a dar-lhes todas as garantias: j� mandei buscar
uma ambul�ncia, a fim de transport�-la confortavelmente.
N�o posso de forma alguma submeter-me � vontade dos
senhores e deixar de cumprir as ordens que recebi!
O tenente Gay da Cunha � o autor dos desenhos de
avi�es nos babadores � chamou um grupo de colegas,
militares como ele, da Escola de Avia��o e do 3o Regimento
de Infantaria e prop�s:
� A possibilidade de parlamentar com nossos carcereiros
� nula. A viol�ncia � a �nica alternativa que nos resta. O
chefe da guarda do pres�dio est� ali em cima, ao lado do
Brandes. Vamos peg�-lo e aos dois escoltas como ref�ns,
sen�o isto aqui acaba em poucos minutos.
Um grupo de oficiais subiu as escadas de ferro que davam
acesso �s celas do primeiro andar. Levando nas m�os
estiletes de metal feitos pelo sargento J�lio Alves com latas
de goiabada, meteram-se no bolo que se formava em volta
de Brandes e, de surpresa, agarraram pelo pesco�o o chefe
da guarda e os dois soldados, que foram arrastados para o
t�rreo. Os tr�s ref�ns foram trancados dentro de uma cela e
guardados por um grupo de atl�ticos oficiais. O Coletivo se
reuniu num canto, e foi Rodolfo Ghioldi quem anunciou o
nome do preso que iria conduzir as negocia��es a partir
dali:
� Hablar� Val�rio Konder!
Sozinho, o terceiro guarda que viera escoltando Brandes
tratou de salvar a pr�pria pele e saiu correndo pela porta
por onde entrara. Um grupo de presos aproveitou a
confus�o e ocupou a cela das mulheres, armados de
estiletes. L� dentro, Olga estava deitada na cama, protegida
apenas pelas cortinas ensebadas que tapavam o
�perisc�pio�. O m�dico comunista Val�rio Konder, en�rgico,
avisou a Carlos Brandes:
� O senhor pode se retirar daqui. A partir deste momento
n�s s� conversamos com o doutor Aloysio Neiva, diretor do
pres�dio. � menor tentativa de tirar Maria Prestes daqui pela
for�a, os ref�ns pagar�o com a vida.
Ningu�m tinha a ilus�o de que a resist�ncia pudesse ter
algum �xito, mas todos sabiam que a agita��o daria �
pol�cia a impress�o de que eles estavam dispostos a tudo.
Os presos atiravam para a Pra�a Vermelha tudo o que havia
dentro das celas, arrancavam as portas de ferro das
dobradi�as enferrujadas e jogavam-nas do primeiro andar
ao ch�o, num ru�do ensurdecedor, enquanto os outros
batiam as canecas no ch�o, nas paredes, nas grades,
gritando como malucos:
� N�o levam! N�o levam! N�o levam!
Um �nico preso n�o participava daquilo. Encolhido sobre a
cama, acendendo um cigarro no resto do anterior,
Graciliano Ramos parecia que iria mesmo enlouquecer.
Olhando fixo para o ch�o, com a cabe�a presa entre as
m�os, ele repetia, paralisado, com a voz quase inaud�vel no
meio daquele inferno:
� N�o � verdade que queiram fazer isto... Para a
Alemanha de Hitler? Ela � judia... Ela est� gr�vida... O Brasil
n�o pode fazer isto com ela...
No meio da noite a pol�cia deu mostras de que n�o estava
disposta a nenhuma forma de negocia��o. Chefiadas por
Filinto M�ller, tropas da Pol�cia Especial armadas de
metralhadoras, lan�a-granadas de g�s e at� lan�a-chamas
cercaram o conjunto carcer�rio da rua Frei Caneca. Um
grupo de atiradores de elite isolou o pavilh�o conflagrado,
todos aguardando ordens para entrar. A tens�o durou a
noite inteira. Embora armados de tamancos, garrafas vazias
e estiletes inofensivos, comparados com o arsenal que os
cercava, os presos continuavam falando grosso:
� Para levar Maria Prestes daqui voc�s ter�o que matar
trezentos brasileiros, cachorros fascistas!
O nervosismo tomou conta dos dois lados, e ningu�m se
arriscava a tomar qualquer iniciativa. Passava do meio-dia
quando veio o primeiro comunicado de fora. Autorizado pelo
capit�o Filinto M�ller, o diretor do pres�dio, Aloysio Neiva,
mandava fazer uma proposta concreta: Olga Benario sairia
dali diretamente para um hospital, acompanhada de uma
comiss�o de presos eleita pelo Coletivo. A primeira a ser
consultada foi a pr�pria Olga, que concordou de imediato.
Ela dizia que a resist�ncia era uma manifesta��o heroica
dos brasileiros, mas n�o levaria a nada. Seriam todos
massacrados pelas tropas que cercavam o pr�dio. Al�m
disso, Olga temia que Filinto M�ller invertesse a situa��o,
fazendo de Prestes o seu ref�m. Seu pavor era que,
continuando a resist�ncia, eles acabassem por mat�-lo. Para
convencer os mais renitentes, que pretendiam manter a
rebeli�o at� o fim, ela fez um apelo:
� Deixem-me ir para o hospital, quero ter meu filho aqui
no Brasil...
Quando finalmente o Coletivo � por ingenuidade ou por
reconhecer que aquela era uma batalha perdida � aceitou a
proposta da pol�cia, a noite ca�ra de novo. Depois de muita
parlamenta��o, ficou estabelecido que a �comiss�o� que
acompanharia Olga at� o hospital seria composta, na
verdade, por apenas dois presos, um indicado pelos
homens, outro pelas mulheres. Os escolhidos foram Campos
da Paz J�nior, por ser m�dico, e Maria Werneck de Castro,
advogada que demonstrara grande firmeza nas 24 horas de
resist�ncia. Acertou-se tamb�m que iriam os tr�s de
ambul�ncia at� o hospital e maternidade Gafr�e Guinle e
que os acompanhantes s� sairiam do lado de Olga quando
ela retornasse ao pres�dio. Quando Maria Werneck come�ou
a descer as escadas ao lado dos funcion�rios que
carregavam a maca onde Olga fora acomodada, Campos da
Paz gritou-lhe, de baixo:
� Saio por baixo e encontro voc�s duas no port�o
principal!
Juntaram-se os tr�s mas, antes que chegassem ao
segundo port�o, que dava para a rua, Maria percebeu que
se tratava de um golpe. O m�dico foi agarrado por dez
policiais, separado do grupo e metido num cambur�o. Maria
entrou na parte de tr�s de uma ambul�ncia, junto com Olga,
e o cortejo saiu pelas ruas, cercado por dezenas de policiais
armados de metralhadoras e protegido de todos os lados
por jipes repletos de soldados. Pela fresta da ambul�ncia,
Maria Werneck percebeu, surpresa, que estavam mesmo
sendo levadas para o Gafr�e Guinle. Por alguns minutos,
imaginou que Olga pudesse estar de fato a ponto de ter o
beb� prematuramente e que o governo n�o queria correr
riscos. Olga segurava na sua m�o e dizia apenas:
� N�o se preocupe, tudo vai terminar bem...
Quando a ambul�ncia parou, Maria olhou de novo pelas
frestas e tranquilizou Olga:
� Voc� tinha raz�o: estamos em frente ao Gafr�e Guinle,
que eu conhe�o muito bem.
As portas se abriram e Maria foi tomada de terror. O
tr�nsito de carros e pedestres tinha sido interrompido em
todas as ruas adjacentes para que n�o houvesse
testemunhas, e a porta do hospital estava tomada por
dezenas de ve�culos militares e policiais, numa aut�ntica
opera��o de guerra. Quem apareceu � sua frente foi King
Kong, ex-carcereiro da Deten��o, um negro enorme,
trazendo uma metralhadora pendurada no peito por uma
al�a de couro. Apontou para o cambur�o policial que
encostava de r�, rente � porta de sa�da da ambul�ncia, e
ordenou a Maria Werneck:
� Voc� entra ali.
Ela resistiu:
� N�o! Eu vou ficar com a Maria Prestes! Eu tenho a
palavra do doutor Brandes de que permaneceria em
companhia dela e n�o sairei daqui!
O pr�prio Brandes apareceu e Maria Werneck dirigiu-se a
ele:
� Doutor Brandes, o senhor n�o me conhece apenas da
cadeia. O senhor me conhece de fora e me deu a sua
palavra de que eu a acompanharia at� o hospital. Daqui eu
n�o saio!
Brandes foi c�nico:
� �, dona Maria, eu lhe dei minha palavra, mas s�o
ordens superiores.
King Kong sorriu, apontando-lhe o cano da metralhadora:
� Eu n�o disse? Voc� entra ali.
Olga Benario segurou-lhe a m�o com for�a e disse:
� Vai, Maria, vai. N�o adianta resistir aqui.
As duas se beijaram e Maria Werneck foi colocada no
interior do cambur�o, cuja porta se fechou em seguida. L�
dentro ela notou que n�o estava sozinha. Sentiu uma perna
cutucando a sua e perguntou quem estava ali. Um vozeir�o
respondeu:
� Sou eu, Maria, o Campos da Paz J�nior. N�o me
deixaram retornar ao pres�dio, temendo que eu denunciasse
a trama aos companheiros.
Olga nem sequer chegou a descer no hospital. O comboio
militar seguiu at� o cais do porto sob uma chuva fina e
insistente. Quando foi retirada da ambul�ncia, ainda deitada
na maca, a caminho da escada do navio, Olga p�de ver,
rapidamente, entre os pingos de chuva, o nome La Coru�a
gravado no casco. Por um instante, teve esperan�as de
estar sendo embarcada num navio espanhol. Mas ela moveu
a cabe�a um pouco, virou os olhos para cima e viu,
tremulando no mastro principal, uma bandeira com a
su�stica negra no centro. Era a bandeira da Alemanha de
Adolf Hitler.
16
Nos por�es da Gestapo
Dez quilos mais magra, apesar da gravidez de sete
meses, levando consigo apenas os 150 d�lares encontrados
pela pol�cia na casa da rua Hon�rio e uma trouxinha com
roupas do beb�, Olga foi deitada na cama de uma
min�scula cabine do La Coru�a, onde ficou absorta por
alguns minutos, at� que foi despertada pelo barulho de
batidas � porta. Era Jo�o Guilherme Neumann, o
investigador encarregado por Filinto M�ller de escolt�-la
durante a viagem e entreg�-la aos oficiais da Gestapo, em
Hamburgo. Neumann era um homem de 42 anos, neto de
colonos alem�es que cultivavam flores na cidade serrana de
Petr�polis, no estado do Rio de Janeiro. Ele trabalhava na
equipe de capturas da pol�cia pol�tica � fora o autor da
pris�o de Beatriz Bandeira, companheira de cela de Olga �
e tinha sido o escolhido para acompanh�-la por falar
alem�o. Constrangido, o tira disse � prisioneira que nada
tinha contra ela ou suas ideias e que estava ali por estrito
dever profissional:
� Sou um policial que n�o discute as ordens recebidas, a
n�o ser que sejam absurdas.
Neumann foi quem contou a Olga que n�o viajariam
sozinhos para a Alemanha: naquele momento Elise Ewert
estava sendo retirada da Casa de Deten��o para ser
embarcada na cabine vizinha � de Olga, acompanhada de
Luiz Felipe Peixoto, outro policial escalado por Filinto. T�o
logo ela chegasse, o La Coru�a partiria com destino a
Hamburgo. Quando foi retirada da ambul�ncia, Olga p�de
ouvir uma discuss�o �spera entre o comandante do navio,
capit�o Heinrich von Appen, e os policiais brasileiros e
alem�es. O barulho no porto a impedira de entender o
motivo do bate-boca, que agora era esclarecido por
Neumann. Von Appen, ao v�-la com a barriga enorme,
perguntou aos policiais:
� Ela est� gr�vida de quantos meses?
� Sete meses � algu�m respondeu.
� Ent�o n�o embarca � determinou, r�spido, o capit�o. �
Eu recebi ordens de transportar duas presas e dois policiais,
mas ningu�m me falou em gravidez de sete meses. Isto vai
contra todas as leis internacionais de navega��o. No meu
navio mando eu.
Um policial alem�o, � paisana, exibiu uma carteirinha
para o comandante do navio e apresentou argumentos
convincentes:
� A ordem de embarque foi dada pelo presidente Get�lio
Vargas e a prisioneira � considerada de interesse m�ximo
para o comando da Gestapo. Se voc� n�o lev�-la, acho
melhor nem atracar seu navio em Hamburgo: os oficiais
estar�o l�, esperando-a. Se ela n�o chegar, � muito poss�vel
que o lugar reservado a ela seja guardado para voc�.
N�o era s� o capit�o Von Appen quem mandava no La
Coru�a: Olga foi embarcada contra sua vontade e contra as
leis de navega��o. Ela aproveitou a conversa mole de
Neumann e disse-lhe que seria preciso instalar uma
campainha em sua cabine, para a eventualidade de sentirse
mal durante a noite. Neumann acedeu e explicou-lhe as
limita��es que a condi��o de prisioneiras impunha a ela e a
Elise. Durante o dia poderiam circular apenas pelo pequeno
corredor fronteiro �s portas das quatro cabines � as de
Olga e Elise no meio, as de Peixoto e Neumann nas pontas.
Como as cabines ficavam sob a popa do navio, na
extremidade de um corredor, o capit�o s� teve o trabalho
de mandar isolar uma das pontas da passagem, onde foi
colocada uma placa com letras pintadas em alem�o: local
interditado por ordem do comandante � entrada proibida. Nas
pr�ximas semanas, portanto, a vis�o que Olga e Elise teriam
do mundo seria atrav�s de quatro escotilhas dispostas
naqueles dez metros de corredor.
O policial pediu que Olga se recolhesse ao quarto, pois
segundo suas ordens durante a noite ela teria que
permanecer l�, com a porta trancada por fora. Caso
precisasse de alguma coisa, antes da instala��o da
campainha, deveria bater na porta, que ele a atenderia.
Uma hora depois de deitar, Olga ouviu um barulho
estrondoso, que fez tremer toda a cabine. S� a� percebeu
que lhe tinha sido reservada uma cabine ao lado dos
motores do navio. Elise acabara de chegar e o La Coru�a se
preparava para zarpar. A primeira noite foi de ins�nia e
v�mitos. A cada meia hora Olga era obrigada a caminhar
at� a pia do pequeno banheiro para tentar aliviar a n�usea.
Al�m do balan�o do navio e do ronco do motor, a
proximidade com a casa de m�quinas transformava a
cabine numa estufa, que tinha como ventila��o apenas uma
pequena entrada de ar no teto. Ao nascer do dia o navio
estava jogando menos � e s� ent�o conseguiu dormir.
Olga passou seu primeiro dia a bordo trancada na cabine,
atendida por Sabo. Al�m da campainha, que o capit�o
mandou instalar de manh�, Neumann conseguira que o
m�dico de plant�o no navio arranjasse pastilhas contra
n�useas para que Olga pudesse ao menos livrar-se dos
enjoos provocados pela gravidez e agravados pelas
condi��es da viagem. Nos dias seguintes as duas colocaram
as cadeiras de suas cabines no corredor, onde passavam
horas conversando, levantando-se a cada par de horas para
olhar o mar azul atrav�s das escotilhas redondas. A viagem
transformou-se numa pris�o tamb�m para os dois policiais,
obrigados a passar o dia inteiro ali, caminhando do quarto
para o corredor, do corredor para o quarto. Olga procurava
trat�-los com polidez, mas dirigia-se a eles apenas quando
necess�rio e evitava conversas mais prolongadas. Quanto a
Elise, nem isso. Ainda sob o trauma das torturas e sev�cias
aplicadas por policiais brasileiros e alem�es, ela
simplesmente se recusava a falar com qualquer um dos
dois. Quando n�o havia alternativa, ela dirigia a palavra a
eles, mas para protestar contra a qualidade da comida ou
do tratamento dedicado a Olga. Mesmo percebendo que a
mulher de Prestes n�o queria muita conversa, Neumann
insistia em aproximar-se dela, �s vezes para reclamar da
rispidez de Sabo � �ela � uma fera�, dizia o policial � ou
at� para saber detalhes de sua vida pol�tica e pessoal. De
certa feita a conversa acabou caindo na quest�o da
deporta��o e ele perguntou, curioso:
� Mas a senhora provou que era casada com o capit�o
Prestes?
Ele era um policial, estava a servi�o de Filinto M�ller, ia
estar com os homens da Gestapo em Hamburgo... o melhor
era despist�-lo:
� Sim, casei-me com ele em Marselha, na Fran�a, mas
n�o t�nhamos os pap�is que comprovassem.
Ao contr�rio do que havia sido dito pela pol�cia, o La
Coru�a faria uma escala antes de Hamburgo, mas ainda em
territ�rio brasileiro. No quarto dia de viagem o navio chegou
a Salvador, na Bahia, com o porto inteiramente tomado por
tropas � Filinto n�o pretendia correr nenhum risco. Era uma
parada r�pida, o suficiente para que fosse embarcada uma
carga de pia�ava. Olga pediu autoriza��o para que um
marujo descesse � cidade e lhe comprasse, com alguns dos
d�lares que levava, objetos para seu uso durante a viagem,
pois embarcara apenas com a roupa do corpo e um enxoval
m�nimo para o beb�. Von Appen autorizou, e o navio j�
avan�ava em dire��o ao mar alto quando lhe trouxeram
dois pares de chinelos (um para ela, outro para Elise), pasta
e escova de dentes, linha e agulhas de tric� e croch�.
No dia 30 de setembro o navio costeava a ilha de
Fernando de Noronha, no litoral norte do Brasil, e Neumann
contou-lhe que o governo iria transferir para l� os presos da
revolta de novembro que fossem condenados pela Justi�a.
Aproveitando o bom tempo e o mar calmo, o comandante
decidiu realizar ali um exerc�cio de salvamento, durante o
qual Olga e Elise permaneceram trancadas em seus
quartos. Tr�s dias depois, sob uma noite negra, cruzaram a
linha do Equador. De madrugada, Olga percebeu sons muito
familiares e imaginou que estivesse sonhando: ela ouvia
m�sicas da sua inf�ncia em Munique, cantadas em alem�o.
Levantando-se, entendeu o que se passava: um grupo de
marinheiros comemorava a passagem para o hemisf�rio
norte dan�ando e cantando ao som de uma gaita de boca,
no conv�s principal. Duas noites depois, Olga e Elise
receberiam autoriza��o para sair da cabine ap�s o jantar e
olhar pelas escotilhas: o La Coru�a iria cruzar com o
dirig�vel alem�o Zeppelin, que voava da Europa para a
Am�rica do Sul. Quando o Zeppelin apareceu no horizonte,
o comandante mandou acender holofotes no conv�s,
apontados para o c�u, para saudar a tripula��o do dirig�vel
e para que ele ficasse ainda mais vis�vel aos tripulantes do
navio. Por alguns minutos o Zeppelin sobrevoou o La Coru�a
e fez evolu��es � sua volta, voando t�o baixo que dava a
impress�o de que trombaria com as chamin�s do navio.
Correndo de uma escotilha para a outra, para pegar �ngulos
melhores, Olga e Sabo puderam ver de perto os passageiros
na amurada do dirig�vel alem�o, homens e mulheres
elegantes, de copos nas m�os, acenando para baixo.
No fim da primeira semana de outubro, quando navegava
ao largo de Funchal, na ilha da Madeira, o capit�o Von
Appen recebeu novas advert�ncias de que o navio n�o
deveria atracar em portos europeus sob nenhum pretexto.
Se isso ocorresse, lembravam os radiotelegrafistas, as duas
mulheres seriam inevitavelmente levadas para terra. O
epis�dio ocorrido no Havre era repetido com evidente
exagero, e os dezessete presos que haviam sido deportados
do Brasil e libertados naquele porto franc�s transformavamse
em �mais de uma centena�. Dizia-se tamb�m que o
capit�o Von Appen deveria preparar-se at� para ataques
piratas em alto-mar, como parte das tentativas para libertar
Olga e Elise. Eram essas, pelo menos, as not�cias que
Neumann trazia para Olga ap�s suas incurs�es pelos
pavimentos superiores do navio.
O La Coru�a ainda fervilhava com essas hist�rias, na noite
de 12 de outubro, quando a tripula��o foi surpreendida pela
presen�a, a pequena dist�ncia, de outro navio, de grande
calado, que fazia soar o apito solicitando socorro. Von Appen
mandou que o imediato parasse as m�quinas para verificar
o que acontecia. O capit�o subiu � ponte de comando,
acompanhado de seus oficiais, e p�de ver que se tratava de
um enorme veleiro de dois mastros e que n�o era um navio
pesqueiro. No conv�s v�rios marinheiros tentavam em v�o
comunicar-se em espanhol com os alem�es. Von Appen
mandou chamar Neumann na cabine-cela das mulheres.
Antes de subir, o policial abriu a porta do quarto de Olga
para dizer-lhe que algo estranho estava acontecendo: um
navio desconhecido estava parado ao lado do La Coru�a e o
capit�o mandara cham�-lo � ponte de comando. Olga n�o
teve d�vidas: os republicanos espanh�is estavam chegando
para libert�-las em alto-mar. Quando Neumann chegou ao
topo do cargueiro, ouviu que do outro barco algu�m gritava:
�Portugu�s! Portugu�s!�, indicando o idioma da tripula��o.
Aos gritos o tira brasileiro acabou conseguindo decifrar o
que pretendiam: o equipamento de navega��o tinha
quebrado e eles queriam apenas saber em que longitude se
encontravam. Ao retornar, Neumann abriu novamente a
portinhola da cabine de Olga:
� Dona Olga, ainda n�o foi desta vez. Era apenas um
barco portugu�s de recreio perdido em alto-mar.
O dia 16 de outubro amanheceu com o navio em pleno
canal da Mancha; ao anoitecer podia-se avistar as costas da
B�lgica. A temperatura ca�ra muito e inesperadamente, o
que levou o capit�o Von Appen a autorizar a entrega de
mais cobertores �s presas e aos policiais que as escoltavam.
No dia seguinte navegavam no mar do Norte, em cujas
�guas passaram todo o dia; � noitinha entravam no rio Elba,
em territ�rio alem�o. �s seis horas da manh� do dia 18 de
outubro algu�m bateu na porta da cabine de Jo�o Guilherme
Neumann:
� Herr Neumann! Herr Neumann!
Era um marujo que o avisava para subir imediatamente
ao camarote do capit�o Heinrich von Appen, acompanhado
das prisioneiras. Neumann acordou Olga e Elise �s pressas,
chamou seu colega Peixoto e viu, por uma das escotilhas,
que o navio estava atracado em Hamburgo. Os quatro
subiram at� os aposentos do comandante do La Coru�a.
Olga estacou, l�vida, com o que viu: havia mais de dez
oficiais e soldados, todos de fardas negras, com a
inconfund�vel ins�gnia bordada na gola do d�lm�. A ss, a
tropa de choque nazista, estava ali para receb�-la.
Enroladas em cobertores e cal�ando os chinelos tropicais de
Salvador, Olga e Sabo esperaram menos de dois minutos
para que a entrega se fizesse, sem qualquer formalidade.
Um dos militares apenas se identificou verbalmente, dando
seu nome e a patente, e disse que estava ali �em nome do
F�hrer para receber as duas criminosas�.
Os quatro passageiros do La Coru�a separavam-se ali
mesmo. Jo�o Guilherme Neumann e Luiz Felipe Peixoto
tomaram um trem para Berlim, onde receberiam, das m�os
do embaixador Moniz de Arag�o, duas passagens de volta
ao Brasil por um navio do Lloyd, e uma polpuda ajuda de
custo de 250 libras esterlinas para cada um, devidamente
autorizada pela Chancelaria, no Rio de Janeiro. Olga e Elise
n�o puderam sequer se despedir: a mulher de Ewert foi
colocada num carro de presos que arrancou em alta
velocidade e Olga em outro, cercada de guardas armados
da ss, desaparecendo no meio da neblina em dire��o a
Berlim.
Foram quase sete horas de viagem sob uma temperatura
que beirava zero grau. Na escurid�o do amplo
compartimento de presos, as �nicas imagens que os olhos
de Olga distinguiam eram vagos perfis de soldados,
iluminados por brasas de cigarros ou por instant�neas
chamas de f�sforos que se acendiam alternadamente. Com
as m�os estiradas ao lado das pernas e algemadas a
argolas soldadas ao banco de metal do cambur�o, Olga
passou a sentir fortes c�ibras a partir da primeira meia hora
de viagem, mas achou melhor n�o falar nada e resistir at� a
chegada. Pouco depois do meio-dia o ve�culo chegou a
Berlim sob chuva forte e com a temperatura ainda mais
baixa. As portas foram abertas e Olga percebeu onde
estava: no pr�dio n�mero 15 da Barnimstrasse, a temida
pris�o de mulheres da Gestapo, uma constru��o de mais de
um s�culo por onde havia passado, duas d�cadas antes, sua
hero�na Rosa Luxemburgo. Avisada pelo pressuroso Moniz
de Arag�o, a pol�cia secreta alem� havia preparado um
verdadeiro comit� de recep��o para a prisioneira: al�m do
aparato enviado ao porto de Hamburgo, uma cabeleireira
esperava-a na enfermaria da pris�o, de tesoura na m�o.
Olga sentou-se numa cadeira, sempre algemada, e ouviu
um oficial dizer:
� Vamos cortar seu cabelo para evitar a propaga��o de
piolhos. Voc� sabe, isto � muito comum em judeus e
comunistas.
Um uniforme listrado, que certamente fora utilizado por
alguma prisioneira gorda, foi-lhe entregue por uma
funcion�ria. Olga sentiu-se rid�cula: mag�rrima, barriguda,
com os cabelos picados rente � cabe�a e metida num
macac�o que mais parecia um saco de batatas. Andando
com dificuldade pelo peso da barriga, com o corpo dolorido
pelo desconforto da viagem, foi conduzida at� os fundos do
pr�dio cinzento. � medida que caminhava para a cela, ouviu
ru�dos que a reanimaram: de v�rios pontos do edif�cio de
quatro andares, vozes e choros de beb�s sa�am pelas
janelas protegidas por grades de ferro. Ela procurou se
consolar � �pelo menos n�o serei a �nica m�e neste
inferno�. A cela era um cub�culo de dois metros por dois,
com o ch�o de cimento �spero, um colch�o fino, colocado
sobre uma laje de concreto, um ralo cobertor de flanela �
�eu devia ter tentado trazer o do navio�, arrependeu-se �,
uma pia e uma latrina no ch�o. Esticando-se nas pontas dos
p�s ela conseguia ver o p�tio interno atrav�s de uma
pequena claraboia cortada na parede e defendida por
grades de ferro. Antes que terminasse o reconhecimento do
lugar, a carcereira abriu a porta de ferro. Era um capit�om�dico
que vinha examin�-la para certificar-se do estado
em que se encontrava a gravidez. Ap�s um exame sum�rio
durante o qual seu rosto revelava certo ar de nojo, o militar
informou:
� Sua sa�de � �tima e o parto deve acontecer dentro de
quatro semanas.
Olga ainda n�o tinha chegado a Hamburgo quando L�gia e
dona Leoc�dia receberam em Paris, das m�os de um marujo
comunista que chegara � Fran�a num cargueiro brasileiro,
uma carta contando o que acontecera � mulher de Prestes.
Na verdade, s� a� � que a fam�lia soube que Olga estava
gr�vida e que havia sido deportada. Horrorizadas com a
not�cia, trataram de mobilizar os comit�s, a Central Geral de
Trabalhadores e o Partido Comunista franc�s para tentar
tirar as duas do navio que ent�o ainda se encontrava em
alto-mar e poderia atracar em algum porto. Apesar da
vigil�ncia nos portos espanh�is e franceses, o La Coru�a
passaria ao largo do litoral europeu. Dona Leoc�dia ainda
conseguiu que um advogado fosse a Hamburgo tentar pelo
menos um contato com Olga ou Elise, mas ele n�o p�de
sequer ver o navio. Todo o cais fora interditado por policiais
da Gestapo e tropas da ss, e naquele dia ningu�m entrou ou
saiu dali sem passar pela barreira de soldados. A m�e e a
irm� de Prestes n�o se deram por vencidas e decidiram ir �
Alemanha, acompanhadas de um grupo de mulheres
inglesas. No dia 11 de novembro chegavam ao quartelgeneral
da pol�cia secreta, na rua Prinz Albrecht, onde foram
informadas de que Olga passava bem e que o beb� ainda
n�o havia nascido. Por mais que pedissem, n�o lhes
permitiram visitar a prisioneira. A �nica concess�o dos
nazistas foi autorizar que deixassem na portaria de
Barnimstrasse um pacote com alimentos e roupas.
L� dentro, Olga recebeu o pacote sem qualquer indica��o
de quem o deixara. Mas como soubera, por uma prisioneira
rec�m-chegada, da movimenta��o da sogra e da cunhada
na Fran�a e na Inglaterra, deduziu logo a origem do
presente. L�gia e dona Leoc�dia voltaram � Fran�a levando
apenas uma vaga promessa dos alem�es de que seriam
avisadas pela Cruz Vermelha quando o beb� nascesse.
Desesperada, dona Leoc�dia batia em todas as portas
poss�veis, e a todos repetia seu lamento:
� Os nazistas encarceraram meu filho, agora querem
matar minha nora e meu netinho que ainda nem nasceu.
Percebendo que em Paris teriam poucas chances de obter
informa��es, as duas decidiram viajar a Genebra, na Su��a,
onde funcionavam as sedes da Cruz Vermelha Internacional
e da Sociedade das Na��es. Nesta �ltima foram recebidas
com frieza e o m�ximo que conseguiram foi a promessa de
que seriam remetidos telegramas ao governo brasileiro.
Telegramas que apenas indagariam sobre a situa��o judicial
de Prestes � nada de protestos. Repetiram o apelo na Cruz
Vermelha e obtiveram o compromisso de que os
representantes da entidade na Alemanha fariam firmes
gest�es para que pelo menos a not�cia do nascimento da
crian�a fosse comunicada �s duas.
Apesar das p�ssimas condi��es em que se encontrava na
pris�o berlinense, Olga n�o perdera a altivez. Citando a
legisla��o internacional e os c�digos alem�es, exigiu o
direito de receber jornais regularmente. Como a lei falava
apenas em �jornais�, o pedido foi atendido: todas as
manh�s Olga passou a receber na cela o V�lkischer
Beobachter, jornal oficial do Partido Nazista, que s� falava
da �conspira��o judaico-bolchevique� e das supostas
virtudes do nacional-socialismo de Adolf Hitler. As not�cias
que a interessavam � sobre a situa��o dos comunistas e
dos pa�ses europeus que resistiam ao fascismo � acabavam
chegando pela boca das dezenas e dezenas de novas
prisioneiras pol�ticas que a cada semana eram despejadas
em Barnimstrasse. Como insistisse em saber de que crime
era acusada, Olga acabou informada pela dire��o do
pres�dio que n�o havia qualquer imputa��o formal contra
ela. A den�ncia pela invas�o armada de Moabit estava
prescrita e a suspeita de cumplicidade com Otto no caso de
espionagem tinha morrido por falta de provas. A
inexist�ncia de acusa��o, entretanto, ao contr�rio de
tranquiliz�-la, dava-lhe a certeza de que n�o sairia dali t�o
cedo. Quem n�o era acusado de nada n�o tinha por que
contratar um advogado nem teria do que se defender. Olga
n�o ignorava que os crimes que a tinham levado � cadeia
jamais prescreveriam sob o nazismo: ser judia e comunista.
Na madrugada de 27 de novembro de 1936, um ano ap�s
a frustrada revolta do Rio de Janeiro, Olga acordou com o
colch�o encharcado. Correndo a m�o pelo corpo, percebeu
que a bolsa amni�tica havia arrebentado. Levantou-se
correndo, tateou os cantos da cela, localizou a caneca de
lata e bateu-a contra a porta de ferro algumas vezes � era
o c�digo combinado com as carcereiras, para quando
suspeitasse da imin�ncia do parto. O sol come�ava a
romper a camada de neblina gelada que envolvia a pris�o
quando a crian�a nasceu. Era uma menina, e o nome, como
sabiam algumas prisioneiras de Barnimstrasse, estava
escolhido havia v�rios meses: Anita Leoc�dia. Anita em
mem�ria da hero�na brasileira Anita Garibaldi, mulher de
Giuseppe Garibaldi, o revolucion�rio forjador da unidade da
It�lia, e Leoc�dia em homenagem � sogra que nunca vira
pessoalmente, mas aprendera a amar e respeitar atrav�s de
Prestes � e que agora cruzava a Europa mobilizando
comit�s por sua liberta��o. A rec�m-nascida foi envolvida
nas roupinhas tecidas pelas companheiras de cela, no
Brasil, e que tinham sido praticamente a �nica bagagem de
Olga na viagem at� a Alemanha. As pe�as do enxoval, na
verdade, eram t�o grandes que acabaram servindo como
mantas para Anita Leoc�dia. Surpreendentemente para uma
gesta��o ocorrida em circunst�ncias t�o adversas, o beb�
nascera gorducho e saud�vel. A chefe das enfermeiras
informou a Olga que, com o nascimento da menina, ela teria
a ra��o de alimentos alterada: �s duas tigelas da rala sopa
de ervilhas que recebia, seriam acrescentadas diariamente,
durante os primeiros seis meses, uma caneca de leite e uma
tigela de mingau de aveia. Mas a boa not�cia veio
acompanhada de uma advert�ncia terr�vel:
� As normas desta pris�o determinam que os beb�s
sejam separados das m�es aos seis meses e mandados a
orfanatos do partido � come�ou a mulher �, mas no seu
caso vamos abrir uma exce��o. N�s sabemos que h�
pessoas na Fran�a e na Inglaterra utilizando seu nome para
fazer campanhas contra o Estado alem�o. Para provar que
este � um regime humanit�rio, vamos permitir que a
crian�a fique em seu poder enquanto estiver sendo
amamentada.
No meio do p�nico de que foi tomada pela not�cia, Olga
viu uma ponta de esperan�a: a �concess�o� feita pelos
nazistas daria mais tempo � cunhada e � sogra para que
intensificassem a campanha pela liberta��o de ambas. Ficar
com Anita Leoc�dia, agora, dependia apenas de seu
organismo: das canecas de leite e das tigelas de sopa de
ervilha ela teria que extrair nutri��o suficiente para produzir
leite. Muito leite, por muito tempo.
S� no come�o de fevereiro, quando Anita entrava no
terceiro m�s de vida, � que dona Leoc�dia e L�gia
souberam, pela Cruz Vermelha, do nascimento. A
organiza��o informava tamb�m que Olga tinha recebido as
duas cartas enviadas por dona Leoc�dia a Genebra, e que a
correspond�ncia entre elas estava autorizada oficialmente,
mas seria submetida � censura pela Gestapo � teria que
ser, portanto, escrita em alem�o. O of�cio da Cruz Vermelha
transmitiu � av� as not�cias sobre o risco que a garotinha
corria: quando secasse o leite da m�e, elas seriam
separadas. Junto � carta vinha um pequeno envelope,
carimbado com a �guia nazista do servi�o de censura,
contendo um bilhete de Olga para a sogra, a quem passara
a tratar de �m�e�:
Berlim, 31/1/37
Querida mam�e:
Acabo de receber suas cartas de 1o e 9 de janeiro. Voc� pode imaginar a
alegria que elas me trouxeram.
Primeiro, quero inform�-la de que voc� � av�. No dia 27 de novembro dei �
luz a pequena Anita Leoc�dia. � uma menina saud�vel, que nasceu pesando
3800 gramas. Ela tem os cabelos negros e grandes olhos azuis. A crian�a se
desenvolve bem e o seu sorriso tira-me da triste situa��o em que estou. Fa�o
todo o poss�vel para que nada lhe falte. Estou amamentando-a e tentarei
faz�-lo enquanto me seja poss�vel.
Atualmente estou em uma �deten��o de prote��o� (Schutzhaff), mais
precisamente, na enfermaria de uma pris�o feminina. No parto houve
complica��es e estive gravemente doente, mas agora j� superei isso.
Voc� me perguntou quantas vezes pode escrever-me. Pelo regulamento da
pris�o, posso receber uma carta a cada dez dias. Fico contente de poder
coloc�-la a par do desenvolvimento da minha filha. Eu lhe pe�o que me
escreva quando poss�vel contando o que sabe sobre a situa��o do Carlos.
Desde 23 de setembro, isto �, desde o dia em que fui expulsa do Brasil, estou
sem not�cias dele. Depois do nascimento da pequena eu lhe dirigi uma carta,
mas at� agora n�o obtive resposta. Eu queria que voc� me enviasse, em uma
das pr�ximas cartas, uma fotografia do Carlos, pois n�o tenho nenhuma aqui.
Querida mam�e, espero com impaci�ncia a sua resposta. Com meus
melhores votos por sua sa�de...
Eu te beijo. Sua filha,
Olga
A campanha organizada a partir da Fran�a passou a
reclamar, desde ent�o, a liberta��o de Prestes, no Brasil, e
a de Olga e Anita, na Alemanha. A dona Leoc�dia e L�gia
juntou-se outra valente mulher, a alem� Minna Ewert, irm�
de Arthur Ewert, que se movimentava por toda a Europa
lutando pela liberdade do irm�o e da cunhada. Minna
conseguira fazer chegar �s m�os do presidente Franklin
Roosevelt, em Washington, um telegrama denunciando as
torturas de que Arthur era v�tima nas pris�es brasileiras e
pedindo a interfer�ncia do governo norte-americano.
A primeira preocupa��o da m�e e da irm� de Prestes
passou a ser com a sa�de de Olga: era necess�rio garantirlhe
alimenta��o substancial a fim de que amamentasse a
menina o tempo suficiente para permitir o fortalecimento da
campanha pela liberta��o de ambas. A cada duas semanas
dona Leoc�dia e L�gia enviavam pelo correio um fornido
pacote de vinte quilos para a pris�o de Barnimstrasse,
contendo alimentos, chocolate e alguma roupa. O imposto
que os alem�es cobravam pela entrada dos pacotes no pa�s
chegava a ser duas ou tr�s vezes superior ao pre�o pago
pelos artigos. Pelas raras cartas que recebiam, notavam que
apenas a metade das remessas chegava �s m�os da
prisioneira, mas ainda assim o trabalho produzia resultados:
Olga se recuperava da desnutri��o e tinha leite abundante.
Simultaneamente �s remessas, o movimento pela liberta��o
das duas prosseguia. L�gia e dona Leoc�dia n�o admitiam a
ideia de separar a m�e da filha e exigiam que Olga tamb�m
fosse solta, lembrando que era inocente e n�o havia
den�ncia ou acusa��o formal contra ela. Al�m disso, era
preciso arranjar alguma forma de transmitir a Prestes a
not�cia de que ele era pai de uma menininha.
No Rio de Janeiro, o jovem advogado Her�clito Fontoura
Sobral Pinto, crist�o militante, resolve por sua pr�pria conta
defender Prestes e Arthur Ewert perante o Tribunal de
Seguran�a Nacional, uma corte de exce��o criada
especialmente para julgar os envolvidos na insurrei��o de
novembro de 1935. Sobral consegue entrar na cela onde o
capit�o estava preso, para comunicar-lhe sua decis�o, e �
furiosamente recha�ado. Prestes rejeita a oferta de defesa,
alegando que Sobral � um homem de mentalidade
burguesa, sem capacidade ou desejo efetivo de defend�-lo
e sem condi��es de entender o pensamento dos
comunistas. O advogado insiste e Prestes pede que ele se
retire da cela, com uma amea�a:
� Qualquer iniciativa que o senhor tome em minha
defesa sem meu consentimento vai lhe custar caro: eu o
denunciarei internacionalmente como impostor!
Sobral Pinto n�o se intimidou com a rea��o do ilustre
preso. Embora anticomunista ferrenho, para defender um
comunista valia-se de um pensamento de santo Agostinho
pin�ado do Evangelho � �odiar o pecado e amar o
pecador�. Sobral explicava aos amigos que sabia que �o
comunismo nega Deus, afronta Deus, mas compreendo que
os comunistas fa�am isso por serem pecadores�.
Persistente, decidiu recorrer a uma das poucas pessoas que
exerciam influ�ncia sobre o preso: a m�e, dona Leoc�dia.
Semanas depois do �spero encontro na cela, Prestes
recebia, por interm�dio do advogado, um bilhete de Paris,
em que a m�e pedia que ele tivesse confian�a em Sobral
Pinto. As palavras maternas mudaram o comportamento do
filho, e a primeira provid�ncia do defensor, como patrono da
causa de Prestes e Ewert, foi afrontar a ditadura
denunciando, de maneira que se tornaria c�lebre, o
tratamento dado ao comunista alem�o. Nos primeiros dias
de 1937 um jornal do Rio havia publicado uma not�cia
policial dando conta de que o cidad�o Mansur Karan, da
cidade de Curitiba, fora condenado � pris�o por ter
espancado um cavalo at� a morte. Sobral valeu-se da
decis�o do juiz que condenara Karan e recorreu a um artigo
da Lei de Prote��o aos Animais para tentar salvar a vida de
Ewert. A lei dizia que �todos os animais existentes no pa�s
s�o tutelados do Estado� � e j� que a lei dos homens era
insuficiente para impedir o flagelo do alem�o, pelo menos
que fosse protegido como um animal para que as torturas
cessassem.
Gra�as � interven��o de Sobral, Prestes p�de receber
cartas da m�e e da irm�. Embora ambas tivessem remetido
abundante correspond�ncia, a pol�cia n�o deixara chegar ao
preso uma �nica linha. A primeira carta que recebe de dona
Leoc�dia vem de Paris, datada de 6 de mar�o de 1937. �
atrav�s dela que Prestes fica sabendo do nascimento de
Anita Leoc�dia.
Meu querido filho:
Desejo de todo o cora��o que continues bem de sa�de e �nimo forte. At�
hoje n�o recebi nada de tua parte, embora muitas tenham sido as cartas
enviadas para a pris�o onde te encontras desde mar�o de 1936. Ignoro se as
recebeste. Hoje resolvi escrever-te de novo, esperando desta vez um melhor
resultado, quero dizer, que te cheguem �s m�os estas linhas, portadoras do
nosso amor e de nossas saudades, mas, principalmente, para te dar uma
grat�ssima not�cia que acabamos de receber. A 27 de novembro nasceu em
Berlim, em um hospital de uma pris�o de mulheres, tua filhinha, a quem
nossa querida Olga deu o nome de Anita Leoc�dia, em honra � hero�na
brasileira Anita Garibaldi e em aten��o � tua m�e. Que criatura admir�vel �
tua esposa e como � digna de ti. Congratulamo-nos efusivamente contigo
pelo auspicioso acontecimento. Depois dos transes por que passamos e da
terr�vel incerteza que pesava sobre a sorte da heroica Olga e do precioso
penhor que trazia em seu seio, podes bem imaginar a indescrit�vel emo��o
que nos dominou e, ao mesmo tempo, a enorme alegria que encheu nossos
cora��es ao termos conhecimento de feliz sucesso. � nossa heroica Olga,
somente � sua calma e paci�ncia com que soube suportar os terr�veis
sofrimentos morais por que passou, devemos t�o feliz acontecimento. Junto
vai a carta que dela recebi, respondendo �s que lhe havia escrito em janeiro
�ltimo, e assim ficar� a par de alguns detalhes sobre o nascimento de tua
filhinha. Al�m dessa carta de 31 de janeiro, nenhuma outra recebi. Por�m,
tenho escrito tr�s vezes por m�s, como determina o regulamento da pris�o
onde se encontra. Por interm�dio de amigos, j� lhe enviei um pequeno aux�lio
pecuni�rio, agasalhos etc. Por esse lado podes ficar tranquilo, que n�o nos
descuidaremos desses dois entes queridos e tudo envidaremos para que nada
lhes falte. Estamos terminando um pequeno enxoval todo feito por n�s (eu e
L�gia) que muito breve enviaremos para nossa muito querida Anita. J� enviei �
Olga as fotografias pedidas. [...] Bem, meu querido filho, vou terminar que
esta j� vai longa demais, por�m antes quero lembrar-te que se puderes
escrever a Olga, que se aflige sem not�cias tuas, podes me enviar a carta que
eu a transmitirei a ela. Tuas irm�s te abra�am e beijam-te com imenso
carinho. Com um apertado e saudos�ssimo abra�o, envio os meus mais
ardentes votos pela tua preciosa sa�de. Tua extremosa m�e,
Leoc�dia Prestes
17
Dona Leoc�dia enfrenta a Gestapo
A not�cia de que era pai, de que Olga estava viva, de que
a m�e e as irm�s estavam bem, encheu de esperan�as um
Prestes �s portas da condena��o por um tribunal de
exce��o. Ele releu, dezenas de vezes, a carta da mulher e a
da m�e no cub�culo em que continuava preso. Quando
Sobral Pinto informou-o de que tinha obtido autoriza��o
para que respondesse � correspond�ncia de Olga, ele fez
uma exig�ncia. Sabendo que as cartas eram censuradas,
primeiro pela pol�cia de Filinto M�ller, no Brasil, depois pela
Gestapo, em Berlim, pediu ao advogado que lhe comprasse
uma gram�tica alem� e um dicion�rio de alem�o. �Pelo
menos os nazistas daqui ter�o que arranjar um tradutor
para censurar minhas cartas�, desafiou. Munido de apenas
dois livros e valendo-se dos rudimentos que aprendera com
Olga, passou a escrever em alem�o � mulher. Semanas
depois receberia a primeira resposta � um bilhetinho que,
passando pelo crivo da pol�cia nazista, fora remetido � Cruz
Vermelha, em Genebra, e depois �s m�os de dona Leoc�dia,
na Fran�a, que o enviara ao escrit�rio de Sobral Pinto, no
Rio de Janeiro, pousando finalmente na cela de Prestes:
Berlim, abril de 1937
Meu Carli:
Antes de tudo, quero falar da nossa menina, que j� tem mais de quatro
meses. Sua apar�ncia f�sica � uma mistura de n�s dois. Tem os cabelos
escuros, como os teus, a tua boca e as tuas m�os. Os olhos s�o grandes e
azuis, mas n�o claros como os meus. Os dela t�m um azul de violetas. Tudo
isso cercado por uma tez muito suave, branca, e por bochechas cor-de-rosa,
muito bonitas. Como eu gostaria que tu a conhecesses. Mas o mais bonito � o
sorriso. Sorri t�o bonito que nos leva a esquecer tudo o que h� de ruim neste
mundo. Imagino como tu brincarias com ela, puxando-lhe, tenho certeza, os
cabelos alegremente arrepiados.
Nossa m�e mandou-me tua fotografia. � frequente eu passar horas, com a
nossa pequena Anita Leoc�dia no colo, a olhar a foto, como se estivesse a teu
lado. J� faz mais de um ano que estamos separados, mas acharei for�as para
esperar o dia feliz em que estaremos de novo juntos.
A tua,
Olga
S� dali a dois meses, em junho, Olga receberia novas
not�cias do marido, em carta de dona Leoc�dia. Novas e
m�s: no dia 8 de maio Prestes fora condenado pelo Tribunal
de Seguran�a Nacional a dezesseis anos e oito meses de
pris�o; Arthur Ewert, a treze anos. Como o juiz Barros
Barreto impusesse tantas exig�ncias para que os advogados
dos presos entrassem no recinto do tribunal, Prestes pediu
que Sobral Pinto se ausentasse e fez ele pr�prio sua defesa
� um libelo dirigido muito mais � popula��o do que ao
corpo de jurados que estava ali com a incumb�ncia pr�via
de conden�-lo. Olga ficou sabendo que mesmo depois do
julgamento o rigor da pris�o permanecia. Objetos de uso
pessoal que Sobral levava para ele na cadeia eram
minuciosamente revistados. �Len�os s�o desfraldados
contra a luz, o c�s das cuecas � desdobrado de mil�metro
em mil�metro para que pudessem os policiais ter a certeza
de que nenhum bilhete, nenhuma serrinha de a�o
estivessem sendo remetidos pela m�e a Lu�s Carlos
Prestes�, denunciaria o incans�vel advogado. �Um sabonete
foi partido ao meio, paus de chocolate miudamente
quebrados, gravatas foram viradas do avesso e o forro de
um terno de casimira quase que foi descosido.� Olga soube
tamb�m que dona Leoc�dia, preocupada com a amea�a de
internamento de Anita num orfanato nazista, decidira
retornar a Berlim para tentar a liberta��o das duas. A �nica
not�cia boa que chegaria a Prestes nesses meses seria uma
nova carta de sua mulher, que tivera que esperar n�o mais
dez, mas trinta dias, depois do bilhetinho de abril, para
voltar a lhe escrever:
12 de maio de 1937
Carlos:
N�o encontro palavras para dizer-te quantas alegrias me produziram suas
linhas de 16 de mar�o. Querido: quero te falar da pequena. Sabes, minha
pr�pria vida est� de certo modo refletida na desse pequeno ser. Diariamente
h� nela novas maravilhas para serem descobertas e a cada dia ela penetra
mais firmemente no meu cora��o. � t�o belo que a menina se alimente em
mim, que eu possa dar-lhe o melhor da minha for�a vital, da for�a que eu
possuo. Geralmente est� deitada em sua caminha, com as pernas no ar, e �s
vezes pega os pezinhos com as m�os. Quando algu�m se aproxima dela,
terias que ver como se ilumina a sua carinha. O mais alegre s�o os seus olhos
azuis, t�o claros e brilhantes. � surpreendente quanta expressividade pode
haver num ser t�o pequenino. Alegria, aborrecimento, fome, cansa�o, tudo se
reflete em sua carinha. Por sua vez, ela sabe muito bem, quando me
aproximo dela, se estou alegre ou se estou triste. Quando dou-lhe o peito,
apenas a tomo nos bra�os e abre a boquinha, como um passarinho faminto. E
quando j� n�o pode mais, solta o peito, me sorri e volta a cabecinha para
tomar o resto. Quando a coisa n�o vai bastante r�pido se impacienta e
come�a a bater-me com a m�ozinha. Ah, quanto eu gostaria que alguma vez
ela pudesse arrancar uma mecha tua, como faz sempre comigo.
Bem, eu poderia contar-te muitas outras coisas. Por exemplo, que fizemos
gin�stica, cantamos, mas tudo isso deixarei para uma pr�xima carta. No p�tio
h� uma �rvore e ali aninhou-se uma fam�lia de passarinhos. Acabam de
nascer os filhotinhos. Se pudesses v�-los... Eles v�o, voltam, regressam com
insetos e outros alimentos. Passo horas olhando-os e penso em n�s. Ah, s� os
seres humanos s�o capazes de destruir uma fam�lia da forma que fizeram
conosco.
Um mar imenso nos separa, e no entanto sinto que estamos muito
pr�ximos.
A tua,
Olga
Por volta de julho de 1937, a m�e de Prestes retornou �
Alemanha, dessa vez acompanhada das advogadas
brit�nicas May Miles e Kathleen Kimber. Diante do rigor da
carceragem de Barnimstrasse, onde Olga nem sequer fora
informada que a sogra estava no pa�s, dirigiram-se � sede
da Gestapo. Os homens do servi�o secreto n�o aceitavam
discutir a hip�tese da liberta��o de Olga. Com rela��o ao
destino a ser dado � menina, insistiam em que essa era
uma quest�o a ser tratada apenas �com os parentes dela�,
condi��o que se recusavam a reconhecer em dona
Leoc�dia, alegando n�o haver qualquer papel que
comprovasse o casamento de Olga com Prestes. Sem
certid�o, o governo n�o reconhecia o casamento e, por
consequ�ncia, o parentesco entre dona Leoc�dia e Olga ou
Anita. Os oficiais da pol�cia secreta nazista afirmavam que
s� havia uma pessoa em condi��es legais de tratar dos
interesses de Olga e de Anita Leoc�dia: era Eug�nie
Gutmann Benario, a m�e de Olga, pois o compassivo
advogado Leo Benario falecera anos antes. E toda vez que
se referiam a Eug�nie, frisavam pausadamente:
� Esta sim � uma boa alem�.
Dona Leoc�dia n�o entendia: como � que uma judia
poderia ser �uma boa alem�� aos olhos da Gestapo? Com
essa d�vida na cabe�a, decidiu partir para Munique. Era
uma viagem longa e penosa para uma mulher de 63 anos
como ela, mas foi assim mesmo. As companheiras ficaram
sem saber se compensava fazer um esfor�o t�o grande,
diante da intransig�ncia da pol�cia, mas ela insistiu:
� Se dona Eug�nie � a �nica pessoa que pode fazer
alguma coisa por minha nora e minha neta, eu vou.
Ap�s uma noite inteira de viagem de trem, as quatro
estavam na elegante casa da Karlplatz, na capital da
Baviera. Quando um empregado introduziu-as � sala de
visitas, dona Leoc�dia surpreendeu-se com o luxo dos
m�veis, tapetes e objetos de arte. A m�e de Olga apareceu,
ouviu por alguns minutos o que a brasileira dizia e n�o
permitiu sequer que terminasse de falar:
� Nesta casa n�o permito absolutamente que se trate
desse assunto! Olga n�o � mais minha filha! Por favor,
retirem-se daqui imediatamente!
Perplexa, dona Leoc�dia ainda insistiu que a vida de Olga
e de Anita estava nas m�os de Eug�nie. Apontou para uma
fotografia de Olga adolescente, emoldurada num quadro, e
tentou outra vez:
� S� a senhora pode salvar a vida de sua filha, dessa
mo�a maravilhosa. Por favor, n�o fa�a isso!
Eug�nie foi clara:
� Esta era minha filha. Nada tenho a ver com a
comunista que voc� diz que est� presa em Berlim!
Ao perceber que a brasileira n�o sairia dali t�o facilmente,
a dona da casa chamou o filho Otto, oito anos mais velho
que Olga, explicou-lhe o que acontecia e pediu que ele
convencesse aquelas pessoas a sa�rem.
Otto Benario foi seco. Disse que era advogado e exigia
que as quatro deixassem sua casa imediatamente:
� Minha m�e j� disse: nesta casa n�o se trata desse
assunto. Portanto, retirem-se.
Dona Leoc�dia n�o viu alternativa sen�o partir, arrasada,
para a Fran�a. Em Paris, ela e L�gia decidiram contratar um
advogado para cuidar do aspecto judicial do caso. Acabaram
por escolher Fran�ois Drujon, um dos mais afamados
juristas franceses. Nem sequer um liberal � ao contr�rio,
suas ideias conservadoras eram bem conhecidas �, Drujon
n�o apenas aceitou a causa como, emocionado com a
campanha de dona Leoc�dia, nada cobrou por seus
servi�os. Sua primeira iniciativa foi viajar a Berlim, sozinho,
para sondar a Gestapo sobre as poss�veis solu��es para o
caso. Drujon p�de fazer o que nunca permitiram a dona
Leoc�dia e L�gia: foi recebido pela oficialidade da pol�cia
secreta e teve autoriza��o para ver Anita na pris�o. N�o viu
a m�e, mas chegou a estar por alguns minutos com a
garotinha em seu ber�o, na hora em que os beb�s das
prisioneiras tomavam sol no p�tio. Drujon recebeu do
comando da Gestapo a promessa de que a menina seria
entregue � av� paterna desde que apresentasse algum
documento oficial, passado no Brasil, em que Prestes
assumisse a paternidade da crian�a. N�o seria necess�ria a
certid�o de casamento, mas apenas o atestado de
paternidade, para que ficasse formalmente assentado o
parentesco entre dona Leoc�dia e Anita. Quanto a Olga, os
alem�es n�o lhe deram qualquer esperan�a. Diziam apenas
que �o caso dela � muito complicado�. O absurdo jur�dico
utilizado at� ent�o permanecia de p� e era suficiente para
mant�-la eternamente encarcerada, sem direito de se
defender. Como n�o tivesse processo formal contra si, Olga
estava sob uma esp�cie de pris�o preventiva permanente. A
not�cia, levada � fam�lia de Prestes em Paris, aliviou um
pouco a ang�stia da av� e da tia de Anita: se conseguissem
de fato arrancar a menina das m�os da Gestapo, teriam
meio caminho andado. Depois era refor�ar a campanha e
tentar alguma forma de expuls�o ou banimento para a m�e.
O pr�ximo passo, portanto, era pedir ao advogado Sobral
Pinto que pegasse a declara��o com Prestes na cadeia;
assim, a liberta��o de Anita estaria resolvida. Pelo menos
era isso o que imaginavam L�gia e dona Leoc�dia. Mas a
coisa n�o era t�o simples como parecia.
Poucas semanas ap�s o nascimento de Anita Leoc�dia,
Olga tinha manifestado uma vez mais seu proverbial
atrevimento, obtendo da Gestapo autoriza��o para enviar
um requerimento � embaixada do Brasil em Berlim, pedindo
o registro da rec�m-nascida como cidad� brasileira. Como
justificativa, invocava a paternidade de Lu�s Carlos Prestes e
a sua pr�pria condi��o de �brasileira�:
Berlim, 9 de dezembro de 1936
� Embaixada do Brasil
Berlim
Na qualidade de cidad� da Rep�blica Brasileira, solicito que seja feito o
registro de Anita Leoc�dia Prestes, nascida em 27/11/36, em Berlim, filha do
capit�o Lu�s Carlos Prestes e de sua esposa Olga Benario Prestes.
Ao mesmo tempo desejo saber se me podem indicar o atual paradeiro de
minha sogra, sra. Leoc�dia Prestes e, se poss�vel, o seu endere�o.
Pe�o que dirijam sua resposta � Geheime Staatspolizei [Gestapo], sob o no
2428/36 � II 1 A 1, para O. Benario Prestes.
Com estima e considera��o,
O. Benario Prestes
No dia em que Olga solicitou autoriza��o para fazer o
requerimento, a Gestapo antecipou-se a ela e pediu
informa��es � embaixada brasileira em Berlim sobre a data
exata da pris�o, no Rio de Janeiro, de Olga e Prestes, e da
separa��o de ambos, como meio de certificar-se da alegada
paternidade de Anita. Embora os dois pedidos tivessem
chegado quase simultaneamente � lega��o brasileira, o
tratamento dado a cada um deles revelaria, outra vez, a
subservi�ncia do embaixador Jos� Joaquim Moniz de Arag�o
aos comandantes da pol�cia secreta nazista. A solicita��o da
Gestapo foi retransmitida ao Brasil horas depois de ter dado
entrada na embaixada, atrav�s de telegrama assinado pelo
pr�prio embaixador:
Segunda-feira � 20h16 � A pol�cia daqui pede informa��es �s autoridades
brasileiras, urgentemente, sobre a data exata da pris�o, a�, de Olga Benario e
de Lu�s Carlos Prestes. Este pedido tem em vista estabelecer a paternidade
da crian�a do sexo feminino, filha de Olga, nascida aqui em 27 de novembro
findo, sendo indispens�vel indicar at� que data Prestes e Olga poderiam ter
tido rela��es. A crian�a est� com sua m�e, presentemente, no hospital da
pris�o de mulheres, em Berlim. Pede, tamb�m, remeter fotografia e poss�veis
indica��es sobre a mulher do presumido secret�rio Ewert, que fugiu no
momento da pris�o deste para, possivelmente, ser aqui identificada. Rogo
responder com urg�ncia.
Moniz de Arag�o
Para agradar � Gestapo, o servil diplomata rogava
urg�ncia. Para Olga, ainda que das informa��es pedidas
dependesse o destino de um beb�, enviou um vago e
desinteressado of�cio � duas semanas depois do
requerimento:
� Geheime Staatspolizei [Gestapo]
Prinz-Albrechtstrasse 8
Berlim
Ref. 2428/36 � II 1 A 1
Para Olga Benario
O Departamento Consular da Embaixada do Brasil em Berlim comunica, em
resposta � carta de 9 do corrente, que o requerimento para registrar sua filha
foi encaminhado ao Minist�rio das Rela��es Exteriores, no Rio de Janeiro, que
decidir� sobre o assunto. Logo que seja dada uma resposta, ser� a mesma
levada ao seu conhecimento.
A sra. Leoc�dia Prestes n�o � aqui conhecida e assim n�o � poss�vel ser
comunicado o seu endere�o.
Berlim, 21 de dezembro de 1936
Ao declarar, em 21 de dezembro, que o requerimento �foi
enviado� ao Rio de Janeiro, a embaixada brasileira mentia.
S� oito dias depois, a 29 de dezembro (tr�s semanas ap�s
receber a solicita��o de Olga), � que Moniz de Arag�o
remeteria ao Brasil, por carta (e n�o por telegrama, como
fizera com o pedido da Gestapo), um of�cio dirigido ao
ministro interino das Rela��es Exteriores, M�rio de Pimentel
Brand�o, tratando do assunto. O embaixador do Brasil na
Alemanha, na realidade, parecia saber a quem servia. O
tratamento dado pelo Itamaraty ao caso n�o diferiu muito
da orienta��o seguida pela representa��o brasileira em
Berlim; tamb�m atrav�s de telegrama, a Chancelaria
responderia uma semana depois � solicita��o feita pela
Gestapo, informando:
1) Prestes e Olga foram presos a 5 de mar�o e viveram
juntos at� aquela data;
2) A pol�cia identificou a mulher que conseguiu fugir no
momento da pris�o de Arthur Ewert como sendo a mesma
Olga Benario.
A resposta ao requerimento de Olga Benario n�o seria
expedida nem em uma semana, nem em um m�s, nem em
um ano. O Minist�rio das Rela��es Exteriores simplesmente
ignorou aquele assunto.
O governo brasileiro de Get�lio Vargas como um todo, na
realidade, n�o parecia satisfeito com as puni��es que
impusera a Prestes e a sua mulher. O comportamento da
maioria das autoridades dava mostras que se pretendia que
as penas do casal se transmitissem por hereditariedade �
filha de oito meses de idade. Quando Sobral Pinto tentou
levar um tabeli�o at� a cela de Prestes, para que este
assinasse o atestado de paternidade exigido pela Gestapo,
foi informado de que era necess�ria uma autoriza��o
especial do pr�prio ministro da Justi�a. E o ministro, rec�mnomeado
para o cargo, era ningu�m menos que Jos� Carlos
de Macedo Soares, o mesmo que ocupava o Minist�rio das
Rela��es Exteriores quando da deporta��o de Olga. Macedo
Soares indicara �para cuidar do assunto� sua chefe de
gabinete, a consulesa Odette de Carvalho e Souza, uma
carola fascinada pela extrema direita que se deliciava em
publicar intermin�veis e tediosos �estudos de problemas
espirituais, pol�ticos e sociais ligados ao bolchevismo� �
entre os quais um alentado tratado sobre �A alian�a entre os
comunistas de 1935 e os cangaceiros do Nordeste�.
Valendo-se do poder que o cargo lhe conferia, dona Odette
tentou, por todos os meios, impedir que o tabeli�o
recebesse autoriza��o para testemunhar a assinatura de
Prestes no atestado de paternidade. Nem mesmo o
empenho do advogado Carlos Lassance, rec�m-nomeado
diretor da pris�o, para que a autoriza��o fosse dada e o
documento assinado logo, conseguiu demov�-la da
obstru��o. O desespero de Olga, de dona Leoc�dia e L�gia,
de Prestes e de Sobral Pinto aumentava a cada dia. De um
momento para o outro a Gestapo poderia decretar que a
amamenta��o havia chegado ao fim e simplesmente
desaparecer com Anita Leoc�dia. Embora as gest�es
tivessem come�ado em julho, em meados de setembro
Sobral Pinto escrevia a dona Leoc�dia sem uma solu��o
para o problema.
Rio, 18 de setembro de 1937
Exma. Sra. Leoc�dia Prestes
N�o � por descaso que n�o tenho escrito a V. Excia. � � por absoluta falta
material de tempo. Para conseguir aumentar meus rendimentos de trabalho,
venho sacrificando diariamente, nestas �ltimas semanas, duas horas do
tempo que reservo, ordinariamente, para o sono. E para agoniar ainda mais a
minha vida j� t�o sobrecarregada, fiquei hoje sem datil�grafa.
Perdemos, o dr. Lassance e eu, todo o dia de ontem no esfor�o, at� agora
v�o, de levar um tabeli�o ao pres�dio onde est� o filho de V. Excia., a fim de
lavrar uma escritura p�blica de reconhecimento, por parte de Lu�s Carlos
Prestes, de sua filha Anita Leoc�dia. S� encontramos m� vontade e medo.
Todos temem sofrer a campanha, que j� est� sendo feita contra mim, de
serem proclamados delegados do Comintern, a soldo de St�lin. Certamente V.
Excia. j� se acha informada de mais esta perf�dia inventada contra o modesto
advogado, que, fiel disc�pulo de Jesus Cristo, tem sabido, at� este instante,
colocar os deveres de sua consci�ncia religiosa acima de suas conveni�ncias
pessoais.
Na impossibilidade de enviar a V. Excia., pelo avi�o de amanh�, a escritura
supramencionada, e que espero fazer pelo avi�o de quinta-feira, mando hoje
os documentos oficiais que atestam nada ter ficado apurado aqui contra Olga
Benario Prestes. Fiz traduzir tais documentos e legaliz�-los no consulado
alem�o.
Transmito, outrossim, a V. Excia., outra not�cia triste: nada consegui no
Supremo Tribunal Militar, que confirmou a senten�a de 1a Inst�ncia. Vou
empreender novo esfor�o, interpondo o recurso de embargos. Seremos, desta
vez, mais felizes?
Alguns partid�rios do filho de V. Excia. n�o se mostram satisfeitos com a
minha atua��o no processo. Querem me dar um ou mais assessores, que
seriam constitu�dos por Lu�s Carlos Prestes. Na pr�xima carta, e quando
dispuser novamente da minha datil�grafa, exporei minuciosamente a V.
Excia. mais este epis�dio, que tanta m�goa me causou. Consolo-me, por�m,
com as declara��es do filho de V. Excia. feitas de p�blico, de que �estando
cercado, na Pol�cia Especial, s� de vermes, apareceu-lhe, afinal, um homem�.
Este homem fui eu. Mais adiante, na sua defesa oral, acrescentou: �O sr.
Sobral Pinto exerce a advocacia como um sacerd�cio�. Que mais poderei eu
ambicionar nesta causa, da parte deste meu cliente ex-officio? Da parte dos
ju�zes e da administra��o quero muito mais ainda, pois, at� agora, n�o me
atenderam no que venho pleiteando: Justi�a.
N�o podendo prosseguir, por falta de tempo, envio a V. Excia. os protestos
do meu mais alto apre�o.
Sobral Pinto
A tortura duraria ainda mais alguns dias. E gra�as �
persist�ncia de Sobral Pinto, no dia 21 de setembro de 1937
o tabeli�o Lu�s Cavalcanti Filho por fim entrou na cela de
Lu�s Carlos Prestes para que fosse lavrada a escritura
mediante a qual o preso reconhecia como sua filha a menor
Anita Leoc�dia. No mesmo dia Sobral Pinto despachava a
certid�o diretamente para a Gestapo, em Berlim. A
consulesa Odette de Carvalho e Souza perdera a batalha
por uma diferen�a de dias: em 30 de setembro seria
tornado p�blico um certo Plano Cohen, segundo o qual
estaria sendo articulada uma nova revolu��o comunista no
Brasil. O plano, cuja autoria o governo atribuiu ao
Comintern, tinha sido, na realidade, inventado pelo capit�o
Olympio Mour�o Filho, oficial integralista e futuro detonador
do golpe militar de 1964, j� como general. A farsa foi
utilizada para um novo e dram�tico endurecimento pol�tico:
na manh� de 1o de outubro, Get�lio Vargas � que desde
1934 era presidente constitucional, eleito pelo Congresso
para um mandato que deveria durar at� 1938 � decretou
novo estado de guerra. E no dia 10 de novembro o Brasil
entraria no Estado Novo, que instituiria formalmente a
ditadura getulista. Se dona Odette tivesse conseguido
impedir por mais alguns dias a lavratura do atestado, o
cuidadoso plano de dona Leoc�dia certamente teria
naufragado. At� porque uma das primeiras v�timas da
prorroga��o do estado de guerra viria a ser o pr�prio diretor
do pres�dio, Carlos Lassance, que logo no dia 1o de outubro
passava da condi��o de carcereiro � de encarcerado da
Casa de Deten��o.
O documento chegara � Gestapo, mas ainda restavam
alguns meses de sofrimento para dona Leoc�dia Prestes.
Um advogado alem�o, social-democrata e amigo do franc�s
Drujon, prontificou-se a servir de intermedi�rio entre a
fam�lia Prestes, em Paris, e a pol�cia secreta nazista, em
Berlim � o que facilitava muito a vida de L�gia e dona
Leoc�dia, sem condi��es materiais de viajar a Berlim toda
semana. As autoridades alem�s protelaram durante tr�s
meses a liberta��o da menina at� que, em meados de
janeiro, o advogado Drujon recebeu de seu colega alem�o
uma informa��o definitiva: a tia e a av� tinham prazo at� o
fim do m�s para buscar Anita Leoc�dia, pois o leite da m�e
chegara ao fim. Caso contr�rio, a garota seria entregue a
um orfanato nazista. As demais proibi��es, entretanto,
continuavam de p�: s� seria libertada a crian�a, a m�e nem
sequer poderia ser visitada. A not�cia provocou um choque
em L�gia e dona Leoc�dia, porque nenhuma das duas podia
conceber a ideia de receber Anita sem Olga. Mas n�o havia
alternativa: ou deveriam arriscar e deixar a crian�a por mais
tempo nas m�os dos nazistas?
No dia 21 de janeiro de 1938, acompanhadas por Drujon,
L�gia e dona Leoc�dia entraram no pres�dio feminino de
Barnimstrasse, em Berlim. Sem qualquer formalidade, um
m�dico pediu-lhes que assinassem um recibo ao p� de um
atestado de sa�de que ele redigira e onde as duas
puderam, pela primeira vez, ver duas fotografias da menina,
grampeadas no papel:
Atestado m�dico de pris�o
A filha Anita, de O. Benario Prestes, foi hoje, outra vez, cuidadosamente
examinada por mim. Trata-se de uma menina de quase catorze meses de
idade, que apresenta um desenvolvimento f�sico excepcionalmente bom. Tem
78 cent�metros de altura e pesa 11,9 kg. Anda desde o d�cimo terceiro m�s.
Tem todos os incisivos, os superiores e os inferiores. As mucosas apresentam
uma colora��o rosada. Os �rg�os internos e as fun��es corporais est�o
completamente normais.
Berlim, 19 de janeiro de 1938
A enfermeira-chefe da pris�o entregou-lhes, ent�o, a
menina. Anita estava vestida com um capotinho branco de
l�, uma das �nicas pe�as de roupa que restavam da
produ��o de Carmen Ghioldi, ainda no pres�dio brasileiro.
L�gia e dona Leoc�dia, auxiliadas pelo advogado parisiense,
pediram encarecidamente para ver Olga, mas os oficiais da
Gestapo foram irredut�veis. O m�ximo que permitiram foi
que dona Leoc�dia escrevesse um r�pido bilhete para a
nora que, evidentemente, foi atirado � cesta de lixo assim
que os quatro cruzaram a porta de sa�da. Quando entravam
no t�xi parado � porta do pres�dio, os tr�s adultos puderam
perceber que Anita tinha se tornado uma prisioneira popular
em Barnimstrasse. Das janelas do pr�dio, dezenas de
funcion�rios acenavam e se despediam da menina:
� Auf Wiedersehen, Anita! Auf Wiedersehen!
A emo��o de resgatar a garotinha e o medo de que
pudessem criar novos problemas para a sa�da deles do pa�s
se confundiram na cabe�a de L�gia e dona Leoc�dia.
Tr�mulas, recusaram o convite de Drujon para que todos
fossem comemorar a liberta��o de Anita: da porta da pris�o
seguiram direto para a esta��o de trens de Berlim.
18
Com Sabo, na fortaleza nazi
Olga brincava de esconde-esconde com Anita sob os
len��is da cama quando a carcereira abriu a porta da cela,
acompanhada de tr�s guardas armados. A policial n�o fez
rodeios:
� Vista a garota com um agasalho grosso e entregue as
roupas dela aos policiais. Viemos busc�-la.
De um salto, Olga atirou-se sobre a filha, prendeu-a com
as m�os contra o pr�prio peito e buscou com os olhos, em
v�o, um lugar onde pudesse proteger-se. Correu para um
canto da cela, comprimindo a crian�a contra a parede.
Assustada, Anita come�ou a chorar alto. Tomada de
desespero, Olga gritava:
� Jamais! Voc�s n�o podem fazer isto! O que voc�s
querem fazer � um crime inomin�vel! Saiam j� daqui! S� se
me matarem levar�o minha filha!
Indiferente, a carcereira dava ordens aos guardas:
� Recolham as roupas da crian�a. Vamos tir�-la daqui
imediatamente. Se precisar, podem usar a for�a.
Ao berreiro da crian�a juntou-se o choro da m�e,
acocorada sobre a filha no canto do cub�culo:
� Um crime! Voc�s est�o cometendo um crime contra um
beb� inocente! N�o! Voc�s n�o podem separ�-la de mim!
Minha filha n�o tem culpa de nada e n�o pode ser punida!
N�o fa�am isso!
A policial ordenou que os guardas tomassem Anita dos
bra�os da m�e:
� Levem a crian�a daqui. Essa idiota est� encenando. H�
um ano ela j� sabia: quando a amamenta��o chegasse ao
fim, a menina seria transferida para um orfanato.
Dois guardas agarraram violentamente os bra�os de Olga
por tr�s, imobilizando-a, enquanto o terceiro recolhia Anita,
que berrava cada vez mais alto. Olga tentava resistir e
livrar-se dos homens chutando-lhes as pernas e amea�ando
morder-lhes as m�os. Um deles aplicou-lhe um soco na
cabe�a, por tr�s, e atirou-a sobre a cama. O grupo saiu
apressado, trancou a porta e enveredou pelo corredor com a
menina nos bra�os de um dos policiais. Os gritos de Olga,
pendurada � porta de madeira, ressoavam pelas galerias do
pres�dio:
� Assassinos! C�es nazistas! Monstros! Minha filha,
minha filhinha! Hitler vai matar minha filhinha de um ano!
Assassinos! Assassinos!
Olga Benario esmurrou a porta, gritou e xingou por muito
tempo. Quando de sua garganta n�o sa�a mais voz alguma,
mas apenas um chiado rouco, desabou no ch�o de cimento
e ali ficou, im�vel, com os olhos arregalados, como em
transe. E s� no fim da madrugada recobrou a consci�ncia da
trag�dia que acabara de viver. Ela despertara com o corpo
dolorido, como se tivesse sido surrada com porretes.
Arrastou-se at� a cama, deitou de costas e permaneceu de
olhos abertos at� que a claridade do dia se infiltrasse pela
janela gradeada da cela.
Ela ainda passaria algumas semanas em Berlim. A comida
que as carcereiras traziam uma vez por dia voltava intacta
no dia seguinte. Por tr�s vezes foi levada, nesse per�odo, �
sede da Gestapo, na rua Prinz Albrecht, para interrogat�rios.
Os policiais n�o lhe perguntavam mais sobre Neuk�lln nem
sobre a a��o que arrancara Otto Braun da cadeia. A fuzilaria
de perguntas mirava a imagin�ria �conex�o judaicosovi�tica�
que pretendia enfraquecer o Reich, a origem dos
fundos que financiaram a frustrada revolu��o no Brasil, as
supostas liga��es entre o Iwria Bank e a �corja de judeus
comunistas que corria o mundo pregando a revolu��o�. Mas
Olga n�o lhes ofereceu uma s�laba de informa��o que
pudesse ajudar a decifrar aquela diab�lica conjura contra
Hitler.
Na cela, Olga ia aos poucos se recuperando. Voltou a
comer e a arranjar atividade para evitar que fosse tomada
pela loucura. Com o passar dos dias convenceu-se de que
n�o poderia se debilitar f�sica ou emocionalmente. �N�o
posso desistir�, repetia para si mesma dezenas de vezes,
caminhando pela cela. �Ainda tenho que ajudar a libertar
meu pa�s, minha filha e meu marido. N�o posso desistir.�
Mantida separada das outras presas, como puni��o pelo
�esc�ndalo hist�rico� do dia em que levaram Anita, Olga
esculpiu em miolo de p�o um min�sculo jogo de xadrez. As
pedras pretas eram identificadas pela cor do centeio e as
brancas foram marcadas com uma pitada de pasta de
dentes no alto. Um estranho que ali chegasse n�o saberia
distinguir entre um pe�o e um rei, uma torre e um cavalo,
mas ela conseguia passar horas e horas tentando aplicar
xeques-mates em si mesma. O �tabuleiro� eram alguns
riscos feitos no ch�o de cimento com a asa de uma caneca,
e as casas pretas tinham sido pintadas com cascas de
laranja.
Durante aproximadamente um m�s ela conviveu sozinha
com essa requintada forma de tortura � a certeza
martirizante e brutal de que Anita estava em uma creche
nazista, se � que ainda estivesse viva. Esse inferno pelo
menos teve fim quando Olga recebeu uma carta da sogra,
escrita de Paris. Anita estava viva e a salvo, com dona
Leoc�dia! O curto bilhete da m�e de Prestes fez Olga
ressuscitar. Ela reanimou-se, voltou a fazer gin�stica, a
sonhar com a liberdade. No dia em que lhe deram
autoriza��o para voltar a escrever cartas, redigiu um
pequeno bilhete a dona Leoc�dia e � filha. Lembrando de
seus dias de agita��o pol�tica em Paris, sugeriu � sogra que
levasse Anita para passear nos lugares onde tinha estado.
[...] Acho bom que fa�am um passeio ao Jardim Bot�nico, que � bonito em
todas as esta��es do ano. A viagem at� l� � algo demorada, mas muito
interessante, de modo que vale a pena gastar 25 pfennigs na passagem,
sobretudo se conseguirem um bom assento. Quando, h� alguns anos, visitei
pela primeira vez esse lindo lugar, gostei muito da disposi��o das numerosas
esp�cies de plantas. As estufas onde est�o alojadas as plantas tropicais e
semitropicais sempre foram uma grande atra��o. Dificilmente, no entanto,
aguenta-se por muito tempo o calor �mido e sufocante l� de dentro. E se
voc�s quiserem conhecer uma maravilha, visitem a planta aqu�tica chamada
vit�ria-r�gia [...]
Como o n�mero de linhas escritas era racionado pela
dire��o do pres�dio, ela economizou palavras para escrever
uma carta mais longa ao marido, no Brasil � a primeira
desde a separa��o da filha.
Berlim, fevereiro de 1938
Carlos:
Posso dizer-lhe que, junto com o 5 de mar�o de 1936, o 21 de janeiro de
1938 foi o dia mais negro da minha vida. Frente a tais acontecimentos, fica-se
diante da alternativa de sucumbir ou tornar-se mais dura. E voc� sabe que,
para mim, s� existe a segunda alternativa. Para isto, felizmente, ajuda-me
bastante o fato de que sou capaz de distinguir entre a insignific�ncia das
quest�es pessoais e os acontecimentos hist�ricos mundiais do nosso tempo.
Mas no meio de tudo isso h� algo bom: todo o meu amor e o meu carinho n�o
poderiam substituir, para a pequena, o que ela precisa da vida. L�gia
escreveu-me contando que Anita brinca com a bolsa dela, com a caixa de p�
de arroz, o telefone e a ma�aneta da porta, que anda pela casa, que tomou
caf� da manh� no vag�o-restaurante de um trem. Tudo isso soa para mim
como um conto de fadas de antigamente...
Pedi a L�gia que fotografasse um sorriso de Anita para voc� � o que se diz
� que o sorriso dela encanta as pessoas. E � esse doce sorriso da nossa
pequena que encerra um sopro de felicidade para seus pais.
A tua,
Olga
Nem mesmo Olga havia sido informada de que seria
transferida do pres�dio feminino de Barnimstrasse e a
not�cia da mudan�a j� havia chegado ao seu novo endere�o:
o campo de concentra��o de Lichtenburg, situado nas
imedia��es da cidade de Prettin, cem quil�metros ao sul de
Berlim, a meio caminho da Tchecoslov�quia. A portadora da
novidade tinha sido Elise Ewert, que passara tr�s meses
presa em Barnimstrasse e ali ouvira que sua companheira
de desventura no Brasil seria, como ela, enviada para
Lichtenburg. A not�cia logo correu as celas do campo de
concentra��o de mulheres. A liberta��o de Otto Braun, a
milit�ncia em Moscou, a frustrada revolu��o no Brasil e a
separa��o da filha tinham feito de Olga Benario Prestes uma
hero�na. N�o havia pres�dio ou movimento de resist�ncia, na
Alemanha, ou movimento antifascista em outros pa�ses da
Europa, que n�o conhecesse a sua saga em detalhes � e
para receber prisioneira t�o famosa as mulheres de
Lichtenburg decidiram organizar uma festa clandestina.
Acumularam �s escondidas, dias a fio, o que havia de
melhor nos pacotes de alimentos que os parentes das
detentas traziam de fora, para comemorar o dia de sua
chegada. �Temos que dar a Olga um pouco de alegria e
satisfa��o quando vier para c��, dizia Charlotte Henschel,
uma das organizadoras da recep��o.
A festa, no entanto, n�o iria acontecer. Nos primeiros dias
de mar�o, Olga foi retirada de Barnimstrasse e colocada
num carro de presos da pol�cia secreta, sem saber para
onde estava sendo levada. Na sua ficha de transporte, al�m
do nome, filia��o e data de nascimento, ia datilografada a
recomenda��o: �Comunista. Prisioneira de alta
periculosidade, detida � disposi��o do comando da
Gestapo�. No alto, escrita � m�o com l�pis vermelho, a
advert�ncia indispens�vel: judin. Al�m de comunista
perigosa, judia. Quatro horas depois de deixar Berlim, ela
era desembarcada sob forte vigil�ncia diante das muralhas
da fortaleza de Lichtenburg, um conjunto monumental
constru�do pelas tropas de Napole�o �s margens do rio Elba.
A apar�ncia do lugar era assustadora: o enorme port�o
principal, em forma de arco, era emoldurado por le�es
rompantes em alto-relevo. Sob as janelas fechadas por
grades, garras de ferro pontiagudo sa�am dos tijolos como
uma advert�ncia permanente aos que se aventurassem a
fugir dali. Em cima dos muros, rolos de arame farpado
eletrificado.
Conduzida por corredores de ch�o de pedra e teto baixo e
abobadado, Olga tinha a impress�o de estar sendo
introduzida numa catacumba. A cada dez passos um novo
port�o de ferro era aberto � sua passagem e ruidosamente
fechado em seguida, at� que chegaram a um t�nel longo e
escuro, com duas d�zias de portas simetricamente
distribu�das por ambos os lados. Pararam diante de uma das
portas de madeira maci�a, sem janelas. Um soldado
ordenou:
� Entre.
Era uma solit�ria de tr�s metros de comprimento por um
e meio de largura, protegida por porta dupla, a externa de
madeira e a interna de ferro. L� dentro, quase nada: uma
pequena janela, a dois metros de altura, dava para um
estreito corredor lateral, de onde vinha uma p�lida
claridade. Uma grade de ferro quadriculado cobria a
abertura em toda a extens�o. A cama era um bloco de
cimento de meio metro de altura. Um palmo abaixo da
janela havia um buraco retangular na parede, como se
tivesse faltado um tijolo � constru��o. Por ali Olga receberia
a ra��o di�ria de �gua e comida. No ch�o, um buraco com
as bordas cimentadas servia de latrina. Sobre a cama, duas
mantas de tecido leve completavam as acomoda��es de
que ela disporia a partir de ent�o.
Sem pronunciar uma s� palavra, os soldados trancaram as
duas portas e se retiraram. Olga passou a primeira meia
hora vistoriando calmamente o c�modo e escolhendo o
lugar onde iria desenhar seu tabuleiro de xadrez. Concluiu
que o ideal seria a cama, para n�o ter que passar o dia com
as costas curvadas no ch�o. Com a fivela da sand�lia
passou a riscar os 64 quadrinhos na laje de cimento sob as
mantas. Sem cascas de laranja para escurecer as casas
pretas, marcou a diferen�a com um xis sobre elas e retirou
cuidadosamente da sacola que levara consigo as
min�sculas pe�as moldadas em miolo de p�o. Os primeiros
dias na solit�ria foram terr�veis: ela n�o sabia se poderia
continuar a corresponder-se com o marido e a sogra e n�o
tinha a menor ideia de que tipo de pris�o era Lichtenburg �
um campo de concentra��o de judias, um pres�dio pol�tico
ou uma penitenci�ria de delinquentes comuns? Para atenuar
o desespero e a saudade da filha e do marido, fazia
gin�stica e jogava xadrez, uma partida ap�s a outra. E para
que o isolamento absoluto n�o a fizesse perder a no��o do
tempo, Olga assinalava todos os dias, ao acordar, uma
pequenina marca na parede, com a fivela da sand�lia,
indicando mais um dia.
Ap�s o sexto dia na solit�ria ela recebeu uma
surpreendente visita. No meio da manh�, � hora em que
normalmente entregavam a ra��o de sopa e o peda�o de
p�o, as portas da cela foram silenciosamente abertas e Olga
viu entrar sorrateiramente, para seu espanto, uma velha
amiga de Neuk�lln, Gertrud Fr�schulz, que ela n�o via desde
1928. A porta foi trancada por fora e Gertrud explicou �
companheira a raz�o de t�o inusitado encontro. A comida
vinda de fora para a �festa� de recep��o que pretendiam
organizar fora utilizada no suborno de uma das carcereiras,
em troca de permitir a entrada clandestina de uma
prisioneira na solit�ria. Por se conhecerem, Gertrud fora
escolhida para passar alguns minutos ali, trazendo-lhe
informa��es sobre a pris�o. Embora fosse imposs�vel ouvir
dos corredores qualquer ru�do produzido dentro da cela, o
medo de ser apanhada obrigava a visitante a sussurrar no
ouvido de Olga. Al�m da visita, ela trazia parte dos
presentes reservados para a festa: torradas, um peda�o de
queijo, um pouco de geleia e duas barras de chocolate. E
uma folha de papel com dezenas de min�sculos bilhetes
escritos por v�rias prisioneiras. Olga queria informa��es
sobre a Alemanha e o que ouviu n�o foi muito animador:
Hitler avan�ava cada vez mais as fronteiras do Reich e,
internamente, a pol�cia ca�ava judeus e comunistas sem
parar. Alarmada, Gertrud temia que a indiferen�a dos
governos da Fran�a e da Inglaterra com o fen�meno nazista
acabaria por transformar aqueles dois pa�ses em presas
f�ceis do apetite de Adolf Hitler. Uma not�cia deixou Olga
em p�nico: o apoio da maioria do povo alem�o ao F�hrer, no
poder desde 1933, era indiscut�vel. Seus com�cios atra�am
multid�es nunca vistas �s pra�as p�blicas. Gertrud falou-lhe
tamb�m da fortaleza de Lichtenburg: ali estavam mais de
quinhentas mulheres, indistintamente judias, comunistas e
social-democratas. Sua amiga Elise Ewert tamb�m estava
ali � passara algumas semanas na solit�ria e agora
trabalhava como empilhadora de carv�o no fog�o do
refeit�rio central.
Olga contou que sua filha Anita havia sido recuperada
pela av� paterna e estava em seguran�a com dona
Leoc�dia, em Paris. Resumiu os interrogat�rios a que fora
submetida em Berlim, falou sobre a situa��o de Prestes e
Ewert no Brasil, reclamou que s� recebia comida quente a
cada tr�s dias e que desde que chegara � fortaleza ainda
n�o pudera ver a luz do sol. No meio do cochicho, Olga
assustou-se ao ouvir tr�s batidas na porta da cela. A amiga
tranquilizou-a:
� � a maldita carcereira avisando que acabou nosso
tempo. Tenho que sair.
� Obrigada pela visita e pelos presentes. Diga �s
companheiras para n�o se preocuparem: agora que minha
filha est� salva, est� tudo bem comigo. Ainda posso
aguentar muito tempo aqui.
A porta foi aberta e, t�o silenciosamente quanto entrou,
Gertrud Fr�schulz sumiu no corredor escuro. Embora morta
de fome, Olga estava mais interessada nos bilhetes vindos
de fora do que nos chocolates e na geleia. Havia quase
vinte caligrafias diferentes enchendo a folha de papel em
toda a extens�o. Nas mensagens n�o havia nada de muito
especial, al�m de sauda��es, palavras de est�mulo e
conforto. O que preocupou Olga, por�m, foram as
assinaturas, que davam uma medida cabal da devasta��o
que a pol�cia nazista promovera entre as for�as de esquerda
do pa�s. Ela conhecia a maioria das mulheres que
subscreviam os bilhetes � e eram todas militantes
destacadas do movimento popular em Berlim ou em outras
cidades alem�s e muitas delas tinham sido suas
companheiras de agita��o e propaganda na d�cada
anterior, em Neuk�lln. Chocada com a dura constata��o,
Olga perdeu o apetite e simplesmente deixou num canto do
cub�culo o embrulho feito �s pressas com papel celofane.
As duas semanas seguintes Olga passou-as sem receber
qualquer not�cia de fora da solit�ria. Diariamente ela
aguardava, ansiosa, a hora da ra��o, torcendo para que
Gertrud voltasse, mas logo perdia a esperan�a de rever a
amiga t�o cedo. Passava os dias jogando xadrez, fazendo
gin�stica ou simplesmente caminhando pela cela. Andar e
fazer gin�stica, al�m de manter o corpo em movimento,
diminu�a o risco de apanhar um reumatismo naquele lugar
gelado, servia para aumentar o cansa�o f�sico e, com isso,
ter sono mais cedo. O sono passou a ser o grande al�vio
para ela at� que, nos primeiros dias de abril, decidiram
libert�-la da solit�ria e permitir que ficasse junto com as
outras prisioneiras, em celas coletivas. Olga saiu do
cub�culo assim como entrou: sem qualquer explica��o sobre
por que tinha sido punida com o isolamento. Seu primeiro
desejo foi rever Sabo. No p�tio da fortaleza, onde as presas
se encontravam todas as manh�s para ouvir um intrag�vel
serm�o pol�tico do diretor da pris�o, foi recebida pelas
companheiras com as festas permitidas pelas
circunst�ncias. Todas queriam v�-la, abra��-la, ouvir
detalhes sobre a revolu��o frustrada do Brasil e sobre sua
filhinha. Quando disse que queria ver a amiga Elise, a
pessoa que lhe trouxeram tinha pouco a ver com a Sabo do
passado: tuberculosa, pesava menos de quarenta quilos e
tinha um olhar opaco, distante, doentio. A mol�stia n�o a
poupara dos trabalhos for�ados, e a delicada mulher de
Arthur Ewert tinha nas m�os finas e fr�geis de outrora uma
crosta de pele grossa, gretada pelo frio.
A tristeza de ver a amiga naquele estado s� se dissipou
na hora do almo�o, quando foi chamada � sala do comando
da pris�o para receber um pequeno envelope contendo
duas cartas da sogra e uma de Lu�s Carlos Prestes. A do
marido era curta e trazia trechos de dois poemas brasileiros,
para que ela matasse as saudades do Brasil. As de dona
Leoc�dia, entretanto, revelavam que ela agora estava ainda
mais longe da filha. Preocupadas com o avan�o do nazismo,
ap�s a anexa��o da �ustria e da regi�o dos Sudetos da
Tchecoslov�quia por Hitler (ocorrida durante o confinamento
de Olga), dona Leoc�dia e L�gia tinham sido aconselhadas a
deixar a Europa e decidiram mudar-se com Anita para o
M�xico. Visadas pela direita de todos os pa�ses por onde
haviam passado, durante a campanha pela liberta��o de
Olga e Anita, a m�e e a irm� de Prestes temiam ser
apanhadas na Europa pela guerra que parecia inevit�vel.
Junto com as cartas ela recebeu autoriza��o para respond�las.
Escreveu uma para a sogra e um pequeno bilhete para
o marido.
Prettin, abril de 1938
Querido Carlos:
[...] Quero confessar-lhe que me custa muito, um grande esfor�o, pensar
menos em nossa pequena filha � este �, por�m, o �nico caminho para
suportar a minha dor. A saudade � t�o grande que chego a ficar com raiva
dos meus pr�prios bra�os que a transportaram e de minhas m�os, que a
afagaram.
Que maravilhosas s�o as duas poesias que voc� me mandou e o que voc�,
com elas, deseja dizer-me. Sou muito feliz por saber que os melhores
sentimentos humanos s�o iguais em todos os povos da terra, e que esses
povos s� os expressam de forma diferente por causa de suas culturas e de
suas caracter�sticas pr�prias.
Traduzi as duas poesias para o alem�o. A poesia �As velhas �rvores�
enquadra-se perfeitamente em muitos dos pensamentos que tenho tido nos
�ltimos meses. Alcan�a-se uma grande maturidade �ntima, que permite dizer:
�Desejamos envelhecer sorrindo, como envelhecem as �rvores fortes�...
A tua,
Olga
Durante o ano e pouco que passou em Lichtenburg ela
seria levada meia d�zia de vezes a Berlim, para novos
interrogat�rios. Cada vez que a Gestapo precisava conferir
informa��es sobre a a��o do Comintern na Am�rica, Olga
era transportada ao casar�o da rua Prinz Albrecht. Como
n�o soubesse ou n�o pretendesse dizer absolutamente nada
a seus algozes, as torturas eram frequentes. Mas nem os
pontap�s, a�oites ou amea�as de fuzilamento produziam o
efeito esperado. Al�m do sil�ncio, os policiais da Gestapo
irritavam-se com o permanente ar de superioridade que
Olga mantinha durante os interrogat�rios. �Vaca judia� era o
tratamento mais brando que lhe dedicavam. Embora o
exterm�nio em massa ainda n�o tivesse come�ado, o
antissemitismo era pol�tica oficial no pa�s e as pris�es e
persegui��es de judeus aumentavam a cada dia. As
proibi��es de casamentos inter-raciais estavam em vigor
havia tr�s anos, e nenhum judeu podia ocupar cargos
p�blicos ou dar aulas em escolas de qualquer grau, entre
outras coisas. Se judeus eram as v�timas preferenciais do
nazismo, muito pior era algu�m ser, na Alemanha de Hitler,
al�m de judeu, comunista. Olga acumulava os dois delitos e
somava a eles o fato de ser mulher, condi��o de que se
orgulhava p�blica e permanentemente.
No segundo semestre de 1938, depois de passar tr�s
meses sem nenhuma not�cia de Prestes ou da filha, Olga
chegou a temer que algo de ruim pudesse ter-lhes ocorrido.
Ela sabia que o Brasil continuava sob estado de guerra e
que naquelas circunst�ncias n�o seria dif�cil a Filinto M�ller
concretizar o frustrado plano de matar Prestes. Seus receios
se dissiparam em meados de setembro, ao receber um
pacote de quatro cartas do marido e uma da sogra, que a
dire��o da fortaleza, por pura crueldade, tinha deixado
jogadas num arquivo. Dona Leoc�dia, al�m de novidades,
mandara um verdadeiro tesouro � o que talvez explicasse a
decis�o dos guardas de reter a carta: uma fotografia de
Anita, sorridente, com um enorme la�arote de fita na
cabe�a. Olga responderia ao marido no mesmo dia.
Prettin, 15/9/38
Meu querido Carlos:
Finalmente recebi tuas queridas linhas de 30 de maio, de 14 e 27 de junho
e de 27 de julho, al�m de uma carta de 31 de agosto da nossa mam�e. Pouco
a pouco come�o a reviver, ap�s a press�o que pesava sobre mim pela falta
de not�cias durante os �ltimos tr�s meses. E que for�a e que calor exalam
tuas cartas! Certamente o fato de existirmos e estarmos unidos � para n�s
uma fonte inexaur�vel de for�a e de esperan�a, todos os dias. E, assim,
algumas poucas linhas acabam significando muito e removem um pouco da
blindagem com que o instinto de conserva��o envolve o cora��o.
Mam�e escreveu contando que voc� falou com o doutor Sobral Pinto. Fico
feliz por isto e por saber que voc� est� com boa sa�de, mas o que me deixou
realmente feliz � que voc� mostrou a ele a foto de Anita.
Muitas vezes, aqui, penso em seu desejo de viver de novo na mata virgem.
Devo dizer-lhe que os anos me ensinaram que n�o h� nada imposs�vel, e
acho que continuarei assim por muito tempo. S�o fatos, e estamos
acostumados a contar com eles e conviver com eles. Voc� escreveu-me
tamb�m sobre o enfant g�t�. Olhe, que bom que eu nunca mudei tanto
quanto voc� pretendia, pois de outro modo tudo teria sido muito mais dif�cil
para mim. As observa��es sobre suas leituras deixaram-me muito feliz, mas
n�o posso entrar mais nesse assunto para evitar que esta carta acabe sendo
retida por exceder o n�mero permitido de linhas. Quanto � minha sa�de, n�o
estou mal. De resto, tenho estudado bastante franc�s e ingl�s com uma
�tima parceira.
No dia 2 de setembro permitiram-me, finalmente, mandar para a nossa
mam�e uma gravata que fiz para voc�. Espero que voc� a receba, pois ela
poder� te contar de todo o amor que n�o quero e n�o posso expressar nestas
cartas. Por fim, confesso-lhe que, como voc�, afixei a sua fotografia e a de
Anita na minha porta � e fico muito tempo contemplando-as. Mas ter s� isso,
e por tanto tempo, � muito pouco.
Meu querido Karli, eu te beijo com todo amor.
A tua,
Olga
Os meses em Lichtenburg foram passados
intermitentemente entre jornadas de trabalhos for�ados e
recolhimentos � solit�ria. A insist�ncia de Olga em organizar
politicamente as prisioneiras levou a carceragem a mud�-la
constantemente de cela, transferindo-a de um pavilh�o para
outro. Mal ela completava algumas semanas no alojamento
das �judias indesej�veis� � ladras, mendigas e prostitutas
�, era levada para o das �judias burguesas�, como eram
tratadas pelos policiais as mulheres de comerciantes e
pequenos empres�rios judeus cujos bens tinham sido
confiscados pelo Reich por infringirem as leis raciais. Mas,
no pavilh�o em que se concentravam as prisioneiras
pol�ticas, indistintamente judias ou n�o judias, Olga nunca
teve oportunidade de passar um dia sequer. De certa feita,
quando tomou coragem e pediu que a transferissem para l�,
recebeu como resposta uma gargalhada da chefe de
carceragem de plant�o:
� Voc� est� aqui para ser punida, e n�o para ser
premiada!
O inverno em Lichtenburg era uma puni��o a mais.
Situada �s margens do rio Elba, poucos quil�metros antes
da cidade de Torgau, numa regi�o de topografia baixa e
plana, a fortaleza teve seus por�es invadidos pelas �guas
geladas do rio e o n�mero de casos de pneumonia e
tuberculose multiplicou-se. A sa�de de Elise piorava, mas os
guardas, sabendo da antiga amizade entre as duas,
insistiam em mant�-las separadas, de modo a que Olga
passasse meses sem ver a amiga. E foi poucas semanas
ap�s o fim desse inverno de 1938 que novas prisioneiras
trouxeram a terr�vel not�cia: Hitler havia ocupado a
Tchecoslov�quia. Cada nova investida das tropas nazistas
deixava um previs�vel rastro de viol�ncia e persegui��o
contra judeus, comunistas, socialistas e social-democratas,
superlotando as pris�es e os campos de concentra��o. A
fortaleza de Lichtenburg, que tinha capacidade para no
m�ximo mil pessoas, estava ocupada por quase 4 mil
prisioneiras. Nessa �poca surgiram as primeiras
informa��es entre as presas, trazidas pelas que vinham de
fora, de que parte da popula��o carcer�ria seria transferida
para 250 quil�metros ao norte. Nas imedia��es da
cidadezinha de F�rstenberg, � beira do lago Schwedt, o
Reich estava terminando a constru��o de um campo de
concentra��o feminino em Ravensbr�ck. As dimens�es do
novo campo davam a medida aterradora dos planos
repressivos de Hitler: l� haveria acomoda��es para 45 mil
mulheres.
19
Escravid�o em Ravensbr�ck
O comboio de quinze �nibus pintados de azul-marinho,
com as janelas protegidas por grades de ferro, saiu de
Lichtenburg depois da distribui��o da ra��o noturna e s�
chegou a Ravensbr�ck na manh� seguinte. Guardada por
carros de combate e caminh�es militares, a caravana
atravessou metade do territ�rio alem�o, rumo ao norte,
rodeou Berlim e seguiu em frente sem nenhuma parada.
Sentadas nos bancos de madeira, carregando pequenas
trouxas de pano em que levavam seus parcos pertences
pessoais, iam junto com Olga Benario outras 859
prisioneiras alem�s e sete austr�acas. Dias depois, os
lugares que haviam deixado em Lichtenburg seriam
ocupados pelas tchecas aprisionadas ap�s a invas�o
nazista. O barulho dos ve�culos despertou a popula��o de
F�rstenberg, pequenina e pacata cidade do s�culo xvi,
seguiu mais alguns quil�metros, contornou o lago Schwedt
por uma estrada de terra e chegou ao novo campo de
concentra��o de mulheres.
Desde 1936, como parte dos projetos de prepara��o para
a guerra, os nazistas haviam decidido mudar o sistema
penitenci�rio do pa�s. O governo fechara os campos de
prisioneiros existentes � mantendo em funcionamento
apenas o de Dachau, perto de Munique, e o de Lichtenburg
�, e iniciou a constru��o dos novos Konzentrationslager, os
campos de concentra��o para judeus, inimigos pol�ticos e
outros �indesej�veis� do regime. Os kz, como eram
chamados, foram constru�dos segundo concep��es mais
�modernas�, onde os presos pudessem ser utilizados de
forma produtiva para a economia do Reich. Assim, surgiram
primeiro os campos de concentra��o de Sachsenhausen, em
agosto de 1936; Buchenwald, em julho de 1937;
Flossenburg, em maio de 1938; e Neuengamme, constru�do
nas imedia��es de Hamburgo em dezembro de 1938. Nessa
�poca, poucas semanas ap�s o paroxismo de viol�ncia
antissemita que ficou conhecido como a Noite dos Cristais, o
n�mero de judeus e comunistas presos na Alemanha subiu
para 60 mil. A constru��o do campo de Ravensbr�ck fora
iniciada alguns meses antes, em fins de 1938, por
quinhentos prisioneiros, homens e mulheres, vindos do
campo de Sachsenhausen. Utilizando uma esp�cie de
projeto padr�o adotado inicialmente na constru��o de
Buchenwald, os presos trabalharam ali at� abril de 1939,
quando dois comboios chegaram para ocupar o campo: o
primeiro veio de Burgenland, na �ustria, trazendo quase mil
mulheres judias, ciganas e membros da seita Testemunhas
de Jeov�. O segundo vinha do campo de mulheres de
Lichtenburg.
Depois de passar um ano num lugar de aspecto t�o
aterrador como a fortaleza de Lichtenburg, Olga
surpreendeu-se, ao descer do �nibus, com a apar�ncia
buc�lica de Ravensbr�ck. A entrada do campo ficava
espremida entre um bosque de choupos e uma ponta do
lago Schwedt que parecia querer invadir a �rea constru�da.
� esquerda, sobre uma eleva��o do terreno, ficavam as
casas e os alojamentos, feitos de alvenaria, destinados ao
comandante do campo, ao chefe de seguran�a, ao chefe de
administra��o, aos oficiais da Gestapo, aos m�dicos e �s
enfermeiras da ss e, enfileirados lado a lado, os seis blocos
onde se encontrava acantonado um batalh�o de seiscentos
soldados da ss, divididos em quatro companhias de combate
e dezesseis pelot�es de choque. Do mesmo lado, pouco
depois dos alojamentos da tropa, havia doze barrac�es para
o arsenal e o almoxarifado dos soldados. Quinhentos metros
al�m, � direita da entrada, na parte plana do terreno, estava
o campo de concentra��o propriamente dito: sessenta
enormes pavilh�es de madeira constru�dos simetricamente
um ao lado do outro e, ao fundo, cinco barrac�es menores,
tamb�m de madeira, onde ficariam os prisioneiros do sexo
masculino que eventualmente passassem por Ravensbr�ck.
Mais � direita do campo, protegidos pelo lago e sob um
pequeno arvoredo, vinte barrac�es de alvenaria onde as
ind�strias Siemens come�avam a assentar as m�quinas de
uma de suas unidades industriais para nelas utilizar o
trabalho das prisioneiras na produ��o de bens destinados
ao esfor�o de guerra nazista. O campo terminava, ao fundo,
em treze blocos de madeira destinados �s crian�as presas
pela pol�cia nazista. No caminho entre o port�o principal e
os pavilh�es de mulheres estava o bunker, a �nica
edifica��o de dois pavimentos, constru�da em alvenaria,
onde ficavam as celas-fortes e as solit�rias.
Do lugar onde estava ao chegar, Olga podia ver, al�m da
curva do lago e acima da copa das �rvores que circundavam
os pr�dios da Siemens, as pontas dos telhados e as
chamin�s das casas da aldeia de Ravensbr�ck, na qual
viviam pouco mais de cinquenta fam�lias. Em volta de toda
a extens�o do campo, das margens do lago �s �rvores que
cercavam os alojamentos da ss, rolos de arame farpado
ligados a fios el�tricos exibiam, a cada cem metros, uma
placa de madeira com uma caveira pintada e a advert�ncia:
�N�o se aproxime! Alta-tens�o!�. Como a maioria dos outros
campos de concentra��o, Ravensbr�ck tamb�m tinha sido
constru�do num lugar ermo, distante dez quil�metros da
cidade mais pr�xima, F�rstenberg, que tinha ent�o pouco
mais de 5 mil habitantes. E, como nos outros casos, o lugar
foi escolhido por causa do f�cil acesso a estradas e ferrovias
que o ligassem aos grandes centros do pa�s. Para escoar a
produ��o gerada pela f�brica da Siemens dentro do campo,
os presos de Sachsenhausen constru�ram um pequeno
ramal ferrovi�rio que atravessava todo o local e se ligava �
linha de trens Oranienburg-Neustrelitz, cujos trilhos corriam
bem atr�s das casas de alvenaria da oficialidade.
As quase novecentas prisioneiras foram levadas para o
p�tio principal do campo, guardadas por soldados armados
de fuzis e colocadas em ordem, como uma tropa. Uma
oficial da ss fazia a chamada nome por nome, e cada mulher
ia recebendo o uniforme adotado em todo o pa�s para os
campos de concentra��o � saia, casaco e turbante listrados
de cinza e azul � e uma bra�adeira com um tri�ngulo
numerado. Pela cor do tri�ngulo a pessoa estava
classificada, e pelo n�mero, identificada. Os tri�ngulos
vermelhos para as que haviam sido presas por medida de
seguran�a � na maior parte dos casos, por raz�es pol�ticas;
tri�ngulos azuis, para as estrangeiras, imigrantes e
ap�tridas; tri�ngulos roxos para as adeptas do culto das
Testemunhas de Jeov�, freiras e religiosas em geral; verdes
para as ladras e criminosas comuns; e pretos para as
�indesej�veis� ou �antissociais�: ciganas, homossexuais e
doentes mentais. As judias recebiam, al�m do tri�ngulo que
as classificava segundo uma dessas categorias, um outro,
amarelo e com um dos v�rtices voltado para baixo, ao
contr�rio dos demais, que tinham a ponta para cima. Assim,
justapostos na manga do casaco, os dois tri�ngulos
formavam a estrela de davi. Sem surpresa, Olga recebeu o
tri�ngulo amarelo, das judias, e o preto, das �antissociais�.
Seria ilus�o supor que ali em Ravensbr�ck, onde a disciplina
e o rigor eram ainda muito maiores que nas pris�es
anteriores, permitiriam que ficasse junto com as
comunistas.
Horas depois ela era instalada no bloco n�mero 11, onde
se encontravam pouco mais de cem austr�acas e cerca de
trinta alem�s. Dentro do pavilh�o, o cheiro nauseante que
pairava no ar mostrava que a primeira provid�ncia era
impor rigorosa disciplina quanto aos h�bitos de higiene: o
lugar fedia a fezes e urina. Designada pela Gestapo como
respons�vel pelo bloco das judias �antissociais�, Olga
entendeu que ou colocava ordem ali imediatamente ou n�o
o faria nunca mais. �s seis da tarde, depois que uma sirene
anunciou o toque de recolher, ela reuniu as prisioneiras para
uma conversa. Das centenas de beliches de madeira tosca
colocados lado a lado, ao longo do corredor, come�aram a
surgir cabe�as e corpos. A apar�ncia das mulheres era
p�ssima: cabelos desgrenhados, seminuas, a maioria
parecia n�o ver �gua havia muito tempo. Olga falou duro:
� Se n�o cuidarmos do nosso pr�prio corpo, os nazistas
far�o de n�s o que quiserem. Estamos todas no mesmo
barco e se quisermos ser tratadas com dignidade, temos
primeiro que nos comportar como seres humanos e n�o
como animais. Fui escolhida para ser a respons�vel por este
bloco e a partir de amanh� cedo as coisas v�o mudar aqui.
Do fundo do corredor uma voz protestou com um
palavr�o:
� V� se esfregar na merda, comunista!
O pavilh�o explodiu em gargalhadas. Mesmo sabendo que
muitas daquelas mulheres eram delinquentes e criminosas,
Olga n�o se intimidou. Avan�ou pelo corredor entre os
beliches at� o lugar de onde tinha vindo o grito e desafiou:
� Enquanto eu estiver aqui ningu�m ser� denunciado �
ss. Nossos problemas ter�o que ser resolvidos entre n�s.
Agora quero saber quem foi que gritou: aquela que disse o
palavr�o tem que aparecer e discutir suas obje��es aqui,
cara a cara, na frente de todas.
Havia um sil�ncio tenso no bloco. Uma senhora ruiva, de
cabelos tosquiados quase a zero, saiu de debaixo dos
cobertores:
� Fui eu quem gritou. Desculpe-me, mas era apenas uma
molecagem, n�o tenho nada contra voc�. Pode dizer o que
teremos que fazer amanh� cedo, que serei a primeira a
saltar da cama.
Olga n�o respondeu ao pedido de desculpas, e voltou para
o seu lugar e retomou o serm�o:
� Amanh� cedo faremos uma faxina geral no pavilh�o.
Acordaremos uma hora antes da chamada para ter tempo
de limpar tudo. Depois da limpeza, todas ter�o que iniciar
um novo h�bito: banho di�rio obrigat�rio, fa�a frio ou calor.
Pela rea��o geral, Olga percebeu que as mulheres
aceitavam sua lideran�a. Conversaram animadamente por
mais alguns minutos at� que tocou a segunda sirene, que
impunha sil�ncio obrigat�rio no campo de concentra��o:
eram oito e meia da noite. Duas semanas depois, o bloco 11
estava transformado. Ao contr�rio do fedor que a sufocara
no dia da chegada, ela podia sentir at� o cheiro das toras do
eucalipto ainda verde utilizadas na constru��o. Como os
protestos contra a imposi��o do banho e da limpeza di�ria
fossem poucos, Olga decidiu avan�ar um pouco mais e
prop�s que o pavilh�o levantasse todos os dias meia hora
mais cedo para que todas pudessem fazer gin�stica. E
instigou um sentimento comum a todas aquelas mulheres,
das adolescentes �s sexagen�rias � a vaidade:
� Nenhuma de n�s tem um grande espelho aqui, mas
podemos nos ver umas �s outras para saber que estamos
feias e fl�cidas. J� que n�o vamos ter ruge ou batom t�o
cedo, temos que nos preparar para a liberdade. Quando
sairmos daqui, teremos que estar esbeltas para nossos
namorados e maridos. E, num campo de concentra��o, a
�nica maneira de conseguir isto � fazendo gin�stica.
Apesar da argumenta��o convincente, muitas rejeitaram
a proposta, alegando que os nazistas j� as obrigavam �
gin�stica de trabalhar o dia inteiro. Para evitar problemas,
ficou acertado que apenas as que quisessem fariam
gin�stica � as que preferissem dormir um pouco mais que
ficassem na cama. As que optaram pela gin�stica, por�m,
eram t�o ruidosas que as outras n�o conseguiam dormir, e
dias depois os exerc�cios matinais acabaram ganhando
todas as mulheres do pavilh�o.
Com o passar das semanas Olga voltou a se preocupar
com a falta de not�cias da fam�lia. Nem dona Leoc�dia nem
Prestes haviam escrito uma s� linha nos �ltimos tempos e
ela voltou a temer pela seguran�a do marido. No final de
julho, dois soldados apareceram no bloco 11 para
acompanh�-la at� a casa do comandante do campo e Olga
sup�s que pudesse ser a chegada de alguma
correspond�ncia do exterior. N�o era: ela estava sendo
convocada para uma nova e demorada rodada de
interrogat�rios em Berlim. Entregaram-lhe sua trouxinha de
roupas e ordenaram que se preparasse para viajar dali a
instantes. A advert�ncia constante de sua ficha, de que se
tratava de �prisioneira de alta periculosidade�, obrigou o
comando de Ravensbr�ck a preparar escolta especial de
seis soldados e dois agentes da Gestapo para acompanh�-la
a Berlim, onde Olga passou seis semanas sem descobrir um
�nico motivo que justificasse sua vinda de t�o longe: os
agentes da pol�cia secreta nazista repetiram as mesmas
perguntas de antes, e dela obtiveram a mesma resposta �
nada. De novo, em tudo aquilo, apenas algumas fotografias
de presos ou de pessoas procuradas que os policiais lhe
exibiram sem que ela oferecesse qualquer informa��o
valiosa. A perman�ncia nas celas de Barnimstrasse, onde
passara um ano em companhia de Anita, aumentou-lhe a
saudade da filha e do marido, mas ela acabou obtendo
permiss�o para escrever um pequeno bilhete para a sogra,
no M�xico.
Berlim, agosto de 1939
Querida mam�e, querida L�gia:
Quando voc�s me escreverem, por favor mandem as cartas para o velho
endere�o � Pol�cia Secreta do Estado, Berlim, rua Prinz Albrecht, colocando
sempre ao p� �Divis�o II A I�.
Estou de novo apenas com meus pensamentos e minha imensa saudade de
todos voc�s. De novo os dias parecem n�o ter fim. Mas n�o se preocupem,
que eu n�o deixo o �nimo baixar. Que not�cias me d�o de Carlos? J� faz seis
meses que ele me escreveu pela �ltima vez, e isto me inquieta muito: por
que ele n�o escreve mais? Ele est� doente ou est� bem de sa�de? Mam�e
querida, voc� n�o pode esconder-me nada, caso esteja acontecendo alguma
coisa com ele.
� minha querida Anita digam que a m�e pensa muito nela e que toda noite,
ao dormir, imagina como seria bom pegar em suas m�ozinhas e beijar seu
delicado rosto.
Abra�o-as com todo o meu amor.
Olga
De volta a Ravensbr�ck ela ainda seria retida por mais
alguns dias em Potsdam, � sa�da de Berlim, para novos
interrogat�rios, e acabou retornando apenas nos primeiros
dias de outubro. O campo de concentra��o estava
transformado. Pouco depois de sua partida para a capital
tinha chegado uma leva de quatrocentas novas prisioneiras
alem�s, vindas de outros campos ou presas prim�rias � e
entre elas estava sua amiga Elise Ewert, a Sabo, cuja sa�de
piorara ainda mais. Nos �ltimos dias o Ex�rcito nazista tinha
invadido a Pol�nia, realizando no territ�rio ocupado a mais
brutal razia contra os judeus j� vista desde a ascens�o de
Hitler ao poder. Era o come�o do que seria a Segunda
Guerra Mundial. As primeiras consequ�ncias da viol�ncia
podiam ser vistas em Ravensbr�ck, para onde tinham sido
levadas mais de mil mulheres feitas prisioneiras na tomada
da Pol�nia. A prolongada aus�ncia de Olga e a chegada de
novas detentas �antissociais� haviam transformado o bloco
11 de novo em completa balb�rdia. Ap�s algumas semanas
e muitas brigas, no entanto, ela conseguiria restabelecer o
banho di�rio e a faxina obrigat�ria; atrair as mulheres para
a gin�stica levaria mais tempo, por uma forte raz�o: a
Siemens terminara a implanta��o de sua f�brica dentro do
campo, e as mulheres, obrigadas a trabalhar como
oper�rias por at� doze horas di�rias, naturalmente n�o
sentiam �nimo para flex�es e saltos matutinos.
O trabalho na unidade da Siemens era obrigat�rio para
todas as prisioneiras, independentemente da classifica��o
que tivessem, da idade ou do estado de sa�de. Mediante
acordo celebrado com o governo, a ind�stria pagaria ao
comando do campo trinta centavos de marco por mulherdia,
sem que isso implicasse qualquer forma de
remunera��o �s prisioneiras. As ind�strias que, para
preservar sua imagem internacional, preferissem n�o
instalar f�bricas dentro dos campos de concentra��o, n�o
tinham por que se preocupar: a ss se encarregava de
transportar os prisioneiros at� a sede da empresa. Foi
mediante contratos como o da Siemens que a f�brica da
Bayrischen Motorenwerke, que produzia os ve�culos bmw,
utilizava 220 presos alugados pelo campo de concentra��o
de Buchenwald; a ind�stria de lentes Zeiss-Ikon alugava
novecentos homens do campo de Flossenburg; a sider�rgica
Krupp, quinhentos presos de Buchenwald; a ind�stria de
ve�culos Daimler-Benz, fabricante dos luxuosos autom�veis
Mercedes-Benz, 110 presos de Sachsenhausen; a
Volkswagen, 650 prisioneiros do campo de concentra��o de
Neuengamme; havia at� uma misteriosa ind�stria Silva
GmbH Poltewerke, que chegou a alugar 2 mil mulheres de
Ravensbr�ck. O campo onde esteve Olga, ali�s, foi o que
forneceu o maior volume de m�o de obra escrava. Ao todo,
37 500 mulheres � judias, comunistas, socialistas, socialdemocratas,
ciganas e testemunhas de Jeov� � sa�ram de
Ravensbr�ck entre 1938 e 1945 para trabalhar de gra�a
para grandes ind�strias alem�s.
Em 1946, convocada a depor no tribunal montado em
N�remberg para apurar crimes de guerra, a dire��o da
Siemens, com fria ironia, justificaria a sua presen�a em
campos de concentra��o como um ato benem�rito. �Afinal,
nunca se fez qualquer restri��o a que os prisioneiros, nas
�pocas mais frias do ano, complementassem sua
insuficiente roupa com materiais existentes na ind�stria,
tais como papel para isolamento e panos de limpeza�, dizia
o relat�rio da empresa apresentado ao Tribunal de
N�remberg. A unidade da Siemens de Ravensbr�ck
destinava-se quase que exclusivamente � produ��o para o
esfor�o de guerra que mobilizava a Alemanha. Uma
ind�stria t�xtil m�dia fabricava e vendia � ss os uniformes
que eram utilizados por todos os presos espalhados em
campos de concentra��o alem�es ou de pa�ses ocupados. A
maioria das prisioneiras de Ravensbr�ck, por�m, era
utilizada como m�o de obra na f�brica de equipamentos
b�licos montada no campo, que produzia desde rel�s para
componentes de armas, disparadores especiais e
dispositivos eletr�nicos para submarinos, telefones de
campanha e espoletas de disparo retardado para bombas,
at� componentes para os mortais foguetes V-2, concebidos
pelo engenheiro Werner von Braun.
Mesmo sabendo que o trabalho escravo que a Siemens
impunha �s presas deixava-as extenuadas, Olga insistia em
manter a gin�stica, ainda que muitas das �antissociais� se
recusassem terminantemente a trocar alguns minutos do
sono da manh� pelas acrobacias que ela organizava todos
os dias. Clandestinamente, pois tal ousadia poderia custarlhe
duras puni��es, Olga reunia-se com pequenos grupos de
prisioneiras para tentar transmitir-lhes algumas no��es
b�sicas sobre as quest�es pol�ticas que tinham levado o
mundo � guerra. E foi em um desses encontros furtivos que
ela recebeu de uma jovem polonesa a triste not�cia: Elise
Ewert, a sua querida Sabo, morrera tr�s dias antes. Com o
inverno a tuberculose voltara com viol�ncia redobrada e seu
corpo n�o resistira � doen�a e aos trabalhos for�ados. As
amigas que tentaram socorr�-la puderam ouvir as �ltimas
palavras de Elise, agonizante e em del�rio. �Arthur, Arthur�,
ela balbuciava, �eles est�o chegando e v�o nos torturar
mais uma vez... Os choques el�tricos v�o come�ar de novo,
Arthur.� As marcas deixadas pela pol�cia de Filinto M�ller
tinham desaparecido do corpo de Sabo, mas a trag�dia de
seus dias no Rio lhe ficara gravada na mem�ria at� o �ltimo
instante de vida.
Nos primeiros dias de janeiro de 1940, a popula��o de
Ravensbr�ck, que era de quase 3 mil mulheres, dobrou
inesperadamente. Da Pol�nia, �ustria, Tchecoslov�quia e de
v�rias cidades da Alemanha chegaram ao campo mais de
2940 mulheres. E foi poucas semanas ap�s a chegada dessa
nova leva que se anunciou que Ravensbr�ck receberia a
visita de uma das mais ilustres personalidades do Reich:
Heinrich Himmler. Os oficiais da ss prepararam-se para
receber com toda a pompa seu chefe maior � acima dele,
apenas Adolf Hitler. Os tr�s dias que antecederam a
chegada de Himmler foram estafantes para as prisioneiras,
obrigadas a tirar a neve das estradas internas do campo,
pintar paredes de alojamentos onde havia manchas, varrer
os p�tios. Um grupo de oficiais passava o dia procurando
um toco de carv�o que fosse, perdido num canto de muro, e
exigia, de rebenque na m�o, que as mulheres varressem de
novo aquele lugar. Para azar das presas, na madrugada que
antecedeu a chegada de Himmler caiu uma tempestade de
neve e quando o dia amanheceu o pr�prio Fritz Suhren,
comandante do campo, exigiu que se organizasse um
mutir�o com todas elas para limpar outra vez os p�tios e
corredores entre os pavilh�es. Finalmente o homem
apareceu.
Cercado de ve�culos militares e precedido de batedores
em motocicletas, Himmler chegou a bordo de um reluzente
Daimler-Benz convers�vel, de capota fechada. Por raz�es de
seguran�a, todas as
6 mil prisioneiras foram mantidas em seus alojamentos,
com as portas trancadas a chave e ordens de n�o fazerem
barulho durante a visita. Himmler foi recebido � entrada do
campo pela alta oficialidade da ss e levado at� o p�tio
central, em frente aos pavilh�es das presas, onde passaria
em revista a tropa formada em sua honra. A um grito de
�Sentido!� os soldados se perfilaram diante do chefe.
Vestido com farda de gala, um sobretudo cinza at� o
tornozelo, segurando as luvas de couro na m�o esquerda,
ele deu os primeiros passos diante do batalh�o em
forma��o impec�vel. O sil�ncio era tal que, de qualquer
ponto do campo, s� se ouvia o barulho do vento assoviando
entre as �rvores e o ru�do do salto da bota do comandante
nazista batendo forte sobre as pedras do ch�o. Quando
faltavam dois pelot�es para terminar a revista, de um
pavilh�o que ningu�m soube identificar surgiu o berro, em
voz fort�ssima, vindo do fundo do peito, em sonoro alem�o:
� Heinrich Himmler, voc� � apenas um pederasta
assassino!
Gargalhadas incontrol�veis arrebentaram dos quinze
pavilh�es onde as prisioneiras estavam trancadas. Tenso,
Himmler continuou a caminhada at� o final da tropa,
enquanto dois pelot�es de choque da ss sa�am de forma e
corriam desorientados entre os blocos, batendo com as
coronhas dos fuzis nas paredes de madeira, aos gritos de
�Sil�ncio, vacas judias!�, �N�s vamos fuzil�-las, bando de
estrume!�, �Sil�ncio! Sil�ncio! Quem der um pio vai ser
fuzilada na hora!�.
O comando da ss em Ravensbr�ck foi tomado de
verdadeira histeria. Ningu�m, muito menos uma judia, �um
ser biologicamente inferior�, poderia insultar impunemente
o Reichsf�hrer ss Heinrich Himmler, comiss�rio do Reich
para a integra��o das regi�es anexadas, comandante de
todos os campos de concentra��o e chefe m�ximo da
temida Schutzstaffeln, a ss. Furioso, Himmler retirou-se de
Ravensbr�ck antes da hora prevista, deixando ordens
expressas para que as mulheres fossem duramente
castigadas: a�oites, puni��es coletivas, suspens�o do
fornecimento de comida, n�o importava � a insol�ncia
tinha que ser punida com rigor. A determina��o come�ou a
ser cumprida no mesmo dia. O pr�dio de alvenaria onde
ficavam as oitenta solit�rias foi aberto � at� ent�o elas s�
haviam sido utilizadas em casos raros e extremos, como
agress�es aos oficiais da ss �, e o comandante do campo
ordenou que fossem escolhidas oitenta mulheres para a
puni��o exemplar, a crit�rio dos soldados do pelot�o de
choque incumbidos de retir�-las das celas. Uma das
escolhidas do bloco 11, o das �antissociais�, foi,
naturalmente, Olga Benario. A ela caberia uma das celas da
ala leste do pavimento t�rreo do bunker, constru�da junto a
um desn�vel do terreno e, por isso, sujeita a umidade
permanente. Para as outras mulheres do acampamento, a
pena era comparativamente mais branda: tr�s dias sem
comida. Na hora das refei��es, cada uma delas receberia
uma caneca de �gua.
Foram trinta dias terr�veis para Olga. Aquele era um
inverno dur�ssimo, com a temperatura descendo
frequentemente a alguns graus abaixo de zero. Para se
proteger na solit�ria ela tinha umas poucas mantas de
algod�o e algumas folhas do V�lkischer Beobachter, o jornal
do Partido Nazista, que enrolava nos p�s. Semissubterr�neo,
o lado leste do pr�dio era t�o �mido que uma das paredes
estava coberta por uma gosma verde, como se nem o limo
pudesse crescer naquele lugar l�gubre. Olga n�o sabia se
era apenas mais uma vingan�a da ss contra si ou se
desconfiavam de que ela pudesse ter sido a inspiradora do
grito contra Himmler � o que era falso. Por uma ou outra
raz�o, por�m, ela passou a ser a�oitada regularmente
durante o per�odo de confinamento. A qualquer momento,
os ss entravam na cela trazendo o Pr�gelbock � um
cavalete de madeira com o tampo c�ncavo e correias de
couro com fivelas nos quatro p�s. Ela era deitada de bru�os
sobre o cavalete, com o ventre sobre a parte abaulada e
tinha os pulsos e os tornozelos amarrados �s correias presas
nos p�s. Imobilizada, era submetida a infind�veis sess�es
de chicotadas nas costas, n�degas, pernas, at� ficar semiinconsciente.
Por vezes, depois das surras, era deixada ali,
amarrada naquela banqueta, o dia inteiro. Quando os
soldados voltavam para retir�-la, aproveitavam para aplicar
novas chibatadas.
Libertada do bunker, debilitada fisicamente e mais magra,
ainda assim Olga foi obrigada a reiniciar o trabalho nas
oficinas da Siemens. � noite, ao retornar ao bloco 11, agora
superlotado, observou que metade das presas que estavam
ali eram desconhecidas, provavelmente vindas com as
tchecas, polonesas e austr�acas que chegaram ao campo
pouco antes do insulto a Himmler. Corria o m�s de maio de
1940 e o avan�o das tropas nazistas nos �ltimos meses
provocava a tem�vel sensa��o de que o controle total da
Europa seria irresist�vel. Desde o come�o do ano, tinham
capitulado e estavam sob controle do Reich nazista, al�m da
Pol�nia, os territ�rios da Dinamarca, Noruega, Luxemburgo,
Holanda e B�lgica. Hitler se preparava para atacar o
pr�ximo e mais valioso de todos os objetivos, a Fran�a. Em
suas conversas com as companheiras do pavilh�o, na
maioria mulheres r�sticas, simples e sem qualquer
forma��o pol�tica, Olga insistia em injetar-lhes �nimo,
repetindo sempre que havia na Europa um pa�s que iria
barrar o avan�o alem�o: a Uni�o Sovi�tica. Suas �aulas�
come�aram a interessar �s prisioneiras �indesej�veis�, nem
tanto por raz�es pol�ticas, mas sobretudo porque a maioria
tinha clara no��o de que estava ali como v�tima daquele
regime que pretendia dominar o mundo. A liberdade delas
dependia da derrota do nazismo � ent�o era preciso
entender o que era o nazismo e de que forma ele poderia
ser sepultado, como prometia aquela incans�vel alem� que
tinha sido presa, torturada, separada da filha e do marido,
tinha perdido a melhor amiga, e continuava ativa e
determinada.
Olga resolveu ilustrar as li��es de pol�tica internacional
que dava �s colegas do bloco. Com um l�pis roubado nos
escrit�rios da Siemens por uma prisioneira holandesa e
utilizando peda�os de cartolina arrancados das tabelas de
produ��o da f�brica, aplicou toda a sua habilidade em
desenhar mapas das regi�es conflagradas. Valendo-se
apenas da mem�ria, tra�ou primeiro um mapa-m�ndi, que
levou v�rios dias at� ser completado. Para conseguir luz
suficiente para o trabalho, Olga precisava acordar mais
cedo e aproveitar o tempo dispon�vel caprichando no tra�o
junto a uma das janelas do bloco, usando como mesa um
peda�o de t�bua apoiado sobre os joelhos. Pronto o
primeiro, ela passou a trabalhar nos outros mapas, em que
detalharia pa�s por pa�s, regi�o por regi�o. Algumas
semanas depois de iniciado o trabalho � todo feito �s
escondidas, naturalmente �, ela exibiu, orgulhosa, �s
companheiras de pris�o, n�o apenas um mapa, mas um
atlas completo, com quinze mapas, capa dura de papel�o e
at� �ndice. Havia apenas um problema: para que pudesse
circular entre as mulheres e ser ocultado facilmente debaixo
de um travesseiro ou sob a roupa, foi preciso fazer o atlas
quase em miniatura, um pouco maior que uma carteira de
cigarros, onde cada cent�metro equivalia a centenas de
quil�metros reais, nos mapas mais detalhados. Com aquela
preciosidade na m�o, Olga dava aulas di�rias �s presas,
explicando o lado pol�tico da guerra. Sobre a Uni�o Sovi�tica
ela desenhou v�rios c�rculos, partindo de Moscou e,
utilizando o conhecimento que tinha da urss, assegurou �s
companheiras que a tomada da capital era um sonho que os
nazistas jamais realizariam.
De certa feita, Olga foi delatada por uma das presas, que
n�o chegou a ser identificada. A dela��o n�o era incomum
nos campos. Em troca de uma ra��o a mais de comida, ou
de um cobertor extra, muitos prisioneiros se prontificavam a
denunciar colegas que tivessem infringido os regulamentos.
Olga foi chamada ao comando da ss para que entregasse o
atlas, que permanecia em seguran�a sob a blusa da
prisioneira Tilde Klose, no pavilh�o das comunistas. O atlas
foi salvo, mas Olga penou mais tr�s semanas na solit�ria e
sofreu v�rias sess�es de a�oites.
Os riscos do confinamento e de repetidas surras n�o a
intimidavam. Ao contr�rio, quanto maior fosse a brutalidade
dos ss, mais ela parecia decidida a continuar agitando o
campo de concentra��o. Semanas ap�s a puni��o por causa
do atlas, ela resolveu montar uma pe�a de teatro dentro do
pavilh�o, �s escondidas. O enredo foi criado pelas pr�prias
presas, orientadas por Olga, e depois de alguns ensaios
decidiram encenar a hist�ria. Quando o �espet�culo� estava
para terminar, o pavilh�o foi invadido por um pelot�o de
soldados da ss. �Atrizes� e espectadoras foram arrastadas
para fora a socos e deixadas toda a noite sem dormir, de
p�, no meio do p�tio central do campo. Na manh� seguinte
tiveram que seguir direto para o trabalho na Siemens.
Quando encontrou algumas mulheres do seu bloco que
tinham conseguido esconder-se e escapar das puni��es,
Olga ainda encontrou �nimo para brincar:
� Da pr�xima vez temos que criar uma pe�a mais
dram�tica. Assim, talvez a ss nos deixe encen�-la em paz.
20
A caminho da morte
As prisioneiras de Ravensbr�ck chegavam a passar meses
sem not�cias do mundo. Por isso, s� no final de 1940 Olga
ficou sabendo que as tropas de Hitler haviam marchado
sobre Paris, e meses depois tomado a Hungria e a Rom�nia.
As p�ssimas not�cias, trazidas por um grupo de prisioneiras
rec�m-chegadas, pareciam desmentir o otimismo que ela
tentava transmitir �s companheiras do campo: em uma
reuni�o clandestina para atualizar o atlas da guerra, Olga foi
obrigada a reconhecer que os nazistas j� dominavam onze
pa�ses, mantendo sob seu poder quase 2 milh�es de
quil�metros quadrados de territ�rio invadido. A propaga��o
da guerra trazia-lhe um problema adicional: a falta de
informa��es sobre o marido e a filha. Nos �ltimos meses ela
recebera apenas uma carta da sogra, com nova fotografia
da filha, uma carta de Prestes e nada mais.
No final da primavera de 1941, Ravensbr�ck deixaria de
ser um campo de concentra��o exclusivamente feminino.
Al�m das quase 8 mil prisioneiras que l� viviam, foram
transferidos do campo de Dachau, no Sul do pa�s, trezentos
homens que imediatamente ocuparam os dois blocos
constru�dos ao fundo dos pavilh�es das mulheres e que
permaneciam desocupados at� ent�o. A eles se juntaria,
semanas depois, uma centena de judeus poloneses vindos
das pris�es de Zamik, em Lublin, e Pawiak, em Vars�via. Foi
nessa �poca que Olga contraiu um v�rus n�o identificado
que quase a derruba. E, como continuasse trabalhando
como carregadora de toras de madeira, na parte externa do
campo, foi preciso montar a chamada �opera��o
term�metro� para que ela fosse transferida de novo para a
f�brica da Siemens, onde, pelo menos, poderia trabalhar
sentada. A ss tinha baixado uma norma determinando que
qualquer mudan�a de local de trabalho por raz�es de sa�de
s� poderia ser feita com autoriza��o por escrito da m�dicachefe
do campo, Herta Oberheuser. Emmy Handke, velha
amiga de Olga dos tempos de Neuk�lln, encontrou a
solu��o: pediu aux�lio � tcheca Ilsa Jolansky, que era
especialista em falsifica��o de assinaturas, para que
�fabricasse� um atestado m�dico da dra. Oberheuser.
Mesmo sabendo que a �opera��o term�metro�, assim
apelidada porque o atestado dizia que Olga tinha febre alta
durante todo o dia, poderia custar-lhes semanas de solit�ria
e surras no Pr�gelbock, as tr�s levaram o plano avante.
Olga circulou v�rias semanas pelo campo levando no bolso
o atestado falso, at� que a virose passou e ela retornou �s
toras de madeira.
Durante os dias que passou na f�brica, Olga ficou
conhecendo a militante comunista alem� Margarete Buber
Neumann, que por pouco teria sido sua companheira de
aventura e infort�nio no Brasil, e que se encontrava em
Ravensbr�ck desde o ano anterior. Casada com o tamb�m
comunista Heinz Neumann, Margarete lembrava-se
vagamente de ter visto Olga no sagu�o do Hotel Lux, em
Moscou, alguns meses ap�s a a��o de Moabit, em 1928. Em
1935, ela e o marido haviam sido convocados pelo
Comintern para, junto com os Ghioldi, os Ewert, os Vall�e, os
Gruber, Victor Barron e a pr�pria Olga, mudar-se para o
Brasil e participar da prepara��o da revolta comunista. O
casal Buber-Neumann, segundo revelou Margarete a Olga,
chegou a passar algumas semanas num campo de
treinamento militar nas imedia��es de Moscou, recebendo
adestramento antes de partir para a Am�rica do Sul. Mas,
�s v�speras da viagem, os dois receberam ordens para
permanecer em Moscou. As diverg�ncias dos Neumann com
alguns dirigentes do Comintern, explicou Margarete,
impediram que eles embarcassem, o que provavelmente
acabou por lhes salvar a vida.
Tanto Olga quanto Margarete perceberam a enormidade
que haviam dito naquele instante: como � que algu�m em
Ravensbr�ck poderia dizer que estava com a vida salva?
Pelo contr�rio, a situa��o das prisioneiras parecia cada dia
mais grave. Um corredor de muros altos junto ao arsenal
das tropas da ss, na entrada do campo, tinha sido
transformado em pared�o de fuzilamento, e um belo dia
cinco mulheres foram executadas a tiros por um pelot�o
militar, por motivos absolutamente f�teis, como roubar uma
garrafa de leite na enfermaria ou responder a
admoesta��es. As cinco eram judias e comunistas. O terror
que come�ava a tomar conta do campo aumentou ainda
mais quando circularam not�cias de que os novos m�dicos
que haviam chegado estavam ali para realizar experi�ncias
gen�ticas com as prisioneiras. Os m�dicos Otto Grawitz, Karl
Gebhardt, Martin Schuhmann e o casal de m�dicos Klaus e
Gerda Weyand-
-Sonntag estavam havia v�rios dias ocupando o sal�o de
uma das casas do comando do campo em intermin�veis
confer�ncias. Al�m disso, dizia-se que os dois pr�dios de
alvenaria que os presos vindos de Dachau estavam
construindo ao lado da solit�ria seriam destinados �
instala��o de uma c�mara de g�s e um forno cremat�rio.
Hitler teria decidido e anunciaria em breve, comentava-se, a
�solu��o final� para o que ele considerava o �problema�
judaico: a elimina��o pura e simples de todos os judeus dos
territ�rios tomados pela Alemanha. O m�s de outubro
chegou com o campo de Ravensbr�ck mergulhado no mais
absoluto p�nico.
Foi nesse outono de pavor que a prisioneira alem�
Charlotte Henschel, que havia estado com Olga em
Lichtenburg, foi levada � enfermaria do campo com suspeita
de tuberculose. Dias depois chegava � enfermaria a presa
Lina Bertam com a mesma doen�a e uma semana depois a
terceira. O n�mero de tuberculosas crescia, assim como a
suspeita de que o bacilo da terr�vel mol�stia estivesse
sendo deliberadamente disseminado pelos m�dicos como
parte das tais experi�ncias de que se falara antes. Correndo
o risco de fuzilamento sum�rio, Olga e Kate Leichner,
militante social-democrata austr�aca presa em Viena
durante a ocupa��o nazista, se esgueiravam todas as noites
entre os blocos de madeira para ir at� a janela da
enfermaria municiar as doentes com peda�os de p�o e
margarina, roubados do refeit�rio da Siemens, e �s vezes
at� com poemas cl�ssicos rabiscados em peda�os de papel.
Em poucas semanas havia cerca de vinte mulheres
tuberculosas. Quando o surto tomou grandes propor��es, as
doentes simplesmente come�aram a desaparecer da
enfermaria, para desespero das que ficavam. Foi a� que a
dire��o do pres�dio anunciou oficialmente que as mulheres
tiradas das enfermarias estavam acometidas de �doen�a
incur�vel� e que os m�dicos, por clem�ncia, tinham
decidido abreviar-lhes o sofrimento �praticando a
eutan�sia�. Para justificar a decis�o, o comandante do
campo mandou afixar numa das paredes a decis�o do
Reich, segundo a qual �alguns m�dicos, previamente
autorizados para tal finalidade, podem conceder a um
doente incur�vel, ap�s uma an�lise cl�nica, a morte por
clem�ncia�. Era a legaliza��o do exterm�nio.
Charlotte Henschel, que sobreviveria milagrosamente a
Ravensbr�ck e ao nazismo, p�de ver de perto o ritual
macabro que envolvia a �morte por clem�ncia� das
tuberculosas retiradas da enfermaria do campo. Um dia
levaram a polonesa Anne-Marie Zadek, que estava na cama
ao lado da sua. Quando sa�a, Anne-Marie pediu a Charlotte
que escrevesse uma carta a sua m�e, em Vars�via,
relatando-lhe o seu fim. No final da tarde, com a carta nas
m�os, Charlotte decidiu caminhar at� a sala para onde a
amiga tinha sido levada para ler o que havia rabiscado no
papel. N�o havia ningu�m vigiando a porta e ela quase
desmaiou com o que viu: Anne-Marie tinha sido morta com
a aplica��o de alguma subst�ncia em sua veia, tinha a
cabe�a raspada e os dentes de ouro haviam sido arrancados
� for�a. Seu rosto sem vida exibia uma m�scara de terror.
As experi�ncias passaram a ser feitas abertamente com
mulheres e homens do campo de Ravensbr�ck. Karl
Gebhardt, amigo �ntimo e m�dico particular de Heinrich
Himmler, foi destacado pelo comandante-geral da ss para
executar ali uma experi�ncia de �acompanhamento do
desenvolvimento de bacilos de t�tano, de estafilococos e de
doen�as ven�reas em mulheres�. As inje��es eram
aplicadas nas partes inferiores das pernas das mulheres,
escolhidas ao acaso, provocando feridas que iam at� os
ossos. Muitas vezes a infec��o era induzida por assistentes
do dr. Gebhardt � ele pr�prio s� aparecia no dia da
aplica��o das inje��es e de tempos em tempos para
�acompanhar a experi�ncia� � por meio da introdu��o de
estilha�os de vidro ou de madeira nas feridas. Como a
aplica��o de anest�sicos poderia, segundo os m�dicos,
�comprometer o car�ter cient�fico das experi�ncias�, tudo
era feito a frio, submetendo as pacientes a sofrimentos
ainda mais brutais. Em todos os casos, sem exce��o, o
acompanhamento da evolu��o da doen�a era feito apenas
�para observa��o�, nunca para tratamento. As mulheres
escolhidas como cobaias eram executadas ao final dos
experimentos.
Aos homens estava reservada outra contribui��o �s
�experi�ncias gen�ticas� dos m�dicos nazistas: alguns
presos tinham os test�culos expostos aos efeitos de raios X
durante vinte a trinta minutos e depois retornavam ao
trabalho. Duas semanas depois eram chamados de volta �
enfermaria, onde lhes extra�am os test�culos para
observa��o. Depois, um dos m�dicos �concedia-lhe a morte
por clem�ncia�, conforme mandava a lei de Hitler. A ins�nia
n�o tinha limites. Um grupo de ortopedistas de Berlim
viajou a Ravensbr�ck especialmente para escolher entre as
mulheres do campo algumas cobaias para experi�ncias de
transplantes de membros ou de ossos: uma perna, um
bra�o ou uma clav�cula era retirada do corpo de uma mulher
e implantada em outra, com a mera finalidade de se
observar o grau de rejei��o acusado. A doadora compuls�ria
era eliminada imediatamente ap�s a cirurgia. A receptora,
se tivesse sorte, sobreviveria mais alguns dias ou semanas.
Ravensbr�ck tinha sido transformado num laborat�rio de
monstruosidades semelhante ao campo de Auschwitz, na
Pol�nia, onde as experi�ncias eram conduzidas pelo dr. Josef
Mengele.
Mas as pervers�es anunciadas como pesquisas m�dicas
n�o seriam o fim da loucura nazista. At� ent�o as execu��es
praticadas em Ravensbr�ck vinham sendo feitas
individualmente. No come�o do inverno de 1942 come�aria
a elimina��o sistem�tica de judeus e comunistas. Nos
primeiros dias do ano mudou-se para o campo o m�dico
Fritz Mennecke. Segundo not�cia que correu entre os presos,
ele teria a fun��o de selecionar, a seu ju�zo, as prisioneiras
que ainda poderiam ser utilizadas como m�o de obra no
esfor�o b�lico do Reich � Hitler preparava o �ataque final� �
Uni�o Sovi�tica � e as que deveriam ser enviadas � c�mara
de g�s e aos fornos cremat�rios. A partir daquele momento,
o m�dico disporia da vida e da morte de 8 mil mulheres e
quinhentos homens. Para auxili�-lo na escolha dos que
viveriam e dos que iriam morrer, ficaram � disposi��o do
comando do campo as m�dicas Gerda Weyand-Sonntag e
Herta Oberheuser.
Os primeiros lotes de mulheres retiradas de Ravensbr�ck
depois da chegada do dr. Mennecke deixaram em d�vida as
que l� permaneceram: afinal, elas estariam sendo levadas
para c�maras de g�s ou para outros campos de trabalho? A
indaga��o continuou sem resposta uma semana depois da
partida da primeira leva, quando um caminh�o trouxe de
volta ao campo apenas as roupas das escolhidas pelo
m�dico. Na segunda viagem, combinou-se uma forma de
saber para onde elas estavam sendo levadas: algumas das
que fossem selecionadas pelo m�dico Mennecke levariam
consigo um toco de l�pis e min�sculos peda�os de papel.
Cada localidade que pudessem identificar, no caminho,
deveria ter seu nome escrito num papel, que seria enfiado
na costura da barra da saia. Assim, quando as roupas
retornassem para reaproveitamento no campo, seria
poss�vel identificar com precis�o o destino que vinha sendo
dado a elas. A volta do caminh�o trazendo as roupas usadas
a Ravensbr�ck n�o elucidou as d�vidas sobre a sorte das
mulheres transferidas do campo. Os pedacinhos de papel
retirados da barra de v�rias saias repetiam o mesmo nome:
Bernburg. O que significaria aquilo?
Situada a pouco mais de cem quil�metros a sudoeste de
Berlim, Bernburg era uma cidadezinha de 40 mil habitantes,
cortada ao meio pelo rio Saale. Em 1942, quase toda a
popula��o da cidade vivia em fun��o da Solvay, ind�stria
belga de pot�ssio, e de mais duas ou tr�s f�bricas de
cimento, �lcalis e pequenas m�quinas agr�colas. Na �poca,
o pr�dio mais imponente do lugar, depois da centen�ria
igreja luterana, era uma grande constru��o de tijolos
vermelho-escuros que abrigava desde o come�o do s�culo o
Landes-Heil-Und Pfleg-ansalt, um hospital provincial para
tratamento de doen�as mentais, para onde se dirigiam os
pacientes da microrregi�o compreendida entre as grandes
cidades de Leipzig e Magdeburg. A partir do outono de
1939, entretanto, a placidez da cidade foi quebrada por
uma decis�o tomada em Berlim. Seis dos quinze pr�dios de
cinco pavimentos do hospital psiqui�trico foram ocupados
por determina��o de Himmler e transformados em
�Propriedade do Reich�, uma camuflagem pouco
convincente para esconder as atividades que a ss passaria a
exercer ali. Um pared�o de cimento, constru�do �s pressas,
separava o resto do hospital da parte ocupada, que logo foi
tomada por 150 soldados e oficiais da ss, sob a dire��o do
m�dico Irmfried Eberl e de sua enfermeira-chefe K�the
Hackbarth.
Experimentalmente e em segredo, o dr. Eberl mandou
construir, no subsolo do hospital, amplos c�modos com as
paredes e o ch�o revestidos de azulejos brancos e de cujo
teto pendiam chuveiros. � primeira vista, o lugar dava a
impress�o de ser uma sala de banhos coletivos, mas de fato
ali seria testada mais uma inven��o macabra do nazismo: a
primeira c�mara de execu��o em massa de prisioneiros,
que seriam asfixiados por g�s venenoso. E o primeiro ensaio
da c�mara de g�s seria feito com um grupo de alem�es n�o
judeus. Quando o hospital foi tomado pelo Reich
encontrava-se preso em Berlim, havia alguns meses, um
grupo de vinte pilotos da Legi�o Condor, que Hitler enviara
� Espanha para lutar ao lado das for�as fascistas do general
Francisco Franco. Os pilotos se recusaram a bombardear
posi��es republicanas, pousaram seus avi�es Junker e se
entregaram ao general Hugo Sperrle, comandante-geral da
Legi�o, que os devolveu � Alemanha como desertores.
Quando Irmfried Eberl informou ao comando da ss que a
c�mara de g�s de Bernburg estava pronta para ser testada,
Himmler n�o hesitou em propor que as primeiras cobaias
fossem �os covardes da Legi�o Condor�. A experi�ncia
funcionou a contento. Sem tiros, sem sangue e sem gritos,
os pilotos alem�es foram executados. Nem mesmo o
destino a ser dado aos corpos tinha escapado ao imaginoso
dr. Eberl: ao lado da c�mara e com acesso pelo subsolo,
sem que fosse necess�rio sair � luz do dia, tinha sido
constru�do um forno cremat�rio alimentado a �leo. Naquela
tarde um macabro rolo de fuma�a negra saiu das chamin�s
do hospital e cobriu Bernburg. Quando a guerra terminasse,
em 1945, teriam sido executados nos por�es do dr. Irmfried
Eberl nada menos que 30 mil cidad�os judeus, comunistas,
socialistas e social-democratas. E foi o �sucesso� do
experimento em Bernburg que levou o Reich a montar na
Alemanha campos de exterm�nio id�nticos em Grafeneck,
Brandenburg, Harteim, Sonnenstein e Hadamar, que
passaram a receber presos egressos de Buchenwald,
Flossenburg, Mauthausen-Gusen, Dachau, Sachsenhausen e
Gross-Rosen.
Logo no come�o de fevereiro de 1942, pouco antes do dia
em que Olga completaria 34 anos, as mulheres foram
reunidas no p�tio central de Ravensbr�ck para ouvir nos
alto-falantes do campo a rela��o das duzentas prisioneiras
que na manh� seguinte seriam �transferidas para outros
campos de concentra��o�. As mulheres eram chamadas em
ordem alfab�tica e n�o pelos n�meros � e as que tivessem
sido selecionadas deveriam afastar-se do grupo e formar
novamente um outro bloco, ao lado. J� haviam sido
chamadas mais de 150 quando o nome ecoou:
� Olga Benario Prestes!
Junto com ela iriam suas amigas Tilde Klose, Ruth
Gr�nspun, Irene Langer e Rosa Menzer. Ao entrar no bloco
11 para pegar sua trouxa, Olga encontrou duas velhinhas
judias em prantos, curvadas e rezando em i�diche. Agachouse
ao lado das duas, que conhecera logo ao chegar em
Ravensbr�ck, e tranquilizou-as:
� N�o chorem, n�s vamos apenas mudar para outro
campo, onde a vida certamente ser� melhor. A guerra vai
chegar logo ao fim, os nazistas ser�o derrotados, n�s vamos
ter paz dentro de pouco tempo. Fiquem tranquilas e firmes,
n�s vamos comemorar a paz juntas.
Acomodou-as num beliche e ao passar por uma das
janelas do bloco viu que estacionavam no p�tio os quatro
�nibus azul-marinhos da Gekrat, uma sociedade beneficente
de Berlim, especializada em transportar indigentes e que
nos �ltimos anos prestava servi�os � ss e � Gestapo. Eram
oito horas da noite quando os alto-falantes do campo deram
o �ltimo aviso:
� As prisioneiras relacionadas na chamada de hoje t�m
trinta minutos para recolher seus pertences e se apresentar
� oficial, junto aos �nibus.
Meia hora: tempo suficiente para escrever uma carta �
filha e ao marido.
Dez dias depois, quando o caminh�o voltou a
Ravensbr�ck com as roupas das mulheres embarcadas
naquela noite, Emmy Handke correu a procurar o vestido de
Olga. Apalpou sofregamente a barra e dela tirou um
pequenino peda�o de papel onde estava escrita apenas
uma palavra: Bernburg.
S�o Paulo, Brasil
� Julho de 1945
Depois do almo�o na casa de Tuba e Hirsch Schor, um
jovem casal de militantes do partido, a alta dire��o do
Partido Comunista brasileiro se reuniu naquela tarde de 15
de julho para um balan�o r�pido dos preparativos do
com�cio que come�aria dentro de minutos no est�dio de
futebol do Pacaembu. Esta seria a primeira manifesta��o de
massas dos comunistas em S�o Paulo desde o fechamento,
em 1935, da Alian�a Nacional Libertadora. De terno escuro,
barbeado e bem-disposto, Lu�s Carlos Prestes � o secret�riogeral
do partido, cargo para o qual tinha sido escolhido em
1943 na clandestina Confer�ncia da Mantiqueira, a Segunda
Confer�ncia Nacional do Partido Comunista. Ele chama seus
camaradas para uma pequena sala e ouve de Milton Cayres
de Brito e de Di�genes de Arruda C�mara alguns informes
sobre outra manifesta��o de rua, ocorrida na v�spera em
S�o Paulo. Como advert�ncia ao Partido Comunista, a Igreja
cat�lica organizara na noite anterior, um s�bado, uma
�novena de Nossa Senhora�, levando milhares de fi�is �s
ruas para venerar a imagem de Nossa Senhora Aparecida, a
padroeira do Brasil, e �jurar de joelhos o rep�dio ao
comunismo ateu�. Ao final da manifesta��o, mobilizada pelo
cardeal Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, o p�blico
juntou-se em frente � Catedral da S� e repetiu em coro as
palavras que eram pronunciadas por um bispo:
� Juro ser fiel � Igreja, repudiar e combater o comunismo!
Para a dire��o comunista reunida na modesta casa da rua
Arapu�, no bairro da Bela Vista, era natural que os setores
mais conservadores da Igreja reagissem assim. Afinal, em
tr�s meses o Brasil vivera uma verdadeira voragem de
transforma��es pol�ticas. Nos primeiros dias de abril,
enquanto os marechais sovi�ticos Tobulkhin e Malinovsky
retomavam Viena e Bratislava das m�os dos alem�es, e 150
mil soldados nazistas eram cercados pelo Primeiro e Nono
Ex�rcitos americanos na bacia industrial do vale do Ruhr, os
efeitos do fim da guerra come�avam a chegar ao Brasil.
O embaixador Carlos Martins Pereira de Souza,
representante do Brasil em Washington, entrega ao
embaixador sovi�tico nos Estados Unidos, Andrei Gromyko,
uma curta nota de dez linhas em que o governo brasileiro
solicita o reatamento de rela��es diplom�ticas com a Uni�o
Sovi�tica. No plano interno, a reviravolta � ainda mais
din�mica. Enquanto o governo informa ter decidido
extinguir a censura telef�nica que durava dez anos,
mulheres, estudantes, trabalhadores e profissionais liberais
organizam com�cios em todo o pa�s exigindo a concess�o
imediata de anistia pol�tica aos presos e exilados. Em todas
as manifesta��es, as bandeiras do Brasil s�o vistas
tremulando ao lado de bandeiras vermelhas com a foice e o
martelo, sem que a pol�cia importune ningu�m. Os pol�ticos
Armando de Salles Oliveira, Paulo Nogueira Filho e Luiz de
Toledo Piza decidem n�o esperar a decreta��o da anistia,
voltam do ex�lio na Argentina e desembarcam livremente no
Brasil. Da pris�o, Prestes telegrafa ao presidente Get�lio
Vargas cumprimentando-o pelo restabelecimento de
rela��es �com o heroico povo sovi�tico�, e exige a
decreta��o da anistia, �ainda que, se necess�rio, com a
exclus�o do meu caso pessoal�. Come�a o degelo.
O retorno ao Brasil dos primeiros expedicion�rios de um
contingente de 25 mil soldados que o pa�s mandara para
lutar na It�lia contra o nazifascismo traz um novo fermento
� campanha pela redemocratiza��o nacional. Quinhentos
pra�as e oficiais haviam morrido combatendo em defesa da
liberdade e a popula��o exige, �em respeito � mem�ria dos
nossos m�rtires�, que o Brasil rompa de uma vez por todas
seus tra�os autorit�rios. O oper�rio Veriano Jel�n, ferido na
frente italiana, volta ao Brasil antes da tropa e, em
entrevista coletiva concedida ainda no cais do porto do Rio
de Janeiro, exige elei��es diretas para presidente da
Rep�blica:
� Os soldados americanos que estavam na It�lia
participaram das elei��es presidenciais dos Estados Unidos
votando junto dos tanques e das trincheiras. Os nossos
soldados viram isto de perto e n�o compreendem, n�o
aceitam que lhes seja negado o direito de voto. N�o
podemos manter aqui no Brasil um regime igual ao que
combatemos na It�lia com o nosso sangue.
Get�lio Vargas promete convocar elei��es para a sua
sucess�o ainda naquele ano. Seu ministro da Guerra, o
mesmo general Eurico Gaspar Dutra que havia chefiado o
cerco aos rebeldes de Agildo Barata no 3o Regimento de
Infantaria, dez anos antes, apresenta-se como candidato
governista � Presid�ncia e inclui em sua plataforma uma
inacredit�vel bandeira: a legaliza��o do Partido Comunista.
Ao perceber que Get�lio Vargas come�a a ceder, a oposi��o
avan�a mais e passa a lutar n�o apenas pelo direito de
eleger o presidente. Agora a reivindica��o das ruas � pela
anistia e pela convoca��o de uma Assembleia Nacional
Constituinte.
Em 18 de abril, Get�lio Vargas assina o decreto que
concede anistia aos presos pol�ticos. Antes mesmo que o
ato fosse publicado no Di�rio Oficial, os cinco primeiros
benefici�rios da medida deixam as pris�es. Da Casa de
Deten��o do Rio de Janeiro saem Lu�s Carlos Prestes, o
capit�o Trifino Correia e o tenente Ivan Ribeiro. Do pres�dio
da ilha Grande v�o de barco, at� o Rio de Janeiro, Carlos
Marighella, o capit�o Agildo Barata e o tenente Ant�nio
Bento Tourinho. Como o mais importante preso pol�tico do
pa�s, Prestes recebe aten��es especiais: quem lhe d� a
not�cia da assinatura da anistia � o seu antigo comandado
Orlando Leite Ribeiro, com quem vivera em Buenos Aires, e
que agora servia ao governo Vargas como diplomata no
Itamaraty. Prestes � levado de carro por Ribeiro para a casa
do escritor Le�ncio Basbaum, e no caminho pede
informa��es sobre o destino de Olga e sobre seu amigo
Arthur Ewert, que tinha sido beneficiado pela anistia, mas
que talvez n�o tivesse condi��es de desfrutar a liberdade:
arrebentado pelas torturas, Ewert estava internado num
manic�mio no Rio de Janeiro. Quanto a Olga, n�o havia
nenhuma informa��o a respeito. Prestes pede que as
ag�ncias internacionais de not�cias sejam mobilizadas para
tentar localiz�-la nos campos de concentra��o libertados
pelos aliados na Europa. Um dos comandantes das tropas
brasileiras na It�lia, o major Emygdio Miranda, ex-oficial da
Coluna Prestes, recebe a incumb�ncia de tentar localizar
Olga Benario e traz�-la de volta ao Brasil. Em sua primeira
declara��o � imprensa, Prestes expressa sua gratid�o ao
general L�zaro C�rdenas, ex-presidente do M�xico, pelo
tratamento dedicado a Anita e a dona Leoc�dia, que
falecera dois anos antes, enquanto o filho estava preso.
Nessa ocasi�o, C�rdenas, ent�o ministro da Guerra de seu
pa�s, se oferece a Get�lio Vargas como ref�m para que Lu�s
Carlos Prestes pudesse deixar a pris�o e ir ao M�xico assistir
aos funerais da m�e, mas a proposta nem sequer �
considerada pelo governo brasileiro. Quando um rep�rter
pergunta sobre suas rela��es com Vargas, Prestes oferece o
primeiro ind�cio de que colocava a luta pol�tica acima das
quest�es pessoais, ao anunciar claramente:
� O senhor Get�lio Vargas tem dado provas de suas boas
inten��es.
Quem tivesse acompanhado a trajet�ria do clandestino
Partido Comunista nos �ltimos anos n�o se surpreenderia
com as palavras de Prestes. Nos primeiros meses de 1938,
ap�s o frustrado putsch integralista materializado na
tentativa de tomada do Pal�cio Guanabara pelos �camisasverdes�
de Pl�nio Salgado, os comunistas apoiaram
formalmente, em seu jornal A Classe Oper�ria, a rea��o do
governo de Vargas � tentativa de golpe direitista. A ades�o
do Brasil �s for�as que lutavam contra o nazifascismo, em
1942, contribuiria para reduzir a hostilidade do partido a
Get�lio. Naquele momento, por�m, quem elogiava o
presidente da Rep�blica era Lu�s Carlos Prestes, que havia
sido pessoalmente vitimado pela repress�o dirigida por
Vargas � n�o apenas com dez anos de pris�o, mas
sobretudo pelo mart�rio a que o ditador submetera sua
mulher e sua filha, entregando-as aos nazistas. A primeira
rea��o contra o apoio de Prestes a Vargas parte de seu
antigo advogado, Sobral Pinto, que condena �qualquer
uni�o nacional com o senhor Get�lio Vargas, nos moldes
sugeridos pelo senhor Carlos Prestes�. Sobral � duro e
pessimista:
� Fortalecer de qualquer forma e sob qualquer pretexto a
autoridade governamental do senhor Get�lio Vargas �
preparar para os dias de amanh�, em nossa infortunada
p�tria, uma guerra civil sem precedentes no continente
americano.
Poucas semanas depois, falando em seu primeiro com�cio
p�blico para 80 mil pessoas no est�dio do Vasco da Gama,
no Rio de Janeiro, Prestes � ainda mais preciso no apoio ao
governo:
A oposi��o exige que o senhor Get�lio Vargas abandone o cargo para que
seja mantida a paz interna. Mas ser� esse realmente o caminho democr�tico
da ordem, da paz e da uni�o nacional? Ao contr�rio, n�o ter� raz�o o senhor
Get�lio Vargas ao afirmar que o seu dever � manter a ordem para levar o pa�s
a elei��es livres e honestas e entregar o poder ao eleito da na��o? Sua sa�da
do poder neste momento seria uma deser��o e uma trai��o que n�o
contribuiria de forma alguma para a uni�o nacional: pelo contr�rio,
despertaria novas esperan�as entre os fascistas e reacion�rios e aumentaria
as dificuldades, tornando mais amea�ador ainda o perigo de golpes de Estado
e de guerra civil. Assim como em agosto de 1942 voltou-se o nosso povo para
o senhor Get�lio Vargas, na esperan�a de que o antigo chefe do movimento
popular de 1930 quisesse dirigi-lo na luta de morte contra o agressor nazista,
o que nosso povo espera agora do senhor Get�lio Vargas, prestigiado como
est� pela vit�ria das nossas armas na It�lia, s�o elei��es realmente livres e
honestas. Este o seu dever de homem e cidad�o. Apesar de todas as
diverg�ncias pol�ticas que j� nos separaram de sua excel�ncia, contra cujo
governo j� lutamos de armas na m�o, n�o temos o direito de duvidar do
patriotismo do chefe da na��o.
Apesar de publicamente defender a legaliza��o do Partido
Comunista, o governo n�o ocultava o anticomunismo
acumulado ao longo dos tempos de ditadura. Assim, dois
dias depois o general Dutra demitia da dire��o do dip, o
Departamento de Imprensa e Propaganda do governo, o
major Amilcar Dutra de Menezes por ter emprestado o
equipamento de som daquela reparti��o para que Prestes
falasse ao povo. Esta seria, por�m, a menor repercuss�o do
com�cio do Vasco. O apoio a Get�lio Vargas custaria caro a
Prestes dentro do pr�prio partido. Em S�o Paulo um grupo
de intelectuais comunistas se op�e � orienta��o da dire��o,
liderada no estado por Jorge Amado, a quem chamavam �o
Rasputin da linha justa�. Em manifesto distribu�do �
imprensa, os escritores Oswald de Andrade, Rossine
Camargo Guarnieri e Afonso Schmidt se insurgem contra a
determina��o prestista, afirmando que �a ditadura estava
em plena decomposi��o, e ao formular elogios ao senhor
Get�lio Vargas, Lu�s Carlos Prestes abriu-lhe cr�ditos
imensos de confian�a, de que ele andava mais necessitado
do que nunca�. O jornal Vanguarda Socialista, dirigido pelo
intelectual trotskista M�rio Pedrosa, fazia cruel ironia com o
fato de que Vargas tivesse sido o autor da deporta��o de
Olga para a Gestapo, sugerindo que os militantes do partido
deveriam dirigir-se ao presidente da Rep�blica, indagando:
�Get�lio Vargas, que fizestes de Olga Benario Prestes,
entregando-a a Hitler?�.
Indiferente �s acusa��es e � pol�mica, Prestes se
preparava para o grande com�cio do Pacaembu, em S�o
Paulo. A mobiliza��o fora iniciada com v�rias semanas de
anteced�ncia. Havia comit�s de engenheiros, professores,
dentistas, oper�rios t�xteis, metal�rgicos, motoristas, garis.
Na semana que antecedeu o dia 15 foram realizados
com�cios-rel�mpagos em v�rios bairros da cidade,
convidando o povo a ir ao Pacaembu. Em cada um deles, o
encerramento cabia a um l�der pol�tico, oper�rio ou
intelectual do partido. No bairro da Casa Verde, o �ltimo a
falar foi o f�sico M�rio Schenberg; no Bel�m, o l�der
estudantil Jo�o Beline Burza; na Mooca, o escritor Jorge
Amado; no Tucuruvi, o dirigente estadual do Partido
Comunista Joaquim C�mara Ferreira; no Br�s, o jornalista
Jos� Tavares de Miranda. A organiza��o parecia impec�vel:
a popula��o se encontraria em v�rios pontos do centro da
cidade, de onde partiria para a pra�a Buenos Aires e dali
seguiria em passeata at� os port�es do est�dio. Da casa de
Tuba e Hirsch Schor, onde se encontrava, Prestes podia ver
o movimento dos grupos que subiam a avenida Nove de
Julho, em dire��o ao Pacaembu.
Pouco depois das tr�s da tarde, Prestes decidiu sair.
Levado em carro aberto, ele era aclamado pelos
manifestantes que se dirigiam ao com�cio. Ao chegar ao
Pacaembu, foi ovacionado por milhares de pessoas: no
est�dio com capacidade para 60 mil espectadores nas
arquibancadas, calculava-se que havia mais de 100 mil
pessoas, que tinham tomado tamb�m todo o gramado. Na
tribuna oficial, aguardando o chefe comunista, estavam o
general Miguel Costa, o jornalista J�lio de Mesquita Filho,
representando a udn, o poeta e senador comunista chileno
Pablo Neruda, os capit�es Agildo Barata e Trifino Correia, o
comandante Roberto Sisson. Durante duas horas desfilaram
pela pista de atletismo do est�dio delega��es de cidades do
interior, de outros estados e de v�rias categorias
profissionais. Um grupo percorreu a pista levando uma
bandeira do Brasil esticada pelas pontas, pedindo ao povo
contribui��es para as fam�lias das v�timas do cruzador
brasileiro Bahia, afundado em acidente no final da guerra.
Das arquibancadas choviam moedas e c�dulas amassadas.
Aberto o com�cio, falaram o general Miguel Costa e o
secret�rio estadual do partido, M�rio Scott. Doente e
impedido de estar no palanque, o escritor Monteiro Lobato
enviou uma mensagem gravada. Depois da execu��o do
hino nacional do Chile, foi dada a palavra a Pablo Neruda,
que, em lugar de fazer um discurso, declamou um poema
que compusera em homenagem a Prestes, comovendo a
multid�o com seus �ltimos versos:
Hoy pido un gran silencio de volcanes y rios.
Un gran silencio pido de tierras y varones.
Pido silencio a America, de la nieve a la pampa.
Silencio: la palabra al Capit�n del Pueblo.
Silencio: que el Brasil hablar� por su boca.
Emocionada, a massa humana n�o parava de aplaudir.
Bem-humorado, Neruda voltou ao microfone e repetiu a
�ltima linha do poema:
� Silencio: que el Brasil hablar� por su boca.
Tocaram o hino nacional brasileiro e Prestes falou durante
uma hora e meia. Fez uma longa an�lise da situa��o
mundial, da derrota do nazifascismo e de suas
consequ�ncias na vida brasileira. Relembrou que a Alian�a
Nacional Libertadora mal vivera um trimestre, referiu-se �
derrota de 1935 e � �brutalidade infame contra n�s
empregada pela pol�cia fascistizante de Filinto M�ller�,
discorreu longamente sobre a crise econ�mica vivida pelo
Brasil e, embora n�o tivesse citado uma s� vez o nome de
Get�lio Vargas, voltou a tocar no ponto que tanta pol�mica
provocava � o apoio dos comunistas ao presidente:
Lutamos e lutaremos pela uni�o nacional. O governo vem h� muito cedendo
no sentido da democracia e marcha, por isso, em sentido inverso daquele por
que levava o pa�s nos anos anteriores � grande guerra pela independ�ncia e
liberta��o dos povos. Se naquela �poca soubemos empunhar armas em
defesa da democracia, agora tamb�m a defenderemos, apoiando o governo
em defesa da ordem e desmascarando sem vacila��es os agentes da
desordem, todos aqueles que pregam os golpes salvadores e a guerra civil
falando em democracia, mas que n�o passam, na verdade, de instrumentos
da provoca��o fascista.
Era noite fechada quando Lu�s Carlos Prestes deixou o
Pacaembu em dire��o � Esta��o Roosevelt, onde tomaria
um trem de volta ao Rio de Janeiro. Cercado de amigos ele
se preparava para subir a escada do vag�o-leito, quando
um jovem chegou correndo, abrindo passagem entre os que
se despediam do chefe comunista:
� Capit�o Prestes! Capit�o Prestes! Um momento, n�o
embarque!
Temeu-se uma tentativa de agress�o, mas o rapaz se
identificou:
� Sou rep�rter da ag�ncia de not�cias United Press. N�s
t�nhamos pedido �s sucursais europeias que buscassem
informa��es sobre Olga Benario, e acabamos de receber
este telegrama sobre ela, enviado pelo correspondente em
Berlim.
Ansioso, Prestes levou o peda�o de papel aos olhos e leuo
com o rosto crispado, diante do sil�ncio dos amigos que o
fitavam. Levantou a cabe�a e disse apenas tr�s palavras:
� Olga est� morta.
Era um despacho curto, sem muitos detalhes:
Berlim � As autoridades aliadas acabam de informar que entre as duzentas
mulheres executadas na c�mara de g�s da cidade alem� de Bernburg, na
P�scoa de 1942, estava a sra. Olga Benario Prestes, esposa do dirigente
comunista brasileiro Lu�s Carlos Prestes.
Prestes entrou no trem que j� come�ava a se movimentar
rumo ao Rio de Janeiro, caminhou por entre as poltronas em
sil�ncio, sentou-se e leu mais uma vez a not�cia, antes de
guardar o papel no bolso do palet�.
S� muitos anos depois � que receberia a �ltima carta que
Olga escrevera a ele e � filha, ainda em Ravensbr�ck � em
data n�o determinada pelos arquivos da Gestapo �, na
noite da viagem de �nibus para Bernburg.
Queridos:
Amanh� vou precisar de toda a minha for�a e de toda a minha vontade. Por
isso, n�o posso pensar nas coisas que me torturam o cora��o, que s�o mais
caras que a minha pr�pria vida. E por isso me despe�o de voc�s agora. �
totalmente imposs�vel para mim imaginar, filha querida, que n�o voltarei a
ver-te, que nunca mais voltarei a estreitar-te em meus bra�os ansiosos.
Quisera poder pentear-te, fazer-te as tran�as � ah, n�o, elas foram cortadas.
Mas te fica melhor o cabelo solto, um pouco desalinhado. Antes de tudo, vou
fazer-te forte. Deves andar de sand�lias ou descal�a, correr ao ar livre
comigo. Sua av�, em princ�pio, n�o estar� muito de acordo com isso, mas
logo nos entenderemos muito bem. Deves respeit�-la e quer�-la por toda a
tua vida, como o teu pai e eu fazemos. Todas as manh�s faremos gin�stica...
V�s? J� volto a sonhar, como tantas noites, e esque�o que esta � a minha
despedida. E agora, quando penso nisto de novo, a ideia de que nunca mais
poderei estreitar teu corpinho c�lido � para mim como a morte.
Carlos, querido, amado meu: terei que renunciar para sempre a tudo de
bom que me destes? Conformar-me-ia, mesmo que n�o pudesse ter-te muito
pr�ximo, que teus olhos mais uma vez me olhassem. E queria ver teu sorriso.
Quero-os a ambos, tanto, tanto. E estou t�o agradecida � vida, por ela haverme
dado a ambos. Mas o que eu gostaria era de poder viver um dia feliz, os
tr�s juntos, como milhares de vezes imaginei. Ser� poss�vel que nunca verei o
quanto orgulhoso e feliz te sentes por nossa filha?
Querida Anita, meu querido marido, meu Garoto: choro debaixo das mantas
para que ningu�m me ou�a, pois parece que hoje as for�as n�o conseguem
alcan�ar-me para suportar algo t�o terr�vel. � precisamente por isso que
esfor�o-me para despedir-me de voc�s agora, para n�o ter que faz�-lo nas
�ltimas e dif�ceis horas. Depois desta noite, quero viver para este futuro t�o
breve que me resta. De ti aprendi, querido, o quanto significa a for�a de
vontade, especialmente se emana de fontes como as nossas. Lutei pelo justo,
pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que
at� o �ltimo instante n�o ter�o por que se envergonhar de mim. Quero que
me entendam bem: preparar-me para a morte n�o significa que me renda,
mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem
ainda acontecer tantas coisas... At� o �ltimo momento manter-me-ei firme e
com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte amanh�. Beijo-os
pela �ltima vez.
Olga
Ep�logo
olga benario prestes d� nome a ruas de sete cidades e a 91
escolas, f�bricas e brigadas oper�rias na antiga Rep�blica
Democr�tica Alem�. Em v�rias cidades brasileiras, inclusive
em S�o Paulo, h� ruas, pra�as e escolas com seu nome.
lu�s carlos prestes rompeu com o Comit� Central do Partido
Comunista Brasileiro em fevereiro de 1980 e tr�s meses
depois foi destitu�do do cargo de secret�rio-geral da
organiza��o. Morreu em 1990.
anita leoc�dia vive com sua tia L�gia Prestes no Rio de
Janeiro, onde � professora universit�ria. Afastou-se do
Partido Comunista junto com o pai.
Anistiado em 1945, arthur ewert foi levado um ano depois
� ent�o zona de ocupa��o sovi�tica na Alemanha. Morreu
em 1959 na Rep�blica Democr�tica Alem� sem ter
recuperado a raz�o.
otto braun retornou � urss em 1939. Dez anos depois
mudou-se para Berlim Oriental, onde morreu como tradutor
do Instituto de Marxismo-Leninismo.
rodolfo ghioldi morreu em julho de 1985 em Buenos Aires.
agildo barata desligou-se do Partido Comunista em 1957.
Dez anos depois teve a patente militar cassada pelo
governo. Morreu aos 63 anos no Rio de Janeiro, em 1968.
Anistiado em 1945, ant�nio maciel bonfim, o Miranda, caiu na
mais completa obscuridade pol�tica. Morreu tuberculoso em
Alagoinhas, interior da Bahia.
sobral pinto morreu em novembro de 1991.
miguel costa morreu em dezembro de 1959.
filinto m�ller morreu em julho de 1973, em desastre a�reo
no aeroporto de Orly, na Fran�a. Na �poca era senador pela
Arena e l�der do governo militar no Senado.
O embaixador jos� joaquim moniz de arag�o aposentou-se do
servi�o diplom�tico em 1952 e morreu em 1974, aos 87
anos, no Rio de Janeiro.
O m�dico nazista irmfried eberl e a enfermeira k�the
hackbarth foram fuzilados pelas tropas que ocuparam o
campo de exterm�nio de Bernburg.
H� poucas not�cias do destino dos militantes da Juventude
Comunista que participaram do assalto � pris�o de Moabit.
rudi k�nig morreu na Espanha, lutando junto �s Brigadas
Internacionais. margot ring foi executada em uma c�mara de
g�s no campo de concentra��o de Dachau. Preso pela
Gestapo, erich jazosch passou v�rios anos preso e foi
executado em uma c�mara de g�s em 1943. erik bombach foi
fuzilado por tropas da ss. klara seleheim morreu na Marcha da
Morte, no campo de concentra��o de Sachsenhausen.
O campo de concentra��o de mulheres de ravensbr�ck foi
libertado pela 49a Divis�o de Infantaria do Ex�rcito Vermelho
em 30 de abril de 1945, oito dias antes da rendi��o alem�.
Fontes
DEPOIMENTOS TOMADOS PELO AUTOR
Anna Pikarski
Anni Sindermann
Anita Leoc�dia Prestes
Beatriz Bandeira Ryff Ryff (depoimento concedido a Paulo
C�sar de Azevedo)
Carmen Ghioldi
Celestino Paraventi
Dora Mantay
Emmy Handke
Gabor Lewin
Helmut F. Sp�te
Herta Lewin
Ilze Hunger
Jos� Gay da Cunha
Klaus Martin
Kurt Seibt
L�gia Prestes
Lu�s Carlos Prestes
Manoel Batista Cavalcanti
Maria Werneck de Castro
Milton Cayres de Brito
Rodolfo Ghioldi
Tuba Schor
Wilfried Rupert
Zuleika Alambert
INSTITUI��ES
L�Amicale des Anciennes D�port�es a Ravensbr�ck (Paris,
Fran�a)
Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano �
Fondazione Giangiacomo Feltrinelli (Mil�o, It�lia)
Arquivo Edgard Leuenroth � Unicamp (Campinas, sp)
Arquivo do Estado de S�o Paulo (S�o Paulo, sp)
Arquivo Herm�nio Sacchetta (S�o Paulo, sp)
Arquivo Hist�rico do Minist�rio das Rela��es Exteriores do
Brasil (Rio de Janeiro, rj)
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro, rj)
Arquivos da Penitenci�ria Lemos de Brito (Rua Frei Caneca,
Rio de Janeiro, rj)
Bernburg Stadtarchiv (Bernburg, Rep�blica Democr�tica
Alem�)
Biblioteca Municipal M�rio de Andrade (S�o Paulo, sp)
Biblioteca Municipal Presidente Kennedy (S�o Paulo, sp)
Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro, rj)
British Newspaper Library (Londres, Inglaterra)
Centro de Pesquisa e Documenta��o de Hist�ria
Contempor�nea do Brasil � Funda��o Get�lio Vargas �
cpdoc/fgv (Rio de Janeiro, rj)
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Paulo, sp)
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Democr�tica Alem�)
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(Berlim, Rep�blica Democr�tica Alem�)
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Voz Oper�ria, A
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Sobre
Olga
�Fernando Morais recria o amor, a coragem, a integridade
e a devo��o de uma mulher.�
Booklist, Chicago
�A hist�ria proporcionou a Fernando Morais cen�rios e
incidentes sa�dos de filme de Hollywood...�
Los Angeles Times
�A vida de Olga ilumina o escuro subterr�neo da hist�ria
contempor�nea e foi contada com o impacto de um livro de
suspense.�
Standard, Londres
�Este romance-document�rio � uma obra jornal�stica de
mestre, que prende o leitor da primeira � �ltima palavra.�
S�ddeutsche Zeitung, Alemanha
�Mais que o caloroso retrato de uma mulher, Olga nos
revela a coragem, o sectarismo, a solidariedade e o
otimismo que levaram ao sacrif�cio militantes comunistas
nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial.�
Le Monde, Paris
�Olga � o retrato de uma �poca de obscurantismo e
terror, a era de Hitler e Mussolini, de Franco e St�lin...�
Dagens Nyheter, Su�cia
�Um personagem, que com t�o escassa biografia
comoveu gera��es de brasileiros, deixa finalmente de ser
um mist�rio total.�
miriam paglia costa, Veja
�Uma fascinante hist�ria de amor.�
ricardo setti, Playboy
�� extremamente emocionante e bem escrito. Se n�o
fosse uma hist�ria real, poderia ser lido como um romance.�
ruy castro, Folha de S.Paulo
�Francamente, com tanta coisa interessante para ler,
como Olga, n�o sei por que e para que h� gente que precisa
de drogas. Li Olga de uma sentada, com prazer.�
paulo francis
Posf�cio
Olga Benario, o Brasil de 1922
e os cem anos do pcb
Esta 40a edi��o de Olga � livro publicado pela primeira
vez em 1985 e j� traduzido em catorze pa�ses � � lan�ada
pela Companhia das Letras no contexto em que se celebram
os cem anos de funda��o do Partido Comunista Brasileiro,
nascido quando o pa�s festejava o primeiro centen�rio de
sua independ�ncia da metr�pole portuguesa. A hist�ria
heroica de Olga Benario e a do pc brasileiro se entrecruzam
e s�o indissoci�veis.
Filha do advogado trabalhista Leo Benario, um fiel ativista
do Partido Social-Democrata alem�o, e da conservadora
dona de casa Eug�nie Gutmann, a estudante Olga Benario,
uma mo�a bonita, alta, magra, de cabelos curtos e olhos
azuis, mal completara catorze anos em 25 de mar�o de
1922, cem anos atr�s, um dia frio e chuvoso em quase todo
o sul da Alemanha.
Embora j� flertasse com a c�lula juvenil do Partido
Comunista alem�o de sua cidade, Munique, perto da
fronteira com a �ustria, a garota jamais poderia imaginar
que naquele dia, a 10 mil quil�metros de dist�ncia do
sobrado em que vivia com a fam�lia de origem judaica, um
pequeno grupo de brasileiros, com idades para serem seus
pais, realizava em Niter�i, cidade vizinha do Rio de Janeiro,
capital do Brasil na �poca, uma reuni�o clandestina.
Reuni�o � qual seu destino se juntaria, duas d�cadas
depois, de forma dram�tica, levando-a precocemente �
morte, numa c�mara de g�s nazista.
Na abafada noite daquele s�bado brasileiro, um
agrupamento min�sculo de trabalhadores comandado pela
firme lideran�a pessoal e intelectual do jornalista Astrojildo
Pereira, reunia, entre outros, um barbeiro, dois funcion�rios
p�blicos, um eletricista, um gr�fico, um sapateiro, dois
alfaiates e um oper�rio bra�al. Naquele modesto
�congresso� nascia o Partido Comunista Brasileiro, o
Partid�o, a mais longeva organiza��o pol�tica da hist�ria do
pa�s. Inspirado na Revolu��o Russa de 1917, seu nome de
batismo, na realidade, nem era esse, mas Partido Comunista
do Brasil � sbic � Se��o Brasileira da Internacional
Comunista (tamb�m conhecida como a iii Internacional, ic
ou, simplesmente, a Terceira). No total o partido somava,
em todo o pa�s, pouco mais de setenta filiados.
Quando o Partid�o veio � luz, aquele que seria seu
comandante por mais tempo, Lu�s Carlos Prestes, ainda era
um an�nimo tenente-engenheiro de 23 anos formado pela
Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Mi�do e
franzino, ga�cho de Porto Alegre, �rf�o de pai, filho da
en�rgica Leoc�dia Prestes e irm�o de tr�s meninas, dois
meses depois do tal s�bado ele se deixaria contaminar pela
pol�tica, v�rus que o acompanharia at� o fim de sua
exist�ncia, no ano de 1990.
Poucos anos ter�o sido objeto do interesse de
pesquisadores e historiadores como o de 1922. �Um ano
infernal�, anunciavam os cronistas da �poca. T�o demon�aco
que a austera e enfarpelada Pauliceia virou S�o Paulo de
pernas para o ar antes mesmo da orgia p�blica oficial, o
Carnaval. Embora glorificada como �semana� de Arte
Moderna, foram apenas tr�s dias � 13, 15 e 17 de fevereiro
� em que milion�rios cafeicultores se juntaram a artistas
revolucion�rios e vanguardistas no vetusto Theatro
Municipal, num sarau que seria lembrado um s�culo depois.
Tratados como futuristas, os semaneiros de 22 arranharam
a casca fina da elite paulista, que a eles se referia nos
jornais como �desocupados� e gente que devia ser
estudada �como fen�meno de patologia mental�.
Em clima festivo, o pa�s se engalanava mesmo era para o
que se pretendia fosse o auge das comemora��es de 1922
� a anunciada Exposi��o Internacional que celebraria o
centen�rio da Independ�ncia �, ocasi�o em que se
realizaria a primeira transmiss�o de r�dio no Brasil, com um
discurso do chefe da na��o, Epit�cio Pessoa, cujo mandato
de quatro anos terminaria em novembro.
Enquanto a elite sassaricava, trabalhadores e militares
conspiravam nos quart�is. O descontentamento entre os
fardados era crescente. Diversas unidades do Rio de Janeiro
se organizavam para enfrentar simultaneamente o
presidente em exerc�cio, o paraibano Epit�cio Pessoa (tido
como representante da oligarquia que dominava o pa�s), e
Artur Bernardes, eleito em mar�o e que assumiria o cargo
em novembro. Autorit�rio e ultranacionalista, o mineiro
Bernardes entraria para a hist�ria do Brasil como o �nico
presidente que governou permanentemente sob estado de
s�tio � do primeiro ao �ltimo dia de seu mandato. No
come�o de julho Pessoa mandou fechar o Clube Militar e
prendeu o ex-presidente da Rep�blica, Hermes da Fonseca.
A abulia do alto oficialato estimulou os conspiradores. No
dia 5 de julho de 1922, uma ensolarada quarta-feira, brota
um motim no Forte de Copacabana, de onde saem, de
armas em punho, dezenas de jovens oficiais marchando
pela avenida Nossa Senhora de Copacabana em dire��o ao
fogo cerrado dos soldados do governo que os esperavam na
outra ponta da praia. O grupo que marchava � beira-mar foi
recebido pela artilharia das tropas oficiais, que fizeram
dezesseis mortos. Dos dezoito, apenas dois militares
sobreviveram, os tenentes Eduardo Gomes e Siqueira
Campos. Entre os mortos jazia o �nico civil do grupo, Ot�vio
Correa, de palet�, gravata e chap�u, que aderira por conta
pr�pria aos amotinados. Os rebeldes passariam � hist�ria
como Os Dezoito do Forte e dariam nome ao tenentismo,
movimento pol�tico-militar de jovens oficiais que influiria
fortemente na vida brasileira pelas d�cadas seguintes, e de
cuja organiza��o fazia parte o j� capit�o Lu�s Carlos Prestes.
Assim como ocorrera com o Partido Comunista, os
tenentes s�o colocados na clandestinidade pelo estado de
s�tio. Estes, no entanto, ressurgem no segundo anivers�rio
dos Dezoito do Forte, em 5 de julho de 1924, aderindo �
Revolu��o Paulista, revolta liderada pelo general Isidoro
Dias Lopes, que defendia a derrubada �da oligarquia
comandada por Artur Bernardes�. Os tenentes chegam a
ocupar a capital paulista por duas semanas. O pesado
bombardeio do governo federal deixa a cidade em
escombros, obrigando dezenas de fam�lias a se refugiar no
interior do estado. Expulsos de S�o Paulo, os rebeldes se
deslocam para o sul do pa�s, e em Foz do Igua�u, no Paran�,
juntam-se aos ga�chos, a� formando a Coluna Miguel Costa-
Prestes � ou Coluna Prestes, como viria a ser conhecida.
Constitu�da por mais de seiscentos homens, a Coluna
embrenhou-se Brasil adentro e enfrentou combates contra
tropas regulares do Ex�rcito nos estados de Mato Grosso,
Goi�s, Maranh�o, Cear�, Piau�, Bahia, Pernambuco, Rio
Grande do Norte, Para�ba e Minas Gerais. Depois de
transcorrer 25 mil quil�metros, encerrou suas atividades em
1926 sem ter sofrido uma �nica derrota � fen�meno que a
inscreveria nos livros de hist�ria como a Coluna Invicta.
Em 1926, ao dar fim � intermin�vel travessia e encerrar a
Coluna em territ�rio boliviano, Prestes ainda n�o havia
aderido ao comunismo. No mesmo ano, na Alemanha, vinte
anos mais nova que o futuro marido, Olga, de dezoito anos,
estava detida na pris�o de Moabit, em Berlim � ela, sim, j�
militante do pc alem�o �, por recusar-se a denunciar o
namorado, o jovem ativista Otto Braun, comunista acusado
de trai��o � p�tria. Dois anos depois, em 1928, j� em
liberdade, ela invadiria de armas na m�o o tribunal de
Moabit, durante uma sess�o judicial, para libertar Otto
Braun.
A argamassa que cimentou Prestes ao comunismo at� o
�ltimo de seus dias n�o se solidificou num rompante. Sua
convers�o � ideologia que sacudiria o s�culo xx, ao contr�rio
do que costumava ocorrer com incont�veis militantes, n�o
foi fruto da paix�o incendi�ria pela expectativa de mudar o
mundo. Deu-se, como era menos comum, pela leitura dos
�speros, dif�ceis comp�ndios escritos por Engels e Marx, que
eram levados a ele na Bol�via � e depois no Uruguai e na
Argentina, pa�ses onde viveria alguns anos de ex�lio � por
Aristides Lobo, Ot�vio Brand�o e pelo mesmo Astrojildo
Pereira que liderara a primeira reuni�o do partido, seis anos
antes, em Niter�i.
Convicto de que o comunismo era o sistema que salvaria
a humanidade da explora��o do homem pelo homem,
Prestes j� se preparava para mudar-se definitivamente com
a m�e e as irm�s para Moscou, em 1929, quando recebeu a
visita de dois antigos camaradas e principais l�deres da
Coluna, o pernambucano Jo�o Alberto e o paulista Siqueira
Campos. Os dois jovens tenentes de pouco mais de trinta
anos desembarcaram em Buenos Aires com uma proposta
aparentemente irrecus�vel.
Comprometidos com o governador ga�cho Get�lio Vargas,
que arrebanhava adeptos para um movimento c�vico-militar
� a chamada Alian�a Liberal � cujo intuito era derrubar o
presidente da Rep�blica, Siqueira e Jo�o Alberto levavam a
Prestes um convite para viajar clandestinamente ao Brasil e
discutir com Vargas sua ades�o � causa. O encontro teria
ocorrido em setembro de 1929, segundo o general e
historiador Nelson Werneck Sodr� (ou em novembro, de
acordo com H�lio Silva e John Foster W. Dulles). Realizada �
meia-noite, a reuni�o s� se concretizou quando Prestes,
relutante quanto aos verdadeiros objetivos de Vargas,
aceitou o convite para o encontro depois de saber que a
maioria dos tenentes revolucion�rios de 1922, de 1924 e da
Coluna Prestes j� estava comprometida com a conspira��o.
Postados frente a frente em Porto Alegre, no Pal�cio Piratini,
sede do governo rio-grandense, Get�lio prop�s ao
comandante da Coluna Invicta algo surpreendente: assumir
o posto de chefe do estado-maior das for�as revolucion�rias
que se organizavam para o golpe � o qual viria a se
converter na Revolu��o de 30.
Revelada ao autor deste livro, a vers�o da professora
Anita Leoc�dia Prestes, filha de Olga e de Prestes, por�m,
diverge dos relatos dos historiadores e brasilianistas.
Segundo ela, Prestes foi designado chefe militar da
Revolu��o de 30 pelos companheiros tenentes, cargo que
recusou: �As duas visitas que Prestes fez a Get�lio, no final
de 1929 e in�cio de 1930, n�o foram a convite de Vargas,
mas a pedido dos companheiros tenentes. Os depoimentos
de Prestes s�o muito claros nesse sentido. Tamb�m n�o h�
declara��es ou escritos de Vargas afirmando que tivesse
convidado Prestes a assumir o comando militar do
movimento de 30�.
A densa literatura que Prestes recebera dos camaradas e
consumira nos tr�s anos decorrentes do fim da Coluna,
por�m, havia produzido uma profunda transforma��o na sua
concep��o de mundo, de futuro pol�tico e de vida. Segundo
seu pr�prio depoimento, Prestes explicitou a Vargas que sua
presen�a em Porto Alegre n�o implicava um apoio � Alian�a.
Ele deixara momentaneamente o ex�lio do outro lado do Rio
da Prata convencido pelos antigos companheiros de que o
objetivo era realizar uma revolu��o profunda, �claramente
de car�ter anti-imperialista e comprometida com os
interesses dos trabalhadores e camponeses�. Como
resposta a suas d�vidas, teria recebido de Get�lio uma
declara��o animadora e espantosa: �Fique tranquilo, voc�
n�o vai se decepcionar comigo�.
H� estudiosos que arriscam o palpite de que, se em algum
momento o Brasil, em sua longa trajet�ria, ro�ou a
possibilidade de caminhar pela trilha socialista, foi
exatamente quando Vargas convidou Prestes para
comandar as tropas da Revolu��o de 30. Tratava-se, afinal,
de um experiente militar que durante quatro anos desafiara
um governo autorit�rio, sob estado de s�tio, sem sofrer
nenhuma derrota. Para a maioria dos brasileiros, era o
Cavaleiro da Esperan�a. E Get�lio sabia que, naquela
reuni�o no Pal�cio Piratini, Prestes j� era um comunista
convicto.
Como o pr�prio capit�o repetiria, para obter sua ades�o o
programa getulista teria que estar expressamente
comprometido com �o confisco sem indeniza��o das terras
dos grandes propriet�rios do campo, que seriam entregues
aos camponeses pobres, e a luta feroz contra o
imperialismo internacional�. Prestes exigia mais: estatiza��o
dos meios e vias de comunica��o, dos servi�os p�blicos,
minas e bancos, e anula��o das d�vidas externas. Sem isso,
a Alian�a Liberal seria �apenas mais um movimento
contrarrevolucion�rio�. Ao se convencer de que se trataria
de mais uma �revolu��o burguesa�, que n�o buliria na
propriedade privada nem nas rela��es entre capital e
trabalho, Prestes retornou a Buenos Aires.
A Revolu��o de 30 eclodiu e triunfou sem a presen�a do
comandante da Coluna � mas, como ele previra, n�o
chegou a seus objetivos. Quando os revolucion�rios
comandados por Get�lio tomaram
o Pal�cio do Catete, no Rio de Janeiro, no dia 3 de outubro
de 1930, o Cavaleiro da Esperan�a j� se encontrava
instalado com a fam�lia na capital da Uni�o das Rep�blicas
Socialistas Sovi�ticas.
Cada dia mais bonita e mais ativa, aos 22 anos Olga fizera
carreira mete�rica como quadro destacado da primeira
na��o comunista do mundo. Sabia atirar, pilotar avi�es,
falsificar documentos. Num de seus campos de treinamento
ouviu com enorme entusiasmo algu�m falar de uma tal
Coluna Invicta e de seu chefe, o capit�o que percorrera
milhares de quil�metros � frente de um ex�rcito guerrilheiro
sem sofrer uma s� derrota num pa�s chamado Brasil,
situado quil�metros a perder de vista da urss, sua p�tria de
ado��o.
Incorporado, por determina��o de Moscou, aos quadros do
pcb, Prestes dedicou seu tempo ao projeto que alimentava
desde as marchas da Coluna: liderar uma revolta comunista
e implantar no Brasil a primeira rep�blica socialista das
Am�ricas. Nesse per�odo o pcb viveria cis�es e rachas entre
trotskistas, stalinistas, obreiristas� N�o era um cacoete
brasileiro. A pr�pria dire��o da iii Internacional, em Moscou,
estava dividida. Georgi Dimitrov, membro do comit�
executivo da Terceira, defendia a pol�tica de uma frente
�nica internacional contra o fascismo, enquanto Dmitri
Manuilski, presidente da organiza��o, propugnava que em
determinados pa�ses Moscou deveria apoiar insurrei��es
armadas e a tomada do poder por for�as populares
controladas por partidos comunistas locais.
Depois de ouvir relatos dos v�rios dirigentes brasileiros
que recebia em seu gabinete da capital sovi�tica, como Lu�s
Carlos Prestes, e sobretudo do secret�rio-geral do pcb,
Antonio Maciel Bonfim, o Miranda, Manuilski foi convencido,
com informa��es exageradas, de que o Brasil estava
preparado para a revolu��o. Foi assim que a Confer�ncia do
Congresso Comunista Latino-Americano, realizada em
Moscou, decidiu que em 1935 seria deflagrado um levante
armado no Brasil sob o comando de Lu�s Carlos Prestes, e
de cuja dire��o fariam parte, entre outros, o ex-deputado
comunista alem�o Arthur Ernst Ewert, o argentino Rodolfo
Ghioldi, o ucraniano Pavel Stuchevski (que se fazia passar
pelo belga L�on-Jules Vall�e) e o norte-americano Victor
Allen Barron.
Aos 26 anos Olga j� havia atingido o mais alto posto que
poderia almejar uma jovem comunista: carregava no peito a
medalha de membro do Presidium da Juventude Comunista
Internacional. E foi nessa ocasi�o, quando os moscovitas
padeciam um inverno glacial, que ela foi convocada � sede
do Komintern (diminutivo alem�o de Kommunistische
Internationale, nome pelo qual tamb�m era conhecida a iii
Internacional), em Moscou, para receber, diretamente de
Dmitri Manuilski, a mais importante � e mais dram�tica �
tarefa de sua carreira a servi�o do comunismo internacional.
Ela fora escolhida para garantir a seguran�a pessoal de Lu�s
Carlos Prestes na sinuosa trajet�ria que ele cumpriria para
retornar clandestinamente ao Brasil e comandar a planejada
revolta comunista. Na opini�o dos dirigentes moscovitas, a
fachada era a de que se tratava de um casal de
portugueses em lua de mel, com passaportes falsos � ele
com o nome de Antonio Vilar e ela, com o de Maria Bergner
Vilar. Disfarces para que ambos chegassem ao Brasil depois
de um zigue-zague de navio, avi�o e autom�vel pela
Europa, Estados Unidos e Am�rica do Sul.
O destino, por�m, n�o coincidiu com os planos de
Manuilski e da iii Internacional. O que era para ser apenas
um casamento falso, montado para ludibriar autoridades
dos pa�ses percorridos pelos dois revolucion�rios,
converteu-se em realidade. Quando desembarcaram no
Brasil, Olga e Prestes, apaixonados, j� viviam de verdade
como marido e mulher.
Mesmo apoiada por uma ampla organiza��o popular que
envolvia civis e militares � a Alian�a Nacional Libertadora,
com predomin�ncia do pcb �, a pretendida revolu��o foi
massacrada pelo governo. A despeito de alguns feitos
heroicos, como a tomada do Batalh�o de Infantaria da Praia
Vermelha, na Urca, no Rio de Janeiro, e o controle total dos
comunistas sobre a cidade de Natal, a capital do Rio Grande
do Norte, a revolu��o foi esmagada em menos de tr�s dias.
Criado para julgar os revoltosos, o Tribunal de Seguran�a
Nacional condenou Prestes a nove anos de pris�o. O
americano Baron foi atirado da janela de um distrito policial
e dado como suicida � crime que levaria o presidente dos
Estados Unidos, Franklin Roosevelt, a destacar um
funcion�rio para acompanhar no Rio de Janeiro o Processo
no 1 do tsn. Mesmo informado do uso de torturas brutais, o
Supremo Tribunal Federal acatou a proposta do chefe de
Pol�cia do Distrito Federal, Filinto M�ller, inimigo jurado de
Prestes, e deportou para a Alemanha nazista a prisioneira
Olga Benario, que al�m de judia estava gr�vida de um beb�
de pai brasileiro � circunst�ncia que, pela lei, garantiria sua
perman�ncia, ainda que presa, em territ�rio brasileiro.
O fruto da uni�o dos dois foi uma menina, Anita Leoc�dia,
nascida em novembro de 1936 numa pris�o nazista e
entregue � av� Leoc�dia Prestes ap�s enorme press�o
internacional. Depois de passar anos realizando trabalho
escravo em campos de concentra��o nazistas, em abril de
1942 Olga foi executada numa c�mara de g�s em Bernburg,
cidade de 35 mil habitantes no nordeste da Alemanha.
O flagelo de Olga e a derrota de 1935 � apelidada de
�Intentona� pelos militares e pela m�quina de propaganda
do governo Vargas � n�o abateram o prest�gio popular do
Partido Comunista. Em 1945, com o fim do Estado Novo
(per�odo ditatorial do governo Vargas que come�ara em
novembro de 1937), o pcb foi legalizado. Anistiado, Prestes
foi escolhido secret�rio-geral da agremia��o. S� ent�o tem
a oportunidade de ver pela primeira vez a filha Anita. Com
as elei��es para a Constituinte de 1946, o Cavaleiro da
Esperan�a elegeu-se deputado federal pelos estados do Rio
Grande do Sul e Pernambuco e pelo Distrito Federal, al�m
de senador pelo df, mandato pelo qual optou e com o qual
liderou a bancada comunista, composta de catorze eleitos
� entre os quais destacavam-se os nomes de Jorge Amado,
Carlos Marighella e Jo�o Amazonas.
Seria apenas um solu�o de liberdade, mais um a que j� se
haviam habituado os comunistas. Em maio de 1947 o
governo cassou o registro do partido e, em decorr�ncia,
anulou os mandatos de todos os eleitos. De novo o Partid�o
experimentaria a clandestinidade que conhecia desde sua
funda��o.
O partido nunca esteve a salvo de crises e cis�es internas.
A mais vis�vel delas ocorreu em 1928, quando cerca de
quarenta militantes, liderados por L�vio Xavier, Aristides
Lobo e M�rio Pedrosa, deixaram o pcb para formar um dos
primeiros n�cleos brasileiros de trotskistas. Dez anos mais
tarde viriam outros militantes, entre os quais Herm�nio
Sacchetta e Hilcar Leite. As disputas pol�ticas n�o
impediram o partido de manter firme e respeitada presen�a
no movimento sindical e na vida pol�tica do pa�s. Muitos de
seus militantes obtiveram mandatos parlamentares filiados
a outros partidos pol�ticos, e o apoio dos comunistas com
frequ�ncia era disputado por candidatos a cargos
majorit�rios, como senadores e governadores de diversos
estados. Alguns comunistas chegaram a ocupar cargos
executivos, como o engenheiro Pel�pidas Silveira, tr�s vezes
eleito prefeito de Recife sob a prote��o da bandeira do
Partido Socialista Brasileiro. Durante a ditadura militar de
1964, o mdb � Movimento Democr�tico Brasileiro �
converteu-se num guarda-chuva pol�tico que abrigou, em
v�rios estados, militantes, candidatos, vereadores e
deputados que eram sabidamente �comunistas de
carteirinha�.
O grande racha do Partid�o nasceria em Moscou, no
encerramento do xx Congresso do pc da urss, quando o
secret�rio-geral Nikita Kruschev passou a ler o documento
cujo vago t�tulo �Sobre o culto � personalidade e as
consequ�ncias� escondia uma bomba. Tratava-se de um
vasto, detalhado e cruel relat�rio contendo duras den�ncias
sobre os erros e crimes cometidos por ordem ou inspira��o
de Josef St�lin, que vencera os nazistas na Segunda Guerra
Mundial e dirigira com m�o de a�o a Uni�o Sovi�tica desde
a morte de L�nin.
As barbaridades reveladas por Kruschev abalaram os
alicerces comunistas em todo o mundo. As den�ncias eram
t�o graves que se chegou a insinuar que o documento era
ap�crifo, redigido pela cia e atribu�do a Moscou. No Brasil,
depois de meses de discuss�o, o racha come�a com a sa�da
de Agildo Barata e de Caio Prado Jr. e culmina com o
surgimento do pcdob. Este romperia definitivamente com a
urss e se alinharia � China maoista, tamb�m rachada com
Moscou ap�s o traumatismo provocado pelo relat�rio.
As duas organiza��es comunistas brasileiras tomaram
rumos diferentes, sobretudo ap�s a ditadura militar que
derrubou o governo constitucional de Jo�o Goulart, em
1964, quando ambas foram colocadas na clandestinidade e
submetidas a atroz repress�o. Aliado � China e depois �
pequenina Alb�nia, o pcdob decidiu enfrentar de peito aberto
a ditadura, montando um foco guerrilheiro em plena selva
amaz�nica, que ficou conhecido como a Guerrilha do
Araguaia. Entre os anos de 1972 e 1975 o pcdob mobilizou
para a regi�o quase uma centena de combatentes.
Esmagados por sucessivas incurs�es de tropas do Ex�rcito,
sobreviveram apenas dezesseis militantes do movimento
guerrilheiro. Passado um ano, em dezembro de 1976,
quando se imaginava que a repress�o pol�tica se restringia
�s pris�es, o Doi-codi realizou um ataque final contra a
dire��o do pcdob, conhecido como o Massacre da Lapa, que
culminou com o assassinato de tr�s dirigentes do partido.
Declaradamente contr�rio � luta armada como
instrumento de derrubada da ditadura, mesmo clandestino
o pcb continuou atuando entre sindicalistas, jornalistas,
estudantes, intelectuais e at� pol�ticos que participavam
abertamente das elei��es sob a prote��o do mdb. Ainda
assim, a oposi��o � guerrilha n�o poupou o Partid�o da m�o
longa da repress�o. Talvez porque a ditadura temesse que,
esmagados os grupos guerrilheiros, o pcb restaria como
�ltimo reduto comunista organizado ap�s o processo de
redemocratiza��o do pa�s, em 1975 o partido foi alvo de
uma brutal razia. Depois de sucessivas pris�es e torturas de
estudantes, l�deres oper�rios e intelectuais, o massacre
findou com o assassinato do jornalista Vladimir Herzog e do
oper�rio Manoel Fiel Filho.
Divididos em duas organiza��es, os comunistas do pcb
chegam aos cem anos com p�fia express�o pol�tica na vida
nacional. Para sobreviver � legisla��o partid�ria, o pcdob
teve que se associar ao min�sculo ppl, Partido P�tria Livre,
novo nome do antigo mr-8, Movimento Revolucion�rio 8 de
Outubro.
O Partid�o come�ou a desmoronar antes mesmo do fim da
urss, em 1989, quando foi derrubado o Muro de Berlim. O
surgimento do chamado eurocomunismo � que a velha
linha dura do pcb ironizava como �neurocomunismo� ou
�euro-oportunismo� � produziu um incontrol�vel processo
de fragmenta��o da organiza��o. Quadros e dirigentes da
mais alta qualifica��o foram, aos poucos, aderindo �
desagrega��o que grassava entre os pcs europeus.
A diverg�ncia veio a p�blico em mar�o de 1979, quando
Prestes divulgou a �spera �Carta aos Comunistas�,
criticando a perda de influ�ncia do partido no sindicalismo
oper�rio, no movimento estudantil e na luta pela
redemocratiza��o do pa�s. A resposta foi igualmente dura:
ap�s meio s�culo � frente do pcb, Prestes foi destitu�do do
posto de secret�rio-geral do partido, que estava sob sua
dire��o desde 1934, sendo substitu�do por Giocondo Dias.
Entregue �s m�os do baixo clero comunista, dirigentes de
pouca ou nenhuma express�o hist�rica, em 1992 o pcb
passou a se chamar pps � Partido Popular Socialista.
Eliminou seu s�mbolo hist�rico, a foice e o martelo, e em
mar�o de 2019 alterou o nome para o an�dino Cidadania,
agremia��o com tend�ncias neoliberais que nada tinham a
ver com o Partid�o. Depois de uma longa batalha judicial
liderada em seu in�cio, entre outros, pelo celebrado
arquiteto e comunista hist�rico Oscar Niemeyer, o Partido
Comunista Brasileiro conseguiu manter seu registro
definitivo, com o nome original, no Tribunal Superior
Eleitoral. A duras penas o pcb logrou se manter vivo e iniciou
o que chama de �processo de reconstru��o revolucion�ria�,
com ampla autocr�tica dos seus erros e recupera��o dos
princ�pios do marxismo-leninismo.
A partir da crise de 2013, que levou ao golpe contra a
presidente Dilma Rousseff, o partido concentrou seu
trabalho de reconstru��o entre oper�rios, a juventude e
sobretudo o movimento estudantil. Em vez de sepultar o
que parecia uma ideologia coberta pelo p� da hist�ria, o
desastre pol�tico produzido pelos governos Temer/Bolsonaro
acabou funcionando como uma inje��o de est�mulo � luta
de uma nova gera��o, nascida sob a demoniza��o das
concep��es comunistas.
Neste ano do centen�rio do Partid�o, se aqui estivesse,
Olga Benario n�o testemunharia a realidade com que
sonhou, a de um Brasil revolucion�rio � ao contr�rio. Mas
talvez se confortasse ao ver o renascimento de jovens
mirando o horizonte pelo qual ela deu a vida: a constru��o
de uma sociedade socialista.
Fernando Morais
S�o Paulo, mar�o de 2022
1. Olga Benario aos dezesseis anos: militante do grupo comunista
Schwabing, de Munique, sua cidade natal.
2. Olga num parque de Berlim aos dezessete anos. Nessa �poca ela
inicia sua fulminante carreira na Juventude Comunista alem�.
3. Em setembro de 1926 Olga � presa pela primeira vez. A pol�cia
suspeitava que ela, como o namorado, Otto Braun, estivesse
envolvida num processo de �alta trai��o�. Ao p� da ordem de pris�o,
a exig�ncia das autoridades: manter a presa em regime de
incomunicabilidade.
4. Colocada em liberdade, Olga pede autoriza��o ao juiz Vogt para
fazer visitas ao namorado, Braun, mantido preso, e para levar-lhe
alimenta��o especial, invocando sua condi��o de preso pol�tico. No
despacho do juiz, um sintoma do endurecimento pol�tico: nada de
visitas. E alimentos vindos de fora, s� no Natal.
5. Em carro��es puxados por cavalos, militantes da Juventude Comunista de
Berlim-Neuk�lln saem para manifesta��es de rua. No alto, Olga Benario.
6. Minutos antes de invadir a pris�o de Moabit para libertar Braun, os
militantes da Juventude Comunista posam para um fot�grafo de rua.
Identificados: (1) Rudi K�nig, (2) Olga, (3) Margot Ring, (4) Klara Seleheim,
(5) Erik Bombach, (6) Erich Jazosch.
7. Na manchete de primeira p�gina do Berliner Zeitung am Mittag, a
not�cia do assalto a Moabit: uma �cena de faroeste�.
8. Afrontando a pol�cia, militantes da Frente Vermelha da Juventude
Comunista (acima) festejam na Cervejaria M�ller a liberta��o de Braun.
Meses depois, a pol�cia anunciava (abaixo) a retirada da recompensa de 5
mil marcos a quem desse informa��es sobre Olga e Otto: eles tinham fugido
para Moscou.
9. Wilhelm M�ller, a mulher e a filha, os donos da cervejaria que
funcionava como ponto de encontro e de assembleias pol�ticas da
Juventude Comunista de Berlim-Neuk�lln.
10. Fotografias feitas em Moscou, onde Olga viveria exilada por seis
anos...
11. ... e de onde sairia algumas vezes para realizar a��es pol�ticas na
Europa Ocidental.
12. Olga com uma amiga num balne�rio p�blico nas imedia��es de
Moscou.
13. Olga em Moscou, j� como dirigente do kim, a Juventude Comunista
Internacional.
14. Em ocasi�es especiais, Olga vestia a farda do Ex�rcito Vermelho,
que recebera durante seus treinamentos em academias militares.
15. Olga (assinalada) durante o treinamento militar que recebeu em um
regimento de cavalaria do Ex�rcito Vermelho.
16. O comando da Coluna Prestes no ex�lio em Santo Coraz�n, Bol�via, no
come�o de 1927: Cordeiro de Farias, Prestes e Djalma Dutra.
17. Prestes e Louren�o Moreira Lima (assinalados) tentam obter trabalho
para a tropa exilada na cidade de La Gaiba, Bol�via.
18. Outubro de 1931: Prestes deixa Montevid�u com destino a
Moscou.
19. Esta not�cia, publicada pelo di�rio Pravda, de Moscou, em agosto de
1935, anunciava que Prestes, rec�m-eleito para a dire��o do Comintern,
encontrava-se na capital sovi�tica. Mas era apenas uma forma de confundir
os servi�os de intelig�ncia brasileiro e ingl�s. O capit�o j� estava no Rio
desde o come�o do ano, preparando a insurrei��o.
20. Prestes e Olga saem de Moscou e atravessam o mundo com
nomes falsos. Em Buenos Aires recebem um visto de entrada no
Brasil e embarcam em Montevid�u no hidroavi�o Santos Dumont, da
empresa Lat�co�re, com destino a Praia Grande, em S�o Paulo.
21. O experiente dirigente do Comintern Arthur Ewert e sua mulher, Elise,
saem de Xangai, na China, e com falsos passaportes norte-americanos
juntam-se ao grupo que Moscou enviara ao Brasil para auxiliar Lu�s Carlos
Prestes na organiza��o da revolta comunista de 27 de novembro de 1935.
22. O argentino Rodolfo Ghioldi.
23. Na v�spera da revolta, Prestes d� um salvo-conduto para Harry
Berger.
24. At� a revolta do Rio de Janeiro, a ficha de Ewert no fbi era pobre,
e continha apenas um antigo of�cio assinado por seu diretor, J. Edgar
Hoover, datado de 1930, que colocava em d�vida at� o fato de que o
comunista alem�o tivesse estado nos Estados Unidos em 1927.
25. No come�o do dia 27 de novembro a revolta j� estava controlada
pelo governo, mas o jornal A Manh� falava em uma �insurrei��o
nacional� que n�o houve.
26. A fachada do 3o Regimento de Infantaria, tomado de madrugada
pelos rebeldes e semidestru�do pelas for�as do governo.
27. O secret�rio de Estado dos Estados Unidos, Cordel Hull, telegrafa � m�e
de Victor Barron (a seguir) para dizer que seu filho se suicidara no Rio,
�saltando de um segundo andar�.
28. Num dos quartos da casa de Olga e Prestes na rua Bar�o da Torre, em
Ipanema, o alem�o Gruber instalou um sistema de explosivos para proteger
documentos da a��o da pol�cia. O fracasso do alarme levantou as primeiras
suspeitas sobre Gruber.
29. A revolta fracassou, come�a a repress�o. Os militares rebeldes
s�o levados �s centenas para a pris�o da ilha das Flores.
30. Armadas de pistolas, metralhadoras e fuzis, as tropas da Pol�cia
Especial, os �cabe�as de tomate�, varrem as ruas do Rio.
31. De pijama, o capit�o Agildo Barata, que tomara o 3o ri, � levado a depor
por policiais militares.
32. Cercado de soldados da Pol�cia Especial, Prestes � levado preso: a
ca�ada de Filinto M�ller chega ao fim.
33. O passaporte falso, apreendido ap�s a pris�o: nele, Prestes e Olga s�o
Ant�nio e Maria.
34. Levada por policiais para um depoimento, Olga anuncia aos
rep�rteres que espera um filho de Prestes: �O governo vai cometer
uma injusti�a contra uma mulher gr�vida�.
35. Elvira Col�nio, a Garota, morta por ordem da dire��o do partido, por
suspeita de trai��o, e seu marido, o Miranda, que passaria da condi��o de
dirigente comunista � de aliado da pol�cia.
36. O quarto de Olga e Prestes na casa da rua Hon�rio, onde a pol�cia os
prenderia no come�o de mar�o de 1936.
37. Os rebeldes na pris�o. Da esquerda para a direita, sentados na primeira
fila: S�crates Gon�alves, �lvaro de Souza, Benedito Carvalho; segunda fila:
Pedroso, Agliberto Vieira e Gutman. Em p�: Aires, David, Ivan Ribeiro, Leivas
Otero, Picasso, Rodolfo Ghioldi, Agildo Barata, Moraes Rego e Ilvo Meirelles.
38. Filinto M�ller (de gravata-borboleta) vasculha os documentos
encontrados com Olga e Prestes na casa da rua Hon�rio.
39. Olga assina como Maria Prestes seu �ltimo documento antes de ser
deportada.
40. Prestes � interrogado na Pol�cia Especial, no morro de Santo Ant�nio.
41. Atrav�s da embaixada do Brasil em Londres, o governo ingl�s pede por
Gruber.
42. Em 1940, depois de ter sido preso e libertado no Brasil, Gruber � citado
pela embaixada americana no Rio por ter recebido 40 mil d�lares vindos
dos Estados Unidos.
43. Em of�cio ao Itamaraty, o embaixador do Brasil em Berlim transmite
informa��es da Gestapo: a mulher presa com Prestes � Olga Benario.
44. O m�dico da pris�o nazista de Barnimstrasse assina o atestado m�dico
de Anita ao entreg�-la � av�.
45. Nos muros de Paris (� esquerda), cartazes denunciavam os governos de
Hitler e Get�lio Vargas. A campanha dirigida por dona Leoc�dia (� direita),
m�e de Prestes, pela liberta��o de Anita e Olga, mobilizou grupos em toda a
Europa.
46. A solit�ria em que Olga ficou presa no campo de concentra��o de
Lichtenburg: porta de seguran�a, cama de cimento e grades na
janela.
47. Nas p�ginas anteriores, os t�neis subterr�neos de Lichtenburg que
davam acesso �s galerias das celas solit�rias.
48.
Planta do campo de concentra��o de mulheres de Ravensbr�ck.
1. Pr�dio de celas
2. Comando militar
3. Blocos das mulheres
4. Blocos dos homens
5. Blocos das crian�as
6 e 7. Almoxarifados da ss
8 e 9. F�bricas da Siemens
10. F�brica de armamentos
11. Arsenal da ss
12. Alojamento das tropas ss
13. C�mara de g�s (ap�s 1943)
14. Cremat�rio (ap�s 1943)
49. Ficha de transporte de Olga, levada de Ravensbr�ck para depor
em Berlim. No alto, escrita � m�o, a advert�ncia mortal: �judia�.
50. P�gina do atlas feito por Olga para explicar a guerra �s �judias
antissociais�.
51. Capa e �ndice do atlas: para circular clandestinamente, ele tinha as
dimens�es de um ma�o de cigarros.
52. Em 1941, L�gia e dona Leoc�dia enviam a Olga, presa em
Ravensbr�ck, uma fotografia de Anita, que vivia com a av� e a tia no
M�xico.
53. Vista geral do campo de concentra��o de mulheres de Ravensbr�ck.
54. Judias, comunistas e �antissociais� em trabalho for�ado no campo.
55. Himmler, o comandante supremo da ss, visita Ravensbr�ck. Horas
depois come�avam as sess�es de castigos.
56. O Pr�gelbock, instrumento de tortura utilizado pelos nazistas para
castigar as presas de Ravensbr�ck.
57. O hospital psiqui�trico de Bernburg, transformado em campo de
exterm�nio nazista.
58. Irmfried Eberl, o m�dico destacado pela ss para dirigir o campo de
exterm�nio de Bernburg.
59. A enfermeira K�the Hackbarth, que conduziu Olga at� a c�mara
de g�s.
60. Interior da c�mara de g�s onde Olga foi executada, no come�o de 1942,
em Bernburg.
61. Rio de Janeiro, 1945: Prestes � um dos primeiros presos libertados
pela anistia que se seguiu � derrota do nazifascismo na Europa.
62. Libertado pela anistia, Arthur Ewert � recebido na Alemanha por
sua irm� Minna e por Wilhelm Pieck (em p�), que seria o primeiro
presidente da rda. As torturas no Brasil o haviam deixado
completamente louco.
63. Retrato de Olga feito por Di Cavalcanti para a campanha de
finan�as do Partido Comunista em 1945.
64. S�o Paulo, 15 de julho de 1945: Prestes acena para a multid�o ao
chegar ao com�cio no est�dio do Pacaembu. � noite, ao embarcar de volta
ao Rio, ele recebe a not�cia: Olga est� morta.
Cr�ditos
das
imagens
Capa e primeira imagem: Institut fur Marxismus-
Leninismus � Zentrales Parteiarchiv (Berlim, Rep�blica
Democr�tica Alem�)
caderno 1
1, 2, 6, 7, 8 (acima), 9-11, 14, 18: Institut fur Marxismus-
Leninismus � Zentrales Parteiarchiv (Berlim, Rep�blica
Democr�tica Alem�)
4, 8 (abaixo): Dokumentationszentrum der ddr (Berlim,
Rep�blica Democr�tica Alem�)
5, 12, 15: Nationale Mahn- und Gedenkst�tte
(Ravensbr�ck, Rep�blica Democr�tica Alem�)
16: Centro de Pesquisa e Documenta��o de Hist�ria
Contempor�nea do Brasil � Funda��o Get�lio Vargas/
Arquivo Pedro Ernesto Batista
17: Centro de Pesquisa e Documenta��o de Hist�ria
Contempor�nea do Brasil � Funda��o Get�lio Vargas/
Arquivo Osvaldo Cordeiro de Farias
19: A Noite
20 (abaixo): Mus�e Air France
20 (acima), 21 (� direita), 22, 23, 28, 33, 35 (� direita),
39: Superior Tribunal Militar (Bras�lia, df)
21 (� esquerda), 32, 37: arg
24, 27, 42: National Archives (Washington, Estados
Unidos)
25, 26, 29-31, 34, 36, 38, 40: Iconographia
41: Arquivo Nacional
43: Arquivo Hist�rico do Minist�rio das Rela��es Exteriores
do Brasil (Rio de Janeiro, rj)
44, 45 (� direita), 47: Institut fur Marxismus-Leninismus �
Zentrales Parteiarchiv (Berlim, Rep�blica Democr�tica
Alem�)
45 (� esquerda): Iconographia
46, 48, 50: Nationale Mahn- und Gedenkst�tte
(Ravensbr�ck, Rep�blica Democr�tica Alem�)
49: Dokumentationszentrum der ddr (Berlim, Rep�blica
Democr�tica Alem�)
52-54, 62: Institut fur Marxismus-Leninismus � Zentrales
Parteiarchiv (Berlim, Rep�blica Democr�tica Alem�)
55, 56: Nationale Mahn- und Gedenkst�tte (Ravensbr�ck,
Rep�blica Democr�tica Alem�)
57-60: Bernburg Stadtarchiv (Bernburg, Rep�blica
Democr�tica Alem�)
61, 63, 64: Iconographia
bob wolfenson
fernando morais � jornalista e nasceu em 1946. Mineiro
de Mariana, trabalhou no Jornal da Tarde, na Veja e em
v�rias outras publica��es da imprensa brasileira.
Recebeu tr�s vezes o pr�mio Esso e quatro vezes o
pr�mio Abril de jornalismo. Foi deputado estadual e
secret�rio da Cultura e da Educa��o do estado de S�o
Paulo. Dele a Companhia das Letras publicou tamb�m A
ilha; Chat�: o rei do Brasil; Cora��es sujos: a hist�ria da
Shindo Renmei; Cem quilos de ouro e Os �ltimos
soldados da Guerra Fria.
Copyright � 1984, 1993, 1994 by Fernando Morais
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogr�fico da L�ngua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa e projeto gr�fico
H�lio de Almeida
Prepara��o
Stella Weiss
Revis�o
Renato Potenza Rodrigues
Diana Passy
Eduardo Russo
Andrea Souzedo
Atualiza��o ortogr�fica
Verba Editorial
Vers�o digital
Rafael Alt
ISBN
978-65-5782-667-6
Todos os direitos desta edi��o reservados �
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Lula, volume 1
Morais, Fernando
9786557825860
416 p�ginas
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A primeira � e aguardada � biografia de vulto de
Luiz In�cio Lula da Silva.
Para al�m de ju�zos ou paix�es, Lula est� entre as maiores
figuras pol�ticas da hist�ria brasileira. �nico presidente do
pa�s com origens oper�rias, e campo magn�tico de um
partido profundamente original em suas ra�zes, exerceu o
poder carism�tico e a influ�ncia de modo mais duradouro
que qualquer outro homem p�blico no per�odo republicano,
salvo talvez Get�lio Vargas � com quem tamb�m
compartilha a virul�ncia dos advers�rios.
Desde 2011, Fernando Morais ganhou acesso direto, franco
e frequente a Lula. A essas dezenas de horas de
depoimentos, somou o faro de rep�rter e a prosa cativante
para compor projeto biogr�fico que traz um painel do
personagem em toda sua grandeza e complexidade.
Em narrativa que faz uso de recuos e avan�os cronol�gicos
para manter um ritmo eletrizante, neste primeiro volume
Morais vai da inf�ncia de Lula at� o anulamento de suas
condena��es, em 2021 � passando pelo novo sindicalismo,
as greves do ABC, a funda��o do PT e a primeira campanha
eleitoral.
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Dante
Barbero, Alessandro
9786557825693
432 p�ginas
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A biografia definitiva de Dante Alighieri, escrita por
um dos mais importantes historiadores italianos.
Nascido em Floren�a no s�culo XIII, Dante Alighieri � uma
das figuras mais importantes � e enigm�ticas � da
literatura ocidental. Pol�tico, escritor, exilado: foi um
intelectual de diversas facetas que n�o s� moldou a l�ngua
italiana como tamb�m a forma cl�ssica como muitos
entendem os conceitos de para�so, purgat�rio e inferno.
Desde sua rela��o com a fam�lia, passando por sua ampla
forma��o intelectual at� a composi��o de sua obra-prima, a
viagem alucinante conhecida como Divina com�dia, Barbero
lan�a luz sobre cap�tulos essenciais da vida do escritor �
mostrando-o como g�nio absoluto, mas tamb�m como um
homem do seu tempo.
Por meio de exaustiva pesquisa e com uma habilidade
narrativa �mpar, Alessandro Barbero reconstitui a �poca e
vida do poeta, preenchendo lacunas h� muito sentidas.
"Um guia essencial para a vida de Dante, poeta que se
compara a Homero e Shakespeare." � The Times
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Poesia completa de Ricardo Reis
Pessoa, Fernando
9786557826867
224 p�ginas
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Ao aliar estilo cl�ssico, rigor formal e extrema
consci�ncia do momento presente, Ricardo Reis se
destaca como um dos heter�nimos mais fascinantes
de Fernando Pessoa.
"T�o cedo passa tudo quanto passa!/ Morre t�o jovem ante
os deuses quanto/ Morre! Tudo � t�o pouco!/ Nada se sabe,
tudo se imagina/ Circunda-te de rosas, ama, bebe/ E cala. O
mais � nada", discorre Ricardo Reis na ode n�mero 66.
Marcada por refer�ncias mitol�gicas, concis�o verbal,
dic��o rebuscada e disciplina estoica, sua poesia � capaz de
engendrar profundas reflex�es sobre a efemeridade da
condi��o humana.
A presente edi��o re�ne todas as odes atribu�das a um dos
heter�nimos mais c�lebres de Fernando Pessoa, produzidas
entre 1914 e 1935. O volume conta com estabelecimento
de texto da especialista Manuela Parreira da Silva e posf�cio
in�dito do poeta Paulo Henriques Britto, que joga luz sobre
aspectos formais e simb�licos de uma das obras mais
admir�veis do s�culo XX.
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O amanh� n�o est� � venda
Krenak, Ailton
9788554517328
12 p�ginas
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As reflex�es de um de nossos maiores pensadores
ind�genas sobre a pandemia que parou o mundo.
H� v�rios s�culos que os povos ind�genas do Brasil
enfrentam bravamente amea�as que podem lev�-los �
aniquila��o total e, diante de condi��es extremamente
adversas, reinventam seu cotidiano e suas comunidades.
Quando a pandemia da Covid-19 obriga o mundo a
reconsiderar seu estilo de vida, o pensamento de Ailton
Krenak emerge com lucidez e pertin�ncia ainda mais
impactantes.
Em p�ginas de impressionante for�a e beleza, Krenak
questiona a ideia de "volta � normalidade", uma
"normalidade" em que a humanidade quer se divorciar da
natureza, devastar o planeta e cavar um fosso gigantesco
de desigualdade entre povos e sociedades. Depois da
terr�vel experi�ncia pela qual o mundo est� passando, ser�
preciso trabalhar para que haja mudan�as profundas e
significativas no modo como vivemos.
"Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As
pessoas acham que basta mudar o calend�rio. Quem est�
apenas adiando compromisso, como se tudo fosse voltar ao
normal, est� vivendo no passado [�]. Temos de parar de ser
convencidos. N�o sabemos se estaremos vivos amanh�.
Temos de parar de vender o amanh�."
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Hist�ria do Brasil em 25 mapas
Dor�, Andr�a
9786557826768
464 p�ginas
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De um planisf�rio de 1502 a softwares que
acompanham via sat�lite o desmatamento na
Amaz�nia no s�culo XXI, das organiza��es de
comunidades quilombolas ao Plano Piloto, Hist�ria do
Brasil em 25 mapas traz um estudo in�dito, feito por
pesquisadores e pesquisadoras das mais diferentes
�reas, para pensar o Brasil a partir de sua
cartografia.
Segundo Andr�a Dor� e Junia Furtado, organizadoras deste
livro, "os mapas n�o falam s� sobre o que eles representam.
Por vezes, dizem mais sobre o que calam, e seus sil�ncios
se tornam eloquentes". Objetos de cuidadosa investiga��o
para revelar seus significados � por vezes bem claros;
outras, quase ocultos �, nenhum dos componentes de um
mapa � escolhido por acaso.
Am�rica portuguesa, Brasil holand�s, Companhia de Jesus,
contrabando, revoltas rurais, povos origin�rios, imigra��o,
epidemias e ditadura � estes s�o alguns dos grandes temas
abordados no volume. Embora organizados em ordem
cronol�gica, come�ando com o cl�ssico Planisf�rio de
Cantino � reproduzido em cores em um caderno de
imagens com os principais mapas do volume �, os cap�tulos
deste livro n�o precisam ser lidos em sequ�ncia, assim
como a hist�ria do Brasil n�o deve ser lida de forma linear.
Al�m dos 25 mapas em destaque � ponto de partida para
cada an�lise aqui retratada �, s�o recuperadas cartas e
outros elementos que contribuem para o di�logo e o
entendimento do assunto abordado.
Nesta incontorn�vel colet�nea sobre a cartografia do Brasil,
s�o apresentados atlas, cartas de afluentes, cartazes e
mapas que registram o passado do pa�s para contar aos
leitores uma nova hist�ria a partir de detalhes � ou da
aus�ncia destes.
Com textos de: Andr�a Dor� (Org.), Andr� Reyes Novaes,
Artur Barcelos, Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, Camila
Loureiro Dias, Carmem M. Rodrigues, Carolina Mart�nez,
Daniela Marzola Fialho, Daniel de Souza Le�o Vieira, Denise
Moura, Edilene Toledo, Federico Ferretti, Heloisa Murgel
Starling, Iris Kantor, Jacqueline Hermann, Jacques
Leenhardt, J�rn Seemann, Junia Furtado (Org.), Laurent
Vidal, Lorelai Kury, Maria de F�tima Costa, Maria do Carmo
Andrade Gomes, Regina Horta Duarte e Tiago Bonato.
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