domingo, 19 de janeiro de 2025 By: Fred

{clube-do-e-livro} LANÇAMENTO: ROMANCE DA PEDRA DO REINO - ARIANO SUASSUNA - FORMATOS : PDF E TXT

Copyright � 2017 Ilumiara Ariano Suassuna
Direitos de edi��o da obra em l�ngua portuguesa no Brasil adquiridos
pela EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPA��ES S.A. Todos os direitos
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Ilustra��es de capa e miolo: Ariano Suassuna
CIP-BRASIL. CATALOGA��O NA PUBLICA��O
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S933r
Suassuna, Ariano, 1927-2014
Romance d'A pedra do reino e o pr�ncipe do sangue do vai-evolta
[recurso eletr�nico] / Ariana Suassuna. - 17. ed. - Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 2017.
recurso digital
Formato: ebook
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN: 9788520941416 (recurso eletr�nico)
1. Romance brasileiro. 2. Livros eletr�nicos. I. T�tulo.

17-42049
CDD: 869.93
CDU: 821.134.3(81)-3

Em mem�ria de
JO�O SUASSUNA,
JOS� DE ALENCAR,
JESU�NO BRILHANTE,
SYLVIO ROMERO,
ANT�NIO CONSELHEIRO,
EUCLYDES DA CUNHA,
LEANDRO GOMES DE BARROS,
JO�O DUARTE DANTAS,
HOMERO TORRES VILLAR,
JOS� PEREIRA LIMA,
ALFREDO DANTAS VILLAR,
JOS� LINS DO REGO E
MANUEL DANTAS VILLAR,
Santos, poetas, m�rtires, profetas e guerreiros do meu mundo
m�tico do Sert�o,

oferece,
dedica
e consagra
ARIANO SUASSUNA

EP�GRAFES
�Guardai, Padre, esta Espada, porque um dia me hei de valer dela
com os Mouros, metendo o Reino pela �frica adentro!�
DOM SEBASTI�O I � ou DOM SEBASTI�O, O DESEJADO �, Rei
de Portugal, do Brasil e do Sert�o, 1578.
�Quem n�o sabe que o digno Pr�ncipe, o Senhor Dom Pedro III,
tem poder legitimamente constitu�do por Deus para governar o
Brasil? Das ondas do mar Dom Sebasti�o sair� com todo o seu
ex�rcito. Tira a todos no io da Espada deste papel da Rep�blica e
o sangue h� de ir at� a junta grossa.�
DOM ANT�NIO CONSELHEIRO, profeta e regente do Imp�rio
do Belo-Monte de Canudos, Sert�o da Bahia, 1897.
�Soldados de todo o ex�rcito do Imp�rio! Lembrai-vos das
fogueiras do Sert�o do Bonito! Aqui me tendes: quem defende o
Brasil n�o morre! Com esta Bandeira em frente do campo da
honra destruiremos os nossos inimigos e, no maior dos combates,
gritaremos: Viva a Independ�ncia do Brasil!�
DOM PEDRO I, Imperador do Brasil e Rei de Portugal,
1822.

�Passa o munic�pio de Princesa a constituir, com seus limites
atuais, um Territ�rio Livre, que ter� a denomina��o de Territ�rio
de Princesa. Cidad�os de Princesa aguerrida! Celebremos, com
for�a e paix�o, a beleza invulgar desta Lida e a bravura sem-par
do Sert�o!�
DOM JOS� PEREIRA � ou DOM JOS� I, O INVENC�VEL �, Rei
Guerrilheiro de Princesa, Sert�o da Para�ba, 1930.
�Est�j�o certos que a Republica se acaba breve. � princ�pio de
espinhos. Entrando a Monarquia, ser�o formados novos
Batalh�es, pois por serem os Batalh�es feitos de canalhas � que
tem chegado a tal ponto. O Prinspe � o verdadeiro dono do Brasil.
Quem for republicano mude-se para os Estados-Unidos!�
De uma carta encontrada no bornal de balas de E. P.
ALMEIDA, guerrilheiro do Imp�rio de Canudos, Sert�o da
Bahia, 1897.
�Dom Sebasti�o est� muito desgostoso e triste com seu Povo,
porque o perseguem, n�o regando o Campo Encantado e n�o
lavando as duas torres da Catedral de seu Reino com o sangue
necess�rio para quebrar de uma vez este cruel Encantamento!�
DOM JO�O FERREIRA-QUADERNA � ou DOM JO�O II, O
EXECR�VEL �, Rei da Pedra Bonita, Sert�o do Paje�,
Pernambuco-Para�ba, 1838.

SUM�RIO
A Pedra do Reino e A Ilumiara
Carlos Newton J�nior
Um romance picaresco?
Rachel de Queiroz
PREL�DIO - A Pedra do Reino
Folheto I
Pequeno Cantar Acad�mico a Modo de Introdu��o
Folheto II
O Caso da Estranha Cavalgada
Folheto III
A Aventura da Emboscada Sertaneja
Folheto IV
O Caso do Fazendeiro Degolado
Folheto V
Primeira Not�cia dos Quadernas e da Pedra do Reino
Folheto VI
O Primeiro Imp�rio
Folheto VII
O Segundo Imp�rio

Folheto VIII
O Terceiro Imp�rio
Folheto IX
O Quarto Imp�rio
Folheto X
O Quinto Imp�rio
Folheto XI
A Aventura de Rosa e de La Condessa
Folheto XII
O Reino da Poesia
Folheto XIII
O Caso da Cavalhada
Folheto XIV
O Caso do Castelo Sertanejo
Folheto XV
O Sonho do Castelo Verdadeiro
Folheto XVI
A Viagem
Folheto XVII
A Primeira Ca�ada Aventurosa
Folheto XVIII
A Segunda Ca�ada Aventurosa
Folheto XIX
O Caso da Coroa Extraviada

Folheto XX
A Terceira Ca�ada Aventurosa
Folheto XXI
As Pedras do Reino
Folheto XXII
A Sagra��o do Quinto Imp�rio
CHAMADA - Os Emparedados
Folheto XXIII
Cr�nica dos Garcia-Barrettos
Folheto XXIV
O Caso do Fil�sofo Sertanejo
Folheto XXV
O Fidalgo dos Engenhos
Folheto XXVI
O Caso dos Tr�s Emparedados
Folheto XXVII
A Academia e o G�nio Brasileiro Desconhecido
Folheto XXVIII
A Sess�o a Cavalo e o G�nio da Ra�a
Folheto XXIX
O G�nio M�ximo da Humanidade
Folheto XXX

A Filosoia do Penetral
Folheto XXXI
O Romance do Castelo
Folheto XXXII
A Tr�gica Desaventura do Rei Zumbi dos Palmares
Folheto XXXIII
O Estranho Caso do Cavaleiro Diab�lico
Folheto XXXIV
Mar�tima Odisseia de um Fidalgo Brasileiro
Folheto XXXV
A Tr�gica Desaventura de Dom Sebasti�o, Rei de Portugal e
do Brasil
Folheto XXXVI
O G�nio da Ra�a e o Cantador da Borborema
GALOPE - Os Tr�s Irm�os Sertanejos
Folheto XXXVII
A Teia do Meu Processo
Folheto XXXVIII
O Caso da Cabe�ada Involunt�ria
Folheto XXXIX
O Cord�o Azul e o Cord�o Encarnado
Folheto XL
Cantar dos Nossos Cavalos

Folheto XLI
As Armas e os Bar�es Assinalados
Folheto XLII
O Duelo
Folheto XLIII
O Almo�o do Condenado
Folheto XLIV
A Visagem da Mo�a Caetana
Folheto XLV
As Desventuras de um Corno Desambicioso
Folheto XLVI
O Reino da Pedra Fina
Folheto XLVII
A Aventura dos Cachorros Amaldi�oados
Folheto XLVIII
A Coniss�o da Possessa
Folheto XLIX
A Cadeia
Folheto L
O Inqu�rito
Folheto LI
O Crime Indecifr�vel
Folheto LII
Os Tr�s Irm�os Sertanejos

Folheto LIII
Meus Doze Pares de Fran�a
Folheto LIV
A Parada dos Fidalgos Sertanejos
Folheto LV
De Novo a Cavalgada
Folheto LVI
A Visagem da Besta Bruzac�
Folheto LVII
Invas�o e Tomada da Vila
Folheto LVIII
A Aventura da On�a Mijadeira
Folheto LIX
O Grande Pretendente
Folheto LX
A Furna Misteriosa
Folheto LXI
O Caso do Cego Teol�gico
Folheto LXII
O Atentado Misterioso
Folheto LXIII
O Encontro de Dois Irm�os
TOCATA - Os Doidos

Folheto LXIV
A Cachorra Cantadeira e o Anel Misterioso
Folheto LXV
De Novo a Pedra do Reino
Folheto LXVI
A Filha Noiva do Pai, ou Amor, Culpa e Perd�o
Folheto LXVII
O Emiss�rio do Azul e as Juras de Castidade
Folheto LXVIII
O Caso do Cachorro Malcomportado
Folheto LXIX
A Estranha Aventura do Cavalo Concertante
Folheto LXX
O Carneiro Cabeludo
Folheto LXXI
O Caso do Jaguar Sarnento
Folheto LXXII
O Almo�o do Profeta
Folheto LXXIII
Cavalhadas de S�o Jo�o na Judeia
Folheto LXXIV
A Astrosa Desaventura dos Gavi�es Cegadores
Folheto LXXV
O Ajudante de Profeta

FUGA - A Demanda do Sangral
Folheto LXXVI
A Gruta Sumeriana do Deserto Sertanejo
Folheto LXXVII
Cantar do Fidalgo Pobre
Folheto LXXVIII
A Cegueira Epopeica
Folheto LXXIX
O Emiss�rio do Cord�o Encarnado
Folheto LXXX
O Roteiro do Tesouro
Folheto LXXXI
A Cantiga da Velha do Badalo
Folheto LXXXII
A Demanda do Sangral
Folheto LXXXIII
O Vinho da Pedra do Reino
Folheto LXXXIV
O Enviado do Divino
Folheto LXXXV
A Sagra��o do G�nio Brasileiro Desconhecido
POSF�CIO

A Pedra do Reino
Maximiano Campos
Cronologia de Ariano Suassuna

O
A PEDRA DO REINO E A ILUMIARA
Carlos Newton J�nior
Romance d�A Pedra do Reino e o Pr�ncipe do Sangue do Vai-e-
Volta, ou simplesmente A Pedra do Reino, como � mais
conhecido, foi escrito por Ariano Suassuna entre julho de 1958 e
outubro de 1970. A complexidade deste romance, com v�rios
personagens e um grande rol de acontecimentos hist�ricos, por
sua vez entremeados ao longo de uma narrativa extensa e n�o
linear, aqui e ali interrompida por interpola��es que retardam a
conclus�o de cenas e epis�dios, j� bastaria para justiicar o
dilatado tempo de sua escritura. Manuscritos preservados no
acervo do autor atestam a intensidade e o rigor do minucioso
trabalho, desde o registro de notas e cita��es � caracteriza��o das
personagens, passando pelas muitas altera��es na constru��o da
trama e na ordena��o dos cap�tulos, chamados de �folhetos� em
alus�o � literatura de cordel. Mas � preciso lembrar que Suassuna,
ao longo dos doze anos em que escreveu A Pedra do Reino,
dedicou-se tamb�m a outras obras. Duas das mais importantes
pe�as da sua dramaturgia � A Pena e a Lei, de 1959, e Farsa da
Boa Pregui�a, de 1960 � foram escritas em paralelo � escritura
do romance, al�m de um outro trabalho em prosa, de menor
complexidade e dimens�o, O Sedutor do Sert�o, de 1966.
Lan�ado no segundo semestre de 1971 (a dedicat�ria no
volume que pertenceu ao editor Jos� Olympio, escrita no Rio de
Janeiro, data de 1� de setembro), o romance foi logo considerado
uma obra-prima pela melhor cr�tica do pa�s. As compara��es com
o Grande Sert�o: Veredas, de Guimar�es Rosa, e o Dom Quixote, de
Cervantes, foram recorrentes. A receptividade do p�blico leitor
parece ter correspondido � avalia��o da cr�tica, uma vez que
foram necess�rias duas novas edi��es, em 1972, para atender �
demanda das livrarias.
A segunda edi��o, sa�da logo em janeiro, n�o trouxe
qualquer altera��o no texto em rela��o � primeira. A �nica

mudan�a, portanto, icou por conta da nova capa, criada por
Eug�nio Hirsh em substitui��o � de Gian Calvi e que permanecer�
at� a quarta edi��o, de 1976.
Mas na terceira edi��o, publicada em agosto de 1972,
houve duas pequenas altera��es dignas de nota. No �ndice, os
folhetos que subdividiam o texto passaram a ser agrupados em
cinco �livros�: �Livro I � A Pedra do Reino� (folhetos I a XXII);
�Livro II � Os Emparedados� (folhetos XXIII a XXXVI); �Livro III �
Os Tr�s Irm�os Sertanejos� (folhetos XXXVII a LXIII); �Livro IV �
Os Doidos� (folhetos LXIV a LXXV); �Livro V � A Demanda do
Sangral� (folhetos LXXVI a LXXXV). Al�m disso, em resposta,
talvez, aos questionamentos que surgiam sobre o inal da hist�ria,
que icara em aberto sem a revela��o dos enigmas nela propostos,
o autor divulgou, pela primeira vez, na p�gina que antecede a
folha de rosto, a informa��o de que A Pedra do Reino seria apenas
a primeira parte de uma obra bem maior, uma trilogia, que se
completaria com dois novos romances: a Hist�ria d�O Rei Degolado
nas Caatingas do Sert�o e O Romance de Sin�sio, o Alumioso,
Pr�ncipe da Bandeira do Divino do Sert�o. A trilogia, por sua vez, se
chamaria A Maravilhosa Desaventura de Quaderna, o Decifrador e
a Demanda Novelosa do Reino do Sert�o � t�tulo t�o longo quanto
os dos romances que a comporiam, percebendo-se, em todos
esses novos casos, aquela imediata possibilidade de simpliica��o
j� sugerida em A Pedra do Reino, de maneira que o pr�prio autor,
quando se referia aos t�tulos, quase sempre o fazia na forma
simpliicada: O Rei Degolado, para o segundo romance da s�rie;
Sin�sio, o Alumioso, para o terceiro; e Quaderna, o Decifrador, para
toda a trilogia.
No projeto da trilogia, como o autor conidenciava a
familiares e amigos mais pr�ximos, tanto O Rei Degolado quanto
Sin�sio, o Alumioso seriam romances extensos, cada qual
composto por cinco partes, ou �livros�, � semelhan�a do que j�
ocorrera com A Pedra do Reino.
Enquanto A Pedra do Reino conquistava mais e mais
admiradores, sobretudo entre escritores e cr�ticos entusiasmados,
tanto no Brasil quanto em Portugal, Suassuna dava continuidade �
sua trilogia, trabalhando no romance O Rei Degolado. Em

novembro de 1975, antes do lan�amento da 4� edi��o de A Pedra
do Reino, que sairia em mar�o do ano seguinte, o primeiro livro de
O Rei Degolado, intitulado �Ao Sol da On�a Caetana�, come�ou a ser
publicado em folhetins semanais no Di�rio de Pernambuco. O
primeiro �folheto� saiu num s�bado, dia 15, e os subsequentes,
aos domingos, at� o dia 25 de abril de 1976. A 2 de maio de 1976,
no domingo seguinte ao da conclus�o do primeiro livro, o mesmo
jornal iniciou a publica��o do segundo, �As Inf�ncias de
Quaderna�, que foi conclu�do a 19 de junho de 1977. Meses antes,
em mar�o de 1977, �Ao Sol da On�a Caetana� havia sido publicado
em volume pela Editora Jos� Olympio, o que signiicou a
divulga��o, em n�vel nacional, da continua��o de A Pedra do Reino,
at� ent�o restrita aos privilegiados leitores que tinham acesso ao
Di�rio de Pernambuco.
Na �Nota do Autor�, publicada ao inal do volume, Suassuna
justiicou a decis�o de publicar os livros de O Rei Degolado
separadamente, alegando, entre outros motivos, que assim se
evitavam �os riscos, cada vez maiores, que existem atualmente na
publica��o de um livro muito extenso, como � O Rei Degolado e
como foi A Pedra do Reino, romance que, nestes tempos
apressados, pouca gente tem tempo e disposi��o para ler�.
A refer�ncia aos �riscos� de publica��o de um livro extenso
pode estar associada, sem d�vida, �s graves diiculdades
econ�micas que a Editora Jos� Olympio come�ou a enfrentar a
partir de meados da d�cada de 1970 e que levaram ao
afastamento do pr�prio Jos� Olympio do comando da empresa,
cujo soerguimento, em suma, somente se daria muitos anos
depois, ap�s a editora ser incorporada ao Grupo Editorial Record,
em 2001. Tais diiculdades, aliadas ao fato de que Suassuna,
pessoalmente, nunca se empenhou na procura de editores para
seus livros, izeram com que O Rei Degolado � Ao Sol da On�a
Caetana n�o passasse daquela primeira edi��o, de 1977; e que A
Pedra do Reino, ap�s a 4� edi��o, de 1976, conhecesse um
ostracismo editorial de quase trinta anos, at� o surgimento da 5�
edi��o, pelo mesmo selo Jos� Olympio, em 2004.
Ocorre, ainda, que Suassuna, que vinha se dedicando �
escritura do terceiro livro de O Rei Degolado, �A Guerra de Doze�

(cuja futura publica��o j� se anunciava no Di�rio de Pernambuco,
quando da publica��o do �ltimo folheto de �As Inf�ncias de
Quaderna�), terminou desistindo do plano inicial de sua trilogia.
Em v�rias entrevistas, quando perguntado sobre o motivo dessa
desist�ncia, o autor airmou que n�o estava mais conseguindo
manter o necess�rio distanciamento entre ele pr�prio e o
personagem-narrador, Pedro Dinis Quaderna, sobretudo quando
mergulhava nos traum�ticos acontecimentos relativos �
Revolu��o de 30 na Para�ba, diretamente ligados ao assassinato
do seu pai, Jo�o Suassuna.
Em meados da d�cada de 1980 � afastado da vida
liter�ria desde o c�lebre artigo �Despedida�, publicado a 9 de
agosto de 1981, no Di�rio de Pernambuco, mas n�o da literatura
�, Suassuna come�ou a tomar as primeiras notas para um novo
romance, j� pensando em aprofundar a fus�o do seu trabalho de
escritor ao de artista pl�stico, iniciada, indiscutivelmente, em A
Pedra do Reino, atrav�s das gravuras atribu�das a Taparica
Quaderna, irm�o do protagonista-narrador. Chega mesmo a
airmar que seus �lbuns de Iluminogravuras (pranchas com
sonetos manuscritos e ilustrados, reproduzidas em ofsete e
depois pintadas � m�o), ent�o rec�m-lan�ados, n�o deixavam de
ser, tamb�m, experi�ncias para esse novo livro, v�rias vezes
anunciado, a partir da d�cada de 1990, como a s�mula do seu
trabalho art�stico, fus�o de poesia, romance, teatro, artes pl�sticas
etc.
Ao tempo em que trabalhava no novo romance, que viria a
ser o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, conclu�do
pouco antes de sua morte, o autor foi amadurecendo e colocando
em pr�tica a ideia de ressaltar a unidade subjacente a todo o seu
trabalho art�stico, procurando estabelecer liga��es mais expl�citas
entre suas obras para que cada uma delas (seja poema, pe�a de
teatro, romance ou pintura) pudesse ser vista como parte de uma
obra s�, como uma esp�cie de tessela do grande mosaico que
vinha realizando. Nesse sentido, foi promovendo pequenas
modiica��es nos seus textos, tanto nos in�ditos quanto nos j�
publicados, a exemplo de A Pedra do Reino, para melhor ajust�-los

� concep��o inal da obra �nica, ou da sua obra reunida, por ele
batizada de A Ilumiara.
Grande admirador da arte rupestre brasileira, Suassuna j�
havia usado o neologismo �lumiara� para se referir, na d�cada de
1970, aos �aniteatros� formados por pedras com baixos-relevos e
ou pinturas (as �itaquatiaras�) realizados pelos primeiros
habitantes do Brasil e que possivelmente eram usados como
locais para seus cultos, a exemplo da famosa Pedra do Ing�, na
Para�ba. Anos depois, ele passou a chamar esses espa�os de
�ilumiaras�, estendendo o termo para identiicar conjuntos
art�sticos diversos, surgidos a partir da integra��o de v�rios
g�neros (pintura, escultura, arquitetura etc.) e que pudessem ser
compreendidos como locais de celebra��o da cultura brasileira.
Foi assim que criou, enquanto Secret�rio de Cultura de
Pernambuco, a �Ilumiara Zumbi� e a �Ilumiara Pedra do Reino�,
nos munic�pios de Olinda e S�o Jos� do Belmonte,
respectivamente. Ao caracterizar toda a sua obra como uma
�ilumiara�, portanto, deixava claro que cada parte dela, mesmo
que mantivesse a sua unidade e seu valor de obra independente,
comporia um conjunto art�stico maior, uma esp�cie de �obra
total�.
No caso de A Pedra do Reino, se algu�m tiver a curiosidade
de realizar um minucioso cotejamento entre a 4� edi��o, de 1976,
e a 5�, lan�ada em 2004; e, depois, entre a 5� e as subsequentes,
poder� perceber com mais detalhes aquilo que aqui, dadas as
condi��es de espa�o, ser� dito apenas em linhas gerais.
O texto da 5� edi��o foi minuciosamente revisto pelo autor,
que o burilou consideravelmente, enxugando di�logos, retirando
termos ou express�es redundantes, substituindo palavras e �s
vezes frases inteiras etc. Em v�rias passagens, falas do
depoimento de Quaderna ao Juiz Corregedor passaram a se
caracterizar como falas ao leitor, ou aos �nobres Senhores e belas
Damas� que o ouvem, quebrando a bipolaridade que marcava boa
parte da narrativa e a tornando sem d�vida mais din�mica. Foi
ainda na 5� edi��o que o autor come�ou a realizar as pequenas
altera��es acima referidas, no intuito de explicitar a liga��o de A
Pedra do Reino com A Ilumiara: se o romance j� contava com a

participa��o do usineiro e dono de minas Ant�nio Noronha de
Britto Moraes, o mesmo personagem da pe�a Auto da
Compadecida, passou a contar, tamb�m, com Jo�o Grilo e Chic�,
que substituem, respectivamente, os personagens Piolho e
Adauto.
As altera��es promovidas nas folhas de abertura, a partir
da 5� edi��o, s�o mais do que ind�cios de que o autor continuava
inquieto, � procura daquela sensa��o de �apaziguamento� � para
usar uma palavra cara ao poeta Alexei Bueno � somente poss�vel
com a consci�ncia da obra plenamente realizada, trabalhando n�o
s� para melhor ajustar o Romance d�A Pedra do Reino ao conjunto
da sua Ilumiara, mas para caracteriz�-lo como uma introdu��o ao
Romance de Dom Pantero, que vinha escrevendo. De fato, na 5�
edi��o, o romance, que at� ent�o era anunciado como �romance
armorial-popular brasileiro�, passa a �romance armorial
brasileiro�, express�o mais iel ao declarado objetivo do
Movimento Armorial, idealizado pelo pr�prio Suassuna e lan�ado
oicialmente em 1970, qual seja o de realizar uma arte erudita
brasileira a partir da cultura popular � ora, sendo armorial, o
romance seria erudito, e n�o popular. Na 9� edi��o, em 2007, o
leitor ver� algo completamente diferente: o nome �A Ilumiara�
encontra-se encimando a folha de abertura, antes do t�tulo do
romance, e este, agora, � anunciado n�o mais como �romance
armorial brasileiro�, e sim como �Airesiana Brasileira n� 1�. Na 11�
edi��o, tr�s anos depois, a express�o �Airesiana Brasileira n� 1� j�
deu lugar a outra, que ser� a deinitiva: �Airesiana Brasileira em
F�-Maior � Introdu��o ao �Romance de Dom Pantero no Palco
dos Pecadores��; al�m disso, as cinco partes do romance, at� ent�o
genericamente chamadas de �Livros�, de I a V, como j� vimos,
receberam t�tulos que fazem alus�o a movimentos de uma pe�a
musical, �Prel�dio�, �Chamada�, �Galope�, �Tocata� e �Fuga�, algo
que o leitor tamb�m encontrar� no Romance de Dom Pantero.
Ressalte-se que o nome �A Ilumiara� e a express�o
�Airesiana Brasileira� (que faz uma homenagem ao pensador
barroco brasileiro Mathias Aires) n�o recebem qualquer
explica��o em A Pedra do Reino. � preciso, portanto, que o leitor
v� ao Romance de Dom Pantero, ao qual A Pedra do Reino serve de

introdu��o, para que tudo ique esclarecido. S� ent�o icar�
sabendo como Antero Savedra, cujo pseud�nimo � Dom Pantero,
pretende realizar uma �obra total�, a que chama de A Ilumiara, a
partir das obras de seu tio e de seus irm�os, todos escritores j�
falecidos; e todos, como ele, heter�nimos de Ariano Suassuna: o
ensa�sta Antero Schabino, o poeta Altino Sotero, o dramaturgo
Adriel Soares e o romancista Auro Schabino, este �ltimo, por sinal,
�autor� de A Pedra do Reino.
Mas j� nos estendemos demais, e � preciso concluir.
Registre-se, por im, que a presente edi��o de A Pedra do Reino
teve o seu texto minuciosamente ixado, procedendo-se �
corre��o de in�meras gralhas e de erros introduzidos, por
motivos v�rios, em edi��es recentes. Al�m disso, foram inclu�das,
no texto, as �ltimas altera��es pensadas pelo autor, anotadas em
manuscrito em um exemplar do romance encontrado em seu
gabinete, duas delas com o prop�sito evidente de intensiicar a
liga��o de A Pedra do Reino com a obra total, A Ilumiara: no
Folheto XXVI, a visita que Quaderna, Clemente e Samuel fazem �
�Gruta do Olho-d��gua do Pedro�, para ver umas inscri��es
petrogr�icas, se transforma numa visita � �Ilumiara Ja�na�, que
ser� descrita no Romance de Dom Pantero; e, no Folheto LVI, o
personagem Mestre Rom�o, capit�o da barca�a �Estrela da
Manh��, tem seu nome mudado para Mestre Seraim, o que liga A
Pedra do Reino ao universo de A Hist�ria do Amor de Fernando e
Isaura, primeiro romance do autor, de 1956, e onde j� aparecem a
dita barca�a e o Mestre Seraim.
De modo que esta nova edi��o, a 16� e a primeira com o
selo da Nova Fronteira, apresenta o romance, pela primeira vez,
em sua vers�o deinitiva.
Recife, 30 de mar�o de 2017.


UM ROMANCE PICARESCO?
Rachel de Queiroz
primeira vez em que Ariano Suassuna me falou na Pedra do
Reino disse que estava escrevendo �um romance picaresco�.
Me interessei logo � lembrei-me das ast�cias, da picardia, das
artes graciosas do meu querido amarelinho Jo�o Grilo, e de certa
forma iquei esperando novas e mirabolantes aventuras deste ou
de outro amarelinho parecido, desenvolvidas ao longo de uma
hist�ria em muitos cap�tulos � porque ele me avisara tamb�m de
que o romance era comprido.
Mas o paraibano me enganou. Picaresco o livro � � ou
antes, o elemento picaresco existe grandemente no romance, ou
tratado, ou obra, ou simplesmente livro � sei l� como � que diga!
Porque depois de pronto A Pedra do Reino transcende disso tudo,
e � romance, � odisseia, � poema, � epopeia, � s�tira, �
apocalipse...
Ali�s, pergunto se ele me enganou ou se enganou? Pode ser
que a ideia de Suassuna, ao come�ar a escrever, fosse apenas fazer
um romance divertido, usando aquela sua s�bia dosagem de
elementos liter�rios, propriamente ditos, e elementos populares,
baseado sobretudo no folclore local e nos versos dos cantadores,
tendo como tema central os sucessos tr�gicos da Pedra Bonita. E
a�, quem sabe, o santo apanhou o autor de surpresa, e baixou
sobre ele de repente, e se apoderou do seu pulso e lhe ditou essa
estranh�ssima epopeia calcada nos sonhos, nas loucuras, nas
aventuras e desventuras e nas alucina��es geneal�gicas do
Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acad�mico e Poeta-Escriv�o D. Pedro
Dinis Ferreira-Quaderna.
Mas se o h�bito da rotulagem faz a gente insistir na
tentativa de situar o livro dentro de um g�nero � pois que ent�o
ique como romance; ser� romance este livro tumultuoso de onde
escorre sangue e escorrem l�grimas, e h� sol tirando fogo das
pedras, e luz que encandeia, e um humor feroz e uma ainda mais

feroz e desabrida aceita��o da fatalidade. Contudo tamb�m
poderia ele ser uma Cr�nica � no sentido de que relata casos
supostamente hist�ricos, guerras e armadilhas e eleva��o e
trucidamento de reis, rainhas e princesas. Mas tamb�m � profecia
e doutrina��o, tamb�m � romance de cavalaria e conto fant�stico
� e romance er�tico, por que n�o? Um erotismo seco, reduzido
aos essenciais, uma esp�cie de erotismo sem lux�ria, esfolado e
r�spido. � prof�tico, porque passa por ele todo um sopro religioso,
partindo embora de boca maldita � mas nunca chega a ser
demon�aco. E o hero�smo � todo entremeado de covardia, como o
resumo de D. Pedro Dinis Quaderna em pessoa � os ourop�is
heroicos apenas encobrem a s�rdida velhacaria, o medo e os
suores frios do degenerado descendente dos ferozes reis
sertanejos do castelo das duas torres.
Tenho muito medo de livro de erudito. Livro de homem
que leu tudo e sabe tudo e ent�o comp�e a sua obra reunindo
todas aquelas sabedorias, costuradas com io de seda; mas a gente
sente logo que aquilo vem da cabe�a inventiva, n�o dos lancos
criadores do homem; e em arte a gente n�o quer ast�cias
intelectuais, mas vida pulsando, embora sem saber como pulsa e
por que pulsa.
S� comparo o Suassuna, no Brasil, a dois sujeitos: a Villa-
Lobos e a Portinari. Neles a for�a do artista obra o milagre da
integra��o do material popular com o material erudito, juntando
lembran�a, tradi��o e viv�ncia, com o toque pessoal de
originalidade e improvisa��o.
A tend�ncia de muitos ser� comparar Suassuna a
Guimar�es Rosa. Para mim, n�o. Rosa era um inventador de
pessoas e palavras, inclusive de nomes pr�prios; criador de um
idioma novo, �s vezes bel�ssimo � mas evidentemente
manufaturado por ele no seu laborat�rio. J� Suassuna, a sua
l�ngua existe, existiu sempre; pode ser em momentos arcaica e
preciosa, dando a impress�o de inventiva; por�m tudo ali s�o
palavras que, hoje ou ontem, o uso poliu e afei�oou; e se a sua
sintaxe n�o � a oicial, tamb�m n�o foi composta em banca de
trabalho, visando o efeito euf�nico ou po�tico. � a sintaxe
tradicional, po�tico-coloquial-declamat�ria-liter�ria a que

recorrem os cantadores e repentistas e os contadores de
romances � naturalmente transigurada pelo trato que Suassuna
lhe d�.
Digamos agora que poderia haver isso tudo e ent�o Ariano
Suassuna ser apenas um bom compilador folcl�rico e restaurador
competente de f�rmulas bonitas e arcaicas. Podia ser, mas n�o �.
Pois o que h� principalmente n�A Pedra do Reino � uma for�a de
paix�o, uma gana de recaptura, dentro do elemento criador.
Suassuna n�o apenas conta � mas reivindica; sente-se que h� na
paix�o de Quaderna a sua pr�pria paix�o dele, Suassuna.
Naqueles sonhos loucos os pr�prios sonhos dele sonhados, um
reclamo contra usurpa��o, uma ira enterrada, uma deforma��o de
vingan�a? O que eu sei � que o Quaderna nos imp�e e nos arrasta
a ele e a n�s pelos seus mundos alucinados, atrav�s dos seus
del�rios geneal�gicos e seus mist�rios e enigmas nem sempre
decifrados. E h� uma beleza que d�i e machuca, como naquele
Rapaz-do-Cavalo-Branco, cordeiro inocente nascido de uma ra�a
amaldi�oada � formoso e assinalado e cuja sina � a morte, como
o rei D. Sebasti�o...
No im, a gente dir� que este livro � o pr�prio Suassuna. O
livro e n�o seu protagonista D. Pedro Dinis Quaderna; o Quaderna
� o conceito que Suassuna faz dos homens, e a obra de Quaderna �
o que ele espera dos homens. Nas contradi��es do
comportamento do her�i maldito e grotesco est�o as contradi��es
do seu cora��o, a ambival�ncia dos seus sentimentos. No
fant�stico cen�rio est� a transigura��o do seu mundo sertanejo
� como ele queria que esse mundo fosse, ou como imagina que �.
Lembremo-nos de que Suassuna olha para esse mundo com a
vis�o do exilado, ainda na adolesc�ncia arrancado ao seu sert�o
natal; por isso sempre o descreve muito belo e m�gico; por isso
tem recuo suiciente para descobrir o mist�rio onde os da terra
naturalmente s� veem o cotidiano.
A sua inspira��o se gera assim, principalmente, na
perspectiva destorcida pela lembran�a e pela saudade; Suassuna,
mesmo, talvez j� nem possa mais distinguir entre a coisa concreta
e a miragem. Nem ele se importa com isso. O Quaderna, ao im de
contas, s� � e s� quer ser um ex�mio retratista de miragens.

Rio, junho de 1971.

A IlUMIARA
Romance d'A
PEDRA DO REINO
e o Pr�ncipe do Sangue do Vai-e-Volta
Airesiana Brasileira
em F�-Maior
INTRODU��O AO
�ROMANCE DE DOM PANTERO NO
PALCO DOS PECADORES�

R
Romance d�A
PEDRA DO REINO
E o Pr�ncipe do Sangue do Vai-e-Volta
omance-enigm�tico de crime e sangue, no qual aparece o
misterioso Rapaz-do-Cavalo-Branco. A emboscada do
Lajedo sertanejo. Not�cia da Pedra do Reino, com seu Castelo
enigm�tico, cheio de sentidos ocultos! Primeiras indica��es sobre
os tr�s irm�os sertanejos, Ar�sio, Silvestre e Sin�sio! Como seu Pai
foi morto por cru�is e desconhecidos assassinos, que degolaram o
velho Rei e raptaram o mais mo�o dos jovens Pr�ncipes,
sepultando-o numa Masmorra onde ele penou durante dois anos!
Ca�adas e expedi��es heroicas nas serras do Sert�o! Apari��es
assombrat�cias e prof�ticas! Intrigas, presepadas, combates e
aventuras nas Caatingas! Enigma, �dio, cal�nia, amor, batalhas,
sensualidade e morte!
Ave Musa incandescente
do deserto do Sert�o!
Forje, no Sol do meu Sangue,
o Trono do meu clar�o:
cante as Pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu Ch�o!
Nobres Damas e Senhores
ou�am meu Canto espantoso:
a doida Desaventura
de Sin�sio, O Alumioso,
o Cetro e sua centelha
na Bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso!

Prel�dio
A PEDRA DO REINO

D
FOLHETO I
Pequeno Cantar Acad�mico
a Modo de Introdu��o
aqui de cima, no pavimento superior, pela janela gradeada da
Cadeia onde estou preso, vejo os arredores da nossa indom�vel
Vila sertaneja. O Sol treme na vista, reluzindo nas pedras mais
pr�ximas. Da terra agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo Sol
esbraseado, parece desprender-se um sopro ardente, que tanto pode
ser o arquejo de gera��es e gera��es de Cangaceiros, de rudes Beatos e
Profetas, assassinados durante anos e anos entre essas pedras
selvagens, como pode ser a respira��o dessa Fera estranha, a Terra �
esta On�a-Parda em cujo dorso habita a Ra�a piolhosa dos homens.
Pode ser, tamb�m, a respira��o fogosa dessa outra Fera, a Divindade,
On�a Malhada que � dona da Parda, e que, h� mil�nios, acicata a nossa
Ra�a, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol.
* * *
Daqui de cima, por�m, o que vejo agora � a tripla face, de
Para�so, Purgat�rio e Inferno, do Sert�o. Para os lados do poente, longe,
azulada pela dist�ncia, a Serra do Pico, com a enorme e alta pedra que
lhe d� nome. Perto, no leito seco do Rio Tapero�, cuja areia � cheia de
cristais despeda�ados que fa�scam ao Sol, grandes Cajueiros, com seus
frutos vermelhos e cor de ouro. Para o outro lado, o do nascente, o da
estrada de Campina Grande e Estaca Zero, vejo peda�os esparsos e
agrestes de tabuleiro, cobertos de Marmeleiros secos e Xiquexiques.
Finalmente, para os lados do norte, vejo pedras, Lajedos e serrotes,
cercando a nossa Vila e cercados, eles mesmos, por Favelas espinhentas
e Urtigas, parecendo enormes Lagartos cinzentos, malhados de negro e
ferrugem: Lagartos venenosos, adormecidos, estirados ao Sol e

abrigando Cobras, Gavi�es e outros bichos ligados � crueldade da On�a
do Mundo.
A�, talvez por causa da situa��o em que me encontro, preso na
Cadeia, o Sert�o, sob o Sol fagulhante do meio-dia, me aparece, ele todo,
como uma enorme Cadeia, dentro da qual, entre muralhas de serras
pedregosas que lhe servissem de muro inexpugn�vel a apertar suas
fronteiras, estiv�ssemos todos n�s, aprisionados e acusados,
aguardando as decis�es da Justi�a; sendo que, a qualquer momento, a
On�a Malhada do Divino pode se precipitar sobre n�s, para nos sangrar,
ungir e consagrar pela destrui��o.
* * *
� meio-dia, agora, em nossa Vila de Tapero�. Estamos a 9 de
Outubro de 1938. � tempo de seca, e aqui, dentro da Cadeia onde estou
preso, o calor come�ou a icar insuport�vel desde as dez horas da
manh�. Pedi ent�o ao Cabo Lu�s Risc�o que me deixasse sair l� de baixo,
da cela comum, e vir c� para cima, varrer o ch�o de madeira do
pavimento superior, onde funcionava, at� o im do ano passado, a
C�mara Municipal. O Cabo Lu�s Risc�o � ilho daquele outro, de nome
igual, que morreu, aqui mesmo na Cadeia, em 1912, na chamada
�Guerra de Doze�, num tiroteio da Pol�cia contra as tropas de Sertanejos
que, a mando de meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o Garcia-
Barretto, atacaram, tomaram e saquearam nossa Vila. Tem, portanto, o
Cabo todos os motivos de m� vontade contra mim. Mas como sou �de
fam�lia de certa ordem� e lhe dou pequenas gorjetas, abranda essa m�
vontade de vez em quando. Hoje, por exemplo, quando iz o pedido, ele
me concedeu o cobi�ado privil�gio de preso-varredor. Abriu a porta de
grades enferrujadas, trouxe-me para c�, deixou-me aqui sozinho,
trancado, varrendo, e foi-se a cochilar na rede da sua casa, que ica no
quintal da Cadeia. Aproveitei, ent�o, o fato de ter terminado logo a
tarefa e deitei-me no ch�o de t�buas, perto da parede, pensando,
procurando um modo h�bil de iniciar este meu Memorial, de modo a
comover o mais poss�vel com a narra��o dos meus infort�nios os
cora��es generosos e compassivos que agora me ouvem. Pensei: �
Este, como as Mem�rias de um Sargento de Mil�cias, � um �romance�
escrito por �um Brasileiro�. Posso come��-lo, portanto, dizendo que era,

e �, �no tempo do Rei�. Na verdade, o tempo que decorre entre 1935 e
este nosso ano de 1938 � o chamado �S�culo do Reino�, sendo eu,
apesar de preso, o Rei de quem a� se fala.
Depois, por�m, cheguei � conclus�o de que, al�m de anunciar o
tempo, eu devo ser claro tamb�m sobre o local onde sucederam todos
os acontecimentos que me trouxeram � Cadeia. N�o tendo muitas ideias
pr�prias, lembrei-me ent�o de me valer de outro dos meus Mestres e
Precursores, o genial escritor-brasileiro Nuno Marques Pereira. Como
todos sabem, o �romance� dele, publicado em 1728, intitula-se
Comp�ndio Narrativo do Peregrino da Am�rica Latina. Ora, este meu
livro �, de certa forma, um Comp�ndio Narrativo do Peregrino do Brasil.
Por isso, adaptando ao nosso caso as palavras iniciais de Nuno Marques
Pereira, falo do modo que segue sobre o lugar onde se passou a nossa
estranha Desaventura: �Uns doze graus abaixo da Linha Equinocial,
aqui onde se encontra a Terra do Nordeste metida no Mar, mas
entrando-se umas cinquenta l�guas para o Sert�o dos Cariris Velhos da
Para�ba do Norte, num planalto pedregoso e espinhento onde passeiam
Bodes, Jumentos e Gavi�es sem outro roteiro que os serrotes de pedra
cobertos de Coroas-de-Frade e Mandacarus; aqui, nesta bela Concha,
sem �gua mas cheia de f�sseis e velhos esqueletos petriicados, v�-se
uma rica P�rola, engastada em ino Ouro, que � a muito nobre e sempre
leal Vila da Ribeira do Tapero�, banhada pelo rio do mesmo nome.� Ora,
eu, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, sou o mesmo Dom Pedro IV,
cognominado �O Decifrador�, Rei do Quinto Imp�rio e do Quinto Naipe,
Profeta da Igreja Cat�lico-sertaneja e pretendente ao trono do Imp�rio
do Brasil. Por outro lado, consta da minha certid�o de nascimento ter
nascido eu na Vila de Tapero�. � por isso, ent�o, que pude come�ar
dizendo que neste ano de 1938 estamos ainda �no tempo do Rei�, e
anunciar que a nobre Vila sertaneja onde nasci � o palco da terr�vel
�desaventura� que tenho a contar.
* * *
Para ser mais exato, preciso explicar ainda que meu �romance� �,
mais, um Memorial que dirijo � Na��o Brasileira, � guisa de defesa e
apelo, no terr�vel processo em que me vejo envolvido. Para que
ningu�m julgue que sou um impostor vulgar, devo inalmente

esclarecer que, infeliz e desgra�ado como estou agora, preso aqui nesta
velha Cadeia da nossa Vila, sou, nada mais, nada menos, do que
descendente, em linha masculina e direta, de Dom Jo�o Ferreira-
Quaderna, mais conhecido como El-Rei Dom Jo�o II, O Execr�vel,
homem sertanejo que, h� um s�culo, foi Rei da Pedra do Reino, no
Sert�o do Paje�, na fronteira da Para�ba com Pernambuco. Isto signiica
que sou descendente, n�o daqueles reis e imperadores estrangeirados e
falsiicados da Casa de Bragan�a, mencionados com descabida
insist�ncia na Hist�ria Geral do Brasil, de Varnhagen; mas sim dos
leg�timos e verdadeiros Reis brasileiros, os Reis castanhos e cabras da
Pedra do Reino do Sert�o, que cingiram, de uma vez para sempre, a
sagrada Coroa do Brasil, de 1835 a 1838, transmitindo-a assim a seus
descendentes, por heran�a de sangue e decreto divino.
* * *
Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e
toda a minha vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao
mesmo tempo grotescos e gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo
do Baralho. Talvez por isso, o mundo me pare�a uma mesa e a vida um
jogo, onde se cruzam idalgos Reis de Ouro com castanhas Damas de
Espada, onde passam Ases, Peninchas e Curingas, governados pelas
regras desconhecidas de alguma velha Canastra esquecida. � por isso
tamb�m que, do fundo do c�rcere onde estou trancaiado neste nosso
ano de 1938 � faminto, esfarrapado, sujo, prematuramente
envelhecido pelos sofrimentos aos 41 anos de idade � dirijo-me a
todos os Brasileiros, sem exce��o; mas especialmente, atrav�s do
Supremo Tribunal, aos magistrados e soldados � toda essa ra�a ilustre
que tem o poder de julgar e prender os outros. Dirijo-me, outrossim,
aos escritores brasileiros, principalmente aos que sejam Poetasescriv�es
e Acad�micos-idalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha, o que
fa�o aqui, expressamente, por interm�dio da Academia Brasileira, esse
Supremo Tribunal das Letras.
Sim! Nesse estranho processo, a um tempo pol�tico e liter�rio, ao
qual estou sendo submetido por decis�o da Justi�a, este � um pedido de
clem�ncia, uma esp�cie de coniss�o geral, uma apela��o � um apelo
ao cora��o magn�nimo de Vossas Excel�ncias. E, sobretudo, uma vez

que as mulheres t�m sempre o cora��o mais brando, esta � uma
solicita��o dirigida aos brandos peitos das mulheres e ilhas de Vossas
Excel�ncias, �s brandas excel�ncias de todas as mulheres que me
ouvem.
Escutem, pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos
brandos, minha terr�vel hist�ria de amor e de culpa; de sangue e de
justi�a; de sensualidade e viol�ncia; de enigma, de morte e disparate; de
lutas nas estradas e combates nas Caatingas; hist�ria que foi a suma de
tudo o que passei e que terminou com meus costados aqui, nesta
Cadeia Velha da Vila Real da Ribeira do Tapero�, Sert�o dos Cariris
Velhos da Capitania e Prov�ncia da Para�ba do Norte.

H
FOLHETO II
O Caso da Estranha Cavalgada
� tr�s anos passados, na V�spera de Pentecostes, dia 1� de Junho
de 1935, pela estrada que nos liga � Vila de Estaca Zero, vinha se
aproximando de Tapero� uma cavalgada que iria mudar o destino de
muitas das pessoas mais poderosas do lugar, incluindo-se entre estas o
modesto Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acad�mico e Poeta-Escriv�o que
lhes fala neste momento.
Era, talvez, a mais estranha Cavalgada que j� foi vista no Sert�o
por homem nascido de mulher. Ali�s, n�o sei nem se o nome de
��cavalgada� se ajusta bem �quilo, que parecia antes uma esp�cie de
tropel confuso de cavalos, jaulas, carretas, tendas, Cavaleiros e animais
selvagens. Era, realmente, uma verdadeira �desilada moura�, como
muito bem a classiicou depois, na noite daquele mesmo dia, o Doutor
Samuel Wandernes, homem intelectual, Poeta e promotor da nossa
Comarca. Na verdade, como ele vive airmando frequentemente, �os
�rabes, negros, judeus, tapuias, asi�ticos, berberes e outros Povos
mouros do mundo, s�o sempre meio aciganados, meio ladr�es,
trocadores de cavalos, irrespons�veis e valdevinos�; e o estranho grupo
de Cavaleiros que, naquele dia, iniciava a mais terr�vel agita��o em
nossa Vila, revelava no conjunto, ao primeiro exame, alguma coisa de
errante, como uma tribo selvagem, n�made, empoeirada e �sem
conian�a�.
Era composta de cerca de quarenta Cavaleiros. Os arreios dos
Cavalos que a compunham vinham cobertos de medalhas e moedas, que
refulgiam ao Sol sertanejo, devolvendo aos fulgores dos cristais das
cercas-de-pedra as fa�scas de seus metais. As esporas, como estrelas de
fogo, retiniam suas rosetas, batendo nos estribos e centelhando nos
sapat�es de couro castanho, sob as v�stias e os canos poeirentos das
cal�as-perneiras, tamb�m castanhas, mas providas de fortes placas de
refor�o, costuradas a modo de joelheiras nas cal�as, e de ombreiras nos

gib�es. Os chapel�es de couro, de largas abas dobradas e levantadas,
coroavam-se, tamb�m, de estrelas e moedas que reluziam � tr�s nas
abas, inumer�veis nas testeiras e barbicachos. Mais do que tudo, por�m,
pairava no ar, sobre aquela esquisita tropa de bichos, carretas e
Cavaleiros, uma atmosfera de feira de cavalos; de sortil�gios e
encantamentos; de companhia de Circo; de comboio-de-malassombrados;
de cavalaria de rapina; de com�rcio de ra�zes, aug�rios e
zod�acos; e tudo isso junto lembrava, logo, uma tribo de Ciganos
sertanejos em viagem.
* * *
Uma coisa que talvez cause estranheza aos menos avisados �
que o genial Poeta-brasileiro e Patrono-acad�mico, Ant�nio Gon�alves
Dias, tendo vivido um s�culo antes desta cena, j� previsse que ela ia
acontecer. � que, como diz o Doutor Samuel Wandernes, �os Poetas s�o
verdadeiros vision�rios�, isto �, gente que prediz o futuro e v� visagens
e assombra��es, como Ant�nio Conselheiro via as dele, no Imp�rio
pedregoso e sitiado de Canudos. Assim, ningu�m se espante de que
Gon�alves Dias, tantos anos antes, visse, como alumiado e vision�rio
que era, a chegada desse tropel de cavalos a Tapero�, descrevendo
assim a estranha Cavalgada que, j� perto do meio-dia daquela V�spera
de Pentecostes, errava pelos campos do Sert�o do Cariri:
�Eram Ciganos errantes,
atilados e torcidos,
trocadores de Cavalos
com semblantes de atrevidos:
causa medo v�-los tantos,
t�o astutos e crescidos.
Vinham Ladr�es de cavalo,
vinham muitos Raizeiros,
vinham, do Sol abrasados,
nossos b�rbaros Guerreiros,
bons dizedores de Sortes,

muitos e bons Cavaleiros!
E vinha o Donzel errante
no cerco dos roubadores!
De sua Dama de Copas,
no Escudo trazia as cores:
tinha amor pela Sonhosa,
eram claros seus amores!
Enim, dizer quanto vimos
n�o cabe neste Papel:
vinham muitas Alim�rias
� s�o roubadas a granel �
e vinha o Alumioso,
montado em branco Corcel!�
* * *
Entretanto, se eram, mesmo, Ciganos em viagem, seria uma tribo
que, ao lado das roupas principescas, das medalhas nos arreios e da
ladroagem meio acangaceirada, possu�a algumas singularidades.
Primeiro, os Ciganos sertanejos comuns n�o andam encourados.
Usam, quase sempre, camisa e cal�a c�quis, chapel�es de pano pardo e
botas de cano alto. Ora, aqueles estavam, como ica dito, de cal�aperneira,
guarda-peito e gib�o, tudo de couro. Os gib�es, por�m, feitos
de duro e castanho couro de bode, al�m das placas de refor�o nas
ombreiras e joelheiras, tinham debruns e emblemas cravejados de
brochas de metal. Essas brochas, ora se agrupavam em �reas maci�as,
ora seguiam, em ileiras, as linhas das costuras e debruns mais
importantes, de modo que suas Armaduras-de-couro faziam aqueles
Cavaleiros sertanejos semelhantes ao Guerreiro mouro que o genial
Poeta pernambucano Severino Montenegro descreveu num Soneto
c�lebre: vestido de Armadura negra e escarlate, de placas de a�o,
incrustada de esmaltes e bras�es, parecendo, o todo, a carapa�a dura,
calc�ria, espinhosa e violeta-escarlate de um Crust�ceo gigantesco
encravado num Penhasco. Aqui, por�m, as armaduras eram apenas de

couro castanho-negro, cravejado pelos metais das brochas; e, em vez
dos �penhascos� estrangeirados do soneto de Montenegro, o fundo do
quadro era formado pelos enormes Lajedos-sertanejos, que, de vez em
quando, apareciam ao lado da estrada, enfeitados por Macambiras
roxas e amarelas e pelo vermelho sangrento dos topes das Coroas-de-
Frade.
* * *
A segunda singularidade era que a Cavalgada tinha, � frente, tr�s
homens, � guisa dos �matinadores� que iniciam nossos desiles de
Cavalhada.
O primeiro, o mais da frente, estava a cavalo, e conduzia na m�o
uma bandeira que, depois, devidamente instru�do por mim e pelo
Doutor Pedro Gouveia, o Cantador Lino Pedra-Verde descreveria assim,
no ��folheto� que escreveu sobre o acontecimento:
�Dividida por dois Campos
� um Direito e outro Esquerdo �
tinha tr�s On�as vermelhas
em campo de Ouro � o Direito �
e Contra-arminhos de Prata
semeando o Campo negro.�
Meu irm�o bastardo, Taparica Paje�-Quaderna, � cortador-demadeira
e �riscador� de todas as gravuras com que ilustro as capas dos
�folhetos� impressos por mim, aqui, na Gazeta de Tapero�. Pedi a ele
que izesse uma c�pia dessa bandeira e anexo a gravura resultante aos
autos desta Apela��o, pois ela � pe�a importante no processo que veio
bater comigo aqui, na Cadeia de Tapero�.
Atr�s, por�m, desse primeiro matinador, vinha um segundo
homem, a p�, conduzindo uma pesada haste de madeira, com outra
menor cruzada em cima, sendo que esta, bra�o transversal da cruz,
vinha cheia de Gavi�es e Carcar�s, amarrados pelos p�s a argolinhas
cravadas na madeira.

Em seguida, a cavalo, vinha um terceiro homem, o mais esquisito
de todos, creio. Era uma esp�cie de Frade-cangaceiro. Ou, para icar
mais de acordo com o estilo de meu Mestre, o Doutor Samuel
Wandernes, �uma esp�cie de Monge-cavaleiro�, �nicas express�es
capazes, talvez, de dar ideia desse personagem, Frei Sim�o de nome, e
que, posteriormente, veio a se tornar, em nossa Vila, centro de grandes
controv�rsias. Ali�s, a meu ver, ou por ignor�ncia ou por m�-f�: porque,
aqui no Sert�o, a coisa menos surpreendente � um Padre-cangaceiro, do
tipo do Padre Aristides Ferreira, degolado em Pianc�, pela �Coluna
Prestes�, em 1926; ou parecido com aqueles Bispos e Monges que,
segundo o genial Acad�mico pernambucano, Doutor Manuel de Oliveira
Lima, envergavam, na Idade M�dia, armaduras de ferro sob as
sobrepelizes e pluviais, colocando-se, assim, �� frente de bandos
armados�.

BANDEIRA DAS ON�AS, QUE VINHA NA CAVALGADA DO
RAPAZ-DO-CAVALO-BRANCO.

Entretanto, o nosso Monge-cangaceiro daquele dia n�o vinha
nem com sobrepeliz nem com armadura de ferro. Envergava um burel
branco, com um enorme Cora��o-de-Jesus sangrento e lamejante,
bordado a seda vermelha, no peito. Por baixo do burel, arrega�ado
porque o Frade viajava escanchado na sela, viam-se cal�as-perneiras de
couro, esporas e sapat�es iguais aos dos outros Cavaleiros, o que
indicava que, por baixo do h�bito, Frei Sim�o usava, tamb�m, guardapeito
e gib�o, se bem que n�o trouxesse chap�u de couro. Em
compensa��o a essa falha, trazia, por�m, por cima do burel, um grosso
cintur�o sertanejo de sola, cartucheira e talabartes atulhados de balas;
assim como trazia �s costas um mosquet�o atravessado, preso a seu
tronco por uma correia de couro que lhe cruzava o peito a tiracolo. O
Frade conduzia ainda, presa na haste de uma lan�a de marmeleiro
incada no ar��o da sela, uma bandeira, mais alta do que larga,
vermelha e com pe�as de ouro enfeitando o campo encarnado � ou �de
goles�, para os que s�o, como eu, entendidos na nobre Arte da
Her�ldica. Nos cantos, formando uma �aspa� ou �santor�, havia quatro
pe�as que pareciam ter sido bordadas em pano amarelo, imitando
ferros-de-ferrar-boi, mas que, de fato, �simbolizavam chamas�, como o
Doutor Pedro Gouveia nos explicaria depois. Entre essas quatro pe�as, e
mais ou menos no meio do campo vermelho, havia um Sol com
dezesseis raios e com seu centro, vazio, formando um anel que
circundava um Pombo volante. Embaixo do Sol, uma Coroa real,
encimada por Esfera e Cruz, sendo todas estas pe�as �de ouro em
campo de goles�. E como, do mesmo modo, essa bandeira � ponto
importante no meu processo, aqui vai, tamb�m, a gravura que Taparica
cortou em casca de caj� e que � c�pia dela.
* * *
Atr�s dos dois porta-bandeiras, o leigo e o Frade, numa jaula
colocada sobre uma carreta puxada por dois burros bem tosados e
escovados, ripados � moda cigano-sertaneja, vinha uma On�a-Pintada,
um soberbo animal de malhas negras e pelo cor de ouro, manchado,
aqui e ali, de um vermelho que se fundia no fulvo, em tons cambiantes
que o Sol incendiava.

Depois, em jaulas semelhantes, vinham: uma On�a-Parda, dessas
chamadas no Sert�o de Su�uaranas ou On�as-de-bode; um casal de
Pav�es, abrindo o macho, ao Sol, sua cauda incrustada de joias e
pedrarias; uma On�a-Negra, ou seja, uma Ma�aroca, que � uma On�a
mesti�a de negra e pintada, dessas que t�m o dorso meio pardo em
cima do espinha�o e sob cujo pelo negro e aveludado veem-se malhas,
meio-negras, meio-vermelhas, mas sempre luminosas: s�o chamadas,
tamb�m, de On�as lombo-pardo, assim como a Negra � chamada On�a-
Tigre ou On�a lombo-preto. E como no Sert�o n�o existem Tigres,
animal estrangeiro, on�a falsiicada, fora certamente j� antevendo,
como alumiado e vision�rio, esta cena da minha hist�ria, que o excelso
Bardo brasileiro Joaquim de Souza-Andrade escreveu aqueles famosos
versos que dizem:
�No Sert�o, no Sert�o, vede a tremente
ondula��o das Malhas luminosas
num rel�mpago � a Tigre atr�s da Cor�a.�
* * *
Para que Vossas Excel�ncias n�o estranhem que eu seja t�o
entendido em On�a e bandeira, explico, primeiro, que sou membro do
nosso querido e tradicional �Instituto Geneal�gico e Hist�rico do Sert�o
do Cariri�, fundado pelo Doutor Pedro Gouveia, e no qual, para se entrar,
a gente tem que fazer um curso completo de bandeiras, bras�es e
outras coisas armoriais. Quanto �s On�as, posso dizer em s� consci�ncia
que fui criado junto com uma, na fazenda �On�a Malhada�, pertencente
a meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto. Na �On�a
Malhada�, n�o sei se como alus�o ao nome da fazenda, havia uma On�a-
Pintada, mansa, criada solta no p�tio e no tabuleiro da frente da casa.
Em segundo lugar, por�m, aqui no Sert�o quem n�o cuidar nas On�as
pode muito bem acabar sendo comido por elas. � da�, ali�s, que se
originam todas essas hist�rias e ditados sertanejos sobre On�as, todos
muito instrutivos. Por exemplo, aquele ditado que diz ��Quem banca o
Carneiro, e n�o o homem, a On�a chega por tr�s e come�. Ou ent�o
aquele outro: �Depois da On�a estar morta, qualquer um tem coragem

de meter o dedo no Cu dela.� Temos, ainda, uma hist�ria do meu amigo
Eus�bio Monteiro, conhecido aqui na rua como Dom Eus�bio Monturo.
Ele me dizia certa vez:
� Eu vejo esse pessoal por a� dizer a toda hora: � Eu tive um
susto, dei um salto, um grito... Povo mole dos seiscentos diabos! Olhe,
Quaderna, no dia em que eu der um salto e um grito, voc� pode correr:
foi porque a On�a j� comeu metade da polpa da minha bunda!
Finalmente, fosse ou n�o fosse para mim uma quest�o de
sobreviv�ncia, eu teria de qualquer modo que ser entendido em On�a,
porque, al�m do Doutor Samuel Wandernes, tenho outro Mestre de
literatura, na pessoa de seu maior rival, o Bacharel Clemente Har� de
Ravasco Anv�rsio, advogado, Fil�sofo e mestre-escola da nossa Vila. E o
movimento liter�rio dele, o �Oncismo Negro-Tapuia do Brasil�, exige,
entre outras coisas, que n�s sejamos �i�is � realidade e �s On�as do
Sert�o�.
* * *
Mas, como eu vinha dizendo: seguia-se �s On�as, no desile da
�cavalgada moura�, um casal de Gavi�es-Reais, que s�o as �guias
sertanejas. Vinha, tamb�m, uma Cor�a parda com o macho, um soberbo
Veado-Galheiro de chifres entran�ados. Vinha um caix�o cheio de
Cobras � mu�uranas, corais e cascav�is. E vinham tr�s ou quatro
Gar�as lind�ssimas e brancas, alternando-se, no cortejo, os bichos de
pena com os animais de presa.
Atr�s das carretas dos animais, a p�, vinham dois homens, um
com um Gavi�o-Tourano � que � o mesmo Gavi�o mariscado � e outro
com um Gavi�o-Vermelho. Ambas essas aves vinham presas aos pulsos
dos condutores por correntinhas de metal e ostentando m�scaras e
protetores de couro no bico e nas garras.
Outro matinador, a cavalo, fechava ent�o a primeira parte do
desile, iniciando ao mesmo tempo a segunda, o grupo principal dos
Cavaleiros que, atr�s, se repartiam em duas ilas, beirando, cada uma,
seu lado da estrada. No espa�o vago que havia, por�m, entre as carretas
e as duas ilas de Ciganos, espa�o que era guardado por elas e mantido
com mostras de um respeito quase religioso, viajavam dois Cavaleiros.

* * *
O cavalo do primeiro era negro e, se n�o fosse por isso,
confundir-se-ia, pelo tamanho e pela qualidade, com as montarias dos
outros, que eram Cavalos castanhos, alaz�es, pampos, ru�os, pombos ou
melados. Era ele um homem j� descaindo para os cinquenta anos,
vestido �de modo elegante, se bem que um pouco antiquado�, segundo
observou depois, no inqu�rito que se abriu, o jovem Gustavo Moraes,
ilho mais velho do usineiro e dono de minas Dom Ant�nio Noronha de
Britto Moraes. Era aquele mesmo Doutor Pedro Gouveia da C�mara
Pereira Monteiro que, fundando o nosso �Instituto Geneal�gico� e
distribuindo suas cartas de nobreza, exerceu t�o profunda inlu�ncia na
vida de todos n�s e na estranha Desaventura vivida por Sin�sio, O
Alumioso, na demanda novelosa da Guerra do Reino, causa principal da
minha pris�o.
O Doutor Pedro Gouveia trazia palet� preto com debruns de
seda negra na gola, uma rosa vermelha � botoeira, colete cinza com
rel�gio e corrent�o de ouro, cal�as justas, riscadas de negro e cinza,
botinas negro-pardas, abotoadas de lado por uma ieira de bot�es, e
polainas brancas. Com uma das m�os, segurava as r�deas do cavalo.
Com a outra, sobra�ava um meio-termo de pasta-de-documentos e
maleta de viagem. Como logo descobrir�amos depois, ali, naquela pasta,
� que vinham todos os pap�is e documentos que terminariam causando
tanta complica��o, tantas mortes e tantos infort�nios. Amarrada ao
pesco�o por uma ita branca e amarela � �as cores do Papa�, como ele
mesmo nos explicou � o Doutor carregava uma esp�cie de
condecora��o, �uma Cruz semelhante � da Ordem de Cristo, mas com
esmaltes diferentes�, pois era de ouro e goles � ou de amarelo e
vermelho, para os n�o traquejados na Her�ldica. No dedo anular da
m�o esquerda, o Doutor usava um anel brasonado. No indicador da
direita, uma pedra-de-grau de Licenciado em Direito, um enorme rubi,
cercado por pequenos diamantes encravados em chuveiro.
Explico a Vossas Excel�ncias que, sendo j�, como sou, um
Acad�mico, tive, na inf�ncia, muito contacto com os Cantadores
sertanejos, tendo mesmo, sob as ordens de meu velho primo Jo�o
Melch�ades Ferreira da Silva, praticado um pouco da Arte da Cantoria.
Depois, por�m, por inlu�ncia do Doutor Samuel e do Professor
Clemente, passei a desprezar os Cantadores. At� que, l� um dia, li um

artigo de escritor consagrado e Acad�mico, o paraibano Carlos Dias
Fernandes, artigo no qual, depois de chamar os Cantadores de
�Trovadores de chap�u de couro�, ele os elogiava, dizendo que �o
esp�rito �pico da nossa Ra�a� andava certamente esparso por a�, nos
cantos rudes daqueles �Aedos sertanejos�. Depois da�, senti-me
autorizado a externar meu velho e secreto gosto, minha velha e secreta
admira��o. Perdi o acanhamento acad�mico a que tinha me visto
obrigado, de modo que, agora, para descrever melhor o Doutor Pedro
Gouveia, posso e devo lan�ar m�o dos versos do genial Cantador
Jer�nimo do Junqueiro, nos seguintes termos:
�Era magro e espigado,
metido um tanto a pimp�o.
Trazia Cruz ao pesco�o,
trancelim, Colar, cord�o.
Todo vestido de preto
� sela, bride, estribo, ar��o �
com seu Chap�u, tamb�m negro,
com a luz do Sol na m�o,
de botinas-borzeguim,
passa-p�, como um Bar�o,
sobre o Colete cinzento
ajeitava o corrent�o.
No dedo da m�o direita,
seu Anel de condi��o.
No dedo da m�o esquerda,
um outro Anel, com Bras�o.
Era um dele, outro emprestado:
mau costume do Sert�o!�
* * *
Quanto ao segundo Cavaleiro, para evoc�-lo aqui talvez seja
ainda mais necess�rio que eu me socorra das Musas de outros Poetas
brasileiros e da minha pr�pria � aquele Gavi�o macho-e-f�mea e
sertanejo ao qual devo minha visagem po�tica e prof�tica de Alumiado.
Cercava-o, efetivamente, uma atmosfera sobrenatural, uma esp�cie de

�aura� que s� mesmo o fogo da Poesia pode descrever e que, mesmo
depois de sua chegada, ainda podia ser entrevista em torno da sua
cabe�a, pelo menos �por aqueles que tinham olhos para ver�.
Tinha cerca de vinte e cinco anos. N�o era simplesmente um
rapaz: era um mancebo. Mais do que isso: era um Donzel. E tem gente,
a� pela rua, que, ainda hoje, garante que naquele tempo ele chegava,
mesmo, a ser um donzelo. Fosse como fosse, a primeira pergunta que
nos ocorria diante dele era aquela que eu tantas vezes li na Antologia
Nacional de Carlos de Laet: �Dom Donzel, onde est� El-Rei?�
Via-se que ele era o centro, motivo e honra da Cavalgada, porque
lhe tinham destacado a maior, mais bela e melhor das montarias, um
enorme e nobre animal branco, de narinas rosadas, de cauda e crinas
cor de ouro, Cavalo que, como soubemos depois, tinha o nome
legend�rio de �Tremedal�. Ele o montava, como observou mais tarde o
Doutor Samuel, �com um ar ao mesmo tempo modesto e altivo de jovem
Pr�ncipe, rec�m-coroado e que, por isso mesmo, ainda est� convencido
de sua realeza�. Alto, esbelto, de pele ligeiramente amorenada e de
cabelos castanhos, montava com eleg�ncia, e de seus grandes olhos,
tamb�m castanhos e um pouco melanc�licos, espalhava-se sobre todo o
seu rosto uma certa gra�a sonhadora que suavizava at� certo ponto
suas fei��es e sua natureza � �s vezes arrebatada, en�rgica, quase dura
e meio enigm�tica, como depois viemos a notar, principalmente depois
dos terr�veis acontecimentos da morte de Ar�sio.
Como, ao que parece, tinha-se convencionado que ningu�m se
vestisse de maneira mais comum naquela tribo, o Rapaz-do-Cavalo-
Branco usava um gib�o mais artisticamente trabalhado do que os dos
outros Cavaleiros. Assemelhava-se aos �gib�es de honra e boniteza� que
se usam nos desiles de Cavalhadas e puxadas-de-boi. Era feito de tr�s
qualidades diferentes de couro � de Bode, de Vaqueta e de Veado �,
combinando de maneira variada o amarelo, o castanho, o vermelho e o
negro. Tinha as mesmas joelheiras e ombreiras dos outros. As dele,
por�m, eram negras e costuradas ao couro castanho da v�stia e das
�guardas� por tiras de couro vermelho, de modo que, mais do que
qualquer outro, seu gib�o parecia a armadura de um Cavaleiro
sertanejo, com os couros tran�ados em ouro, p�rpura, goles e sable �
para narrar com esmaltes her�ldicos esta her�ldica cena da mais
armorial Cavalaria sertaneja. E o pr�prio Donzel, assim, com aquela

roupa de couro dominantemente amarela e vermelha, parecia � todo
ele ouro, sangue e cora��o � um Valete de Copas montado num cavalo
branco e escoltado por uma tropa sertaneja de Peninchas e Valetes de
Paus ou de Espadas.
O mais not�vel, por�m, � que, atado ao pesco�o por uma
fechadura de prata, ca�a por tr�s das costas do Donzel, de modo a cobrir
a garupa do cavalo �Tremedal�, um manto vermelho, no qual estava
bordado um grande Escudo com as mesmas armas da bandeira � as
tr�s On�as vermelhas em campo de ouro e os treze contra-arminhos de
prata em campo negro. Aqui, por�m, havia uma novidade: o escudo era
encimado por uma igura a modo de �timbre�, uma bela Dama de
cabelos soltos, vestida com um manto negro semeado de contraarminhos
de prata e mantendo as m�os cobertas. Era a Dama jovem e
sonhosa, de olhos verdes, de cabelos lisos, inos, compridos e castanhoclaros
que seria, para o Rapaz-do-Cavalo-Branco, �o grande amor de sua
vida�.
Notem Vossas Excel�ncias que Gon�alves Dias j� fazia refer�ncia
a ela, pois escreveu, assim como eu j� disse: �De sua Dama de Copas, no
Escudo trazia as cores: tinha amor pela Sonhosa, eram claros seus
amores.� Ora, naquele dia em que iniciava sua Desaventura, o Rapaz-do-
Cavalo-Branco ainda n�o reconhecera aquela mo�a meio ausente,
absorta e sonhosa, de cabelos castanhos e olhos verde-azuis, aquela que
veio a ser o grande amor de sua vida. Como se explica, pois, que j�
trouxesse a imagem dela gravada em seu escudo? Respondo, f�cil: tudo
isso �s�o coisas cifradas e enigm�ticas�, como costuma dizer o Doutor
Samuel, coisas que somente um Poeta-escriv�o, Acad�mico, exseminarista
e Astr�logo sertanejo como eu pode decifrar. Vamos
adiante que, aos poucos, Vossas Excel�ncias terminar�o por entender
tudo em seu verdadeiro signiicado.
De fato, nobres Senhores e belas Damas de peitos macios, o
escudo que acabei de descrever era o Bras�o familiar do Donzel, como o
Doutor Pedro Gouveia explicaria logo mais. Mas n�o deixa, tamb�m, de
ser �uma coincid�ncia epopeica, astrosa e fat�dica�, que o timbre desse
Escudo fosse exatamente �uma Dama de cabelos soltos e com as m�os
cobertas�: porque a mo�a Heliana, aquela que veio a ser o grande amor
e o segredo da sua vida, vivia sempre com as m�os cobertas, n�o se

conhecendo not�cia de homem nenhum a quem ela, conscientemente,
consentisse desvend�-las � com exce��o dele, � claro.
E para concluir a descri��o da parelha de homens-de-pr� que
viria subverter nossa Vila naquele s�bado de 1935, valho-me do genial
Amador Santelmo, que deles falou assim, na sua bem conhecida Vida,
Aventuras e Morte de Lampi�o e Maria Bonita:
�Dizem que uma Sombra escura
com duas Pontas na testa,
por onde o Donzel caminha,
ao lado, se manifesta.
Desde a Cadeia onde o Mo�o
na Morte foi sepultado,
esta Sombra cornipeta
caminha sempre a seu lado.
Como irm�-de-caridade
seguindo o jovem Defunto,
o Carcar� de chavelhos
vai sempre ao Mancebo junto.
O Doutor, luz verde-escura
da Cidade dos P�s Juntos,
Lampra acesa dos Jazigos,
fogo-f�tuo dos Defuntos.
O Donzel, estrela errante,
facho dos Lumes eternos,
ouro do Sol, Desaio
�s negras chamas do Inferno.
O Doutor, vela de sebo,
sinal dos Magos err�neos,
Lume l�gubre da Morte,
lampad�rio do Dem�nio.
O Donzel, lustre e Candeia
que o Sol do sangue espadana,
carne cravada de Estrelas,
Coroa da Ra�a Humana!�

BANDEIRA DO DIVINO ESP�RITO SANTO DO SERT�O, QUE O
FRADE CONDUZIA.

V
FOLHETO III
A Aventura da Emboscada Sertaneja
ossas excel�ncias n�o imaginam o trabalho que tive para arrumar,
numa �prosa her�ldica�, como dizia o grande Carlos Dias
Fernandes, todos os elementos desta cena, colhidos em certid�es que
mandei tirar dos depoimentos dados por mim no inqu�rito. S� o
consegui porque, al�m de pertencer ao �Oncismo� do Professor
Clemente, perten�o tamb�m ao movimento liter�rio do Doutor Samuel
Wandernes, o �Tapirismo Ib�rico do Nordeste�. Gra�as a este �ltimo �
que omiti, nas descri��es que iz at� aqui, qualquer refer�ncia ao
tamanho diminuto e � magreza dos cavalos sertanejos que serviam de
montada aos Cavaleiros, assim como �s pobrezas e sujeiras mais
aberrantes e evidentes da tropa. No movimento liter�rio de Samuel �
assim: On�a, � �jaguar�, anta, � �Tapir�, e qualquer cavalinho esquel�tico
e crioulo do Brasil � logo explicado como �um descendente magro,
ardente, nervoso e �gil das nobres ra�as andaluzas e �rabes, cruzadas
na Pen�nsula Ib�rica e para c� trazidas pelos Conquistadores idalgos da
Espanha e de Portugal, quando realizaram a Cruzada �pica da
Conquista�. Tendo sido eu disc�pulo desses dois homens durante a vida
inteira, nota-se � primeira vista que meu estilo � uma fus�o feliz do
�oncismo� de Clemente com o �tapirismo� de Samuel. � por isso que,
contando a chegada do Donzel, parti, oncisticamente, �da realidade
raposa e afoscada do Sert�o�, com seus animais feios e plebeus, como o
Urubu, o Sapo e a Lagartixa, e com os retirantes famintos, sujos,
maltrapilhos e desdentados. Mas, por um arti�cio tapirista de estilo,
pelo menos nessa primeira cena de estrada, s� lembrei o que, da
realidade pobre e oncista do Sert�o, pudesse se combinar com os
esmaltes e bras�es tapiristas da Her�ldica. Cuidei de s� falar nas
bandeiras, que se usam realmente no Sert�o para as prociss�es e para
as Cavalhadas; nos gib�es-de-honra, que s�o as armaduras de couro dos
Sertanejos; na Cobra-Coral; na On�a; nos Gavi�es; nos Pav�es; e em

homens que, estando de gib�o e montados a cavalo, n�o s�o homens
sertanejos comuns, mas sim Cavaleiros � altura de uma hist�ria
bandeirosa e cavalariana como a minha.
Entretanto, � deste relato que depende a minha sorte e ningu�m
� t�o fan�tico a ponto de fazer Literatura em troca de cadeia. Devo ser
exato: e infelizmente, no mesmo instante em que consigo arrumar tudo,
tenho que desarrumar tudo de novo. Porque, naquele dia, quando a
Cavalgada vinha perto do legend�rio Riacho de Cosme Pinto, ela mesma
foi desarrumada por um incidente sujo e onc�stico, que causou alguns
rasg�es raposos na bandeira da frente, sujou homens e cavalos de suor
e poeira e chegou mesmo a derramar sangue, se bem que esta �ltima
parte ainda possa ser considerada tapirista e her�ldica, pois houve tiros
e reluzir de facas nos riscos de Sol � o que n�o deixa de ser armorial.
* * *
Naquele ponto da estrada, do lado direito de quem vem para
Tapero�, existe um Lajedo n�o dos maiores, manchado aqui e ali de
l�quenes avermelhados, e separado da estrada por um peda�o de
tabuleiro raso, coberto de ralos p�s de Marmeleiro, Pinh�o, Velame,
Malva e Cardo-Santo. Pouco antes de atingir esse Lajedo, a carreta da
On�a-Pintada enganchou-se na subida de uma ladeira. Atendendo a
uma ordem r�pida do Cigano Praxedes � que, como soubemos depois,
n�o era o verdadeiro Chefe, mas sim seu preposto e uma esp�cie de
Sargento-Mor da tropa � alguns dos almocreves que tangiam os burros
come�aram a empurrar a carreta, atrasando a marcha do grupo
compacto de Cavaleiros. O Doutor Pedro Gouveia, impaciente pela
demora, esporeou seu cavalo e foi se colocar, com o rapaz, perto de Frei
Sim�o, l� na frente. E como o resto da Cavalgada parasse com o
contratempo, a parte da frente dela se adiantou, de modo que foram
eles os primeiros a cair numa emboscada, cujos componentes estavam
escondidos no Lajedo, por tr�s de umas pedras que em seu topo se
equilibravam.
O tiroteio come�ou de maneira um tanto inusitada. Na grimpa do
lajedo, erguendo-se de tr�s da pedra, apareceu de repente um Negro
mo�o, desempenado, vestido de c�qui, encruzado de cartucheiras e de
chap�u de couro � cabe�a. Erguendo um rile bem alto no ar com a m�o

direita, o Negro cantou uma estrofe desaiadora, rindo com os dentes
alvos e perfeitos que luziam no Sol:
�Filha de branco,
linda e clara como a Lua!
Eu vou pegar voc� nua,
mas n�o � para casar!
� pra lascar,
que eu me chamo � Ludugero!
Eu nasci Negro e s� quero
mo�a branca pra estragar!�
Acabada a estrofe e aproveitando o momento de estupefa��o
causado por seu aparecimento, o Negro Ludugero � ou Ludugero
Cobra-Preta, como tamb�m era conhecido � deu um rincho de jumento
e, levando o rile � cara, atirou.
Pode-se dizer que a salva��o do Rapaz-do-Cavalo-Branco deveuse,
naquele instante, � bandeira que o Matinador da frente conduzia.
Julgando, por causa dela, que �aquele era o rapaz importante da
encomenda que tinham recebido�, foi contra o matinador da bandeira
que se disparou o primeiro tiro e convergiram os outros disparos, numa
saraivada de balas que ressoaram por tr�s das pedras, em estalos secos
como os de um tabocal incendiado, por entre gritos, insultos, relinchos
e gargalhadas:
�E era um barulho danado,
todo esse Povo atirando!
As balas, por perto deles,
passavam no Ar, silvando!
O tiroteio imitava
um Tabocal se queimando!�
O homem que vinha com os Gavi�es, vendo come�ar o tiroteio,
largou no ch�o a cruz que vinha com as aves, correu para o outro lado
da estrada e deitou-se em sua beira, encolhendo-se o mais que podia

para passar despercebido. Mas, com o corpo todo traspassado de balas,
o matinador da bandeira caiu do cavalo, j� nos estreme�os da morte.
Como icara com o p� enganchado no estribo, foi arrastado pelo cavalo
espavorido na dire��o aqui de Tapero�, com a bandeira rasgando-se um
pouco e sujando-se muito, enquanto ele mesmo deixava pelo ch�o
endurecido da estrada peda�os de seu couro e golfadas de sangue, logo
bebidas pelo Sol e pelo p�. Soubemos, depois, que ele se chamava Jos�
Colatino. Era do Sert�o do Sabugi. Deixara sua casa, encravada no sop�
�spero e seco da pedregosa Serra de Santa Luzia, para se alistar nas
tropas do Cigano Praxedes e morrer ali, daquele jeito!
O Doutor Pedro Gouveia, homem expedito, calculou num repente
o que se seguiria se o Rapaz-do-Cavalo-Branco icasse ali mais alguns
segundos. Viu ent�o que o cavalo de Colatino, depois de correr
duzentos a trezentos metros arrastando o corpo, parara na beira
esquerda da estrada e ali se mantinha impass�vel, por cansa�o ou por
pachorra. Isso indicava que provavelmente n�o havia ali outros
Cangaceiros emboscados. O Doutor gritou, ent�o, para o rapaz:
� Abaixe-se!
Em seguida, jogando no ch�o a pasta de documentos, abra�ou-se
ao pesco�o de seu cavalo, pegou na r�dea de �Tremedal�, esporeou sua
pr�pria montaria, e assim galoparam os dois para o lugar onde parara o
cavalo de Colatino. Por sua vez, o gigantesco Frei Sim�o, entendendo
logo o alcance da manobra do Doutor, viu que, quanto a si, o melhor que
tinha a fazer era icar entretendo com tiros os Cangaceiros do lajedo.
Saltou, portanto, do cavalo e, como antigo que era nas refregas
sertanejas, abrigou-se por tr�s do animal, fazendo trincheira do corpo
do bicho, ao mesmo tempo que o segurava para ele n�o correr, com a
m�o esquerda no freio e a direita no loro do estribo. Notando, ent�o,
que o cavalo, apesar de estremecer a cada estalo de tiro, n�o estava
amedrontado a ponto de desembestar, emendou, com r�dea curta, o
loro com a bride, tirou o mosquet�o das costas e come�ou a responder
ao fogo cerrado dos riles, que pipocavam de tr�s das pedras do Lajedo.
Tempos depois, Lino Pedra-Verde escreveria aquele tal
�romance� a que j� me referi, e eu me lembro bem de que, quando
chegava a essa parte, havia uma sextilha meio plagiada do Romance do
Valente Vilela, assim:

�Frei Sim�o pegou do Rile,
icou o Mundo tinindo!
Era o dedo amolegando
e o fumaceiro cobrindo,
balas batendo nas Pedras,
voltando pra tr�s, zunindo!�
� verdade que o Frade trazia era um mosquet�o. Mas como este
n�o cabia na m�trica, Lino Pedra-Verde transformou-o num rile, no
�folheto�. E � a� que eu, apesar de partir �da realidade rasa e cruel do
mundo�, como Clemente, dou tamb�m raz�o a Samuel, quando diz que,
na Arte, a gente tem que ajeitar um pouco a realidade que, de outra
forma, n�o caberia bem nas m�tricas da Poesia.
* * *
Enquanto Frei Sim�o trocava tiros com os Cangaceiros, o Doutor
e o rapaz chegavam, sem dano, ao lugar que procuravam. A sorte foi que
o Capit�o Ludugero recebera informa��es erradas sobre a tropa, o que
o atraso das carretas e dos Cavaleiros conirmara. Sendo assim, seguro
de sua superioridade, o Negro n�o tivera o cuidado de empiquetar os
dois lados da estrada.
O Doutor pensou, primeiro, em ultrapassar o cavalo de Colatino,
continuando a carreira em dire��o a Tapero�. Depois, por�m, lembrouse
de que seria perigoso perder liga��o, de vez, com a tropa do Cigano,
que n�o estava longe. Ordenou ao rapaz que desmontasse, apeou-se e,
for�ando os cavalos a se deitarem, espicharam-se os dois no ch�o, por
tr�s dos bichos, para cuidarem tamb�m um pouco do Frade, que estava
em situa��o di�cil.
A� os acontecimentos se precipitaram. Porque sete ou oito
Cangaceiros, vendo, de cima do Lajedo, que os dois tinham parado, fora
do alcance dos tiros mas sozinhos e praticamente inermes, come�aram
a sair de tr�s das trincheiras de pedra: deixando dois ou tr�s
companheiros para a troca de tiros com o Frade, desceram o lanco
direito do Serrote e correram na dire��o dos dois para acabar com eles.
O Doutor puxou a pistola e j� ia ordenar ao rapaz que montasse e
buscasse salva��o na fuga, enquanto ele resistia. Mas nesse momento o

Cigano Praxedes apontou na estrada, galopando desenfreadamente com
seus Cavaleiros. Conforme soubemos depois, o verdadeiro Chefe e
Mestre-de-Campo da tropa viajava inc�gnito, no meio dos simples
Almocreves da cavalgada. Do lugar em que estava, junto �s carretas,
ouvira o pipocar dos tiros e, na emerg�ncia, dera ordem ao Cigano para
varrer o local a patas de cavalo.
Foi outro golpe de sorte. Se os Cangaceiros n�o tivessem sa�do
de cima do serrote, a situa��o dos Ciganos seria ruim, incapacitados
como estavam de escalar os lajedos. Teriam que desmontar, e, a p�, os
grossos gib�es e cal�as de couro tolheriam seus movimentos, numa luta
corpo a corpo. Mas os Cangaceiros tinham se desentocado de tr�s das
pedras, e agora corriam a p�, no raso, pela beira da estrada.
Na carreira em que vinha a tropa, uma ila de Cavaleiros, a da
direita, obedecendo a uma ordem gritada ao vento pelo Cigano, galopou
pela Caatinga, demandando a parte traseira do lajedo e a retaguarda
dos Cangaceiros que ali ainda estavam, a im de, com isso, aliviar a
posi��o do Frade. Os outros, passando entre Frei Sim�o e as pedras e
desembainhando os enormes fac�es rabo-de-galo, partiram, com o
Cigano � frente, para os Cangaceiros que corriam contra o rapaz e o
Doutor.
De cima do lajedo, Ludugero Cobra-Preta viu tudo e entendeu a
gravidade da situa��o. Corajoso e galhofeiro como era, foi zombando de
si mesmo e dos seus que colocou as m�os em concha na boca e gritou:
� Eita, que a gente agora vai se acabar tudo na faca! Corre,
cabroeira dos seiscentos diabos! Cai no marmeleiro, negrada! Entope
no oco do mundo, sen�o vai tudo sangrado!
A�, �s gargalhadas, ele mesmo desceu do lajedo na carreira,
acompanhado pelos Cangaceiros que estavam ainda ali, caindo no mato.
Os Cangaceiros que corriam para o Doutor e o rapaz, ouvindo o alarido
do Capit�o Ludugero entenderam o que vinha por tr�s. Desviaram o
rumo da carreira em que iam, ca�ram na Caatinga e conseguiram atingir
uma cerca-de-pedra, que galgaram depressa, afundando-se no mato
ralo e espinhoso do cercado que havia por tr�s dela. Certos de que j�
tinham cumprido o objetivo principal da emboscada e matado o rapaz
que lhes fora designado, queriam agora era escapar o mais depressa
poss�vel, fugindo � luta desigual com toda aquela tropa. Por outro lado,
isso vinha ao encontro do que o Frade e o Doutor desejavam. Vendo que

os Cangaceiros fugiam, os dois se reuniram, confabularam rapidamente
e deram uma ordem a Praxedes. Foi a vez de soar o grito do Cigano,
ordenando que a tropa de Cavaleiros sa�sse daquele mato perigoso, que
novamente poderia favorecer os Cangaceiros, para emboscadas. A
tropa, obedecendo a Praxedes, reuniu-se de novo na estrada, e todos,
insensivelmente atra�dos pela igura do Rapaz-do-Cavalo-Branco,
ixaram os olhos nele, como a indagar at� que ponto ele fora atingido
pelos acontecimentos. Ele estava j� de p�, segurando as r�deas de
�Tremedal� e contemplando, absorto, o corpo do rapaz que morrera em
seu lugar. O Doutor, depois de apanhar a importante pasta de
documentos, caminhou para l�, puxando seu cavalo pela r�dea:
� Venha, vamos embora! � falou ele para o rapaz. � O que
passou, passou!
� Ele est� morto? � perguntou o rapaz, sempre com express�o
meio ausente.
� Est�, sim! Mas vamos! � insistiu o Doutor Pedro Gouveia.
Enquanto assim falavam, o Frade, aproveitando a aten��o com
que todos olhavam para o rapaz, ia catando e guardando
disfar�adamente, no bolso da batina, c�psulas delagradas e mesmo tr�s
ou quatro amassadas balas de chumbo. O rapaz, sempre olhando o
corpo de Colatino, comentou:
� � a primeira vez que eu vejo a morte!
� � assim mesmo, � a vida! � disse o Doutor, apanhando a
bandeira, espanando com o len�o a poeira que a sujara e passando-a a
outro, para que assumisse o posto de matinador, de Colatino. E
continuou: � Hoje ou amanh�, de tiro ou de doen�a, de qualquer jeito
um dia ele tinha de morrer! Depois, talvez n�o seja esta a primeira vez
que voc� v� a morte! Talvez voc� esteja somente esquecido, por causa
de tudo o que passou, de outras mortes que viu, antes. Mas vamos sair
logo daqui, que os Cangaceiros podem voltar com mais gente!
Nesse momento, um homem alto, magro e forte, de olhos
castanhos, com a calma, a energia e a mansid�o aparente dos Sertanejos
mais corajosos, destacou-se do meio dos almocreves, que a essa altura
tamb�m j� tinham chegado, e aproximou-se do Doutor. Era o Chefe e
Capit�o-Mor da tropa, um homem cujo nome, quando depois se
espalhou pela Vila, eletrizou todo mundo: porque ele era, nem mais
nem menos, que o c�lebre Lu�s Pereira de Sousa, mais conhecido como

Lu�s do Tri�ngulo, por causa de sua pequena fazenda pajeuzeira, �O
Tri�ngulo�. E s� estranhar� que esse nome de Lu�s do Tri�ngulo tenha
causado tanta emo��o entre n�s quem ignorar dois fatos: primeiro, que,
pertencendo ele � grande fam�lia dos Pereiras, do Paje� � famosa pela
coragem e pelas fa�anhas guerreiras �, Lu�s do Tri�ngulo era parente
de Dom Jos� Pereira Lima, aquele mesmo Fidalgo sertanejo que, em
1930, se rebelara contra o Governo, tornando-se Rei-guerrilheiro de
Princesa, proclamando a independ�ncia do munic�pio com hino, selo,
bandeira, constitui��o e tudo, subvertendo o Sert�o da Para�ba � frente
do seu ex�rcito de 2.000 homens de armas, numa guerrilha heroica que
o governo do Presidente Jo�o Pessoa em v�o tentou vencer com sua
Pol�cia. Nesse Reino, ou Territ�rio Livre, de Princesa, o Rei era Dom Jos�
Pereira Lima, O Invenc�vel, e Lu�s do Tri�ngulo, ent�o com 32 anos, era
o Condest�vel e Chefe do Estado-Maior. O outro fato importante, ligado
a Lu�s do Tri�ngulo, era que ele possu�a uma terra, situada exatamente
na fronteira da Para�ba com Pernambuco, para os lados do Sert�o do
Pianc�. Nessa terra, ica a famosa Serra do Reino, na qual se erguem
aquelas duas enormes pedras, estreitas, compridas e paralelas, que os
nossos Sertanejos consideram sagradas, por serem as torres do Castelo,
Fortaleza ou Catedral Encantada onde meu bisav�, Dom Jo�o Ferreira-
Quaderna, foi Rei, ensinando, de uma vez para sempre, que o Castelo
est� ali, soterrado por um cruel encantamento, do qual somente o
sangue nos poderia livrar, acabando de uma vez com a mis�ria do
Sert�o e fazendo todos n�s felizes, ricos, belos, poderosos, eternamente
jovens e imortais.
Lu�s do Tri�ngulo chegou-se para o Doutor, falando:
� Viu o que eu lhe disse, Seu Doutor? Era o grupo de Ludugero
Cobra-Preta!
� Sim! � concordou o Doutor. � Mas deve ter sido tudo a
mandado do pessoal de Tapero�: de Ar�sio Garcia-Barretto e de
Ant�nio Moraes!
� Mas o senhor viu como eu tinha raz�o? Com essa hist�ria de
se viajar de gib�o, que o senhor inventou, a gente podia ter se
desgra�ado!
� � verdade, e eu sabia que voc� tinha raz�o, Lu�s! � retrucou,
s�rio, o Doutor. � Mas eu n�o podia abrir m�o das bandeiras e dos
gib�es: tudo isso me � indispens�vel para impressionar o Povo, quando

entrarmos em Tapero�! E n�o se queixe, porque a bandeira tamb�m foi
ideia minha e, se n�o fosse ela, a essas horas o morto seria outro!
Lamento por causa do rapaz que morreu, mas um de n�s teria que
morrer e, no mais, tudo vai bem! Antes de chegar no Cosme Pinto, a
gente faz uma parada, enterra Colatino e almo�a: d� tempo de chegar
em Tapero� a� pelas duas horas da tarde, exatamente quando estar�
come�ando a Cavalhada que o Prefeito organizou. Vamos embora!
Montaram. O Rapaz-do-Cavalo-Branco tamb�m montou. Naquele
tempo, as for�as da viol�ncia e as divindades subterr�neas ainda
estavam adormecidas em seu sangue, pois n�o tinham sido despertadas
pelo veneno do nosso conv�vio. De modo que, sonhoso e absorto, ele
ignorava naquele instante quantas cenas e quantas mortes sua chegada
iria causar entre n�s, durante os tr�s anos que medearam entre aquela
V�spera de Pentecostes de 1935 e a Semana da Paix�o deste nosso ano
de 1938. Foi tamb�m esta cena inicial da �Demanda Novelosa do Reino
do Sert�o� que terminou batendo com meus costados na Cadeia onde
estou preso, � merc� do julgamento de Vossas Excel�ncias.
Naquele dia, por�m, e mesmo com o aviso dado pela Provid�ncia
com a morte de Colatino, ainda n�o estava rompida a descuidosa mas
culposa ignor�ncia em que est�vamos todos n�s que ir�amos participar
da terr�vel Desaventura do Rapaz-do-Cavalo-Branco. O Sol alumiava e
esquentava tudo, como antes. Como se tivesse sido por ele gerado, um
Ferreiro, no mato, come�ou a desferir seu canto met�lico, semelhante
ao batido dum martelo numa bigorna, canto logo seguido pelos piados,
tamb�m violentos e met�licos, de um bando de Canc�es. O corpo de
Colatino, colocado de trav�s em cima do cavalo, foi conduzido assim,
aguardando o enterro que o Doutor ordenara para logo mais, nas
imedia��es do hist�rico riacho em que, no s�culo XVII, o Ajudante
Cosme Pinto iniciara a penetra��o do Cariri, sob as ordens do Capit�o-
Mor Teod�sio de Oliveira Ledo. Novamente a tropa de Cavaleiros, com a
bandeira � frente, tomou o caminho de Tapero�. Agora, por�m, como
precau��o, o rapaz, o Doutor e o Frade iam no meio dos dois cord�es de
Cavaleiros e todos viajavam de rile na m�o, prontos para qualquer
novo ataque. Aquele, por�m, seria o �ltimo incidente s�rio, at� a
chegada a Tapero�. O perigo principal passara, de modo que, como
tinha previsto desde 1922 o genial J. A. Nogueira � em seu livro Sonho
de Gigante, que tanta inlu�ncia exerceu entre n�s, Acad�micos

sertanejos �, naquele instante, passando o lajedo e a emboscada, �o
Peregrino do Sonho transpunha, de repente, a fronteira de dois Reinos.
O Rio subterr�neo deixava de reletir as tenebrosas asperezas da regi�o
da morte: elevou-se como uma Coluna de diamantes e, arrebentando �
lor da terra, espraiou-se debaixo de um C�u de meio-dia, na regi�o
pedregosa do Sol e das altitudes, que o Reabilitador da vida elegera
para iluminar com sua presen�a de Fogo�.

P
FOLHETO IV
O Caso do Fazendeiro Degolado
ode-se dizer, nobres Senhores e belas Damas, que houve duas
causas pr�ximas para minha pris�o. A primeira, foi a chegada, a
Tapero�, do Rapaz-do-Cavalo-Branco. A segunda, estreitamente ligada a
ela, foi o assassinato, por degola��o, de meu tio e Padrinho, o
fazendeiro Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto. Meu Padrinho foi
encontrado morto, no dia 24 de Agosto de 1930, no elevado aposento
de uma torre que existia na sua fazenda, a �On�a Malhada�. Essa torre
servia, ao mesmo tempo, de mirante � casa-forte, e de campan�rio �
capela da Fazenda, que era pegada � casa. Seu aposento superior era
um quarto quadrado, sem m�veis nem janelas. O ch�o, as grossas
paredes e o teto abobadado desse aposento eram de pedra-e-cal. Por
outro lado, meu Padrinho, naquele dia, entrara s� no aposento e
trancara-se l� em cima, dentro dele, usando, para isso, n�o s� a chave,
como a barra de ferro que a porta tinha por dentro, como tranca. Outra
coisa misteriosa: no mesmo dia, Sin�sio, o ilho mais mo�o de meu
Padrinho, desapareceu sem ningu�m saber como. Dizia-se que fora
raptado, a mando das pessoas que tinham degolado seu Pai, pessoas
que odiavam o rapaz porque ele era amado pelo Povo sertanejo, que
depositava nele as �ltimas esperan�as de um enigm�tico Reino,
semelhante �quele que meu bisav� criara. Sin�sio fora raptado e,
segundo se noticiou, morrera tamb�m de modo cruel e enigm�tico, dois
anos depois, na Para�ba, o que n�o impedia o Povo de continuar
esperando a volta e o Reino miraculoso dele.
Pergunto: e agora? Como � que meu Padrinho foi degolado num
quarto de pesadas paredes sem janelas, cuja porta fora trancada por
dentro, por ele mesmo? Como foi que os assassinos ali penetraram, sem
ter por onde? Como foi que sa�ram, deixando o quarto trancado por
dentro? Quem foram esses assassinos? Como foi que raptaram Sin�sio,
aquele rapaz alumioso, que concentrava em si as esperan�as dos

Sertanejos por um Reino de gl�ria, de justi�a, de beleza e de grandeza
para todos? Bem, n�o posso avan�ar nada, porque a� � que est� o n�!
Este � o �centro de enigma e sangue� da minha hist�ria. Lembro que o
genial poeta Nicolau Fagundes Varela adverte todos n�s, Brasileiros, de
que �os ir�nicos estrangeiros� vivem sempre vigilantes, sempre �
espreita do menor deslize nosso para, ent�o, �ridicularizar o p�trio
pensamento�:
�Fatal destino o dos bras�lios Mestres!
Fatal destino o dos bras�lios Vates!
Pol�tica nefanda, horrenda e negra,
pestilento Bulc�o abafa e mata
quanto, aos olhos de ir�nico estrangeiro,
podia honrar o p�trio pensamento!�
Ora, um dos argumentos que os �ir�nicos estrangeiros� mais
invocam para isso � dizer que n�s, Brasileiros, somos incapazes de
forjar uma verdadeira tran�a, uma intrincada teia, um insol�vel enredo
de �romance de crime e sangue�. Dizem eles que n�o � necess�rio nem
um adulto dotado de arg�cia especial: qualquer adolescente
estrangeiro � capaz de decifrar os enigmas brasileiros, os quais, tecidos
por um Povo supericial, � luz de um Sol por demais luminoso, s�o
pouco sombrios, pouco maldosos e subterr�neos, transparentes ao
primeiro exame, fac�limos de desenredar.
Ah, e se fossem somente os estrangeiros, ainda ia: mas at� o
excelso G�nio brasileiro Tobias Barretto, a� � demais! Diz Tobias
Barretto que, no Brasil, � imposs�vel aparecer um �romance de g�nio�,
porque �a nossa vida p�blica e particular n�o � bastante f�rtil de
perip�cias e lances romanescos�. Lamenta que seja raro, entre n�s, �um
amor sincero, delirante, terr�vel e sanguin�rio�, ou que, quando apare�a,
seja num velho como o Desembargador Pontes Visgueiro, o c�lebre
assassino alagoano do Segundo Imp�rio. E comenta, �cido: �Um ou
outro crime, mesmo, que porventura erga a cabe�a acima do n�vel da
vulgaridade, s�o coisas que n�o desmancham a impress�o geral da
monotonia cont�nua. At� na estat�stica criminal o nosso Pa�s revela-se

mesquinho. O delito mais comum � justamente o mais fr�volo e
est�pido: o furto de cavalos.�
A gente l� uma coisa dessas e ica at� desanimado, julgando ser
imposs�vel a um Brasileiro ultrapassar Homero e outros conceituados
g�nios estrangeiros! A sorte � que, na mesma hora, o Doutor Samuel
nos lembra que a conquista da Am�rica Latina �foi uma Epopeia�.
Vemos que somos muito maiores do que a Gr�cia � aquela
porqueirinha de terra! � e a� descansamos o pobre cora��o,
amargurado pelas injusti�as, mas tamb�m incendiado de esperan�as!
Sim, nobres Senhores e belas Damas: porque eu, Quaderna (Quaderna,
O Astr�logo, Quaderna, O Decifrador, como tantas vezes fui chamado);
eu, Poeta-guerreiro e soberano de um Reino cujos s�ditos s�o, quase
todos, cavalarianos, trocadores e ladr�es de cavalo, desaio qualquer
ir�nico, estrangeiro ou Brasileiro, primeiro a narrar uma hist�ria de
amor mais sangrenta, terr�vel, cruel e delirante do que a minha; e,
depois, a decifrar, antes que eu o fa�a, o centro enigm�tico de crime e
sangue da minha hist�ria, isto �, a degola do meu Padrinho e a
�desapari��o prof�tica� de seu ilho Sin�sio, O Alumioso, esperan�a e
bandeira do Reino Sertanejo.

ESCUDO DO MANTO DO RAPAZ-DO-CAVALO-BRANCO.

� tendo em vista esses dois fatos que eu dizia, h� pouco, que as
causas pr�ximas da minha pris�o tinham sido a morte de meu Padrinho
e a chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco a Tapero�. As causas remotas,
por�m, foram a Cantiga de La Condessa, que incendiou meu sangue na
puberdade, e os sangrentos sucessos ocorridos exatamente h� um
s�culo, de 1835 a 1838, quando minha fam�lia ocupou o trono do Brasil,
no Sert�o da Pedra do Reino, entre o Paje� de Pernambuco e o Pianc�
da Para�ba. Estes �ltimos, al�m de serem os mais remotos, s�o tamb�m
os acontecimentos mais importantes. Foram, talvez, a causa e o come�o
de �todas as vicissitudes da minha atribulada exist�ncia�, como dizem
os contos publicados num dos meus livros-de-cabeceira, o Almanaque
Charad�stico e Liter�rio Luso-Brasileiro. � por isso que, logo de entrada,
devo narr�-los, a im de que Vossas Excel�ncias possam, aos poucos, ir
fazendo do meu caso a opini�o mais completa poss�vel.
* * *
Para narrar essa hist�ria, valer-me-ei o mais que possa das
palavras de geniais escritores brasileiros, como o Comendador
Francisco Ben�cio das Chagas, o Doutor Pereira da Costa e o Doutor
Ant�nio �ttico de Souza Leite, todos eles Acad�micos ou consagrados e,
portanto, indiscut�veis: assim, ningu�m poder� dizer que estou
mentindo por mania de grandeza e querendo sentar de novo um
Ferreira-Quaderna, eu, no trono do Brasil, pretendido tamb�m � mas
sem fundamento! � pelos impostores da Casa de Bragan�a. Fa�o isso
tamb�m porque assim, nas palavras dos outros, ica mais provado que a
hist�ria da minha fam�lia � uma verdadeira Epopeia, escrita segundo a
receita do Ret�rico e gram�tico de Dom Pedro II, o Doutor Amorim
Carvalho: uma hist�ria �pica, com Cavaleiros armados e montados a
cavalo, com degola��es e combates sangrentos, cercos ilustres, quedas
de tronos, coroas e outras monarquias � o que sempre me
entusiasmou, por motivos pol�ticos e liter�rios que logo esclarecerei.
Ali�s, minto: sempre, n�o! A princ�pio, a hist�ria de minha
fam�lia era para n�s, Ferreira-Quadernas, uma esp�cie de estigma
vergonhoso e de mancha indel�vel do nosso sangue. E n�o era para
menos, quando somente meu bisav�, El-Rei Dom Jo�o Ferreira

Quaderna, O Execr�vel, no espa�o de tr�s dias, mandou degolar 53
pessoas, incluindo-se entre elas 30 crian�as inocentes, o que aconteceu
no fat�dico e astroso m�s de Maio de 1838. Meu Pai, Dom Pedro Justino,
e minha tia, Dona Filipa, irm� dele, tinham pavor de todas aquelas
mortes cometidas por nossos antepassados, e temiam que o sangue dos
inocentes ca�sse um dia sobre nossas cabe�as, como os Judeus
invocaram o sangue do Cristo sobre as deles.
Apesar de todos os cuidados, por�m, um dia, meu velho parente
e Padrinho-de-crisma, o Cantador Jo�o Melch�ades Ferreira, num
momento de entusiasmo pelas grandezas da fam�lia, contou tudo isso a
mim, que era seu disc�pulo �na Arte da Poesia�. Fiquei terrivelmente
abalado, sentindo como se aquele sangue me infeccionasse o meu de
uma vez para sempre. Eu teria, ent�o, uns doze anos; e, em tudo, o que
mais me impressionava era a morte de um menino, mais ou menos de
minha idade, degolado por seu pr�prio Pai, por ordem de meu bisav�.
Na hora do sacri�cio, o inocente, chorando, reprochava docemente o
degolador, dizendo, num queixume: �Meu Pai, voc� n�o dizia que me
queria tanto bem?�
Fiquei, assim, apavorado e fulminado, por descender do sangue
ferreiral-e-quadernesco, carregado com tantos crimes! S� depois, aos
poucos, unindo aqui e ali uma ou outra ideia que Samuel, Clemente e
outros me forneciam, � que fui entendendo melhor as coisas e
descobrindo que podia, mesmo, transformar em motivo de honras,
monarquias e cavalarias gloriosas, aquilo que meu Pai escondia como
mancha e estigma do sangue real dos Quadernas. O Padre Daniel foi
uma dessas pessoas: l� um dia provou ele, num serm�o que causou
espanto, que todos os homens, e n�o somente os Judeus, eram os
assassinos do Cristo. Ao ouvi-lo, passei a reletir assim: �Se isso �
verdade, ent�o todas as outras pessoas, e n�o somente os Quadernas,
s�o respons�veis por aquelas mortes da Pedra do Reino!� E, com isso,
comecei a me libertar do peso exclusivo de toda aquela carga de sangue.
Outra pessoa foi o pr�prio Jo�o Melch�ades Ferreira. Tempos depois, ele
cantou para eu ouvir um �folheto� que escrevera, a Vida, Paix�o e Morte
� Sorte, S�mbolo e Sinais � de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nesse folheto,
Jo�o Melch�ades, que ouvira o serm�o do Padre Daniel, dizia l�, a certa
altura:

�O Sangue que saiu dele
selou o nosso Destino.
N�s todos matamos Cristo:
somos todos assassinos!
N�s todos matamos Deus:
por isso somos divinos!�
N�o pude deixar de reletir de novo, dizendo-me que, se o fato de
matar Deus tinha tornado os homens divinos, o de me originar de uma
fam�lia de Reis, assassinos de Reis, era a maior prova da minha realeza.
Al�m desses testemunhos, por�m, o Doutor Samuel Wandernes
me disse um dia que eu, al�m do sangue cigano-�rabe e godo-lamengo,
tenho, ainda, umas gotas de sangue judaico, herdadas de minha M�e,
Maria Sulp�cia Garcia-Barretto. Depois da�, entendi: de qualquer modo
eu estaria inclu�do entre os criminosos mais ilustres do mundo �
aqueles que, por terem tido a coragem de matar Deus, tinham
propiciado a todos os homens a possibilidade de ascender e se igualar
ao Divino. Quanto ao Professor Clemente, provou-me ele, um dia, com
exemplos tirados da Hist�ria da Civiliza��o, de Oliveira Lima, que todas
as fam�lias reais do mundo s�o compostas de criminosos, ladr�es de
cavalo e assassinos, de modo que a minha n�o era, absolutamente, uma
exce��o. Depois da�, mesmo quando minha imagina��o pegava fogo e eu
evocava, sem querer, a degola de todas aquelas crian�as, minha raz�o
vinha em socorro da consci�ncia, e eu opunha, ao que via, aquela outra
degola dos inocentes, acontecida no Sert�o da Judeia, no tempo em que
Cristo era menino. Dizia-me que, apesar de ter sido o mandante
daquela matan�a, Herodes passara � Hist�ria com o nome glorioso de
El-Rei Herodes I, O Grande. E ent�o j� n�o me sentia mais desonrado, e
sim orgulhoso, por ser bisneto de El-Rei Dom Jo�o II, O Execr�vel.
Mas para n�o me alongar muito, passo a contar logo a gloriosa e
sangrenta ascens�o dos Quadernas ao trono da Pedra do Reino do
Sert�o do Brasil.

A
FOLHETO V
Primeira Not�cia dos
Quadernas e da Pedra do Reino
Pedra do Reino situa-se numa serra �spera e pedregosa do Sert�o
do Paje�, fronteira da Para�ba com Pernambuco; serra que, depois
dos terr�veis acontecimentos de 18 de Maio de 1838, passou a ser
conhecida como �Serra do Reino�. Dela descem �guas que, atrav�s dos
rios Paje�, Pianc� e Piranhas, s�o ligadas a tr�s dos sete Rios sagrados e
tr�s dos sete Reinos do meu Imp�rio. Hoje, a Serra est� menos �spera e
impenetr�vel do que no tempo do meu bisav� Dom Jo�o Ferreira-
Quaderna. Ainda assim, permanece de acesso di�cil e penoso. � coberta
de espinheiros entran�ados de unhas-de-gato, mal�cia, favela,
alastrados, urtigas, moror�s e marmeleiros. Catolezeiros e cactos
espinhosos completam a vegeta��o, e conta-se que o sangue que
embebeu a terra e as pedras, durante o reinado dos Quadernas, foi
tanto que, na Sexta-feira da Paix�o de cada ano, os catolezeiros
come�am a gemer, as pedras a refulgir no castanho e nas incrusta��es
de prata ou malacacheta, e as Coroas-de-Frade come�am a minar
sangue, vermelho e vivo como se tivesse sido h� pouco derramado. N�o
� isso, por�m, o elemento mais importante, ali, como fundamento de
gl�ria e sangue da minha realeza: s�o as duas enormes Pedras
castanhas a que j� me referi, meio cil�ndricas, meio retangulares, altas,
compridas, estreitas, paralelas e mais ou menos iguais, que, saindo da
terra para o c�u esbraseado, numa altura de mais de vinte metros,
formam as torres do meu Castelo, da Catedral encantada que os Reis
meus antepassados revelaram como pedras-angulares do nosso
Imp�rio do Brasil. O genial Acad�mico sertanejo Ant�nio �ttico de
Souza Leite, nascido ali por perto, fala delas assim, na Cr�nica-epopeica
intitulada Mem�ria sobre a Pedra Bonita, ou Reino Encantado, na
Comarca de Vila-Bela, Prov�ncia de Pernambuco, escrita em 1874 e

apresentada em memor�vel sess�o do �Instituto Arqueol�gico de
Pernambuco�: �A Pedra Bonita, ou Pedra do Reino, como lhe chamam
hoje, s�o duas pir�mides imensas de pedra maci�a, de cor f�rrea e de
forma meio quadrangular, que, surgindo do seio da terra defronte uma
da outra, elevam-se sempre � mesma dist�ncia, guardando grande
semelhan�a com as torres de uma vasta Matriz, a uma altura de 150
palmos (ou seja, 33 metros). A que ica para o lado do Nascente, em
consequ�ncia de uma esp�cie de chuvisco prateado de que est� coberta,
de meia altura para cima, e que parece iniltra��o de malacacheta,
adquiriu o nome de Pedra Bonita, em completo preju�zo da
companheira. Ao Poente, e logo na extremidade da segunda pir�mide,
ou Torre, h� uma pequena sala meio subterr�nea, a que chamavam
Santu�rio, n�o s� por ser o lugar onde primeiro entravam os noivos,
depois de casados pelo falso Sacerdote da seita, o intitulado Frei Sim�o,
como porque era ali que o Vaticinador, o execr�vel Rei Jo�o Ferreira-
Quaderna, airmava, em suas pr�ticas, que ressuscitariam
gloriosamente, com El-Rei Dom Sebasti�o, todas as v�timas que lhe
fossem oferecidas. Ao Sul desta sala, por�m pr�ximas dela, elevam-se
v�rias pedras grandes, sobrepostas umas �s outras, as quais formam
uma esp�cie de caramanch�o abobadado. Este lugar tinha o nome de
Trono, ou P�lpito, por ser dele que El-Rei Dom Jo�o Ferreira-Quaderna,
inculcado Profeta, pregava a seus sect�rios. Cerca de 200 bra�as ao
Norte das duas Torres, existe um Penedo colossal, cuja concavidade
natural, na parte inferior, formava um grande esconderijo que,
aumentado por uma profunda escava��o que ali izeram os
Sebastianistas, adquiriu propor��es para comportar o n�mero de 200
pessoas. Este lugar � conhecido pelo nome de Casa-Santa, por ser ali
que o perverso e execr�vel Rei Jo�o Ferreira-Quaderna recolhia e
embriagava os seus associados, ministrando-lhes beberagens, todas as
vezes que pretendia v�timas volunt�rias para o Reino.�
* * *
Este, nobres Senhores e belas Damas, foi um dos trechos de
Cr�nica-epopeica que mais inlu�ncia exerceram na minha forma��o
pol�tico-liter�ria. Foi ele que me convenceu, de uma vez por todas, que
havia alguma coisa de sagrado, escondida e aprisionada nas grades de

granito de tudo quanto � pedra sertaneja por a� afora. Foi ele que
tornou para sempre sagradas em meu sangue as palavras torre, pedra,
prata, chuvisco prateado, Profeta, trono, sebastianismo, penedo, pedras
de cor f�rrea, brilho de malacacheta, Catedral, Reino e Vaticinador.
Ocorre, ainda, que eu tinha lido, no jornal do Governo da
Para�ba, A Uni�o, um artigo, publicado em 1924, pelo extraordin�rio
Adhemar Vidal, escritor paraibano t�o importante que chegou, at�, a
ser Delegado de Pol�cia. Nesse artigo, contava ele uma viagem que tinha
feito pelo Sert�o, e dizia que as pedras e lajedos do nosso sagrado Cariri
encontram-se, �s vezes, em aglomerados que parecem Fortalezas ou
Castelos arruinados. A partir da�, toda vez que eu me lembrava dos dois
rochedos g�meos da Pedra do Reino, era como se eles fossem, al�m da
Catedral Soterranha que os Reis, meus antepassados, tinham revelado,
a Fortaleza e o Castelo onde se fundamenta a realeza do nosso sangue.
Em 1838, o Padre Francisco Jos� Corr�a de Albuquerque fez um
desenho representando as duas Pedras Encantadas do nosso Reino,
desenho que Pereira da Costa e Souza Leite publicaram. Levei meu
irm�o Taparica � nossa Biblioteca e pedi-lhe que copiasse a estampa do
Padre, cortando-a, depois, na madeira, para ser impressa num �folheto�
que eu pensava publicar, tendo como assunto o nosso Reino. Taparica, a
princ�pio, fez cara feia. Dizia que, no desenho do Padre, tudo era mi�do
demais, e que, daquele jeito, dava muito trabalho para cortar. Retruquei
que ele podia modiicar o desenho a seu modo. Ent�o concordou, e fez a
gravura que vai anexada, tamb�m, aos Autos desta Apela��o, para
proporcionar a Vossas Excel�ncias todos os elementos necess�rios ao
estudo da quest�o.

GRAVURA DE TAPARICA, BASEADA NO DESENHO DO PADRE E REPRESENTANDO
AS PEDRAS DO REINO. V�-SE, � DIREITA, COM CETRO E MANTO, MEU BISAV�
DOM JO�O FERREIRA-QUADERNA, O EXECR�VEL, E, � ESQUERDA, MINHA
BISAV�, A PRINCESA ISABEL, SENDO DEGOLADA. EMBAIXO DA PEDRA, O REC�MNASCIDO
QUE ELA PARIU NOS ESTREME�OS DA MORTE E QUE, DEPOIS, FOI MEU AV�,
DOM PEDRO ALEXANDRE.

C
FOLHETO VI
O Primeiro Imp�rio
omo se v� por essa simples amostra, os acontecimentos da Pedra
do Reino foram suicientemente astrosos e fat�dicos para marcar
para sempre meu sangue de realeza. De fato, por�m, nossa r�gia
hist�ria come�a antes, noutra Pedra sagrada, a �Serra do Rodeador�,
onde, em 1819, aparecem tr�s Infantes sertanejos. O primeiro, Dom
Silvestre Jos� dos Santos, que morreu sem descend�ncia, foi o primeiro
var�o de minha fam�lia a subir ao trono, com o nome de Dom Silvestre I,
O Rei do Rodeador. O segundo era seu irm�o, Dom Gon�alo Jos� Vieira
dos Santos. O terceiro foi meu trisav�, Dom Jos� Maria Ferreira-
Quaderna, primo-leg�timo e cunhado dos outros dois, por ter se casado
com a irm� deles, a Infanta Dona Maria Vieira dos Santos, em cujo
ventre seria gerado meu bisav�, Dom Jo�o Ferreira-Quaderna, O
Execr�vel.
O reinado de Dom Silvestre I, no Rodeador, foi curto, mas j� tinha
todas as caracter�sticas tradicionais da nossa Dinastia. Seu trono era
uma Pedra sertaneja, Catedral, Fortaleza e Castelo. Dali, ele pregava a
ressurrei��o daquele Rei antigo, sangrento, casto e sem mancha, que foi
Dom Sebasti�o, O Desejado. Pregava tamb�m a Revolu��o, com a degola
dos poderosos e a instaura��o de novo Reino, com o Povo no poder. O
consagrado Acad�mico pernambucano, Doutor Pereira da Costa, fez sua
Cr�nica, que n�o transcrevo por economia ret�rica. Limito-me a
informar que, temerosos os propriet�rios das redondezas pela
propaga��o de Reino t�o revolucion�rio, izeram apelo ao Governador
Lu�s do Rego, que mandou para l� uma tropa, comandada pelo Marechal
Lu�s Ant�nio Salazar Moscoso. Incendiaram o Arraial, morrendo nas
chamas mulheres e crian�as, enquanto os homens que escaparam ao
inc�ndio e � fuzilaria foram passados a io de espada.
A Cr�nica-epopeica de Pereira da Costa aumentou danadamente
o n�mero de minhas palavras sagradas, com s�quito, ressurrei��o, El

Rei, tesouro, templo, revela��o, quimeras, prod�gios, encantamentos,
encanta��o, desencanta��o, joia, agraciado, confrade, penitente,
ab�bada, liturgia, desaio, armas, beberagem, gado, fogo, arraial,
carniicina, assalto, povoa��o, chamas, espadas e fuzilarias. Toda vez que
eu evocava esse primeiro reinado, o Primeiro Imp�rio da minha fam�lia,
via todo aquele sangue derramado no Rodeador pingando sobre uma
Coroa de Prata. Via as espadas luzindo por entre chamas gloriosas, ao
pipocar da fuzilaria. Via meus parentes, rangendo os dentes e
escumando de raiva sagrada, lutando na defesa do Arraial incendiado,
por entre fogar�us, quimeras, prod�gios e revela��es.
Era assim que, aos poucos, o Trono da minha fam�lia ia
empe�onhando e gloriicando meu sangue, at� que eu chegasse a ser �o
prod�gio e encantamento� que sou hoje; e foi por isso que, quando o
Rapaz-do-Cavalo-Branco reapareceu miraculosamente entre n�s, meu
sangue estava preparado e eu ousei me meter, apesar de toda a minha
covardia, em sua terr�vel Desaventura.
Outra coisa importante � que, como diz Pereira da Costa, a
tradi��o da minha fam�lia � sempre a funda��o de um Reino junto a
uma Pedra, dentro da qual, prisioneiro e encantado, est� El-Rei Dom
Sebasti�o, O Desejado. No Reino, domina um Catolicismo meioma��nico
e sertanejo, baseado no qual nossa fam�lia come�a a assaltar
os gados, as terras, as fazendas, as pastagens e os dinheiros dos
propriet�rios ricos, para distribu�-los com os s�ditos pobres e i�is do
Reino, juntamente com Cartas-patentes e Cartas-de-bras�o. Tudo isso ia
sendo pacientemente estudado e entendido por mim que, � medida que
me punha adulto, ia guardando tudo isso em meu cora��o, para quando
se completasse, de 1935 a 1938, o S�culo da Pedra do Reino, abrindo-se
caminho para que um Ferreira-Quaderna se sentasse novamente no
Trono do Sert�o do Brasil.

O
FOLHETO VII
O Segundo Imp�rio
Primeiro Reinado de minha fam�lia terminou, portanto, com a
queda gloriosa e fat�dica da Pedra do Rodeador, por entre chamas,
com o Rei Dom Silvestre I degolado a io de espada.
Seu irm�o, sua irm� e o marido desta, por�m, escaparam �
chacina. Vendo o perigo que corriam se icassem por ali, emigraram
para o Sert�o do Paje�, ixando-se em terras daquela que seria, depois,
a Serra do Reino. Era um decreto da Provid�ncia Divina, que desejava
ixar os Ferreira-Quadernas exatamente na fronteira das duas
Prov�ncias mais sagradas do Imp�rio do Brasil, a Para�ba e
Pernambuco, �s quais somente o Rio Grande do Norte pode ser
ajuntado em absoluto p� de igualdade. Delineavam-se assim, aos
poucos, as fronteiras do nosso Imp�rio da Pedra do Reino, cortado
pelos sete Rios sagrados e integrado por seus sete Reinos tribut�rios.
Chegaram, pois, aqueles Pr�ncipes, errantes, retirantes e malandantes,
pelas estradas e descaminhos do Sert�o, at� a Serra Talhada,
onde, ocultando a linhagem principesca de seu sangue, acolheram-se �
prote��o daquela simples fam�lia de Bar�es sertanejos, os poderosos e
fa�anhudos Pereiras � fam�lia que, em nosso tempo, daria aquele
magn�ico Lu�s do Tri�ngulo, Condest�vel do Reino de Princesa e chefe
da tropa do Rapaz-do-Cavalo-Branco.
Pouco iria durar, por�m, a tranquilidade plebeia que meus
antepassados afetavam na Vila Bela da Serra Talhada, porque voca��o
de Rei � mesmo que o Diabo para tentar o sangue da minha fam�lia! L�
um dia, o Infante Dom Jo�o Ant�nio Vieira dos Santos, ilho de Dom
Gon�alo Jos�, sabendo a gloriosa hist�ria vivida por seu tio, El-Rei Dom
Silvestre I, inlamou-se tamb�m da sagrada ambi��o do Trono e do dom
escumante da Profecia; e, proclamando-se Rei, iniciou o Segundo
Imp�rio, com nova prega��o do Reino-Encantado e subindo ao trono
com o nome de Dom Jo�o I, O Precursor. Conta, l�, o genial Ant�nio

�ttico de Souza Leite: �Tempestuoso e medonho, corria o ano de 1835.
A comarca de Flores, retalhada por partidos, era teatro de constantes
desordens e conlitos. Da� para os come�os de 1836, um mameluco de
nome Jo�o Ant�nio dos Santos, morador no termo de Vila Bela da Serra
Talhada, munido de duas pedrinhas mais ou menos formosas que ele
mostrava misteriosamente, dizia aos incautos habitantes daquele lugar
serem elas dois brilhantes in�ssimos, tirados por ele pr�prio de uma
Mina encantada que lhe fora revelada. Inspirado num velho �folheto�, do
qual nunca se apartava, e que encerrava um desses contos ou lendas,
que andavam muito em voga, acerca do misterioso desaparecimento de
El-Rei Dom Sebasti�o, na Batalha de Alc�cer-Quibir, em �frica, e de sua
esperada e quase infal�vel ressurrei��o, tratou de propalar pela
popula��o daquele e dos vizinhos distritos, que estava sendo conduzido
todos os dias, por El-Rei Dom Sebasti�o, a um s�tio pouco distante do
lugar de sua resid�ncia, no qual mostrava-lhe El-Rei, al�m de uma
Lagoa encantada, de cujas margens extra�ra ele aqueles e outros
brilhantes, duas bel�ssimas Torres, de um Templo j� meio vis�vel, que
seria, por certo, a Catedral do Reino, na �poca pouco distante da sua
Restaura��o. Assim discorrendo, e nunca se esquecendo de mostrar,
entre outros, um t�pico do �folheto� em que o Vision�rio escritor,
improvisado em Profeta, ensinava que quando Jo�o se casasse com
Maria, aquele Reino se desencantaria, conseguiu ele, gra�as � ignor�ncia
da popula��o e � bem conhecida tend�ncia que o esp�rito humano tem
para abra�ar o maravilhoso e o fant�stico, n�o s� realizar o seu
casamento com uma interessante rapariga de nome Maria � que
sempre, at� ali, lhe fora negada � como obter, por empr�stimo, de
muitos Fazendeiros do lugar, bois, cavalos e dinheiro, em por��o n�o
pequena, com a onerosa condi��o de restituir tudo em muitos dobros,
logo que se operasse o pretenso desencantamento do misterioso Reino.
Desde o come�o de sua pr�dica, auxiliavam-no seu pr�prio Pai, Gon�alo
Jos� Vieira dos Santos, seu irm�o Pedro Ant�nio, seus tios e parentes
Jos� Joaquim Vieira, Manuel Vieira, Jos� Vieira, Carlos Vieira, Jos�-Maria
Ferreira-Quaderna e Jo�o Pil� Vieira Gomes, os quais, constituindo, por
assim dizer, o seu Apostolado, iam dar testemunho das suas riquezas e
fazer repercutir os seus engenhosos embustes no meio das popula��es
ignorantes do Pianc�, do Cariri, Riacho do Navio e margens do Rio S�o
Francisco. Seus esfor�os e os dos seus mais ardentes sect�rios iam

engrossando gradualmente a seita com multiplicadas conquistas feitas
nas �ltimas camadas da sociedade. Essas e outras considera��es
moveram o Padre Ant�nio Gon�alves de Lima a reclamar a presen�a do
mission�rio Padre Francisco Jos� Corr�a de Albuquerque naquele
distrito. O incans�vel ap�stolo, apesar de sua idade setuagen�ria e falta
de sa�de, n�o se fez esperar. Instru�do de tudo quanto havia, seguiu
para a Fazenda �Cachoeira�, pertencente ao Capit�o Simpl�cio Pereira,
onde, felizmente, compareceu o impostor, ainda durante as Miss�es,
perante o admir�vel Levita. Depois de entregar-lhe as duas pedras �
que estavam longe de ser brilhantes � e de publicamente confessar os
seus embustes, prometeu-lhe retirar-se do lugar, o que p�s logo em
execu��o, procurando os lados do Rio do Peixe, Sert�o da Para�ba, e
passando dali aos do Sert�o dos Inhamuns, no Cear�.�

C
FOLHETO VIII
O Terceiro Imp�rio
omo se v�, a tradi��o do nosso Reino continuava. E teria ido logo
muito longe, se n�o fosse a interven��o ind�bita desse Padre, que
convenceu meu tio-bisav�, Dom Jo�o I, a abdicar; o que mostra como o
Catolicismo puramente romano, ortodoxo e oicial, � funesto para a
sagrada Coroa do Sert�o. Foi por ter ido nessa conversa que meu tio
Dom Jo�o I perdeu esse nome, t�o r�gio e glorioso, recebendo outro,
apenas ducal � o de Dom Jo�o Ant�nio, Prior do Crato (por ter ido
morar nas imedia��es do Crato, Sert�o do Cear�). Mas essas coisas de
Monarquia s�o t�o imprevis�veis, que aquilo que parecia um
acontecimento funesto para a nossa Casa era apenas um des�gnio
secreto da Provid�ncia Divina, que desejava instaurar, no Sert�o, o
Terceiro Imp�rio, aquele que viria a ser, verdadeiramente, o n�cleoencantado
de fogo e sangue da realeza dos Quadernas.
Acontece que meu bisav�, o Infante Dom Jo�o Ferreira-
Quaderna, tinha seduzido e raptado, de uma vez s�, suas duas primas, a
Infanta Josefa e a Princesa Isabel, irm�s do Rei Dom Jo�o I, que
abdicara. Meu bisav� era meio tarado, bastando dizer que, depois,
quando j� tinha sido coroado Rei, instituiu, na Pedra do Reino, um ritual
Cat�lico-sertanejo, segundo o qual ele, Rei, era quem primeiro possu�a
as noivas, no dia do casamento, o que fazia, segundo explicava, �para
inocul�-las com o Esp�rito Santo�. Parece que ele s� conseguia ser
macho praticando, ao mesmo tempo, um sacril�gio e uma crueldade �
mas, ent�o, depois de assim despertada pelo sangue e pela maldade,
n�o havia quem contivesse mais sua pot�ncia. Pois bem: como o
Catolicismo-sertanejo da Pedra do Reino permitia a poligamia, Dom
Jo�o Ferreira-Quaderna, O Execr�vel, chegou a ter o n�mero sagrado de
sete mulheres, entre as quais as importantes, mesmo, eram as duas
Princesas irm�s, Josefa e Isabel, por serem de sangue real.

Ora, depois de seduzir as duas Infantas, meu bisav� viajara com
elas para o Sert�o da Para�ba, ainda no reinado de Dom Jo�o I. A�, nas
bandas de Catol� do Rocha, foi encontr�-lo, depois de sua abdica��o,
seu cunhado e primo, o agora Prior do Crato, Dom Jo�o Ant�nio, irm�o
das mo�as, o qual lhe contou todas as grandezas e cavalarias, quimeras
e encantamentos, que realizara no Paje�. Disse-lhe que, apesar de ter
abdicado, deixara l�, bem plantados, os alicerces e fundamentos da
Pedra do Reino do Sert�o, com a Lagoa encantada dos diamantes, as
minas de prata e as duas torres do Castelo, Catedral e Fortaleza da
nossa Ra�a. Consta mesmo que ele teria dito ao cunhado: �Jo�o! A Pedra
do Reino ser� o fundamento do Imp�rio do Brasil! Se assim for, p�e a
Coroa sobre a tua cabe�a, antes que outro Aventureiro lance m�o dela!�
E ent�o, ali mesmo, com os direitos prof�ticos de Prior, que tinha,
sagrou, como novo Rei, seu cunhado e bisav� meu; o qual, com o nome
de Dom Jo�o II, tomou suas mulheres, regressou ao Paje�, assumiu o
Trono e iniciou o Terceiro Imp�rio.
Sobre tudo isso, existe um papel do Governo, coisa oicial e
portanto indiscut�vel. � uma carta-relat�rio, dirigida a Francisco do
Rego Barros, Conde da Boa Vista, Governador, no tempo do Imp�rio, da
Prov�ncia de Pernambuco. Foi escrita pelo Prefeito de Flores, o Fidalgo
sertanejo Francisco Barbosa Nogueira Paes, e registrada na Secretaria
do Governo de Pernambuco, o que prova que at� o falso e estrangeirado
Imp�rio dos Bragan�as reconheceu oicialmente, atrav�s de seu
Condezinho de merda, a realidade do Imp�rio da Pedra do Reino do
Brasil. Nesse documento ica provado que meu bisav�, coroado Rei, foi
quem teve, realmente, a ideia sagrada e gloriosa de banhar as torres do
nosso Castelo de Pedra com o sangue dos inocentes. � por isso que o
Terceiro Imp�rio � que realmente selou o sangue dos Quadernas com o
estigma indel�vel da realeza. Apesar de oicial, por�m, e de ter instilado
em mim a pe�onha do �campo encantado e sagrado, banhado de
sangue�, a carta-relat�rio omite uma por��o de fatos importantes
ligados � pol�tica dos Quadernas. N�o explica, por exemplo, que o
ex�rcito d�El-Rei Dom Sebasti�o viria era para destruir os poderosos.
Nem relata que, al�m das pessoas, meu bisav� mandava tamb�m
degolar cachorros que, no dia da Ressurrei��o, deveriam voltar,
transformados em drag�es, para devorar todos os propriet�rios,
repartindo-se ent�o as terras dos inados com os pobres. Por isso,

Pereira da Costa, depois de conirmar que o Rei tinha sete mulheres, diz
que, �al�m do fanatismo religioso�, transparecia tamb�m, �entre esses
Vision�rios, um como que pensamento socialista�.
* * *
O Terceiro Imp�rio durou de 1836 a 1838. Infelizmente, por�m,
como sempre acontece nesses casos de Monarquia tr�gico-epopeica, a
trai��o emboscava o Sagrado Imp�rio da Pedra do Reino, o que
aconteceu como passo a narrar.
Ocorre que, atraindo o Reino sempre novos adeptos, alguns
primos nossos, da fam�lia Vieira, convidaram para que nele entrasse um
nosso parente, o Conde Dom Jos� Vieira Gomes, homem falso,
trai�oeiro, lacaio, fat�dico e astroso, que terminaria renegado. Era
Vaqueiro do Comandante Manuel Pereira, Fidalgo rico e poderoso, pai
do Bar�o do Paje�. A fam�lia Pereira, a mais poderosa entre os Bar�es
sertanejos daquela zona, era uma das mais atingidas pela prega��o
revolucion�ria da Pedra do Reino. Por isso, a trai��o do Conde foi, para
eles, uma b�n��o do c�u. O traidor, levado para a Serra do Reino, viu
tudo e se aproveitou de tudo, durante v�rios dias. Inclusive, bebeu o
Vinho encantado e sagrado, cuja receita integral s� os Pr�ncipes de
sangue da nossa Casa conhecem. Assim, divinamente embriagado, viu
os tesouros de prata e diamante do Reino e possuiu n�o sei quantas
mulheres que meu bisav� generosamente lhe cedeu. Pois bem: apesar
de todos esses privil�gios, aquele judas, aquele caim, foi delatar as
atividades e o caminho de acesso do nosso Reino aos herodes e caifazes
da fam�lia Pereira.
Foi em Maio de 1838 que se deu o �instante de fulmina��o� do
Imp�rio da Pedra do Reino. Naquele m�s, meu bisav� teve a gloriosa
coragem de iniciar o grande banho-de-sangue, que deveria depois se
estender numa verdadeira guerra sertaneja, a �Guerra do Reino�, com a
degola geral dos propriet�rios, indispens�vel, segundo Samuel e
Clemente, a toda Revolu��o que se preza. Como a justi�a, para ser boa,
come�a de casa, era por�m entre os pr�prios s�ditos do Reino que
deveria se iniciar a matan�a: os que se apresentassem voluntariamente
para a degola, ressuscitariam da� a tr�s dias como �Grandes do
Imp�rio�, belos, poderosos, eternamente jovens e imortais.

O velho Infante, Dom Jos� Maria Ferreira-Quaderna, meu trisav�
e pai do Rei, foi o primeiro a dar o exemplo, sendo degolado, e
banhando-se as pedras com o sangue dele. Seguiram-se outras mortes,
a princ�pio volunt�rias, depois n�o, porque isso de ser degolado,
mesmo com ressurrei��o garantida, � inc�modo como o diabo. A� o Rei,
impacientando-se, escolheu alguns carrascos, principalmente entre
nossos primos Vieiras, e mandou que pegassem, � for�a, as v�timas que,
tendo sido escolhidas, se recusassem � degola.
De um jeito ou de outro, a matan�a foi grande, �e o sangue foi at�
a junta grossa�, como dizia o Regente Dom Ant�nio Conselheiro, em
Canudos. Ora, em tais momentos, aparecem sempre os gritos, os
pedidos de compaix�o, as preces e as l�grimas dos escolhidos para a
Morte. Pois foi sob o pretexto de compaix�o, que o refalsado Conde,
Dom Jos� Vieira Gomes, aproveitando os gritos desesperados das
v�timas e a confus�o causada pelas degola��es, fugiu por uma vereda
perdida, entre cactos e unhas-de-gato, indo chamar as tropas dos
Bar�es do Paje�, os Pereiras, que aniquilaram o Sagrado Imp�rio da
Pedra do Reino. Conta o nosso Cronista-Mor, Ant�nio �ttico de Souza
Leite: �Eram mais ou menos dez horas da manh�, do dia 17 de Maio de
1838. Sentado com seus irm�os Cipriano e Alexandre Pereira na frente
de sua fazenda �Bel�m�, situada cinco l�guas ao poente da Serra Talhada,
o Comandante Manuel Pereira praticava com eles a respeito do
abandono em que estavam os gados de sua fazenda �Cai�ara�, depois da
inesperada aus�ncia de seu Vaqueiro, Jos� Vieira Gomes. De repente,
aproxima-se e ajoelha-se diante deles um indiv�duo imundo, andrajoso,
desigurado e assustado. Era Jos� Vieira Gomes, o vaqueiro que h� mais
de vinte dias desaparecera, e agora prorrompia em suplicantes vozes:
�Valha-me, meu Amo, e perdoe-me pelo amor de Deus! Faz mais de vinte
dias que meu tio Jos� Joaquim Vieira veio iludir-me na fazenda de Vossa
Senhoria! Conduziu-me para a Serra Formosa, para ver muitas coisas
bonitas e ajud�-lo na defesa dos tesouros e do Reino descoberto por
Jo�o Ant�nio dos Santos, os quais contou-me que j� tinham sido
desencantados por outro Rei, muito s�bio, Jo�o Ferreira-Quaderna,
mandado por ele da Para�ba. N�o sou ambicioso, mas fui ver se isso era
verdade. Chegando l�, em verdade encontrei muita gente ao p� da
Pedra Bonita, e o Rei, com uma grande Coroa na cabe�a, trepado numa
ponta de pedra, pregando, cantando e saltando, muito alegre. Quando

ele indou a sua pr�tica, o Povo deu muitos vivas a El-Rei Dom
Sebasti�o, e meu primo Manuel Vieira, a quem chamam agora Frei
Sim�o e que estava l�, com o Pai, a fam�lia e os irm�os, foi fazer dois
casamentos, de umas mo�as do Pianc�, entregando-as, em seguida, ao
Rei, para dispens�-las (consistia esta dispensa em passar a noiva ao
poder do Rei, que a restitu�a no outro dia, completamente dispensada).
Isto feito, o Rei � a quem, em particular, tamb�m chamavam Jo�o
Ferreira, e, �s vezes, simplesmente Joca � deu o bra�o �s duas noivas e
seguimos todos, tocando, cantando e batendo palmas, para a Casa
Santa, esp�cie de subterr�neo aberto por baixo de um penedo
prodigioso. Ali, todos beberam um l�quido, dado pelo Rei, ao qual
chamavam Vinho Encantado, certa composi��o de jurema e manac�:
tem a propriedade do �lcool e do �pio, ao mesmo tempo. E fomos fumar
em cachimbos, para vermos as riquezas. Iam-se assim passando os
tempos, at� que no dia 14 deste m�s de Maio � oh que dia infeliz e
horroroso! � o Rei, depois que deu muito vinho a todos, declarou que
�El-Rei Dom Sebasti�o estava muito desgostoso e triste com seu Povo�. �E
por qu�?� � perguntaram os homens, muito alitos, e as mulheres todas
muito chorosas. �Porque s�o incr�dulos! Porque s�o fracos! Porque s�o
falsos! E inalmente porque o perseguem, n�o regando o Campo
Encantado e n�o lavando as duas torres da Catedral de seu Reino com o
sangue necess�rio para quebrar de uma vez este cruel Encantamento!�
� proferiu o Rei. Ah, meu Amo e meus Senhores! O que depois disso se
seguiu � horr�vel! O velho Jos� Maria Juca Ferreira-Quaderna, pai do
Rei, foi o primeiro que correu, abra�ando-se com as pedras e
entregando o pesco�o a Carlos Vieira, que o cortou c�rceo, pois j� l�
estava para isso, com um fac�o aiado! As mulheres e os homens iam
agarrando os ilhos e vinham entreg�-los a Carlos Vieira, a Jos� Vieira e
a outros, que lhes cortavam as gargantas ou quebravam-lhes as cabe�as
nas mesmas pedras, que assim untavam de sangue! Nessa ocasi�o,
aproveitei-me da confus�o e horror que havia e fugi sem ser visto; mas
com tanto espanto e infelicidade, que andei mais de dois dias perdido!��
* * *
Assim foi que o traidor fugiu da Pedra do Reino, andando
extraviado e errante por ali, nos dias 15 e 16 de Maio de 1838. S� no dia

17 foi que encontrou a casa dos Pereiras, a quem, com a subservi�ncia
de todo traidor de alma de lacaio, ajoelhado numa zumbaia indigna de
um Pr�ncipe de sangue, tratava por �Meus Amos e meus Senhores!�. Ali,
na fazenda �Bel�m�, tendo delatado o Reino e se oferecido para levar os
Pereiras at� l�, como guia, encontrou acolhida e ajuda, come�ando
todos juntos a preparar a repress�o.
Enquanto isso, ignorando ainda a trai��o do renegado,
continuavam os nossos a promover, na Pedra do Reino, o grande evento
da Restaura��o. Meu bisav� teria, talvez, suspendido antes as matan�as:
ocorre, por�m, que, excitado por elas, seu desejo sexual exacerbou-se.
Mandou trazer sua mulher, a Princesa Isabel, querendo possu�-la na
frente de todos, enquanto o sangue dos degolados corria. Ela, por�m,
estava gr�vida de nove meses, pronta, j�, para parir, e recusou-se. Ent�o
Dom Jo�o II, O Execr�vel, pegou a irm� dela, a Rainha Josefa, e,
enquanto se preparava para possu�-la, mandou que lhe dessem
dezessete facadas, o que foi feito durante a posse, alcan�ando ele,
segundo dizia, um gozo como nunca tinha experimentado. Souza Leite,
mais discreto, recusa-se a contar tudo com todos os pormenores.
Mesmo assim, suas palavras s�o suicientemente fortes, para dar ideia
daquela cena r�gia e sangrenta. Diz ele: �Os sacri�cios continuaram nos
seguintes dias, 15 e 16 de Maio de 1838, com o mesmo, sen�o maior
desvairamento, porquanto o monstruoso e execr�vel Jo�o Ferreira-
Quaderna conseguira mergulhar aquela turba numa esp�cie de del�rio
ou embriaguez continuada. No auge supremo desta embriaguez, um
pardo de nome Jo�o Pil� Vieira Gomes, para obter o melhor quinh�o do
Reino, subiu ao cume de um rochedo pr�ximo e precipitou-se, com dois
netos nos bra�os. Em seguida, Jos� Vieira pega um ilho de dez anos,
coloca-o na Pedra dos Sacri�cios e decepa-lhe o bra�o do primeiro
golpe. A v�tima, ajoelhando-se, bradava-lhe, de m�os postas: �Meu Pai,
voc� n�o dizia que me queria tanto bem?� Uma vi�va, de nome
Francisca, alimentando a louca pretens�o de ser Rainha, imola, por si
mesma, seus dois ilhos mais novos. Isabel, irm� de Pedro Ant�nio e do
primeiro Rei, Jo�o Ant�nio, gr�vida do monstro, � designada para o
sacri�cio pelo Execr�vel Jo�o Ferreira-Quaderna, que respondia �s suas
s�plicas e alega��es de gravidez gritando para Carlos Vieira e Jos�
Vieira: �Imolai-a assim mesmo, para ela n�o sofrer duas dores, a do
parto e a do encantamento!� T�o adiantado era o estado de gravidez

desta infeliz que, momentos depois de ter recebido o golpe na garganta,
a crian�a rolava pela rampa da Pedra e estendia-se no ch�o. Finalmente
Josefa, irm� de Isabel, de Pedro Ant�nio e do primeiro Rei, Jo�o
Ant�nio, conhecida como Rainha Josefa, por ter se casado tamb�m com
o monstro Jo�o Ferreira-Quaderna, recebe setenta e tantas facadas.
Desta forma, no im do terceiro dia de matan�a, tinha o Execr�vel Jo�o
Ferreira-Quaderna conseguido lavar as bases das duas Torres de
granito e inundar os terrenos adjacentes com o sangue de trinta
crian�as, doze homens � entre os quais seu pr�prio Pai � e onze
mulheres, cujos corpos, bem como os esqueletos de quatorze c�es, iam
sendo colocados ao p� das Pedras.�
* * *
Tenho perfeita consci�ncia da m� vontade de Souza Leite para
com minha fam�lia. Mas isso � at� bom, porque, assim, tudo o que ele
diz a nosso favor � absolutamente insuspeito. Ora, o ilustre Acad�mico,
com toda a sua avers�o, n�o ocultou um fato fundamental para as
monarquias e outras gl�rias quadernescas: meu bisav� foi visto,
mesmo, na Pedra do Reino, trazendo � cabe�a a sagrada Coroa de couro
e prata que � a verdadeira Coroa do Brasil e que � a mesma que ainda
hoje eu possuo!
Infelizmente, por�m, um dia t�o bem come�ado como aquele 17
de Maio de 1838 seria o �ltimo de matan�a e do nosso Terceiro
Imp�rio: porque na manh� desse dia, meu outro tio-bisav�, o Infante
Dom Pedro Ant�nio, levantaria um motim contra Dom Jo�o II, O
Execr�vel, sendo vitorioso e levando novamente ao trono o ramo Vieirados-
Santos, no Quarto Imp�rio, que s� iria durar at� o dia seguinte.
Conta Souza Leite: �Na manh�, por�m, do dia 17 de Maio de 1838,
quando o monstro se dispunha a preparar o Povo para novas matan�as,
Pedro Ant�nio, indignado pela morte de suas irm�s, a Rainha Josefa e a
Princesa Isabel, e julgando-se talvez com melhor direito ao poder, por
ser irm�o do primeiro Rei, Jo�o Ant�nio, antecipou-se em subir ao
Trono. Dali anunciou, em voz alta, que Dom Sebasti�o, cercado de sua
Corte, lhe aparecera na noite antecedente e reclamava a presen�a do
Rei Jo�o Ferreira-Quaderna, �nica v�tima que faltava para operar-se o
seu completo desencantamento. �Viva El-Rei Dom Sebasti�o! Viva nosso

irm�o Pedro Ant�nio!� � tal foi o brado un�ssono de todos os
circunstantes. Poucas horas depois, Pedro Ant�nio era proclamado Rei,
com o nome de Dom Pedro I, e o cad�ver de seu antecessor, O-de-
Execr�vel-Mem�ria, era amarrado de p�s e m�os em dois grossos
troncos de �rvore. As pessoas que estiveram no Reino s�o acordes em
airmar que se viram for�adas a quebrar a cabe�a de Jo�o Ferreira-
Quaderna, a extrair-lhe as entranhas e a atar seu cad�ver, de p�s e
m�os, naquelas �rvores, por causa dos berros, das roncarias e dos
sinistros movimentos que ele, depois de morto, executava com a boca, o
ventre e os bra�os. Por isso, e como j� se n�o respirava ar puro no lugar,
ordenou o novo Rei a transfer�ncia do acampamento para o p� de uns
Umbuzeiros situados perto das Pedras e onde devia operar-se o
aparecimento de El-Rei Dom Sebasti�o.�

I
FOLHETO IX
O Quarto Imp�rio
niciava-se, portanto, o Quarto Imp�rio que, como j� disse, durou
somente um dia, mas teve a vantagem de revelar ao Brasil quem foi
seu verdadeiro e real Dom Pedro I, o nosso, e n�o aquele Portugu�s
debochado da Casa de Bragan�a, t�o valorizado pelo nosso Promotor, o
Doutor Samuel Wandernes. Chegamos, ent�o, ao trecho mais epopeico,
bandeiroso e cavalariano da hist�ria da Pedra do Reino. Digo isso
porque � agora que aparecem os Cavaleiros sertanejos, comandados
pelo Capit�o-Mor Manuel Pereira, Senhor do Paje�, todos galopando em
cavalos, armados de espadas reluzentes e arcabuzes tauxiados de prata,
na sua expedi��o punitiva contra os Reis castanhos e Profetas da Pedra
do Reino. Fazendo pacientes pesquisas, descobri que, naquele dia, a
Guarda de Honra do Comandante Manuel Pereira era composta de
trinta e seis Cavaleiros, entre os quais se destacavam seus nove irm�os,
Ant�nio, Simpl�cio, Jo�o, Francisco, Vitorino, Joaquim, Sebasti�o,
Cipriano e Alexandre. Isso mostra que ele era tr�s vezes mais
importante do que Carlos Magno, porque tinha tr�s vezes Doze Pares de
Fran�a. Era um inimigo implac�vel da minha Casa: mas ressalto essa
grandeza dele por patriotismo sertanejo e para provar tamb�m, logo de
entrada, a superioridade do Sert�o sobre aquele Reinozinho besta,
estrangeirado e mixuruca que � a Fran�a.
O Comandante Manuel Pereira passou a noite de 17 de Maio
reunindo sua tropa de Cavaleiros, de modo que j� se achava em marcha
para a �Serra do Reino� quando �a aurora do dia 18 de Maio come�ava a
derramar sua roseada luz sobre as �guas prateadas do Riacho Bel�m�,
como diz Souza Leite em seu puro estilo epopeico. E ele continua,
contando como a tropa, guiada pelo traidor, descobriu o melhor
caminho de acesso, galgando a Serra, passando pelos espinheiros e
cactos espinhosos e por im cruzando um alt�ssimo capinzal: �No
momento, por�m, em que os Pereiras, com os Soldados que os seguiam,

se aproximavam das capoeiras e se dirigiam para aqueles Umbuzeiros,
acharam-se face a face com El-Rei Dom Pedro Ant�nio, o qual estava
com uma grande Coroa na cabe�a, acompanhado de um s�quito
numeroso de mulheres, meninos e de homens armados de fac�es e
cacetes. �N�o os tememos! Acudam-nos as tropas do nosso Reino! Viva
El-Rei Dom Sebasti�o!� � assim exclamou Pedro Ant�nio, agitando no
ar a sua Coroa e arremessando-se furioso, com todos os seus, sobre
aquele punhado de Cavaleiros. Foi horr�vel o que resultou do encontro
das duas For�as: sobre o Campo do combate icaram in�meros
cad�veres, sendo um o do Rei Pedro Ant�nio, com muitos dos seus
sect�rios, e os de Cipriano e Alexandre Pereira. O Comandante Manuel
Pereira seguiu pessoalmente com as mulheres e ilhos dos criminosos
ali apreendidos. Apenas chegou em sua fazenda �Bel�m�, enviou os
presos ao Prefeito de Flores, Francisco Barbosa Nogueira Paes. Este
soltou as mulheres, distribuiu as crian�as e passou os delinquentes �
disposi��o do Juiz Criminal. Uma dessas crian�as �, hoje, 1874, o digno
Tabeli�o da Vila de Flores, Joaquim Jos� do Nascimento Wanderley,
educado pelo Padre Manuel Jos� do Nascimento Bruno Wanderley, de
quem tomou o apelido. E, entre os delinquentes, contava-se Gon�alo
Jos� dos Santos, pai do primeiro Rei Jo�o Ant�nio, o qual, condenado
pelo j�ri de Flores, acabou seus dias arrastando ferros no Pres�dio de
Fernando de Noronha.�

F
FOLHETO X
O Quinto Imp�rio
oi esse o tr�gico im do Quarto Imp�rio. E, apesar de sua hostilidade,
o genial Souza Leite reconhece que a queda sangrenta da nossa
Coroa foi �uma cat�strofe, uma horripilante Trag�dia que a Hist�ria
registrar��: o que prova que nossa Casa Real n�o ica devendo nada �s
outras, em quest�es de pros�pia e import�ncia epopeica. Nossa
Monarquia acaba, como todo Trono digno desse nome, com os campos
e a Coroa banhados pelo sangue dos Reis.
Assim, resta-me somente mostrar como foi que a dupla
linhagem real dos Vieira-dos-Santos e dos Quadernas terminou se
fundindo numa s� e unindo na minha pessoa todos os direitos �
sagrada Coroa do Sert�o. Como j� contei, meu bisav� casou-se, ao
mesmo tempo, com duas irm�s, as duas Infantas suas primas, isto �, a
Rainha Josefa e a Princesa Isabel. N�o teve ilhos da primeira, mas a
segunda engravidou dele. Vossas Excel�ncias viram, na Cr�nica, que, no
momento de ser degolada, a Princesa Isabel pariu um menino, que
rolou de pedra abaixo, no ch�o. Pois foi atrav�s desse menino que
continuou a estirpe real dos Quadernas.
O corpo da minha bisav� Isabel s� foi encontrado na manh� do
dia seguinte, por um Vaqueiro que, indo ali por curiosidade, para ver o
campo da Batalha, ouviu um d�bil vagido por tr�s das pedras.
Assombrado, aproximou-se do lugar de onde vinha o choro, e viu um
quadro estarrecedor. No ch�o, estava o corpo jovem, desnudo e moreno
de uma mulher degolada. Enroladas em suas coxas, havia duas Cobras-
Corais, enormes, de um tamanho como nunca se viu nessa esp�cie.
Lambendo e farejando o corpo, estavam duas On�as-Pintadas, que
correram assim que o intruso apareceu. De cada lado do corpo, havia
uma cabe�a de mulher, ambas cortadas pelo pesco�o. As cabe�as eram
parecid�ssimas, com a mesma beleza e os mesmos cabelos negros e
compridos. E como n�o consta, pelo menos em Cr�nica de historiador

idedigno, que minha bisav� tivesse duas cabe�as, provavelmente uma
delas era a de sua irm�, a Rainha Josefa, cujo corpo nunca foi
encontrado.
O estranho, por�m, � que o menino sobrevivera e estava ali,
perto do corpo de sua jovem M�e. Como teria o rec�m-nascido
escapado, assim? N�o se sabe, e eu, como membro ilustre do nosso
�Instituto Geneal�gico e Hist�rico do Cariri�, n�o avan�o hip�teses, s�
digo o que posso provar. Mas v� ver que s�o mesmo corretas as vers�es,
correntes aqui no Cariri, de que uma daquelas On�as era f�mea e teria
amamentado o inocente naquele primeiro dia de vida, no que, ali�s,
teria somente seguido outros exemplos ilustres da Hist�ria.
De qualquer modo, o importante � que o Vaqueiro se apiedou do
menino e levou-o. Sabendo, depois, que o Comandante Pereira tinha
distribu�do os ilhos dos outros inados, conduziu o inocente a Flores,
entregando-o �quele mesmo Padre Manuel Jos� do Nascimento
Wanderley, que protegeu o outro, depois Tabeli�o.
Esse Padre Wanderley era homem bondoso, virtuoso e prudente.
Sabendo que o novo protegido era ilho do Rei Jo�o Ferreira-Quaderna,
teve medo de que essa fama se espalhasse, atraindo sobre a cabe�a do
Principezinho as marcas de sangue da fam�lia. Ocorre que meu bisav�
era mais conhecido somente pelo sobrenome de Ferreira, sendo assim
que ele � tratado por todos os que escrevem sobre a Pedra do Reino: eu
� que, por motivos de clareza, acrescentei sempre o de Quaderna, que
aparece aqui. O Padre ent�o, aproveitando isso, quando foi batizar o
inocente, omitiu o Ferreira e manteve somente o Quaderna, que quase
ningu�m conhecia. Foi por isso que meu av�, o Principezinho escapo �
matan�a, foi batizado com o nome de Pedro Alexandre Quaderna, e n�o
de Pedro Alexandre Vieira-dos-Santos Ferreira-Quaderna, como teria
acontecido em condi��es normais.
Quando o menino se tornou adulto, o virtuoso Padre Wanderley
deu a ele, em casamento, uma ilha natural sua, Bruna Wanderley, mo�a
loura, conhecida no Sert�o por sua beleza. E foi do casamento de Bruna
com meu av�, Dom Pedro Alexandre (subido ao trono com o nome de
Dom Pedro II), que nasceu Dom Pedro Justino Quaderna (ou Dom Pedro
III), aquele que veio a ser meu Pai, por seu casamento com Dona Maria
Sulp�cia Garcia-Barretto, ilha bastarda do Bar�o do Cariri e irm� de
meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto, degolado

daquela maneira cruel e enigm�tica a que j� me referi, no dia 24 de
Agosto de 1930, dia em que o Diabo andou solto.

E
FOLHETO XI
A Aventura de Rosa e de La Condessa
st�o resumidos a�, portanto, alguns dos motivos que terminaram
me fazendo considerar honrosa minha descend�ncia quadernesca.
Outro, tamb�m fundamental, foi a Cantiga de La Condessa, que me
preparou, por sua vez, para receber duas terr�veis inlu�ncias em minha
vida, a de minha Tia, Dona Filipa Quaderna, e a de meu Padrinho-decrisma,
o Cantador Jo�o Melch�ades Ferreira.
Ali�s, Vossas Excel�ncias s� poderiam entender a inlu�ncia que
teve sobre mim essa minha Tia Filipa, se conhecessem ambos, tia e
sobrinho. Digo, hoje, depois de muito reletir a respeito disso, que, em
menino, eu amava demais minha M�e, a suave e bondosa Maria Sulp�cia.
Mas, admirar, mesmo, eu admirava era minha Tia Filipa, que, no dia em
que estava azeitada, tomava umas quatro ou cinco lapadas, montava
num cavalo brabo, atravessava a feira quebrando as lou�as de barro
espalhadas no ch�o, e dava tapa at� na cara dos valentes. Eu, que
nascera e me criara admirando as ca�adas, as cavalgadas, os tiroteios,
as brigas de faca e outras cavalarias e hero�smos sertanejos, tinha a
desgra�a de ser mau cavaleiro, mau ca�ador e mau brigador. Talvez por
isso, admirava minha Tia Filipa, em cuja pessoa, alta, magra e
esgrouviada, parecia ter se reunido a maior parte da coragem da fam�lia
Quaderna.
Ora, foi Tia Filipa quem me criou, depois da morte de minha
M�e, Maria Sulp�cia. Sendo o mais mo�o dos ilhos leg�timos de meu Pai,
eu era o predileto de minha Tia, e muitas das coragens que me vi
obrigado a praticar na vida, eu as iz com medo dela. N�o podia eu
permitir que Tia Filipa descobrisse um covarde em seu sobrinho
predileto, um homem sem talento e sem sustan�a, um sujeito que n�o
podia montar muito tempo a cavalo sem assar a bunda e sem inchar os
dois joelhos de uma vez. N�o podia consentir, tamb�m, que minha Tia
terminasse amargamente sabedora de que ela pr�pria, uma mulher,

tinha mais coragem do que os homens da fam�lia, o que a teria matado
de desgosto. Por isso, quando surgia uma quest�o qualquer em que,
segundo os c�digos particulares dela, estava empenhada �a honra dos
Quadernas�, l� ia eu, apavorado, a contragosto, procurando me fazer o
mais parecido poss�vel com a imagem que ela guardava de mim.
Pois bem: depois da morte de minha M�e, Tia Filipa tornou-se
caseira da �Casa-Forte da On�a Malhada�, a fazenda do meu Padrinho,
Dom Pedro Sebasti�o. Impressionavam-me a calma, a mod�stia e a
energia mansa que ela conseguia conciliar com a coragem viril e os
assomos cavaleiros dos dias em que estava azeitada. Nesses dias de
calma cotidiana, vestindo a saia comprida e o casaco com mangas que
sempre usou, punha �culos de aro de ouro e, sentando-se � almofada,
fazia rendas e rendas, cantando velhas cantigas e folhetos, que sabia de
cor, �s d�zias. Meu Padrinho tinha, por ela, a maior admira��o. De modo
que assim, fazendo renda e cantando suas cantigas, ela dirigia tudo,
despoticamente: desde a criadagem at� a educa��o, o catecismo e as
divers�es das ilhas dos moradores e Vaqueiros. A estas, ensinava ela
algumas de suas velhas cantigas de roda, reunindo-as � noite, no p�tio
lajeado da fazenda, para os cantos e as dan�as.
Eu, � medida que me punha taludo e me iniciava com as cabras
de minha Tia � de um modo que contarei melhor, depois �, come�ava
a deixar de lado as ca�adas de balieira e badoque, e a me chegar mais,
de noite, para a roda das mocinhas e meninas, antes desprezadas como
indignas do interesse de um homem. De repente, dei para rond�-las
toda noite, a im de me aproveitar do contato de uma ou outra menina
mais despachada, com os peitos j� se arredondando e disposta a me
acompanhar disfar�adamente para fora do p�tio, para lugares mais
escuros e cobertos de mato, mais prop�cios, portanto, � brincadeira e �s
alegrias. Quando �ramos surpreendidos, eu levava uns cascudos e Tia
Filipa sublinhava-os comentando:
� Menino safado! Menino malino! Vai icar igualzinho ao Pai!
� que Tia Filipa n�o perdoava a meu Pai a vida desregrada que
valeu a ele o apelido de �O Pai-d��gua do Cariri�, sa�do num jornal de
Campina que fazia oposi��o a meu Padrinho, e que nos valeu a ru�na,
com a nossa terra dividida pelos bastardos.
* * *

Um dia, de noite, Tia Filipa ensinou �s meninas uma cantiga de
roda que, entre outras coisas, precisava de um menino-homem para
tomar parte no di�logo cantado. Eu j� estava um pouco grande, mas
disputei ferozmente o lugar, sem me incomodar com as galhofas
dirigidas contra mim pelos ilhos de moradores meus companheiros,
Lino Pedra-Verde, Severino Putri�o, Marcolino Arapu� e outros vadios.
� que eu andava de olho, h� muitos dias, na ilha de um Vaqueiro, Rosa,
menina morena, de cabelos lisos, j� mo�a e interessada demais no que
ainda n�o sabia.
Tia Filipa consentiu que eu entrasse na roda. Explicou que eu ia
fazer o papel de Cavaleiro. Elisa, uma menina, ilha de Comadre Teresa,
o de La Condessa. Elisa icava de l�, com todas as meninas de m�os
dadas, formando uma ila e de cara para mim. As meninas eram as
ilhas de La Condessa, a quem eu me dirigia, puxando o canto e
dialogando com ela:
�� La Condessa, La Condessa!
� Que queres com La Condessa?
� Quero uma dessas Mo�as
para com ela casar!
� Eu n�o tiro as minhas ilhas
do Mosteiro em que elas�t�o,
nem por Ouro, nem por Prata,
nem por sangue de Arag�o!
� T�o contente que eu vinha!
T�o triste que vou voltando!
� Volta, volta, Cavaleiro!
Vem e escolhe a que quiseres!
� Esta fede e esta cheira!
Esta, come o p�o da feira!
Esta � a que eu queria
pra ser minha Companheira!�
Para que se entenda bem o estado de exalta��o em que iquei,
brincando isso, devo acrescentar que fazia uma noite fria e enluarada,
dessas noites sertanejas em que o c�u come estrelas e nas quais o mato

que cercava a �On�a Malhada� icava o mais bonito e cheiroso do
mundo. Tudo isto, juntamente com o desejo que eu sentia por Rosa, que
foi minha escolhida, � claro, criou em mim uma exalta��o que me jogou
para o alto e para al�m de mim mesmo. O sonho e o sangue se
misturavam num fogo s�, incendiado pelo desejo, pela beleza da
mocinha, pelos cantos, pela noite, pela lua e pelas estrelas. As palavras
do canto marcavam-me mais ainda porque seu sentido era obscuro e
estranho. Impressionado com o ouro, a prata, o mosteiro, o sangue,
imediatamente tudo aquilo se tornava sagrado para mim, sacralizado
pela luz da lua, que me parecia, ela tamb�m, uma bola de ouro, molhada
pelo sangue-de-arag�o que pingava da noite no mato, � poeira de prata
de sua luz.
Ent�o, vieram chamar Tia Filipa para resolver, l� dentro, um
problema da casa. Sa� do p�tio e, cruzando o port�o, cheguei at� a orla
do mato, que iquei olhando, sonhando nem sei bem com qu�. Logo,
ouvia uns passos cautelosos e suaves atr�s de mim: e antes mesmo de
me voltar, eu j� sabia que era Rosa.
S� depois, mais tarde, � que eu iria conhecer mulher, na noite
memor�vel em que Ar�sio e eu fomos ao �Circo Estringuine�, depois do
espet�culo. Mas a primeira experi�ncia de amor que senti com Rosa,
naquela noite, foi muito mais importante. Ela deixou que eu a beijasse,
o que iz desajeitadamente, ignorantemente, afetuosamente, num beijo
que apenas alorou a pele macia e cheirosa dos l�bios dela. Em
compensa��o, beijei-lhe os cabelos, que tinham sido lavados mas
estavam, j�, enxutos e cheirosos, e, sentindo o cheiro capitoso que se
desprendia de seu corpo, ergui instintivamente a m�o e passei-a
suavemente por seu busto, tocando nos dois seios.
Nesse momento, ouvi a voz de Tia Filipa que gritava por mim, no
p�tio. Disse a Rosa que desse a volta pelo muro, a im de dar a
impress�o de que voltava de dentro da casa, e voltei sozinho pelo
port�o de entrada. Apesar de todas essas precau��es, por�m, Tia Filipa
estava desconiad�ssima. Cheguei para perto dela, acariciei-a, lisonjeei
sua vaidade elogiando uma gola de rendas que ela mesma tinha feito e
estava usando. Ao mesmo tempo, a sensa��o de felicidade que eu
experimentara prolongava-se de tal modo que parecia tornar o mundo
melhor, em torno de mim. Eu estava ansioso para ir para a cama, a im
de sonhar melhor meu desejo e minha exalta��o. Sentia por�m, ainda,

necessidade de esclarecer algumas coisas que me tinham intrigado e
fascinado na Cantiga de La Condessa. Perguntei a Tia Filipa o que era
uma Condessa e o que signiicava um Cavaleiro.
� Isso s�o coisas antigas, Dinis! � disse ela. � � melhor voc�
perguntar a seu Pai, que � homem mais ilustre do que eu! Acho que
uma Condessa � uma Princesa, ilha de um Fazendeiro rico, de um Rei
como Dom Pedro I ou Dom Sebasti�o!
� E um Cavaleiro? � insisti, depois de anotar, em meu sangue,
aquela no��o de Princesa, misturada para sempre, agora, ao cheiro e aos
seios de Rosa.
� Um Cavaleiro � explicou Tia Filipa � � um homem que tem
um cavalo e monta nele, para brigar de faca com os outros e casar com a
ilha do Rei!
Foi ent�o por isso, nobres Senhores e belas Damas, que a Cantiga
de La Condessa contribuiu danadamente para que eu me entusiasmasse
quando, depois, soube a hist�ria da Pedra do Reino, com os Pereiras,
Bar�es do Paje�, montados a cavalo e comandando a tropa de
Cavaleiros que iria acabar, a faca, com o Trono real dos Quadernas.
Preparou-me, tamb�m, para entender o que, de fato, signiicava o
Rapaz-do-Cavalo-Branco. � que, desde aquela noite com Rosa e a
cantiga, toda vez que eu via um Vaqueiro montado a cavalo, com seu
gib�o, seu chap�u de couro e os arreios do cavalo enfeitados de estrelas
de metal, eu ingia que aquele metal era prata e dizia para mim mesmo:
�L� vai um Cavaleiro montado em seu cavalo! Vai furtar Rosa, a ilha
mais bonita de La Condessa e do Rei Dom Pedro I, para lev�-la para o
mato, beijar seus cabelos cheirosos e acariciar-lhe os peitos, enquanto a
bola de ouro da lua se molha no sangue-de-arag�o que pinga da noite,
em sua luz de moeda de prata!�

A
FOLHETO XII
O Reino da Poesia
�, � medida que eu ia crescendo, essas ideias iam cada vez mais se
enraizando no meu sangue. Eu ouvia, decorava e cantava
in�meros �folhetos� e �romances� que me eram ensinados por Tia
Filipa, por meu Padrinho-de-crisma Jo�o Melch�ades Ferreira e pela
velha Maria Galdina, uma velha meio despilotada do ju�zo, que nos
frequentava.
Jo�o Melch�ades era um Cantador conhecido em todo o Sert�o.
Para assinar seus folhetos, adotava o orgulhoso cognome de �O
Cantador da Borborema�, em homenagem � serra sagrada da Para�ba.
Tinha sido Soldado na �Guerra dos Canudos�, em 1897, lutando sob as
ordens do ent�o Tenente-Coronel Dantas Barretto. Depois, izera parte
das tropas que tinham ido ocupar o Acre, conquistado pelas tropas
irregulares de nordestinos de Pl�cido de Castro. Fora, depois,
reformado no posto de Cabo, voltando ent�o para a Para�ba, terra sua, e
acolhendo-se � prote��o do homem poderoso do Cariri, meu Padrinho,
Dom Pedro Sebasti�o. Este deu morada ao velho Cantador perto da casa
da Fazenda, onde Jo�o Melch�ades n�o tinha obriga��es, vivendo do
soldo de Cabo e da renda dos seus folhetos e cantadas. Logo ele se
tornaria c�lebre, com um romance que escreveu sobre a �Guerra de
Canudos� e tamb�m pelos in�meros folhetos que escreveu contra os
Protestantes, os nova-seitas, que j� come�avam a aparecer, no Sert�o,
�com seus evangelhos, ciz�nias e prega��es proselitistas�, como dizia,
indignado, o nosso Padre Renato.
J� a velha Maria Galdina era conhecida por tr�s apelidos: S�
Maria Galdina, Galdina Gato e S� Maria do Badalo, pelo fato de ser da
fam�lia Gato e de morar no �Badalo�, uma regi�o do nosso munic�pio
onde s� d� doido. Ela tinha horror a ouvir isso. Aparecia �s vezes na
�On�a Malhada�, para vender ovos, coentro e galinhas. Tia Filipa
comprava tudo, sem precisar. E como s� a chamava respeitosamente de

Dona Maria Galdina, n�o ligando para sua sandice, a velha era louca por
ela. Braba com todo mundo, com Tia Filipa era um cordeiro. Nunca
vinha � �On�a Malhada� sem lhe trazer pequenos presentes, molhos de
maxixe, ovos, e, mesmo, no tempo de inverno, uma ou duas bra�adas de
rosas do seu terreiro.
Ora, a amizade entre minha tia e a Velha do Badalo estreitou-se
ainda mais quando elas descobriram que ambas gostavam dumas
velhas cantigas que somente elas ainda sabiam. Depois da�, quando S�
Maria Galdina ia l� em casa, sentava-se no ch�o, perto da almofada onde
Tia Filipa fazia renda, e come�avam a cantar, uma ajudando a outra, uns
romances esquisitos, ao mesmo tempo diferentes e parecidos com os
do velho Jo�o Melch�ades. Mas sabiam tamb�m romances e cantigas de
Cangaceiros, tendo grande estima pelo Abec� de Jesu�no Brilhante.
Ambas admiravam muito esse Cangaceiro, a quem consideravam �o
mais corajoso e cavaleiro do Sert�o, um Cangaceiro muito diferente
desses Cangaceiros safados de hoje em dia, que n�o respeitam mais as
fam�lias�, como dizia a Velha do Badalo, com plena concord�ncia de Tia
Filipa.
Eu, o que mais admirava em Jesu�no Brilhante e nos outros
Cangaceiros, era a coragem que todos eles tinham de enfrentar morte
cruel e sangrenta. Impressionado pelas mortes dos Reis meus
antepassados, no Paje�, sentia-me, ao mesmo tempo, fascinado e
apavorado com elas. Desejava imit�-los na grandeza real que tinham
mantido na vida e na morte, mas sabia que n�o tinha coragem
suiciente para isso. Eu ouvia aquele tropel de Cavaleiros e bar�es
sertanejos, montados a cavalo, armados de bacamartes e espadas,
seguindo para a Pedra do Reino. Ouvia o entrechoque dos ferros, na
Batalha. Via as gargantas cortadas, com o sangue dos Reis e das
Princesas esguichando e embebendo o ardente ch�o sertanejo. De
modo que, quando l� um dia, Dona Maria Galdina e Tia Filipa cantaram
um certo romance que conheciam e cujo assunto era, tamb�m, Jesu�no
Brilhante, aquilo tudo de repente pegou fogo em minha cabe�a.
Lembro-me bem de que havia uma estrofe que dizia:
�Jesu�no j� morreu!
Morreu o Rei do Sert�o!

Morreu no campo da honra,
n�o entregou-se � pris�o,
por causa de uma desfeita
que izeram a seu irm�o!�
Preparado pelos acontecimentos da Pedra do Reino,
impressionado com as palavras Rei e campo (tanto fazia �campo da
honra� como �campo encantado embebido de sangue�), eu come�ava a
misturar Jesu�no Brilhante com meu bisav�, Dom Jo�o Ferreira-
Quaderna. Aprendi, ent�o, a solfa da �Cantiga de Jesu�no�, e quando
chegava nos versos que acabo de citar, substitu�a as palavras assim:
�Dom Jo�o Quaderna morreu,
morreu o Rei do Sert�o!
Morreu no Campo Encantado,
sofrendo a degola��o!
Pedro Ant�nio assassinou-o,
subiu ao Trono do irm�o!�
* * *
Tudo isso, por�m, era a princ�pio apenas uma raiz do sangue,
uma pe�onha confusa que incava dentro de mim suas ra�zes profundas
e inarranc�veis. S� depois � que tudo iria se aclarando e se espalhando
diante dos meus olhos, gra�as, principalmente, �s li��es de meu
Padrinho, Jo�o Melch�ades Ferreira. � que ele, seguindo o exemplo de
seu antigo Mestre, o grande Francisco Romano, da Vila do Teixeira,
instalara na �On�a Malhada� uma Escola-de-Cantoria, onde procurava
nos ensinar �a Arte, a mem�ria e o estro da Poesia�. Procurava, entre
n�s, os que ouviam com mais interesse seus romances e folhetos,
veriicava se �tinham voca��o para a Arte�, e ent�o tornava-os
disc�pulos seus. Terminou escolhendo quatro entre os melhores: eu,
Marcolino Arapu�, Severino Putri�o e Lino Pedra-Verde.
Come�ou ensinando-nos que havia dois tipos de romance: o
�versado e rimado�, ou em poesia; e o �desversado e desrimado�, ou em
prosa. Era, mesmo, um exerc�cio que nos obrigava a fazer: pegar um

romance desrimado qualquer e �vers�-lo�, contando em verso o que era
contado em prosa. Lia para n�s a Hist�ria de Carlos Magno e os Doze
Pares de Fran�a, um �romance desversado� que nos encantava pelo
hero�smo de suas cavalarias, aquelas hist�rias de Coroas e batalhas, que
eu, por causa da Pedra do Reino, via logo, com Princesas amorosas e
desventuradas que, ou eram degoladas ou desonradas, mas disputadas
sempre por Cavaleiros, em duelos mortais, travados a punhal, junto a
enormes pedras e num Campo encantado, embebido de sangue
inocente. In�meros Cantadores e Poetas sertanejos tinham, j�, versado
esse romance do Imperador Carlos Magno. N�s prefer�amos as vers�es
rimadas, n�o s� porque eram mais f�ceis de decorar, como porque a
gente podia cantar os versos, acompanhando a solfa com o bai�o da
Viola, coisa que Jo�o Melch�ades tamb�m n�o se descuidou de nos
ensinar. Uma dessas vers�es dizia:
�Depois que o Rei Carlos Magno
venceu a grande Campanha,
fez a Igreja de Sant�Iago,
padroeiro da Espanha,
e a de Nossa Senhora,
em Aquisgr�, na Alemanha.
Tomou dezesseis Cidades,
da Guerra saiu feliz!
Deu muitas gra�as a Deus
por conquistar um Pa�s:
foi visitar a Alemanha,
da� tornou a Paris.
Acompanhado dos Pares
Reinaldo de Montalv�o,
de Gui, Duque de Borgonha,
de Oliveiros e Rold�o,
Guarim, Duque de Lorena,
e do Conde Galal�o;

de Lamberto de Bruxelas,
Frisa, Rei de Garden�,
Tietri, Duque de Dardanha,
Gerardo e Urgel Dano�,
de Bosim, Duque de G�nova,
homens-bons no guerrear;
e o Duque de Regn�r,
mais Engelo de Almirante,
e Nem� da Baviera,
Hoel e Riol de Nantes,
Reinaldo e Anselmo Fiel,
mais Oton, Pr�ncipe de Anglante.
A� passou Carlos Magno
vinte anos em campanha.
Aquartelou os ex�rcitos
d�It�lia, Fran�a e Alemanha.
Mas lhe chega uma Embaixada:
novas guerras na Espanha!�
O que me impressionava, nisso, eram os nomes dos lugares e o
fato de, na lista, os Doze Pares de Fran�a serem vinte. Um dia, perguntei
a Tia Filipa onde eram todos aqueles lugares maravilhosos, chamados
Lorena, Alemanha, Baviera, G�nova e Bruxelas. Ela respondeu:
� N�o sei direito n�o, Dinis, mas deve ser longe como o diabo,
ali por perto da Turquia, j� quase na beira do mundo! Em Serra Talhada,
existe uma fam�lia Lorena: portanto esses lugares devem ser pra l� do
Sert�o do Paje�, de Serra Talhada pra cima, mais de sessenta l�guas! Ou
ent�o, � pr�os lados do Piau�, entre a Turquia e a Alemanha! A guerra do
Doutor Santa Cruz contra o Governo da Para�ba, parece que foi
pr�aquelas bandas, em 1912: mas o que eu me admiro � que uns
chamam ela de �A Guerra de Doze�, e outros de �A Guerra de Catorze�, e
a gente ica sem saber quantos Reis se meteram nela, se foram doze ou
catorze! Meteram-se nela um tal de Togo do Jap�o, o Caisalam�o,

Ant�nio Silvino, os Pereiras, Dom Sebasti�o, Carlos Magno, os Viriatos,
esse pessoal guerreiro todo! Digo isso porque, naquele tempo, eu
perguntei a seu Pai: �Justino, sabe me dizer se a Para�ba est� metida
nessa guerra que est� havendo por a�?� Ele respondeu: �Filipa, a
Para�ba � do Brasil, e o Brasil est�!� A�, eu perguntei: �A favor ou contra
a Alemanha?� A� ele disse: �Contra o Caisalam�o!� Eu perguntei, de
novo: �Contra o qu�?� Seu Pai disse: �Contra a Alemanha! O Caisalam�o
� o Rei da Alemanha!� A� eu perguntei: �E se a Alemanha ganhar a
guerra, voc� acha que v�o tomar as terras do nosso Compadre Pedro
Sebasti�o?� Justino respondeu: �Essa gente de Governo � t�o ruim, que
s�o capazes de tomar!� Eu, com raiva, falei: �T�, � da vez que eu largo
esse Brasil velho e vou me embora pr�o Cear�!�
* * *
O velho Jo�o Melch�ades ensinou-nos, ainda, que, entre os
romances versados, havia sete tipos principais: os romances de amor;
os cangaceiros e cavalarianos; os de exemplo; os de espertezas,
estradeirices e quengadas; os jornaleiros; os de profecia e
assombra��o; e os de safadeza e putaria.
Um dia, ouvi Tia Filipa e a Velha do Badalo cantarem, juntas,
uma daquelas cantigas que eu achava estranhas, mas parecidas com a
Cantiga de La Condessa. As duas estavam sentadas no ch�o, fazendo
renda, e enquanto Tia Filipa manejava os bilros, cantava em di�logo
com Dona Maria Galdina:
S� GALDINA:
�Ai Valen�a! Guai Valen�a!
De fogo sejas queimada!
Antes fosses pelos Mouros
que pelos Crist�os tomada!
Ai Valen�a! Guai Valen�a!
Como est�s bem assentada!
Antes que sejam tr�s dias,
de Mouros ser�s cercada!�

TIA FILIPA:
�Vesti-vos, v�s, minha Filha,
vesti-vos de Ouro e de Prata!
Detende-me aquele Mouro,
em palavra por palavra!
Que as palavras sejam poucas,
mas sejam bem rematadas,
e essas poucas que lhe derdes
sejam de amores tocadas!�
A�, foi a vez de eu consultar meu padrinho Jo�o Melch�ades sobre
essas cantigas. Ele me explicou que aquilo eram �uns romances velhos,
meio desmantelados e j� um pouco fora de moda�. Disse que as brigas
entre os Crist�os e os Mouros, de que a cantiga falava, eram aquelas que
eu via, todo ano, entre Natal e Reis, nas representa��es da Nau
Catarineta, com os Reis Mouros do Cord�o Encarnado e os Reis Crist�os
do Cord�o Azul. Ele sabia algumas daquelas cantigas velhas, que tinha
decorado como obriga��o de o�cio, nos come�os de sua carreira de
Cantador. Ent�o, cantou-me uma dessas, uma esp�cie de mistura de
romance de amor com romance de putaria. Chamava-se Romance da
Filha do Imperador do Brasil, e era assim:
�O Imperador Dom Pedro
tem uma Filha bastarda,
a quem quer tanto do bem
que ela icou malcriada!
Queriam casar com ela
Bar�es de capa e de espada.
Ela, por�m, orgulhosa,
a todos que recusava:
� Este, � menino! Esse � velho!
Aquele, l�, n�o tem barba!
O de c�, n�o tem bom pulso
pra manejar uma Espada!

Dom Pedro falou, se rindo:
� Inda ser�s castigada!
N�o v�s tu, de algum Vaqueiro,
terminar apaixonada!
Na fazenda de seu Pai,
j� no im da madrugada,
um dia, numa janela,
a Infanta se debru�ava.
Viu passar tr�s moradores
que trabalhavam de enxada.
O mais garboso dos tr�s
era o que mais trabalhava.
Tanto plantava Algod�o,
como do Gado cuidava.
Vestia Gib�o de couro,
fortes sapatos cal�ava.
N�aba do chap�u de couro,
ina prata se estrelava.
Pois logo, desse Vaqueiro,
a Infanta se apaixonava.
E o Vaqueiro, s� cavando:
ele sabe o que cavava!
A Princesa chama a Velha
em que mais se coniava:
� Est�s vendo aquele Vaqueiro,
trabalhando, ali, de enxada?
Condes, Duques, Cavaleiros,
por nenhum eu o trocava!
Vai cham�-lo aqui, depressa,
e ningu�m saiba de nada!
A Velha vai ao Vaqueiro
que na terra trabalhava:

� Vem comigo, meu Vaqueiro!
Por que essa vista baixa?
Levanta os olhos, que v�s
a Estrela da Madrugada!
Entraram pelo port�o,
que a Porta estava fechada.
Na camarinha da Mo�a
o Vaqueiro j� chegava:
� Senhora, o que � que me manda?
Eu vim por vossa chamada!
� Quero saber se te atreves
a queimar minha Coivara!
� Atrever, me atrevo a tudo,
que um homem n�o se acovarda!
Dizei-me, por�m, Senhora,
onde est� vossa Coivara!
� � abaixo dos dois Montes,
na Fonte das minhas �guas,
abaixo do Tabuleiro
e na Furna da Pintada,
na linha da Perseguida,
no corte da Desejada!
Passam o dia folgando,
o mais da noite passavam,
e o Vaqueiro socavando:
ele sabe o que cavava!
� meia-noite, a Princesa
pediu tr�guas, por cansada:
� Basta! Basta, meu Vaqueiro!
Queimaste mesmo a Coivara!
N�o sei se por varas morro
ou com ela incendiada!

E, assim, a ilha do Rei
do orgulho foi castigada!�
Ora, eu sabia que meu tio-bisav�, Dom Pedro I, Imperador da
Pedra do Reino, n�o tinha ilho nem ilha, de modo que iquei abismado
com as mentiras desse romance. At� que, muito depois, soube que
quem tinha uma ilha bastarda era o outro Dom Pedro I, o falso, o
impostor da Casa de Bragan�a. Certamente fora essa ilha, a Duquesa de
Goi�s, que, tendo puxado �s taras da M�e, a Marquesa de Santos,
terminara como personagem desse romance que meu Padrinho me
cantou naquele dia.

A
FOLHETO XIII
O Caso da Cavalhada
os s�bados, Tia Filipa me levava para a feira, e ic�vamos na rua
at� o dia seguinte, para assistirmos � Missa do domingo. Uma vez,
terminada a feira, houve uma Cavalhada, coisa que tamb�m iria ser de
import�ncia capital na minha vida.
Havia vinte e quatro Cavaleiros. Doze deles representavam os
Doze Pares de Fran�a do Cord�o Azul, e os outros doze, os Doze Pares
de Fran�a do Cord�o Encarnado. Havia, portanto, um Rold�o do azul e
outro do encarnado, de modo que, apesar de serem vinte e quatro os
Cavaleiros, aqui os Doze Pares de Fran�a eram realmente doze, a saber:
Rold�o, Oliveiros, Guarim de Lorena, Gerardo de Mondif�r, Gui de
Borgonha, Ricarte de Normandia, Tietri de Dardanha, Urgel de Dano�,
Bosim de G�nova, Hoel de Nantes, o Duque de Nem� e Lamberto de
Bruxelas.
Ningu�m pode imaginar o entusiasmo r�gio que me empolgou
quando os Cavaleiros desilaram pela rua, a cavalo, com os matinadores
levando � frente as Bandeiras dos dois cord�es, uma azul, outra
encarnada. Explicaram-me que os Azuis iam disputar trof�us com os
Vermelhos, e que eu devia escolher para mim um dos dois partidos.
Disseram-me que o Cord�o Azul era a cor de Nossa Senhora, e o
Encarnado, a do Cristo. Mas Tia Filipa, que, por ser devota de Nossa
Senhora da Concei��o, era do Azul, me disse, logo, que eu n�o fosse
nessa conversa n�o, porque o Cord�o Encarnado era do Diabo.
Espantei-me de que uma cor s�, o Vermelho, pudesse ser, ao mesmo
tempo, do Cristo e do Diabo. S� depois de adulto, aprofundando meus
conhecimentos religiosos e astrol�gicos e estudando o Catolicismo da
Pedra do Reino, foi que descobri como essa no��o � profunda, zodiacal
e estrelar! Mas isso foi depois e ica para depois: naquele meu primeiro
dia de Cavalhada, obedecendo � orienta��o de Tia Filipa, iliei-me ao

Cord�o Azul, no que iz, ali�s, muito bem, porque ele ganhou e eu quase
morro de entusiasmo.
Aconteceu, por�m, que os derrotados cavaleiros do Encarnado
n�o se conformaram e pediram desforra para o s�bado seguinte. Fomos
� feira de novo, eu e Tia Filipa; e quando eu, muito lampreiro, esperava
a repeti��o da vit�ria do Azul, coisa que eu julgava de rotina pela
prote��o de Nossa Senhora contra o Diabo, ganhou o Encarnado!
Encaifei! Assim, n�o era vantagem! No primeiro dia, eu icara
entusiasmado com as bandeiras vermelhas, triunfais, agitadas pelo
vento, tremulando desaiadoramente contra o c�u azul; s� n�o me
iliara ao Cord�o Encarnado, primeiro para n�o perder a alma, e depois
porque estava certo de que o Azul, com a prote��o da Virgem
Sant�ssima, ganhava toda vez. Pensei, ent�o, em virar a casaca para o
Encarnado, indagando por�m, antes, a Tia Filipa, qual era o Cord�o que
ganhava mais. Perplexa, ela respondeu que isso era coisa que ningu�m
podia saber. Ent�o, como era que eu podia fazer minha escolha? Se ao
menos houvesse uma coer�ncia, uma garantia! Acresce que eu achava
ambas as bandeiras bonitas: o Azul era tranquilo e fraterno, mas o
Vermelho era festivo e corajoso, e eu gostava era de todos dois! S�
havia, portanto, uma solu��o, e foi a que adotei: resolvi pertencer aos
dois partidos de uma vez, s� decidindo qual a minha fac��o do dia
depois da corrida. Quando o Azul ganhava, eu voltava para a �On�a
Malhada� dizendo:
� Hoje, eu era do Azul!
Tia Filipa ouvia isso, enfarruscada mas calada. Quando, por�m, o
Encarnado vencia e eu me declarava por ele, ela rosnava:
� Esse menino n�o tem car�ter! N�o sei a quem ele puxou, t�o
desassistido de vergonha!
* * *
Tudo isso me ajudava, aos poucos, a entender cada vez melhor a
hist�ria da Pedra do Reino e a me orgulhar da realeza e cavalaria dos
meus antepassados. Tornava tamb�m o mundo, aquele meu mundo
sertanejo, �spero, pardo e pedregoso, um Reino Encantado, semelhante
�quele que meus bisav�s tinham instaurado e que ilustres Poetasacad�micos
tinham incendiado de uma vez para sempre em meu

sangue. Minha vida, cinzenta, feia e mesquinha, de menino sertanejo
reduzido � pobreza e � depend�ncia pela ru�na da fazenda do Pai,
enchia-se dos galopes, das cores e bandeiras das Cavalhadas, dos
hero�smos e cavalarias dos folhetos. Assim, quando agora me acontecia
evocar os acontecimentos da Pedra do Reino, o que eu via eram os
Pereiras, como uma esp�cie de Cavaleiros Crist�os do Cord�o Azul,
assediando e assaltando o Reino criado e defendido pelos Reis Mouros
do Cord�o Encarnado da fam�lia Quaderna. Sonhava em me tornar,
tamb�m, um dia, Rei e Cavaleiro, como meu bisav�. N�o para degolar os
outros, mas para conquistar Rosa e sete Princesas, queimando sete
coivaras e abrindo, ainda, a broca dos cercados dos outros, pelo direito
real de �dispensar� todas as donzelas do Reino em sua primeira noite
de casadas.
* * *
Ao mesmo tempo, entregava-me furiosamente � leitura dos
folhetos e romances, de que ia tomando conhecimento por interm�dio
de meu Padrinho e professor Jo�o Melch�ades. Quando o romance era
muito grande, era publicado em folhetos separados, como a Hist�ria de
Alonso e Marina, dividido em dois: Alonso e Marina, ou A For�a do Amor
e A Morte de Alonso e a Vingan�a de Marina. Este, era uma mistura de
romance de amor com romance cavalariano de hero�smos, e eu achava
maravilhosos esses t�tulos duplos, �isto ou aquilo�. Outras vezes, o
folheto trazia na primeira p�gina, por baixo do t�tulo, uma esp�cie de
explica��o, destinada a causar ��gua na boca� aos que iam compr�-lo.
Assim, por exemplo:
O PR�NCIPE JO�O SEM MEDO E A PRINCESA DA ILHA DOS
DIAMANTES
Romance de p�ginas misteriosas, onde se v� um jovem Pr�ncipe
viajante e errante pelas mais temerosas estradas, em busca de
intrincados Labirintos que lhe causassem medo, Amor, sacrif�cio e
triunfo!

Havia romances de exemplo, como o Exemplo dos Quatro
Conselhos. Havia os romances cangaceiros e cavalarianos como, por
exemplo, O Encontro de Ant�nio Silvino com o Valente Nic�cio. Este
come�ava com uma relex�o que, segundo Jo�o Melch�ades, era
�ilos�ica, ilantr�pica e lit�rgica at� o osso�. Era assim:
�Neste Planeta terrestre,
o Homem n�o se domina:
tem que viver sob o jugo
da Provid�ncia Divina.
Foi feito do P� da terra,
no P� da terra termina!
Assim, eu mostro a estrada
do Passado e do Presente,
estrada onde morrem Reis
molhados de Sangue quente!
Hoje, tornados em P�,
resta a Mem�ria, somente!�
Eram, ainda, os Reis degolados da Pedra do Reino que vinham �
minha imagina��o, quando eu ouvia meu Padrinho cantar esses versos,
�de t�o profunda signiica��o ilantr�pica e lit�rgica�. E quando, em
1930, meu tio Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto foi degolado, foram
ainda esses versos que me queimaram a mem�ria, pegando fogo em
meu sangue.
Outras vezes, a relex�o inicial do folheto vinha como uma
invoca��o dirigida �s Musas, a Apolo, a Merc�rio ou a outras iguras
que, depois, quando me dediquei � Astrologia, tiveram tanta
import�ncia em minha vida. Era o caso de um romance de amores
desventurados, O Assassino da Honra, ou A Louca do Jardim, que
come�ava com a seguinte estrofe:
�Venha, � Musa, mensageira
do Reino de Eloim:

me traga a pena de Apolo
e escreva aqui, por mim,
O Assassino da Honra,
ou A Louca do Jardim.�
Assim, Vossas Excel�ncias j� entendem por que segui esse
mesmo estilo, no meu Memorial: pretendia e pretendo, com isso,
predispor favoravelmente a mim n�o s� os �nimos de Vossas
Excel�ncias como �o Povo em geral� e at� as divindades divinodiab�licas
que protegem os Poetas nascidos e criados no Sert�o da
Para�ba.

FOLHETO DE JO�O MELCH�ADES, O CANTADOR DA BORBOREMA. A GRAVURA DE
TAPARICA FOI FEITA A PARTIR DA CARA DE CARLOS MAGNO SEGUNDO APARECE
NA �HIST�RIA DA CIVILIZA��O� DO DOUTOR MANOEL DE OLIVEIRA LIMA.

FOLHETO XIV
O Caso do Castelo Sertanejo
Um dia, tendo sido eu j� iniciado nas realezas e cavalarias da Hist�ria
Geral do Brasil, caiu nas minhas ou�as um folheto, decorado por Lino
Pedra-Verde, e que come�ava assim:
�No Sert�o da Espinhara,
junto � Vila de Pombal,
habitava o poderoso
Bar�o Afonso Durval,
que inda vinha a ser parente
da Fam�lia Imperial.�
Eu j� n�o me sentia mais envergonhado, e sim orgulhoso, de
pertencer � Casa Real da Pedra do Reino, de modo que j� andava era
com medo de rivais. A Espinhara e a Vila de Pombal eram aqui na
Para�ba, a dois passos do nosso Cariri: daqui a pouco, se essa Literatura
continuasse, os Sertanejos pensariam que tanto faziam os Imperadores
da Casa dos Quadernas quanto os Impostores da Casa de Bragan�a, que
tanto valia um Bar�o Afonso Durval qualquer quanto Dom Andrelino
Pereira, Bar�o do Paje�!
Resolvi cortar o mal pela raiz: pedi a Jo�o Melch�ades que, como
parente dos Ferreira-Quadernas, escrevesse um romance sobre a Pedra
do Reino. Ele me atendeu, e o folheto icou uma beleza, cuidando eu
logo de imprimi-lo e vend�-lo nas feiras. Come�ava assim:
�No Reino do Paje�
morava o Rei Jo�o Ferreira.
Ele era Conde e Bar�o:

foi o terror da ribeira!
Tinha a Coroa de Prata
l� no Trono da Pedreira!
Havia, l�, dois Rochedos
bem juntos e paralelos.
A Pedra era cor de ferro
e incrustada de amarelo.
Foi delas que, por grandeza,
o Rei fez a Fortaleza,
levantando o seu Castelo!�
Agora sim, estava honroso e como eu queria! Apenas adverti a
Jo�o Melch�ades que a Coroa dos nossos antepassados era de metal
barato, e n�o de prata, e que as incrusta��es da Pedra do Reino eram
�uma esp�cie de chuvisco prateado�, e n�o de ouro amarelo, como ele
escrevera no folheto. Ele me respondeu que �a rima e a Poesia
obrigavam a gente a fazer essas mudan�as de gl�ria ilos�ica e beleza
lit�rgica�. Conformei-me, concordei e perguntei, ent�o, que Castelo era
aquele que tinha aparecido no folheto e que n�o igurava nos livros de
Pereira da Costa e Souza Leite. Ele retrucou que todo Rei tem um
Castelo, uma Fortaleza, uma ediica��o de pedra e cal na qual se isola
como defesa contra os inimigos e como marco de sua realeza. Todos os
Cantadores, quando cantavam as fa�anhas dos Cangaceiros,
costumavam construir, em versos, um Castelo para seu her�i. O de
Ant�nio Silvino, por exemplo, era descrito assim:
�Meu Castelo est� incado
em Pedra de grande altura.
� feita de pedra e cal
sua Muralha segura!
O Governo tem lutado,
mas ele n�o foi tomado,
pois a Pedra � muito dura!�

Todas essas grandezas e monarquias iam, assim, tocando fogo
em meu sangue, com o desejo de me sentar no Trono de meus
antepassados e de me assenhorear de novo do Castelo de pedra que
eles tinham levantado no Paje�. Quando, por�m, meu sonho atingia o
auge de fogo, l� vinha a lembran�a estarrecedora: todos os Reis da
minha fam�lia tinham terminado de garganta cortada, de morte violenta
tinha acabado Jesu�no Brilhante, o Rei do Sert�o! Ent�o, envergonhado,
eu baixava a cabe�a, corria de enfrentar morte cruel para realizar
minha realeza, e confessava para mim que preferia ser um covarde vivo
a ser um Rei degolado.
* * *
Estavam as coisas nesse p�, quando, um dia, ouvi Tia Filipa e a
Velha do Badalo cantarem, juntas, o Desaio de Francisco Romano com
In�cio da Catingueira. Tia Filipa cantava as estrofes atribu�das ao
primeiro Cantador e S� Maria Galdina as do segundo. De repente, feriu
minha aten��o um trecho em que Romano, sabedor do fato de que
In�cio �tinha um Castelo�, amea�ava-o assim:
ROMANO:
�In�cio, tu me conheces
e sabes bem quem eu sou!
eu posso te garantir
que � Catingueira inda vou:
vou derrubar teu Castelo
que nunca se derrubou!�
IN�CIO:
�A parede do Castelo
tem cem metros de largura!
Tem ainda um Alicerce
com bem trinta de fundura,

e, do n�vel para cima,
mais de uma l�gua de altura!�
ROMANO:
�Pra tudo o que l� tiveres
tenho trabalho de sobra:
eu dou veneno ao Cachorro,
meto o cacete na Cobra!
Derrubo-te a Fortaleza,
escangalho a tua Obra!�
Intrigado, fui procurar meu Padrinho, Jo�o Melch�ades, e ele me
fez, ent�o, aquela que seria, talvez, a maior revela��o para a minha
carreira. � que os Cantadores, assim como faziam Fortalezas para os
Cangaceiros, constru�am tamb�m, com palavras e a golpes de versos,
Castelos para eles pr�prios, uns lugares pedregosos, belos, inacess�veis,
amuralhados, onde os donos se isolavam orgulhosamente, coroando-se
Reis, e que os outros Cantadores, nos desaios, tinham obriga��o de
assediar, tentando destru�-los palmo a palmo, � for�a de aud�cia e de
fogo po�tico. Os Castelos dos poetas e Cantadores chamavam-se,
tamb�m, indiferentemente, Fortalezas, Marcos e Obras.
Foi um grande momento em minha vida. Era a solu��o para o
beco sem sa�da em que me via! Era me tornando Cantador que eu
poderia reerguer, na pedra do Verso, o Castelo do meu Reino,
reinstalando os Quadernas no Trono do Brasil, sem arriscar a garganta
e sem me meter em cavalarias, para as quais n�o tinha nem tempo nem
disposi��o, montando mal como monto e atirando pior ainda!
* * *
Assim irmou-se para mim a import�ncia deinitiva da Poesia,
�nica coisa que, ao mesmo tempo, poderia me tornar Rei sem risco e
exal�ar minha exist�ncia de Decifrador. Anexei �s ra�zes do sangue
aquela fundamental aquisi��o do Castelo liter�rio, e continuei a reletir

e sonhar, errante pelo mundo dos folhetos. Um dos tipos que eu mais
apreciava eram os de safadeza, subdivididos em dois grupos, os de
putaria e os de quengadas e estradeirices. Dos primeiros, o que mais
me entusiasmava eram umas �d�cimas� do Cantador Leandro Gomes de
Barros, glosadas sobre o �mote�
�Qual ser� o beco estreito
que tr�s n�o podem cruzar?
S� entra um, icam dois,
ajudando a trabalhar!�
As glosas eram assim:
�Frei Bedegueba dizia
a Frei Manzapo, em disputa:
� Existe uma certa Gruta
onde hei de ter moradia.
Hei de conhec�-la um dia,
embora quebre o Preceito.
Vou penetr�-la direito,
para a verdade saber,
pois preciso conhecer
qual ser� o beco estreito.
Dizem que tem pouca altura
e ica no p� dum Monte.
A entrada � uma Fonte:
vou medir sua largura!
Para saber-lhe a fundura
vou l� dentro mergulhar.
Para me certiicar,
n�o podendo entrar os tr�s,
s� entra o Cabo-pedr�s,
que tr�s n�o podem cruzar.

Um Padre j� me contou
que foi dar uma ca�ada
e, nessa Mata fechada,
viu um Bicho e n�o matou!
De dentro, uma Voz gritou:
� Padre, dizei-me quem sois!
Podereis entrar depois,
respondendo ao que pergunto:
mas, dos tr�s que vejo juntos,
s� entra um, icam dois!
Um Monge, de lisa fronte,
tamb�m j� contou a mim:
� J� brinquei nesse Capim,
j� ressonei nesse Monte!
Quase sempre a essa Fonte
venho eu e mais um Par:
os dois n�o podendo entrar,
por serem moles e bambos,
eu entro s�, icam ambos
ajudando a trabalhar!�
Ora, Leandro Gomes de Barros era o autor de Alonso e Marina,
ou A For�a do Amor, e eu me admirava de que ele, sendo, assim,
esfarinhado, em quest�es de safadeza e porcaria, contasse de maneira
t�o casta o casamento de Alonso com a feroz e apaixonada Marina. Jo�o
Melch�ades me explicou, por�m, que, se Leandro descrevesse
desavergonhadamente a noite de n�pcias de Marina, era capaz de ser
preso. Objetei que tinha lido um folheto, intitulado Hist�ria de um Velho
que Brigou 72 Horas com um Caba�o sem Chegar no Fundo e sem Lascar
as Beiras, safad�ssimo e, no entanto, publicado. Jo�o Melch�ades disse
que eu reparasse direito: o folheto sobre o Velho n�o era assinado, para
n�o dar com o autor na Cadeia.

Passei a prestar aten��o e vi que, de fato, os romances de putaria
nunca eram assinados. Eu os lia furiosamente e logo passava a
compar�-los com outros, desrimados, dos quais come�ava a tomar
conhecimento, por interm�dio de Lino Pedra-Verde. � medida que
cresc�amos, Lino ia se tornando Cantador. Cantador, mesmo: n�o nas
horas vagas, como eu, mas Cantador alugado, de carreira, como Jo�o
Melch�ades. Com isso, come�ou a viajar, inclusive para Campina Grande,
de onde come�ou a trazer, para revend�-los na feira, uns romances
desversados, imoral�ssimos. A perturba��o que senti, lendo o primeiro,
foi terr�vel. Sentia-me fascinado e, ao mesmo tempo, aterrorizado,
pensando comigo mesmo: �Esse pessoal n�o tem medo n�o? Terminam
indo todos para a Cadeia e para o Inferno, e me levando tamb�m, com
eles!� Havia um chamado O Homem da Rua do Fogo. Outro, A Prostituta
do C�u. Mas o melhor de todos era A Ailhada de Monsenhor Agnelo, ou O
Castelo do Amor, que lamentei n�o conhecer j�, quando daquela noite
com Rosa, porque ent�o tudo teria ido at� o im, executando eu, com
ela, tudo aquilo que o romance agora me ensinava.
O curioso, por�m, � que esses romances eram, todos, escritos e
assinados por um certo Visconde de Montalv�o, na certa parente do
Marqu�s de Montalv�o, personagem da �Hist�ria do Brasil�, parece que
at� Vice-Rei nosso. Seria o Visconde ilho do Marqu�s? Interroguei Lino,
que achou gra�a:
� Que Visconde que nada, Dinis! Esses romances s�o escritos
em Campina mesmo, por um tal de Jos� de Santa Rita Pinheiro
Nogueira, amigo meu! Ele pega uns livros que compra no Recife, escreve
de novo, ajeita, corta, aumenta, assina com o nome de Visconde de
Montalv�o para n�o ser preso, imprime e vende! Tem um lucro danado,
porque todo mundo gosta de ler safadeza!
� Mas se ele for pegado, vai preso, Lino! Primeiro, pela
safadeza, depois pelo pl�gio!
� Ah n�o, isso n�o! Esse neg�cio de pl�gio pode valer para os
outros, para n�s, Cantadores, n�o! Voc� n�o v� Jo�o Melch�ades
mandando a gente plagiar, em verso, A Donzela Teodora, Roberto do
Diabo, a Hist�ria de Carlos Magno e outras?
� � mesmo! � disse, vendo que Lino tinha raz�o.
Depois da�, nunca mais tive escr�pulos de me apropriar do que
os outros tinham escrito, suprindo, assim, �a falta de imagina��o e de

autoridade� que Samuel e Clemente vivem passando na minha cara de
�charadista e intelectual de segunda ordem�. Reassegurado, mergulhava
com avidez na leitura dos romances de Jos� de Santa Rita Pinheiro
Nogueira, Visconde de Montalv�o. Meu preferido era, mesmo, A
Ailhada de Monsenhor Agnelo, porque, al�m das putarias, tinha, ainda,
aquele elemento heroico do Castelo do Amor. Isto me indicava que a
Fortaleza de um Rei, poeta e Cantador como eu, al�m dos hero�smos e
cavalarias das estradas e caatingas, devia ter, tamb�m, camarinhas e
alcovas para o amor e as safadezas. Era o que acontecera com o Castelo
da Pedra do Reino, onde meu bisav� Dom Jo�o II institu�ra hero�smos
sangrentos no Campo Encantado e safadezas amorosas na Sala
Soterranha, onde ele dispensava as donzelas.
Acresce que o danado do Visconde escrevia talvez melhor ainda
do que Ant�nio �ttico de Souza Leite. Convenci-me, de vez, de que o
pl�gio seria indispens�vel � minha voca��o de Poeta, porque, sozinho,
eu jamais teria intelig�ncia para escrever como aqueles dois Mestres. O
livro dele come�ava assim: �Se o am�vel Leitor n�o conheceu Teresa, a
ailhada �rf� do l�brico Monsenhor Agnelo, procure-a no meu Castelo!
Ela mora a�, no repert�rio liter�rio que tenho, depositado, a cargo da
Mulher que amo! Neste r�gio Castelo, erguido a golpes de escopro de
meu C�lamo de ouro, o egr�gio Leitor encontrar� uma Aia prisca, n�o
decr�pita mas tr�pega, que o receber� com pouca lisura mas com muita
habilidade.� O Visconde contava, ent�o, como a m�e de Teresa,
morrendo, deixara a menina aos cuidados do Monsenhor Agnelo,
�padre sensual e sem escr�pulos�, que, � medida que a ailhada se
punha mo�a, come�ava a seduzi-la, aproveitando a circunst�ncia de ela
ser �inocente e brejeira, ing�nua e voluptuosa�. Depois do almo�o,
Monsenhor Agnelo costumava sentar-se numa espregui�adeira ou
deitar-se na cama, para fazer a sesta. Era o momento escolhido para as
safadezas, que me abstenho de transcrever, com medo do Inferno.
Conto apenas que, num certo dia, depois de v�rias escaramu�as com
Teresa, Monsenhor Agnelo, descobrindo que o fruto estava maduro,
pensava: �Agora � necess�rio aplicar-lhe um pouco de �leo sensual que
lhe sirva de ant�doto, fazendo-a expelir as mat�rias envenenadas de
seus ilamentos nervosos, ao mesmo tempo que se lhe crava nas
entranhas o dardo subentendido.� A� havia ainda umas tr�s ou quatro
escaramu�as, e o Visconde conclu�a, dizendo que �logo o problema se

resolvia, e o atrevido Soldado de capacete vermelho, encontrando a
relva umedecida, rasgava docemente as barreiras e penetrava
inteiramente a gruta negra e vermelha, plantada no centro do Castelo
do Amor!�.
* * *
Como se v�, nossos pobres folhetos sertanejos n�o podiam,
mesmo, nem de longe, competir com os romances do Visconde. A
safadeza dos nossos era, mais, uma sem-vergonhice risadeira, que s�
fazia era a gente achar gra�a. Eram bons, mesmo, era nas estradeirices e
quengadas, nas ast�cias e molecagens dos quengos. Esses quengosestradeiros,
isto �, pessoas de bom quengo para enganar os outros,
eram popular�ssimos, entre n�s. Os mais conhecidos eram Pedro
Malasarte, Jo�o Malasarte � neto dele e morador no Rio Grande do
Norte �, Pedro Quengo, Jo�o Grilo e Canc�o de Fogo, este um sertanejo,
paraibano como eu, cuja vida era narrada num romance de dois
folhetos. A hist�ria de Jo�o Malasarte acontecia nas tr�s Prov�ncias que
formam �o cora��o do Brasil�, a Para�ba, o Rio Grande do Norte e
Pernambuco, acontecendo os casos no Cariri, no Pianc�, no Paje� e no
Serid�. As aventuras do Paje� passavam-se exatamente em Serra
Talhada, no mesmo local, portanto, onde tinha, realmente, come�ado o
Reinado glorioso e sangrento da minha Casa. Mas a parte mais
engra�ada era a do Serid�, no Rio Grande do Norte, quando Jo�o
Malasarte encontrava, na estrada, um Portugu�s leso e o enrolava da
seguinte maneira:
�Chegou no Serid�, liso:
n�o tendo de que viver,
arranjou umas pimentas
e foi pra Feira vender.
Por�m, no caminho, fez
um Portugu�s se morder.
Jo�o achou o Portugu�s
com um Jumento acuado,

carregado de panelas,
l� no caminho, parado,
com o Portugu�s dando nele,
por�m o burro emperrado.
Jo�o lhe disse: � Camarada,
eu tenho um rem�dio aqui!
Deu-lhe as pimentas, dizendo:
� Como este, eu nunca vi!
Esfregue no fundo dele
que ele sai logo da�!
O besta passou as bichas
no lugar que Jo�o mandou:
o jumento deu um coice
que a cangalha revirou!
As panelas se quebraram
e o burro desembestou!
Jo�o disse pro Portugu�s:
� Seu jumento j� correu!
Com o rem�dio no ioto,
ele desapareceu!
E voc� s� pega ele
se passar tamb�m no seu!
O pobre do Portugu�s,
para pegar o Jumento,
passou a pimenta ardosa
no lugar de sair vento.
Jo�o gritou: � Ou cabra besta!
Desgra�aste o fedorento!
Quando o Portugu�s sentiu

o ardor no iof�,
puxou a Faca da cinta
e Jo�o gritou: � Fique s�!
Dessa carreira que deu,
foi parar em Mossor�!�
A�, andando ao l�u pela estrada, Jo�o vai bater numa Fazenda,
onde pede ao dono que lhe arranje emprego pela comida, pela roupa e
um pequeno sal�rio. O Fazendeiro emprega-o, Jo�o trabalha uma
por��o de tempo, com grande eici�ncia, at� ganhar a conian�a do
patr�o. A� arma outro la�o que o folheto contava assim:
�E Jo�o icou manobrando
aquela propriedade.
Passou dois anos quieto,
sem usar perversidade,
conquistando, do Patr�o,
conian�a e intimidade.
Por�m Satan�s, um dia,
manifestou-se em Jo�o
e ele armou uma Cilada
para a ilha do Patr�o.
Ela, por ser inocente,
caiu no la�o do C�o!
Jo�o lhe disse: � Madalena,
seu Pai, por ser meu amigo,
mandou dizer que voc�
dormisse um sono comigo!
Ela foi, porque pensou:
� Pai mandou, n�o h� perigo!
Ainda estavam deitados

quando o Pai dela chegou.
A Mo�a gritou, do quarto:
� Com Jo�o aqui eu estou,
cumprindo com meu dever,
como Papai ordenou!
O Velho conheceu logo
que havia uma trai��o:
deu um pontap� na porta
que a porta rolou no ch�o!
Jo�o desabou, de cueca,
e a Mo�a, de camis�o!
O Velho pegou Jo�o
e deu-lhe um soco, direto!
Jo�o icou tonto e caiu,
mas disse: � Seu Anacleto,
n�o me mate, que se atola!
Tenho que criar seu neto!
A Velha disse: � Meu Velho,
� mesmo! N�o mate Jo�o,
sen�o nossa ilha ica
perdida e sem cota��o!
Jo�o falou: � E eu s� me caso
porque comi do Pir�o!�
Eu ria com essas ast�cias, praticadas nos caminhos empoeirados
do Sert�o, e me lembrava tamb�m, orgulhoso, de que, na Pedra do
Reino, a parte das degola��es e da batalha era um romance cangaceiro
e cavalariano. Mas a primeira, come�o de tudo, fora uma �quengada� de
meu tio-bisav�, o primeiro Rei, Jo�o Ant�nio, que armara um la�o t�o
genial quanto os de Jo�o Malasarte, tendo, como material, somente
duas pedrinhas e um folheto com a profecia sobre El-Rei Dom

Sebasti�o, conquistando �a interessante donzela Maria� e erguendo,
sobre alicerces t�o pobres, todas aquelas grandezas e monarquias.
* * *
Assim, aos poucos, ia se formando no meu sangue o projeto de
eu mesmo erguer, de novo, poeticamente, meu Castelo pedregoso e
amuralhado. Tirando daqui e dali, juntando o que acontecera com o que
ia sonhando, terminaria com um Castelo afortalezado, de pedra, com as
duas torres centradas no cora��o do meu Imp�rio. Este, espinhoso e
meio adesertado, era integrado astrologicamente por sete Reinos: o dos
Cariris Velhos, o da Espinhara, o do Serid�, o do Paje�, o de Canudos, o
dos Cariris Novos e o do Sert�o do Ipanema. Era o Quinto Imp�rio,
profetizado por tantos Profetas brasileiros e sertanejos, e cortado por
sete Rios sagrados: o S�o Francisco-Moxot�, o Vaza-Barris, o Ipanema, o
Paje�, o Tapero�-Para�ba, o Pianc�-Piranhas e o Jaguaribe. Ali eu
reergueria, sem perigo de vida, as Torres de lajedo do meu Castelo, para
que ele me servisse de trono, de pedra-de-ara, de ninho de gavi�es,
onde eu pudesse respirar os ares das grandes alturas. Seria um Reino
liter�rio, poderoso e sertanejo, um Marco, uma Obra cheia de estradas
empoeiradas, caatingas e tabuleiros espinhosos, serras e serrotes
pedreguentos, cruzada por Vaqueiros e Cangaceiros, que disputavam
belas mulheres, montados a cavalo e vestidos de armaduras de couro.
Um Reino varrido a cada instante pelo sopro sangrento do infort�nio,
dos amores desventurados, po�ticos e sensuais, e, ao mesmo tempo,
pelo riso violento e desembandeirado, pelo pipocar dos riles
estralando guerras, vinditas e emboscadas, ao tropel dos cascos de
cavalo, tudo isso batido pelas duas ventanias guerreiras do Sert�o: o
cariri, vento frio e �spero das noites de serra, e o espinhara, o vento
queimoso e abrasador das tardes incendiadas. Nas serras, nas caatingas
e nas estradas, apareceriam as partes cangaceiras e bandeirosas da
hist�ria, guardando-se as partes de galhofa e estradeirice para os
p�tios, cozinhas e veredas, e as partes de amor e safadeza para os
quartos e camarinhas do Castelo, que era o Marco central do Reino
inteiro.

E
FOLHETO XV
O Sonho do Castelo Verdadeiro
ra um sonho grandioso, um sonho � altura da estirpe dos
Quadernas. No fundo, por�m, l� bem longe e bem dentro do meu
sangue, reprimido pela covardia, vigiava ainda o desejo de reconquistar
o Castelo real, o da Pedra do Reino. N�o o de erguer um Castelo po�tico,
como o dos Cantadores; mas o de ir ao Paje� e retomar, a patas de
cavalo, ponta de punhal e tiros de rile, o Castelo de pedra que era meu
e que os Pereiras tinham conquistado. S� assim eu poderia ser, tamb�m,
Rei do Sert�o, como Jesu�no Brilhante e meu bisav�. S� assim eu seria,
de fato, o Cavaleiro que, encarnando o Brasil, seria estimado e honrado
pelos amigos, temido pelos inimigos e amado pelas mulheres, belas
Princesas parecidas com Rosa, a da �On�a Malhada�, e com Marina, a do
folheto. Gozaria de todas a meu prazer, tendo as prim�cias das donzelas
e podendo at� degol�-las, caso isso me desse na veneta, como tinha
dado na do meu bisav�, �O Execr�vel�.
Ora, em 1930, meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o Garcia-
Barretto, tomara parte na �Guerra de Princesa�, ao lado de Dom Jos�
Pereira Lima, contra o Governo e a Pol�cia do Presidente Jo�o Pessoa.
Quando Dom Jos� Pereira, nessa guerra, proclamou a independ�ncia da
Vila da Princesa Isabel, outorgando-lhe constitui��o, hino e bandeira,
iz dele, secretamente, Rei da Espinhara, fazendo da Vila de Princesa a
capital desse Reino. O nome de �Vila Real da Princesa Isabel� s� podia
ser resultado de um des�gnio da Provid�ncia: algum lambe-cu e cheirapeido
dos Bragan�as tinha querido colocar esse nome em nossa muito
nobre e leal Vila para bajular a falsa Princesa Isabel, a da Casa de
Bragan�a, a ilha do Impostor Dom Pedro II. Agora, por�m, icava claro
que a Princesa Isabel que dava nome � Capital do meu Reino da
Espinhara era a verdadeira, a da Casa dos Quadernas, minha bisav�. S�
n�o comuniquei tudo isso a Dom Jos� Pereira Lima porque ele,
julgando-me um simples agregado e parente pobre de meu Padrinho,

estranharia um pouco minhas grandezas. Foi, portanto, em segredo que
o sagrei como Rei da Espinhara. E como, apesar de todos os esfor�os, o
Governo n�o conseguiu derrot�-lo, dei-lhe o tratamento de Dom Jos� I,
O Invenc�vel, assim como j� tinha ungido meu Padrinho Dom Pedro
Sebasti�o como Rei do Cariri (o que, depois de sua morte, lhe valeu
passar � Cr�nica sertaneja com o nome de Dom Pedro Sebasti�o, O
Degolado).
Como se recorda, o Condest�vel do Reino de Princesa, em 1930,
era Lu�s Pereira de Sousa, ou Lu�s do Tri�ngulo, o mesmo que
comandava, inc�gnito, as tropas do Rapaz-do-Cavalo-Branco. Eu,
recadeiro e homem de conian�a de meu Padrinho, fui v�rias vezes a
Princesa, em 1930, acompanhado por meu irm�o bastardo, Malaquias
Nicolau Pav�o Quaderna, em miss�es e embaixadas secretas de Dom
Pedro Sebasti�o para Dom Jos� Pereira. Ningu�m pode, assim, imaginar
o sobressalto que experimentei, na primeira dessas viagens, quando
conheci Lu�s do Tri�ngulo, em Princesa, e soube que ele, sendo
descendente do Comandante Manuel Pereira e do Bar�o do Paje�, era o
dono atual das terras onde icavam as torres de pedra do nosso Castelo,
sagrado, soterrado e encantado. S� podia ter sido outro des�gnio da
Provid�ncia que, exatamente a Serra do Reino, tivesse ido cair na m�o
daquele homem, outrora de fam�lia inimiga, mas, atualmente, amigo e
aliado nosso.
Resolvi imediatamente ir � Serra, para conhecer meu Castelo. O
tempo n�o era prop�cio, porque, em 1930, eu estava em miss�o de
guerras e cavalarias, e as estradas, cortadas de Soldados e eri�adas de
piquetes, eram perigos�ssimas para n�s, soldados extraviados daquela
aventura guerrilheira. Apesar disso, por�m, deliberadamente procurei
cativar, e terminei amigo de Lu�s do Tri�ngulo, que prometeu convidarme
depois, se ambos escap�ssemos com vida. Eu me calara a respeito
da Pedra do Reino: apesar de meu amigo, Lu�s do Tri�ngulo era um
Pereira de pura ra�a, e bem podia resolver liquidar esta verg�ntea da
Ra�a real dos Quadernas.
* * *
O fato � que passou a �Guerra de Princesa�. Meu Padrinho
morreu, degolado por causa dela; mas eu escapei e Lu�s do Tri�ngulo

tamb�m. Passaram os anos de 1931, 32 e 33. Entrou 1934, e
aproximava-se 1935, ano important�ssimo, porque marcava o in�cio
daquilo que in�meras profecias sertanejas chamavam �O S�culo do
Reino Encantado�, uma vez que o Reinado realmente importante da
minha fam�lia durara de 1835 a 1838. Ent�o, quando cheg�vamos ao
im de 1934, escrevi a Lu�s do Tri�ngulo cobrando a promessa dele e
declarando-me disposto a viajar para Serra Talhada em Janeiro, caso ele
pudesse cumprir o que prometera.
Uns vinte dias depois, recebi a resposta do Condest�vel de
Princesa. Dizia ele que teria grande honra em receber seu amigo e
aliado de 1930. Estava perfeitamente lembrado da promessa: que eu
viajasse em Janeiro, ou quando quisesse, porque ele e os outros
Pereiras estavam de bra�os abertos para me receber. Aconselhava-me a
seguir a mesma rota das minhas viagens de 1930: Tapero�, Desterro,
Teixeira, Imaculada, �gua-Branca, Tavares, Princesa. Da�, cruzando a
fronteira, entrasse eu em Pernambuco e seguisse, por Flores, at� Serra
Talhada. Indagava se eu ainda estava lembrado do Chefe atual da
fam�lia Pereira, Manuel Pereira Lins, mais conhecido como N� da
Carna�ba. Comunicava-me que entrara em entendimento com ele, que
me receberia, como h�spede, em Serra Talhada. Da�, eu seria inalmente
encaminhado para a Vila de Bernardo Vieira, antiga S�tios Novos, onde
ele, Lu�s do Tri�ngulo, estaria me esperando.
Eu me recordava perfeitamente do velho Fidalgo, Dom Manuel
Pereira, Senhor da Carna�ba. Como membro do Estado-Maior do Rei
Dom Jos� Pereira, tinha sido um dos Doze Pares e um dos Grandes do
Reino de Princesa. Era um homem guerreiro e perigoso em tempo de
brigas, mas hospitaleiro e manso em tempo de paz. Aliado e parente do
Rei da Espinhara, levara um tro�o dos seus inumer�veis cabras-deguerra
para integrar o invicto Ex�rcito de Princesa. Com essas coisas
ardendo na cabe�a, passei a noite de ano-novo de 1934 na mais tensa
expectativa. Iam come�ar os anos do S�culo do Reino e eu ia ver, pela
primeira vez, a Pedra do Reino. Sem me sentir, ia transformando a carta
de Lu�s do Tri�ngulo numa Cr�nica-epopeica, escrita no estilo
mon�rquico que eu aprendera lendo as hist�rias de Souza Leite. Dizia
para mim mesmo: �Partindo da Vila Real da Ribeira do Tapero�, farei
dois pousos principais. O primeiro, ainda dentro do meu Reino do
Cariri, na Vila Real da Serra do Teixeira. O segundo, na Vila Real da

Princesa Isabel, Capital do meu Reino da Espinhara. Da�, cruzando a
fronteira, entrarei no meu Reino do Paje�, e entrarei triunfalmente a
cavalo, como todo Cavaleiro que se preza, na Capital dele, minha muito
nobre e leal Vila Bela da Serra Talhada!�
* * *
Passei ent�o um telegrama a Lu�s do Tri�ngulo, avisando-o de
que partia, e comecei os preparativos da viagem. Resolvera levar
comigo meu irm�o predileto, Malaquias, e um amigo, o idalgo Euclydes
Villar, intelectual e Poeta famoso da nossa Vila, homem que al�m de
Mestre em charadas e logogrifos, era fot�grafo respeitado, instalado
com oicina, primeiro em Tapero�, terra sua, depois na antiga Vila Nova
da Rainha de Campina Grande.
A presen�a de Malaquias era-me indispens�vel porque ele, ao
contr�rio do que acontece comigo, � corajoso, bom Cavaleiro, bom
atirador e bom ca�ador. Os Quadernas s�o altos, mas Malaquias � o
mais alto, robusto e bem proporcionado de todos. Creio que, em todo o
Cariri, s� havia dois homens capazes de derrotar Malaquias numa luta
corpo a corpo. O primeiro, era Marino Quel� Pimenta, pela descomunal
for�a �sica. O outro, era meu primo Ar�sio Garcia-Barretto, ilho mais
velho de meu Padrinho: n�o porque fosse muito mais forte, mas porque,
na luta, Malaquias combateria pela alegria do combate, enquanto
Ar�sio, moreno e cerrado, depois de receber os primeiros golpes, n�o
poderia impedir que irrompesse de dentro dele aquela viol�ncia
obscura e cega que morava nos recessos de seu sangue e que foi a causa
de tantos infort�nios para n�s e para ele mesmo. Meu irm�o Malaquias,
por�m, era um desses homens que, sem esfor�o nenhum, atraem
risonhamente as mulheres, coisa que sempre me causou a maior inveja.
Muitas vezes eu passara pela decep��o de levar meses e meses fazendo
prod�gios de habilidade para atrair a aten��o de uma mulher, isto para
ver Malaquias, de volta de uma das suas viagens de cambiteiro,
conseguir, sem levantar um dedo e no mesmo instante, aquilo que eu
tentara em v�o, a for�a de m�rito e por tanto tempo. Restava-me
somente o consolo de ser o Chefe e irm�o predileto do pr�prio
Malaquias e dos outros bastardos, que n�o se davam bem com meus
irm�os leg�timos, Manuel, Francisco, Ant�nio e Alfredo.

Assim, a ida de Malaquias destinava-se a fazer brilhar a fam�lia
Quaderna diante dos aguerridos e fa�anhosos Pereiras. Em Serra
Talhada, das charadas, das conversas de guerras e ca�adas, da
Astrologia e de tudo o mais que se liga � Literatura, poderia eu me
encarregar, como Poeta, ex-seminarista e Acad�mico que sou. Mas se
fosse para l� sozinho, seria derrotado infalivelmente pelos Pereiras, na
parte dos hero�smos e cavalarias.
Quanto a Euclydes Villar, eu jurara secretamente que, chegando
ao Paje�, acharia um meio de fazer com que os pr�prios Pereiras me
levassem � Pedra do Reino. Seria uma vit�ria que eles conduzissem
para l� aquele que, tomado como simples Escriv�o, ex-seminarista e
Bibliotec�rio, era, de fato, o Rei do Quinto Imp�rio, Dom Pedro Dinis
Quaderna, O Astr�logo, ou Dom Pedro IV, O Decifrador, como sou mais
conhecido. Euclydes Villar era quem se encarregaria de documentar
isso, fotografando os lances principais da viagem. Eu teria o cuidado de
me fazer retratar junto das pedras, com as torres absolutamente iguais,
reluzindo gloriosamente ao sol o chuvisco prateado que as recobria,
formando, no meu sonho, o Castelo de pedra e prata do meu sangue.

P
FOLHETO XVI
A Viagem
artimos nos meados de Janeiro, de 1935, de manh� bem cedinho,
eu no meu cavalo �Pedra-Lispe�, Malaquias em seu ��s de Ouro�, e
Euclydes Villar na besta-de-sela �Cangu�u�, que meu irm�o lhe
emprestara para a viagem.
Para n�o incorrer na galhofa dos outros, eu resolvera maneirar a
viagem o mais poss�vel, com vagarezas e longas paradas de descanso,
pretextando que est�vamos em viagem de prazer e n�o de guerra e
obriga��o. Acolchoara toda a minha sela, deixando as deles no couro
liso: com isso, atenuaria, pelo menos, as assaduras da bunda, j� que as
dores e a incha��o nos joelhos seriam inevit�veis.
Com todas essas precau��es, por�m, foi meio arrebentado que
cheguei � minha leal Vila do Desterro, primeira etapa da jornada
aventurosa que est�vamos empreendendo. Na Vila do Teixeira, fomos
recebidos pelo Bacharel Jos� Duarte Dantas, e, em Imaculada, por um
primo dele, Dom Jos� Duarte Dantas Corr�a de Goes. Na Vila de Tavares,
estava nos esperando Chiquinho Mendes, que fora Estribeiro e
Secret�rio-particular de Dom Jos� I, no Reino de Princesa. Foi o tempo
mais evocativo dessa etapa, revendo eu e Malaquias todos aqueles
lugares, cinco anos antes transformados em campos de batalha, em
lugares de piquetes e combates. Em Princesa, fomos recebidos pelo
pr�prio Dom Jos� Pereira Lima, ent�o j� destronado, mas idalgo e
hospitaleiro como sempre. N�o era mais Rei, mas era ainda o Senhor de
Princesa, reconhecido como tal por seus maiores advers�rios. Ao ser�o,
recordou conosco e com Chiquinho Mendes os epis�dios mais terr�veis
ou mais curiosos da �Guerra de Princesa�. Depois, lembrou meu
Padrinho degolado, indagando pormenores da sua morte. Perguntou se
o enigma desse crime continuava indecifrado, e se era verdade que
Sin�sio desaparecera, mesmo, como por encanto, no dia da morte do
Pai. Conirmei tudo isso, dizendo-lhe que ningu�m entendera, ainda,

como � que meu Padrinho se trancara dentro dum quarto sem janelas,
murado por todos os lados, e aparecera morto, esfaqueado por
assassinos cru�is e desconhecidos. O nobre Senhor de Princesa mandou
que Chiquinho Mendes nos escoltasse at� a Vila de Flores, com uma
parada na sua fazenda �As Ab�boras�, de onde partimos s�s, chegando a
Serra Talhada no dia 30 de Janeiro de 1935.
* * *
O velho Fidalgo, Dom Manuel Pereira Lins, n�o morava na rua, e
sim na sua fazenda, �Carna�ba�, aquela que, no s�culo passado, fora o
centro da sesmaria pertencente a seu Av�. Por isso, almo�amos numa
hospedaria, e partimos, �s duas horas da tarde, para a �Carna�ba�, em
cuja casa chegamos com a noite j� caindo.
�quela altura, eu j� estava em peti��o de mis�ria. Felizmente os
joelhos, a parte que, em mim, mais reclama de cavalarias, j� estavam
adormentados de tanto sofrer. Tomei banho e jantei, mas, para falar a
verdade, n�o podia nem corresponder como devia �s cortesias e
hospitalidades do nosso c�digo sertanejo de maneiras, cumprido
religiosamente pelo Coronel N� da Carna�ba e por sua mulher, Dona
Pautila de Menezes, assim como por seus tr�s ilhos, De�sio, Le�nidas e
Argemiro, que se desdobravam em nos servir e obsequiar. O mais gentil
e cort�s de todos era o mo�o Argemiro, rapaz moreno de dezoito para
dezenove anos, que a certa altura do ser�o falou:
� Pai, deixe eu levar o pessoal para o quarto de h�spedes, que
eles devem estar cansados da viagem!
� Eu, n�o! � protestei logo, para n�o icar desmoralizado. �
Quem pode estar cansado � Euclydes Villar, que n�o � habituado a essas
coisas! Por mim, ico conversando at� de manh�!
O Coronel N�, bondosamente, resolveu atrair para os seus
sessenta e tantos anos a desonra do cansa�o:
� Est� bem! � disse ele. � Para voc�s que s�o mo�os, o
cansa�o n�o existe! Mas eu j� sou velho, e quem est� cansado e com
sono sou eu! Vamos dormir!
Apreciei a cortesia do velho Fidalgo, mais forte do que todos n�s,
mas que escondia essa for�a para n�o nos humilhar. E dormi, naquela
noite, com um sono do qual as dores do corpo, j� transformadas em

simples do�do, s� me despertavam para que eu remergulhasse no
prazer mais gostoso de sentir que estava deitado e dormindo, e n�o
acordado e andando a cavalo. N�o tinha tempo de estranhar nem a
cama nova nem a noite, mais quente do que as nossas frescas noites de
sert�o de serra, do Cariri.

A
FOLHETO XVII
A Primeira Ca�ada Aventurosa
cordei ao amanhecer, ouvindo os rumores familiares da fazenda,
que me lembravam meus despertares de menino, na �On�a
Malhada� e nas �Maravilhas�: urros do gado, no curral, conversas da
criadagem na cozinha, brados e gargalhadas dos Vaqueiros, barulhos
dos potes e landres de leite, trazidos para casa pelos ilhos-meninos
dos moradores.
Dentro das regras da boa hospitalidade sertaneja, nosso quarto
estava provido de lavat�rio de lou�a, quartinha d��gua, copos, uma
penteadeira com espelho e pentes. Assim, foi bem lavados, barbeados e
limpos que comparecemos � sala para o caf�, que veio farto, com muito
leite, cuscuz com manteiga, tapioca salgada, inhame, macaxeira, queijo
de coalho e de fazenda.
T�nhamos combinado que, � tarde, ir�amos experimentar a
pontaria, o que realmente izemos, numa Lagoa que existia perto da
casa, no lado oposto ao da Capela. Era a hora de Malaquias. Se at� agora
eu tinha brilhado nas conversas e tiradas, agora seria seu primeiro
grande momento. �amos todos bem apetrechados, com cartucheiras �
cinta e mais os bisacos de couro, cheios de cartuchos.
A espingarda de Malaquias era de cano duplo e de calibre �Doze�.
Ele tinha com ela carinhos e cuidados de pai. Guardava-a toda enrolada
em panos, dentro de um estojo de couro, bem limpa e bem azeitada, e
s� a armava no momento de sair para a ca�a. J� a minha, era uma �Vinte
e Oito� de um cano s�, enferrujada e suja, guardada sem prote��o e
como Deus era servido. Era, para mim, n�o tanto uma arma, mas um
dos elementos atrav�s dos quais eu tentava preservar para mim, para
Tia Filipa e para o Povo sertanejo, a imagem cavaleira que me forjara.
Eu podia ser, apenas, um Poeta covarde, um Decifrador pac�ico de
charadas, um ex-seminarista e Escriv�o de gabinete. Mas, gra�as a meu
cavalo de nome heroico, a meu rile e � minha gloriosa espingarda

�Vinte e Oito�, podia reivindicar o t�tulo de Cavaleiro, soldado e ca�ador.
Se desempenhava bem ou mal essas tarefas, isso era outra hist�ria! E o
fato � que a Fortuna recompensava de vez em quando minha const�ncia
e idelidade no servi�o, das maneiras mais inesperadas e casuais.
Entretanto, s� mesmo as pessoas mais chegadas a mim, como
Malaquias, � que conheciam a verdadeira vers�o de certos
acontecimentos lend�rios que me tinham envolvido. E como todas
essas pessoas me estimassem, elogiavam e ampliavam minhas fa�anhas
involunt�rias, na maioria dos casos at� c�micas, para quem as conhecia
em seu acontecido verdadeiro. Acresce que, perante Malaquias e as
pessoas de sua roda, eu era respeitado exatamente por aquilo que, para
mim, era uma fonte de humilha��o � a charada, o folheto e tudo o mais
que se ligava � minha literatura de homem Acad�mico. J� entre os
outros literatos de Tapero�, gente incapaz de disparar um tiro, minha
reputa��o era de meio Cangaceiro, ca�ador e Cavaleiro. De modo que
assim, aos trancos e barrancos, o plano que eu tra�ara ia dando certo,
para brilho da minha imagem real de honra e para grande regozijo de
Tia Filipa.
Era ent�o por isso que, agora, ia eu ali, armado e t�o encruzado
de cartucheiras quanto Malaquias, De�sio, Le�nidas e Argemiro. Quanto
a Euclydes Villar, era um t�pico intelectual taperoaense de rua. Nem
entrar no jogo entrava. Omitia-se prudentemente at� de conduzir
espingarda, temeroso de ser obrigado a dar algum tiro, com grave risco
para seu amor-pr�prio.
* * *
Sa�mos, tomando o lado do qual se avista, do terra�o, a c�lebre
�Serra da Forquilha�, aquela na qual um dos Pereiras mais valentes do
nosso tempo, Sinh�, Chefe venerado de Virgolino Ferreira Lampi�o,
tinha obtido vit�ria num sangrento combate contra a Pol�cia e os
Carvalhos. Descemos o alto da casa e caminhamos em dire��o � Lagoa,
que n�o ica longe. �amos por uma esp�cie de estrada velha ou de
picada antiga e muito realenga, toda ladeada de p�s de Pereiro. N�o
t�nhamos, por�m, passado muito da metade do caminho, quando,
espantada por nossa passagem, uma rolinha �caldo-de-feij�o� voou do
ninho e foi pousar pouco adiante, nos galhos de uma Jurema-Branca,

rodeada de Xiquexiques. Imediatamente, levei � cara minha �Vinte e
Oito�, e ia atirar, quando Malaquias baixou bruscamente minha arma,
impedindo-me:
� N�o atire n�o, Mestre Dinis! � advertiu-me ele. � Na Lagoa,
pode ter Marreca, e se voc� atirar aqui, espanta tudo l�!
Meio humilhado, apelei para a Literatura, para aquilo que
Samuel e Clemente chamam, com desprezo, �as sa�das de almanaque de
Quaderna�:
� � mesmo! � comentei. � Minha sede de ca�ador � tanta que,
vendo a ca�a menor, perto, nem me lembrei que podia espantar a
maior! Mas isso � de quem � ca�ador, mesmo, e, como diz o ditado, ��
melhor uma Rola na m�o do que duas no cu!�.
O pessoal, que n�o esperava aquilo, caiu na gargalhada, e vi que
minha causa estava ganha, perante os Pereiras. Da� em diante, eu
poderia errar os tiros que errasse, fazer os iascos que izesse: minha
falta de destreza seria, at�, um novo motivo de simpatia a meu favor,
como me acontecera a vida inteira perante meu Padrinho, e mesmo
perante seu ilho Ar�sio, homem violento, que somente a mim, e a mais
ningu�m, perdoava aquilo que chamava �o mofo dos cap�es
intelectuais�.
* * *
Chegamos, a�, a uma velha cerca de pau-a-pique, j� sem
serventia, com a cancela arrancada, de mour�es derreados. Dali,
avist�vamos a Lagoa, que estava com alguma �gua rasa, tomada das
primeiras invernadas de Janeiro. Ali, paramos atr�s da cerca, e
Malaquias avan�ou sozinho, abaixando-se e com p�s de l�, em dire��o a
um bosque de P�s-de-Turco que nascia do ch�o raso e plano da Lagoa.
N�o demorou muito e ouvimos o primeiro ronco da �Doze�. As
Marrecas levantaram em bando, piando desesperadamente, e vimos
uma delas que, malferida, voava baixo, com uma perna arriada,
tentando valentemente acompanhar o voo seguro das outras. Mas a
carga de chumbo que recebera fora grande, e logo ela ca�a por entre o
capim, dentro d��gua, n�o muito longe de Malaquias. Ao mesmo tempo,
soava o segundo disparo da �Doze�, e outra Marreca do bando, acertada
no voo, rodopiava do c�u, esta de asa fechada. Malaquias, que at� ali

estivera abaixado, surdiu do capinzal por dentro do qual rastejara, e
correu para o lugar onde ca�ra a primeira Marreca. Ouviu, ent�o, o
batido de agonia da ave ferida, porque deu uma guinada na carreira em
que ia e, de repente, abaixou-se, levantando-se j� agarrado com a bicha,
que esperneava. Ele torceu-lhe o pesco�o, acabando de mat�-la. Depois
caminhou por dentro da �gua rasa at� um claro formado pelos P�s-de-
Turco, e apanhou a segunda Marreca, que estava ali, boiando. Voltou-se
ent�o para o lugar em que est�vamos, e, segurando a �Doze� debaixo do
sovaco, ergueu, meio torto, uma Marreca em cada m�o, para exibir-nos
sua fa�anha. Eu, orgulhoso por meu irm�o, e tamb�m para puxar um
pouco o brilho dele para a fam�lia inteira, gritei:
� Boa, Malaquias! Grande tiro! N�o nega que � do sangue dos
Quadernas!
Minha interven��o era oportuna: porque, passado o primeiro
momento de entusiasmo, notei que os Pereiras come�avam j� a se
mostrar cheios de retic�ncias. Come�aram a elogiar demais a
espingarda de Malaquias, para diminuir, assim, os m�ritos do atirador.
Por im, Argemiro n�o se conteve e disse:
� Tamb�m, com uma espingarda dessas, eu n�o erro um tiro!
Retruquei imediatamente, para defender a honra dos
Quadernas:
� Ali, tanto � boa a espingarda, como � ra�udo o ca�ador!
Caminhamos ent�o para o local onde se achava Malaquias, n�s e
mais um rapagote da fazenda, que nos acompanhara para servir de
pajem e logo foi encarregado de conduzir as aves abatidas. Malaquias,
j� saciada sua primeira �nsia de ca�ador, falou para mim, como para
atenuar a proibi��o que me izera antes:
� Pronto, Mestre Dinis! As Marrecas j� se foram, e agora
podemos, n�s dois, atirar � vontade nos p�ssaros menores!
* * *
Dei, ent�o, uma arrodeada, aceirando os P�s-de-Turco, e logo
descobri a primeira Rolinha-cascavel, que mirei sob os olhos de todo
mundo e que, para desgra�a minha, errei miseravelmente, junto a uma
cerca de avel�s que cruzava o campo raso da lagoa, j� fora de suas
�guas. Dois minutos depois, apareceu um casal de rolinhas. Atirei na

primeira e errei; na segunda e errei. Malaquias, compadecido deste seu
ineiciente irm�o mais velho, falou atr�s de mim, abafando a voz:
� N�o foi nada n�o, Dinis, esse �ltimo tiro raspou a bicha! Mas
olhe: a�, perto de voc�, por tr�s da cerca de avel�s, tem um Sabi�, no
ch�o!
� Onde? � perguntei, olhando e procurando, inutilmente, sem
jeito de ver o bicho.
� Ele voou agora, subiu para o p� de avel�s, pouco acima do
ch�o!
Olhei de novo para o lugar que Malaquias indicava, e ent�o vi o
Sabi� que estava num galho baixo do avel�s, por tr�s duma forquilha,
meio escondido mas numa posi��o maravilhosa para eu atirar, porque
os dois galhos da forquilha indicavam precisamente a mira.
Despreocupei-me do fato de ser pequeno o alvo, e cuidei somente de
apontar pelo meio do V formado pelos dois galhinhos verdes: puxei o
gatilho e o Sabi� caiu, apagado.
Era um feito! N�o muito heroico, comparado com os de
Malaquias, mas ainda assim era um feito, que me aliviava um pouco do
iasco anterior. E eu come�ava, j�, a me sentir orgulhoso, quando ouvi o
rapagote dizer, atr�s de mim, a frase tradicional e escarninha:
� At� que enim esse homem, a�, tirou o dedo do ioto!
� Tirei do meu e soquei no seu, desgra�ado! � retruquei
imediatamente. � Tirei o dedo do meu rabo e soquei no seu! Agora,
trate voc� de tirar ele da�!
Novamente os Pereiras ca�ram na gargalhada. O rapaz encabulou
um pouco e gaguejou:
� Bem, eu disse assim porque � da regra, mas que foi um bom
tiro, foi! Acertou em cheio, e o bicho j� caiu fedendo!
Apanhou o Sabi�, e eu, sem olhar para o grupo, desprendi-me
deles, um pouco para procurar ca�a, e um pouco para atirar mais �
vontade, longe de seus olhares iscalizadores.
* * *
Embrenhei-me, ent�o, por entre as Juremas, Pereiros e P�s-de-
Turco existentes em todo o campo raso que circundava a Lagoa.
Apareceu uma Rolinha �fogo-apagou�, que errei. Outra: novo erro!

Decepcionado, parei um pouco, indeciso, querendo voltar. Mas mudei
de ideia: tomei uma vereda que havia assim, uma esp�cie de trilho-decabras,
e depois de andar um pouco, ouvi cantar uma Juriti, dentro do
mato, n�o muito longe de mim. Deixei a vereda, entrei pelo mato, parei
a certa altura, com as pernas enganchadas numa rama. Aproveitei a
pausa para veriicar se a Juriti voara: mas ela continuava a cantar,
sossegada. Desenganchei-me bem devagarinho, para n�o fazer barulho,
e comecei a tomar chegada, macio e trai�oeiro como um gato. De
repente, ouvi a Juriti cantar de novo, a uns dez passos de mim. Olhando
na dire��o do canto, avistei-a, muito despreocupada de si, pousada no
galho de uma Jurema meio lorada. Com o cora��o aos saltos, levei a
�Vinte e Oito� � cara e comecei a mir�-la. No momento exato em que ia
atirar, por�m, soou, n�o muito longe, o ronco da �Doze� de Malaquias, e
minha Juriti bateu asas, voando para longe.
Maldizendo entre dentes o desgra�ado do meu irm�o, que me
tirara, assim, aquela que seria a grande gl�ria da minha tarde, comecei
a correr para os lados de onde viera o tiro. Sa� no descampado, e avistei
o grupo, l�, perto da cerca de avel�s, Malaquias exibindo triunfalmente
um Paturi desgarrado que lhe aparecera e fora acertado no voo. Ergui a
m�o para ele, num gesto eloquente que tanto poderia ser de sauda��o
como de raiva, e voltei-me para entrar, de novo, no mato. A�, nesse
instante mesmo, avistei qualquer coisa voando no c�u, vinda do lado
oposto ao da Lagoa: era uma Asa-branca, que vinha solit�ria e alta, mas
que iria passar quase por cima da minha cabe�a. Atabalhoado, apontei a
�Vinte e Oito� e puxei o gatilho. Ela deu uma guinada no voo, de modo
que acreditei que tinha acertado. Mas fora somente o susto causado
pelo pipoco: a Asa-branca retomou a linha de voo em que vinha e
cruzou o descampado, em dire��o ao pessoal. Nervoso, gritei para l�:
� Olha a Asa-branca, Malaquias! Fogo nela, Malaquias!
Mas Malaquias n�o atirou. Corri para l�, a im de saber por qu�:
Malaquias n�o tinha considerado favor�vel a posi��o em que ela
passara e achara melhor n�o arriscar cartucho. Eu, para evitar
perguntas sobre o resultado da minha excurs�o solit�ria,
imediatamente reclamei:
� Voc�, Malaquias, � um grande atirador, mas � um ca�ador sem
sede! A Asa-branca passou por mim, tamb�m, numa posi��o p�ssima,

de ponta-de-asa! Mesmo assim eu atirei! Tentei, pelo menos: Asabranca
n�o � coisa que se perca assim, n�o!
Malaquias, que me conhecia bem, e sabia que tudo aquilo era
somente da boca pra fora, achou gra�a. Mas os Pereiras, que estavam
meio despeitados com o brilho de ca�ador dele, concordaram logo
comigo. De�sio disse:
� � verdade, o Mestre Dinis, ali, tem raz�o! Eu tamb�m teria
atirado! S� n�o atirei porque achei que a vez era sua, como h�spede!
Malaquias, com a mod�stia e a seguran�a dos grandes, n�o
retrucou nem se defendeu. Disse, apenas, que o nosso pajem estava
dizendo para continuarmos caminho, cruzando a estrada de rodagem e
indo at� um a�udeco no qual, �s vezes, pousavam Patos-d��gua. Com
aquele tiroteio era quase imposs�vel que n�o tivessem levantado, todos.
Mas, por desafogo de consci�ncia, resolvemos ir at� l�, obtendo eu uma
autoriza��o, que n�o pedira, de atirar no que encontrasse.
Essa etapa da ca�ada seria, por�m, mais favor�vel a meu amorpr�prio
de ca�ador. N�o sei se por causa do ponto de refer�ncia do
ch�o, embaixo, sempre atiro menos mal em p�ssaros pousados no ch�o
do que em galhos. O Sol j� come�ava a cair, mas come�amos a encontrar
macegas de Mu�amb� ladeando as veredas, com uma por��o de
Rolinhas ainda pelo ch�o, mariscando as sementes. Dei seis tiros
sucessivos, errando apenas um, diante dos Pereiras que, �quela altura,
j� estavam querendo come�ar a atirar tamb�m, para mostrar quem
eram. Mas, como prev�ramos, o dia de ca�a estava realmente esgotado.
O a�udeco estava deserto. Debaixo de uma chuva r�pida mas de pingos
grossos, saltamos uma cerca e tomamos o caminho de volta para a casa
da Fazenda, onde chegamos molhados mas orgulhosos, exibindo eu as
cinco Rolinhas e o Sabi� que n�o me deixavam fazer muito feio diante
de Malaquias e que me consolavam um pouco da perda da Juriti e da
Asa-branca. E tive mesmo algum orgulho, quando Dona Pautila de
Menezes, a veneranda Baronesa do Paje�, entendendo mais ou menos
minha situa��o, comentou com bondade:
� As Marrecas enchem mais a vista, mas gostosa mesmo vai ser
� a canja que vou mandar preparar com as Rolinhas que esse mo�o, a�,
matou!
* * *

Naquela noite, ceamos canja de Rolinhas, pato assado, carne de
sol com farofa, jerimum com leite e, coroando tudo, uma umbuzada.
Depois do jantar, sentados em espregui�adeiras no copiar da
�Carna�ba�, icamos a conversar coisas vagas, enquanto as estrelas
piscavam em cima, e l� longe, para os lados de Belmonte, rel�mpagos
cortavam o c�u. A terra e o fresco ar noturno cheiravam a mato e a
chuva, e foi ali que eu, tendo como pretexto a ca�ada da tarde, puxei a
conversa para esse assunto. Narrei todos os meus insucessos,
exagerando e mesmo inventando o que podia. Por im, a modo de
conclus�o, lancei a frase que tinha preparado como centro do meu
plano. Disse:
� Mas Marreca e Rolinha s�o ca�a pequena, ca�a de menino!
Pena � que por aqui n�o tenha uma Serra braba, dessas onde a gente
encontra, ainda, ca�a mais respeit�vel, como Jacus e Veados! Essa a�,
sim, seria ca�a para n�s matarmos e voltarmos para Tapero� contando
gl�rias de Serra Talhada!
Eu j� soubera, na Vila, que, na Serra do Reino, havia essas ca�as.
Como previ, o velho Fidalgo, N� da Carna�ba, com sua voz mansa, mas
um pouco picado nos seus brios de ilho da terra, retrucou, l� de seu
canto:
� Mas acontece que aqui voc� ainda encontra tanto Jacus como
Veados! Olhe, daqui para a Serra do Reino, tudo � terra dos Pereiras!
Amanh�, cedo, vou mandar um portador para a nossa Fazenda �Bel�m�.
L�, existe um bom mato de Juazeiros, que � um dos melhores
comedouros para Jacus que existem por aqui! Esses perus-do-mato s�o
doidos por ju�. De manh�, bem cedinho, � f�cil voc�s encontrarem
alguns por ali, comendo as frutinhas maduras, ca�das no ch�o, de noite!
Este ano os ju�s est�o amadurecendo antes do tempo, de modo que
acho que os Jacus j� andam aparecendo por aquelas bandas! Quanto
aos Veados, voc�s podem encontrar um ou outro, ainda, � na Serra do
Reino! Mas ali � melhor voc�s tentarem mat�-los nas malhadas,
principalmente debaixo dos p�s de Imbu, onde eles icam malhando na
sombra, no calor da tarde, logo depois do meio-dia. A Serra do Reino �
coberta de Catolezeiros. Voc�s v�o encontrar, debaixo dos p�s de cococatol�,
montes e montes de coquinhos, comidos pelos Veados. Eles
comem a polpa e a palha quase toda: ica somente quase que s� o coco.
Isso vai servir, para voc�s, de sinal da passagem dos Veados nas trilhas.

Vou mandar que o portador, depois de preparar as esperas-de-jacu em
�Bel�m�, d� um pulo at� Bernardo Vieira, para avisar a meu Compadre
Lu�s do Tri�ngulo que, depois de amanh�, voc�s est�o chegando por l�.
A Serra do Reino � um bocado longe daqui. Mas como, de qualquer
modo, voc�s t�m que ir aos S�tios Novos de Bernardo Vieira para se
encontrarem com ele, n�o custa nada darem um pulo at� a Serra. Lu�s,
mesmo, pode servir de guia, para que voc�s possam matar um ou dois
Veados na Serra do Reino!
O velho idalgo da �Carna�ba� falara calmamente, sem imaginar
com que emo��o eu ouvia aquelas refer�ncias � Serra do Reino. Cuidei,
por�m, de n�o revelar de modo nenhum minha perturba��o. Levanteime
e falei:
� Pois ent�o vamos dormir, para acordar mais cedo! Malaquias,
De�sio, Le�nidas, Argemiro e eu, que somos ca�adores, vamos preparar
as espingardas! Euclydes Villar prepare a m�quina, porque depois de
amanh�, se Deus quiser, vou tirar um retrato segurando pelos p�s um
Veado morto por mim, em cima da velha Serra do Reino!

N
FOLHETO XVIII
A Segunda Ca�ada Aventurosa
o dia seguinte, ainda na �Carna�ba�, comemos um almo�o que s�
o Sert�o poderia oferecer integralmente: carne de Tatuverdadeiro
cozinhado no casco; farofa de cuscuz, enriquecida com ovos
cozidos e peda�os esiapados da mesma carne de Tatu; carne de sol
assada; feij�o-mulatinho, cozinhado com peda�os de casc�o de queijo,
lingui�a e jerimum; e, como sobremesa, primeiro uma umbuzada,
depois doce de goiaba feito em casa e comido com queijo de manteiga.
Depois de descansar o almo�o, a� pelas duas horas da tarde,
montamos a cavalo e partimos para a fazenda �Bel�m�, onde o portador
j� devia estar, esperando-nos. N�o houve incidente de nota, na viagem.
Mas eram cinco l�guas, de modo que cheguei l� novamente meio
quebrado.
A casa da Fazenda, muito antiga, tinha � frente, como � comum
em Serra Talhada, um terra�o de ch�o de tijolo, cercado por um gradil
de madeira. Ir�amos dormir nela, � moda solteira, pois a casa estava
desocupada e fechada. A mulher do Vaqueiro, recomendada pelo
portador, tinha nos preparado uma ceia simples, que comemos �s
pressas, doidos para dormir, estafados que est�vamos daquelas cinco
l�guas a cavalo.
Naquela noite, por�m, o cansa�o n�o me fez dormir logo, de jeito
nenhum. Minha cabe�a estava pegando fogo, e, sem querer, eu me
recordava, a cada instante, dos epis�dios mais importantes da
sangrenta aventura da Pedra do Reino. Tentava esquecer. Fechava os
olhos, para ver se dormia. Mas, quando ia conseguindo, lembrava-me de
que fora exatamente ali, no copiar da casa onde eu estava, que, no dia
17 de Maio de 1838, tinham estado conversando os tr�s Bar�es
sertanejos, Manuel, Alexandre e Cipriano Pereira, quando o Conde
renegado, Dom Jos� Vieira Gomes, viera denunciar a eles os
acontecimentos do Reino Encantado. Fechava os olhos com mais for�a,

tentando for�ar o sono. Mas, assim que os fechava, apareciam-me, como
em letras de fogo, as palavras da narrativa de Souza Leite, e minhas
t�mporas latejavam, enquanto eu repetia, mentalmente: �Eram mais de
dez horas da manh� do dia 17 de Maio de 1838. Sentado com seus
irm�os Cipriano e Alexandre Pereira, na frente da sua fazenda �Bel�m�, o
Comandante Manuel Pereira da Silva praticava com eles� etc.
* * *
Devo ter adormecido j� com a madrugada alta. E tinha a
impress�o de ainda n�o ter dormido nada, quando Malaquias me
acordou com um berro, batendo na porta do quarto onde eu estava:
� Acorda, Mestre Dinis! Acorda e vamos embora, sen�o
perdemos os Jacus!
Tomamos caf� �s carreiras e seguimos a cavalo, ainda � luz
p�lida das �ltimas estrelas, para o bosque de Juazeiros, existente entre
a fazenda �Bel�m� e a �Cai�ara�. Havia seis esperas preparadas, uma
para cada um de n�s. Desta vez, acabadas suas obriga��es de
hospedeiros, notei logo a disposi��o em que estavam os Pereiras de
bater os Quadernas de qualquer jeito. Eu coniava nas qualidades de
Malaquias, para evitar isto. Mas se eu icasse sozinho, num canto,
separado de Malaquias, seria vencido infalivelmente, e os Pereiras
poderiam alegar que tinham perdido para um Quaderna, mas ganhado
para outro. Al�m disso, al�m da honra dos Quadernas, eu tinha que
cuidar tamb�m da minha, particular. Por isso, tomei logo a frente da
organiza��o da ca�ada, e escolhi para mim a espera situada bem perto
da de Malaquias. Poderia, assim, somar meus feitos e os dele como
�feitos dos Quadernas�, colocando a salvo tanto a honra da fam�lia como
a minha. Euclydes Villar, a quem os Pereiras tinham arranjado uma
espingarda, recusou-a, sob pretexto de que a m�quina fotogr�ica j� era
peso e inc�modo demais. Destaquei-o, ent�o, para fazer companhia a
De�sio, o mais velho dos mo�os Pereiras. Argemiro e Le�nidas icaram
cada qual em sua espera, pr�ximos, tamb�m, um do outro.
Para encurtar a hist�ria: antes mesmo de nascer completamente
o Sol, os Jacus come�aram a sair do mato para o bosque de Juazeiros.
Errei tiro sobre tiro. Entretanto, por quatro vezes, ouvi o ronco da
�Doze� de Malaquias, e, do lugar em que estava, deu para eu ver ca�rem

quatro Jacus enormes. Eu j� estava icando desesperado, porque a
manh� caminhava e da� a pouco a ca�ada teria que parar. A�, rezei
humildemente, para sair daquela situa��o. Mal acabara a prece, um Jacu
desceu do mato e come�ou a caminhar em dire��o ao Juazeiro que me
icava mais perto. Chegando embaixo, deu uma ciscadela no ch�o, e
come�ou a comer ju�s. Estava muito mais para mim do que para
Malaquias, que talvez o estivesse vendo, l�, escondido na espera, mas
que n�o tinha dist�ncia para o tiro. Com o cora��o aos pulos, apontei
minha �Vinte e Oito�. Acontece, por�m, que sou de pontaria discreta e
demorada. E, no momento em que ia come�ando a irmar a m�o, ouvi o
tiro que Malaquias, de l�, dera no meu Jacu! Meu irm�o, impaciente
porque eu n�o atirava, �vendo a hora do Jacu ir-se embora�, como me
explicou depois, n�o se contivera, e tentava, assim, aproveitar-se at� do
resultado das minhas ora��es �ntimas!
Voou pena do jacu pra todo lado, e ele cambaleou, a ponto de me
fazer acreditar que ia cair. Entretanto, reunindo algumas for�as que lhe
tinham restado, deu um galope tr�pego e indeciso, com as asas arriadas
tocando o ch�o, e parou a dois passos, bem na minha frente, abrindo e
fechando o bico, num espasmo de bicho profundamente ferido. A�, n�o
conversei nem hesitei mais: desfechei-lhe a carga mort�fera da minha
imortal �Vinte e Oito�. A pancada do tiro pr�ximo foi t�o amolestada,
que o Jacu caiu para tr�s, revirando, empurrado pela compacta carga de
chumbo.
Malaquias correu de l�, eu corri de c�. E como eu estava mais
perto, peguei o Jacu primeiro. Ainda meio sem f�lego pela carreira, ele
chegou para perto de mim e disse, de olhos aboticados, na sede
inconsciente da ca�a:
� Passe pra c� meu Jacu!
� Seu por qu�? � indaguei, impass�vel.
� Foi meu tiro que matou o Jacu e o Jacu � meu! Ele j� ia morrer
quando voc� atirou, Mestre!
� Quem disse? Como � que voc� prova isso? � perguntei,
continuando a segurar o Jacu com as duas m�os.
Malaquias olhou-me, perplexo. Notei que o orgulho cego e
ego�sta de ca�ador estava come�ando a ceder, diante da estima que ele
tinha por mim. Imediatamente aproveitei o fato, e apelei para a amizade
fraterna:

� Voc� sabe melhor do que eu, Malaquias, que foi meu tiro que,
realmente, liquidou o Jacu. Se ele j� estava ferido por um tiro seu, n�o
sei: n�o vi, e isso � outra hist�ria! O importante � que foi meu tiro que
acabou com ele! Ou ser� que voc� quer ver seu irm�o, mais velho do
que voc�, desmoralizado diante desses estranhos?
Com isso, ganhei a parada no mesmo instante. Malaquias falou,
cordato:
� N�o, voc� tem raz�o, Mestre Dinis! De fato, foi seu tiro que
acabou o bicho! Quem sabe se, mesmo ferido, ele n�o conseguiria fugir,
entrando no mato antes que eu desse outro tiro? Leve o bicho, o Jacu �
seu!
Cheio de orgulho, meti o peru-do-mato no bisaco, e foi assim
que, naquele dia memor�vel, acrescentei a morte de um Jacu � lista dos
meus hero�smos. Mas o Sol j� ia mais ou menos alto, Jacu n�o
apareceria mais. Sa�mos das esperas e fomos ao encontro dos outros,
que j� gritavam por n�s. Argemiro tinha matado um Jacu e Le�nidas
outro: empate comigo, surrados por Malaquias! A De�sio, n�o
aparecera �um Jacu, pra rem�dio�: nem atirar ele conseguira! Por isso,
dizia de vez em quando, com ar feroz:
� Eu hoje estou de azar! N�o sei o que foi que me aconteceu, a
mim que tenho tanta sorte em ca�adas! Hoje, houve alguma novidade,
que me azarou desse jeito!
Ao dizer isso, olhava de trav�s para seu companheiro de espera,
Euclydes Villar, que ingia n�o entender a insinua��o, lidando com suas
lanelas, suas lentes e espanejando a cada instante o fole de sua
m�quina fotogr�ica.

E
FOLHETO XIX
O Caso da Coroa Extraviada
ram quase dez horas da manh� quando chegamos � Vila de
Bernardo Vieira, onde cheguei com uma dor de cabe�a de lascar. Ao
entrarmos na rua principal, a da Igreja, de dentro da casa de seu
parente Manuel Conrado de Lorena e S�, apareceu o grande Lu�s
Pereira, O Condest�vel, que ali estava � nossa espera, risonho, calmo e
cort�s como sempre. Mal respondi a suas inezas, indagando logo pela
Farm�cia, que era no im da rua e onde tive a sorte de encontrar um
conterr�neo, meu velho conhecido, Cec�lio Tiburtino de Lima, que me
receitou imediatamente dois comprimidos e uma dose de sal-de-frutas,
com um copo de leite cinco minutos depois, �para espalhar o sangue e
agradar o est�mago�. Com isso, pude voltar para a casa de Seu Neco
Lorena, onde, melhorando, ainda pude comer alguma coisa do lauto
caf� que nos tinham preparado.
Assim, eram mais ou menos onze horas da manh� quando
partimos para a Serra do Reino, agora com Lu�s do Tri�ngulo � frente. O
balan�o do cavalo ainda me fazia latejar a cabe�a do�da. Mas, para n�o
dar parte de fraco, aguentei e tocamos para a frente. A certa altura, Lu�s
do Tri�ngulo voltou-se para mim e disse:
� Aqui, onde n�s estamos, �, ainda, Pernambuco. Mas, no
caminho em que a gente vai, daqui a pouco entramos na Para�ba e
chegamos na fazenda �A�udinho�, de nosso primo Ant�nio Pereira,
conhecido como Ant�nio do A�udinho. Voc�s querem ir, mesmo, � �
Serra do Reino, n�o �?
� �, sim! � respondi. � S� nos interessa � a Serra do Reino,
porque � l� que a gente pode matar os Veados!
� Veado tem por aqui em tudo quanto � de Serra! � falou Lu�s.
� Mas como a Serra �falada� daqui � a do Reino, o Povo s� se lembra
dela, quando fala nos Veados!

� E por que � que a Serra do Reino � t�o �falada�, assim? �
perguntei, jogando verde para colher maduro.
� � por causa da Pedra do Reino e do Reino Encantado, Dinis!
Voc� nunca ouviu falar nisso, n�o?
� Na Pedra do Reino? N�o! � menti.
� � que, no tempo antigo, no tempo do ronca, houve, por ali,
umas tribuzanas brabas! Meus parentes at� que andaram se metendo
no barulho! Meu bisav�, Ant�nio Pereira, e o bisav� desses meninos a�,
Joaquim Pereira, estiveram l�, na briga, e escaparam. Mas dois irm�os
deles, Cipriano e Alexandre, morreram todos dois. De qualquer modo,
os Pereiras terminaram ganhando a batalha e matando o Rei Coroado!
� O Rei Coroado? Que Rei? � perguntei, ingindo-me
espantado.
� Ah, meu amigo, o barulho, aqui, naquele tempo, foi grosso!
Um tal de Jo�o Ferreira coroou-se Rei, na Serra do Reino, e meteu na
cabe�a do Povo que Dom Sebasti�o ia ressuscitar aqui, tornando os
pobres ricos! O plano do Rei era matar todos os propriet�rios daqui
para dividir as terras dos mortos com os seguidores dele. Me diga uma
coisa: se der tempo, depois da ca�ada, voc�s querem dar um pulo at� o
lugar das torres de pedra, onde foi o Reino? Vale a pena ver aquelas
pedras, se bem que, toda vez que eu chegue l�, ique meio arrepiado, s�
de me lembrar do que aconteceu por ali!
� Ah, vamos! � disse eu, depressa, antes que algu�m votasse
contra. � Uma coisa dessas, n�o se deixa de ver de jeito nenhum!
� � verdade! � concordou Lu�s. � Se bem que tudo, ali, seja
cheio de hist�rias furadas, cada um conta que aconteceu dum jeito!
Parece que, no im, s� tem uma coisa certa: o Rei se chamava Jo�o
Ferreira, queria acabar com os propriet�rios, e era casado com uma
mulher chamada a Rainha Quit�ria!
� Quit�ria n�o, Josefa! � disse eu, sem me sentir.
Lu�s do Tri�ngulo olhou-me, espantado:
� Sempre ouvi dizer que era Quit�ria, o nome dela! � disse ele.
Agora era tarde para recuar. Falei de novo:
� N�o, o Rei Jo�o Ferreira tinha sete mulheres! Talvez uma
delas tivesse nome de Quit�ria, n�o sei! Mas as duas importantes,
mesmo, eram a Rainha Josefa e a Princesa Isabel!

� E como � que voc� sabe? � perguntou Euclydes Villar. �
Voc� n�o disse que nunca tinha ouvido falar nisso?
� � que, quando Lu�s do Tri�ngulo perguntou, inda agora, eu
n�o me lembrei logo, e disse que n�o conhecia a hist�ria! � disfarcei.
� Mas, depois que ele foi falando, me lembrei aos poucos, e agora me
recordo de ter lido alguma coisa a esse respeito, na �Biblioteca
Municipal�, de Tapero�, numa cole��o da Revista do Instituto
Arqueol�gico de Pernambuco, doada por Gustavo Moraes. A revista tem
at� uma gravura, mostrando as duas torres de pedra, paralelas e quase
iguais! Agora me lembro, me lembro perfeitamente!
� Pois ent�o, se n�o for muito tarde quando acabarmos com os
Veados, vamos dar um pulo at� l�, para voc�s verem aquelas pedras
velhas! � disse Lu�s.
Naquele momento, cheg�vamos a uma Lagoa rasa, situada �
direita da estrada. Lu�s do Tri�ngulo explicou:
� Essa � a Lagoa do Vieira! Os Vieiras eram parentes do Rei Jo�o
Ferreira e estiveram, tamb�m, metidos na �Guerra do Reino�! Diziam
eles que esta Lagoa era encantada e que, aqui, Dom Sebasti�o tinha uma
mina de ouro para os pobres!
* * *
Meu cora��o deu um pulo no peito. Dirigi imediatamente meu
cavalo para a Lagoa: queria ver se achava uma ou duas daquelas
pedrinhas com as quais meu tio-bisav� come�ara a prega��o do Reino.
Os outros, espantados com minha brusca sa�da, esbarraram os cavalos
na estrada e icaram me olhando. Para n�o me tornar suspeito, ingi que
tinha visto ca�a na Lagoa. Tirei a espingarda do ar��o, segurei-a em
posi��o de alerta, e assim aproximei-me da �gua.
Aconteceu, ent�o, o que eu n�o esperava: uma Ja�an�, espantada
com minha aproxima��o, levantou voo na minha frente, saindo de
dentro dos g�lf�os que margeavam a �gua. Eu estava na obriga��o de
atirar. E como estava absolutamente certo de errar, ergui a espingarda
tortamente, sem fazer pontaria, e atirei. A Ja�an� caiu, fulminada.
Surpreso, de queixo ca�do, mas j� impando de orgulho, ouvi foi o grito
entusiasmado de Malaquias, na estrada:
� Boa, Mestre Dinis! Grande tiro!

Era um golpe favor�vel da Fortuna, e vinha provar, mais uma vez,
que a Astrologia n�o falha. De fato, ainda na �Carna�ba�, eu consultara
os astros sobre minha expedi��o, e encontrara o seguinte, no
Almanaque: �Para os nascidos sob o signo de G�meos, o tempo ser�
favor�vel, por causa dos inluxos ben�icos do Planeta Merc�rio. Viagem
melhorar� assuntos amorosos, inanceiros, pol�ticos e sociais. Grande
achado. Pessoa mal-intencionada querer� intervir, mas n�o obter�
sucesso. Seja mais observador.� Era claro, clar�ssimo, at�! A viagem �
Pedra do Reino seria favor�vel � monarquia dos Quadernas e eu deveria
ser o mais observador poss�vel, n�o s� para evitar as interfer�ncias
daqueles mal-intencionados Pereiras, como tamb�m para entender um
sinal, um achado que os astros terminariam me indicando. Ora, no
momento, que coisa melhor para minha cota��o social, pol�tica e
inanceira, do que acertar um tiro daquele?
Contente, saltei da sela no ch�o, e sob pretexto de procurar a
Ja�an�, comecei a olhar nas margens da Lagoa, para ver se achava
alguma pedra brilhante. Mas o tempo passava e nada! Os companheiros,
j� impacientes, gritavam, de l�:
� Est� mais para dentro, Dinis! Caiu j� dentro d��gua! A�, na
beira, voc� n�o encontra ela, nunca!
Sem poder continuar com meus ingimentos, entrei na �gua rasa
da Lagoa, molhando as meias-botas e a parte inferior das cal�as de
mescla azul. Sem diiculdade, �achei� a Ja�an� que j� avistara h� muito
tempo. Peguei-a pelos p�s, e comecei a sair da �gua, satisfeito com o
tiro, mas um pouco desanimado quanto aos assuntos mon�rquicos.
Nesse momento, um raio de Sol feriu uma incrusta��o de malacacheta
numa pedra que havia, � esquerda, n�o na margem da Lagoa, mas um
pouco acima, na barreira baixa, de barro esbranqui�ado, dum riacho
seco. Encaminhei-me para l�, e iquei absorto, profundamente
impressionado com meu Destino! No ch�o, junto da barreira, havia uma
pedra oval, branca, achatada, n�o muito brilhante, mais ou menos do
tamanho de um p�o-de-cruzado. A super�cie branca era marcada por
iniltra��es, arroxeadas e avermelhadas, que, no conjunto, formavam,
direitinho, a igura de um Escorpi�o, sinal astrol�gico e fat�dico do
nosso Reino, ou melhor, do Imp�rio do Sete-Estrelo do Escorpi�o!
O mais sensacional, por�m, estava ainda por vir. E foi que, no
momento em que me curvava para apanhar a pedra, avistei, pousado

sobre outra, pr�xima, aquilo que, no primeiro momento, me pareceu
somente um velho chap�u de couro abandonado. Ora, a Coroa que meu
bisav� usara na Pedra do Reino era de metal � de prata, digamos! � e
montada sobre um chap�u de couro que lhe servia de forro. Fora
encontrada, depois da batalha, pelo mesmo Vaqueiro que encontrara o
inocente, ilho da Princesa Degolada, indo ter, assim, �s m�os do Padre
Wanderley. A Coroa, ou antes, sua parte de metal chegara at� n�s, mas o
forro se perdera. Eu j� estava, mesmo, conformado em ajustar a ela um
chap�u de couro qualquer, que seria digno, mas nunca como o velho
forro que servira � cabe�a de tr�s Reis. Pode-se imaginar, portanto, qual
n�o foi minha emo��o, quando veriiquei que aquele tinha umas fendas
laterais que coincidiam mais ou menos com as folhas de metal da
Coroa! N�o havia d�vida, era o forro que, certamente, icara ali, jogado,
no dia da batalha! Era o achado astrol�gico, predito pelo Almanaque!
No maior entusiasmo, guardei a pedra e o chap�u de couro no
bisaco, junto com a Ja�an�, e voltei para junto dos outros. Malaquias,
sabendo como um elogio seu era agrad�vel para mim, falou de l�:
� Voc� hoje est� um ca�ador mordido de cachorro da molest�a,
hein, Dinis? Que o tiro foi de macho, foi! Mas o que mais eu me admirei
foi de voc�, daqui, ter avistado a Ja�an� por dentro dos matos! Mas
modere sua sede de ca�ador, sen�o, com esses tiros, a gente n�o
encontra mais nem um Veado, na Serra! J� est� perto, Lu�s?
� Mais ou menos! � respondeu Lu�s do Tri�ngulo. � Por aqui,
pela Lagoa do Vieira, tem um caminho mais perto. Mas, para n�s, �
melhor ir at� o �A�udinho�, onde a gente pode deixar os cavalos!

C
FOLHETO XX
A Terceira Ca�ada Aventurosa
hegamos ao �A�udinho�, j� em terras da Para�ba, a� pelas duas
horas da tarde. N�o havia tempo a perder. O dono da terra, Seu
Ant�nio, primo dos Pereiras, ordenou a um velho cabra seu, Lu�s
Cachoeira, Vaqueiro e Cangaceiro aposentado, que nos guiasse at� a
Pedra do Reino. Ent�o, a p�, com Lu�s Cachoeira � frente, contornamos a
casa da fazenda, passamos um curral de ovelhas e entramos pelo mato,
ainda em terreno baixo. Mas a Serra come�ava logo ali perto, de modo
que logo o caminho come�ou a se tornar ladeiroso, beirando uma cerca.
Em dado momento, Lu�s Cachoeira parou e apontando l� para
longe, num alto da Serra, dirigiu-se a mim, perguntando:
� Vossa Merc� est� vendo aquela casa, acol�, naquele pico de
serra? Me diga, daqui, se ela � de taipa ou de tijolo!
� � de tijolo! � respondi, convicto. � De tijolo e rebocada!
Agora, est� com o reboco velho, meio preto nuns lugares.
Cachoeira riu, divertido:
� Aquilo � uma pedra, Seu Major! Daqui, todo mundo se engana,
pensa que � uma casa! Na subida, mesmo, da serra, a gente vai passar
perto dela! Mas tamb�m n�o � de admirar que o senhor se engane n�o,
porque a gente vai passar por tanta pedra esquisita que � uma coisa
demais!
E continuamos a caminhada �ngreme. O mato come�ou a se
embrenhar, tornando-se cada vez mais �spero e espinhoso. Cachoeira
continuava � frente, e, apesar dos seus setenta anos, ia com o passo
l�pido e seguro de andarilho sertanejo, com o tronco desempenado,
seco e duro, como se os anos, passando por ele, tivessem somente
secado e enrijecido um tronco escuro e meio-queimado de Pau-ferro.
Atr�s de Cachoeira, iam De�sio, Le�nidas e Argemiro Pereira. Atr�s
deste, Lu�s do Tri�ngulo, seguido por Malaquias, por mim e por
Euclydes Villar. O Sol estava de queimar, e a subida da Serra tornava-se

cada vez mais ladeirosa e dura. Ningu�m suava. Ou antes, su�vamos,
mas o Sol quente e o vento evaporavam o suor na mesma hora, de modo
que da� a pouco est�vamos morrendo de sede e com a pele estalando,
de seca. Al�m do mais, de vez em quando, um cip� nos enredava, um
galho de Jurema �unha-de-gato� enganchava nossas cal�as ou nos feria
com seus espinhos agudos e recurvados.
Meu f�lego come�ava a faltar. Eu olhava para a frente, na
esperan�a de que Lu�s Cachoeira sentisse o cora��o cansado, mas n�o
havia jeito. L� na frente, ele fumava um cigarro de palha, e eu via, pelo
ritmo seguro e regular das baforadas, que ele n�o estava, sequer, com a
respira��o alterada. Desesperei. Estava, j�, a ponto de rebentar. Ao
mesmo tempo, sabia que, se pedisse para parar antes dos outros, os
Quadernas estariam desmoralizados. Decidi-me, intimamente:
�Rebento, mas n�o afraco!� E como estava convencido de que ia morrer
� porque mais n�o suportava! � comecei a me confessar
silenciosamente a Deus de todos os meus pecados, rezando o �ato de
contri��o�. E a�, Deus e os astros permitiram que eu ouvisse, atr�s de
mim, um ru�do estranho, uma mistura de assobio, ronco de porco e
sopro de asm�tico, sublinhando o ritmo tr�pego de passos inseguros.
Passei para tr�s um rabo-de-olho inquisitivo, e vi Euclydes Villar, que
vinha pior do que eu! Era a concilia��o entre Quadernas e Pereiras, era
a salva��o da minha vida e da minha honra! Aproveitei-a com um berro
arquejado:
� Para! Para, pessoal, sen�o Euclydes Villar morre!
O al�vio foi geral; mas o melhor foi que, assim que p�de falar,
Euclydes Villar veio me agradecer a interfer�ncia, confessando que
estivera a ponto de morrer! Mas vinham todos t�o exaustos, que
ningu�m teve coragem de ser cruel com o pobre Poeta, fot�grafo e
charadista, t�o pouco habituado a essas correrias e hero�smos
sertanejos. Com exce��o de Cachoeira, todo mundo arquejava; todo
mundo arriou no ch�o, para recuperar a respira��o.
Eu n�o me sentei n�o, deitei-me. Espichei-me � sombra de uma
Aroeira, com o cora��o ainda pulsando como um cavalo desgovernado.
Cachoeira foi o �nico que n�o se sentou. Recostou-se numa barreira, e,
sempre fumando e falando, come�ou a nos contar fatos da serra e de
sua vida. Foi ele que, depois de uma meia hora, nos animou a retomar a
caminhada, dizendo:

� Vossas Merc�s est�o cansados, mas se animem, porque esse
que n�s passamos foi o peda�o pior da subida! Dagora em diante,
vamos sempre subindo, mas a subida � vagarosa e a gente quase n�o
sente ela!
* * *
Cachoeira, agora, ia com passo mais moderado, do que dei
gra�as a Deus. Depois de andarmos ainda um bocado, demos com o
primeiro p� de Coco-catol� pr�ximo � vereda. Como nos explicara o
Senhor da Carna�ba, havia, no ch�o, montes de pequenos cocos
amarelos, comidos, o que indicava passagem mais ou menos recente de
Veados. Deixamos ent�o a vereda e embrenhamo-nos pelo mato, em
demanda de uns Umbuzeiros que, segundo Cachoeira, �eram danados
pra ter Veado malhando, �quela hora�.
A�, quando nos aproximamos do primeiro Umbuzeiro, De�sio
mostrou, logo, as novas disposi��es em que se encontrava de vencer os
Quadernas fosse como fosse, principalmente depois do azar que tivera
com os Jacus. Adiantou-se, r�pido, � nossa frente, e come�ou a tomar
chegada. Estava ultrapassada a fase da hospitalidade; agora era cada
um por si e Deus por todos. Mas as normas da ca�a continuavam em
vigor, de modo que todos n�s paramos e icamos esperando que ele
agisse.
Confesso que estava possu�do por um mau sentimento, com um
medo danado de que fosse um Pereira, e n�o um Quaderna, o primeiro
a matar essa honros�ssima ca�a que � um Veado. Alito, rezei de novo,
desta vez pedindo a Deus e a meu Planeta, que, ou De�sio n�o
encontrasse Veado nenhum, ou, caso encontrasse, que errasse o tiro. E,
de s�bito, n�o pude acreditar no que estava vendo: uma Cobra-cascavel
dormitava ali, bem perto, na boca do oco de uma Imburana, esfuracada
pelo tempo e t�o velha e cinzenta quanto a Cobra. Um plano maldoso
fuzilou seu relampo dentro do meu sangue. Sem formular qualquer
ideia, guiado somente pela maldade do instinto, encostei praticamente
minha �Vinte e Oito� na cabe�a da Cobra adormecida e desfechei o tiro.
No mesmo instante, ouvimos o mato estralejando para os lados
do Umbuzeiro e o berro indignado de De�sio Pereira, vendo perdido o
Veado, que desaparecera no mato. A surpresa foi geral. As perguntas

choviam. O que fora aquilo? Por que eu tinha atirado? Silenciosamente,
mostrei a Cascavel, que rolava e se enroscava feito doida, naquela morte
enraivecida, envenenada e violenta de Cobra, que todo mundo j� viu.
Mostrei-a e disse:
� Voc�s se espantam porque eu atirei? A Cascavel estava bem
perto de Euclydes Villar, est�o vendo? Voc�s queriam bem que eu
arriscasse a vida de meu amigo Euclydes Villar por causa de um Veado!
De�sio Pereira, lembrado ainda do azar que o charadista lhe
dera nos Jacus, olhou-o como quem n�o estava seguro de que sua vida
valesse a perda do Veado. Mas n�o disse nada, constrangido por sua
educa��o idalga, e o fato � que n�o achamos mais Veado nenhum.
Todos estavam inconsol�veis; menos eu e Cachoeira que, tendo tirado o
couro da Cascavel, recebera-o de presente e estava feliz da vida,
dizendo que, se n�o o vendesse na feira, faria, para si mesmo, um
cintur�o.
* * *
Est�vamos, agora, em cima, mesmo, da Serra, no plano raso,
amplo e altaneiro, semeado, aqui e ali, de enormes lajedos de formas
estranhas, parecendo grandes lagartos antigos, adormecidos ao Sol,
sobre a pele de fera da Terra. As duas torres, por�m, estavam ainda
invis�veis; e come�amos a palmilhar o �ltimo peda�o de caminho que
nos separava delas.
Foi a� que me sucedeu um daqueles acasos com que a Fortuna,
de vez em quando, coroa minha const�ncia, o que se passou do modo
que passo a contar. Do lado direito da vereda, que hav�amos retomado,
havia, ali, umas brocas e queimadas recentes de coivaras. Do lado
esquerdo, o mato permanecia intocado pelo fogo. Eu,
inconscientemente temeroso de chegar � Pedra, atrasara-me e
terminara sendo ultrapassado at� por Euclydes Villar. Por isso fui o
�nico a avistar um Preazinho que, saindo de umas touceiras meio
queimadas de alastrado, da coivara, cruzou a vereda, passando a dez
passos de mim, entrou no mato do lado esquerdo, e se deteve, n�o
muito longe, perto de uma moita de Mofumbos. Ali ele se imobilizou de
repente e icou parado, com um jeito estranho e tenso que me deixou
intrigado. Depois, iquei tentado, querendo atirar nele. O que me

detinha era que eu sabia que, de qualquer modo, iriam chasquear
comigo: se eu errasse, seria ridicularizado pela m� pontaria; se
acertasse, pela insigniic�ncia da ca�a. Mas como o pessoal j� ia adiante,
eu estava sem testemunhas: assim, se errasse, poderia dizer, tamb�m,
que atirara em ca�a importante; e se acertasse, aumentaria � vontade a
dist�ncia do tiro, para compensar, com a precis�o da mira, a desonra de
matar, com a �Vinte e Oito�, aquela ca�a que at� menino matava de
badoque.
Assim, levei a espingarda � cara e atirei. Estou agora, nobres
Senhores e belas Damas, fazendo uma coniss�o geral, de modo que n�o
quero esconder nada e tenho que confessar que errei. Errei
miseravelmente o tiro, com o Pre� a menos de dez passos de mim. Vi o
bichinho dar um salto para a esquerda e emburacar no mato,
desaparecendo da minha vista, ao mesmo tempo que o ch�o icava
verde de folhas de Mofumbo que meu tiro arrancara pra todo lado!
* * *
Com um desgosto danado, sentindo o saibo da derrota e da
humilha��o, baixei a espingarda; e j� ia recome�ar a caminhada para
alcan�ar os outros, quando ouvi um batido estranho por tr�s da moita.
Corri para l� e o cora��o quase me salta pela boca afora! Ali estava,
mortalmente atingida por meu tiro, n�o uma Cobra, uma cascavel
qualquer; n�o um Jacu, bicho de pena; n�o um Veado, ca�a assustada
que corre da gente; n�o nenhuma dessas ca�as med�ocres de ca�adores
rabos-de-cabra: mas uma On�a, uma On�a de verdade! N�o era das
Pintadas, � fato. Era uma Su�uarana, menor e parda! Ainda assim, era
uma On�a, ca�a com a qual eu nunca me atrevera a sonhar, nem mesmo
nos momentos mais agudos de ambi��o guerreira! O Pre�, correndo de
mim, s� a pressentira a tr�s passos dela: por isso icara naquela posi��o
que tanto me intrigara. E eu, cumprindo o ditado que diz �Atirei no que
vi, matei o que n�o vi�, errara, por sorte, o Pre� e pregara chumbo bem
na garganta da On�a!
Em tempo de me acabar de ansiedade, com as m�os tr�mulas e a
vista meio escura, com ar de doido, coloquei rapidamente outro
cartucho na espingarda e, encostando o cano bem no cabelouro da
bruta, disparei-lhe o tiro de miseric�rdia. Meus companheiros, ouvindo

os disparos, correram todos de volta, curiosos. Eu, que j� voltara, de
prop�sito, para a vereda, mantinha-me ali, � espera deles, segurando
com a m�o direita a espingarda, e com a esquerda o bisaco. Assim,
esconderia meu tremor. Sabia que, quanto maiores parecessem minha
mod�stia e minha impassibilidade, mais o feito ressaltaria, e mais eu
pareceria � altura dele, como se morte de On�a fosse coisa corriqueira
em minha vida.
Quando chegaram todos, e os Pereiras me viram parado, ali, na
vereda, identiicaram logo minha calma aparente com decep��o, e
julgaram, jubilosos, que eu errara mais um tiro. De�sio resolveu vingarse
da perda do Veado e foi quem veio com mais achincalhes:
� Dois tiros, Mestre Dinis? � indagou ele, ir�nico. � Ou errou
o primeiro e o segundo numa Lagartixa, ou ent�o era bicho grande, e
teve que matar com dois tiros! O que foi? Foi Veado? N�o me diga que
errou! Cad� o bicho?
Deixei que o ataque acalmasse, e ent�o retruquei, com o ar mais
indiferente que pude arranjar:
� N�o foi Veado n�o, foi On�a!
� Uma On�a, Dinis? � gritou Malaquias, mudando a cara mas
ainda incr�dulo.
� Sim, uma On�a! Est� ali, atr�s daquela moita de Mofumbo!
Avistei, daqui, o vulto da bicha e passei-lhe fogo!
� Acertou?
� V� l� e veja se eu acertei ou n�o! O segundo tiro, foi s� para
acabar de matar, porque com o primeiro ela j� estava lascada! Mas n�o
se entusiasme demais n�o, Malaquias, porque a bicha n�o merece isso,
de jeito nenhum! � On�a besta, vermelha, On�a-de-bode!
� Que besta que nada, Mestre Dinis! � roncou Malaquias,
impando com o feito do irm�o ineiciente e extraviado. � N�o existe
On�a besta, n�o! On�a � On�a! De hoje em diante, voc� pode se
considerar ca�ador dos bons, dos grandes, dos que matam On�a, e essa
honra ningu�m lhe tira mais!
Eu estava a ponto de rebentar de orgulho. O velho Lu�s
Cachoeira pegou o grande Gato-Pardo, passou-o pelos ombros, por tr�s
da nuca, e carregou-o assim, com uma m�o segurando as patas
dianteiras e a outra as traseiras. E foi assim que, com outra coragem,
naquele dia glorioso, eu me encaminhei para o Castelo de pedra da

minha Ra�a, contando, no meu saldo guerreiro de gl�rias, com uma
Cobra e uma On�a, animais sagrados e astrol�gicos, enviados por meu
Planeta fat�dico a meu Destino r�gio, como para marcar aquilo que iria
se passar da� a pouco, na Pedra do Reino, com o selo de uma un��o e
sagra��o.

V
FOLHETO XXI
As Pedras do Reino
ossas Excel�ncias j� devem ter notado que, no meu sangue, as
imagens da On�a e da Pedra s�o muito importantes. Sobre as
On�as, j� falei alguma coisa, lembrando, inclusive, que me criei junto
com uma, f�mea, na �On�a Malhada�. Al�m disso, Tia Filipa cantava,
para embalar meu sono, entre outros, o Romance da On�a da Malhada, e
eu sonhava muitas vezes com essa On�a, imagem, por um lado, de tudo
o que era belo e prazeroso, e, por outro, de tudo o que era maldade,
perigo e desordem. Cheguei a trepar com ela, em sonhos, resultado,
talvez, duma tentativa que eu e Ar�sio t�nhamos feito, quando
meninotes, com a On�a mansa da fazenda. Quanto �s pedras,
provavelmente tinham sido as palavras da �Mem�ria sobre o Reino
Encantado�, assim como as degola��es sangrentas executadas por meu
bisav�, que tinham contribu�do para instilar seu perigo em meu sangue.
Assim, n�o admira que eu me aproximasse agora da Pedra do
Reino com o cora��o galopando, uma vez que vinha com uma On�a que
eu mesmo matara e chegando para perto das pedras mais fat�dicas e
gloriosas do mundo. Os arredores do Castelo do meu sangue real e
quadernesco mostravam, pouco a pouco, uma brutalidade amaldi�oada,
inescrut�vel, cruel, desaiadora. Aquele aniteatro antigo e bruto
parecia exigir que eu misturasse meu sangue �s pedras, para ver se,
assim, ao mesmo tempo que recebia algo de p�treo nele, comunicava
�queles rochedos alguma coisa de humano, decifrando o enigma e
desencantando o tesouro que me espreitavam de dentro deles. Eu
come�ava a entender melhor, agora, o verdadeiro sentido da sangrenta
tentativa que meu bisav� Dom Jo�o, O Execr�vel, empreendera ali.
Provavelmente aqueles Diabos, aprisionados dentro da pedra e ligados
� On�a do Divino, tinham-lhe insinuado, tamb�m a ele, a necessidade de
decifrar e desencantar, que terminara conduzindo ele pr�prio e tantos
outros � degola��o. Agora era em mim, seu bisneto, que essas sensa��es

se desencadeavam, juntando-se a On�a e as Pedras num desaio s�. O
sangue da On�a que eu matara vinha pingando pelas pedras a e�gie do
Divino, o que me deixava indignado comigo mesmo por n�o ter tido a
ideia de vir numa Sexta-feira da Paix�o, para ver as Coroas-de-Frade
minando sangue, como acontecia todos os anos.
Infelizmente, por�m, se, do ponto de vista fat�dico e astroso, o
local do Castelo correspondia perfeitamente ao sonho r�gio do meu
sangue, do ponto de vista da Arte houve algumas decep��es que, a
princ�pio, sangraram um pouco no meu orgulho, diante das duas Torres
de pedra. � verdade que a culpa n�o foi delas, foi do Padre que
desenhara a gravura e de Souza Leite, que as descrevera.
A primeira impress�o foi boa, quando, ainda de longe, sa�mos do
mato, e eu avistei, no plano do cimo da Serra, o vulto das duas pedras,
uma quase encobrindo a outra. Eram, de fato, bastante altas, mas n�o
tanto quanto os dois diziam. Teriam cerca de vinte metros, e n�o trinta,
como eles airmavam. Espantaram-me, ent�o, as patranhas de dois
homens s�rios, um, Padre, o outro, Acad�mico. S� depois, quando
comecei a entender melhor as coisas, a estudar mais o estilo epopeico e
prof�tico, foi que me certiiquei de que a patranha � uma das
caracter�sticas indispens�veis �s Trag�dias, Profecias e Cr�nicasepopeicas
como as deles. Naquele primeiro momento, por�m, a
decep��o foi dura. O Padre desenhara as duas pedras de frente, uma
quase igual � outra, e parecendo ambas, de fato, as torres de pedra da
Catedral Soterranha do meu Reino. Acontece que, l�, icando a gente na
posi��o da gravura, as duas pedras se apresentavam bastante
diferentes, uma muito mais larga, e a mais ina com uma tor��o que, no
topo, desigurava a imagem ideal e gloriosa que eu forjara em meu
sangue, durante todos aqueles anos, coniado nas Epopeias que homens
consp�cuos e acad�micos tinham escrito. Outra coisa me deixou
inconsol�vel: Ant�nio �ttico de Souza Leite airmava que uma das
pedras, a Bonita, do meio para cima era incrustada por uma esp�cie de
chuvisco prateado, causado por �iniltra��o de malacacheta�. Agora, eu
olhava e n�o via nada disso. Por mais que eu as olhasse, de todas as
posi��es, n�o havia jeito de ver chuvisco de prata nenhum! Nenhuma
incrusta��o que me sugerisse o ouro, a prata e o sangue-de-arag�o da
Cantiga de La Condessa! N�o via, tamb�m, as manchas do sangue do Rei,
sangue que, segundo as legendas sertanejas, permanecia vivo e

vermelho, na Pedra, nos lugares em que ele a tocara, j� ferido de morte.
Por todo lado, eu s� via, mesmo, eram as manchas ferrujosas de
l�quenes secos, que n�s chamamos, aqui no Sert�o, de �mijo-de-moc��
� o que era decepcionante e desmoralizador!
Aquele era um tipo de m�goa que eu s� podia confessar, ali, a
Euclydes Villar, poeta e decifrador como eu. Cheguei para perto dele e
comuniquei-lhe minhas decep��es, resumindo tudo o que lera e que
agora n�o encontrava. Para surpresa minha, por�m, Euclydes discordou
de mim. Achava as pedras, assim paralelas, maci�as e de cor f�rrea,
�terrivelmente impressionadoras�, talvez porque, sem ter lido antes o
que eu lera, nunca esperara demais, nem criara, a respeito delas, as
imagens gloriosas, mon�rquicas e prateadas que eu alimentara em meu
sangue. Quanto ao �chuvisco prateado� de Souza Leite, Euclydes Villar
se espantava de que eu, um Poeta e Acad�mico, me decepcionasse com
as pedras e reclamasse contra a inven��o fantasiosa do genial escritor
pernambucano do s�culo XIX. Segundo Villar, assim era o Mundo e
assim era a Literatura! Nas coisas do mundo, os �chuviscos de prata�
nunca ou raramente existiam, e o �sangue vermelho das pedras,
conservado vivo e fresco durante todo o tempo� era sempre, de fato, na
mesquinha realidade, simples mijo-de-moc�. Se a gente n�o mentisse
um pouco, �ajudando as pedras tortas e manchadas do real a brilharem
no sangue vermelho e na prata, nunca elas seriam introduzidas no
Reino Encantado da Literatura!�. Euclydes Villar lembrou-me, ainda,
que todos os Poetas brasileiros mentiam assim, principalmente Alberto
de Oliveira e Olavo Bilac, que viam joias, ouros, pratas e pedras
preciosas em todo canto.
Todas essas ideias do Fot�grafo me deixaram impressionado.
Sem saber da Missa nem a metade, ele usara aquela express�o de
�Reino Encantado da Literatura�. Era com o nome de �Reino Encantado�
que todos aqueles Acad�micos do s�culo passado tinham se referido ao
nosso Imp�rio. Vi nisso um novo sinal da Provid�ncia Divina e dos
planetas, acorrendo em meu aux�lio quando minha f� mon�rquica
estava come�ando a querer claudicar, e dizendo que eu, como Rei,
cantador, poeta e guerreiro das Cavalhadas sertanejas, tinha obriga��o
de restaurar o Reino, o Castelo, o Marco, a Catedral, a Obra, a Fortaleza
da minha Ra�a! Seria a Literatura dos folhetos e romances que iria
restaurar de novo, pelo fogo da Poesia, a gloriosa imagem anterior, que

aquelas pedras, tortas e manchadas de mijo-de-moc�, aleivosamente
queriam diminuir e macular!
Quanto �s dessemelhan�as que eu notara entre as duas pedras,
Euclydes Villar me garantiu que �tudo era uma quest�o de saber olhar�.
Como Fot�grafo e mestre em sua Arte, quando cheg�ssemos a Serra
Talhada e ele revelasse as chapas que estava tirando, iria me mostrar
como a gravura do Padre, �devidamente corrigida pela Arte�, estava
�mais certa� do que aquela imagem real e grosseira que eu, sem ser
artista, estava me obstinando em ver ali.

FOTOGRAFIA TIRADA POR EUCLYDES VILLAR DAS DUAS PEDRAS
DO REINO.

M
FOLHETO XXII
A Sagra��o do Quinto Imp�rio
as agora estou chegando ao im da narrativa da minha expedi��o
aventurosa � Pedra do Reino, e devo ser breve, porque �a
brevidade � a cortesia dos cl�ssicos�. Direi ent�o, somente, que, ali,
diante das pedras, tirei um retrato com a On�a atravessada nos ombros.
Tirei outro de Argemiro Pereira, para lembrar que aquela fam�lia de
Bar�es sertanejos tinha ousado levantar m�os sacr�legas contra as
pessoas de Reis, ungidos e consagrados pela Coroa. Depois, enquanto os
outros descansavam, contornei as pedras, batendo nelas,
disfar�adamente, com os n�s dos dedos e pronunciando a �Ora��o da
Pedra Cristalina�, escrita pelo santo padre do Juazeiro, meu Padrinho
Padre C�cero. Queria ver se, assim, a pedra se abriria, revelando em
suas entranhas o famoso Tesouro da Pedra do Reino. Mas n�o houve
jeito. Por mais que batesse, a Pedra n�o se abriu daquela vez. Eu j�
estava com os n�s dos dedos esfolados e sangrando. Resolvi desistir
dessa parte de minhas incurs�es pelo Divino e realizar outra,
fundamental, que fora meu verdadeiro objetivo ao viajar para ali.
Ent�o, j� por tr�s das duas torres, isolado e solit�rio, �encoberto�
da vista dos outros, desembrulhei meu matol�o, esvaziei o bisaco e tirei
para fora a Coroa de Prata dos meus antepassados. Peguei o chap�u de
couro que encontrara, ajustei as aspas de metal em suas fendas,
restaurando integralmente aquela ins�gnia da nossa realeza. Tomei as
duas varas-de-ferr�o que sempre conduzia e que, para os leigos e cegos,
eram simples varas de tanger boi. Eniei no topo de uma a Esfera com
Cruz que fazia dela um Cetro, e, no da outra, o semic�rculo enfolhado e
entalhado a canivete que a transformava no B�culo prof�tico. Tirei,
inalmente, o Manto real, feito de peda�os costurados de couro de On�a
e de Gato-Maracaj�. Tudo estava pronto, mas eu hesitava e temia ainda.
Pousei um momento a Coroa sobre um pico de pedra, e iquei a
contempl�-la ali, terr�vel, prateada, fat�dica e astrosa, faiscando e

pingando sangue, no Sol. Era um grande momento, perigosamente
diab�lico e gloriosamente divino. O gesto que eu ia praticar arriscava
minha garganta e, ao mesmo tempo, recuperava para meu sangue a
grandeza do Quinto Imp�rio. Aquelas pedras desiguais, brutas,
gigantescas apesar de tudo, tinham, na sua desordem, o fasc�nio de um
enigma ligado � Besta Bruzac�, � Vaca do Burel, ao Cavalo Misterioso, ao
Drag�o do Reino do Vai-e-Volta, � Ipupriapa, enim, a todas aquelas
encarna��es que a On�a Malhada do Divino assumia em suas apari��es,
fosse no Sert�o, fosse no Mar, fosse nas desaventuras narradas nos
folhetos. Era uma Fera insaci�vel, sedenta do meu sangue, que tinha ali,
naquelas pedras, seu Reino Encantado, e que me chamava a uma
sagra��o perigosa, exigindo que eu me elevasse acima de mim mesmo.
Eu sentia que algo de muito precioso, puro, perigoso e raro me seria
instilado de uma vez para sempre, se eu tivesse coragem de �
enfrentando minha covardia, minha mesquinhez, minhas trai��es, a
tenta��o da comodidade e da seguran�a � doar meu sangue � Fera da
Encanta��o, � On�a do Divino, que o beberia, destruindo-me mas
divinizando minha natureza para identiic�-la com ela, nos termos do
serm�o do Padre Daniel. Euclydes Villar tinha raz�o: o chuvisco de
prata e sangue que eu, por fraqueza e cegueira, n�o soubera ver no
exterior das pedras, estaria dentro delas, formando uma teia indivis�vel
com o tesouro de diamantes, com as incrusta��es de quartzo e cristais
de rocha disseminadas entre as grades de granito. Havia ali, de fato,
encantado e fabuloso, o Tesouro da Pedra do Reino, revelado por El-Rei
Dom Sebasti�o e redescoberto depois por meu Padrinho, Dom Pedro
Sebasti�o, Rei do Cariri, que o deixara perdido, enterrado numa furna
de pedras do Sert�o.
Ent�o, tomei coragem. Ergui-me, atei ao pesco�o, jogando-o para
as costas, o Manto real, subi � Pedra dos Sacri�cios onde fora degolada
a Princesa Isabel, coloquei a Coroa sobre a cabe�a e iquei um
momento, com o Cetro na m�o direita e o B�culo na esquerda, de p�, na
posi��o em que Dom Jo�o Ferreira-Quaderna, O Execr�vel, aparece na
gravura do Padre. Olhava o Sert�o batido de sol, as pedras faiscando, os
Catolezeiros gemendo na ventania quente, os cactos espinhosos, o ch�o
pedreguento. Comecei a pronunciar as palavras sacramentais. De
repente, senti aumentar, de modo insuport�vel, a terr�vel sede que j�
vinha sentindo. Em algum lugar, ali perto, escancarou-se a boca-de

fornalha do Sert�o, o bafo ardente e felino me crestou. Uma esp�cie de
oura come�ou a girar, esquentar e encantar meu ju�zo, meu sangue a
estremecer pelo terror sagrado e epil�tico, num ridimunho de gl�ria,
inferno e realeza. Rangi os dentes: �Vou morrer! Ningu�m pode ir t�o
longe e t�o alto!� Mas reagi e me mantive irme, pronunciando at� o im
as palavras da �Pedra Cristalina�, at� que senti que meus lombos tinham
sido consagrados e minha fronte deinitivamente selada com o R�gio
Selo de Deus!
* * *
Pronto! Agora, a fuga n�o era mais poss�vel. Por mais mesquinho
que eu me mostrasse da� por diante em rela��o � Coroa do Divino, o
impulso para o alto fora deinitivo. Eu n�o era mais Dom Pedro Dinis
Quaderna, idalgo arruinado e pobre, Escriv�o e astr�logo do Cariri: era
Dom Pedro IV, O Decifrador, Rei e Profeta do Quinto Imp�rio e da Pedra
do Reino do Brasil.
Infelizmente, por�m, esses momentos s�o puros e ardentes
demais, para durar. Tive que voltar ao cotidiano. Embrulhei de novo
todos os meus sinais r�gios, e voltei para junto dos companheiros,
ingindo uma calma ainda maior do que a da morte da On�a, e agindo
em tudo o mais como se um acontecimento vital para mim, para o
Sert�o, para o Brasil, para o mundo e para Deus, n�o acabasse de ter se
passado ali.
E, para terminar: voltamos para a �Carna�ba�, deixando essa
hist�rica fazenda dos Pereiras dois dias depois. Em Serra Talhada,
Euclydes Villar revelou as chapas que tirara. Fiquei boquiaberto,
porque ele descobrira, mesmo, uma posi��o, vista da qual as duas
pedras pareciam, de fato, as torres do Castelo do meu Imp�rio.
Quando chegamos a Tapero�, procurei meu irm�o Taparica, deilhe
a fotograia e pedi-lhe que izesse uma c�pia dela, na madeira.
Taparica examinou o retrato e depois falou:
� Esse retrato � muito ruim pra ser feito em madeira, Dinis!
� Eu sei! � respondi. � Mas � muito importante para minha
Literatura e para as grandezas da nossa fam�lia. Voc� n�o pode dar um
jeito n�o, Taparica?

� Bom, jeito d�-se a tudo! O ruim � que as pedras est�o de lado,
uma meio coberta pela outra! Na gravura, elas v�o parecer uma pedra
s�, se eu n�o separar as duas com um tra�o branco!
� Pois separe! � animei-o. � Separe as duas pedras com o
tra�o branco!
� Al�m disso, a pedra mais alta � meio safada, Dinis, indecente
como o diabo!
� Indecente? Indecente por qu�?
� Parece uma totoca!

GRAVURA FEITA POR TAPARICA QUADERNA A PARTIR DA
FOTOGRAFIA DE EUCLYDES VILLAR.

� � mesmo! � concordei, espantado. � Mas fa�a assim mesmo!
Est� certo?
� Pois, se voc� quer, est� certo! � concordou ele, ainal.
Dali mesmo, Taparica levou a fotograia e depois me trouxe a
gravura, que anexei, tamb�m, a estes autos. A�, por�m, por conta dele, o
pr�prio Taparica j� estava come�ando a pegar fogo com a hist�ria da
Pedra do Reino e com a possibilidade de ser Pr�ncipe. Queria fazer uma
outra gravura, a seu jeito. Sua ideia era se inspirar, de novo, no desenho
do Padre. Dividiria a gravura com um tra�o horizontal, pelo meio. Na
parte de cima, colocaria as duas torres de pedra, mas bem iguais e
separadas, para icar tudo mais claro. Entre as duas, colocaria um Sol,
signo astrol�gico macho, como eu ensinara a ele. Na metade inferior,
como igura central, a cara do nosso bisav�, o Rei, vista bem de perto,
com a Coroa de Prata armada sobre o chap�u de couro, o Cetro na m�o
direita e o B�culo prof�tico na esquerda, os ombros cobertos por um
Manto, enfeitado com as cruzes do Cord�o Azul dos Crist�os e com os
crescentes do Cord�o Encarnado dos Mouros. Nos quatro cantos da
gravura, colocaria os signos masculinos, guerreiros e populares do
Baralho, porque, como eu j� lhe dissera, nosso bisav� era, mesmo, um
Rei sertanejo de Paus e Espadas, degolador, auri-sangrento e negrovermelho.
Finalmente, ladeando a igura do Rei, os signos astrol�gicos
de Marte e Escorpi�o, ins�gnias zodiacais daquele glorioso e terr�vel
Quaderna. Essa gravura vai aqui, tamb�m, e Vossas Excel�ncias, melhor
do que eu, poder�o julgar do acerto ou do erro de meu irm�o ao
desenh�-la.
O certo � que, na volta de Serra Talhada, estava eu agora em
Tapero�, com meu sonho modiicado, por�m n�o mais envilecido, e sim
acrescentado e mais glorioso ainda. Eu partira para a Serra do Reino
como Infante, e voltara como Rei-coroado, ungido e consagrado. A
imagem oicial da Pedra estava para sempre impressa, agora, na
gravura de Taparica. O sangue da On�a, cuja pele curtida eu trouxera
comigo, substitu�ra o sangue dos degolados que eu n�o mais
encontrara. A Pedra do Escorpi�o, achada na Lagoa, juntara-se a um
calhau que eu desprendera, a martelo, do sop� da Pedra do Reino. Iriam
servir, ambos, de pedras angulares, a serem enterradas no p� de outro

lajedo que eu escolhera, aqui em Tapero�, assenhoreando-me dele, para
altar e trono das minhas liturgias. O enigma e o tesouro da Pedra do
Reino n�o tinham sido captados, decifrados e recuperados daquela vez.
Mas tinham sido, novamente, pressentidos e conirmados entre as
fronteiras do meu Imp�rio. As moedas e os diamantes estavam, sem
d�vida, sepultados em alguma furna, perdida nas entranhas de pedra.
Num dia escolhido pelo Destino, pelos astros e pela Provid�ncia, eu
partiria de novo, � desaventura, para decifrar o tesouro, para encontr�lo
e desenterr�-lo, tendo como roteiro o velho mapa que meu Padrinho
deixara. De modo que tudo isso, junto, formava o chuvisco de prata,
sonho e sangue que, � luz prateada da Lua, astro f�mea, e � luz
incendiada do Sol, astro macho, da� em diante passaria a pingar para
sempre sobre minha Coroa e meu Castelo de Pedra, com o sangue-dearag�o
do sonho, da imortalidade, do poder e da gl�ria, com o Rei Dom
Pedro IV, O Decifrador, amando sete mulheres, reinando sobre os sete
Reinos de seu Imp�rio, entre as �guas sagradas dos sete Rios, e debaixo
de um C�u que coruscava astrologicamente em cima, com as sete
estrelas do Escorpi�o.

Chamada
OS EMPAREDADOS

J
FOLHETO XXIII
Cr�nica dos Garcia-Barrettos
� se entende ent�o, agora, por que � que a hist�ria da minha fam�lia
paterna me predisp�s a aceitar a chegada do Rapaz-do-Cavalo-
Branco, a ponto de, contrariando meu natural prudente, e at� covarde,
de Acad�mico, ter-me metido a segui-lo em sua terr�vel Desaventura:
criado no meio dessas hist�rias bandeirosas e cavalarianas dos
Quadernas, tudo aquilo teria que infeccionar meu sangue, como
infeccionou. Entretanto, a hist�ria da minha fam�lia materna n�o icava
atr�s. Desempenhou, tamb�m, papel fundamental em minha vida, e
devo narrar, assim, seus epis�dios principais.
Esses Garcia-Barrettos, fam�lia de minha M�e, eram de origem
pernambucana, mas ixados na Para�ba nos ins do s�culo XVI. O
primeiro chegado ao Brasil viera para Pernambuco no ano fat�dico de
1578, logo depois que os Portugueses e Brasileiros, derrotados pelos
Mouros na �Batalha de Alc�cer-Quibir�, tinham aberto caminho a que
Filipe II, da Espanha, se tornasse, tamb�m, Rei do Imp�rio do Brasil, do
Reino do Escorpi�o do Nordeste e, sobretudo, do pedregoso e sagrado
Reino do Sert�o. Chamava-se, esse nosso antepassado, Sebasti�o
Barretto. Chegando a Pernambuco, acolhera-se � prote��o do Morgado
do Cabo, Jo�o Paes Barretto, de quem constava ser parente. Pouco
tempo depois, casava-se Sebasti�o Barretto com uma protegida e
parenta da ilustre fam�lia Paes Barretto, Dona In�s Fernandes Garcia.
O primeiro ilho desse casal, menino nascido em Olinda,
chamou-se Miguel; e consta, na tradi��o da nossa fam�lia, que
aconteceu em sua inf�ncia um incidente que teria graves repercuss�es
em toda a sua descend�ncia. � que, quando ele estava para completar
dez anos, adoeceu de peste, numa das epidemias que costumavam,
ent�o, baixar sobre a leal Vila de Olinda. Ora, o santo indicado para
casos de peste � S�o Sebasti�o, �aquele guerreiro puro, santo, jovem,
casto e sem mancha�, que, segundo diz o Doutor Samuel, �foi lechado

por seus pr�prios companheiros de Cent�ria, a mando do Imperador de
Roma�. Quando Dona In�s viu seu ilho perdido, fez uma promessa a S�o
Sebasti�o: se o menino escapasse, seria crismado imediatamente,
acrescentando-se o nome de Sebasti�o a seu nome de batismo, Miguel.
Prometeu, ainda, que todos os descendentes var�es, porventura
nascidos do sangue de Miguel, ou receberiam, na pia, o nome de
Sebasti�o, ou o teriam acrescentado ao outro nome que recebessem. E
Miguel escapou � peste. Crismou-se, acrescentou, ao nome, o do santo,
cresceu, casou-se com uma certa M�cia Teixeira, tornou-se pai de um
menino, no qual colocou o nome de Sebasti�o Garcia-Barretto, e morreu
tragicamente, lechado pelos Tapuias, coisa que, ali�s, j� acontecera a
seu Pai, nas guerras de conquista da Para�ba.
Come�a, ent�o, a hist�ria terr�vel dos Garcia-Barrettos: porque
esse Sebasti�o, ilho de Miguel, depois de casado com uma mo�a
chamada Catarina Moura, fez uma �entrada� pelo Rio Para�ba,
conquistou terras no Pilar, e acabou a�, como o Pai e o Av�, morto a
lechadas pelos Tapuias. Ora, como vive dizendo o Professor Clemente,
nossos antepassados dos s�culos XVI e XVII formavam �uma sociedade
criminosa e beata, de idalgos e degredados, aterrorizados pelos
Jesu�tas e pela Inquisi��o�. Por isso, e por causa dessas mortes a
lechadas, logo come�ava a correr a vers�o de que a ra�a dos Garcia-
Barrettos tinha se tornado maldita. Segundo os coment�rios, Miguel
�deveria� ter morrido, mesmo, de peste, conformando-se seus parentes
com o decreto dos astros. N�o morrera, exclusivamente por causa da
promessa. Em troca, por causa dessa desordem introduzida no curso
determinado das coisas, viera a maldi��o: o primeiro Garcia-Barretto
que, da� por diante, deixasse de receber o nome de S�o Sebasti�o,
morreria de peste, na inf�ncia; e os que escapassem da peste por terem
recebido esse nome, morreriam assassinados, depois de adultos, mais
comumente a lechadas, como sucedera ao Santo padroeiro da fam�lia.
Dos ins do s�culo XVII para os meados do XVIII, encontramos a
fam�lia sempre nos Engenhos da nobre Vila do Pilar. Mas, para a nossa
hist�ria, o mais importante deles � Dom Jos� Sebasti�o Garcia-Barretto,
que viveu no s�culo XVIII, j� no reinado do Senhor Dom Jo�o V. Foi ele o
primeiro a deixar a V�rzea do Rio Para�ba, embrenhando-se de Cariri
adentro, em procura do Sert�o, pelo leito seco e largo do Rio Tapero�,
seguindo o rastro das �entradas� de Teod�sio de Oliveira, do Ajudante

Cosme Pinto e de outros sertanistas. Seguindo as trilhas de bodes e
gados que o tinham precedido, adentra-se ele pelo Sert�o, procurando a
sesmaria concedida a seu Pai durante a reg�ncia da Infanta Dona
Catarina. Era uma �data� de terras sertanejas de serra, frias, altas, secas,
mas excelentes para a cria��o. Com uma enorme sede de terras, grande
criador de vacas, ovelhas e cabras, sempre anexando, �s suas, datas e
datas de terras, termina ele por se ixar na velha Pora-Poreima, a �terra
devastada� dos Tapuias, isto �, o velho, seco e pedregoso Chapad�o da
Serra da Borborema. Ali icou, entre a Vila Real de S�o Jo�o do Cariri e a
Vila Real da Ribeira do Tapero�. Ali bateu os fundamentos de sua Casa-
Forte, perfeitamente caracter�stica do Sert�o: branca, quadrada, pobre,
pesada, achatada, com alguma coisa de convento, de miss�o jesu�tica e
das fortalezas daquele s�culo. Tinha que ser assim, ali�s: uma casa
severa, despojada, de ch�o de tijolo mas de grossas paredes e
afortalezada; porque, tendo os Povos castanhos dos Tapuias efetuado,
em 1687, uma subleva��o geral nos Sert�es da Para�ba e do Rio Grande
do Norte, a mem�ria dessa famosa �Guerra dos Tapuias� era ainda
muito recente para estar esquecida. A Casa-Forte dos Garcia-Barrettos
era feita de dois lances, ligados ao meio por uma Capela, tamb�m
pesada e achatada, com seteiras nas paredes. E como a torre dessa
Capela era quadrada e maci�a, servia tamb�m de torre-de-defesa e de
mirante, para a Casa-Forte � qual era pegada.

SEGUNDA GRAVURA FEITA POR TAPARICA SOBRE AS PEDRAS DO REINO E COM
MEU BISAV� APROXIMADO, TUDO A PARTIR DO DESENHO DO PADRE. V�-SE,
PERFEITAMENTE, COM ABSOLUTO RIGOR HIST�RICO, A COROA DE PRATA DOS
QUADERNAS, MONTADA SOBRE UM CHAP�U DE COURO.

* * *
Terei que voltar ainda, v�rias vezes, a essa �Casa-Forte da On�a
Malhada�, important�ssima em nossa hist�ria, assim como � Capela de
paredes recobertas por pinturas estranhas � Dem�nios esverdeados,
Santos com mantos castanho-vermelhos que pareciam inc�ndios,
drag�es negro-vermelhos e bras�es, coisas de que depois falarei
melhor. Devo fazer, por�m, agora, uma refer�ncia ao p� de Cajarana, que
icava junto � esquina da cal�ada de pedras da casa. Era uma �rvore
enorme, vener�vel, velh�ssima, com tronco baixo e grosso, aqui e ali
ocado pelos cupins, que erguiam suas casas c�nicas, arredondadas e
castanhas no tronco contorcido e nos galhos mais grossos que se
espalhavam, alguns tocando o ch�o e parecendo, todos, gigantescas
serpentes cinzentas, grossas e enrugadas. Todas as crian�as das
gera��es de Garcia-Barrettos sertanejos iriam brincar debaixo dessa
Cajarana, comendo seus frutinhos cheirosos, quando chegava a safra.
Quando Dom Jos� Sebasti�o, ainda solteiro e mo�o, chegara ali, no
s�culo XVIII, j� encontrara a velha �rvore, crescida entre as pedras e
lajeiros daquele peda�o da Serra do Teixeira. Ali, ao lado da velha
�rvore ergueu ele a sua casa. Ali casou, ali envelheceu, ali morreu,
sendo sepultado na Capela. A velha Cajarana viu passar anos e anos,
uns de seca, outros de boa chuva. Os ilhos de Dom Jos� Sebasti�o
nasceram, cresceram, casaram-se, envelheceram e morreram, sendo
enterrados, todos, na mesma Capela da casa-forte, onde tinham se
batizado e casado. Por im, a �rvore, a casa e a capela, ligadas pela
passagem de todas aquelas vidas, terminaram formando um todo
indivis�vel, um ser �nico, um �Ente�, como se diz, no Sert�o, dos seres
malfazejos e apari��es; uma �Entidade� que assistia o decorrer dos
�dios, crimes, amores, paix�es e sofrimentos daquela fac��o particular
do rebanho humano, isolada aqui, em nossa Serra sertaneja, mas igual a
qualquer outra de qualquer peda�o do mundo, pois �todos acordavam
aqui arremessados, neste nosso chapad�o pedregoso, sem terem sido
consultados se queriam vir ou n�o�, como costumava dizer o Professor
Clemente em seus momentos mais agudos de Filosoia. �Todos eram
condenados � morte e sa�am deste mundo sem saber para que tinham

sido chamados ou que sentido tinha esse jogo estranho � ensolarado,
sinistro, enigm�tico mas belo, apesar de perigoso e meio insano.�
Fui um dos que se criaram sob a atra��o e o inluxo daquela casa
e daquela �rvore, ambas estranhas e solenes. Posso assegurar, assim,
que talvez a maior parte do seu encanto era a serenidade com que
ambas viam passar as agita��es humanas. Parecia que a tristeza �spera
e a grandeza sem destino e mal aplicada daquelas vidas ignoradas do
resto do mundo tinham terminado por impregnar a Casa, a Capela e a
Cajarana de uma austera melancolia, tanto mais imponente por ser
s�bria e contida. Essa impregna��o de destinos falhados, de crimes e
sofrimentos � e tamb�m, parece, os galhos contorcidos como Cobras
cinzentas � foram a causa da reputa��o de ��rvore fat�dica e
agoureira�, que come�ou a se ligar ao velho p� de Cajarana e que
terminou determinando sua derrubada sacr�lega, como ser� contado
depois.
* * *
Mas como eu vinha dizendo: em torno dessa �Casa-Forte da
On�a Malhada�, criaram-se rebanhos imensos, pastagens sem im, um
n�mero incont�vel de parentes e agregados, como sucedera aos
Pereiras, Bar�es do Paje�. Os dom�nios de Dom Jos� Sebasti�o eram
maiores do que alguns Reinos pequenos mas ilustres do mundo, pois
suas terras cobriam v�rios dos munic�pios atuais do Cariri. El-Rei Dom
Jos� I reconheceu a ele o direito de usar as armas da fam�lia Garcia-
Barretto, e a qualidade de Fidalgo-Cavaleiro de sua Casa.
Pois, mod�stia � parte, � dessa fam�lia ilustre que descendia
minha M�e, Maria Sulp�cia. Da seguinte maneira: o Garcia-Barretto que
viveu durante os �ltimos dias do Imp�rio do Brasil recebeu, do
Impostor Dom Pedro II, o t�tulo de Bar�o do Cariri. Minha M�e era ilha
dele. Meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o, tamb�m; com a
diferen�a de que ele era ilho leg�timo, e minha m�e, coitada, era ilhadas-
ervas. Apesar disso, meu Padrinho gostava muito da irm� bastarda,
que foi criada em casa e era sua protegida. Meu Pai, sentindo esse amor
dele pela irm�, prop�s casamento � ilha bastarda do Bar�o; o que levou
logo as m�s-l�nguas a dizerem que o verdadeiro objetivo dele era dar o
golpe do ba�, enriquecendo com o casamento. � cal�nia. Mas, de fato,

parecia verdade, porque foi somente depois de casar que meu inado
Pai, ent�o escrevente de Cart�rio, teve, pela primeira vez em sua vida,
terras e propriedades � altura da linhagem real de que descendia.
A fazenda que meu Pai recebeu, como dote, foi desmembrada da
�On�a Malhada� e chamava-se �As Maravilhas�. Ali nasceram meus
irm�os mais velhos, Manuel, Ant�nio, Alfredo e Francisco. Ali nasceu
minha irm� Joana. Ali nasci eu, �ltimo ilho leg�timo. Porque da� em
diante meu Pai caiu na gandaia, emprenhando tudo quanto foi ilha de
morador que facilitasse, e esses meus irm�os bastardos nos levaram, de
novo, � ru�na. Meu Pai era carinhoso com todos, e dava a cada um seu
peda�o de terra, de modo que o dom�nio icou todo fragmentado, para
grande indigna��o de Tia Filipa, que s� chamava os bastardos de �os
ilhos das molecas�.
Ent�o, vendo a ru�na a que t�nhamos retornado, meu tio e
Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o, veio mais uma vez em nosso aux�lio.
Mudamo-nos todos, praticamente, para o casar�o da �On�a Malhada�,
onde posso dizer que fui criado � o que sucedeu ainda em vida da
primeira mulher de meu Padrinho, Dona Maria da Puriica��o Pereira
Monteiro. Mas ele enviuvaria em 1908, e, no im deste mesmo ano,
casou-se com minha irm� Joana Quaderna, sua sobrinha, n�o sei
quantos anos mais nova do que ele.
Tudo isso, por�m, ser� melhor contado depois, quando for
tempo. Por enquanto devo adiantar somente que, do primeiro
casamento, meu Padrinho teve um ilho, meu primo Ar�sio, nascido em
1900. Do segundo, nasceu meu sobrinho e primo Sin�sio, dez anos mais
mo�o do que o irm�o. Muita coisa de sangrento que nos aconteceu veio
das diferen�as entre os dois: enquanto Ar�sio era um sujeito duro,
solit�rio, violento, moreno, de barba cerrada e negros cabelos
encaracolados, Sin�sio era calmo, alumioso, alourado, estimado por
todas as pessoas, principalmente pelos pobres, da fazenda e da Vila. Era
o preferido do Pai; e talvez tenha sido tudo isso que terminou criando
em torno dele todas as legendas que depois viriam aparecer. Sim,
porque a maldi��o da ra�a dos Garcia-Barrettos terminou pegando meu
Padrinho e Sin�sio. Sin�sio foi raptado, de maneira enigm�tica,
desaparecendo daqui como por encanto, no dia 24 de Agosto de 1930.
E, nesse mesmo dia, data em que, como se sabe, o Diabo anda solto,
meu Padrinho foi encontrado dentro do aposento alto da torre da

Capela, que ele mesmo fechara por dentro. Estava morto, assassinado,
ningu�m sabe como, nem por quem. Morrera como S�o Sebasti�o. �
verdade que n�o fora propriamente lechado, mas degolado. Entretanto,
como para cumprir a profecia, seu corpo fora todo esfaqueado; de
modo que, quando n�s o encontramos, ele estava �como um S�o
Sebasti�o asseteado�, para usar a express�o do genial poeta Pero Vaz de
Caminha, primeiro Poeta-escriv�o da Armada Brasileira.

E
FOLHETO XXIV
O Caso do Fil�sofo Sertanejo
sta que acabo de narrar foi a vers�o que sempre correu em minha
fam�lia sobre a estirpe dos Garcia-Barrettos. Isto, por�m, somente
at� 1907, ano em que nos apareceu outra, n�o menos fat�dica, por�m
ainda mais mon�rquica e honrosa.
N�s viv�amos, na �On�a Malhada�, sob os cuidados de um
preceptor, o Professor Clemente Har� de Ravasco Anv�rsio, �um
Fil�sofo, um bacharel, um historiador, um luminar, uma sumidade�,
como era voz corrente no Sert�o. Era ilho de pais inc�gnitos. Sabia-se
que era da Vila do Patu, no Rio Grande do Norte. Em menino, �era um
negrinho bonito, de cabelo bom�, deixado na porta do c�lebre latinista
sertanejo, Ant�nio Gomes de Arruda Barretto, em Brejo do Cruz,
Para�ba, perto da fronteira do Rio Grande do Norte. O humanista
Ant�nio Gomes tomara o menino e educara-o no seu famoso �Col�gio
Sete de Setembro�, onde Clemente foi aluno brilhante. Aproveitando os
fumos liberais do Segundo Imp�rio e de Dom Pedro II, o moleque
exposto fez os preparat�rios e ingressou, depois, na Faculdade de
Direito do Recife.
Dominava ent�o, na vida intelectual da Faculdade, a primeira
gera��o de juristas, il�sofos e soci�logos formados sob a inlu�ncia do
genial mulato sergipano, Tobias Barretto de Menezes, com sua famosa
Escola �teuto-sertaneja� de Filosoia e Literatura. Fora, portanto, �sob a
inlu�ncia de Sylvio Romero, Cl�vis Bevil�qua, Franklin T�vora, Martins
J�nior e Artur Orlando� que Clemente se formara, como ele mesmo
costumava nos dizer.
Depois de formado, Clemente voltou para o Sert�o do Rio
Grande do Norte, na Vila de Mossor�, onde Ant�nio Gomes reinstalara
seu Col�gio. No �Sete de Setembro�, Clemente foi professor-interno e
chefe-de-disciplina. Os alunos idolatravam-no, fascinados por suas
palavras novas e irreverentes, por suas maneiras e opini�es

desabusadas, parecidas com as de Tobias Barretto e, por isso mesmo,
dotadas de grande poder de atra��o, o que lhe trouxe, logo, um
ambiente de invejas e intrigas.
Foi a� que Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto fez uma viagem
a Mossor�, onde, numa cerim�nia, conheceu Clemente, orador do dia.
Tomando-se de admira��o por ele, e sabendo da situa��o di�cil em que
se achava o brilhante professor, convidou-o para vir morar na �On�a
Malhada�, como preceptor estipendiado, para mim e para Ar�sio. Mais
tarde, nascendo os outros ilhos de meu Padrinho, isto �, Silvestre, o
bastardo, e Sin�sio, Clemente seria o Professor ilustre e acatado de
todos. Enquanto nos dava suas aulas, �enterrado ali, numa posi��o
muito inferior a seus m�ritos�, ia ele concebendo, h� tempo, uma obra
ilos�ica e profunda, o Tratado de Filosoia do Penetral, destinada a
ultrapassar os Estudos Alem�es de Tobias Barretto e a revolucionar o
ambiente ilos�ico brasileiro. Na �On�a Malhada� a palavra de
Clemente era recebida como indiscut�vel. Dom Pedro Sebasti�o
admirava-o e gostava dele, vagamente e enigmaticamente, como era de
seu feitio. J� sua mulher, Dona Maria da Puriica��o, n�o suportava
Clemente, por causa do anticlericalismo, do ate�smo e de outras
ousadas posi��es que nosso Mestre contra�ra, em contato com a Escola
do Recife. Mas como ningu�m tinha estatura intelectual para se opor ao
Fil�sofo, ela engolia suas discord�ncias e o tratava � dist�ncia,
duramente mas cortesmente.

D
FOLHETO XXV
O Fidalgo dos Engenhos
urou essa posi��o soberana de Clemente at� 1906 ou 1907,
quando, entre n�s, apareceu outro personagem, tamb�m
important�ssimo em nossa hist�ria, o Doutor Samuel Wandernes. Este
n�o era negro, nem do Sert�o, nem do Rio Grande do Norte. Era branco
e idalgo, �um gentil-homem dos Engenhos pernambucanos�, como
costumava dizer. Segundo nos disse, seu Pai, Senhor arruinado do
Engenho �Guarup��, tornara-se corretor-de-a��car no Recife, onde
�vivia � larga, � moda idalga�. Ele, Samuel, �Morgado do Guarup��,
tamb�m formado na Faculdade de Direito, era, por�m, n�o um radical,
como Clemente, mas �um poeta do Sonho e pesquisador da Legenda�.
Nessa qualidade, planejara, tamb�m, um livro, uma obra-de-g�nio
intitulada O Rei e a Coroa de Esmeraldas. Para a feitura deste �livro de
tradi��o e brasilidade�, dedicara-se a �pesquisas geneal�gicas e
her�ldicas sobre as fam�lias idalgas de Pernambuco�. Topara ent�o
�com a estranha hist�ria da fam�lia Garcia-Barretto, que descobrira por
acaso, em velhos manuscritos, arquivados na S� e no Mosteiro de S�o
Bento, em Olinda�. A vers�o que ele apresentava dessa hist�ria era,
por�m, diferente da nossa, se bem que ainda �mais estranha e
legend�ria�. Como todos sabem, foi a 4 de Agosto de 1578 que os
Portugueses, cheiados por El-Rei Dom Sebasti�o, foram derrotados
pelos Mouros, comandados por El-Rei Molei-Moluco, no norte da �frica.
Foi uma batalha sangrenta, com morte de Reis e de muitos Fidalgos,
sendo que Dom Sebasti�o, �mo�o, casto e guerreiro como o Santo que
lhe deu nome, Cruzado e cavaleiro medieval extraviado na Renascen�a
ib�rica� � como dizia Samuel �, tinha sido dado como morto na
batalha. Essa morte deixara em Portugal e no Brasil �uma legenda de
sangue, viol�ncia, religi�o e saudade, t�pica da Ra�a�. E como, por causa
dela, Filipe II estabelecesse sobre n�s sua �autocracia teocr�tica�, as
aspira��es brasileiras e portuguesas pela Restaura��o se

corporiicaram no sebastianismo. Corria entre o Povo, primeiro em
Portugal e depois no Brasil, que Dom Sebasti�o n�o morrera:
encantara-se, e voltaria para o Sert�o, um dia, pelo Mar, numa Nau,
entre nevoeiros, para restaurar o Reino e instaurar deinitivamente a
felicidade do Povo.
Ora, tinha sido exatamente nos ins de 1578 que aportara a
Olinda aquele misterioso e jovem Fidalgo, Dom Sebasti�o Barretto,
tronco e origem da fam�lia Garcia-Barretto a que n�s pertenc�amos.
Dizia Samuel que, de acordo com suas pesquisas �hist�rico-po�ticas�,
esse Fidalgo era o pr�prio Rei Dom Sebasti�o, que escapara � morte na
batalha e, numa Nau, viera para o Brasil, inc�gnito, disposto a recuperar
aqui, �numa nova fase de ascese guerreira e m�stica, sua honra de
Soldado e suas perdidas esporas de Cavaleiro�. Esse � que seria o
motivo da const�ncia do nome de Sebasti�o em todos os ilhos var�es
da fam�lia Garcia-Barretto. Ele, Samuel, �atra�do pelo Sonho e pela
Legenda�, resolvera dedicar parte de sua vida �s pesquisas sobre aquela
que ele considerava, talvez, �a mais bela e her�ldica legenda familiar do
Nordeste�. Seu Pai era amigo do grande Delmiro Gouveia, o sertanejo e
sertanista cujos neg�cios de gado, couros e algod�o levavam prepostos
e traicantes desde o Sert�o do S�o Francisco de Alagoas at� a Bahia,
Pernambuco, Para�ba, Rio Grande do Norte e Cear�. Delmiro Gouveia,
que comprava gado e algod�o da �On�a Malhada�, dera ao naquele
tempo jovem Doutor Samuel a not�cia de que ainda sobrevivia, no
Sert�o do Cariri da Para�ba, a ilustre grei dos Garcia-Barrettos. Samuel,
fascinado, pediu-lhe uma recomenda��o para meu Padrinho e veio
bater na �On�a Malhada�, para estudar de perto e de vista aquela
fam�lia, � qual prometia dedicar boa parte de seu livro.
Veio e icou, �procurando, nos velhos pap�is da fam�lia e nos
arquivos empoeirados dos cart�rios sertanejos, tra�os e fatos que
comprovassem a linhagem real dos Garcia-Barrettos�. O tempo passava,
e n�o se encerravam as pesquisas. Passou um ano, passou outro.
Morreu Dona Maria da Puriica��o. Meu tio, vi�vo, casou com minha
irm� Joana. Nasceu Sin�sio e cresceu. Eu fui para o Semin�rio, deixei-o.
Meu irm�o Manuel casou-se. E nada! Samuel continuava na �On�a
Malhada�, mantido por meu Padrinho, a quem ele tratava por Dom e de
quem recebia �mesadas� semanais, tendo explicado que seu Pai, no

Recife, reporia essas import�ncias na irma de Delmiro Gouveia, na
conta de meu Padrinho.
Dom Pedro Sebasti�o, rico e poderoso, generoso e
desorganizado no seu trato com as pessoas, nunca apurou se esse
ajuste estava sendo cumprido. Mas quem icou desconiado e depois
indignado com isso foi Clemente. Desde o come�o, ele �farejara naquele
intruso, naquele elegante e bem-falante Poeta do sonho, um cavalheiro
de ind�stria que se introduzira na �On�a Malhada� para ilaquear a boaf�
de certa pessoa rica e poderosa, pretendendo iludir essa pessoa com
patranhas de idalguia para melhor explorar a situa��o�. O rancor de
Clemente era maior, ainda, porque Samuel levava uma grande vantagem
sobre ele: em vez de ser ateu e anticlerical, da escola de Tobias Barretto,
era um fascinado pelo genial escritor paraibano Carlos Dias Fernandes.
Segundo Samuel, Carlos Dias Fernandes era, no Nordeste, �o �nico
homem capaz de escrever, ao mesmo tempo, uma Prosa her�ldica e
versos de sonho e joiaria, manejando tanto a C�tara da poesia l�rica,
quanto o C�lamo do prosador e a Tiorba da poesia �pica� (frase que,
pela primeira vez, me apresentou a esses instrumentos, indispens�veis
� bagagem de qualquer escritor de g�nio). O melhor, por�m, � que
Carlos Dias Fernandes, al�m de tudo isso, era ainda �o corajoso
defensor da F� cat�lica� no Brasil, um homem que tinha aud�cia e
coragem para pregar um banho de sangue, uma �cruzada�, atrav�s da
qual os Cat�licos brasileiros deveriam defender o direito do Brasil � F�,
mesmo � custa de �aud�cia e viol�ncia, de direitos aniquilados e de
torrentes de sangue derramado�.
Assim, com essas ideias ortodoxas e idalgas de Cruzado, era
muito mais f�cil a Samuel do que a Clemente ser agrad�vel ao casal de
Fidalgos sertanejos em cuja casa todos n�s viv�amos, ou como parentes,
ou como agregados. Clemente, sendo negro e disc�pulo do mulato
Tobias Barretto, escarnecia de tudo quanto era idalguia, fosse daqui,
fosse da Espanha. Mas, apesar da desaven�a pendente entre os dois, ele
e Samuel pressentiam que meu Pai, como parente, era um rival
perigoso na prote��o de meu Padrinho. Por isso, aliavam-se contra ele,
numa guerra que, depois da morte do velho, terminei herdando. Meu
Pai, al�m de raizeiro e autor do Almanaque do Cariri, que ele publicava
todo ano e que eu herdei tamb�m, era um genealogista de m�rito. Sabia
a cr�nica de todas as fam�lias do Cariri e proclamava, empaiado, que

n�s, Quadernas, descend�amos do Rei de Portugal, Dom Dinis, O
Lavrador. Clemente ridicularizava ferozmente essa descend�ncia real
dos Quadernas, e n�o se detinha nem diante da Fidalguia poderosa e
armada dos Garcia-Barrettos. Repetia constantemente o dito de Tobias
Barretto, segundo quem as epidemias que mais grassavam no Brasil
eram o papo em Minas Gerais e a idalguia no Nordeste. Samuel
juntava-se a Clemente para escarnecer de meu Pai, em quem ele
colocou o apelido de �O Fidalgote Raizeiro�. Mas, n�o sendo um
jacobino, como Clemente, parava a� e fazia suas distin��es, elevando �s
alturas �o sangue real dos Garcia-Barrettos, descendentes de Dom
Sebasti�o�. S� tratava meu Padrinho por Dom Pedro Sebasti�o,
explicando que o t�tulo de Dom era, a princ�pio, privativo dos Pr�ncipes
de sangue, tendo sido, depois, estendido aos �ricos-homens de pend�o e
caldeira�. De modo que foi com ele que aprendi a usar esse tratamento,
sem o qual, depois, n�o podia aceitar ouvir nem o nome de meu
Padrinho nem o meu. � verdade que, depois de nomeado Promotor,
Samuel come�ou a botar as unhas de fora, revelando seu verdadeiro
pensamento, o de que �a Fidalguia sertaneja era b�rbara, bastarda e
corrompida em compara��o com a dos Engenhos pernambucanos, a
�nica verdadeira do Brasil�. No princ�pio, por�m, enquanto vivia, na
�On�a Malhada�, das mesadas de meu Padrinho, elogiava
indistintamente toda a Aristocracia nordestina e muito especialmente a
fam�lia Garcia-Barretto.
Dom Pedro Sebasti�o e sua mulher, cujas fam�lias tinham sido,
sempre, do velho Partido Liberal, do tempo do Imp�rio, tinham
permanecido i�is � Monarquia, de modo que n�o podiam deixar de se
impressionar um pouco com as gogas de Samuel, o qual nos mostrava,
nos mapas da Hist�ria da Civiliza��o de Oliveira Lima, que a �On�a
Malhada� era mais ou menos equivalente, em tamanho e import�ncia, a
Reinos como a D�rida, na Gr�cia, ou as Ast�rias, na Espanha. Assim,
pouco a pouco, metia na cabe�a de todos n�s aquilo que depois
terminei entendendo e consagrando � que Dom Pedro Sebasti�o era
uma esp�cie de Rei do Cariri, ilho de Bar�o mas subido ao Trono por
direito de sangue e de fato.
Foi assim que Samuel se irmou na �On�a Malhada� e nunca mais
saiu, at� a morte de meu Padrinho, em 1930. Ao mesmo tempo,
devagarinho, foi se insinuando e terminou conseguindo tomar uma

parte do lugar de Clemente junto a n�s. Suas aulas eram raras e
desordenadas, constituindo-se, quase que s�, da leitura, em voz alta, de
Poetas de sua predile��o, principalmente os tradicionalistas e patriotas.
Clemente amaldi�oava �a inlu�ncia perniciosa daquele parasita b�bado
da rea��o cat�lica sobre a juventude�. � que, aos s�bados, Samuel fugia
para a Vila, onde se tornara conhecido e admirado nas rodas
intelectuais, e, l�, tomava carraspanas terr�veis, que o deixavam
prostrado at� a noite do domingo. Mas como, com isso, n�o fazia mal a
ningu�m, meu Padrinho fechava os olhos tamb�m a essa fraqueza.
Tais foram os motivos de todos n�s, intelectuais mais mo�os de
Tapero�, termos sido educados entre a inlu�ncia contradit�ria, mas
fecunda, desses dois grandes homens. Eu passei por v�rias fases em
minhas rela��es com eles. Primeiro, foi a estreita depend�ncia de aluno,
quando menino e adolescente, na �On�a Malhada�. Depois que passei ao
Semin�rio, praticamente me igualei aos dois quanto � idade, porque me
tornei adulto e eles ainda n�o eram velhos. Foi por�m a� que entrei por
uma fase negra de decad�ncia, na qual, sem terras e sem emprego, vivi
dias duros, na Vila. A� os dois, homens importantes, um Promotor, o
outro Advogado, deram-me ao desprezo: s� falavam comigo quando
n�o havia outro jeito, e assim mesmo com uma condescend�ncia t�o
superior que eu icava esmagado. Felizmente, comecei a subir de novo
na vida, por inlu�ncia de meu Padrinho, sendo nomeado Bibliotec�rio,
Tabeli�o e, por tabela, Coletor. Morreu Tia Filipa e eu herdei, dela,
quatro casar�es pegados, na Rua Grande. Desses quatro, cedi dois, um a
cada um dos meus dois Mestres, para que eles ali morassem
gratuitamente. A�, a gratid�o matou quase todo o desprezo e come�ou o
per�odo �ureo das nossas rela��es, per�odo em que, apesar de uma ou
outra alinetada, fui erguido a uma altura, sen�o igual, pelo menos
pr�xima da deles. E foi assim que tudo foi se juntando e me preparando
para eu ser, naquele dia 1� de Junho de 1935, o �nico homem talvez
realmente apto, na Vila, a entender, em toda a sua import�ncia, o que
signiicava a chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco a Tapero�.

N
FOLHETO XXVI
O Caso dos Tr�s Emparedados
aquele dia, enquanto a Cavalgada era surpreendida pela
emboscada do Capit�o Ludugero, n�o muito longe do local do
combate viajavam tr�s pessoas muito importantes em nossa hist�ria,
isto �, eu, Clemente e Samuel. Quando menino, um dos �romances� que
mais me impressionavam era a Hist�ria do Valente Vilela, no qual havia
a seguinte estrofe:
�Sai o Alferes vagando
pelos campos do Sert�o.
Adiante, encontra um rapaz
e lhe d� voz de pris�o:
� Voc� me mostra o Vilela,
quer voc� queira, quer n�o!�
Depois que decorei esse �romance�, os campos do Sert�o se
tornaram sagrados para mim; e, toda vez que eu montava no meu
cavalo �Pedra-Lispe� e sa�a pelas estradas ou pelos matos, mesmo que
n�o fosse praticar nenhum feito guerreiro, como os de Vilela, sentia-me
como um Cavaleiro, um her�i errante pelos campos do Sert�o. Era essa
sensa��o que eu vinha experimentando ali, agora, ao lado daqueles dois
grandes homens, o Fil�sofo negro montado em sua �gua vermelha,
�Coluna�, e o Poeta branco em seu c�lebre corcel negro, �Temer�rio�.
Samuel � de estatura m�dia, ino, alvo, corado, um pouco
sardento e vermelho, de olhos azuis e cabelo castanho-claro, cortado �
escovinha, porque esse corte o rejuvenesce, escondendo um pouco os
muitos ios brancos que o andam encanecendo. Clemente chama-o,
desdenhosamente, de Samuel, O Brancoso, e o Poeta inge n�o dar
import�ncia a essas picuinhas, dizendo que est� acima do rid�culo, por

pertencer � antiga linhagem dos Wandernes, ou dos Wan d�Ernes, como
ele prefere que se escreva. Clemente � uma igura alta, magra e forte de
Negro, que daria um excelente Rei do meu �Reisado Sudan�s�, o Auto de
Guerreiros que mantenho, aqui na Vila. � um Negro meio-sangue de
Tapuia, de modo que sua pele parece um tijolo negro-castanho, que
tivesse se cozido demais. Seu cabelo � corredio, sem um io branco,
apesar de sua idade que j� anda t�o longe quanto a de Samuel. Tem
fei��es retas, o branco dos olhos bem branco e a �ris amarela, dando,
assim, um ar de On�a-Tigre ou Pantera negra do Sert�o, �um ar meio
berbere de hindu�, como ele costuma dizer em seus momentos mais
exaltados de orgulho racial. Corria, na Vila, que ele era ilho de uma
solteirona, ilha de fazendeiro, seduzida por um Almocreve negro que
tinha olho nas terras da mo�a. Os ilhos homens do fazendeiro teriam
conseguido recuperar a irm� raptada, castrando o Almocreve atrevido,
que deu para engordar, para icar sorridente, tranquilo e de fala ina.
Quanto ao menino, fora exposto, como se sabe, na porta de Ant�nio
Gomes de Arruda Barretto. Clemente tinha �dio a esses boatos.
Recusava, indignado, a hip�tese de ter, em suas veias, �o sangue
brancoso dos traidores do Brasil�. Dizia que sua estatura e sua cor
vinham era de sua descend�ncia �das tribos sudanesas vatuses, e n�o
de sangue branco nenhum de Fazendeiro safado nenhum�, assim como
seu cabelo estirado era �puramente Tapuia�, sangue de que tamb�m se
orgulha muito. Samuel, por�m, insiste em refer�ncias desairosas � cor
do Fil�sofo. Chama-o de Clemente, O Cafre, ou de Clemente, O
Gaforinha, vivendo os dois nessas turras e terminando por se habituar a
elas de tal modo que, no fundo, n�o podem mais passar um sem o outro.
Est�vamos perto do meio-dia. Samuel vinha de roupa cinzenta,
com um apara-p� branco sobre ela. Trazia botas de camur�a amarelada.
Na cara, �culos azuis, para proteger os olhos �da b�rbara claridade
sertaneja�. Tamb�m para evitar, � sua pele delicada, as �speras
queimaduras do nosso Sol, trazia � cabe�a um capacete de corti�a,
branco, e tudo isso lhe dava um aspecto assustador, at� assombrat�cio
para quem n�o o conhecesse. Clemente trazia cal�a, colete e palet� de
pano c�qui, com rijos sapat�es de vaqueiro, feitos �no barato� para ele,
por um sapateiro da rua, Seu Gondim. Eu, sertanejo como Clemente, me
aproximava mais dele do que de Samuel, quanto �s roupas. Sempre
gostei muito de usar c�qui. Mas em vez da cal�a, palet� e colete

tradicionais de Clemente, eu usava, � cangaceira, apenas cal�a e camisa
�gandola�, alpercatas-de-rabicho e chap�u de couro. Sendo eu �moreno
carregado�, os dois me chamavam, nos dias comuns, de Quaderna, O
Mameluco, promovendo-me a Quaderna, O Mouro, nos dias bons, e
rebaixando-me, nos momentos de raiva, a Quaderna, O Cabra, ou
Quaderna, O Castanho. Preferiam, mesmo, este �ltimo nome que, dando
ideia da cor de minha pele, tinha a vantagem, sendo �castanho� um tipo
de cavalo, de �indicar de que faculdades intelectuais o dono era dotado�.
Minhas roupas acangaceiradas valiam-me os maiores esc�rnios
por parte de Samuel. Diz ele que minha roupa c�qui me faz parecer �um
corumba, vigia de Senhor de Engenho�. Quando me volto para Clemente,
em busca de solidariedade sertaneja, sou mal recebido. O Fil�sofo acha
que h� �uma certa falta de compostura e um certo ingimento nessas
fantasias acangaceiradas�. Diz que seu pr�prio terno, usado
formalmente com colete e gravata, este sim, � �sertanejo e popular pelo
esp�rito, e n�o pela forma�, pois o ideal � �elevar o Povo at� n�s, e n�o
rebaixar-nos n�s at� ele�. Desse modo, entre Samuel e Clemente, eu
ocupo em tudo uma posi��o intermedi�ria. Moreno, de sobrancelhas
negras e cerradas, �com uma cara que parece talhada em pedra ou
madeira, a foice, enx� e machado�, como diz Samuel, descendo, ainda
por cima, �de mamelucos e almocreves sertanejos�, isto �, da linhagem
real de Dom Jo�o Ferreira-Quaderna, da qual ambos escarnecem, n�o
reconhecendo meu bisav� como Rei. Por esse motivo, ainda segundo o
elegante e perfumado Samuel, eu tresando �a bode, a tr�s l�guas de
dist�ncia�.
Em nossas rela��es com as mulheres, a situa��o se repetia.
Samuel, solteiro, n�o tinha grande interesse pelo assunto. Mantinha
uma esp�cie de amizade plat�nica com uma senhora intelectual da
nossa sociedade, Dona Carmem Gutierrez Torres Martins. Dizia-nos
que, no Recife, tivera um caso de amor com uma Princesa da Fam�lia
Imperial Brasileira, a falsa, a de Bragan�a. Os dois, por�m, viram que
n�o havia futuro poss�vel para esse amor, e �rompendo la�os que nunca
haviam chegado a se atar�, juraram, ambos, idelidade rec�proca, sendo
por isso que vivia o Poeta, aqui, �como Cam�es, apaixonado sem
esperan�a por uma Princesa e exilado nesta b�rbara �frica brasileira
que � o Sert�o�.

Quanto a Clemente, era casado com uma mulher albina, Dona
Iolanda G�zia. Viviam separados: com suas ideias avan�adas, o Fil�sofo
explicara a Dona Iolanda que a vida em comum dos casais � um
preconceito, que, pela rotina, destr�i as verdadeiras paix�es. Samuel
irritava-o, dizendo que a atra��o que ele sentia pela mulher, albina, era
de fundo racial: �o carneiro preto e plebeu sentia o desejo obscuro pela
cabra loura e branca, situada, para ele, no lugar das coisas inacess�veis�.
Por isso � que s� uma mulher completamente branca, de cabelos
amarelos, de pestanas amarelas e de pelos amarelos seria capaz de
atra�-lo. Fosse ou n�o fosse, Clemente fazia uma corte curiosa a Dona
Iolanda, passando a cavalo diante da porta dela e tirando-lhe o chap�u,
em gestos que eram comentados por toda a rua. Diziam as m�s-l�nguas
que aquilo eram sinais combinados e que � noite �o cavalo preto saltava
o muro e ia montar em cima da besta a�a�.
Eu, n�o era nem t�o solteiro quanto Samuel, nem t�o casado
quanto Clemente. Era amigado, amancebado com uma mulher chamada
Maria Saira, que diziam, na rua, ser possessa do Dem�nio. Era casada
com um homem muito mais velho do que ela, uma esp�cie de �santo
homem�, Pedro Beato, que nunca tocara em seu corpo. Maria Saira,
mulher de verdes olhos insond�veis, mulher de abismos, tinha o
cond�o, para mim precioso, de incendiar minha virilidade, quase
inteiramente apagada outrora pelo ch� de �cardina� que me vi obrigado
a tomar �para abrir a cabe�a e ter sucesso nos estudos do Semin�rio�.
Da� o imp�rio que tinha sobre mim, naquele tempo inteiramente
subjugado por ela.
* * *
�ramos n�s, portanto, que v�nhamos por ali agora, perdidos,
naquele dia que iria subverter totalmente nossas vidas. T�nhamos sa�do
cedo, da Vila, para visitar a �Ilumiara Ja�na�, onde recentemente tinham
se descoberto �v�rias inscri��es petrogr�icas e desenhos feitos pelos
Tapuias nas paredes de pedra�, como nos explicara Clemente.
A princ�pio, ali�s, nenhum de n�s notou que and�vamos
extraviados. Nossa conversa vinha nos empolgando de tal maneira, que
deix�vamos nossos cavalos andarem por onde bem entendessem. Na
ida para a Ilumiara, t�nhamos parado numa Capela que um Vaqueiro

descobrira h� poucos anos, ao perseguir uma r�s que se desgarrara. Era
de 1710, data inscrita em sua fachada. Paramos no p�tio, retirei as
traves que encostavam a porta e fomos para a sacristia, onde Samuel
desejava mostrar-nos tr�s quadros que havia l�, um retrato do Rei Dom
Afonso VI, pendurado sobre a pequena c�moda de amarelo e ladeado
por dois outros, que Samuel explicou o que representavam: o Escudo
portugu�s das Quinas e a Esfera Armilar de Ouro, ins�gnia do
Principado do Brasil. Samuel disse que tais quadros �n�o podiam se
comparar com os das capelas da Zona da Mata�. Mas, ainda assim, eram
de origem Portuguesa e podiam �abrir o caminho ib�rico que a Arte
brasileira deve retomar�. Depois, perguntou-me:
� O que � que este retrato de Dom Afonso VI lhe sugere?
� Me sugere um Rei de Ouro, parecido com o do Baralho! �
respondi. � Primeiro, o Rei est� de armadura, como os reis do Baralho.
Depois, o quadro � cheio de vermelhos e dourados, como as cartas.
Al�m disso, olhe a�: a marca do naipe �Ouros� est� pintada dos dois
lados do Rei!
� Isso a� s�o os puxadores de ouro da cortina vermelha que est�
na parte superior do quadro, imbecil! � falou Samuel.
Os dois escarneceram um bocado de mim, por causa disso. De
qualquer modo, quando voltei para a rua, mandei meu irm�o Taparica
executar, na madeira, uma c�pia do retrato do Rei e dos �bras�es
armoriais e idalgos� que o ladeavam. Samuel icou indignado com �a
interpreta��o grosseira e sertaneja� que Taparica izera. Meu irm�o
inclusive colocara em Dom Afonso VI uma barbicha e um bigode que
n�o existiam no original: veriicara que, sem isso, o Rei Dom Afonso
parecia uma mulher, �uma madre-vig�ria mo�a e donzela, de olhos
tristes�. Contei isso a Samuel que me disse, espantado:
� Se seu irm�o vem com essas chulices, � porque ouviu falar no
que aconteceu com esse desventurado Rei! Dom Afonso VI, coitado, era
impotente! Casou-se com uma Princesa da Casa de Saboia que, depois
de provar a impot�ncia dele, anulou seu casamento. O Infante Dom
Pedro, irm�o do Rei, aprisionou Dom Afonso, casou-se com a Rainha e
subiu, assim, ao trono, com o nome de Dom Pedro II!
� Pois foi o primeiro caso de um Pr�ncipe subir ao trono pelo
simples fato de ser capaz de subir o pau! � comentei.

Mas isso foi depois. Naquele dia, quando chegamos � Ilumiara,
houve forte discuss�o entre os dois, diante das pinturas dos Tapuias.
Usavam-se, nelas, duas cores, o negro e o vermelho, que, sobre o
amarelado da pedra, davam um total de tr�s, o que n�o era comum.
Samuel irritou-se diante daquelas pinturas �grosseiras,
desproporcionadas e pueris�. Clemente sustentava, ao contr�rio, que
aquele sim, deveria ser �o ponto de partida onc�stico e popular da Arte
brasileira�. Mostrou-me uma mo�a, com as pernas e os bra�os abertos,
parecendo uma Jia, ladeada por dois Veados e cercada de garatujas.
Destas, quatro me pareceram logo as marcas do naipe �Paus�, e duas as
de �Espadas�. Clemente refugou isso e explicou:
� Essas iguras, Quaderna, s�o s�mbolos sexuais masculinos e
femininos, s�o s�mbolos f�licos! O resto, s�o espirais, setas e essa
esp�cie de cruz torta, sinais cabal�sticos muito comuns na Arte tapuia!
� Pois quando eu chegar na rua, vou pedir a meu irm�o para
fazer uma c�pia dessa �Dama de Paus Tapuia�! � disse eu. � Depois,
caso a Dama tapuia da Ilumiara com o Rei de Ouro ib�rico, e vou ver se
o casamento � mais fecundo do que o primeiro que ele teve com a
princesa da Casa de Saboia!
* * *
Agora, por�m, de volta, o que v�nhamos discutindo eram, j�,
teses liter�rias, important�ssimas porque as conclus�es seriam
adotadas oicialmente pelo sodal�cio sertanejo que t�nhamos fundado
em Tapero�, a �Academia de Letras dos Emparedados do Sert�o da
Para�ba�. Atrav�s dessa Academia, pretend�amos que Tapero�
mantivesse, orgulhosamente, o posto que sempre ocupara, desde o
come�o do s�culo, como um dos centros mais lorescentes da
intelectualidade sertaneja da Para�ba. Para mostrar que n�o exagero,
basta lembrar que em nossa constela��o de astros liter�rios fulguram,
entre outros, os nomes de Samuel Sim�es, Epaminondas C�mara, Raul
Machado, Euclydes Villar, Celso Mariz e Raymundo Coentro. Samuel e
Clemente eram de fora: mas tinham se radicado h� tanto tempo entre
n�s que j� eram considerados da terra, e brilhavam de modo singular
nessa pl�iade zodiacal e liter�ria de Tapero�, entre cujos astros um,
pelo menos, iria conquistar renome nacional, o Poeta e jurisconsulto

Raul Machado, atualmente morando no Rio, onde, para honra sua,
nossa e da Para�ba, est� fazendo parte do Tribunal de Seguran�a
Nacional, tribunal de exce��o institu�do pelo golpe de Estado de 10 de
Novembro do ano passado e encarregado de dar cor jur�dica �
repress�o por ele instaurada.
* * *
O caso do genial Raul Machado bem demonstra como a
Literatura pode ajudar uma pessoa a subir em sua carreira: porque foi
com seus admir�veis sonetos que ele escalou, de degrau em degrau, a
escada da Magistratura, chegando at� esse posto, o grau mais elevado
da nobreza-de-toga brasileira. O exemplo dele subira � cabe�a de todos
n�s. Inclusive � minha, apesar de existir um obst�culo terr�vel em
minha carreira � o fato de n�o ter t�tulo de Doutor, preferivelmente de
Bacharel em Direito. Quando da nossa ru�na econ�mica, n�s, ilhos
leg�timos de meu Pai, vimo-nos em situa��o di�cil. Primeiro, nenhum
de n�s queria decair ao ponto de caixeiro ou empregado de
comerciantes, burgueses mesquinhos a quem servir seria uma desonra
para simples ilhos de Fidalgos: quanto mais para n�s, descendentes de
Dom Jo�o II, O Execr�vel! Al�m disso, a terra que, segundo o
genealogista Carlos Xavier Paes Barretto, � indissoluvelmente ligada �
Fidalguia, em nosso caso n�o valia mais um vint�m, retalhada entre os
bastardos de meu Pai!

ESCUDO DO PRINCIPADO DO BRASIL QUE LADEAVA O REI.

Sa�mos, ent�o, por portas travessas. Manuel, o mais velho, foi ser
Vaqueiro, no Sert�o do Sabugi. Francisco, tendo entrado na �Guerra de
Doze�, tomou gosto pela vida errante e tornou-se �cabra-do-rile�.
Ant�nio veriicou pra�a na Pol�cia, indo assim fazer companhia a
Francisco como idalgo-de-espada. E como os Vaqueiros s�o pequenos-
idalgos, a servi�o dos �ricos-homens� que s�o os Fazendeiros, estavam
agora, todos tr�s, com seus problemas razoavelmente solucionados.
Quanto a mim, incapaz de cavalarias, meu Pai me destinou � carreira
eclesi�stica, que, podendo me levar at� o posto de Bispo, poderia me
tornar Pr�ncipe da Igreja, dignidade quase t�o alta quanto a dos Reis,
meus antepassados. Por isso, fui enviado ao vetusto Semin�rio da
Para�ba, onde entrei, j� taludo, aos 21 anos, em 1918, sendo expulso em
1923. Mas em 1924, com a ascens�o do prest�gio pol�tico de meu
Padrinho, terminei nomeado Bibliotec�rio, Tabeli�o e Coletor, o que me
proporcionou um �cio remunerado de idalgo-de-toga, ainda
insuiciente, por�m j� mais consent�neo com meu sangue real.
Apesar de todas essas grandezas, por�m, Samuel e Clemente
continuavam a me desprezar um pouco. Diziam que, apesar das li��es
que me davam, minha Literatura �era a mais misturada e de mau gosto
do mundo�. N�o me perdoavam a inlu�ncia que eu continuava a
receber dos �folhetos� e da conviv�ncia com �b�bados, Cantadores e
outros valdevinos�. Reclamavam contra os romances-de-safadeza do
Visconde de Montalv�o. E, mais do que tudo, contra o culto que meu Pai
tinha a Jos� de Alencar e que passara a mim: eu, tendo lido, aos quinze
anos, os hero�smos e cavalarias de Peri e Arnaldo Louredo, assim como
as safadezas de alcova de Luc�ola, iquei fascinado e me tornei, tamb�m,
devoto do autor de O Sertanejo, a quem Clemente e Samuel
consideravam �um autor de segunda ordem�.
* * *

RETRATO DE DOM AFONSO VI, QUE SE ENCONTRAVA NA
SACRISTIA. TAPARICA ACRESCENTOU O BIGODE E A BARBICHA,
POR MOTIVOS DE CLAREZA VIRIL. VEEM-SE OS DOIS PUXADORES
DE CORTINA QUE ME LEVARAM A VER, NESSA FIGURA, UM REI
DE OURO.

Ocorreram, por�m, alguns fatos com os quais n�o contavam
meus Mestres e que terminaram apagando aquela mancha infamante
de n�o ser Doutor, minha grande desvantagem inicial perante eles.
Ocorre que nosso conhecido Euclydes Villar emigrou para Campina
Grande, fundando, ali, o Almanaque de Campina Grande. Al�m de
fot�grafo, ele era charadista, mestre em logogrifos e enigmas-em-verso.
Com ele e com meu Pai eu tinha me iniciado nesta nobre Arte,
escarnecida por Clemente e Samuel. Mas foram a charada e o logogrifo
que me abriram as portas do Almanaque de Campina Grande e, atrav�s
dele, as de outras publica��es cong�neres, entre as quais a mais
importante era o Almanaque Charad�stico e Liter�rio Luso-Brasileiro,
com seu suplemento anual, o �dipo. Depois de me tornar colaborador
deste livro c�lebre, passei a ser mais respeitado, apesar da campanha
de picuinhas que Samuel e Clemente ainda me moviam, morrendo de
inveja e despeito, por dentro.
Eu, por�m, n�o dormia sobre os louros. Havia, em nossa Vila, um
seman�rio governista, a Gazeta de Tapero�, pertencente ao
Comendador Bas�lio Monteiro. Usando meu prest�gio de colaborador do
Almanaque, convenci o Comendador a introduzir, na Gazeta, uma
p�gina liter�ria, social, charad�stica e astrol�gica, que passei a dirigir,
come�ando, logo, a ser discretamente cortejado por aqueles que
queriam publicar seus artigos, sonetos e redondilhas. Foi ent�o que
herdei os casar�es, e Clemente e Samuel, meus inquilinos, acabaram
deinitivamente com a campanha.
O momento estava maduro para obrigar a sorte a dar uma
guinada deinitiva em meu favor. Acontece que, lendo o Almanaque, eu
observara que, na carreira dos Poetas consagrados e oiciais do Brasil, o
importante, mesmo, era entrar para alguma Academia. Era o t�tulo de
Acad�mico que abria realmente a porta para as dignidades,
transformadas, depois, em empregos rendosos, � altura dos nossos
m�ritos.
Tentei, ent�o, por todos os meios poss�veis, entrar no sodal�cio
mais prestigioso da Para�ba, o �Instituto Hist�rico e Geogr�ico
Paraibano�. Sete vezes escrevi ao Instituto, propondo meu nome, e sete

vezes fui recusado, tal a m� vontade das institui��es da Capital contra a
intelectualidade sertaneja!
Eu planejara tudo em segredo, e escondi cuidadosamente essas
humilha��es sucessivas que tinham ferido meu orgulho. Julgava que
minhas tentativas eram ignoradas por Clemente e Samuel, de quem eu
as escondera com especial cuidado, temendo que, despertados por
minha ideia, eles seguissem o caminho e fossem aceitos. Um dia, por�m,
estando os dois fora da rua, numa dilig�ncia, fui esperar, no Correio, a
mala das quintas-feiras, e recebi a correspond�ncia deles: ningu�m
pode imaginar meu sobressalto, vendo, entre os pacotes, uma carta
para cada um, ambas com o timbre do �Instituto�!
Corri para casa, botei �gua para ferver, descolei os envelopes
com o vapor e violei as duas cartas, respirando aliviado: eram recusas,
iguais �s minhas! N�o havia d�vida: os dois miser�veis tinham me
espionado, descoberto meu plano, e tentado, trai�oeiramente, me
prejudicar, passando em minha frente!

C
FOLHETO XXVII
A Academia e o G�nio Brasileiro Desconhecido
olei de novo, cuidadosamente, os envelopes e, tr�s dias depois,
procurei meus dois rivais e Mestres. Fingi que ignorava tudo e falei
assim:
� Olhem, voc�s dois a�! De uns tempos para c� tive uma ideia
que poderia trazer vantagens important�ssimas para n�s: seria
entrarmos, n�s tr�s, para o �Instituto Hist�rico e Geogr�ico Paraibano�!
Os dois me olharam, tensos, mas nada disseram e eu continuei:
� Com meu esp�rito de sacri�cio, resolvi tentar minha entrada
na frente, para desbravar o caminho, mas fui recusado! Estou
comunicando isso, porque, como voc�s dois s�o Doutores, talvez o
caminho que devamos seguir seja o oposto: voc�s se candidatariam e,
depois de aceitos, patrocinariam minha candidatura!
S� se vendo o desprezo com que Samuel comentou para
Clemente:
� Ah, era o que faltava, Clemente! Voc� ouviu? Rebaixarmo-nos
desse jeito, dando, servilmente, ao Sr. Instituto, a honra de solicitar-lhe
que nos aceite entre seus ilustres membros! Era o que faltava!
� Era o que faltava! � ecoou Clemente com o mesmo riso falso.
� Quaderna, se o Instituto nos quer, eles que nos aclamem por
unanimidade, sem iniciativa nossa! E veja l�: n�s concordaremos ou
n�o, depois de pesar as vantagens e desvantagens que existem em ser
membro do Instituto!
Fingi ignorar as recusas que eles tinham levado na cara e falei:
� Est� bem, calma! Eu n�o conhecia essas disposi��es, t�o
honrosas para voc�s, de manter o orgulho dos intelectuais do Sert�o!
Mas tenho outra ideia que pode nos levar longe, dando um golpe de
morte no prest�gio e na pretens�o desses enfatuados da Capital!
� O que �? � indagou Samuel.

� A Para�ba j� tem Instituto Hist�rico, mas ainda n�o tem
Academia de Letras: seria o caso, ent�o, de fundarmos n�s, aqui, nossa
pr�pria Academia! Mesmo que, depois, eles venham fundar outra, na
Capital, a nossa ser� mais antiga e, por isso, mais tradicional e
vener�vel!
Os olhos dos dois reluziram imediatamente e imediatamente
apagaram a centelha ambiciosa, assumindo um ar morti�o e astuto de
descaso aparente.
� �, talvez n�o seja m� a ideia! � falou, ainal, Clemente. � Mas
que nome teria essa pretensa e poss�vel Academia?
� Em Vit�ria de Santo Ant�o, uma das zonas mais idalgas de
Pernambuco, terra minha, existe uma �Academia dos Supersticiosos�!
� lembrou Samuel.
� N�o presta! � protestou Clemente. � N�o sou supersticioso
e o nome cheira a rea��o clerical! Sugiro �Academia dos Progressistas�,
ou �dos Esclarecidos�, uma coisa assim!
� N�o aceito! � encrespou-se Samuel. � J� disse n�o sei
quantas vezes que n�o sou progressista e que tenho a maior das honras
em me declarar cat�lico, reacion�rio e obscurantista!
Para acabar com a briga, intervim:
� Olhem, esse neg�cio de Academia ou vai por acordo ou n�o
vai de jeito nenhum! Sugiro que nosso sodal�cio se chame �Academia de
Letras dos Emparedados de Tapero��!
� �Emparedados�? Emparedados, por qu�? � indagou Samuel,
intrigado.
� � o �nico nome em torno do qual podemos nos unir. Eu sou
�emparedado� porque, segundo voc�s, vivo assim, murado entre o
enigma e o logogrifo. Clemente, porque vive �agrilhoado entre as
paredes do grifo do mundo, entre os elos de ferro do preconceito e da
injusti�a social�. Quanto a Samuel, �anjo deca�do nas paredes de pedra
da pris�o terrena�, � tamb�m emparedado, porque vive aqui, �exilado
neste b�rbaro Deserto africano e asi�tico que � o Sert�o�. Finalmente,
em conjunto, n�s tr�s somos �emparedados� porque, com as andan�as e
extravios pol�ticos que o Brasil vai vivendo, n�s todos temos cara de
quem, com culpa ou sem culpa, vai ser encostado � parede e fuzilado!
Os dois me olharam, impressionados. Depois, Samuel falou:

� Voc� tem certa raz�o, Quaderna, se bem que ignore o
verdadeiro sentido das nossas frases, que est� repetindo. � o que se
chama �a verdade em boca de louco�. Mas concordo com o nome de
�Emparedados�, para a nossa Academia!
� Eu tamb�m! � concordou Clemente. � Mas por que
restringir nosso raio de inlu�ncia a Tapero�? Vamos ampli�-lo!
Assumamos, antes que algum aventureiro lance m�o dele, o t�tulo de
�Academia de Letras dos Emparedados do Sert�o do Cariri�!
� E por que n�o �Academia de Letras dos Emparedados do
Sert�o da Para�ba�? � avan�ou Samuel. � N�o � somente o Cariri, n�o:
toda a �rea sertaneja do Estado est� desocupada! Vamos preench�-la
inteira! Mesmo que, depois, fundem Academia na Capital, ela n�o ser�,
nunca, a Academia total e �nica da Para�ba, mas somente a Academia do
Brejo e do Litoral, isto num Estado onde o Sert�o � a zona de maior
import�ncia!
* * *
Durante uns momentos, icamos nos entreolhando em sil�ncio,
deslumbrados, ao ver como � que uma Academia nascia assim, num
repente, e no mesmo instante crescia a esse ponto no espa�o e no
tempo, ocupando o Sert�o inteiro! Respirei fundo, e foi profundamente
emocionado que disse:
� Est� ent�o fundada, a partir deste momento hist�rico, a nossa
querida, vener�vel e tradicional �Academia de Letras dos Emparedados
do Sert�o da Para�ba�! � preciso, agora, escolher seu primeiro
Presidente!
Samuel n�o deu tempo de ningu�m nem ao menos tomar f�lego:
� Sinceramente, para o bem da nossa Academia, acho que eu �
que devo ser o Presidente! Tenho rela��es na Para�ba, com Carlos Dias
Fernandes; no Recife, com o grupo da revista Fronteira; e at� em S�o
Paulo, no �Movimento Anta�, j� tendo at� recebido um am�vel cart�o de
Pl�nio Salgado, Chefe dos nacionalistas brasileiros de Direita! Lan�o
minha candidatura!
Como eu previa, Clemente estava atento, e protestou:
� Samuel, o Presidente de institui��es como esta, � sempre um
estudioso s�rio, um etn�logo, um il�sofo, um soci�logo, um

jurisconsulto! Combaterei seu nome, lan�ando minha pr�pria
candidatura! Fa�o isso por puro esp�rito de sacri�cio, porque,
pessoalmente para mim, esse, de Presidente, vai ser, n�o um cargo
honroso, mas sim um pesad�ssimo encargo!
Era o que eu esperava. Exibi ent�o, extra�da do bolso do colete, a
solu��o que tinha planejado h� dois dias:
� Senhores Acad�micos, caros confrades! � melhor parar a�!
Vamos fazer o seguinte: nossa Academia n�o ter� Presidente! O cargo
ser� deixado vago, em homenagem ao �G�nio Brasileiro Desconhecido�.
Teremos, apenas, tr�s Vice-Presidentes de Honra, sendo um deles
escolhido para �o exerc�cio da Presid�ncia�!
� � uma boa solu��o! � disse Samuel. � Mas quem seria o
escolhido, dos tr�s?
Falei, com os modos mais humildes que pude arranjar:
� Olhem, o problema � evitar que o eleito fa�a sombra aos
outros! Voc�s, s�o Doutores e consagrados: se Samuel for escolhido,
far� sombra a Clemente, e vice-versa! Eu, vivo na sombra por natureza!
N�o sou formado; sou apenas um �charadista� que teve a sorte de ser �o
Fundador� da Academia, coisa que farei constar em nossa primeira ata,
pedindo que, assim como a Academia Pernambucana � conhecida como
�A Casa de Carneiro Vilela�, a nossa ique selada e consagrada como �A
Casa de Quaderna�!
Clemente saltou logo, como uma fera:
� O qu�, Quaderna? Voc� pretende lan�ar, na ata, na nossa ata,
que foi o fundador da Academia? O �nico fundador?
� Voc� nega, por acaso, que a ideia foi minha? � indaguei.
� N�o! Mas, nesses casos, s�o sempre considerados fundadores
todos os s�cios presentes � primeira reuni�o!
� Est� bem! � falei. � Se voc� retira sua candidatura e apoia a
minha, posso inclu�-lo tamb�m, na ata, como fundador! Voc� apoiou
logo minha ideia!
� E eu? � disse Samuel, empalidecendo. � Eu tamb�m apoiei!
At� fui eu que terminei dando o nome deinitivo � nossa Academia!
� Isso � verdade, Clemente, temos que reconhecer! � disse eu,
parecendo a imagem da Justi�a. � Por isso, caso seja eu o escolhido,
vou incluir em nossa ata os nomes de n�s tr�s, e de mais ningu�m,
como �nicos fundadores da Academia!

Eles se aperceberam de que n�o tinham outro caminho, e
engoliram o sapo. Foi assim que se fundou nosso glorioso sodal�cio e
que comecei tamb�m, como Raul Machado, minha dura escalada em
dire��o ao poder e � gl�ria.
* * *
As nossas sess�es acad�micas eram de tr�s tipos, as �sess�es de
gabinete�, as �sess�es a p�� e as �sess�es a cavalo�. As de gabinete,
tinham sido sugeridas por Samuel e destinavam-se a discutir
�Literatura idalga, fechada, pura, individual, po�tica e sonhosa�. As
sess�es a p�, tinham sido propostas por Clemente: nelas, �com os p�s
no ch�o�, n�s nos desembara��vamos �do mofo da Literatura burguesa
decadente, ligando-nos � realidade, � an�lise e � cr�tica dos males
sociais�, tudo isso �a p�, como o Povo faminto das estradas sertanejas�.
As sess�es a cavalo tinham sido sugeridas por mim: sempre
impressionado com os amores, as cavalarias, os canga�os e as
quengadas dos �folhetos�, queria eu que n�s discut�ssemos essas
Literaturas, a cavalo e heroicamente, vagando, como o Valente Vilela,
pelos campos do Sert�o. Os dois concordaram, exigindo, por�m, que as
sess�es a cavalo se subdividissem em tr�s categorias, as �viagens
ilos�icas�, as �demandas m�tico-po�ticas� e as �demandas novelosas�.
As primeiras, programadas por Clemente, dedicavam-se �s indaga��es
etnol�gicas, sociol�gicas, hist�ricas e ilos�icas. As �demandas m�ticopo�ticas�,
criadas por Samuel, tinham �um car�ter meio ritual de
sagra��o po�tica e consun��o m�stica�, na linha da Demanda do Santo
Graal, do Bosco Deleitoso, do Castelo Perigoso e de outros livros ib�ricos,
�povoados de sentidos cifrados e m�ticos�, o que me tocou
danadamente, por causa do meu velho projeto de restaurar o Castelo
Perigoso dos Quadernas. Finalmente, as �demandas novelosas�,
sugeridas por mim, eram o caminho atrav�s do qual eu pretendia
conciliar as �viagens ilos�icas� de Clemente com as �demandas
po�ticas� de Samuel, dando, como resultado, �romances� interessantes,
com hero�smos, safadezas, batalhas, castelos amorosos e perigosos,
amores legend�rios, gargalhadas, putarias e outras coisas divertidas e
boas de ler.

ESCUDO PORTUGU�S DAS QUINAS QUE ESTAVA DO LADO
ESQUERDO DE DOM AFONSO VI.

A
FOLHETO XXVIII
A Sess�o a Cavalo e o G�nio da Ra�a
gora, de volta da visita � Ilumiara, j� perto do meio-dia, entre
pedras e cactos espinhosos, v�nhamos realizando uma �sess�o a
cavalo� t�pica. Tratava-se do problema dos �g�nios das ra�as�, em geral,
e do �g�nio da ra�a brasileira�, em particular. Samuel acabara de me
explicar que �o g�nio de uma ra�a era a pessoa que condensava em si,
exaltadas e apuradas, as caracter�sticas marcantes do Pa�s�. Aquilo
tocou fogo em meu sangue imediatamente, porque fora assim que eu
me sentira naquele dia, na Pedra do Reino � como o Rei e a encarna��o
viva do Brasil. Entendi, logo, que, se eu fosse declarado �G�nio da Ra�a
Brasileira�, meu Castelo po�tico e perigoso faria de mim, n�o mais
individualmente, mas de modo �oicial e selado pelo Governo�, Rei do
Brasil! Era fundamental que, agora, ali mesmo, aqueles dois grandes
homens me esclarecessem sobre tudo aquilo de �G�nio da Ra�a�, t�tulo
que eu pressentia ligado �s minhas aspira��es mais profundas e
secretas. Indaguei ent�o:
� Mas como � que a pessoa � escolhida para �G�nio da Ra�a�?
Qual � seu tipo de atividade? Rei? Soldado? Capit�o? Ladr�o?
Propriet�rio de terras? Vaqueiro? Cangaceiro? Chefe revolucion�rio?
� N�o, nada disso! � respondeu Samuel. � Se bem que eu n�o
esteja, com isso, subestimando os Reis! Voc� sabe que esse � meu sonho
para o Brasil: o de um Cavaleiro que se pusesse � frente de hostes e
hostes de Soldados e desse, em nossa P�tria, um banho de sangue
puriicador, reconduzindo o Brasil a seus caminhos, o caminho ib�rico e
idalgo dos Conquistadores e sertanistas!
� Nada disso! � rosnou Clemente de l�. � Que venha o banho
de sangue, mas dado pelo Povo, pelos descendentes de Negros e
Tapuias, unidos em torno de um verdadeiro Chefe revolucion�rio! Voc�,
Quaderna, est� a favor do Rei ou do Chefe revolucion�rio?

� Eu, Clemente, n�o quero banho de sangue, nem dado pelo Rei,
nem pelo Chefe revolucion�rio, nem pelo Presidente da Rep�blica! J� vi
essas coisas, aqui pelo Sert�o, em 1912, 26, 30, etc., de modo que posso
garantir a voc�s que um banho de sangue deve ser a coisa mais
horrorosa do mundo!
Manifestaram logo um soberano desprezo. Clemente disse:
� Essa donzela pudica, sempre com seus n�o-me-toques!
Quaderna, n�o venha com panos mornos! A viol�ncia � indispens�vel a
quem quer que deseje instaurar uma ordem nova! � ou n�o �, Samuel?
� Claro! � respondeu Samuel. � N�o concordo com voc�,
Clemente, quanto ao resto, mas o banho de sangue, este �
indispens�vel!
� Ave-Maria, � mesmo? � indaguei, aterrado com a viol�ncia
daqueles homens ferozes. � E voc� teria coragem de ver cortarem sua
garganta, Clemente?
O Fil�sofo respondeu, sereno e soberbo:
� Quaderna, minha morte numa Revolu��o popular brasileira
seria encarada por mim apenas como um epis�dio corriqueiro e normal
do processo hist�rico!
� Danou-se! � falei. � Mas matar, Clemente? Voc� tem
coragem de matar uma pessoa? Voc� vai ter que fuzilar uma por��o de
gente!
� Meu caro Quaderna! � insistiu o Fil�sofo. � Eu, precisando
matar e chacinar pelo Povo, mato e chacino sem a menor diiculdade!
� Pois eu estou fora desse jogo! � confessei. � Minha fam�lia
degolou uma por��o de gente na Pedra do Reino, como voc�s sabem, e
j� basta o remorso que tenho por eles! De modo que, se esse tal �G�nio
da Ra�a Brasileira�, seja Rei ou Chefe revolucion�rio, vem � para dar
banhos de sangue, comigo n�o h� de contar!
� Mas acontece que o �G�nio da Ra�a� n�o � nem uma coisa
nem outra! � interveio Samuel. � O �G�nio da Ra�a� � um escritor que
escreve uma Obra considerada decisiva para a consci�ncia da sua Ra�a!
* * *
Fiquei profundamente impressionado. A palavra Obra, como j�
disse, era sagrada para mim, por signiicar a mesma coisa que Castelo,

Marco e Fortaleza. Resolvi, agora mais do que nunca, escrever minha
Obra, o Castelo que, tornando-me Rei, me tornaria �G�nio da Ra�a
Brasileira�. Veio tudo t�o de repente, que falei mais do que devia,
avan�ando:
� Bem, se � assim, a coisa � outra! Eu me recuso a me meter em
matan�as e morr�ncias � na vida: na Literatura, isso n�o faz mal
nenhum a ningu�m! A gente escreve, como no Almanaque: �Vinham
doze Cavaleiros, de bandeira � frente, montados em fogosos corc�is,
quando soaram doze tiros, e doze corpos rolaram dos cavalos,
ensopando de sangue vermelho a poeira da estrada!� Quando se
termina, n�o morreu ningu�m, e houve uma cena bel�ssima, parecida
com as dos romances de Jos� de Alencar e as da Hist�ria de Carlos
Magno!
Clemente falou, escarninho:
� Muito bem, gostei de ver! N�o me diga que est� pretendendo
escrever uma obra assim, para se candidatar, com ela, a �G�nio da Ra�a
Brasileira�!
� N�o, estou n�o, claro que n�o! � balbuciei. � Que eu gostaria
de escrever, gostaria. Mas n�o sei inventar nada, s� sei contar o que vi
acontecer! O que eu quero, � estar advertido, para, quando aparecer o
nosso �G�nio da Ra�a�, eu lhe prestar as devidas homenagens! Mas
voc�s t�m certeza de que o �G�nio da Ra�a� de um Pa�s qualquer, � um
escritor?
� Certeza absoluta! � disse Samuel.
� � uma simples opini�o de voc�s dois, ou � coisa indiscut�vel?
Pergunto, porque isso vai ser um t�pico inclu�do na nossa ata de hoje,
de modo que quero uma garantia, de autor consagrado e indiscut�vel!
� Saiba, ent�o! � falou Samuel. � Em 1915, na obra genial que
� Talcos e Avel�rios, Carlos Dias Fernandes declara que �os livros s�o
condensa��es ps�quicas das nacionalidades a que pertencem�. Al�m
disso, o insigne escritor � Portugu�s e, portanto, Brasileiro � que foi
Mendes Leal J�nior, escreveu, em 1844, que, �na majestade do seu
poder, o Poeta � mais poderoso e importante do que os Reis�,
acrescentando que estes seriam, apenas, Reis dos povos, enquanto o
Poeta �, ao mesmo tempo, �Rei do engenho, Rei da arte e Rei das
multid�es�!

� Ah, agora sim! � disse eu, entusiasmado. � Agora temos
uma tese consagrada, que pode passar a fazer f�, nas atas da Academia!
Mas pergunto: como � que se escolhe um escritor para �G�nio da Ra�a
Brasileira�? � o Presidente da Rep�blica quem nomeia?
� N�o, deve ser a Academia Brasileira de Letras!
� A nossa j� indicou o �G�nio da Ra�a Brasileira�?
� N�o! � cortou Samuel. � A Academia Brasileira ratiicou,
oiciosamente, a nomea��o de Coelho Netto para �Pr�ncipe dos
Prosadores� e a de Olavo Bilac para �Pr�ncipe dos Poetas Brasileiros�! O
cargo de �G�nio da Ra�a Brasileira� est� ainda vago!
� Gra�as a Deus! � disse eu, de novo sem me conter. E
acrescentei, para disfar�ar: � Digo isso, porque ouvi falar que o
Conselheiro Ruy Barbosa, aquele baiano, j� tinha sido escolhido, caso
em que o Nordeste verdadeiro, o nosso, n�o poderia mais reivindicar o
cargo!
� � verdade! � falou Clemente, com ar grave. � Realmente
chegaram a falar nisso, por ter Ruy Barbosa praticado a fa�anha de,
num artigo s�, o famoso Porneia, ter usado, sem repetir nenhum, vinte e
oito sin�nimos da palavra prostituta!
� V� saber Portugu�s, assim, no inferno, porra! � comentei. �
Mas, como voc�s sabem, sou dono de uma casa-de-recursos. Al�m disso,
parte da minha forma��o liter�ria foi feita na zona suspeita de nossa
Vila, o �R�i-Couro�, de modo que dessas coisas de raparigagem e
fudelhan�a eu entendo um bocado! Se um de voc�s dois quiser se
candidatar a �G�nio da Ra�a�, � s� pedir minha ajuda: eu garanto
fornecer a voc�s pelo menos quarenta sin�nimos de puta, nenhum
deles usado por Ruy Barbosa!
Os dois izeram um ar avaliativo, registrando a possibilidade
daquele apoio e Clemente continuou:
� O que Ruy Barbosa tinha, mesmo, a favor dele, era o fato de
ser um jurista-il�sofo e um soci�logo-escritor, como Sylvio Romero e
Tobias Barretto!
� Em todos os Pa�ses do mundo, Clemente, os �g�nios das
ra�as� s�o sempre Poetas, criadores no campo do sonho e da
imagina��o! � contestou Samuel. � E se voc�s insistem nesses
Fil�sofos rebarbativos, do tipo do teuto-sergipano Tobias Barretto,
nunca o nosso �G�nio nacional� poder� disputar, em p� de igualdade

com os outros, o cargo, tamb�m ainda vago, de �G�nio M�ximo da
Humanidade�!

A
FOLHETO XXIX
O G�nio M�ximo da Humanidade
quilo tamb�m me interessava profundamente, pelo que, sem
querer, dei uma esporeada no vazio de �Pedra-Lispe�, que deu uma
poupa. Reequilibrei-me e falei:
� Como �? E o cargo de �G�nio M�ximo da Humanidade�
tamb�m ainda est� vago? Pergunto, porque, no �Semin�rio da Para�ba�,
a gente estudava Ret�rica num livro do Doutor Amorim Carvalho, as
Postilas de Ret�rica e Gram�tica. Esse Doutor era �Ret�rico do
Imperador Pedro II�, de modo que sua palavra n�o � brincadeira, e ele
airma que, de todos os Poetas, �o primeiro, no tempo e na gl�ria, �
Homero�!
� Discordo inteiramente, porque est� absolutamente errado! �
disse Clemente. � Essa ideia da autoria individual das obras �
reacion�ria e est� ultrapassada! Hoje, est� provado que Homero nunca
existiu! Os dois poemas que s�o a �obra da ra�a grega� foram compostos
aos poucos, pelo Povo, e reunidos depois pelos eruditos!
� A autoria da obra � sempre trabalho de um homem s�! �
disse Samuel, j� se irritando. � Homero n�o foi o �G�nio M�ximo da
Humanidade�, mas o motivo principal disso foi a vulgaridade, a
grosseria que o levou a lan�ar m�o daquelas horr�veis hist�rias
populares!
Eu procurei, de novo, desviar a briga. Interrompi:
� Bem, o importante � que j� est�o demonstradas tr�s teses
essenciais! Primeiro, que o �G�nio da Ra�a� � um escritor. Segundo, que
o cargo de �G�nio da Ra�a Brasileira� est� ainda vago. E terceiro, que
ainda est� vago, tamb�m, o de �G�nio M�ximo da Humanidade�, porque
o �nico candidato apontado at� agora, Homero, al�m de n�o existir, era
grosseiro e vulgar! Tudo isso constar� da nossa ata, recebendo, assim, o
selo oicial e acad�mico que lhe dar� certeza! Mas existe ainda um

problema importante: qual deve ser o assunto da Obra nacional da Ra�a
Brasileira?
* * *
Meu plano era obter deles, aos poucos, sem que nenhum dos
dois pressentisse, a receita da Obra da Ra�a, para que eu mesmo a
escrevesse, passando a perna em ambos. Eles me olharam um
momento, em sil�ncio, entreolharam-se, e ent�o Samuel falou:
� Bem, � di�cil dizer assim, depressa! Mas acho que o assunto
da Obra da nossa Ra�a tem que ser o Brasil!
� O Brasil? � indaguei, perplexo. � Mas o Brasil, como?
� O Brasil, o Brasil! � repetiu Samuel, impaciente. � Que
assunto melhor do que o feito dos nossos antepassados, os
Conquistadores, a �ra�a de gigantes ib�ricos� que forjou o Brasil,
introduzindo-nos na Cultura mediterr�nea e cat�lica?
Clemente zangou-se e vociferou, de l�:
� Esta � a ideia sua e dos seus amigos, patrioteiros e
nacionalistas! De fato, a Obra da nossa Ra�a deve ter como assunto o
Brasil! Mas que �cultura� foi essa que os Portugueses e Espanh�is nos
trouxeram? A cultura renascentista da Europa em decad�ncia, a
supremacia da ra�a branca e o culto da propriedade privada! Enquanto
isso, a Mitologia negro-tapuia mantinha, aqui, uma vis�o m�tica do
mundo, fecund�ssima, como ponto de partida para uma Filosoia, e
profundamente revolucion�ria do ponto de vista social, pois inclu�a a
aboli��o da propriedade privada! � por isso que, a meu ver, a Obra da
Ra�a Brasileira ser� uma Obra de pensamento, uma Obra que, partindo
dos mitos negros e tapuias, forje uma �vis�o de conhecimento�: uma
vis�o do mundo; uma vis�o do homem; uma vis�o do homem no mundo
e uma vis�o do homem a bra�os com o pr�prio homem!
� � visagem demais para um livro s�! � disse eu.
� Alto l�, Quaderna! � falou Clemente, sobranceiro. � N�o me
venha, agora, com suas �tiradas de almanaque� n�o, porque isso � coisa
muito s�ria, � o cerne da minha �Filosoia do Penetral�!

H
FOLHETO XXX
A Filosofia do Penetral
� muito tempo que eu desejava me instruir sobre aquela profunda
Filosoia clementina, para me ajudar em meus logogrifos. Por isso,
avancei:
� Clemente, esse nome de �penetral� � uma beleza! � bonito,
di�cil, esquisito, e, s� por ele, a gente v� logo como sua Filosoia �
profunda e importante! O que � que quer dizer �penetral�, hein?
Clemente, �s vezes, deixava escapar �vulgaridades e plebe�smos�
quando falava, segundo sublinhava Samuel. Naquele dia, indagado
assim, respondeu:
� Olhe, Quaderna, o �penetral� � de lascar! Ou voc� tem �a
intui��o do penetral� ou n�o tem intui��o de nada! Basta que eu lhe
diga que �o penetral� � �a uni�o do faraute com o ins�lito regalo�,
motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do deferido, o trebelho da
justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjun��o da rel�psia!
� Danou-se! � exclamei, entusiasmado. � O penetral � tudo
isso, Clemente?
� Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral � �o
�nico-amplo�! Voc� sabe como � que �a cent�ria dos �ncolas primeiros�,
isto �, os homens, sai da �desconhecen�a� para a �saben�a�?
� Sei n�o, Clemente! � confessei, envergonhado.
� Bem, ent�o, para ir conhecendo logo o processo gavi�nico de
conhecimento penetr�lico, feche os olhos!
� Fechei! � disse eu, obedecendo.
� Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!
� O mundo, o mundo... Pronto, pensei!
� Em que � que voc� est� pensando?
� Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode,
num p� de Catingueira, numa On�a, numa mulher nua, num p� de

Coroa-de-Frade, no vento, na poeira, no cheiro do Cumaru e num
jumento trepando uma jumenta!
� Basta, pode abrir os olhos! Agora me diga uma coisa: o que �
isto que voc� pensou?
� � o mundo!
� � n�o, � somente uma parte dele! � �a quadra do deferido�,
aquilo que foi deferido a voc�, como ��ncola�! � �o ins�lito regalo�! � �o
c�isico�, dividido em duas partes: �a confraria da incess�ncia� e �a for�a
da malacacheta�, representada, a� no que voc� pensou, pelas pedras.
Agora pergunto: tudo isso pertence ou n�o pertence ao penetral?
� N�o sei n�o, Clemente, mas pela cara que voc� est� fazendo,
parece que pertence.
� Claro que pertence, Quaderna! Tudo pertence ao penetral!
Tudo se inclui no penetral! Entretanto, para completar �o t�dico� voc�,
na sua enumera��o do mundo, deixou de se referir a um elemento
fundamental, a um elemento que estava presente e que voc� omitiu!
Que elemento foi esse, Quaderna?
� Sei n�o, Clemente!
� Foi voc� mesmo, �o faraute�!
� O Faraute n�o, o Quaderna! � disse eu logo, cioso da minha
identidade.
� O Quaderna � um faraute! � insistiu Clemente.
Como aquilo podia ser alguma safadeza, reagi:
� Epa, Clemente, v� pra l� com suas molecagens! Faraute o qu�?
Faraute uma porra! Faraute � voc�! N�o � besta n�o?
� Espere, n�o se afobe n�o, homem! Faraute n�o � insulto
nenhum! Eu sou um faraute, voc� � um faraute, todo homem � um
faraute!
� Bem, se � assim, est� certo, v� l�! E o que � um faraute,
Clemente?
� Ora, Quaderna, voc�, leitor ass�duo daquele Dicion�rio Pr�tico
Ilustrado que herdou de seu Pai, perguntar isso? V� l�, no seu querido
livro de iguras, que encontra! �Faraute� signiica �int�rprete, l�ngua,
medianeiro�! O curioso � que �a quadra do deferido� e o �rodopelo�
pertencem ao penetral, mas o faraute, seja �nauta-arremessado� ou
�tapuia-errante�, tamb�m pertence! N�o � formid�vel? � da� que se

origina �o horr�ico desmaio�, o �tonteio da mente abrasada�! Inda
agora, quando pensou no mundo, voc� n�o sentiu uma vertigem n�o?
� Acho que n�o, Clemente!
� Sentiu, sentiu! � porque voc� n�o se lembra! Quer ver uma
coisa? Feche os olhos de novo! Isto! Agora, cruze as m�os atr�s da nuca!
Muito bem! Pense de novo naquele trecho do ins�lito regalo em que
pensou h� pouco! Est� pensando?
� Estou!
� Agora, me diga: voc� n�o est� sentindo uma esp�cie de
tontura n�o?
Eu, que sou impression�vel demais, comecei a oscilar, sentindo
uma tonteira danada, na cabe�a. Pedi permiss�o a Clemente para abrir
os olhos, porque j� estava a ponto de cair da sela. O Fil�sofo, triunfante,
concedeu:
� Abra, abra os olhos! Como �? Sentiu ou n�o sentiu a vertigem?
Sabe o que � isso? � a �oura da folia�, in�cio da �saben�a�, da
�conhecen�a�! A oura causa o �horr�ico desmaio�. Este, leva ao �abismo
da d�vida�, tamb�m conhecido como �a boca hiante do contempto�. O
abismo comunica ao faraute a exist�ncia do �pacto� e da �ruptura�. A
ruptura conduz � �balda do lab�u�. E � ent�o que o nauta-arremessado e
tapuia-errante torna-se �nico-faraute. Isto �, o faraute �, ao mesmo
tempo, faraute do ins�lito regalo, faraute do rodopelo e faraute do
faraute! Est� vendo? O que � que voc� acha do penetral, Quaderna?
� Acho de uma profundeza de lascar, Clemente! Para ser franco,
entendi pouca coisa, mas j� basta para me mostrar que sua Filosoia �
foda! Mas o que �, mesmo, penetral?
� V� de novo ao �pai-dos-burros�! �Penetral� � �a parte mais
rec�ndita e interior de um objeto�. Mas, na minha Filosoia, essa no��o �
ampliada, porque al�m de abranger a quadra do deferido e o rodopelo,
o penetral abrange tamb�m o faraute, atrav�s da subjun��o da rel�psia!
Mas, no momento em que se fala friamente do penetral, tentando
captur�-lo em categorias de uma l�gica sem gavionice negro-tapuia, ele
deixa de ser apreendido! Fa�a apelo aos gavi�nicos restos de sangue
Negro e Tapuia que voc� tem, Quaderna, e entenda que o penetral �� o
penetral�, que o penetral ���! O c�isico, coisica: os cavalos cavalam, as
�rvores arvoram, os jumentos jumentam, as pedras pedram, os m�veis
movelam, as cadeiras cadeiram e o far�utico, machendo e feminando, �

que consegue genter e farauticar! � assim que o t�dico tudica e que o
penetral penetrala � e esta, Quaderna, � a realidade fundamental!
� Arre diabo! � disse eu, de novo embasbacado. � E tudo isso
j� estava na Mitologia Negro-Tapuia, Clemente?
� Estava, estava! Ali�s, est�, ainda! � por isso que o �G�nio da
Ra�a Brasileira� ser� um homem do Povo, um descendente dos Negros e
Tapuias, que, baseado nas lutas e nos mitos de seu Povo, fa�a disso o
grande assunto nacional, tema da Obra da Ra�a!
Claro que era em si mesmo que Clemente estava pensando. Mas
Samuel contestou logo:
� Nada disso, Quaderna! O �G�nio da Ra�a Brasileira� dever�
ser um Fidalgo dos engenhos pernambucanos! Um homem que tenha
nas veias o sangue dos Conquistadores ib�ricos que fundaram, com a
Am�rica Latina como base, o grande Imp�rio que foi o orgulho da
Latinidade cat�lica! Portugal e a Espanha n�o tinham dimens�es para
realizar aquilo que, neles, foi somente uma aspira��o! Mas o Brasil � um
dos sete Pa�ses perigosos do mundo! Por isso, cabe a n�s instaurar, aqui,
esse Imp�rio glorioso que Portugal e a Espanha n�o puderam realizar!
� Mas como dever� ser escrita a Obra da Ra�a Brasileira? �
perguntei. � Em verso ou em prosa?
� A meu ver, em prosa! � disse Clemente. � E � assunto
decidido, porque o il�sofo Artur Orlando disse que �em prosa
escrevem-se hoje as grandes s�nteses intelectuais e emocionais da
humanidade�!
Samuel discordou:
� Como � que pode ser isso, se todas as �obras das ra�as� dos
Pa�ses estrangeiros s�o chamadas de �poemas nacionais�?
� O Almanaque Charad�stico diz, num artigo, que os Poetasnacionais
s�o, sempre, autores de Epopeias! � tive eu a ingenuidade de
dizer.
Os dois come�aram a rir ao mesmo tempo:
� Uma Epopeia! Era o que faltava! � zombou Samuel. � V� ver
que Quaderna anda pelos cantos � conspirando, para fazer uma! Sobre
o qu�, meu Deus? Ser� sobre essas b�rbaras lutas sertanejas em que ele
andou metido? N�o se meta nisso n�o, Quaderna! N�o existe coisa de
gosto pior do que aquelas estiradas hom�ricas, cheias de her�is
cabeludos e cabreiros fedorentos, trocando golpes em cima de golpes,

montados em cavalos empastados de suor e poeira, a ponto de a gente
sentir, na leitura, a catinga insuport�vel de tudo!
Clemente uniu-se ao rival, se bem que por outro caminho. Disse:
� Al�m disso, a gloriica��o do Her�i individual, objetivo
fundamental das Epopeias, � uma atitude superada e obscurantista! E
se voc� quer uma autoridade, Carlos Dias Fernandes tamb�m j�
demonstrou, de modo lapidar, que, nos tempos de hoje, a Epopeia foi
substitu�da pelo Romance!

M
FOLHETO XXXI
O Romance do Castelo
eu cora��o deu outro pulo no peito, pois aquilo era uma
revela��o t�o importante quanto a morte da On�a que eu
cometera, na Pedra do Reino! Tudo ia, aos poucos, se conigurando. Eu
tinha lido um dia, no Almanaque, um artigo onde se dizia que �uma
Obra, para ser cl�ssica, tem que condensar, em si, toda uma Literatura, e
ser completa, modelar e de primeira classe�. Isso me garantia que nem
Samuel nem Clemente, um do Cord�o Azul, e o outro, do Encarnado,
podia ser completo, pois cada um era radical por um lado s�. Somente
eu, juntando as opini�es azuis de um com as vermelhas do outro,
poderia realizar a receita do Almanaque.
Precisava, por�m, descobrir, com seguran�a, a que g�nero me
dedicar. Lembrei-me, ent�o, das aulas de Ret�rica, dadas por
Monsenhor Pedro An�sio Dantas, no �Semin�rio�, e passei a examinar
g�nero por g�nero, com ajuda do Dicion�rio. Quando cheguei na palavra
�romance�, tive um sobressalto: era o �nico g�nero que me permitia
unir, num livro s�, um �enredo, ou urdidura fant�stica do esp�rito�, uma
�narra��o baseada no aventuroso e no quim�rico� e um �poema em
verso, de assunto heroico�.
� por isso que eu n�o me abalara, ainda h� pouco, quando os
dois discutiam se a �Obra da Ra�a� deveria ser em prosa ou em verso: o
Romance conciliava tudo! Para tornar a coisa ainda mais segura, resolvi
entremear, na minha narrativa em prosa, versos meus e de Poetas
brasileiros consagrados: assim, al�m de condensar, no meu livro, toda a
Literatura brasileira, faria do meu Castelo sertanejo a �nica Obra ao
mesmo tempo em prosa e em verso, uma Obra completa, modelar e de
primeira classe! A �nica coisa que ainda me preocupava, era aquela
airma��o do Almanaque de que os �g�nios nacionais� eram sempre
autores de Epopeias: mas, agora, era a palavra autorizada de Carlos
Dias Fernandes que me garantia ser o Romance a verdadeira Epopeia

atual! Vi nisso um sinal da Provid�ncia, porque, desde os romances de
Jo�o Melch�ades aos de Jos� de Alencar e do Visconde de Montalv�o,
esse era meu g�nero predileto. Cada vez se enraizava mais, em mim, a
decis�o de tornar embandeiradas e cheias de chuviscos prateados as
pardas, miser�veis e sangrentas aventuras da Pedra do Reino,
tornando-me Rei sem degolar os outros e sem arriscar minha garganta,
o que somente a feitura do meu romance, do meu Castelo perigoso e
liter�rio, possibilitaria.
Precisava, por�m, beber, ainda, outras li��es. Por isso, com o ar
mais casual e modesto do mundo, comecei a tatear terreno. Disse:
� Clemente, sei que voc� � um Fil�sofo, um homem s�rio, um
Soci�logo que n�o se preocupa com romances, folhetos e outras
literaturas fr�volas! Voc�, Samuel, acha que o romance � um g�nero
bastardo, que n�o pode, absolutamente, se comparar com a Poesia!
Sendo assim, voc�s n�o se prejudicam, dando-me algumas instru��es
sobre isso! Ando querendo escrever uns contos e folhetins para o
Almanaque e gostaria de n�o cometer erros grosseiros demais quando
come�ar o trabalho! Voc�, Clemente, como � que acha que eu deveria
escrever? Que livros devo ler para ir aprendendo?
� Voc� pode come�ar com o Comp�ndio Narrativo do Peregrino
da Am�rica Latina, de Nuno Marques Pereira, e com as Obras do
Diabinho da M�o Furada, de Ant�nio Jos�, O Judeu, romances escritos
por Brasileiros, no s�culo XVIII. Ali�s, o nome do primeiro � Comp�ndio
Narrativo do Peregrino da Am�rica, mas eu s� uso o nome Am�rica
seguido do adjetivo Latina, para n�o pensarem que se trata dos Estados
Unidos! Depois, voc� poderia passar para as Mem�rias de um Sargento
de Mil�cias, de Manuel Ant�nio de Almeida, este, do s�culo XIX. Com
isso, voc� entraria na tradi��o da novela brasileira ao mesmo tempo
did�tica e picaresca, com personagens populares, astutos, errantes,
miser�veis, sujos, e tendo como assunto principal a fome! Mas, para n�o
icar tudo com um ar ultrapassado, reacion�rio e antiquado, com o
mofo, o rap� e as rendas do s�culo XVIII, voc� poderia unir, a esse
esp�rito, o tom do romance sertanejo de Canga�o, meio �pico, meio
picaresco, meio de costumes. Para isso, al�m dos romances cearenses
do s�culo XIX, voc� poderia ler Os Cangaceiros, de Carlos Dias
Fernandes, romance publicado em 1914 e onde se tra�am an�lises
sociol�gicas magistrais sobre o fen�meno social do Canga�o, visto, ali,

como �resultado das injusti�as do Capital�. � toda uma humanidade
sertaneja que desila por ali: poderosos, humilhados, grandes e
pequenos fazendeiros, Vaqueiros, soldados de pol�cia, Cangaceiros,
almocreves...
� Basta! � interrompeu Samuel. � S� a enumera��o j� est� me
dando arrepios! �An�lises sociol�gicas, Vaqueiros, almocreves...� Isso �
literatura de beira-de-estrada, Clemente! J� que voc� vai aconselhar
Quaderna nesse campo do romance, mande que ele leia A Renegada,
tamb�m de Carlos Dias Fernandes, mas cuja a��o se passa em Olinda e
no Recife, cidades do verdadeiro patriciado brasileiro!
� Se Os Cangaceiros � literatura de beira-de-estrada, A
Renegada � literatura de alcova e safadeza da Zona da Mata, Samuel! Em
A Renegada, a �nica coisa que me interessa � que se mostra, ali, o
homossexualismo e certas formas de amor pervertido entre Em�lia
Campos e seu marido, o velho e impotente Desembargador Palma! Isso
me interessa, por dois motivos. Primeiro, mostra as chagas causadas
pelo �cio dos ricos e pelo mofo das alcovas burguesas! Depois, porque
os desviados sexuais s�o, no fundo, revoltados contra a sociedade! Eu,
como revolucion�rio e advers�rio da Ordem, tenho horror � � igura do
�bom cidad�o�, do homem de boa consci�ncia, do �homem normal�! A
pervers�o sexual � uma forma de revolta! � verdade que um tanto
inconsequente, como tamb�m � inconsequente a revolta do Cangaceiro!
Mas, de qualquer maneira, tanto o Cangaceiro como o homossexual s�o,
no fundo, dois agentes da Revolu��o!
� Agentes da Revolu��o, no fundo? � protestei. � O
homossexual pode ser, o Cangaceiro n�o!
� L� v�m as sa�das de Almanaque! Quaderna, n�o estamos em
V�spera de Reis n�o! Estou discutindo uma tese s�ria, que vai icar
registrada em nossas atas!
� Essa � boa! � defendi-me. � Diz que o homossexual � um
revoltado no fundo, e quer se zangar porque eu acho gra�a! Voc� est�
falando s�rio, Clemente?
� Claro que estou! Quando o homossexual se recusa a aceitar os
padr�es morais da classe privilegiada, est�, a seu modo, protestando,
como o guerrilheiro, contra a ordem estabelecida!
� T�, Clemente, com esta eu n�o contava! � disse eu,
espantado. � Nunca pensei que dar o rabo fosse uma forma de

guerrilha! Mas se voc� fosse fazer um romance, era assim que voc�
faria? Era seguindo Os Cangaceiros, de Carlos Dias Fernandes, e
mostrando a revolta desses guerrilheiros, juntamente com uma por��o
de homossexuais revoltados no fundo?
O Fil�sofo encarou-me gravemente:
� Olhe, Quaderna, eu n�o perderia meu tempo escrevendo
romances, de jeito nenhum! Sou um Fil�sofo, um Soci�logo, e tenho
meu tempo ocupado em obra muito mais s�ria! Mas como voc� � um
impenitente charadista e leitor de Almanaques, um �vido devorador de
enredos grosseiros, vou lhe dizer como faria um romance, caso esse
g�nero liter�rio e fr�volo me interessasse!
* * *
Parei, com a respira��o suspensa, porque pressentia que
Clemente ia me dar uma li��o decisiva para minha Obra. Ele come�ou:
� A meu ver, nesse campo, o grande assunto nacional seria a
revolu��o dos povos do Brasil, tendo � frente o grande Povo Negro, por
ser o mais humilhado e desprezado de todos! Eu escreveria um
romance social e ilos�ico-revolucion�rio, centralizando a a��o em
torno daquele que, para mim, foi o grande her�i do Brasil, Zumbi, o Rei
Negro da Rep�blica Popular dos Palmares! O estabelecimento dessa
Rep�blica na pedregosa �Serra da Barriga� e seu ass�dio pelos Brancos,
� um feito t�o importante quanto �A Retirada dos Dez Mil� ou como a
�Guerra de Troia�! Ali�s, foi assim que o epis�dio icou conhecido na
Hist�ria do Brasil, como �A Troia Negra dos Palmares�!
� Como �, Clemente? � interrompeu Samuel. � Voc� tem
coragem de comparar uma a��o ilustre, como o cerco de Troia, com o
motim daquela negralhada desordeira dos Palmares?
� � claro que tenho! � disse Clemente indignado. � Est�
vendo como � essa gente, Quaderna? Se morrem dez mil gregos numa
a��o, a� � a��o importante, porque morreram dez mil pessoas! Mas se
morrem dez mil nos Palmares, � somente um motim de desordeiros,
porque n�o morreram dez mil �pessoas� n�o, morreram dez mil
�negros�!
� Deixe isso pra l�, Clemente! Voc� n�o sabe que, nisso, estou
do seu lado e contra Samuel? Deixe isso pra l� e me conte o resto do

romance que voc� faria!
� Voc� poderia basear seu romance em grandes escritores
pernambucanos e alagoanos, todos mais ou menos Acad�micos e
consagrados, como Alfredo Brand�o, Jayme de Altavila e Ulysses
Brand�o. Uma vez, por mero divertimento, compus uma esp�cie de
Hist�ria dos Palmares, colando retalhos desses escritores. Por acaso,
tenho aqui, comigo, essa frioleira, e vou l�-la para esta sess�o da nossa
Academia!
* * *
Ent�o, sob protesto de Samuel, mas contando com meu voto
favor�vel, Clemente tirou do bolso interno do palet� a ma�aroca de
pap�is e come�ou a narrar. Contou como, no s�culo XVII, os Negros,
maltratados pelos Senhores, tinham come�ado a fugir para a pedregosa
�Serra da Barriga�, onde se afortalezaram. Os Senhores come�aram a
ver naquilo uma amea�a, principalmente porque, dizia Clemente, �a
base da sociedade, nos Palmares, era coletivista, socialista�. E vinha o
reinado de Gangazuma, e depois o de Zumbi, o maior de todos os Reis
Negros. Clemente contava o himeneu de Zumbi com a bela negra
Mussala, logo ap�s ser o grande Negro coroado e ungido pelo Ladane, o
Sacerdote. A�, os brancos, divididos em Paulistas e Nordestinos,
realizavam v�rios assaltos, todos repelidos. Mas, como acontecera
outrora na Pedra do Reino, aparecia, ali tamb�m, um traidor. �N�o era
um Negro puro n�o, era um mulato�, acentuava Clemente. Esse mulato
guiou os Brancos ao caminho de acesso pelo qual o reduto de pedra dos
Palmares podia ser tomado. E a� vinha a narra��o da heroica e tr�gica
derrocada dos Negros. Era assim, de acordo com o que Clemente leu e
que eu ajuntei �s atas da Academia:

DESENHO RUPESTRE E TAPUIA QUE SE ENCONTRAVA NAS
PEDRAS DA ILUMIARA JA�NA.

�U
FOLHETO XXXII
A Tr�gica Desaventura do Rei Zumbi dos
Palmares
m clarim encheu o vale com seu retinido. O Sol come�ava a
despejar sua luz sobre o cen�rio, e o primeiro estampido das
compridas colubrinas repercutiu distante, assinalando a posi��o do
Sargento-Mor Sebasti�o Dias, ao p� da Serra. Come�ava a investida! As
balas, a princ�pio, apenas fragmentavam o granito das trincheiras,
tornando v�o o assalto. Mas um Cabo-de-guerra de Zumbi, um mulato
que se tomara de amor por Mussala e fora repelido, atrai�oou os Negros
e guiou os Brancos para um ponto em que a Muralha poderia ceder aos
tiros de canh�o. A�, insistindo sobre este ponto, os petardos deslocaram
alguns metros da amurada. Os Negros resistiam galhardamente �s
armas de fogo, por meio de lechas disparadas dos baluartes, �gua
fervendo e brasas, lan�adas de cima! Reconhecendo os Brancos que da
Artilharia � que depende o �xito, foi mandado o Capit�o-Mor Bernardo
Vieira de Mello que, com o canhoneio, come�ou a abrir a Muralha, para
dar entrada aos sete mil Soldados que trazia. Os Negros atiravam
lechas, pedras e azagaias. Um artilheiro caiu sobre a pe�a, ao acender o
chio, com a cabe�a esfacelada, e um soldado abriu os bra�os e tombou
para a frente, atravessado por uma lecha. Foram fontes de sangue a
avermelhar a terra. Subiu ao ar um clamor b�rbaro. Cumpria aos
Negros defender aquela brecha na sua muralha! De momento, foram
colocados ali enormes pedrou�os. Mas a Infantaria branca, provida de
mosquetes, varreu a entrada e permitiu que as pe�as de Artilharia se
aproximassem da falda da Serra. Novos estampidos de colubrinas
retumbaram, e desta vez a incis�o permitiu a entrada da tropa de
vanguarda. Em meio do fumo, do desmoronar das pedranceiras, dos
estampidos secos dos mosquetes, dos roncos formid�veis dos trabucos,
das coronhadas, das impreca��es, da f�ria, da arremetida, a pluma

escarlate de Bernardo Vieira de Mello mergulhou no burburinho
tremendo. Zumbi era um Tit� negro, agitado no meio da hecatombe.
N�o seria ele quem fosse morrer para a conian�a dos seus antes de
morrer para a vida! Seus olhos guardavam um fulgor estranho de
amargura, mas sua boca estava cheia de anima��o para os
companheiros de destino. Um B�zio de guerra soou convulsamente
dentro dos Palmares: era o sinal de perigo! Um Capit�o negro brandiu
um alfange contra o Alcaide-Mor Christovam Linz, mas caiu com o
cora��o atingido por um bala�o de pistola. O ex�rcito dos brancos,
como uma onda que se levanta, moveu-se, no seu grosso, em dire��o �
estacada aberta. L� dentro, j� estava Bernardo Vieira de Mello, depois
da investida louca contra o Reduto Negro!�
* * *
Eu, empolgado de entusiasmo por aquela luta heroica, t�o
parecida com a da Pedra do Reino, n�o me contive e gritei:
� Que beleza, Clemente!
Ent�o, sentindo-me, eu mesmo, t�o valente quanto Zumbi ou
Jesu�no Brilhante, ergui o punho para as pedras e os cactos da Caatinga
e recitei, gritando:
�Em teus Lajedos erguido,
meu Gavi�o atrevido,
salve, Sert�o do Esquecido,
Pedra do Reino, angular!
Eu canto a Beleza tua,
� Moura guerreira e nua,
em cuja Coxa lutua
ruiva pele de Jaguar!
Palmares, a ti meu Grito,
a ti, Sert�o de granito,
que ningu�m ouse atacar!

� Moura! teu Peito escuro,
fugidio, irme, duro,
guarde a tua nobre Dor!
Negra Diana Selvagem,
que escutas, sob a ramagem,
as Vozes, que traz a aragem,
do Rei Negro, O Lidador!
Salve, valente Guerreira,
nobre Pedra Brasileira,
que, ao arfar da Catingueira,
soubeste tanto lutar!
Salve, no Rochedo erguido,
meu Gavi�o atrevido,
onde pena o Rei Perdido,
Negro-Pardo do Jaguar!�
� Pode me explicar a que vem essa cena rid�cula? � indagou
Samuel.
Eu, acanhado, recolhi o punho que ainda estava erguido, e
expliquei:
� Nada, isso a� � um verso que eu iz, partindo de Castro Alves e
seguindo de uma vez s� o �oncismo� de Clemente e seu �tapirismo�!
� Pois n�o aceito a parte tapirista dele! Retire-se do meu
movimento liter�rio, charadista! � disse Samuel, implac�vel.
� Eu tamb�m n�o aceito a parte oncista, n�o! � disse Clemente.
� Mas voc�s me interromperam, e agora � que vem a parte melhor da
hist�ria de Zumbi! Ou�am l�:
* * *
�Vai come�ar a trag�dia dantesca. Havia uma atalaia pedregosa
no meio do Quilombo. Para ali foi o Rei, seguido pelos perseguidores. Os
�ltimos arrancos da luta foram os mais terr�veis: quando um Soldado
punha o p� num varal, para subir, uma lecha atravessava-lhe o cora��o
ou vazava-lhe um olho! N�o havia defesa poss�vel, por�m, com a
superioridade das armas de fogo dos Brancos! E quando Zumbi, �ltimo
Rei dos Palmares, com o Estado-Maior que o cercava, viu que, com a

derrocada, acabariam prisioneiros dos Brancos, galgaram, todos, o
alt�ssimo Rochedo central da atalaia e se arremessaram de l� nas
pedras de baixo! Vencidos, esmagados pela for�a, os Palmarinos n�o se
submeteram, suicidaram-se! Dentro da Cidadela, por entre os rolos de
fumo das casas incendiadas, os Soldados davam termo � carniicina,
mosqueteando ou espadejando os �ltimos defensores da Rep�blica
Negra. O solo estava forrado de cad�veres mutilados e, � propor��o que
os exterminadores penetravam nas seis ordens da estacada, iam i�ando
os Negros mortos nas pontas dos mour�es que encontravam, dando ao
terreno conquistado a ideia de um Jardim de Supl�cios, cujas Rosas
negras eram os destro�os humanos dependurados, pingando em
derredor um orvalho de Sangue! O lance mais terr�vel, por�m, ainda
estava para acontecer. E foi que Zumbi, o Rei, com a resist�ncia incr�vel
de seu corpo de Guerreiro, foi encontrado ainda com vida, entre os
corpos dos que se tinham jogado do Rochedo. O rosto estava tumefato
pela queda. Um peda�o de maxilar partido e sem bochecha, mostrando
os dentes, um olho inchado e fechado, aquele rosto impressionava pela
grandeza, pela dignidade do infort�nio, pela altivez que mostrava ainda,
na derrota e no desbarato! Os Conquistadores improvisaram uma
Forca, com esteios, e guindaram o corpo de Zumbi, aqui e ali crivado de
golpes de espadas. Passaram uma imbira no pesco�o do heroico Rei
Negro e enforcaram-no. As mulheres, os Guerreiros vencidos e os
velhos da sua Ra�a assistiram seus estertores, enchendo de lamentos a
paz do ermo. Quando nas dilatadas meninas-dos-olhos de Andr�
Furtado de Mendon�a o relexo do corpo de Zumbi deixou de bulir, ele
correu para a Forca e cortou, com um golpe, a imbira forte que sustinha
o cad�ver. O corpo caiu surdamente no ch�o. O Capit�o paulista gritou
para um homem do tro�o de Domingos Jorge Velho: �Corte-lhe a
cabe�a!� O trof�u sangrento foi-lhe entregue imediatamente para ser
salgado e remetido ao Governador de Pernambuco, Caetano de Mello e
Castro, e o corpo l� icou, insepulto, para ser devorado pelos Caititus �
os porcos-selvagens do Sert�o � quando, � noite, descem da Serra em
manadas, serrilhando os dentes. Quanto aos que n�o tinham tido tempo
de se matar, amarrados novamente sob o vergalho, feridos, escoiceados,
foram marchando em meio aos Conquistadores, cujos saios e gib�es
mostravam-se espirrados de sangue. Era o retorno � Escravid�o!�

E
FOLHETO XXXIII
O Estranho Caso do Cavaleiro Diab�lico
xatamente quando o Fil�sofo chegava a essa parte inal,
arrepiadora e impressionante de sua �Troia Negra dos Palmares�,
n�s �amos passando diante de um lajeiro baixo, espalhado pelo ch�o,
com p�s de Xiquexique, Coroas-de-Frade e Macambiras aqui e ali. De
repente, tive a impress�o de que j� t�nhamos passado por aquele lugar,
na mesma viagem de volta. Imediatamente comuniquei aos dois a
suspeita, que, se fosse conirmada, indicava que est�vamos extraviados
naquela cerrada e �spera Caatinga.
Samuel e Clemente esbarraram os animais, olharam o lajeiro e
discordaram de mim, sustentando que est�vamos no caminho certo. Eu
mantinha a suspeita, de modo que izemos uma pausa bastante longa
na viagem e na conversa. Vou, ent�o, aproveitar essa pausa, para narrar
um acontecimento, tamb�m muito importante, dessa manh�. Eu mesmo
j� estou icando entediado com essas inind�veis teses acad�micas, que
s� incluo aqui porque s�o indispens�veis ao entendimento do meu caso.
Mas � preciso descansar, pois sinto que as cabe�as dos que me ouvem, e
a minha tamb�m, j� est�o pendendo, sonolentas, com o epopeico sono
de Homero. A parte que intercalo � mais movimentada, mais
bandeirosa e cavalariana, de modo que talvez dissipe o sono com
cavalos, Cavaleiros, visagens e outras coisas mais �romanceiras e
folhetescas�.
Naquele dia, um pouco antes da emboscada, ocorrera outro
acontecimento que seria decisivo para todos n�s. Seu personagem
principal foi aquele meu condisc�pulo e colega de cantoria, Lino Pedra-
Verde. Lino, ilho de um antigo morador da �On�a Malhada�, fora morar,
depois de j� formado em Cantador, num pequeno s�tio, perto da Vila de
Estaca Zero. Naquela manh� de 1� de Junho de 35, sa�ra de casa ainda
cedo, em busca de um ro�ado novo que brocara, no sop� da Serra:
queria ver em que p� andavam uns milhos que plantara por l� e que,

segundo seus c�lculos, deveriam estar chegando ao ponto de serem
quebrados para o S�o Jo�o.
Saindo de casa animado, Lino come�ou a mudar de esp�rito �
medida que se aproximava da Serra. Era um homem de estatura m�dia,
com o bigode quase quadrado crescido na cara morena. Era caolho:
procurando extrair, certa vez, um prego mal cravado num �brabo� de
miolo de aroeira, quebrara-se a faca-de-ponta, e a ponta de ferro,
zunindo no ar com grande viol�ncia, cravara-se no seu olho direito,
vazando-o. Por causa desse olho cego, Lino ganhara o apelido de �Meia-
Luz�, que o deixava furibundo. Preferia os versos prof�ticos e
assombradores, talvez porque, desde menino, era sujeito a visagens, o
que se agravou depois que eu, descobrindo a receita completa do
�Vinho Encantado da Pedra do Reino�, passei a fornecer-lhe �ervamoura�,
para mascar e fumar, e vinho, para beber.
Ora, antes de chegar � Serra, Lino teria que passar por um
descampado enorme, um lugar selvagem, devastado pelo velho fogo de
uma coivara antiga e depois abandonado. Os pr�prios seixos e pedras,
ali, emergiam diicultosamente da poeira e da cinza, e os peda�os de
ch�o que sobravam eram cobertos de pedregulhos feios e torcidos.
Quando foi se aproximando da orla do mato ralo que beirava a enorme
clareira queimada, Lino come�ou a sentir o pressentimento de alguma
coisa mal�ica que o aguardava no ch�o coberto de cinza, nas pedras
envelhecidas pela passagem do tempo e das chamas. Parou, sem querer,
e, no mesmo instante, come�ou a notar, assombrado, que o ch�o �estava
come�ando a icar empenado�, isto �, alteando-se no lugar onde ele
estava e abaixando-se l� adiante, para os lados do descampado.
Aterrado, Lino quis voltar, mas cad� que podia? Enquanto o ch�o
baixava em sua frente, alteava-se por tr�s, e, sem querer, ele come�ou a
descer, levado para o descampado pelo desn�vel empinado da ladeira
mal-assombrada. Viu-se, assim, na orla do mato e diante da clareira. No
mesmo instante, o ch�o deu um estreme�o e um estrondo, e ele,
erguendo o olho bom, avistou, l�, no outro lado da clareira, a igura do
Cavaleiro. Duas certezas lhe vieram imediatamente: n�o era coisa deste
mundo, e era o peso do cavalo dele que �empenava o ch�o, tirando-o do
n�vel�. Parecia que o descampado se tornara uma burrinca, uma
gangorra enorme, que subira do lado de Lino porque o peso do
Cavaleiro o izera baixar do seu. Ali�s, isso logo se conirmava, porque o

Cavaleiro instigou o cavalo, e come�aram a caminhar na dire��o de
Lino: � medida que andavam e se aproximavam mais do centro do
Tabuleiro pedregoso e calcinado, o ch�o subia mais do lado deles e
baixava do lado de Lino. Ao mesmo tempo, de dentro do mato, l� do
outro lado, come�ou a sair a escolta do Cavaleiro, vinte e quatro
Drag�es montados por outros tantos Bichos esquisitos, �uma esp�cie de
cruzamento de On�a com Urubu, Porco e Jumento preto�, como Lino me
contava depois. Ele continuava pregado em seu canto, aterrorizado,
murmurando palavras desconexas, e tentando organiz�-las em alguma
ora��o. Agora, j� divisava melhor o Cavaleiro: a roupa dele parecia uma
mistura de farda de Cangaceiro e batina de Bispo. Trazia numa das
m�os uma Espada de fogo, cujos copos eram um enorme Livro. Na
outra, conduzia uma esp�cie de Espelho, ou placa de a�o polido, onde,
de repente, o Sol refulgiu, encandeando Lino. Nesse momento, o
Cantador viu o que lhe pareceu uma Estrela desprender-se do a�o do
Espelho ou do C�u que luzia por cima. O astro de fogo, feito uma bola,
passou transversalmente pelo descampado, raspando e queimando o
ch�o, sobre o qual deixou novo rastro incendiado. As pedras
fumegavam. O ch�o deu novo estrondo, cambaleou entontecido, e uma
sombra estranha come�ou a se espalhar pela clareira, nos passos do
cavalo, parecendo que eram os cascos e as crinas pretas que a
espalhavam. N�o ia muito alto, esta sombra trevosa; alcan�ava apenas a
altura da cabe�a do Cavaleiro. Da� para cima, via-se ainda o C�u, que
n�o estava mais azul e sim vermelho, um vermelho de sangue. O que
aparecia de azul, ali, eram bolas azulosas e fosforescentes, �que davam
estouros e zoavam com a zoada do Mar�.
* * *
Agora, o Cavaleiro estava no meio do campo, e o ch�o se
aprumara, mas o terror de Lino s� fez foi aumentar. � que dos olhos do
monstro sa�am uma Luz vermelha e outra verde que se ajuntavam ao
fogo da Estrela para tamb�m queimar o ch�o. E, terror dos terrores,
Lino viu ent�o, pela primeira vez com mais clareza, a cara apavoradora
do Cavaleiro. Seus l�bios arrega�ados n�o conseguiam cobrir os
enormes dentes de cachorro, e de sua boca, a modo de l�nguas, sa�am
sete Cobras-corais. O cavalo era velho e preto, e parecia carregado de

todas as ast�cias e ruindades do mundo. Era o mais interessado em
chegar a Lino, e foi como por seu conselho que os dois, parecendo um
Bicho s�, a Besta-Fera falada, come�aram a se aproximar, apressando-se
um pouco mais as passadas lentas da feia montaria.
Lino viu que, se n�o houvesse uma interven��o r�pida do C�u,
estaria perdido. Fascinado pelos olhos do Cavaleiro e pelas cobras que
se agitavam malignamente no ar, p�de, por�m, reunir as for�as que lhe
restavam e gritar:
� Valha-me Nossa Senhora, M�e de Deus!
A�, por tr�s de Lino, surgiu outra presen�a, um Ente que ele n�o
teve coragem de encarar porque tamb�m era de fogo e porque era puro
e perigoso. Asas rulavam, brilhavam relexos de espadas e diamantes.
Bradavam vozes:
� Chegou o tempo da grande penit�ncia! Ah dia sangrento e
certo! � o Ju�zo Final! O mundo chega a seu im!
A luz do Sol come�ou a vencer o escuro e iluminou, l�, do outro
lado, uma pedra, que come�ou a brilhar no escuro, como um Altar
alumiado. As visagens come�aram a se sumir na claridade, e Lino,
impelido pela poderosa presen�a do Anjo, que atr�s dele ia rulando
suas gigantescas asas de navalhas e pedrarias, tomou coragem e cruzou
o campo.
* * *
Contava-me ele, depois, que, � medida que se acalmava, �o fogo
da Poesia come�ava a incendiar seu ju�zo�, e o fato esquisito que lhe
acontecera come�ava a tomar forma po�tica, dentro dele.
� De qualquer jeito � dizia-me ele depois � eu ia decorando
todos os versos que me vinham � cabe�a, para depois passar tudo para
o papel. Ao mesmo tempo, eu desconiava de j� conhecer aqueles
versos! De quem ser�o eles? Me ajude, Dinis, pra ver se eu me lembro!
Ser�o meus, mesmo? Ser�o de Jos� Pacheco? De Jo�o Ferreira Lima? De
Josu� Gomes da Silva?
� Como s�o os versos, Lino? � perguntei.
Ele recitou o seguinte:
�L� no Campo, eu vi um Anjo:

tinha Faces de carmim,
tinha Asas de navalha,
chegou pra perto de mim
e disse: � Faz penit�ncia,
que o Mundo j� chega ao im!
Ent�o, eu cruzei o Campo
e o Anjo voava ao lado.
Ele mostrou-me um Drag�o
em um Cavalo montado.
Dizia o Anjo: � Este �
o Anticristo falado!
O sinal do Anticristo
� um verde, outro encarnado!
Tu j� o viste no Campo,
em seu Cavalo montado,
vestido de brabo e Bispo,
Espada e Livro, de lado!
Os seus olhos s�o de Fogo,
os dentes s�o de Drag�o,
sua Boca � a caverna
das Cobras da maldi��o!
� Bicho t�o temeroso
que nos corta o cora��o!
A�, eu baixei a vista,
o Mundo se escureceu!
O Sert�o todo agitou-se,
o Mar, l� longe, gemeu,
o C�u icou encarnado,
embaixo a Terra tremeu!

Vi uma Estrela baixar,
iquei tremendo, assombrado.
O Povo todo do mundo
correu, gritando, assustado.
Diziam: � Valha-me a Virgem,
a M�e do Verbo Encarnado!�
* * *
Lino chegou ao ro�ado, n�o quebrou o milho � que encontrou
ainda verde demais � e voltou a Estaca Zero, encontrando a Vila
inteiramente subvertida pela passagem do Rapaz-do-Cavalo-Branco,
daquele Cavaleiro que parecia a imagem reversa do outro, que tanto o
assombrara no Campo calcinado. No estado de esp�rito causado pelas
visagens, Lino estava especialmente predisposto a se impressionar com
a descri��o que lhe izeram dos gib�es medalhados, dos cavalos, dos
arreios reluzentes de moedas, da bandeira da coroa e das chamas de
ouro, do escudo das on�as vermelhas e dos treze contra-arminhos de
prata. Alvoro�ado, Lino se informou sobre a dire��o que seguira a
cavalgada e meteu o p� na estrada, atr�s dela, fato que veio a ter tanta
inlu�ncia em minha vida, como Vossas Excel�ncias ver�o daqui a
pouco.
Mas a pausa que t�nhamos feito em nossa viagem j� acabou.
Clemente e Samuel me convenceram de que o mais certo era
continuarmos em frente, pelo caminho que v�nhamos seguindo, de
modo que retomamos a viagem e tamb�m a conversa��o interrompida.
Clemente terminara de recitar a Epopeia negra de Zumbi, o que
fez com um ar fat�dico e impressionador que me deixara arrepiado.
Lembrava-me de meu bisav�, degolado, como Zumbi, num Reino
pedregoso e amuralhado. A batalha da Pedra do Reino galopava de novo
no meu sangue, por entre chamas e vozerios, agora acrescentados das
cenas de Palmares e da morte tr�gica de Zumbi. Mas Samuel tinha
outras ideias e come�ou logo a desmoralizar as de Clemente. Disse:
� Voc�s dois icam embasbacados, a�, como se a morte daquela
negralhada fosse coisa do outro mundo! Mas o pior que eu acho �
Clemente querer criar aqui, artiicialmente, a partir da Rep�blica de
Palmares, uma coisa que nunca existiu no Brasil, uma esp�cie de

Sebastianismo negro! � uma ideia artiicial, porque o n�cleo, o
fundamento do Brasil � ib�rico! Seja justo ou injusto isso, Clemente, j�
aconteceu e agora n�o tem mais quem d� jeito! De modo que o �nico
Sebastianismo aut�ntico, aqui, � o Sebastianismo ib�rico que n�s
herdamos dos Portugueses, que se abrasileirou aqui e que � o grande
assunto nacional que pode servir de base � Obra da Ra�a!

O CAVALEIRO DIAB�LICO QUE APARECEU A LINO PEDRAVERDE.

F
FOLHETO XXXIV
Mar�tima Odisseia de um Fidalgo Brasileiro
oi motivo de novo sobressalto para mim. �Sebastianismo�, como se
recordam, era uma das palavras que incendiavam meu sangue e
minha cabe�a, desde que os Quadernas tinham pregado, na Pedra do
Reino, a ressurrei��o e o aparecimento do Rei Dom Sebasti�o. Por isso,
resolvi esporear Samuel, incitando-o a falar, para beber suas ideias,
como j� bebera as do Fil�sofo negro. Disse:
� Mas Samuel, o sebastianismo n�o � assunto Portugu�s?
� Tanto faz dizer Portugu�s como Brasileiro, Quaderna! Por
outro lado, a hist�ria de Dom Sebasti�o, O Desejado, transcende os
limites puramente individuais e nacionais para ser um Mito humano: o
do homem sempre desejoso de se transcender, al�ando-se, pela
Aventura, pelo del�rio, pelo risco, pela grandeza, pelo mart�rio, at� o
Divino! � por isso que meu livro de poemas, O Rei e a Coroa de
Esmeraldas, ser� uma esp�cie de sagra��o m�tica da Hist�ria de
Portugal na Hist�ria do Brasil, atrav�s das grandes iguras brasileiras
dos nossos Her�is e Reis! De Portugal, eu s� incluirei duas iguras, a do
Navegador, atrav�s do Infante Dom Henrique, e a do Guerreiro, atrav�s
de Dom Sebasti�o, isto �, a Cavalaria terrestre e a do Mar, ambas
marcadas pelo impulso para o Al�m, para o Desconhecido, para o
Divino, presente no mito do Eldorado que os Conquistadores buscavam
e que era o Brasil! Minha grande vantagem inicial, � que escreverei em
Portugu�s, o mais belo de todos os idiomas! Olavo Bilac dizia, com
muita raz�o, que as l�nguas ib�ricas, o Portugu�s e o Espanhol, t�m
�ululos de fera para a blasf�mia e arrulhos de pomba para o amor�!
Clemente interrompeu:
� Bem, Samuel, que o importante, no amor, s�o mesmo os
arrulhos da pomba, disso eu n�o tenho d�vida!
Eu estourei na gargalhada e a irrita��o de Samuel virou-se pra
mim:

� Voc�, Quaderna, se acha gra�a numa chulice dessas � que est�,
realmente, na mesma altura moral e intelectual de quem a disse!
� N�o, Samuel, n�o se zangue comigo n�o! Achei gra�a, mas isso
que voc� disse � important�ssimo, porque, se o Portugu�s � a l�ngua
mais bela e mais forte do mundo, o �G�nio M�ximo da Humanidade� s�
poder� ser algu�m que escreva em Portugu�s!
Impressionado, Clemente voltou atr�s, concordou, e a tese foi
aprovada por unanimidade. Samuel, vitorioso, animou-se:
� Eu faria, ent�o, como disse, um poema a Dom Henrique, outro
a Dom Sebasti�o. O Brasil nasce entre essas duas iguras de Pr�ncipes
castos e guerreiros. Dom Henrique anuncia e procura o Brasil no Mar,
Dom Sebasti�o vai realiz�-lo e batiz�-lo a fogo no Deserto! Depois deles,
eu faria um poema a Duarte Coelho, idalgo de linhagem bastarda que �,
bem, a nossa primeira igura m�tica de Cavaleiro, semelhante a essas
iguras rostrais, colocadas nas proas das Caravelas portuguesas, de
barba negra, cerrada e encaracolada, de olhos escuros, ambicioso,
violento, austero. Foi Conde e Senhor de Pernambuco, tornando-se, ali,
um Senhor feudal, como Dom Sebasti�o extraviado no tempo. Ergueu,
em Olinda, um Castelo de pedra, com torre, e ali se estabeleceu com sua
mulher, Dona Brites de Albuquerque, da fam�lia do grande Afonso de
Albuquerque, O Africano. Voc�s dois, almocreves sertanejos, ingem
ignorar essas coisas. Voc�, Quaderna, sabia, por exemplo, que os dois
ilhos de Duarte Coelho, nascidos em Olinda, estiveram, com Dom
Sebasti�o, na terr�vel Batalha de Alc�cer-Quibir, travada nos areais da
�frica, em 1578?
� Sabia n�o, Samuel! � disse eu, empolgado.
� Pois ique sabendo! Dos dois, o mais velho era Duarte de
Albuquerque Coelho, e o Sebastianismo nordestino girou, durante certo
tempo, n�o s� em torno de Dom Sebasti�o, mas tamb�m em torno desse
ilho de Duarte Coelho e Dona Brites de Albuquerque. Ali�s, ainda hoje
gira. Porque, apesar de alguns documentos airmarem que Duarte de
Albuquerque Coelho n�o morreu na batalha, o genial escritor e Fidalgo
Pernambucano Carlos Xavier Paes Barretto airma, em seu livro: �Os
dois ilhos de Duarte Coelho, Duarte e Jorge de Albuquerque Coelho,
tornaram-se not�veis nas lutas da �frica. O primeiro, pereceu no campo
da batalha. Quanto a Jorge de Albuquerque Coelho, de quem consta a
c�lebre vers�o de ter cedido ao Rei o cavalo para que se salvasse O

Desejado, icou por terra, com ferimentos que mais tarde lhe
ocasionaram a extra��o de vinte ossos.�
Movido por estranho pressentimento, perguntei:
� De que cor era esse cavalo, Samuel?
� Branco! � respondeu o Fidalgo.
Notem que n�s, extraviados, absolutamente n�o sab�amos que,
naquela hora, n�o muito longe, vinha chegando a Tapero�, pela estrada,
o Alumioso Rapaz-do-Cavalo-Branco; de modo que s� pode ter sido,
mesmo, um sinal do Destino o fato de Samuel ter tocado naquele
assunto. Mas, inconsciente de seu papel prof�tico, ele continuou:
� Olhe, Quaderna, voc� se entusiasmou, h� pouco, com aquela
besteirada dos negros de Palmares que Clemente recitou! Veja se pode
se despir, nem que seja por um instante, de seus gostos de charadista e
almocreve sertanejo, para ouvir coisa muito melhor! � que, do mesmo
jeito que Clemente fez para a negralhada dele, peguei uns peda�os da
prosa idalga de Frei Vicente do Salvador, e escrevi algo sobre os ilhos
de Duarte Coelho, a im de me inspirar para meu poema! Vou
comunicar isso tamb�m � Academia, porque n�o � poss�vel que voc�s
n�o se entusiasmem com essa epopeia da Conquista do Brasil, com os
heroicos Fidalgos brasileiros a perseguirem o sonho do Eldorado
m�stico! � como uma heroica novela de cavalaria, em que o Cavaleiro do
Brasil buscasse, nesta Nova-Tule da nossa P�tria, o Santo C�lice da
Esmeralda, a Esfera Armilar de Ouro, o Santo Graal da nossa Ra�a! Sim,
porque na minha opini�o, o Brasil sempre foi o todo, o Imp�rio, do qual
faziam parte o Reino de Portugal, o da Espanha etc. E assim ser� de
novo, quando os idalgos brasileiros, ora se reunindo em torno da igura
prof�tica de Pl�nio Salgado, adotarem a nova vis�o messi�nica do
Integralismo! A�, o velho Reino do Peru, e o M�xico, e a Bol�via e os dois
Reinos ib�ricos, tudo isso, junto, far� o Quinto Imp�rio do Brasil, aquela
estranha Rainha do Meio-Dia, � qual o Cristo se referiu no seu
enigm�tico e derradeiro �serm�o prof�tico�!
* * *
Ent�o Samuel, vermelho de entusiasmo, com os olhos cheios
d��gua, recitou para n�s, lendo num papel, v�rios peda�os da Cr�nica
seiscentista de Frei Vicente do Salvador sobre Duarte e Jorge de

Albuquerque Coelho. Contou como Jer�nimo de Albuquerque, tio deles,
fora derrotado pelos Tapuias, no Cabo de Santo Agostinho, em
Pernambuco. Com essa vit�ria, os Gentios tomaram-se de ousadia, n�o
deixando mais os Senhores de Engenho alargar suas terras para situar
novas canas e planta��es. Ent�o os dois irm�os preparam v�rias
expedi��es contra eles, �levando neste militar exerc�cio mais de cinco
anos, sofrendo muitas fomes e sedes e n�o sem derramar seu sangue de
muitas frechadas que os inimigos lhes deram�. Jorge de Albuquerque
Coelho ajudou o irm�o mais velho durante todo esse tempo, como
Capit�o-General da guerra. At� que deliberou ir a Portugal, embarcando
na caravela Santo Ant�nio, que saiu do porto do Recife numa quartafeira,
16 de Maio de 1566. N�o tinha ainda a Nau sa�do da barra,
quando encalhou nuns baixios e quase so�obra. Acharam os amigos que
era sinal de mau agouro; mas Jorge de Albuquerque Coelho, depois de
reparada a Nau, tornou a embarcar, no dia 29 de Junho, dia de S�o
Pedro e S�o Paulo. Navegaram at� 3 de Setembro, data na qual, perto
dos A�ores, foram atacados por �uma Nau de cors�rios franceses
luteranos�, armada de muitos canh�es grandes, enquanto a nossa tinha
somente dois pequenos, um �falc�o� e um �ber�o�. Os Marujos quiseram
se render, mas Jorge de Albuquerque Coelho disse que jamais
permitiria que se rendesse sem luta uma Nau em que estivesse. Ent�o,
somente sete homens concordaram em combater com ele. �E assim,
com estes homens somente�, conta Frei Vicente, aquela igura hom�rica
de Fidalgo brasileiro �se p�s �s bombardas, arcabuzadas e frechadas
com os Franceses�. O ar se enchia com os estouros dos tiros, com os
gritos dos feridos, e o Mar salgado se avermelhava com o sangue dos
que l� ca�am!
* * *
Eu, t�o entusiasmado com a �odisseia mar�tima� do Fidalgo
brasileiro quanto icara, antes, com a �il�ada terrestre� do outro, o
Negro, n�o me contive e gritei, erguendo de novo o punho para o C�u:
�S�o Marujos brasileiros,
a bruna P�tria os criou:
s�o fortes Var�es morenos

do Mar que Cabral cortou!
Homens que a Pedra talhara,
v�o cantando a Estrofe rara
que o Cego rouco cantou!
Nautas das castanhas Plagas,
v�o, nas Caravelas vagas,
� Ib�ria que nos sonhou!�
Samuel, interrompido, falou mais uma vez com frieza,
amea�ando:
� Se voc� vier, ainda, com outra moxinifada dessas, eu deixo de
comunicar minhas ideias � Academia!
Prometi me calar, e Samuel pegou de novo do lugar em que
estava. Os Marujos covardes, vendo que, mesmo com aquela
inferioridade toda, Jorge de Albuquerque Coelho lutaria at� o im de
todos, resolveram tra�-lo. Abaixando de surpresa as velas, gritaram para
os Franceses que abordassem a Nau, que eles os ajudariam. Assim,
conseguiram os Cors�rios se assenhorear do navio. O Capit�o franc�s,
ao ver que ali s� havia aqueles dois pequenos canh�es, disse a Jorge:
�N�o me espanta a tua coragem, porque coragem todo bom Soldado �
obrigado a ter. Mas o que izeste aqui foi mais do que coragem, foi
temeridade!� E premiou-o com a honra de sentar � cabeceira da mesa.
Ent�o, no dia 12 de Setembro, bateu sobre eles uma tempestade
pavorosa. A Nau brasileira come�ou a afundar, e todos viram chegar �a
derradeira hora da vida�. Apavorados, os Brasileiros cat�licos e tamb�m
os Franceses luteranos aproximaram-se do Padre jesu�ta �lvaro de
Lucena, come�ando todos a se confessar. Mas Jorge de Albuquerque
Coelho come�ou a encorajar uns e outros, dizendo que n�o deviam
deixar tudo ao cuidado de Deus: �izessem tamb�m, de sua parte, o
rem�dio poss�vel, uns dando � bomba, outros esgotando a �gua que
estava no conv�s�, conselho que os Marujos, animando-se, come�aram a
seguir. O ilho de Duarte Coelho animava-os, com atos e palavras,
dizendo que �esperava, na bondade divina e na intercess�o da Virgem,
Senhora Nossa, que haviam de icar livres do perigo em que estavam�.
Ao dizer ele isso, �viram todos um grande resplendor no meio da
grand�ssima escurid�o, e Deus foi servido de aplacar a tempestade�.

Ent�o, apareceu de novo a Nau francesa, que tinha se desgarrado da
nossa no come�o do temporal: tomando os Franceses que estavam na
Caravela brasileira e a maior parte dos nossos mantimentos, seguiram
para a Fran�a, deixando os nossos num navio destro�ado, � merc� do
Mar. Novamente o desespero se apossou dos Brasileiros. Mas Jorge de
Albuquerque Coelho mandou costurar guardanapos e toalhas, fazendo,
assim, uma Vela. Fizeram um Mastro, amarrando dois remos. De cordas
de rede improvisaram a cordoalha. E assim, iniciaram a etapa mais
dolorosa e heroica da viagem. Os Franceses tinham deixado
pouqu�ssimo mantimento aos nossos: dois sacos de biscoitos podres,
�uma pouca de cerveja danada�, duas canadas de vinho, um frasco de
�gua-de-lor, alguns cocos, poucos punhados de farinha e seis tassalhos
de peixe-boi. Jorge de Albuquerque Coelho foi repartindo essa comida
por trinta e tantos homens, durante a viagem, cuidando pessoalmente
da partilha. Mas, por maiores que fossem seus cuidados e sua
parcim�nia, a fome teria que chegar, como chegou, trazendo tamb�m o
desespero. Ent�o, faminta, desesperada, a marujada resolve deitar
sortes, para escolher um dos homens, a im de ser morto e comido
pelos outros!
Eu j� estava novamente entusiasmado com aquela dolorosa
hist�ria heroica. Sobretudo porque, agora, estava convencido de que j�
conhecia tudo isso, se bem que por caminhos menos idalgos que os de
Samuel. Por isso, esqueci-me da promessa e interrompi:
� Samuel, essa parte da hist�ria eu j� conhecia, se bem que n�o
soubesse como tudo tinha come�ado. � a hist�ria da Nau Catarineta,
que a gente canta, aqui no Sert�o, no Fandango, quando vai representar
o Auto das Chegan�as, a Marujada! Nesse auto tem um romance que diz
assim:
�Ou�am, meus Senhores todos,
uma hist�ria de espantar!
L� vem a Nau Catarineta
que tem muito que contar.
H� mais de um ano e um dia
que vagavam pelo Mar:
j� n�o tinham o que comer,

j� n�o tinham o que manjar!
Deitam sortes � ventura
quem se havia de matar:
logo foi cair a sorte
no Capit�o-General!
� Tenham m�o, meus Marinheiros!
Preiro ao Mar me jogar!
Antes quero que me comam
ferozes Peixes do mar
do que ver Gente comendo
carne do meu natural!
Esperemos um momento,
talvez possamos chegar.
Assobe, assobe, Gajeiro,
naquele Mastro real!
V� se v�s terras de Espanha,
e areias de Portugal!
� N�o vejo terras de Espanha
e areias de Portugal!
Vejo sete Espadas nuas
que v�m para vos matar!
� Vai mais acima, Gajeiro,
sobe no Tope real!
V� se v�s terras de Espanha,
areias de Portugal!
� Alv�ssaras, Capit�o,
meu Capit�o-General!
J� vejo terras de Espanha,
areias de Portugal!
Enxergo, mais, tr�s Donzelas,
debaixo de um Laranjal!
Uma, sentada a coser,
outra na roca, a iar,
a mais mocinha de todas
est� no meio, a chorar!
� Todas tr�s s�o minhas ilhas:
ah quem me dera as beijar!

A mais mocinha de todas
contigo a hei de casar!
� Eu n�o quero a vossa Filha,
que vos custou a criar!
� Dou-te o meu Cavalo branco
que nunca teve outro igual!
� N�o quero o vosso Cavalo,
meu Capit�o-General!
� Dou-te a Nau Catarineta
t�o boa em seu navegar!
� N�o quero a Catarineta,
que Naus n�o sei manobrar!
� Que queres ent�o, Gajeiro?
Que alv�ssaras hei de dar?
� Capit�o, eu sou o Diabo
e aqui vim pra vos tentar!
O que eu quero, � vossa Alma
para comigo a levar!
S� assim chegais a porto,
s� assim vos vou salvar!
� Renego de ti, Dem�nio,
que estavas a me tentar!
A minha Alma, eu dou a Deus,
e o meu Corpo eu dou ao Mar!
E logo salta nas �guas
o Capit�o-General!
Um Anjo o tomou nos bra�os,
n�o o deixou se afogar!
D� um estouro o Dem�nio,
e, com o Vento a baixar,
� noite a Catarineta
chegava ao Porto do Mar!�
* * *

Quando terminei de recitar esse maravilhoso romance-epopeico,
mar�timo e bandeiroso, Samuel veio logo com achincalhes:
� Quaderna, n�o venha misturar suas barbaridades de
sertanejo com a idalguia dos Coelhos, Albuquerques, Cavalcantis e Wan
d�Ernes da Zona da Mata! Eu s� aceitaria, sobre Jorge de Albuquerque
Coelho, um verso feito por algum Trovador ib�rico idalgo, como El-Rei
Dom Dinis, O Lavrador, ou como Dom Afonso Sanches, ilho dele! Isso
que voc� cantou, a�, � uma barbaridade, quase t�o esp�ria e plebeia
quanto os tais �folhetos� que voc� e Lino Pedra-Verde vivem
espalhando pelas feiras, para corromper ainda mais o gosto dos
Sertanejos!
� Est� bem, deixe isso de lado! � concordei, para n�o desgost�lo.
� Estou t�o entusiasmado com essa hist�ria de Duarte e Jorge de
Albuquerque Coelho! Como � que ela termina? � verdade que eles
foram at� os areais africanos, acompanhando Dom Sebasti�o na sua
aventura de Cruzado � �frica?
� � verdade, sim! � disse Samuel. � Existem documentos da
�poca, provando isso! E note mais uma coisa, Quaderna: na batalha de
Alc�cer-Quibir, Jorge de Albuquerque Coelho estava montado num
cavalo branco, de crinas cor de ouro...
Meu cora��o deu seu estreme�o costumeiro. Falei:
� Olhe a�, Samuel! L� vem de novo a hist�ria! No Romance da
Nau Catarineta o cavalo do Capit�o-General era branco!
� Isso n�o tem a menor import�ncia, Quaderna! � disse
Samuel, impaciente. � O que interessa � que, no atropelo da batalha,
Dom Sebasti�o, lutando como um her�ldico Leopardo ferido, cercado
por cachorros negros, teve seu cavalo morto. Encontrando, ent�o, Jorge
de Albuquerque Coelho, tamb�m ferido e ensanguentado, pediu-lhe sua
montaria, para continuar a luta, que ele, coitado, �quela altura, j� sabia
perdida! O Fidalgo donat�rio de Pernambuco cede seu cavalo branco ao
Rei, mesmo sabendo que a montaria era a �nica possibilidade que
tinha, ele pr�prio, de escapar! Dom Sebasti�o monta, e foi nesse cavalo
branco do pernambucano que o Rei morreu, ou melhor, que se
encantou, desaparecendo, �encobrindo-se�, para voltar um dia, com seu
nome ou outro qualquer, a im de instaurar o Quinto Imp�rio do Brasil,
sonho messi�nico e prof�tico de Ant�nio Vieira e de outros vision�rios
da nossa Ra�a! � por isso que eu, apesar do enorme orgulho que tenho

da parte castelhana do meu sangue, dou gra�as a Deus (e aqui o Fidalgo
persignou-se) por ser mais descendente de Portugueses do que de
Espanh�is! A Espanha, por maior que seja sua grandeza, tem sempre,
ao lado de sua fan�tica heroicidade idalga, um lado amolecado,
almocreve e popular que nunca me agradou. � por isso que, enquanto a
Espanha contribu�a, atrav�s das molecagens vulgares de Cervantes,
para destruir o mito do Cavaleiro, Portugal fornecia ao mundo a �ltima
igura de Cruzado e Cavaleiro que existiu, Dom Sebasti�o, O Desejado!
Orgulho-me de que minha fam�lia seja, como a dos Lencastres, uma
fam�lia em cujo sangue ib�rico se instilaram algumas gotas de sangue
mais n�rdico! Se bem que a minha seja superior, porque, nos
Lencastres, o sangue que entrou foi o grosseiro sangue ingl�s, ao passo
que no dos meus, como no de Carlos, O Temer�rio, foi o nobre e ino
sangue lamengo-borgonh�s! Mas existe ainda outro motivo, para o
orgulho do meu sangue: na Pen�nsula Ib�rica, Portugal � uma esp�cie
de Zona da Mata e faixa litor�nea, semelhante � dos Engenhos
pernambucanos, enquanto a Espanha, com sua Castela seca, parda,
�spera e empoeirada, � muito mais parecida com este Sert�o b�rbaro
de voc�s!
* * *
Foi exatamente quando Samuel acabou de dizer isso que eu,
terrivelmente preocupado, descobri que t�nhamos chegado, de novo, ao
mesmo lugar! L� estava novamente a pedra grande, espalhada no ch�o,
com as mesmas Coroas-de-Frade e os mesmos tufos de Macambira.
Apontei-os aos companheiros e disse:
� Olhem l�, a mesma pedra! A gente est� � perdido! Andamos,
andamos e viemos bater no mesmo lugar!
Desta vez os dois icaram mais preocupados do que eu. Samuel
lembrou, logo, o caso recente de um velho que, montado a cavalo, se
extraviara na Caatinga e morrera de fome, sendo encontrada a cabe�a
do cavalo � que ele amarrara a uma �rvore � pendurada pelo
cabresto e separada do corpo pelas aves de rapina que lhe tinham
comido o pesco�o. O Fidalgo, com ar lament�vel, indagou:
� E agora, Clemente?

� Agora, � apelar para Quaderna, que tem pr�tica nessas
andan�as e correrias pela Caatinga! Quaderna, v� na frente, guiandonos!
� Acontece que estou completamente areado! � disse eu,
inquieto. � Com as voltas que demos e com a aten��o que eu vinha
prestando a essas Literaturas cavalarianas de voc�s estou
completamente desorientado, com o mundo escuro e virado �s avessas!
O melhor que temos a fazer � desmontar, icar ali na sombra daquela
Aroeira e esperar que o Sol comece a descambar para o poente, porque
a� a gente se orienta! Por outro lado, isso aqui � uma velha estrada de
carro-de-boi: pode ser que passe algu�m, e a� estaremos salvos!
Desmontamos, amarramos nossas montarias nuns p�s de
marmeleiro, perto, e acolhemo-nos � sombra da Aroeira. Meus dois
Mestres e rivais estavam um pouco inquietos, mas n�o havia coisa
melhor, para passar o tempo, do que continuar nossos debates
acad�micos. Samuel conduzia, tamb�m, sempre, consigo, uma c�pia de
retalhos que cortara e rejuntara, sobre Dom Sebasti�o. Eu, que estava
interessad�ssimo no assunto, espicacei-o:
� Mas ningu�m viu Dom Sebasti�o morrer n�o, Samuel?
� Viram, viram! Mas voc� sabe como o Sonho � muito mais
poderoso do que o Real! Antero de Figueiredo conta que, chegando ao
Reino as primeiras not�cias a respeito da derrota, as vers�es sobre o Rei
eram as mais desencontradas! Uns diziam que �Lu�s de Brito o havia
visto, no im da batalha, avan�ar pelo campo afora, aproveitando uma
clareira, limpa de Mouros�. Outros airmavam que �o Rei pelejara
bravamente at� a morte, e que seu cad�ver fora encontrado, numa
extrema do campo, no meio de outros, dois dias depois, desigurado,
abandonado e nu�. Estava com �a cabe�a inchada, l�vida, j� decomposta
pela can�cula de dois dias africanos�!
� Coitado! � disse eu. � Morreu como o Rei Zumbi, no Reino
dos Palmares!
� A compara��o n�o cabe, Quaderna! � cortou Samuel. � Dom
Sebasti�o era de sangue ino e puro como o meu! E o fato � que o Povo
nunca se convenceu de que ele tinha morrido! Come�aram, logo, a
aparecer vers�es sobre seu milagroso salvamento: �Dom Sebasti�o,
embu�ado, escapara com mais quatro Fidalgos! Dom Sebasti�o
conseguira sair da �frica, num veleiro! Dom Sebasti�o vive errante pelo

mundo para pagar seus pecados: assim que limpar sua grande Alma de
seus belos erros � o que far� pela penit�ncia � se descobrir� e voltar�
ao Reino, iniciando uma era de grandeza, de justi�a e de paz!� E Antero
de Figueiredo, idalgo e cavaleiresco at� o sangue, diz que �os cora��es
comovidos e esperan�ados, juntavam, assim, os primeiros ios daquilo
que, mais tarde, foi meada de crespas Lendas de bem-querer e
devo��o�!
� Que veadagem portuguesa mais descabelada! � rosnou
Clemente.
Eu, por�m, que me interessava, mesmo, era pela participa��o
dos Brasileiros na batalha, interrompi:
� Espere a�, Professor Clemente! E como foi a igura que Jorge
de Albuquerque Coelho fez em Alc�cer-Quibir? H� alguma refer�ncia a
ele e ao irm�o, com a hist�ria do cavalo branco e outros hero�smos
legend�rios, Samuel?
� H�, sim! E veja se a nossa Ra�a n�o deu, mesmo, ao mundo
iguras predestinadas de her�is! Mal chega a Portugal, faminto, com as
feridas das lechadas ainda mal cicatrizadas, Jorge de Albuquerque
Coelho ica fascinado pela igura de Cavaleiro, do Rei! � quando Dom
Sebasti�o sobe ao trono, e come�a a preparar a grande Aventura.
Duarte, irm�o de Jorge, deixa Pernambuco, e junta-se tamb�m �
Cruzada. Era costume, naquele tempo, nas guerras, organizar-se uma
�Companhia dos Aventureiros�, formada somente por rapazes solteiros
e, por isso, destinada �s miss�es mais arriscadas. Jorge e Duarte, em
Pernambuco, na �Guerra dos Tapuias�, apesar de Condes e Senhores,
renunciavam a seus privil�gios e era sempre na �Companhia dos
Aventureiros� que lutavam, como simples Soldados. Pois bem: para a
expedi��o � �frica, Dom Sebasti�o organizou, tamb�m, uma
�Companhia dos Aventureiros�, e foi nas ileiras dela que os Brasileiros
se alistaram! �S� a Nobreza de sangue enilar� nesta brilhante
Companhia, capitaneada pelo privado mais privado do Rei, o
nobil�ssimo Crist�v�o de T�vora. � o ter�o da mocidade, da esperan�a,
da beleza aguerrida e garbosa.� E ajunta-se o Ex�rcito e embarca-se nas
Naus! Eu imagino a exalta��o idalga, cavaleiresca e cat�lica de Jorge de
Albuquerque Coelho, escapo a tantas desaventuras no Mar,
embarcando-se de novo, para acompanhar aquele �Cruzado de antiga
era, que vai atirar-se, repleto de alt�ssimos sonhos, no ardor da F� e na

obstina��o da Honra, de encontro a chusmas de Mouros, nos areais da
�frica berberesca, para, em sacri�cio ingente, sagrar a sua alma de
Her�i numa epopeia de Sangue�! Cruzam o Mar, desembarcam em
T�nger. Organiza-se a Cavalaria, apresta-se a Infantaria. A Artilharia vai
na vanguarda, em carretas. E adentram-se naquelas des�rticas terras de
Mouraria! O Destino marcou um encontro entre o Sonho divino e a
Morte sagrat�ria, numa terra africana s�fara, seca, cheia de pedras e
cardos, como este Sert�o de voc�s! Marcou-o para o dia 4 de Agosto de
1578. � nesse dia que se trava a Batalha! Na v�spera, um Mouro, aliado
nosso, colocou veneno na comida do Rei Mouro, para que a morte dele
desanime os Ini�is! Os dois ex�rcitos � o Fidalgo e crist�o, e o Mouro e
iniel � defrontam-se desde o amanhecer do dia 4. Todos acham que �
melhor esperar at� a tarde: o veneno far� efeito, o Rei Molei-Moluco
morrer�, e os Mouros, apavorados com a morte de seu Rei, ser�o
facilmente desbaratados. Mas Dom Sebasti�o, aconselhado por um
Sargento-Mor espanhol, resolve dar in�cio � Batalha perto do meio-dia,
com o Sol alto. Seguindo, ent�o, o exemplo do Rei, todo o Ex�rcito
crist�o ajoelha-se para rezar a Ave-Maria. Estando ainda ajoelhados, os
Mouros atiram sobre eles suas primeiras bombardas, atingindo com
uma lava ardente de ferro e fogo as ileiras dos nossos Soldados! E
conta o idalgu�ssimo Cronista daquela derradeira Cruzada, extraviada
no tempo:

�D
FOLHETO XXXV
A Tr�gica Desaventura de Dom Sebasti�o, Rei
de Portugal e do Brasil
as primeiras ilas, Dom Jorge de Albuquerque Coelho, muito bem
montado num belo cavalo branco, grita a El-Rei que d� voz de
Santiago (o velho brado de guerra dos ib�ricos). Uma arcabuzada
moura mata o Capit�o Jo�o Gomes Cabral, primeira v�tima, batismo de
sangue, sacramento e inc�ndio! Ent�o El-Rei d� o grito de Santiago, e, a
este alardo santo e b�lico, investe com f�ria alucinada, arrastando
consigo os Fidalgos que tem pr�ximos, Dom Fernando de Mascarenhas,
Dom Jorge de Albuquerque Coelho, Lu�s de Brito, e muitos, muitos
outros, um pelot�o inteiro de Filhos-de-algo, que, bravos, � lan�ada, �
espadeirada, entram pelos Mouros, num tuf�o de morte! Os audazes
Aventureiros (companhia de Duarte e Jorge de Albuquerque Coelho)
atacam as ilhargas inimigas, abrindo clareiras nelas, por entre lorestas
de lanceiros e piqueiros, que eles recha�am, para que os cavalos dos
Portugueses avancem e derrotem! Mas foi demais! � urgente que os
Portugueses refreiem a galopada, para n�o perderem liga��o com seu
Ex�rcito! Suspendem, regressam! Mas os Mouros interpretam esta
manobra como esmorecimento, e, encorajados e afreimados, atacam os
Portugueses pelas costas! Ent�o, de novo, a �Companhia dos
Aventureiros�, e, com eles, os demais de cavalo e de p�, da vanguarda e
dos lancos, cara aos Mouros, atiram-se contra o inimigo, lanceando e
acutilando, com aud�cia, estrondo e brio! Frente a frente, seus cavalos a
pino, Mouros e Crist�os, em sanha raivosa, cruzam armas, chovendo
golpes de alfanjes nos morri�es e nas rodelas de ferro. Mas as Espadas
portuguesas, vibradas de alto e de trav�s, com f� e valentia, abrem
lanhos sangrentos nas cabe�as, fendem peitos, golpeiam pesco�os,
derribam e matam, e os que caem da montada logo acabam,
atropelados pelas patas dos cavalos, que lhes estouram as arcas-dos

peitos, lhes esmagam os rostos, lhes esfacelam os ventres. J� no campo
crist�o se grita Vit�ria! Os �Aventureiros�, sempre na avan�ada, j�
alcan�aram as bombardas inimigas, l�, no fundo do campo mouro. Mais
um arranco e chegar�o � entrada da tenda onde jaz Molei-Moluco, de
cuja morte, pelo veneno, consumada em plena Batalha, j� tomaram
conhecimento por um grito, atirado numa correria, por Dom Ant�nio,
Prior do Crato. Se chegarem l�, lan�ar-se-�o sobre o cad�ver do Rei
Mouro, para lhe decepar a cabe�a e a espetar na ponta de uma lan�a,
passeando vitoriosos, pelo campo de batalha, esse trof�u sangrento!
Nos Mouros, de quem ocultaram a morte de seu Rei, a impress�o ser�
de assombro e, nesse minuto de pavor, come�ar� a debandada geral, em
atropelo desesperado e clamoroso!�
Novamente n�o pude me conter e gritei:
� Que batalha arretada, Samuel! Que coragem ilha da puta!
Parece as brigas dos Mouros e dos Crist�os no Auto dos Guerreiros e na
Nau Catarineta, que a gente representa aqui, com o Cord�o Azul e o
Encarnado!
Samuel encarou-me com um �dio t�o cortante, que me calei,
eniado. Ele ent�o continuou:
* * *
�Nisto, precisamente quando os Crist�os estavam no limiar da
vit�ria, j� ao alcance do triunfo, surge, na frente do Ex�rcito, de
alabarda atravessada, a travar o furor mais que humano daqueles
Her�is assinalados, um sinistro homem, um fat�dico homem, a gritar
com vozeir�o destemperado:
� Parem! Suspendam!
Terr�vel palavra! Diab�lica palavra! Palavra fatal! Lan�ado o
p�nico, os esquadr�es dos intr�pidos �Aventureiros� sofreiam o �mpeto
dos seus cavalos lan�ados a toda brida e estacam, pasmos e indecisos,
suspendendo as espadas. Os arcabuzeiros, surpresos, abaixam as armas
e n�o descarregam. As lan�as e os piques retraem-se. Arregalam-se de
espanto os olhos dos destemidos. Esfuziam no ar mil perguntas e mil
respostas. Correm ordens e contraordens! A onda de Soldados recua, o
tuf�o equestre relui. Come�am as correrias. O alarme � pavoroso. J�
muitos, em debandada espavorida, voltam costas ao inimigo!

Desastrado instante! Desventurado momento! Os Mouros, que
presenciam o tumultuoso alevante e a precipitada fuga, animam-se. Sua
Cavalaria, disposta em forma de meia-lua, cai sobre os Portugueses,
acossa-os, persegue-os, esmaga-os, e, vendo-os recuar, tudo varrem,
tudo limpam! As pontas da lua v�o se aproximando, os Crist�os est�o
quase cercados. Anuncia-se a derrota! Os Mouros, em del�rio de
vingan�a, cegos e desabridos, cada vez s�o mais sanguin�rios!
E Dom Sebasti�o, o Rei? � uma f�ria alada, um Drag�o! Aqui, ali,
al�m, atira-se contra o inimigo, desbrava tro�os de lanceiros, derruba
grupos de Cavaleiros! Golpeiam-no, ferem-lhe de morte o cavalo. Apeiase,
salta para outro, esporeia, galopa, a Espada brilhante no ar cheio de
Sol! Todo ele est� coberto de sangue at� os cascos do corcel. Amolgado
o elmo, rotos os cal��es, em farrapos a sobrecota, l� segue orgulhoso,
na carreira augusta, fascinado pelo clar�o do Dever, este bravo rapaz de
vinte e quatro anos ind�mitos, como jamais se viram mais belos no
mundo! O segundo cavalo que Dom Sebasti�o monta, mal caminha, de
chagado. O Rei encontra, muito ferido, Dom Jorge de Albuquerque
Coelho. Fala-lhe:
� Se o vosso cavalo ainda est� bom, emprestai-mo!
O Fidalgo-donat�rio de Pernambuco cede-lho, pressuroso:
� Todo eu sou uma chaga, n�o o posso acompanhar! Salve-se
Vossa Alteza nele, que eu morrerei aqui, assaz contente deste servi�o ao
meu Rei e a Deus!
Ante esta palavra, salve-se, Dom Sebasti�o estremece:
� E a minha honra?
P� no estribo, m�o esquerda nas r�deas e no ar��o, espada na
direita, monta de um pulo e larga a galope, direito aos magotes de
Mouros que, ao longe, pelejam com Crist�os. Andam no ar, fumarento e
poeirento, gritos, pragas, preces, brilhos de espadas, choques de armas,
impreca��es de raiva vencida, silvos de alegria vitoriosa. Chegou o
momento dos desesperos nobil�ssimos, em que os Grandes portugueses
querem morrer com gl�ria, batalhando at� o derradeiro instante,
naquele estado de pundonor e orgulho que se lan�a na morte honrada
para se sublimar no sacri�cio. O programa desta dignidade estoica est�,
todo, no brado dos Fidalgos ao Povo:
� Morrei como valentes, rapazes!�

* * *
Chegando a esse momento de sua leitura-narrativa, Samuel,
vermelho de emo��o, parou um pouco, engasgado. Depois,
recuperando-se, falou:
� Agora, voc�s v�o me desculpar, mas n�o tenho coragem de ler
o que se segue de outra maneira!
Ajoelhou-se, persignou-se, e foi de joelhos que continuou a
hist�ria tr�gico-epopeica dos �ltimos arrancos da Batalha de Alc�cer-
Quibir:
�Dom Sebasti�o, agora, est� no meio de um punhado de Fidalgos
portugueses, vassalos i�is que, jamais o desamparando, lhe seguram o
cavalo, e tentam, num desesperado esfor�o de amor veemente, arranc�lo
para fora do campo de batalha � salv�-lo. Para isso, exp�em suas
vidas, pela vida preciosa do seu Rei. S�bito, uma chusma de Ar�bios
acorre, cercam-no e aos seus companheiros, �brios de alegria por
poderem deitar m�o �queles ref�ns. J� dois Mouros disputam entre si a
quem o mais bem armado, o Rei, deve pertencer. Ent�o, no meio de
atroadora vozeria, Crist�v�o de T�vora, comandante da �Companhia dos
Aventureiros�, seguro da perda fatal de Dom Sebasti�o, ata um len�o
branco na ponta da espada e ergue-a no ar, pedindo tr�guas. Ante o
sinal de paz, os Mouros suspendem um momento a algarada, acedendo.
Mas, apontando para a temerosa espada do Rei, bradam pela voz de um
l�ngua renegado:
� Que largue primeiro as armas!
� S� a Morte me pode arrancar da m�o esta Espada real! �
ripostou soberbamente Dom Sebasti�o.
O busto ereto, as pernas retesas nas estribeiras de cobre, grande
e belo na sua desgra�a de vencido, a cabe�a ruiva sem elmo e golpeada,
as faces a escorrerem sangue, a camisa negra de poeira e empapada de
suor, o camal lanhado � Dom Sebasti�o olha, altaneiro e imp�vido,
para essa repulsiva turbamulta de gentalha esfarrapada, inimigos da
sua Ra�a, da sua Cren�a, da sua P�tria. Crist�v�o de T�vora, vendo Dom
Sebasti�o irremediavelmente perdido, levanta para ele as m�os
suplicantes e os olhos desventurados, e clama com voz traspassada:
� Meu Rei e meu Senhor, que rem�dio teremos?
� O do C�u, se as nossas obras o merecem! � responde-lhe,
calmo, o Rei de Portugal.

E, com as pupilas obcecadas numa Ideia long�nqua, as �ris azuis
na translucidez da estranha luz celeste da Honra e do Devaneio, Dom
Sebasti�o, sem escutar mais acordo, crava as esporas de ouro nos ilhais
do formoso cavalo branco de Dom Jorge de Albuquerque Coelho e atirase,
num �ltimo arranco desesperado, ao encontro da Morte que o
imortalizar�! Mas, ao alarido guerreiro, t�m-se juntado muitos Mouros,
muitos, que encurtam, apertam, estrangulam o terreno a este Rei de
legenda, que at� o derradeiro momento despede formid�veis cutiladas
com sua espada de furores. Matam-lhe o cavalo. Em p�, batalha ainda.
Por im, uma espadeirada certa, vibrada ao pesco�o sem gorjeira, abateo.
Por terra, crivam-no de lan�as. Entre a vida e a morte, ao sentir-se
varado no peito, ele, que mais preza a honra que a vida, orgulha-se de
que o matem pela frente � cara ao inimigo. Morre. Na fulgura��o do
traspasse clarividente, seu esp�rito, no limiar da Eternidade, deve ter
visto, num esfumo de sangue em dealbo de Ouro, aquele verso que para
si tantas vezes repetia, como Divisa: �A Morte bela sagra a vida inteira.�
Seu sangue real e crist�o espadana de mil feridas e forma � sua volta, na
terra ardente, uma po�a de sangue, aur�ola do seu Mart�rio, aurora da
sua Fama! Era a extrema-un��o da Cavalaria!�
***
Se Clemente era homem capaz de entusiasmos, Samuel era uma
verdadeira sensitiva, de modo que, quando disse a �ltima frase,
prorrompeu em solu�os, que tentava conter em v�o.
� Desculpem! Desculpem! � disse, com as m�os cobrindo os
olhos e enxugando as l�grimas.
Depois, conseguiu serenar um pouco mais. Sentou-se numa
pedra e repetiu:
� Pe�o desculpas a voc�s, mas n�o posso evocar, sem profunda
emo��o, a morte heroica desse belo Rei, jovem, casto e Cavaleiro! Choro
por ele, choro a idalga beleza da juventude sacriicada, choro meu
pr�prio destino de Fidalgo, exilado aqui neste Sert�o ensolarado e
des�rtico de voc�s, cheio de pedras e cardos, como Alc�cer-Quibir! E
creio que voc�s dois, homens de sensibilidade, me perdoam minha
emo��o, porque, mesmo pensando diferentemente, podemo-nos
encontrar no campo comum do humano e da honra, para admirar a

morte heroica e simb�lica desse Rei, morte que foi, bem, a paix�o de
qualquer homem al�ando-se para o Divino e, como disse Antero de
Figueiredo, �a extrema-un��o da Cavalaria�!
Pra que ele foi dizer isso? Na mesma hora, Clemente, com frieza
mal dissimulada, come�ou a botar as unhas de fora:
� Samuel, para lhe ser franco, nem compartilho da sua emo��o
nem do entusiasmo que voc�, um Brasileiro, sente por esse Rei
portugu�s de opereta! Voc� disse, h� pouco, que eu queria criar, aqui,
um Sebastianismo negro que nunca existiu! O que � artiicial, o que n�o
existe, � esse �Sebastianismo brancoso e idalgo, do Sonho e da
Legenda�, combatido hoje, mesmo em Portugal, pelo menos pelos
melhores Portugueses! Voc�, Samuel, quer ser mais Portugu�s do que
os pr�prios Portugueses, mais realista do que o Rei! E o que � pior, �
que, enquanto voc�s vivem com esses sonhos de �Fidalgos ociosos e
maltrapilhos�, as Na��es industriosas v�o passando � nossa frente,
dominando-nos e explorando-nos! Por isso, preiro icar com os
melhores esp�ritos Portugueses, que consideram a desastrada aventura
de Dom Sebasti�o, na �frica, como o verdadeiro in�cio da decad�ncia de
Portugal! J�lio Dantas, por exemplo, � contr�rio ao tal do �Desejado�:
airma que o caso de Dom Sebasti�o era apenas um problema de
homossexualidade, sendo sua famosa e louvada �castidade� t�o
somente resultado disso! Da� � que vinham seus assomos, sua
inquieta��o, seu fanatismo de monge-militar, sua horrorizada
misoginia, sua loucura, seus desequil�brios e alucina��es!
N�o pude deixar de interromper:
� Mas Clemente, voc� n�o � a favor do homossexualismo como
forma de guerrilha?
� Conforme, Quaderna! � disse o Fil�sofo. � H� uma
pederastia revoltada e da Esquerda, e outra reacion�ria e da Direita! A
de Dom Sebasti�o era da Direita, e por isso sou contra ela!

P
FOLHETO XXXVI
O G�nio da Ra�a e o Cantador da Borborema
recisamente nesse instante, ouvimos, do lado esquerdo da vereda,
um espirro de cavalo, ru�do de cascos, de esporas batendo nos
estribos e tudo o mais que denuncia a aproxima��o de um Cavaleiro. Eu
estava de tal modo empolgado com aquelas visagens do Reino dos
Palmares e da Batalha de Alc�cer-Quibir, que iquei todo arrepiado, com
os cabelos da nuca tesos e o cora��o aos saltos. Esperava ver surgir ali,
diante de n�s, ou a igura do Rei Zumbi degolado, montado a cavalo,
segurando a pr�pria cabe�a nas m�os, o pesco�o fumegando e todo
coberto de ferimentos, como uma grande Rosa negra orvalhada de
sangue, para usar a imagem do genial Jayme de Altavila, ou o pr�prio
Dom Sebasti�o, �com o generoso rosto alanceado�, de armadura e
espada luzente, �suja de Sangue e P� a real Fronte�, tamb�m todo
recoberto daquele sangue que, segundo Antero de Figueiredo, tinha
sido �aur�ola de seu Mart�rio e aurora da sua Fama�.
Mas, gra�as a Deus, n�o era nem um nem outro. Era meu
Padrinho-de-crisma e mestre de cantoria, Jo�o Melch�ades Ferreira da
Silva, o Cantador da Borborema, o velho soldado da Guerra de Canudos,
envelhecido e encanecido, mas sempre alerta e lamejante nas suas
grandezas e falas di�ceis de Poeta e mestre em Artes. Vinha com seu
velho d�lm� militar, desbotado e todo remendado. Mas, em vez de
botinas, vinha com alpercatas-de-rabicho, chap�u de palha, �culos,
viola e uma espingarda que nunca abandonava. Chegando perto da
aroeira onde est�vamos, parou a besta em que vinha montado, e, l�pido,
esperto, duro, teso em cima da sela apesar de sua idade, gritou,
reconhecendo-nos:
� Viva, Dinis, meu ailhado! Viva, Professor! Viva, Doutor
Samuel!
� Viva, meu Padrinho Jo�o Ferreira! � disse eu. � A b�n��o?

� Deus lhe aben�oe, lhe d� ju�zo e vergonha! Que � que est�o
fazendo, perdidos por aqui, nesse meio de mundo?
� Estamos perdidos mesmo, meu Padrinho! Sa�mos da rua, para
ir � Ilumiara Ja�na, e, na volta, eu me areei, de modo que nos perdemos
aqui, nesse carrasco de caatinga dos seiscentos diabos! O senhor vai
para a rua?
� Vou!
� E est� orientado?
� Dinis, eu estou com a idade que voc� sabe, mas nunca soube o
que era me perder! Estou orientado de tudinho! Se o que voc�s querem
� ir pra rua, me sigam, que, com os poderes de Deus, a gente chega l�, j�,
j�!
* * *
Montamos e tocamos para a frente, agora seguindo meu
Padrinho, cuja chegada era providencial, n�o s� por me tirar do
extravio como para refor�o das minhas posi��es. Como meu Pai, Jo�o
Melch�ades era um pouco Astr�logo, e era muito Poeta, como eu. Logo
que eu come�ara a aprender cantoria, ele tirara meu hor�scopo
astrol�gico e zodiacal de Poeta, como, ali�s, fazia com todos os seus
disc�pulos, para n�o perder tempo com os �impedidos�. No dia do meu,
ele foi procurar meu Pai e comunicou-lhe, empolgado e grave, com voz
cava, que os astros me reservavam um grande destino de Cantador, e
que, se eu me dedicasse com todo empenho �aos segredos da Arte�,
voaria muito alto. Assim, agora, escarnecido por Clemente e Samuel, a
presen�a de Jo�o Melch�ades vinha me servir de grande apoio.
Comuniquei logo a meu Padrinho, em termos resumidos, o problema
liter�rio que v�nhamos debatendo e rematei:
� Voc�, Jo�o Melch�ades, que � mestre na Arte da cantoria, �
quem podia nos dar algumas indica��es sobre o assunto!
Jo�o Melch�ades, nessas horas, dava para falar di�cil, mania que,
ali�s, comunicou a Lino Pedra-Verde, seu aluno, tamb�m. Disse, logo:
� Que mestre de cantoria que nada, Dinis! Considero-me,
apenas, um servo da Estrela das minhas posi��es zodiacais, um
pequeno Instrutor po�tico-sertanejo, ilantr�pico e lit�rgico! Minha
base de escrever � tra�ar gracejos que n�o pendam para o lado

licencioso e enredos vantajosos e heroicos, ainda que sejam
imagin�rios! Gosto, tamb�m, de combater o Protestantismo e os novaseitas,
porque querem se afastar dos tracejados de luz da antiguidade
cat�lica! As coisas e hist�rias velhas inluem muito para o progresso da
Poesia: as hist�rias passadas recordam a mem�ria imortal dos
ant�stites e antepassados, revivendo na mem�ria do Poeta, que, depois,
faz chegar ao ouvido do mais rude o toque da Mem�ria dos tempos
idos! Eu, Dinis, considero-me um �raro do Povo�! O Povo me considera
um ilho das Musas, e, por isso, me entende, me cr�, me aplaude, me
escuta e me atende, desde que comecei a escrever, no ano em que voc�
nasceu, 1897. Meus versos s�o terrenos explorados nos campos dos
Sonhos, eu versejo por guia de Deus e por inspira��o do Altro, por
inluxo do Sol e de V�nus!
Clemente e Samuel estouraram na gargalhada. Jo�o Melch�ades
riu tamb�m, e eu nunca sabia, ao certo, se ele notava ou n�o a zombaria
dos dois grandes homens. Mas a mim, o que me intrigara, � que ele
tinha falado em �inspira��o do Altro�. Julguei que entendera mal e que
se tratava de �inspira��o do alto�. Mas Jo�o Melch�ades disse que se
referira, mesmo, era ao �Altro�, ao Outro, ao Guia diab�lico, oposto ao
guia de Deus que tamb�m o inspirava. Clemente, por�m, inadvertido
para essas coisas, comentou:
� Est� vendo, Quaderna? Est� vendo o que eu sempre lhe disse?
A gente n�o pode, de jeito nenhum, prestigiar esses Cantadores e
folheteiros! Voc� est� bem arranjado com esses Mestres! V�, ou�a as
li��es deles, escreva sua Epopeia baseado nelas, e veja se n�o estar�
arranjado, depois, diante do Povo Brasileiro!
� Mas n�o � uma Epopeia o que eu quero fazer mais n�o,
Clemente! A princ�pio, pensei nisso, tendo como assunto a Pedra do
Reino e como igura central meu bisav�, o Rei Jo�o Ferreira-Quaderna!
Mas acabo de desistir, depois que ouvi Carlos Dias Fernandes provar
que as Epopeias est�o ultrapassadas! De fato, eu j� estava meio
cismado, porque o Senador Augusto Meira, Poeta �pico pelo Rio Grande
do Norte, j� escreveu o Brasileis � Epopeia Nacional Brasileira, em
catorze cantos, maior, portanto, do que Os Lus�adas, que s� tem dez!
Sendo assim, o que � que eu iria fazer mais, nesse campo da Epopeia
brasileira? Por isso, mudei de ideia, e o que quero, agora, � escrever um
�romance�!

� Mas Quaderna, voc� n�o tem imagina��o criadora nenhuma!
� disse Samuel. � Voc� mesmo confessa que n�o sabe imaginar o que
n�o viu: como �, ent�o, que pretende fazer um romance, g�nero
liter�rio bastardo, mas que exige, ainda assim, poder criador?
� Meu plano me foi sugerido pelas conversas de voc�s! �
expliquei. � � verdade que n�o tenho ideias, nem imagina��o criadora.
Mas acho que posso resolver os dois problemas de uma vez. Quanto ao
primeiro obst�culo, voc�s dois t�m muitas ideias, ideias de sobra, e
podem me ajudar, uma vez que, escrevendo um romance, n�o concorro
com nenhum dos dois! Quanto ao fato de eu s� saber descrever o que vi,
acontece que j� vi, com esses olhos que a terra h� de comer, um assunto
da gota-serena, capaz de ser tema dum romance mordido de cachorroda-
molesta!
� Qual foi? � indagou Clemente, curioso.
� A �vida, paix�o e morte� de meu Padrinho, Dom Pedro
Sebasti�o Garcia-Barretto! Eu nunca tinha dito nada a voc�s somente
porque tinha medo de que me furtassem a ideia! Agora, por�m, que
todos dois me garantem que n�o v�o escrever nunca um romance,
posso falar, e digo, logo de entrada, que j� tenho a receita do livro!
� A �receita�? � disse Samuel, entre intrigado e desdenhoso.
� Sim! Consegui essa receita, primeiro, no Dicion�rio Pr�tico
Ilustrado, que recebi de meu Pai. Depois, no livro da genial Albertina
Bertha, que voc� me emprestou. Essa mulher � os p�s da Besta, Samuel!
� ilha de um Conselheiro do Imp�rio, Lafayette Rodrigues Pereira, de
modo que a palavra dela vale quase tanto quanto a do Doutor Amorim
Carvalho, Ret�rico do Impostor Dom Pedro II! Ela diz que romance j� foi
�uma forma de Poesia sem canto�. Depois, passou a designar as
�narrativas em Prosa�. Mais tarde, ainda, os romances �aparecem sob
forma de s�tira, de alegoria, de fabul�rios que se acompanhavam de
cantos joviais e obscenos�. Modernamente, diz ela que � importante �o
romance inspirado pelos novos m�todos de instru��o criminal�. Olhem,
copiei, no livro, essa parte da receita, e vou l�-la. Diz ela que nesses
�romances de instru��o criminal�, o enredo para a pista do assassinato
�se faz sempre pelo grande Decifrador� e a hist�ria termina sempre
com �a Virtude recompensada e o Crime punido�.
� N�o entendi! � falou Clemente. � O que � que voc� quer
dizer com isso?

� Quero dizer que, com a hist�ria da morte de meu Padrinho,
eu poderei fazer um �romance de instru��o criminal� pra homem
nenhum botar defeito! A hist�ria tem todas as qualidades. Primeiro, �
terrivelmente cruel. Ora, o Doutor Amorim Carvalho diz que �a Trag�dia
e a Epopeia podem tirar seus her�is do seio dos grandes criminosos
para, ao lado das suas atrocidades, fazer brilhar comoventes virtudes�.
Depois, meu Padrinho foi degolado dentro dum quarto sem janelas, cuja
porta ele mesmo trancara por dentro. Assim, a morte dele tem todas as
caracter�sticas do �grande Crime indecifr�vel� que a genial Albertina
Bertha considera indispens�vel aos grandes �romances de instru��o
criminal�!
� Mas se a morte de seu Padrinho n�o foi decifrada, n�o poder�
servir de assunto, porque a mesma Albertina Bertha observa, muito
bem, que os romances desse tipo terminam com a decifra��o do crime e
o castigo do criminoso! No caso, como � que voc� vai revelar o her�icriminoso,
se ningu�m sabe quem foram os assassinos de seu
Padrinho?
� Clemente, eu sou um astr�logo e Decifrador proissional, e
digo a voc� que vou decifrar o Enigma e revelar o Her�i dessa hist�ria,
de qualquer maneira! Depois, tem ainda uma coisa: Albertina Bertha
diz que o romance ainda evoluir�, e que �a Guerra produzir� uma Obra
embebida de alternativas de vingan�a e perd�o, inlamada de furor
�pico, rubra, empenachada de altivez e de vit�rias, dolorosa, das
ren�ncias graves e da Vida cantante, por amor a uma defesa, a um
s�mbolo, a um ideal, � P�tria�.
� E como o charadista Quaderna nunca perdeu a esperan�a de
ver o Sert�o novamente posto em guerra por sua fam�lia, ser� essa �a
guerra� que trar� �a obra� entre seus destro�os! � disse Clemente,
sarc�stico.
Que coisa! Como aqueles homens eram agudos, como
descobriam meus pensamentos mais secretos! Minha sorte � que a
Divindade continuava se divertindo em ceg�-los, nos momentos
cruciais. Por isso, n�o se aperceberam de quanto andavam, naquele
momento, dentro do Sol da verdade, e pude continuar, sozinho, minha
fat�dica Rota. Acresce que, h� muito tempo, astutamente, eu vinha
aproveitando e anotando o que Clemente e Samuel diziam, assim como
copiando trechos de livros a que eles se referiam, nas conversas. A

inlu�ncia principal era, mesmo, a de Carlos Dias Fernandes. Atrav�s de
indica��es pescadas aqui e ali em Talcos e Avel�rios, eu descobrira que o
escritor que se propusesse a escrever a �Obra da Ra�a Brasileira� tinha
de �possuir emotividade e�lia, para fundir no crisol de si mesmo essas
psicoses surpreendentes que aureolam de originalidade os
personagens de sua Trag�dia, de seu Poema, de seu Romance�. Tinha
que ter �requisitos est�ticos e eruditos� � e eu tinha o Almanaque e o
Dicion�rio. E mais: �combatividade, pelas aud�cias destemidas de seu
crit�rio, incid�ncia ferina nas arestas sens�veis da coletividade, a rijeza
gran�tica de um rochedo� � e, s� de rochedo, eu tinha logo dois, na
Pedra do Reino. Devia ele, ainda, ter �estro e a simbiose ps�quica de
soci�logo e artista�, o que lhe permitiria �capacidade de generaliza��o�
e o faria �presa de fulgura��es hipn�ticas�: ora, para ser soci�logo, eu
tinha a inlu�ncia de Clemente, e para artista, a de Samuel. Como, por
outro lado, eu sou astr�logo e sei hipnotizar, as �fulgura��es hipn�ticas�
estavam garantidas. Finalmente, o �g�nio da Ra�a� devia ser �felino� �
e, para isso, eu tinha o Oncismo, de Clemente; devia ser dotado de
�pungente ironia�, �formidavelmente grand�loquo e cruelmente
mordaz�, pois s� assim seria capaz de fazer um livro (ou de erguer um
Castelo) �rubro por dentro e por fora�, uma �obra lamejante�, capaz de
vir a ser a �luminosa ogiva de toda a constru��o intelectual da Ra�a
Latina� � e o Tapirismo de Samuel n�o me deixaria falhar, unindo eu o
Sebastianismo negro de um e o Sebastianismo ib�rico do outro, numa
nova esp�cie de �Sebastianismo castanho� que realizasse o sonho da
Pedra do Reino num futuro ainda mais ensolarado e acastelado!
E havia mais. Clemente e Samuel, um Negro e outro Branco,
desprezavam-me por ser, eu, um descendente moreno de Cabras e
Mamelucos, de Caboclos. Mas Carlos Dias Fernandes escrevera:
�Amemos a nossa P�tria por seu maravilhoso Sert�o, que alenta o G�nio
da Ra�a, com o puro sangue dos seus Caboclos! � esses �ridos Sert�es,
abrasados pelo Sol, inacess�veis a toda invas�o estrangeira, onde se
gera uma s�bria Ra�a equestre de infatig�veis Ginetes destemerosos;
esses rudes Sert�es bravios e desolados, que inspirar�o, um dia, a
tumultu�ria concep��o da nossa Epopeia.� Era claro, clar�ssimo!
Mas o que me deixava orgulhoso e aterrorizado, o que provava
que eu fora, mesmo, marcado pelo �sigilo do G�nio�, pelo sinal candente
do Divino, era que, referindo-se ao escritor que reunia todas aquelas

qualidades, Carlos Dias Fernandes falava, nada mais, nada menos, do
que em �aroma surpreendente�! Vejam s�! Era exatamente aquela
�catinga de Bode�, que os dois cheirosos e elegantes Doutores
reclamavam em mim, a prova de que a Divindade tinha me assinalado
para ser o Arcanjo anunciador do Sol da nossa Ra�a!
* * *
� claro que me abstive de falar nessas coisas, para n�o despert�los.
Mas Jo�o Melch�ades j� entendera, mais ou menos, do que se tratava
e interveio:
� Pelo que entendo, o nosso Dinis, aqui, est� querendo escrever
um �romance� e os senhores est�o achando que ele n�o pode. � isso?
� � isso mesmo, Jo�o Melch�ades! � disse Clemente.
� Vossas Excel�ncias permitem que eu, na minha ignor�ncia das
coisas lit�rgicas, diga alguma coisa?
� Pois n�o, estim�vel Poeta, pode falar! � disse Clemente,
preparando-se para achar gra�a.
� Pois, com a permiss�o de Vossas Excel�ncias, vou dizer
alguma coisa sobre Dinis e a nossa Arte! O Mundo � um livro imenso,
que Deus desdobra aos olhos do Poeta! Pela cria��o vis�vel, fala o Divino
invis�vel sua Linguagem simb�lica. A Poesia, al�m de ser voca��o, � a
segunda das sete Artes e � t�o sublime quanto suas irm�s g�meas, a
M�sica e a Pintura! Vem da Divindade a sua ess�ncia musical. Mas,
meus Senhores, ningu�m queira tomar como Poesia qualquer estrofe,
pois h� muitas Poesias sem estrofes e muit�ssimas estrofes sem Poesia...
Ser Poeta, n�o � somente escrever estrofes! Ser Poeta, � ser um
�gen�aco�, um �ilho assinalado das Musas�, um homem capaz de se al�ar
� umbela de ouro do Sol, de onde Deus fala ao Poeta! Deus fala atrav�s
das pedras, sim, das pedras que revestem de concreto o trajo particular
da Ideia! Mas a Divindade s� fala ao Poeta que sabe al�ar seus
pensamentos, primando pela grandeza, pela bondade, pela gl�ria do
Eterno, pelo respeito, pela moral e pelos bons costumes, na sociedade e
na fam�lia! Existe o Poeta de loas e folhetos, e existe o Cantador de
repente. Existe o Poeta de estro, cavalga��o e reina�o, que � o capaz de
escrever os romances de amor e putaria. Existe o Poeta de sangue, que
escreve romances cangaceiros e cavalarianos. Existe o Poeta de ci�ncia,

que escreve os romances de exemplo. Existe o Poeta de pacto e estrada,
que escreve os romances de espertezas e quengadas. Existe o Poeta de
mem�ria, que escreve os romances jornaleiros e passadistas. E
inalmente, existe o Poeta de planeta, que escreve os romances de
visagens, profecias e assombra��es. Pois bem: andei estudando as
posi��es situacionais e zodiacais do nosso Dinis, a�, e cheguei �
conclus�o de que ele � o �nico Poeta, aqui do Cariri, que re�ne as
qualidades de Poeta de estro, de pacto, de ci�ncia, de mem�ria, de
sangue e de planeta! Pedro Dinis Quaderna nasceu a 16 de Junho de
1897, na terceira d�cada do Signo de G�meos, tempo no qual, segundo
os livros de Astrologia, �pode nascer um G�nio verdadeiro�, sendo as
pessoas nascidas a� �afetuosas e inconstantes, mas assinaladas e
terr�veis�. O Planeta desse signo � Merc�rio, astro que, segundo o
Lun�rio Perp�tuo, tem dom�nio �sobre os Poetas-escriv�es, letrados,
Pintores, ourives, bordadores, tratantes, diligentes e mercadores�,
sendo de notar que, quando h� predomin�ncia das inlu�ncias
mal�icas, aparecem entre os de G�meos �os charlat�es, Palha�os,
embusteiros, ladr�es, estelionat�rios e falsiicadores�!
� Como foi que voc� disse, meu Padrinho? � indaguei como se
fosse de modo casual. � Voc� falou em Poetas-escriv�es, foi? Ouviu,
Samuel? Quer dizer que eu sou como Pero Vaz de Caminha, um Poetaescriv�o
da Armada Brasileira!
O Fidalgo deu um muxoxo:
� O que voc� pode ser � um Palha�o, marcado pela �inlu�ncia
mal�ica de G�meos e Merc�rio�, um embusteiro e falsiicador de
moeda!
� N�o faltando com o respeito, o senhor est� enganado, Doutor
Samuel! � contestou Jo�o Melch�ades. � Na terceira d�cada do signo
de G�meos, os inluxos astrais s�o ben�icos, pois Merc�rio j� est�
iluminado pelo Sol! Ali�s, Dinis sabe disso melhor do que eu, e pediu ao
irm�o dele, Taparica, para cortar um taco de madeira, representando o
carro de Merc�rio alumiado pelo Sol e conduzido por um Gavi�o, com o
signo de G�meos nas rodas!
* * *

Acredito que Jo�o Melch�ades ainda tivesse outras coisas
�astrosas e zodiacais� para dizer em meu favor. Mas, naquele momento,
cheg�vamos � Estrada Real. O areamento em que me encontrava
desapareceu de repente, o mundo clareou na minha vista, o atrapalho
sumiu-se. Clemente e Samuel, que iriam para a rua, acompanharam
Jo�o Melch�ades. Eu, por�m, j� sa�ra resolvido a almo�ar s�, no meu
Lajedo sagrado, situado perto daquela Estrada. Despedi-me dos tr�s,
prometendo estar de novo com eles na rua, para assistir �s Cavalhadas
que eu e meus irm�os t�nhamos organizado para aquela tarde. De modo
que nos separamos e, por quest�o de poucas horas, terminamos
perdendo a passagem, ali, da Cavalgada do Rapaz-do-Cavalo-Branco.
De qualquer modo, eu j� tinha os dados para fazer meu
Romance-epopeico, tendo como centro e Enigma-de-crime-e-sangue a
degola��o de meu tio, Padrinho e pai de cria��o, assim como a
encanta��o do ilho mais mo�o dele, Sin�sio Sebasti�o, O Alumioso. Em
torno da Torre em que o velho Rei fora degolado e tendo como alicerce
as duas outras torres da Pedra do Reino, eu ergueria meu Castelo,
fazendo, de �folheto em romance e de romance em folheto�, uma esp�cie
de Sertaneida, Nordest�ada ou Brasileia, parecida com a do Senador
Augusto Meira. Cortaria as pedras sertanejas com o punhal dos Reis
sangrentos, meus antepassados. Molharia a argamassa com meu sangue
e a pe�onha que meus dois Mestres diziam haver em mim. Faria
perpassar pela Obra inteira as ins�gnias da minha coragem e a vergonha
das minhas deser��es; os estandartes e bandeiras da minha c�lera e o
espinho da minha Dor permanente. Tudo j� me aparecia, como num
sonho, diante de mim, enquanto eu caminhava pela estrada. Meu Trono
fulgurante de chamas prof�ticas, o ex�lio em que vivia � implac�vel e
irremedi�vel �, meu ardente desaio e meu in�til desespero, as
moradas do meu sofrimento e os travos amargos da minha altivez. E
assim, ainal, seria eu pr�prio que estaria na Obra, cruciicado entre
motejos e zod�acos, cravado e alanceado, como Zumbi e Dom Sebasti�o,
contra os muros do meu Castelo, exposto como motivo de honras e
zombarias, � luz mercuriana e solar do meu Signo, sinado e assinalado,
com manto de p�rpura e coroa de espinhos, sustendo em minhas m�os
um Cetro escarnecido.
� por isso, ent�o, que, no momento de iniciar minha hist�ria,
preso aqui nesta Cadeia, humilhado, perseguido, desprezado, olho para

tr�s, e tudo o que me aconteceu parece um Sonho, uma visagem que
desilou diante de mim, num momento perigoso e alucinat�rio, tendo o
desile come�ado com a cavalgada do Rapaz-do-Cavalo-Branco, naquele
dia, pela estrada. O que, ali�s, n�o � de espantar, uma vez que, nos meus
momentos mais ensolarados de devaneio, o pr�prio Mundo me aparece
como uma larga Estrada sertaneja, um Tabuleiro seco e empoeirado,
onde, por entre pedras, cactos e espinhos, desila o cortejo luminoso e
obscuro dos humanos � Reis, Valetes, Rainhas, cavalos, torres,
Curingas, Damas, Peninchas, Bispos, Ases e Pe�es. Todo este meu
Castelo e os acontecimentos que nele sucedem para sempre, me
aparecem com o elemento festivo e sangrento dos sonhos, como a
encena��o de um espet�culo dos que d�vamos em nosso Circo, com a
dan�a do ch�o, a do sol e a do subterr�neo, ao som dos cantos dementes
e obscenos entoados por minha Musa macha-e-f�mea, a Gavi� do
Carcar� que invoquei e invoco a cada instante; Musa da vida e da morte,
com a face saturnal, sombria e des�rtica, com a face lunar do sonho e do
sangue, e com a face ensolarada e gargalheira do real. Por outro lado, eu
sabia que tudo aquilo sucede � dentro do meu sangue e da minha
cabe�a, da minha �mem�ria�, onde havia um estrado e uma Cortina que,
no momento em que se fechasse deinitivamente, acabaria o
Espet�culo, aquele sonho glorioso e grotesco, cheio de rosnados e
clarins, de farrapos e mantos de ouro, sujo e embandeirado. Ou, como
dizia um Cantador, num �folheto�:
�Sabe o Rei que vive um Sonho
pois, aqui, de nada � Dono,
que n�s surgimos do Nada
e a Vida acaba num Sono,
pois a Morte � nosso Emblema
e a Sepultura � seu Trono!�

INS�GNIA ASTROL�GICA DE DOM PEDRO DINIS QUADERNA,
O DECIFRADOR.

Galope
OS TR�S IRM�OS
SERTANEJOS

A
FOLHETO XXXVII
A Teia do Meu Processo
ssim, tudo estava decidido, todos os alicerces tra�ados, para
quando chegasse o momento. Terminou a explica��o acad�mica e
j� se entendem os motivos que me levaram a erguer este meu Castelo
perigoso, liter�rio, espinhento e pedregoso. Posso voltar, portanto, �
chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco e aos motivos da Cadeia em que
me acho trancaiado.
Era aquela fat�dica Quarta-feira de Trevas, 13 de Abril deste
nosso ano de 1938. Na v�spera, eu fora intimado por nosso Oicial de
Justi�a, Severino Brejeiro, que me entregara um bilhete do Juiz-
Corregedor, convidando-me a comparecer perante ele, a im de depor
no inqu�rito aberto sobre todos aqueles acontecimentos, isto �, sobre
tudo aquilo que se ligava ao assassinato de meu Padrinho e � chegada, a
Tapero�, do Rapaz-do-Cavalo-Branco.
Era, como Vossas Excel�ncias bem se lembram, um tempo
fat�dico e perigoso, aquele. Do meu ponto de vista pessoal, est�vamos,
ainda, dentro do �S�culo do Reino�. Desde 1935 eu esperava que um
acontecimento qualquer � uma guerra, um cometa, uma revolu��o, um
milagre � me repusesse, de repente, no trono que minha fam�lia
ocupara um s�culo antes.
Por outro lado, do ponto de vista geral do Brasil, com o tenso e
carregado ambiente pol�tico que est�vamos vivendo desde a Revolu��o
comunista de 1935 e o golpe de Estado de 10 de Novembro do ano
passado, 1937, a nossa Vila estava subvertida por muitos �dios,
ressentimentos, ambi��es e invejas, meio endoidecida por um ambiente
inquisitorial de den�ncias, suspeitas, cartas an�nimas e trai��es, �s
vezes as mais inesperadas.
De fato, desde Novembro de 1935, depois da frustrada
insurrei��o comandada por Lu�s Carlos Prestes, chefe dos comunistas
brasileiros, a repress�o vinha sendo violenta. Estavam presos ou

exilados in�meros comunistas e liberais-de-esquerda da Alian�a
Nacional Libertadora, partido que desencadeara a revolta e fora
colocado fora da lei. Durante certo tempo, o Presidente Get�lio Vargas
parecera se aliar ao partido de extrema-direita, a A��o Integralista
Brasileira, cheiada por Pl�nio Salgado (aquele mesmo que o nosso
Samuel tanto admirava, colocando-o ao lado do General Francisco
Franco e do Doutor Ant�nio de Oliveira Salazar, os tr�s formando as
grandes esperan�as de restaura��o do grande imp�rio da Nova Ib�ria).
Mas, de repente, sem que ningu�m esperasse por aquilo, o Presidente
Vargas deu um golpe de Estado no dia 10 de Novembro de 1937,
suspendendo as elei��es, as garantias constitucionais, estabelecendo
uma rigorosa censura, instituindo o famoso Tribunal de Seguran�a
Nacional (do qual faz parte o nosso poeta Raul Machado) e colocando
os integralistas fora da lei, como izera j�, dois anos antes, com os
comunistas.
Esperava-se, para qualquer momento, um revide dos
integralistas. Acabou o ano de 1937 e entramos por este de 1938.
Passou Janeiro, passou Fevereiro, e entramos pelo m�s de Mar�o. A�, de
repente, come�aram a correr boatos aterrorizantes. Diziam que no dia
10 de Mar�o tinha havido uma primeira tentativa de insurrei��o
integralista, no Rio, tentativa que n�o chegara propriamente a falhar
nem triunfar porque fora suspensa na �ltima hora, tendo chegado os
chefes integralistas � conclus�o de que n�o havia, ainda, condi��es para
o golpe de m�o. Diziam, por�m, que este viria agora, a qualquer
momento, mais forte do que nunca.
Do nosso ponto de vista, por�m, o grave � que o chefe mais
importante daquela tentativa fora, ningu�m mais ningu�m menos, do
que o Contra-Almirante Frederico Villar. Quando eu soube disso,
estremeci, vendo o alcance do fato para o Brasil em geral e para a
Para�ba e o Cariri em particular. O Contra-Almirante Frederico Villar
pertencia a uma fam�lia estabelecida desde o s�culo XVIII em Tapero�,
onde era propriet�ria de grandes extens�es de terras, doadas por El-Rei
Dom Jos� I ao primeiro Villar estabelecido no Sert�o da Para�ba. Esse
era o motivo de Samuel prestigiar aquela fam�lia poderosa que se
espalhara tamb�m pelo Serid� do Rio Grande do Norte e por outros
lugares.

Estava-se nesse ambiente, quando chegou � nossa Vila de
Tapero� um certo Juiz-Corregedor, homem poderoso e perigoso,
aumentando os boatos que j� corriam sobre a situa��o pol�tica. Por
falta de sorte minha, fora ent�o nesse ambiente carregado de amea�as
que achara de suceder o desenlace de toda aquela terr�vel desaventura,
na qual eu me metera em 1912, e que assumira aspectos graves em
1930, culminando com os acontecimentos desencadeados de 1935 a
1938, com a chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco. Mal chegara, o
Corregedor, homem arguto, se apercebera do verdadeiro alcance de
tudo aquilo. Telegrafou ent�o ao Tribunal da Para�ba pedindo uma
licen�a especial, e abriu inqu�rito, reabrindo velhos processos,
desencavando autos empoeirados, farejando e esmiu�ando tudo como
um cachorro danado.
A�, ocorrera o pior, para mim: algu�m me delatou ao Corregedor
como implicado nos acontecimentos, desenterrando, com a den�ncia,
velhas tramas sangrentas e enigm�ticas que todos n�s prefer�amos
sepultar na pedra, debaixo de sete chaves, mas que reapareciam agora,
lan�ando o desassossego, o sofrimento e o medo sobre a nossa fam�lia e
sobre algumas das pessoas mais inluentes e poderosas do lugar.

E
FOLHETO XXXVIII
O Caso da Cabe�ada Involunt�ria
ssa hist�ria da den�ncia de que fui v�tima merece, ali�s, uma ligeira
refer�ncia. Tudo come�ara com uma briga liter�ria. Eu, para falar a
verdade, nunca julgara que meus inocentes fumos mon�rquicos
izessem inveja a ningu�m. Julgava-me eu mesmo apagado e
despercebido, sem saber quanto minhas cavalarias, que n�o ofendiam a
ningu�m, vinham acarretando despeitos, invejas, ressentimentos e
mesmo �dio, entre meus confrades da rua.
Entre esses, havia um, escrevente do Cart�rio de Seu Belarmino
Gusm�o. Era um sujeitinho magro, escalavrado, com cara de concriz.
Provavelmente abrigava e abriga na cabe�a o sonho quim�rico de vir a
ser G�nio da Ra�a Brasileira. Sentindo o perigo que eu representava
para ele, come�ou, imediatamente, uma campanha surda e desleal
contra mim. Para me destruir, come�ou a espalhar em nossas rodas
intelectuais sertanejas que eu era �um homem inteligente, um exseminarista
esperto e um charadista�, mas nunca um verdadeiro Poeta,
isto �, �um homem l�cido, culto, de perfeito acordo com as ideias de seu
tempo�, coisa que, a seu ver, minha condi��o de Astr�logo e redator de
charadas impedia. O plano dele era evidente: queria provar que eu n�o
era Poeta, porque, provado isso, icaria provado que eu n�o podia ser o
�Poeta nacional do Brasil�.
Eu, experimentado desde muito cedo nas emboscadas e
armadilhas da vida liter�ria sertaneja, aprendera, h� muito tempo, com
Clemente e Samuel, que n�o existe melhor contraveneno para essas
cobras do que voltar contra elas a pr�pria pe�onha. Vali-me, ent�o, do
jornaleco an�nimo e volante do meu amigo Dom Eus�bio Monturo, O
Sacatrapo de Urubu, jornal de largo sucesso e grande circula��o nas
rodas do �R�i-Couro�. Como sei que essa gente s� l� coisas curtas � a
n�o ser que as longas tenham certos encantos, como a putaria �, o

primeiro epigrama que publiquei contra o escrevente tinha apenas
quatro versos, encimados pelas iniciais dele. Era o seguinte:
�Esse homem vai terminar
bebendo a amarga Cicuta:
n�o por ser um novo S�crates,
mas por ser ilho espiritual do distinto escritor grego.�
Minha obrinha fez sucesso entre os desocupados da rua, e a
briga come�ou. A princ�pio, tinha, apenas, car�ter liter�rio, ou pelo
menos eu assim pensava. Julgava que iam se formar dois partidos, um a
meu favor, outro a favor dele. Logo, por�m, teria que constatar meu
engano: o problema pol�tico que dividia e ainda est� dividindo o Brasil
agora, em 1938, iria se insinuar na nossa briga, que me traria as
maiores surpresas. De repente, tive de notar que estava icando odiado
por gente a quem nunca izera mal, mas que n�o me perdoava o meu
jeito de montar a cavalo, de usar gib�o, de comandar meus vinte e
quatro Cavaleiros das cavalhadas como se fosse uma Guarda de Honra
etc. Eu, secretamente, quando fazia o papel de Rei no �Bumba-meu-boi�
ou no �Auto dos Guerreiros�, era como Rei do Brasil que me sentia. Mas
como aquilo n�o acotovelava ningu�m, n�o tomava o emprego de
ningu�m, eu julgava que podia faz�-lo impunemente. Enganava-me.
Parece que, pelo contr�rio, todos pressentiam quem eu
verdadeiramente era e consideravam tudo aquilo uma intoler�vel
pretens�o.
O pior � que eu n�o tinha nenhum dos dois partidos a meu favor.
Tanto os intelectuais da Vila que seguiam Clemente, quanto os que se
aproximavam mais de Samuel, me tinham como suspeito, de modo que,
agora, como que diziam: �Ate-se!� Os que apenas se abstinham de icar a
meu favor ainda eram os melhores: porque os outros tomavam, todos,
partido contra mim.
Mas, como a briga j� estava pegada, o jeito era lev�-la adiante.
Pelo menos meu epigrama tivera �xito, sen�o perante os intelectuais,
pelo menos na �zona�, no velho �R�i-Couro�. Animei-me, ent�o, a
publicar outro, desta vez mais longo: acreditava que, j� interessado por
meu estilo, e esperando alguma safadeza, o pessoal agora o leria,

qualquer que fosse o seu tamanho. Resolvi plasm�-lo de um modo mais
liter�rio, seguindo os moldes aprendidos nas aulas de Ret�rica de
Monsenhor Pedro An�sio Dantas. De fato, no Semin�rio, eu me
exercitara na composi��o obrigat�ria de odes, elegias, �clogas, sonetos
e outros g�neros recomendados pelas Postilas de Gram�tica e Ret�rica
do Doutor Amorim Carvalho.
Aproveitei, ent�o, a sa�da de outra folha volante do Sacatrapo de
Urubu e publiquei nela meu c�lebre epigrama, hoje famoso em todo o
Cariri. Come�ava ingindo-me de modesto, dizendo que realmente n�o
era Poeta. Confessava que era autor de almanaques, entendido em
hor�scopos e luas. Concordava em que isso turvava e prejudicava
minha lucidez de Poeta, e terminava assim:
�Poeta, ent�o, Amigo,
claro, concreto e limpo �s mesmo tu!
E eu, sangue do Castigo,
� de Rei, On�a e Urutu �
deixo-te o Campo: vai tomar na rima!�
Entre o pessoal da rua, o �xito foi enorme. O escrevente
escalavrado n�o podia mais andar na rua; os desocupados, assim que
ele apontava numa esquina, come�avam todos a gritar em coro: �Poeta
concreto, vai tomar na rima!� Entretanto, nas rodas intelectuais o efeito
foi contraproducente. O pessoal come�ou a se sentir, tamb�m,
amea�ado por aquilo que eles chamavam �a l�ngua ferina de Quaderna�.
E a� sucedeu a parte na qual me meti sem querer, dentro daquele
mesmo estilo da morte da on�a na Serra do Reino: cometi uma valentia
involunt�ria. Meus irm�os bastardos, todos valentes e Cavaleiros,
tinham um orgulho danado dos meus almanaques e literaturas.
Estavam todos indignados com o escrevente. Diziam-me: �Dinis, n�o
perca tempo com esse sujeito n�o! V� �s fu�as dele e d�-lhe umas tapas,
sen�o nossa fam�lia ica desmoralizada!� Eu os aquietava a todos,
procurando sosseg�-los. Dizia que eles tinham experi�ncia das brigas
comuns, mas nas brigas liter�rias o mestre era eu. Pedia, sobretudo,
que n�o dessem no escrevente a surra que ele estava merecendo, sen�o
eu icaria desmoralizado por n�o ter tomado a iniciativa.

Foi ent�o que sucedeu o tal acaso. Eu vinha andando na rua,
certa manh�, e dois dias depois de o tal escrevente ter mandado um
artigo cheio de veneno contra mim para um jornal de Campina Grande.
Ao dobrar numa esquina, tropecei numa quenga de coco que estava na
cal�ada e tive a surpresa de cair de cabe�a na barriga do meu
advers�rio, que vinha pelo outro lado e dobrando a esquina em sentido
contr�rio. Por acaso, a cabe�ada involunt�ria que lhe dei pegou-o
mesmo na boca do est�mago e o escrevente caiu no ch�o, meio
apagado, abrindo e fechando a boca, sem ar. Quando ele se recuperou,
levantou-se e correu, certo de que fora agredido conscientemente por
mim.
No mesmo momento, a hist�ria se espalhava como um raio, na
rua. Segundo os boatos, eu s� n�o matara o escrevente porque ele
conseguira correr a tempo, escapando assim � punhalada que eu ia lhe
dar, depois de t�-lo prostrado em terra com uma cacetada pelas costas,
um soco na cara e uma cabe�ada na barriga. Falava-se nas fa�anhas de
meus irm�os Ant�nio e Francisco, nos tempos da �Coluna Prestes�, em
1926. E eu, ao mesmo tempo preocupado e orgulhoso, descobri que,
covarde como era, tinha fama de valente.
Meus irm�os quase morriam de orgulho. Cobriam-me de
homenagens, impando com meu involunt�rio feito. N�o havia mais jeito
n�o: agora, quisesse ou n�o quisesse, eu tinha de carregar meu destino
de �covarde sortudo� e aquela cruz de �corajoso a pulso� que o nome de
Quaderna me impunha.
O escrevente, assim que se recuperou do susto, foi procurar o
Delegado e deu uma queixa contra mim. Foi outra coisa que me
surpreendeu, pois ele pertencia � ala intelectual que sempre tratava a
Pol�cia com o maior desprezo. De qualquer forma, por�m, foi no
travesseiro do Delegado que ele foi chorar suas l�grimas, e eu fui
intimado a comparecer � Delegacia. Ele, mentindo, dissera ao Delegado
que eu o agredira pelas costas, � trai��o. Mostrara o �galo� que subira
na parte posterior de sua cabe�a (que batera, realmente, na cal�ada,
pois ele ca�ra de costas), dizendo ao Delegado que aquilo fora uma
cacetada que eu lhe dera � trai��o, por tr�s.
Algumas pessoas tinham assistido ocasionalmente ao fato. Mas
abstiveram-se de falar, com medo de serem chamadas para servir de
testemunhas. E como, de fato, eu, por monarquia e cavalaria, andasse

sempre com meu punhal de cabo de prata, comecei a notar que
ningu�m julgava que minha cabe�ada fora involunt�ria. A opini�o
corrente, era, mesmo, que eu derrubara o escrevente no ch�o de
prop�sito e iria sangr�-lo impiedosamente se ele n�o corresse. O
pr�prio Delegado estava absolutamente convencido de que, no fundo, o
escrevente tinha raz�o. No m�ximo, admitia que eu n�o lhe dera a
cacetada pelas costas, fato que o escrevente inventara, primeiro, para
aumentar minha culpa, e depois para diminuir a desmoraliza��o de n�o
ter reagido. Em tudo mais, todo mundo acreditava.
Foi a� que apareceu o Corregedor, foi a� que se abriu o inqu�rito.
Cheiados pelo escrevente, todos aqueles lacraus e piolhos-de-cobra
que me detestavam viram que o momento era azado para me liquidar: e
mandaram a carta an�nima que, pela terceira vez, me transformava em
suspeito, enredando-me nas teias de um processo fatal, como perigoso
agente pol�tico e acusado de crime.

N
FOLHETO XXXIX
O Cord�o Azul e o Cord�o Encarnado
aquela Quarta-feira de Trevas, 13 de Abril, eu acordara com uma
sensa��o amarga na natureza. Maria Saira, com seus verdes
olhos abissais, notara que eu tinha dormido mal. Comunicara-me, ainda
na cama e com uma express�o indecifr�vel, que sonhara comigo. No
sonho dela, eu aparecia vestido de Diabo, um diabo apalha�ado e
chifrudo de Circo, sarnento e feio, uma coisa ao mesmo tempo
horrorosa e desmoralizadora. Tentando fazer esp�rito e afastar o
male�cio, respondi-lhe como pude, usando para isso uns versos, do
genial poeta Martins Fontes, que Samuel tinha usado uma vez para me
ridicularizar mas que eu transformara em honra minha, nos seguintes
termos:
�Bem vedes, n�o sou eu
o Pierr� bufo e belo,
ilho de Cassandrino
ou de Polichinelo!
N�o! Eu sou o Mateus
de vermelho e de preto.
Sou o Diabo-Encourado,
o Sangue-do-Esqueleto
que procura espargir
pelo Mundo tristonho,
no sangue e ao p� da Morte
o Galope do sonho,
na On�a-do-imprevisto
o guizo do Burlesco,
no Mocho do fant�stico
o Tigre romanesco!�

Eu tinha sido intimado para comparecer, � tarde, perante o Juiz-
Corregedor. Depois que tomei caf�, ainda sob a m� impress�o do sonho
de Maria Saira, encaminhei-me instintivamente para a Biblioteca: ia me
abrigar ali, com um terr�vel sobressalto de culpa, medo e remorso.
Errei, durante alguns instantes, por entre os velhos volumes
empoeirados que enchiam as estantes.
No meio da sala, em torno de uma mesa baixa, havia um sof� de
palhinha, duas cadeiras de balan�o e uma espregui�adeira, m�veis que
eu mandara colocar ali para servirem a nossas cavaqueiras liter�rias e
sess�es acad�micas. Cansado e preocupado, sem nem ao menos me
aperceber direito do que fazia � tal era o temor que se apossava de
mim quando me lembrava do terr�vel inqu�rito �, arriei cansadamente
na espregui�adeira e repousei a cabe�a sobre o meu bra�o direito
dobrado, a im de descansar um pouco e de pensar em qual seria a
melhor maneira de me conduzir no meu depoimento ao Corregedor.
Vinha-me � lembran�a a frase que meu Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o
Garcia-Barretto, pronunciava de vez em quando, em 1930, quando
entrara em luta contra o Presidente Jo�o Pessoa, na �Guerra de
Princesa�:
� Meu brio n�o suportar� humilha��es!
Mas meu Padrinho tinha terminado, poucos meses depois, com a
garganta cortada, do mesmo jeito que meu bisav�, Dom Jo�o Ferreira-
Quaderna, O Execr�vel, em 1838. Fazia exatamente um s�culo, deste
�ltimo acontecimento. Ent�o, no meu �ntimo, no mais profundo do meu
ser, resolvi seguir exatamente o programa contr�rio. Cheguei mesmo a
murmurar para mim, formulando em voz baixa o meu programa:
� Meu brio suportar� todas as humilha��es que forem
necess�rias! E, se Deus quiser, acabarei o inqu�rito, n�o preso e
degolado como meu bisav� e meu Padrinho, mas sim vivo e solto, para
contar minha hist�ria e a hist�ria do Rapaz-do-Cavalo-Branco!
* * *
Mal eu formulara esse voto, meus dois mestres e rivais de
Literatura irromperam de Biblioteca adentro, ambos com um ar
preocupado e fatigado que n�o escondia a noite maldormida passada
na v�spera. Estavam ambos visivelmente nervosos; e eu diria mesmo

apavorados, se o medo fosse sentimento capaz de se abrigar naqueles
dois peitos guerreiros, pol�ticos e belicosos.
As rela��es existentes entre n�s tr�s, nobres Senhores e belas
Damas, continuavam de certa forma curiosas. Como rivais, n�o nos
suport�vamos; mas como tamb�m precis�ssemos muito uns dos outros,
n�o pod�amos separar-nos. A rivalidade existente entre Samuel e
Clemente tinha muitas causas liter�rias, mas, como Vossas Excel�ncias
j� devem ter suspeitado, era principalmente de natureza pol�tica. Como
j� se viu, desde o aparecimento de Samuel na �Casa-Forte da Torre da
On�a Malhada� que os dois vinham tomando caminhos pol�ticos
diferentes. A partir de 1930, com a vida pol�tica brasileira se dividindo
cada vez mais, os dois come�aram a se radicalizar. Lu�s Carlos Prestes j�
fundara o Partido Comunista do Brasil, e Pl�nio Salgado o partido
extremado de Direita, a A��o Integralista Brasileira. Logo depois,
por�m, os comunistas procuraram fundar um partido que agrupasse
outras pessoas, liberais, em torno deles: esse partido chamou-se
Alian�a Nacional Libertadora.
N�o � preciso dizer que Samuel entrou imediatamente para a
A��o Integralista Brasileira, fundando entre n�s uma se��o que passou
a congregar os jovens ilhos de fam�lia de tudo quanto era fazendeiro e
propriet�rio. J� tinha �at� recebido um cart�o de Pl�nio Salgado, com
quem passara a manter rela��es de amizade depois da visita que o
Chefe Nacional izera ao Sert�o da Para�ba, em companhia dos
intelectuais paraibanos Hort�nsio Ribeiro e Pedro Batista�, como diziam
na rua, deslumbrados com o prest�gio de Samuel, pois o Chefe Pl�nio
Salgado, al�m de l�der pol�tico, era um literato nacionalmente
consagrado.
Quanto a Clemente, aderira furiosamente � Alian�a Nacional
Libertadora, de cujo Comit� local era Presidente.
O pior, por�m, � que a desgra�ada dissens�o que se manifestara
desde o princ�pio entre aquelas duas personalidades geniais n�o se
contentara em entravar somente o progresso pol�tico, liter�rio e
ilos�ico do Sert�o, separando em divis�es est�reis aqueles dois
grandes homens que, de outra maneira, bem poderiam trabalhar juntos,
com resultados extraordin�rios para o progresso de nossa P�tria.
Acontece que a luta ideol�gica travada entre os dois estendera-se do

campo puramente pol�tico at� o liter�rio, o hist�rico, o ilos�ico e at� o
religioso, se posso falar assim.
No campo da Hist�ria, por exemplo, os dois tomavam cada um
seu partido; mas n�o s� no Brasil: em todos os tempos e em todos os
lugares do mundo, levando suas dissens�es brasileiras e atuais at� os
come�os da vida do homem. Na hist�ria da Gr�cia, por exemplo,
Clemente tomava o partido de S�crates, que, segundo ele, representava
o progresso e a vanguarda pol�tica do tempo; e Samuel tomava o dos
aristocratas que envenenaram aquele feio e mal-amanhado Fil�sofo do
povo, dizendo que S�crates realmente corrompia a juventude, com sua
cr�tica dissolvente �s tradi��es religiosas e familiares dos gregos. Em
Roma, Clemente tomava o partido de M�rio, �demagogo popular�, e
Samuel o de Sila, �tirano aristocrata�. Ainda em Roma, quando
encerravam esta parte da discuss�o, o nosso Fil�sofo era a favor de
Brutus, e o Poeta, de C�sar.
De modo semelhante, tomavam, furiosamente, partido em tudo.
A Sociologia era da Esquerda, e a Literatura fortemente suspeita de
direitismo. O �riso sat�rico e a realidade� eram da Esquerda, a
�seriedade monol�tica e o sonho�, da Direita. A Prosa era da Esquerda e
a Poesia, da Direita; mas, mesmo dentro do campo da Poesia, tomavam
partido, pois a l�rica era considerada �pessoal e subjetiva, e portanto
direitista e reacion�ria�, enquanto a sat�rica, �social e moralizante,
did�tica�, era considerada progressista e da Esquerda. A Natureza, com
�a luta pela vida, dura e cruel, com a selvageria, a desordem, a
sobreviv�ncia do mais forte e as marcas que ainda guardava do Caos e
do negrume�, era da Direita. A Cidade, �organizada, baseada no
progresso, no trabalho e na m�quina�, era da Esquerda. Do ponto de
vista social, o sexo masculino, mais forte, dominador e explorador do
outro, era da Direita, e o sexo feminino, explorado, fraco, ressentido e
revoltado, da Esquerda. Mas, do ponto de vista do gosto, o sexo
masculino, s�brio e despojado, era da Esquerda, enquanto o feminino,
com o amor pelos tecidos e pelas joias, era da Direita.
E assim por diante, em tudo e por tudo. A briga era t�o profunda,
ia t�o longe que, apesar de ser ateu, o Professor Clemente esquecia
momentaneamente seu ate�smo para tomar partido no seio da pr�pria
Trindade. Dizia ele que detestava o Pai, que, sendo o Deus do deserto,
da viol�ncia, dos castigos, das pragas, dos templos de ouro, p�riro,

cris�lita e diamante, dos ex�rcitos com bandeiras, das guerras e das
sar�as ardentes, era visivelmente da Direita; o que imediatamente fazia
com que Samuel, apesar de seu Catolicismo ferrenho, por ele mesmo
classiicado como �ortodoxo, antigo, inquisitorial, reacion�rio e
obscurantista�, tomasse partido contra o Filho, que era �claramente
demagogo, favor�vel � plebe e instigador das lutas de classe�.
Assim, as brigas e discuss�es entre os meus dois Mestres eram
cont�nuas. Por causa do �Pastoril�, Samuel chamava Clemente de �A
Mestra do Cord�o Encarnado�. Clemente retrucava, chamando Samuel
de �A Contramestra do Cord�o Azul�. Ambos, por�m, tinham terminado
desistindo da brincadeira, no dia em que descobriram que podiam, a�
tamb�m, se unir contra mim: baseados num outro personagem do
�Pastoril�, personagem que pertencia ao mesmo tempo ao Cord�o Azul
e ao Encarnado (tendo at� a roupagem dividida nessas duas cores),
chamavam-me �A Diana Indecisa�, porque eu n�o me animava a aceitar
totalmente nem o Comunismo de um nem o Integralismo do outro.
* * *
Naquela manh�, assim que foram entrando, os dois se dirigiram
para onde eu estava e sentaram-se, cada um deles, na respectiva cadeira
de balan�o j� de h� muito determinada. Clemente falou como porta-voz
dos dois, o que me revelou logo que, no momento, estavam unidos por
um interesse comum, provavelmente contra mim:
� Quaderna � falou ele num tom um tanto brusco �, que
comportamento mais estranho � esse seu, desde ontem? Todo mundo,
na rua, j� sabe que voc� foi intimado pelo Corregedor para depor no
inqu�rito. N�s dois esperamos voc� ontem, o dia todo, para sabermos
das novidades! Ficamos acordados at� as onze horas da noite, e nada!
Que foi que houve? Onde esteve? Voc� dormiu em casa?
� Dormi.
� E como foi que n�o vimos voc� entrar?
� Entrei pelo port�o do quintal!
� Est� vendo o que eu lhe dizia, Samuel? � disse Clemente,
severo. � Quaderna est� mal-intencionado e com culpa no cart�rio! Viu
o que ele disse? Entrou pelos fundos da casa, como um criminoso, um
homem que sente a consci�ncia carregada e se esconde dos olhos at�

dos seus melhores amigos! Est� vendo, Quaderna, em que deu a sua
imprud�ncia? Quantas vezes eu lhe avisei? N�o sei quantas! Sempre lhe
dizia: �Quaderna, cuidado! Um dia, a casa cai!� Voc� n�o ligou, e tanto
fez, tanto remexeu nesta confusa pol�tica brasileira, que agora a casa lhe
caiu por cima!
� Ora, Clemente! � retruquei irritado. � Quem � que vem me
dizer isso? Logo voc�! Voc�, que, juntamente com Samuel, veio meter
essas ideias na minha cabe�a! Eu nunca teria ligado para a Pol�tica se
voc�s n�o tivessem me levado a isso!
� O qu�? � indagou Samuel, escandalizando-se o mais que
p�de e aboticando uns olhos enormes para mim. � Voc� est� ouvindo,
Clemente? Este homem de maus costumes, ligado ao que de pior existe
na canalha desordeira e rebelada do Sert�o, insinua que fomos n�s,
pessoas respeit�veis, que o levamos a suas posi��es pol�ticas! Olhe,
Clemente, voc� � comunista, mas essa justi�a eu lhe fa�o: voc� � um
comunista s�rio e s� se une a outros comunistas s�rios, gente de
conian�a, gente da qual se pode discordar, mas a quem, de qualquer
modo, se respeita! Quaderna, n�o! � com a ral�: com os tangerinos,
almocreves, contrabandistas de cacha�a, cantadores e at� cangaceiros!
Meu Deus! Imagine se o Tribunal e o Minist�rio P�blico da Para�ba
descobrem que ando metido com um homem desses! E ele insinua que
seu comportamento e suas ideias nasceram do nosso conv�vio!
� Imagine se ele diz essas coisas ao Corregedor! � ajuntou
Clemente com ar soturno. � Que opini�o n�o vai fazer de n�s esse
digno magistrado paraibano! O que � que voc� pretende contar a ele,
Quaderna?
� Pretendo contar tudo, Clemente!
� Tudo, como? E, principalmente, tudo o qu�?
� Tudo, tudo! Toda a quest�o da nossa �Demanda Novelosa� e
da �Guerra do Reino�, principalmente a parte ligada com a morte do
meu Padrinho e a apari��o do Rapaz-do-Cavalo-Branco!
� Voc� j� esteve com o Corregedor?
� N�o, vou � Cadeia hoje de tarde, para isso. Ele deve ter
recebido alguma dela��o, alguma carta an�nima contra n�s, e � por isso
que quer me ver!
� Uma carta an�nima? Contra n�s? � falou Samuel,
empalidecendo.

� A carga maior deve ter sido contra mim, porque somente eu
fui intimado. Pe�o, portanto, a ajuda de voc�s! N�o me abandonem,
nesta hora amargurada da minha vida! Voc�, Clemente, como advogado
e criminalista de fama que �, pode muito bem assumir minha defesa
perante a Justi�a!
Imediatamente o Fil�sofo tomou um ar ausente, negou o corpo
de banda e passou a me ouvir da banda mouca, a im de mais facilmente
me deixar no fogo:
� Quaderna � disse ele �, voc� vai me desculpar, mas isso,
al�m de imposs�vel, � perfeitamente dispens�vel e in�til! O ambiente de
repress�o, que nos domina desde 1935, agravou-se muito nos �ltimos
tempos; o terreno em que pisamos est� cada vez mais escorregadio,
mais trai�oeiro do que nunca! Voc� sabe muito bem que eu sou
considerado perigoso e subversivo por muita gente! Por uma
habilidade toda especial, consegui escapar da pris�o, de 1935 at� o dia
de hoje; mas eu icaria em p�ssima situa��o se esse inqu�rito se virasse
por cima de mim! Sou um homem visado e procurado, Quaderna, um
homem marcado para morrer pelos mais altos c�rculos do Poder em
nosso Pa�s! Vivo sendo seguido pelos agentes do Governo a servi�o da
rea��o e dos trustes internacionais! Se eles me pegam em qualquer
deslize, estou liquidado! Essa gente � impiedosa e eu n�o tenho costas
quentes! Assim, � melhor voc� se pegar com aqueles que, como o nosso
Promotor aqui presente, t�m prest�gio com a rea��o! O Doutor Samuel �
bem relacionado nos meios da Justi�a e bem pode dar uma palavra a
seu favor perante o Juiz-Corregedor!
Samuel sobressaltou-se e, mais morto do que vivo, lan�ou um
olhar enviesado e mau a Clemente, que tivera aquela infeliz ideia a seu
respeito. E logo negava corpo tamb�m, numa manobra torpe:
� Eu, defender Quaderna? Eu por qu�? Por que logo eu? Voc�
est� doido, Clemente? Eu n�o me meto com essa gente de jeito nenhum!
Voc� est� consciente do perigo da situa��o, Quaderna? Leu os jornais
que vieram na mala do correio, na quinta-feira passada?
� Li!
� Est�o correndo boatos de que no dia 10 do passado m�s de
Mar�o houve uma tentativa de Revolu��o integralista no Rio. Voc� sabe
que o chefe dessa tentativa foi o Contra-Almirante Frederico Villar?
� Sei!

� O Contra-Almirante � de fam�lia daqui de Tapero�, e tudo
indica que foi por isso que esse Corregedor misterioso veio bater de
repente com os costados aqui, sem ningu�m saber como nem por qu�!
Como voc� v�, ent�o, a situa��o nacional n�o anda tranquila, e � muito
perigoso a gente se meter com isso numa hora dessas!
� No campo internacional, as coisas tamb�m andam turvas! �
refor�ou Clemente. � A Uni�o e o Di�rio de Pernambuco t�m trazido
not�cias verdadeiramente inquietantes! Aqui no Brasil, o covarde do
Get�lio Vargas, tendo estabelecido um Estado forte em Novembro do
ano passado, icou com medo da interven��o americana e nomeou o
sabujo Osvaldo Aranha para Ministro das Rela��es Exteriores. Osvaldo
Aranha, como voc�s sabem, � um lacaio do imperialismo, e, no dia da
posse, ocorrida no m�s passado, enviou �ao Povo e ao governo dos
Estados Unidos� uma sauda��o que o Di�rio transcreveu e que, mais do
que um discurso, � um vergonhoso preito de vassalagem! A �ustria foi
entregue, sem um tiro, � Alemanha! Na Espanha, as tropas direitistas do
General Franco est�o sufocando e degolando o grande Povo espanhol!
Em compensa��o, no M�xico, o esquerdista L�zaro C�rdenas subiu ao
poder e iniciou a nacionaliza��o das empresas estrangeiras de petr�leo!
O Di�rio de Pernambuco conta que recentemente o governo mexicano
promoveu, em apoio de seu programa de esquerda, um desile no qual
uma verdadeira multid�o, vestindo as roupas nacionais e populares do
M�xico, passou durante mais de cinco horas diante do palanque onde
estava L�zaro C�rdenas. E o jornal comenta: �Um grupo de cubanos
conduzia um grande d�stico com os dizeres: O povo de Cuba, v�tima do
imperialismo, acorde e siga o exemplo.� Isto pode ser o come�o da
Revolu��o Latino-Americana, Quaderna!
Samuel, que n�o podia ouvir calado certas coisas que Clemente
dissera, retrucou logo:
� N�o concordo nada com as interpreta��es comunistas de
Clemente, mas, de fato, quem sabe at� que ponto tudo isso tem liga��es
com a luta da Besta-Loura, da Besta-Calib�, contra o Anjo Latinoamericano,
o Ariel ib�rico? O assunto, Quaderna, � mais do que
perigoso, � desses nos quais n�o devemos nem tocar, porque est� ligado
aos terr�veis segredos do Poder e das altas esferas! Acresce que, aqui
em Tapero�, toda essa teia amaldi�oada da Pol�tica e do Poder se
complica com a hist�ria de seu Padrinho e tio, degolado em 1930,

exatamente por ter se metido com essas altas esferas diab�licas do
Poder! Aqui na Para�ba, para desgra�a nossa, a Revolu��o se misturou
�s b�rbaras vinditas familiares sertanejas, unindo-se os �dios
ancestrais e as divis�es de sangue a tudo o que o Poder tem de fat�dico
e perigoso! Eu n�o me meto nessa hist�ria de jeito nenhum, Quaderna!
Sei l� que objetivos secretos e que liga��es ocultas tem esse
Corregedor! V� ver que, no fundo, ele n�o passa � de um agente secreto,
a servi�o d�Eles!
* * *
Pronto!
Agora eu sabia que n�o havia for�a humana que izesse os dois
me ajudarem! Clemente e Samuel, quando metiam na cabe�a que Eles
estavam metidos em alguma empreitada, fugiam dela como quem foge
da peste! Eles era uma entidade mal�ica que nunca consegui identiicar
precisamente, mas que, segundo parecia, era e � ligada � Besta Anglo-
Sax�, � Besta-Loura-Calib� � uma entidade que est� em toda parte,
inating�vel, amea�adora, invenc�vel e diab�lica. Por isso, Clemente
apoiou na mesma hora � o que era raro! � a ideia de seu rival:
� Samuel, agora, apesar de suas tolices direitistas, voc� tocou
num ponto fundamental, e foi, com ferro em brasa, ao �mago da chaga!
Estou chegando � evid�ncia de que, no fundo, esse Corregedor n�o �
sen�o um enviado que Eles mandaram para me liquidar!
� Ora para liquidar voc�! Eu n�o digo? Ele veio foi para liquidar
a mim! � gritou Samuel, apavorando-se aos poucos com suas pr�prias
palavras. � At� agora tenho escapado por milagre a todas as tentativas
que Eles t�m feito para me assassinar, me torturar, me prender, me
aniquilar! S� posso mesmo atribuir a uma prote��o especial, de Deus e
dos anjos, o fato de eu, um Poeta inerme e ang�lico, ter escapado
inc�lume entre tantas emboscadas, trai��es e armadilhas diab�licas,
preparadas por Eles!
� Voc�, Samuel? � indaguei, espantado. � Fizeram alguma
tentativa de assassinato contra voc�?
� E ent�o? Olhe, Quaderna, um dia ainda levantarei uma ponta
do v�u, do enigma que � minha vida, e voc� estarrecer�! Mas tenha
cuidado, Quaderna: o simples conhecimento dos fatos ocorridos comigo

pode tornar voc� um homem tamb�m marcado, um exilado em sua
pr�pria P�tria! Por enquanto, para poup�-lo, vou contar somente o que
aconteceu quando publiquei A Herdeira, um dos poemas mais ligados
ao destino fat�dico e imperial do Brasil, entre todos os que fazem parte
da minha obra, O Rei e a Coroa de Esmeraldas! Pobre de mim! Naquele
tempo, no Recife, eu era ainda t�o ing�nuo, que julgava que o simples
fato de me ocultar sob um pseud�nimo me subtrairia � condena��o
d�Eles! Qual o qu�! Essa gente � impiedosa e diab�lica, e foi da� que
come�ou meu destino de fora da lei, procurado como um criminoso e
entregue a todas as for�as sinistras que Eles sabem desencadear e jogar
a nossos calcanhares! Mas eu, Quaderna, sou mais forte do que pensam!
Fiz tamb�m meu pacto com o Diabo, e, tendo dedicado um estudo aos
Anjos, estou sob a prote��o direta desses seres alados, puros, ardentes,
perigosos e assexuados! � por isso que, nos momentos mais perigosos
da minha vida, quando Eles julgam que ainal me pegaram de jeito e v�o
me aniquilar, o Anjo entremostra sua terr�vel face, reluzente e perigosa,
e foge tudo de mim, �s l�guas!
Interrompi:
� Mas Samuel, voc� n�o fez um pacto com o Diabo?
�Fiz!
� E como � que, ao mesmo tempo, recebe a prote��o dos Anjos?
� Quaderna, cale a boca, porque voc�, simples charadista e
leitor de almanaques, n�o tem dimens�o para entender essas coisas,
absolutamente! Me diga uma coisa: o Diabo n�o � um Anjo?
� Foi, n�o � mais n�o!
� Se foi, ainda �, porque um Anjo n�o tem contradi��es, � uno e
perigoso em sua pureza de fogo! Voc�, Quaderna, editor de folhetos e
ex-seminarista, n�o pode avaliar a quantidade de enigma e verdade que
existe no meu escrito sobre os Anjos! A mente humana, o humano
sofrimento e a vis�o po�tico-prof�tica n�o podem ir mais longe do que
eu fui nesse trabalho!
� E seu poema A Herdeira � tamb�m ligado aos Anjos? �
insisti.
� Quaderna, um dia, muitos anos depois que eu morrer, talvez
haja ambiente para se entender a profunda unidade de tudo o que eu
escrevo, da minha obra povoada de sentidos secretos e cifrados! Saiba
desde agora, por�m, que, nesta obra, o Brasil, o Diabo, os Anjos e eu

mesmo somos, todos, vistos como herdeiros! Entendeu? Entendeu o
alcance dessa ideia?
� Entendi n�o, Samuel!
� Acredito! N�o entendeu nem pode entender, porque, por
enquanto, somente eu sou capaz disso! Ali�s, minto: Eles entenderam
quase tudo, e colocaram logo meu nome, inscrito com letras de fogo e
sangue, no Livro Negro onde assinalam todos aqueles que consideram
perigosos! Aqueles danados devem ter recortado meu poema, do jornal
onde ca� na tolice de public�-lo, enviando ent�o c�pias dele a todos os
seus agentes, disseminados pelo mundo inteiro! Descobriram o nome
verdadeiro do autor, escondido sob o pseud�nimo de Sandernes de
Wanderval, e desde esse dia sou um homem marcado para a morte!
� E como era o poema, Samuel? � indaguei eu, curioso de
conhecer aquela obra, t�o povoada de sentidos pol�ticos cifrados que,
mesmo publicada sob pseud�nimo, izera de seu autor um homem para
sempre marcado por Eles.
Samuel tomou um ar fat�dico e melanc�lico e perguntou:
� Quaderna, voc� quer mesmo saber? N�o sei se tenho o direito
de acabar sua inocente cegueira comunicando-lhe certas coisas!
Cuidado, Quaderna! Sua situa��o est� meio periclitante, e o simples
conhecimento de certas coisas da minha vida pode torn�-lo desgra�ado
para sempre! A Herdeira � uma dessas e pode liquidar com voc� de vez!
� N�o, diga! Recite! Eu j� estou desgra�ado de qualquer jeito,
assim pelo menos ico conhecendo o poema! Recite!
� Bem, se � voc� quem pede, a responsabilidade � sua! Vou
recit�-lo!
E, tomando um ar inspirado, s�rio, comovido, o nosso Fidalgo
pernambucano come�ou, com sua dic��o perfeita:
�Como se maltrata assim
o Cora��o escarlate da Rosa?
� Sangue! � Coroa! � Bras�o!
Onde est�o as duas Bolas de ouro
e o Cetro vermelho de Dom Pedro I?�
* * *

Chegando a�, o poeta Samuel Wan d�Ernes calou-se, e icou com
os olhos pregados no teto, com um ar sonhador de vidente, vermelho
pela emo��o que o possu�a. Eu e Clemente aguard�vamos que a emo��o
diminu�sse e ele terminasse. Mas n�o vinha nada. Ent�o, interroguei
timidamente:
� Isso � do poema, Samuel?
� Isto � o poema, animal! � disse ele, descerrando os olhos e
fazendo fuzil�-los sobre mim.
� Acabou? Acabou mesmo?
� Acabou, � claro!
� E A Herdeira � s� isso?
� S� isso? Voc� diz s� isso? Acha pouco? Olhe, Clemente, em que
d� nosso trato com charadistas! Esse astr�logo, a�, ainda queria que eu
dissesse mais do que disse, arriscando-me ainda mais do que me
arrisquei!
� Pois eu n�o me admiro de que Quaderna tenha achado pouco
n�o! � disse Clemente. � N�o me admiro de jeito nenhum, porque eu
tamb�m pensei que o poema tinha somente come�ado! Do jeito que
voc� disse, Samuel, n�o presta de jeito nenhum! Nem presta, nem tem
sentido! � por isso que o Povo deixa de lado a Poesia! Como � que o
Povo brasileiro pode prestigiar seus poetas, se eles se isolam na torrede-
marim, deixando de lado os problemas humanos, nacionais e
coletivos, para armar essas pequenas charadas, piores ainda do que as
de Quaderna, Samuel?
� Voc�, Clemente, n�o tem, absolutamente, a menor capacidade
de entender a verdadeira Poesia! Em primeiro lugar, digo-lhe que meu
poema tem sentido, e depois que esse sentido � altamente nacional e
virulentamente pol�tico!
� Esse poema tem l� sentido nenhum, Samuel! O que � que ele
signiica?
� Signiica a independ�ncia e a grandeza imperial do Brasil!
� Est� conversando, Samuel! Essa obrinha tem l� nada a ver
com a independ�ncia do Brasil! N�o tem, nem poderia ter, porque voc�,
sendo integralista, nunca poderia escrever nada que fosse a favor do
Povo brasileiro!
� E eu falei, l�, em Povo coisa nenhuma! Falei foi na grandeza
imperial do Brasil! Este sim, � um assunto que toca meu sangue de

Fidalgo! A plebe, o povo, como voc� chama, esse n�o! Esse interessa � a
voc�, que � cafre e gaforinha!
Clemente, sentindo-se ofendido, como preto que era, enfureceuse:
� Eu sou cafre e gaforinha, mas n�o sou um poeta desonesto da
sua marca!
� Desonesto? Desonesto � um pouco demais! Desonesto por
qu�?
� Quantos versos tem essa idiotice que voc� escreveu?
� Cinco!
� Pois desses cinco, um � plagiado e dois s�o imorais!
� Clemente, j� lhe disse n�o sei quantas vezes que o pl�gio � um
processo normal de cria��o e que n�o existe obra de arte imoral! Onde
� que voc� viu imoralidade neste meu poema, Clemente?
� Repita os dois �ltimos versos dele!
� �Onde est�o as duas Bolas de ouro, e o Cetro vermelho de Dom
Pedro I?�
� Est� vendo, Quaderna? As duas bolas e o cetro vermelho s�o,
naturalmente, os colh�es e o pau de Dom Pedro I!
� L� v�m o mau gosto e a vulgaridade do Professor Clemente,
grosseiro e sem gra�a como todo comunista! � disse Samuel. � Voc�
deveria pelo menos respeitar um poema que escrevi por patriotismo e
por causa do qual tentaram me assassinar!
� Foi mesmo, Samuel? � perguntei, curioso. � Tentaram
matar voc� por causa desse poema?
� Se tentaram? Tentaram, Quaderna, v�rias vezes! S� n�o fui
aniquilado gra�as � prote��o dos Anjos!
� E como foi que tentaram assassinar voc�? Na rua? Em casa? A
tiro? De faca?
� Meu sangue molhou as ruas do Recife e da Para�ba!
� Voc� foi ferido?
� Mais do que isso, Quaderna: posso dizer que fui morto!
� Morto? E como � que est� a�, vivo?
� Reiro-me � morte moral, porque fui assassinado pela cal�nia!
E a crueldade que me izeram foi ainda maior porque, para me matar,
eles se valeram daquele que era meu disc�pulo amado! Minha trag�dia

foi pior do que a do Cristo, Quaderna: o Cristo foi tra�do pelo disc�pulo
mau, eu fui tra�do pelo bom, pelo meu disc�pulo amado!
Aqui o rosto de Samuel tomou uma express�o de ferocidade e
ele disse:
� Mas eu tomei contra o traidor uma vingan�a terr�vel, uma
vingan�a � altura do Fidalgo lamengo-ib�rico e lorentino-brasileiro
que sou, um homem que, quando necess�rio, tamb�m sabe usar o
punhal e o veneno dos B�rgias!
� O que foi que voc� fez com ele, Samuel? � indaguei, sem
poder conter a curiosidade.
� Mandei-lhe um ramo de violetas murchas envolvidas em
ac�cias amarelas!
Como ic�ssemos perplexos, olhando para ele, Samuel explicou
simplesmente:
� � o emblema da amizade tra�da!
E continuou, noutro tom:
� � por isso, Quaderna, que eu posso dizer que sou um homem
vivido, marcado e esfarinhado nessas lutas da nossa grande e
desgra�ada P�tria! Quem sabe se esse Corregedor n�o � um enviado das
for�as obscuras que vivem envenenando nossa P�tria e que s�o, sem
d�vida, ligadas ao Diabo? Assim, Deus me livre de me meter nessa
alhada em que voc� se embrenhou, Quaderna! Al�m disso, de que lhe
valeria meu sacri�cio? De nada! Voc� � um sertanejo, um homem
esperto e habituado nessas refregas em que viveu metido desde 1912,
de modo que pode se sair muito bem, sozinho, de tudo isso! Ali�s, Eles
n�o se atrever�o a mexer muito com voc�, n�o: essa gente s� respeita a
viol�ncia, e quando souberem que seus parentes s�o acangaceirados,
h�o de recuar! Fique descansado, Quaderna, voc� n�o precisa
absolutamente da nossa ajuda, porque n�o vai lhe acontecer nada!
� �, ique descansado, Quaderna! � ajuntou como um eco o
Professor Clemente. � Fique descansado, porque n�o vai lhe acontecer
cois�ssima nenhuma!
� Fique descansado, uma merda! � disse eu, encolerizado com
a indiferen�a daqueles dois miser�veis que n�o me pagavam aluguel e
agora me deixavam na cova da on�a. � N�o vai me acontecer nada, uma
porra! Como � que eu posso icar descansado, como � que n�o vai me
acontecer nada, se eu estou em tempo de ser preso?

� Que preso que nada, Quaderna! � disse Samuel. � Voc�
pensa bem que possui import�ncia suiciente para ser preso! Se se
tratasse de mim, ou mesmo de Clemente, a� sim, haveria essa
possibilidade! Mas voc�? Nunca houve exemplo, na Hist�ria, de ter sido
preso um homem socialmente insigniicante e politicamente sem
import�ncia! Quem est� realmente em perigo somos n�s, eu e
Clemente, homens visados e chefes de fac��es pol�ticas importantes!
� �, os importantes s�o voc�s dois! Mas, importante ou n�o, de
n�s tr�s, quem foi intimado fui eu! E se eu icar l�, hoje mesmo, preso?
� � coisa que n�o ter� a menor import�ncia! � falou Samuel,
aquele monstro de ego�smo. � A pris�o at� tornar� voc� mais
interessante, dando-lhe uma aura rom�ntica de mist�rio, um prest�gio e
um brilho social que voc� nunca teve!
� �, Quaderna, isso de voc� ser preso � secund�rio! � refor�ou
Clemente. � O que verdadeiramente tem import�ncia � a nossa
situa��o, a minha e a de Samuel, diante do problema de seu tio e
padrinho, degolado em 1930, dos ilhos dele, e sobretudo diante da
perigosa situa��o pol�tica em que a nossa Vila vem se enredando desde
1935! Se voc� fosse realmente nosso amigo, como diz, se tivesse alguma
gratid�o pelos anos de ensinamento que demos a voc� desde sua
adolesc�ncia, estaria pensando era em n�s, na nossa seguran�a, e n�o
nessas tolices de intima��o ou n�o intima��o, cadeia ou n�o cadeia para
voc�!
� Mas o amea�ado sou eu! O intimado sou eu! Quem vai ser
preso sou eu! Como � que vou pensar em voc�s e n�o em mim? � gritei,
para ver se, assim, abalava aqueles dois cegos, insens�veis � minha
sorte.
� O intimado foi voc�, Quaderna, mas, de fato, os visados somos
n�s dois, voc� vai ver! � disse Clemente. � No fundo, � a n�s que Eles
querem chegar atrav�s de voc�!
� Voc� acha? � perguntou Samuel, tornando-se p�lido.
Clemente, contagiado, esbugalhou os olhos e disse, desta vez
com uma convic��o inabal�vel:
� Mas � claro que acho, Samuel! Voc� ainda tem alguma d�vida?
Esse pessoal j� sabe que n�s moramos em casas de Quaderna e querem
chegar � a n�s, por interm�dio dele! Voc� n�o est� vendo que ningu�m
iria dar a Quaderna a import�ncia de prend�-lo, sen�o por nossa causa?

� a n�s, � a n�s que Eles querem prender e matar, na pessoa de
Quaderna!
Os dois icaram se olhando um momento, de olhos esgazeados, e
teriam icado assim ainda uma por��o de tempo se nesse instante exato
n�o tivessem dado uma forte batida na porta de fora ao mesmo tempo
que uma voz cava e soturna dizia:
� � de casa!
Respondi:
� � de fora! Quem �?
� � o Oicial de Justi�a! � respondeu a mesma voz soturna.
Os dois grandes homens, sem dizer �gua-vai, precipitaram-se
para a �nica sa�da poss�vel no momento, isto �, a porta que ligava a
Biblioteca � minha casa. Essa porta, por�m, era estreita e os dois
chegaram l� ao mesmo tempo, enganchando-se um no outro e
acotovelando-se na �nsia de sair primeiro. Clemente, mais forte, passou
Samuel para tr�s com uma cotovelada na cara e sumiu-se no interior da
minha casa, seguido de perto pelo rival que, assim que se recuperou e
viu desimpedido o caminho da fuga, embarafustou tamb�m, atr�s do
outro.
* * *
Encaminhei-me ent�o para a porta da rua e abri-a
cautelosamente. Era Severino Brejeiro, com seus olhos empapu�ados e
sua habitual express�o sonolenta:
� Bom dia, Seu Quaderna! � disse ele. � O Doutor Juiz
mandou dizer que o senhor v� �s tr�s, e n�o �s duas horas, como ele
tinha combinado! Ele n�o dormiu bem, ontem, e vai cochilar um
bocadinho, depois do almo�o!
� Est� bem, Severino, chego l� �s tr�s!
O Oicial de Justi�a saiu, eu fechei a porta e voltei. Vendo que os
dois n�o tinham voltado, passei da Biblioteca para o sal�o da minha
casa. Nada! Ent�o chamei:
� Clemente! Samuel!
A�, ouvi Clemente responder, com uma voz abafada, que parecia
sa�da de dentro das catacumbas:
� Quaderna? � voc�?

� Sou! Onde est�o voc�s? Podem sair, n�o era nada n�o! Era
Severino Brejeiro com um recado do Corregedor!
� Recado para quem? � indagou Samuel, cauteloso, e ainda
sem que os dois aparecessem.
� Recado para mim! Podem sair! Onde est�o voc�s? N�o h�
perigo!
Seguindo a dire��o da fala deles eu fora me dirigindo aos poucos
para meu quarto, onde, ainal, os dois iriam surgir: tinham se metido
debaixo da minha cama, de onde sa�ram cobertos de poeira e teias de
aranha. Levantaram-se, espanando-se com as m�os, meio ressabiados e
olhando-me de vi�s.
� Bem, n�o foi nada! Mas podia ter sido! � disse Clemente. �
Todo cuidado � pouco! O ambiente est� meio perigoso e escorregadio; e
n�o tenho o direito de arriscar minha vida por besteira, privando o
Povo brasileiro de um chefe como eu, um homem que pode defend�-lo
num momento agudo de perigo e cuja vida �, portanto, inestim�vel!
� Voc�, Clemente? � falou Samuel, escarninho. � Voc�, que
acaba de fugir, escondendo-se, de modo vergonhoso, debaixo da cama
de Quaderna?
� E voc� tamb�m n�o foi, Samuel? � interrompi.
� Eu, Quaderna? Eu fugi? N�o senhor! Eu apenas sa� atr�s de
Clemente para proteg�-lo em alguma eventualidade! E depois, s� fui at�
a cama porque queria ver at� onde ia o pavor da Esquerda! Mas essa
covardia � comum nos comunistas, � uma das coisas que mais me fazem
desprez�-los! A outra � a incompreens�o que eles t�m para as grandes
personalidades individuais e carism�ticas! Eu n�o nego a voc�,
Quaderna: h� tr�s anos, em 1935, quando o Rapaz-do-Cavalo-Branco
apareceu aqui, minha esperan�a era que ele fosse um iluminado, um
Cavaleiro desses com que o Povo sonha e que os comunistas n�o s�o
capazes de lhe oferecer, por causa do plebe�smo e da mania igualit�ria!
Os �piolhos vermelhos� da marca de Clemente, Quaderna, s� pensam
em desenvolvimentos industriais e outras burguesices e engenheirices.
Em vez de aidalgar o Povo, querem transform�-lo noutra Burguesia,
pior ainda do que a outra! E s�o capazes de conseguir, ou�a o que estou
lhe dizendo! Tanto far�o, que terminar�o por abastardar e aburguesar
esse Povo admir�vel que, conduzido por verdadeiros Senhores, por
Fidalgos de ra�a, escreveu a epopeia dos Guararapes! Grande sonho,

esse dos piolhos vermelhos! Mas se eles vencerem, nossa P�tria icar�
igual a qualquer dessas rep�blicas n�rdicas de queijeiros diab�licos e
puritanos comerciantes! J� pensou, Quaderna? O Brasil ser�
transformado numa esp�cie de Holanda em ponto grande, nuns Estados
Unidos quaisquer, por a�, e deixar� de ser peculiar, cavaleiresco, latino e
cat�lico, o ilho glorioso da Ib�ria! E tudo isso porque os comunistas
s�o contra as iguras carism�ticas e idalgas de Cavaleiro!
� L� vem de novo a bosta da idalguia de Samuel! � rosnou
Clemente. � Se o Brasil seguisse o caminho que voc� prega, terminaria
um Pa�s de cavaleiros sem cavalo, de cavaleiros famintos e doentes! Pior
ainda: as rep�blicas n�rdicas de queijeiros, como voc� diz,
enriqueceriam cada vez mais, e n�s, brasileiros, terminar�amos
trabalhando de cavalo pra galego! Mas deixemos isso de lado, por
enquanto. Voc� fala como se, no meu Comunismo brasileiro, no
Comunismo negro-tapuia da �Filosoia do Penetral�, n�o houvesse lugar
para as individualidades de exce��o. Pois uma coisa eu lhe digo:
quando, em 1935, apareceu o Rapaz-do-Cavalo-Branco, o motivo
principal de eu t�-lo seguido em sua viagem foi a convic��o em que eu
estava de que ele iria repetir os feitos da �Coluna Prestes� no Sert�o da
Para�ba, em 1926. Sim, porque apesar de n�o sermos idalgos, o fato �
que a �nica igura de Cavaleiro que o Brasil deu at� agora foi da
Esquerda: foi o nosso grande, o nosso heroico Lu�s Carlos Prestes,
Cavaleiro da Esperan�a do Povo do Brasil!
� O �Cavaleiro da Esperan�a� n�o � mais Cavaleiro de cois�ssima
nenhuma! � disse Samuel com ar zombeteiro. � Entrou no Brasil com
o nome de Ant�nio Villar e vestido de padre, no que, ali�s, fez muito
bem, porque uma saia � a roupa mais conveniente a ele! E como se
meteu a besta para os lados da Aristocracia brasileira, foi derrotado e
agora est� um tanto ou quanto preso, na cadeia, chorando na cama, que
� lugar quente!
� O qu�, miser�vel? � bradou Clemente indignado. � Voc� tem
maldade suiciente para escarnecer do grande m�rtir do Povo
brasileiro? Esse homem que, pelo Povo, j� sofreu o ex�lio e est�
sofrendo a pris�o e a tortura? Ah, Samuel, � demais! Fale de mim, diga o
que quiser, escarne�a � vontade, mas n�o jogue sua pe�onha, sua baba
de �galinha-verde� sobre o nome sagrado de Prestes! Admito tudo

comigo, com ele n�o! Tomo suas palavras como uma afronta pessoal e
exijo satisfa��es! Retire o que disse!
� Um idalgo dos Engenhos, como eu, n�o d� satisfa��es a um
almocreve negro, a um tangerino tapuia da sua marca! Eu, depois que
digo uma coisa, ela est� dita mesmo, gravada em pedra, a fogo vivo! O
que eu disse est� dito e acabou-se! E se voc� quer satisfa��es, h� de ser
num duelo, no campo da honra!
� Topo, topo imediatamente! � disse Clemente. � Contanto
que ique bem claro que n�o vou tomar parte num �duelo�, coisa
medieval, obscurantista e estrangeira! � por a�, Quaderna, que a gente
vai desmascarando, aos poucos, as mistiica��es desse patrioteiro!
Voc�, Samuel, que se diz �patriota e nacionalista�, n�o se envergonha de
adotar essas estrangeirices! Eu, n�o! Aceito a luta: mas aceito somente
porque os Negros e os Tapuias tinham tamb�m suas competi��es para
resolver casos de honra! Vamos ao combate! Mas tomo voc� como
testemunha, Quaderna: o que vamos travar � uma competi��o negrotapuia,
uma competi��o brasileira, e n�o um duelo medieval e
estrangeiro!
� Ah, n�o! � contrap�s Samuel. � Eu sou um Fidalgo, um
descendente de Cruzados, um rico-homem, um morgado de sangue
godo-lamengo e latino-ib�rico! N�o tomo parte em competi��es
tapuias de qualidade nenhuma, porque isso � coisa de gaforinhas, de
cafres, de sertanejos como voc�s dois, mas n�o de um Fidalgo como eu!
Ou voc� concorda em que nossa luta � um duelo, ou eu n�o entro nela
de jeito nenhum!
� Ou competi��o negro-tapuia ou nada! � insistiu Clemente.
Eu, que estava ansioso para assistir ao duelo, que distrairia
minha ang�stia at� a hora de me apresentar na Cadeia, intervim,
conciliador:
� Samuel! Clemente! Pode se fazer um acordo! A gente adota
aquele nome que vem na Hist�ria da Civiliza��o de Oliveira Lima,
ord�lio!
� O ord�lio tamb�m � institui��o medieval! � objetou
Clemente.
� Mas a gente acrescentaria a ele a express�o negro-tapuia,
fazendo uma contra��o da preposi��o ord�lio-medieval, parte idalga de
Samuel, com o artigo competi��o negro-tapuia, parte sertaneja e

popular de Clemente! Assim, a luta se travaria batizada de ord�lio
negro-tapuia! Que acham?
� A Esquerda concorda! � disse Clemente.
� A Direita concorda se voc� substituir a palavra negro-tapuia
por brasileiro: ord�lio-brasileiro! � sugeriu Samuel.
� Topo! � concordou Clemente.
Dei um suspiro de al�vio e Samuel falou:
� Vamos ent�o combinar as condi��es da luta. Quaderna, seja
meu padrinho no ord�lio!
� Est� bem! � respondi.
� Oi, est� bem? � reclamou o Professor Clemente. � Por que
padrinho de Samuel e n�o meu?
� Samuel pediu primeiro, Clemente! Al�m disso, da �ltima vez,
eu fui padrinho seu, de modo que hoje � a vez de Samuel!
� Ah traidor do Povo brasileiro, sua verdadeira natureza de vez
em quando aparece! � comentou Clemente, amargo. � Assim � que,
aos poucos, eu desmascaro e desmistiico suas posi��es que, no fundo,
s�o reacion�rias! Pois v�, traia o Povo, j� que assumiu compromisso
com o idalgo! Mas pelo menos me preste um servi�o: v� me buscar seu
irm�o Malaquias para me servir de padrinho! Diga que ele venha,
porque vou, agora mesmo, desaiar um idalgo atrevido, arriscando
minha vida em defesa do Povo e da Revolu��o Brasileira!
Voltando-se para Samuel, perguntou:
� O ord�lio brasileiro vai ser a p� ou montado, Samuel?
� Montado! N�o sou pe�o nem plebeu para lutar a p�!
� Ent�o, Quaderna, avise logo a Malaquias que ele venha a
cavalo!
� Est� vendo, Quaderna? � advertiu-me Samuel. � Esse piolho
vermelho j� est� querendo nos desmoralizar! Manda dizer ao padrinho
dele que venha a cavalo para contrastar com o meu, que ele julga que
vir� a p�, para o ord�lio! N�o caia nessa de jeito nenhum, Quaderna! V�
logo daqui montado a cavalo, que � para aquele plebeu, aquele bastardo
do Malaquias, saber logo com quem est� tratando: com o padrinho de
um Fidalgo que vai, agora mesmo, arriscar sua vida pela P�tria,
defendendo o destino ib�rico, cat�lico, imperial e cavaleiresco do
Brasil!

D
FOLHETO XL
Cantar dos Nossos Cavalos
eixei os dois combinando as outras condi��es do ord�lio, e fui
para a estrebaria que mant�nhamos no quintal da minha casa. Ia
encilhar os nossos animais. De fato, cada um de n�s, n�o querendo
ceder coisa alguma aos outros nessas quest�es de honras e cavalarias,
tinha seu famoso Cavalo, legend�rio e caracter�stico do dono, como
sucedia com todos os Cavaleiros e Cangaceiros c�lebres.
Chegando � estrebaria, encilhei e selei primeiro a �gua de
Clemente. Era um animal castanho-avermelhado, de crinas pretas. Essa
cor fora uma exig�ncia do Fil�sofo que pretendia, at� nisso, manter-se
iel � Esquerda e � Revolu��o. Tamb�m por idelidade esquerdista � que
colocara na �gua o nome de �Coluna�, em homenagem � �Coluna
Prestes� que cruzara o Sert�o da Para�ba em 1926, realizando uma
t�pica �retirada ilustre� e tentando sublevar as massas camponesas do
Brasil para a Revolu��o.
* * *
Depois de selar �Coluna�, passei a arrear o cavalo de Samuel. Era
um �corcel negro�. Samuel era entusiasta daquele soneto do
idalgu�ssimo Antero de Quental, soneto que dizia: �Este negro Corcel
cujas passadas escuto em Sonho quando a sombra desce� etc. Por causa
dele, metera-se em sua cabe�a que s� um corcel negro poderia servir de
montada a um Fidalgo da sua estirpe. � verdade que aquele corcel
negro particular, seu, era velho, magro e escorropichado. Era tamb�m
cego de um olho, fato que s� descobrimos depois, escondido que nos foi
pelo Cigano a quem o nosso Promotor o comprara. Samuel icara
indignado com as artimanhas fraudulentas do vendedor de cavalos. Mas
disse logo, a modo de vingan�a e consolo, que outra coisa n�o se
poderia esperar dos Ciganos, �povo mouro, plebeu, cartagin�s e cafre� e

n�o �cruzado, branco e cat�lico�. Finalmente, talvez como compensa��o
� guenzice e � cegueira do corcel negro, batizara-o com o nome de
�Temer�rio�, em homenagem, como nos explicou, �a Carlos, O
Temer�rio, Duque da Borgonha, �ltimo senhor feudal digno desse nome
na Europa, e homem que, al�m disso, tendo sangue portugu�s e
borguinh�o, era de linhagem quase t�o nobre quanto a estirpe dos Wan
d�Ernes�.
* * *
Selado o �Temer�rio�, passei ent�o a encilhar meu cavalo, que se
chamava, sertanejamente e simplesmente, �Pedra-Lispe�. Eu dissera ao
Cigano que queria um cavalo de pelo avermelhado (para satisfazer a
Esquerda clementina) e de crinas cor de ouro (para alegrar a Direita
samu�lica). O desgra�ado do cavalariano me apareceu, tr�s dias depois,
com aquele cavalo, exatamente da cor que eu encomendara. Comprei-o,
portanto, sem discutir o pre�o; batizei-o de �Pedra-Lispe�, mandei sel�lo
com uma sela r�gia, enfeitada, vinda dos Agrestes pernambucanos, e
sa� muito orgulhoso, montado, pelo meio da rua, a im de me exibir
cavaleirosamente aos olhos dos meus dois mestres, rivais e amigos.
Aquilo de ter um famoso cavalo de sela era, agora, quest�o de honra
para mim: primeiro, porque Samuel e Clemente j� tinham os deles;
depois, porque todos os her�is de Jos� de Alencar, meu mestre e
precursor, andavam a cavalo, principalmente aqueles que, como
Arnaldo Louredo � Pr�ncipe guerreiro daquela epopeia que � O
Sertanejo �, eram ao mesmo tempo Fidalgos, vaqueiros e cavaleiros do
Sert�o.
De todos, por�m, os principais causadores da minha compra
tinham sido Clemente e Samuel. Um dia, numa das nossas costumeiras
discuss�es, Samuel nos explicara que, na Idade M�dia, somente os
Fidalgos � que tinham o privil�gio de andar com espadas e lutar
montados a cavalo. Clemente ingiu um grande desd�m esquerdista
pela informa��o. Assim que Samuel deu as costas, por�m, ele me disse
que �com aquela gente da Direita, o melhor era derrot�-la em seu
pr�prio campo, com as suas pr�prias armas�. Ele n�o iria permitir que
�aquele idalgote de merda dos Engenhos desmoralizasse o Sert�o, nem
mesmo com aquelas porcarias de cavalos, lan�as, espadas e outras

bostas semelhantes�. Pediu-me ent�o, em segredo, que o encaminhasse
aos Ciganos, meus velhos amigos desde o tempo em que eu fora
cobrador de impostos. Eu o levei ao Cigano Praxedes no primeiro
s�bado de feira que houve depois dessa entrevista: e foi assim que a
nossa Esquerda sertaneja se montou e se aidalgou, recebendo
Clemente seu grau de Cavaleiro sertanejo, com as esporas e outros
apetrechos do ritual.
Naquele dia, Clemente saiu logo pelo meio da rua, montado,
terrivelmente orgulhoso e elegante na sua roupa branca, sobre a qual,
por boniteza, colocara a toga. Samuel, que estava no Cart�rio de Seu
Belarmino Gusm�o, dando parecer nuns processos, empalideceu de ira
e despeito ao avist�-lo. Foi me procurar imediatamente e, fazendo das
tripas cora��o � porque tem a m�o aberta que s� a m�o de uma iga �,
pediu-me que o encaminhasse tamb�m aos Ciganos, a quem comprou o
�Temer�rio�.
Foi a� que eu, para n�o icar atr�s, comprei o �Pedra-Lispe� e fui
logo risc�-lo � porta dos dois, para exibir minhas habilidades de
Cavaleiro. Ambos come�aram logo a botar defeito em meu cavalo e
terminaram por perguntar se havia algum sentido especial naquele
apelido de �Pedra-Lispe� com o qual eu �tinha desgra�ado o nobre
animal�.
� H�, sim, uma signiica��o toda especial! � expliquei. � Voc�s
sabem da admira��o que eu tenho por Jesu�no Brilhante, aquele
Cangaceiro e her�i sertanejo. O cavalo dele chamava-se �Zela��o�. Voc�
sabe o que � zela��o, Samuel?
� N�o!
� Zela��o � uma dessas estrelas que correm de noite, no c�u.
Por isso � que eu queria que o nome do meu Cavalo fosse tamb�m o de
um bicho corredor do c�u, fogoso e arrelampado!
� E pedra-lispe � bicho corredor do c�u? � perguntou Samuel,
espantado.
� �, sim! Pedra-lispe � a pedra do raio, a pedra do corisco!
� Que tolice � essa, Quaderna! Pedra-lispe � nitrato de prata!
Cujo nome correto, ali�s, � pedra-lipes!
� Pode ser l�, na Zona da Mata, para as suas negras! Aqui no
Sert�o, todo mundo sabe que, quando cai um raio, vem uma pedra na
ponta dele, uma pedra que se chama pedra-lispe ou pedra-de-corisco e

que se enterra sete palmos de ch�o adentro! Agora, se nessa pedra tem
nitrato de prata ou n�o, isso � l� com ela e eu n�o tenho nada com isso!
Por outro lado, � at� bom que exista prata na pedra-lispe, porque, desde
a Cantiga de La Condessa que se sabe que a lua, o sangue-de-arag�o dos
Cavaleiros e a prata s�o coisas altamente po�ticas! Assim, botando em
meu Cavalo o nome de �Pedra-Lispe� eu homenageio, ao mesmo tempo,
meu Cavalo, que ica com o nome de um relampo, de um corisco, de um
desses raios prateados que caem do c�u, estralando e enchendo o
mundo de listras de fogo vermelho e azul; homenageio Jesu�no
Brilhante, que tamb�m tinha Cavalo com nome de bicho corredor, do
c�u; e ainda homenageio o Cangaceiro e cavaleiro sertanejo Corisco,
cabra de Dom Virgolino Ferreira, o Lampi�o!
� Meu Jesus! � disse Samuel, com profundo desgosto. � Como
� que um Fidalgo e poeta do sonho, como eu, vem se extraviar numa
terra b�rbara dessas, meu Deus? � pedra-lispe, � cangaceiro, � zela��o,
� corisco... Ave Maria! A Esquerda aceita essas mourarias de Quaderna,
Clemente?
� N�o! � disse Clemente, enfarruscado. � N�o por serem
mourarias, como voc� reacionariamente insinua! Mas por n�o terem
conte�do ideol�gico e pol�tico coerente! Eu j� lhe demonstrei n�o sei
quantas vezes, Quaderna, que, como express�o das reivindica��es
populares, os Cangaceiros s�o o im! Eu n�o gosto de fazer o jogo dos
nossos inimigos, falando mal da nossa P�tria, mas j� que estamos em
fam�lia, devo confessar que numas certas coisas o Brasil � sem sorte!
Essa dos Cangaceiros e dos Cantadores � uma! Vejam o M�xico, por
exemplo: l�, n�s, da Am�rica Latina, tivemos um Emiliano Zapata que,
com todos os seus defeitos, era um Cangaceiro pol�tico, mais
reivindicador e consciente! Aqui, s�o esses Coriscos, esses Lampi�es,
esses Jesu�nos Brilhantes... Isso quando n�o saem das classes
dominantes, como acontecia com Sinh� Pereira, que era da fam�lia
Pereira, a fam�lia do Bar�o do Paje�! O pr�prio Lampi�o, que por sua
ra�a mesti�a e por seu nascimento pobre, podia ser um homem mais do
lado do Povo, era cabra e corta-jaca de Sinh� Pereira! J� pensou? Um
Cangaceiro, Bar�o! Como � que um bar�o e os corta-jacas dele podem
ser revolucion�rios e a favor do Povo? � por isso que eu n�o me admiro,
absolutamente, de que, em 1926, Lampi�o tenha icado contra a
�Coluna Prestes�! Quanto aos outros, admirados t�o fervorosamente

por Quaderna, Jesu�no Brilhante era da fam�lia Alencar, uma das mais
poderosas fam�lias feudais do Sert�o, e Ant�nio Silvino � dos Moraes,
fam�lia importante de Pernambuco!
� E voc� acha isso feio, Clemente? � perguntei sem me conter.
� Pelo que eu entendo, para Samuel isso � a prova de que a Fidalguia
sertaneja, a �b�rbara Aristocracia do couro�, � bastarda e corrompida.
Para voc�, � a prova de que o Povo sertanejo n�o � iel � Revolu��o. Pois
eu acho isso tudo uma beleza! Acho uma beleza que Sinh� Pereira fosse
um Bar�o sertanejo! V� ver que ele era muito mais Bar�o e idalgo do
que o parente dele, Dom Andrelino Pereira, Bar�o do Paje�, que
provavelmente nunca montou a cavalo, nunca disparou um tiro, e era
homem pacato n�o guerreiro, valente e glorioso como Sinh� Pereira!
Voc� sabe como � o nome de Sinh� Pereira, Samuel?
� N�o sei, nem quero saber!
� Mas eu digo, quer voc� queira quer n�o! Sinh� se chama
Sebasti�o Pereira, isto �, o nome de Dom Sebasti�o e o sobrenome de
Nuno �lvares Pereira! � por isso que eu s� o chamo de Dom Sebasti�o
Pereira, O Cangaceiro!
� Era o que faltava! � riu Samuel.
� Era o que faltava por qu�? Quando � em Portugal, na Espanha,
em Flandres ou na Borgonha, voc� acha tudo isso bonito! Acha bonito,
por exemplo, que chamem El-Rei Dom Sebasti�o de Dom Sebasti�o, O
Desejado! Aqui, se eu chamo Sinh� Pereira de Dom Sebasti�o, O
Cangaceiro, voc� vem logo levar o Sert�o na galhofa! Mas eu n�o fa�o
nem seu jogo nem o de Clemente, Samuel! Pra mim, como j� disse, �
uma coisa muito bonita e gloriosa que Sinh� Pereira seja um Fidalgo
sertanejo, da fam�lia do Bar�o do Paje�, e que Lampi�o seja um Feitosa,
do Cear�!
� Sim, mas um Feitosa bastardo e mesti�o! � insistiu Samuel.
� E o que � que tem isso? � respondi. � Quanto � bastardia,
voc� mesmo disse a mim, uma vez, que Nuno �lvares Pereira, O
Condest�vel, era ilho bastardo e neto de bispo. Quanto ao fato de
Lampi�o ser moreno-carregado, a� � que ica bonito, mesmo, para a
Fidalguia sertaneja! Voc�, Samuel, tem raz�o quando diz que existe algo
de artiicial nessa mania de Clemente, querendo encontrar o Brasil
somente nos mitos negros e �ndios. Mas voc� s� quer aceitar, como
verdadeiramente Brasileiros, os Fidalgos ib�ricos, e quer, ainda por

cima, que eles esmaguem o Povo. Clemente s� quer aceitar como
Brasileiros os descendentes de Negros e Tapuias, e quer expurgar os
outros. Meu sonho, � fundir os Fidalgos guerreiros e cangaceiros, como
Sinh� Pereira, com os Fidalgos negros e vermelhos do Povo, fazendo
uma Na��o de guerreiros e Cavaleiros castanhos, e colocando esse povo
da On�a-Castanha no poder! � por isso que eu admiro tanto aquele
Cavaleiro sertanejo que foi Dom Jesu�no, O Brilhante: al�m de todas as
qualidades de coragem e valentia, ele ainda era primo de Jos� de
Alencar, era um Alencar moreno e castanho, isto �, um t�pico Fidalgo,
guerreiro e cavaleiro do Sert�o do Brasil!
� �, Quaderna! � disse Clemente com frieza. � N�s j�
conhecemos a sua admira��o embasbacada por Jos� de Alencar, pelos
Cantadores que infestam nossas feiras, e por essas fam�lias sertanejas
que vivem se matando entre si, envolvendo o Povo em suas vinditas e
atrapalhando, com isso, a Revolu��o! Mas a Esquerda n�o aceita nada
disso! N�o aceita os Cangaceiros, porque a luta deles n�o tem conte�do
ideol�gico e porque eles se p�em a servi�o dos poderosos, como sucede
com Lampi�o, que foi lambe-cu de Sinh� Pereira! N�o aceita os
Cantadores, porque deviam colocar a Arte deles a servi�o do Povo,
desmistiicando e denunciando a sociedade feudal do Sert�o e a mis�ria
que o Povo sofre! No entanto, em vez disso, os Cantadores fazem o jogo
dos senhores feudais sertanejos, poetizando a vida do Sert�o e
enchendo nossas estradas e Caatingas de reis, Condes e princesas,
assim como com milagres, assombra��es, coisas m�gicas, religiosas e
obscurantistas da mais diversa natureza! Olhe, Quaderna, vou comentar
s� um, como exemplo! Outro dia, eu li um desses horr�veis �folhetos�
que voc� e seus irm�os imprimem na tipograia da Gazeta e vendem nas
feiras. Para lhe ser franco, foi uma das coisas mais alienadas que j� vi.
Come�ava o Cantador dizendo que �no Reino do Paje��, em
Pernambuco, morava �um honesto Fazendeiro�. Chamar o fazendeiro de
honesto j� era ruim! Mas, al�m disso, o �honesto fazendeiro� era, ainda,
�pai de uma Princesa, que era alva como os l�rios e honesta como a
pureza�! Alva � dado como elogio! E, como se n�o bastasse, o
desgra�ado do Cantador aceita os padr�es morais da classe dominante,
e elogia a ilha do opressor! Mas a coisa vai al�m! Sendo o tal �honesto
fazendeiro� o �Rei do lugar� (imagine!), morava ali por perto �um Negro
cangaceiro�, cujo costume era �delorar as donzelas�. Um dia, vendo a tal

�Princesa�, ilha do �Rei fazendeiro�, o Negro resolve �desfolhar a folha
dela�. Pois bem: com esse enredo armado, o peste do Cantador toma o
partido do fazendeiro e da mo�a, e volta toda sua antipatia contra o
Cangaceiro negro, ao lado do qual ele deveria estar, por solidariedade
racial e por coer�ncia na luta de classes! Agora pergunto: o que � que a
Esquerda pode fazer com Cantadores como esse e com Cangaceiros
aliados aos poderosos, Quaderna?
� N�o sei, Professor Clemente! � retruquei, inabal�vel. � O
que sua Esquerda pode fazer n�o sei, mas para mim eles s�o
terrivelmente importantes! Para mim, o cantador Dom Leandro Gomes
de Barros � t�o importante para o Reino do Sert�o quanto, segundo
Samuel, o trovador e Rei Dom Dinis foi importante para o Reino de
Portugal � ambos os Reinos pertencentes ao Imp�rio do Brasil! Quanto
aos Cangaceiros, o que eu sei � que eles lutavam muitas vezes montados
a cavalo, como no dia em que atacaram Mossor�: portanto, s�o
Cavaleiros e idalgos do Sert�o! Ali�s, Samuel, voc� n�o pode contestar
isso n�o, porque Gustavo Barroso � Fidalgo e pertence � Direita, e foi no
livro dele, emprestado a mim por voc�, que eu li isso! Quanto a voc�,
Clemente, tamb�m n�o pode reclamar: nos manifestos de Dom Lu�s
Carlos Prestes, Chefe dos comunistas brasileiros, fala-se dos
Fazendeiros sertanejos como de �senhores feudais�. Isso quer dizer que
o chefe da Esquerda brasileira reconhece que o Paje�, o Serid� e o
Cariri s�o Reinos e reconhece a exist�ncia da Fidalguia sertaneja: �
contra, mas reconhece! Ora, voc� sabe que, apesar de ser contr�rio �s
ideias dele, tenho grande admira��o por Dom Lu�s Carlos Prestes, o
Retirante...
� Retirante? Retirante por qu�?
� Porque foi ele o Chefe e condutor guerreiro da �retirada
ilustre� mais importante da Hist�ria, a �Coluna Prestes�, feito militar
que eu considero igual e mesmo superior aos de Alexandre, o
Maced�nio, An�bal, o Cartagin�s, e Gengisc�o, o Mongol!
� Bem, nisso a� eu estou de acordo com voc�! � disse o Fil�sofo
todo ganjento. � Mas, da� a reconhecer que Jesu�no Brilhante � um
Cavaleiro do povo sertanejo, vai uma dist�ncia muito grande!
� Clemente, Rodolpho Teophilo foi integrante do movimento da
�Padaria Espiritual�. Era, portanto, escritor sertanejo, consagrado,
cearense e da Esquerda. Ora, ele dedicou todo um �romance� � vida de

Jesu�no Brilhante! No �romance� dele, existe refer�ncia � Casa de Pedra,
o Castelo de Jesu�no Brilhante. Ele transcreve uma carta que Jesu�no
Brilhante dirigiu �s autoridades do Imp�rio do Brasil, em 5 de
Dezembro de 1879. Na carta h� as seguintes express�es: �N�o quero
implorar vossa clem�ncia, pois sou Rei deste Deserto e Senhor absoluto
destas paragens.� Jesu�no Brilhante chama seu Castelo de pedra de
�minha Fortaleza� e assim por diante! De tudo isso, eu deduzo que a
Esquerda brasileira reconheceu a import�ncia de Her�i brasileiro de
Jesu�no, o qual, vestido de armadura de couro, com bacamarte
cravejado de prata, com esporas de ouro, e sobretudo montado a cavalo
como Dom Lu�s Carlos Prestes, errou pelos campos do Sert�o ao lado
do Povo! � por isso, ent�o, que voc�s dois podem falar � vontade: o
nome que escolhi para meu cavalo foi �Pedra-Lispe� e �Pedra-Lispe� h�
de icar!
* * *
Mantive, assim, heroicamente, minha posi��o pol�tica, liter�ria e
cavalariana ante aqueles dois grandes homens. O que n�o pude manter,
por�m, nobres Senhores e belas Damas de peitos macios, foi a cor do
cavalo: o desgra�ado do Cigano n�o tinha encontrado um animal
conforme o igurino por mim encomendado; pegara ent�o o primeiro
cavalo pampo que encontrara, oxigenara-lhe as crinas e dera-lhe no
pelo uma caia��o vermelha, usando para isso tinturas desconhecidas,
cuja receita certamente vinha passando de pai para ilho h� v�rias
gera��es de Ciganos. O pior � que a cor nem sa�a de vez nem se ixava
deinitivamente. Humilhei-me ent�o, pedindo ao Cigano que, de quinze
em quinze dias, me vendesse, nas feiras, um frasco da tintura vermelha
e outro da amarela, para que eu pudesse manter meu cavalo pintado.
Ele passou a me explorar mais essa fraqueza, espichando-me o couro
no pre�o dos frascos. De modo que meu �Pedra-Lispe� ainda hoje vive
assim: ora alaz�o, ora pampo, mas sempre meio sujo, raposo e afoscado
pelo diabo das tinturas do Cigano.
Esse incidente serviu de galhofa a Clemente e Samuel durante
mais de uma semana. Depois, por�m, gra�as a outro incidente
acontecido entre os animais de sela dos dois, tiveram que eniar a viola
no saco. Limitavam-se, depois da�, a atribuir um sentido secreto e

profundo ao pelo e �s crinas de �Pedra-Lispe�, dizendo que �o furta-cor
do pelo do cavalo correspondia ao furta-cor pol�tico do burro do dono�.
* * *
Naquela Quarta-feira de Trevas pela manh�, portanto, deixei
�Coluna� e �Temer�rio� amarrados e selados na estrebaria, � disposi��o
dos donos, montei em �Pedra-Lispe� e, saindo pelo port�o de tr�s,
encaminhei-me para a Rua de S�o Jos�, onde morava meu irm�o
Malaquias.
Ao chegar diante da casa dele, esbarrei o cavalo, fazendo-o
riscar, e gritei para dentro:
� Malaquias! Malaquias Pav�o Quaderna! Venha! Apare�a, se for
homem!
Era uma brincadeira habitual entre n�s, a imita��o dos modos e
da voz do nosso amigo Dom Eus�bio Monturo. Por isso, Malaquias
respondeu de dentro, no mesmo tom, e terminando suas palavras com a
frase com que Eus�bio costumava rematar seus rompantes:
� O qu�? Que atrevimento � esse? Um homem riscando o cavalo
na porta da minha casa, �? N�o posso icar desmoralizado! On�lia, traz
o meu rile!
Ouvi o manejo do rile botando bala na agulha e imediatamente
Malaquias, de papo-amarelo em punho, fazia aparecer a cara na porta:
� Ah, Dinis, � voc�? � disse ele, ainda imitando Dom Eus�bio
mas abaixando o rile. � Isso � jeito de se chegar defronte da casa do
Paladino do Povo, homem? Voc� escapou de morrer! Imagine se eu, em
vez de veriicar, tenho atirado l� de dentro!
E Malaquias disparou uma saraivada de perguntas que, mesmo
no tom de brincadeira, demonstrava como estava incendiado o
ambiente da nossa Vila depois do inqu�rito e do Corregedor:
� O que � que h�, Dom Pedro Dinis Quaderna? Voc� veio
mandado pelo nosso chefe, o Rapaz-do-Cavalo-Branco? � a Guerra do
Reino? � a Revolu��o? O Povo j� est� nas ruas? J� est�o fazendo as
barricadas? As guerrilhas v�o come�ar?
� N�o! Calma, Dom Eus�bio Monturo! � continuei,
compactuando com a brincadeira.
� Voc� foi intimado pelo Corregedor para o inqu�rito?

�Fui!
� Quer que eu mate logo aquele barril de merda? Se quiser, � s�
dizer! O Paladino do Povo est� sempre disposto a servir �s grandes
causas! Pego aquele bosta, dou-lhe um tiro na boca e uma facada no cu!
� N�o, calma, Dom Eus�bio! N�o mate o homem n�o, que minha
situa��o pode se complicar! N�o vim para isso, n�o!
� E pra que foi que veio?
� � que Samuel e Clemente pegaram-se de novo numa briga e
v�o travar um �ord�lio-brasileiro�! Fui escolhido como padrinho de
Samuel e voc� de Clemente!
� Onde vai ser a briga?
� Ainda n�o est� resolvido isso n�o, mas vou sugerir a estrada
do Teixeira, no descampado que ica perto do Cemit�rio Novo!
� Bom lugar, escolheu bem, porque se um dos dois morrer na
briga, ica logo no Cemit�rio e d� menos trabalho pra ser enterrado! O
duelo � agora? Pra j�?
� Para agora mesmo!
� Pois ent�o, vamos! � falou Malaquias, dispondo-se a me
acompanhar a p�, assim como estava.
� N�o, v� selar o ��s de Ouro�, porque o duelo vai ser montado,
coisa de idalgos!
Malaquias entrou, sem demonstrar espanto, pois tanto eu como
ele j� est�vamos acostumados a servir de padrinhos nas brigas
daqueles dois homens guerreiros e belicosos. E da� a pouco, por um
port�o lateral e traseiro da casa, surdia meu irm�o, montado no famoso
��s de Ouro�, cavalo que substitu�ra o legend�rio e seu quase hom�nimo
�Rei de Ouro�, perdido por Malaquias Quaderna na c�lebre aventura
guerreira e cavalariana da �Guerra do Verde�, acontecida em 1932.

Q
FOLHETO XLI
As Armas e os Bar�es Assinalados
uando chegamos de novo diante da minha casa, o Doutor Samuel
j� estava montado no �Temer�rio�, debaixo do enorme p� de
Tambor que sombreia nossa cal�ada. Sua famosa �lan�a de alabarda�
estava amarrada, por um io de couro, ao ar��o da sela, e ele
empunhava, tamb�m, sua �velha espada de copo em cruz�, ambos esses
objetos sendo �rel�quias de fam�lia�, herdados que tinham sido do
s�timo av� do Poeta, �o idalgo lamengo Sigmundt Wan d�Ernes,
companheiro e conidente de Gaspar Wan der Ley, de Carlos de Tourlon
e do pr�prio Conde Jo�o Maur�cio, Pr�ncipe de Nassau-Siegen�, todos
eles iguras importantes da nossa �Guerra Holandesa�, a Il�ada Fidalgo-
Brasileira do s�culo XVII, como dizia o Promotor.
Eu e Malaquias j� est�vamos para estranhar que o Professor
Clemente n�o estivesse ainda a postos para a refrega quando ele
apareceu, montado em �Coluna� e surgido da parte de tr�s das nossas
casas, que t�m quintais e muros conjugados.
Clemente usava sempre, nos duelos, �um Ferr�o sertanejo, �
guisa de lan�a�. Era uma aguilhada plebeia, popular e forte, muito mais
eicaz do que a lan�a do Fidalgo. Em vez de espada, nosso Fil�sofo
usava um r�stico fac�o rabo-de-galo, feito de encomenda para ele, no
Paje�.
Eu tinha, ali�s, duas armas semelhantes, que usava para tanger
gado e cortar cactos. Nunca me ocorrera, por�m, aquela ideia
maravilhosa de declarar que as usava �� guisa de lan�a e espada�, o que
as enobrecia demais! Mas quando Clemente teve mais esse estalo
genial, imitei-o imediatamente, e, na mesma hora (tanta � a for�a das
ideias r�gias, po�ticas e onc�sticas), aquela simples aguilhada e aquele
fac�o pesado e prosaico viraram �a lan�a e a espada de El-Rei Dom
Pedro Dinis Quaderna, O Cantador, descendente, em linha direta, de
Dom Jo�o I, O Precursor, e de Dom Jo�o II, O Execr�vel, Reis da Pedra

Bonita do Sert�o do Paje�, no s�culo XIX�. Cheguei mesmo a ir al�m de
meu mestre, Clemente: porque, lendo na Hist�ria de Carlos Magno e os
Doze Pares de Fran�a, que era costume os grandes Cavaleiros antigos
colocarem nomes de batismo em suas armas, meu fac�o foi batizado
como �a legend�ria espada Paje�� e meu ferr�o como �a famosa lan�a
Cariri�, ambos muito superiores � �Durindana�, do Conde Rold�o.
Ora, naquele dia, notamos logo que Clemente n�o trazia nem a
aguilhada nem o fac�o. Lembro-me de que estranhamos
imediatamente, tamb�m, que o toque surdo dos cascos de �Coluna�
viesse acompanhado por um tengo-telengo-tengo que nos pareceu
esquisito, a mim e a Malaquias, e suspeit�ssimo, a Samuel.
� Que baticum � esse a�, Bacharel Clemente? � indagou o
Poeta. � Onde est�o sua espada e sua lan�a plebeias, para o duelo?
� Para o duelo, n�o, para o ord�lio-brasileiro! � respondeu
Clemente, que estava atento. � E quem disse a voc� que eu vou lutar a
espada?
� Eu vou levando minha lan�a e meu montante! � falou
Samuel.
� Pois voc� se precipitou! O desaiado fui eu e quem escolhe as
armas sou eu!
� � verdade, isso, Samuel? � perguntei.
� �! � conirmou meu ailhado. � Como desaiado, Clemente
tem o direito de escolher, mas acho que icou logo subentendido quais
seriam as armas. Sou um Fidalgo, e a luta deve ser a lan�a e espada. Por
isso, eu trouxe logo as armas que herdei do primeiro dos Wan d�Ernes
brasileiros! Eu, �ltimo representante dessa nobil�ssima linhagem
principesca, derradeiro var�o da minha Casa, n�o a desonrarei, mesmo
que para isso tenha que derramar sangue iniel, nessa pugna de hoje!
� Acredito! � falou Clemente. � Mas n�o ser� a lan�a e espada
que voc� honrar� o nome ilustre dos Wan d�Ernes hoje, n�o! Fui o
desaiado, tenho o direito de escolher e as armas que escolhi foram
estas aqui!
Clemente deu uma volta em �Coluna� e assim nos exibiu,
amarrados pelas asas no ar��o, dois objetos que n�o reconhecemos
imediatamente pelo fato de os estarmos vendo pela primeira vez, assim
deslocados de seu verdadeiro lugar e de sua fun��o habitual. Mas nossa

perplexidade durou pouco, e logo eu e Malaquias come�amos a rir ao
mesmo tempo.
� S�o dois penicos! � disse Malaquias com uma express�o que
exasperou logo o Fidalgo. � Era esse o telengo-tengo, Professor
Clemente?
� O telengo-tengo era esse! � conirmou o Fil�sofo.
Samuel empalideceu e gaguejou, exasperado:
� Que brincadeira de mau gosto � essa, Clemente? Voc� est�
gracejando com uma coisa s�ria como nossa refrega?
� Gracejando o qu�? Por acaso eu iria faltar com o respeito a
um acontecimento no qual vou arriscar minha vida? Samuel, para mim,
a Revolu��o � uma coisa sagrada!
� E como � que vem com uma palha�ada dessas? Como � que
escolhe dois objetos t�o rid�culos como armas para nossa pugna?
� Escolhi, em primeiro lugar, porque a Esquerda, com seus
pontos de vista s�rios e cient�icos, n�o v� nada de rid�culo em objetos
�teis. Em segundo lugar, para desmoralizar a Fidalguia. Em terceiro
lugar, para mostrar como minha luta � realmente uma luta do Povo,
uma luta popular. E inalmente, para desmascarar de uma vez para
sempre sua igura empaiada de falso Fidalgo dos engenhos de
Pernambuco! Voc� vai morrer por minha m�o, hoje, Samuel! E, o que �
pior, vai morrer levando penicadas! Duas trag�dias de uma s� vez:
primeiro, porque voc� vai morrer e a morte � sempre uma coisa
desagrad�vel; depois, porque vai morrer de morte engra�ada, de modo
que nunca mais deixar�o de rir � sua custa. �Como morreu o Doutor
Samuel Wan d�Ernes, descendente do homem de conian�a do Pr�ncipe
Jo�o Maur�cio de Nassau?� � perguntar�o uns. E os outros
responder�o: �Morreu duma penicada que levou na cabe�a, dada por
um Fil�sofo negro-tapuia e comunista!�
Samuel estava mortiicad�ssimo:
� Eu n�o me submeto a essa ridicularia de jeito nenhum! �
disse. � E vou logo icando de costas, ouviu? N�o quero nem ao menos
ver esses dois objetos vulgares, que voc� quer equiparar � minha velha
alabarda e � nobre Espada que eu herdei de meus antepassados!
E Samuel p�s-se, realmente, de costas para o Fil�sofo. Mas este,
como todo revolucion�rio, era implac�vel na defesa de uma ideia que
considerava justa, de modo que se manteve impiedoso:

� Bem! � falou ele, irme. � Se voc� n�o se submete �s
condi��es da luta, pe�a que seu padrinho, Pedro Dinis Ferreira-
Quaderna, na qualidade de Vice-Presidente de Honra no exerc�cio da
presid�ncia da Academia de Letras dos Emparedados do Sert�o da
Para�ba, consigne em ata que voc�, depois de insultar o nome sagrado
de Lu�s Carlos Prestes, recusou retratar-se, me desaiou para um
ord�lio-brasileiro e depois correu do campo da honra, motivo pelo qual
ica �O Cavaleiro da Esperan�a�, Prestes, sagrado e consagrado como o
grande m�rtir e chefe do Povo Brasileiro!
� Ah, isso n�o! Isso nunca! � bradou Samuel, sempre de costas.
� Um Fidalgo como eu n�o abandona o campo da honra! Apenas,
Quaderna, diante das armas rid�culas escolhidas por esse cafre, recuso
o combate!
� Se recusa, corre, e quem corre, perde! � tornou Clemente. �
O direito de escolher as armas � meu e eu j� escolhi! Se voc� n�o aceita,
corre! E ique logo bem claro, isso: sua fuga n�o tem nada de honrosa!
No fundo, voc� est� correndo � com medo, porque, de fato, existe perigo
de vida em nossa luta. Um penico, bem-manejado por um bra�o popular
e forte como o meu, � uma arma terrivelmente perigosa!
Principalmente um penico como este, um cuba pesado, grande e de
metal forte! � por isso que voc� est� com medo, Samuel! A�, vem com
essa hist�ria de �armas plebeias� e �armas idalgas�! O que voc� quer, �
uma desculpa para correr com medo!
� Eu estou com medo � do rid�culo! � gemeu o Fidalgo,
desesperado.
� Oi, e voc� n�o vive dizendo que �os gr�o-senhores�, como
voc�, �est�o acima do rid�culo�? Est� ouvindo, Malaquias? Est� ouvindo,
Quaderna? Samuel acaba de confessar, sem querer, que o Povo negrotapuia
� mais idalgo do que a Aristocracia de merda dos brancosos!
Que inseguran�a! O risco que n�s dois corremos � o mesmo: se eu
morresse, todo mundo poderia rir de mim, tamb�m! Mas eu n�o tenho
medo, por dois motivos: primeiro, porque vou � matar, e n�o morrer;
depois, porque, para mim, a forma de morrer pelo Povo n�o importa
nem me atinge! Seguro na grandeza e na beleza da minha causa, estou
acima do rid�culo e topo qualquer parada!
Samuel voltou-se, encarou o Fil�sofo de frente, e falou com ar de
quem se atirava no abismo:

� Pois ent�o, seja! Se voc� escolhe essas armas, a luta ser� com
elas! Nunca ningu�m dir� que um plebeu, um gaforinha, um Anv�rsio
qualquer, se mostrou mais Fidalgo do que um Wan d�Ernes! Agora, uma
coisa eu lhe digo, ouviu Clemente? Guarde sua vida! Guarde, porque
agora eu vou ser implac�vel! As outras condi��es ainda s�o as mesmas
que combinamos?
� As mesmas, exatamente! � conirmou Clemente. � Caso
voc� morra, enterro idalgo, � minha custa, com desile das suas
organiza��es reacion�rias, a �Ordem dos Cavaleiros da Esfera Armilar�
e �As Virtuosas Damas do C�lice Sagrado de Tapero��, com disparos de
armas de fogo, sendo o f�retro levado por carro�a coberta de veludo
verde e o caix�o enfeitado de ouro e negro! Caso o morto seja eu,
enterro pobre, despojado e esquerdista, como conv�m a um
revolucion�rio e comunista-brasileiro da minha qualidade! Nada de
padres junto a meu cad�ver! Dos padres e da �Irmandade das Almas�,
quero somente o chamado �caix�o da caridade�, o caix�o comum em
que se levam para a �ltima morada os mais miser�veis camponeses do
Sert�o! Chegando ao cemit�rio, joguem-me dentro da cova, como fazem
com eles: diretamente no ch�o, em contato com a terra negro-tapuia e
despojada do Brasil! � concluiu ele com voz emocionada.
Notei que tanto ele como Samuel estavam comovidos e
impressionados, cada um vendo j� o pr�prio funeral para dentro de
breves horas. Eu, por�m, ainda precisava de certas informa��es sobre o
duelo, de modo que perguntei:
� E se n�o morrer nenhum dos dois? Como � que vai se saber
quem ganhou?
� Ser� considerado vencedor aquele que alijar o outro do
cavalo, com as penicadas! � esclareceu Clemente. � Nesse caso, o
vencedor ter� direito de desilar pela rua em triunfo, na hora por ele
marcada, sendo o vencido obrigado a fazer parte do triunfo do outro
nas condi��es que o vencedor determinar! N�o foi isso o combinado?
� Foi! � concordou Samuel.
� E onde vai ser o ord�lio? Eu pensei na estrada, perto do
cemit�rio! � sugeri.
� Est� bem, � um bom lugar! � disse Samuel.
� Ent�o, est� tudo combinado! � disse eu, exultante, e j�
inteiramente esquecido do inqu�rito. � Mas, se voc�s n�o se

incomodam, eu pediria que me esperassem aqui dois minutos! Preciso
me preparar tamb�m, para que o nosso ord�lio-brasileiro tenha todos
os requisitos de um bom duelo medieval-sertanejo!
* * *
Eram, j�, dez horas da manh�. Eu tinha tomado uma lapada do
�vinho sagrado da Pedra do Reino�, de modo que estava com os olhos
menos ruins do que comumente. Com o depoimento e a amea�a de
pris�o � tarde, meu sangue sertanejo pressentia que nossos rituais
r�gios e cat�lico-sertanejos eram indispens�veis para me animar na
terr�vel luta que ia empreender contra o Corregedor e as for�as
obscuras desencadeadas no Sert�o pela desaventura do Rapaz-do-
Cavalo-Branco.
Assim, quando cheguei l� dentro, abri um dos meus ba�s de
couro tauxiado, vesti minha cal�a parda, minha camisa gandola de cor
c�qui e bordada nas mangas com o ferro dos Quadernas, calcei minhas
alpercatas de rabicho, botei meu chap�u de couro estrelado e sinado na
cabe�a, e, na qualidade de chefe e Imperador de todas as cavalhadas
taperoaenses, peguei ainda quatro capas, quatro peitorais-de-cavalo e
quatro mantas-de-anca, sendo dois do Cord�o Azul e dois do Cord�o
Encarnado. Embrulhei essas coisas num len�ol grande, pois n�o queria,
logo de sa�da, abespinhar aquelas duas feras, Clemente e Samuel. E s�
a�, com o embrulho numa m�o e meu rile na outra, sa� de novo para a
rua, voltando � sombra do p� de Tambor.
Quando apareci, Samuel comentou logo, com desprezo:
� A �Diana Indecisa� foi se fantasiar de sertanejo! D� logo
vontade de n�o admiti-lo mais � honra de padrinho de um Fidalgo dos
engenhos pernambucanos!
� Est� vendo, Quaderna? � disse Clemente. � Voc� j� est�
dando a Samuel motivo para zombar do Sert�o! � por causa dessas
coisas que terminam levando o Sert�o na galhofa! Felizmente, hoje,
voc� � padrinho dele e n�o meu! O meu, est� vestido com sobriedade e
discri��o excepcionais! Vamos embora, Malaquias!
E, com o ito de marcar bem as diferen�as entre seu patriotismo
sertanejo, r�gido e s�rio, de esquerdista, e o meu, Clemente esporeou

�Coluna�, e, seguido por Malaquias, rompeu caminho, na dire��o
combinada.
Eu n�o me abalei nem sa� da minha calma. Peguei meu papoamarelo
e amarrei-o no ar��o da sela. A exemplo do ferr�o e do fac�o
rabo-de-galo, meu rile tem tamb�m seu nome legend�rio, �Serid��.
Amarrei, pois, o �Serid�� no lado direito da sela, a �Cariri� no esquerdo,
e pendurei minha legend�ria �Paje�� no cintur�o, protegida por sua
c�lebre bainha de couro, trabalhada a ferro e a fogo e comprada por
mim na Espinhara. Amarrei tamb�m, na garupa, o embrulho que izera
com o len�ol, e s� ent�o montei.
Samuel espica�ou o �Temer�rio�, eu esporeei �Pedra-Lispe� e,
alcan�ando os outros que j� iam cortando caminho por dentro do �R�i-
Couro�, encaminhamo-nos, os quatro, em dire��o � Estrada do Teixeira.

Q
FOLHETO XLII
O Duelo
uando deixamos o atalho, subimos o tabuleiro �ngreme e
pedregoso que leva � estrada real e paramos naquele lugar plano
e amplo que serve de p�tio ao nosso apraz�vel �Cemit�rio da
Consola��o�. � o lugar onde se realizam todas as carreiras de prado e
corridas de cavalo de Tapero�. Esbarramos os cavalos e izemos uma
pausa que eu aproveito para explicar uma coisa que me esqueci de
dizer e que devia ter esclarecido desde o come�o.
� a respeito dos textos de geniais escritores brasileiros que
venho citando. Sem esta explica��o, pareceria at� que eu s� aceito o
Tapirismo samuelesco, j� que venho traindo o realismo feroz exigido
pelo Oncismo clementino. Sim, porque n�o seria poss�vel que Samuel,
Clemente e eu tiv�ssemos mem�rias t�o amolestadas para citar tanta
coisa. � claro que os textos a que Samuel e Clemente se referiam e
referem em nossas sess�es n�o eram, nem podiam ser, citados com a
corre��o e o encadeamento l�gico com que aparecem aqui � salvo
certos lapsos e enganos que posso cometer como todo mundo. Eu � que,
depois de cada discuss�o, me dava ao trabalho de procurar os textos
nela referidos, copiando cuidadosamente os mais importantes e
guardando tudo numa pasta que carrego sempre comigo. Isso tinha
dois objetivos: primeiro, o de corrigir aquilo que meus dois mestres
chamavam �a forma��o desordenada de Quaderna�. O outro era mais
importante ainda. Ocorre que, como j� disse, eu tinha lido, no
Almanaque Charad�stico que, para ser cl�ssica, uma obra tinha que ser
completa. Pensei muito sobre o assunto, e cheguei � conclus�o de que a
�nica obra verdadeiramente completa que eu conhecia era a Antologia
Nacional, de Fausto Barretto e Carlos de Laet: tendo textos de todo
mundo, tinha todos os estilos; logo, eu teria que fazer da minha, entre
outras coisas, uma outra Antologia Nacional. Por outro lado, a obra que
Clemente viesse a fazer, mesmo que tivesse cita��es, s� teria as da

Esquerda, e a de Samuel, as da Direita. A minha seria a �nica completa,
pois teria textos selecionados para mim pela Esquerda e pela Direita
brasileiras.
Explicado isso, volto � estrada. Esbarramos os animais, e eu falei
para Clemente e Samuel, um pouco no tom de proclama��o que adotava
para tais momentos, ali�s por inlu�ncia deles:
� Professor Clemente! Doutor Samuel! Eu sei perfeitamente que
voc�s s�o dois grandes homens, formados, titulados e colocados muito
acima de mim ou de qualquer outro aqui, pela cultura liter�ria, pela
import�ncia pol�tica e pela hierarquia social! Mas, apesar de todas as
diferen�as, sendo um pouco mais mo�o e tendo sido aluno de ambos,
adquiri tamb�m certos privil�gios de amizade diante de voc�s,
principalmente tendo cedido casas minhas para voc�s morarem sem
pagar um tost�o. De modo que me acho com o direito de fazer um
pedido a voc�s. Vejam que, at� o dia de hoje, tenho concordado em fazer
v�rias coisas contra minhas convic��es, somente por causa da amizade
pessoal e da admira��o que tenho por voc�s, a quem considero meus
mestres de Pol�tica e Literatura! Vejam, por exemplo: hoje estou aqui,
servindo de padrinho a Samuel, homem contr�rio a minhas ideias!
Serviria da mesma maneira a Clemente, o que, ali�s, j� tenho feito mais
de uma vez! Pois bem: chegou o momento de voc�s me pagarem na
mesma moeda, atendendo a esse pedido meu! Vejam que estou aqui,
participando de um acontecimento subversivo, pois � da honra ou da
desonra do Chefe comunista brasileiro que vai se tratar! Apesar disso,
amea�ado de ser preso hoje � tarde, aqui estou, por idelidade a voc�s!
Voc�s sabem como eu sou fascinado por todo Espet�culo que tem
cavalos, bandeiras, punhais, batalhas, desiles, cavalhadas, cavalarias e
outros hero�smos! Pois o pedido que tenho a fazer a voc�s, em nome da
nossa amizade, � ligado a essas coisas!
� O que �? � disse Clemente, meio espantado por aquela
minha tirada e assumindo um ar meio sobranceiro, meio solene, que foi
logo imitado por Samuel.
Continuei:
� Eu trouxe, aqui, essas capas de Cavalhada, esses peitorais
para os cavalos e essas mantas-de-anca, tudo do Cord�o Azul e do
Cord�o Encarnado. Eu queria enfeitar os cavalos e vestir n�s quatro de

Cavaleiros! Assim, o nosso ord�lio-brasileiro ica muito mais bonito e
muito mais heroico!
Confesso que esperava uma resposta negativa e mesmo �spera
deles. Mas n�o, veio boa! N�o sei se porque, no fundo, h� muito tempo,
tinham inveja das minhas cavalarias, s� n�o as adotando antes por falta
de pretexto e por acanhamento, o fato � que acederam logo. Samuel
ainda ingiu ditar condi��es:
� Olhe, Quaderna � disse ele �, como tudo o que � sertanejo,
essas suas Cavalhadas t�m muita coisa de mouraria e barbaridade! Mas,
para lhe fazer um gosto, concordo, desde que minha bandeira seja a
Azul, a que tem a Cruz de ouro!
� Era essa, mesmo, que eu tinha separado para voc�! � disse
eu, na maior alegria. � Voc� vai lutar como Cavaleiro cruzado do
Cord�o Azul e idalgo, e Clemente como Cavaleiro mouro do Cord�o
Encarnado e comunista!
Saltei ent�o do cavalo e, content�ssimo, coloquei as mantas e os
peitorais azuis no �Temer�rio� e no �Pedra-Lispe�, os vermelhos em
�Coluna� e no ��s de Ouro�. Depois, prendi os mantos azuis no meu
pesco�o e no de Samuel, e os vermelhos nos de Clemente e Malaquias.
Cortei, numa beira-de-cerca, duas varas de marmeleiro de tamanho
conveniente, e prendi a elas as duas bandeiras dos cord�es, que, assim
aprestadas, icaram, a Azul na minha m�o, e a Vermelha na de
Malaquias.
A�, eu e Malaquias fomos marcar, no plano da estrada, os pontos
de partida, de perto dos quais os dois Cavaleiros deveriam largar, de
testa um para o outro, e trocando os golpes de passagem, no centro,
diante da tribuna improvisada para os dois padrinhos, eu e Malaquias,
que, assim, acumular�amos as fun��es de matinadores, escudeiros e
ju�zes. Cortamos mais duas varinhas, incamos uma delas num dos
lados da estrada e fomos incar a outra do outro lado, a uns cem metros
da primeira. Feito isto, voltamos para o lugar onde os dois rivais nos
esperavam:
� Pronto, Doutor Samuel, e pronto, Professor Clemente! �
falou Malaquias. � Os lugares de partida est�o marcados!
Samuel falou:
� Est� tudo pronto? Ent�o a luta vai come�ar! � aqui que um
Fidalgo dos engenhos pernambucanos derramar�, ou o seu sangue, ou o

sangue de seu inimigo, na defesa do Brasil imperial, cruzado, cat�lico e
idalgo-ib�rico da Direita! Voc� est� pronto, Clemente? Mant�m o que
disse?
� Estou pronto e mantenho minhas posi��es! Nunca voc� dir�
que encontrou a Esquerda brasileira hesitante, num momento como
este! Venha! Venha, porque encontrar� disposto, na trincheira da luta,
pronto para morrer por seus ideais, um homem que tem orgulho do
destino negro-tapuia e socialista-vermelho do Brasil!
Antes que eles izessem um movimento para a sa�da, interferi:
� Um momento! Cada um dos padrinhos, a cavalo, deve levar
seu ailhado para o marco de partida. Depois, eu e Malaquias voltamos
aqui, para o centro. Quando n�s baixarmos as bandeiras, voc�s partem
e, quando passarem um pelo outro (o que dever� acontecer mais ou
menos aqui no meio), d�o um golpe de cada vez. Se n�o cair ningu�m,
haver� outra corrida e outro golpe, at� que a parada se decida.
Combinado?
� Combinado! � disse Malaquias. � Doutor Samuel, aqui est�
o penico do senhor! Professor Clemente, aqui est� o seu! J� examinamos
as armas, eu e o Mestre Dinis!
� T�m o mesmo tamanho e o mesmo peso! � fez quest�o de
esclarecer Clemente, com sua r�gida lealdade jacobina.
Aqui, para que os nobres Senhores e belas Damas que me ouvem
n�o pensem que o ord�lio ia ser brincadeira, devo esclarecer que as
armas escolhidas por Clemente eram realmente perigosas. N�o eram
penicos comuns, mas uns penicos especial�ssimos, desses que o Povo
sertanejo chama de �cubas�, no masculino, �os cubas�. Eram enormes e
pesados, com cerca de setenta cent�metros de altura.
Os dois combatentes empunharam-nos pelas asas e eu,
aproveitando aquele primeiro momento de hesita��o em que ningu�m
sabia para que lado ir, conduzi Samuel para o local que previamente
escolhera para ele, com um objetivo determinado.
Durante a vinda, eu planejara uma manobra desleal para
prejudicar Clemente e favorecer meu ailhado, Samuel. Sabia que, com
um pouco de esperteza e dissimula��o, teria oportunidade de lev�-la a
cabo: os dois rivais, perdidos na grandeza de suas ideias e de seus
sonhos, eram muito distra�dos para as ciladas da vida pr�tica.

Por outro lado, � boa moda sertaneja, fui sempre muito sens�vel
� honra de ser escolhido para padrinho. Quem me escolhe, pode contar
com um coiteiro iel e protetor incondicional. Ailhado meu, para mim,
nunca teve defeito nenhum.
Ora, naquele dia, quem me escolhera fora Samuel. E eu,
pensando logo num subterf�gio qualquer para ajud�-lo, me lembrara
de que o Professor Clemente era canhoto, o que, ali�s, icava muito bem
a um esquerdista da marca dele. Assim, quando eu fora, com Malaquias,
incar os marcos de partida, anotara mentalmente para onde deveria
levar Samuel de modo a que os dois lutadores passassem um pelo outro
do lado direito, no momento do golpe. Desse jeito, Samuel, que era
destro e n�o sinistro, ganharia a vantagem de usar a m�o que nele era a
mais forte, enquanto Clemente s� teria duas alternativas: ou usaria a
m�o direita, com a qual tinha pouca for�a e nenhuma habilidade; ou
usaria o penico na sua forte m�o esquerda, caso em que, gra�as � minha
manobra trai�oeira, para alcan�ar o advers�rio teria que se torcer todo
na sela. Era quase certo que, assim, perderia o equil�brio e cairia do
cavalo, perdendo a luta.
Como se v�, nobres Senhores e belas Damas, meu plano tinha
sido verdadeiramente diab�lico, e tudo indicava que meu ailhado
Samuel seria o vencedor do ord�lio. Junto ao marco de partida, ele
volteou o �Temer�rio�, numa manobra elegante; fez face a Clemente,
que izera o mesmo l� no outro extremo, e colocou-se em posi��o de
arremetida. Eu lhe dei as �ltimas instru��es:
� Muito bem, Samuel, meu ailhado! Vou para o meu posto de
juiz! Quando eu e Malaquias baixarmos as bandeiras, lembre-se das
tradi��es guerreiras dos Wan d�Ernes, parta com a gota-serena e dane o
penico na cabe�a dele, com a maior for�a que puder! � recomendei,
sem nada lhe dizer da minha armadilha, porque aquele homem, com
sua mania de honra e outras idalguias, era bem capaz de se sentir
obrigado moralmente a avisar o advers�rio, inutilizando um
estratagema que me custara tanto miolo.
Esporeei ent�o o �Pedra-Lispe� e fui encontrar-me, no centro,
com Malaquias, que tamb�m j� vinha voltando. Quando chegamos ao
meio do caminho, no lugar antes determinado, paramos os dois e eu
passei uma vista orgulhosa sobre tudo, vibrando de entusiasmo
guerreiro e cavalariano! Gra�as a mim, gra�as a um pensamento r�gio,

folhetesco e romanceiro que eu forjara durante todos aqueles anos,
estava tudo belo, heroico e abandeirado, com os cavalos e Cavaleiros
ostentando ao sol das onze horas suas brilhantes cores azuis e
vermelhas, e com os dois estandartes tremulando gloriosamente nas
pontas das hastes que eu e Malaquias segur�vamos para o alto. S� uma
coisa estragava um pouco o brilho marcial do ord�lio-brasileiro: eram
os dois penicos que aquele implac�vel Fil�sofo esquerdista impusera a
meu ailhado idalgo. Que esculhamba��o arretada, duelo com penico!
Mas, vendo o demais, meu entusiasmo era tanto, que os penicos eram
um simples pormenor, incapaz de empanar totalmente o conjunto.
Estivemos assim, um pouco, eu e Malaquias, sustentando as
bandeiras para o alto, momento que o Professor Clemente aproveitou
para dar uma esp�cie de brado de guerra, aumentando demais meu
entusiasmo e o car�ter guerreiro da competi��o:
� Pelo Brasil negro-tapuia e socialista, e pela Revolu��o
sertaneja do Povo brasileiro! � gritou ele, com sua voz forte e profunda
de bar�tono.
Samuel, ao ouvir isso, teve um ligeiro instante de hesita��o, ap�s
o que gritou tamb�m, com sua voz de tenor:
� Pelo Brasil cat�lico, idalgo, cruzado, e por Nossa Senhora da
Concei��o!
Nesse momento, notei que Clemente come�ara a descobrir a
desvantagem em que eu o colocara com minha manobra. Ao sair, antes,
ele, instintivamente, empunhara o penico com a canhota. Agora,
postado junto ao marco, via que o advers�rio passaria pelo seu lado
direito. Passou o penico para a m�o direita e come�ou a agit�-lo em
nossa dire��o, numa esp�cie de aviso ou numa tentativa de reclama��o.
Fingi julgar que ele estava saudando os ju�zes; respondi a seu aceno
com outro igual e gritei para n�o lhe dar tempo:
� Larga!
Ao mesmo tempo, baixei a bandeira, no que fui imitado por
Malaquias.
Os dois Cavaleiros esporearam os animais; �Coluna� e
�Temer�rio� partiram com as for�as que Deus lhes tinha dado e que o
tempo, as intemp�ries e as vicissitudes da vida tinham deixado. Quanto
a mim, comecei imediatamente a rezar pela vit�ria do meu
apadrinhado.

Mais uma vez, por�m, ia icar provado que Deus castiga a
maldade. E foi que, quando os dois combatentes chegaram diante de
n�s, cada um desferiu seu golpe em dire��o � cabe�a do outro. Minha
esperan�a tinha sido que Samuel acertasse com a m�o direita o que
Clemente s� seria capaz de acertar com a esquerda. Ou ent�o, caso
ambos acertassem, que o golpe de Samuel fosse bastante mais forte e
derrubasse de vez o Fil�sofo, logo no primeiro embate. Mas n�o
aconteceu nem uma coisa nem outra. O que sucedeu foi que, em vez de
baterem nas cabe�as dos rivais, os dois penicos chocaram-se no ar, com
um b�lico tinido de ferros e metais, que logo me recordou os �estalidos
met�licos de Arneses entrechocados� que, segundo Carlos Dias
Fernandes, talharam �em relevo �gneo a E�gie simb�lica� do her�i Dom
Sebasti�o, na �Batalha de Alc�cer-Quibir�.
Ainda assim, cheguei a julgar que meu ailhado ganhava, porque
o Professor Clemente, com a inferioridade de canhoto, levou
desvantagem no golpe, cambaleou na sela e esteve cai-n�o-cai.
Montava, por�m, menos mal do que Samuel: e, assim, ao mesmo tempo
que conseguia, aos poucos, frear �Coluna� com uma m�o, com a m�o do
penico segurou-se, ningu�m sabe como, na lua da sela. O �cuba� quase
lhe cai das m�os, mas o danado do Fil�sofo terminou por se
reequilibrar, nem caindo da sela, nem deixando cair no ch�o a arma que
escolhera.
Notando que, do lado do Cord�o Encarnado, eu n�o podia
esperar mais desastre nenhum, olhei para o outro, o do Azul. Samuel
continuava na sela, mas tinha j� ultrapassado o marco de partida do
outro lado: apesar da cegueira, velhice e fraqueza do �Temer�rio�, o
Fidalgo n�o estava conseguindo esbarr�-lo no galope, e adernava ora
para um lado ora para o outro, num an�ncio perigoso e desmoralizante
de queda iminente.
Vi que a situa��o era periclitante. Ou eu o ajudava, ou o Cord�o
Azul � que era o meu naquele dia � ia perder o ord�lio. Esporeei
�Pedra-Lispe� e, sem grande esfor�o, consegui emparelhar-me com
�Temer�rio�. Olhei meu ailhado para avaliar a situa��o: Samuel estava
agarrado desesperadamente � sela com a m�o esquerda inteira e com o
polegar e o indicador da m�o direita, sendo que os tr�s dedos restantes
desta continuavam, gra�as a Deus, segurando o penico. Felizmente o
galope de �Temer�rio� era menos veloz do que o chouto de um cavalo

comum: ainda assim, Samuel ia t�o esgazeado, com os olhos t�o
aboticados para a frente que se os voltasse para mim perderia o
equil�brio. Por cima do pesco�o do cavalo, ele ixava, hipnotizado, a
estrada. Mas deve ter pressentido meu vulto, porque sempre naquela
posi��o, gritou:
� Ganhamos, Quaderna? Caiu o gaforinha? Lascou-se o iniel?
� N�o, Samuel! � disse eu, afrontado. � Mas veja se esbarra
�Temer�rio�, sen�o ele se cansa de vez e n�o aguenta nem a segunda
carreira! Pare, Samuel!
� E eu posso? � arquejou ele. � Me ajude a parar aqui, pegue
na r�dea!
� N�o, que podem dizer que � motivo de derrota para n�s! Mas
pode deixar, �Temer�rio� j� vai parando pelo cansa�o!
De fato, o corcel negro j� ia afracando por si mesmo e terminou
parando de uma vez. Eu e Samuel demos ent�o volta nos cavalos e,
muito vagarosamente para que �Temer�rio� recuperasse algum f�lego,
fomos voltando at� o marco de partida. Enquanto nos aproxim�vamos
dele, Samuel comentou desolado:
� Ent�o, o cafre aguentou a primeira pancada!
� Aguentou, n�o sei como, aquele peste! Quase que ele cai! Mas
n�o tem nada n�o, Doutor, vamos a outro golpe! Coragem, que a vit�ria
est� pr�xima! Clemente abalou com esta primeira lapada, agora, com a
segunda, vai ao barro, vai com as fu�as no ch�o, vai visitar o solo p�trio!
Animado com estas palavras, Samuel disse, orgulhoso:
� A pancada foi boa, n�o foi, Quaderna? Meu pulso est� um
pouco depreciado pelos desgostos e sofrimentos que tenho passado,
mas de qualquer forma ainda � o velho pulso de Fidalgo que herdei de
Sigmundt Wan d�Ernes! Mas voc� viu que humilha��o, a minha?
� Que humilha��o que nada, Samuel! Voc� se saiu muito bem no
primeiro embate!
� N�o estou falando do embate n�o, Quaderna, estou falando �
do brado! Voc� viu? O miser�vel do gaforinha, chicaneiro como todo
Advogado, tinha planejado um brado guerreiro, para ver se me pegava
de surpresa e me desmoralizava! E quase consegue! Mas, na hora,
mesmo, meu instinto idalgo me permitiu improvisar outro! O que n�o
foi bom foi eu ter que invocar a padroeira militar do Brasil! Como � que
se pode ser Fidalgo e Cruzado numa terra dessas? Nem ao menos um

padroeiro belicoso a gente possui, para invocar! Os Cruzados ingleses
podem gritar por S�o Jorge, os espanh�is por Sant�Iago, os franceses
por S�o Dinis ou S�o Lu�s de Fran�a! N�s, temos que chamar por Nossa
Senhora da Concei��o!
� Mas Nossa Senhora da Concei��o � boa para casos de guerra,
Samuel! Dizem que, na �Batalha dos Guararapes�, a situa��o estava ruim
para os Brasileiros: ent�o, ela apareceu, e da� em diante n�s metemos a
ronca na galegada, que apanhou que s� galinha para largar o choco!
� Pois bem, Nossa Senhora j� prestou o servi�o, n�s
agradecemos! Mas, que o santo padroeiro e militar do Brasil devia ser
homem e guerreiro, isso devia! Veja o nome: Nossa Senhora da
Concei��o! Isso � santo que se invoque para uma batalha? Podem at�
pensar que a gente est� gr�vido!
� Ent�o, na carreira de agora, grite por Santo Ant�nio de
Lisboa, que era Cabo do Ex�rcito brasileiro!
� Ah, meu Deus, que p�tria di�cil e ingrata para as coisas da
honra s� � o Brasil! Santo Ant�nio de P�dua, que, em todos os pa�ses do
mundo, � Frade pregador, no Brasil � Cabo do Ex�rcito! N�o, esse
tamb�m n�o me serve, n�o! Fique com ele, para padroeiro militar de
seu Partido!
� Pois ent�o escolha um santo qualquer do seu agrado para
padroeiro militar seu, particular! J� ouvi falar de um sertanejo aqui por
perto que, toda vez que vai se meter num barulho, grita para o inimigo:
�Que � que voc� est� pensando, seu merda? Voc�, comigo, se lasca!
Al�m d�eu ser homem, meu padroeiro tamb�m � macho, mija em p�, de
coca n�o!� Pois fa�a como esse sertanejo, Samuel: se Clemente repetir o
brado, arranje um padroeiro macho e grite por ele!
� Tem raz�o, Quaderna! Vou gritar pelo meu padroeiro
individual!
� Quem � ele? O Profeta Samuel?
� N�o, esse tamb�m n�o! Era judeu, e, portanto, meio-sertanejo,
meio-mouro, meio-comunista e meio-ma��nico! Vou gritar por S�o
Sebasti�o! Primeiro, porque ele era um guerreiro belo, jovem, estranho
e casto, o que, por certos motivos particulares que n�o lhe interessam,
me fascina muito! Depois, porque era ele o padroeiro d�El-Rei Dom
Sebasti�o, O Desejado, �O Encoberto�, o derradeiro Fidalgo ib�rico

digno desse nome, o �ltimo Cruzado a se extraviar, j� fora do tempo,
nos areais africanos, em terras de Mouraria!
Nesse instante, Clemente, que j� estava a postos h� um bom
peda�o de tempo, gritou impaciente:
� Como �, seu idalgo de merda? Fugiu? N�o vem pr�o campo da
honra n�o?
� Nada disso, gaforinha plebeu! L� vamos n�s! Vamos,
�Temer�rio�!
E Samuel obrigou o corcel negro a choutar, cobrindo o resto de
caminho que lhe faltava at� o marco.
Eu galopei para junto de Malaquias. Quando cheguei ao meu
lugar, Malaquias, debicando do chouto de Samuel, tinha baixado sua
haste de bandeira at� o peito. Segurando-a como quem pega uma viola
e ingindo dedilh�-la, come�ou a cantar a toada duma sextilha, sob
forma de ligeira:
�Ai, d-a, d�!
Compadre, pinique a Poldra,
se quiser me acompanhar!
Ai, d-a, d�!
Que esse meu Cavalo velho,
quanto mais velho, mais d�!
Ai, d-a, d�!
Compadre, aguente o Penico,
que agora vou lhe acabar!�
Somente a�, notando a alegria infernal em que Malaquias se
encontrava, foi que me apercebi de que desta vez, tendo os combatentes
trocado de marco de partida, a situa��o se invertera e Samuel � que
teria de usar sua fraca m�o esquerda diante da canhota poderosa do
Fil�sofo!
No primeiro momento de p�nico, ainda pensei em intervir,
trocando de margem os marcos de partida. Mas tive que recuar, porque
se izesse isso, revelaria minha tramoia e o Cord�o Encarnado
reivindicaria vit�ria, por nulidade e aleivosia de procedimento. Assim,
iz das tripas cora��o e calei-me.

O mais grave, por�m, � que logo ocorreria outro fato cuja terr�vel
signiica��o s� depois ir�amos avaliar, com funestas consequ�ncias para
a sorte de Samuel. � que, sem premedita��o de sua parte, naquele
instante, vendo que agora ia usar a m�o esquerda, Clemente passou o
penico para ela. Ao faz�-lo, sem notar mesmo o que fazia, segundo
explicou depois, segurou o �cuba� de boca para baixo e n�o de boca pra
cima, como tinham feito da primeira vez.
N�s, de longe, n�o notamos nada, de modo que baixamos de
novo as duas bandeiras.
� Brasil e Revolu��o! � gritou o Fil�sofo.
� P�tria e S�o Sebasti�o! � ecoou o Poeta.
E partiram, um para o outro, como duas f�rias. Desta vez, por�m,
com tanta infelicidade para o meu ailhado que, na hora, mesmo, em
que iam baixar os bra�os, desferindo a penicada que tudo decidiria,
�Temer�rio� trope�ou, desviando a m�o de Samuel e fazendo com que
ele errasse a cabe�a de Clemente. O pior, por�m, � que a mesma topada
abaixou tamb�m a cabe�a do Fidalgo, no momento exato em que o
Fil�sofo desferia seu golpe. O penico, virado de boca pra baixo, eniouse,
at� as sobrancelhas, na cabe�a de Samuel, � qual se ajustou, por
milagre e apertado, mas como uma luva! E como Clemente, por um
segundo, permanecesse agarrado � asa do penico, o Doutor Samuel
Dasantas Paes Barretto Wan d�Ernes foi violentamente arrancado da
sela e rolou na poeira sertaneja da estrada, com idalguia e tudo!

O DUELO.

Clemente, que, ao se sentir puxado pelo baque violento do rival,
soltara instintivamente a asa do penico, quase cai tamb�m. Deus,
por�m, estava, naquele dia, evidentemente do seu lado, o que eu
atribuo a meu negro pecado de felonia, deslealdade e trai��o; e o fato �
que, depois de correr uns dez metros cai-n�o-cai, ele conseguiu se
aprumar de novo.
� Vit�ria! Vit�ria! � gritou Malaquias jubilosamente, agitando
a bandeira vermelha. � Viva o Cord�o Encarnado! Viva o Povo
Brasileiro!
O Professor Clemente, com ar magn�ico, todo cheio de si, j�
come�ando a se achar bonito com seu manto vermelho enfeitado de
crescentes cor de ouro, vinha choutando de volta. Eu, desolado, corri
para Samuel, que continuava estendido no ch�o, inteiramente
desacordado.
Chegando aonde ele estava, saltei do cavalo, tirei da argola do
ar��o o meu chaguer cheio d��gua e minha borracha-de-couro cheia de
vinho, joguei-lhe um bocado d��gua na cara e, assim, comecei a
reanim�-lo. Levando-lhe, ent�o, meu pichel � boca, dei-lhe uns goles do
meu �Vinho Sertanejo da Malhada� que o despertaram quase de vez. Vi,
aliviado, que ele n�o morreria. Entretanto, os olhos meio ourados com
que espiava tudo revelavam que ainda n�o voltara completamente a si.
Foi nesse estado que come�ou a se levantar:
� O que foi, Quaderna? Que � isso? � perguntou ele, lambendo
os bei�os e j� tomando gosto pelo vinho, sua grande tenta��o. � Que �
isso? � vinho, �? Me d� mais uns goles, a�!
Coitado! Meio leso pela pancada, estava ainda inocente de tudo,
inconsciente da grave derrota que sofrera em seu brio de Fidalgo! Mas
isso ia durar pouco, porque quase imediatamente depois que ele
ensaiou os primeiros passos, ouvimos a rechinada de Malaquias, ali
perto. Voltamo-nos e vimos Clemente e o padrinho que vinham
chegando, a p�, cada um puxando sua montaria pela r�dea. Malaquias
tinha parado no meio da estrada e ria �s gargalhadas:
� Voc� est� uma beleza, Doutor Samuel! � dizia ele, apontando
o Fidalgo. � O penico, eniado na cabe�a do senhor, est� parecendo
aquele chap�u grande que o Bispo usa nas prociss�es!
Samuel levou a m�o � cabe�a, e s� ent�o, constatando o terr�vel
fato, foi que tomou consci�ncia da extens�o do seu desastre.

Humilhado, eniad�ssimo, voltou � realidade, lembrou-se de tudo, e,
raivoso, segurou o penico com ambas as m�os, forcejando por tir�-lo.
Em v�o! N�o sa�a de jeito nenhum! Tentei tamb�m, ajudando-o com
ambas as m�os, e nada!
Os dois vitoriosos j� estavam, ent�o, ao nosso lado:
� O penico n�o sai! � falei, preocupado, para Clemente.
� �timo! � foi a resposta daquele homem implac�vel. � Ser�
assim, de penico na cabe�a, que Samuel participar� do meu triunfo, na
rua!
� Que nada, o ferreiro me corta esse penico em dois minutos,
por cima, e a� o urinol sai! � falou Samuel, furioso.
� O senhor me desculpe, mas n�o pode faltar, assim, � sua
palavra! � disse Malaquias. � O que o senhor combinou foi que o
vencido participaria do triunfo nas condi��es em que o vencedor
determinasse!
� Mas ningu�m esclareceu que o penico podia ser usado de
cabe�a pra baixo! � intervim eu, tentando chicanar em favor do meu
ailhado.
Infelizmente, nessa parte da chicana, eu n�o podia
absolutamente competir com um advogado, e Clemente rebateu logo:
� Se ningu�m esclareceu, ningu�m proibiu tamb�m! Por que
seu ailhado Samuel n�o usou, tamb�m, o penico de boca pra baixo? Das
duas, uma: ou ele se lembrou disso e n�o quis usar, e nesse caso � besta;
ou n�o se lembrou, e � burro! Em qualquer dos casos, eu ganhei, de
modo que voc� n�o tem pra onde fugir, Samuel! Vamos embora, porque
vou cuidar logo do meu triunfo. Voc� vai faltar � palavra empenhada?
� Um Fidalgo n�o falta � palavra, antes a morte e o infort�nio!
Pe�o-lhe apenas, Clemente, que, em vista da minha lealdade, dos modos
cavalheirescos com que tenho me portado, voc� seja generoso e poupe
minha honra a humilha��es maiores!
� Eu? Nada disso! Por que eu seria generoso com uma classe
que vive explorando e espezinhando o Povo? Voc� n�o vive dizendo que
os verdadeiros Fidalgos e senhores-feudais s�o violentos e cru�is? Pois
amor com amor se paga! Nada de complac�ncia, quando se trata de
irmeza revolucion�ria! Vamos ao triunfo da Esquerda!
� Quando? Agora, Clemente? � indaguei, alito com a
possibilidade de perder a festa.

� Sim, � claro, agora mesmo!
� N�o, n�o fa�a isso n�o, por favor! Adie o triunfo!
� Por qu�?
� � que eu queria participar dele!
� S� se for ao lado de Samuel, fazendo parte do grupo vencido!
Voc� n�o foi, hoje, padrinho da Direita, dos derrotados? Pois se quiser
participar do triunfo, tem que ser como lacaio da Direita!
� Topo, Clemente! De um desile triunfal eu topo participar,
nem que seja no cortejo dos derrotados! Mas j� � meio-dia, est� na hora
do almo�o!
� Pois o triunfo ser� logo depois do almo�o!
� Nessa hora eu estarei depondo perante o Corregedor! Adie o
triunfo para amanh�!
� N�o, amanh� j� � outro dia! Daqui para amanh�, Samuel pode
morrer, e eu perderia essa magn�ica oportunidade de gl�ria!
� Mas eu n�o quero perder esse hero�smo cavalariano de jeito
nenhum, Clemente! � insisti. E perguntei, curioso: � Como vai ser? �
moda de Roma, daquele jeito que diz na Hist�ria da Civiliza��o, de
Oliveira Lima?
� Que � moda de Roma que nada, Quaderna! N�o quero
antiguidades reacion�rias comigo de jeito nenhum! Mesmo que fosse
um triunfo � moda antiga, seria um �triunfo cartagin�s�, e n�o um
�triunfo romano�, porque Roma era visivelmente da Direita, enquanto
Cartago, meio asi�tica e oposicionista, era da Esquerda! Mas meu
triunfo vai ser � negro-tapuia e brasileiro, como � do meu feitio e dentro
das melhores tradi��es nacionais e populares!
� Pois homem, deixe eu participar! Veja que, eu entrando, o
cortejo dos vencidos ica maior e portanto muito mais glorioso para a
Esquerda!
� Est� bem, ent�o! Vou atender a seu pedido, apesar de voc� ter
usado de falta de lealdade comigo, na primeira corrida! � disse
Clemente de cenho franzido e olhando-me de vi�s, o que demonstrava
que ele percebera minha tramoia. � Est� concedido: se voc� n�o icar
preso, hoje, est� convidado para participar, como vencido, do meu
triunfo, amanh� de manh�! E como sou generoso, ainda lhe prometo o
seguinte: mesmo que o Corregedor prenda voc�, logo hoje � tarde, farei

o desile triunfal passar amanh� pela Cadeia; assim, mesmo sem
participar, voc� poder� pelo menos assistir a tudo!
Senti de novo o frio na espinha, e o vazio em meu est�mago
voltou na mesma hora. Apavorava-me a insensibilidade com que
Clemente falava na possibilidade de eu ser preso na tarde daquele
mesmo dia. Nada mais disse, por�m.
Clemente e Samuel montaram em seus cavalos e tomaram a
dianteira, no caminho de volta. Eu e Malaquias, um pouco atr�s,
observamos que os dois grandes homens, t�o habituados a afetar
desd�m por nossas cantorias e cavalarias sertanejas, n�o tinham nem
pensado em retirar os mantos. Pelo contr�rio: iam ambos na maior
eleg�ncia, satisfeit�ssimos de estarem vestidos de Pr�ncipes sertanejos,
como os personagens das Cavalhadas e os cavaleiros do folheto sobre
os Doze Pares de Fran�a.
O mais elegante, por�m, era, sem d�vida, Samuel. � que o
Professor Clemente ia de manto mas de cabe�a descoberta. E o outro,
com o penico � guisa de elmo, mitra ou coroa imperial, com seu manto
Azul com cruz de Ouro �s costas, apresentava, de fato, um peril r�gio e
heroico, envolvido radiosamente pela deslumbrante luz do ardente sol
sertanejo.

M
FOLHETO XLIII
O Almo�o do Condenado
aria Saira, a mulher possessa e insond�vel que vivia comigo de
cama e mesa, tinha mandado meu almo�o, por nossa empregada
e dama de companhia dela, Dina-me-D�i. Malaquias fora almo�ar em
casa, com Silviana, mulher dele. Mas os meus dois mestres tinham o
velho costume de ilar minhas refei��es, preparadas em minha casa-derecurso,
a famosa �Estalagem � T�vola Redonda�. � verdade que,
naquele dia, nenhum dos dois queria muitas rela��es comigo, para n�o
serem vistos na companhia de um suspeito e indiciado no inqu�rito. Vi
mesmo que, no primeiro momento, hesitavam entre a despesa e o risco.
Por im, a amarra��o ganhou, e ambos resolveram icar.
Eu mal comi, preocupado com o inqu�rito. Parecia que tinham
dado um n� na minha garganta e no meu est�mago. Samuel e Clemente,
que agora estavam me cortejando um pouco para assim pagarem o
almo�o, diziam que, preocupados porque eu tinha sido indiciado no
inqu�rito, nem tinham dormido naquela noite nem estavam
conseguindo comer direito. N�o sei: n�o vi, e assim � poss�vel que
dormir eles n�o tivessem dormido. Mas comer, comeram que s� uns
desadorados. E enquanto comiam, um de penico � cabe�a e ambos
bebendo meu �Vinho Sertanejo da Malhada�, iam falando do Corregedor,
que ambos consideravam �uma das �guias mais eicientes, perigosas e
cru�is da Magistratura paraibana�.
Quanto mais eles falavam das qualidades �gavi�nicas� e
perigosas do Corregedor, mais eu avaliava a gravidade da minha
situa��o. Clemente sustentava que �aquele inqu�rito n�o era sen�o a
fase atual e sertaneja do longo processo a que os Fidalgos ib�ricos v�m
submetendo o Povo negro-tapuia do Brasil, desde o s�culo XVI at�
agora; inqu�rito que tivera sua abertura em 1591, com a chegada, ao
Brasil, do Inquisidor Heitor Furtado de Mendon�a e que continuava,
agora, com a repress�o e a persegui��o aos revolucion�rios de 1935�.

Samuel objetava que agora, �depois da tentativa de golpe integralista,
realizada pelo Contra-Almirante Frederico Villar, os Fidalgos brasileiros
� que estavam na mira d�Eles�. Dizia que Clemente n�o confundisse
desonestamente �os Fidalgos nacionalistas, cavaleiros e imperiais do
Integralismo com a Burguesia urbana, antinacional, cosmopolita,
avarenta, mesquinha e vendida a Eles, com a Burguesia cujos interesses
o Corregedor, no fundo, representava�.
Eu, por�m, n�o estava, no momento, interessado nas ideias
grandiosas que os dois desenvolviam calmamente durante o almo�o,
devorando meus pir�es. O que me interessava � que, vindo do s�culo
XVI ou n�o, o inqu�rito estava em curso era agora, e Eles, fossem quem
fosse, estavam atr�s era de mim, e n�o do Almirante.
De fato, como j� noticiei de passagem, tr�s dias antes, na
segunda-feira, 11 de Abril, chegara � nossa Vila aquele Bacharel
Joaquim Navarro Bandeira, mais conhecido como Joaquim Cabe�a-de-
Porco. Viera apenas em visita��o corriqueira � Comarca. Mas,
encontrando a Vila subvertida pelo desfecho da terr�vel hist�ria do
Rapaz-do-Cavalo-Branco � ligada ao ambiente de insurrei��o que
dominava o Pa�s �, resolvera, depois de pedir autoriza��o ao Tribunal,
tomar discretamente o comando das investiga��es, e abrira aquilo que
os seus corta-jacas chamavam �um inqu�rito oicioso�.
Era, portanto, com um aperto cada vez maior no cora��o que eu
via se aproximar, naquela Quarta-feira de Trevas, o momento de me
apresentar na Cadeia, lugar que fora escolhido � evidentemente de
prop�sito para intimidar os indiciados � a im de que, nele, o
Corregedor ouvisse nossos depoimentos. Eu deveria me apresentar
perante esse homem tem�vel �para prestar-lhe alguns esclarecimentos
que seriam anotados por Dona Margarida Torres Martins�, conforme
me explicara o bilhete entregue na v�spera por Severino Brejeiro.
Essa Margarida era uma mo�a pertencente � nossa Aristocracia
rural sertaneja, e eu considerei logo sua escolha como um pormenor
perigoso e agoureiro contra mim: Margarida tinha participado, com sua
m�e e seu pai, daquela desaventura sagrada e astrosa que eu
empreendera com meu Circo, seguindo os passos de Pedro Cego, do
Profeta Naz�rio e do Rapaz-do-Cavalo-Branco, pelos campos
pedregosos e empoeirados do Sert�o, tendo como principal objetivo o
achamento do fabuloso tesouro deixado por Dom Pedro Sebasti�o

Garcia-Barretto numa furna perdida por esse mundo velho de meu
Deus. Ora, minha participa��o na �Demanda Novelosa da Guerra do
Reino� era, no meu entender, o motivo principal de minha chamada
para depor no inqu�rito. E, agora, Margarida, que assistira a quase
todos aqueles acontecimentos, fora designada para servir de �secret�ria
ad hoc� no tal �inqu�rito oicioso�. Fora indicada ao Corregedor por uma
organiza��o feminina, direitista, patri�tica e religiosa, que, fundada por
Samuel nos dias que tinham precedido a Revolu��o Comunista de 35,
exerce ainda not�vel papel na vida de nossa Vila. Era a ala feminina da
�Ordem dos Cavaleiros da Esfera Armilar�, e chama-se �As Virtuosas
Damas do C�lice Sagrado de Tapero��. Entretanto, � mais conhecida por
seu endere�o telegr�ico e chamada abreviadamente �A Vidacasta�,
nome que �sendo mais f�cil de gravar, resume ainda por cima um
programa de moral e religi�o, vida casta�, como gosta de explicar Dona
Carmem Gutierrez Torres Martins, m�e de Margarida, mulher
intelectual e Presidenta-perp�tua da organiza��o.

T
FOLHETO XLIV
A Visagem da Mo�a Caetana
erminado o almo�o, os dois grandes homens escafederam-se
discretamente pelo port�o de tr�s da minha casa, e eu iquei s�,
diante do perigo. Como num pesadelo, resolvi ir novamente para a
Biblioteca para aguardar a hora de ir para a Cadeia.
Chegando l�, sentei-me de novo na espregui�adeira. Sabia que
talvez as duas horas que ainda faltavam para as tr�s, marcadas pelo
Corregedor, iam ser os piores momentos da tarde.
A�, n�o sei se pelo peso do almo�o empancado em meu est�mago
(coisa que sempre me acontece nas horas de ansiedade), creio que
adormeci. Porque, quase imediatamente, entrava na sala da Biblioteca
uma mo�a esquisita, vestida de vermelho. O vestido, por�m, era aberto
nas costas, num amplo decote que mostrava um dorso felino, de On�a, e
descobria a falda exterior dos seios, por baixo dos bra�os. Os pelos de
seus maravilhosos sovacos n�o icavam s� neles: num tufo estreito e
reto, subiam a doce e branca falda dos peitos, dando-lhes uma marca
estranha e selvagem. Em cada um dos seus ombros, pousava um gavi�o,
um negro, outro vermelho, e uma Cobra-Coral servia-lhe de colar. Ela
me olhava com uma express�o fascinadora e cruel. Mas n�o disse nada.
Encaminhou-se para um peda�o branco e despido da parede, e, sem
deixar de me olhar, ergueu a m�o, come�ando a tra�ar, com o indicador,
linhas e linhas horizontais, na parede que icava por tr�s dela. � medida
que o dedo ia indicando as linhas, a parede se cobria de palavras
escritas a fogo. Eu, aterrado, indagava de mim mesmo quem era ela.
Mas, no fundo, j� sabia: era a terr�vel Mo�a Caetana, a cruel Morte
sertaneja, que costuma sangrar seus assinalados, com suas unhas,
longas e aiadas como garras.
As palavras que ela gravava a fogo, na parede, apareciam-me
com uma clareza sobrenatural. Eu queria gritar, fugir, e ao mesmo
tempo anot�-las fundamente no sangue da mem�ria. Porque sabia que

elas me comunicavam alguma coisa fundamental, alguma coisa
perigosa, estranha e indecifr�vel, mas decisiva. Devo, ent�o, ter icado
um instante naquela madorna meio-dormida, meio-acordada, em que a
gente ica, �s vezes, nessas situa��es. Digo isso porque na mesinha
baixa havia papel e l�pis e eu, no sonho, come�ava a anotar febrilmente
as palavras que o fogo fazia aparecer na parede. � medida que copiava,
eu me sentia cada vez mais amea�ado. De repente, dei um grito e
acordei. A mo�a tinha desaparecido e eu estava, realmente, escrevendo
no papel coisas desconexas. O que eu escrevia ao mesmo tempo era e
n�o era o que ela escrevera. Tentei ent�o, acordado, fazer coincidir mais
o que estava escrito com o que ainda recordava das palavras na parede.
O resultado n�o era o mesmo. Um certo conte�do de amea�a n�o
aparecia, e o ambiente em que tudo aquilo era realmente eicaz
desaparecera com o sonho. De qualquer modo, o que consegui
reproduzir foi o seguinte, que transcrevo aqui porque �, tamb�m, pe�a
importante do processo:
�A Senten�a j� foi proferida. Saia de casa e cruze o
Tabuleiro pedregoso. S� lhe pertence o que por voc� for
decifrado. Beba o Fogo na ta�a de pedra dos Lajedos. Registre
as malhas e o pelo fulvo do Jaguar, o pelo vermelho da
Su�uarana, o Cacto com seus frutos estrelados. Anote o
P�ssaro com sua lecha aurinegra e a Tocha incendiada das
macambiras cor de sangue. Salve o que vai perecer: o Ef�mero
sagrado, as energias desperdi�adas, a luta sem grandeza, o
Heroico assassinado em segredo, o que foi marcado de estrelas
� tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, ser� para
sempre e exclusivamente seu. Celebre a ra�a de Reis escusos,
com a Coroa pingando sangue; o Cavaleiro em sua Busca
errante, a Dama com as m�os ocultas, os Anjos com sua
espada, e o Sol malhado do Divino com seu Gavi�o de ouro.
Entre o Sol e os cardos, entre a pedra e a Estrela, voc� caminha
no Inconceb�vel. Por isso, mesmo sem decifr�-lo, tem que
cantar o enigma da Fronteira, a estranha regi�o onde o
sangue se queima aos olhos de fogo da On�a Malhada do
Divino. Fa�a isso, sob pena de morte! Mas sabendo, desde j�,

que � in�til. Quebre as cordas de prata da Viola: a Pris�o j� foi
decretada! Colocaram grossas barras e correntes ferrujosas na
Cadeia. Ergueram o Pat�bulo com madeira nova e aiaram o
gume do Machado. O Estigma permanece. O sil�ncio queima o
veneno das Serpentes, e, no Campo de sono ensanguentado,
arde em brasa o Sonho perdido, tentando em v�o reediicar
seus Dias, para sempre destro�ados.�

O
FOLHETO XLV
As Desventuras de um Corno Desambicioso
lhei o rel�gio: a hora n�o chegara ainda. E a�, nesse momento,
notei algo que n�o vira ao entrar: Pedro Beato, o velho marido de
Maria Saira, estava sentado no ch�o, encostado � parede, entre uma
estante e a porta que ligava a Biblioteca � minha casa. Estava ali,
cabisbaixo, imerso em profundas relex�es, com as duas m�os
segurando um cajado cuja ponta incara no ch�o e com o queixo
apoiado nelas. Ao seu lado, o saco velho e sujo que todos os mendigos
sertanejos carregam. Ele, por�m, estava com a roupa toda remendada
mas limpa, e trazia � cabe�a um chap�u de palha, velho mas inteiro. As
m�os e os p�s eram fortes, de dedos grossos e nodosos, a barba e os
cabelos prof�ticos quase inteiramente brancos.
Senti a sensa��o de remorso e indecis�o que sempre
experimentava ao encontr�-lo. Ele sabia que Maria Saira vivia comigo;
falava tranquilamente no caso e aparecia muito raramente em minha
casa. Quando ia, por�m, n�o tocava em alimento algum e pedia-me,
tamb�m, que n�o desse a ele as esmolas que ordinariamente recolhia
em outras casas para a Igreja. Pedia-me desculpas por tudo, explicandome
que n�o fazia isso por orgulho, mas para evitar a Maria Saira o
sofrimento de ouvir das pessoas maldosas que o marido dela era
sustentado pelo amante.
Tudo isso me deixava com uma sensa��o penosa de culpa e
embara�o diante dele. Eu n�o ligava, verdadeiramente, a ningu�m,
portava-me com a maior desenvoltura com todo mundo. Talvez, no
fundo, Pedro Beato fosse a �nica pessoa que, na Vila, me impunha
respeito. N�o, a �nica, n�o: o Padre Marcelo tamb�m, se bem que um
pouco menos, porque eu n�o o ofendia nem ele era um pobre, como
Pedro Beato. Quanto aos outros, eu pressentia que era gente da mesma
massa que eu, com suas ambi��es e mesquinharias particulares;

est�vamos todos no mesmo saco, de modo que eu os tratava mais do
que de igual para iguais � de cima para baixo.
Naquele instante, quando fui me aproximando dele, Pedro Beato
ergueu a cabe�a e, olhando-me com sua express�o mansa e cheia de
do�ura, falou:
� Dinis, est�o dizendo na rua que voc� vai ser processado pelo
Juiz novo que chegou. � verdade?
� � verdade, Pedro! � respondi com uma sensa��o de
acanhamento que n�o sei se vinha do que j� disse ou do processo.
� O que foi que houve? Por que esse processo? � insistiu ele.
� N�o sei n�o, Pedro! S� posso atribuir tudo a intriga! Voc�
soube que eu andei brigando com um sujeito, aqui na rua?
� Soube.
� Pois parece que meu processo apareceu foi por causa dessa
briga! Depois que me atraquei com aquele camarada, tudo quanto foi
lacrau, todos os piolhos-de-cobra desta terra desgra�ada se juntaram
contra mim e come�aram a me ferroar. Quando, agora, apareceu esse
processo, essa hist�ria complicada e perigosa, eles resolveram se
aproveitar, e me denunciaram ao Corregedor para me liquidar.
� � verdade, assim � o mundo! � disse Pedro, dando aquele
suspiro com que as pessoas como ele iniciam sempre suas ilosoias. �
Isso � o mundo, n�o se queixe nem tenha raiva!
� N�o tenha raiva, eu, Pedro? E que jeito eu posso dar? Tenho,
tenho raiva, e tenho meus motivos para isso, porque eu tinha e tenho
raz�o naquela briga!
A�, quando disse isso, olhei para o beato, ali, sentado, bom,
humilde e manso em minha frente, e veio-me uma vontade enorme de
ser como que aprovado e reassegurado por ele em tudo aquilo.
Perguntei-lhe ent�o o que a ningu�m mais perguntaria:
� Voc� acha que eu estou errado, Pedro? Acha que quem tem
raz�o s�o os meus inimigos? Sou mesmo um homem de mau car�ter e
de maus bofes como eles parecem pensar?
Pedro Beato, devagar, passou a m�o pela barba, e foi tamb�m
devagar que respondeu, pesando bem as palavras:
� � di�cil dizer assim, Dinis, sem pensar tudo com cuidado e
sem explicar tudo direito! Pra mim, tudo isso que lhe aconteceu, vem de
muito antes. N�o foi a den�ncia deles que meteu voc� no processo, nem

seus aperreios apareceram s� por causa disso! Tudo � a maldita
quest�o da honra, Dinis!
Eu n�o esperava ouvir aquilo dele, de modo que me senti
profundamente tocado. Aquela frase me atingia com a for�a das
revela��es, iluminando zonas secretas e subterr�neas do meu sangue,
zonas de sombras, ocultas, at� ali, mesmo de mim. Espantado, olhei
para Pedro Beato nos olhos, e vi que ele permanecia sereno e como que
alheio � import�ncia do que dissera. Teria sido por acaso? Resolvi levar
o assunto adiante:
� Voc� acha que � a quest�o da honra, Pedro? O que � que voc�
quer dizer com isso?
� Voc� sabe melhor do que eu, Dinis! N�o se zangue comigo
n�o, pelo amor de Deus, mas eu sei que estou certo quando lhe digo
isso, meu ilho! Me diga uma coisa, por exemplo: por que � que voc�
vive inventando essas hist�rias de Imperador do Divino, de Auto dos
Guerreiros, vestindo-se de Rei e andando a cavalo pelo meio da rua, na
frente de seus companheiros, de manto nas costas e coroa na cabe�a?
Fiquei novamente boquiaberto, porque, como mais ou menos j�
expliquei, para surpresa minha, aquele fora o ponto de ataque sobre o
qual mais tinha se encarni�ado o meu rival e opositor, que, pelo jornal
de Campina, falara nas minhas �afeta��es de Rei apalha�ado de Bumbameu-
boi� e nas minhas �fanfarronices de Cangaceiro e valent�o de
arraial das festas de Reis�. Tentei, ent�o, me justiicar perante Pedro
Beato:
� Mas Pedro, que mal faz, aos outros, que eu me vista de Rei, se
isso n�o toma o lugar de ningu�m e todo mundo sabe que eu n�o tenho
onde cair morto? Essas coisas que eu fa�o s�o t�o inocentes!
� Dinis, meu ilho, me perdoe, mas n�o existe nada inocente, no
mundo! Na sua vida, voc� tem um pensamento escondido, que � a causa
da maior parte dos seus sofrimentos! � tamb�m esse pensamento
escondido que faz com que os outros sintam em voc� um homem
perigoso, um homem cuja presen�a prejudica, insulta e humilha os
outros!
� Voc� acha, Pedro? � disse eu, novamente espantado ao ver
aquele velho ignorante, colocado l� embaixo, revelar uma velha alma
arguta, t�o complicada quanto qualquer outra.

A�, talvez por isso mesmo, talvez por sentir, ele tamb�m, naquele
instante e mais do que comumente, o cansa�o de carregar aquela alma,
aquela fera antiga e cega que lhe bebera o sangue durante toda uma
vida, Pedro Beato pareceu de repente mais velho e mais fatigado. Falou
pesadamente:
� Acho sim, Dinis, meu ilho! Talvez nem voc� saiba o que �,
mesmo, esse pensamento escondido. Pois saiba que � o fogo que o
Diabo sopra no sangue da gente quando se nasce, Dinis! Talvez n�s
consegu�ssemos apagar esse fogo se f�ssemos deixados s�s, somente
com as nossas for�as e entregues � nossa sorte! Mas acontece que vem
o batismo, e Deus, essa outra fera, obriga a gente a segurar outro fogo, o
dele, aceso na m�o do padrinho! A �gua e o azeite do batismo, esses
ungem e passam. Mas o sal e o fogo icam e queimam a gente a vida
inteira! � esse fogo que nos come a carne e nos bebe o nosso sangue,
deixando o homem transformado num esqueleto. Mas o fogo de Deus
termina queimando at� os ossos, expostos ao sol, e mesmo o esqueleto
termina esfarelado, virado em cinza! Assim, de fato, � isso o que queima
voc� por dentro, � o fogo de Deus e do Diabo. O que eu n�o sei � como
esse fogo aparece em voc� por dentro, porque em cada pessoa �
diferente! Mas aqui fora, vejo aparecer uma por��o de coisas, o clar�o
de seu fogo, Dinis! Me diga uma coisa, por exemplo: voc� j� perdoou os
assassinos de seu Pai? J� perdoou os assassinos de seu Padrinho?
� Sei n�o, Pedro! � respondi baixando a cabe�a, porque nunca
izera a mim mesmo uma pergunta direta nesse sentido. � Perdoar �
coisa dura, di�cil e complicada! Uma vez vi meu amigo Eus�bio
Monturo dizer uma frase que me impressionou muito a esse respeito.
Ele deu uma tapa na cara de um inimigo, dizendo depois que tinha feito
isso para poder perdo�-lo! Ele queria primeiro provar a si mesmo que
n�o era por fraqueza e covardia que perdoava!
� Olhe a�, olhe de novo a maldita honra, o orgulho amaldi�oado,
Dinis! � disse Pedro com ininita compaix�o. � Pois eu lhe digo que
voc� n�o perdoou, nem aos que mataram seu Pai nem aos que mataram
seu Padrinho! E sabe por que n�o perdoou, Dinis? Por causa de seu
sangue!
� Do meu sangue? � perguntei espantado. � Que sangue? O
sangue dos Quadernas?

� N�o, o sangue que voc� herdou de sua m�e, o sangue dos
Garcia-Barrettos! Os Quadernas s�o ra�a de on�a: um Quaderna, num
acesso de raiva ou de loucura, pode matar, espeda�ar, degolar. Mas os
Garcia-Barrettos s�o ra�a de cobra, odeiam vinte, trinta, cinquenta, cem
anos, o tempo que durar a vida! Por isso abra o olho, Dinis, sen�o voc�
acaba morrendo com esse pecado no sangue! � da� que v�m todas essas
coisas para voc�! Por que � que voc� vive vendendo seu sangue e sua
alma, botando casa-de-recurso, inventando tudo quanto � de hist�ria,
comprando e vendendo o que n�o presta, fazendo tudo o que � poss�vel
para arranjar dinheiro? Voc� pensa que n�o se sabe? � porque voc�
quer recuperar a fazenda �As Maravilhas�, a terra que foi de seu Pai!
Agora eu lhe pergunto: por que essa �nsia de ter terra? Essa terra s� vai
trazer a voc� preocupa��es, sofrimentos e ocasi�es para fazer o mal, a
voc� mesmo e aos outros! Voc� vai ter que maltratar, espezinhar,
oprimir e humilhar os pobres! Agora veja: se o simples fato de voc� se
vestir de Rei terminou humilhando e insultando os outros aqui na rua,
imagine o que voc� n�o vai fazer, sendo Rei e bar�o de sua terra,
mesmo!
Novamente atingido, reagi:
� Mas � poss�vel que me venha algum mal da terra, Pedro? N�o
acredito, n�o posso acreditar nisso de jeito nenhum! Ali foi o come�o da
minha vida, Pedro, um come�o puro, talvez o �nico tempo de inoc�ncia
e felicidade que eu gozei, o tempo em que meu Pai, minha M�e e meu
Padrinho eram vivos e me apareciam como tr�s imagens, aquelas
imagens de S�o Jos�, Nossa Senhora e S�o Joaquim que existem na
capela da �On�a Malhada�! E os nomes deles, os nomes de meu Pai,
minha M�e e meu Padrinho eram os que resumiam aquele Reino onde
eu vivia, reinando como todos os meninos, na terra que, de fato, era
uma s�, se bem que as duas casas icassem em duas extremidades
bastante afastadas dela. Na �On�a Malhada� foi que passei a maior parte
da minha meninice, adolesc�ncia e juventude. �, como voc� sabe, um
casar�o maci�o, pesado e achatado, de paredes grossas, austero e pobre
como um convento. Pelo menos, assim dizia Samuel quando morava l�,
e foi o que veriiquei depois, quando fui para o Semin�rio da Para�ba!
�As Maravilhas� era uma fazenda ao mesmo tempo parecida e diferente.
Branca tamb�m era. Mas a casa era menor, mais amena, n�o severa,
por�m tranquila e acolhedora. Nas �Maravilhas�, Pedro, a amanhec�ncia

do dia era cheirosa e fresca, pois a casa era situada naquela parte da
enorme terra que, pertencendo antes aos Garcia-Barrettos, ocupava j�
um peda�o da Serra do Teixeira, enquanto a �On�a Malhada� era situada
entre altas pedras, parecendo um ninho de gavi�es pousado entre os
rochedos da serra. Por isso, na casa de meu Padrinho, os dias de calor,
nascidos das pedras escariicadas pelo sol, alternavam-se com as noites
frescas. Nas �Maravilhas� contavam-se pelos dedos os dias de calor. E,
mesmo nesses, bastava que nos acolh�ssemos � sombra do terra�o ou
da sala da frente para que a vira��o da Serra do Teixeira acariciasse o
nosso corpo e o rosto como uma b�n��o materna! Que mal pode ter me
vindo dali, portanto? O nosso Cariri � assim, Pedro: seco, �spero,
pedregoso, implac�vel, com poentes esbraseados que parecem
inc�ndios, e o chicote do vento e da poeira crestando tudo! Mas as
noites s�o amenas e cada vez mais acolhedoras, � medida que mais
avan�amos na dire��o da Serra do Teixeira. � por isso que se para mim
a �On�a Malhada� � um lugar sagrado (sagrado pelo fogo e pelo sangue),
�As Maravilhas� � um lugar aben�oado, Pedro!
Pedro Beato abanou obstinadamente a cabe�a e disse:
� N�o existem lugares aben�oados, Dinis, e todos os lugares s�o
sagrados! Digo e repito: todo o seu mal vem da�! � esse seu desejo de
criar de novo esse tempo que passou que coloca voc� do lado do Diabo!
Novamente estremeci, agora porque as palavras de Pedro
pareciam um eco daquelas �ltimas que a Mo�a Caetana escrevera na
parede dizendo que o que eu tentava era restaurar meus dias para
sempre destro�ados. Mas ele continuou, sem atentar para minha
perturba��o:
� Dinis, ou�a o que eu estou dizendo: estamos chegando a um
tempo de nova santidade! Como todo tempo de salva��o e santidade, o
nosso � um tempo perigoso. E vai se tornar cada vez mais duro. N�o me
admiro nada de que tenham denunciado voc�, porque est� no
Evangelho: �Um irm�o entregar� o irm�o e os ilhos se levantar�o
contra os pais e os matar�o.� Pois � o que est� acontecendo. Quem tiver
coragem, que se jogue no sol, no fogo de Deus, quem tiver medo que se
cuide!
� Pois � o que acontece comigo, Pedro! Tenho medo e me cuido,
porque sei que, se me jogar nisso que voc� chama o fogo de Deus, saio,

n�o queimado aqui e ali, ferido aqui e ali, mas marcado a ferro em brasa
e degolado como meu Padrinho saiu!
� N�o, n�o � isso o que eu dizia n�o, Dinis! Momentos de medo,
como esse que voc� diz, todo mundo tem! Agora mesmo � um desses:
voc� est� amea�ado, apavorado! E tem raz�o para isso, porque voc� �
um homem marcado, fa�a o que izer e fuja como fugir! Momentos
como esses s�o os de se gritar para Deus, dizendo: �Tome suas
provid�ncias! Tome, porque no meu aniquilamento, n�o sou capaz de
fazer mais nada! E mesmo que ainda pudesse tomar algumas, seriam as
provid�ncias da fraqueza, da maldade, da incompet�ncia e do erro!�
Mas se, antes, no come�o de tudo, a pessoa fez doa��o de sua vida, se
colocou sua seguran�a em Deus e no seu trabalho (e n�o nos tesouros
da terra, do gado, dos bens amealhados), a� ele ser� um forte do
Evangelho, mesmo que tenha momentos de p�nico. �Onde voc� colocar
o seu tesouro, a� estar� o seu cora��o.� � por isso que eu lhe
aconselhava ainda agora, Dinis: entre, de corpo e alma, para o centro do
fogo, colocado debaixo do sol de Deus, porque chegou o derradeiro
momento em que as escolhas ainda s�o poss�veis. Nosso tempo �
perigoso mas glorioso. Herodes est� solto por a�, pronto para enforcar,
sangrar e cortar as cabe�as dos inocentes. Mas, por isso mesmo, Jo�o
Batista tamb�m j� apareceu para batizar na �gua e no fogo! Sabe por
que, Dinis? Porque sempre que chega o tempo dos Herodes, chega
tamb�m o tempo dos profetas! Existem tr�s sangues dentro do homem:
o sangue do fogo-sujo e da besta, o sangue do pensamento e o sangue
do esp�rito de santidade. Todos eles vivem misturados no sangue da
gente, o que � uma cruz de fogo dura demais para as nossas costas! �s
vezes o homem � puxado para baixo, pela besta, para o fogo-sujo, o fogo
do monturo que, embaixo, queima a carne podre e escura dos bichos
mortos e apodrecidos. Mas o cora��o, moeda de ouro incendiada, arde,
e ent�o o homem � puxado para cima, para o anjo de fogo da santidade
que voa no sol! Assim, Dinis, n�o espanta que o homem queira fugir e se
esconder dessa On�a, desse fogo que � Deus! � muito dura a nossa luta;
mas se essa guerra do homem contra o fogo-sujo � a marca da nossa
baixeza, � tamb�m o sinal de que podemos chegar ao sol do Divino! Saia
do lado do Diabo, Dinis, meu ilho! Saia, que voc� sair� da inseguran�a e
do medo! Mesmo que matem voc�, como mataram seu Pai e seu
Padrinho! Voc� fala, a�, dessa persegui��o que lhe izeram, da den�ncia

que mandaram contra voc� ao Juiz, por causa da briga que voc� teve
com aquele seu colega. Acredito que ele tenha agido mal e dado muitos
erros, praticando maldades e injusti�as contra voc�. Mas ele tamb�m
tem raz�o: voc� tamb�m agiu mal, tamb�m deu muitos erros em toda
essa hist�ria! E por qu�? Porque voc�, em tudo, se preocupa com essas
malditas quest�es de honra e vive querendo apurar quem tem raz�o!
Como se o fato de �ter raz�o� pudesse servir para alguma coisa! Que �
que importa a ele que voc� tenha raz�o? Que � que importa a voc� ter
raz�o ou n�o? Voc� ganhou a briga imperdoavelmente, e, por cima,
ainda quer ter raz�o? Que � que lhe interessa que seus inimigos �n�o
tenham raz�o�? Que import�ncia tem que eles sejam lacraus e piolhosde-
cobra, como voc� diz? Por um lado, Dinis, raz�o completa s� quem
tem � Deus! Por outro lado, todos n�s somos lacraus, e mesmo os
piolhos-de-cobra t�m, l�, suas raz�es! Se voc� tem menos culpa em
rela��o a eles do que eles perante voc�, isso n�o signiica que voc�
esteja pagando inocente, Dinis, porque todos n�s (e seus inimigos
tamb�m) somos, ao mesmo tempo, terrivelmente culpados e
inteiramente inocentes!
Pedro Beato come�ou a se levantar com diiculdade. Eu, a�odado
e desajeitado como sempre ico nessas ocasi�es, comecei a ajud�-lo. E
ent�o, talvez por estar assim, bem perto dele, tive coragem de, num
impulso, tratar do assunto que me queimava por dentro h� tempo.
Falei:
� Pedro, muito obrigado por tudo o que voc� me disse! N�o
tenho coragem para fazer o que voc� me aconselha, porque n�o tenho
nem sua bondade, nem sua for�a, nem sua coragem, nem sua
humildade. Vivo amea�ado e exilado! Fui expulso, sem culpa, do lugar
que me pertencia, e muitos s�o os que desejam me desgra�ar ainda
mais, me esmagar como se eu fosse um percevejo! Tenho que provar,
pelo menos a mim mesmo, que meu sangue pode ser ruim, mas pelo
menos � de on�a e de cobra, como voc� diz, e n�o de percevejo! De
qualquer modo, Deus h� de recompensar voc� por sua bondade para
comigo. Eu sou ruim e vivo no pecado, num pecado sem freios, Pedro:
mas, por isso mesmo, eu queria que voc� aqui, agora, me perdoasse de
uma vez para sempre!
� Perdoar voc�, Dinis? Por qu�? � indagou ele, olhando-me
diretamente nos olhos.

� Voc� sabe que eu vivo com Maria Saira, e eu queria que voc�
me perdoasse a mim e a ela por causa disso!
� Voc�s j� est�o perdoados h� muito tempo, Dinis! Nisso tudo o
que voc� disse, s� uma coisa me preocupa: � isso do seu pecado sem
freio! � isso que est� desgra�ando voc�: n�o sei o que � que est�
havendo no mundo que, de repente, as pessoas deram para viver como
se tudo fosse permitido. � da� que v�m todas as ofensas e todas as
desordens! Mas, quanto � vida de voc�s, n�o tem grande import�ncia!
Que � que Maria Saira podia fazer? Eu nunca pude ser para ela um
verdadeiro marido, era j� velho demais para isso quando me casei, e ela
era mo�a e bonita, como ainda �! Eu nunca toquei no corpo de Maria
Saira, Dinis, e ela precisa disso! � disse ele baixando o rosto.
� � verdade! � disse eu, tamb�m desviando os olhos. � Saira
� uma mulher de precip�cio, uma mulher de abismos, Pedro. Dizem at�,
na rua, que aqueles olhos verdes dela s�o daquela cor porque ela �
possessa do Dem�nio!
� Eu n�o acredito nisso n�o! � falou Pedro Beato. � E, mesmo
que fosse verdade, a� � que ela precisa mesmo da minha ajuda e da sua!
Seria muito di�cil ela resistir, com todo mundo desejando o corpo dela,
a� pela rua! Aqui dentro da Vila, qual foi o homem que n�o possuiu �a
endemoninhada�, pelo menos uma vez e em pensamento? Est� tamb�m
no Evangelho, �todo aquele que olhar para uma mulher cobi�ando-a, j�,
no seu cora��o, adulterou com ela�. Assim, voc� serviu de grande ajuda,
para ela, depois do meu casamento. Eu n�o tenho nada que perdoar a
Maria Saira: ela � quem deve me perdoar por ter casado com ela tendo
feito voto de castidade e pobreza e tendo me tornado incapaz, h� tanto
tempo, de desrespeitar meu voto!
� Sim! � disse eu. � Mas isso s� justiica Maria Saira! Quanto
a mim, h� muito tempo, j�, que venho sentindo a necessidade de me
justiicar, contando a voc� o verdadeiro motivo de eu ter me tornado
amante dela! O que voc� disse, justiica Maria Saira: o que eu vou lhe
dizer explica � o meu procedimento! Voc� deve se lembrar que meu Pai
me mandou para o Semin�rio...
� Me lembro, sim!
� Olhe, Pedro, eu �s vezes tenho vontade de reclamar contra a
sorte, por ter nascido como nasci! Eu via meus irm�os mais velhos,
aquelas fortalezas, e s� faltava morrer de inveja, vendo como eles eram

diferentes de mim � �ntegros, serenos, irmes, como se tivessem
brotado, como uma bara�na ou uma aroeira, das pedras e dos campos
do Sert�o! Parecia-me que eles permaneciam inatingidos pelo mal, pelo
pecado, pela fraqueza, pela baixeza, mesmo que se vissem metidos no
meio dos atos mais terr�veis e estranhos, como as brigas e as quest�es
de terra! Tudo aquilo que me marcava e me corrompia, passava por eles
sem abal�-los. Principalmente Manuel, o mais velho, talvez porque eu o
via cercado de ilhos, lavrando a terra e criando gado! Mas mesmo os
outros dois, Francisco e Ant�nio, metidos nas lutas e combates
sertanejos, um como oicial da Pol�cia, o outro como cabra-do-rile,
matando e arriscando a vida; praticavam os atos mais terr�veis e,
apesar de tudo, permaneciam com aquele n�cleo de pureza e for�a que
n�o permitia fossem eles conspurcados e envilecidos. Por que ser�,
Pedro, que somente eu tive a pouca sorte de nascer com essa corrup��o
do sangue que deu na putaria, na galhofa, na Academia e no Semin�rio?
N�o sei, mas sei que sou mais culpado e corrupto do que os outros! �
verdade que houve tamb�m os acasos e o papel deles foi importante.
Por exemplo: eu era o �ltimo ilho, dos leg�timos; e como meu Pai j�
julgava assegurada a sua descend�ncia atrav�s dos quatro mais velhos,
teria que ser eu, mesmo, o Padre da fam�lia. Mas o que me deixava
suspeitoso sobre a corrup��o do meu sangue � que, quando meu Pai
come�ou a falar na minha ida para o Semin�rio, todo mundo dizia que,
de todos os ilhos dele, eu era o �nico que, �pela cara, ainda tinha
alguma possibilidade de ser Padre�. Quer dizer: o pessoal pressentia
que, dentro de mim, havia aquela mistura de pecado, sangue e remorso
que faz um Padre. Olhe, Pedro, eu tenho a maior pena dos Padres...
� Eu tamb�m! � disse Pedro, por sua vez espantado.
� Dos padres daqui, tenho menos pena de Padre Renato e do
Padre Marcelo.
� Por qu�?
� Padre Renato � homem de poucas perguntas e pouca
conversa. � um soldado, como meu irm�o. Basta voc� ver o pesco�o e a
nuca dele, quando est� celebrando a missa, com as botas aparecendo
por baixo da batina. � homem que, se tivesse poder, condenava todos
n�s � morte, por introduzirmos a desordem, a corrup��o e o pecado na
Igreja. O outro, Padre Marcelo, � uma alma de crian�a...
� Voc� sabe l� do que se passa por dentro dos outros, Dinis?

� �, talvez eu esteja errado. Mas, de qualquer modo, � assim
que sinto as coisas.
� �, o Padre Marcelo � um santo, uma criatura de Deus.
� Pois � por isso que, dos nossos tr�s padres, aquele que me d�
mais compaix�o � o Padre Daniel! Esse, � uma chama ardente. Acho que
com todos os padres acontece, mais ou menos, aquela mistura de que
falei h� pouco: mas, nos padres como o Padre Daniel, eu sei exatamente
o que se passa, porque � exatamente o que acontece comigo. Eles
procuram Deus como quem procura uma cura pelo fogo, porque
pressentem as chagas de corrup��o, de inclina��o para o mal que existe
dentro deles. Acho que era isso que as pessoas pressentiam, quando
airmavam que eu era o �nico dos ilhos de meu pai que ainda tinha
alguma coisa de padre. E l� fui eu para o Semin�rio! Entretanto, a parte
de corrup��o, em mim, devia ser maior, e os superiores, descobrindo
isso, expulsaram-me. Antes, por�m, quando ainda estudava no
Semin�rio, voltava para c� nas f�rias de Junho e do im do ano. Numa
dessas, encontrei Maria Saira pela primeira vez. Eu estava na Igreja
velha: ela passou na porta, viu que eu estava s� e entrou tamb�m.
Aproximou-se e falou comigo. Disse que tomara conhecimento da
minha chegada e que n�o deixara de me seguir desde o come�o.
Contou-me tudo o que acontecera com ela, como tinha sido seduzida e
abandonada e como voc� tinha se apiedado de tudo e casado com ela.
De repente come�ou a me dizer as coisas mais estranhas do mundo,
coisas que eu nunca tinha ouvido nem pensava que uma mulher
dissesse...
Pedro Beato, meio constrangido, baixou a cabe�a. Eu continuei:
� Ela me falou ent�o, tamb�m, pela primeira vez, na cardina
que meu Pai tinha me dado para eu beber, sem que eu soubesse. Voc�
sabia disso, Pedro?
� Ouvi falar! � disse ele vagamente e como se quisesse mudar
de assunto.
� Meu Pai, como voc� sabe, era raizeiro, meio profeta e
astr�logo. Sabendo das diiculdades que eu tinha no estudo, me deu,
para eu beber, um ch� de cardina, uma beberagem que abre a
intelig�ncia das pessoas. Ele n�o me esclareceu o que era, dizendo
somente que se tratava de um fortiicante. Assim, a princ�pio, n�o posso
dizer se houve alguma modiica��o, porque, n�o estando advertido, n�o

passei a observar se tinha mudado ou n�o. Naquele dia, por�m, Maria
Saira me revelou que a bebida que eu tinha tomado tinha sido a
cardina. Disse-me, tamb�m, que a pessoa que bebe cardina ica
inteligente mas perde toda a for�a de homem. Aquilo para mim, Pedro,
foi como um raio que tivesse ca�do perto de mim. O que mais me
preocupava era que, com a conviv�ncia de Samuel e Clemente por um
lado, e com a de meu padrinho Jo�o Melch�ades e de Lino Pedra-Verde
por outro, eu tinha me tornado, aos poucos, um Poeta e acad�mico
capaz de colaborar no Almanaque Charad�stico e Liter�rio Luso-
Brasileiro. Provavelmente isso signiicava que a cardina tinha tido efeito
na intelig�ncia e, portanto, no resto tamb�m!
� E � verdade? Voc� veriicou? � disse Pedro.
Olhei para ele, para ver se havia alguma maldade na pergunta,
mas notei que o Beato perguntara aquilo com sua bondade habitual,
apenas por estar preocupado, interessado no meu sofrimento. Ent�o
expliquei:
� Para falar a verdade, n�o sei, Pedro. N�o sei, porque, logo no
dia seguinte, Maria Saira me procurou de novo e me disse que sabia
como combater e anular o efeito negativo da cardina, sem que a parte
positiva, a da abertura da cabe�a e da intelig�ncia, icasse prejudicada.
Ela achava, at�, que, voltando eu � capacidade de cavalga��o e reina�o, a
parte de estro da Poesia ia tomar mais fogo dentro de mim! Ah, Pedro,
como � bom esse contato da gente com mulher! Como � bom a gente
dizer certas coisas e ouvir outras, naquele tom em que, de repente, tudo
se torna poss�vel! Como isso � diferente destes nossos �speros
entendimentos masculinos, em que somos olhados com hostil
imparcialidade e julgados a cada instante! Com as mulheres, � o
contr�rio. Se gostam de n�s, elas n�o nos julgam e s�o ainda mais
carinhosas quando a gente se revela fraco e cheio de defeitos. De vez
em quando, a gente sente, n�o com a cabe�a, mas com o sangue, que
pode repousar a cabe�a naquele colo, naqueles seios, que pode chorar
sem ser desprezado, beijar sem ser repelido, sentindo o perfume que se
desprende da pele e dos cabelos que nos envolvem numa grande paz e
no mais ardente desejo! Naquele dia, falando com Maria Saira, eu senti
assim. N�o me envergonhei de confessar que, desde a v�spera, eu
estava me sentindo o �ltimo dos homens. N�o seria capaz, mais nunca,
de agradar a uma mulher. Ou, mesmo que fosse, n�o teria mais coragem

de desej�-la, porque agora eu mesmo estava convencido de que nunca
mais seria homem. Saira, ent�o, me convidou a tentar, com ela. Disse
que, por sua vez, sentia uma atra��o estranha por mim. Que, em mim, o
que atra�a seu sangue e seu desejo eram duas coisas: primeiro, o fato de
estar destinado a ser Padre e, agora, aquela amea�a de impot�ncia;
depois, o fato de eu descender �daqueles homens esquisitos da Pedra
do Reino�. Saira ouvira falar em que meu bisav� icava excitado
sexualmente de maneira poderosa quando degolava a mulher que
possu�a. Dizia-me que, desde que ouvira falar nisso, icara me
desejando, pois sabia que seu prazer seria enorme se ela fosse possu�da
sabendo que, a qualquer momento, corria o risco de ter a garganta
cortada. Por isso, eu n�o me sentisse humilhado se tudo desse errado a
princ�pio: ela recome�aria e teria t�o ininita do�ura que terminaria
dando certo, sen�o da primeira vez, de outra. Disse, tamb�m, que eu a
ajudasse, consentindo: porque, depois que esse desejo se metera no
sangue dela, fazia parte de seu orgulho de mulher que ela obtivesse
�xito comigo. Ent�o concordei, vendo em Maria Saira a minha �ltima
esperan�a de ser novamente homem. Indaguei como ela pensava
vencer, no meu sangue, o mal que a cardina tinha introduzido nele.
Olhe, Pedro, n�o sei se tenho coragem de contar o que se passou da� em
diante...
� Conte, conte! Acho que � melhor, pra voc� e pra mim! � disse
Pedro.
� Ela me perguntou se era verdade que o Padre Renato tinha
me dado uma chave da Igreja de S�o Sebasti�o. Eu respondi que sim.
Ent�o ela me disse: �Pois se � assim, v� pra l�, cuide para que n�o vejam
voc� entrar, deixe a porta do lado aberta, somente encostada. Entre pela
porta do lado, que � mais resguardada. Daqui a pouco eu vou encontrar
voc�, l�.� Eu fui, iz tudo como ela tinha recomendado e ela foi se
encontrar comigo na Igreja. Foi assim que tudo aconteceu, Pedro.
� Como, Dinis, meu ilho? Na igreja? Um sacril�gio?
� Sim, Pedro, um sacril�gio! Eu sentia em tudo aquilo um
elemento diab�lico. Era como se Maria Saira fosse, mesmo, possessa e
eu vendesse meu sangue ao Dem�nio, recuperando a for�a de homem
que tinha perdido. E da� em diante, � assim que temos vivido. O pior �
que, aos poucos, meteu-se na minha cabe�a que s� com Maria Saira e
com seus male�cios diab�licos � que eu posso ser homem, de modo

que, se ela se entregou ao Diabo, eu me entreguei completamente a ela,
e portanto a ele tamb�m. Era isso o que eu queria lhe dizer, Pedro,
porque, se tudo isso piora minha situa��o em rela��o a Deus, melhora
em rela��o a voc�. Nossa ofensa a voc� j� n�o � t�o grande, porque
agora voc� entende que eu n�o posso passar sem ela nem Maria Saira
sem mim. Esse � o motivo real de n�s dois n�o nos separarmos,
continuando a maltratar voc� com o esc�ndalo da nossa vida!
� Est� bem, entendi tudo, Dinis, meu ilho! Mas n�o se
incomodem comigo, por mim voc�s est�o perdoados. Mas que
import�ncia tenho eu? N�o � o pecado de voc�s em rela��o a mim, o
que tem import�ncia � o pecado diante de Deus. Mas Ele vai ter
compaix�o e ajudar voc�s dois. At� logo, e boa sorte no seu processo.
� Obrigado, Pedro. Reze por mim!

P
FOLHETO XLVI
O Reino da Pedra Fina
edro Beato saiu para a rua e eu passei uma derradeira vista pelo
ambiente que me cercava, a Biblioteca e minha casa, pegada a ela
por uma porta larga que fazia dos dois casar�es um s�. Lancei esse
derradeiro olhar � minha casa, t�o desarrumada, t�o empoeirada, mas
t�o acolhedora, t�o diferente da Cadeia para a qual deveria me dirigir. E
lembrando-me de que talvez nunca mais voltasse a v�-la, abri a porta da
frente e sa� para a cal�ada, enceguecido ao mesmo tempo por minha m�
vis�o e pelo terr�vel sol sertanejo, que fulgurava nas pedras e nos
cristais do ch�o, �quela hora zodiacal.
Naquele dia 13 de Abril, Quarta-feira de Trevas deste nosso ano
de 1938, tudo era nefasto, aziago e desfavor�vel, por qualquer �ngulo
que o encar�ssemos. Do ponto de vista religioso-ilos�ico, por exemplo,
era o tempo da Quaresma, isto �, era o tempo daqueles terr�veis
quarenta dias durante os quais o Cristo penara naquele Sert�o
pedregoso e espinhento da Judeia, sujeito �s tenta��es do Diabo e ao
fogo infernal do Deserto. Al�m disso, est�vamos na Semana da Paix�o,
ligada �quele outro Sert�o maldito do G�lgota, ao sangue e � coroa de
espinhos. Era, ainda, uma Quarta-feira de trevas. Como se isso tudo n�o
bastasse, neste ano de 1938 aquele dia trevoso e amaldi�oado tinha
ca�do num dia 13, n�mero azarento e amea�ador. Finalmente, do ponto
de vista astrol�gico, est�vamos sofrendo ent�o, em toda a sua for�a
fatal, os inluxos do planeta Marte, que, como todos sabem, � adverso e
nefasto ao sangue humano.
Tudo isso (aliado ao ambiente pol�tico de suspeitas e dela��es,
assim como � terr�vel e sangrenta hist�ria do Rapaz-do-Cavalo-Branco)
pesava no meu sangue e na minha cabe�a, enquanto eu caminhava, com
um ar envergonhado de suspeito, sob os olhos enviesados de todos os
moradores da nossa Vila. Gente que at� a v�spera me tratava com
alguma cordialidade, agora, que minha intima��o se tornara

rapidamente conhecida, torcia a cara e cortava caminho para n�o falar
comigo. Como era de esperar, a m� vontade maior vinha das mulheres,
principalmente as da Aristocracia rural sertaneja, damas pertencentes a
um c�rculo do qual, bastante tempo antes, eu fora �expulso como
infame�, e que agora exultavam com minha perdi��o deinitiva,
espreitando-me por tr�s de todas as r�tulas e persianas da rua.
Deixando a cal�ada, comecei, agora como um desaio, a caminhar
pelo meio da rua, h�bito que sempre tive e que sempre foi alegado, na
Vila, como um dos argumentos mais deinitivos contra o meu car�ter. O
pior, agora, � que eu, aos 41 anos de idade, j� estava come�ando a me
sentir envelhecido e cansado, com aqueles inind�veis processos,
ligados � degola��o de meu padrinho Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto e
� hist�ria do Rapaz-do-Cavalo-Branco. Eu fora chamado a depor sobre
isso em 1930, perante os Tribunais Revolucion�rios surgidos com a
vit�ria da Revolu��o. Cinco anos depois, o inqu�rito fora novamente
aberto, quando se relacionou pela primeira vez toda aquela hist�ria de
30 com a �miss�o secreta� que o Rapaz-do-Cavalo-Branco teria vindo
desempenhar na Revolu��o comunista de 1935. De modo que esta, de
agora, era a terceira vez em que eu me via envolvido naquela teia de
pol�tica, sangue, enigma e crime, relacionada com a fam�lia de minha
M�e, a suave e doce Maria Sulp�cia Garcia-Barretto Quaderna. Os tr�s
processos se enovelavam no meu terror, formando um processo �nico,
uma armadilha s�, uma esp�cie de teia de aranha, de novelo-de-cobras
ou de n�-de-lacraias, nos quais eu iria me enredar inapelavelmente,
picado, ferroado e empe�onhado, talvez para sempre e de modo fatal.
Assim, era cambaleando que eu, aos poucos, usando, como
podia, meus olhos terrivelmente prejudicados tr�s anos antes, no dia
em que chegara o Rapaz-do-Cavalo-Branco, me aproximava da Cadeia,
tateando o ch�o com meu Cajado-prof�tico, para, assim, poder andar
com mais seguran�a. Sob o sol fagulhante do ainda quase meio-dia
sertanejo, o Sert�o me aparecia como uma enorme Cadeia de serras
pedregosas. Ao mesmo tempo, por�m, meu sangue orgulhoso e r�gio se
rebelava contra essa visagem; e o Sert�o me aparecia, ent�o, como um
Reino, o Reino do qual falava o genial Poeta sertanejo Leandro Gomes
de Barros, num �romance� que minha Tia Filipa costumava cantar e que
exerceu profunda inlu�ncia na minha forma��o pol�tico-liter�ria. Nesse

romance, chamando o Brasil de �O Reino da Pedra Fina�, dizia o grande
poeta paraibano de Pombal:
�Havia um grande Pa�s
de na��o mouro-cruzada,
e havia as Pedras do Reino,
por outras pedras cercadas:
diziam que l� morava
uma Princesa encantada.
A�, na Serra mais alta,
morava a On�a-divina:
da Pedra descia um veio
de �gua muito cristalina.
Via-se inscrito nas Pedras:
�O Reino da Pedra Fina.�
Na Serra, ningu�m subia,
nem muito perto se olhava,
porque, do centro da Furna,
vinha uma Voz que bradava:
�Fa�a alto! Quem vem l�?�
e logo �s Armas chamava!
Ent�o, ouvia-se a Voz
de um Cantador a cantar,
sobre o Prinspe legend�rio,
ao som de tiros no Ar.
Rufa o tambor, soa o Hino,
e a Fortaleza a salvar.
O Rei tinha duas pedras
na Coroa imperial:
perdeu uma e n�o achou

mais outra que fosse igual.
Mas vai procurar de novo:
e empenha seu sangue o Povo,
que o Tesouro � colossal!�
Creio, nobres Senhores e belas Damas, que com o que Vossas
Excel�ncias j� conhecem sobre mim, bem podem avaliar o sentido
cifrado, astrol�gico e sagrado desse Canto e do meu Castelo: �as Pedras
do Reino, por outras pedras cercadas� s�o alus�es do romance aos dois
rochedos g�meos da Pedra Bonita, de onde, h� um s�culo, meus
antepassados reinaram sobre o nosso Pa�s; o Reino � o Brasil, este
Sert�o do mundo; o Rei, sou eu; tamb�m sou eu o Cantador cuja voz se
ouvia, clamando �s armas; a Serra mais alta, � a Borborema; a Fortaleza
que salva � esta minha Obra, este meu Castelo, Fortaleza, Marco e
Catedral-soterrada que eu possuo, como todos os Cantadores e
Cangaceiros possuem os seus; a Princesa encantada, � Dona Heliana, a
dos Olhos Verdes; assim como o Prinspe ou Pr�ncipe legend�rio de
quem eu conto a legenda � o meu primo e sobrinho Sin�sio, o Alumioso,
que tanto a amou; inalmente, a busca da pedra perdida da Coroa
Imperial (busca na qual o Povo mouro-cruzado do Brasil empenha seu
sangue) � a �Revolu��o da Guerra do Reino�, que, se Deus bem me ouve,
o Rapaz-do-Cavalo-Branco, enquanto eu permane�o aqui aprisionado,
estar� l� fora levando a bom termo, para gl�ria do nosso sangue e da
nossa Ra�a.

P
FOLHETO XLVII
A Aventura dos Cachorros Amaldi�oados
ara que se entenda o estado de esp�rito em que me encontrei �
preciso que eu explique que, de repente, comecei a perceber que
tinha cometido um desses enganos tolos que frequentemente nos levam
a situa��es ao mesmo tempo vexat�rias e rid�culas: levado pelo
nervosismo, sa�ra cedo demais de casa, e agora estava envergonhado de
voltar. Sentia que o pessoal da rua descobriria imediatamente o meu
estado de ang�stia e que, no dia seguinte, minhas idas e vindas seriam o
assunto de todas as chacotas da rua. Ao mesmo tempo, temia chegar na
Cadeia antes demais do Juiz-Corregedor: teria que icar sentado �
espera, encerrado entre quatro paredes e sentado num banco duro, o
que aumentaria o meu pavor, colocando-me num estado de esp�rito
pior ainda, que me deixaria completamente inerme e indefeso perante
as manhas do Cabe�a-de-Porco.
Talvez por causa disso tudo, de repente, quando dei acordo de
mim, estava caminhando n�o para a Cadeia, mas em dire��o � Ponte,
perto do Chafariz. Meus passos iam me encaminhando, sem muita
participa��o do meu pensamento e da minha vontade, como se eu
estivesse sendo atra�do por alguma presen�a, l� para os lados do Rio
Tapero�, seco e com a areia rebrilhando no sol.
O mais curioso � que n�o me encaminhei para a Ponte, que seria
o local mais indicado para passar o tempo, pois ali eu poderia me
acolher � sombra das pilastras e descansar um pouco. Em vez disso,
entrei pelo beco que ica no oit�o do Chafariz, demandando o trecho de
beira-rio que ica ali por tr�s. Em momentos comuns, isso n�o se
explicaria, porque aquele � um lugar imundo, que servia h� tempo de
monturo e dep�sito de lixo.
O Rio Tapero� permanece seco a maior parte do tempo, como
sabem todos aqueles que leram o Dicion�rio Corogr�ico da Para�ba, do
genial Coriolano de Medeiros. O nosso Prefeito Abdias Campos

mandara construir em 1933 ou 34 um cais de pedra-e-cal margeando-o
desde o Chafariz at� a Usina de Luz. Do cais desce uma ladeira at� o
leito do rio, l� embaixo; e o terreno dessa ladeira � coberto de lixo,
velhos chifres de boi, peda�os de couro apodrecido, cascos, costelas e
caveiras, pois o Matadouro � logo ali perto, tamb�m � beira do rio.
Assim, s� se explica que eu me dirigisse para l� por alguma
raz�o obscura, pela perturba��o em que me encontrava, porque �
realmente um lugar repugnante. E logo eu me veria, ali, diante de uma
cena que estava de acordo com a hora, o lugar e meu estado de esp�rito.
Mal entrei pelo beco do oit�o do Chafariz, avistei um homem que
estava de costas, sentado na amurada do cais, com as pernas pendendo
para o lado do rio, de modo que eu s� lhe via as costas � o tronco forte
e a gorda nuca. Pela roupa e pelo tipo, por�m, conheci logo que era
Eug�nio Monteiro, irm�o do Comendador Bas�lio Monteiro e de meu
amigo Eus�bio (este conhecido na rua como Dom Eus�bio Monturo).
Eug�nio era um sujeito entroncado, moreno, calvo, de barba
fechada mas raspada. Andava perto dos cinquenta anos e era o mais
mo�o dos irm�os. S� vestia roupa preta e usava um desses chap�us
duros, pretos, abaulados, de abas meio curvas, desses que alguns
padres costumam usar e a que o Povo chama de bacoras. Agora, estava
ali, vestido assim, de costas para o meu lado, olhando para o leito seco e
sujo do Rio Tapero�, como se estivesse absorto em profundos
pensamentos.
Para que bem se entenda a impress�o que a conversa dele me
causou, � preciso que eu diga que entre o ano de 1935 e este nosso de
1938, tinham come�ado a aparecer uns crimes estranhos, entre n�s.
Tr�s, sobretudo, tinham impressionado mais do que os outros porque,
segundo os falat�rios da rua, vigiava, oculto dentro deles e entre outras
implica��es, o terr�vel problema pol�tico.
O primeiro fora, a princ�pio, encarado sob outro �ngulo. O
Sacrist�o da nossa par�quia l� um dia amanhecera morto a tiros, na
porta de sua casa. Todas as manh�s, ele sa�a para bater o sino das seis
horas, e naquele dia fora morto por um desconhecido que fugira.
Primeiro, atribuiu-se o crime a problemas pessoais: diziam que a
mulher o enganava, motivo pelo qual o amante e ela eram os
mandantes. Mas depois, por maledic�ncia, quiseram envolver o nome
do Padre Renato na hist�ria. Ora, o Padre Renato era inatac�vel, do

ponto de vista da castidade sacerdotal. No trato com as mulheres n�o se
conhecia um deslize seu � ao contr�rio da maioria de seus
antecessores. Mas era odiado pelas pessoas que, na rua, tinham ideias
parecidas com as de Clemente. Isto porque era intransigentemente
�conservador e obscurantista�. Sua honradez pessoal, no caso, at�
aumentava o rancor das pessoas que o hostilizavam: gostariam de ter
motivos para falar mal dele, e n�o os encontrando, transformavam em
�dio a avers�o inicial. Por outro lado, bastaria essa hostilidade do
pessoal de Clemente para tornar o Padre Renato simp�tico � outra ala, a
de Samuel: entre estes, o Padre Renato era considerado, n�o digo um
santo, mas uma esp�cie de basti�o e forte da Igreja em nossas paragens.
Talvez tenha sido, portanto, o pessoal de Clemente que desejou
envolver o nome do Padre Renato no crime. J� o pessoal de Samuel
come�ou a espalhar a vers�o de que a morte do Sacrist�o tinha sido
realizada pelos comunistas, dispostos a atingir o Padre Renato atrav�s
de seu auxiliar de conian�a.
O ambiente tornava-se, ali�s, cada vez mais prop�cio a esse tipo
de acontecimentos e de hist�rias. A morte de Elza Fernandes, mo�a que
fora condenada e executada, ao que se dizia por ordem pessoal e
especial de Lu�s Carlos Prestes, chefe dos comunistas brasileiros,
tornava tudo cr�vel e tudo poss�vel, no �mbito nacional. Mas logo esse
ambiente estranho contagiaria at� a nossa pacata Vila.
Um dia, pouco tempo depois da morte do Sacrist�o, um rapaz da
Burguesia urbana de Tapero�, Samuel Coura, foi assassinado a faca,
numa emboscada. O crime tamb�m icou insol�vel e causou rebuli�o
dez vezes maior do que a morte do Sacrist�o. N�o era tanto pelo fato de
Samuel Coura ser aparentado com um dos chefes pol�ticos mais
prestigiosos do Cariri, o Coronel Joaquim Coura: era o fato de ser irm�o
de um rapaz misterioso, Adalberto Coura que, tendo sa�do de nossa
terra, quase menino, para estudar em Campina, na Para�ba e no Recife,
voltara h� pouco tempo para sua terra, ningu�m sabe para fazer o qu�.
Diziam que Adalberto Coura �voltara comunista�; que tivera, no Rio,
uma entrevista secreta com Lu�s Carlos Prestes; e que, no Recife,
entrara em contato com Silo Meireles e outros chefes revolucion�rios,
de modo que seu reaparecimento inesperado entre n�s seria ligado a
uma �miss�o secreta� de que fora encarregado para o Sert�o.

A�, foi a vez do pessoal de Clemente: come�aram a aparecer
boatos de que, de fato, a emboscada na qual morrera Samuel Coura
tinha sido preparada para matar seu irm�o Adalberto, que deveria ter
sido assassinado, a mando dos propriet�rios e integralistas, como
repres�lia pela morte do Sacrist�o.
O pai de Adalberto Coura j� andava apavorado com as �ideias
novas� do ilho. Tivera in�meras discuss�es com o rapaz, de modo que
o ambiente de casa j� estava icando insustent�vel para Adalberto. Com
a morte de Samuel, a tempestade chegou ao auge, e o velho Feliciano
Coura, chamando o ilho estranho de Caim, expulsou-o de casa.
Foi a� que apareceu o terceiro crime: um padre mo�o,
recentemente ordenado, e que fora enviado pelo Bispo para ajudar o
Padre Renato, apareceu morto, enforcado, todo mutilado e com os olhos
vazados a ponta de faca.
A�, juntaram-se boatos espalhados pelas duas alas. Uns diziam
que a morte do padre fora cometida pelos comunistas, em sua
campanha de �dio contra a religi�o, considerada por eles como ��pio do
Povo�; outros, que tinham sido os integralistas, que odiavam os padres
mo�os que trabalhavam com o velho Padre Renato e que, segundo eles,
�faziam o jogo dos comunistas�.
Pois como vinha dizendo: naquele dia, aproximei-me de Eug�nio
Monteiro sentindo agravar-se em mim a terr�vel sensa��o de mal-estar
que vinha experimentando. N�o era s� o processo, o depoimento:
alguma coisa desconhecida, obscura, amea�adora, parecia me esperar e
me espreitar ali, sem que eu soubesse realmente do que se tratava.
Quando cheguei para perto, Eug�nio n�o demonstrou a menor
surpresa. Pelo jeito, parecia mesmo que me esperava; que s� poderia
ser eu, quem ali chegava, como se tivesse havido combina��o de um
encontro entre n�s. Quase sem se mover, ergueu o queixo apontando
com ele para os lados do monturo amontoado � beira do rio, e disse
como se revelasse a presen�a de algu�m, ali:
� O Diabo, Quaderna!
Olhei para a dire��o que ele indicara. Embaixo, no monturo,
alguns cachorros estavam farejando o ch�o, dando pequenas corridas
para aqui e para ali, enquanto outros, num grupo mais compacto,
pareciam estar come�ando a disputar alguma coisa, alguma presa que
tinham acabado de encontrar.

Meio espantado com os modos de Eug�nio Monteiro, encarei-o e
repeti, a modo de indaga��o:
� O Diabo?
� Sim, o Diabo, o velho Diabo, Quaderna! Voc� n�o acredita nele
n�o? Eu acredito! Como � que eu posso n�o acreditar naquilo que acabo
de ver?
� Voc� acaba de ver o Diabo, Eug�nio? � perguntei, inquieto.
� Acabo de ver e ainda estou vendo, Quaderna! O Diabo est� ali
embaixo, naquele monturo!
Olhei de novo e s� via os cachorros, cuja disputa come�ava,
agora, a assumir uma certa ferocidade.
� Eu s� estou vendo os cachorros, Eug�nio!
� Quaderna � disse ele lentamente �, voc� sabe, melhor do
que eu, que o Diabo pode aparecer como cachorro! Voc� j� viu um
bando de carcar�s comendo um borrego morto? Quem � o Diabo,
nesses casos? O borrego? O carneiro preto, pai dele? Os carcar�s? N�o
sei, mas um desses ele tem que ser! Agora, talvez o Diabo seja um
desses cachorros, e est� ali! Voc� se lembra daquele homem, Gabriel,
que foi comerciante aqui e depois se mudou para S�o Jos� do Egito, no
Paje�?
� Me lembro, sim!
� Voc� se lembra de uma prima dele, chamada Luciana?
� Me lembro, tamb�m.
� Um dia, Gabriel foi � casa dela. Os tios dele, pais de Luciana,
tinham sa�do. Ele entrou e encontrou a mo�a sozinha, deitada num sof�.
Sentou-se junto dela, conversa vai, conversa vem, ele, a pretexto de
examinar uma marca que a pulseira deixara no bra�o dela, come�ou a
acarici�-la. O certo � que com poucos instantes Luciana tinha sido
delorada. Por falta de sorte dela e dele, a mo�a engravidou. A m�e, a
velha Julieta, desconiando do que havia, botou a ilha em coniss�o e
descobriu tudo. Levaram ent�o Luciana para Campina e ela teve, l�,
uma menina, que foi deixada com uma velha parenta de Gabriel que l�
morava. Um ano ou dois depois, a velha Julieta foi l� e trouxe a neta
para casa, passando a cri�-la como se fosse ilha adotiva. Aqui na rua,
por�m, todo mundo sabia que era a ilha de Gabriel e Luciana. Depois
da�, o que foi que aconteceu? Voc� sabe?

� Sei! A menina, que se chamava Leonor, cresceu e chegou aos
15 anos de idade. A� Gabriel, seu pai, tomou-se de paix�o sexual por ela,
delorou-a e casou-se com ela. O casamento tinha tr�s objetivos: dar um
desmentido p�blico aos rumores de que Leonor era ilha dele, evitar o
esc�ndalo de nova gravidez de mo�a solteira e satisfazer a paix�o sexual
que o tinha possu�do.
� Foi isso mesmo, Quaderna, e eu fui testemunha do casamento.
Olhe, eu n�o sou dos que pensam que essas coisas n�o acontecem �com
as pessoas simples e inocentes do Povo�, n�o. N�o existe ningu�m
simples e inocente, Quaderna! � disse Eug�nio, recordando-me, agora
com um tom diferente, as palavras de Pedro Beato. E acrescentou: � De
qualquer modo, por�m, se o fato se tivesse passado com pessoas do
Povo, teria terminado ou em nada ou em trag�dia. Ou o casal de pai e
ilha teria continuado simplesmente a viver e coabitar, com o
consentimento da m�e da mo�a, ou teria havido assassinato, como
sucedeu com aquele morador da fazenda �Aroeiras� que violou a ilha e
matou-a depois (dizem, at�, que ela est� fazendo milagres). Mas, como
se tratava de Gabriel, gente assim como eu e voc�, o fato teria que
acabar como acabou: em farsa, uma farsa obscena e grotesca! Leonor,
casada com o pai vinte anos mais velho do que ela, come�ou a desejar
machos mais vigorosos e passou a enganar Gabriel. Ele, com o que
izera antes com a prima e a ilha, j� tinha os p�s de cabra e o rabo,
reveladores do Diabo que era: recebeu, ent�o, de contrapeso, um par de
chifres, tornando-se um Diabo completo, apontado a dedo por toda a
rua, perseguido pelas risadas dos rastejadores de pecados, pelos
intrigantes e pelas comadres, pelos virtuosos dissimulados e tenazes!
� Est� certo! � objetei. � Mas foi Gabriel quem apareceu ali,
agora, no monturo, entre os cachorros?
� N�o! � falou Eug�nio, sempre com a mesma voz grave e
pausada. � Mas voc� est� vendo ali aqueles cachorros, n�o est�?
� Estou!
� Sabe o que � que eles est�o disputando?
� N�o! Deve ser algum peda�o de carne que trouxeram do
Matadouro e largaram por a�!
� Bem, voc� tem certa raz�o. Que � um peda�o de carne, �, e
que passou por um matadouro, passou, se bem que n�o pelo Matadouro

em que voc� est� pensando! Aquilo, Quaderna, � um menino rec�mnascido,
morto, que foi abandonado a�, hoje de madrugada!
Horrorizado, olhei de novo para l�, e vi, realmente, algo que
parecia um boneco l�cido e esbranqui�ado, l�vido, puxado pr�aqui e
pr�ali pelos dentes e patas dos cachorros. Eug�nio deu uma esp�cie de
risadinha, satisfeito pela impress�o que, ainal, me causara. E
continuou:
� O menino nasceu h� poucas horas. � ilho daquela mo�a que,
segundo diziam, ia casar com o tal do Gustavo Moraes, ilho do usineiro
rica�o do Recife que, ningu�m sabe por qual motivo, veio comprar
terras e minas aqui. Gustavo deve ter emprenhado a mo�a, que pariu
esta noite. A m�e dela, mais eiciente do que a m�e de Leonor, matou o
menino.
� Matou? � falei, recuando um pouco.
� Sim, matou! V� l� e olhe, Quaderna: a moleira do menino est�
afundada, como se algu�m tivesse eniado o dedo nela at� matar o
coitadinho! Agora, lhe pergunto: que � que voc� vai fazer?
� Eu? Nada! Nem fui eu que emprenhei a mo�a, nem fui eu que
matei o menino, nem fui eu que achei o corpo!
� Voc� n�o acha que tem certas obriga��es, diante do que
aconteceu?
� N�o, quem tem � voc�, Eug�nio! Em circunst�ncias normais,
eu iria chamar a Pol�cia. Mas estou metido num inqu�rito, tenho que ir
para a Cadeia dar um depoimento e n�o quero chegar l� com mais esse
problema, de jeito nenhum! Al�m disso, foi voc� quem encontrou o
corpo do menino, de modo que a obriga��o � sua.
� Ent�o v�, Quaderna! N�o tome provid�ncia nenhuma! �
disse Eug�nio, com ar queixoso. � Que import�ncia tem que o
meninozinho seja ou n�o devorado pelos cachorros? A almazinha dele
j� est� no c�u, e, de l�, pedir� por voc� a Deus, para que voc� se saia
bem do seu processo! V�!
Naquele momento, lembrei-me de que Maria Saira sonhara
comigo como se eu fosse um Diabo apalha�ado e rid�culo; e n�o pude
me impedir, tamb�m, de pensar que o pr�prio Eug�nio era um Diabo,
um Diabo vestido de preto, grosso, entroncado e de chap�u-coco. Tinha
certeza de que suas botinas pretas escondiam um p� de cabra e de que,
se ele tirasse a bacora, apareceria em sua testa um par de chifres

retorcidos e grotescos. Senti um profundo desgosto de ser quem era e
de viver como vivia. Mas n�o disse nada. Rodando nos calcanhares, deilhe
as costas e sa�.

C
FOLHETO XLVIII
A Confiss�o da Possessa
omo um son�mbulo, voltei pelo mesmo beco do oit�o do Chafariz.
N�o tivera coragem nem de ir l�, olhar o meninozinho morto.
Enveredei pelo Beco da Prefeitura, demandando a Rua Grande pelo
largo da Igreja Nova.
Ali, antes de eu me dirigir inalmente � Cadeia, ainda teria que
acontecer outra cena estranha, desta vez entrando eu na hist�ria, como
protagonista. Foi que, na esquina da Rua Grande com o Beco da
Prefeitura, uma mulher, Maria Saira, estava � espreita, esperando-me.
N�o me dirigiu a palavra nem esperou que eu me aproximasse para
falar-me. Depois que notou que eu a tinha visto, fez-me um aceno com a
cabe�a em dire��o � Matriz, deu-me as costas, cruzou o largo deserto e
come�ou a subir a ladeira da Igreja. Chegando � porta desta, cruzou-a e
sumiu-se no interior.
Meu cora��o deu um salto no peito, pois eu j� sabia o que aquilo
queria dizer. Sabia que eu, cada vez mais, estava me afastando do
mundo de Pedro Beato e do Padre Marcelo e entrando no de Gabriel e
Eug�nio Monteiro. Mas n�o tinha op��o nem for�as para resistir.
Aterrado, sabendo no �ntimo como aquilo era degradante e perigoso,
sobretudo naquele momento, olhei em torno para as casas. N�o havia
viva alma na rua, as portas e janelas estavam todas fechadas por causa
do sol, na sesta do ap�s-meio-dia. Mas quem podia garantir qualquer
coisa? Certamente eu continuava sendo espreitado por tr�s de todas as
r�tulas. At� agora, meus sacril�gios com Maria Saira tinham icado �
margem dos falat�rios. Mas quem sabe se aquele n�o seria descoberto?
Baixei a cabe�a, cruzei o largo, subi a ladeira e entrei na Igreja,
no encal�o daquela mulher possessa, de olhos verdes. A princ�pio, ainda
encandeado pelo sol de fora, n�o percebi ningu�m. Depois, vi que o
Padre Renato, sonolento, quase cochilando, estava sentado no
confession�rio, com Maria Saira ajoelhada, sussurrando seus pecados

estranhos ao ouvido dele. Ela j� me dissera que fazia coniss�es
propositadamente incompletas, deixando escapar, por�m, de vez em
quando, coisas inconfess�veis, destinadas unicamente a perturbar o
velho e honrado padre.
Desviando-me da vista do Padre Renato, sentei-me num banco,
no recanto mais escuro da Igreja, num lugar em que o Padre n�o podia
me avistar da posi��o em que se encontrava. Ele n�o se apercebera da
minha entrada, o que me deixava mais tranquilo para olhar Maria Saira
� vontade. Ela parecia uma mulher comum e devota, contando a um
padre virtuoso suas pequenas preocupa��es e inocentes transgress�es.
De repente, por�m, notando que eu a olhava, apoiou-se somente
com o bra�o esquerdo na borda de madeira da grade do confession�rio
e, com a m�o direita, desabotoou a blusa, puxando para fora o belo
peito branco, que me exibiu agressivamente. Depois, baixando a mesma
m�o, pegou o vestido pela orla inferior e ergueu-o. Fascinado, vi que ela
estava nua, sob o vestido. Dali, dava para eu ver perfeitamente as coxas
e o belo ventre, com o selvagem tufo de pelos sobressaindo embaixo. Ao
mesmo tempo, e com o Padre sempre sussurrando seus conselhos,
inocente sobre o que se passava, Maria Saira desviava o rosto e me
olhava, com um sorriso enigm�tico e uma express�o dissimulada nos
olhos enviesados, verdes e luzentes como os dos gatos.
A coniss�o acabava. Ela me fez um gesto, indicando-me o altarmor.
Havia um espa�o vago entre ele e a parede do fundo: ergui-me
cuidadosamente, evitando sempre que o velho Padre me visse, e
ocultei-me ali, naquele lugar que ela me indicara. Ouvi ent�o os passos
do Padre Renato que sa�a da Igreja, assim como os de Maria Saira, que
se aproximavam. Ela chegou para perto de mim e abra�ou-me, sempre
sem dizer palavra. Todo o seu corpo se achegou ao meu e ela sorriu,
notando, pelo contato, que seu gesto sacr�lego j� obtivera, em mim, o
efeito costumeiro contra algum resto de cardina que tivesse icado no
meu sangue. Ent�o, suavemente, como uma on�a no cio, deitou-se no
ch�o de tijolo da Igreja e ergueu o vestido.
N�o vou mais transgredir as leis de Deus contando o que se
passou. Seria arriscar-me demais perante o Juiz, o Delegado e os nobres
Senhores e belas Damas que me ouvem. Al�m disso, como Profeta
cat�lico-sertanejo que sou, n�o me atreveria a contar, por minha conta,
cenas como essa. Este �, ali�s, o motivo de eu ter, no come�o, me

referido a tr�s cenas imorais, escritas pelo Visconde de Montalv�o e por
Carlos Dias Fernandes, uma de amor natural e duas de amor desviado:
quem escreveu essas cenas foram eles e eles que assumam a
responsabilidade. Daqui por diante, quando a minha hist�ria me
obrigar a contar essas coisas, basta que eu mande voltar a uma delas
para explicar o que preciso. � o que fa�o agora; quem quiser saber o
que aconteceu ali, no escuro formado entre o altar e a parede, leia a
cena do livro A Ailhada de Monsenhor Agnelo, ou O Castelo do Amor: �o
dardo foi exibido no momento prop�cio e encaminhou-se para a fonte
desejada, que palpitava. O atrevido soldado de capacete vermelho,
encontrando a relva umedecida, rasgava docemente as barreiras e
penetrava inteiramente na gruta negra e vermelha do Castelo do Amor.�

BANDEIRA DO GAVI�O.

N
FOLHETO XLIX
A Cadeia
�o trocamos uma palavra, durante todo esse tempo. Agora, ao
contr�rio do que acontecia at� ali, eu j� estava era atrasado.
Por isso, deixei Maria Saira na Igreja e, saindo por uma porta
lateral, passei para a Pra�a, desci o beco da casa do Capit�o Clodoveu
Torres Villar e ent�o me vi cara a cara com o antigo pr�dio da Cadeia.
A nossa Cadeia � um velho pr�dio de dois pavimentos, de
paredes largas, �com beira, sobeira e bica�, como dizem os nossos
velhos documentos. O pavimento t�rreo, onde ica, mesmo, situada a
Cadeia, � um lugar atijolado e malcheiroso. O Corregedor, por�m, tinha
se instalado em cima, no pavimento superior, reservado para as
reuni�es da antiga C�mara. De qualquer modo, para chegar at� ele, a
gente tinha que passar pelo vest�bulo e pela cela-comum de baixo,
onde, por tr�s de sujas e ferrujosas grades, estavam os assassinos,
ladr�es de cavalo e ladr�es de bode do Cariri. Assim, ao entrar, senti
logo a catinga insuport�vel de mijo, merda e suor, que aquela rafameia
desprendia, reunida e trancada na cela. A sensa��o de tontura que eu j�
vinha sentindo aumentou ent�o a tal ponto que pensei que ia ter uma
vertigem, uma biloura, a �oura da folia� de Clemente, ou um tro�o
qualquer da mesma natureza. Cambaleando e com a vista escura, subi a
escada de madeira, apoiando-me ao s�lido mas sujo corrim�o, todo
estaqueado a ponta de faca, sabre e canivete � obra dos inumer�veis
soldados de Pol�cia e criminosos que tinham passado por ali durante
mais de um s�culo. Cheguei, desse modo, ao amplo sal�o do primeiro
andar, aposento de paredes brancas, forro e ch�o de madeira
empoeirada; e avistei logo, metido numa toga negra, toda debruada de
vermelho (o que lhe dava um ar ao mesmo tempo imponente e
venenoso de Rei e Cobra-Coral), o terr�vel personagem que era o Juiz-
Corregedor. Estava por tr�s de uma grande e pesada mesa antiga, de
bra�na, sentado numa cadeira que parecia um trono, com assento e

espaldar alto, de couro. A seu lado, estava minha advers�ria e antiga
companheira de viagem, Margarida Torres Martins, loura, distinta e
inacess�vel, sentada com ar virginal e eiciente diante de uma banqueta
baixa, onde tinham colocado uma velha e enferrujada m�quina de
escrever.
* * *
O Corregedor era um homem gordo, moreno, de cabeleira lisa e
negra, com astutos olhos de porco implantados numa testa baixa, e com
uma crueldade diicilmente dissimulada no rosto, que ele procurava
manter af�vel mas que, justiicando seu apelido, parecia a cabe�a de um
cruzamento de Caititu com Cascavel. N�o uma cascavel comum, mas
uma dessas chamadas cascav�is-de-sete-ventas, envelhecidas e
traquejadas nas trilhas da Caatinga, grossas, letais, j� quase
transformadas em cascabulho, e que ingem dormir placidamente
enquanto nos espreitam para o bote que nos vai matar.
N�o sei se Vossas Excel�ncias sabem, mas existem tr�s graus
superiores de bicho envenenado no Sert�o: a cascavel, a cascavel-desete-
ventas e o cascabulho. O cascabulho � uma cascavel-de-sete-ventas
que vai envelhecendo e, � medida que envelhece, vai encurtando e
engrossando, de t�o ruim que �; quando chega a cascabulho mesmo, j�
est� t�o curta e grossa que ica feita, quase que s�, mesmo, de cabe�a e
marac�. De mordida de cascavel ainda h� quem escape; mas um sujeito
que for mordido de cascabulho, pode ser S�o Bento, o cabra j� cai
fedendo.
Pois bem: � por isso que eu dizia que o Doutor Joaquim Cabe�ade-
Porco era uma mistura de caititu e cascabulho. Corria entre n�s,
espalhada pelo Professor Clemente, a not�cia de que ele se celebrizara
nos processos instaurados em 1930 pelos famosos �Tribunais
Revolucion�rios� e �Comiss�es de Inqu�rito�. A�, funcionando como
acusador, fora t�o cruel e eiciente que impressionara o Governo
revolucion�rio e radical de Antenor Navarro, o qual (por isso e ainda
por ser vagamente aparentado com o Cabe�a-de-Porco) terminara por
lhe dar esse posto importante e cobi�ado de Corregedor, degrau
infal�vel para o Tribunal de Justi�a da Para�ba.

Agora, como Corregedor, vindo � nossa Comarca em visita��o,
tivera a sorte de encontrar, reaberto pelos acontecimentos sucedidos de
1935 a 1938 com o Rapaz-do-Cavalo-Branco, aquele estranho caso do
assassinato de meu Padrinho, com todos os fatos e implica��es pol�ticas
decorrentes dele. Acresce que, segundo os falat�rios da rua, essa morte,
a heran�a e os problemas surgidos entre os tr�s ilhos de meu padrinho
Dom Pedro Sebasti�o eram ligados com o ambiente revolucion�rio
dominante no Brasil; principalmente com uma certa �Coluna Sertaneja�
que, levantando os sert�es da Para�ba, de Pernambuco e do Rio Grande
do Norte, pretendia reviver entre n�s os feitos praticados em 1926 pela
�Coluna Prestes�.
Imediatamente o Corregedor pressentiu que aquela era a grande
oportunidade que lhe aparecia de brilhar novamente num processo
sensacional, dando o salto que lhe faltava para ingressar no Tribunal da
Para�ba. Tanto mais porque as condi��es tinham mudado: o Governo
revolucion�rio de 1930 acomodara-se no Poder, que agora queria
manter a todo custo; ele, Corregedor, passara de acusador de �tribunais
revolucion�rios� a vigilante e guarda da �ordem p�blica�; Antenor
Navarro, seu protetor, morrera tragicamente em 1932; de modo que
sua carreira dependia, agora, da arg�cia e da implacabilidade com que
ele deslindasse o caso do Rapaz-do-Cavalo-Branco e demonstrasse suas
liga��es com aqueles que pretendiam subverter o Pa�s e assaltar o
poder no qual ele, Corregedor, estava t�o bem instalado com seus
correligion�rios.
Ali�s, vi logo com que esp�cie de animal-de-presa eu tinha de
tratar: pois assim que fui entrando, sem dar tempo nem de que eu me
recuperasse da subida e da tonteira, ele me atacou, indagando com voz
cort�s mas severa:
� O senhor � Pedro Dinis Quaderna, Diretor da Biblioteca
Municipal Raul Machado?
� Sou sim senhor! � balbuciei como pude.
E acrescentei logo, para me impor como pessoa de pr� e homem
de bem:
� Mas, al�m disso, sou ainda redator da Gazeta de Tapero�,
jornal conservador e noticioso no qual me encarrego da p�gina
liter�ria, enigm�tica, charad�stica e zodiacal. Posso dizer, assim, que,
al�m de Poeta-escriv�o e bibliotec�rio, sou jornalista, Astr�logo, literato

oicial de banca aberta, consultor sentimental, Rapsodo e diascevasta
do Brasil!
� Rapsodo? � estranhou o Corregedor, com um ar entre
enojado e perplexo. � Diascevasta? Que � isso? Que � diascevasta?

V
FOLHETO L
O Inqu�rito
i que tinha conseguido minha primeira vit�ria contra o Corregedor:
porque um acusador que confessa ignor�ncia de alguma coisa
sabida pelo acusado perde sempre um pouco de sua superioridade.
Agradecendo intimamente a Samuel e Clemente que, talvez sem querer,
tinham me fornecido aquela no��o important�ssima da minha forma��o
pol�tico-liter�ria, expliquei:
� Os diascevastas, Sr. Corregedor, foram os eruditos que,
segundo o Professor Clemente (um dos meus mestres de Literatura),
colecionaram os cantos dos rapsodos gregos, e assim, reunindo-os,
izeram A Il�ada e A Odisseia, Obras-nacionais, Castelos-sertanejos e
Marcos-paraibanos daquele povo de ladr�es de cavalo, ladr�es de bode
e vaqueiros que s�o os Gregos! Eu, como Poeta e autor de romances,
como romanceiro que sou, posso me considerar Rapsodo, um Cantador,
um �trovador de chap�u de couro�, como dizia o genial Carlos Dias
Fernandes. Isso me outorga o t�tulo � que j� assumi oicialmente, ali�s
� de �O Rapsodo do Sert�o�. Mas como, ao mesmo tempo, eu pretendo
colecionar na minha Obra, devidamente tocados-da-bola pelo sangue e
pelo fogo das pedras sertanejas, os cantos de todos os Poetas e
fazedores-de-romances da Literatura Brasileira, posso me considerar
tamb�m �O Diascevasta do Brasil�. Sou, portanto, al�m de o �nico
escritor do mundo que �, ao mesmo tempo, Rapsodo e Diascevasta, o
�nico homem que, sozinho, �traz em sua Obra toda uma Literatura�,
como diz um dos meus livros-de-cabeceira, o Almanaque Charad�stico e
Liter�rio Luso-Brasileiro, a respeito dos g�nios das ra�as dos pa�ses
estrangeiros!
O Corregedor estava ainda visivelmente espantado. Mas era, na
verdade, um homem superior. Refazendo-se aos poucos, olhou-me com
uma express�o que gradualmente readquiria a impassibilidade anterior
e disse, meio ir�nico:

� Est� bem, acredito! Mas o senhor foi indicado a mim como
possuindo preciosas informa��es sobre o caso desse fazendeiro, Pedro
Sebasti�o Garcia-Barretto, assassinado em 1930, e sobre tudo o que
aconteceu aos tr�s ilhos dele, Ar�sio, Silvestre e Sin�sio. � verdade,
isso?
� �, Sr. Corregedor! Como j� devem ter lhe dito tamb�m, esse
fazendeiro era o parente mais parente que eu tinha neste mundo. Dom
Pedro Sebasti�o era, ao mesmo tempo, meu tio, meu padrinho e meu
cunhado. O que, ali�s, n�o era de espantar, num homem que era tio dele
mesmo!
� Como �? � indagou o Corregedor, novamente perplexo e
revelando, com isso, que eu acabava de obter minha segunda vit�ria
contra ele, naquela tarde.
� � f�cil, e eu explico j� a Vossa Excel�ncia! Minha m�e, Maria
Sulp�cia, era irm� de meu padrinho Dom Pedro Sebasti�o. Meu
Padrinho casou-se a primeira vez com Dona Maria da Puriica��o
Pereira Monteiro, m�e de Ar�sio. Mas casou-se a segunda vez com
minha irm�, Joana Quaderna, sobrinha dele e m�e de Sin�sio. Tornouse,
assim, meu cunhado, al�m de meu tio, como j� era. E, sendo casado
com uma sobrinha, tornou-se tio aim dele mesmo!
O Corregedor fez �um ar de quem provara e n�o gostara�, como
dizia minha Tia Filipa. Mas resolveu passar por cima. Trocou um olhar
com Margarida e continuou:
� O senhor conhece todas as pessoas implicadas nesse caso? �
verdade que assistiu praticamente a todos os acontecimentos, tendo
mesmo se envolvido na maioria deles?
� � verdade, Sr. Corregedor! Para falar mesmo a verdade, � mais
ou menos imposs�vel saber tudo, ter visto tudo, porque o caso de meu
Padrinho e do ilho dele, Sin�sio, come�a, de fato, com a chegada, aqui,
do primeiro Barretto da estirpe, no s�culo XVI. Mas, de um ponto de
vista menos radical, pode-se dizer que a hist�ria come�a em 1912, com
a chamada �Guerra de Doze�, quando os Garcia-Barrettos e outros
chefes sertanejos importantes do antigo Partido Liberal do tempo do
Imp�rio organizaram uma tropa de 1.200 homens armados e tomaram
seis cidades, aqui no Sert�o da Para�ba. Eu nasci a 16 de Junho de 1897,
no auge do �Cerco de Canudos�, que � a nossa �Guerra de Troia�: estava,
portanto, com 15 anos, quando estalou a �Guerra de Doze�! Minha m�e,

Maria Sulp�cia, quando se casou com meu Pai, trouxe para ele, como
dote, dada por meu Padrinho, a fazenda �Maravilha� (ou �As
Maravilhas�, como era mais conhecida). Infelizmente, meu Pai, com os
�percal�os de sua atribulada exist�ncia�, terminou perdendo de novo
tudo o que recebera. Tornou-se, ent�o, uma esp�cie de agregado da
�On�a Malhada�, a fazenda de meu Padrinho, lugar onde foi encontrar,
tamb�m na qualidade de agregados, aqueles que depois seriam meus
mestres de Literatura, o Doutor Samuel Wandernes e o Professor
Clemente Har� de Ravasco Anv�rsio. Minha virtuosa tia, Dona Filipa
Quaderna, tamb�m nos acompanhou, pois meu Padrinho resolveu
coloc�-la ali como caseira da �On�a Malhada�.
Margarida cochichou qualquer coisa perto do Corregedor e ele
se voltou logo para mim. Antes, por�m, que ele falasse, eu avancei:
� Eu sei que vivem dizendo que n�s, Quadernas, �ramos todos
parasitas, que viv�amos �s custas de meu Padrinho. O pessoal chega a
dizer que meu Pai foi quem praticamente empurrou minha irm� para
casar com o tio, com olho nas terras e nos dinheiros dos Garcia-
Barrettos! Mas eu n�o me incomodo absolutamente, Sr. Corregedor! O
que meu Pai foi, junto a meu Padrinho, foi uma esp�cie de Conselheiro e
astr�logo particular, cargo que, depois de sua morte, eu passei a ocupar,
acumulando-o com o de Poeta e Guarda do Selo dos Tesouros!
� Est� bem, n�o duvido! Quanto a isso de �guarda do selo dos
tesouros� logo voltarei ao assunto! Por enquanto, por�m, vou fazer-lhe
algumas perguntas, e veja como responde, porque, aviso logo!, vou
decifrar essa hist�ria de qualquer jeito!
� Vou ajud�-lo tamb�m, de qualquer jeito, porque, como
charadista e Astr�logo, Sr. Corregedor, minha proiss�o tamb�m �
decifrar!
O Corregedor passou outro mau rabo-de-olho para mim, mas
absteve-se de comentar e passou adiante:
� Me diga uma coisa: � verdade que dois perigosos chefes
extremistas desta Vila est�o, desde que se instalou o Estado Novo em
Novembro do ano passado, escondidos em casas de sua propriedade?
� Eles n�o est�o escondidos n�o, Excel�ncia! Moram l� h�
muito tempo e todo mundo na rua sabe, porque eu nunca escondi isso
de ningu�m!

� Essas duas casas s�o pegadas ao casar�o onde o senhor
mesmo mora?
� S�o sim senhor!
� � verdade que elas se comunicam por portas internas?
� � sim senhor!
� Sua casa � pegada, pelo outro lado, ao pr�dio da Biblioteca
que o senhor dirige?
� � sim senhor! A Biblioteca ica na esquina. Depois, do lado
direito e pegada com a Biblioteca, ica a minha casa. Depois, pegada �
minha pelo lado esquerdo, vem a casa do Professor Clemente. E
inalmente, pegada � de Clemente, ica a casa do Doutor Samuel.
� Ah! � disse o Corregedor com ar maldoso. � Quer dizer que,
segundo sua pr�pria opini�o, os dois chefes extremistas da Vila s�o
esses dois! Note que eu absolutamente n�o mencionei o nome deles: � o
senhor mesmo quem avan�a que os dois chefes extremistas da Vila s�o
o Promotor da Comarca, Doutor Samuel Wan d�Ernes, e o advogado e
professor, Bacharel Clemente Har� de Ravasco Anv�rsio!
� S�o esses, mesmo, Doutor! � disse eu. � N�o tenho remorso
nenhum de fazer essa den�ncia: somente assim eu tenho oportunidade
de me vingar de todas as ironias, de todos os remoques que esses dois
me dirigiram durante toda a minha vida e que eu tive sempre de
suportar porque a conviv�ncia com os dois era indispens�vel � minha
forma��o pol�tica e liter�ria!
� Anote a� portanto, Dona Margarida, que o acusado, ou melhor,
o depoente, confessa que os dois chefes extremistas da Vila s�o o
Doutor Samuel e o Professor Clemente. Est� certo? � perguntou ele,
voltando-se para mim.
� Est�, Excel�ncia. Mas existe ainda, aqui na Vila, um terceiro
chefe extremista!
� Quem �?
� O Comendador Bas�lio Monteiro.
� � poss�vel? O Comendador, extremista? Um homem que �
arrendat�rio do A�ougue P�blico, dono do moinho, da torrefa��o, da
padaria e de quase todas as vendas do lugar?
� � esse mesmo, Sr. Corregedor!
� Pois � um im de mundo! Mas enim, tudo � poss�vel neste
nosso vale de l�grimas! E como � que atuam esses tr�s chefes

extremistas? S�o rivais? Ou trabalham juntos, dirigindo a agita��o?
� As �reas de mando e inlu�ncia s�o diferentes, Excel�ncia.
� Diferentes como? Qual � o papel do Promotor Wan d�Ernes
nisso tudo?
� O Doutor Samuel cheia, aqui, os extremistas da Direita!
� E o Professor Clemente?
� O Professor Clemente cheia os extremistas da Esquerda.
� E o Comendador Bas�lio Monteiro?
� O Comendador cheia os extremistas do Centro!
� Como �? Extremistas do Centro? � disse o Corregedor,
novamente sem poder ocultar seu assombro.
Ent�o, ingindo-me de paciente ante sua ignor�ncia, expliquei:
� O Comendador Bas�lio Monteiro, Excel�ncia, �, raivosamente,
advers�rio da Direita e da Esquerda, de modo que atua,
extremadamente, na �rea do Centro. � por isso que ele, apesar de
governista, op�e-se, indignado, a qualquer medida que o governo do
Presidente Get�lio Vargas toma mais para o lado da Esquerda e do
Povo. �, portanto, um extremista do centrismo, um extremista do
Centro!
� Sr. Pedro Dinis Quaderna, dou-lhe os meus parab�ns por sua
not�vel lucidez pol�tica e pela � como diremos, Dona Margarida? �
pela franqueza com que vem dando depoimento sobre seus amigos.
Espero, agora, que o senhor use, em rela��o a si mesmo, da mesma
franqueza que usou para os outros. Chegou a sua vez, Sr. Quaderna! O
senhor � extremista da Esquerda, da Direita ou do Centro?
� De nenhum dos tr�s, Excel�ncia! Eu sou Monarquista da
Esquerda!
� Como �?
� Monarquista da Esquerda! � repeti mais alto, para ele ver
que era aquilo mesmo e n�o tinha por onde, como dizia minha Tia Filipa.
� O senhor pode me explicar essa posi��o? O que foi que trouxe
o senhor para ela?
� Os motivos foram v�rios, Excel�ncia, e o senhor entender�
tudo melhor � medida que for me conhecendo mais. Um dos motivos
mais importantes, por�m, � que eu sou um Epopeieta.
� Um o qu�, Bibliotec�rio Quaderna?
� Um Epopeieta, um poeta �pico, um autor de epopeias!

� Quantas epopeias o senhor j� escreveu?
� Por enquanto nenhuma ainda, Excel�ncia, mas vou fazer uma
de lascar o cano, qualquer dia desses! Como diz o Doutor Samuel, tanto
ele mesmo, como eu e o Professor Clemente somos �tr�s possessos da
Literatura�. Em segredo, cada um de n�s vem planejando, h� anos, uma
obra-de-g�nio, decisiva para o destino do Brasil. A de Samuel � uma
cole��o de poemas cifrados, escritos em estilo herm�tico-pol�ticoliter�rio,
um livro denominado O Rei e a Coroa de Esmeraldas. A de
Clemente � um certo Tratado Negro-Comunista da Filosoia Vermelha do
Penetral. A minha, � uma Epopeia, um Romance r�gio, �completo,
modelar e de primeira classe�!
� O qu�? Um romance? Ainal, o que � que o senhor quer
escrever, um romance ou uma epopeia?
� Isso, a princ�pio, foi uma das minhas grandes d�vidas, um dos
grandes obst�culos em minha carreira para o poder e a gl�ria! O genial
escritor paraibano Carlos Dias Fernandes tinha escrito textualmente em
A Renegada: �As letras de um Pa�s s�o a express�o mais alt�loqua da sua
cultura e pode-se, por um Livro d�Arte, concluir a s�mula do car�ter de
um Povo. A Epopeia � a cristaliza��o de uma nacionalidade.�
� Entendo! Depois de ler isso, resolveu o senhor escrever esse
�livro d�arte� que fosse a cristaliza��o da nacionalidade brasileira, n�o
foi?
� Foi!
� Mas por que, ent�o, desistiu da epopeia?
� Porque o mesmo Carlos Dias Fernandes, em Talcos e Avel�rios,
prova que, no mundo atual, o romance � a verdadeira epopeia! � por
isso que eu, hoje em dia, estou cert�ssimo de que serei eu, e n�o Samuel
nem Clemente, o autor da Obra-epopeica que cristalizar� a nossa
nacionalidade! Infelizmente, Sr. Corregedor, apesar de possessos da
Literatura, n�s tr�s padecemos, todos, de uma terr�vel incapacidade de
escrever! Somos geniais nas ideias e nas conversas, mas quando chega a
hora de passar tudo para o papel a desgra�a penetra e, em vez do santo,
quem baixa � a fatalidade, de modo que n�o sai nada, por mais que a
gente esprema o miolo do ju�zo! A causa da impot�ncia de Samuel � a
bebida, os pileques e carraspanas que ele toma de vez em quando e que
o deixam arrasado. A de Clemente � uma enxaqueca epil�tico-ilos�ica
que o acomete e que faz ele cair ciscando na cama, esverdeado (ou

melhor, acinzentado), cego, babando e vomitando de gastura estomacal
e ilos�ica! A minha, � o cotoco!
� � o qu�?
� O cotoco, Excel�ncia! O senhor nunca ouviu algum
pernambucano atrevido dizer que n�s, paraibanos, temos cotoco, n�o?
� J�! Mas o senhor, um bibliotec�rio, um homem instru�do, dar
cr�dito e import�ncia a essas picuinhas?
� Excel�ncia, como � que eu posso n�o dar import�ncia, se eu
tenho, mesmo, o cotoco?
� Que tolice! � comentou o Corregedor, meio impaciente. �
Essa hist�ria vem de muito tempo atr�s, Sr. Quaderna! Talvez o senhor
n�o saiba, mas aqui na Para�ba foram muitos os casamentos de homens
e mulheres da terra com pessoas de sangue judaico, os chamados
�crist�os-novos�. A c�lebre Branca Dias foi um desses casos. Foi por isso
que a Inquisi��o teve que atuar, aqui na Para�ba, com mais energia do
que em Pernambuco! � disse ele, fazendo com que eu, imediatamente,
me lembrasse do Professor Clemente, de seu inqu�rito e do Inquisidor,
o Visitador Furtado de Mendon�a. � � por isso, tamb�m, que os
pernambucanos inventaram essa hist�ria. Segundo eles, todos os
paraibanos t�m sangue judaico e, consequentemente, parte com o
Diabo, motivo pelo qual herdaram um pequeno peda�o de rabo, o
cotoco, transmitido pelo sangue judaico ancestral. Isso � dito pelos
pernambucanos em tom pejorativo, � verdade. Mas n�o deixa, tamb�m,
de ser um elogio, porque, segundo eles, � o cotoco diab�lico que nos
torna irrequietos, ativos e astutos. � um elogio � incans�vel atividade
paraibana! � concluiu ele com ar patri�tico.
� Acredito, Excel�ncia, que seja uma vantagem nossa,
paraibana, e um elogio deles, pernambucanos! Principalmente porque
uma linhagem diab�lica � uma coisa que pode ser at� honrosa,
dependendo do tipo de Diabo de quem a gente descende! Meu irm�o,
que corta, na madeira, gravuras para ilustrar folhetos, desenha diabos
em forma de On�a, de Porco e de Bode! Uma vez, baseado numa
ilustra��o da Hist�ria do Brasil de Frei Vicente do Salvador, fez um
desenho da Ipupriapa, uma diaba-f�mea do Mar e do Litoral, uma bicha
horrorosa que, ali�s, desempenhou um papel important�ssimo na
odisseia mar�tima que empreendi e que faz parte de minha Epopeia!

Olhe, Sr. Corregedor: aqui est�o algumas dessas gravuras, que eu pe�o
que Vossa Excel�ncia mande juntar ao processo!
O Corregedor olhou as gravuras sem demonstrar interesse e
passou-as a Margarida que as colocou ao lado da m�quina sem
examin�-las. Ent�o continuei:
� Apesar de tudo isso, no meu caso particular, com todo o
orgulho judaico-sertanejo, mouro-vermelho e negro-ib�rico que sinto, o
cotoco me prejudica e muito! Primeiro, ele existe mesmo, em mim, Sr.
Corregedor: no im das minhas costas, o osso que ica entre as duas
bundas, tem uma pequena sali�ncia, um pequeno rabo judaicosertanejo,
o cotoco enim! Depois, n�o sei se por causa do osso, ou
porque a dose de sangue judaico que eu tenho � maior do que a dos
paraibanos comuns, o fato � que a coisa mais di�cil para mim � icar
sentado num lugar mais de cinco minutos: o cotoco dana-se a
incomodar, a bunda d�i, e come�a a me dar uma agonia da gota-serena,
uma gastura na natureza que s� passa quando eu me levanto e fa�o
qualquer coisa! Ora, a qualidade mais indispens�vel para uma pessoa
ser escritor � a capacidade de icar sentado, feito um cu-de-ferro,
pensando e escrevendo! � por isso que s� agora, gra�as ao senhor e a
Margarida, � que vou fazer meu romance-epopeico, uma Obra de fogo e
sangue, �inlamada de furor �pico, rubra, empenachada de altivez e de
vit�rias, dolorosa, das ren�ncias graves e da vida cantante, por amor a
uma defesa, a um s�mbolo, a um ideal, � P�tria�, como dizia a genial
Albertina Bertha!
� Est� bem, n�o duvido! Mas por que o senhor diz que
escrever� essa obra gra�as a mim?
� Porque este inqu�rito a que estou respondendo � a grande
oportunidade que tenho para escrev�-la! Come�a que a Epopeia que
vivo sonhando h� anos � exatamente sobre o assunto do inqu�rito, isto
�, sobre meu padrinho Dom Pedro Sebasti�o e seus tr�s ilhos, Ar�sio,
Silvestre e Sin�sio, ou melhor, sobre o Rei Degolado, o Pr�ncipe
Proscrito, o Pr�ncipe Bastardo e o Pr�ncipe Alumioso da Legenda
Ensanguentada do Sert�o!
� Rei? Legenda Ensanguentada? Pr�ncipe Alumioso? Que diabo
de confus�o mais danada � essa, Sr. Quaderna? � falou o Corregedor,
perdendo pela primeira vez de modo patente a linha que vinha
mantendo apesar de tudo.

Falei com a mesma tranquilidade:
� Assim que eu recebi a intima��o de Vossa Excel�ncia e soube
que Margarida ia servir de secret�ria aqui, vi que minha grande
oportunidade era essa! Como o inqu�rito � sobre a hist�ria de Dom
Pedro Sebasti�o, o nosso Rei Degolado do Cariri, eu darei meus
depoimentos em p�, andando pra l� e pra c� na sala, como estou
fazendo agora sem incomodar o cotoco. Tirando, depois, certid�o por
certid�o de cada depoimento, obterei, no im, escrito por Margarida, o
material bruto da Epopeia. Da� em diante, o resto � f�cil, e eu passarei a
perna nos meus dois mestres e rivais, escrevendo a obra de g�nio,
decisiva para o Brasil, que eles n�o puderam nem poder�o fazer!

BRUZAC�, QUANDO APARECEU, COM O NOME DE IPUPRIAPA OU HIPUPIARA, A
BALTAZAR FERREIRA. PARA FAZER ESTA GRAVURA, TAPARICA SE BASEOU NO
DESENHO PUBLICADO POR FREI VICENTE DO SALVADOR NA SUA �HIST�RIA DO
BRASIL�, O QUE LHE GARANTE ABSOLUTO RIGOR HIST�RICO.

� Sim, mas por que chamar o fazendeiro assassinado de Dom e
de Rei Degolado? E que neg�cio de �Legenda Ensanguentada� � esse que
o senhor arranjou para o Sert�o?
� Sr. Corregedor, tudo isso s�o �coisas �picas e cifradas� que o
senhor ir� entendendo melhor � medida que for me conhecendo mais.
Mas a Legenda Ensanguentada do Sert�o � coisa indiscut�vel, at�
mesmo para uma pessoa formada e ilustre como o senhor!
� Como �?
� Se fosse apenas uma opini�o minha, eu aceitaria que Vossa
Excel�ncia discordasse. Mas quem diz isso � o Doutor Gustavo Barroso,
homem acad�mico, oicial, consagrado e portanto indiscut�vel. Diz ele
que, assim como no mund�o l� de fora existe a �Legenda Dourada� das
vidas e dos milagres dos santos, aqui no Sert�o a cr�nica das rebeli�es,
das emboscadas, das lutas e vinditas familiares forma uma esp�cie de
�Legenda Ensanguentada�. Gustavo Barroso, como integralista, � um
dos autores preferidos do Doutor Samuel. No dia em que Samuel me leu
esse trecho de Literatura acad�mica, vi que essa no��o me era
indispens�vel e adotei-a como uma das ideias centrais de minha
bagagem liter�ria de Epopeieta. Al�m disso, li num artigo do Almanaque
Charad�stico que n�o � qualquer feito que pode fornecer assunto para
uma Epopeia: s�o as �fa�anhas de guerreiros e capit�es ilustres; reis
que decaem; tiranos assassinados; brilhantes reveses; quedas de
tronos, coroas e monarquias; terr�veis per�dias e combates
sanguinolentos�. Dizia ainda o artigo do Almanaque que �as Epopeias
sempre t�m, por personagens, reis, guerreiros, princesas e idalgos que
passam por grandes vicissitudes em algum cerco ou retirada ilustre�.
Ora, Sr. Corregedor, a hist�ria de meu Padrinho e de Sin�sio tinha todos
aqueles ingredientes de fa�anhas, assassinatos, brilhantes reveses,
terr�veis per�dias, combates sanguinolentos etc. Mas eu para arranjar,
aqui neste Pa�s republicano e neste Sert�o brabo, uns dois ou tr�s
idalgos deca�dos e Reis assassinados, s� podia faz�-lo sendo
monarquista, n�o tomando conhecimento da proclama��o da Rep�blica
e adotando alguns t�picos do pensamento de Joaquim Nabuco, de
Oliveira Lima, do Doutor Samuel Wan d�Ernes, de Gustavo Barroso e de
outros extremistas idalgos da Direita brasileira!

� E o Doutor Samuel Wan d�Ernes tamb�m � monarquista?
� Samuel � mais ou menos como Frederico Feital, personagem
de A Renegada, de Carlos Dias Fernandes. Segundo este genial
romanceiro paraibano, Frederico Feital �n�o era monarquista por
convic��o. No fundo, pouco lhe importavam, a seu temperamento de
artista, os regimes pol�ticos. Era seu g�nio paradoxal que o enileirava
anonimamente � m�nima e obstinada Falange, altiva e coerente, dos
Ouropretos e Andrades Figueiras. Sendo o Partido Mon�rquico
Brasileiro o baluarte feudal dos Nobres que se destacavam por virtudes
intr�nsecas, Feital, que detestava as coisas vulgares e n�o acreditava na
evolu��o das massas plebeias, corruptoras do bom senso e do bom
gosto, comungava as ideias mon�rquicas para se sentir honorariamente
incluso naquele rol de Excetuados ilustres�.
� Ainal, ele �, ou n�o, monarquista?
� �, se bem que de um modo muito diferente do meu. Por
exemplo, Samuel mant�m idelidade � Casa de Bragan�a...
� E o senhor?
Era uma pergunta direta, perigosa e � qual eu n�o podia
responder com muita precis�o, de modo que procurei tergiversar:
� Eu posso dizer, de certo modo, que mantenho idelidade �
minha pr�pria Casa.
� Sua casa? E o senhor tamb�m � de fam�lia real? Sua �casa� � a
mesma do tal �Rei Degolado�, seu padrinho?
� De certa forma, �, Doutor, uma vez que ele era meu tio! �
disse eu voando sobre as palavras e acrescentando logo, para mudar de
assunto: � Samuel, por�m, acha que, da Casa de Bragan�a, somente
Dom Pedro I foi um verdadeiro Rei, digno da idelidade dele, um Rei
autorit�rio, corajoso e Cavaleiro, como Dom Sebasti�o! Pelo contr�rio,
odeia Dom Pedro II, que, segundo suas palavras, �foi um liberal
subversivo e acabou com o morgadio, ferindo de morte, em favor da
plebe, os feudos da Aristocracia brasileira�. O pensamento mon�rquico
de Samuel me interessa muito, porque prova a exist�ncia e a
legitimidade da Fidalguia brasileira, e, consequentemente, dos Fidalgos
e Reis que comparecem � minha Epopeia! � verdade que meus idalgos
e guerreiros s�o Sertanejos, e Samuel faz muitas restri��es aos
senhores-feudais do Sert�o, s� reconhecendo, mesmo, como de
primeira classe, a Aristocracia dos engenhos de Pernambuco, da qual

ele faz parte. Mas, mesmo dizendo que a Aristocracia sertaneja �
�b�rbara, violenta, sem educa��o, corrompida e bastarda�, o fato � que
aceita sua exist�ncia. E se n�o aceitasse, eu tenho dois outros mestres,
t�o idalgos quanto ele e muito mais consagrados, porque s�o ambos
Acad�micos, um pertencente ao Instituto Hist�rico e Geogr�ico da
Para�ba e o outro � Academia Brasileira de Letras. Esses dois podem me
valer perfeitamente para provar a exist�ncia dos Fidalgos sertanejos,
num momento qualquer que me apare�a, de necessidade epopeica!
� Quem s�o esses dois?
� Um, � o genial escritor paraibano Epaminondas C�mara que,
nos seus famosos Subs�dios para a Hist�ria do Munic�pio de Tapero�,
airma que os dois grandes elementos de povoa��o da nossa Vila foram
�a Aristocracia rural e a Burguesia urbana, formada por alguns
comerciantes que izeram fortuna�. O outro � aquele mesmo Gustavo
Barroso, o da Legenda Ensanguentada: airma ele que os Fazendeiros
sertanejos s�o Pr�ncipes e Reis, que os Cantadores s�o menestr�is
idalgos, troveiros e trovadores � uns aedos, semelhantes aos gregos
� e que os Cangaceiros s�o Cavaleiros medievais!
� O qu�, homem?
� � isso mesmo e n�o se espante n�o, Excel�ncia! Os
Cangaceiros sertanejos s�o Cavaleiros medievais, como os Doze Pares
de Fran�a! E tanto isso � verdade que, na Fran�a, na Idade M�dia, havia
Cangaceiros!
� Oxente! Cangaceiros na Fran�a? Que conversa � essa, Seu
Pedro Dinis Quaderna?
Eu, que n�o gostara do Seu aplicado a mim, respondi no mesmo
tom:
� Eu lhe provo isso j�, Seu Corregedor! O senhor conhece o
romance chamado Hist�ria de Roberto do Diabo?
� Romance?
� Sim, o �folheto� do genial poeta e Cantador paraibano Jo�o
Martins de Athayde?
� N�o tenho essa honra n�o!
� Pois, n�o lhe faltando com o respeito, � uma falha
imperdo�vel na forma��o pol�tico-liter�ria do senhor! O romance de
Roberto do Diabo come�a assim:

�Na terra da Normandia,
na remota Antiguidade,
vivia um tal Duque Auberto,
cheio de fraternidade:
era ele o Soberano
de toda aquela Cidade.�
* * *
Parei, olhando o Corregedor com ar vitorioso, mas ele indagou,
impass�vel:
� E da�?
� E da�? O senhor ainda pergunta? Me diga uma coisa: a
Normandia n�o � na Fran�a?
� �!
� Pois bem! O Duque Auberto, pai de Roberto do Diabo,
tentando distrair o ilho da vida de maldades em que ele se mete,
resolve organizar umas Cavalhadas, ou justas, como dizem o Doutor
Samuel e Jo�o Martins de Athayde, ambos entendidos em idalguias. E
l� diz o romance:
�Juntaram-se os Pr�ncipes todos,
nacionais e estrangeiros.
Mandaram chamar Roberto,
o bandido cangaceiro:
deram a ele um Cavalo,
gordo, possante e ligeiro.
E come�aram as Justas:
Roberto saiu primeiro.
Meteu a Lan�a no peito
de um Pr�ncipe estrangeiro:
este morreu de repente,
sendo o melhor Cavaleiro!

Num certo dia encontrou,
num esquisito Roteiro,
trinta homens bem armados,
sendo o chefe um Cangaceiro:
antes de falar com eles,
amea�ou-os primeiro.�
Disse esses versos e comentei vitorioso:
� Est� vendo, Sr. Corregedor? � por isso que eu digo que os
idalgos normandos eram cangaceiros e que tanto vale um Cangaceiro
quanto um Cavaleiro medieval. Ali�s, os Cantadores e fazedores-deromance
sertanejos sabem disso muito bem, porque, como me fez notar
o Professor Clemente, nos folhetos que Lino Pedra-Verde me traz para
eu corrigir e imprimir na tipograia da Gazeta de Tapero�, as Fazendas
sertanejas s�o Reinos, os fazendeiros s�o Reis, Condes ou Bar�es, e as
hist�rias s�o cheias de Princesas e cavaleiros; de ilhas de fazendeiros e
Cangaceiros, tudo misturado!
� Entendo! � disse o Corregedor, sorrindo levemente. � Sem o
senhor ser monarquista, o fazendeiro Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto
n�o podia aparecer em sua epopeia como �El-Rei Dom Pedro Sebasti�o,
o Degolado�: n�o haveria queda de tronos, coroas e monarquias, nem
guerras idalgas, nem terr�veis per�dias, nem combates sanguinolentos,
nem fa�anhas de guerreiros e capit�es em algum cerco ou retirada
ilustre. Est� bem, entendo a primeira parte, a da monarquia. Mas falta
explicar a segunda, a da esquerda. Monarquia da esquerda por qu�?
� Bem, essa � a parte de inlu�ncia que recebi do meu outro
mestre, o Professor Clemente. Note que, segundo o Almanaque, al�m de
Reis e idalgos nobremente desgra�ados, uma Epopeia exige a��es
guerreiras, como, por exemplo, cercos, retiradas �picas e combates
sangrentos. Ora, segundo Clemente, as pessoas da Hist�ria brasileira e
sertaneja que fazem essas coisas s�o sempre da Esquerda e do Povo! A
Direita das cidades, a �Burguesia urbana� (para usar a express�o do
genial Epaminondas C�mara), o que quer � viver tranquilamente,
roubando, na vida pacata e ordeira de quem j� est� bem instalado e s�
deseja mesmo � ordem pra poder furtar mais � vontade. J� a Esquerda,
o Povo, principalmente no Sert�o, tem sido desordeiro como o diabo! �

verdade que Clemente n�o aceita essa parte que eu vou dizer agora,
mas para mim, como Epopeieta, o que mais me entusiasma � que o
Povo sertanejo, em suas desordens, tem se aliado sempre com os
idalgos Fazendeiros contra a Burguesia! � na-cabe�a, para a receita da
minha Epopeia! Como me explicou o Professor Clemente, todas as
rebeli�es que o Povo brasileiro vem empreendendo h� quatro s�culos �
uma Revolu��o s�, dividida em diversas fases, a �Revolu��o Sertaneja
dos Povos Mouros do Brasil�, travada contra os Fidalgos ib�ricos que
aqui chegaram no s�culo XVI e se instalaram no Poder at� hoje!
Come�ou ela no pr�prio s�culo XVI, cheiada pelos Tapuias da �Guerra
da Idolatria da Santidade�. No s�culo XVII, houve outra fase, desta vez
cheiada pelos Negros, a �Guerra dos Palmares�. No s�culo XVIII, houve
outra, a �Guerra dos Tapuias�, acontecida principalmente aqui, no
Sert�o da Para�ba e do Rio Grande do Norte.
� E do s�culo XIX at� agora? � perguntou o Corregedor,
curioso a despeito de si mesmo.
Infelizmente, por�m, o assunto estava come�ando a icar
perigoso para mim por causa da fam�lia real sertaneja a que perten�o e
da Coroa da Pedra do Reino, de modo que passei a responder com mais
cuidado:
� Bem, Sr. Corregedor, do s�culo XIX em diante o pensamento
de Clemente se afasta um bocado do meu, de modo que n�o sei como
deva falar.
� Seja claro sobre o seu pensamento e deixe o resto por minha
conta! Em que � que seu pensamento difere das ideias do Professor
Clemente?
� Em primeiro lugar, ele s� considera como Brasileiros, mesmo,
os povos Tapuias, os Negros e os descendentes dessas duas ra�as.
Depois, ele � contr�rio � alian�a sertaneja dos Fidalgos com o Povo,
coisa que n�o posso deixar de lado como ele quer, sen�o nunca poderei
fazer minha Epopeia! J� Samuel, o que quer � isolar, como �nicos
Brasileiros puros, uma casta de Fidalgos brancos, �descendentes dos
Cruzados Ib�ricos que vieram nas caravelas�, como ele diz, e que,
cavalgando o Povo, �far�o a grandeza do Brasil, o ilho glorioso da
Ib�ria�. Clemente quer separar o Povo e, com ele, exterminar ou exilar
�os Cruzados e os burgueses brancos�, como ele chama. Meu

pensamento, de cada um deles aceita uma parte e recusa outra. Agora,
n�s somos un�nimes � em ser contra os Burgueses.
� Por qu�?
� Clemente � contra eles por serem brancos e ricos. Samuel �
contra porque eles n�o s�o Fidalgos. E eu, porque eles nunca montam a
cavalo, n�o andam com bandeiras nem se metem em Cavalhadas,
vaquejadas e outras cavalarias: por isso, s�o p�ssimos, como
personagens de Epopeia! Meu sonho � misturar os Fidalgos ib�ricobrasileiros
com os Fidalgos brasileiros negro-vermelhos, porque a� eu
mostro que todos os Brasileiros s�o idalgos e nossa gloriosa Hist�ria
do Brasil � uma Epopeia da gota-serena!
� E � verdade que todos os Brasileiros s�o idalgos? Eu
tamb�m? � perguntou o Corregedor.
Eu, que n�o era besta para classiic�-lo como Burgu�s depois de
ter falado mal dessa classe, respondi em cima da bucha:
� O senhor tamb�m, � claro! Para ser um Fidalgo completo, as
�nicas coisas que lhe faltam, Sr. Corregedor, s�o um cavalo e uma
bandeira! Segundo o Almanaque, existem tr�s graus de idalguia: a
nobreza-de-toga, a nobreza-de-espada e a nobreza-territorial. O senhor
pertence � nobreza-de-toga, e � por isso que, enquanto o comum dos
Burgueses veste aquelas roupas bestas deles, o senhor tem direito de
usar esta bel�ssima roupa negra, toda bordada de vermelho, esta
admir�vel toga negro-vermelha que torna o senhor t�o elegante, t�o
nobremente, t�o imponentemente idalgo! � disse eu, dando corda no
Corregedor. � J� Dom Lu�s Carlos Prestes, o Chefe dos comunistas
brasileiros, � um guerreiro, um idalgo de espada, motivo pelo qual,
montado a cavalo na �Coluna Prestes�, teve direito ao nobre t�tulo de �O
Cavaleiro da Esperan�a�. Por outro lado, como Capit�o do Ex�rcito,
Prestes � um t�pico �capit�o ilustre�, daqueles que, segundo o
Almanaque, podem ser personagens de Epopeia! Quer ver outro idalgo
de espada brasileiro e sertanejo, Sr. Corregedor? Dom Jesu�no Brilhante,
Cangaceiro e capit�o ilustre, personagem da pequena mas genial
epopeia do sertanejo cearense Rodolpho Teophilo!
� E o cangaceiro Jesu�no Brilhante usava toga?
� Vossa Excel�ncia me perdoe a franqueza mas, como idalgo de
espada que era, Jesu�no Brilhante vestia coisa muito mais importante,
um belo e nobre gib�o todo medalhado, um chap�u de couro estrelado

� cabe�a, esporas de prata e um enorme punhal feito de ponta de
espada, com cabo de ouro!
� De qualquer modo, agrade�o o t�tulo de nobreza com que o
senhor acaba de me agraciar. E Dona Margarida? Tamb�m pertence �
Aristocracia brasileira?
� � claro, e � melhor Aristocracia rural sertaneja! Margarida,
sendo uma Torres Martins e ilha de fazendeiro, � uma t�pica Princesa
sertaneja, ilha de Bar�o! Ela descende, em linha direta, de Dom Jo�o
Martins Torres, um dos primeiros Fidalgos portugueses que, por
concess�o de Sua Majestade Fidel�ssima Dona Maria I, a Louca, se
tornou senhor-feudal e dono-de-sesmaria aqui, no Sert�o do Cariri!
Pela primeira vez naquela tarde Margarida me olhou com um
pouco menos de avers�o. Mas o Corregedor era homem duro e
continuou, inlex�vel:
� Est� bem, mas voltemos ao assunto. Quais foram os
movimentos da tal revolu��o sertaneja do Brasil, no s�culo XIX?
� Bem, a� � quando, em vez das rebeli�es somente negras ou
tapuias (como quer o Professor Clemente), come�am as verdadeiras
insurrei��es do Povo castanho brasileiro! Foram elas: a �Insurrei��o da
Serra do Rodeador�, em 1819; a �Guerra da Pedra do Reino�, de 1835 a
1838; e aquele cerco ilustre, povoado de combates sanguinolentos e
retiradas heroicas, que foi a �Guerra do Imp�rio do Belo Monte de
Canudos�, a� por 1897, ano do meu nascimento. No s�culo XX j�
tivemos, aqui no Sert�o da Para�ba, quatro novos epis�dios da �Grande
Revolu��o Sertaneja do Povo Fidalgo-Castanho do Brasil�. Foram eles: a
�Guerra de Doze�, acontecida, como lhe diz o nome, em 1912; a �Guerra
do Santo Padre do Juazeiro�, iniciada no Cear� e continuada aqui, em
1913; a �Guerra da Coluna Prestes�, retirada ilustre sucedida, aqui, no
ano de 1926; e a �Guerra de Princesa�, de 1930, na qual morreu Dom
Pedro Sebasti�o, pai de Sin�sio e Rei-degolado do Sert�o do Cariri! De
fato, por�m, ainda se podem acrescentar dois epis�dios que, apesar de
mais particulares, foram tamb�m importantes: a �Guerra do Verde�, de
1932, e a �Guerra do Reino�, de 1935.
� Bem, a� � que chegamos realmente ao que desejo. E pergunto:
seu primo e sobrinho Sin�sio Garcia-Barretto (o tal do Dom Sin�sio, o
Alumioso, como o senhor prefere chamar) esteve metido nisso tudo?

� Esteve, sim senhor! Tanto ele como seu Pai e seus dois
irm�os: Silvestre, o Bastardo, aliado seu, e o outro, seu inimigo
irreconcili�vel, Ar�sio, o C�prico!
� C�prico?
� Excel�ncia, �c�prico� quer dizer �b�dico�. Aprendi isso com
Carlos Dias Fernandes, genial escritor e idalgo paraibano que, sendo da
Direita, tinha o costume de falar di�cil! Carlos Dias Fernandes, um dos
mestres queridos de Samuel, escrevia sempre �o Capro�, em vez de �o
Bode�, motivo pelo qual entendi que um capro � um bode-idalgo, um
bode da Direita, e um bode � um capro-popular, um capro da Esquerda!
De fato, por�m, para mim tanto faz uma coisa como outra: porque,
sendo monarquista, sou a favor dos Bodes idalgos e ib�ricos que
vieram nas caravelas; mas sendo tamb�m da Esquerda, sou tamb�m a
favor dos Capros negros e vermelhos dos Povos mouros do Brasil, t�o
idalgos como quem mais o seja!
� Anote a�, portanto, Dona Margarida, que o depoente confessa
ser comunista, se bem que de um tipo especial, porque � tamb�m
monarquista! Est� certo?
� Mais ou menos, Excel�ncia! Eu preferia que o senhor anotasse
exatamente como eu disse, Monarquista da Esquerda! Meu sonho �
fazer do Brasil um Imp�rio do Belo Monte de Canudos, um Reino de
rep�blica-popular, com a justi�a e a verdade da Esquerda e com a
beleza idalga, os cavalos, os desiles, a grandeza, o sonho e as bandeiras
da Monarquia Sertaneja!
� �timo! � disse o Corregedor. � Entretanto houve gente, aqui
na Vila, que me assegurou que o senhor, com tantos sonhos grandiosos,
tem outras v�rias atividades que agora est� ocultando de mim, por
mod�stia!
� Outras atividades? Quais s�o? � indaguei ansioso, julgando
que ele j� descobrira tudo o que se referia � minha linhagem real e �
seita secreta da Pedra do Reino, que eu ressuscitara com o nome de
�Ordem dos Cavaleiros da Pedra do Reino do Sert�o�.
Felizmente, por�m, o Corregedor enveredou por um caminho
bem menos perigoso:
� Disseram-me, primeiro, que o senhor � igura indispens�vel,
aqui, entre o Natal e o Dia de Reis, na qualidade de Arlequim ou Rei do
�Bumba-meu-boi�, de chefe de cavalhadas, de Imperador do Divino, de

Rei Dom Pedro da Nau Catarineta e de �velho� do Pastoril. Consta que o
senhor, um funcion�rio, um homem de certa categoria, vive na mais
vergonhosa promiscuidade com as mulheres de m�-vida e com o que
existe de pior na ral� daqui � os b�bados, os doidos, os ladr�es de
cavalo, os contrabandistas de cacha�a, os cantadores, cavalarianos e
vagabundos de toda esp�cie!
� De toda esp�cie, n�o, Excel�ncia! Somente com aqueles que,
pelo menos uma vez na vida, montaram a cavalo, tornando-se, assim,
Cavaleiros e Grandes do Imp�rio!
Sem ligar a m�nima para distin��o t�o importante, o Corregedor
continuou:
� Disseram-me ainda que o senhor � dono de uma casa de
recurso e tavolagem, intitulada �Estalagem � T�vola Redonda�, lugar
onde os rapazes ricos e desocupados da Vila t�m encontros suspeitos
com mulheres de maus costumes, mediante uma taxa de pagamento ao
senhor!
* * *
Passei um rabo-de-olho para Margarida que, eu tinha certeza,
fora a informante do Juiz quanto �quele ponto; e resolvi me vingar dela.
O Corregedor continuou:
� � verdade que o senhor � amigo �ntimo dos cantadores,
b�bados e vagabundos que atendem pelos nomes de Lino Pedra-Verde,
Severino Putri�o, Bola-Sete, Patativa e Marcolino Arapu�?
Joguei um verde para colher maduro:
� Sou amigo de todos esses, mas de Marcolino Arapu�, n�o!
Margarida cochichou com o Corregedor, que se voltou para mim,
severo:
� Dona Margarida est� aqui dizendo que, de todos, talvez esse
tal de Arapu� seja o maior amigo seu!
Estavam conirmadas minhas suspeitas sobre as dela��es de
Margarida. Conhecendo, como conhecia de nossa c�lebre viagem, seu
feroz pudor virginal de jovem �virtuosa dama do c�lice sagrado�, resolvi
me vingar por esse caminho. E comecei a bancar o discreto, a im de
espica�ar a curiosidade do Corregedor:

� Excel�ncia � disse a ele �, de fato eu era muito amigo de
Marcolino Arapu�, mas agora estamos meio rompidos, por um motivo
que n�o sei se posso revelar...
� N�o pode revelar? Ora n�o pode! Pode, e tem que revelar! Isso
aqui � um inqu�rito, e o senhor n�o pode ocultar nada!
� � que, mesmo sendo hoje quase meu inimigo, eu tenho
escr�pulos de implicar Marcolino em algum problema s�rio com a
Justi�a!
� Diga imediatamente, sen�o quem se implica � voc�!
� Est� bem, o senhor manda! Pergunte, que eu responderei!
� Por que o senhor rompeu com Marcolino Arapu�?
� Porque no quintal da minha casa tem umas bananeiras,
Excel�ncia. Um dia, de tarde, fui chegando l�, e ouvi uma voz dizendo
assim, entre as bananeiras e o muro: �Ah, minha ilha, se voc� n�o
tivesse o p� redondo, agora eu lhe dava um par de sapatos!� Cheguei
para perto, e, quando vi, era Marcolino Arapu� que estava fudendo uma
burra minha!
* * *
Ao dizer isso, olhei para Margarida: ela estava da cor de um
tomate e completamente vesga, com as m�os como que paralisadas e
encarquilhadas sobre o teclado da m�quina. Sentindo-me vingado,
continuei para o Corregedor, como se aquilo fosse a coisa mais natural
do mundo:
� Eu que n�o gosto de molecagens com as burras da minha sela,
a� fui e rompi com Marcolino!
� Sr. Quaderna � disse o Corregedor, tossindo discretamente
�, isso n�o interessa ao inqu�rito, nem era sobre isso que eu estava
perguntando!
� E eu sabia l�, Doutor? O senhor mandou, eu lasquei! Bem que
eu n�o queria falar!
� Est� bem, basta! Vamos passar � hist�ria do Rapaz-do-Cavalo-
Branco porque tenho v�rias coisas a esclarecer sobre isso. Tem alguma
coisa a objetar?
� N�o senhor, de jeito nenhum! Pra mim, � at� bom, porque
assim meus depoimentos, tornados oiciais e consagrados por um

documento do Governo como o inqu�rito, ter�o essa hist�ria como
abertura! Ora, � exatamente por ela que eu pretendo come�ar minha
Epopeia! E sabe por que, Sr. Corregedor? Primeiro, porque aquele
s�bado, dia 1� de Junho de 1935, talvez tenha sido o acontecimento que
desencadeou a desaventura toda. Depois, porque � um acontecimento
bastante bandeiroso e cavalariano para dar um tom r�gio � minha Obra.
E inalmente porque os dois melhores �romances� do meu precursor e
mestre, o Fidalgo sertanejo Dom Jos� de Alencar, come�am com
cavalgadas, e eu n�o posso deixar que ele ique na minha frente de jeito
nenhum! O senhor j� leu O Guarani e O Sertanejo?
� Naturalmente, quando era rapazola! Depois de adulto, n�o!
� Precisa reler, Sr. Corregedor, precisa reler! Jos� de Alencar �,
at� agora, o maior romanceiro, o maior fazedor-de-romances, o maior
romancista-de-cavalaria do mundo, t�tulo de gl�ria do qual s�
desfrutar�, � claro, at� o aparecimento do meu Castelo sertanejo e
epopeico, momento em que passar� para o segundo posto! Ora, se eu
come�ar minha Fortaleza e obra com os acontecimentos daquele dia de
1935, levo, logo de entrada, uma vantagem da gota-serena sobre ele! O
senhor h� de se lembrar que O Guarani come�a apenas com uma
cavalgadazinha besta, dez ou doze Cavaleiros que acompanham �lvaro
de S� em demanda, para o �Solar do Paquequer�, a casa-nobre do
Fidalgo Dom Ant�nio de Mariz. O Sertanejo tamb�m come�a com uma
s� cavalgada, a que acompanha o Capit�o-Mor Gon�alo Pires Campelo e
sua ilha, a Princesa Dona Flor, na sua viagem de volta para a �Fazenda
Oiticica�, casa-nobre e torre-das-honras daquele poderoso Fidalgo
sertanejo do s�culo XVIII. Ora, sendo esses os dois romances-decavalaria
mais �pico-sertanejos do meu Precursor, vou, logo de sa�da,
ganhando a briga para ele, porque vou come�ar meu Romance com uma
cavalgada na estrada e uma Cavalhada na rua, num total de oitenta e
quatro Cavaleiros, isto �, sete vezes Doze Pares de Fran�a para um
come�o de Epopeia s�!
� Muito bem! � disse o Corregedor, impass�vel. � E j� que
chegamos a esse ponto, pode come�ar! Estou ansioso para ouvir!
Ent�o, sempre andando de l� pra c� a im de n�o incomodar meu
honroso cotoco r�gio, diab�lico, judaico e mouro-sertanejo, comecei a
desiar a hist�ria daquele dia memor�vel:

A
FOLHETO LI
O Crime Indecifr�vel
V�spera de Pentecostes, dia 1� de Junho do ano da gra�a de 1935,
foi dia de muit�ssima gente em nossa Vila Real da Ribeira do
Tapero�, Sert�o dos Cariris Velhos da Capitania e Prov�ncia da Para�ba
do Norte. Nossa Vila era governada, naquele ano, por dois ilustres
var�es de nobre linhagem. Suas Senhorias, o Prefeito Abdias da Silva
Campos e o Presidente do Conselho Al�pio da Costa Villar, tinham
resolvido que, naquele s�bado, a Vila de Tapero� se apresentasse
�festiva e galana�, com umas Cavalhadas que festejassem dois
acontecimentos important�ssimos para n�s: a Missa, que o Bispo de
Cajazeiras celebraria no dia seguinte, em comemora��o ao fogo do
Divino Esp�rito Santo, e as resolu��es do Conselho que, vencendo os
inimigos do Sert�o, tinham mandado retornar aos s�bados as feiras da
nossa Vila.
Marcando a Cavalhada para essa data, parecia at� que aqueles
dois nobres var�es j� pressentiam os extraordin�rios acontecimentos
que, por volta das quatro horas da tarde, vieram a se desencadear com
a chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco e que trariam � nossa Vila
indom�vel destro�os sangrentos e reluzentes centelhas da minha �velha
hist�ria perigosa�; hist�ria que todos julgavam �morta j� e sepultada�,
mas que, naquele dia, iria ressuscitar para mal das pessoas mais
inluentes e poderosas do lugar. � a hist�ria que formar�, um dia, o
�centro tr�gico e n� heroico� da minha Epopeia, o alicerce de pedra e
cal do meu Castelo real e sertanejo. Devo, portanto, passar a narr�-la,
pelo menos em seus epis�dios principais.
* * *
� Sin�sio, o alumioso Donzel que � o her�i deste meu Canto, era
o terceiro e �ltimo ilho de Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto,

poderoso e rico Fidalgo sertanejo que passou � Cr�nica paraibana com
o honroso t�tulo de �O Rei Demente e Prof�tico da Legenda
Ensanguentada do Sert�o�. Esse �rico-homem� foi assassinado na sua
�Fazenda da On�a Malhada�, no aziago dia 24 de Agosto de 1930,
quando o nosso Reino do Sert�o dos Cariris Velhos estava inteiramente
conlagrado, incendiado e devastado pela �Guerra de Princesa�, travada
naquele ano de 30 entre os Sertanejos e o governo do Presidente Jo�o
Pessoa. Terei ainda que voltar a esses acontecimentos, porque eles
formam, nas express�es do Almanaque, �o centro e o n� do meu Enigma�.
Por enquanto, por�m, direi que a morte do velho Rei barbado e
prof�tico aconteceu em circunst�ncias cru�is e absolutamente
enigm�ticas, indecifr�veis: foi ele encontrado morto, assassinado a
golpes de faca e trancado, sozinho, dentro do aposento, �nico mas
elevado, de uma ediica��o quadrejada e alta que servia, ao mesmo
tempo, de torre para a Igreja e de mirante para a Casa-Forte da fazenda.
� Um momento, Sr. Pedro Dinis Quaderna! � interrompeu o
Corregedor. � Noto que o senhor de vez em quando retira um papel de
sua pasta e l� alguma coisa escrita. O que � isso?
� S�o cita��es importantes ou peda�os j� escritos que consegui
arrumar durante todos estes anos, mesmo com o cotoco incomodando!
Se Vossa Excel�ncia n�o tem nada a objetar, preiro ler, assim, estas
partes! Fica mais claro e mais bonito!
� Est� bem, desde que n�o prejudique a clareza do depoimento,
n�o tenho nada a objetar. Outra coisa: mandei o Escriv�o Belarmino
Gusm�o desenterrar os velhos autos do processo de 1930, e, por sua
leitura, vi que o senhor estava entre as pessoas que encontraram o
corpo do fazendeiro. O senhor vai me contar isso, mas, antes, preciso de
algumas informa��es sobre a casa e o lugar onde tudo aconteceu!
� Sr. Corregedor, a velha �Casa-Forte da Torre da On�a Malhada�
�, como diz Samuel, �uma casa-forte t�pica do �spero s�culo XVIII
sertanejo, um misto pesado, b�rbaro e despojado de casa-de-miss�o
jesu�tica e Fortaleza�. Se Vossa Excel�ncia for l�, icando de frente para
ela ver�, do lado esquerdo, a casa baixa, acachapada e s�lida, pegada
pela torre quadrada � igreja. Do lado direito desta, ica o sobrado de
dois pavimentos. Assim, a capela ica no centro, ligando as duas casas, a
baixa e o sobrado, com sua torre quadrada pegada ao casar�o baixo e
afortalezado da �On�a Malhada�. Essa torre, como eu vinha dizendo,

servia de mirante aos Garcia-Barrettos na �Guerra dos Tapuias�, travada
no s�culo XVIII contra os sujos e bronzeados arqueiros Panatis, povo
mouro-vermelho que se opunha, desde o s�culo anterior, � penetra��o
dos Sertanistas-idalgos, paraibanos e pernambucanos, que depois se
cruzaram com eles, vindos do Mar para o Sert�o, atrav�s do leito seco e
largo dos rios Para�ba e Tapero�.
� Me diga uma coisa: � verdade que, dentro da casa baixa, existe
uma porta que d� para a escada da torre da capela?
� �, sim senhor! A escada � de tijolo, e a passagem da casa para
ela, �nica via de acesso � torre, � vedada por uma porta maci�a de
bra�na. Ali�s, por duas portas, uma embaixo e outra em cima, no topo
da escada!
� A escada �, mesmo, de tijolo maci�o ou serviria somente para
mascarar a exist�ncia de alguma passagem secreta?
� N�o senhor, a escada era, e �, absolutamente maci�a, Sr.
Corregedor! Eu sei que nos romances estrangeiros de crime e sangue,
costumam sempre lan�ar m�o dessas facilidades, para resolver os
enigmas, mas no meu caso absolutamente n�o existem essas coisas!
Tanto o ch�o como o teto abobadado e as grossas paredes da pesada
torre s�o feitos de pedra, tijolo e cal, de modo que n�o havia lugar para
passagem secreta de qualidade nenhuma!
� Pois como foi que os assassinos entraram l�?
� A� � que est� o n�, Excel�ncia: ningu�m sabe como foi!
� O aposento da torre, o tal mirante, era utilizado para alguma
coisa?
� N�o senhor! Fazia uns cinco ou seis anos que ningu�m subia
l�!
� N�o havia, l�, m�vel nenhum? Por exemplo, alguma mesa ou
secret�ria que tornasse a torre uma esp�cie de gabinete do dono da
�On�a Malhada�?
� N�o senhor!
� Ent�o, o que foi que ele foi fazer l�, no dia da morte?
� E eu sei, Excel�ncia? O que eu sei, porque vi, � que ele foi, e
morreu l�, trancado! N�o havia dentro daquele quarto nem m�veis nem
janelas. Apenas, como lembran�a ainda remanescente da �Guerra dos
Tapuias�, havia em cada uma das quatro paredes uma seteira estreita e
comprida, num total de quatro. As aberturas exteriores da seteira

terminavam em arco, porque o sino da capela era a �nica coisa que
havia no mirante e as seteiras serviam de abertura para os toques dele,
como acontece com as janelas acabadas em arco das capelas comuns.
� Ser� que o assassino poderia ter entrado por essas seteiras?
� N�o pode ter sido n�o, Excel�ncia, porque as seteiras t�m
somente uns quinze cent�metros de abertura pela parte de dentro, de
modo que n�o pode, absolutamente, uma pessoa passar por elas. Os
assassinos n�o podiam, tamb�m, ter entrado pela escada, por causa das
pesadas portas de bra�na!
� As portas estavam trancadas, quando acharam o corpo?
� Mas � claro, Sr. Corregedor! Vossa Excel�ncia desculpe, mas
est� pensando que meu enigma de crime e sangue � algum desses
enigmazinhos estrangeiros que qualquer pessoa decifra? Est� muito
enganado! Meu enigma � fogo, Excel�ncia, � um enigma brasileiro, o
mais bem tecido que j� houve no mundo! As duas portas eram maci�as,
estavam fechadas, e a escada era a �nica via de acesso � torre! Al�m
disso, como o senhor j� deve ter lido nos autos, minha tia, Dona Filipa
Quaderna, caseira da �On�a Malhada�, tinha visto Dom Pedro Sebasti�o,
meia hora antes de ser assassinado, entrar para o mirante, fechando
ambas as portas por dentro, n�o s� com a grande e antiga chave, mas
tamb�m com as pesadas trancas de ferro que, descidas por dentro,
tornavam as portas inarromb�veis.
O Corregedor assumiu um ar esperto, astuto, desconiado; e
disse:
� Ela n�o pode ter visto o fazendeiro fechar as duas portas,
porque, depois de fechada a de baixo, n�o se pode mais ver a de cima!
� Tem raz�o, Sr. Corregedor, e eu ia, j�, esclarecer esse fato!
Realmente, naquele dia, quando sentimos falta de meu Padrinho e
come�amos a procur�-lo, topamos com a porta de baixo trancada por
dentro. Mas mandamos chamar um machadeiro que arrombou a porta,
e foi quando subimos a escada que vimos a segunda porta, tamb�m
trancada por dentro. Foi s� depois de arrombar essa segunda porta que
encontramos o corpo.
� Quem foi que primeiro sentiu falta de Dom Pedro Sebasti�o?
� perguntou o Corregedor, revelando, pelo tratamento de Dom, que
usara, como essas hist�rias de Fidalguia e monarquismo da Esquerda
s�o contagiosas. Mas ingi n�o notar nada e respondi:

� Quem primeiro sentiu falta de Dom Pedro Sebasti�o foi
Ar�sio. Mas, antes mesmo que ele desse o alarme, minha tia, Dona
Filipa Quaderna, tamb�m come�ou a sentir falta e nos disse!
� Al�m do senhor e de Ar�sio, quem mais entrou no aposento
da torre?
BANDEIRA DA ON�A.

� Est� l�, tamb�m, no processo, Doutor: quem encontrou o
corpo fomos eu, Ar�sio, Tia Filipa, o Doutor Samuel e o Professor
Clemente.
� V� anotando, Dona Margarida, tudo isso � muito importante!
O senhor diz que, com as portas trancadas, o mirante era praticamente
inacess�vel. Mas os assassinos poderiam t�-lo matado pelas seteiras,
atirando de longe, atrav�s delas!
� Meu Padrinho foi morto a faca, Sr. Corregedor!
� Imaginemos, ent�o, que, por fora, encostando escadas �s
paredes da torre da capela, tenham subido dois, tr�s ou quatro
assassinos. Nesse caso, pelas seteiras, pegando o velho fazendeiro
descuidado e por todos os lados da torre de uma vez, podem t�-lo
matado com chu�os ou com facas de ponta amarradas fortemente a
varas compridas!
� N�o pode ser n�o, Sr. Corregedor! N�o havia escada nenhuma,
fora!
� Pode ter subido algu�m pela corda do sino!
� Na �On�a Malhada� fazia muitos anos que n�o havia missa. A
corda do sino tinha ca�do, de velha e esiapada, e nunca mais tinha sido
substitu�da!
� Bem, ent�o podem ter levado as escadas, retirando-as depois!
� Tamb�m n�o pode ter sido n�o, Excel�ncia! Havia v�rios
homens trabalhando nas imedia��es da casa, eles teriam visto colocar
as escadas! Al�m disso, por tr�s, a �Casa da On�a Malhada� � toda
murada, porque ica quase a pique sobre um despenhadeiro, formado
ali pelo enorme lajedo sobre o qual ela � ediicada. Assim, a �nica
parede na qual os assassinos poderiam ter encostado uma escada era a
que d� frente para o p�tio pedrado e lajeado da fazenda, de modo que
teria sido imposs�vel trazer a escada e encost�-la sem que os homens
vissem. N�o se esque�a, tamb�m, de que mesmo esse p�tio � murado,
pois a torre, a capela e as duas moradias da �Casa-Forte� s�o
afortalezadas e a torre foi constru�da exatamente de modo a permitir
que os Garcia-Barrettos atirassem nos Arqueiros tapuias do modo mais
seguro poss�vel! Finalmente, o senhor se lembre de que, em 1930, com
a �Guerra de Princesa�, a �On�a Malhada� estava fervilhando de gente

armada, com centenas e centenas de cabras-do-rile e cabras-do-eito
armados e preparados para o que desse e viesse!
� Ent�o, foi suic�dio!
� A natureza dos ferimentos afastava essa possibilidade, Sr.
Corregedor: naquele lugar inacess�vel, meu tio, cunhado e Padrinho,
Dom Pedro Sebasti�o, foi encontrado, ainda quente e sangrando,
poucos momentos depois de ter sido assassinado. Tinha levado v�rias
cacetadas na cabe�a, estava degolado, com a garganta cortada, e
terrivelmente esfaqueado em todo o corpo, sendo que o ferimento que
golfava mais sangue era naturalmente o da garganta. No entanto, ele
estava s�, e n�o havia, na torre, nenhum rastro, nenhum sinal dos
assassinos!
� Nenhum sinal? Nem um bot�o de camisa? Nem um io de
cabelo? O fato foi veriicado? N�o havia nenhum ind�cio?
� O fato foi veriicado no processo, Excel�ncia: n�o havia ind�cio
nenhum! Eu n�o j� lhe disse que isto aqui � um enigma s�rio, um
enigma de g�nio, um enigma brasileiro, sertanejo e epopeico? Ora
ind�cio! Com ind�cio, � canja, qualquer decifrador estrangeiro decifra!
No caso, n�o havia nada: nem vela dobrada, nem disco mort�fero, nem
bot�es de camisa, nem abotoaduras de ouro, nem ios de cabelo, nem
alinete novo, nem nada dessas outras coisas que costumam fornecer
pistas aos decifradores dos rid�culos enigmas estrangeiros! Para o meu
enigma, portanto, s� um Decifrador brasileiro, e de g�nio! Agora, havia
era um pormenor estranho, que refor�a nossa convic��o de que a morte
de meu Padrinho s� pode ter sido praticada dentro da pr�pria torre,
gastando-se no crime um tempo tal que pessoas trepadas em escadas e
usando chu�os atrav�s das seteiras n�o podem t�-lo executado de jeito
nenhum: � que, na esp�dua esquerda de Dom Pedro Sebasti�o, tinham
ferrado, a fogo, um ferro desconhecido e que n�o � nenhum dos ferros
familiares de ferrar boi do Sert�o da Para�ba! Eu sei, porque no nosso
�Instituto Geneal�gico e Hist�rico do Sert�o do Cariri� temos um
arquivo e registro desses ferros, arquivo que eu organizei por sugest�o
do Doutor Pedro Gouveia!
� Voc� ainda se lembra como era o ferro?
� Me lembro como se fosse hoje, Excel�ncia! Era uma esp�cie
de lua, ou melhor, para ser mais iel � nobre Arte da Her�ldica, um
crescente, com as pontas viradas para cima e encimado por uma cruz.

� A marca do ferro na esp�dua de seu Padrinho era recente?
� A queimadura era recent�ssima! Quando a gente entrou na
torre, sentia-se ainda a catinga meio fuma�ada e polvorenta de carne de
bicho ferrada!
� E n�o havia nenhum sinal do fogo onde esquentaram o ferro?
� Nenhum, Excel�ncia! Eu n�o j� expliquei que no aposento
elevado da torre da capela n�o havia nada, a n�o ser o sino?
� Eu digo � no mato, pelas imedia��es. Procuraram?
� Procuramos, sim senhor! N�o havia sinal de fogo nenhum, por
perto da �Casa-Forte da On�a Malhada�!
� Ent�o, foi que trouxeram de longe o ferro quente! Como � que
puderam conserv�-lo em brasa tanto tempo, durante o caminho?
� E quem sabe, Excel�ncia?
O Corregedor olhou-me durante alguns momentos, de modo ixo
e com ar descontente. Depois, negaceou:
� A que motivo o senhor atribui a morte de seu tio e padrinho?
� N�o atribuo a motivo nenhum, Sr. Corregedor, porque n�o
tenho a menor ideia sobre isso!
� Ele era muito rico, n�o?
� Demais! Era o homem mais rico, mais idalgo e mais poderoso
do Sert�o! Ali�s, no caso, isso seria obrigat�rio: de outro modo, eu n�o
poderia t�-lo escolhido como personagem central e Rei deca�do da
minha Epopeia, pois n�o se poderia chamar a �per�dia terr�vel� em que
ele foi trucidado de �queda do trono, da Coroa e da monarquia do
Sert�o do Cariri�!
� Bem, ent�o, se ele era rico assim, o motivo do crime pode ter
sido roubo.
� Mas n�o foi n�o, a� � que est�! Como depois n�s veriicamos,
n�o tinha havido roubo nenhum! A �nica falta que se notou em toda a
�Casa da On�a Malhada� foi a de tr�s objetos, ali�s sem grande
import�ncia e que podem, at�, ter desaparecido antes daquele dia sem
que ningu�m tivesse percebido. Eram um anel que meu Padrinho usava
�s vezes, uma bengala encastoada de ouro e um tinteiro de bronze.
� � verdade que Ar�sio, o ilho mais velho, viajou
repentinamente, abandonando a casa logo no dia seguinte ao do
enterro de Dom Pedro Sebasti�o?

� � verdade; o que, ali�s, foi uma sorte para ele, porque do
contr�rio poderia ter morrido no inc�ndio que uma m�o desconhecida
ateou � casa-forte na noite daquele mesmo dia 24 de Agosto de 1930.
� E o ilho mais mo�o, Sin�sio?
� A� � que est� o n�, Excel�ncia, ou melhor, a� � que est� a parte
mais astrol�gica e zodiacal do n�! Naquele dia, quando n�s descemos
daquela torre astrosa e fat�dica, nova e terr�vel surpresa nos aguardava,
embaixo: Sin�sio, o ilho mais mo�o, mancebo que andava ent�o pelos
vinte anos, tinha desaparecido. Parecia que �a terra se abrira e ele fora
sepultado em suas entranhas�!
� Sr. Quaderna, tenho observado que o senhor, de vez em
quando, d� para falar di�cil, o que perturba um pouco a clareza do
depoimento!
� � uma quest�o de estilo, Sr. Corregedor, uma quest�o
epopeica! Quando eu tirar as certid�es, quero encontrar o estilo da
minha Obra pelo menos j� encaminhado! Al�m disso, Samuel, segundo
Clemente, adota �o estilo rap�o-ranhoso de cristais e joiarias
herm�tico-esmer�ldicas da Direita�. J� Clemente, segundo Samuel,
adota �o estilo raso-circundante, raposo e afoscado da Esquerda�. Eu
fundi os dois, criando �o estilo genial, ou r�gio, o estilo raposoesmer�ldico
e real-herm�tico dos Monarquistas da Esquerda�. Agora,
por�m, quando eu airmei que a terra se abriu e meu primo e sobrinho
Sin�sio foi sepultado em suas entranhas, n�o estava falando assim
somente por uma quest�o de estilo, n�o. Usei a express�o, primeiro
porque � a usada em todos os �contos� do Almanaque Charad�stico, de
onde a copiei. Depois, porque, no caso, ela se aplica perfeitamente �
estranha Desaventura de Sin�sio, o Alumioso, e � Demanda Novelosa do
Reino do Sert�o!
� Explique-se melhor, porque o caso, aqui, n�o � de estilo n�o, �
de inqu�rito! Como foi que o rapaz desapareceu?
� Bem, Sr. Corregedor, como era de esperar, as vers�es que
apareceram foram as mais contradit�rias! As circunst�ncias
enigm�ticas da morte de Dom Pedro Sebasti�o e o sumi�o misterioso e
inexplic�vel de Sin�sio impressionaram fatidicamente �a imagina��o
dos b�rbaros e fan�ticos sertanejos do Cariri�, como costuma dizer
Samuel. Dom Pedro Sebasti�o, aliado aos Dantas, da Serra do Teixeira, e
ao Coronel Jos� Pereira Lima, Senhor da Vila da Princesa Isabel �

centro principal da �Guerra de Princesa� �, era uma das principais
colunas sertanejas da rebeli�o contra o Presidente Jo�o Pessoa!
Come�aram, ent�o, imediatamente, a correr boatos que atribu�am a
morte do velho Rei e a desapari��o de seu ilho, Dom Sin�sio, o
Alumioso, a motivos pol�ticos.
� Eu sei, e este � um dos motivos pelos quais resolvi estudar,
pessoalmente, esse caso! Tive a honra de ser correligion�rio e servidor
do inolvid�vel Presidente Jo�o Pessoa, de modo que o senhor e seus
companheiros podem icar certos de que vou apurar, bem apurada, toda
essa hist�ria!
Ao dizer isso, o Corregedor cerrou de repente os maxilares,
como um porco-do-mato, e tomou, sem querer, uma express�o de
ferocidade que me demonstrou logo que, ou eu ia com cautela, ou
estava desgra�ado para o resto da vida. Ent�o falei, temeroso e sol�cito:
� Estou pronto a ajudar o senhor do jeito que possa! Mas como
eu ia dizendo: quanto a Sin�sio, os boatos surgidos eram ainda mais
fant�sticos e desencontrados. Segundo a vers�o mais divulgada,
enquanto, na torre, os assassinos degolavam o velho Rei do Cariri,
Sin�sio, que estava embaixo, adormecido em sua cama, fora raptado por
um grupo de Ciganos sertanejos. Segundo os boatos, os Ciganos � que
estavam, tamb�m, a servi�o dos seguidores mais fan�ticos do
Presidente Jo�o Pessoa � tinham ministrado ao Prinspe Alumioso
adormecido o ch� de uma tal de �erva-moura�, que deixa o sujeito como
que sonhando acordado!
� Sr. Quaderna, consta-me que o senhor, al�m de v�rias outras
habilidades, � um grande entendido em ra�zes sertanejas. � verdade
isso? � indagou lentamente o Corregedor, com uma express�o que me
deixou frio.
� �, sim senhor! Mas, at� hoje, s� empreguei essa minha
habilidade para o bem, juro por tudo quanto � sagrado! O que eu sei de
ra�zes � o que aprendi no Lun�rio Perp�tuo e nas cole��es do
Almanaque do Cariri que meu Pai publicava.
� Quer dizer que as habilidades de charadista, Astr�logo e
raizeiro do senhor s�o heran�as de fam�lia?
� S�o sim senhor, eu j� puxei a meu Pai! Foi dele, ali�s, que
puxei tamb�m minhas qualidades po�ticas, se bem que, mod�stia �
parte e n�o faltando com o respeito ilial, como Poeta eu seja mais

completo do que ele foi. Como o senhor deve saber, existem seis
qualidades de Poeta e a maioria deles ou pertence a uma qualidade ou a
outra. Os melhores, pertencem a duas categorias ao mesmo tempo. Mas
somente os maiores de todos, os grandes, os �raros do Povo�,
pertencem, ao mesmo tempo, �s seis categorias! Meu Pai, que Deus
guarde, era Poeta de sangue e de ci�ncia. Mas eu, mod�stia � parte, sou
dos poucos, dos raros, dos grandes, porque sou, ao mesmo tempo, Poeta
de cavalga��o e reina�o, Poeta de sangue, Poeta de ci�ncia, Poeta de
pacto, de estradas e encruzilhadas, Poeta de mem�ria e Poeta de
planeta! Mesmo por�m tendo sido mais completo do que ele, grande foi
a inlu�ncia que recebi das qualidades de Poeta, historiador, Astr�logo e
genealogista Sertanejo de meu Pai!
� Quer dizer, ent�o, que, como leitor do Lun�rio e do
Almanaque, o senhor j� conhecia a tal �erva-moura� que deram a
Sin�sio!
� Excel�ncia, eu n�o sei, com certeza, se deram a ele, ou n�o
deram, o ch� de erva-moura! As vers�es sobre o desaparecimento de
Sin�sio eram, como eu disse, as mais desencontradas poss�veis! Num
ponto, por�m, todos os partid�rios dele concordavam: diziam que,
depois de raptado, Sin�sio fora levado para a Cidade da Para�ba, capital
do nosso Estado, e encarcerado debaixo da terra, num subterr�neo
cavado durante a �Guerra Holandesa� e que liga a Igreja de S�o
Francisco � Fortaleza de Santa Catarina, situada em Cabedelo, a umas
tr�s ou quatro l�guas de dist�ncia da Igreja!
� Esse subterr�neo n�o existe, Sr. Quaderna! Isso � patranha!
Aqui no Nordeste, em todo lugar por onde os Holandeses passaram, no
s�culo XVII, o Povo inventa que existe um subterr�neo cavado por eles!
S�o imagina��es descabidas da ral� ignorante da Para�ba!
� Pode ser, Excel�ncia, n�o sou eu que sustento essa hist�ria
n�o: estou contando o que me disseram e vendendo a hist�ria ao
senhor pelo pre�o que me venderam! Ali�s, esta opini�o do senhor era,
tamb�m, a dos advers�rios de Sin�sio. Mas, segundo os partid�rios de
Dom Pedro Sebasti�o e Sin�sio, o Presidente Jo�o Pessoa, primeiro, e,
depois de seu assassinato, os seus seguidores mais fan�ticos � como o
Interventor Antenor Navarro, por exemplo � sabiam que o Prinspe
Alumioso era uma v�tima e ref�m precioso perante os Sertanejos
rebelados da gloriosa �Guerra de Princesa�. Por isso, queriam conserv�

lo prisioneiro, como elemento de intimida��o e trunfo para a derrota
dos partid�rios dele! Mas as pessoas que, aqui na Vila e no resto do
Sert�o, eram contr�rias a Sin�sio, isto �, os partid�rios do usineiro e
dono de minas Ant�nio Noronha de Britto Moraes, esses diziam que
Sin�sio estava morto e bem morto, sepultado n�o no subterr�neo, mas
sim debaixo dos cl�ssicos e comuns sete palmos de terra que cobrem
todo mundo! Como Vossa Excel�ncia pode ver agora, em qualquer dos
casos a express�o do Almanaque Charad�stico se aplica perfeitamente,
porque, seja no ch�o ou no subterr�neo, o fato � que a terra se abriu e
Sin�sio foi soterrado � icou ali, soterranho, sepultado em suas
entranhas!
� Sr. Quaderna, tenho que fazer, agora, uma observa��o
contr�ria � de ainda h� pouco! Eu disse que �s vezes o senhor dava para
falar di�cil: agora, devo observar que, para um Epopeieta, o senhor de
vez em quando d� para falar errado! Agora mesmo, o senhor disse
�soterranho�, em vez de �subterr�neo�, e disse, tamb�m, duas vezes,
�Prinspe� em vez de �Pr�ncipe�!
� N�o � erro n�o, Excel�ncia, � o Portugu�s pardo, leopardo,
garranchento e pedregoso da Caatinga, como diz o genial Gustavo
Barroso! Quando falo de Dom Sin�sio, o Alumioso, eu preiro dizer
�Prinspe� porque � assim que escrevia o genial E. P. Almeida,
guerrilheiro do �Imp�rio do Belo Monte de Canudos�, na carta que foi
encontrada em seu bornal de balas, em 1897! E � tamb�m assim que se
escreve o nome do folheto de Heleno Torres: �A Princesa F�tima e o
Prinspe Hedemon�.
� Est� bem, mas v� adiante! � disse o Doutor Joaquim Cabe�ade-
Porco com ar enfastiado, enquanto, na carreira e de acordo com suas
determina��es, Margarida ora se detinha ora copiava tudo, ao telecoteco
da velha m�quina de escrever.
Eu continuei:
� Essa d�vida sobre a �vida, paix�o e morte� do Alumioso
acarretava s�rios problemas no tocante � heran�a e ao testamento do
Pai dele. Naturalmente a pessoa mais afetada por isso era seu irm�o
Ar�sio, impedido de entrar na posse integral e efetiva da �Casa-Forte da
Torre da On�a Malhada�. N�o poderia faz�-lo enquanto Sin�sio n�o
fosse declarado morto ou ausente � express�o esquisita para os leigos
mas que faz parte das coisas da Justi�a e que, portanto, Vossa

Excel�ncia, como Corregedor, conhece melhor do que eu, simples Poetaescriv�o
como Pero Vaz de Caminha! E a�, entre os anos de 1930 e 1935,
as not�cias sobre Sin�sio, o Ausente, apareciam e desapareciam, cada
vez mais fant�sticas, incertas e enigm�ticas, e sempre ligadas �s
Revolu��es ou tentativas de insurrei��o acontecidas no Brasil durante
esse per�odo. Relacionadas, principalmente, com as rebeli�es e vinditas
sertanejas! Como Vossa Excel�ncia deve se lembrar, essas datas
revolucion�rias s�o: em 1930, a �Revolu��o Liberal�; em 1931, os
primeiros tiroteios e greves comunistas que tiveram o Recife como
centro; em 1932, a �Revolu��o Constitucionalista� de S�o Paulo e, aqui
no Sert�o, a mal estudada mas importante �Guerra do Verde e do
Vermelho�; e, inalmente, em 1935, a �Revolu��o Comunista� cujos
centros principais foram o Rio, o Recife e o Rio Grande do Norte, mas
cujo epis�dio mais importante para a minha hist�ria foi a �coluna
sertaneja� que, partindo de Natal, foi derrotada pelos Sertanejos na
Serra do Doutor, no Sert�o do Serid�, e que teve papel preponderante
no desfecho da luta de Ar�sio e Sin�sio Garcia-Barretto.

FOLHETO ONDE APARECE A PALAVRA PR�NCIPE COMO PRINSPE.

� O
FOLHETO LII
Os Tr�s Irm�os Sertanejos
ra, Sr. Corregedor, desde quando o velho Rei, Dom Pedro
Sebasti�o, era vivo � e mais ainda depois de sua morte �, os
moradores da nossa Vila tinham se separado, formando dois
partidos em torno dos ilhos dele! Uns tomavam o partido de Ar�sio,
ilho do primeiro casamento de meu Padrinho com Dona Maria da
Puriica��o Pereira Monteiro. Os outros tomavam o de Sin�sio, ilho de
minha irm�, Joana Garcia-Barretto Ferreira Quaderna. Na verdade,
havia ainda um outro ilho, Silvestre, nascido entre Ar�sio e Sin�sio e no
intervalo dos dois casamentos de meu tio e Padrinho. Mas o partido
deste segundo ilho ningu�m pensava em tomar! Primeiro, porque ele
pr�prio era partid�rio de Sin�sio. Depois, porque ele era bastardo e
pobre. E, inalmente, porque, depois da morte de Dom Pedro Sebasti�o,
todo mundo, de repente, passou a consider�-lo como meio idiota!
� � verdade que, entre os ilhos, Dom Pedro Sebasti�o tinha
prefer�ncia especial por Sin�sio?
� �, sim senhor! Ar�sio nunca se dera muito bem com o Pai,
porque ambos tinham g�nio violento e estranho e, ao mesmo tempo,
eram muito diferentes na maneira de exercer essa viol�ncia! Creio,
ali�s, que essa hostilidade existente entre Dom Pedro Sebasti�o e seu
ilho mais velho, Ar�sio, foi o motivo que levou o Juiz da nossa Comarca
a tomar, logo depois da morte do velho Rei e Capit�o-Mor do Sert�o do
Cariri, uma decis�o que a muitos pareceu estranha: a de nomear como
inventariante dos bens do Rei Degolado, n�o seu ilho mais velho
Ar�sio, como seria natural, e sim o maior inimigo e advers�rio pol�tico
de meu Padrinho, Ant�nio Noronha de Britto Moraes. Acresce que, com
a desapari��o de Sin�sio, o problema da sucess�o do nosso Rei do Cariri
se complicara. Diziam que, de acordo com a Lei brasileira, teria que
decorrer o prazo de dois anos para que, legalmente, o rapaz
desaparecido fosse declarado ausente. Est� certo isso, Doutor?

� Est�, uma vez que ele n�o deixou, na Vila, procurador
legalmente habilitado!
� Era exatamente isso o que diziam os partid�rios de Ar�sio,
entre os quais igurava naquele tempo, em primeiro plano e por ter sido
contratado proissionalmente, o Advogado que Vossa Excel�ncia j�
conhece, o Bacharel Clemente Har� de Ravasco Anv�rsio, criminalista,
mestre-escola e Fil�sofo de altos m�ritos. J� os partid�rios de Sin�sio,
soprados pelo Promotor e curador de ausentes, o Poeta Samuel Wan
d�Ernes, lembravam que a Lei fazia, ainda, outra exig�ncia para que, no
prazo de dois anos, o ausente fosse dado como legalmente
desaparecido: a de que n�o houvesse not�cias dele durante esse tempo.
Est� certo isso, tamb�m, Sr. Corregedor?
� Est�, � isso mesmo!
� �Ora, not�cias dele � o que n�o falta!� � diziam os mais
exaltados Sertanejos do partido do ilho mais mo�o. � �Sin�sio est�
preso, escondido pelo Governo e pela Pol�cia-secreta deles, no
subterr�neo que os Holandeses constru�ram, da Igreja de S�o Francisco
at� o Forte de Cabedelo!�
� �E pode-se, l�, chamar esse boato rid�culo de not�cia?� �
retrucavam, indignados, os partid�rios de Ar�sio. � �Quem � que
garante a exist�ncia desse subterr�neo? Quem foi que, algum dia, j�
entrou nele? Ningu�m! Esse subterr�neo n�o passa de uma inven��o do
Povo ignorante desta terra infeliz que � a Para�ba!�
� Os partid�rios de Ar�sio tinham raz�o nesse ponto, como j�
expliquei! � falou o Corregedor.
� Sim, Excel�ncia, mas, apesar da l�gica dessa obje��o, os
partid�rios de Sin�sio continuavam a acreditar no subterr�neo e a
sonhar com o dia em que o jovem Prinspe Alumioso conseguiria vencer
seus inimigos cru�is e desconhecidos, voltando � sua terra, para �
como se esperava dele desde menino � causar a perda dos poderosos e
fazer a felicidade de todos os pobres, desgra�ados, infelizes e
deserdados da sorte no Sert�o do Cariri!
* * *
� Como Vossa Excel�ncia pode ver por a�, os partid�rios de
Ar�sio eram os mais razo�veis e esclarecidos! � disse eu, para lisonjear

o Corregedor, que manifestara aprova��o ao ponto de vista deles. �
N�o admira, ali�s, que assim acontecesse, porque eram as pessoas mais
ricas e bem-situadas da Vila. � verdade que, a princ�pio, houvera uma
cis�o entre essas pessoas, icando com Ar�sio os membros da
Aristocracia rural, e a Burguesia urbana cerrando ileiras ao lado de
Ant�nio Moraes e do Comendador Bas�lio Monteiro, que, politicamente,
seguia o usineiro pernambucano. Depois, por uma circunst�ncia que
logo explicarei, essas duas fac��es se juntaram, de modo que o
elemento mais poderoso do Sert�o icou todo a favor de Ar�sio. J� os
partid�rios de Sin�sio eram os Almocreves, os cambiteiros, os Ciganos,
as lavadeiras, os Vaqueiros, os cabras-do-eito, as Mulheres-Damas, os
fazedores de chap�us de palha, os Cavalarianos, os cabras-do-rile, as
Fateiras, os Cantadores, os Cangaceiros...
� Enim, eram recrutados entre o Povo, a ral� sertaneja, n�o �
isso? � interrompeu o Corregedor, meio impaciente.
� Vossa Excel�ncia chame como quiser! Eu, iel aos
ensinamentos de Samuel, Clemente, Carlos Dias Fernandes, Jo�o
Martins de Athayde, Gustavo Barroso e outros Mestres, considero toda
essa gente, especialmente os homens que montam a cavalo e as mo�as
que, vencendo a Desgra�a e a Fome, puderam permanecer bonitas,
como Fidalgos e Princesas do Povo Brasileiro! O senhor note que,
enquanto no resto do Brasil, prostituta � rapariga, aqui, no Sert�o, �
Mulher-Dama, o que enobrece demais essa gente, fazendo com que elas
pare�am Damas de copas, ouro, paus e espada! Outra coisa, Excel�ncia:
dizia-se, ainda, na rua, que, no caso da heran�a do velho Rei, meu
Padrinho, seria necess�rio que decorresse o prazo mais longo, de
quatro anos, para que Ar�sio tivesse o direito de requerer, na Justi�a, a
abertura da �sucess�o provis�ria�. � verdade, isso?
� � verdade!
� Ent�o, foi talvez por causa dessas discuss�es e do car�ter
duvidoso de todo o caso que o Juiz da Comarca, Doutor Manuel Viana
Paes, resolveu nomear um curador para os riqu�ssimos bens deixados
por Dom Pedro Sebasti�o!
� N�o senhor, foi um ato de rotina processual! O Juiz tinha que
fazer a nomea��o!
� Entendo, Excel�ncia! E ele n�o teria causado nenhuma
estranheza, se sua escolha n�o tivesse reca�do naquele mesmo

inventariante nomeado anteriormente, aquele sombrio, moreno,
poderoso e enigm�tico Ant�nio Moraes, rico usineiro pernambucano
que, tendo resolvido botar uma ind�stria na Para�ba, precisara dos
min�rios do Cariri e come�ara, l� um dia, a comprar terras aqui. Depois,
fora tomando gosto pelo lugar, �onde ainda se mantinham o estilo de
vida e os modos da sociedade patriarcal�. E fora, aos poucos,
estendendo suas garras de gavi�o sobre tudo, entre n�s; de modo tal
que, ao a�ambarcar o algod�o, o gado e os min�rios de toda a nossa
zona, espalhara entre n�s um terror quase supersticioso, diante de seu
poder, da sua fortuna, de sua capacidade de aniquilar os rivais, de
espalhar o infort�nio, de esmagar os que se interpunham entre ele e o
dom�nio total do Cariri � este Sert�o onde, at� 1930, se exercera o
poder, tamb�m muito grande mas muito diferente, do nosso velho Rei,
Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto!
* * *
Levado pelo embalo de Epopeieta, eu tinha dado um �cochilo de
Homero� como depoente, e fora mais longe do que desejara, revelando
ao Corregedor certas coisas que me convinha calar. Para corrigir meu
grave erro, acrescentei imediatamente, para evitar que ele mandasse
Margarida copiar:
� Foi a� que, exatamente no ano de 1932, uma not�cia incendiou
o Sert�o, como uma pedra-lispe ou pedra-de-corisco que passasse
sobre os carrascais empoeirados e pedregosos, queimando a terra
sertaneja desde o Cariri at� a Espinhara: Sin�sio tinha sido inalmente
encontrado, morto, na Para�ba!
� Em que lugar? No subterr�neo?
� N�o senhor, mas ali perto, a uns duzentos metros de dist�ncia
do cruzeiro da Igreja de S�o Francisco, aquele mesmo Cruzeiro que
Carlos Dias Fernandes j� vira, um dia, �incado no meio do Adro e
cercado por uma larga peanha de Pelicanos esculpidos em Pedra�. Vossa
Excel�ncia conhece, por acaso, a �Casa da P�lvora�, que ica na descida
da Ladeira de S�o Francisco, na Para�ba, assim pelo lado esquerdo de
quem est� de frente para a Igreja?
� J� ouvi falar, mas n�o conhe�o n�o! N�o tenho nenhum
interesse por velharias, de modo que nunca me interessei em descer a

Ladeira por aquele lado!
� Pois quando voltar � Capital, Doutor, n�o deixe de conhecer!
Eu fui l� muitas vezes, quando estudava no Semin�rio, instalado no
velho Convento franciscano pegado � Igreja! A �Casa da P�lvora� � uma
velha ediica��o do s�culo XVIII, constru�da quando o Reino de Portugal
ainda pertencia ao Imp�rio do Brasil. Foi feita pelo Governador e
Capit�o-Mor da Para�ba, Jo�o da Maya da Gama, a mando d�El-Rei Dom
Jo�o V, e conclu�da em 1710, conforme informa��o do genial escritor
paraibano Irineu Pinto na sua Cr�nica-epopeica Datas e Notas para a
Hist�ria da Para�ba. Ora, Sr. Corregedor, por uma coincid�ncia que n�o
deixou de impressionar violentamente as ardentes imagina��es
sertanejas, a �Casa da P�lvora�, do mesmo jeito da torre da �On�a
Malhada� onde morrera o Pai, � um pesado edi�cio de aposento �nico,
com uma s� entrada, de teto abobadado, e iluminado somente por
seteiras. � constru�do �no estilo militar, pesado e austero do s�culo
XVIII brasileiro� � como nos explicou logo Samuel, disc�pulo predileto,
para esses assuntos de gosto e Arte, do genial Carlos Dias Fernandes. A�,
portanto, nessa �Casa da P�lvora�, em condi��es muito semelhantes �s
do velho Rei degolado, seu Pai, encadeado � parede por uma grossa e
enferrujada corrente que lhe prendia o p� pelo tornozelo, como se fosse
um perigo para o mundo ou �um calceta da Exist�ncia� � para usar a
express�o do genial escritor brasileiro de 1917, Henrique Stepple �,
foi encontrado, por uns meninos, o cad�ver, j� desigurado e
apodrecido, daquele verdadeiro Infante Sertanejo, o nosso Dom Sin�sio
Garcia-Barretto, o Alumioso, ao que parece morto de fome, maus-tratos,
solid�o e desespero. Depois de identiicado por Ar�sio, que estava,
ent�o, na Capital, foi o corpo convenientemente sepultado, �com todas
as honras que acompanham sob a terra os corpos dos Fidalgos, mesmo
sertanejos, ilhos-segundos, mancebos e infan��es�, como era o caso do
nosso infortunado e alumioso Prinspe.
* * *
� Todo mundo esperava, Sr. Corregedor, que, com a not�cia da
morte de Sin�sio, cessassem as controv�rsias e discuss�es e Ar�sio
entrasse em ju�zo, naquele mesmo ano de 1932, com uma a��o que
reivindicasse seus direitos. Mas isso n�o aconteceu. Parecia at� que

Ar�sio, contrariando seu g�nio violento, se resignara com o infort�nio
que se abatera de vez sobre toda a �Casa Real da On�a Malhada�. Alguns
opinavam que Ar�sio, n�o querendo abrir duas frentes de luta � uma
com o riqu�ssimo curador de seus bens, Ant�nio Moraes, outra com a
sombra ausente, mas ainda poderosa, do irm�o morto �, aguardava,
talvez, que cheg�ssemos ao ano de 1934, quando se completaria o
prazo dos quatro anos da morte do Pai e do desaparecimento de
Sin�sio. Poderia, assim, mais resguardado pela Lei, reivindicar seus
direitos, sem entrar em choque frontal com Dom Ant�nio Moraes. De
fato, como sucede sempre nas quedas das grandes Monarquias
sertanejas, a desgra�a penetrara de vez na �Casa da On�a Malhada�.
Dom Pedro Sebasti�o, tragicamente vi�vo pela segunda vez, morrera
degolado. Sin�sio, primeiro fora raptado, preso e sepultado debaixo da
terra, morrendo inalmente dessa maneira terr�vel e dolorosa que
acabo de descrever. Silvestre, o segundo ilho, o bastardo, entrou por
uma enorme decad�ncia, em compara��o com a vida que levara
conosco na �On�a Malhada� durante a vida de seu Pai. Passou a errar no
abandono, por Vilas, ribeiras, estradas e povoados do Sert�o do Cariri.
Dizia-se que se tornara idiota, mergulhado numa esp�cie de
�estoporamento do ju�zo�, pela sucess�o de trag�dias que se abatera
sobre o Pai e sobre o irm�o mais mo�o, com quem ele fora sempre
muito pegado. Contava-se que Silvestre tinha chegado ao extremo de se
tornar guia-de-cego. O cego a quem ele se arrimara como �espoleta� �
Pedro Adeodato, Pedro Cego de alcunha � era daqui da Vila. Era um
meio-termo de cego, Cantador, beato e Cangaceiro aposentado. Vivia
errante e pedinte, de lugar em lugar, vestido com um velho casac�o
militar, pardo e remendado, que ningu�m sabia onde e quando ele
obtivera � se bem que alguns de n�s desconiassem que tinha sido
dado a ele por meu Padrinho-de-crisma, Jo�o Melch�ades Ferreira, o
Cantador da Borborema. Cantava, esmolava, rezava em altos brados e
dizia desaforos a Deus e ao mundo, por tudo quanto era de feira no
Sert�o. Corriam hist�rias dos maus-tratos que ele inligia a Silvestre, o
qual, apesar disso, era-lhe iel e dedicado, na idiotice que lhe acabara,
de vez, com qualquer resto de dignidade.
� E Ar�sio?
� Sr. Corregedor, entre 1930 e 1934, Ar�sio entregou-se a uma
vida completamente desordenada. Aparecia e desaparecia aqui e ali,

sem explicar a ningu�m os motivos dessas idas e vindas a Patos, a
Campina Grande, � Cidade da Para�ba, � Vila do Martins, ao Paje�, ao
Serid�, a Natal, ao Recife. Dom Ant�nio Moraes, atendendo a telegramas
ou recados seus, enviava-lhe, sem discuss�o e para onde ele ordenava,
as mesadas que o Juiz determinara. De modo que Ar�sio, sendo solteiro,
podia perfeitamente manter a vida dissipada que escandalizava, aqui,
as pessoas de bem da Vila. De vez em quando chegavam at� n�s os ecos
de suas orgias, de seus atos violentos e desabusados, inesperados,
inexplic�veis, meio insanos, mesmo. Mas como ele icava por l�, e aqui
s� chegavam os ecos, muita coisa de sua vida durante esse tempo icou
obscura, at� para aqueles que, como eu, Clemente e Samuel, t�nhamos
vivido, desde a meninice dele, em estreita liga��o com os seus e com a
sua Casa. Ar�sio teria icado, talvez, um pouco esquecido aqui, se n�o
fosse sua participa��o na �Guerra do Verde e do Vermelho�, em 1932, e,
nos ins de 1934, sua estranha reapari��o entre n�s.
� Estranha? Estranha por qu�?
� Estranha porque nesse im de ano Ar�sio voltou e, para
surpresa e esc�ndalo do Povo, hospedou-se na casa do igadal inimigo
de seu Pai, Ant�nio Moraes. Desprezou a velha casa que os Garcia-
Barrettos tinham na Vila e l� icou morando com os Moraes, no
aguardo, talvez, das provid�ncias legais para a heran�a. O pessoal mais
pobre, que n�o gostava dele e era partid�rio de Sin�sio, n�o deixou de
verberar violentamente contra �o procedimento daquele ilho
desnaturado, daquele condenado, que tra�a, daquela maneira, o sangue
de seu Pai�. J� nos meios da Burguesia urbana da Vila foram muito
louvadas �a prud�ncia e compreens�o de Ar�sio que, com aquele gesto,
encerrava um desgra�ado mal-entendido que nunca deveria ter
separado as duas maiores fortunas do Sert�o, os Garcia-Barrettos e os
Moraes�. Falava-se, mesmo, na rua, que at� o problema s�rio, o problema
da heran�a da �On�a Malhada�, seria solucionado entre os Moraes e os
Garcia-Barrettos, pois, ao que tudo indicava, Ar�sio ia se casar com
Genoveva Moraes, �nica ilha mo�a do velho inimigo de Dom Pedro
Sebasti�o Garcia-Barretto. Fosse como fosse, e resolvido de vez o
problema s�rio, o da heran�a, com esse casamento e com a morteescura
do Prinspe Alumioso, foi nesse estado de coisas que entramos
no ano de 1935. Chegava, ainal, o momento em que Ar�sio ia entrar no
dom�nio e posse integrais de sua enorme fortuna � do algod�o, das

inumer�veis cabe�as de Gado cavalar, vacum, ovelhum e cabrum, do
dinheiro acumulado durante todos aqueles anos atrav�s da exporta��o
de couros e de pedras preciosas, das terras e pastagens imensas da
�On�a Malhada�, e sobretudo da grande fortuna em ouro, prata e pedras
preciosas que Dom Pedro Sebasti�o deixara.
� � verdade que todo o dinheiro em prata deixado por seu
Padrinho icou sob sua guarda?
� �, sim senhor. Mesmo com meu Padrinho vivo, eu era uma
esp�cie de Guarda do Selo e do Tesouro da On�a Malhada, de modo que,
quando ele morreu, eu estava com todos os ba�s atulhados de prata.
� O que foi que o senhor fez desse dinheiro?
� Entreguei ao Juiz daqui, que mandou coloc�-lo sob a guarda
de Dom Ant�nio Moraes.
� E � verdade que Dom Pedro Sebasti�o ainda tinha escondido
uma grande fortuna em ouro, prata e pedras preciosas numa certa
furna do Sert�o?
� �, sim senhor!
� � verdade que ele deixou um roteiro, um mapa desse tesouro,
com o senhor?
� Sr. Corregedor, eu n�o sei se aquilo pode ser, de fato, chamado
de mapa, mas, na verdade, ele deixou comigo um papel que ningu�m
entendia e que diziam ser o mapa do tesouro.
� Diziam? E o senhor, o que � que diz? O senhor acha que era o
mapa?
� Acho que n�o, Excel�ncia.
� Ent�o por que � que se recusava a mostrar esse mapa a
qualquer pessoa? Por que n�o entregou esse papel ao Juiz, tamb�m?
� Primeiro porque nunca considerei que aquilo fosse, mesmo, o
mapa. Depois por uma quest�o de respeito � mem�ria de meu
Padrinho. Um dia, meu Padrinho me procurou e me deu aquele papel,
dizendo-me que, quando come�asse a sentir que a morte estava se
aproximando, ele me comunicaria sua decifra��o, que era muito
importante para mim e para Sin�sio. Mas, depois de 1926, n�o sei se o
senhor sabe que meu Padrinho icou meio de miolo mole...
� Ouvi falar, como ouvi falar que foi o senhor a pessoa que mais
contribuiu para isso, com as hist�rias de coroar seu Padrinho como
Imperador do Divino e outras coisas desse tipo.

� Isso � uma injusti�a, Sr. Corregedor, � cal�nia desse pessoal!
Eu coroava meu Padrinho era a pedido dele, porque desde 1920 e desde
a passagem da �Coluna Prestes� que meu Padrinho estava icando
assim, de ju�zo virado. Pois bem: um dia, vendo que estava chegando o
tempo, procurei meu Padrinho para falar com ele sobre o papel. J�
naquele tempo come�avam a correr boatos sobre o tesouro e uma
vers�o de que o papel seria o roteiro desse tesouro. Procurei meu
Padrinho e iz a ele uma pergunta direta sobre o assunto. Ele, com umas
palavras meio esquisitas, conirmou a exist�ncia do tesouro mas me
disse que tinha escondido tudo t�o bem que agora era incapaz de
encontrar a fabulosa fortuna que tinha enterrado na furna. Lembrei
ent�o a ele o papel que me dera. Ficou muito contente, exaltado, com os
olhos fuzilantes. Mas, quando pegou o papel, vi que, ou o papel n�o
tinha sentido nenhum ou ent�o meu Padrinho se esquecera da
decifra��o, porque ele foi absolutamente incapaz de encontrar o
sentido das palavras enigm�ticas que tinha escrito.
� Foi por isso que voc� n�o se julgou obrigado a entregar o
papel ao Juiz?
� Foi!
� E onde est� o papel?
� Isso eu conto ao senhor, j�, j�! Por enquanto, ique anotado a�,
nos pap�is de Margarida, que corriam not�cias de que meu Padrinho
tinha deixado um tesouro de prata, ouro e pedras preciosas, uma
fortuna incalcul�vel, enterrada e perdida numa furna deste Sert�o velho
e pedregoso de meu Deus, e que todo o sangue derramado na �Casa da
On�a Malhada� se originou disso. E foi quando, exatamente naquele
memor�vel s�bado, V�spera de Pentecostes de 1935, sucedeu aquele
grande acontecimento sensacional que novamente complicou a hist�ria
�de sangue e ouro� da heran�a dos Garcia-Barrettos.

� N
FOLHETO LIII
Meus Doze Pares de Fran�a
aquele dia, Sr. Corregedor, a Vila estava cheia de gente que era
um desprop�sito. Nos dias comuns de feira j� desemboca, aqui
na rua, uma boa multid�o de �beiradeiros�, sa�dos Deus sabe
donde. Mas aquele era um s�bado todo especial, de modo que a Vila
parecia um formigueiro assanhado. Acontece que os Sertanejos tinham
ganho, recentemente, uma pend�ncia surgida entre eles e o Prefeito,
que transferira as feiras de Tapero�, realizadas desde os tempos do
Imp�rio, aos s�bados, passando-as para as quintas-feiras. O barulho
fora grande, mas terminara com a remo��o do Prefeito e com a
nomea��o daqueles dois �nclitos var�es, o Prefeito Abdias Campos e o
Presidente do Conselho, Al�pio da Costa Villar. Estes, mal se viram no
Poder, izeram retornar aos s�bados as nossas feiras, e este era o motivo
principal das festividades daquele dia. O Bispo de Cajazeiras tinha sido
convidado, porque as novas autoridades queriam brindar o Povo com
uma festa �lit�rgica� e outra �guerreira�, isto �, a Missa do Domingo de
Pentecostes, celebrada pelo Bispo, em roupagens suntuosas, e as
Cavalhadas, marcadas para a tarde do s�bado, quando o rebuli�o da
feira come�asse a amainar. O Bispo telegrafara que s� chegaria no
s�bado � noite, de modo que n�o contar�amos com sua presen�a na
Cavalhada, da qual participariam os melhores Cavaleiros do nosso
Cariri. De qualquer modo, naquele s�bado, tinha se juntado aos
feireiros habituais e comuns uma sertanejada formigante, sa�da de tudo
quanto era biboca e p�-de-serra, todos atra�dos pelas Cavalhadas e
dispostos a pernoitar na Vila, a im de assistir � Missa do amanhecer do
dia seguinte, Domingo de Pentecostes.
� Na sua opini�o, o Prefeito e o Presidente do Conselho j�
tinham alguma not�cia do fato que veio a acontecer depois, naquela
tarde?

� Tinham n�o senhor, e a surpresa deles foi enorme, vendo
reaparecerem os destro�os daquela hist�ria de amores alumiosos e de
crimes inexpi�veis de sonho e sangue; a hist�ria que formar�, depois do
meu depoimento, o centro-enigm�tico do meu Romance e Castelo!
� A que horas iam se realizar as Cavalhadas?
� De duas para as duas e meia da tarde, Excel�ncia.
� O senhor esteve presente a elas?
� N�o senhor!
� O senhor n�o � o Chefe e organizador de todas as festas desse
tipo, aqui na Vila?
� Sou, Excel�ncia, mas naquele dia, depois de deixar tudo
pronto e determinado, eu tinha sa�do da Vila, por acaso!
� Por acaso? As informa��es que tenho s�o outras! Para onde o
senhor saiu?
� De manh�, fui dar um passeio com Clemente e Samuel, para
olharmos os quadros ib�ricos de uma Capela descoberta no mato, e uns
desenhos tapuias gravados nas pedras da Ilumiara Ja�na.
� Seus dois amigos e mestres, Samuel e Clemente, almo�aram
na rua?
� Almo�aram, sim senhor!
� E voc�?
� Eu, n�o! Samuel e Clemente assistiram �s Cavalhadas mas o
Quaderna, aqui, estava ausente, fora do lugar dos acontecimentos!
� E n�o havia nenhum Quaderna representando o Chefe nas
corridas da Cavalhada?
Pelo ar envenenado da cara de cobra, vi logo que Sua Excel�ncia
estava mais bem informado do que eu pensara a princ�pio, de modo que
julguei de bom alvitre falar a verdade, para mostrar �a tranquilidade
dos inocentes�. Disse:
� N�o senhor, meus doze irm�os bastardos estavam l�, na
Pra�a, representando a fam�lia e o Chefe! Mas isso tinha que ser, era
indispens�vel, porque, mod�stia � parte, eles s�o tidos e havidos como
os melhores Cavaleiros do Sert�o do Cariri!
Margarida cochichou de novo com o Corregedor, que me encarou
com seus olhos pe�onhentos de Cascavel:
� Dona Margarida airma que o senhor tinha quatro irm�os
leg�timos. Mas diz que os bastardos s�o mais de vinte, e n�o doze como

o senhor est� dizendo!
� Ah, Sr. Corregedor, se � assim, n�o posso contar mais nada
n�o! Se � para eu contar a hist�ria s� com os sonhos do estilo rap�oranhoso
da Direita, ou somente com a exatid�o mesquinha do estilo
raso da Esquerda, n�o vai, de jeito nenhum! Eu s� sei contar as coisas
no meu estilo, o estilo genial ou r�gio dos Monarquistas da Esquerda!
Mas j� que interromperam e me cortaram o io, v� l� essa �ltima
explica��o! � verdade: meu Pai, qualquer mo�a-donzela que facilitava
as coisas para o lado dele era passada nos peitos, motivo pelo qual foi a
primeira pessoa da fam�lia, neste s�culo, a sair no jornal! O Correio de
Campina publicou um retrato dele, com uma narra��o sucinta de sua
vida amorosa, e deixando documentado para a posteridade que ele era
conhecido como �O Pai-d��gua do Cariri�! Esse foi, ali�s, o motivo que
nos levou � ru�na econ�mica, com a fragmenta��o da nossa terra �As
Maravilhas�. � verdade, ent�o, que meus irm�os bastardos s�o mais de
vinte, e se n�o falei nisso foi porque, para a Epopeia, os que interessam,
mesmo, s�o esses doze, que s�o meus Doze Pares de Fran�a!
� Como �? � disse o Corregedor, mais uma vez espantado.
� � isso mesmo, Excel�ncia! Como meu Pai nos deixasse
arruinados, vi que tinha de tomar certas provid�ncias para
salvaguardar a idalguia da fam�lia Quaderna! N�o sendo rico, descobri,
por exemplo, que meus irm�os mais mo�os, os bastardos, eram o �nico
jeito que eu tinha de manter, de gra�a e ainda com lucro, uma escolta de
Cavaleiros, semelhante �quela com a qual Dom Pedro I aparece em �O
Grito do Ipiranga�, quadro do genial pintor paraibano Pedro Am�rico de
Figueiredo e Mello, Grande do Imp�rio do Brasil! N�s, os Quadernas,
somos tamb�m Garcia-Barrettos, de modo que...
Margarida falou baixo, de novo, e o Corregedor dirigiu-se a mim,
com ar meio embara�ado:
� Sr. Quaderna, perdoe que eu entre em pormenores �ntimos
sobre sua vida, mas preciso esclarecer tudo e Dona Margarida est� me
informando, aqui, que o senhor, de fato, � parente dos Garcia-Barrettos,
mas � como direi? � � um Garcia-Barretto...
� Pode dizer, Excel�ncia! Eu absolutamente n�o me incomodo
mais de ser ilho da puta! Ou melhor, de ser neto da puta, porque minha
M�e, coitada, � que era ilha da puta, ilha bastarda do Bar�o do Cariri e
portanto irm� por vias travessas de Dom Pedro Sebasti�o Garcia

Barretto. Antes, eu icava danado da vida quando algu�m falava nessa
ilho-da-putice nossa. Mas l� um dia, numa discuss�o, Samuel declarou
que isso de bastardia n�o tem a menor import�ncia nessas coisas de
idalguia e linhagens reais, tanto assim que os Bragan�as, descendentes
de Dom Jo�o I e Nuno �lvares Pereira, s�o v�rias vezes bastardos e
netos de padre! Depois da�, iquei descansado e perdi a vergonha!
� Quer dizer que o senhor tamb�m � de linhagem real
sertaneja?
* * *
Fiquei apavorado, com medo de que ele j� tivesse ouvido falar na
minha ascend�ncia real paterna, vinda diretamente dos Reis da Casa da
Pedra Bonita. Sim, porque de fato, como sabem, eu perten�o � a duas
linhagens reais de uma vez. Mas a dos Garcia-Barrettos, a de minha
M�e, apesar de bastarda, � de ouro e Azul e confess�vel, enquanto a de
meu Pai, a dos Quadernas, � negra e Vermelha, e � o estigma de crime e
culpa da minha vida (se bem que seja, tamb�m, todo o fundamento da
gl�ria e do orgulho do meu sangue). Ser� que eu j� estava descoberto?
Se estivesse, estaria perdido. Assim, arrisquei:
� � verdade, Sr. Corregedor! Apesar de bastardo, por via
materna eu sou um Garcia-Barretto, e portanto posso dizer, sem
jact�ncia, que perten�o � Casa Real do Sert�o do Cariri! � nessa
qualidade que esses meus doze irm�os bastardos me servem de Guarda
de Honra, quando, por acaso, preciso fazer alguma cavalgada heroica,
semelhante �s de Dom Ant�nio de Mariz ou �s do Capit�o-Mor Gon�alo
Pires Campelo, aqueles dois Carlos Magnos de Dom Jos� de Alencar! E
se o senhor duvida, pe�a, a�, o testemunho de Margarida, que no caso �
insuspeita porque � minha inimiga e � uma �virtuosa dama do c�lice
sagrado de Tapero��! Margarida, diga aqui ao Doutor: n�o � verdade
que meus irm�os s�o Pares de Fran�a das minhas cavalhadas?
Vendo que o Corregedor, talvez a despeito de si, esperava a
resposta, Margarida viu que era o jeito e conirmou:
� � verdade, Doutor Juiz!
� Que neg�cio � esse, Sr. Quaderna? � estranhou o Corregedor.
� Excel�ncia, � coisa sabida! Os igurantes das Cavalhadas
sertanejas s�o vinte e quatro Cavaleiros armados de lan�as e

representando os Doze Pares de Fran�a do Cord�o Azul e os Doze do
Cord�o Encarnado! Os Azuis, s�o os Cavaleiros cruzados e crist�os, os
Encarnados s�o os Cavaleiros mouros e mu�ulmanos. E o mais bonito,
para mim, � que, representando os Vermelhos o partido dos Mouros,
ainda assim tenham nomes iguais aos dos azuis, havendo, por exemplo,
um Rold�o e um Oliveiros azuis e crist�os, e outros Rold�o e Oliveiros
mouros e encarnados! E assim por diante, at� completar os vinte e
quatro Cavaleiros, com um nome de Par de Fran�a para cada par de
dois! Foi por isso que eu destaquei doze prediletos, entre os meus
irm�os bastardos, fazendo com que eles assumissem, nas Cavalhadas, o
papel de Guarda de Honra minha!
� Uma curiosidade minha, Bibliotec�rio Quaderna: voc�
colocou seus irm�os no Cord�o Azul ou no Encarnado?
� Sr. Corregedor, acho que, com o que j� lhe esclareci sobre
minha posi��o pol�tica, a resposta � clara! Se eu fosse Samuel, teria
colocado todos doze no Cord�o Azul; se fosse Clemente, no Encarnado.
Mas eu, iel � minha orienta��o monarquista-da-esquerda, coloquei seis
no Cord�o Azul e seis no Encarnado. Tive, por�m, o cuidado de que n�o
houvesse repeti��o de papel na fam�lia Quaderna: com isso, garantia
um t�tulo de Par-de-Fran�a-Sertanejo para cada um deles, e, ao mesmo
tempo, organizava, com os doze juntos, o Destacamento azul-vermelho
da minha Guarda-Real!
* * *
Eu falava demais, novamente, cego pelo orgulho que depois me
perdeu. Mas, no momento, n�o percebi, e continuei, no embalo da
honra:
� Meus doze irm�os formam, ali�s, Sr. Corregedor, um lote de
Guerreiros que orgulharia qualquer Rei! Num certo dia,
important�ssimo para mim, eu chegara � conclus�o de que, leg�timos ou
bastardos, todos os Quadernas eram Fidalgos, e decidi jamais consentir
que nenhum de n�s exercesse �qualquer proiss�o vil de Burgu�s�,
como diz Samuel. Lembrei-me de que todos n�s, ilhos de meu Pai,
�ramos um pouco Vaqueiros, ca�adores, Cantadores etc. Pod�amos,
portanto, nos manter, todos, meio ociosos, meio criminosos, meio
vagabundos e donos das nossas ventas, como todos os Fidalgos e

Cavaleiros que se prezam! Era o �nico jeito de nos mantermos � altura
da nossa linhagem, numa sociedade em que sobram poucas proiss�esnobres,
na estreita margem de atividades que a propriedade rural
deixa. Foi por causa dessa decis�o minha, Excel�ncia, que nenhum
Quaderna trabalha para ilho da puta nenhum! Proibidos pelo
consuetudin�rio-idalgo da fam�lia, nenhum Quaderna tem patr�o
nenhum que exija de n�s as obriga��es e os trabalhos que t�m os
industriais, os comerciantes e outros desgra�ados e danados Burgueses
com voca��o de burro de carga! Todos n�s s� temos proiss�es livres,
ociosas e marginais de Fidalgos!
� Como assim? � objetou o Corregedor. � O senhor e alguns
de seus irm�os n�o trabalham na Gazeta de Tapero�, o jornal do
Comendador Bas�lio Monteiro?
� Ah, mas em condi��es muito especiais! Um dia, procurei o
Comendador e sugeri a ele que introduzisse, no jornal, uma p�gina
liter�ria, charad�stica e zodiacal. Eu queria dirigi-la, para ter prest�gio e
for�a perante os intelectuais da Vila. O Comendador j� estava querendo
tirar o corpo fora, quando eu disse que tinha uma exig�ncia: era que ele
n�o pagaria nem um tost�o nem a mim nem a meus irm�os! Eu dirigiria
a p�gina como se fosse um jornal � parte. O trabalho extra seria todo
feito por meus irm�os, como tip�grafos, riscadores e cortadores de
madeira. Com isso, o jornal dele ganharia mais leitores e mais dinheiro,
porque n�s manter�amos, na p�gina, uma se��o de hor�scopos e um
consult�rio sentimental. A �nica coisa que eu queria em troca disso era
a permiss�o de, trabalhando � noite, fora do expediente normal, eu e
meus irm�os imprimirmos folhetos e romances que Lino Pedra-Verde
venderia na feira, rachando todos n�s o lucro. Vendo a possibilidade de
melhorar o jornal sem gastar nada, o Comendador concordou
imediatamente. Foi assim que come�amos a trabalhar na Gazeta. Eu n�o
estou, de fato, trabalhando para o Comendador, e sim para mim mesmo,
porque a p�gina � um suplemento separado e independente do jornal e
eu sou o Diretor soberano dela. Por seu lado, meus irm�os trabalham �
para mim, e n�o para o Comendador. � por isso que aumentei o meu
prest�gio de intelectual e Acad�mico sem arranhar, sequer, meus
privil�gios de Fidalgo!
� Bem, mas me disseram, ainda, que a Prefeitura paga ao
senhor as Cavalhadas, organizadas e corridas pelos Quadernas!

� E Vossa Excel�ncia quer coisa mais idalga do que isso?
Primeiro, mesmo que trabalh�ssemos para o Estado, seria coisa
perfeitamente compat�vel com a nobreza-de-toga! Mas n�o �
propriamente trabalhar para a Prefeitura, o que fazemos! N�s n�o
somos propriamente funcion�rios, � esporadicamente que somos
chamados. De fato, n�s fazemos as Cavalhadas somente para nos
divertir ociosamente, idalgamente, e para imprimir na imagina��o do
Povo taperoaense as nossas imagens gloriosas de Cavaleiros do Sert�o.
Agora, se a Prefeitura, por conta dela, ainda por cima resolve pagar
nossa idalga divers�o, �timo! Ali�s, todo Fidalgo � estipendiado!
Fidalguia sem ten�as, bolsas, comendas e estip�ndios, n�o tem gra�a
nenhuma! Era por isso ent�o que ali, naquele s�bado, dia 1� de Junho
de 1935, estavam os meus doze irm�os prediletos ganhando o dinheiro
da Prefeitura. N�o por�m para trabalhar, com obriga��es plebeias de
Burgueses, e sim para se divertirem numa Cavalhada ociosa, gloriosa e
guerreira de Fidalgos-sertanejos, com bandeira e tudo!
E para que o Corregedor fosse logo travando conhecimento com
os meus gloriosos Doze Pares de Fran�a do Sert�o, desiei, perante ele,
a seguinte lista:
* * *
� No Cord�o Encarnado, meu irm�o Virgolino Pinag� Quaderna,
que, na vida civil, � Cantador, fazia o papel de Rold�o. S�lvio Junco-
Brabo Quaderna, que � Vaqueiro e rabequista, fazia o papel de Oliveiros.
Bento Guar�-Vieira Quaderna, que � Tangerino e boiadeiro, era Gui de
Borgonha. Euclides Seriema Quaderna, Almocreve, era Ricarte da
Normandia. Matias Maciel Carna�ba Quaderna, Santeiro e Imagin�rio,
era Urgel de Dano�. E Greg�gio Cama�ari Quaderna, fot�grafo e Poeta,
era Guarim de Lorena. No Cord�o Azul, Joaquim Braz Quaderna,
tip�grafo do meu suplemento, era Bosim de G�nova. Augusto Maracaj�
Quaderna, Cavalariano, era Tietri de Dardanha. Ant�nio Papacunha
Quaderna, tocador de p�fano e Pintor das bandeiras e santos das
prociss�es, era o Duque de Nem�. Rubi�o Timbira-Tejo Quaderna,
fazedor de fogos e Fogueteiro, era Hoel de Nantes. Taparica Paje�-
Quaderna, cortador de madeira, Riscador e tip�grafo-ajudante, era
Gerardo de Mondif�r. E inalmente, �ltimo mas n�o derradeiro na

minha admira��o, vinha o predileto entre os meus prediletos,
Malaquias Nicolau Pav�o Quaderna, aguardenteiro, conquistador,
folheteiro e Cambiteiro, no papel guerreiro e heroico de Lamberto de
Bruxelas! N�o se esque�a, Sr. Corregedor, de que todos n�s �ramos
atiradores, Ca�adores, montadores e trocadores de cavalos, de modo
que mesmo os mais sedent�rios de n�s, os meus tip�grafos, por
exemplo, tomavam parte, com os outros, nas ca�adas, nas cavalarias,
nas �entradas� ociosas e idalgas que eu organizava e que eram
expedi��es guerreiras � altura do nosso sangue e da nossa estirpe! Se
Vossa Excel�ncia visse, naquele s�bado, todo o meu pessoal preparado
para a Cavalhada, icaria entusiasmado, mesmo n�o sendo Sertanejo! Os
Doze Pares de Fran�a do Azul vestiam cal��es azuis e saio de belbutina
amarela caindo sobre botas de couro que vinham at� o joelho. Usavam
esporas longas e longos punhais de cabo de prata, capacete de landre,
e, amarrada ao pesco�o, caindo para tr�s, uma capa azul com cruz de
ouro. Os cendais que enfeitavam suas lan�as eram azuis, assim como
azuis eram as mantas-de-anca, gualdrapas e peitorais que enfeitavam as
selas e os cavalos. J� nos Doze Pares do Cord�o Encarnado, os cal��es
eram vermelhos e vermelhas eram as estrelas que salpicavam os saios
verdes. As capas encarnadas ostentavam, em vez de cruz, duas ilas
verticais de tr�s crescentes cor de ouro, sendo tamb�m vermelhos os
cendais das lan�as, os peitorais, gualdrapas e mantas-de-sela dos
cavalos. O matinador do Azul conduzia, presa � haste de uma comprida
lan�a, uma Bandeira azul com esfera de Ouro no centro. O do
Encarnado, uma Bandeira vermelha tendo ao centro um Crescente
branco.

BANDEIRA DO ANJO QUE VINHA NA CAVALGADA DO RAPAZDO-
CAVALO-BRANCO.

� Um o qu�? � exclamou o Corregedor, dando uma esp�cie de
bote para o meu lado.
Eu, pegado de surpresa e sem saber o motivo daquele salto,
repeti mais alto:
� Um crescente branco!
� Voc� n�o disse que, na capa dos Cavaleiros do Azul, havia uma
cruz?
� Disse, sim senhor!
� Que forma o senhor disse que tinha a marca, queimada a
ferro em brasa na esp�dua de Dom Pedro Sebasti�o?
� A forma de um crescente, encimado por uma cruz! � disse
eu, esmagado.
� Pois eu lhe pergunto, Sr. Quaderna: se fosse o senhor quem
estivesse investigando o crime, n�o acharia estranha essa coincid�ncia
n�o?
� Sr. Corregedor, toda Cavalhada sertaneja tem esses
emblemas!
� Acredito! Mas, por um motivo de pura rotina processual,
conv�m anotar esse fato confessado pelo depoente, Dona Margarida.
Anotou?
� Anotei, Doutor!
� �timo! Agora, pode continuar, Sr. Pedro Dinis Quaderna!

O
FOLHETO LIV
A Parada dos Fidalgos Sertanejos
n� de lacraias come�ava a me enredar cada vez mais, nobres
Senhores e belas Damas de peito macio. De modo que foi sentindo
aumentar a sensa��o de aperto no est�mago e fazendo um enorme
esfor�o para que o Corregedor n�o notasse a minha perturba��o que
continuei a narra��o dos acontecimentos daquele terr�vel dia:
� Para assistir � entrada dos Cavaleiros na rua, Sr. Corregedor,
tinham vindo � Pra�a quase todos os moradores da nossa Vila. A
Aristocracia-rural e a Nobreza-de-toga tinham se distribu�do num
palanque, previamente armado para isso. A Burguesia-urbana sentavase
em cadeiras de bra�o e cadeiras de balan�o, espalhadas pelas
cal�adas da Pra�a. Quanto ao Povo, como diziam Clemente e Dom
Eus�bio Monturo, �estava, como sempre, a p� e na poeira do ch�o�. No
palanque, estava, portanto, o que havia de melhor entre n�s, quanto a
Damas e var�es de alta linhagem: sendo que, logo ao lado do Prefeito e
do Presidente do Conselho, destacavam-se, lamejantes, as iguras dos
meus dois Mestres, Clemente e Samuel, esses dois homens subversivos
e perigosos mas sem d�vida geniais, a quem devo a maior parte da
minha forma��o. Clemente trajava agora, ali no palanque, sua
indefect�vel roupa de brim branco, imaculada, engomada
cuidadosamente por sua mulher, Dona Iolanda G�zia. Trazia colete do
mesmo pano e gravata cor de p�rola, com um enorme rubi incado nela,
a modo de broche. Colocada sobre tudo isso, pusera a toga negrovermelha
que costuma usar nos grandes dias de j�ri, quando faz reluzir
suas qualidades de jurista e Fil�sofo, diante dos Sertanejos
embasbacados. Samuel usava sua insepar�vel roupa de casimira preta,
colete castanho, gravata verde com esmeralda, e uma toga que tinha
sido desenhada por meu irm�o Ant�nio Papacunha Quaderna, o pintor
de bandeiras, sob orienta��o e supervis�o do pr�prio poeta Wan

d�Ernes. Essa toga sempre causava ao nosso Promotor alguns
problemas com os Ju�zes novos da nossa Comarca.
� Alguns problemas? Por qu�?
� Porque era meio diferente das togas comuns. Era amarela,
com orlas e emblemas verdes debruando tudo, o que Samuel
encomendara a meu irm�o por motivos de idelidade integralista � cor
verde!
� Veja a senhora, Dona Margarida, o radicalismo dessa gente! �
disse o Corregedor, abismado. � At� nas togas esses homens
introduzem o radicalismo pol�tico! Isso aqui est� tudo minado pela
agita��o!
Para atenuar tudo, observei:
� Ali�s, Sr. Corregedor, acho que era por causa disso mesmo que
os Ju�zes estranhavam! Mas Samuel esclarecia sempre a eles que n�o
via nada de estranho no fato de sua toga �ostentar as cores nacionais�,
argumento que sempre fazia com que os Magistrados recuassem,
temerosos de desrespeitar a Na��o! Depois, terminavam por se
acostumar e at�, �s vezes, por aplaudir o nosso Promotor, ao conhec�-lo
melhor. E quanto a essas quest�es de uniformes politicamente radicais,
creio que aqui a nossa jovem Margarida vai ter que dar ao senhor
algumas explica��es, porque, naquele dia, estava l� tamb�m, no
palanque, a m�e dela, Dona Carmem Gutierrez Torres Martins. Esta, Sr.
Corregedor, � uma igura que Vossa Excel�ncia precisa conhecer e
cultivar! � falei, passando um rabo-de-olho para Margarida, que me
atravessava, com olhos fuzilantes. � Dona Carmem � uma mulher
intelectual, vi�va de um velhinho muito mais velho do que ela e que
ainda era vivo naquele tempo. � uma senhora magra, distinta,
simpatic�ssima e que, n�o sei por qual motivo, � detestada pela ilha!
Naquele tempo, ainda se poderia, talvez, encontrar um motivo para essa
avers�o, porque, segundo as m�s-l�nguas da Vila, Dona Carmem
mantinha, h� v�rios anos, uma �amizade intelectual� com o nosso Anjo
deca�do e promotorial, o Doutor Samuel Wan d�Ernes, seu companheiro
de canto no coro da nossa Igreja! Mas hoje isso n�o se explica mais,
porque, segundo icou provado depois, essa amizade intelectual, se
existia, n�o podia ser sen�o �um romance plat�nico�, mal interpretado
na rua pela maldade humana. Dona Carmem era Presidenta Perp�tua
das �Virtuosas Damas do C�lice Sagrado�, organiza��o radical que existe

aqui e da qual Vossa Excel�ncia precisa ir tomando conhecimento,
porque � ligada � �Ordem dos Cavaleiros da Esfera Armilar�, grupo
extremista da Direita, fundado pelo Doutor Samuel Wan d�Ernes e
Gustavo Moraes, o ilho do usineiro Ant�nio Moraes. Como Vossa
Excel�ncia j� deve ter sabido, consta que os Integralistas tentaram um
golpe armado contra o Governo, na noite de 10 de Mar�o passado. O
chefe principal desse golpe foi o Contra-Almirante Frederico Villar, cuja
fam�lia �, aqui em Tapero�, uma das mais poderosas!
O Corregedor interrompeu:
� Deixe de lado as �Virtuosas Damas do C�lice Sagrado�! Deixe
tamb�m de lado suas an�lises pessoais da Pol�tica nacional, porque a
interpreta��o dessas coisas ica por minha pr�pria conta! N�o preciso
de esclarecimentos seus sobre assuntos gerais; quero saber � sobre o
caso concreto e os acontecimentos ligados a seu Padrinho e ao Rapazdo-
Cavalo-Branco! Continue, portanto, a narra��o sobre aquele dia.
� Sim senhor! Dona Carmem, como eu vinha dizendo, na
qualidade de Presidenta da �Vidacasta�, usava, naquele s�bado, sobre o
vestido verde de mangas compridas, uma esp�cie de t�nica ou estola
branca, com cruz azul �s costas, assim como ostentava � cabe�a um
chap�u, igual �quele com que Joaquim Nabuco aparece na Crestomatia
� um chap�u com borla pendurada e formado, em cima, por uma
tampa quadrada de papel�o. No dela, o forro exterior era de seda azul,
enfeitado com duas largas itas de gorgor�o cor de ouro, passadas por
cima da tampa, em forma de cruz. Ao lado de Dona Carmem, estava o
Comendador Bas�lio Monteiro, que n�o pertencia � Aristocracia-rural
mas que estava no palanque, com sua opa roxa e seu barand�o, na
qualidade de Presidente da Irmandade das Almas. Estava o Coronel
Severo Torres Martins, o velhinho, marido de Dona Carmem e Pai, aqui,
da nossa Margarida: estava com sua farda amarelo-esverdeada de
Comandante da Guarda Nacional, com dragonas de ouro, espada e tudo.
Olhava para tudo com desinteresse e impaci�ncia, aguardando o
momento em que, �acabadas aquelas besteiras de cavalos, lan�as e
argolinhas, come�asse a parte realmente importante da festa�, quando
ent�o ele, Severo, pelo seu bom comportamento no palanque, seria
premiado por Dona Carmem, que lhe permitiria comer bolos � vontade,
na festa que estava pronta para receber o Bispo.

� J� lhe disse que deixasse essas coisas de lado! � disse o
Corregedor, que notara o constrangimento de Margarida e falou com ar
duro.
Mudei de assunto:
� O irm�o do Comendador Bas�lio Monteiro, Eus�bio,
conhecido na rua pelo apelido de Dom Eus�bio Monturo, o que devia �
sua l�ngua de prata e a seu boc�o desabusado, n�o estava no palanque,
porque, al�m de inimigo do irm�o, era radical em Pol�tica �e n�o
consentiria, de modo nenhum, em aparecer, de p�blico, juntamente
com a plutocracia sertaneja�. Anticlerical e ateu, considerava-se �O
Paladino do Povo�, e acharia uma trai��o de sua parte colocar-se no
palanque, ao lado da Aristocracia, em vez de no ch�o, �perto dos nossos
irm�os sofredores, os p�s-rapados da poeira�. Estava agora, pois, ali, no
ch�o, perto do palanque, com sua alta estatura, seus ombros meio
curvados, seus olhos vesgos, seus longos cabelos e bigodes ca�dos,
embranquecidos �nas lutas populares e nas revolu��es libert�rias�,
segundo ele mesmo declarava. De bra�os cruzados sobre o peito,
mantinha um ar soberbo e desdenhoso, com o qual desejava
demonstrar � Aristocracia taperoaense que ele, o Paladino do Povo, era
superior a todas aquelas palha�adas; que poderia ter subido ao
palanque, mas n�o quisera; que estava na Pra�a por pura
condescend�ncia, e assim por diante. De vez em quando, Dom Eus�bio
Monturo voltava para o palanque uns olhos fuzilantes, detendo-os
principalmente sobre o Professor Clemente que, sustentando ideias
pr�ximas das dele, �tra�a o Povo e a Revolu��o para se exibir, como um
lacaio, ao lado dos senhores-feudais do Sert�o�. O fato, por�m, � que o
pessoal do palanque absolutamente n�o estava ligando para os desd�ns
nem para os furores de Dom Eus�bio Monturo. Estavam, ali, �todas as
pessoas de pr� da Vila�. Com exce��o, � claro, do riqu�ssimo e poderoso
Ant�nio Moraes e de sua fam�lia: excessivamente orgulhosos, n�o
davam acesso a ningu�m da rua � casa deles e n�o compareciam,
tamb�m, a nenhuma das nossas festividades. Bastaria isso para mostrar
como o Sr. Ant�nio Moraes era diferente do nosso velho Rei Degolado,
meu padrinho Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto, que comparecia a
todas, prestigiando mesmo, liturgicamente, a realiza��o de algumas
delas; o que deu origem a essa cal�nia que me izeram perante o
senhor, de que eu teria contribu�do para a dem�ncia inal dele. Ar�sio,

por seu lado, �muito feliz da vida, de cama e mesa na casa do arquiinimigo
de seu Pai� tamb�m n�o tinha aparecido para as festas. Ali�s,
tamb�m em vida de seu Pai, Ar�sio detestava �as palha�adas a que ele
se submetia�, de modo que era sempre Sin�sio quem comparecia ao
lado do nosso Rei do Cariri e Imperador do Divino, sendo este um dos
motivos da popularidade do ilho mais mo�o e da impopularidade de
Ar�sio, perante o Povo de nossa Vila. Agora, ao contr�rio do que
acontecia com Dom Eus�bio Monturo, as aus�ncias e os desd�ns dos
Moraes e de Ar�sio eram sentidos por todos os moradores da rua.
Sent�amos que eles se consideravam como pertencentes a uma esfera
ininitamente superior e que esse era o motivo de permanecerem l�, na
sua casa-grande do �Alto dos Borrotes�, dominando toda a Vila,
solit�rios, cheios de si, fruindo, isolados e altivos, suas grandezas, seu
bom gosto e tamb�m sua vida familiar enigm�tica e meio inconfess�vel
de Fidalgos superiores ao nosso meio, emigrados das usinas de
Pernambuco para as minas, para o algod�o e o couro do Sert�o da
Para�ba.
* * *
� Do lado direito do palanque, eu ordenara que se dispusessem
os �Caboclos de Lan�a� da minha �Tribo Coroada dos Panatis�; e, do
lado esquerdo, minha �Na��o Cabinda do Reisado Sudan�s�. Sabedor,
por experi�ncia, de como s�o necess�rias todas as cautelas nessas
coisas de monarquias � pois h� sempre um pretendente qualquer �
espreita, sequioso de poder e louco para tomar nossos tronos �, eu
disseminara por entre os membros de ambas as Na��es os meus irm�os
bastardos que n�o estavam na Cavalhada. Tivera, � claro, o cuidado de
colocar os mais acaboclados na �Tribo Panati� e os mais escuros no
�Reisado Sudan�s�. Escolhera, al�m disso, dois dos mais bemapessoados,
fazendo, de um, �Rei Caboclo e Cacique�, e do outro, �Rei
Negro�. Assim, minha fam�lia estaria a postos em torno do meu Trono, e
todos os Quadernas teriam a seu dispor os lugares dignos de sua
qualidade e hierarquia, como Pr�ncipes de sangue do Reino do Sert�o e
do Imp�rio do Brasil!
� O senhor falou a� em seu trono, foi? � perguntou o
Corregedor, com express�o falsamente descuidosa. � Quer dizer que o

senhor tamb�m � Rei, como Dom Pedro Sebasti�o?
Ave Maria! No meu orgulho, eu tinha ido de novo muito longe!
Estava arriscando a cabe�a, porque se aquele implac�vel Corregedor
descobrisse meu sangue real paterno eu estaria perdido! Ent�o,
tergiversei:
� Sr. Corregedor, estas quest�es de monarquia s�o muito
complicadas, de modo que levam um pouco de tempo para entender!
Do ponto de vista pol�tico e guerreiro, Dom Pedro Sebasti�o e seus tr�s
ilhos � que constituem a �Casa Real do Cariri�. Eu e meus irm�os somos
apenas Pr�ncipes e Guerreiros dessas coisas de Cavalhadas, tribos, Naus
Catarinetas e outras idalguias liter�rias e espetaculosas!
� De qualquer modo, por�m, sendo o senhor, pelo lado
materno, um Garcia-Barretto, mesmo bastardo, � Pr�ncipe, motivo pelo
qual creio que tem direito, tamb�m, ao tratamento de Dom!
� Bem, de certo modo, � verdade! � confessei, lisonjeado. � E
se eu n�o tinha dito isso, ainda, ao senhor, foi por pura mod�stia!
� Desculpe ent�o a nossa falha, at� agora, e queira continuar,
Dom Pedro Dinis Quaderna!
� Obrigado! � disse eu, ingindo n�o ter notado a inlex�o
especial que ele usara.
E continuei:
� Os Panatis, que na minha vida real e principesca eram a tropa
de Arqueiros do meu Ex�rcito particular, usavam mantos de pano
enfeitado com vidrilhos e longas Coroas ou cocares de penas, que,
pregadas a uma manta amarela e verde, pendiam at� os ombros. Seus
corpos tinham sido pintados com listras largas e horizontais, negras e
vermelhas. Vestindo apenas a tanga ritual, traziam a cintura e os
tornozelos enfeitados com penas de Gavi�o. Com seus companheiros, os
Negros da esquerda, estavam ali, prontos a encher os intervalos da
Cavalhada com suas dan�as de �Auto dos Guerreiros�. Alguns traziam
marac�s, feitos de caba�os. Outros, tacapes. Outros, lan�as compridas. A
maioria, por�m, estava armada com longos arcos de madeira, cujas
lechas eram tamb�m enfeitadas com penas e que eles meneavam em
gestos felinos de On�a-Parda, o que me fazia recordar sempre a
introdu��o mitol�gica negro-tapuia da famosa Filosoia do Penetral, de
Clemente. Segundo essa introdu��o, sendo o Sol macho-e-f�mea do
Divino o gerador de tudo, os homens primitivos descendiam do

cruzamento de um deus com um bicho ou p�ssaro, sendo que, como
Clemente airma sempre, �o animal m�tico e gerador por excel�ncia da
Ra�a humana foi a On�a�. Naquele dia, ladeado por dois Pr�ncipes
Pardos, meu irm�o Tabajara Peba Quaderna estava � frente da Tribo,
como Rei Caboclo. Seu traje era semelhante ao dos Arqueiros de suas
ileiras, mas tinha algo a mais; a modo de ins�gnia real, trazia ele �
cabe�a um capacete de landre, enfeitado de penas e com um certo jeito
de elmo, o que, apesar de ter causado grande indigna��o a Samuel, lhe
dava uma dignidade toda especial. Do lado dos Negros, quem estava �
frente da Na��o era Feliciano Nonato, o mais escuro de todos os
Quadernas. Ladeado tamb�m por dois Pr�ncipes, trazia capacete
enfeitado de plumas, saio azul e cal��o vermelho. No peito, ostentava
crescentes de prata e outras incrusta��es de vidrilho cor de ouro, o que,
espero, Vossa Excel�ncia n�o levar� a mal, pois acontece em todo grupo
mouro de Festas do Divino. Colete mourisco, colares de b�zios, cal��es
debruados e meias ajustilhadas cor de creme completavam sua
roupagem. Nos p�s, trazia sapatos de couro de Gato-Maracaj�. Seus
guerreiros vestiam de modo semelhante se bem que sempre mais
modesto, para marcar bem as hierarquias. Assim, Sr. Corregedor, tudo
estava preparado para come�ar. Os Cavaleiros Azuis e os Encarnados
entraram na Pra�a, dispostos em duas ilas paralelas, e dirigiram-se ao
palanque. Eu tinha proibido que meus irm�os izessem qualquer
salamaleque ao Prefeito que, al�m de republicano, era simples membro
da Burguesia-urbana � apesar de casado com uma ilustre Dama
pertencente � Aristocracia-rural. E mesmo que ele fosse Fidalgo, o caso
� que nunca se soube que os Pr�ncipes de sangue izessem sauda��es
aos simples Gentis-homens de suas antec�maras! Por isso foi que,
chegando diante do palanque, em vez de saudarem o Prefeito e o
Presidente do Conselho, o Rei Mouro do Encarnado e o Rei Cruzado do
Azul trocaram uma sauda��o entre si e depois izeram, um ao outro, as
amea�as tradicionais. O Rei Mouro regougou, com voz forte:
�Se tens a For�a capaz,
lutemos de peito a peito:
vou brigar de qualquer jeito,
sou On�a negra e voraz!
Aqui, ningu�m entra mais!
Vamos, os dois, lutar s�s!

N�o atendo � sua Voz,
fogo de minh�Arma sai:
vamos ver quem � que cai,
quem ganha a Luta feroz!�
O Rei Crist�o retrucou:
�Esta � a nossa Batalha,
sangrenta, macha e tirana!
Minha espada, a Durindana,
n�o amostra uma s� falha!
Na forja desta Fornalha
eu ganharei a Vit�ria!
Mas icar�o na Mem�ria
meus malfeitos e perigos,
e os Cantadores antigos
cantar�o a minha Gl�ria!�
� Ap�s essas sauda��es e amea�as rituais, Sr. Corregedor, os
dois Reis espica�aram os cavalos e puseram-se, de novo, � frente das
duas ilas de Cavaleiros, que, ent�o, se dirigiram para os lugares antes
determinados. Uma gir�ndola de foguet�es estralejou no ar, e a banda
de m�sica, conhecida popularmente como �Sinh�-Zeinha�, clarinou um
dobrado marcial, o �Dobrado Euclydes da Cunha�, composto
especialmente para a festa por nosso genial Mestre-de-m�sica e
Mestre-de-capela, Jardelino Maciel, o mesmo que ensaiava as m�sicas
do coro da Igreja, para o Doutor Samuel e Dona Carmem Gutierrez
Torres Martins. Os cavalos, excitados pelos gritos e assobios do povil�u,
pela m�sica e pelos tiros dos foguet�es, pisavam nervosamente o ch�o,
ansiosos para correr. O Rei-de-Armas e Passavante, que era tamb�m um
irm�o meu, ia baixar a Bandeira azul-vermelha que autorizaria o in�cio
do primeiro p�reo, de modo que tudo prenunciava uma Cavalhada
brilhante, alegre, ordeira e animada, muito superior �quela que inicia
As Minas de Prata, obra genial de meu precursor, Dom Jos� de Alencar.
Infelizmente, por�m, Sr. Corregedor, eu tenho que pedir a toda essa

gente que se imobilize a�, nessa atitude, meu irm�o com o bra�o no ar, o
pessoal de olhos aboticados e de boca aberta, a bandeira contra o c�u
etc., porque tenho, agora, que passar � Estrada que nos liga � Vila da
Estaca Zero e contar algo de import�ncia fundamental que estava
acontecendo por ali.

� �
FOLHETO LV
De Novo a Cavalgada
que, sem que as pessoas da Pra�a nem sequer desconiassem,
por essa Estrada de Estaca Zero vinha se aproximando de n�s,
naquele instante, uma outra Cavalgada que iria mudar
inteiramente o rumo dos acontecimentos e o destino de muitas das
pessoas mais importantes do lugar, incluindo-se entre estas, apesar de
minha humildade, o modesto Cronista-idalgo, Poeta-escriv�o e Rei
d�Armas da Casa Real do Sert�o do Cariri que est� lhe falando aqui,
agora. N�o vou descrever essa Cavalgada com pormenores, pois o
senhor j� conhece, mais ou menos, meu estilo r�gio. Basta que lhe diga
que era composta quase toda de Ciganos, vestidos de gib�es
medalhados e cravejados. Vinham, nela, on�as, veados, gavi�es e cobras,
trazidos em carretas ou caix�es. Ela vinha precedida por duas
bandeiras, uma com on�as e contra-arminhos, outra com coroas e
chamas de ouro em campo vermelho. Havia quatro homens que
pareciam os mais importantes, os chefes e pessoas de pr� dela: um
frade-cangaceiro, Frei Sim�o de nome, o Doutor Pedro Gouveia da
C�mara Pereira Monteiro, Lu�s Pereira de Sousa (mais conhecido como
Lu�s do Tri�ngulo) e o Rapaz-do-Cavalo-Branco. Essa cavalgada ca�ra,
h� poucos momentos, numa emboscada que lhe fora armada pelo grupo
do Capit�o Ludugero Cobra-Preta, tendo perdido, na luta, um dos seus
porta-bandeiras, o Alferes Jos� Colatino Leite. Agora vinha ali, j� bem
perto de Tapero�. �s bandeiras j� mencionadas tinham acrescentado
mais quatro, uma representando um Touro com asas, outra uma On�a,
outra um Anjo de quatro cabe�as e outra um Gavi�o.
� E � verdade tudo isso? Todas essas roupas idalgas, essas
bandeiras, essas on�as, esses acontecimentos estranhos, tudo isso �
verdade ou � �estilo r�gio�?
� Bem, se o senhor quiser, pode imaginar somente uns cavalos
pequenos, magros e feios, uma por��o de gente suja, magra, faminta e

empoeirada, arrastando por aquela estranha Estrada uma por��o de
velhos animais de Circo, fam�licos e desdentados, numa tropa pobre e
amontoada. Para mim, por�m, somente o facho sagrado da Poesia r�gia
� capaz de dar a medida daquele evento extraordin�rio, de car�ter
epopeico! De fato, Sr. Corregedor, somente vendo esse peda�o de
estrada por onde eles vinham agora � que a gente pode imaginar bem a
cena! Da banda direita dos Cavaleiros ciganos, essa estrada, ali, �
ladeada por um despenhadeiro que eles vinham beirando, havia j� uns
cinco minutos, em sua caminhada. Amparavam-se, por�m, do abismo
atrav�s de uma cerca-de-pedra que, segundo vi no Dicion�rio Pr�tico
Ilustrado, os Portugueses chamavam castro, umas trincheiras de pedra
que eles herdaram dos Latinos, e n�s, Sertanejos, herdamos dos
Portugueses e Espanh�is. Nas pedras da cerca, o sol enceguecedor
faiscava, centelhando em seu granito, incrustado de quartzo e
malacacheta. Do lado esquerdo dos Ciganos, o morro pedregoso, que
fora cortado a dinamite em 1924 para abrir lugar � estrada, subia quase
a pino, descobrindo, por entre peda�os da camada de terra dura e seca,
trechos espa�ados do enorme lajedo, bruto e viol�ceo, que o constitu�a
quase inteiramente, por baixo. Os peda�os de lajeiro que aloravam
ent�o, apresentavam-se cobertos de Coroas-de-Frade e Macambiras,
rubras, amarelas ou roxas, �s vezes com maravilhosas lores escarlates
luzindo entre as folhas espinhosas, mas sempre selvagens, incendiadas
pelo sol, como se fossem enormes tochas, ou lampad�rios, entre os
quais errassem, solit�rias e ferozes, On�as vermelhas ou fulvo-pardas
� os Leopardos sertanejos. Tudo isto, para cumprir o que profetizara
da minha Epopeia um excelso Vate brasileiro, quando cantou assim:
�As Pedras desabrocham solit�rias,
de Arquitetura espl�ndida e fant�stica:
s�o-lhe, Brom�lias, rubros Lampad�rios.
E, por vida inda dar-vos, Leopardos,
vivo-escarlates e indolentemente,
os Guarases, � luz do Sol, tra�avam
a Coroa do Sangue Espadanante.�

� Entremeando tudo isso, Sr. Corregedor, a Caatinga, o carrascal
�spero e pardo, queimado pelo Sol. Este, �s duas e tanto da tarde, era
t�o violento que a vista se encandeava em suas cintila��es. Nesses
momentos, os Cavaleiros, meio cegos pelo Sol, que os impedia de ver o
resto das Caatingas e Tabuleiros, tinham a impress�o de que estavam
caminhando por uma estrada, perdida nos ares ardentes e iluminosos,
uma estrada que n�o tocava o ch�o, como as outras, mas sim pairava
suspensa, pendurada da panela emborcada e fervente-azul do c�u pelos
raios de cobre do Sol. O vento incendi�rio da Caatinga, o �Sert�o�
abrasador, roncava por espa�os no Tabuleiro, levantando, em
ridimunho, colunas de folhas secas e gravetos, a mais de trinta metros
de altura, o que aumentava a impress�o da tribo de Guerreirosvagabundos
de que estavam caminhando, numa viagem-de-ilumina��o
ou numa demanda-novelosa, por uma estrada que conduzia �� terraestranha
da morte�. O senhor j� ouviu falar, por acaso, do Cantador
Pedro Ventania?
� N�o, nunca me deram essa honra n�o!
� Pois ele foi engolido por uma Cobra, Sr. Corregedor, e foi
pensando nele que eu falei, h� pouco, na terra-estranha da Morte!
Ventania estava na Caatinga, ca�ando raposas, quando, de tr�s de um
lajedo, uma enorme Cobra-de-Veado deu-lhe um bote e come�ou a
engoli-lo, primeiro os p�s, depois as pernas, o bucho, o pesco�o e a
cabe�a de olhos aboticados! Os companheiros de ca�a dele, paralisados
pelo terror e meio tonteados pelo bafo da Jiboia, me contaram depois,
que, quando Ventania j� ia desembandeirando de cabe�a abaixo para
dentro da Cobra (ou melhor, de goela e de bucho abaixo), gritou, com
uma voz meio engolida e j� ressoando nas entranhas do chamado
Bicho-Cobra, sua �ltima frase neste mundo, e que foi: �Adeus, minha
gente, que eu j� vou em terra estranha!� Pois este nosso Sert�o velho, Sr.
Corregedor, talvez seja mesmo a terra-estranha da Morte, dominada
pelos dentes das On�as, pelo veneno das Cobras, das Lacraias e de
outros bichos � a terra na qual, ao contr�rio do que seria de esperar,
aquele Donzel errante que era o Rapaz-do-Cavalo-Branco cada vez se
adentrava mais naquele instante, sonhosamente em busca da sua vida,
destro�ada e perdida, sem que ele soubesse por qu�. Por ali chegava ele,
agora. E fora talvez j� pensando na apari��o desse sonhoso e ang�lico

Donzel em minha Epopeia, que o genial Bardo brasileiro, �lvares de
Azevedo, escrevera aqueles versos prof�ticos que dizem:
�Criatura de Deus, se peregrina
invis�vel na Terra, restaurando
a Justi�a aos que sofrem, certamente
que � um Anjo de Deus!�
O Corregedor cortou, com ar incr�dulo e ir�nico:
� Quer dizer que, na sua opini�o, aquele Rapaz-do-Cavalo-
Branco era uma esp�cie de Anjo de candura, inocente e inofensivo!
� N�o, Sr. Corregedor! Um Anjo � uma coisa muito diferente do
que as pessoas pensam! O senhor, n�o tendo sido disc�pulo de Samuel e
Clemente, n�o pode conhecer a tr�plice natureza da On�a do Divino,
dividida em quatro partes: a On�a-Pintada, a On�a-Negra, a On�a-Parda
e o Gavi�o de Ouro. Ou, em outras palavras, a Esmeralda, a Granada
Negra, o Rubi e o Top�zio. Os Anjos, sendo ligados ao Pai, � On�a
Malhada, ao sopro do Sert�o � o vento incendi�rio do Deserto � e �
Sar�a Ardente da Pedra Lispe, s�o seres de fogo, armados de espada e
terrivelmente perigosos!
� Ent�o, o senhor acha que o Rapaz-do-Cavalo-Branco era
perigoso!
� Bem, Sr. Corregedor, quanto a isso estamos de pleno acordo!
N�o tenho a menor d�vida de que o Rapaz-do-Cavalo-Branco era
perigoso, e basta ver tudo o que aconteceu depois da chegada dele para
entender isso!
� Anote essa declara��o, Dona Margarida, ela � fundamental
para o inqu�rito.
� Eu acho, ali�s, que foi por isso que o grande Bardo paraibano,
Augusto dos Anjos, vendo, em seus sonhos de Iluminado sertanejo,
aquela Estrada legend�ria e fat�dica por onde o Rapaz-do-Cavalo-
Branco apareceu, viu-a como �uma imensa e rutilante Cobra, de
epiderme in�ssima de areia�, povoada de Anjos e Dem�nios, e atribuiu
ao Donzel aquela impreca��o cifrada e enigm�tica que diz assim:

�Quem foi que viu a minha Dor chorando?
Saio. Minha Alma sai, agoniada!
Andam Monstros sombrios pela Estrada,
e, pela Estrada, entre esses Monstros ando!�

� U
FOLHETO LVI
A Visagem da Besta Bruzac�
ma pergunta, Dom Pedro Dinis Quaderna: o senhor acredita no
Diabo?
� Como � que posso n�o acreditar, Sr. Corregedor?
Ainda agora, quando eu vinha para c�, ele apareceu ao irm�o do
Comendador Bas�lio Monteiro, ali, no monturo da areia do rio, perto do
Chafariz! Eug�nio Monteiro estava me lembrando quantas vezes, aqui
no Sert�o, a gente encontra, nessas chapadas nuas e pedregosas, seres
alados e perigosos, cru�is e sujos, bicando os olhos dos borregos e
cabritos! Quem s�o eles? Gavi�es? Urubus? Drag�es? Acho que tudo
isso ao mesmo tempo, porque todos eles s�o encarna��es do Bicho
Bruzac�, a Ipupriapa macha-e-f�mea, a Besta que resume tudo o que
existe de perigoso e demon�aco no mundo! O senhor j� viu a Besta
Bruzac� alguma vez?
� N�o!
� Nem nunca ouviu falar dela?
� Tamb�m n�o!
� Pois eu me admiro muito, porque � a Besta mais horrorosa e
conhecida por todo esse mundo velho por a� afora! � coisa sabida, Sr.
Corregedor: ela � o Mal, o Enigma, a Desordem! Passa no Mar os seis
meses do tempo de chuva. Durante esse tempo, tem duas ocupa��es:
causa as tempestades e ica esperando, perto da Costinha, aqui na
Para�ba, a chegada das Baleias, que ela sangra e devora como se fossem
tra�ras ou Curimat�s. A�, quando vem chegando Setembro, ela sai do
Mar, soprando fogo pelas ventas, e vem para uma Furna de pedra
perdida no Sert�o. O fogo soprado pela respira��o dela � que faz a seca!
E ela aparece com muitas formas! Ali�s, se o senhor n�o acredita em
mim, veja a Hist�ria do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, que era
homem idalgo e frade, de modo que sua palavra merece respeito!
Naquele tempo, a Besta Bruzac� era conhecida pelos �ndios como a

Ipupriapa, ou Hipupiara. Ela apareceu na praia, a um tal Baltazar
Ferreira, donzel idalgo, pois era ilho de Capit�o-Mor. Nesse dia,
apareceu com cara de Cachorro, peitos de mulher, corpo e garras de
On�a Malhada, motivo pelo qual eu acho que aquele era um dos dias em
que ela j� vinha para o Sert�o: dizem que nessas horas sempre ela tem
alguma coisa de On�a! Baltazar Ferreira conseguiu feri-la a faca! Se
conseguiu, al�m disso, molhar a boca com sangue dela, ele se tornou
imortal! De qualquer maneira, eu ainda conheci um descendente dele
que � Tabeli�o numa vilazinha do Litoral, l� para os lados do Rio Grande
do Norte! � um velho meio doido; e como ele tem o mesmo nome do
ascendente, Baltazar Ferreira, tem gente que jura que ainda � o mesmo!
Ele vivia impressionado com a hist�ria da Ipupriapa Bruzac�, e foi por
isso que terminou se metendo, comigo e com o Rapaz-do-Cavalo-
Branco, na Odisseia mar�tima que n�s empreendemos com o Mestre
Seraim, na grande barca�a �Estrela da Manh��, viajando do Rio Grande
do Norte at� o Rio S�o Francisco, entre Alagoas e Sergipe!
� Ah, e a aventura do Rapaz-do-Cavalo-Branco teve tamb�m
uma parte mar�tima?
� Teve sim senhor! Constou primeiro de uma �il�ada sertaneja e
terrestre�, e depois de uma �odisseia mar�tima e do litoral�, motivo pelo
qual meu Castelo sertanejo far� de mim um Epopeieta que, numa Obra
s�, ser� mais completo do que Homero teria sido, caso existisse!
� �timo! Mas continue o que voc� vinha dizendo sobre esse
Bicho diab�lico, isso me interessa muito! Desculpe, Dona Margarida,
mas isso � t�o interessante como express�o da psicologia dessa gente,
que n�o posso me furtar a esclarecer o caso!
� E tem raz�o, Excel�ncia! � disse eu. � Talvez n�o conven�a,
assim, � primeira vista, mas o fato � que tudo isso foi important�ssimo
para toda a nossa Desaventura! Olhe aqui: pedi a meu irm�o Taparica,
que � desenhista e gravador, que copiasse a igura que Samuel tinha me
mostrado no livro de Frei Vicente do Salvador! Pe�o ao senhor que
anexe a igura da Ipupiara ao meu depoimento! O senhor sabia que meu
objetivo secreto e enigm�tico, quando acompanhei o Rapaz-do-Cavalo-
Branco, era encontrar a Besta Bruzac�, feri-la, beber-lhe o sangue e me
tornar astrologicamente imortal?
� As informa��es que eu tenho s�o muito diferentes, sobre o
senhor e principalmente sobre ele, o Rapaz-do-Cavalo-Branco! � disse

o Corregedor com uma express�o que me deixou tr�mulo.
Ent�o, para convenc�-lo de vez da qualidade principal de
�viagem ilos�ica e prof�tica� da Demanda novelosa que t�nhamos
empreendido em 1935 e que terminara de modo t�o terr�vel, voltei a
insistir sobre o assunto:
� Vossa Excel�ncia tem o direito de pensar assim, mas isso s�
acontece porque o senhor nunca ouviu falar nas apari��es desse
Dem�nio marinho e sertanejo! Sem se falar em mim, conheci tr�s
pessoas que viram Bruzac�, e nunca mais desinfeccionaram o sangue da
picada pe�onhenta que ela d�!
� E o senhor mesmo viu o Dem�nio?
� Vi, mas minha visagem vai ser contada ao senhor depois, por
uma quest�o de ordem epopeica! Os outros tr�s foram o velho Baltazar
Ferreira, o Tabeli�o de quem j� lhe falei; Mestre Seraim, o velho
Capit�o da barca�a �Estrela da Manh��; e o vaqueiro Manuel In�cio,
cabra do Serid�, que avistou a Besta no Mar, perto da Praia de Touros,
no Rio Grande do Norte. O senhor conhece a Praia de Touros?
� N�o! � disse o Corregedor, meio enfastiado.
De certo modo, o que eu queria era mesmo enfasti�-lo, para
diminuir o perigo do assunto, de modo que continuei:
� � uma praia hist�rica: segundo me contou Samuel, foi ali que
a Esquadra brasileira, comandada pelo Almirante Conde da Torre,
deixou, no s�culo XVII, depois de uma batalha naval que durou v�rios
dias, o pequeno Ex�rcito, comandado por Andr� Vidal de Negreiros,
Luiz Barbalho Felpa de Barbuda, Ant�nio Filipe Camar�o, Henrique
Dias e outros � Ex�rcito que realizou uma das mais belas �retiradas
ilustres� da nossa Hist�ria! � por isso que ali, no litoral do Rio Grande
do Norte, dizem que, de vez em quando, � noite, por cima dos arrecifes,
passeiam as almas dos danados Holandeses e tamb�m o Conde da
Torre, fantasma recoberto de top�zios, procurando levantar velas
batidas, molhadas e rotas e reunir velhas Caravelas desarvoradas. N�o
sei se o senhor j� reparou, mas o Litoral nordestino tem umas praias
rasas, brancas, de areia ina e reluzente que range em nossos p�s
descal�os, e outras pedregosas, altas, empinadas, feitas de rochas cor de
ferrugem. O Cabo de Santo Agostinho e a Fortaleza de S�o Joaquim,
praias onde o gringo Edmundo Swendson tinha terras, eram ambas
deste �ltimo tipo, com um monte pedregoso, a pique sobre o Mar, e

tendo, perto, embaixo, uma enseada de praia rasa, tranquila e serena,
perto da barra de um rio. Ora, Sr. Corregedor, segundo aian�a o genial
Poeta brasileiro Vicente de Carvalho, o mar, �o belo Mar selvagem�, � um
�Tigre a que o vento do largo eri�a o pelo�, um estranho animal felino. �,
tamb�m, um Velho de barba azul, �condenado ao c�rcere das Rochas que
o cingem�. Por outro lado, deve existir, no Mar, alguma coisa
profundamente ligada �quilo que Clemente chama �o Destino do
rebanho humano�, porque Vicente de Carvalho airma, ainda, que,
quando se p�e diante do Mar, ergue impreca��es, clamores e blasf�mias
contra a M�o desconhecida que tra�ou nosso Destino: �Crime absurdo o
crime de nascer�, diz ele. �Foi o meu Crime, e eu o expio vivendo.� Pois
como eu vinha contando: o vaqueiro Manuel In�cio vinha viajando com
um gado que iria vender em Macau. Al�m do gado, levava, tamb�m,
alguns burros carregados de couros, que deixaria l� em troca de Sal
para o Sert�o. Tomou, por acaso, o caminho da Fortaleza de S�o
Joaquim, e seguiu uma estrada velha que beirava o Mar. Era o dia 24 de
Agosto de 1919. Naquela data, perto do meio-dia, Manuel In�cio,
sufocado de sol e calor, chegou a um bosque de cajueiros, onde corria
um riacho. Fez uma parada, tirou a carga dos burros, botou os animais
para beber no riacho, almo�ou, e aproveitou os momentos em que o
gado pastava para descansar um pouco. Espichado sob um cajueiro,
notou, por mal de seus pecados, que ali, � sua frente, a terra se elevava
suavemente formando um morro pedregoso que ca�a a pique no Mar, a
uma altura enorme. Com o deslumbramento de todo sertanejo pela
vis�o do Mar, resolveu subir o monte para ampli�-la. Ao chegar l�, icou
um momento, na certa como Vicente de Carvalho, pensando sobre o
Destino do rebanho humano, sobre o n�mero incont�vel de pessoas
que tinham nascido, vivido, envelhecido e morrido sempre diante
daquele mesmo velho Tigre de barbas azuis. De repente, segundo me
contou depois o Tabeli�o Baltazar Ferreira (que foi quem me narrou
essa hist�ria), o Vaqueiro come�ou a ouvir uns mugidos estranhos e
poderosos. Pensou, a princ�pio, que fosse o seu gado, agitado l� longe
por algum acontecimento fora do comum; mas logo mudou de opini�o,
porque, como ele contava, �r�s nenhuma do mundo daria urros como
aqueles�. A�, olhando para os lados do Mar, ele viu, sobre a dura e
brilhante super�cie verde e azul, iluminada cruamente pelo violento sol
do meio-dia, uma Nuvem negra, cercada por uma orla brilhante da

Coroa solar. Segundo contava o Vaqueiro a Baltazar Ferreira, foi
somente a� que ele come�ou a perceber que a Terra � que se crispara,
h� pouco, dando aqueles mugidos que o tinham aterrorizado. N�o sei,
tamb�m, se o senhor sabe, mas os Vaqueiros sertanejos descobriram,
h� muito tempo j�, que a Terra � uma Vaca, �uma vaca enorme,
arcang�lica e esquisita, que vive mijando rios para o mar�, como
explicava muito bem o nosso Profeta Naz�rio. Dizem eles que, num
certo lugar da Terra, existe uma enorme Gruta, cuja entrada � comprida
e estreita em rela��o � largura, uma Fenda cuja entrada � feita de pedra
coberta de musgo verde e veludoso. O Mar, Tigre verde-azul, foi parido
pela Vaca arcang�lica da Terra atrav�s dessa Gruta verde, e � por isso
que �s vezes a Terra d� esses poderosos mugidos, chamando o ilho
estranho e felino, de cabelos verdes, nos momentos de perigo. Naquele
dia, � medida que a nuvem estranha baixava, e se dirigia para a costa, as
�guas, embaixo dela, inchavam e se intumesciam. Come�aram tamb�m
a ferver, batendo com mais f�ria ainda contra os Rochedos castanhos do
morro. De repente, aquela incha��o gigantesca das �guas se fendeu, e
Bruzac� fez aparecer no ar, surgindo das �guas revolvidas e ferventes,
sua maldita cabe�a coroada! Ah, s� quem j� viu Bruzac� � que pode
imaginar como s�o poderosas e aterrorizantes as formas que ela toma!
S�o sete Chifres turvos e amolados, o Focinho peludo, a Corcova
cer�lea! No cabelouro espesso, uma Cabeleira de serpentes e conchas
entran�adas! O olhar de Cobra e o corpo feito � semelhan�a de um
corpo enorme de Touro branco! Era a Besta marinha, partejada pelos
lombos diab�licos e sagrados do Mar! Seu olhar chamejava, ora
amarelo, ora azul como um a�o de Martelo! Ao fogo do sopro das suas
Ventas, ferviam as �guas em borbulhas de Enxofre envenenado. O peito
era coberto pelo musgo nojento que suja e mancha as paredes do
Inferno alumiado! As esp�duas eram cobertas de malhas feridentas cor
de ferrugem e em cada uma das suas ancas verdes luzia uma estrela
amarela, brilhando entre sarga�os e a salsugem, entre ostras pegadas
ao tronco, anoso e velho como um velho Rochedo extraviado! O
Vaqueiro ouvia seu pr�prio sangue latindo, pedindo, suplicando que ele
corresse e se afastasse do Bicho amaldi�oado. Ao mesmo tempo, por�m,
que ele sentia o horror, sentia tamb�m o fasc�nio do Bicho e da
Desordem desmedida, obrigando-o a procurar ver, ver sempre mais,
pois � destino sem im, nosso, querer, como diz Clemente, �decifrar todo

o Bicho deste Mundo�. A�, Sr. Corregedor, aquela nuvem negra, ou cor de
sangue escuro, coroada pela rebrilhante orla solar, pareceu se curvar
para perto das orelhas e da barba azul do Mar. Como se fossem dois
Diabos invenc�veis, a Nuvem e o Mar trocaram seus segredos indiz�veis.
As asas da Besta Bruzac� se agitaram, causando um repel�o nas �guas e
um estreme�o na terra. L�nguas de fogo e estalos de corisco vadiaram
por todo canto. As �rvores mais pr�ximas da praia crestaram-se
imediatamente, abrasadas pelo vento incendiado, parido pelas asas da
Besta e por suas ventas, fole de cem brasas! Fundiam-se pedras. E
dizem, mesmo, que os meninos que tiveram a pouca sorte de nascer
naquele momento nasceram todos cegos, com os olhos queimados pela
ventania de fogo demon�aco. A�, agitando como remos as patas
dianteiras e usando como velas suas asas de morcego, cobertas de
pedrarias, Bruzac� nadou para a praia, emergindo ali, por inteiro, sua
igura gigantesca. Pousando os cascos na areia, rompeu pelo bosque de
cajueiros e correu para o Sert�o num galope estralejado de animal
feroz, sumindo-se no horizonte, que fumegava. Disse o Vaqueiro que, �
medida que a Besta se sumia na terra, ia sofrendo uma transforma��o:
sua dupla natureza demon�aca ia perdendo o que tinha mais de
monstro-marinho e assumindo outras partes mais felino-sertanejas,
como garras e corpo de On�a, ou Cachorra-Cantadeira. O Vaqueiro,
cujos olhos tinham sido miraculosamente preservados, desceu ent�o o
monte e olhou para o lugar onde ela se sumira. A passagem do Monstro
tinha aberto, a fogo, na Mata, um rombo enorme, um t�nel fumegante
que dava para passar dois trens! Era como se tivesse passado um
Cometa: o ch�o estava raso e coberto de cinzas. Mesmo mais para longe,
numa dist�ncia enorme, as �rvores estavam com as folhas crestadas e
secas, como se tivessem sofrido dois anos de estio. As reses e animais
de sua tropa estavam todos no ch�o, mortos, queimados, erguendo para
o c�u as patas reviradas! Abalado por tudo o que visageara, pesaroso
pela perda do rebanho, mas ainda dando gra�as a Deus por ter
escapado com vida, Manuel In�cio dali mesmo voltou. Agora, para os
lados do Mar, tudo se acalmara. As �guas, azuis aqui, verdes ali, violetas
acol�, brilhavam de novo, serenas, limpas e aian��veis. Sob o Sol de
ouro e cobre, pareciam um Espelho azul e prata, um Espelho que s�
mostrava sua natureza de Tigre perto dos rochedos castanhos, que ele
mordia e tentava despeda�ar com suas garras. Na pr�pria Terra, os

mugidos tinham cessado: ouvia-se, agora, apenas um arfar incans�vel,
que era, talvez, o sopro altivo, triste e corajoso dos humanos,
debatendo-se, no Mundo, como insinuava Vicente de Carvalho, com
nosso Destino cego e indecifr�vel. Vossa Excel�ncia, Sr. Corregedor, me
pergunta, ent�o, como � o Diabo, se eu acredito nele, e como � que ele
aparece... N�o posso dizer com exatid�o! Nessas horas de visagem, o sol
costuma deslumbrar, encandear e cegar, fazendo a Terra tremer em
nossa vista! Ouve-se, roncando, a ventania abrasada do Mundo, e a
gente ica sem saber se � mesmo o vento, soprando em lufadas ardentes
que nos crestam a pele e nos racham os l�bios, ou se � a fornalha do
Inferno que, fendendo o ch�o, se escancarou ali perto, dando sa�da �
secura e � viol�ncia do fogo, assim como � tribo malfazeja dos Diabos
que invadem o mundo, contribuindo para seu concerto e desconcerto
com seus urros, pios e guinchos de Danados!
� Quer dizer que, para o senhor, o Mar e o Sert�o s�o terras
diab�licas?
� � verdade, Sr. Corregedor, mas n�o s�o eles somente n�o, � o
Mundo todo! E lhe digo mais: por mais temerosa que seja a Besta
Bruzac� em forma de monstro-marinho ou de On�a amaldi�oada, alada
e cantadeira das furnas sertanejas, a� pelo menos ela ainda tem uma
forma epopeica! Garanto ao senhor: eu tenho muito mais medo e muito
mais horror ao Diabo das cidades, que tem cara de funcion�rio
aposentado, que anda �s vezes de bicicleta, vestido de preto, com
chap�u-coco, com um ar esquerdo e maldoso, em pleno sol, sem suar
nada, absolutamente nada, o que, como todo mundo sabe, � coisa do
Danado! Mas, felizmente, se o Mundo tem essa face diab�lica, possui
tamb�m a divina. Mostrei ao senhor, como diz Clemente, �a face
esburacada e demon�aca do Caos, no seu aspecto marinho e no seu
aspecto sertanejo�. Mas, ao lado dela, existe a outra, a ang�lica e
paradis�aca. Ali�s, n�o sou eu, simples charadista e Acad�mico
sertanejo quem diz isso n�o, � gente consagrada e importante, como o
Cantador e poeta Euclydes da Cunha. Euclydes da Cunha �, tamb�m,
meu Precursor, como Jos� de Alencar: � recusado, ao mesmo tempo,
pela Direita e pela Esquerda, e ainda foi membro da Academia
Brasileira de Letras. Com essa autoridade, que o torna indiscut�vel, ele
nos demonstra no seu tratado Os Sert�es que o nosso Sert�o tem uma
face de Inferno e outra de Para�so. Acontece, por�m, que Euclydes da

Cunha, por mais genial que fosse, era apenas um precursor meu: n�o
era Astr�logo e Decifrador, nem era o G�nio da Ra�a Brasileira, de modo
que n�o sabia que, na verdade, a face do Sert�o � tripla, e n�o dupla! � o
Inferno, o Purgat�rio e o Para�so; uma parte macha, uma macha-ef�mea
e outra somente f�mea � a Saturnal, a Solar e a Lunar. � por isso
que, depois de olhar a Chapada infernal, com a Furna de Bruzac�, com a
ventania do inferno, com os Gavi�es bicando os olhos dos borregos e
cabritos, Vossa Excel�ncia, se quiser entender, bem mesmo, tudo isso,
deve limpar os olhos e ver, no tempo das �guas, num ano de boas
chuvas, j� em Junho, quando as trovoadas passaram e os rios se
limparam do turvo das enchentes, uma �gua rasa e clara deslizando,
como prata, sobre a areia incrustada de cristais reluzentes. E ainda: o
fulgor das malacachetas; os seixos amarelos, brancos e vermelhos das
encostas e ladeiras; os po�os dos rios, j� meio secos, cuja �gua se ret�m,
entretanto, por entre grandes pedras, e que nos oferecem, quando
estamos ca�ando e com sede, o descanso, a sombra, a car�cia do vento
tornado suave pela proximidade da �gua; e a lora��o das jitiranas, de
camp�nulas roxas ou azuis; das marias-brancas puras e imaculadas,
parecidas com o jasmim-cambraia; dos pingos vermelhos dos feij�esde-
pombo, que aparecem comumente no descampado, mas que eu
posso imaginar sob a fronde umbrosa dos angicos e bara�nas, ou
mesmo sob os p�s de pau-d�arco amarelo, misturando heraldicamente
seu vermelho de goles ao amarelo de ouro que chove de cima sobre n�s,
cobrindo nosso rosto e nossos cabelos. Entendeu agora, Excel�ncia?
Segundo eu li num artigo do Almanaque Charad�stico, os antigos
possu�am uma �Fonte do Cavalo�, na qual os Poetas bebiam sua �gua e
sua inspira��o. Homero, se tivesse existido, teria bebido nela. Pois esta
tripla face do Sert�o, que lhe descrevi, com sua Chapada diab�lica, seu
Purgat�rio de chamas e com sua Fronde paradis�aca de riachos,
ro�ados, a�udes e pomares, � a minha particular, �nica e r�gia �Fonte do
Cavalo Castanho�: � neste Sol que queimo meu sangue, � nesta �gua que
embebo meu Sol, esta � a Fonte do cavalo sertanejo que galopa no meu
riso e no meu sangue, o sangue da terra de onde sai tudo o que sonho,
como Vision�rio, Astr�logo e Profeta sertanejo que sou!
� Meu caro Dom Pedro Dinis Quaderna, observei que o senhor
desiou alguns trechos do que me disse assim meio eniado, como quem
j� sabe tudo decorado!

� � verdade, Excel�ncia! O fato � que, apesar do cotoco, eu
tenho conseguido, n�o escrever deinitivamente, mas pelo menos
arrumar algumas anota��es para a Epopeia, e essas que o senhor notou
foram algumas delas!
� Mas o senhor falou em prosa!
� Pretendo versiicar tudo um dia, seguindo o exemplo das
melhores autoridades brasileiras sobre o assunto.
ENCARNA��O DA BESTA BRUZAC�. PELA BALEIA QUE TAPARICA COLOCOU
EMBAIXO, V�-SE A ENORME SUPERIORIDADE AT� DOS MONSTROS LATINOAMERICANOS
SOBRE OS BEST�SSIMOS MONSTRINHOS ESTRANGEIROS QUE APARECEM
EM OUTRAS EPOPEIAS � SE BEM QUE O CACHALOTE A� REPRESENTADO SEJA
BRASILEIRO, POIS FOI COPIADO POR TAPARICA DO RETRATO DE UM DESSES BICHOS,
QUE S�O FREQUENT�SSIMOS, AQUI NA PARA�BA, NA PRAIA DA COSTINHA.

� Est� bem, mas, como j� lhe disse, o que me interessa mais � o
inqu�rito e os acontecimentos ligados ao Rapaz-do-Cavalo-Branco. Na
sua opini�o, aquilo tudo que sucedeu a ele no dia 1� de Junho de 1935
foi um acontecimento saturnal, solar ou lunar? Infernal, do purgat�rio
ou paradis�aco?
� As tr�s coisas, Sr. Corregedor! � por isso que, na minha
Epopeia, quando, l� um dia, o senhor for l�-la, olhando com cuidado
encontrar� um Inferno, um Purgat�rio e um Para�so � o Pai, o Diabo, o
Filho, a Mulher e o Esp�rito Santo �, Saturno, o Sol e a Lua. � por isso
que eu lhe contava como, naquele dia, al�m dos bichos vis�veis que
vinham nas carretas, a Estrada estava povoada de bichos invis�veis �
Arcanjos alvos e reluzentes, como um bando de Gar�as ou Cisnes de
fogo, e Dem�nios escuros e peludos como morcegos gigantescos, com
corpo de On�a, encarna��es invis�veis de Bruzac� que enchiam o
Tabuleiro seco e pedregoso com os ladridos diab�licos e os estalos e
ridimunhos de suas asas sangrentas. Talvez fossem, mesmo, as Espadas
de fogo dos Anjos e os ladridos dos Dem�nios � e n�o o Sol � que,
retinindo nas pedras como uns martelos, estivessem desferindo aquelas
lascas de fogo cintilante, capazes de encandear e cegar a vista. �
poss�vel, tamb�m, segundo vive dizendo Clemente em seus
arrebatamentos de Fil�sofo sertanejo, que o pr�prio Mundo, diante do
qual se encontrava o Donzel naquele instante, �fosse um animal
monstruoso, uma On�a-Parda enigm�tica, que n�s tiv�ssemos de
capturar e domar, sob pena de morte�. N�o sei, Sr. Corregedor! O que eu
sei � que, como diz o ditado, �quem tem medo de On�a n�o se mete a
andar no mato�. Agora, aqui, como Acusado, evoco aquele Donzel de
linhagem sertaneja, cuja apari��o desencadeou toda aquela hist�ria. E,
sem eu querer, meu sangue repete aqueles versos do genial vate
Ant�nio de Castro Alves, quando cantou em sua Viola de prata,
cravejada de negro, um �jo�o sem dire��o�, uma esp�cie de judeuerrante
brasileiro e sertanejo, que n�o era sen�o o meu Donzel do
cavalo branco, dizendo o Poeta em seu cantar-baiano:
�N�o sei quem sou. A mim, dentro do Peito,
um Sol-terr�vel bebe o Sangue e a vida!

Pr�ncipe-errante que, no im da Estrada,
tem uma Esinge, numa Cruz erguida!
Sou o Pau-d�arco que, lorado em Ouro,
a Morte e o Cetro na Coroa encerra:
Vivo � que vaga sobre o Ch�o da morte,
Morto � entre os vivos, a vagar na Terra!�

� N
FOLHETO LVII
Invas�o e Tomada da Vila
esse momento, Sr. Corregedor, chegavam os Cavaleiros a um
alto, no topo de uma ladeira da Estrada, lugar de onde se
descortinam os primeiros telhados e a torre da Igreja Nova da
nossa Vila.
� Um momento, Dom Pedro Dinis Quaderna! � interrompeu o
Juiz. � � nas proximidades desse alto que existe um lajedo no qual o
senhor costuma subir, ningu�m sabe direito pra qu�?
Ah, nobres Senhores e belas Damas de peito brando! Estremeci
de terror, ante a pergunta e o tom em que fora formulada! Mas como vi
que ele j� estava pelo menos informado de alguma coisa a esse respeito,
adotei novamente a atitude de �ser sincero para mostrar inteira boa-f��.
Disse:
� � exatamente a�, Sr. Corregedor!
E como n�o queria me deter no assunto, voltei imediatamente �
narra��o:
� Naquele lugar, o Doutor do cavalo preto, o Doutor Pedro
Gouveia da C�mara Pereira Monteiro, deu uma ordem r�pida, e a
cavalgada apressou o passo. Os cavalos, animais de Cigano, treinados
com rigor, n�o entraram propriamente no trote, no chouto, talvez para
n�o quebrar a dignidade do cortejo. Apenas apressaram a pisada do
�meio�, numa quase �esquipa��o�, e foi assim, nesse passo r�gio, que
embocaram de Vila adentro. Como todo mundo estivesse reunido na
Pra�a para as Cavalhadas, s� mesmo os maiores madra�os e os mais
danados moleques de rua foi que avistaram, de in�cio, a �desilada
moura�, como, depois, a batizou Samuel. Mas foi, mesmo, para a Pra�a
que ela se dirigiu, j� ent�o acompanhada por todos os b�bados, doidos,
mendigos e moleques que estavam por ali, nas beiras das cal�adas da
periferia. De modo que, para usar uma express�o do meu Mestre e
precursor, Dom Jos� de Alencar, quando as pessoas gradas avistaram a

Cavalgada de ciganos, foi j� seguida da �rep�blica de todos os galopins
da Vila�. Posso ent�o, agora, tirar todo o pessoal da Pra�a daquela
situa��o inc�moda e tensa em que o deixei. Acho que nem mesmo Jos�
de Alencar seria capaz de descrever a profundeza da impress�o
causada por aquele �comboio de mal-assombrados�, quando, diante das
autoridades, dos Fidalgos, dos burgueses e do Povo, desembocaram os
Cavaleiros e as carretas dos animais enjaulados, com as bandeiras
desfraldadas e o Frade-cangaceiro � frente. Parando todo mundo no
centro da Pra�a, o Donzel-do-Cavalo-Branco, sempre com uma
express�o ainda sonhosa e meio alheada de tudo, tirou do cintur�o uma
corneta de ca�a, uma buzina feita de chifre e cravejada de prata, e
desferiu nela um toque surdo, grave e plangente. Como se aquilo fosse
um sinal combinado, os homens que vinham com os Gavi�es do cortejo
tiraram as m�scaras de couro e os protetores das garras dos p�ssaros e
soltaram-nos, desapertando as correntinhas que os prendiam. Os
Gavi�es partiram para o alto, como lechas, dando pios agudos e
selvagens, que pareciam tinidos de metal, e foram se distanciando em
c�rculos cada vez mais altos, at� que se perderam nos ares. Ao mesmo
tempo, alguns Cavaleiros ciganos desmontavam com grande rapidez e
abriam as jaulas, libertando no meio da Pra�a os Veados, os Pav�es, as
Gar�as, as Cobras e, sobretudo, as On�as � toda a fauna selvagem que
vinha nas carretas. Foi um verdadeiro deus-nos-acuda, Sr. Corregedor!
O Comendador Bas�lio Monteiro dizia-me depois, na reda��o da Gazeta
de Tapero�, que �quase tivera um del�quio�, comentando ainda, com
uma frase habitual dele, que �uma cena daquelas s� num pa�s
desgra�ado, como o Brasil, porque num pa�s organizado, na Alemanha
ou nos Estados Unidos, seria rigorosamente proibida pelo Governo�. A
intelectual Dona Carmem Gutierrez Torres Martins, m�e aqui da nossa
Margarida, airmava, por sua vez, que descera do palanque sem saber
como e, quando dera acordo de si, estava no Beco da Igreja Nova, onde
lhe acontecera estranho caso com um cachorro esquisito que ainda hoje
ningu�m sabe se tamb�m tinha vindo nas carretas ou n�o. O Sargento-
Delegado e os outros Soldados do nosso invicto e denodado Batalh�o de
Seguran�a do Estado da Para�ba escafederam-se para S�o Jo�o do
Cariri, deixando a cidade �nas m�os daqueles salteadores que tinham
invadido a rua, ningu�m sabe com que intuitos sinistros�, conforme
dizia o telegrama enviado, logo � noite, pelo Prefeito, para o

Governador. O Doutor Samuel e o Professor Clemente, sem se deterem a
examinar as implica��es po�tico-mon�rquicas ou comuno-ilos�icas
do acontecimento, sumiram-se sem que ningu�m visse como. Ali�s,
esclare�o que n�o por covardia, porque os mais corajosos foram os que
correram logo: os mais frouxos icaram pregados no ch�o, imobilizados
pelo terror, s� encontrando for�as para correr depois, quando o pavor
aumentou tanto que venceu a paralisa��o que tinha causado antes. O
que eu achei mais estranho por�m, Sr. Corregedor, foi que os Ciganos
tamb�m correram. Esporeando os cavalos, puseram-se a salvo,
acampando depois, quando j� passara a confus�o e todos os animais
tinham fugido para a Caatinga, naquele mesmo Tabuleiro que ica fora
da rua e perto do nosso apraz�vel �Cemit�rio da Consola��o�. Quanto
aos simples assistentes e ao pessoal da Cavalhada, inclusive meus
irm�os, esse debandou todo, assim como debandaram tamb�m os dois
ilustres var�es que nos governavam. De modo que, quando o
pandem�nio cessou, sem que tivesse havido nenhum acidente s�rio, s�
se mantinham na Pra�a o Doutor, o Frade, o Rapaz-do-Cavalo-Branco e
Dom Eus�bio Monturo.

� E
FOLHETO LVIII
A Aventura da On�a Mijadeira
sse foi um ato, ali�s, Sr. Corregedor, que me levou a admirar cada
vez mais a coragem nunca desmentida daquele meu grande
amigo, �O Paladino do Povo�, o �nico verdadeiro Paladino que
conheci, sempre pronto a arriscar sua preciosa vida por seus ideais e
pela Justi�a! As pessoas que n�o t�m conhecimento das coisas viviam
falando dele, dizendo que Eus�bio tinha sido aposentado do seu lugar
de funcion�rio p�blico �depois de uma hist�ria de desfalque, na qual ele
s� n�o tinha sido preso em aten��o a seu honrado e ilustre irm�o, o
Comendador Bas�lio Monteiro, e tamb�m porque este Brasil � um pa�s
sem jeito�. Diziam que Dom Eus�bio era um mentiroso terr�vel, �um
infame maldizente, falcatrueiro e sem escr�pulos, capaz de jogar lama
sobre as mais ilibadas reputa��es da rua�. Mas eu, que tenho, c�, minhas
opini�es, respondia sempre que Dom Eus�bio tinha alguns defeitos,
como todos n�s, mas nenhum dos defeitos dele era pequeno, vulgar e
mesquinho: eram todos grandes, generosos e avultados. Suas mentiras
eram enormes, heroicas, urdidas com t�pica coragem. At� o desfalque
que ele dera, n�o tinha sido, absolutamente, um desses desfalques
mesquinhos, sujos e mi�dos de funcion�rio p�blico; n�o, fora logo um
desfalque para valer, um alcance de empenar, um desfalque � altura da
grande alma do nosso Paladino do Povo. Seguindo Samuel, eu explicava
que �uma coisa � uma alma pura e outra � uma alma grande�: Eus�bio
n�o seria, talvez, uma alma pura, mas era, sem d�vida, uma alma cheia
de grandeza. E que era homem corajoso, isso n�o h� mais quem discuta,
mesmo entre as pessoas que n�o gostavam dele, na rua. O que acontecia
� que era um pouco azarado em seus acessos de coragem. Em seus
momentos de mau humor, Eus�bio se virava por cima de mim, por
causa de sua m�-sorte. Chamava-me �O Covarde Sortudo�, e apelidavase
a si pr�prio de �O Valente Azarado�, acrescentando que, enquanto eu
�tinha sorte na covardia�, ele era �azarado na coragem�. Se ele tinha

raz�o no que se referia a mim, n�o sei, mas, em rela��o a ele, era
verdade. Naquele dia, por exemplo, como eu vinha dizendo, foi Dom
Eus�bio Monturo a �nica pessoa que teve coragem de icar na Pra�a. Ao
se ver sozinho, �cercado s� de feras e de fuj�es acovardados�, como ele
me contava depois, gritou, com voz desaiadora, como era de seu
costume nas ocasi�es de perigo: �Covardes! Correndo e desmoralizando
o Povo Sertanejo! Mas O Paladino do Povo n�o corre n�o! On�lia, traz o
meu rile!�
� Anote a�, Dona Margarida, que, segundo se depreende dessas
palavras, Dom Eus�bio e seus amigos tinham, todos, armas em casa,
isso apesar de todas as batidas que o inolvid�vel Presidente Jo�o Pessoa
mandou realizar para apreender as armas dos Sertanejos em 1930!
Para aliviar o fato, ponderei:
� Sr. Corregedor, � verdade que Dom Eus�bio Monturo tinha um
rile, mas isso absolutamente n�o amea�ava a seguran�a do Governo da
Para�ba, porque nunca lhe sucedia estar ele com a arma, nos momentos
de necessidade. Gritava ent�o pela mulher, para que ela o trouxesse.
Mas isso tamb�m n�o tinha resultado, porque Dona On�lia era surda
como uma porta e nunca atendeu a essas ordens em momento nenhum.
Isso chegou a tal ponto, que a frase �On�lia, traz o meu rile� icou
proverbial, na rua, para os momentos de brabeza sem consequ�ncias.
Pois bem: naquele dia, brabo que s� uma Capota choca, Dom Eus�bio
Monturo icou no meio da Pra�a, feito um pi�o doido ou uma cobra
assanhada, virando-se para um lado e para o outro, e gritando: �Como
�? Todos correm, �? Pois apare�a uma On�a de coragem, para topar
comigo!� Infelizmente, Sr. Corregedor, as On�as, perturbadas, tamb�m,
pelo barulho, tratavam era de correr para os Tabuleiros e Caatingas,
procurando lugares onde houvesse furnas, pedras e mato para elas se
esconderem, de maneira que n�o aparecia nenhuma, para topar com
Eus�bio. Ele insistiu: �� poss�vel que n�o apare�a uma On�a para eu me
vingar desta tentativa de desmoraliza��o? N�o posso icar
desmoralizado de jeito nenhum! Era o que faltava, esse comboio de
On�as, correndo pra cima e pra baixo no meio da rua, sem licen�a da
Prefeitura! Apare�a uma On�a, que eu mostro a ela quantos n�s existem
do focinho ao iof�!� Nesse momento, Sr. Corregedor, uma velhinha,
Dona Nanu, que morava na Pra�a, gritou para Eus�bio, de dentro da
casa dela: �Compadre Eus�bio, me acuda, que aqui tem uma On�a! Se o

que voc� quer � On�a pra topar, venha, que aqui tem uma, debaixo da
minha cama!� Como uma f�ria, o Paladino do Povo correu para l� e
entrou na casa. Sem atender aos pedidos de que n�o se arriscasse,
feitos por pessoas que tinham se acolhido � casa de Dona Nanu
exatamente para fugir das On�as e agora se viam, espavoridas,
encurraladas com uma, Dom Eus�bio Monturo entrou na casa da
comadre, parou no limiar do quarto de dormir dela e disse, com ar
solene e majestoso: �Onde est� esse animal felino, cruel e predat�rio?�
Dona Nanu explicou, de longe: �Est� ali, debaixo da minha cama, por
tr�s do penico-cuba! Mas o senhor est� desarmado, Compadre Eus�bio?
Assim, n�o v� n�o! N�o v� n�o, que � morte certa!� A� foi que Eus�bio
icou brabo! Gritou: �N�o vou, minha Comadre? Que n�o vou � esse?
Quem � que n�o vai? A senhora me desculpe, mas eu vou, vou demais!
N�o posso icar desmoralizado de jeito nenhum! J� imaginou? Se eu n�o
for, essas On�as v�o icar, dagora em diante, no maior dos atrevimentos!
Que � que essas pestes est�o pensando, hein? Que podem entrar na
minha Vila, na Vila do Paladino do Povo, assim � vontade, entrando e
saindo quando querem e at� tendo o atrevimento de se meterem
debaixo das camas de comadres minhas? Ah, n�o, est�o muito
enganadas! Tapero� n�o � cu-de-m�e-joana n�o!� E ent�o, Sr.
Corregedor, magn�ico de coragem e paladinice, Dom Eus�bio Monturo
entrou no quarto, abaixou-se junto da cama, pegou a On�a pelo rabo e
come�ou a pux�-la para fora. As pessoas que estavam na casa de Dona
Nanu, vendo aproximar-se a conclus�o heroica daquela aventura
extraordin�ria, e notando, por outro lado, que os outros bichos j�
tinham desertado da Pra�a, acompanharam Dom Eus�bio, que j�
transpusera a porta da rua. A Pra�a, tamb�m, pouco a pouco, se
reenchia com os primeiros curiosos que iam voltando; de modo que foi
diante desse pessoal sarapantado que Dom Eus�bio Monturo apareceu
triunfante, arrastando a On�a pelo rabo, como mais um trof�u de sua
nunca desmentida coragem. Infelizmente, por�m, Sr. Corregedor, a� �
que vem o azar de meu querido amigo. Pelo que se esclareceu depois,
parece que todas as On�as que tinham vindo com os Ciganos eram
ferozes. Todas, menos aquela, que era uma velha On�a de circo,
decadente, f�mea e desdentada, mantida pelos Ciganos como chamariz
de feira. Tinha sido, para o Doutor Pedro Gouveia, o ponto de partida
para aquela ideia genial da entrada na Vila. Na hora do barulho, por

engano, fora solta com os bichos selvagens. De modo que, quando Dom
Eus�bio Monturo come�ou a pux�-la para a Pra�a, diante do Povo
embasbacado, a On�a come�ou a ganir de terror, com uns miados
queixosos que pareciam o choro de um menino novo. E, o que foi a
parte pior, mijou-se e cagou-se toda! Pois bem, Sr. Corregedor: a
humanidade � t�o ruim que, no mesmo instante, exatamente aquelas
pessoas que estavam mais apavoradas e que, caso a On�a fosse mesmo
feroz como pensavam, teriam sido salvas pelo gesto heroico de Dom
Eus�bio, foram as primeiras a cair na gargalhada. Mal o meu amigo,
com um gesto sobranceiro e desdenhoso, largava o rabo da On�a,
saltando tamb�m de lado para n�o ser atingido pelos esguichos de mijo
e por algum perdido bolotinho de merda, um engra�ado gritou: �A On�a
mijou-se e cagou-se! Dom Eus�bio Monturo � t�o brabo que faz On�a se
mijar!� Outro, levando a ideia adiante e aproveitando o fato do Paladino
se encontrar de costas, gritou: �Eus�bio Mijur�tico!� Dom Eus�bio,
furibundo, voltou-se e gritou: �Apare�a um sacana, a�, que seja homem,
para dizer, de frente, o que disseram comigo de costas!� Imediatamente,
Sr. Corregedor, todo mundo se amoitou. Ficaram calados, mudos e
acovardados. Dom Eus�bio provocou-os de novo: �Est�o vendo? Est�o
vendo que s�o uns covardes, mesmo? Pois a covardes eu dou � o meu
desprezo!� E, ao dizer isso, saiu. Imediatamente o coro dos
desocupados come�ou a acompanh�-lo em surriada: �Eus�bio
Mijur�tico! Purgante de On�a! Cag�o de Maracaj�!� Ainda o
acompanharam por alguns instantes. Mas logo, vendo que n�o
obtinham mais a aten��o dele, mesmo os mais encarni�ados deixavam
Dom Eus�bio Monturo em paz e voltavam � Pra�a, curiosos de saberem
quem eram aqueles tr�s estranhos Cavaleiros que tinham chegado e o
que pretendiam, ainal, em nossa Vila.

� A
FOLHETO LIX
O Grande Pretendente
o voltarem, por�m, perceberam que os tr�s j� tinham se sumido
da Pra�a. Porque, Sr. Corregedor, a maior sensa��o daquela
tarde memor�vel ainda estava para acontecer. Nem foi,
propriamente, a entrada sensacional dos Cavaleiros, nem a liberta��o
dos bichos, nem a aventura, azarada mas palad�nica, de Dom Eus�bio
Monturo. Foi que o Frade, o Rapaz-do-Cavalo-Branco e o Doutor, tendo
se dirigido, assim que a Pra�a se esvaziou, para o cart�rio de Seu Belo
Gusm�o, inteiraram-se, l�, de que essa modelar reparti��o j� fechara
suas portas desde o meio-dia. Encaminharam-se, ent�o, � casa do Juiz
da nossa Comarca, o Licenciado Doutor Manuel Viana Paes. E,
esbarrando os cavalos � sua porta, interpelaram o Magistrado pela voz
do Doutor: �Temos a honra de falar ao Doutor Manuel Viana Paes,
Excelent�ssimo Senhor Juiz de Direito da Comarca de Tapero�?� De cima
de um arm�rio onde tinha se encarapitado com medo, o Juiz respondeu
com voz insegura: �Sou o Doutor Manuel Viana, mas se Vossa Senhoria
ainda tem alguma On�a a�, pe�o-lhe que me evite a companhia dela! �
contra meus princ�pios ser devorado por felinos!� Esclare�o a Vossa
Excel�ncia, Sr. Corregedor, que, apesar de formado e esclarecido, o
Doutor Manuel Viana Paes � um sertanejo, da Ribeira do Sert�o do Rio
do Peixe, de modo que n�o deixava de acreditar nuns certos rumores
que correm, por aqui, a respeito de quem � comido por uma On�a � ou
devorado por um Jaguar, para ser mais tapirista e epopeico. Segundo
certos adeptos do Catolicismo-sertanejo, quem tem a desgra�a de ser
comido por uma On�a n�o ressuscita no �ltimo dia n�o, quem
ressuscita � a On�a! Por isso, meio cismado, o Doutor Viana, sempre de
cima do arm�rio, indagou ainda, cauteloso: �Quem � o senhor? Algum
cigano? O Rei dos Ciganos?� O Doutor retrucou: �Qual cigano nem Rei
nenhum, Senhor Juiz! Sou o Doutor Pedro Gouveia da C�mara Pereira
Monteiro, Bacharel em Direito e Advogado! Vim aqui para defender os

direitos espoliados do meu constituinte aqui presente, porque este
mancebo �, ningu�m mais, ningu�m menos, do que Sin�sio Garcia-
Barretto, ilho do fazendeiro Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto,
assassinado nesta Comarca em 1930! Este � o rapaz que foi raptado no
mesmo dia da morte de seu Pai, sumindo-se daqui at� o dia de hoje,
quando reaparece para reivindicar seus direitos a seu nome e � sua
heran�a!�
* * *
� Quando o Doutor Pedro Gouveia pronunciou essa frase
tremenda, foi como se um corisco de pedra-lispe tivesse ca�do aos p�s
do Juiz e dentro da Vila, por onde a not�cia logo se espalhou como um
inc�ndio, causando sensa��o maior do que a liberta��o das On�as.
�Ent�o� � dizia o Povo, terrivelmente abalado � �esse Rapaz-do-
Cavalo-Branco � aquele mesmo Sin�sio Garcia-Barretto, raptado em
1930, morto em 1932 e ressuscitado agora, milagrosamente, nesta
V�spera de Pentecostes de 1935!� Lembro a Vossa Excel�ncia que
est�vamos, ent�o, naqueles dias de grande agita��o pol�tica que
antecederam a Revolu��o Comunista de 1935. O Povo acreditara,
sempre, que Sin�sio retornaria a qualquer momento para cheiar uma
vaga Revolu��o Sertaneja que ningu�m sabia realmente o que era.
Assim n�o admira que estes tenham sido os acontecimentos que
terminaram me obrigando a comparecer como acusado neste inqu�rito,
aberto agora por Vossa Excel�ncia. De qualquer modo, estou de
consci�ncia tranquila e, de certo modo, n�o tenho de que me queixar,
porque, um dia, os acontecimentos daquele dia memor�vel abrir�o
caminho � minha modesta pessoa para que eu me torne o G�nio da
Ra�a Brasileira!
� O senhor pretende ser o G�nio da Ra�a Brasileira? � indagou,
ir�nico, o Corregedor.
� De fato, mesmo, j� o sou, mas pretendo s�-lo tamb�m de
direito, oicialmente declarado pela Academia Brasileira de Letras! Se
eu for condenado neste Processo, mandarei tirar duas c�pias de meus
depoimentos, mandando uma para o Supremo Tribunal, como
Apela��o, e outra para a Academia, a im de que os Imortais me deem,
oicialmente, o t�tulo, nem que seja por levar em conta que eu criei um

g�nero liter�rio novo, o �Romance heroico-brasileiro, iberoaventuresco,
criminol�gico-dial�tico e tapuio-enigm�tico de galhofa e
safadeza, de amor legend�rio e de cavalaria �pico-sertaneja�!
� Dom Pedro Dinis Quaderna, nem eu, nem a nossa Dona
Margarida, aqui presente, queremos desanim�-lo, n�o �, Dona
Margarida? Mas o senhor acha, mesmo, que tem condi��es para que a
Academia Brasileira lhe outorgue, oicialmente, esse t�tulo?
� Ah, tenho, Sr. Corregedor! Primeiro, porque sou o mais
aut�ntico representante da nossa Ra�a! Samuel � somente godo-ib�rico,
como diz ele. Clemente � apenas negro-tapuia. Ora, eles dois, num dia
em que estavam examinando minha genealogia, chegaram � conclus�o
de que eu tinha tudo quanto era de sangue, inclusive umas gotas de
negro e de cigano! Vossa Excel�ncia me provou, ainda agora, que eu
tenho sangue judaico, como Paraibano de cotoco que sou! Assim, sou o
�nico escritor e Escriv�o-brasileiro a ter integralmente correndo em
suas veias o sangue �rabe, godo, negro, judeu, malgaxe, suevo, berbere,
fen�cio, latino, ib�rico, cartagin�s, troiano e c�rio-tapuia da Ra�a do
Brasil! Finalmente, tendo estudado cuidadosamente, com aux�lio do
Almanaque Charad�stico e das Postilas de Ret�rica, a receita das Obras
de g�nio, cheguei � conclus�o de que a �nica hist�ria realmente
indecifr�vel e completa, a �nica que possui todos os ingredientes de
Obra da Ra�a, � a terr�vel desaventura que aconteceu a Sin�sio, o
Alumioso. Depois de pronto e devidamente versado, o meu ser�,
portanto, no mundo, o �nico Romance-acastelado, cangaceiroestrad�cio
e cavalariano-bandeiroso escrito por um Poeta ao mesmo
tempo de pacto, de mem�ria, de estro, de sangue, de ci�ncia e de
planeta. Ora, Sin�sio, morto e desaparecido da maneira que lhe disse,
mas tamb�m ressuscitado naquele dia, nas Caatingas e estradas
sertanejas, foi uma esp�cie de �Jo�o-sem-Dire��o�, personagem
guerreiro, principesco e errante do Cantador nordestino Natanael de
Lima. Por isso, ningu�m pode realmente contar a hist�ria de Sin�sio,
ningu�m sabe qual foi, mesmo, sua verdadeira dire��o, seu verdadeiro
destino, de modo que ningu�m, exceto eu, pode cont�-la e ningu�m,
portanto, exceto eu, pode vir a ser o verdadeiro G�nio da Ra�a do Brasil!
� Muito bem, acredito! O senhor disse, a�, que somente o senhor
� quem pode contar a hist�ria: registro e aceito essa declara��o! Foi
exatamente esse, ali�s, o motivo que me levou a intim�-lo! O senhor

portanto, Dom Pedro Dinis Quaderna, vai me contar essa hist�ria tintim
por tintim! Vamos voltar, ent�o, ao inqu�rito e aos acontecimentos
daquele dia 1� de Junho de 1935!
� Vossa Excel�ncia manda! L� vai tempo! � falei, para disfar�ar
meu terror, que aumentava cada vez mais. E continuei:

� C
FOLHETO LX
A Furna Misteriosa
omo eu vinha dizendo, est�vamos �s v�speras da Revolu��o
Comunista de 1935. Ora, Sin�sio concentrara em torno dele,
durante todos aqueles anos, as esperan�as de justi�a da ral�
sertaneja, como o senhor chamou h� pouco. O Povo nunca perdera a f�
na sua volta, quando ele, ressurreto, realizaria a Restaura��o, ou
instaura��o de n�o sei que Reino, um Reino sertanejo no qual os
propriet�rios seriam devorados por drag�es e todos os Pobres,
aleijados, cegos, infelizes e doentes icariam de repente poderosos,
perfeitos, venturosos, belos e imortais. Por isso, naquele s�bado, com a
chegada epopeica do Rapaz-do-Cavalo-Branco, as duas ideias logo se
juntavam num boato s�. Sin�sio viera para instaurar o Reino, e a guarda
de Ciganos que o acompanhava n�o era sen�o a guarda-avan�ada de
uma nova Coluna que o Guerreiro e Fidalgo-brasileiro, o Capit�o
Prestes, enviara ao Sert�o para rebel�-lo e subvert�-lo, como j� tinha
feito em 1926, com a c�lebre �Coluna Prestes�!
� Anote, Dona Margarida, esse pormenor � important�ssimo! �
disse o Corregedor.
Margarida obedeceu e ele indagou:
� � verdade que o Comandante das tropas revoltadas de
Princesa em 1930, Lu�s do Tri�ngulo, vinha acompanhando o Rapaz-do-
Cavalo-Branco?
� �, sim senhor!
� Quer dizer que a coluna do Rapaz-do-Cavalo-Branco, no
fundo, era uma fus�o de remanescentes rebeldes da �Coluna Prestes� e
do Ex�rcito daquele caricato �Territ�rio Livre de Princesa� que, em
1930, ousou levantar-se contra o Governo do Presidente Jo�o Pessoa,
chegando aos extremos rid�culos de proclamar a independ�ncia,
forjando hino, bandeira, Constitui��o etc.?

� Sr. Corregedor, � di�cil dizer isso com seguran�a, porque, aqui
no Sert�o, depois que esse pessoal sertanejo entra num movimento
desses, todo mundo troca de nome, para escapar aos inqu�ritos e
den�ncias. Se havia gente da �Coluna Prestes� ou que lutou contra a
�Coluna Prestes� nas tropas do Rapaz-do-Cavalo-Branco, eu n�o sei.
Agora, Lu�s do Tri�ngulo, esse tinha lutado no �Reino de Princesa� e
vinha na Coluna do Rapaz-do-Cavalo-Branco: disso eu tenho certeza,
porque Lu�s do Tri�ngulo era meu amigo e eu estive com ele naquele
mesmo dia! De um modo ou de outro, essas foram as raz�es pelas quais
as pessoas mais ricas de Tapero� imediatamente se trancaram em suas
casas, apavoradas, enquanto, pelo contr�rio, as ruas come�avam a
fervilhar de novo com aquela multid�o de pobres e pedintes que, pouco
antes, esperava tranquilamente a Cavalhada. Foi ent�o que sucedeu um
acontecimento ao mesmo tempo inesperado e important�ssimo; um
acontecimento que Vossa Excel�ncia s� poder� entender bem depois
que eu lhe der algumas explica��es. Eu j� disse ao senhor que Dom
Pedro Sebasti�o, Rei do Cariri, era o parente mais parente que eu tinha,
sendo meu Tio, meu cunhado e meu Padrinho. Meu Pai, que era uma
esp�cie de agregado, Conselheiro e Astr�logo particular seu, tomou-o
para meu Padrinho de batismo, dando-me, por causa disso, o nome de
Pedro (o outro nome, o Dinis, me veio de Dom Dinis, o Lavrador, Rei de
Portugal, de quem n�s, como todos os nordestinos que se prezam,
mod�stia � parte descendemos). Ora, com todos estes parentescos, e
tendo sido, ainda, Dom Pedro Sebasti�o, meu protetor e pai de cria��o,
n�o admira que, durante sua vida, eu tenha feito todos os esfor�os para
aumentar o prest�gio e o poder que ele tinha, no Cariri. Disseram ao
senhor que iz isso com m�-inten��o, mas � mentira! Foi por bondade e
devo��o quase ilial que eu tive a ideia de aproveitar a religiosidade
sertaneja e meio fan�tica de meu Padrinho para, fazendo-o desilar nas
Prociss�es, descal�o, vestido de sacos de estopa e com a cabe�a cheia de
cinza, de opa roxa e com cajado de Peregrino � m�o, impressionar o
Povo com o espet�culo daquele homem poderoso que, voluntariamente,
se humilhava assim, diante de todos! Fui eu, tamb�m, que convenci meu
Padrinho a igurar como Imperador do Divino Esp�rito Santo, entre
Natal e Reis, quando n�s, com nosso �Auto de Guerreiros�, dan��vamos
diante dele. Com essas coisas, o Povo Sertanejo, que j� considerava meu
Padrinho como seu Chefe espiritual, passou a ver nele um Rei, que

impressionava os Pobres com as roupagens, mantos e Coroas que eu
inventava para ele nessas coroa��es e cerim�nias das Folias do Divino
Esp�rito Santo! L� um dia, por�m, Sr. Corregedor, eu comecei a perceber
que a imagem de Profeta e Rei que eu estava, aos poucos, forjando para
meu Padrinho � com grande desgosto para a Aristocracia, os
Burgueses e os intelectuais da nossa Vila � era sempre prejudicada
numa parte importante. Para Rei, Dom Pedro Sebasti�o se prestava
demais, mas faltava-lhe alguma coisa para Profeta. De fato, meu
Padrinho tinha todas as qualidades imperiais de Rei Sertanejo, pois era
rico, poderoso, barbado, enigm�tico, imprevis�vel e Cavaleiro. Para
Profeta, era, ainda, maravilhosamente meio doido, meio fan�tico e
piedoso: faltava-lhe, por�m, para que fosse um perfeito e acabado
Profeta sertanejo, a condi��o de �pobre e perseguido pela Justi�a, pelo
Governo e pela Pol�cia�. Esta �ltima parte ainda veio a ser corrigida, se
bem que tarde, quando, em 1929, ele come�ou a ser hostilizado pelo
governo do Presidente Jo�o Pessoa. Mas pobre, isso ele nunca foi.
Percebi imediatamente que, ao primeiro Profeta que aparecesse, meio
doido e barbudo como ele, mas ainda por cima pobre e perseguido
pelos poderosos, a posi��o de Chefe espiritual conseguida por mim
para meu Padrinho com tanto esfor�o poderia ser arrebatada, o que
n�o me interessava de jeito nenhum, porque, sendo seu sobrinho,
minha sorte e minha linhagem mon�rquica se identiicavam de certo
modo com a Monarquia e com a sorte dele!
Novamente levado pelo orgulho eu ia longe demais! Cego,
por�m, pelas sertanej�ssimas divindades gavi�nicas, n�o percebi nada, e
continuei, enredando-me cada vez mais nas teias da cegueira, do
orgulho e do processo:
� Lembrei-me ent�o, Sr. Corregedor, de que, num p�-de-serra
situado dentro das terras da �On�a Malhada�, morava, h� uma por��o de
anos, uma igura estranha, o Velho Naz�rio Moura, um sujeito que
enviuvara, icando na companhia de sua �nica ilha, uma mo�a chamada
Esmeralda Moura, mas conhecida pelo apelido de Dina-me-D�i. Depois
que sua mulher morrera, o Velho Naz�rio icara paral�tico e dera para
raizeiro, principalmente nas noites de lua, quando disparatava e dava
para visagear e dizer coisas descabeladas. O Velho Naz�rio apareceume,
logo, como a oportunidade que n�s t�nhamos de cortar o mal pela
raiz, no que se referia � qualidade de Profeta de meu tio Dom Pedro

Sebasti�o. Naz�rio era pobre, raizeiro e meio doido. Por outro lado, n�o
tendo ast�cia, nem ambi��o, nem grandeza, n�o poderia, nunca,
amea�ar a posi��o de meu Padrinho. Convenci ent�o Dom Pedro
Sebasti�o Garcia-Barretto a mandar buscar o Velho Naz�rio Moura para
a Casa-Forte da On�a Malhada. Da� em diante, cada ano, quando eu
editava o nosso apreciado e famoso Almanaque do Cariri � tradi��o
que vinha de meu Pai �, publicava as Profecias e Eicazes Ora��es do
Profeta Naz�rio, para quem ediicamos uma casinha, pegada a uma
Capela que logo come�ou a virar local de peregrina��es e consultas
para os Sertanejos. Nas Festas mais importantes, eu n�o deixava de
convencer meu Padrinho a comparecer a essa Capela. E como o Profeta
Naz�rio, na qualidade de morador grato, dava a Dom Pedro Sebasti�o as
mostras de um respeito quase religioso, o prest�gio de meu Padrinho se
irmou deinitivamente entre o Povo. Chegamos ao ponto de aquela
desvantagem inicial se tornar um atributo prof�tico a mais: o Povo
come�ou a considerar Dom Pedro Sebasti�o como uma esp�cie de
divindade superior, terr�vel e distante, a quem at� os Profetas
prestavam tributo e vassalagem! Pois bem, Sr. Corregedor: naquele dia,
exatamente no instante em que o Doutor Pedro Gouveia comunicava ao
Juiz que aquele Rapaz-do-Cavalo-Branco era o mesmo Sin�sio Garcia-
Barretto, morto em 1932 e ressuscitado agora daquela maneira
abandeirada e cavalariana, naquele mesmo instante, o Profeta Naz�rio
surdiu de um beco, meio deitado e meio sentado, em seu carrinho de
madeira, barbado, paral�tico, sujo, esmolambado, fedorento, grisalho,
revirando os olhos e com todos os demais atributos de um verdadeiro
Profeta sertanejo. Vinha empurrado por sua ilha Dina, e dando grandes
brados para o Povo. O Doutor Pedro Gouveia, que desmontara do
cavalo, entregara ao Juiz Manuel Viana uma procura��o, na qual Sin�sio
o constitu�ra Advogado, e uma peti��o que deveria ser anexada aos
autos do invent�rio da heran�a deixada por Dom Pedro Sebasti�o.
Sin�sio e o Frade tinham permanecido montados; e foi quando o Doutor
Pedro voltava para junto deles que o Profeta Naz�rio, empurrado em
seu carrinho, desembocou do beco defronte da casa do Juiz, gritando
assim:

�Meu Povo, eu vi! Eu vi a Furna da On�a-Pintada, com a
On�a de Pedra na entrada, e outra On�a, viva, dentro! Eu vi, eu
juro que vi! Na entrada da furna estavam as Coisas todas,
pintadas na Pedra: a On�a, o Veado, o Gavi�o de um lado, e, do
outro, a Tra�ra, o Bode, a Carneira e as Lamparinas de barro,
tudo pintado no Preto e no Vermelho! E a On�a estava l�,
dentro da Furna, com os olhos de brasa, cercada de coriscos
amarelos e zela��es azuis, e um bocado de pedras-lispes
encarnadas despencando do c�u! Era uma On�a Malhada
Cantadeira! Tinha um olho de Pedra-verde e outro de Pedraencarnada,
e, al�m da cabe�a de Cangu�u, ela tinha asas e
duas cabe�as de Gavi�o! Tinha pau e caceta de On�a-macho e
uma carreira de peitos de Bicha-f�mea no bucho, porque ela
era a On�a sagrada do Macho-e-F�mea! Cheguei a ver, de
perto, os bicos dos peitos dela, que eram peitos de tarraxa,
cada um formado por uma pedra preciosa amarela! Eu vi, eu
tive a Vis�o! Na testa ela tinha uma Coroa, um Diamante
enorme, cercado por um cord�o de Pedras-verdes e por outro
de Pedras-vermelhas! As asas dela eram de navalha
enferrujada e o Sol brilhava nelas! O rabo era uma Cobra-
Coral, e tanto as pedras dos olhos como as pedras dos peitos
tinham poder e azougue. Por isso, se a gente conseguir pegar
essa On�a, a gente vai ser tudo feliz, rico, bonito, poderoso e
imortal, bebendo o sangue do Sagrado e o Sol de a�o das
navalhas das Asas dela! Ela me dizia: � Venha, Naz�rio!
Chame o Povo e metam o p� na Estrada, que, se voc�s acharem
a minha Furna, v�o encontrar o Ouro, a Prata e os Diamantes!
Ganham a Coroa da Pedra Cristalina, e eu, ainda por cima,
fa�o a felicidade de voc�s!�

Q
FOLHETO LXI
O Caso do Cego Teol�gico
uando terminei de repetir as palavras do Profeta Naz�rio, o
Corregedor disse, com evidente m� vontade:
� Pelo que o senhor me contou da apari��o do tal Bicho
demon�aco na praia do Rio Grande do Norte, v�-se perfeitamente quem
foi que meteu essas ideias e essas palavras na cabe�a desse pobre
demente que o senhor n�o se envergonha de confessar que explorava,
aproveitando-se de sua simplicidade, de sua loucura e do fato de que
ele dependia de seu Padrinho! V�-se, tamb�m, quem foi que andou
metendo na cabe�a do Povo essa hist�ria da liberta��o das on�as, no
momento em que o Rapaz-do-Cavalo-Branco tocava a buzina!
� Pois se o senhor duvida de mim, pergunte a� a Margarida!
Margarida, n�o � verdade que soltaram umas on�as aqui, no meio do
Povo, naquele dia? E n�o � verdade que Naz�rio gritou para o pessoal
que tinha tido uma visagem de On�a?
� �, Sr. Juiz! � disse Margarida, mais uma vez a contragosto. �
Agora, se ele falou foi desse jeito, n�o sei n�o! Eu, por mim, j� ouvi dizer
muitas vezes que foi esse homem, a�, que meteu essas coisas na cabe�a
de Naz�rio!
� Est� vendo? � falou o Corregedor, vitorioso. � O mais que
pode ter acontecido � que Naz�rio tenha icado impressionado com a
liberta��o das On�as que ele acabara de presenciar, sendo essa a causa
dos disparates que disse no momento! Ent�o o senhor, talvez por estilo
r�gio, interpretou tudo a seu modo!
� Foi essa, tamb�m, a opini�o de Clemente, Sr. Corregedor,
apesar de que o nosso Fil�sofo n�o deixou de encontrar, logo, um
sentido ilos�ico, etnol�gico e subversivo para a visagem de Naz�rio!
Mas o Povo sertanejo, incapaz dessas sutilezas, come�ou, logo, foi a
ligar a vis�o da On�a-Cantadeira � miss�o que, segundo j� se espalhava
entre a ral�, Sin�sio viria desempenhar na �Guerra do Reino do Sert�o�;

miss�o que, segundo o Povo, tinha, evidentemente, liga��es ocultas e
desconhecidas com as On�as que ele trouxera nas carretas e mandara
libertar. Por isso, a agita��o, que j� estava grande, come�ou a fermentar.
E viria a crescer ainda mais com um novo incidente, provocado logo
depois da fala do Profeta Naz�rio pelo Cego Pedro Adeodato Sobral,
aquele mesmo Pedro Cego a quem Silvestre servira de guia, durante
todos aqueles anos da desapari��o de Sin�sio. Naquele dia, sem que
ningu�m tivesse se apercebido dele antes, Pedro Cego tinha se
introduzido no meio da multid�o, de viola a tiracolo e conduzido por
um rapaz coberto de andrajos que, de modo semelhante a seu patr�o,
conduzia uma rabeca. Os dois vinham acompanhados por um cachorro
sertanejo, magro, arraposado, escorropichado, amarelo e de grandes
orelhas meio-negras, um cachorro que, como soubemos depois, tinha o
nome de �Cangati�. Vossa Excel�ncia, com certeza, sabe que os cegos
sertanejos se agrupam em duas grandes categorias, os insolentes e os
teol�gicos. Os teol�gicos s�o humildes, submissos, resignados,
religiosos e pedem esmola de joelhos, nas cal�adas e portas de igreja,
icando horas e horas ao sol, nessa posi��o martirizante e
profundamente humilde, com um ar de sofrimento milenar, capaz de
comover at� o cora��o dos comerciantes. Cantam sextilhas como esta:
�O homem que pensa bem,
sabendo se dirigir,
vende a Terra e compra o C�u,
faz escada pra subir
em cima do ch�o da Terra,
dando esmola a quem pedir.�
� J� os insolentes, aproximam-se de n�s, d�o-nos, com a m�o
esticada, uma esp�cie de facada em cima do �gado, e gritam
asperamente: �Me d� uma esmola!� Quando n�o s�o atendidos, dizem
os maiores desaforos, arregalam os olhos com o polegar e o indicador,
exibindo as chagas purulentas e vermelhas que destro�aram seus olhos,
e rogam-nos uma terr�vel praga, desejando que n�s terminemos cegos
como eles. Cantam assim:

�Que o Diabo l� dos Infernos
seja o Deus que te conhe�a.
Que o Urubu te persiga
e que teu Sangue esmore�a!
Que te encontre logo a Morte
e cague na tua Sorte
cu da Mula-sem-Cabe�a!�
� Pois bem, Sr. Corregedor: havendo essas duas qualidades de
Cego, pode-se dizer que aquele, Pedro Adeodato, pertencia, ao mesmo
tempo, �s duas categorias, pois era um cego insolente sujeito a acessos
teol�gicos. Cegara j� adulto, aos vinte e cinco anos, mas tinha sido,
antes, um pouco Ca�ador, um pouco Cangaceiro, um pouco Cantador,
um pouco b�bado e arruaceiro. Naquele s�bado, aparecera, tamb�m,
em Tapero�, aonde n�o vinha h� muito tempo. N�o fora notado at�
aquele momento porque entrara na rua vindo da Vila do Desterro, pela
estrada da Vila do Teixeira, isto �, exatamente pelo lado contr�rio ao da
estrada de Campina e de Estaca Zero; e, tendo chegado quando as
Cavalhadas iam come�ar, o Povo tivera a aten��o desviada pela chegada
de Sin�sio e das On�as. Agora, por�m, ouvindo as palavras do Profeta
Naz�rio, Pedro Cego foi o primeiro a falar, aproveitando o momento de
estupefa��o geral, causado pela comunica��o da visagem da On�a-
Cantadeira:
� �Eu sei, Naz�rio, eu sei!� � gritou ele, reconhecendo o Profeta
pela voz. � �Eu sei onde � a Furna da On�a-Cantadeira! Quando eu
ainda tinha vista e era Ca�ador, fui, muito tempo, ca�ador de On�a!
Voc�s sabem que faca, quando entra em carne de On�a, ica enganchada
no sangue e nas ibras da carne da bicha, n�o sabem? � por isso que, em
On�a, s� se d� uma facada, porque a carne da bicha tem tanto azougue e
se agarra na faca de um jeito, que n�o tem for�a humana que tire ela de
volta! Pois bem! Um dia, numa ca�ada de On�a, me lembro que me perdi
numa serra cheia de pedras, l� para os lados da Espinhara. A�, por volta
do meio-dia, me enrolei com uma On�a e a luta foi uma das maiores em
que j� me vi metido. Me lembro de ter dado dezessete facadas na
barriga da bicha!�

� Oxente! � interrompeu o Corregedor. � E ele n�o tinha dito
que facada em On�a s� se d� uma, porque a carne engancha a faca?
� � verdade, Sr. Corregedor, mas, aqui no Sert�o, � coisa sabida
que toda hist�ria de On�a tem sempre um gaguejado, um peda�o mal
contado pelo meio! Tanto assim, que ningu�m ligou e Pedro Cego p�de
continuar. Ele seguiu contando:
� �Depois das dezessete facadas e de duas horas de luta, a On�a
come�ou a afracar, perdendo sangue, e terminou morrendo. Mas o certo
� que, quando a briga acabou, eu estava completamente areado, sem
saber onde me encontrava. Andei, perdido, vagando por todo este
Sert�o velho, tr�s dias! Pra que lado eu andei? Pr�o lado do Mar? Pr�os
lados do Pianc�? Pr�as bandas do Paje�? Pr�as do Serid�? N�o sei! O que
eu sei � que, ao cabo desses tr�s dias, meu Compadre Naz�rio, eu me
achei dentro de uma Serra cheia de furnas e lajedos. Pelos sinais que
descrevi dela, depois, todo mundo achou que era a tal da Serra da
Pintada! Perdido e com sede, vendo a hora de morrer por acol�,
terminei desembocando, no pino do Sol, defronte duma Furna
esquisita, com uma esp�cie de p�tio na frente, com o ch�o de pedra e
todo cercado de lajedos. Essas pedras, em roda da Furna, eram todas
pintadas com iguras de gente e de bicho. Me disseram, depois, que
aqueles bichos tinham sido pintados pelos Caboclos, o que eu n�o sei
dizer se era verdade ou n�o! Agora, que tinha os bichos pintados, isso
tinha, eu vi com esses olhos que est�o cegos e que a terra h� de comer!
Era tudo quanto era de bicho, e tudo na maior safadeza! Era On�a
comendo Veado, era On�a fudendo com On�a, era On�a f�mea sendo
fudida por Gavi�o macho, era On�a macho fudendo Cabocla f�mea, era
On�a f�mea sendo trepada por Veado macho, era o diabo!�
� �E n�o tinha uma On�a de pedra na entrada da Furna n�o,
Compadre Pedro Cego?� � indagou o Profeta Naz�rio.
� �N�o me lembro direito n�o, Compadre Naz�rio, mas era
capaz de ter! Eu estava t�o perturbado, que sou capaz de ter visto e n�o
me lembrar direito! Mas, agora que voc� est� lembrando, eu estou com
ideia de ter visto uma hist�ria parecida! Parece que tinha, Compadre
Naz�rio! Tinha, era isso mesmo! Tinha, l�, uma On�a de pedra, com um
chifre amolado e envenenado na cabe�a e um par de asas nas costas!
Tinha, ora se tinha! E a�, quando eu fui me chegando pra perto da boca
da Furna, comecei a sentir aquela catinga de On�a que todo ca�ador

conhece e que n�o engana ningu�m! E que diabo de catinga danada era
aquela, que eu fui sentindo, e sentindo, e fui icando meio doido, meio
afogueado, vendo maretas, e a� comecei a ver umas fa�scas de fogo
faiscando pra todo lado, e na mesma hora eu comecei a ouvir a zoada do
Mar e uma musga velha e cega, que parecia tocada por viola, pife e
rabeca e cantada por mulher com boca fechada! E a� eu olhei pra dentro
do escuro da furna, e vi foi dois olhos de fogo olhando pra mim, e a
musga ia tocando, e ia me chamando, e eu sabia que, se entrasse l�,
aquela On�a ia deixar eu fuder ela, e a trepada minha ia ser t�o danada
de cachorro-da-molesta que eu ia morrer e ressuscitar tr�s vezes, n�o
mais como eu era, mas sim igual � On�a, ajuntado com ela numa fudida
s� pelo resto da vida, na trepada mais comprida e gozosa do mundo,
uma trepada que n�o se acabava mais nunca e que durava enquanto o
Sol e o sol da On�a durassem! E a�, que diabo de encanta��o foi aquela,
que come�aram os estalos das asas e as fa�scas de fogo, e de repente, no
meio da minha encanta��o, eu comecei a ter medo, e a pensar que a
On�a ia era beber meu sangue e comer minha carne, deixando somente
os ossos brancos, debaixo do Sol! Eu queria enterrar os p�s e desabar
dali, correndo pra tr�s, mas a musga me tonteava, me chamava pra
dentro e eu sentia que ia morrer! Minha sorte foi me lembrar de Meu
Padrinho Padre C�cero e da Ora��o da Pedra Cristalina de Jerusal�m,
que eu tinha trazido do Juazeiro e trazia sempre amarrada no pesco�o,
escrita num papel e enrolando uma pedra que eu tinha trazido do ch�o
sagrado da terra do nosso santo Padre, Meu Padrinho! Segurei a pedra
na m�o direita, e o papel na esquerda, e fui dizendo a Ora��o, que eu
sabia decorada! A� a musga foi baixando, e meus p�s foram icando
menos pesados, at� que icaram maneiros, maneiros! E eu me afastei
uns passos da boca da Furna, e as coisas foram melhorando, at� que eu
pude dar as costas para a On�a e correr de serra abaixo! Corri como um
desadorado, como se tivesse vinte e quatro cachorros-da-molesta
correndo atr�s de mim! Da� em diante, n�o sei mais o que foi que
aconteceu n�o! Me lembro somente de ter topado numa pedra e ca�do
no ch�o. Pensei que ia me acabar, foi me dando uma agonia, tive uma
oura, iquei ali, sem dar acordo de mim, n�o sei quanto tempo, e o certo
� que, quando acordei, foi com uns Tangerinos que estavam junto de
mim, me dando �gua misturada com soro-de-coalhada e garapa-derapadura.
Eles tinham me encontrado perto de uma beira de estrada, a

umas vinte l�guas do lugar em que eu tinha me perdido, n�o sei
quantos dias depois! N�o houve jeito d�eu encontrar, depois de
acordado, o caminho que tinha seguido, da Furna at� ali, onde acordei.
A�, veio a minha cegueira, e foi quando tive de deixar de banda tudo
quanto foi de On�a, ca�ada e tudo o mais! Mas, se essa Furna e essa
On�a s�o importantes e sagradas como voc�, Compadre Naz�rio, acaba
de dizer depois de ter visto elas numa visagem, pode ser que eu, saindo
de novo para aquelas serras brabas da Espinhara, acerte a me perder
pelo mesmo caminho: e a�, com voc� me ajudando na procura, com a
visagem, quem sabe se a gente n�o vai bater de novo com os costados
na Furna da On�a-Cantadeira?�

� E
FOLHETO LXII
O Atentado Misterioso
ssas duas falas, Sr. Corregedor, contribu�ram demais para
aumentar, no Povo, a impress�o causada por aquela sucess�o de
acontecimentos extraordin�rios. Foi isso, talvez, o que impediu
os Sertanejos de, logo no primeiro momento, reconhecerem no Guia do
cego, no homem da rabeca coberto de andrajos, no companheiro e dono
do cachorro �Cangati�, ningu�m mais, ningu�m menos, do que o irm�o
bastardo de Sin�sio, Silvestre. Este, por sua vez, s� tendo chegado
depois � casa do Juiz, n�o tinha ouvido a declara��o do Doutor Pedro
Gouveia sobre a identidade do Rapaz-do-Cavalo-Branco. O Frade,
por�m, ouvindo tudo o que Naz�rio e Pedro Cego tinham dito, icou, de
repente, com um ar grave e inspirado. E, do alto do seu cavalo, dirigiuse,
um pouco a Naz�rio, um pouco a Pedro Cego e um pouco para o
Povo todo, dizendo:
� �Meus ilhos, quantas coisas sagradas e importantes foram
pronunciadas aqui, agora! Tudo isso � coisa divina e misteriosa, de
modo que voc�s devem, antes de tudo, ouvir a palavra da Igreja,
representada por mim! O nosso Pr�ncipe-do-Cavalo-Branco vai
descansar um pouco na casa que foi de seu Pai. E eu, como homem de
Deus que sou, vou para a Igreja, a im de me preparar espiritualmente,
na Vig�lia, para o dia sagrado de Pentecostes, que ser� amanh�. Depois
de assim preparado pela ora��o, voltarei para este lugar, daqui a pouco,
porque tenho a revelar ao nosso bom e querido Povo coisas da maior
import�ncia sobre o nosso Destino, tanto o da terra quanto o do c�u!�
� Enquanto o Frade dizia estas palavras, o Doutor Pedro
Gouveia tinha montado novamente, juntando-se a ele e a Sin�sio; e os
tr�s, esporeando os cavalos, come�aram a caminhar em dire��o � velha
casa que pertencia aos Garcia-Barrettos, aquela mesma casa que Ar�sio
desprezara, ao regressar, e que permanecera fechada desde 1930, ap�s
a morte de El-Rei Dom Pedro Sebasti�o. Como logo se soube por

informa��o do Doutor Pedro, Sin�sio, �ao contr�rio do irm�o ruim, e
mantendo-se iel ao sangue de seu Pai�, fazia quest�o absoluta de icar
morando na velha casa, atitude que logo predisp�s ainda mais o Povo
em seu favor. Ora, al�m da velha Casa-Forte da fazenda � moradia
primitiva e mais antiga do primeiro Garcia-Barretto sertanejo � a
fam�lia tinha, realmente, aquela outra, na rua. Os Garcia-Barrettos
tinham doado uma parte das suas imensas terras para constituir o
patrim�nio da primitiva par�quia de Tapero�. Antes disso, por�m,
tinham separado outro peda�o de terras para a Igreja, erguendo ali,
logo, uma Capela dedicada a S�o Sebasti�o, que, como sabemos, era o
Santo de devo��o particular da fam�lia, e construindo, tamb�m, uma
casa pegada � Capela. Nesta casa se hospedaria o santo Padre Ibiapina,
nas suas passagens de mission�rio pelas terras do Cariri. Tudo isso se
dera durante o reinado de Dona Maria I, a Louca, av� do Impostor Dom
Pedro I, sendo Governador e Capit�o-Mor da Para�ba Dom Fernando
Delgado Freire de Castilho. Em torno dessa casa e da Capela de S�o
Sebasti�o � que se tinha ediicado a nossa Vila. Os Garcia-Barrettos
continuavam a morar na velha casa de Dom Jos� Sebasti�o, a antiga
�Casa-Forte da Torre da On�a Malhada�. O casar�o da rua era, apenas,
moradia eventual da fam�lia, quando seus chefes vinham � rua para
comparecer �s feiras, �s Missas, ou para cumprir suas obriga��es
mon�rquicas, isto �, para desilar sob p�lios, nas Prociss�es, para subir
aos palanques nas posses dos Prefeitos, seus prepostos, para o dia Sete
de Setembro, para as Cavalhadas, para as coroa��es dos Imperadores
do Divino e outras realezas grandiosas do mesmo tipo. Pois era para
esse casar�o da rua que Sin�sio, o Frade e o Doutor iam se
encaminhando naquele momento quando, na Rua Grande, sob o portal
do chamado �Casar�o das Pinhas�, avistaram um mendigo que, sentado
na cal�ada, parecia alheio a tudo o que acontecera, e ali estava, com o
rosto quase inteiramente coberto por um grande chap�u de palha de
abas largas e ca�das, e com o corpo inteiramente envolvido por uma
esp�cie de cobertor ou manta colorida, que o cobria at� os p�s, como se
ele estivesse com frio ou adoentado. Sin�sio, que fora, ao que parece, o
�nico dos tr�s a dar import�ncia ao mendigo, esbarrou seu belo Cavalo
branco � que, segundo soubemos depois, tinha o nome terr�vel de
�Tremedal� � e, junto da cal�ada, falou com ele.

� Seja o mais preciso que lhe for poss�vel agora, Dom Pedro
Dinis Quaderna! � falou o Corregedor. � Deixe de lado, um pouco, o
estilo r�gio, porque esse pormenor � important�ssimo para a elucida��o
do assassinato de Dom Pedro Sebasti�o, da morte e ressurrei��o de
Sin�sio, e de toda essa hist�ria da � como � que o senhor chama? � da
desaventura novelosa e guerreira da tal �Guerra do Reino�. Que foi que o
Rapaz-do-Cavalo-Branco disse ao mendigo?
O assunto era perigoso, de modo que procurei tergiversar e falei
vagamente:
� Excel�ncia, isso tudo aconteceu h� tr�s anos, e at� hoje
ningu�m chegou verdadeiramente a um acordo sobre quais teriam sido
exatamente as palavras trocadas entre os dois. Uns dizem que Sin�sio
apenas ofereceu uma esmola, que teria sido recusada pelo mendigo.
Outros dizem que ele falou no Testamento e no Tesouro, ambos
deixados por Dom Pedro Sebasti�o, indagando alguma coisa sobre o
Roteiro perdido desse Tesouro. E, inalmente, a maioria diz que Sin�sio
teria feito alus�es misteriosas ao Reino e � sua Miss�o, o que n�o deixa
de ser estranho, diante da aparente insigniic�ncia daquele mendigo.
� E qual � sua opini�o pessoal sobre essas tr�s vers�es?
� Excel�ncia, eu n�o tenho opini�o nenhuma, e, na d�vida,
passo a hist�ria adiante pelo pre�o que me venderam! Dizem que as
palavras que Sin�sio proferiu foram as seguintes: �Meu Velho, posso
fazer alguma coisa para ajudar voc�? Vim por causa do Crime, da
Heran�a e do Reino! Voc� sabe alguma coisa sobre o Caminho e o
Roteiro? Onde � que eu posso falar com Ant�nio Villar?�
� Como? � disse o Corregedor, quase pulando, de novo, da
cadeira. � Ant�nio Villar? Ele perguntou por Ant�nio Villar? Anote,
Dona Margarida, esse pormenor � important�ssimo! O senhor sabia,
Dom Pedro Dinis Quaderna, que Lu�s Carlos Prestes, o Chefe dos
comunistas brasileiros, mais ou menos por esse tempo estava entrando
no Brasil secretamente, vestido de Padre, e adotando exatamente esse
falso nome de Ant�nio Villar?
� Naquele momento, eu ainda n�o sabia disso n�o, Sr.
Corregedor, mas soube logo mais, � noite, por interm�dio do
Comendador Bas�lio Monteiro! Mas, no caso de Sin�sio, permanece uma
d�vida. A maior parte das pessoas, aqui, acredita que n�o foi a Lu�s
Carlos Prestes que ele se referiu, porque existe tamb�m, aqui na Vila,

um Fazendeiro com esse nome, pertencente � mesma fam�lia do Contra-
Almirante Frederico Villar.
� Est� bem, tudo isso ser� apurado! E que foi que o mendigo
respondeu a Sin�sio?
� Dizem que ele respondeu assim: �N�o senhor, n�o sei onde �
que o senhor pode encontrar esse homem n�o, nem tenho o Dinheiro
nem nada! Perdoe!�
� � estranho, n�o? � disse o Corregedor. � Primeiro, se fosse
do fazendeiro que Sin�sio tinha falado, o mendigo saberia dar a
informa��o, porque esse Ant�nio Villar, o daqui, � conhecido de todo
mundo. Depois, comumente, s�o os mendigos que nos pedem dinheiro
e n�s � que respondemos: �N�o tenho agora n�o, perdoe!�
� Pois se n�o aconteceu assim, foi assim que me contaram essa
parte, Sr. Corregedor! Dizem ainda que, ent�o, Sin�sio olhou
demoradamente o mendigo, sem dizer mais nada, por�m. Ap�s um
momento, esporeou o �Tremedal�, muito levemente, com grande
delicadeza, como sempre fazia para n�o feri-lo, segundo soubemos
depois. Ele, o Frade e o Doutor tomaram, de novo, o caminho do casar�o
dos Garcia-Barrettos, que icava ali perto, pegado � Capela (hoje Igreja
de S�o Sebasti�o). No momento, por�m, em que os tr�s iam chegando
na esquina da Rua Grande com a Pra�a onde teria se realizado a
Cavalhada, o mendigo com quem ele acabara de falar ergueu-se sobre
um joelho, puxou, de dentro da manta que o cobria, um rile, j�
engatilhado, e atirou no Rapaz-do-Cavalo-Branco. Poucos segundos
antes, no entanto, o cavalo �Tremedal� tinha topado ligeiramente numa
pedra, baixando e reerguendo logo a cabe�a, por causa da topada.
Sin�sio curvara-se para afagar o pesco�o do animal, signiicando-lhe,
assim, que aquela topada involunt�ria dada por ele em nada
prejudicara seu dono: foi esse gesto de afei��o ao belo animal que
salvou a vida de Sin�sio, sobre cuja cabe�a a bala passou zunindo, indo
se cravar adiante, na fachada da Capela.
� Me diga uma coisa, Dom Pedro Dinis Quaderna: na sua
opini�o, o pessoal que mandou emboscar o rapaz na estrada foi o
mesmo que mandou o mendigo atirar nele na rua?
� O Povo por aqui acha que foi a mesma gente, Sr. Corregedor!
� E quem foram os mandantes?

� Dizem que foi o rico e poderoso Ant�nio Moraes,
acrescentando alguns que ele ordenou tudo por inspira��o do ilho,
Gustavo Moraes, e com o consentimento de Ar�sio Garcia-Barretto,
irm�o de Sin�sio! Mas nada disso icou bem esclarecido, Sr. Corregedor,
de modo que volto aos acontecimentos provados e sucedidos diante de
todo mundo. O falso mendigo, vendo que falhara no primeiro tiro, p�sse
rapidamente de p�. Viu-se, ent�o, que ele n�o tinha nada de velho:
era um rapaz mo�o, forte e mal-encarado. Manejando o rile, que era um
Cruzeta casca-de-banda, levou de novo a arma � cara e correu na
dire��o de Sin�sio, que parara o cavalo e se voltara para o lugar onde
tinha soado o estampido. Mas enquanto o rile era manejado, o Doutor
Pedro e o Frade j� tinham tomado as primeiras provid�ncias para
defender o pupilo. O Doutor Pedro puxou uma pistola e esporeou o
cavalo para cima do Cabra. O Frade, n�o conseguindo desaivelar logo o
mosquet�o que trazia �s costas, compreendeu, por�m, a inten��o que
movia o outro e impeliu tamb�m seu cavalo, a im de, atropelando o
homem do rile, atrapalhar o segundo tiro. E foi o que aconteceu:
perturbado com aquele tropel dos cavalos que vinham em sua dire��o
amea�ando pis�-lo, o homem, que parecia visar somente Sin�sio em sua
tentativa, errou tamb�m o segundo tiro. Ent�o, com velocidade
surpreendente, o Cabra aumentou a carreira em que vinha, livrou-se
agilmente dos cavalos e, cruzando com o Doutor e o Frade, correu na
dire��o de Sin�sio. No aperto em que se encontrava, n�o pudera colocar
terceira bala na agulha, e tudo indicava que sua inten��o era lan�ar-se
sobre Sin�sio, agora para esfaque�-lo. O Doutor Pedro, por�m,
esbarrando o cavalo, voltou-se e disparou a pistola sobre o Cabra. Este
percebeu, ent�o, que n�o havia mais jeito: a tentativa falhara de vez,
porque ele fora ferido, se bem que levemente, e agora os dois vinham
de novo sobre ele. Jogando fora o rile para poder fugir mais
velozmente, correu ele ent�o pelo Beco da Igreja, na dire��o da Rua da
Usina. Enquanto isso, o Frade conseguira inalmente desaivelar o
mosquet�o, e estava mirando o cabra que corria, quando o Doutor
Pedro gritou: �Frei Sim�o, n�o atire n�o! Vamos pegar o Cabra vivo, para
ele revelar por quem foi mandado!�
O Corregedor interrompeu de novo, com aquela mesma
express�o aguda e cortante:

� Um momento, Senhor Dom Pedro Quaderna! O senhor tem
certeza de que foi pelo nome de Frei Sim�o que o Doutor Pedro Gouveia
tratou o tal Frade?
Ah, nobres Senhores e belas Damas! Vossas Excel�ncias, que
conhecem a hist�ria da Pedra do Reino, bem sabem o que este nome de
Frei Sim�o signiicava para todos n�s, pois Frei Sim�o era o nome
sagrado e prof�tico do nosso parente Manuel Vieira, o Mo�o, aquele
mesmo que, em 1838, tinha presidido, como sacerdote, �s degola��es
ordenadas por meu bisav�, Dom Jo�o II, O Execr�vel! Esfriei de novo,
sem saber at� que ponto o Corregedor conhecia o que esse nome de
Frei Sim�o signiicava para n�s. Mas, do jeito que falara, parecia que ele
quisera, apenas, documentar o fato para que Margarida o anotasse.
Assim, resolvi n�o entrar em maiores esclarecimentos; limitei-me a
responder:
� � verdade, Sr. Corregedor: foi pelo nome de Frei Sim�o que o
Doutor Pedro chamou o Frade. A narra��o dos acontecimentos que se
seguiram ent�o �, tamb�m, mais ou menos contradit�ria. Num ponto,
por�m, todos est�o de acordo: foi nesse momento que, l� de longe, do
Tabuleiro que ica entre o leito seco do Rio Tapero� e a Estrada de
Estaca Zero, come�aram a aparecer uns sinais luminosos, acendendo e
apagando em dire��o � Rua da Usina. Pareciam sinais feitos com um
espelhinho que algu�m manejasse no meio do Tabuleiro, escondido
entre as pedras e os Xiquexiques, acendendo e apagando o sol do
espelho com a m�o.
� Muito bem, Dom Pedro Dinis, veja agora o que vai me dizer,
porque esse ponto � muito importante! Se da Rua da Usina se v� essa
parte do Tabuleiro, � l�gico que, de l�, se v� a Rua da Usina, n�o �
verdade?
� �, sim senhor!
� Pois me diga outra coisa: o tal lajedo, que o senhor frequenta,
n�o ica entre o Tabuleiro e a Estrada, dominando a Vila a cavaleiro?
� Fica, sim senhor!
� Muito bem! Dona Margarida, anote essa coniss�o do
depoente, ela � importante para a elucida��o de tudo!
Novamente a boca do meu est�mago se contraiu, apertando
mais o n�. Foi com diiculdade que continuei:

� Quando os sinais de sol come�aram a se acender e se apagar
no meio do Tabuleiro, o Cabra, que j� tinha atingido a Rua da Usina e
parecia ter a inten��o de correr para os lados do Chafariz, margeando a
areia do Rio, mudou subitamente de inten��o, e, descendo o Cais,
come�ou a descer para o leito do Rio Tapero�, como se quisesse ir para
o Tabuleiro, ao encontro da pessoa que manejava o espelho. O Doutor
Pedro e Frei Sim�o iam chegando j� � Rua da Usina, quando, de repente,
o Cabra pareceu trope�ar na carreira em que ia e caiu de bru�os na
areia do Rio. Frei Sim�o e o Doutor Pedro apearam-se junto do Cais e
come�aram a descer cautelosamente, com as armas apontadas para o
Cabra, como se temessem uma cilada de sua parte. Mas, quando
chegaram perto, viram que o homem estava em convuls�es, com uma
perna que se estirava e se encolhia, enquanto o sangue sa�a, �s golfadas,
pelo buraco que uma bala lhe abrira mesmo em cima do �gado. Foi a�
que se veriicou que a bala do tiro do Doutor Pedro tinha pegado
somente o ombro dele, por tr�s.
� E o tiro que matou o Cabra, tinha vindo de longe?
� � o que tudo indica, Sr. Corregedor, porque ningu�m ouviu o
tiro na rua. Devem ter atirado nele provavelmente com um fuzil munido
de luneta, porque o tiro foi acertado com grande precis�o. Quanto �
pessoa que tinha atirado, deve ter fugido logo, com grande rapidez, pois
os que correram para as proximidades do lugar de onde tinham vindo
os sinais luminosos n�o encontraram ningu�m.
� De onde o senhor acha que partiu o tiro?
� Dizem, aqui na rua, que foi do meio do Tabuleiro, do mesmo
lugar de onde vinham os sinais do espelho. O senhor, o que � que acha?
� Eu n�o acho nada, estou somente investigando o caso.
Continue!
� O que eu tenho a narrar d�agora em diante � pouca coisa, Sr.
Corregedor! Esses, que j� contei, foram os acontecimentos principais
que marcaram, entre n�s, o reaparecimento de Dom Sin�sio, o
Alumioso. O Povo, que tinha acorrido todo para a Rua da Usina,
esperava, silencioso, a volta do Doutor Pedro e de Frei Sim�o, como que
aguardando uma explica��o ou uma palavra de ordem que desse
sentido a todos aqueles acontecimentos. O Doutor Pedro Gouveia, que
parecia homem dotado para essas situa��es, n�o se negou a isso. E, do
alto do seu cavalo, falou, com certa impon�ncia:

� �Povo de Tapero�! Aquele rapaz, desaparecido daqui em
1930, maltratado por cru�is inimigos, que mataram seu Pai e o
raptaram no mesmo dia; aquele rapaz, t�o querido por todos os Pobres
do nosso Sert�o, voltou hoje aqui para reivindicar seus direitos
sagrados! H� interesses poderosos, aliados contra ele e contra seus
direitos! Como voc�s viram, mal ele vai chegando � terra que para ele se
tornou sagrada por causa do sangue de seu Pai, tentam mat�-lo, para
impedir o Mo�o-do-Cavalo-Branco de fazer a felicidade da Pobreza!
Sozinho contra todos, raptado, perseguido, encarcerado, maltratado,
�rf�o, agora amea�ado de morte, com quem poderia ele contar, sen�o
com o Povo, esse Povo bom, sofredor e pobre, do Sert�o? Foi sempre ao
lado desse Povo que ele esteve, foi sempre a seu lado que ele apareceu,
e � isso que os seus inimigos n�o perdoam! Por isso, eu e Frei Sim�o,
protetores e amigos do Rapaz-do-Cavalo-Branco, pedimos a ajuda do
Povo Sertanejo para Sin�sio Garcia-Barretto!�

� S
FOLHETO LXIII
O Encontro de Dois Irm�os
em que ningu�m notasse, Sr. Corregedor, Sin�sio � que se
apeara do cavalo junto � Igreja � tinha se aproximado e icara
por tr�s do Povo, segurando �Tremedal� pela r�dea, ao mesmo
tempo que o abra�ava pelo pesco�o. O Doutor Pedro, que o vira chegar
enquanto falava, resolveu ent�o causar efeito sobre o Povo: e, ao
pronunciar suas �ltimas palavras, apontou, com gesto magn�ico, sua
m�o espalmada em dire��o ao pupilo e protegido. Todo mundo se
voltou para o rapaz, e foi enorme a sensa��o causada pela perora��o do
Doutor. Foi nesse momento que, do meio do Povo, surdiu Silvestre, o
irm�o bastardo de Sin�sio, acompanhado por Pedro Cego e �Cangati�.
Ele ouvira, inalmente, a revela��o do fato espantoso e, vendo o Doutor
apontar seu irm�o mais mo�o, precipitou-se para ele, puxando o Cego,
que o acompanhava como podia, ambos �s quedas e trope��es.
� �Sin�sio?� � indagou ele, esgazeado. � �O senhor disse
Sin�sio? Pelo amor de Jesus Cristo e de Nossa Senhora! Voc� � Sin�sio? �
Sin�sio, mesmo? Eu sou Silvestre! Sou Silvestre, seu irm�o!�
� Ao ouvir essas palavras, Sr. Corregedor, dizem que Sin�sio,
profundamente emocionado, deu um passo para o irm�o, o que foi
suiciente para que os dois icassem face a face. Silvestre parou e sua
imobilidade era tanto maior quanto tinham sido grandes os trope��es e
carreiras at� ali. Dizem que, colocando as duas m�os nos ombros de
Silvestre, Sin�sio disse algumas palavras em voz baixa e com os l�bios
tr�mulos...
O Corregedor interrompeu:
� J� ouvi outra vers�o, segundo a qual esse Rapaz-do-Cavalo-
Branco n�o disse nada nesse momento! Dizem que ele teria icado
im�vel, emocionado, com as m�os nos ombros do outro e olhando seus
olhos, isso durante uma boa por��o de tempo, at� que o tal do Frei
Sim�o interrompeu a cena!

� �, tem umas pessoas por a� que contam assim! � expliquei.
� Mas outras, idedignas, me contaram que, pelo contr�rio, Sin�sio
falou, dizendo: �Ent�o, Silvestre, ainda me conhece? Sou Sin�sio! Sou eu,
meu irm�o!� E os dois se abra�aram, chorando. � verdade que, logo no
dia seguinte, surgiram v�rias vers�es do acontecido, dizendo logo os
partid�rios de Ar�sio que as palavras n�o tinham sido exatamente
essas!
� H� quem diga, mesmo, que, em vez de Silvestre, o Rapaz-do-
Cavalo-Branco teria chamado seu pretenso irm�o de Silv�rio!
� �, mas muita gente, tamb�m, diz que ele acertou e chamou o
irm�o foi de Silvestre, mesmo! E mesmo que n�o tivesse acertado, Sr.
Corregedor, os sofrimentos podem t�-lo perturbado um pouco,
causando o erro! O senhor pensa que ver o Pai assassinado, ser raptado
no mesmo dia, ser preso sem culpa nenhuma, ser soterrado, morrer de
fome, solid�o e desespero, e, ainda por cima, ressuscitar numa estrada
sertaneja, � alguma brincadeira? De qualquer modo, sei que Silvestre,
abra�ado ao pesco�o do irm�o, dizia: �Meu Deus, ser� verdade mesmo?
Ser� que Sin�sio est� vivo? Sim, � ele, meu cora��o me diz que �!� S� no
outro dia � que come�aram a aparecer outras vers�es! Naquele
momento inicial, por�m, ningu�m cuidava de saber exatamente o que
se dissera ou n�o: o Povo j� estava, tamb�m, todo em prantos,
conduzido por Frei Sim�o e pelo Doutor Pedro, os quais, assim que
tinham visto os dois irm�os se abra�arem, tinham puxado os len�os e,
cobrindo o rosto, haviam come�ado a chorar convulsivamente, numa
emo��o que imediatamente contagiou todo mundo!
� � verdade que Frei Sim�o, ao ouvir o nome de Silvestre, teria
dito umas coisas estranhas, que ningu�m entendeu direito, mas que
tiveram uma repercuss�o enorme perante o Povo?
Esfriei de novo, aterrorizado, porque aquilo era, novamente,
ligado ao grande segredo da minha vida � minha linhagem real
paterna. Pegado de surpresa, iquei, durante um momento, olhando o
Corregedor, sem nada responder. Ele insistiu:
� O que foi que Frei Sim�o disse?
� Sei n�o, Excel�ncia! � falei, tentando escapar. � Tamb�m
n�o entendi direito aquelas doidices n�o! Dizem que, depois de ter
chorado em quantidade suiciente para emocionar e abalar o Povo, Frei
Sim�o conseguiu se dominar! A�, chegando seu cavalo para junto dos

dois irm�os, apeou-se e caminhou para eles. Dizem que Sin�sio,
tomando o irm�o pelo bra�o, apresentou-o ao Frade, dizendo: �Frei
Sim�o, este aqui � meu irm�o, o segundo, aquele que era pegado comigo
e que eu lhe disse que icaria do nosso lado, de qualquer jeito! �
Silvestre!� Dando mostras de um espanto vis�vel para todos, Frei Sim�o
arregalou os olhos e gritou: �O qu�? Como foi que voc� disse? Voc�
disse, a�, Silvestre, foi, Sin�sio? Rapaz, voc� se chama Silvestre? Pergunto
porque, se voc� se chama, mesmo, Silvestre, o Doutor Pedro precisa
saber disso imediatamente!� E ent�o, excitado, falando alto para que o
Povo tamb�m ouvisse, o gigantesco Frei Sim�o gritou para o
companheiro que se aproximava: �Doutor Pedro, chegue aqui pelo amor
de Deus! Veja se o nosso Sin�sio n�o �, de fato, uma criatura de Deus!
Veja se tudo isso n�o � coisa divina, coisa do Divino Esp�rito Santo!
Olhe, veja quem est� aqui, ressuscitado: Silvestre, o Guia, aquele mesmo
Rei e Profeta da Serra do Rodeador! � o nosso Silvestre Quiou, O
Enviado!� O Doutor Pedro Gouveia, ouvindo que aquele rapaz, mo�o
daquele jeito, era o mesmo Profeta aparecido na �Guerra da Serra do
Rodeador�, abriu a boca, arregalou os olhos e persignou-se,
murmurando: �Ave Maria! Minha Nossa Senhora! � coisa do Divino
Esp�rito Santo, isso n�o tem pra onde!� Depois disso, sem dizer mais
nada, icou olhando o Povo assombrado, enquanto brincava, de modo
aparentemente casual e descuidoso, com a Cruz meio episcopal que lhe
pendia do pesco�o, amarrada a uma larga ita amarela e branca. Quanto
a Silvestre, sem ligar import�ncia ao que o Frade e o Doutor estavam
dizendo, limitava-se a repetir mais ou menos o que tinha dito: �Mas
meu Deus, ser� verdade mesmo? � verdade, tudo me diz que � verdade!
Sin�sio ressuscitou, e ressuscitou, com ele, o sangue de meu Pai!
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Sin�sio ressuscitou,
ressuscitou o Prinspe da Bandeira do Divino do Sert�o! Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo!� �Para sempre seja louvado!� � come�avam,
j�, a repetir, em coro, os Sertanejos, sempre meio dispostos a uma boa
ladainha. Ent�o, Sr. Corregedor, sucedeu um outro fato mais ou menos
inesperado. De repente, Silvestre, certamente impressionado com tudo
o que acontecera, ajoelhou-se na poeira do ch�o e beijou a m�o do
ressuscitado, o que terminou por desgarrar, de vez, tudo quanto era
fanatismo sertanejo represado. Tudo poderia, ali�s, ter continuado
assim, nesse tom r�gio, o que me permitiria, logo de in�cio, manter o

timbre heroico, tr�gico e epopeico da minha hist�ria. Infelizmente,
por�m, devo ser ver�dico, e, naquele momento, Pedro Cego interveio,
atrapalhando o inal da cena com um daqueles �ataques de insol�ncia�
que, nele, costumavam sempre alternar-se com os teol�gicos. Mal
Silvestre se erguia, o terr�vel Cego lhe ca�a em cima, dando-lhe, com a
ponta do cajado, uma estocada nas costelas: �Que � que voc� est�
fazendo a�, seu safado, se esfregando na poeira, como um jumento, e
obrigando essas pessoas ilustres a perder tempo? Venha logo, aqui,
cantar um neg�cio comigo, peste! Quer ganhar a vida sem trabalhar, �?
Pra que � que eu pago a voc�, hein, seu corno? Chegue, vamos cantar,
aqui, uma toada, que � pra esse Doutor, a�, me dar uma esmola!�
Pegando ent�o na viola, Sr. Corregedor, ele deu em suas cordas uma
vigorosa batida-de-ponteado, logo seguida de um pinicado bem
marcado e forte. Ouvindo isso, e como se nada tivesse acontecido,
Silvestre retirou a rabeca das costas. De seu rosto, tinham-se apagado
completamente todos os sinais de emo��o epopeica, motivo pelo qual
esse inal de cena talvez seja cortado da minha Obra. Foi j� rindo que
ele desferiu, tamb�m, nas tripas de gato de sua rabeca sertaneja, um
toque violento, �spero e fanhoso. Ent�o, sem que ningu�m tivesse
previsto � mas tamb�m sem espanto nenhum de ningu�m �, os dois
iniciaram, depois de breve confabula��o, a desaio-de-mem�ria e em
homenagem a Sin�sio, o seguinte romance-de-loa, em estilo narrativo:
�Quem quiser ter seu sossego,
deixe a minha Companhia,
pois minha M�e me pariu
numa �spera Caatinga!
Armas, riles e Cavalos,
serra abaixo, serra acima,
e os Ciganos me furtaram
em terras de Mouraria!
Quatrocentos me matavam,
quatrocentos defendiam,
at� que me sepultaram
numa Cadeia que havia!
Um Gavi�o me educou,

um Cervo me salvaria,
sete anos bebi leite
da feroz On�a parida,
outros sete comi P�o,
sete, o Vinho da bebida!
Tr�s vezes sete, vinte e um,
e eis que o Morto volta � vida!
Por sete anos fui preso
e ainda l� estaria,
n�o fosse o sangue do Rei
que me ressuscitaria!�

Tocata
OS DOIDOS

Q
FOLHETO LXIV
A Cachorra Cantadeira e o Anel Misterioso
uando eu acabei de recitar esse enigm�tico �romance�, o
Corregedor falou:
� Dom Pedro Dinis Quaderna, eu, se fosse o senhor, cortava essa
versalhada da sua futura Epopeia, porque ela parece uma charada, uma
esp�cie de logogrifo em verso!
� Pois � exatamente por isso que ela deve entrar, Sr.
Corregedor! Essa palavra que o senhor usou, �grifo�, � exatamente a
prova de que esses versos s�o indispens�veis � minha Epopeia!
� Por qu�? � perguntou ele, espantado.
� Por causa de Homero, Excel�ncia! N�o quero, nem devo,
esconder a Vossa Excel�ncia que, depois de conseguir da Academia
Brasileira de Letras o t�tulo de �G�nio da Ra�a Brasileira�, pretendo
disputar, no vasto Imp�rio da Literatura Universal, o cargo, tamb�m
ainda vago, de �G�nio M�ximo da Humanidade�! Ora, assim como iquei
com uma certa �cisma� com o Conselheiro Ruy Barbosa em rela��o ao
primeiro t�tulo, tive tamb�m, a princ�pio, uns certos sobressaltos com
Homero, para o segundo: foi quando li nas Postilas de Ret�rica e
Gram�tica, publicadas em 1879 pelo Doutor Amorim Carvalho, que, de
todos os Poetas, �o primeiro, no tempo e na gl�ria, � Homero�. Esse
Doutor foi �ret�rico� do Imperador Dom Pedro II. Mesmo sendo Pedro
II um impostor e usurpador, essas coisas de monarquia s�o muito
s�rias, de modo que o cargo de �Ret�rico Imperial� � vener�vel e a
palavra do Doutor Amorim Carvalho n�o � brincadeira! Por isso,
quando li isso, iquei meio cego de terror, com medo de que aquele
peste de grego tivesse se antecipado e me tomado o cargo. Mas
Clemente e Samuel me tranquilizaram um dia, provando-me, primeiro,
que Homero n�o existiu � opini�o de Clemente � e, depois, que tinha
mau gosto e era incompleto � opini�o de Samuel. � evidente que, para
uma pessoa ser nomeada �G�nio M�ximo da Humanidade�, precisa,

primeiro, existir! Depois, segundo o Doutor Amorim Carvalho, uma
Obra, para ser cl�ssica, precisa ser completa, sem o qu� nem � modelar
nem de primeira classe! Homero, al�m de n�o ter existido, era
incompleto: como pode, portanto, ser o �G�nio M�ximo da
Humanidade�? Apesar disso, por�m, Sr. Corregedor, resolvi tomar
certas precau��es contra ele, e a presen�a, em minha Epopeia, do
�enigma grifo-esing�tico em versos� que lhe recitei � uma delas!
� A senhora est� entendendo, Dona Margarida? Eu estou tendo
alguma diiculdade! � disse o Corregedor.
� Pois explico tudo em dois minutos! � disse eu, com boa
vontade. � O suplemento anual do Almanaque chama-se ��dipo�. O
primeiro n�mero dele, explicando a raz�o do t�tulo, contou o mais
famoso enigma do povo de Homero, os Gregos � aquela charada que a
Esinge prop�s a �dipo, Rei de Tebas. A tal da Esinge era um
cruzamento de grifo com leoa. Ou, melhor, em termos sertanejos, um
cruzamento de On�a, Cavalo e Gavi�o. Devia ser meio mordida-decachorro-
da-molesta, porque s� mordida � que uma bicha podia ser
faminta daquele jeito, Sr. Corregedor! Ela devia ter alguma Cobra
esfomeada na raiz do sangue, ou ent�o tinha comido Can�rio doido em
pequena, tro�o que, como o senhor sabe, � a coisa que d� mais fomecanina
no mundo! A Esinge perguntava a quem passava perto dela:
�Qual � o bicho que, quando � pequeno, tem quatro p�s, depois tem dois
e morre com tr�s?� Quem n�o respondia, ela comia, com osso e tudo!
Quando chegou a vez de �dipo, ele respondeu, tornando-se, desde
ent�o, patrono dos charadistas e decifradores: �Esse bicho � o Homem,
que, quando � pequeno, engatinha de quatro p�s, depois passa a andar
com dois, e inalmente, j� velho, apoia-se numa bengala que passa a ser
seu terceiro p�.� A Esinge, vendo decifrado seu logogrifo, teve uma
raiva t�o da gota-serena que estourou o alferes-queiroz l� dela, teve um
infausto-do-leoc�dio e morreu! Ora, Sr. Corregedor, pra mim, esse
grande enigma dos gregos e de Homero � uma merda completa!
Primeiro, nem todo velho anda de bengala! Aqui mesmo, em Tapero�,
conhe�o o Coronel Chico Bezerra que nunca precisou de bengala e anda
teso, duro, espigado, como se tivesse engolido uma! Depois, nem todo
homem adulto anda com dois p�s: existe o �perneta� que anda com uma
perna s�, e existe o chamado �cot�� que n�o anda com perna nenhuma!
Finalmente, nem todo menino engatinha de quatro p�s: j� vi muito

menino por a� que come�a a vida engatinhando de bunda, arrastando o
zebescuefe no ch�o! � por isso que, mod�stia � parte, minha charada
epopeica, o logogrifo em versos que vai iniciar minha Epopeia, � muito
superior ao enigma-mor dos Gregos, povo de Homero!
� E qual � a decifra��o do seu enigma? � indagou o
Corregedor.
� Excel�ncia, a meu ver o logogrifo que Pedro Cego e Silvestre
cantaram � a pr�pria hist�ria de Sin�sio, O Alumioso! Acho que isso �
claro para qualquer bom decifrador!
� Claro? � protestou o Juiz. � Sua charada � ainda mais malarmada
do que a da Esinge! Quer ver uma coisa? Nos versos, fala-se em
quatrocentos Ciganos, e os que trouxeram o Rapaz-do-Cavalo-Branco
eram quarenta!
� Por isso n�o, Excel�ncia! Esses aumentos fazem parte do
pr�prio estilo epopeico! Homero, mesmo, aumenta
extraordinariamente o n�mero de Cangaceiros gregos comandados
pelos Reis l� dele; e, em Canudos, Euclydes da Cunha faz o mesmo, tanto
para o lado do Ex�rcito quanto para o lado dos Sertanejos!
� Est� bem, v� l�! Mas, no seu Enigma, tem coisa ainda pior! Me
diga uma coisa: como � aquela parte que fala nos anos em que Sin�sio
esteve sumido?
� �Tr�s vezes sete, vinte e um, e eis que o Morto volta � vida!�
� Em que ano nasceu Sin�sio?
� Em 1910, veio com o cometa!
� Ent�o, em 1935, ele estava com vinte e cinco anos, e n�o com
vinte e um!
Eu, que, sentindo minha ang�stia aumentar, estava j� doido para
ir-me embora, aproveitei para ver se terminava meu depoimento e
disse:
� Mas Sr. Corregedor, que voca��o extraordin�ria de decifrador
� a sua! O senhor tem toda raz�o, e vou � desistir desse enigma besta,
na minha Epopeia! De qualquer modo, agrade�o a colabora��o que o
senhor me deu, e aqui me despe�o, porque j� lhe contei o que aconteceu
de mais importante, na chegada de Sin�sio a Tapero�!
� J� mesmo, Dom Pedro Dinis Quaderna? � disse o Juiz com ar
venenoso. � Tem certeza? O senhor j� contou tudo? Tudo mesmo? N�o
escondeu nenhum dado fundamental?

� N�o senhor! Do que eu me lembro, assim, j� contei tudo!
O Corregedor respirou fundo e atirou:
� Pois aqui na Vila houve gente de cora��o mais aberto do que o
seu; gente que me disse, entre outras coisas, que o senhor, naquela hora
em que aconteceu tudo, estava justamente no tal Lajedo de onde se
avista a Rua da Usina e o rio, e de cujas proximidades partiu o tiro que
matou o �cabra�!
* * *
Aterrado, iquei olhando para o Corregedor, sem encontrar coisa
alguma para dizer. Aquela simples frase dele mostrava-me que a teia
amaldi�oada da qual eu pensava j� ir saindo estava apenas come�ando
a me enredar. Fiquei atordoado. Quando, ainal, consegui falar,
perguntei com voz insegura:
� O senhor recebeu alguma den�ncia contra mim?
� Quem tem o direito de fazer perguntas aqui sou eu, e n�o o
senhor! Mas, fazendo uma exce��o, vou responder a essa, sua. Acontece
que recebi uma carta an�nima que o denuncia como implicado em todo
este caso. A carta abre uma quest�o muito grave, porque nela se airma
que todo o caso do fazendeiro Pedro Sebasti�o e de seu ilho Sin�sio
tem estreitas liga��es com a Revolu��o que os comunistas tentaram em
1935 e que, at� agora, n�o desanimaram de levar adiante! A carta est�
aqui! � acrescentou ele, folheando seus pap�is e exibindo o
documento, que se absteve de me dar.
Perguntei:
� Sr. Corregedor, a letra da carta � de homem ou de mulher?
� � imposs�vel saber isso!
� Por qu�? � letra de m�quina? � perguntei, olhando de trav�s
para Margarida.
� N�o, mas a pessoa que escreveu a carta imitou, nela, as letras
mai�sculas de imprensa.
� E o que � que a carta diz, Excel�ncia?
� Ah, diz muita coisa, Dom Pedro Dinis Quaderna! Diz v�rias
coisas que eu irei lhe perguntando e que o senhor ir� me explicando, �
medida que o inqu�rito se desenrole! Por enquanto, por�m, saiba o
senhor que, aqui, lhe fazem quatro acusa��es graves! Primeiro, dizem

que a viagem que o senhor organizou, com um Circo, em 1935, depois
da chegada de Sin�sio aqui, tinha como im oculto encontrar o tesouro
deixado por Dom Pedro Sebasti�o. Segundo o denunciante, esse tesouro
tinha sido amontoado por seu Padrinho como resultado dos neg�cios
dele com �o gringo Edmundo Swendson� no ramo das pedras preciosas,
de maneira que era uma fortuna incalcul�vel, em diamantes, top�zios e
�guas-marinhas. Diz-se tamb�m, na carta, que, al�m das pedras
preciosas, seu Padrinho, ajudado por suas artes de Astr�logo e
quiromante, tinha encontrado dois caix�es enormes, abarrotados de
moedas de ouro e prata, dinheiro portugu�s e espanhol, enterrado no
tempo dos lamengos. Diz-se que Dom Pedro Sebasti�o tinha enterrado
essa fortuna numa furna sertaneja que ningu�m sabe onde se encontra,
com exce��o do senhor, pois consta textualmente da carta que
�somente o dito Pedro Dinis Quaderna � capaz de dizer alguma coisa
sobre o roteiro do tesouro�. Ora, esse tesouro � ponto importante para a
decifra��o do caso, porque, segundo diz a carta, quando o senhor se
juntou a Sin�sio, naquela viagem, o principal objetivo dos dois era
encontrar o tesouro que inanciaria a Revolu��o, em sua parte
sertaneja. A segunda acusa��o grave que se faz aqui � que o senhor, na
mesma noite em que Sin�sio chegava � Vila, propiciou, na sua
estalagem e casa-de-recurso, um encontro entre seu primo, Ar�sio
Garcia-Barretto, e um tal Adalberto Coura, sujeito que morava no s�t�o
da estalagem e que n�o sa�a nunca, porque estava escondido da Pol�cia.
Dizem que, ao mesmo tempo, o senhor enviava a Sin�sio um pacote de
pap�is que, segundo uns, continha o roteiro do tesouro, e, segundo
outros, uma por��o de documentos subversivos que lhe tinham sido
entregues por Adalberto Coura �da parte de um tal Ant�nio Villar, nome
usado por Lu�s Carlos Prestes, chefe dos comunistas brasileiros�.
Finalmente, a outra acusa��o, a mais grave de todas, diz que o senhor
foi o principal culpado do assassinato de seu Padrinho, o fazendeiro
Dom Pedro Sebasti�o! Me diga uma coisa: essa hist�ria do tesouro e do
Circo � verdade?
� �, sim senhor! Havia o tesouro, e eu organizei, mesmo, um
Circo para que n�s todos pud�ssemos viajar pelo Sert�o, com Sin�sio, O
Alumioso, meu sobrinho, o Rapaz-do-Cavalo-Branco! Desde menino que
eu era entusiasmado com circo, por causa do �Circo Arabela� e do �Circo
Estringuine� que andavam por aqui, com mo�as equilibristas de coxas

maravilhosas, com On�as, com itas de Cinema e pe�as de Teatro. Foi
num Circo que eu vi uma ita, A Carne, com aquela mulher
extraordin�ria, Isa Lins. Foi a� que travei conhecimento com Gr�cia
Morena, mulher de cara sexual, que aparecia com ousados decotes
abertos entre os peitos. Vi O Guarani, que depois, como A Carne, leria
sob forma de romance. Vi Sangue de Irm�os, de Jota Soares, �ilme de
aventuras, de costumes sertanejos�. Vi Reveses, de Chagas Ribeiro, que
me deixou entusiasmad�ssimo, porque nele apareciam cavalos e
Vaqueiros, como nos romances sertanejos cavalarianos e bandeirosos.
No �Circo Arabela�, por�m, o que mais me entusiasmava n�o eram
propriamente os Cavaleiros, fazendo piruetas em cima de cavalos. Era a
pr�pria Arabela, mulher bel�ssima, de coxas nuas, com as calcinhas
aparecendo, em cima do arame ou equilibrando-se em cima dum
cavalo. Vi-a fazendo um n�mero em que ela se espichava em cima de
uma On�a e depois a On�a se espichava em cima dela. Foi no Circo que
vi um teatro maravilhoso, uma pe�a chamada O Terror da Serra Morena,
com assunto tirado de um �folheto�. E vi os Palha�os, com o Palha�o
Sabido e o Palha�o Besta, de fofa e de gola branca. Mas, sobretudo, foi
no Circo que eu e Ar�sio, pela primeira vez, conhecemos mulher, numa
noite, depois do espet�culo. Ar�sio, com seu prest�gio de rapazinho rico
e vigoroso, conseguiu duas mo�as-do-arame, a mais bela para ele, a
menos bela para mim, de modo que n�s fomos iniciados nos camarins,
com as luzes apagadas, separados apenas por cortinas, pelas paredes
de pano que serviam aos cub�culos. Depois, quando me iz adulto,
tornei-me Chefe de cavalhadas, de autos de guerreiros, de Bumba-meuboi,
de Nau Catarineta etc. Mas tudo isso vive parado, s� aqui na Vila.
Por isso, eu sonhava em me tornar dono de Circo. O Circo era o jeito que
eu tinha de transformar toda essa Literatura, todo esse Teatro-de-rua
em Literatura-de-estrada, isto �, uma Literatura cavaleira e epopeica,
que nos tornasse, a todos n�s, her�is errantes pelas Estradas e
caatingas do Sert�o, como o Valente Vilela! Por isso, com a chegada dos
Ciganos que vieram com Sin�sio e que sabiam, todos, fazer piruetas em
cima dos cavalos, vi que aquela era minha oportunidade, e foi assim que
organizei meu Circo, combinando tudo com o Doutor Pedro Gouveia!
� Quer dizer que o Doutor Pedro tamb�m entrou nessa hist�ria
do Circo?

� Entrou, sim senhor! O interesse dele era encontrar o
testamento e o tesouro deixados por meu Padrinho. Ora, o senhor sabe
que essas coisas custam dinheiro, e Sin�sio n�o tinha dinheiro nenhum.
O Circo terminou, assim, resolvendo, tamb�m, o problema dele, porque
n�s faz�amos as viagens que eram necess�rias � busca do tesouro, e a
renda dos espet�culos, al�m de pagar as despesas, ainda me dava algum
lucro; principalmente porque eu levei com a gente doze mulheres da
minha casa-de-recurso, e organizei com elas um Pastoril do qual eu era
o �Velho� e que foi a nossa principal fonte de renda!
� Muito bem, v�-se bem que, assim como sua estalagem � uma
�casa-de-recurso�, o dono n�o ica atr�s, � homem tamb�m de recursos
e expedientes de toda natureza! E a hist�ria da entrevista de Ar�sio
com Adalberto Coura? � verdadeira, tamb�m?
� �, sim senhor!
� E o pacote de pap�is? � verdade que o senhor mandou a
Sin�sio, na noite de 1� de Junho de 1935, um pacote de documentos
subversivos?
� N�o senhor! Eu mandei, mesmo, o pacote, mas n�o eram
documentos subversivos n�o, era uma c�pia manuscrita do Caminho
M�stico, de Santo Ant�nio!
� Santo Ant�nio de P�dua, o Portugu�s?
� N�o senhor, Santo Ant�nio Conselheiro de Canudos, o
Sertanejo! Eu sou devoto dele e de Padre C�cero, na minha qualidade de
Profeta do Catolicismo-sertanejo!
� Catolicismo-sertanejo?
� � a minha religi�o, Excel�ncia! N�o estando muito satisfeito
com o Catolicismo romano, fundei essa outra religi�o para mim e para
meus amigos! O pessoal a� da rua, que sempre ouve cantar o galo, mas
n�o sabe onde, ouviu falar nesse Ant�nio, o Conselheiro, e pensou que
eu estava me referindo ao outro Ant�nio, o Villar, pseud�nimo de
guerra de Lu�s Carlos Prestes, criando-se, ent�o, essa hist�ria de
documentos subversivos!
� Est� bem, vou apurar tudo isso! E a outra acusa��o? Ent�o o
senhor foi um dos assassinos do seu Padrinho e pai de cria��o, de seu
benfeitor Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto?
� Eu? N�o senhor! Deus me livre!
� Ent�o o senhor nega qualquer participa��o na morte dele?

� Nego, sim senhor! Eu ia, l�, matar meu Padrinho, Doutor? Meu
Padrinho foi, para mim, um segundo Pai!
� Veja bem o que responde, porque o senhor pode se
complicar! O senhor n�o deixou de me esclarecer nenhum ind�cio
importante sobre aquele crime de 1930?
� N�o senhor!
� Fa�a o favor de levantar a m�o esquerda!
Um pouco atemorizado pelo tom de viol�ncia cortante que o
Corregedor assumira de repente, ergui a m�o � altura do rosto dele,
com a palma virada em sua dire��o, como se quisesse, assim, deter a
brutalidade da investida.
� Vire a m�o! � disse ele, bruto e brusco. � Assim, est� bem!
Agora me diga: que anel � esse que o senhor usa no dedo anular? Onde
o conseguiu?
Senti que meu sangue, j� perturbado pela tonteira, pelo medo e
pela crueldade do interrogat�rio, �relu�a todo para o cora��o�, como
dizem os contos do Almanaque Charad�stico. Passei a m�o no rosto, para
ver se me recobrava um pouco. Mas, nesse momento, como olhasse
casualmente para fora, pela janela, tive a impress�o de que, do outro
lado da rua, defronte da Cadeia, na esquina da casa de um homem
nobre da rua, o Capit�o Clodoveu Torres Villar, havia um par de olhos
amaldi�oados, que me espreitavam h� algum tempo e que, no mesmo
instante, desapareceram. Eram olhos maldosos e escarninhos. Num
relampo, o ar se encheu de drag�es pe�onhentos, de asas de morcego,
que, esvoa�ando em torno de mim, come�aram a me entrar para o
sangue, atrav�s dos meus ouvidos, que come�aram, tamb�m, a ser
despeda�ados por batidas de martelo na bigorna do Divino. Conheci
que o �mal sagrado� vinha se aproximando, e que, da� a pouco, numa
fra��o de segundo, eu estaria espancando o ch�o com a cabe�a, em
contor��es desesperadas, escumando pela boca como um danado. Os
olhos malditos reapareceram, agora sem dono e fulgurantes,
despedindo setas de fogo que encheram o ar de Gavi�es, muito
parecidos com aqueles do dia em que perdi os olhos. Senti-me
sufocado, julguei que ia morrer, abri a boca, quis falar, mas a� o Sol
tornou-se enceguecedor e eu, perdendo a consci�ncia, ca� no ch�o,
deslumbrado, fulminado, com o Sol na cabe�a e a tempestade no
cora��o.

* * *
Quando acordei do �ataque�, da �grande aura� que s� acomete os
g�nios, Margarida estava sustentando minha cabe�a em seu colo alvo e
aristocr�tico, e um Soldado de Pol�cia esperava, impass�vel, que eu
�tornasse�, para me dar um copo d��gua que ele segurava na m�o,
mantendo o resto do corpo em posi��o de sentido. Somente o
Corregedor, implac�vel, continuava com a mesma express�o, dura e
inquisitorial.
� N�o foi nada n�o, j� estou me sentindo melhor! � disse eu,
fracamente, mas j� experimentando uma indiz�vel sensa��o de bemestar,
n�o s� porque � assim que me sinto depois dos meus ataques,
como porque estava come�ando a me dar muito bem no calor e na
maciez do colo de Margarida.
Ela, por�m, n�o sei se notando que eu come�ava a me aproveitar,
soergueu um pouco minha cabe�a e fez men��o de se levantar. Para
evitar isso, falei mais depressa:
� Foi o calor da sala e a impress�o de mal-estar que comecei a
sentir, depois que passei pela cela dos presos, l� embaixo! Obrigado,
Margarida, Deus lhe pague sua bondade e sua gentileza!
Margarida fez, logo, uma cara ruim, de novo, e o Corregedor
falou:
� O senhor, se quiser, pode se sentar nesta cadeira!
� N�o senhor, obrigado! � disse eu, icando de p�. � Se eu me
sentar, isso pode incomodar o cotoco e prejudicar a Epopeia! Pe�o,
ali�s, que todos dois me desculpem o espet�culo constrangedor que
devo ter dado, com esse ataque esquisito!
� N�o, n�o houve ataque esquisito nenhum! O senhor somente
sentiu-se mal e teve um ligeiro desmaio, � mais ou menos de esperar!
� disse o Juiz.
� N�o, Sr. Corregedor! � insisti. � N�o tenha constrangimento
de me envergonhar n�o! Sei, muito bem, que n�o foi um simples
desmaio! N�o iquem constrangidos por terem visto isso; deve ter sido
horr�vel de assistir, mas acreditem que � pior para quem v� do que para
quem tem! Eu deveria, de fato, ter vergonha desses ataques, mas li, a
respeito deles, umas palavras de Baptista Pereira � aquele distinto
escritor brasileiro que, por ser genro do Conselheiro Ruy Barbosa,
contraiu a genialidade do sogro. Segundo essas palavras, a Epilepsia � a

�grande aura�, o �mal sagrado� que s� acomete os verdadeiros g�nios.
Assim, nem percam tempo tentando disfar�ar de mim o que viram,
porque, para ser sincero, eu me sinto at� orgulhoso de ser epil�tico! �
mais uma prova de que sou predestinado, pela Provid�ncia Divina e
pelos Astros, a ser o �G�nio da Ra�a Brasileira�!
� E o senhor � epil�tico? � perguntou, frio, o Corregedor.
� Garantir, mesmo, que sou, n�o posso n�o, Sr. Corregedor,
porque nunca fui a um m�dico para veriicar isso, com medo de que ele,
por acaso, me curasse e me tirasse, assim, essa caracter�stica da
genialidade. Mas tenho quase certeza de que sou, pelo motivo que
passo a lhe expor. Depois que li aquelas palavras do genial genro de Ruy
Barbosa, iz uma promessa a Santo Ant�nio Conselheiro para icar
epil�tico e me tornar g�nio. Pois bem: da� a tr�s dias � prazo que eu
tinha dado ao Santo sertanejo � fui para cima do meu lajedo, virei-me
para o lado do Paje� e de Canudos, ajoelhei-me e iquei assim, uma
por��o de tempo. De repente, minha cabe�a deu �um estalo do Padre
Vieira� e tive o meu primeiro ataque. Da� em diante, iquei assim! De vez
em quando, caio no ch�o, escumando pela boca e mordido de cachorroda-
molesta! Mas, como j� disse, n�o tenham vergonha por mim, n�o,
porque isso � at� motivo de orgulho, uma vez que � o mesmo �mal
sagrado� de um Pr�ncipe brasileiro, o Impostor Dom Pedro I, e de um
Poeta genial, Dom Joaquim Maria Machado de Assis!
� Pois Dom Pedro Dinis Quaderna, com todo o seu �g�nio� e a
sua �idalguia�, lamento comunicar-lhe que o senhor est� em maus
len��is! � disse o Corregedor, respirando fundo e atirando a lecha
envenenada que guardara para o im. � A carta que recebi � extensa e
faz cerca de sessenta acusa��es contra o senhor. Entre estas, duas
muito importantes! A primeira, diz que o senhor descende daqueles
fan�ticos execr�veis que, na Pedra do Reino, de 1835 a 1838,
subverteram o Sert�o com uma ��seita� sanguin�ria, degolando
mulheres, crian�as e cachorros. Diz a carta que o senhor mesmo se
encarregou de lembrar isso � ral� sertaneja daqui, conseguindo, assim,
por mais estranho que pare�a, assumir uma certa ascend�ncia sobre
ela. Dizem que o senhor fez isso, a princ�pio, apenas para explorar o
Povo, inclusive em dinheiro; mas que, depois, com a chegada de Sin�sio,
foi por causa disso que p�de aliciar tanta gente para a expedi��o do tal
Rapaz-do-Cavalo-Branco. Segundo a carta, o fato de pertencer �quela

fam�lia sanguin�ria e subversiva � o motivo da sua ascend�ncia sobre os
Cangaceiros, Cantadores, Vaqueiros e mais toda essa ral� sertaneja de
fateiras, prostitutas, tangerinos e contrabandistas de cacha�a.
Finalmente, a carta revela um outro fato, grav�ssimo: � que esse anel
que o senhor usa, � o mesmo anel que foi retirado do dedo do
fazendeiro Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto, momentos depois de
ter sido ele degolado por seus assassinos.
* * *
Pronto, nobres Senhores e belas Damas de peitos macios! Estava
descoberto o meu grande crime, aquela Culpa que eu vinha procurando
ocultar t�o cuidadosamente, desde que se iniciara o depoimento. Tive a
sensa��o de que h� muito tempo eu pressentia uma acusa��o dessas, na
minha vida. Era esse o motivo real das minhas apreens�es. N�o s� das
que experimentara h� pouco, quando vinha para a Cadeia, mas da
apreens�o geral, muito mais antiga, surgida com o Sol do meu sangue,
quando, sem motivo palp�vel nenhum, eu j� me sentia culpado sem
ningu�m me acusar diretamente, sem que suspeita nenhuma de Juiz
nenhum tivesse sido soprada a meu sangue, o qual, por�m, j� se sentia
enfermo, infeccionado por uma culpa que me perseguia e me
envenenava.
O Corregedor, vendo que eu n�o dizia nada, insistiu:
� Ent�o? O que � que me diz? As duas airma��es s�o
verdadeiras?
� S�o, sim senhor! Minha descend�ncia da Casa Real da Pedra
do Reino � verdadeira, e � verdade tamb�m que eu, no dia 24 de Agosto
de 1930, tirei o anel do dedo do meu Padrinho e iquei com ele!
� Algu�m viu o senhor tirar o anel?
� N�o senhor!
� O senhor n�o disse que havia outras pessoas com o senhor,
quando acharam o corpo?
� Disse!
� Quer dizer que o senhor tirou o anel escondido?
� De certa maneira, foi!
� Por que o senhor fez isso?

� Sr. Corregedor, foi uma dessas coisas que a gente faz sem nem
ao menos saber por qu�. Pensei em pedir licen�a a Ar�sio, como ilho de
meu Padrinho, para icar com aquela lembran�a. Mas a confus�o estava
enorme. Tirei o anel e coloquei-o no bolso, pensando em comunicar o
fato mais tarde. Mas a� comecei a icar envergonhado, porque ia parecer
que eu o tirara de m�-f�, ia parecer um furto. A�, deixei que as coisas
icassem como estavam.
� O senhor veja que ocultou fatos important�ssimos para a
elucida��o do caso todo! Por que n�o disse que estava no lajedo perto
do qual dispararam o tiro? Por que n�o me contou nada sobre as
liga��es que estabeleceu, no esp�rito dos Sertanejos ignorantes, entre a
seita da Pedra do Reino e a expedi��o sediciosa de seu primo e
sobrinho, Sin�sio, O Alumioso? E, sobretudo, por que escondeu de mim
a hist�ria do anel de seu Padrinho?
� Confesso meu erro, Sr. Corregedor! Em tudo, tive medo de me
complicar com a Justi�a e calei a boca!
� Pois o senhor est� complicado � agora e, francamente, sua
situa��o � grave! Como � que eu posso, d�agora em diante, coniar no
senhor?
� Vou ver se dou um jeito, contando tudo o que sei, desde o
come�o, tintim por tintim! Por onde Vossa Excel�ncia quer come�ar a
ouvir?
� Pela hist�ria da Pedra do Reino, j� que, segundo a den�ncia,
foi isso que fez os Sertanejos ignorantes irem atr�s de suas conversas
para a expedi��o de Sin�sio!
� Muito bem ent�o, Excel�ncia! Vou dizer! Escute!

C
FOLHETO LXV
De Novo a Pedra do Reino
omecei ent�o, nobres Senhores e belas Damas, a �pica e famosa
�Cr�nica dos Reis da Pedra do Reino�, nos seguintes termos:
� N�o tenho diiculdade em contar essa hist�ria a Vossa
Excel�ncia, porque colecionei cuidadosamente uma por��o de textos de
geniais escritores paraibanos e pernambucanos sobre ela. Alguns
desses textos, devidamente �versados�, ser�o inclu�dos na minha
Epopeia. Por isso, trago sempre comigo a c�pia manuscrita que iz
deles, desde que Gustavo Moraes doou � nossa Biblioteca uma cole��o
da Revista do Instituto Arqueol�gico de Pernambuco e outra da Revista
do Instituto Hist�rico e Geogr�ico da Para�ba. N�o sei se Vossa
Excel�ncia sabe, mas Samuel e Clemente j� provaram que a Hist�ria �
da Direita e a Sociologia � da Esquerda. Temos, ali�s, uma prova disso,
porque o patrono da Hist�ria brasileira, Varnhagen, � �de sangue godo,
lambe-cu do Impostor Dom Pedro II, cat�lico e Visconde�, enquanto o
da nossa Sociologia, Manoel Bonim, era �cat�lico-sertanejo, rebelde e
socialista�. Ora, Gustavo Moraes era integralista e participante, no
Recife, do movimento da revista Fronteira, ligada a Manuel Lubambo e
ao Padre Ant�nio Fernandes. Foi por isso que, entre n�s, refor�ou o
interesse pela Hist�ria e pela Genealogia, com algumas ideias que tinha
bebido no Recife e que terminou difundindo entre n�s, nas memor�veis
sess�es do nosso �Instituto Geneal�gico e Hist�rico do Sert�o do Cariri�.
Confesso que, at� o dia em que li essas revistas e outras obras doadas
por ele � Biblioteca, eu escondia minha descend�ncia r�gia como se
fosse um crime e uma mancha. Mas depois, um dia, caiu nas minhas
m�os um livro do genial escritor pernambucano, o Doutor Francisco
Augusto Pereira da Costa. Foi um deslumbramento para mim, Sr.
Corregedor! Como, certamente, j� explicaram a Vossa Excel�ncia na
infame carta an�nima, a linhagem real dos Quadernas tinha dois ramos

principais, o dos Vieira-dos-Santos e o dos Ferreira-Quadernas. Mas o
Rei principal, mesmo, foi meu bisav�, Dom Jo�o II, O Execr�vel!
� Dom Jo�o II, O Execr�vel? Que confus�o � essa?
� N�o se espante n�o, Excel�ncia! O nome dele, mesmo, era
Jo�o Ferreira-Quaderna, assim como o nome de Dom Pedro I era Pedro
de Alc�ntara de Bragan�a. Mas todos os escritores que escrevem sobre
a Pedra do Reino s� chamam meu bisav� de �o execr�vel Jo�o Ferreira�!
Ora, eu aprendi, pela leitura da Hist�ria da Civiliza��o de Oliveira Lima e
da Hist�ria Geral do Brasil, de Varnhagen, que nossos Reis e
Imperadores t�m sempre um Dom antes do nome e um cognome
depois. Reis do Brasil e de Portugal, por exemplo, foram Dom Manuel I,
O Venturoso, e Dom Sebasti�o, O Desejado! No estrangeiro, � a mesma
coisa, tirando-se o Dom. Na Fran�a, houve um que, a se tirar pelo nome,
era viciado em passarinhar: chamava-se Henrique, O Passarinheiro!
Dizem que ele n�o podia ver um passarinho: caga-sibito que passasse
na frente dele estava lascado, ele matava! Na Alemanha houve outro Rei
que me fez levar, um dia, uma vaia terr�vel de Clemente e Samuel!
� Quem foi?
� Frederico, O Grande! Eu, ouvindo um dia uma discuss�o dos
dois, achei o nome dele safad�ssimo!
� N�o entendo! Por qu�?
� Eu n�o estava vendo o nome escrito n�o, estava somente
ouvindo, de modo que pensei que ele se chamava Frederi Cu-Grande!
Assim, vendo que ilustres escritores pernambucanos chamavam meu
bisav� de �o execr�vel Jo�o Ferreira-Quaderna�, vi logo que aquilo era
uma coisa r�gia e grandiosa e que o nome mon�rquico dele devia ser
Dom Jo�o II, O Execr�vel!
� Mas isso � um nome pejorativo! � disse o Corregedor que,
naquele dia, apesar de todas as minhas li��es, ainda estava meio cru
nessas quest�es de Monarquia.
Eu, compadecido dele, expliquei pacientemente:
� Nessas quest�es de linhagem real, Sr. Corregedor, essas coisas
pejorativas n�o t�m a menor import�ncia! Filipe, O Belo, da Fran�a,
falsiicava dinheiro, motivo pelo qual passou � Hist�ria com o nome
comprido mas bonito de Filipe, O Belo, O Moedeiro Falso! Ora, eu
pensei assim: �Se esse Rei da Fran�a falsiicava dinheiro, que � que tem
que meus antepassados, Reis do Povo Brasileiro, degolassem mulheres,

meninos e cachorros? Crime por crime, os da minha fam�lia foram
muito menos chinfrins, porque degolar pessoas � muito mais
mon�rquico do que passar dinheiro falso!� Est� vendo, Excel�ncia? Esse
neg�cio de Rei � assim mesmo! Dom Jo�o II, O Pr�ncipe Perfeito, que foi
Rei de Portugal, cometeu um desses crimes r�gios, parecidos com os do
meu bisav�: deu uma facada no cunhado, o Duque de Viseu, que, ali
mesmo, na hora, esticou a canela!
� Quer dizer que o senhor, al�m de pertencer, pelo lado
materno, �� linhagem real sertaneja dos Garcia-Barrettos�, ainda
pertence, pelo lado paterno, � �linhagem real da Pedra do Reino�? Os
Quadernas s�o tamb�m, na verdade, como diz a carta, de linhagem real?
� S�o, sim senhor! E n�o sou eu, um Quaderna, quem diz isso
n�o, � um verdadeiro �Pr�ncipe da Literatura Brasileira�, o genial
Pereira da Costa! Foi por causa do que ele escreveu que eu me convenci,
de uma vez por todas, primeiro de que era Rei, depois que tinha de ser
Monarquista da Esquerda! Est� aqui o texto dele, ando sempre com o
papel em minha pasta. Escute!
Li ent�o para o Corregedor e Margarida aquelas palavras
sacramentais de un��o e consagra��o que tinham exercido papel t�o
importante em minha vida, aquelas palavras de Pereira da Costa que
come�am assim: �Foi na Pedra Bonita que se irmou a reuni�o desses
novos Sebastianistas, e nos subterr�neos dos seus Rochedos foi o
Templo de seus falsos Sacerdotes e o S�lio-Real dessa imagin�ria e
caricata Monarquia.� Quando eu acabei de ler, o Corregedor sorriu:
� Falsos sacerdotes! Monarquia caricata e imagin�ria! E o
senhor recebe isso n�o s� resignado, como at� orgulhoso, segundo
parece?
� � isso mesmo, Excel�ncia! Pereira da Costa era um escritor
oicial e consagrado, membro do �Instituto Arqueol�gico de
Pernambuco�, de modo que a palavra dele � palavra de Pr�ncipe, n�o
voltaria atr�s nem que ele depois, arrependido, quisesse se desdizer! Se
ele consagrou meus antepassados como Reis do Brasil, mesmo que
considere caricata a nossa Monarquia n�s estamos consagrados e
acabou-se, nem Deus agora d� jeito! Quanto ao fato dele considerar
caricata e imagin�ria uma Monarquia sertaneja t�o gloriosa e
cavalariana quanto a da Pedra do Reino, isso � problema dele! N�o
tenho culpa de Pereira da Costa, com todo o seu g�nio, ser burro desse

jeito! Depois, acontece que todas as monarquias s�o imagin�rias e
caricatas!
� E o senhor, mesmo pensando assim, � monarquista?
� Sou, sim senhor! Sou da Esquerda r�gia, ou, se Vossa
Excel�ncia prefere, um Monarquista da Esquerda!
� Por que essa contradi��o?
� Porque acho Monarquia bonito, com aquelas Coroas, tronos,
cetros, Bras�es, desiles a cavalo, bandeiras, punhais, Cavaleiros e
Princesas, como no folheto de Carlos Magno e os Doze Pares de Fran�a!
� por isso que meu parente Dom Silvestre Jos� dos Santos foi Rei do
Brasil, na Serra do Rodeador, em Pernambuco, com o nome de Dom
Silvestre I, O Enviado. Na Pedra do Reino, estiveram juntos, reinando, os
dois ramos da fam�lia, os Vieira-dos-Santos e os Ferreira-Quadernas. Os
Vieira-dos-Santos eram os quatro ilhos do velho Pr�ncipe Dom Gon�alo
Jos� dos Santos: Jo�o Ant�nio, Pedro Ant�nio, Isabel e Josefa; ou melhor,
Dom Jo�o I, O Precursor, Dom Pedro I, O Astucioso, a Princesa Isabel e a
Rainha Josefa. Do ramo dos Quadernas, estavam l� o velho Pr�ncipe
Dom Jos� Maria Ferreira-Quaderna, meu trisav� e pai do meu bisav�,
Dom Jo�o Ferreira-Quaderna, subido ao Trono sertanejo do Brasil com
o nome de Dom Jo�o II, O Execr�vel. Mas os dois ramos terminaram se
uniicando, porque meu bisav� casou-se com as duas irm�s, primas
dele, a Rainha Josefa e a Princesa Isabel!
� Casou-se com as duas irm�s de uma vez?
� Sr. Corregedor, Vossa Excel�ncia j� deve ter notado que o
Catolicismo-sertanejo tem suas leis e seus mandamentos pr�prios! A
poligamia, o pensamento socialista-sertanejo, a devora dos
propriet�rios por Cachorros degolados e ressuscitados como Drag�es
eram alguns dos itens do nosso credo da Pedra do Reino!
� Veja, Dona Margarida, que im de mundo! � disse o
Corregedor. � Eu sabia que aquela gente tinha sido cruel e fan�tica,
mas nunca pensei que fossem, tamb�m, t�o perigosos e subversivos! E
veja como isso vai se ligando aos poucos, para a explica��o de tudo o
que aconteceu, aqui! Sin�sio, sendo ilho de sua irm�, Sr. Pedro Dinis
Quaderna, era, tamb�m, descendente desse pessoal, n�o era?
� Era, sim senhor! Eu e Sin�sio somos descendentes de Dom
Jo�o II, O Execr�vel, e da prima e segunda-mulher dele, a Princesa

Isabel, degolada por ordem do marido, no dia 16 de Maio de 1838,
juntamente com a outra Rainha, minha tia-bisav� Dona Josefa!
� Que horror! Que monstruosidade, a do seu bisav�! � disse o
Juiz.
� Excel�ncia, nessa quest�o de degolar as esposas, meu bisav�
n�o era nada, comparado com o rei Henrique VIII, da Inglaterra! Al�m
disso, depois eu descobri que todos os Reis cujas vidas s�o narradas na
Hist�ria da Civiliza��o tinham historiadores que escreviam sobre as
vidas deles umas esp�cies de Epopeias chamadas �Cr�nicas� e onde
vinha a rela��o de tudo quanto era crime e safadeza que eles tinham
praticado. Foi assim que iquei de novo orgulhos�ssimo, vendo que os
Reis sertanejos, antepassados meus e de Sin�sio, tinham tido Cronistas
nas pessoas de seis geniais escritores brasileiros � Varnhagen, Pereira
da Costa, Sebasti�o de Vasconcelos Galv�o, Ant�nio �ttico de Souza
Leite, Euclydes da Cunha e o Comendador Francisco Ben�cio das
Chagas!
� E todos esses se ocuparam, mesmo, da Monarquia sertaneja
da Pedra do Reino?
� Se ocuparam, sim senhor! Mas, para mim, o melhor foi o
genial Ant�nio �ttico de Souza Leite, porque fez uma Epopeia, com
cavalos e Cavaleiros, combates sanguinolentos, Reis assassinados,
Rainhas e Princesas degoladas e tudo! Espero, um dia, �versar� tudo o
que ele escreveu, metendo o resultado na minha Obra, no meu Castelo
sertanejo! Mas como, antes disso, eu j� pretendia fazer um certo
proselitismo entre os Sertanejos, mandei imprimir na tipograia da
Gazeta uma c�pia �revista e melhorada� da Epopeia em prosa do genial
Souza Leite. Na capa, vinha o t�tulo: Mem�ria sobre A Pedra do Reino, ou
Reino Encantado, na Comarca da Vila Bela da Serra Talhada, Prov�ncia
de Pernambuco. Debaixo do t�tulo, eu coloquei a gravura que meu irm�o
Taparica Paje� tinha riscado e cortado em madeira. Publiquei, tamb�m,
um folheto em versos sobre o mesmo assunto, escrito por meu velho
primo Jo�o Melch�ades, ilustrando sua capa com a mesma gravura de
Taparica. A gravura foi feita de acordo com o desenho que o Padre
Francisco Jos� Corr�a de Albuquerque fez do lugar sagrado da Pedra do
Reino. Vossa Excel�ncia conhece esse desenho?
� N�o!

� Pois procure a revista do �Instituto Arqueol�gico� e veja,
porque � uma beleza! � um aniteatro grande, com o esqueleto do meu
bisav� amarrado em dois troncos de �rvore, com um bocado, mais, de
caveiras de gente e de cachorro, pedras, p�s de pau, subterr�neos
encantados, o diabo! Mas, como no folheto n�o cabia tudo o que existia
no desenho, eu mandei Taparica tirar as coisas mais desonrosas na
primeira c�pia: o esqueleto de meu bisav� foi uma! Depois, na segunda
gravura, ele copiou somente as duas grandes pedras cil�ndricas e
paralelas que, segundo os Reis meus antepassados, eram as duas torres
da Catedral soterrada e encantada dos Sertanejos. No meio delas,
Taparica colocou um retrato do nosso bisav�, com Coroa na cabe�a,
para impressionar! Olhe, Sr. Corregedor, eu tenho aqui, na minha pasta,
exemplares dos dois folhetos, de modo que posso dar ao senhor uma
c�pia de cada um, para serem anexadas ao processo!
* * *
Li ent�o para o Corregedor toda aquela hist�ria que Vossas
Excel�ncias j� conhecem, nobres Senhores e belas Damas. Quando
acabei, entreguei a ele os exemplares dos folhetos, que foram passados
a Margarida e anexados ao inqu�rito. Ent�o o Corregedor falou:
� Dom Pedro Dinis Quaderna, agora tudo come�a a se
esclarecer! S� n�o entendo � como, a partir da�, o senhor pode provar
que �, mesmo, descendente em linha masculina e direta desse pessoal
da Pedra do Reino!
� � f�cil, Sr. Corregedor! Ant�nio �ttico de Souza Leite n�o foi
muito claro porque s� escreveu sobre a Pedra do Reino, deixando de
lado o que sucedeu depois. Acontece por�m que minha bisav�, a
Princesa Isabel, no momento de ser degolada, pariu, como o senhor
deve se lembrar, um menino que rolou pela pedra abaixo. Esse menino
foi meu av�, Dom Pedro Alexandre, criado pelo Padre Manuel Jos� do
Nascimento Bruno Wanderley. Quando ele cresceu, o Padre Wanderley
casou-o com uma ilha natural sua, Bruna Wanderley, minha av�. � por
isso que os Quadernas ora nascem morenos como eu, puxando ao
sangue mouro-mameluco dos Vieira-dos-Santos e dos Quadernas, ora
nascem louros, como era o caso de minha irm� Joana Quaderna,

puxando ao sangue godo-lamengo de minha av� Bruna, ilha do Padre
Wanderley.
� Quer dizer que a linhagem real da Pedra do Reino continuou
atrav�s de uma ilha de Padre...
� �, sim senhor, o que n�o quer dizer nada, porque a dos
Bragan�as tamb�m descende de um ilho de Bispo! Dom Pedro
Alexandre, meu av�, casou com a ilha do Padre Wanderley; ela
emprenhou e pariu meu Pai, Dom Pedro Justino, a quem eu, Dom Pedro
Dinis, sucedi, com o nome de Dom Pedro IV!
Ave Maria, nobres Senhores e belas Damas! Quando eu vi, j�
tinha dito isso e n�o havia mais jeito de voltar atr�s! O Corregedor
partiu como uma fera:
� Quer dizer que o senhor � que � o verdadeiro Rei do Brasil?
Ainal de contas, quem era o Rei, mesmo, daqui? O senhor ou seu
Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o?
Vi que minha situa��o estava icando cada vez mais perigosa,
mas como n�o havia mais jeito, continuei a confessar:
� De fato, Sr. Corregedor, o Rei, por direito e por sangue, sou eu!
Ou melhor, eu � que sou o Imperador, dominando sobre todo o vasto
Quinto Imp�rio do Escorpi�o! Meu Padrinho era somente Rei do Cariri,
um dos sete Reinos integrantes do Imp�rio todo! Outro desses Reis
vassalos e tribut�rios meus foi Dom Jos� Pereira Lima, o invenc�vel
guerrilheiro de Princesa!
� Ah, quer dizer que o senhor reconhece, formalmente, que a
insurrei��o de Princesa seria, para o senhor, um novo epis�dio da Pedra
do Reino! E provavelmente, quando Sin�sio apareceu por aqui,
montado em seu cavalo branco, era tudo isso que o senhor tinha em
mente, procurando unir os Sertanejos para nova sedi��o contra as
autoridades...
� Sr. Corregedor, o que eu queria mesmo, confesso, era ser
Imperador do Sert�o e do Brasil, para me tornar G�nio da Ra�a
Brasileira. Agora, que para isso eu queria unir o movimento da Pedra do
Reino com a Guerra de Princesa e a Demanda Novelosa que
empreendemos com Sin�sio, isso eu queria!
� Muito bem! Anote essa coniss�o do acusado, Dona
Margarida! Agora, uma pergunta que lhe fa�o por curiosidade, Dom

Pedro Dinis Quaderna! Me diga uma coisa: seus irm�os leg�timos n�o
eram, todos, mais velhos do que o senhor?
� Eram, sim senhor!
� Ent�o como � que se explica que o senhor tenha sido o
herdeiro do Trono?
� Eu redigi um papel pelo qual eles abdicavam desse direito, e
todos quatro o assinaram.
� Sem opor diiculdade?
� Sem opor diiculdade! A princ�pio, julgando que se tratava de
ren�ncia a alguma heran�a de terras, icaram hesitando. Mas depois
que viram o que era, assinaram tudo, at� achando gra�a! Manuel, o mais
velho, chegou a dizer para os outros: �Esse Dinis tem cada coisa! Eu
estou l� ligando pra essas coisas do tempo do ronca, do tempo de Dom
Jo�o Pamparra e de Dom Pedro Cip�-Pau!� Agora, o que acontece � que
eu nunca ousei, de fato, assumir o Trono! � menti. � Eu descobrira
que as pessoas que realmente encarnam os Pa�ses, os chamados
�G�nios das Ra�as�, s�o sempre Poetas, e n�o Reis! Assim, para que
diabo eu ia me meter nessas empreitadas, arriscando-me a morrer
degolado, como meu Padrinho? Por isso, limitei-me a desempenhar,
junto a Dom Pedro Sebasti�o, as fun��es de Astr�logo, Conselheiro, Rei
de Armas, Guarda do Selo e dos Tesouros do Cariri. Quando Sin�sio
apareceu depois, em 1935, foi a mesma coisa: ele era o Pr�ncipe-do-
Cavalo-Branco e eu desempenhava, junto a ele, as mesmas fun��es que
tinha exercido junto a seu Pai!
� O senhor confessa, ent�o, que tomou o partido de Sin�sio
contra Ar�sio?
� Confesso, sim senhor! Ali�s, era uma quest�o de sangue e
parentesco! Sin�sio, al�m de ser meu primo pelo lado dos Garcia-
Barrettos, era meu sobrinho, por parte da minha irm� Joana! Ar�sio era
somente primo, porque era Garcia-Barretto, mas n�o era Quaderna!
Mas, apesar de tomar o partido de Sin�sio, eu via perfeitamente que ele
ia arriscar a garganta, que seu destino prov�vel era acabar como o Pai,
degolado. Resolvi, ent�o, deixar ver como corriam as coisas: icaria ao
lado de Sin�sio, como Astr�logo e Rei de Armas. Se as coisas corressem
bem com ele e com a expedi��o, minha situa��o seria �tima. Se
corressem mal, eu n�o teria me comprometido diretamente na �Guerra
do Reino�. Poderia, ent�o, tendo visto tudo, escrever a minha Cr�nica

epopeica, A Desaventura de Sin�sio, O Alumioso, come�ando-a com a
hist�ria de meu Padrinho, continuando com a de Sin�sio e tornandome,
com ela, �G�nio da Ra�a Brasileira�, oicialmente reconhecido como
tal pela Academia Brasileira de Letras!
� Quer dizer ent�o que o Chefe guerreiro da tal viagem
revolucion�ria e sediciosa que voc�s izeram foi, mesmo, o Rapaz-do-
Cavalo-Branco?
� Foi, sim senhor!
� Anote, Dona Margarida! Vamos ent�o voltar ao dia da chegada
de Sin�sio, Dom Pedro Dinis Quaderna! Preciso de informa��es exatas
sobre todos os personagens que tinham mais interesse na vida ou na
morte do Rapaz-do-Cavalo-Branco. O senhor vai, portanto, fazer um
esfor�o para recordar onde estavam e que faziam essas pessoas, no
momento em que o Doutor Pedro Gouveia declarou ao Juiz da Comarca
que o Rapaz-do-Cavalo-Branco era Sin�sio. A seu ver, quem eram as
pessoas mais afetadas pela reapari��o do rapaz?
� Acho que eram, em primeiro lugar, Ar�sio, irm�o dele, por
causa da heran�a; o usineiro Ant�nio Moraes, com seu ilho Gustavo e
sua ilha Genoveva; e inalmente as duas ilhas do antigo s�cio de meu
Padrinho, o gringo Edmundo Swendson, isto �, a mo�a Clara, que era a
mais velha, e a ca�ula, Dona Heliana, a que tinha os olhos verdes! Vou
ent�o, conforme seu pedido, ver se consigo me lembrar e contar onde
estavam e o que faziam todos esses, no momento em que Sin�sio,
ressuscitado, reapareceu aqui!

� E
FOLHETO LXVI
A Filha Noiva do Pai, ou Amor, Culpa e Perd�o
nquanto, na rua, se aprestavam as Cavalhadas, sucedia na casa
de Ant�nio Moraes um epis�dio important�ssimo para a nossa
hist�ria. Devo esclarecer que, al�m da casa da fazenda �Angicos�,
Dom Ant�nio Moraes tinha aquela, que ica naquele alto e que Vossa
Excel�ncia pode avistar, daqui desta janela. � uma velha casa de fazenda
que pertenceu ao Coronel Deusdedit Villar, homem da mesma fam�lia
do Contra-Almirante, Sr. Corregedor. Como o senhor poder� ver se vier
at� aqui, hoje ela est� abandonada e meio derru�da. Ca�ram os telhados
que cobriam a cal�ada de pedra que rodeia a casa, e que formava, assim,
o copiar. Caiu o velho cruzeiro de madeira, plantado sobre uma base de
pedra-e-cal e que era t�o caro ao �esteta Gustavo Moraes�, como dizia
Samuel. Caiu o muro de pedra que os Moraes tinham mandado
construir e que separava o p�tio da casa dos marmeleiros do alto do
Tabuleiro. Foi derrubada a torre que Gustavo Moraes mandara erguer,
um pouco � imita��o da velha �Casa-Forte da On�a Malhada�; de fato,
esta era bastante mais antiga, mais severa e forte, e Gustavo Moraes n�o
perdoava isso � fam�lia Garcia-Barretto, inimiga e rival da sua: por isso,
numa revolta contra o tempo e contra os fatos, procurara suprir
artiicialmente as diferen�as, tentando icar em p� de igualdade com a
fam�lia do meu Padrinho. Mas o certo � que, abandonada, arruinada e
solit�ria, a casa ainda est� ali, e Vossa Excel�ncia, se quiser, pode ir l�,
em dilig�ncia para o nosso inqu�rito. Naquele ano, estava restaurada e
perfeita, abrigando o esplendor e a fortuna com que os Moraes nos
deslumbravam, as ideias, o luxo e as novidades que traziam do Recife.
Naquele dia da chegada de Sin�sio, estavam l� Ant�nio Moraes, seu
ilho mais mo�o, Miguel, e sua ilha Genoveva, aquela que exerceu um
papel t�o terr�vel na vida de Ar�sio Garcia-Barretto. N�o estavam, no
momento, nem o ilho mais velho, Gustavo, nem Ar�sio que, como j�
disse, estava morando l�, como h�spede. Ar�sio, com seu g�nio

sombrio, estranho e violento, desaparecia �s vezes durante dois ou tr�s
dias, sem dar explica��es a ningu�m sobre isso. Aquele era um desses
dias. Desde a v�spera, sexta-feira � noite, que ele se ausentara da casa
dos Moraes, de modo que no momento em que Sin�sio foi dado a
conhecer, ningu�m sabia onde se encontrava seu irm�o mais velho.
Ali�s, Sr. Corregedor, acho que muita coisa da minha hist�ria icar� logo
esclarecida, se eu disser a Vossa Excel�ncia que se trata de uma hist�ria
de casas arruinadas. Em ru�nas, est�, como lhe disse, a velha e grande
casa do �Alto dos Borrotes�, comprada por Ant�nio Moraes aos
herdeiros do Fidalgo Dom Deusdedit Villar, Coronel de Mil�cias e
Capit�o-Mor do Sert�o do Tapero�. Em ru�nas est� a velha casa
ediicada por Dom Edmundo Swendson, pai de Clara e Heliana, perto da
Fortaleza de Nazar� do Cabo, a cavaleiro sobre a barra do Rio Suape, no
litoral de Pernambuco. Em ru�nas est� a �Casa-Forte da On�a Malhada�,
incendiada na noite do dia 24 de Agosto de 1930. E inalmente est� em
ru�nas a antiga �Fortaleza de S�o Joaquim da Pedra�, situada no litoral
do Rio Grande do Norte e pertencente, tamb�m, ao pai de Clara e
Heliana, as duas mo�as que, por um equ�voco ao mesmo tempo funesto
e alumioso, terminaram efetuando o �cruzamento de amor e sangue�
que encruzilhou e cruciicou o destino de Sin�sio. Mas, como eu vinha
dizendo: o primeiro acontecimento importante daquela tarde sucedeu
na casa do usineiro e dono de minas Ant�nio Moraes. Foi-me
comunicado, logo na noite daquele s�bado memor�vel, por um
pedreiro, Teodoro Barba-de-Bode, que era meu disc�pulo e membro
mais ou menos inluente da �Ordem dos Cavaleiros da Pedra do Reino�.
� Ah, quer dizer que o senhor confessa que fundou essa
Ordem?
� Confesso, sim senhor! Como Vossa Excel�ncia deve se lembrar
pela narra��o de Ant�nio �ttico de Souza Leite, isso de fundar uma
seita para cobrar joias em dinheiro � uma tradi��o da minha fam�lia �
e tamb�m, ali�s, de toda Monarquia que se preza. Pois bem: Teodoro
Barba-de-Bode tinha sido contratado, uns vinte dias antes, para
executar uns trabalhos de pedreiro na velha casa dos Moraes. Gustavo,
ilho mais velho, dirigira as reformas da casa, introduzindo nela v�rias
modiica��es ditadas pelas novas ideias que trouxera do Recife. Como
nos explicara o Doutor Samuel, Gustavo bebera essas ideias junto a um
estranho grupo de intelectuais recifenses da Direita, grupo congregado

em torno de um Padre jesu�ta mais estranho ainda, o Padre Ant�nio
Fernandes. Esse Padre era um hindu-portugu�s de Goa, homem
enigm�tico e pol�tico, que adquirira renome no Recife, principalmente
depois da acirrada pol�mica que mantivera com um Fil�sofo franc�s.
Conseguira reunir, em volta de si, Poetas, jornalistas e pol�ticos, jovens e
ardorosos. Alguns deles estavam entrando, como emin�ncias-pardas,
no poder do Estado, em Pernambuco. Outros tinham fundado uma
revista de Arte e Literatura, Fronteira; e fora ao contato do grupo
esteticista e belamente reacion�rio de Fronteira � como dizia Samuel
� que Gustavo Moraes adquirira as ideias com as quais, primeiro nos
chocara, e depois nos deslumbrara a todos n�s, intelectuais sertanejos
de Tapero�. Esse grupo de intelectuais recifenses da Direita �pusera em
moda o estilo Barroco brasileiro; o despojamento monacal dos
Mosteiros e das Casas-de-Miss�es jesu�ticas; os espelhos, os cristais, as
pratarias; a Aristocracia dos Engenhos; o Catolicismo meio inquisitorial
dos Ib�ricos; o gosto pela arquitetura dos velhos sobrados de azulejos;
das velhas Igrejas � com suas esculturas em madeira, seus ret�bulos e
pain�is pintados a �leo sobre t�buas de cedro � assim como pela
arquitetura das velhas Fortalezas brasileiras dos s�culos XVI, XVII e
XVIII�, o que soubemos ainda pelo Doutor Samuel Wan d�Ernes. Assim,
de acordo com essas �boas e velhas ideias tradicionais�, Gustavo Moraes
rasgara de aberturas as paredes da casa da fam�lia Villar � comprada
por dinheiro muito acima de seu valor � enchendo-a de nichos e
santu�rios, nos quais colocara santos de barro cozido ou de madeira,
comprados por tudo quanto era de sacristia e igreja velha da Para�ba e
de Pernambuco. Ao chegar do Recife para Tapero�, Gustavo mandara
procurar, na rua e nas casas de fazenda da nossa Vila, mesas velhas,
cadeiras, consolos e tudo quanto era de velharia dessa qualidade.
Distribu�ra tudo isso pela casa, cobrindo as mesas-de-centro e forrando
os orat�rios com as coisas mais extravagantes � paramentos
sacerdotais franjados de ouro, toalhas de renda, estribos de selas
antigas, lavat�rios de lou�a azul e branca e m�veis que ningu�m usava
mais por terem se tornado �fora de moda�. A casa icara com tal aspecto
que um dia a Velha do Badalo, uma velha doida que existe por aqui e
que vende coentro de porta em porta, chegando na sala de visitas dos
Moraes, julgou que estava numa capela, ajoelhou-se diante de uma
mesa-de-centro enfeitada de paramentos roxos, benzeu-se e rezou bom

peda�o de um ter�o, antes que os empregados a detivessem. Pois o
contrato dos Moraes com o pedreiro Teodoro Barba-de-Bode referia-se
a essa reforma. Naquele dia 1� de Junho de 1935 ele fora chamado para
abrir umas seteiras nas duas paredes dos oit�es da casa; depois da
primeira parte das reformas, Gustavo Moraes percebera que a casa dos
Garcia-Barrettos tinha, a mais, aquele elemento de �arcaica rusticidade
e beleza�, e, inconformado, mandara abrir seteiras na dos Moraes.
Chamado ao �Alto dos Borrotes� para fazer o trabalho de alvenaria e
cantaria, Teodoro Barba-de-Bode, sabendo da inimizade que reinara
outrora entre Ant�nio Moraes e meu Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o,
foi me consultar, indagando se devia, ou n�o, aceitar a incumb�ncia,
temeroso que estava �de sofrer algum male�cio, por trabalhar naquela
casa, ocupada por gente que pertencia ao partido do Diabo�.
� V�-se que o senhor instruiu bem os membros de seu Partido
subversivo! � disse vivamente o Corregedor.
Eu suspirei:
� Vossa Excel�ncia j� sabe de tudo e assim � melhor que eu
confesse tudo de uma vez! De fato, Excel�ncia, sempre achei que guerra
� guerra, e, no caso, na luta entre os Moraes e os Garcia-Barrettos,
tratava-se da sobreviv�ncia do meu sangue e da minha Coroa! Esse foi o
motivo de eu ter explicado a todos os meus amigos que dev�amos cerrar
ileiras em torno de Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto, porque
Ant�nio Moraes era do lado do Diabo! Apesar disso, por�m, naquele dia
eu tranquilizei Teodoro. Disse que ele podia, sem remorso, aceitar a
encomenda de Gustavo Moraes, pois era at� bom, para n�s, que algum
dinheiro pertencente ao lado do Mal e do Diabo passasse para uma
pessoa que, como ele, estava do lado do Bem e de Deus. Expliquei-lhe
que, com a morte do nosso velho Rei, Dom Pedro Sebasti�o, a nossa luta
n�o se acabara, mas tinha assumido uma t�tica nova. Que, dentro dessa
t�tica, ele devia aceitar aquela oportunidade rara: nenhum de n�s tinha
acesso � casa dos Moraes. Assim, ele aproveitasse, e entrasse l�, fazendo
bem o servi�o, mas com os olhos e os ouvidos bem abertos, pois como
ningu�m d� import�ncia a um Pedreiro, talvez lhe aparecesse a sorte de
tomar conhecimento de alguma coisa vital, de alguma informa��o
preciosa para o nosso Partido!
� Est� ouvindo, Dona Margarida? � disse o Corregedor,
escandalizado. � Est� vendo como esse pessoal � perigoso e sem

escr�pulos? Anote, tudo isso � muito importante!
Margarida anotou e eu continuei:
� Naquele s�bado, pois, Teodoro trabalhou a manh� toda, num
alt�ssimo andaime, colocado num quarto situado do lado esquerdo do
corredor que ligava a sala de visitas � sala de jantar do casar�o. Estava
realizando, j�, o trabalho de caia��o daquele lado, pois j� abrira, na
parede, as seteiras encomendadas por Gustavo Moraes. Teodoro
tencionava, como quase todo mundo na Vila, ir para a rua � tarde, para
assistir �s Cavalhadas. Tinha tido, ali�s, o cuidado de deixar isso bem
claro, na v�spera: no s�bado, largaria o trabalho ao meio-dia, s�
voltando ao �Alto dos Borrotes� na segunda-feira pela manh�.
Aconteceu, por�m, que, no dia da chegada de Sin�sio, a� pelas onze
horas da manh�, Teodoro fez uma pausa em cima do andaime, para
descansar, deitou-se um pouco e terminou adormecendo, com a cabe�a
repousando em cima de uma rodilha de estopa. Com o torpor causado
pelo cansa�o e pela fome que precede a hora do almo�o, dormiu um
bocado e icou l� em cima, esquecido, com o pessoal da casa julgando
que ele tinha largado o servi�o, conforme o ajuste, e se retirado para a
Vila. Todos os servi�ais do casar�o, atra�dos pelas Cavalhadas, tinham
descido para a Vila, depois de servido o almo�o. A mulher de Ant�nio
Moraes, Dona Eul�lia, n�o se dava bem com o marido e nunca estava
onde ele estivesse, de modo que tinha icado na casa que a fam�lia tinha
no Recife, no bairro da Benica. Quanto a Gustavo, a� pelas duas horas
da tarde seu motorista lhe trouxera o carro com o qual ele nos
deslumbrara naquele ano, comprado no Recife por uma fotograia
publicada no Di�rio de Pernambuco e classiicado por Samuel como
�uma Limusine presidencial ou r�gia�. Apanhara o carro e seguira
tamb�m para a rua. N�o por�m para ver a Cavalhada e sim para viajar
com a mo�a Clara Swendson Cavalcanti que ia, com ele, para a
�Fortaleza de S�o Joaquim da Pedra�, sua casa, situada numa alta e
escarpada praia do litoral do Rio Grande do Norte. Ar�sio, como j�
expliquei, tinha desaparecido desde o dia anterior. Desse modo, no
vasto casar�o silencioso e agora quase deserto, tinham icado somente
o poderoso e sombrio Ant�nio Moraes, sua ilha Genoveva, seu ilho
mais mo�o Miguel � um rapaz doente, considerado meio idiota e ao
qual ningu�m dava import�ncia � e, inalmente, Teodoro Barba-de-
Bode, adormecido nas t�buas horizontais de seu alto andaime.

Dormindo, ele n�o viu o belo almo�o da fam�lia Moraes, refei��o que,
segundo Samuel, �constitu�a, j� por si, uma obra de Arte, com uma
toalha de linho branco e rendas colocada sobre a vasta mesa, com jarros
de prata cheios de vinho e �gua gelada, e com antigas porcelanas azuis
e brancas de Macau�. N�o viu, tamb�m, sa�rem os dom�sticos que iam
para a Cavalhada, nem ouviu a �limusine r�gia� de Gustavo arrancar e se
dirigir para a rua, guiada pelo motorista vestido de uniforme c�qui, com
bon� militar e luvas castanhas de couro. E, o que foi mais grave, n�o viu
quando Genoveva entrou para seu quarto depois do almo�o, deitandose
na cama antiga que lhe servia de leito de solteira. Genoveva usava,
naquele momento, um vestido de linho �cor de p�rola� que, como tudo
o que aquela fam�lia usava ou fazia, representava algo de estranho e
chocante para todos n�s. Ela e seu irm�o Gustavo, que lhe era muito
afei�oado, tinham sido os primeiros a exibir em nossa Vila aquele tal
gosto meio monacal e, ao mesmo tempo, reinado, pelo que era antigo e
esquisito. Uma das surpresas, por�m, que o pessoal da Vila tinha
quando tentava imit�-los, era descobrir que aquelas apar�ncias de
pobreza e despojamento sa�am mais caras do que suas riquezas
ostensivas e comuns. Outra surpresa era notar que, para o pessoal do
c�rculo de Gustavo Moraes, uma coisa era usar alpercatas de couro por
�gosto monacal e reinado�, e outra muito diferente era us�-las � for�a,
por pobreza. De qualquer modo, por�m, os Moraes, por sua simples
a��o de presen�a, estavam come�ando a inluenciar as pessoas mais
ricas da Vila; sendo que, entre essas, come�ou logo a se destacar, dada
sua categoria intelectual e seu abono econ�mico, a M�e aqui da nossa
Margarida, a Poetisa e jornalista Dona Carmem Gutierrez Torres
Martins, que, tendo not�cia, por Samuel, das excentricidades e
reinamentos de gosto dos Moraes, fazia tudo para imit�-los ao p� da
letra, e ardia em �nsias de ser convidada por eles, nem que fosse uma
vez, para as recep��es do casar�o.
Margarida lan�ou-me outro olhar feroz, mas n�o tugiu nem
mugiu � ou melhor, n�o berrou nem rinchou, para ser mais sertanejo.
Ali�s, eu sabia que podia tripudiar � vontade, naquele assunto. A coisa
de que ela tinha mais vergonha neste mundo eram as ridicularias
intelectuais da M�e e a caduquice do Pai, de modo que, para que eu n�o
me detivesse na hist�ria, deixaria passar qualquer coisa que eu
dissesse. Por isso, n�o comentou e eu continuei:

� O vestido que Genoveva Moraes usava naquela tarde era do
tipo ditado pelo gosto �monacal e despojado� que, como j� disse, s� as
pessoas ricas podiam usar. De fazenda car�ssima, era formado, quase
que s�, por uma t�nica larga, apertada nos quadris por uma esp�cie de
�cord�o de S�o Francisco�. Ela, que era alta e morena, de cabelos e olhos
pretos, tinha quadris e busto magn�icos. Eu n�o tenho grande atra��o
pelas mulheres morenas n�o, Doutor! Samuel, toda vez que come�a a se
exaltar muito em seus acessos de idalguia e branquidade, gosta de
chamar aten��o para minha cor moreno-carregada, e diz que eu tenho
�sangue casteado de Cavalo castanho�, o que, na linguagem dele, �
alus�o �s pitadas de sangue negro, vermelho, cigano, judaico e mouro
que carrego. N�o � de admirar, assim, que meu sangue castanho seja
tarado pelas mo�as louras e brancas, principalmente da Aristocracia.
Por outro lado, esses �segredos do sangue�, como chama Samuel, me
fazem pressentir que as mo�as louras t�m uma certa atra��o por minha
cara feita a machado, assim como por meu sangue de Cavalo! � disse
eu, lan�ando o olhar mais expressivo que pude conseguir para
Margarida, que, fechando a cara, virou-se para o outro lado.
Continuei, depois de suspirar:
� Pois bem! Apesar dessa tara do meu sangue castanho pelas
mulheres agalegadas, digo a Vossa Senhoria, com franqueza, que nunca
pude icar sossegado diante de Genoveva Moraes! Ela era dessas
mulheres que, quando entram numa sala, deixam os homens
perturbados e as outras mulheres de mau humor. Principalmente
porque aqueles peitos magn�icos, de que eu falei h� pouco, ela tinha o
atrevimento de us�-los soltos, por baixo do tal vestido monacal de
linho. Diziam mesmo as m�s-l�nguas da rua que, �nos dias em que ela
estava azeitada, mesmo, usava s� o vestido, por cima do couro limpo�.
Acho que nunca ningu�m tinha comprovado isso. Mas bastava o
primeiro fato e a simples possibilidade do segundo para escandalizar e
indignar metade da Vila e fascinar a imagina��o da outra metade. Nos
p�s, Genoveva usava apenas uma sand�lia, presa ao tornozelo por uma
correia tamb�m de couro. Ora, quando, naquele s�bado, Teodoro
acordou � a� pelas duas e meia da tarde, mais ou menos �, Genoveva
estava deitada em sua cama, adormecida, fazendo a sesta. Acontece que
a casa da fam�lia Villar era uma casa sertaneja t�pica. Gustavo Moraes,
quando izera as reformas, ao contr�rio do que esperavam na Vila mas

seguindo as ideias do pessoal da revista Fronteira, deixara de estuc�-la
para que ela icasse �com as pesadas vigas de bra�na � mostra, de
acordo com o estilo monasterial e afortalezado do Barroco do �spero
s�culo XVIII brasileiro�. Assim, os grossos �brabos�, as amplas
�tesouras� e as pesadas �linhas� de madeira pousavam diretamente
sobre as grossas paredes, sustentando o enorme telhado � vista de todo
mundo. Os quartos e salas eram separados apenas por meias-paredes,
de modo que o nosso Teodoro, do alto do seu andaime, assim que
acordou, viu logo a mo�a Genoveva, deitada no mais completo
abandono e desalinho, nos encantos de sua intimidade. � verdade que,
na casa, reinava a semiobscuridade comum ao interior dos casar�es
sertanejos quando est�o de janelas fechadas. Mas a luz das seteiras
recentemente abertas era suiciente para aclarar as coisas. Gustavo
explicara, ali�s, a Samuel, que as seteiras que mandaria abrir tinham
dois objetivos. O primeiro, ligava-se ao gosto do seu grupo e destinavase
a dar � velha casa �o ar, meio de Igreja, meio de Fortaleza, da
arquitetura colonial brasileira�. O segundo, era �diminuir a sinistra
obscuridade que dominava a casa em certas horas do dia�, quando a
ventania escaldante do Sert�o obrigava aqueles delicados da Zona da
Mata a fechar as janelas �para conservar, dentro da casa protegida pelas
grossas paredes, uma temperatura mais fresca e agrad�vel�. No terceiro
motivo, Gustavo Moraes n�o falara: era aquele sobre o qual j� falei, isto
�, o desejo que todos os Moraes tinham de n�o icar atr�s em coisa
nenhuma, nas compara��es com a casa da �On�a Malhada�. Assim,
naquela tarde, Teodoro, vendo a mo�a adormecida naquele desalinho
de intimidade e aconchego, icou apavorado, temendo que os Moraes,
caso o descobrissem, julgassem que ele icara ali de prop�sito,
escondido, para espreit�-la. Teodoro tinha not�cia do g�nio violento,
orgulhoso, sombrio e maldoso do enigm�tico Ant�nio Moraes, e sabia
que, se fosse descoberto, n�o sairia vivo da aventura. Vinham-lhe �
lembran�a as hist�rias que corriam na rua sobre um homem que, l� um
dia, tinha aparecido morto junto a uma velha casa em ru�nas que existia
ali por perto, junto da Lagoa salgada situada nas terras dos Moraes. O
homem fora morto por um tiro de rile, e tinha sido encontrado sem o
couro da sola dos p�s, castrado e todo mutilado a faca, o que indicava
que, antes de morrer, tinha sido submetido a terr�veis torturas. O caso
tinha icado obscuro, mas dizia-se, na rua, que a morte do homem fora

ordenada por Gustavo Moraes, em circunst�ncias �que n�o tinham
icado esclarecidas de prop�sito, porque havia ali, misturadas, as coisas
mais inconfess�veis�. Com essa hist�ria na cabe�a, Teodoro achou
melhor se manter, no momento, em absoluto sil�ncio: quando Genoveva
acordasse e sa�sse do quarto, ele resolveria o que fazer, de acordo com o
rumo que tomassem as coisas. Ou recome�aria a trabalhar, ingindo que
tinha sa�do para o almo�o e voltado depois para continuar o servi�o, ou
procuraria descer sem ser notado, tomando o caminho da rua, o que
talvez fosse melhor, uma vez que a casa estava quase vazia. Continuou,
portanto, deitado no andaime, parado e calado, sem imaginar que, dali
de cima, iria ver l� embaixo, da� a pouco, uma cena que iria aumentar
mil vezes mais o perigo que sua vida porventura estivesse correndo.
* * *
Notei que, a despeito de si mesmos, Margarida e o Corregedor
estavam acendendo os olhos e as ventas, motivo pelo qual tomei
coragem e continuei:
� Tinha se passado uma meia hora desde que Teodoro
acordara. Contava-me ele no mesmo dia, � noite, que, por maior que
fosse seu medo e por mais que tomasse a virtuosa resolu��o de �n�o
olhar�, de vez em quando Genoveva, adormecida, mudava de posi��o,
exibindo tais encantos que todas as suas prudentes decis�es eram
aniquiladas e ele �olhava�. Olhava sofregamente, como quem sabia que
essas ocasi�es s�o raras para um pedreiro e � preciso aproveit�-las, sob
pena de arrependimento e remorso para o resto da vida. E foi a�, Sr.
Corregedor, que, passando um bom peda�o de tempo, Teodoro ouviu o
som de passos que vinham pelo corredor. Com as maiores cautelas,
virou a cabe�a, evitando que o andaime rangesse e revelasse sua
presen�a ali. Viu, ent�o, Ant�nio Moraes que se aproximava e parou
diante do quarto da ilha. Ele pareceu hesitar um pouco, mas depois,
erguendo a m�o, empurrou a porta que, estando apenas cerrada, cedeu
e se abriu, dando-lhe passagem. Ele entrou, depondo a um canto, sobre
uma arca, o chap�u-de-chile e a bengala. Aproximou-se, ent�o, da cama
e olhou a ilha durante largo espa�o de tempo. Depois, sentou-se � beira
do leito e esbo�ou um gesto que, a princ�pio, pareceu a Teodoro de

simples carinho paternal. O senhor conhece o Romance de Dona
Silvana?
� N�o!
� Minha Tia Filipa costumava cant�-lo quando eu era menino.
Me lembro dele mais ou menos, e sei que come�ava assim:
�Andava Dona Silvana
pelo corredor acima,
viola de ouro levava,
vai cantando uma Modinha.
Chegou-se pra ela o Pai
a quem o Diabo impelia;
a cada passo que dava
de amores a acometia:
� Silvana, tu n�o te atreves
uma noite a seres minha?
� Fora uma, fora duas,
fora, meu Pai, cada dia,
malas penas do Inferno
quem por mim las penaria?
� Pen�-las-ei eu, Silvana,
que las peno todo dia.
J� perto da meia-noite,
eis seu Pai que a acometia:
� Mas se eu soubesse, Silvana,
que estavas j� corrompida,
oh, las penas do Inferno
por ti n�o las penaria!
� Mas esta n�o � Silvana,
� a M�e que a paria.
Tamb�m pariu Dom Alardos,
senhor da Cavalaria!
Tamb�m pariu a Dom Pedro,
Prinspe da Infantaria� etc.

Quando parei a�, o Corregedor indagou, entre severo e curioso:
� O senhor est� insinuando que o pedreiro viu, naquele dia,
entre Ant�nio Moraes e a ilha, uma cena desse tipo?
� Senhor Corregedor, foi o que ele me disse! Teodoro julgou, a
princ�pio, que Ant�nio Moraes estava simplesmente acordando a ilha.
Assim, a surpresa e o medo que ele teve foram terr�veis, quando viu o
homem, por cima do vestido, apalpar e acariciar os seios de Genoveva,
seios que, segundo ele sabia pelos boatos, deveriam estar desnudos,
embaixo. Mas, mesmo assim, parece que, depois de algum tempo, essa
car�cia por cima do vestido come�ou a ser insuiciente ao usineiro. A�,
pelo largo decote em forma de barco, ele acariciou o ombro descoberto
e logo insinuou a m�o para dentro, acariciando j� diretamente a pele
macia e o bico dos seios. Como Genoveva n�o acordasse, dizia-me
Teodoro, �o pecado e a doidice daquele homem do Diabo foi crescendo�:
ele se deitou ao lado da mo�a e, sem deixar de acariciar o seio com a
m�o esquerda, deslizou a direita embaixo, por sob o vestido que, com
isso, se ergueu. Ent�o, o homem montou, deitando-se sobre Genoveva...
� Que hist�ria � essa, Sr. Quaderna! � interrompeu o
Corregedor, asperamente, mas j� um pouco azougado.
� Foi o que me contaram! � defendi-me.
� E a mo�a n�o acordou?
� Era o que eu ia dizendo, quando o senhor me interrompeu!
Teodoro disse que, quando Ant�nio Moraes se montou mesmo, como
um pai-d��gua que n�o distingue a ilha das outras potrancas do
rebanho, ele teve a impress�o de que Genoveva j� tinha acordado, pois
viu no rosto dela uma express�o estranha, de quem sorria a
contragosto. Mas, ao mesmo tempo, ela conservava os olhos meio
fechados e a cabe�a pendida para tr�s, de modo que ele n�o p�de me
esclarecer, em s� consci�ncia, se ela estava dormindo ou n�o, se estava
ou n�o conivente com o que ia se passando. Ali�s, explica-se essa
d�vida de Teodoro, porque, naquele momento, apavorado com o que j�
vira, ele se encolheu no andaime e, com os olhos fechados, os dentes
cerrados e o cora��o batendo, icou, durante o resto da cena, sem olhar
mais nada. Mas o resto da cena durou pouco e, se ele n�o via nada, n�o
fechara os ouvidos, de modo que logo ouviu um gemido surdo, um
gemido abafado, de Genoveva.

O Corregedor, com um ar falso e paternal, voltou-se para
Margarida:
� Dona Margarida, a senhora me perdoe! � disse ele. � Eu n�o
sabia que o inqu�rito ia tomar esse rumo, e esse foi o motivo de eu ter
aceito o seu gentil oferecimento! Se a senhora acha melhor,
interromperei o depoimento, e pedirei ao Cart�rio que me mande um
escrevente qualquer!
� N�o, n�o tem import�ncia! � disse Margarida, com o ar
ang�lico e martirizado de quem, pelas �Virtuosas Damas do C�lice
Sagrado�, fazia qualquer sacri�cio.
Eu desconiava, por�m, de que suas narinas estavam ofegantes
n�o propriamente de indigna��o; n�o era a �nsia de sacri�cio dos
m�rtires que a fazia manter-se como secret�ria do inqu�rito. Mas o
Corregedor hesitava ainda e ponderou:
� � que, pelo que vejo, terei que investigar certos pormenores
sobre o caso e n�o sei como possa fazer isso, com a senhora aqui!
� Vossa Excel�ncia pode continuar, essas coisas n�o me
atingem! � disse Margarida, icando ainda mais vermelha e agitada do
que estava.
� Eu, ent�o, aceito e agrade�o, porque, no caso, preciso de
segredo absoluto e um escrevente n�o seria a mesma coisa que a
senhora! Muito bem, Sr. Quaderna, vamos ent�o continuar! O senhor,
por�m, veja como conta as coisas!
� Doutor, acho que estou contando tudo do jeito mais discreto
poss�vel! Depois que o senhor chamou minha aten��o por causa da
hist�ria de Marcolino com minha burra, tenho procurado ser o mais
delicado que sei: at� procurado falar di�cil eu tenho! Agora, o que n�o
sei � como contar uma hist�ria danada como esta de jeito delicado e
discreto! O senhor fa�a o seguinte: v� perguntando as coisas do seu
jeito, porque a� ica menos di�cil de responder!
� Est� bem! O senhor disse que a mo�a proferiu um gemido
abafado: na sua opini�o, o que foi que houve? O usineiro chegou a �
como direi? � a consumar o delito?
� Teodoro disse que n�o sabia dizer se sim ou n�o!
� Pode ser, ent�o, que s� nessa hora a mo�a tenha acordado:
gritou, com a surpresa, e o Pai ent�o teria abafado o grito, colocandolhe
a m�o na boca!

� � o que Teodoro acha, tamb�m, mais prov�vel,
principalmente porque, segundo ele me garantiu, Ant�nio Moraes
permaneceu vestido o tempo todo!
� Vestido?
� Sim, Excel�ncia, Teodoro airmou, sempre, que Ant�nio
Moraes n�o tirou a roupa, nem quando entrou, nem depois! � verdade
que isso n�o garante grande coisa, e Teodoro disse que n�o podia
avan�ar hip�tese nenhuma com seguran�a, pois somente quando
cessaram, embaixo, os ru�dos abafados e os murm�rios que se seguiram
ao gemido de Genoveva, foi que ele teve coragem de olhar de novo para
l�. J� ent�o, Ant�nio Moraes sa�a pelo corredor e Genoveva estava de p�,
no meio do quarto, com um jeito meio indeciso. Ant�nio Moraes saiu
pela frente da casa, e Teodoro viu Miguel, seu ilho mais mo�o, de p�, na
porta do seu quarto, que icava do outro lado do corredor, defronte da
camarinha de Genoveva. Pela posi��o em que Miguel estava, era
imposs�vel airmar, tamb�m, se ele vira ou n�o alguma coisa do que se
passara. Genoveva saiu do quarto para o corredor. Ao se deparar com o
irm�o, os dois se olharam um pouco, em sil�ncio. Depois, Miguel voltou
a entrar no quarto, fechando a porta atr�s de si, e Genoveva, cabisbaixa,
saiu para os lados da sala de visitas, a da frente. Teodoro, aproveitando
a oportunidade, desceu como um gato a escada do andaime, cruzou o
corredor na ponta dos p�s para o lado da cozinha e, saindo por tr�s da
casa, entrou no mato do cercado, fez uma grande volta pelo A�ude do
Estado � evitando, assim, de passar pelo p�tio da frente � e conseguiu
chegar � Vila sem que ningu�m o visse. � noite, passados j� os
acontecimentos terr�veis que se desencadearam com a chegada de
Sin�sio, foi me procurar na �T�vola Redonda� para me contar a hist�ria
e pedir instru��es. Eu o aconselhei a calar a boca, porque, de fato, se a
hist�ria se espalhasse, os Moraes eram gente para acabar com a vida
dele em poucas horas. Garanti-lhe sil�ncio da minha parte e despedi-o,
porque tinha muita coisa a pensar e decidir, naquela noite terr�vel,
decisiva para todos n�s. Assim, Sr. Corregedor, esta � a primeira vez que
conto esta cena diante de terceiros. Fiz isso em aten��o ao senhor e
atendendo � sua ordem de contar tudo, tintim por tintim!
� Muito bem! � disse o Corregedor, novamente impenetr�vel.
� E as outras pessoas que o senhor considerou afetadas pela chegada
do rapaz?

� �
FOLHETO LXVII
O Emiss�rio do Azul e as Juras de Castidade
o que passo a contar a Vossa Excel�ncia! � continuei. � Pe�o,
ali�s, toda a sua aten��o, porque o que vou contar agora envolve,
ao mesmo tempo, tr�s pessoas que foram de import�ncia
decisiva para o destino de Sin�sio, isto �, Gustavo, Clara e Heliana.
Acontece que, enquanto em sua casa se passavam esses estranhos
acontecimentos, Gustavo Moraes, no autom�vel, em viagem para o Rio
Grande do Norte, mantinha com Clara, irm� mais velha de Heliana, uma
entrevista important�ssima. Ele realizara, h� dois dias, uma viagem
secreta para a �Fortaleza de S�o Joaquim da Pedra�, onde conversara
com o pai de Clara, combinando com ele aquela viagem de regresso da
mo�a que tinha passado uns dias em nossa Vila. Agora, apanhara-a no
�casar�o das pinhas� onde ela estivera hospedada e que pertencia a uns
parentes seus, o pessoal da fam�lia do Major Liberalino Cavalcanti de
Albuquerque. Com Clara, fazendo-lhe companhia para a viagem, viera
uma velha parenta sua que, da� a dois dias, deveria regressar com
Gustavo no autom�vel, deixando a mo�a em casa, com o Pai. De modo
que, no �autom�vel presidencial� de Gustavo, iam agora, ali, pela
estrada, para o Rio Grande do Norte, o motorista e a velha parenta na
frente, e, no banco traseiro, ele e Clara. Gustavo, Sr. Corregedor, era um
rapaz esbelto, de estatura pouco acima da mediana. Diferentemente do
resto dos Moraes, que eram todos morenos, mas de um moreno que era
carregado e sombrio em Ant�nio Moraes e corado e vi�oso em
Genoveva, Gustavo Moraes era moreno-claro e p�lido, com l�bios
estranhamente e desagradavelmente vermelhos. Tinha o rosto ino e
cabelos pretos bast�ssimos, lisos. Sua barba era t�o cerrada e escura
que ele a raspava duas vezes por dia. Por isso, seu rosto ino, p�lido nas
faces, era de um azul-esverdeado nas mand�bulas, no queixo e no
pesco�o, sombreados pela barba preta, cuidadosamente escanhoada.
Vendo o aspecto dele, n�o era necess�rio nem um Mestre, como eu, nas

duas Astrologias, a Onom�ntica e a Transcendental, para fazer seu
�diagn�stico astroso�: qualquer simples iniciado em Astrologia notava
logo que se tratava de um capric�rnio-saturnal. Como Vossa Excel�ncia
deve saber, o �Capric�rnio� � ou, sob sua forma f�mea, a �Cabra� � �
um signo governado, em Trono noturno, pelo inluxo mal�icoesverdeado
de Saturno, com a presen�a e atua��o do verde-lodo, da
saira, do chumbo e do �xido de enxofre. Acho que, de todos os
personagens que comparecem a esta hist�ria, era Gustavo Moraes o que
eu conhecia menos bem. O motivo disto era, primeiro, o orgulho dos
Moraes que, na Vila, s� convidavam praticamente o Doutor Samuel Wan
d�Ernes, �por ser, como eles, um Fidalgo dos engenhos pernambucanos,
exilado e perdido nesta b�rbara e bastarda terra do Sert�o�. O segundo
motivo era o �dio mortal que existia entre eles e a fam�lia de meu
Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o. Os Moraes eram uma fam�lia muito
rica, de usineiros pernambucanos. Estabeleceram-se em Tapero�
principalmente em busca do algod�o e dos min�rios sertanejos, que
estavam come�ando a ser explorados naquele tempo. S� se entendia a
presen�a, em nosso im de mundo, do sombrio e orgulhoso Ant�nio
Moraes pelo fato de ele ter se tornado s�cio e testa-de-ouro de uma
empresa estrangeira. De fato, j� naquele ano, como Clemente e Samuel
nos explicaram, a �Sanbra� e a �Anderson Clayton�, irmas angloamericanas
e judaicas, tinham come�ado a disputa dos nossos
mercados de algod�o, e �outros grupos enigm�ticos, a servi�o d�Eles,
estavam se apossando dos min�rios de cobre e tungst�nio da Para�ba�.
Segundo Clemente, �essa era a origem escusa de toda aquela escusa
fortuna de Ant�nio Moraes�, a quem, por causa dessas interpreta��es,
eu hesitava e hesito ainda em outorgar o tratamento de Dom. Logo que
viera se estabelecer entre n�s, Ant�nio Moraes comprara uma grande
propriedade, os �Angicos�. Segundo dizia a Samuel, chegara � conclus�o
de que a ind�stria a�ucareira de Pernambuco estava ultrapassada e
encaminhava-se para a fal�ncia. Por isso, resolvera mudar de atividade
e os min�rios do Cariri eram fundamentais para isso. Clemente por�m
dizia que aqueles montes e montes de p�-de-pedra que reluziam nas
beiras dos caminhos dos �Angicos� continham coisas muito enigm�ticas
e perigosas. Eram �min�rios raros, indispens�veis �s ind�strias b�licas
d�Eles�. De fato, logo depois, Ant�nio Moraes come�ou n�o s� a extrair,
mas tamb�m a comprar barato umas pedrinhas pretas que ele chamava

de �colombitas� e que mandava para o Recife, onde elas eram
embarcadas em navios, embaladas em grandes caixas de madeira
destinadas �a Eles�. De uma forma ou de outra, estabelecido nos
�Angicos�, ligado �s companhias estrangeiras pelo algod�o e pelos
min�rios, Ant�nio Moraes come�ou a querer rivalizar com Dom Pedro
Sebasti�o sobre o dom�nio do nosso Reino do Cariri. Como, al�m disso,
tivesse surgido entre os dois uma quest�o de terras por causa de um
peda�o est�ril de Tabuleiro que separava as duas propriedades (e pelo
qual ningu�m entendia que dois homens t�o ricos e poderosos se
batessem t�o violentamente), um �dio mortal surgira entre os dois
Fidalgos, que viveram assim at� a morte do velho Rei, em 1930. Os
neg�cios principais da �On�a Malhada� eram os couros, o algod�o e as
pedras preciosas. Os de Ant�nio Moraes eram os min�rios, de modo que
eles poderiam, talvez, ter convivido sem briga. Mas como, ao lado disso,
Ant�nio Moraes tivesse se aliado � �Sanbra� e, a princ�pio por inlu�ncia
do gringo campinense Christiano Lauritzen, tivesse introduzido novos
m�todos industriais de beneiciamento de algod�o em Tapero�, a
separa��o, a luta e o �dio entre os dois aumentaram a ponto de a
situa��o icar insuport�vel. N�o � preciso dizer que essa separa��o e
esse �dio tomaram tamb�m, imediatamente, o car�ter de luta pol�tica.
Foi assim que, na �Guerra de Doze�, que ensanguentou o Sert�o
paraibano em 1912, o nosso velho Rei do Cariri tomou o partido do
Coronel R�go Barros, dos Dantas e do Bacharel Santa Cruz,
representantes do velho Partido Liberal do tempo do Imp�rio; Ant�nio
Moraes imediatamente tomou o outro lado, o do Senador Epit�cio
Lindolpho da Silva Pessoa, herdeiro do Partido Conservador e do
primeiro partido republicano do Senador Ven�ncio Neiva. Tamb�m foi
por causa disso que, em 1930, na �Guerra de Princesa�, Dom Pedro
Sebasti�o tomou o partido dos Sertanejos comandados pelo Coronel
Jos� Pereira, e Ant�nio Moraes o da Pol�cia e do governo do Presidente
Jo�o Pessoa. Assim, por causa desses �dios entre as duas fam�lias, eu
n�o conhecia Gustavo t�o intimamente quanto conhecia Ar�sio,
Silvestre e Sin�sio. Quanto � mo�a Clara, eu a conhecia sempre melhor,
desde o tempo em que servira de emiss�rio de meu Padrinho, Dom
Pedro Sebasti�o, junto ao Pai dela, o �gringo� Dom Edmundo Swendson,
s�cio do velho Rei Degolado no neg�cio dos couros e das pedras
preciosas. Ali�s, para que Vossa Excel�ncia n�o estranhe o nome das

duas Damas jovens e alouradas que desempenharam papel t�o terr�vel
no destino de Sin�sio, devo lembrar que s�o umas quatro ou cinco as
estirpes idalgas n�rdico-sertanejas e lamengo-nordestinas que
existem entre n�s: os Wan der Leys, os Wan d�Ernes, os Von Sohstens,
os Lauritzens e outros, alguns deles chegados no s�culo XVII, outros
depois, mas todos importantes. Os Swendsons e os Lauritzens s�o dos
mais recentes. O primeiro Swendson veio para c� com aquele outro
Fidalgo sertanejo-dinamarqu�s, Dom Christiano Lauritzen, Senhor da
Vila Nova da Rainha de Campina Grande. Como sabem todos os bons
historiadores e genealogistas do Nordeste, Dom Christiano Lauritzen
veio para o Brasil no s�culo XIX. Deixou o Recife e o Litoral, e veio se
estabelecer em Campina Grande, onde se casou com a ilha de um
Fidalgo sertanejo, Dom Alexandrino Cavalcanti de Albuquerque, Senhor
da Fazenda �Cabe�a-do-Boi�. Dom Alexandrino, como se v� por seu
nome, pertencia ao ramo sertanejo e paraibano dessa famosa estirpe
idalga dos Cavalcantis de Albuquerque, da qual descende todo
nordestino que se preza, motivo pelo qual todos n�s nos consideramos
descendentes de El-Rei Dom Dinis, O Lavrador, distinto soberano e
Cantador portugu�s, quase t�o bom, em seu tempo, quanto Francisco
Romano e In�cio da Catingueira no nosso. O casamento do dinamarqu�s
Christiano Lauritzen com Dona Elvira Cavalcanti de Albuquerque
integrou deinitivamente o �gringo� na Aristocracia brasileira e foi
origem de uma nobil�ssima prog�nie que ainda hoje abrilhanta o nosso
sert�o da Para�ba. Quanto a Dom Edmundo Swendson, veio ele, da
Dinamarca, com Christiano Lauritzen, e casou-se com outra Cavalcanti,
parenta de Dona Elvira, mas do ramo dos Cavalcantis do Sert�o da Serra
Negra, sert�o que se estende da Para�ba at� o Rio Grande do Norte. Os
Cavalcantis de Albuquerque Lauritzen ixaram-se na velha sesmaria da
�Cabe�a-do-Boi�, situada a umas cinco ou seis l�guas de Campina
Grande, em pleno Sert�o do Cariri, numa das regi�es mais �speras e
pedregosas da nossa Prov�ncia. Os Cavalcanti-Swendsons, com Dom
Edmundo � frente, dedicaram-se ao tr�ico das pedras preciosas,
motivo pelo qual resolveram se ixar no litoral do Rio Grande do Norte.
Num grande monte pedregoso, situado a pique sobre o Mar, ali bem
perto do lugar em que o Vaqueiro vira a Besta Bruzac� sair dos lombos
do verde Tigre para as terras fogosas do Sert�o, Edmundo Swendson
encontrou uma velha, grande e quadrada Fortaleza do s�culo XVII, com

torre�es seteirados nos quatro cantos e com velhas paredes de pedra
subindo muito alto, numa linha inclinada que, partindo das rochas
batidas pelo Mar, davam �quela Fortaleza um aspecto ao mesmo tempo
de cadeia, de quartel e de Castelo � beira-mar. Dom Edmundo comprou,
por uma ninharia, todo o peda�o de terra onde estava a velha e maci�a
Fortaleza; e o pessoal que morava por perto achou a coisa mais
esquisita do mundo, �aquele gringo comprar exatamente o trecho de
praia mais alto e pedregoso, sem coqueiros nem cajueiros que dessem
lucros�. Espantar-se-iam ainda mais quando �o gringo� come�ou a
limpar o entulho que recobria a velha Fortaleza, restaurando-a em suas
linhas originais e trazendo sua mulher para morar com ele, ali, �naquele
im de mundo, naquele lugar soturno�. De fato, por�m, Dom Edmundo
Swendson precisava de um lugar que, servindo-lhe de casa, servisse
tamb�m de ancoradouro � frota de barca�as que ele adquiriu e
aumentou aos poucos, na medida das necessidades do seu com�rcio de
couro e pedras preciosas. S� depois e aos poucos, por interm�dio de
meu Padrinho, que inanciara, como s�cio, os primeiros neg�cios de
Dom Edmundo, � que fomos sabendo todos esses pormenores. Quando
eu o conheci, seus neg�cios j� cobriam o Nordeste inteiro, e iam do
ouro do Pianc� ao berilo e �s �guas-marinhas do Sert�o do Picu�. Isto
sem se falar de outros neg�cios que ele realizava l� para os lados do
Sert�o do Rio S�o Francisco e que inclu�am o m�rmore, os couros de
boi, de bode e de carneiro. As barca�as da frota do �gringo� eram, ali�s,
constru�das no Sert�o do S�o Francisco. Eram maiores do que as
barca�as comuns; movidas a vela, tinham na frente aquelas �carrancas�
que costumam colocar nos barcos do Rio S�o Francisco. No nosso
litoral, as barca�as, al�m de menores, n�o t�m carrancas, de modo que
os barcos do �gringo�� foram encarados como novo fator de estranheza
para o pessoal da praia. Como dizia Samuel, esses barcos �com as
iguras rostrais esculpidas na proa pareciam verdadeiros e antigos
Navios de madeira�, o que, ali�s, tivemos oportunidade de veriicar na
viagem que izemos neles e que marcaria um dos epis�dios mais
importantes da �odisseia mar�tima� de Sin�sio, O Alumioso. Essas
barca�as de Dom Edmundo subiam e desciam o Rio S�o Francisco. As
maiores iam somente do Mar at� Penedo, onde pegavam a carga
deixada pelas menores, que desciam at� ali desde o Sert�o das
Piranhas. De Penedo ent�o voltavam as maiores, subindo pelo Mar para

o Norte e fazendo escala em Macei�, em Barra do Camaragibe, em
Tamandar� e S�o Jos� da Coroa Grande, at� chegarem � Barra do Rio
Suape, em Pernambuco, lugar onde Dom Edmundo Swendson tinha
outra casa, perto da Fortaleza de Nazar� do Cabo. Da�, com outras
escalas em Itamarac� e na Ba�a da Trai��o, da Para�ba, chegavam at� a
antiga �Fortaleza de S�o Joaquim da Pedra�, o Castelo rochoso, situado �
beira-mar, no litoral do Rio Grande do Norte, a tal Fortaleza da qual eu
vinha falando. Fora assim, Sr. Corregedor, o Fidalgo n�rdico-sertanejo
Dom Christiano Lauritzen quem pusera seu compatriota Edmundo em
contato com Dom Pedro Sebasti�o, Rei do Cariri; e eu acredito que, se
Christiano Lauritzen n�o tivesse morrido quando morreu, as rela��es
existentes entre os Garcia-Barrettos e os Cavalcanti-Swendsons n�o
teriam se rompido depois da morte de meu Padrinho, com
repercuss�es t�o terr�veis sobre o destino das duas ilhas mo�as de
Dom Edmundo � Clara e Heliana � e dos dois ilhos var�es leg�timos
de meu Padrinho � Ar�sio e Sin�sio. Mas, quando se trata dessas
quest�es de sina, de destino, parece que uma esp�cie de cegueira se
abate, mesmo, sobre todos os implicados, Sr. Corregedor! Eu mesmo,
desde o come�o, poderia ter previsto tudo o que ia acontecer. Sabia que
Dom Pedro Sebasti�o era amigo e s�cio do Fidalgo dinamarqu�ssertanejo.
Mas, cego, nunca pensei que fossem dar no terr�vel resultado
em que deram os �cruzamentos de sangue e de destino� que ocorreram
entre Sin�sio, nosso Pr�ncipe da Legenda Ensanguentada do Sert�o, e as
duas ilhas de Dom Edmundo Swendson, Dona Clara, a loura, e Dona
Heliana, a dos olhos verdes, que foi o grande amor de sua vida. Clara era
a ilha mais velha de Dom Edmundo e de Dona Catarina Cavalcanti de
Albuquerque, naquele tempo j� falecida. Puxara mais � ra�a do Pai. Era
mais alta do que baixa, tinha grandes olhos redondos e azuis, os cabelos
de um louro bronzeado, o nariz reto, o queixo e as ancas irmes. Quem
conhece, como eu, o folheto da Descri��o das Mulheres por Seus Sinais
notaria que ela tinha quatro defeitos �sicos que, como acontece sempre
nas mo�as bonitas, eram, nela, quatro encantos a mais: suas
panturrilhas eram um pouco espessas e musculosas, contrastando de
modo um pouco forte demais com os tornozelos e os joelhos inos; suas
pernas eram um quase-nada arqueadas, sendo que na direita havia,
entre o joelho e o tornozelo, na parte de fora, um sinal arredondado,
claro; a testa ampla contrastava, um pouco mais do que o permitido,

com o queixo, que era forte nas mand�bulas mas ino na ponta; e
inalmente, quem olhasse durante tempo suiciente seu dorso, notaria
que a esp�dua direita era um pouco mais alta do que a esquerda. Clara
herdara esse �ltimo defeito de sua M�e. Mas, em Dona Catarina, a
diferen�a entre as duas esp�duas era mais pronunciada, principalmente
porque seus ombros eram magros e um pouco altos, ombros de
asm�tica. Os ombros de Clara, por�m, eram cheios, servindo de remate
a bra�os esplendorosos. Era isso que transformava num encanto a mais
aquela esp�dua um pouco abaulada que, em sua M�e, era realmente um
defeito �sico. Clara, por�m, n�o tinha consci�ncia dessas diferen�as; e a
humilha��o que sentira desde menina por aquilo que julgava ser uma
esp�cie de mancha ou vergonha familiar heredit�ria dava a seus olhos
azuis uma tristeza, uma certa altivez melanc�lica que os salvavam da
frieza ou da insigniic�ncia que se casam, na maioria das vezes, a essa
cor. Por outro lado, tenho hoje a convic��o, Sr. Corregedor, de que a
esp�dua alta e o sinal da perna n�o eram sen�o a marca que a
Divindade apusera nela para dar um aviso aos demais: eram a marca do
Terr�vel, a marca que fazia de Clara uma �assinalada�; ainda que, como
os acontecimentos posteriores iriam demonstrar, muito mais
assinalada e terr�vel do que ela fosse sua irm�, a doce, bela e sonhosa
Heliana, a mo�a dos olhos verdes e das m�os cobertas que foi como
uma pedra-de-raio a fulminar o destino de Sin�sio.
* * *
� Eram, pois, mais ou menos as duas e meia da tarde daquele
s�bado, Sr. Corregedor! � continuei. � Gustavo Moraes tinha
apanhado Clara no casar�o das pinhas e agora viajavam pela estrada
que, cortando o Cariri, entra, perto da Vila do Junco, para a do Serid� do
Rio Grande do Norte. Iam por aquela regi�o �spera que, naquele Junho,
j� come�ava a icar crestada, pois o estio de 1935 come�ou antes do
tempo. A conversa entre os dois parecia meio di�cil, quase penosa
mesmo, entremeada, segundo me contaram depois, de pausas, de
pensamentos ocultos e de subentendidos.
� Como foi que o senhor tomou conhecimento disso?
� Sr. Corregedor, lembro mais uma vez que sou um Epopeieta,
de modo que tenho certas liberdades que me s�o outorgadas pelo

Gavi�o macho-e-f�mea e sertanejo que me serve de Musa. Entre essas
liberdades, est� a de adivinhar e profetizar as conversas que n�o ouvi!
� Est� certo, mas isso aqui ainda n�o � a Epopeia: � um
depoimento que, depois, vai lhe servir de material bruto para ela e, para
mim, de processo. Assim, deixe de lado suas liberdades de Epopeieta e
seja claro. Como foi que o senhor soube dessa conversa?
� Est� bem, vou dizer a Vossa Excel�ncia! N�o lhe escondo que,
como Astr�logo e dizedor de sortes, mantenho, na �T�vola Redonda�,
um consult�rio astrol�gico e sentimental onde comparecem mo�as,
rapazes, cavalheiros e senhoras dos mais poderosos desta Vila! Assim,
as hist�rias que ou�o diariamente, l�, s�o as mais incr�veis! Raras s�o as
pessoas, aqui da rua, cuja vida �ntima eu n�o conhe�a, �s vezes nos
pormenores mais comprometedores! Olhe, Sr. Corregedor: eu estou
com 41 anos de idade, e ainda ico espantado com a facilidade que as
pessoas t�m de contar certas coisas e de conversar na frente dos outros
sobre os assuntos mais �ntimos. Isso acontece muito quando o terceiro
� uma pessoa colocada abaixo dos que conversam: parece que eles
julgam essas pessoas cegas ou surdas, incapazes de entender qualquer
coisa! Pois foi o que aconteceu naquele dia com Gustavo e Clara. Eles
conversavam, no carro, na presen�a do motorista e da velha parenta
que, dentro dos nossos costumes sertanejos, servia de companhia �
mo�a em sua viagem. Da� os subentendidos e alus�es secretas da
conversa. Acontece, por�m, que aquela senhora idosa, que eles
pareciam julgar cega, surda, muda e burra como uma porta, tinha me
tomado, h� muito tempo, como conidente e consultor astrol�gico. Ao
contr�rio do que julgavam, tinha uma maldade cortante, uma m�-ideia
sistem�tica sobre as pessoas, o que lhe dava um faro de cachorro para
descobrir os segredos e as maldades dos outros. Foi ela quem me
contou tudo, e com uma arg�cia, uma penetra��o que teriam deixado
Gustavo assombrado, caso tivesse tido conhecimento de nossa
conversa. Ali�s, Sr. Corregedor, tendo-se em vista que a chegada de
Sin�sio se daria cerca de uma hora depois, a conversa de Clara com
Gustavo parecia comunicada de alguma coisa de prof�tico ou de
pressentimento. Gustavo vestia cal�as de uma fazenda meio aveludada,
de cor vinho-castanha. O palet� era de linho branco, desses que a gente
chama aqui de �lonado�. A camisa era azul. Os sapatos, pardos, e as
meias azuis, da mesma cor da camisa. Estava com gravata verde-clara e

trazia bengala de cast�o de prata, que segurava com as duas m�os,
apoiada verticalmente no ch�o do carro. De vez em quando, nos
momentos de maior relex�o, apoiava o queixo sobre o cast�o da
bengala, baixando a cabe�a e entrecerrando os olhos, num gesto que lhe
era habitual e que estava sendo imitado por tudo quanto era de
intelectual da nossa Vila. Conto todos esses pormenores para dar a
Vossa Excel�ncia uma ideia da impress�o, do espanto que ele vinha
causando na rua, com aquelas eleg�ncias t�o diferentes das nossas. At�
a data de sua chegada recente do Recife, o homem elegante que nos
surpreendia e esmagava a cada instante com sua superioridade e sua
originalidade nesse campo era o Doutor Samuel Wan d�Ernes. Quando,
por�m, Gustavo Moraes apareceu entre n�s, depois de tantos anos de
aus�ncia, desbancou em dois tempos o nosso Promotor que, sem outra
alternativa para se sair bem do cotejo, escondeu sua humilha��o e seu
despeito atr�s de furiosas compara��es entre sua pr�pria �sobriedade�
e a �pretens�o�, o �espalhafato de mau gosto� das roupas de Gustavo
Moraes. Isso n�o o impediu, por�m, mesmo cobrindo o rival de
remoques, primeiro de invej�-lo e depois de imit�-lo furiosamente,
quase morrendo de alegria e orgulho depois que passou a ser
convidado para a casa dos Moraes. Quanto a Clara, vestia, naquele
momento, um vestido preto, meio transparente, com ramagens lilases,
que se casava maravilhosamente com seus cabelos louros. As meias cor
de creme, in�ssimas, ajustavam-se perfeitamente �s pernas, cobertas
pelo vestido at� pouco abaixo do joelho. Corretamente sentada no
banco traseiro do carro, tendo juntos os p�s cal�ados de s�brios
sapatos pretos, repousava ambas as m�os sobre os joelhos que elas
ajudavam a se manter unidos. Ouvia Gustavo com uma express�o
indeinida, entre atenta e sonhadora. E Gustavo falava, falava sem
cessar, como era, ali�s, seu h�bito. Tudo o que ele dizia, tinha sempre
bom gosto, eleg�ncia e originalidade, �um bom gosto e uma intelig�ncia
at� excessivos�, como notou Samuel a princ�pio, �uma originalidade
meio artiicial que terminava causando uma sensa��o de mal-estar;
uma frieza e uma agudeza meio assustadoras, que afastavam toda
possibilidade de haver alguma coisa de vivo e de bondoso naquela
alma�. Mas isso eram sutilezas de Samuel, no tempo em que ainda n�o
fora recebido pelos Moraes. N�s todos, sem nos importar com suas
an�lises, nas raras ocasi�es em que t�nhamos oportunidade de ver e

ouvir Gustavo, ic�vamos seduzidos e embasbacados pela intelig�ncia e
pela novidade de tudo o que ele dizia. Naquela tarde, pois, Gustavo dava
conta a Clara da viagem que izera dois ou tr�s dias antes, por aquela
mesma estrada, para a Fortaleza de S�o Joaquim da Pedra, onde fora se
entender com o Pai dela sobre v�rios assuntos (sendo um deles a
viagem que agora fazia, levando Clara de volta para casa). Gustavo dizia
a Clara:
� �Cheguei l� na Fortaleza na ter�a-feira, pelas cinco horas da
tarde, Clara. Confesso a voc� que n�o esperava encontrar aquela casa
maravilhosa que encontrei! � verdade que voc� j� tinha me falado nela.
Eu j� sabia que seu Pai tinha tido o bom gosto de restaurar uma velha
Fortaleza, situada � beira-mar, para se instalar nela. Mas, n�o sei por
que � talvez por causa da Fortaleza de Santa Catarina que � situada,
aqui na Para�ba, numa praia rasa, em Cabedelo �, eu n�o esperava
aquela Fortaleza enorme, acastelada em cima de pedras alt�ssimas,
batidas pelo Mar! Olhe, Clara, dos s�culos XVI, XVII e XVIII, foi isso o
que de melhor nos icou, em Arquitetura! Mesmo a arquitetura dos
sobrados e casar�es � menos bela do que a arquitetura despojada e
monacal das Igrejas, Mosteiros e Casas-de-Miss�es, e do que a
arquitetura nobre, maci�a, militar e acastelada das Fortalezas do tipo de
�S�o Joaquim da Pedra�! No dia em que cheguei l�, fazia uma tarde fresca
e suave, e o sol, j� descaindo, iluminava com uma luz dourada as
enormes pedras cor de ferrugem, batidas pelas ondas; assim como
iluminava, tamb�m, as altas e gross�ssimas paredes que circundam a
Fortaleza, paredes feitas de pedra-e-cal, escurecidas pelo tempo e cujo
reboco caiu, ro�do pelo vento, pelas �guas, pelo sal do Mar, de modo que
as pedras enormes aparecem com uma nobreza vetusta que comove e
nos d� um solene sentimento de respeito. Seu Pai ali�s, Clara, teve o
bom gosto de s� refazer, no velho Forte, o essencial � restaura��o, n�o
tirando o car�ter da velha ediica��o acastelada e militar!�
� Essa express�o, �o car�ter�, Sr. Corregedor, assim como outras
originalidades da fala de Gustavo estavam em moda nos c�rculos
intelectuais e cat�lico-reacion�rios da revista Fronteira! � expliquei. �
Quando ele as pronunciava, acentuava o que dizia juntando todos os
dedos da m�o direita e esfregando-os delicadamente uns nos outros,
como se estivesse tirando p� das suas pontas, num gesto que trouxera
do Recife e que logo se tornaria, tamb�m, moda, entre todos os

intelectuais que se reuniam em nossa Biblioteca Municipal Raul
Machado. Gustavo continuou, dizendo a Clara:
� �Meu carro icou embaixo, abrigado numa constru��o nova
que seu Pai fez, longe da Fortaleza, ao p� do promont�rio. Subi a p�,
passando pela porta situada no lance t�rreo da constru��o e encimada
pelo Escudo das Quinas. Segui pelo interior do Forte, por uma esp�cie
de t�nel ou galeria de teto abaulado...�
� �Sim, � o corredor, como eu e Heliana cham�vamos, quando
�ramos meninas� � comentou Clara.
� �Pois o corredor, como diz voc�, est� caiado de novo.
Entretanto, sob a m�o de cal, a gente pode ver a irregularidade das
enormes pedras que d�o � parede um ritmo, uma for�a, uma nobreza
conventual realmente admir�veis!� � falou Gustavo, novamente
esfregando a ponta dos dedos, levantados para cima como uma lor de
p�talas fechadas.
� �O resto, ent�o, eu j� sei!� � disse Clara, com um sorriso leve
e uma express�o sonhadora. � �Voc� subiu por uma escada de pedra
que ica no fundo do corredor e faz uma curva, subindo pela direita. A�,
subindo a escada, chegou no p�tio da Fortaleza, l� em cima. Meu Pai,
certamente, estava esperando voc� na porta da casa...�
� �Que abre a frente para o p�tio e para as amuradas do Forte e
que � a antiga casa-forte do Capit�o que comandava a Fortaleza! Que
maravilha � a casa de voc�s, Clara! Sinto vergonha porque as nossas
melhores fam�lias brasileiras ainda n�o perceberam que essas
Fortalezas deveriam ser os verdadeiros Castelos da nobreza nordestina,
por serem nobres ediica��es � altura da torre de Duarte Coelho, em
Olinda, ou da Casa da Torre de Tatuapara, na Bahia! Enquanto isso,
enquanto damos todas essas nobres ediica��es ao desprezo e ao
abandono, seu Pai, um dinamarqu�s, foi mais sens�vel do que a nossa
Aristocracia; mais atento ao que existe de verdadeiramente grande e
forte, como express�o do fundo �pico da nossa Ra�a! Conversei muito
com ele, Clara! � um homem, um homem dos meus, um forte, um
daqueles que n�s dever�amos mandar trazer para aqui �s carradas, da
Europa, para equilibrar, com um bom contingente godo e n�rdico, o
caldeamento racial ib�rico-brasileiro. Os Fidalgos portugueses e
espanh�is como contingente inicial dos nossos melhores e maiores,
est� muito bem! Minha aspira��o � exatamente conirmar e exal�ar em

nosso sangue o sangue cavalheiresco e cat�lico dos Conquistadores
ib�ricos! Infelizmente, com o que houve depois, com a mistura de
Negros e �ndios nos contingentes raciais do Povo Brasileiro, precisamos
de uma ra�a n�rdica, marinheira e empreendedora, para o sangue do
Brasil com que sonhamos!� � disse ele, com uma express�o estranha e
um entusiasmo meio doentio. � �Isto sem se falar em que nossa
pr�pria Aristocracia s� teria a ganhar, cruzando o velho sangue ib�rico
com o n�rdico, unindo-se, num tipo s�, as qualidades senhoriais das
duas Ra�as, o que, ali�s, sucede com sua fam�lia. Aqui na Para�ba, h�
tr�s fam�lias onde se deu esse feliz caldeamento racial: os Lauritzens, os
Von Sohstens e voc�s, os Swendsons. Os Von Sohstens, como bons
viquingues que s�o e num grande rasgo de idelidade ao �mpeto �pico e
mar�timo de sua Ra�a, est�o se dedicando � pesca da baleia, perto de
Cabedelo, na Costinha, no litoral da Para�ba. O velho Christiano
Lauritzen praticamente fez a grandeza de Campina Grande. Agora, � seu
Pai, com esse belo tr�ico de pedras preciosas e sua frota de barca�as!
Infelizmente, tr�s fam�lias dessas ainda � muito pouco! O Brasil, depois
da nossa vit�ria, dever� fazer todos os sacri�cios, mandando buscar mil,
dois mil, cinco mil homens como seu Pai, pagando-lhes a peso de ouro o
servi�o �nico e exclusivo de embelezar nossos homens e nossas
mulheres, de procriar, de clarear e alourar nossa Ra�a, ainando-lhe o
sangue, e fazendo-se assim, da nossa terra, um laborat�rio de
experimenta��o racial, organizado de acordo com um plano
preestabelecido! A Ra�a resultante teria todas as qualidades da n�rdica
e todas as da latina!�
� �E o que foi que voc� conversou com meu Pai?� � perguntou
Clara, mudando de conversa e sorrindo um pouco do entusiasmo de
Gustavo.
� �Falamos de tudo aquilo que voc� sabe: de voc�, da situa��o
do Pa�s e da nossa em particular, de mim, dos neg�cios...�
� �E a respeito de Ar�sio Garcia-Barretto? Voc� falou na
possibilidade do casamento dele com sua irm� Genoveva?�
� �Sim, falamos disso, � claro, dada a amizade que havia entre
seu Pai e o de Ar�sio. Seu Pai acha que, se Ar�sio quer, e Genoveva
tamb�m, essa � a solu��o ideal para a situa��o que se criou. Quando
airmou isso, ele me disse que falava como amigo que foi do velho
fazendeiro morto e como atual amigo e s�cio do meu Pai!�

� �E por falar em Ar�sio e Genoveva, continua tudo no mesmo
p�, entre os dois?� � perguntou Clara, curiosa.
� �Continua!� � disse Gustavo. � �Pelo menos, � a minha
opini�o, n�o sei nada por interm�dio deles! Voc� sabe Genoveva como
�: n�o fala nada sobre essas coisas, retra�da e orgulhosa como sempre
foi. Quanto a Ar�sio, � o selvagem do qual voc� j� tem not�cia, apesar de
nunca t�-lo visto, n�o � isso? N�o digo assim por antipatia a ele. Pelo
contr�rio! Para falar a verdade, tenho admira��o e orgulho por aquilo
que, em Ar�sio, mostra a for�a e a viol�ncia ancestral dos Senhores e
Cavaleiros que foram os troncos da nossa Aristocracia! Por mim, o
casamento dele com minha irm� se far�!� � concluiu ele com uma
express�o que fez Clara erguer para ele e logo abaixar de novo seus
olhos azuis.
� �E o testamento do pai de Ar�sio?� � indagou ela, depois de
uma pausa, e j� novamente com os olhos baixos. � �Meu Pai falou
alguma coisa sobre isso?�
� �Seu Pai, como eu esperava, n�o sabe nada sobre esse
pretenso e misterioso testamento! Diz que, em todo caso, se � que ele
existe mesmo, ningu�m sabe mais nenhuma not�cia a seu respeito. O
problema n�o seria nada se o velho fazendeiro degolado n�o tivesse se
casado com a primeira mulher, M�e de Ar�sio, com separa��o de bens,
e, com a M�e do outro, com comunh�o de bens! Houve ainda, ao que
dizem, algumas doa��es, feitas em vida do velho, ao rapaz que
desapareceu. Agora, por�m, no p� em que est�o as coisas, se o Juiz
julgar tudo como n�s esperamos, o rapaz ser� declarado ausente, e tudo
ser� resolvido da melhor maneira!�
� �Ausente � a mesma coisa que morto?� � indagou Clara, sem
levantar os olhos.
� �Para o caso da heran�a, acho que sim!� � respondeu
Gustavo, olhando-a ixamente, com uma express�o inquiridora.
� �Quer dizer que, quanto ao mais, n�o � a mesma coisa?� �
insistiu Clara, com a mesma express�o e ainda de olhos baixos.
� �O que � que voc� quer dizer com isso?� � perguntou
Gustavo com voz surda.
� �Eu, n�o quero dizer nada! No entanto, veja que voc� mesmo,
quando falou dele ainda h� pouco, n�o disse o rapaz que morreu, e sim o
rapaz que desapareceu.�

� �Tanto faz uma coisa como outra, e era o rapaz que morreu
que eu queria dizer, porque n�o h� mais d�vida de que Sin�sio morreu
mesmo!� � disse Gustavo, pronunciando com diiculdade o nome do
desaparecido. � �De qualquer modo, se ele um dia aparecesse, voc�
ainda se consideraria noiva dele?�
� �N�o sei!� � falou Clara, como se o assunto tamb�m lhe fosse
penoso e sempre sem levantar os olhos.
� �Ali�s, segundo voc� me disse� � insinuou Gustavo, numa
meia-pergunta �, �n�o houve propriamente um noivado comum e
irme, entre voc�s dois, porque o pedido foi feito a seu Pai e de modo
inteiramente inesperado. Ali�s, foi o Pai dele quem pediu! E foi seu Pai
quem concordou, n�o foi isso mesmo?�
� �Foi!� � assentiu Clara.
� �E, caso ele aparecesse, voc� se acharia na obriga��o de
manter a ele essa palavra, dada por seu Pai, cinco anos atr�s?�
� �N�o sei!� � repetiu Clara. � �Qual � a opini�o de meu Pai?
Voc� falou com ele a respeito disso?�
� �Falei muito por alto, porque, por culpa sua, Clara, eu n�o
tinha uma atitude deinitiva na qual me basear para falar com ele sem
indiscri��o de minha parte!� � disse Gustavo; e como Clara deixasse
passar sem coment�rio aquelas palavras, por culpa sua, que ele
acentuara de prop�sito, continuou: � �Falei com seu Pai somente por
alto. Ele me contou que voc� tinha noivado com esse Sin�sio com o
consentimento dele e atendendo a um pedido, feito por carta, do Pai do
rapaz. Naquele tempo, o Pai de Sin�sio e o seu eram s�cios e amigos, de
modo que o consentimento era quase obrigat�rio! Seu Pai me deu a
entender, por�m, que, com a morte do Pai, a desapari��o do ilho, e as
modiica��es havidas nas rela��es entre as duas fam�lias, ele se
considerava desobrigado em rela��o a esse noivado. Mas falou somente
quanto � parte pessoal dele, � claro; disse que, quanto a voc�, s� voc�
mesma poderia decidir!�� concluiu ele; e, vendo que Clara se mantinha
em sil�ncio, um lampejo de fria c�lera passou por seus olhos. Mas ele
logo se dominou, gra�as a sua boa educa��o. Depois de uma pausa,
falou de novo, perguntando:
� �Voc� j� se decidiu?� � o que disse for�ando sua natureza e
seus h�bitos de perfeito cavalheiro, uma vez que, formulando essa

pergunta, n�o deixava de incorrer numa intromiss�o na vida �ntima de
Clara. Mas a mo�a fugiu, de novo, a uma resposta direta:
� �N�o sei!� � disse ela, lentamente. E acrescentou, pesando as
palavras: � �De qualquer modo, esteja Sin�sio vivo ou morto, ique eu
noiva dele ou n�o, casasse ele comigo ou n�o, isso n�o signiicaria nada
diante do juramento que eu e voc� izemos, n�o � mesmo?�
� Parece, Sr. Corregedor, que havia qualquer coisa de
envenenado nas �ltimas palavras de Clara. Gustavo empalideceu muito
al�m do que j� era, icando com um ar de son�mbulo. Seus l�bios,
normalmente vermelhos daquela maneira desagrad�vel a que j� me
referi, estavam inteiramente descorados, e foi assim que ele falou:
� �O nosso juramento! Voc� o manteria, de qualquer modo?�
� �Sim, estou disposta a mant�-lo de qualquer maneira! E
voc�?�
� �Tamb�m! Sou capaz de repetir as palavras agora, diante de
voc�, como uma renova��o de votos! � o sagrado juramento cor�ntio da
nossa Ordem da Esmeralda do Graal, o juramento dos nobres, dos raros
e dos poucos!�
� Ent�o, Sr. Corregedor, depois dessas palavras estranhas,
sempre com um ar meio esquisito de possesso do �mal sagrado�,
Gustavo tirou um pequeno Evangelho ou Missal do bolso interno do
palet� e recitou as seguintes palavras, que, instru�do pela velha parenta,
localizei e copiei:
� �O corpo n�o � para a fornica��o, mas para o Senhor, e o
Senhor � para o corpo. Fugi da fornica��o. Todos os outros pecados que
o homem cometer, s�o cometidos fora do corpo; mas aquele que comete
fornica��o, peca contra seu pr�prio corpo. Digo que seria bom para o
homem n�o tocar em mulher alguma! Porque eu quero que todos v�s
sejais como eu mesmo (que n�o toco em mulher). Digo tamb�m aos
solteiros e �s vi�vas que � bom para eles permanecerem assim (castos)
como eu. O homem que est� sem mulher, est� cuidadoso das coisas que
s�o do Senhor, de como h� de agradar a Deus. Mas o homem que est�
com mulher, est� cuidadoso das coisas que s�o do mundo, de como h�
de causar prazer a sua mulher. E, assim, anda dividido. E a mulher
solteira e virgem, cuida nas coisas que s�o do Senhor, para ser santa no
corpo e no esp�rito. Mas a mulher que � casada, cuida nas coisas que

s�o do mundo e de como dar� prazer a seu marido. Assim, aquele que
casa sua ilha virgem, faz bem. Mas aquele que n�o a casa, faz melhor!�
* * *
� Quando Gustavo acabou de dizer essas palavras, Sr.
Corregedor, Clara estava olhando para ele com uma express�o tamb�m
estranha e enigm�tica. Ningu�m poderia dizer o que estava se passando
exatamente por tr�s daqueles belos olhos azuis, naquele momento mais
frios do que de costume � se zombaria, se uma fria avers�o, ou se
amor. Talvez fosse uma mistura de tudo isso. Entretanto, ela n�o fez
nenhum coment�rio sobre o que ouvira. Como se lhe tivessem ocorrido
outras lembran�as, situadas numa outra ordem de ideias, perguntou:
� �E minha irm� Heliana?�
� �Que � que tem Heliana?� � indagou Gustavo, um pouco
surpreso com a mudan�a de rumo da conversa.
� �Voc� esteve com ela?� � insistiu a mo�a.
� �N�o, n�o estive propriamente com ela! Tentei falar-lhe, uma
vez, mas ela fugiu.�
� �Onde estava ela, quando voc� a viu?�
� �No p�tio da casa, perto da amurada que d� vista para o mar
l� embaixo. Estava olhando para longe, com express�o distra�da, na
dire��o de quatro ou cinco barca�as que estavam ali ancoradas, com as
velas frouxas mas ainda n�o enroladas. Que beleza � a frota de barcos
de seu Pai, Clara! As barca�as mais comuns daqui s�o menores e t�m as
velas feitas de pano branco. As dele, vindas do Rio S�o Francisco, como
ele me explicou, s�o enormes, com velas coloridas e com iguras
rostrais esculpidas em madeira, na proa. Para lhe ser franco, confesso
que sinto at� uma sensa��o de prazer, s� em falar nisso! � como se nos
transport�ssemos para os tempos heroicos do nosso Pa�s, o tempo dos
Conquistadores! Pois Heliana estava ali, sentada naquela sali�ncia que
serve de banco � amurada, parecendo, ela tamb�m, uma igura fora do
tempo, olhando cismadoramente para o Mar verde-esmeralda e azulturquesa,
l� embaixo. Estava com ela a mulher que lhe faz companhia.�
� �Chama-se Maria Elvira!� � explicou Clara. � �O trabalho de
Maria Elvira � somente esse: fazer companhia a Heliana para atender a

seus caprichos e, ao mesmo tempo, tomar conta dela. Mas, por favor,
conte como tudo se passou!�
� �Eu iquei um instante parado na porta da casa, depois de t�la
avistado. Ela parece que me pressentiu, porque, de repente, voltou a
cabe�a, meio assustada, ergueu-se e depressa, quase correndo, de olhos
baixos, ingindo que n�o tinha me visto, atravessou o p�tio e desceu
pela escada, saindo do Forte. Voc� me desculpe eu falar assim, mas ela
corria com uma express�o meio selvagem, meio arisca... N�o sei,
tamb�m, se deva lhe contar o que aconteceu depois...�
� �Por qu�?� � indagou Clara, franzindo o cenho, mas deixando
transparecer, a contragosto, uma certa inquietude.
� �Voc� me conhece e sabe que estou lhe falando com o cora��o
nas m�os, de maneira que entender�, tamb�m, que s� falo disso porque
� a voc�! Acredite, Clara: sinto at� uma sensa��o de culpa por ter
seguido sua irm�, apesar de ter feito isso quase inconscientemente,
num impulso! Foi um gesto quase instintivo, de minha parte, aquele de
procurar quem parecia fugir de mim! Outra coisa que posso alegar em
meu favor � que eu n�o tinha a menor ideia do que se ia passar! Depois,
pensando naquilo que tinha feito, outra coisa que me intrigava era o
fato de eu ter evitado que Heliana visse que estava sendo seguida por
mim. Por que iz isso? � tenho me perguntado muitas vezes, de quartafeira
para c�. Encontrei duas causas para esse comportamento, t�o
estranho a meus modos. Primeiro, logo no come�o, foi o temor de que
Heliana, vendo-me, fugisse de novo, antes que eu pudesse falar com ela,
e eu queria muito saber como era a �nica irm� que voc� tem. Depois, do
meio para o im, foi a obscura consci�ncia, que come�ava a me
inquietar, da indiscri��o que eu estava cometendo! Da� em diante, eu j�
icaria era profundamente envergonhado, se fosse surpreendido
espreitando Heliana, que defendia sua solid�o de modo t�o evidente e
selvagem. Foi a� que me escondi para que, quando ela se afastasse mais,
eu pudesse voltar � Fortaleza sem ser visto por ela. Infelizmente,
por�m, foi esse tamb�m o instante em que Heliana tinha chegado ao
lugar que talvez buscava, de modo que ela parou, com Maria Elvira, e eu
iquei encurralado por tr�s das moitas em que tinha me escondido,
obrigado, j�, agora, a cometer at� o im a indiscri��o da qual h� pouco
queria fugir. As duas pararam junto a uma esp�cie de monte de pedras,

pedras de tamanho m�dio, escuras, entulhadas umas por cima das
outras, numa encosta situada n�o muito longe do Mar.�
� �Heliana estava com alguma coisa nas m�os?� � interrompeu
Clara, erguendo os olhos e quase ansiosa, ao ouvir a refer�ncia de
Gustavo ao monte de pedras.
� �N�o!� � respondeu Gustavo. � �Mas a mulher, Maria Elvira,
tinha, no caminho da Fortaleza at� ali, tirado um pequeno galho de
mato, do qual tirara as folhas com um canivete, arrepiando-lhe a casca
em tiras, com a l�mina, perto da ponta da varinha.�
� �Ent�o, j� sei o que aconteceu da� em diante!� � disse Clara,
parecendo mais aliviada. � �Isso que voc� viu Maria Elvira fazer � um
hissope, como a gente chamava, quando �ramos pequenas. Vou lhe dizer
como tudo se passou, quer ver? Quando elas chegaram junto das
pedras, come�aram a procurar casas de abelhas, enxu�s que por ali
sempre se encontram, na loca de alguma pedra maior ou nos buracos
formados por duas ou tr�s das menores, amontoadas!�
� �Foi isso mesmo!� � concordou Gustavo, surpreendido ao ver
Clara adivinhar tudo.
� �Elas acharam as abelhas?� � perguntou Clara.
� �Acharam, sim!�
� �Ent�o vou dizer o que houve depois. Maria Elvira deve ter
acendido fogo para fazer fuma�a e espantar as abelhas.�
� �� verdade!� � conirmou Gustavo. � �O cheiro bom das
folhas e madeiras mal queimadas chegava at� o lugar em que eu estava
escondido. Mas ser� que voc� sabe at� o que aconteceu depois?�
� �Da� em diante, � f�cil adivinhar!� � disse Clara, agora segura.
� �Depois de darem bastante tempo �s abelhas para que sa�ssem,
tonteadas pela fuma�a, Heliana eniou a varinha no enxu, e as cascas
arrepiadas sa�ram, todas, molhadas de mel. Ela costuma fazer isso
desde menina, � louca por mel de abelha, que ela dizia ter gosto
misturado de lor e de sol!�
� �E voc� sabe o que � que ela faz com o mel, depois de tir�-lo
assim?�
� �O que ela faz?� � perguntou Clara, perplexa.
� �Bem, pelo menos o que ela fez! N�o sei nem como lhe contar
isso, eu n�o devia ter falado!�

� �N�o, conte!� � falou Clara, agora entregando-se ao des�nimo
e � inquietude. � �L� em casa, n�s j� estamos todos habituados com as
estranhezas de Heliana! N�o � que eu tenha vergonha nenhuma dela;
n�o acho nada de censur�vel no que ela faz, mesmo quando os outros
acham que aquilo � mais do que esquisitice! V�, diga: o que foi que
Heliana fez, ent�o?�
� �Desabotoou o vestido!� � disse Gustavo com uma express�o
falsa e desmentindo, com ela, a resist�ncia que airmara sentir em
contar tudo. � �Depois de desaboto�-lo, abriu-o no peito e come�ou a
passar o mel no busto! Nos seios! Para ser mais preciso, nos bicos dos
seios!� � acrescentou ele com um sorriso for�ado, desagrad�vel. �
�Ela icou assim, passando o mel nas ar�olas, devagar, uma por��o de
tempo, parecendo distra�da e sonhadora. N�o sei se era por efeito da
luz, mas, do lugar em que eu estava, ela me parecia p�lida, com os
cabelos compridos soltos nos ombros, inos, estirados e levemente
agitados pelo vento que soprava do Mar. De que cor � o cabelo dela,
Clara?�
� �Castanho-claro e, como voc� pressentiu de longe, muito ino
e leve. Mas ela n�o � propriamente p�lida, � alva como eu, se bem que
n�o seja loura!� � explicou Clara, aliviada por poder desviar o assunto.
� �Foi a impress�o que eu tive, pelo menos assim como pude
v�-la, de passagem e de longe!� � disse Gustavo. � �Mas os olhos dela
s�o da cor dos seus?�
� �N�o, s�o verdes! Ou melhor, s�o azul-esverdeados! Verdeazulados!
Ainal, como � que se diz?� � disse Clara, tentando sorrir. E
acrescentou, com tristeza: � �Eu lhe pe�o desculpas, por ela!�
� �Desculp�-la, eu? N�o, de modo nenhum! Eu sou quem deve
lhe pedir desculpa! Ali�s, s� estou lhe contando isso para, de certa
forma, me explicar e me desculpar perante sua fam�lia! Eu nunca
poderia desconiar de que iria ver alguma coisa desse g�nero!�
� �Eu sei!� � concordou Clara. � �N�s j� temos passado por
outras situa��es semelhantes, todas constrangedoras. Heliana sempre
foi meio estranha e selvagem, desde menina! Eu me acostumei, e posso
dizer que, de certa forma, j� posso aceit�-la como ela �. Meu Pai,
coitado, � que s� falta morrer de desgosto! Acredito que,
diferentemente do que voc� pensou, n�o foi por esp�rito de
Conquistador ou por idelidade racial que ele foi morar em S�o

Joaquim, n�o! � por causa de Heliana que ele prefere viver isolado,
naquela Fortaleza afastada, longe de todo mundo! � por causa dessas
coisas que, de vez em quando, ele manda Heliana, somente com Maria
Elvira como companhia, para Nazar� do Cabo, em Pernambuco, para
Penedo, em Alagoas, ou mesmo para o Sert�o das Piranhas, onde n�s
temos uma fazenda. No Cabo, em Pernambuco, existe uma Fortaleza
parecida com a nossa, l�, de S�o Joaquim da Pedra. Meu Pai tentou
compr�-la tamb�m, para fazer dela outra das nossas moradias. Era
conveniente porque ela ica em cima, mesmo, das pedras da Barra do
Rio Suape, onde nossas barca�as t�m porto e fazem escala. Mas ele n�o
conseguiu comprar a terra da Fortaleza, de modo que ela icou l�,
arruinada, sem restaura��o. Ent�o meu Pai comprou um terreno alto,
perto do Forte, e, defronte da velha Fortaleza, construiu uma casa
assobradada. �s vezes, n�s passamos tempos nessa casa do litoral de
Pernambuco, principalmente quando meu Pai precisa controlar melhor
as viagens e as cargas das barca�as. Eu evito sempre de ir para l�, j� me
basta o isolamento de S�o Joaquim! Mas Heliana adora essas viagens, e
meu Pai aproveita esse gosto dela para distra�-la e, ao mesmo tempo,
para evitar que ela passe muito tempo num lugar s�. Porque, quando
acontece isto, Heliana termina sempre fazendo alguma coisa no g�nero
do que voc� viu!� � disse Clara, com alguma tristeza.
� �Seu Pai prefere voc� a Heliana, n�o � verdade?�
� �N�o sei, talvez. Pelo menos, � o que todos parecem pensar!�
� �Foi o que conclu�, pelo que observei e tamb�m por certas
palavras que ele deixou escapar.�
� �Talvez n�o seja propriamente uma prefer�ncia! � que eu sou
mais razo�vel e tamb�m muito mais parecida com ele!�
� �Notei isso, � estranho!� � disse Gustavo, olhando Clara
diretamente nos olhos. � �Voc� se parece terrivelmente com seu Pai!�
� �Terrivelmente? Terrivelmente por qu�?�
� �N�o sei! Acho que disse terrivelmente no sentido de demais.
De qualquer modo, foi como elogio que falei, porque, para mim, dizer
que voc� parece com seu Pai � um elogio!�
� �Para mim, tamb�m! J� Heliana, todo mundo diz que ela
parece mais com minha M�e quando era mo�a, se bem que todos dizem,
tamb�m, que minha M�e era muito menos bonita! Minha M�e era uma
pessoa assim, isolada no meio dos outros, como Heliana, se bem que

n�o tanto! De qualquer modo, foi bom que voc� tivesse visto Heliana
como viu, porque, assim, n�o ica mais enganado!�
� �Enganado em que sentido?� � perguntou Gustavo,
empalidecendo novamente e contraindo tanto as m�os que agarravam a
bengala que os dedos embranqueceram. � �O que � que voc� quer
dizer com isso?�
� �Voc� poder� assim, de olhos abertos, pesar os pr�s e os
contras da sua amizade comigo!�
� �Ningu�m pesa os pr�s e os contras de uma amizade, Clara!�
� disse Gustavo com a voz meio estrangulada. � �Agora, se voc�
dissesse amor, a� seria diferente!�
� �Amor?� � disse Clara, quase com ironia. � �Eu iz o
juramento dos raros, dos nobres e dos poucos, de modo que sou
proibida de tocar em todas essas coisas! Al�m disso, n�o sei se sou
noiva ou n�o, porque esse Sin�sio que eu s� vi uma vez, h� cinco anos, e
com quem meu Pai contratou meu casamento, muita gente acredita que
ele ainda est� vivo!�
� �Voc�, Clara, quando quer, sabe dizer as maiores crueldades!�
� disse Gustavo pondo-se ainda mais l�vido.
� �Voc� tamb�m! Acho mesmo que foi com voc� que aprendi
isso e muitas outras coisas mais!� � retrucou Clara no mesmo tom. �
�De qualquer maneira, para mim e para voc�, e at� para Sin�sio, caso
ele volte um dia, ser� a mesma coisa; tanto faz que eu seja noiva ou n�o!
Casada ou solteira, casada com Sin�sio ou com qualquer outro, eu s�
daria, a ele ou a esse outro, o amor cor�ntio, que � puro e casto e que,
portanto, pode ser dividido, sem magoar ou ferir ningu�m!�
� Gustavo olhou para Clara sem dizer nada, Sr. Corregedor.
Estava ainda muito p�lido e a m�o que conduzia a bengala continuava
contra�da como uma garra, sobre o cast�o de prata. Ele inclinou a
cabe�a, como num assentimento, mas n�o disse mais nada. Ficou com o
rosto voltado para fora, olhando a desolada e �spera paisagem do
Serid�, coberta de pedras, galhos secos e cardos. A paisagem corria ante
seus olhos, com a velocidade do autom�vel. E, naquele mesmo instante,
Sin�sio entrava na rua, montado em seu cavalo branco.

Q
FOLHETO LXVIII
O Caso do Cachorro Malcomportado
uando acabei de contar isso, o Corregedor estava me ouvindo com
uma cara meio dura. Perguntou:
� Dom Pedro Dinis Quaderna, isso tudo que o senhor contou
agora � verdade, mesmo, ou � �estilo r�gio�?
� Bem, Sr. Corregedor, como eu j� disse, soube de todas essas
hist�rias por interm�dio de terceiros, e, �como dizia a vaca quando
come�ou a correr atr�s de Mestre Alfredo, quem conta um conto
aumenta um ponto�. Assim, n�o seria nada demais que eu, por minha
vez, aumentasse meu ponto, pois �, mesmo, uma caracter�stica das
Epopeias essa de seu fogo vir sempre coberto de fuma�a. Mas, como
�n�o h� fuma�a sem fogo�, o senhor tenha paci�ncia, �compre cinco
tost�es de c�-te-espero� e, no im, com a arg�cia jur�dica e gavi�nica
que todos lhe reconhecem, poder� decifrar, com os elementos que estou
lhe fornecendo, a estranha desaventura de Sin�sio, O Alumioso, e
Quaderna, O Decifrador, na Demanda Novelosa do Reino do Sert�o!
Uma explica��o, por�m, preciso lhe dar. J� lhe contei que meu Pai me
transmitiu sua enorme admira��o por Jos� de Alencar. Foi exatamente
quando eu come�ava a aprender com meu Padrinho, Jo�o Melch�ades, a
�Arte da Poesia�. Eu j� estava furiosamente entregue � leitura dos
folhetos, quando li O Guarani. Por isso, entendi logo que, na hist�ria de
Jos� de Alencar, havia um Rei, Dom Ant�nio de Mariz, acastelado no seu
Solar do Paquequer; uma Princesa loura chamada Ceci; outra morena,
chamada Isabel; havia um escudeiro e uma guarda de Doze Pares de
Fran�a do Cord�o Azul, comandada por �lvaro de S�. Havia um Pr�ncipe
mouro-vermelho, Peri, e os Tapuias-aimor�s eram uma esp�cie de
Cavaleiros descal�os e Arqueiros, pertencentes ao Cord�o Encarnado.
Depois, instru�do por Clemente e Samuel, vi Joaquim Nabuco escrever
sobre Jos� de Alencar, dizendo: �Cec�lia � um tipo mal esbo�ado, uma
crian�a que devia fechar melhor a janela � noite (para n�o estar

atraindo a sensualidade brutal de Loredano com seus encantos).
Ningu�m sabe se ela amou, ou n�o, �lvaro de S�, nem por que amou
Peri. Esse Anjo est� muito perto de ser um monstro, apesar de seus
grandes olhos azuis. Cec�lia tinha dezoito anos quando se resolveu a
acompanhar o Tapuia de tez de cobre para viver com ele no Deserto.
Todos querem saber o que vai ser da ilha de Fidalgos que se abandona
assim a um selvagem, apesar de todo o rubor que lhe tinge de uns
longes cor-de-rosa as linhas puras do colo acetinado. Sua prima Isabel
tem mais pudor, talvez, mas � de uma sensualidade desenfreada.
Mesmo quando ela tinha somente na isionomia a alma do amor, era j�
de uma sensibilidade tal que o leve ro�ar da espiguilha no seu colo
aveludado (o da outra era acetinado!) causava-lhe sensa��es
voluptuosas. Isabel � uma bacante. O Sr. Jos� de Alencar s� pensou, ao
criar essas duas, em formar esse eterno contraste de suas hero�nas, as
morenas e as louras.� Joaquim Nabuco dizia, ainda, que na obra inteira
de Jos� de Alencar s� se via era essa eterna e cansativa oposi��o, �o
Corpo com seus instintos de Fera, e a Alma, com sua castidade. O
Jumento e o Anjo alternam-se a cada instante, as duas naturezas, a
animal e a divina�. Depois que li tudo isso, Sr. Corregedor, tive uma
ilumina��o! Vi que, na hist�ria de Sin�sio, havia uma Princesa loura
como Ceci, que era Clara, e outra morena como Isabel, que era
Genoveva Moraes. E tomei conhecimento doutra Princesa cuja biograia
� narrada tamb�m por Jos� de Alencar: � L�cia, ou Luc�ola. O maior
encanto, o maior enigma dessa mulher � que ela tem duas naturezas
separadas, a de Anjo casto e a de Jumenta no cio. Quando se revelava,
nela, a natureza de Anjo, diz Jos� de Alencar que �tudo era branco e
resplandecente como sua fronte serena: por vestes, trazia somente
cassas e rendas, por joias, somente p�rolas; nem uma ita, nem um aro
dourado manchava essa n�tida e c�ndida imagem�. Mas, quando
aparecia a natureza de Jumenta no cio, tudo era diferente. O narrador
de sua hist�ria, que a possuiu uma vez, fala disso assim: �O penteador
de veludo voou pelos ares, as tran�as luxuriosas dos cabelos negros
rolaram pelos ombros, arrufando-se ao contato da pele veludosa, e eu vi
aparecer aos meus olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no
esplendor de sua completa nudez, a mais formosa bacante que
esmagara outrora, com o p� lascivo, as uvas de Corinto. A posse foi
del�rio, convuls�o de prazer t�o vivo que, atrav�s do imenso deleite,

traspassava-me uma sensa��o dolorosa, como se eu me revolvesse no
meio de um sono opiado sobre um leito de espinhos. O prazer a estorcia
em c�ibras pungentes. Todo o vinho tinha lhe passado pelos l�bios.
Agitando as longas tran�as negras, retraiu os rins num requebro
sensual, imitando os mist�rios de Lesbos e o rito afrodis�aco das
virgens de Pafos. Mas seu amor era como certas plantas vorazes � a
urze das paix�es, o cacto selvagem dos nossos campos.� Est� vendo, Sr.
Corregedor? Al�m disso, Jos� de Alencar esclarece que, quando estava
assim, como Asna selvagem no cio, as roupas de Luc�ola eram
inteiramente diferentes da cassa virginal e branca. Usava ela �um
vestido escarlate, com largos folhos de renda preta, bastante decotado
para deixar ver as suas belas esp�duas. J�bilo sat�nico dava a essa
estranha criatura ares fant�sticos entre as roupas de negro e escarlate�.
Ora, apesar de toda a genialidade de Jos� de Alencar, Joaquim Nabuco
descobriu nele um grave defeito. Diz Nabuco, a respeito dessa
contradi��o de Luc�ola, que Jos� de Alencar n�o tinha �o direito de dar
uma vida independente, lorescente de sensualidade, ao corpo, e uma
outra, de virgindade e pureza, � alma�. Foi a� que eu vi que podia ganhar
minha luta com Jos� de Alencar, porque, com a hist�ria de Sin�sio, eu
poderia ser muito mais completo do que ele, por causa de Heliana.
Clara era como Cec�lia, Genoveva como Isabel: uma, loura e ang�lica, a
outra, morena, ardente e no cio. Mas Heliana juntava tudo isso, n�o em
contradi��o e separadamente, Sr. Corregedor, e sim em unidade, unindo
a Verbena, a urze, a urtiga, o Vinho, o mel das abelhas e o amor felino da
On�a jovem e f�mea, isto �, o negro-escarlate da Paix�o e a cassa da
Pureza, ambas ardentes. De fato, pelo que pude ver e adivinhar de seu
amor por Sin�sio, assim era Heliana! E eu, tendo conhecido Heliana
como menina-e-mo�a e, depois, como mo�a e mulher, poderia dizer
dela tudo o que Jos� de Alencar disse de tantas outras, sempre
separando em muitas o que, em Heliana, era espanto e unidade, fogo e
canto do sangue. � que, quando eu e Sin�sio vimos pela primeira vez
aquela que seria a Dama e princesa de sua vida, ela estava com doze
anos, a mesma idade da irm� de Luc�ola. Era um fruto verde, como a
Em�lia de Diva. Depois, �aveludada pela pubesc�ncia�, despertava nela a
mulher, na �atitude da cor�a arisca�, assim como Gustavo p�de v�-la
naquele dia, perto do Mar. O cabelo dela era como se tivesse sido
formado somando-se o louro de Ceci e Clara com o escuro de Luc�ola e

Isabel, para dar num cabelo castanho-claro, ino, macio, dourado. Seu
amor era �vinho, fruto e chamas embebidas em mel�, e era da� que se
originava tamb�m a penugem macia e rara que lhe dourava as coxas
�alvas mas amorenadas pelo Sol�. Assim, tudo o que lhe disse � verdade
e pode icar documentado em seu inqu�rito. Mas �, tamb�m, estilo
r�gio, e vai me servir, na minha Epopeia, para eu ser mais completo,
modelar e de primeira classe do que Jos� de Alencar!
� Muito bem! V�, ent�o, adiante, a respeito dos outros
acontecimentos importantes daquele dia!
* * *
Continuei:
� Bom, para contar o que aconteceu ainda de mais importante
naquela V�spera de Pentecostes de 1935, devo agora seguir os passos
de Ar�sio desde o momento em que ele soube da chegada de seu irm�o
Sin�sio na Vila. Como j� disse, Ar�sio, desde a noite de sexta-feira,
estava desaparecido, ausente da casa dos Moraes, onde se hospedara.
Ningu�m sabia onde ele se encontrava, o que, ali�s, era comum suceder,
de modo que ningu�m estranhou isso, a princ�pio. Ar�sio �s vezes
metia-se no mato durante dias e dias, ca�ando, o que fazia com uma
obstina��o e uma ferocidade terr�veis. �s vezes, viajava
repentinamente, a cavalo, ou ent�o de carro ou na carruagem que fora
de seu Pai e que ele, estranhamente, conservava em uso, quando j�
ningu�m andava mais assim, aqui na Vila. Nesse �ltimo caso, quando a
viagem era feita de carruagem, podia-se, por�m, saber que ele ia para
uma velha casa arruinada, situada num cercado solit�rio e selvagem da
fazenda dos Garcia-Barrettos. Outras vezes, em sa�das que davam o que
falar, na rua, durante dias e dias, Ar�sio organizava grandes �festas
saturnais e orgi�sticas� na minha �Estalagem � T�vola Redonda�. As
�saturnais� tinham sido batizadas assim pelo Doutor Samuel Wan
d�Ernes, que sempre participava delas para beber vinho � custa de
Ar�sio, o qual, nessas ocasi�es, entregava-se �s fantasias mais
desvairadas, �s liberalidades mais extravagantes, �s mais
�enlouquecidas e delirantes dissipa��es�, como dizia o genial Bardo
brasileiro �lvares de Azevedo. Era perigoso contrari�-lo nesses
momentos. N�o era aconselh�vel nem ao menos icar nas suas

proximidades, porque Ar�sio, inesperadamente e sem motivo, agredia,
�s vezes, o primeiro que aparecia, simplesmente porque n�o tinha
gostado de um olhar insistente e curioso ou interpretara mal um gesto
inocente e descuidado da pessoa. Mais de uma vez, Sr. Corregedor, eu o
vi quebrar os m�veis da �T�vola Redonda�, atirando-os contra as
pessoas ou contra as paredes!
� E o senhor n�o protestava n�o?
� N�o senhor! Primeiro, porque seria arriscado. Mesmo
gostando de mim como gostava, l� � maneira dele, num momento como
esses Ar�sio podia me desconhecer, e eu estaria gravemente ferido ou
morto em dois tempos! Depois, ele pagava sempre em dobro,
generosamente, todos os preju�zos que me dava. Finalmente, como,
mesmo nos dias de �saturnal� comum e sem quebra de m�veis, ele
gastasse � larga, dando-me bons lucros, eu n�o me incomodava
absolutamente com suas viol�ncias.
Margarida cochichou qualquer coisa no ouvido do Corregedor
que se voltou para mim, dizendo:
� Dona Margarida est� falando aqui que foi por interm�dio de
Ar�sio que o senhor montou essa casa-de-recurso e tavolagem! �
verdade?
� �, sim senhor! Ar�sio sempre demonstrou por mim, em todos
os dias de sua vida, uma estima inalter�vel, uma estima que ele,
estranhamente e diferentemente de tudo o que se esperava dele, n�o
me retirava, nem mesmo quando eu cometia certos atos e tomava
certas posi��es que, em outro qualquer, ele consideraria crimes
imperdo�veis. Ele sempre achou gra�a em mim, que fui seu
companheiro mais velho, na �On�a Malhada�.
� � verdade que, depois de aparecer o diss�dio entre Ar�sio e o
Pai dele, o senhor tomou o partido de Sin�sio contra o do irm�o mais
velho?
� �, sim senhor, e esse foi um dos tais atos de que falei h�
pouco. Ar�sio tinha uma profunda avers�o, um �dio cerrado, intenso e
irreconcili�vel pelo Pai e pelo irm�o mais mo�o! Naquele s�bado, com o
sol j� descambando para o poente, enquanto o Povo sertanejo,
sarapantado com tudo o que acontecera, come�ara a se aglomerar
diante da velha casa dos Garcia-Barrettos onde Sin�sio se fechara
depois do incidente do cabra, o Bispo de Cajazeiras, Dom Ezequiel

Veras, entrou em nossa Vila, passando, por�m, quase despercebida a
sua chegada, por causa do tumulto que dominava a rua. Chegou o Bispo
e dirigiu-se logo para a Casa Paroquial, entrando pelos fundos da
moradia do nosso velho Vig�rio, Padre Renato, var�o encanecido e
endurecido, desses de virtude antiga, implac�vel e sem contempla��es.
O Padre, que tinha mandado um mensageiro esperar o Bispo, a im de
que este j� entrasse na Vila sabendo tudo o que estava acontecendo,
trancou-se logo com Dom Ezequiel, a quem narrou, agora com todos os
pormenores, o que sucedera at� aquele momento. A entrevista do
Vig�rio com Dom Ezequiel foi secreta, n�o assistindo a ela nenhum dos
Padres da comitiva do Bispo nem os dois Padres jovens que ajudavam o
nosso virtuoso P�roco em seu trabalho entre n�s, isto �, o Padre Daniel
e o Padre Marcelo.
� � verdade que o Padre Renato tinha diiculdade de se
entender bem com esses dois auxiliares dele?
� �, sim senhor!
� De qual dos dois ele gostava menos?
� Acho que era do Padre Daniel, que era o mais cheio de ideias,
o mais agitado, pelo menos no come�o!
� Anote isso, Dona Margarida, � muito importante! Pode
continuar, Dom Pedro! � disse o Corregedor, j� denotando uma
familiaridade que me desagradou por um lado, mas que por outro me
mostrou como o �Dom� j� se tornara corriqueiro para ele, ligado ao meu
nome.
Continuei:
� A conselho do Padre Renato, combinou-se ent�o que s�
fossem avisadas da chegada de Dom Ezequiel �as pessoas ricas, mais
esclarecidas e mais respons�veis, da Vila�. De uma em uma,
cuidadosamente, a im de n�o se chamar a aten��o do Povo, deveriam
elas ser convocadas para a Casa Paroquial. Foram logo encarregados
dessa miss�o delicada o Sacrist�o, Jos� Deda, e Si� Maria Cabocla, uma
mulher que, por seu agarrado com os Padres da nossa Vila, era
chamada zombeteiramente, ora de �A Padreca�, ora de �A Sacrist��.
Passando da maneira menos notada que fosse poss�vel, o Sacrist�o e a
Padreca deveriam ir �s casas escolhidas e determinadas por Padre
Renato, recomendando �s pessoas convocadas que viessem de uma em
uma, pelos lados da Rua de S�o Jos� e da Pra�a da Feira, de modo a

evitar as proximidades da Rua �lvaro Machado e da Pra�a das
Cavalhadas onde se encontrava Sin�sio. Como o senhor pode imaginar,
para a Aristocracia e a Burguesia urbana taperoaenses a chegada de
Dom Ezequiel foi um desafogo. Todos, agora, sentiam-se meio
protegidos, e a sensa��o geral de al�vio foi resumida e expressa pelo
Comendador Bas�lio Monteiro com a frase de que �O barco, com um
bom timoneiro � proa, signiicava meio caminho andado,
principalmente agora, quando todos pressentiam que havia, j�, quem
velasse nas trevas e indicasse, pela antiga lanterna da autoridade, a
entrada segura para o porto�. Assim, Sr. Corregedor, com as maiores
cautelas, escondidas do Povo, foram se reunindo na Casa Paroquial as
pessoas mais poderosas da nossa terra. Chegou o Comendador Bas�lio
Monteiro, que tirara suas vestes suntuosas de Presidente da Irmandade
das Almas para ser menos notado. Chegou a nossa querida Dona
Carmem Gutierrez Torres Martins, ainda com as roupas de Presidenta
Perp�tua da �Vidacasta�, acompanhada por seu marido, o velhinho
Severo Torres Martins, e aqui por nossa cara Secret�ria, Margarida, ilha
dela, que bem pode contar essa parte da reuni�o.
O Corregedor voltou-se para Margarida e indagou:
� � verdade, isso? A senhora compareceu, mesmo, a essa
reuni�o?
� Compareci, Doutor! � disse Margarida, baixando os olhos e
pondo-se vermelha, pois j� sabia que eu ia contar ao Corregedor tudo o
que se passara com o Pai e a M�e dela na Casa Paroquial.
O Corregedor voltou-se de novo para mim:
� Est� bem! Mas, mesmo Dona Margarida tendo ido l�, continue
contando, voc� mesmo! Quero saber de tudo � atrav�s de suas vers�es e
opini�es! Depois, se eu achar necess�rio, vou acare�-lo com as outras
pessoas implicadas ou citadas no inqu�rito!
Respondi, seguro:
� Quem n�o deve, n�o teme, Sr. Corregedor! O que eu estou lhe
contando � a pura express�o da verdade, e, desta vez, nem Margarida
pode me desmentir nem duvidar do que digo, porque foi a M�e dela
quem me contou tudo! Mas, como eu vinha dizendo: chegou o Coronel
Francisco Bezerra, homem pertencente a uma das mais antigas e
idalgas linhagens do Sert�o do Serid� do Rio Grande do Norte. Chegou
o Coronel Francisco Fernandes Pimenta, homem pertencente a outra

poderosa e grande fam�lia, espalhada pelos sert�es do Sabugi e do
Cariri. Chegou o Coronel J�lio Motta, da antiga linhagem dos Mottas, de
Limoeiro. Chegou o Coronel Pedro de Farias Castro. Chegou o Coronel
Joaquim Coura, de fam�lia pertencente �s hostes do velho Partido
Liberal, do tempo da Monarquia. Chegou o Coronel Jos� Carneiro de
Queiroz, com seu irm�o, Manuel, ambos correligion�rios pol�ticos do
Coronel Coura. Chegou o Coronel Liberalino Cavalcanti de Albuquerque,
parente de Clara e Heliana pelo lado materno. Chegou o Coronel
Jocelino Villar de Carvalho, Chefe das antigas hostes monarquistas do
Partido Conservador. Chegou o Coronel Deusdedit Villar de Carvalho,
primo do outro, Deusdedit Villar de Ara�jo, mas seu advers�rio pol�tico
e mais conhecido, na rua, pelo nome de sua fazenda � Deusdedit do
Sete-Estrelo. E outros e outros, que seria fastidioso citar. Vossa
Excel�ncia, por�m, n�o estranhe que, na lista, eu tenha deixado de me
referir ao Prefeito Abdias Campos, ao Presidente do Conselho Al�pio da
Costa Villar, ao Professor Clemente e ao Doutor Samuel: apesar de
poderosos, eram, todos quatro, meio suspeitos ao Padre Renato, uns
por �anticlericalismo�, outros por �indiferen�a religiosa� e outros, ainda,
por �demasiada estranheza nos modos e no comportamento�. � medida
que chegavam, o Padre Renato, seus auxiliares e os Padres da comitiva
do Bispo iam atendendo a um e a outro como podiam, dentro das
acomoda��es, meio monacais, meio �casa de solteiro�, da Casa
Paroquial. Esperava-se a chegada do �ltimo convidado, que tardava um
pouco porque era o que morava mais longe. Enquanto o esperavam,
estabelecera-se, na sala, aquele tipo de conversa��o, meio abafada mas
animada, que precede o momento realmente importante das reuni�es
� casamentos, enterros etc. Num desv�o de janela, conversavam Dona
Carmem Gutierrez Torres Martins e o Comendador Bas�lio Monteiro.
Margarida levantou os dedos da m�quina, e falou com voz
opressa:
� Doutor, o senhor pro�ba esse homem de continuar falando!
O Corregedor, surpreso, voltou-se para ela:
� Parar? Por qu�?
� Isso que ele quer contar, agora, n�o tem interesse nenhum,
para o inqu�rito!
� Ah, n�o! � protestei. � Tem interesse, e muito! Se eu n�o
contar tudo, depois o Doutor, a�, vai dizer que eu estou mal

intencionado, escondendo leite, feito vaca sem-vergonha! N�o senhora,
de jeito nenhum! Ou eu conto tudo, ou tomam nota de tudo, ou eu n�o
assino meu depoimento, n�o tem quem me fa�a! Doutor, eu tenho ou
n�o tenho o direito de contar tudo o que considere importante?
� Tem! � disse o Corregedor. � De que se trata, Dona
Margarida? � algo inconveniente? Quer que eu chame outra pessoa para
anotar o inqu�rito?
Margarida curvou-se, vencida:
� N�o senhor, deixe! � melhor, mesmo, que seja eu quem ou�a e
anote tudo!
� Pois ent�o continue, Bibliotec�rio Quaderna! Quanto �
senhora, Dona Margarida, n�o se incomode n�o: vou apurar tudo e
todas as contas dessa gente v�o ser ajustadas! V�, fale, Sr. Quaderna! �
disse o Corregedor, voltando ao tom cortante do in�cio e tirando-me o
t�tulo de �Dom� que j� tinha se acostumado tanto a me conceder.
Continuei, com um suspiro:
� O marido de Dona Carmem e Pai, aqui, da nossa Margarida,
isto �, Severo Torres Martins, o velhinho arrumado e bonito de quem j�
falei a Vossa Excel�ncia, estava perto da mulher dele e do Comendador
Bas�lio Monteiro, mas n�o prestava aten��o nenhuma ao que os dois
diziam. Limitava-se a babar, lan�ando, de vez em quando, um olhar
impaciente para os bolos e doces que estavam na saleta anexa,
preparados desde a manh�, pelas m�os das beatas, para a chegada do
Bispo. O velhinho n�o estava interessado em nada, a n�o ser nesses
doces. Esperava, contido mas meio ind�cil, desde o meio-dia, que
acabassem com aquela ma�ada de Cavalhadas, festejos, discursos e
conversas in�teis, para que ent�o ele se lan�asse ao que
verdadeiramente importava. Segundo Dona Carmem me contou depois,
aqui a nossa Margarida, junto dele, vigiava-o com express�o ansiosa e
atenta, temerosa que estava de que ele praticasse alguma coisa �que
talvez cobrisse a fam�lia inteira de vergonha�. Ali�s, aproveito a
oportunidade para assegurar a Margarida que n�o havia raz�o
nenhuma para esses temores dela de que o Pai �izesse vergonhas �
fam�lia�: aqui na Vila, todos n�s gost�vamos muito do velhinho Severo
Torres Martins, e cont�vamos, uns aos outros, as gra�as dele, mais ou
menos como Pais afetuosos ou irm�os mais velhos contam as
traquinagens do ca�ula. Ainal de contas, Sr. Corregedor, todos n�s

conhec�amos a situa��o surgida entre ele e a mulher! Dona Carmem
Gutierrez era ilha de um rico �corretor de a��car� da Para�ba, homem
que, depois de uma juventude rica e ociosa, entrara em decad�ncia
inanceira. O casamento de Dona Carmem com o rico Fazendeiro
sertanejo Severo Torres Martins � naquele tempo com 45 anos e trinta
anos mais velho do que ela � tinha sido a �nica solu��o encontrada
para a ru�na familiar dos Gutierrez. Dona Carmem, agora, em 1935, era
mulher de 40 anos. Usava, ainda, as modas e os atavios do tempo em
que fora mo�a. Era magra, de pernas inas e arqueadas. Usava uma
franja que lhe vinha at� os olhos. O resto dos cabelos, pretos e estirados,
cortados � nazarena, ladeavam-lhe o rosto formando dois arcos negros
que, partindo do alto da cabe�a � onde se repartiam por uma risca �,
vinham at� o meio das bochechas. Tinha o rosto e todo o corpo inos e
magros, os olhos grandes, pretos e meio aboticados. E, como os bra�os
eram, tamb�m, inos e arqueados, ladeando o busto magro, Dom
Eus�bio Monturo, homem de l�ngua solta e irreverente, dizia que o
enorme medalh�o que Dona Carmem fazia pender sempre do pesco�o
de uma longa corrente de prata destinava-se a indicar �s pessoas se ela
estava de frente ou de costas. Eus�bio costumava acrescentar: �Aquela
mulher � toda entre par�nteses! Tem a cara entre par�nteses, por causa
do cabelo. Tem o corpo entre par�nteses, por causa dos bra�os de
macaco raqu�tico. E, por causa das pernas inas, cabeludas e meio
arqueadas para dentro, tem, at�, a perseguida entre par�nteses!�
O Corregedor deu um salto da cadeira e, meio estuporado, sem
saber bem o que dizia, gritou para Margarida:
� Pra cadeia! Preso! Est� preso!
Margarida assombrou-se um pouco, pensando que aquilo era
com ela. Perguntou, cautelosa:
� Pra cadeia? Preso? Quem?
� Ele, � claro! � rugiu o Corregedor. � Ele, o �Dom�! Est�
preso! V� chamar os soldados, Dona Margarida!
Apesar dessas palavras amea�adoras do Corregedor, eu estava
tranquilo. Sabia que Margarida n�o suportava a M�e, motivo pelo qual
n�o icaria verdadeiramente ofendida pelo que eu dissera. Por outro
lado, quanto ao Pai, ela quereria evitar esc�ndalos maiores. Eu calculara
exatamente at� onde podia ir, e, de fato, n�o me enganei. Sem

demonstrar avers�o maior nem menor do que aquela que tinha
comumente por mim, ela interveio:
� Deixe isso pra l�, Doutor! Se esse homem for preso, vai haver
esc�ndalo; e, mesmo, como eu j� disse, essas coisas n�o me atingem! O
que eu quero saber � se isso que ele disse interessa para o inqu�rito ou
n�o, se eu anoto ou n�o!
� Anote, anote! Serve, pelo menos, para dar uma ideia do
car�ter desse homem!
� Do meu, n�o! � protestei. � Do de Dom Eus�bio Monturo,
que foi quem disse esses disparates! Eu, por mim, nunca falei mal de
Dona Carmem, que era minha amiga e tamb�m nossa companheira, nas
reuni�es e cavaqueiras liter�rias da Biblioteca, assim como
colaboradora da p�gina liter�ria e charad�stica que eu mantenho na
Gazeta de Tapero�!
� � verdade, isso, Dona Margarida? � perguntou o Corregedor.
� Isso, o qu�?
� Isso de sua M�e ser intelectual e colaboradora do jornal desse
sujeito!
� �, Doutor Juiz! Minha M�e tinha essas manias liter�rias, que
trouxe da Para�ba, e alguns esp�ritos perversos daqui exploravam essa
fraqueza dela!
� O depoente era um desses?
� Era o Chefe! � disse Margarida com ar feroz.
� N�o se incomode n�o, que o caf� dele est� se coando! � falou
o Corregedor, com ar de quem assumia um compromisso sagrado,
apesar do ditado que deixara escapar. � Pode continuar, Sr. Pedro Dinis
Quaderna!
� Muito bem, Excel�ncia! Como eu ia dizendo: apesar desses
atributos �sicos a que j� me referi, Dona Carmem usava aquele tipo de
saia curta e blusa folgada na cintura e apertada nos quadris, ao modo
de 1920. Costumava usar, tamb�m, um decote generoso que descobria o
come�o e o meio do busto magro, sempre protegido, em parte, pelo
enorme medalh�o do qual falava Dom Eus�bio Monturo e que pendia
da corrente de prata, pousando no lugar em que, normalmente, estaria
come�ando o rego dos peitos, caso isso, nela, existisse um pouco mais.
Era, talvez, por causa dessas roupas ousadas que lhe aconteciam tantas
aventuras, ou, melhor, que ela sempre escapava �por um triz� de ser

v�tima de alguma armada. Raro era o dia em que, saindo �s ruas da
nossa Vila, t�o pacatas para as outras mulheres, Dona Carmem n�o
chegasse em casa, ou na Biblioteca, contando um caso terr�vel que
�quase� lhe sucedera. Aparecia sempre algum desconhecido, algum
sertanejo bronco ou homem de maus costumes que a seguira e teria,
mesmo, atentado contra seu pudor se ela n�o tivesse �tomado, a tempo,
provid�ncias t�o en�rgicas�. Outra caracter�stica importante da
personalidade de Dona Carmem � que ela, a� por 1919 ou 20, izera,
com seu marido, pela Europa, uma viagem que, segundo o Professor
Clemente, �n�o havia jeito de prescrever�. A todo momento, essa viagem
� Europa era invocada como apoio para as opini�es de Dona Carmem
em casos de bom gosto, de teatro, de m�sica, de moda e de literatura.
Pois bem: naquela noite, ela conversava com o Comendador Bas�lio
Monteiro. De vez em quando, curvava-se profundamente, num gesto
que lhe era habitual e que, conforme a necessidade, indicava, ora a
profunda dor de que ela estava possu�da ante uma comunica��o
dolorosa feita pelo interlocutor; ora um espanto enorme e mudo; ora
uma v�nia de respeito apesar das discord�ncias que ela se reservava
sobre as opini�es de quem falava; ora o riso ante uma �sa�da de
esp�rito�, um riso t�o forte e convulsivo que ela n�o tinha for�as para
suport�-lo na posi��o vertical. Nesses momentos, os homens que
tinham o privil�gio de fruir da companhia de Dona Carmem
costumavam, por mera curiosidade cient�ica, espichar o pesco�o e os
olhos, tentando ver alguma coisa do que existia � ou n�o existia �
abaixo do decote, pois, em tais momentos, � claro, o vestido se afastava
do busto, deixando ver as profundezas. Infelizmente, por�m, no
momento exato, Dona Carmem costumava apertar o medalh�o contra o
peito com a m�o espalmada, num gesto que parecia um mea culpa de
Padre, em hora de Missa, de modo que, assim, ocultava da vista dos
curiosos todas as surpresas que o vestido cobria.
� Deixe esses pormenores de lado e volte � hist�ria � disse o
Corregedor severamente.
Obedeci:
� Quem falava, agora, ali, na sala de visitas da Casa Paroquial,
era o Comendador Bas�lio Monteiro, e o assunto era, como n�o podia
deixar de ser, o important�ssimo sucesso da chegada, � nossa Vila, de
Sin�sio, ressuscitado e montado em seu cavalo branco.

� �Eu nunca esperaria um acontecimento daqueles, minha cara
Dona Carmem!� � dizia o Comendador. � �Confesso � senhora que,
apesar de ser o homem ponderado que a senhora sabe, estive a ponto
de ter um del�quio! Vou lhe dizer uma coisa: fatos como esse s�
acontecem aqui, porque, infelizmente, este nosso Brasil � um Pa�s
desgra�ado! Num Pa�s decente, num Pa�s civilizado, como a Alemanha
ou os Estados Unidos, uma coisa dessas n�o acontece, porque o
Governo pro�be e toma, logo, todas as provid�ncias!�
� �Sim, foi tudo t�o inesperado!� � disse Dona Carmem,
acentuando a frase com o tom intelectual da revista Fronteira, curvando
o peito e quase mostrando os ditos, daquela vez.
� �Qual foi a rea��o da senhora?� � perguntou o Comendador,
espichando os olhos no momento exato em que Dona Carmem
interpunha o medalh�o entre os caro�os magros do peito e o rosto do
homem, ansioso de curiosidade frustrada.
� �Ah, Comendador, n�o lhe conto! O senhor ainda n�o soube de
nada?�
� �N�o!�
� �� poss�vel? Como se explica isso? N�o lhe contaram a
desagrad�vel aventura que se passou comigo n�o?�
� �N�o senhora, Dona Carmem! Eu n�o soube de nada,
absolutamente de nada!�
� �Pois vai saber agora mesmo, meu caro Comendador! Eu
estava, como o senhor sabe, no Palanque, quando aqueles homens
esquisitos soltaram as feras enjauladas no meio da Pra�a e come�ou o
rebuli�o! Senti uma fraqueza nas pernas, mas vi que, se desmaiasse, as
On�as me comeriam, pelo que resolvi n�o desmaiar! Da� por diante, n�o
sei mais, com exatid�o, como as coisas se passaram: n�o sei se me
tiraram do Palanque, meio desmaiada, n�o sei se sa� sozinha, n�o sei se
corri, n�o sei se me empurraram por causa do p�nico geral. O que eu sei
� que, quando dei acordo de mim, estava no beco que sai da Pra�a,
parada, perturbada, imobilizada pelo terror, como acontece nos
pesadelos, e sem saber que provid�ncia tomasse para escapar do
perigo. De repente, eu me senti agarrada por tr�s, na altura dos quadris,
ou, melhor, pela cintura e por m�os que, habituada como sou a essas
tentativas, vi logo que n�o podiam ser de homem! Ali�s, para ser mais
precisa, vi logo que aquilo n�o era, de jeito nenhum, m�o de gente!

Apavorada, me virei para tr�s. Sabe o que era que estava me
agarrando?�
� �Era uma On�a!� � disse o Comendador, com os olhos
brilhando pela excita��o da hist�ria.
� �N�o, n�o era n�o, Comendador, e foi disso que me admirei!
Naquele momento, ali, naquele lugar, a dois passos do local onde
tinham soltado os bichos, o l�gico, o natural, era que fosse uma On�a.
Mas n�o era n�o, era um Cachorro! Um cachorro grande, pardo,
esquisito, mas um cachorro! Fiquei apavorada e n�o sei, mesmo, se
acharei palavras para lhe contar o que se passou da� em diante!�
� �N�o, conte! Fique � vontade, Dona Carmem! O que foi que
aconteceu? O cachorro tentou mord�-la?�
� �N�o, ele n�o tentou me morder! Foi tudo muito esquisito,
uma coisa muito estranha! Quando eu me virei, o cachorro tinha se
agarrado em minha cintura com as patas dianteiras. As patas traseiras
estavam no ch�o, e o senhor n�o imagina a situa��o embara�osa em que
iquei quando, de repente, ele come�ou a fazer, com as ancas, uns
movimentos estranhos em dire��o �s minhas pernas e aos meus
quadris! Ficou assim um bom peda�o de tempo, sem me soltar mas
tamb�m sem me morder, e eu n�o sabia quais eram, na verdade, as
inten��es dele, ali, com aquela posi��o e aqueles movimentos
estranhos! O pior � que, apavorada, eu n�o conseguia reagir nem me
mover do lugar! S� depois que ele me soltou por sua pr�pria vontade �
que consegui reunir for�as para fugir!�
� �E o cachorro absolutamente n�o mordeu a senhora, Dona
Carmem?� � perguntou o Comendador, curioso.
� �N�o, n�o me mordeu! Olhe, Comendador, eu lhe digo uma
coisa: j� tenho tido que tomar provid�ncias en�rgicas contra v�rias
tentativas estranhas de homens de v�rios tipos, porque n�o sei o que �
que eu tenho que sou um verdadeiro visgo para atrair ousadias dessa
gente! Mas, de todos esses momentos desagrad�veis, confesso que este
de hoje foi o mais estranho e embara�oso de todos! A coisa foi a tal
ponto que, quando ele me soltou, meu primeiro pensamento foi:
Atrevido desse jeito, esse cachorro n�o pode ser daqui, de jeito nenhum!�
� �A� � que a senhora se engana, Dona Carmem!� � contestou o
Comendador. � �A senhora fala assim, mas � porque ainda est�
pensando nos cachorros sertanejos do nosso tempo, uns cachorros

mais educados e respeitosos do que esses cachorros perdidos, de hoje!
Tudo, agora, � um im de mundo, minha senhora Dona Carmem, e os
cachorros de hoje em dia n�o respeitam mais ningu�m, s�o, todos,
inluenciados pelo comunismo! A senhora n�o se admire mais de nada,
porque, do jeito que as coisas v�o, daqui a pouco at� os cachorros
sertanejos menos conceituados v�o andar por aqui no maior dos
atrevimentos! Se ainda fosse um cachorro de respeito, um cachorro
civilizado, como os da Alemanha, ainda ia! Mas um cachorro reles
desses, um cachorro qualquer, de p�-de-serra, sentir-se no direito de se
escanchar nas cadeiras das senhoras, a� n�o, � demais! E a senhora vai
ver, isso � somente o come�o! D�agora em diante, tudo vai caminhar de
mal a pior! Com esse impostor perigoso que chegou aqui, hoje, com
essa ciganagem, com essa negralhada ladrona que lhe serve de
acompanhamento, a desordem vai ter tal impulso, vai aumentar tanto,
que, daqui a pouco, uma senhora de respeito n�o vai mais poder sair
para a rua sem que os cachorros atrevidos faltem com o respeito devido
a ela! Isso, com os cachorros: das pessoas ent�o, n�o quero nem falar! A
senhora sabe que o molec�rio da Vila est� todo assanhado? Soube o que
se passou, hoje � tarde, com o nosso fot�grafo, Seu Siqueira, logo depois
da chegada desse rapaz perigoso que ningu�m sabe quem �, mas que
est� cercado pela negralhada cigana?�
� �N�o, n�o soube de nada!� � disse Dona Carmem, aboticando
ainda mais os olhos aboticados, para demonstrar interesse.
� �Pois eu lhe conto! N�o sei se a senhora soube que, logo
depois da chegada do impostor, apareceu na rua, puxado em cima de
um carrinho, o tal do Naz�rio Moura, um velho doido que o pessoal
ignorante daqui tem como Profeta e que come�ou, logo, a gritar
disparates, aumentando a agita��o! Mal ele acabou de gritar suas
sandices � e de ouvir outras tantas de Pedro Cego � foi empurrado de
volta, para fora da Pra�a, por sua ilha, Dina-me-D�i, que � quem serve
de cireneu ao Profeta! Quando eles chegaram perto da venda de Bino, o
tal do Profeta Naz�rio Moura mandou a ilha comprar fumo de rolo para
seus cigarros. A�, um bando de desocupados, assanhados pela chegada
desse perigoso rapaz e cheiados por Jo�o Grilo, um ajudante de
padaria, empurrou o carro de ladeira abaixo. Seu Siqueira estava,
naquela hora, tirando um retrato da velha vi�va, Dona Francisquinha
Gab�o, que estava vestida de preto, de chap�u preto e de v�u preto, com

sombrinha preta incada no ch�o e sentada, muito tesa e bemcomposta,
diante da m�quina-de-retrato, na sala da frente da casa de
Seu Siqueira que, como a senhora sabe, serve de oicina a ele. A senhora
conhece tanto Dona Francisquinha como Seu Siqueira. Sabe que todos
dois s�o muito moucos, de modo que n�o se espantar� pelo fato de,
naquele instante, eles estarem ainda inteiramente alheios � agita��o e �
balb�rdia que tomou conta da nossa Vila! Seu Siqueira � homem s�rio e
ponderado, e tem, como todos n�s, horror a esse ambiente que est�
subvertendo at� os costumes dos cachorros sertanejos! Pois bem:
naquele momento, Seu Siqueira estava, j�, com a cabe�a eniada dentro
da m�quina de fole, equilibrada no trip�. As chapas e o foco estavam, j�,
quase prontos, e ele estava coberto com aquele pano preto dos
fot�grafos. Foi exatamente nesse instante que o carro, impelido
furiosamente de ladeira abaixo, ganhando velocidade e conduzindo o
Profeta que vinha aos gritos, pedindo socorro, bateu no meio-io da
cal�ada e projetou violentamente o tal do Naz�rio Moura para dentro
da oicina de Seu Siqueira. O Profeta caiu com o corpo em cima da
m�quina e com os p�s na cara do nosso honrado correligion�rio, que
caiu no ch�o com a viol�ncia da pancada. Com as pernas reviradas para
o ar, numa situa��o muito desagrad�vel para se icar diante de uma
senhora de respeito, Seu Siqueira, sufocado pela indigna��o e pelo pano
preto, gritou: �Chuva de aleijado! � o comunismo! At� agora, Dona
Francisquinha, ainda suportei essas campanhas do comunismo contra os
cidad�os pacatos, mas chuva de aleijado � demais! Vou me mudar.� E eu
soube, de fontes idedignas, que a resolu��o dele � mesmo inabal�vel:
vai se mudar para Patos, onde o comunismo tamb�m j� est� causando
desordens, mas pelo menos ainda n�o chegou a esse extremo de jogar
chuva de aleijados na cabe�a dos cidad�os ordeiros e produtivos da
sociedade! Agora, veja a senhora, Dona Carmem, se tenho raz�o ou n�o
tenho, quando digo que, com essa negralhada e esses impostores que
invadiram a nossa Vila, isso aqui vai icar, mesmo, um im de mundo!�

� N
FOLHETO LXIX
A Estranha Aventura do Cavalo Concertante
esse momento, Sr. Corregedor, o marido de Dona Carmem e
pai, aqui, da nossa Margarida, o velhinho Severo Torres
Martins, que tinha deixado passar, aparentemente sem ouvilas,
a hist�ria do fot�grafo e a aventura desagrad�vel vivida por sua
mulher, conseguiu iludir a vigil�ncia da ilha. Marcou carreira para a
mesa dos doces e, chegando l�, antes que pudessem impedi-lo, eniou a
m�o no bolo maior, que estava pousado no centro da mesa. Tirou,
assim, um grande punhado do a��car que confeitava o bolo, encheu a
boca e, ao mesmo tempo, com a maior destreza, meteu outro punhado
de bolinhos menores e past�is-de-nata no bolso. A nossa Margarida,
com medo de esc�ndalo maior, achou melhor, talvez, deix�-lo assim
mesmo, de modo que o velhinho icou na maior das felicidades, junto da
mesa, de boca cheia, mastigando e lambendo os bei�os, com a cara
branca de a��car. Coincidiu que, naquele momento, o Bispo foi
passando por perto de Dona Carmem, que aproveitou a deixa. Outra das
fraquezas dela era apresentar sempre o marido elogiando �o aprumo e
a lucidez perfeita em que ele se encontrava, nos seus setenta anos
fortes e espigados�. Assim, ela falou para o Bispo:
� �Dom Ezequiel, permita que eu beije a sua m�o!� � disse
Dona Carmem, come�ando a se ajoelhar.
� �N�o, n�o se ajoelhe n�o, minha ilha!� � foi dizendo Dom
Ezequiel.
� �Ah, n�o, de modo nenhum! Ajoelhada, fa�o quest�o da
hierarquia e das genulex�es! Vossa Excel�ncia certamente n�o se
lembra de mim, sendo o homem ocupado que � e vendo tantas caras
novas! Sou Carmem Gutierrez Torres Martins, Presidenta Perp�tua das
Virtuosas Damas do C�lice Sagrado de Tapero�, a Vidacasta, como n�s
chamamos! Estive com Vossa Excel�ncia em Patos, numa visita que o

senhor fez l�. Fui a Patos naquela ocasi�o, cheiando a ala feminina da
comitiva de Tapero�, que lhe foi prestar as devidas homenagens.�
� �Ah sim, lembro-me perfeitamente da visita a Patos!� � disse
o Bispo, sem desmentir Dona Carmem, mas tamb�m sem se
comprometer. � �Como vai a senhora?�
� �Vou muito bem, Excel�ncia, e agrade�o a Vossa Excel�ncia o
seu interesse, e a gentileza de se lembrar! Lembrou-se de mim nas suas
ora��es, como lhe pedi? N�o, n�o responda, � uma indiscri��o minha
perguntar isso, s� agora percebo! Mas Vossa Excel�ncia n�o conhece
meu marido, Severo Torres Martins! Olhe, � este aqui! � um homem
admir�vel, Dom Ezequiel, permita que eu tenha a corujice de falar
assim! Severo est� com setenta anos, mas faz gosto! Aprumado, duro,
forte que � uma beleza! E, o que � mais importante, inteiramente l�cido!
Severo, ilhinho, fale aqui com Dom Ezequiel!�
� �Ezequiel? Conhe�o! N�o � o vaqueiro de Ant�nio Villar?� �
disse o velhinho, aproximando-se, lambendo os bei�os sujos de a��car e
com os bolsos atulhados de sequilhos.
� �Filhinho, esse aqui � Dom Ezequiel! Dom Ezequiel, este �
meu marido, Severo Torres Martins!� � disse Dona Carmem,
procurando n�o tomar conhecimento do equ�voco do marido.
� �Muito prazer! Seu criado!� � disse Severo estendendo
educadamente a m�o ao Bispo, de modo correto, se bem que um tanto
ensinado.
� �Severo, beije a m�o de Dom Ezequiel!� � disse Dona
Carmem, tornando-se mais animada � medida que via o marido se sair
bem.
� �Eu? beijar m�o desse vulto? Por qu�? Beijo nada!� � falou
Severo, com um tom displicente mas irme, inteiramente inesperado
ante os modos do come�o. E acrescentou: � �Meu Pai j� morreu: por
que � que eu iria, agora, beijar m�o de barbado? S� beijo se ele me der
um doce!� � concluiu ele, querendo logo aproveitar a oportunidade de
aumentar sua provis�o de sequilhos e past�is.
� O Bispo, Sr. Corregedor, que j� estava come�ando a icar meio
intrigado, riu aliviado, julgando que Severo estava gracejando com o
ditado popular, �n�o fa�o isso nem que voc� me d� um doce�. Dona
Carmem, ou se iludiu tamb�m, ou quis aproveitar o engano do Bispo
para disfar�ar e bater em retirada:

� �Ah, Severo!� � disse ela. � �J� est� voc� com suas
brincadeiras, ilhinho! Severo � assim, Dom Ezequiel, n�o repare os
modos dele n�o! Nos primeiros momentos de cerim�nia, ele ica calado,
mas depois, principalmente se simpatiza com a pessoa a quem est�
sendo apresentado, n�o se cala!�
� Foi pior, Sr. Corregedor! Severo, pensando de novo nos bolos,
deixara de prestar aten��o ao sentido, de modo que s� ouvia, agora, o
zumbido das palavras da mulher. As duas �ltimas soaram em seus
ouvidos como uma palavra s�, sicala, uma palavra que, tocando em
certas coisas, despertou, nele, uma por��o de recorda��es misturadas,
umas do Sert�o, mas a maioria ligada � c�lebre viagem que ele e Dona
Carmem tinham feito � Europa:
� �Sicala?� � indagou ele, pondo-se novamente alerta e vivo. �
�Conheci, era um cavalo! Sicala era o cavalo de sela do Coronel
Queiroga, de Pombal! E o que eu achei mais esquisito era ele ser, ao
mesmo tempo, um cavalo e um teatro! Digo isso porque depois, quando
a gente viajou para a Europa, eu e Carminha, a gente passou numa
cidade da It�lia, e o cavalo do Coronel Queiroga estava l�, com o nome
de Sicala de Mil�o! Eu n�o me lembro direito como era n�o, porque, ali
na Europa, a confus�o � grande! Mas me lembro que era uma coisa
assim: ou era o cavalo que tinha se virado num teatro, ou era o teatro
que era um cavalo que cantava! Sei n�o, a misturada era grande! Mas eu
me lembro bem que Sicala estava l�: n�o me lembro se tinha cabe�a e
rabo, mas tinha frente e fundo, isso tinha! O pessoal entrava pela frente
e sa�a pelo fundo do cavalo, e eu s� me admirava era de que um homem
s�rio e sisudo, como o Coronel Queiroga, de Pombal, deixasse aquele
pessoal estrangeiro tomar essas liberdades com o cavalo de sela dele!
Digo isso, porque, comigo, a coisa � outra! Por fundo de cavalo meu, eu
n�o deixo nem entrar nem sair galego de qualidade nenhuma!�
� �Filhinho, que brincadeiras disparatadas s�o essas?� � disse
Dona Carmem, alita, j� arrependida de ter mexido naquela casa de
maribondos. � �Voc�, t�o respeitoso, t�o s�rio, t�o l�cido, vir com
essas conversas para o nosso Bispo?�
� �Bicho?� � perguntou Severo intrigado. � �E esse vulto
preto, a�, � um bicho? Que bicho � esse, Carminha? � um dos bichos que
soltaram da jaula, agora de tarde? Se �, que diabo de qualidade de bicho

� essa, que usa saia preta? Ser� uma burra preta que fala, como Sicala
cantava? Ou � um macac�o-de-cheiro, vestido de saia?�
� �Filhinho, pelo amor de Deus!� � disse Dona Carmem, mais
morta do que viva.
� �Ah, j� sei o que ele �!� � continuou Severo, sem dar
import�ncia � interrup��o e provando que estivera mais atento do que
se pensara � conversa de sua mulher com o Comendador. � �J� sei que
qualidade de bicho � esse, a�! � um cachorro desses que aparecem de
saia, nos Circos, pulando fogo! Uma vez, passou um Circo aqui, e l� eu vi
um cachorr�o grande, vestido de saia, engra�ado, que pulava uns
arames de fogo! Voc� se lembra, Carminha? E era um cachorro grande,
de saia, quase do tamanho desse tal Ezequiel, a�! Agora, uma coisa eu
lhe digo, Carminha: abra o olho com esse cachorro de saia preta, porque
esses cachorros de Circo s�o espertos e safados como o Diabo! N�o v�
ser esse, a�, o cachorro que fudeu voc�, no beco, hoje de tarde!�
* * *
Aproveitando os dois segundos de estupefa��o do Corregedor,
nobres Senhores e belas Damas que me ouvem, eu disparei, falando na
carreira, para evitar a repreens�o e mesmo a Cadeia que,
infalivelmente, se seguiria, caso eu desse oportunidade a que o espanto
acabasse, come�ando a indigna��o:
� Como Vossa Excel�ncia v�, Sr. Corregedor, o Pai aqui da nossa
Margarida tinha voltado ao estado de inoc�ncia da inf�ncia e era isso o
que o tornava t�o estimado de todos n�s, nenhuma pessoa daqui
levando a mal ou estranhando nele aquilo que, noutros, seria
inconveniente. O Bispo Dom Ezequiel, que era uma pessoa bon�ssima,
parece que entendeu tudo, tamb�m; e, n�o querendo deixar Dona
Carmem mais alita do que j� estava, aproveitou a entrada dos dois
�ltimos convocados que vinham chegando, e afastou-se discretamente.
O pessoal, pressentindo que a reuni�o, mesmo, ia enim come�ar, fez
logo um sil�ncio cheio de tens�o. O Bispo colocou-se na cabeceira da
grande mesa oval que servia para as reuni�es da Irmandade, tendo, �
direita, o Padre Renato e o Padre Marcelo, e, � esquerda, o Padre Daniel
e o Comendador Bas�lio Monteiro que, na qualidade de Presidente da
Irmandade das Almas, tinha o privil�gio de iniciar, junto aos Padres, o

grupo dos leigos. Ali�s, como Presidente da Irmandade, o Comendador
estava se sentindo ali como uma esp�cie de anitri�o; foi explicando
isso que come�ou suas palavras nos seguintes termos:
� �Excelent�ssimo e Reverend�ssimo Sr. Bispo, Reverendos
Padres, minhas senhoras, meus senhores! Na qualidade de Presidente
da Irmandade das Almas e como ilho natural da nossa Vila, sinto-me
no dever de iniciar a reuni�o, como pessoa humilde que recebe, em sua
casa, pessoas ilustres e importantes! Acontecimentos da mais alta
gravidade sucederam e est�o acontecendo ainda, em nossa Vila. E,
parece que por um decreto emanado das profundezas insond�veis da
Provid�ncia Divina, acontece tudo isso, por sorte nossa, no mesmo dia
em que devia chegar aqui essa igura de Pastor e Prelado que � o Bispo
Dom Ezequiel, igura exemplar de ant�stite paraibano. N�o preciso dizer
a todos que a situa��o do nosso Pa�s � grav�ssima. O Comunismo, lobo
disfar�ado de ovelha, prepara seu assalto �s institui��es, e somente os
cegos � que n�o viram, ainda, o perigo que nos cerca por todos os lados,
amea�ando retirar Deus dos altares, a P�tria do conv�vio das na��es e a
Fam�lia de sua posi��o inabal�vel de centro da sociedade. O Chefe
escolhido e confesso desta agita��o � aquele mesmo homem nefasto, j�
conhecido de todos n�s desde que, em 1926, passou pelo Sert�o da
nossa pequenina e gloriosa Para�ba, ensanguentando o solo sagrado da
nossa terra com o sangue dos m�rtires, dos Sacerdotes, das pessoas
ordeiras e pacatas. Que o diga o sangue do Padre Aristides Ferreira
Leite, degolado em Pianc� pela �Coluna Prestes�, juntamente com outros
heroicos defensores da honra sertaneja. Mas, naquele ano de 1926, o
nefando Lu�s Carlos Prestes agitava o Brasil n�o ainda em nome do
Comunismo, mas sim movido por um ideal de certa forma elogi�vel,
aquele mesmo ideal que veio a se corporiicar e legitimar, depois, na
gloriosa e vitoriosa Revolu��o de 1930.�
� Levado pelo som de suas palavras, Sr. Corregedor, o
Comendador Bas�lio Monteiro tinha ido um pouco mais longe do que
desejava, uma vez que a maioria dos presentes era pouco entusiasta da
�gloriosa Revolu��o de 1930�. Mas �o fogo sagrado do ideal e da
eloqu�ncia� se apossara, mesmo, do Comendador, de modo que ele
continuou no mesmo tom:
� �Depois, por�m, Lu�s Carlos Prestes abandonou, pelo
Comunismo, a trilha que tinha seguido at� ali! A bandeira que ele

sustentava e conduzia caiu-lhe das m�os e veio recair nos bra�os do
grande Her�i paraibano que, hoje, passados cinco anos de sua morte,
todos n�s ainda choramos, o Presidente Jo�o Pessoa, o maior dos
Brasileiros, �o incr�vel Jo�o Pessoa� � para usar a express�o do genial
escritor Adhemar Vidal �, o M�rtir que ungiu com seu sangue as
liberdades republicanas do Brasil!�
� �Muito bem!� � disseram fracamente duas ou tr�s vozes
discretas, um pouco discretamente demais para o que esperava e
desejava o orador, o qual, come�ando a se aperceber de que devia
abandonar aquele terreno pol�mico, voltou ao assunto principal:
� �Meus senhores! Todo mundo sabe que Lu�s Carlos Prestes,
exilado do Brasil desde 1927, foi procurado pelos revolucion�rios, nas
v�speras de 1930, para se colocar novamente � frente da insurrei��o
que se preparava. Mas ele repeliu aqueles que o convidavam, porque,
segundo suas pr�prias palavras, se convertera ao Credo vermelho e s�
acreditava, da� por diante, numa Revolu��o inspirada pelo Comunismo
ateu, regime que ele faria tudo para implantar em nossa P�tria! Prestes
n�o teve escr�pulos, ent�o, de se apropriar de vultosa quantia em
dinheiro que os revoltosos de 1930 lhe tinham entregue; e, desde
aquela data, n�o houve um s� dia em que ele n�o conspirasse e n�o
tramasse o assalto ao Poder. Todo mundo sabe que ele, vestido de Padre
e com um passaporte falso, entrou novamente no Brasil, sob o nome de
Ant�nio Villar. Todo mundo sabe que ele e seus companheiros est�o
conspirando na sombra, preparando uma Revolu��o para, talvez ainda
neste nosso ano de 1935, tomar o Poder e instaurar uma Rep�blica
sovi�tica em nossa P�tria. O fantasma vermelho do Comunismo
amea�a-nos por todos os lados. Os cidad�os pacatos n�o podem mais
trabalhar, porque os Comunistas e revoltados de toda natureza
inventam, a toda hora, greves, picuinhas, agress�es e atentados de
todos os tipos, para perturbar o progresso e o trabalho produtivo e
ordeiro. Hoje, mesmo, o honrado fot�grafo de nossa Vila, homem
remediado e de boa fam�lia, sofreu um desses atentados; o mesmo,
quase, pode-se dizer de uma das Damas mais ilustres da nossa
sociedade. E por que se atrevem a tanto, os agitadores? � pergunto.
Porque estamos invadidos e amea�ados, com os nossos campos talados
e nossa Vila assaltada pela agita��o. Sim, meus caros conterr�neos!
Hoje entrou aqui, na nossa querida Vila de Tapero�, um grupo armado,

que introduziu em nossa terra a desordem e o mortic�nio, amea�ando a
vida dos Pais de fam�lia e a honra de suas ilhas e esposas. Segundo os
primeiros boatos, trata-se de uma tribo de Ciganos. Mas ser�o Ciganos,
mesmo? Como se explica, ent�o, o atrevimento com que se
comportaram diante das autoridades? Os ciganos s�o gente matreira e
sem conian�a; mas s�o, tamb�m, subservientes, procurando sempre
tratar bem as autoridades a im de n�o serem compelidos a abandonar
sua vida de vagabundagem e ladroeira! E, caso a vers�o seja verdadeira,
todo mundo sabe que o Cigano Praxedes � homem perigoso, que j�
andou envolvido em mais de um caso misterioso, em mais de um crime,
em mais de um atentado a bala. Digamos que s�o Ciganos: como se
explica, ent�o, que viesse com eles um Sacerdote, um Frade, um homem
de Deus, quando todos n�s sabemos que n�o se pode coniar na religi�o
dos Ciganos? E al�m disso, todo esse pessoal que cheia a tribo �,
perdoem-me o vigor da express�o, estranho e suspeito. Quem ser� esse
tal Doutor Pedro Gouveia? Quem ser� esse Frei Sim�o, ou melhor, quem
� o lobo vestido de ovelha que se esconde por tr�s desse nome, quando
todos n�s sabemos que n�o � o h�bito que faz o Monge? E chego ao
ponto nevr�lgico da quest�o: quem ser�, na verdade, este rapaz que se
apresenta hoje, aqui, com o nome daquele mo�o infortunado que
morreu h� tr�s anos, em 1932, coroando, sua morte, a s�rie de
infort�nios e trag�dias que se abateu sobre a ilustre fam�lia Garcia-
Barretto? Quem ter� sido o homem que atirou nesse rapaz, morrendo
logo em seguida, a tiro, de maneira t�o misteriosa? A meu ver, esse
atentado, ou melhor, esse simulacro de atentado, n�o passou de uma
outra farsa, com a qual os Comunistas pretendem jogar areia e uma
cortina de fuma�a diante dos olhos das pessoas respeit�veis. A situa��o
� grave, meus Senhores! Nosso Pa�s est� dividido entre dois
extremismos. A meu ver e salvo melhor ju�zo, um deles � mais perigoso,
de modo que, apesar do conhecido equil�brio das minhas posi��es,
chego quase a dar raz�o aos que se ergueram na defesa de Deus, da
P�tria e da Fam�lia. Mas, de qualquer modo, o fato � que os dois s�o,
entre si, advers�rios implac�veis, assim como, para n�s, inimigos
irreconcili�veis das nossas institui��es. O que sucedeu hoje, aqui, �,
portanto, muito claro. Quem quiser formar sobre os acontecimentos de
hoje uma ideia segura, basta veriicar de que lado icou, logo, a ral�,
esse Povo indisciplinado, mal-educado e analfabeto que � a mancha

vergonhosa da face do nosso Brasil. Na Inglaterra ou nos Estados
Unidos, um fato desses n�o aconteceria! Pergunto: de que lado icou
esse Povo, ignorante, fan�tico e miser�vel? Do lado daqueles que
invadiram nossa Vila nas caladas da noite! Logo, estes, e n�o os outros,
� que s�o os revolucion�rios, e seus advers�rios devem receber todo
nosso apoio! Ou�am meu brado de alerta! Sim, porque o pior aqui, hoje,
� a cegueira daqueles que, entre n�s, deveriam ser as colunas, os
sustent�culos da sociedade! Ningu�m quer ver o perigo! A continuar
assim, quando cuidarmos, estaremos com o inimigo dentro das nossas
muralhas, com os cidad�os mais consp�cuos da P�tria sendo fuzilados!
Certamente acham que eu exagero! Mas pergunto e repito: o Padre
Aristides n�o foi fuzilado e sangrado em Pianc�, em 1926, por essa
mesma gente que agita e subverte, hoje, o nosso Pa�s? Assim, ningu�m
tenha d�vida! O que aconteceu hoje, aqui, � algo de muito grave! A
Coluna suspeita que entrou em nossa Vila � um grupo Comunista
armado, e o atentado cometido contra aquele que parece ser o Chefe
deles s� pode ter duas explica��es: ou foi cometido por grupos
extremistas advers�rios, ou, o que me parece mais prov�vel, foi
somente uma farsa, destinada a mascarar alguma dissens�o interna,
alguma condena��o imposta por algum secreto Tribunal
Revolucion�rio ao homem que morreu. � preciso colocar de sobreaviso
os olhos que n�o querem ver e os ouvidos que n�o querem ouvir. Pouco
antes da nossa reuni�o, ouvi algumas opini�es, colhidas aqui entre as
melhores pessoas da nossa sociedade, a maioria achando que o
acontecimento de hoje nada tem a ver com os Comunistas e a
Revolu��o, que � somente uma briga de fam�lia. Todos sabem que fui,
durante toda a minha vida, um seguidor da fam�lia Pessoa e do Partido
Epitacista, herdeiro de Ven�ncio Neiva e do velho Partido Conservador,
da Monarquia. Assim, fui sempre advers�rio da nobre fam�lia Garcia-
Barretto. Mas advers�rio leal e sincero! Nada tenho a ver com os
dramas que perseguiram essa ilustre fam�lia. O que me preocupa,
portanto, nos acontecimentos de hoje, � tudo o que est� oculto por tr�s
deles. Dizem que a Coluna rebelde que invadiu hoje a nossa Vila nada
tem a ver com a Revolu��o preparada pelos Comunistas. Dizem isso
baseados no fato de que ela vem acompanhada por um Frade.
Respondo, em contrapartida: assim como Lu�s Carlos Prestes entrou no
Brasil vestido de Padre e com o nome de Ant�nio Villar, um dos seus

homens de conian�a pode ter vindo para o Sert�o da Para�ba, vestido
de Frade e com o nome de Frei Sim�o do Cora��o de Jesus. Al�m disso,
mesmo que esse Frade fosse um verdadeiro Sacerdote, ungido e
consagrado, de que garantia pode isso nos servir, num tempo em que o
pr�prio Clero est� iniltrado de revolucion�rios, principalmente entre
os Padres jovens?�
� Aqui, Sr. Corregedor, o Comendador Bas�lio Monteiro lan�ou
um olhar fuzilante e denunciador contra o Padre Marcelo e o Padre
Daniel. Segundo Dona Carmem me disse depois, notava-se seu desejo
de que esse olhar fosse anotado e sublinhado pelo Bispo. Dom Ezequiel,
por�m, era homem prudente e conciliador: icou impass�vel, por n�o
entender, por n�o ouvir, ou ent�o por achar que a den�ncia n�o era t�o
grave quanto o Comendador julgava. Este continuou:
� �Pergunto, ainda, o seguinte: os Senhores n�o acham estranho
que o rapaz, Chefe dessa Coluna que nos invadiu hoje, tenha indagado
ao homem do atentado onde � que poderia encontrar Ant�nio Villar?
Objetam-me que, aqui em Tapero�, na sua pacata fazenda �Panati�, existe
um fazendeiro com este mesmo nome, o nosso honrado Ant�nio Dantas
Villar que, por sua posi��o social e por suas tradi��es de fam�lia, est�
acima de qualquer suspeita de Comunismo. Mas o nosso, o Ant�nio
Villar que todos n�s conhecemos, qualquer pessoa poderia t�-lo
indicado ao Rapaz-do-Cavalo-Branco! Assim, n�o se explica que o
homem que morreu tenha respondido que n�o sabia onde o tal Ant�nio
Villar se encontrava! Indagam, ainda, os incr�dulos: � Que interesse
existe, para os Comunistas, em invadir e ocupar uma Vilazinha perdida
e isolada no Sert�o da Para�ba? Respondo, em primeiro lugar, que nossa
Vila n�o � t�o perdida assim, e nem o ser� nunca, a n�o ser que os
Comunistas a botem a perder, de vez! Em segundo lugar, pergunto: �
Que interesse havia, para Lu�s Carlos Prestes, em atacar Pianc�, em
1926? Pianc� � uma Vila mais long�nqua, mais isolada e menos
importante ainda, do ponto de vista estrat�gico, do que a nossa gloriosa
Vila de Tapero�! Lembrem-se de que o nosso Cariri paraibano est�
situado a meio caminho, numa posi��o central e portanto estrat�gica,
em rela��o aos dois maiores e mais importantes focos Comunistas do
nosso Brasil, isto �, Natal, Capital do Rio Grande do Norte, e Recife,
Capital do progressista Estado de Pernambuco! Em Natal e no Recife, o
Ex�rcito est� minado pela Revolu��o! Ao contr�rio, todos sabem que o

Batalh�o sediado na Capital da Para�ba, o nosso glorioso e invicto 22�
Batalh�o de Ca�adores, � legalista e tradicionalmente iel �s
institui��es! Eis a�, ent�o, o verdadeiro motivo de os Comunistas
procurarem apoio, n�o na Capital paraibana, e sim no Sert�o do nosso
Estado. Dir-me-�o que, neste caso, seria mais l�gico que eles
escolhessem, para invadir, a Cidade de Campina Grande, a Rainha da
Serra da Borborema, a mais progressista e importante do Sert�o. Mas
eu explico tamb�m, facilmente, o motivo de n�o terem, eles, agido
assim: � que, havendo em Campina um Quartel e um Batalh�o da Pol�cia
Paraibana, a repress�o seria imediata e violenta! Assim, era muito
melhor fazer o que eles izeram, atacando e invadindo uma Cidade
menor, que provavelmente se entregaria sem luta, como de fato se
entregou, podendo, agora, servir de base para o ataque, a Campina
Grande primeiro, e � Capital depois! N�o foi assim que agiu, em 1912, a
Coluna revolucion�ria dos Chefes sertanejos, o Doutor Dantas e o
Bacharel Santa Cruz? Est� ainda em nossa mem�ria a lembran�a das
cenas de saque, de sangue, de viol�ncia contra a vida e a propriedade,
de assaltos � honra e ao pudor, cenas levadas a cabo aqui, em nossa Vila,
pela Coluna dos revoltosos daquele ano, comandados pelo Negro
Vicente, por Seu Hino, por Germano, Severino M�ezinha e outros
Chefetes de grupo, a mando de dois Chefes sertanejos que n�o se
envergonharam de manchar seus t�tulos de ra�a e ilustra��o, assaltando
e tomando seis cidades sertanejas. Lembrem-se de que esses dois
Chefes levantaram 800 homens de armas, assaltando e tomando
Monteiro, S�o Tom�, Tapero�, Patos, Soledade e Santa Luzia do Sabugi.
Assaltaram, ainda, a s�tima, a Vila Real de S�o Jo�o do Cariri,
preparando, assim, a tomada de Campina Grande, quando o Ex�rcito
interveio e os revolucion�rios de 1912 foram desbaratados. Lembremse
de que essas coisas n�o s�o epis�dios isolados, pois, na �Guerra de
Doze�, fazia sua estreia nas lutas e insurrei��es sertanejas o ilho de um
dos Chefes, Jo�o Duarte Dantas, aquele mesmo que depois, em 1930,
mataria o Presidente Jo�o Pessoa, cometendo o magnic�dio que
delagrou a Revolu��o de 1930! Sei que aqui, nesta ilustre Assembleia,
existem pessoas inatac�veis, que foram correligion�rias desses dois
Chefes revoltados! N�o me reiro aos presentes, que sempre estiveram
ao lado da Lei e n�o aprovaram a Revolu��o de 1912!�

� �O senhor est� enganado!� � disse imediatamente o Coronel
Joaquim Coura. � �O senhor falou, a�, que foi, sempre, correligion�rio
dos Pessoas. Eu, ao contr�rio, fui sempre advers�rio deles. Aqui, na Vila,
segui, sempre, os Garcia-Barrettos; desde muito mo�o, desde o Bar�o
do Cariri, Pai do nosso Chefe, Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto, degolado
em 1930 pelos agentes do Governo da Para�ba! Quanto � Revolu��o de
1912, tenho muito orgulho de ter tomado parte nela! Assim como tenho
orgulho de ter tomado parte na �Guerra de Princesa�, sempre ao lado
dos Dantas, do Coronel Jos� Pereira e dos Garcia-Barrettos!�
� �Eu tamb�m! Eu tamb�m!� � ecoaram v�rias vozes, j� num
tom meio hostil.
� �Deixemos, ent�o, esse terreno, pois n�o � a Guerra de Doze
nem a de Trinta o que me preocupa agora!� � disse o Comendador. �
�Passo a um exemplo tirado do Estado do Cear�: n�o foi assim que
agiram os romeiros revoltados do Padre C�cero, quando sa�ram do
Juazeiro, invadindo e tomando todas as Vilas e Cidades sertanejas, e
chegando, assim, at� as portas de Fortaleza, a Capital do Estado, que
tomaram e saquearam, em 1913? Pois foi de modo semelhante, pela
mesma raz�o, com a mesma ast�cia e t�tica, que agiram os rebeldes que
invadiram, hoje, a nossa Vila, sob o disfarce de uma tribo de Ciganos.
Ciganos armados? Ciganos que, segundo corre na rua, reagiram a bala
contra uma emboscada na estrada? E est� provado que o plano deles
deu certo! Tanto assim que a Pol�cia fugiu, deixando os nossos lares e as
nossas casas de com�rcio expostas � sanha dos salteadores! A essa
altura, estamos � merc� deles! N�o existem mais autoridades
constitu�das, n�o existe mais Prefeito, n�o existe mais Delegado, n�o
existe mais Pol�cia, n�o existe mais Juiz de Direito, n�o existe mais
nada! O nosso Prefeito, agora, � Lu�s do Tri�ngulo! O Delegado, � o
Cigano Praxedes! O Juiz de Direito, � o Doutor Pedro Gouveia! A nossa
Lei, � a do trabuco dos Cangaceiros! Uma Rep�blica comunista est�
instaurada em Tapero�! E eu diria, mesmo, que o nosso Pastor agora �
Frei Sim�o, se n�o nos restasse, aqui, a igura do nosso Bispo, que, como
um raio de luz ferindo as trevas, chegou no momento exato, apontando
ao nosso barco o caminho do porto que nos servir� de abrigo seguro.
Este � o motivo da nossa reuni�o. Esperamos, agora, a palavra de Sua
Excel�ncia Reverend�ssima, para seguir cegamente a sua orienta��o, o
roteiro que ele tem a nos oferecer e cujas linhas certamente j� concebeu

nos escaninhos de seu privilegiado esp�rito e no escr�nio do seu cora��o
paternal!�

� O
FOLHETO LXX
O Carneiro Cabeludo
Comendador sentou-se, Sr. Corregedor, e, sob expectativa geral,
Dom Ezequiel ergueu-se para nos apontar �o caminho do
porto�. Infelizmente, por�m, se ele tinha mesmo, como dissera o
Comendador, �um roteiro seguro�, concebido �nos escaninhos do
esp�rito e no escr�nio do seu cora��o paternal�, nunca n�s viemos a
saber qual era. Porque, quando ele ia come�ar a tra��-lo, ouviu-se um
violento estrondo na porta da frente da Casa Paroquial, que at� aquele
momento permanecera fechada a chave. Com a viol�ncia da pancada
dada por fora, a fechadura saltou longe, arrancada juntamente com um
peda�o da madeira, que se lascara. A�, as pessoas que estavam na sala,
todas j� com os nervos tensos pelo que vinha acontecendo na Vila e
agora tomadas de surpresa e espanto pelo estrondo, avistaram Ar�sio
Garcia-Barretto, ainda meio desequilibrado pelo pontap� que dera com
o solado de sua meia-bota na folha de madeira da porta, arrombando-a
como acabo de contar. Com o impulso que dera, o p� dele j� pousou no
ch�o na parte de dentro da sala. A folha de madeira da pesada porta
bateu na parede e voltava violentamente. Ele segurou-a com a m�o,
recuperou o equil�brio e entrou de vez na sala, tendo estampada no
rosto uma express�o que apavorou logo todos aqueles que o
conheciam. �Estava inteiramente desvairado!� � dizia-me, depois, o
Comendador, ainda assombrado com a viol�ncia, a quase dem�ncia do
ato insano e brutal que Ar�sio cometeu. Devo, por�m, ao senhor, umas
palavras de explica��o que esclarecem, embora n�o justiiquem, tudo o
que ele fez. O ilho mais velho de meu Padrinho era naquele ano, Sr.
Corregedor, um homem de 35 anos, mais alto do que baixo. Mas era t�o
�ossudo, membrudo e fortalezado�, que sua estatura alta icava
equilibrada pela robustez, dando a impress�o de que ele era de altura
s� muito pouco acima da mediana. Qualquer pessoa que punha os olhos
em cima dele, via logo que era um homem dotado de extraordin�ria

for�a �sica, uma for�a que se tornava ainda maior e mais perigosa pela
ferocidade de seu temperamento intrat�vel, sujeito a impulsos
estranhos e indom�veis, a desequil�brios perigosos e desconhecidos em
sua natureza total. Era moreno e carrancudo, de cabelos bastos, negros
e encaracolados. Tinha a barba negra e cerrada. N�o ina, como a de
Gustavo, mas dura, grossa e crespa, sempre raspada, com exce��o do
bigode, preto e quase retangular, aparado do mesmo tamanho da boca e
cobrindo todo o l�bio superior. Suas sobrancelhas tamb�m eram bastas
e cerradas, negr�ssimas, e o sobrecenho, contra�do e fechado, contribu�a
para aumentar ainda mais a impress�o de ferocidade do rosto inteiro.
Vestia naquele instante uma roupa de casimira cinzenta, e, sob os
punhos limp�ssimos da camisa branca, viam-se seus pulsos grossos,
peludos e nodosos, terminando pela m�o quadrada e grande, de dorso
tamb�m coberto de pelos, larga e grossa. Dom Eus�bio Monturo, que
tinha o h�bito de fazer compara��es disparatadas e que n�o suportava
Ar�sio, costumava dizer que ele parecia um cruzamento �de Jumenta
com carro preto�, ou ent�o �de um Carneiro preto, lanzudo e criminoso
com uma Diaba f�mea que tivesse trepado com o Carneiro sob forma de
Cabra�. Apesar dos exageros e da l�ngua solta de Dom Eus�bio Monturo,
um Mestre em Astrologia como eu saberia logo que, ao dizer isso, ele
estava mais perto da verdade do que os outros talvez pensassem. De
fato, Ar�sio, nascido a 22 de Mar�o de 1900, tinha recebido, ao nascer,
os inluxos malfazejos do Planeta Marte, e pertencia, exatamente, ao
signo do Carneiro, o que talvez explicasse a express�o de �cruzamento
de Carneiro com Diaba f�mea� que Dom Eus�bio usava em rela��o a ele.
Como Vossa Excel�ncia deve saber, Marte, Planeta ubicado no quinto
C�u, � astro ardente, seco, do fogo, noturno e de car�ter masculino. Os
nascidos sob seu inluxo t�m estatura m�dia ou alta, cabelos negros ou
vermelhos, �s vezes lisos, �s vezes encaracolados, �mas sempre curtos,
duros e com apar�ncia de escova�, segundo nos ensina o Lun�rio
Perp�tuo. O corpo dos �marcianos� acusa brutalidade: a cabe�a � forte, o
tronco � quadrado e peludo, os olhos s�o penetrantes e de express�o
ixa, a voz � forte e met�lica. S�o sempre corajosos, mas rudes e
agressivos, com tend�ncia � irascibilidade, ao �dio e � crueldade.
Imp�em seu comando e s�o impelidos, pelo sangue de seu Planeta, a
satisfazer as exig�ncias de seus sentidos violentos e implac�veis, isto de
modo brutal e em tudo � no jogo, nos prazeres do amor, nas bebidas e,

eventualmente, nas orgias a que se entregam. A comida preferida deles
� a carne sangrenta e meio crua, principalmente a carne de ca�a, assim
como todos os demais pratos preparados com condimentos fortes. Nos
casos ben�icos, saem do contingente �marciano� da Humanidade os
grandes Guerreiros, os Soldados e, aqui no Sert�o, os grandes
Cangaceiros. Nos casos em que o inluxo de Marte pega uma alma
pequena e uma complei��o mesquinha surgida de outras
circunst�ncias, nascem os ferreiros e os a�ougueiros, que v�o satisfazer,
no exerc�cio destas proiss�es, o gosto marciano pelo sangue, pelos
metais e pelos instrumentos cortantes. Por outro lado, Sr. Corregedor,
no caso de Ar�sio, o inluxo de Marte se agravava, porque o signo em
que ele � mais poderoso � exatamente o do Carneiro, cujo elemento � o
Fogo, cuja pedra � o Rubi � pedra vermelha e c�lida �, cujos metais
s�o o Ferro, o �m�, o Azougue e o A�o, e cuja cor � o Vermelho-sangue.
Assim, quem combina o Signo do Carneiro com alguma conjun��o
maligna de Planetas hostis, tem disposi��es incontrol�veis para a
viol�ncia, o ego�smo, os perigos, a sensualidade e a lasc�via, para as
rixas violentas e para as orgias, podendo praticar os maiores excessos, e
chegar at� aos crimes de sangue. � que o Signo do Carneiro impressiona
o fel, o sangue, os rins e as partes genitais, sendo sua inlu�ncia
sobretudo violenta dentro da primeira D�cada e �cr�tica� quando se d�
�em trono e exalta��o de Marte�, o que sucede, exatamente, a 22 de
Mar�o, dia do nascimento astroso e fat�dico de meu primo Dom Ar�sio
Garcia-Barretto, o Pr�ncipe C�prico desta minha fat�dica e astrosa
Epopeia! Foi somente, pois, por n�o serem Mestres em Astrologia que
as pessoas da sala icaram espantadas com a brutalidade do gesto, para
eles inesperado e absurdo, de Ar�sio. Todos os que estavam na reuni�o
eram favor�veis, ou, pelo menos, manifestavam uma indiferen�a
benevolente a ele, no seu conlito com o Pai e com o irm�o mais mo�o
por causa da heran�a da �On�a Malhada�. Por outro lado, o Bispo Dom
Ezequiel, anci�o de car�ter tranquilo e bondoso, entrado suavemente
numa velhice compreensiva e cheia de mansid�o, era estimado no
Sert�o inteiro, como um modelo de virtude. Pois foi exatamente para o
Bispo que Ar�sio marchou depois de entrar na sala, com os olhos meio
alheados, como se n�o visse mais ningu�m. Os olhares de todos, esses
estavam ixados nele e somente nele, como n�o poderia deixar de ser.
Personagem visad�ssimo, profundamente afetado pelos acontecimentos

da tarde e pela chegada de Sin�sio, aparecia ele agora em p�blico
daquela maneira violenta depois de se manter desaparecido desde a
v�spera, e irrompia inesperadamente na reuni�o para a qual n�o tinha
sido convidado, primeiro porque ningu�m sabia onde ele se encontrava,
depois porque todos o temiam. Encaminhando-se para Dom Ezequiel,
Ar�sio olhava-o ixamente nos olhos, e, segundo todos disseram depois,
mantinha uma posi��o estranha enquanto andava, com o bra�o
esquerdo erguido quase � altura do ombro e estirado para a frente, com
m�o aberta, espalmada, em dire��o ao Bispo. Quando ele chegou junto
de Dom Ezequiel, este estendeu-lhe a m�o, como para dar a beijar o
anel episcopal, isto apesar de que a m�o com que Ar�sio parecia lhe
solicitar isso fosse a esquerda, e n�o a direita, como manda o protocolo.
E foi a� que tudo se precipitou. Quando Dom Ezequiel estendeu
benevolamente a m�o direita para ele, Ar�sio segurou-a com a m�o
esquerda e deu um pux�o no Bispo que, perdendo o equil�brio, foi como
que caindo em sua dire��o. Mas Ar�sio, em vez de ampar�-lo, soltou-lhe
a m�o, e, com o punho direito cerrado, deu-lhe um violento soco no
rosto. Dom Ezequiel rolou no ch�o, com o rosto banhado em sangue,
sa�do do nariz e de um corte que se abrira embaixo de seu olho. Todos
icaram im�veis, boquiabertos, paralisados pela viol�ncia e pelo
inesperado do gesto insensato. Os Padres, primeiros a sair do estupor,
correram para o Bispo e come�aram a lhe prestar o primeiro socorro.
Quanto a Ar�sio, olhou um momento a cena, como se n�o tivesse nada a
ver com aquilo. Depois deu meia-volta, e, sem trocar palavra com
ningu�m, sem dar nenhuma explica��o sobre o que izera, tomou de
novo o caminho da porta e saiu da sala, perdendo-se na meia escurid�o
que j� tinha come�ado a cobrir a Vila naquele momento.

Q
FOLHETO LXXI
O Caso do Jaguar Sarnento
uando acabei de contar essa parte da hist�ria, o Corregedor icou
um momento pensativo, mas logo, sacudindo a cabe�a, voltou ao
ataque:
� Muito bem, Dom Pedro Dinis Quaderna! � disse ele. � O
senhor me contou v�rios acontecimentos sucedidos naquele dia.
Deixou, por�m, de se referir ao personagem mais importante de todos!
� Quem �, Sr. Corregedor?
� O senhor, Dom Pedro Dinis! Chegou, portanto, a sua hora, e eu
quero saber, antes de mais nada, se � verdade mesmo, como diz a carta
de den�ncia, que o senhor estava no lajedo perto do qual dispararam o
tiro!
� � verdade, sim, Sr. Corregedor! Enquanto, aqui na rua, se
desenrolavam esses acontecimentos espantosos, eu, o Profeta e
Astr�logo-�pico que os previra e que os tinha esperado,
coniantemente, durante os cinco anos que se tinham passado entre a
morte de meu Padrinho e a ressurrei��o de Sin�sio, estava ausente,
alheio a tudo! N�o � estranho? Estava fora, e impossibilitado, portanto,
de participar de coisas que seriam decisivas para a vida de todos n�s e,
sobretudo, para a Epopeia que eu sonhava escrever h� tanto tempo! O
senhor perguntar�: �Por que voc� estava fora?� A resposta � simples: �
que, naquele dia, eu tinha resolvido almo�ar no meu Lajedo sagrado!
� De fato, n�o deixa de ser estranho! Almo�ar num Lajedo,
quando o senhor tem tantos lugares abrigados para fazer suas
refei��es! Qual foi o motivo dessa decis�o sua?
� De vez em quando, sinto vontade disso, Sr. Corregedor! �
sempre como numa esp�cie de pressentimento; vem-me aquela
vontade e eu digo para mim mesmo: �Hoje, preciso almo�ar no meu
Lajedo!� Naquele dia, aconteceu isso, n�o sei por qu�! Comecei com
aquela vontade, aquela vontade, e de repente senti que n�o devia icar

na Vila. De manh�, sa� com Samuel e Clemente, para visitar uma Capela
e a Ilumiara Ja�na. N�s nos perdemos na Caatinga, na volta. Mas depois,
ajudados pelo velho Jo�o Melch�ades Ferreira, achamos de novo o
caminho. Clemente e Samuel vieram para a Vila, e eu, que j� sa�ra com
meus alforjes preparados, fui almo�ar no Lajedo, mesmo sabendo que,
ao fazer isso, iria deixar de tomar meu lugar de Chefe na Cavalhada que
eu mesmo tinha preparado com tanto cuidado para as duas horas da
tarde.
� O senhor costuma faltar �s Cavalhadas que organiza?
� N�o senhor! Acho que aquela foi a primeira vez, e acho
tamb�m que ser� a �ltima! Digo isso porque cheiar Cavalhadas � uma
das maiores gl�rias da minha vida! � um dos momentos em que me
sinto como Carlos Magno cheiando seus Doze Pares de Fran�a; ou
melhor, para ser mais patriota, como Dom Pedro I cheiando os Drag�es
da Independ�ncia, conforme aparece esse usurpador da coroa dos
Quadernas no monumental quadro O Grito do Ipiranga, pintado pelo
genial Pintor paraibano Pedro Am�rico de Figueiredo e Mello, Bar�o do
Ava�, Cavaleiro da Ordem da Rosa e Grande do Imp�rio do Brasil!
� Quer dizer: o senhor confessa que nunca tinha faltado a
Cavalhada nenhuma! Confessa que foi para o lugar de onde atiraram no
cabra! E o �nico motivo que d� como explica��o de tudo isso � uma
esp�cie de �pressentimento� que lhe deu?
Vi que estava me desgra�ando cada vez mais, de maneira que o
�nico caminho que me restava era o de abrir mais meu jogo a im de
mostrar boa-f�. Resolvi ir adiante em minhas coniss�es e avancei:
� Sr. Corregedor, conhecendo, como conhe�o, os Enigmas e os
ins ocultos de tudo o que se passou nessa hist�ria; conhecendo os ios
secretos que ligavam todos os acontecimentos; conhecendo, ainda, o
papel que tinha e tenho a desempenhar na �Guerra do Reino� e na
�Demanda Novelosa do Reino do Sert�o�, s� posso atribuir, mesmo,
minha aus�ncia da Vila naquele instante a uma disposi��o oculta da
Provid�ncia Divina! Isto � tanto mais evidente porque, como j� disse,
aquela era a primeira vez que eu me atrevia a faltar a uma Cavalhada!
Eu tivera, ali�s, o cuidado de prevenir meus irm�os, que faziam o papel
de Rei Mouro do Cord�o Encarnado e de Rei Crist�o do Cord�o Azul,
para que, em seus movimentos a cavalo, n�o izessem nenhuma mesura
que pudesse ser interpretada como preito de vassalagem ao Prefeito e

ao Presidente do Conselho! Conhe�o muito bem a Humanidade, e sabia
que, ao primeiro sinal de fraqueza da fam�lia Quaderna, o Prefeito, o
Presidente do Conselho ou qualquer outro �Rico-Homem� da Vila
come�aria logo a conspirar, iniciando seu trabalho de sapa para usurpar
o Trono do Cariri, trono que, desde a morte de meu Padrinho, eu venho
acumulando com os outros de G�nio da Ra�a Brasileira, Rei do Quinto
Imp�rio do Sert�o, Imperador do Divino, do Sete-Estrelo do Escorpi�o,
Profeta e Sumo-Pont�ice da Igreja Cat�lico-sertaneja. � por isso que,
como j� disse, o pessoal, na hora de sauda��o, n�o se voltou para o
Palanque. Tranquilizado eu, portanto, por essas provid�ncias que tinha
determinado, achei-me no direito de atender a meu pressentimento,
indo almo�ar no Lajedo que se encontra no lado direito de quem vai
pela Estrada de Estaca Zero, Soledade e Campina Grande e que vai, da�,
para o Mar, �o Mar, o Mar livre�, como dizia Ruy Barbosa! Ora, Sr.
Corregedor, se eu sa�a da rua em ocasi�o t�o importante, foi, primeiro,
por aquele des�gnio secreto da Provid�ncia, e, depois, porque a V�spera
de Pentecostes � um dia important�ssimo na Liturgia do meu
Catolicismo-sertanejo, uma data decisiva nos rituais astrol�gicos,
zodiacais, mouro-cruzados e negro-vermelhos que o integram!
� Bem, esse Catolicismo-sertanejo me interessa muito, porque,
a meu ver, sua Igreja est� estreitamente ligada, por seus rituais, com a
morte do Rei Degolado, seu Padrinho, e com a ressurrei��o do tal
Pr�ncipe Alumioso da Bandeira do Sert�o! Como foi que o senhor
chegou � formula��o dessa nova seita religiosa?
� Sr. Corregedor, a cria��o da minha Igreja Sertaneja foi muito
parecida com a da minha Poesia-epopeica! Foi uma quest�o, ao mesmo
tempo, de f�, de sangue, de ci�ncia, de estro e de planeta! Tudo surgiu a
partir da minha heran�a do sangue da Pedra do Reino, de uma crise de
F�, de uma visagem que tive e do cruzamento dos Astros zodiacais com
as vicissitudes da minha vida-errante, extraviada e perdida por tudo
quanto foi caminho e descaminho deste nosso Sert�o velho da Para�ba
do Norte! N�o sei se j� contei a Vossa Excel�ncia que fui destinado, por
meu Pai, a ser o Padre da fam�lia Quaderna!
� J�, mas n�o entrou em maiores detalhes! � disse o
Corregedor.
� Cheguei a fazer v�rios anos do Semin�rio, Sr. Corregedor!
Mas, depois, descobri que n�o tinha voca��o e sa�!

� Consta, por aqui, na rua, que o senhor foi expulso do
Semin�rio!
� Sim, e foi exatamente isso que me obrigou a descobrir que
n�o tinha voca��o! Mas o que eu queria dizer � que, enquanto fui
Seminarista, eu viajava daqui at� Campina, a cavalo, para, l�, tomar o
trem da Para�ba! Me diga uma coisa, Sr. Corregedor: o senhor j� leu o
folheto chamado O Estudante que se Vendeu ao Diabo?
� N�o!
� Lino Pedra-Verde versou, um dia, essa hist�ria, fazendo o
�romance� que eu imprimi e passei a vender aqui, na feira! � uma
beleza, s� o senhor vendo! Passa-se tudo na Espanha: o Estudante vai
para a Universidade de Salamanca, e, na estrada, o Diabo d� a ele um
Espelho, em troca da sua alma! Desde que li essa hist�ria, eu iquei
sabendo que os espelhos eram objetos ligados ao Diabo, �s transa��es
diab�licas e � posse das coisas boas da vida, isto �, o Poder, o dinheiro,
as mulheres, as Coroas, os cavalos encantados, os tesouros etc. Desde a�,
tamb�m, nunca mais deixei de carregar um espelho comigo,
principalmente quando ando nas estradas do Sert�o!
O Corregedor deu outro bote para meu lado:
� O qu�? � falou ele, arregalando os olhos. � Quer dizer que o
senhor carrega sempre um espelho no bolso?
� Carrego, sim senhor! � disse eu, espantado.
� O senhor n�o disse que os sinais de sol que atra�ram o cabra
para a morte foram feitos com um espelho?
� Disse, sim senhor! � falei de novo, boquiaberto, porque era
outra coincid�ncia fatal que nunca tinha me ocorrido.
� Bem, ent�o o senhor n�o h� de reparar que isso me
impressione! Foi de perto do Lajedo que sa�ram os sinais de sol feitos
com um espelho, e o senhor estava no Lajedo, com um espelho no
bolso... Anote, Dona Margarida! Muito bem! Agora, Dom Pedro Dinis,
pode continuar a narra��o da sua visagem!
Sentindo a sensa��o de aperto no est�mago se agravar,
continuei:
� Sr. Corregedor, como eu vinha dizendo, posso garantir que o
vener�vel e vetusto Semin�rio da Para�ba, instalado no velho Convento
franciscano do s�culo XVIII e situado perto da Casa da P�lvora onde
Sin�sio foi achado morto, foi minha Universidade, a Universidade de

Salamanca da minha vida! Naquele tempo em que eu o frequentava, l�
um dia eu ia viajando pela estrada quando, cansado, parei junto de um
serrote de pedras, para repousar e almo�ar. O serrote icava junto de
uma encruzilhada. Era j� perto do meio-dia e o sol estava de lascar!
Fiquei debaixo de um p� de Imburana que havia ali, sombreando as
pedras, e resolvi esfriar um pouco o corpo, antes de almo�ar. Momentos
antes, quando estava tirando a sela do meu cavalo, eu tinha ouvido um
tinido de metal dentro do bolso da carona. Meti a m�o ali, e vi, ent�o,
que o pacote em que eu conduzia meus materiais de fazer a barba
tinha-se aberto. Tirei para fora esses materiais, sentei-me perto do
tronco da Imburana, encostei o espelho nele e, enquanto esfriava o
corpo, peguei a navalha e comecei a ai�-la no aiador de couro que � o
meu. A�, Sr. Corregedor, por azar e fatalidade, juntaram-se quatro coisas
perigosas e invocativas: encruzilhada de Estrada sertaneja, metal de
navalha, espelho de a�o e cristal e, inalmente, couro com esmeril. Eu,
na minha cegueira incauta, continuava passando e repassando a
navalha de a�o no aiador. Num certo momento, meus olhos pousaram,
por acaso, no Espelho que permanecia ali, em minha frente, em p�,
encostado ao tronco. No mesmo instante, dei um salto e um grito de
terror: reletido no espelho, estava o vulto de uma On�a, na estrada!
Virando-me, aterrorizado, para o lugar em que, pela posi��o da imagem
reletida, a Fera deveria estar, n�o vi nada! Onde estaria a On�a? Ser�
que eu teria me enganado? Olhei de novo, rapidamente, para o espelho:
l� estava, de novo, a On�a! Voltei-me para tr�s, pela segunda vez: nada!
Ah, Sr. Corregedor, foi um dos momentos mais graves da minha vida! S�
depois, j� no curso da minha viagem com Sin�sio, foi que pude avaliar,
em toda extens�o, o poder e a for�a diab�lica do Espelho, o que depois
contarei, quando narrar a Vossa Excel�ncia a nossa incurs�o infernal
pelo Reino Perigoso do Ladrido. Naquele dia, por�m, vi logo que a On�a
que eu avistava era uma t�pica �visagem de Espelho�, parecida com
aquela que o Diabo tinha proporcionado ao Estudante de Salamanca
nas estradas poeirentas da Castela espanhola! Fiz das tripas cora��o,
tomei coragem, resolvi desaiar o Destino e examinar a visagem. Iria me
arrepender amargamente desta resolu��o! Olhei de novo a On�a, agora
com cuidado. O que mais me aterrorizava � que ela n�o tinha o
contorno preciso das On�as comuns. N�o era, de modo nenhum, uma
On�a que vagasse pela estrada ou pelas veredas, entre as pedras, as

Caatingas e os espinhos do Sert�o! O que acontecia era o seguinte: ou a
On�a crescera e se tornara imprecisa no intervalo que decorreu entre a
minha primeira olhada e a outra, ou ent�o ela j� era imprecisa, mesmo,
e eu n�o me apercebera no primeiro momento. O fato, por�m, � que,
agora, eu via que a On�a era mesmo formada pelas pedras, o mato, as
estradas, o Sol, de modo que, reletida no Espelho diab�lico, eu estava
envolvido por ela, colocado no pr�prio campo de pelos de seu dorso.
Me diga uma coisa, Sr. Corregedor: quando o senhor era pequeno,
algu�m lhe contou a hist�ria do Bicho Homem e do Bicho Mundo?
� N�o!
� Tia Filipa me contou, v�rias vezes! Dizem que, no come�o,
quando Deus tinha acabado de faz�-lo, o Bicho Homem vinha por uma
estrada, quando encontrou o Bicho Mundo e atreveu-se a enfrent�-lo.
No meio do combate foi que ele percebeu que, de fato, o Bicho era
f�mea, o que tornava a luta perigosa e desigual para o Homem. Mas era
tarde! Com os poderes de encanta��o f�mea que tinha, a Bicha envolveu
o Homem, encantou-o, diminuiu ele de tamanho at� transform�-lo num
homem e ent�o, quando ele estava do tamanho de um piolho em
rela��o a ela, soltou-o entre seus pelos, para ele viver ali agarrado,
como um carrapato. � por isso que todos n�s, agora, vivemos assim,
agarrados, chupando o sangue do Mundo e errando por entre seus
pelos. Contei essa hist�ria a meu Padrinho-de-crisma, o Cantador Jo�o
Melch�ades, e ele escreveu sobre isso uns versos que diziam assim:
�Foi no come�o da Tinha,
da Peste, ao combate louco:
Deus foi, distraiu-se um pouco,
perdeu o io da Linha!
O Homem, divino, vinha
na Estrada do Sol do Mundo.
Na luz do Sol moribundo
bateu-se com a Bicha Estranha,
e a feiticeira Castanha
o encantou, no Profundo!
Agora, encantado a fundo,
erra entre os pelos da Sonsa

que � F�mea, que � Parda, � On�a,
que ele n�o v� porque � baixo
e que, julgando que � Macho,
ungiu com o nome de Mundo!�
� A prop�sito de que, essa versalhada? � indagou o
Corregedor.
� Ora, Sr. Corregedor, � claro! � que, ali na estrada, era isso que
eu estava vendo pela primeira vez, gra�as ao a�o e ao azougue diab�lico
do Espelho! S� agora eu via que, de fato, eu n�o passava de um piolho,
de um carrapato chupa-sangue e pardo, errante entre os pelos da On�a!
O pior, por�m, � que n�o se tratava nem de uma On�a digna, uma On�a
Malhada como aquela que o Profeta Naz�rio e Pedro Cego tinham visto!
Era uma On�a enorme e mal deinida, leprosa, desdentada, sarnenta e
escarninha, uma Entidade malfazeja que, ao mesmo tempo que me
envolvia e tragava, era tragada, tamb�m, aos poucos, por um Buraco
perigoso, oco e vazio, cheio de cinza. Enquanto era devorada pelo
Buraco, ela erguia o rosto cego e maldoso contra a face do Tempo, que a
crestava cada vez mais, encarquilhando e desfazendo em P�, em cinza e
em sarna, o que ainda lhe restava de sua vida demente e sem grandeza!
Por entre os pelos e chagas sarnentas dessa On�a-Parda, eu n�o via
agora, mas sabia, com certeza, que errava a Ra�a piolhosa dos homens,
ra�a tamb�m sarnenta e sem grandeza, co�ando-se idiotamente como
um bando de macacos diante da Ventania crestadora, enquanto espera
a Morte � qual est�, de v�spera, condenada!
Eu j� tinha terminado a narra��o da minha visagem. Mas o
Corregedor parece que esperava alguma coisa de sensacional, para o
im, porque perguntou:
� E ent�o?
� Foi s� isso! � confessei.
� S�?
� Bem, se eu quisesse impressionar o senhor, poderia inventar
um inal mais grandioso, mas n�o estou aqui para lhe mentir, de modo
que devo confessar que n�o sucedeu mais nada! Nem sequer desmaiei,
como Pedro Cego, quando viu a visagem dele! Acho mesmo que,
prosaicamente, cochilei um pouco, pois tinha me espichado no ch�o

para meditar sobre o que vira, o sono veio e adormeci. Mas, de qualquer
forma, foi um acontecimento decisivo para mim porque, a partir da�,
nunca mais a imagem da On�a-Parda se desligou, para mim, da imagem
do Mundo. A cara da On�a, mesmo, eu nunca mais vi, como naquele dia:
mas, de vez em quando, uma paisagem sertaneja, tornada mais peluda,
parda e espinhosa por ser coberta de Facheiros, me lembra o couro
sarnento dela! Eu j� lhe disse que Samuel e Clemente me consideram
absolutamente incapaz de ser o G�nio da Ra�a Brasileira?
� Mais ou menos!
� Mas acho que n�o lhe disse o motivo principal da opini�o
deles!
� Acho que n�o!
� Dizem eles que sou incapaz de escrever qualquer coisa que se
aproveite porque, em contato com os folhetos e romances de safadeza,
eu contra� tr�s defeitos grav�ssimos, o �desvio heroico�, o �desvio
obsceno� e a �galhofa demon�aca�. Eu iquei realmente impressionado
com isso, Sr. Corregedor, porque, por um motivo ou por outro, de fato,
foi nisso que me tornei, num safado galopeiro e galhofeiro. Eu ria de
tudo, em tudo o Diabo me mostrava e me mostra seu Espelho danado
de mil faces. Pensam que eu rio por alegria, ou ent�o, s� por esc�rnio e
deboche. Mas que alegria posso ter, sem ser Imperador do Brasil e
sabendo que meu riso prov�m de uma tenta��o? Meu riso tamb�m n�o
era de desespero: � apenas que eu vejo a Danada em todos os seus
aspectos! Foi, felizmente, nesse tempo, que me caiu nas m�os um livro
do genial escritor paraibano Humberto N�brega a respeito de Augusto
dos Anjos. Li, nesse livro, que os Poetas que t�m �a preocupa��o de
cantar a Dor universal� t�m uma esp�cie de face bifronte: por um lado,
s�o �facetos, �mulos de Greg�rio de Mattos na arte de chasquear�; por
outro, veem �na alegria uma doen�a e na tristeza a sua �nica sa�de�. Um
Poeta desse tipo �, segundo Humberto N�brega, ao mesmo tempo
�pat�tico, tr�gico, burlesco e espirituoso�; � um �fescenino e
irreverente� e tamb�m um �hipocondr�aco que padece de melancolia�.
� Que � que isso tem a ver com a On�a que o senhor viu? �
perguntou o Corregedor.
� � que, mesmo tendo eu tomado precau��es, nunca mais
permitindo que se juntassem perto de mim aqueles quatro elementos
diab�licos, aquela visagem me jogou, de uma vez para sempre, no

buraco cheio de cinza, na descoberta de que o mundo era um Bicho
sarnento e os homens os piolhos e carrapatos chupa-sangue que erram
por entre seus pelos pardos, sobre seu couro chagado, escariicado e
feridento, marcado de cicatrizes e peladuras, e queimado a fogo lento
pelo Sol calcinante e pela ventania abrasadora do Sert�o. Ali�s, acho
que estou exagerando um pouco: n�o foi propriamente no desespero
que ca�, foi numa esp�cie de vazio cego e meio insano. Naquele dia,
quando acordei do meu cochilo dormido embaixo da Imburana, iquei
um momento me co�ando, olhando em torno e procurando sentir com
as ideias aquilo que j� pensara com o sangue. Sentia que algo de
decisivo me acontecera. Sabia que, por mais que eu tentasse me distrair
da� para a frente, eu mesmo estava, como a On�a, sendo calcinado por
aquela ventania do Inferno. Tudo aquilo que eu possu�a de sangue e de
vida, estava, aos poucos, sendo queimado, calcinado, transformado em
cinza, em sarna e em p�. Quisesse ou n�o quisesse, eu tinha nascido da
On�a cega e sarnenta do Mundo. Assim, n�o admirava que meu destino
e meu sangue estivessem ligados ao sangue e ao destino dela, daquela
On�a que procurava, penosamente, indignamente, se manter de p�, com
as quatro patas em cima da terra dura e seca do mundo, exposta �
ventania de fogo e cinza quente que a crestava, atraindo-a para o centro
do buraco cego de onde era soprada. Lembro-me de que, enquanto me
co�ava, com um terror desanimado e sem grandeza, o pensamento que
me dominava era o de que eu s� tinha, para opor � visagem malfazeja
que o espelho me mostrara tra�ada nas pedras e espinhos do Sert�o,
aquelas quatro ou cinco ideias abstratas que tinham me fornecido no
velho Convento franciscano que servira ao Arcebispo da Para�ba, Dom
Adauto Aur�lio de Miranda Henriques, para instalar o Semin�rio da
Para�ba, minha pobre e � descobrira eu agora! � impotente
Universidade de Salamanca! S� uma voz eu ouvira, l�, e que tinha for�a
para, talvez, se contrapor ao buraco cego e vazio da Visagem, soprada
pelo vento seco e quente da Morte: era a voz daqueles Cantadores que,
como os nossos, do Deserto do Sert�o, tinham cantado, no Deserto
Judaico, cheiados pela voz rouca e cheia de brasas de Isa�as e Ezequiel.
Mas esses, Profetas parecidos com o nosso Naz�rio Moura � e a
terminar com os dois �ltimos e mais danados deles, Jo�o e Emanuel �,
exigiam, em troca da for�a e do exorcismo que me dessem, que eu fosse
s�brio, casto e humilde. Ora, o senhor j� sabe que meu maior desejo,

desde que n�s, os Quadernas, perdemos a terra e a Coroa, era
exatamente conseguir nova oportunidade de Trono, para, com isso, me
entregar � gula, ao vinho, �s mulheres e aos combates guerreiros,
tornando-me um homem poderoso, desejado e temido. Eu n�o queria
me tornar um rico vulgar e sem imagina��o, como o Comendador
Bas�lio Monteiro, porque, com meu sangue idalgo, nunca dei para
Burgu�s. Meu sonho sempre foi o de ser um daqueles grandes
Senhores, Cangaceiros e Pr�ncipes que apareciam nos folhetos. Era
arriscado. Mas, se eu me tornasse G�nio da Ra�a Brasileira, poderia
alcan�ar tudo isso sem matar ningu�m e tamb�m sem ter a garganta
cortada, destino de todo Guerreiro que se preza. Foi a� que li Sonho de
Gigante, um livro de J. A. Nogueira, que Samuel me emprestou. Falavase,
l�, na possibilidade de um Brasileiro escrever um livro bifronte,
tendo, por um lado, o �arremesso patri�tico e �pico� e, por outro, a
�gargalhada vergalhante�; um livro que aliasse �a hilaridade a um fundo
mais ou menos vis�vel de amargas preocupa��es e escura melancolia�,
com �uma face de sonhos lunares e amor ao Absoluto, e outra solar,
heroica�. Vi, ent�o, que, mesmo com aquelas contradi��es e mais com a
obsess�o da cinza que a visagem da On�a tinha instilado em meu
sangue, talvez por a� eu conseguisse instaurar, no meu sangue, a
unidade, e na Arte a mais alta nobreza do �estilo r�gio�. Dos folhetos,
havia dois que me impressionavam muito: eram a Hist�ria de Carlos
Magno e os Doze Pares de Fran�a e O Rei Orgulhoso na Hora da Refei��o.
Pela leitura deles, eu via que os Her�is parece que s� faziam tr�s coisas,
na vida: porque, quando n�o estavam na mesa, comendo e bebendo
vinho, estavam, ou na Estrada, brigando, montados a cavalo, armados
de espadas e com bandeiras desfraldadas ao vento, ou ent�o na cama,
montados em alguma Dama, trepando senhoras e donzelas
desassistidas. Vida era aquela, a vida dos Cangaceiros medievais como
Roberto do Diabo, ou dos Guerreiros sertanejos como Jesu�no Brilhante,
homens vestidos de Armaduras de couro, armados de espadas
compradas em Damasco ou no Paje�, bebendo vinho de Jurema e
Manac�, vencendo mil batalhas e sempre aptos a possuir mil mulheres.
Estas, mesmo quando n�o gostavam disso no come�o, terminavam
gostando no im: primeiro, por causa da fama deles; depois porque,
como me dizia uma rec�m-casada sertaneja em meu �Consult�rio
Sentimental e Astrol�gico�, �esse neg�cio de fuder no come�o � um

pouco incomodat�cio, mas depois at� entrete�. Estava eu, pois, nesses
impasses, quando descobri aquilo que minha fam�lia escondia
cuidadosamente de todos n�s: nossa descend�ncia do Rei Dom Jo�o
Ferreira-Quaderna, O Execr�vel, em cruzamento com a Princesa Isabel,
prima dele!
� Ah, e sua fam�lia escondia isso de voc�s?
� Escondia, sim senhor! Aquele meu bisav� de sangue godo, o
Padre Wanderley, Pai da minha av�, Bruna Wanderley, cortara do nosso
nome o Ferreira e s� deixara o Quaderna, que meu bisav�, O Execr�vel,
usava pouco e icara praticamente desconhecido. Meu Pai, Dom Pedro
Justino Quaderna, sabia de tudo, porque o Pai dele, Dom Pedro
Alexandre, lhe contara. Mas, depois de casado com minha M�e, uma
mo�a idalga se bem que bastarda, ilha do Bar�o do Cariri e irm� de
Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto, resolvera �sepultar aquelas
hist�rias todas no olvido e no passado�, como dizia ele, no seu estilo
alman�quico, e j� prenunciando o Poeta que eu iria ser, por herdar a
�ci�ncia� dele � bebida no Lun�rio Perp�tuo e no Livro de S�o Cipriano.
Al�m disso, meu Pai era lido e relido no Dicion�rio Corogr�ico do
Estado da Para�ba, de Coriolano de Medeiros, e nas Datas e Notas para a
Hist�ria da Para�ba, do genial Irineu Pinto. Da� em diante, meu Pai se
tornou, al�m de redator do Almanaque do Cariri, um pouco m�dico, com
as receitas do Lun�rio, um pouco Poeta, um pouco orador, e um pouco
historiador e Genealogista. O Professor Clemente e o Doutor Samuel,
quando mor�vamos na �Casa-Forte da Torre da On�a Malhada�,
costumavam ridicularizar meu Pai, a quem chamavam �O Fidalgote
Raizeiro�. Raizeiro, por causa das receitas do Lun�rio e dos ch�s de
ervas, e Fidalgote porque meu Pai, n�o sei como, descobrira que n�s,
Quadernas, �ramos descendentes do Rei Dom Dinis, O Lavrador. Esse
foi, ali�s, o motivo de meu nome: lendo, n�o sei onde, que um bisneto,
por linha bastarda, de El-Rei Dom Jo�o II, de Portugal, tinha recebido o
nome de Dom Pedro Dinis de Lencastre, resolveu �seguir tamb�m essa
tradi��o da fam�lia� e me botar o nome de Dom Pedro Dinis Quaderna.
O que foi, de fato, para mim, um tra�ado r�gio dos Astros: primeiro, por
causa do nome Pedro � pedra e Dom Pedro I �, e depois porque Dom
Dinis era, como eu, ao mesmo tempo Rei e Cantador, o que indicava
coisas muito s�rias na minha pretens�o de ser Rei e G�nio da Ra�a, isto
�, Poeta, Decifrador e Cantador nacional do Brasil. Apesar, por�m, de

todas as precau��es de meu Pai, meu Padrinho-de-crisma, Jo�o
Melch�ades Ferreira, o Cantador da Borborema, me revelou tudo sobre
a Pedra do Reino � a hist�ria das degolas, o Vinho encantado, as noivas
que meu bisav� dispensava na noite de n�pcias e antes dos maridos etc.
Vi que meu bisav� fora Rei, mas fora, tamb�m, Profeta de um
Catolicismo que Pereira da Costa chamava de �particular�, sertanejo. Vi
tamb�m que aquele era o Catolicismo que me convinha, uma religi�o
que, a um s� tempo, me permitia ser Rei e Profeta, e ter tantas mulheres
quantas pudesse, comer as carnes que quisesse em qualquer dia da
semana e beber tanto vinho quanto me desse na veneta, incluindo-se
entre estes o Vinho sagrado da Pedra do Reino, que nos mostrava o
Tesouro antes mesmo que ele fosse desencantado e descoberto. Era, em
suma, uma religi�o que me salvava a alma e, ao mesmo tempo, permitia
que eu mantivesse meu bom comer, meu bom beber e meu bom fuder,
coisas com as quais afastava a tenta��o da visagem da On�a e da Cinza.
Ao mesmo tempo, eu tomava, por caminhos de acaso, conhecimento
dos �escritos� deixados pelo Profeta e santo Peregrino do Sert�o, o
Regente do Imp�rio do Belo Monte de Canudos, Santo Ant�nio
Conselheiro. Na Astrologia, eu j� fora iniciado por meu Pai que, como
redator do Almanaque do Cariri, era Mestre nos Arcanos do Tar� e dono
da Chave da Cabala. Assim que tomei conhecimento dessas coisas, fundi
num fogo s� esses elementos dispersos, e descobri imediatamente que
a nova Religi�o fundada por mim, o Catolicismo-sertanejo, estava em
harmonia absoluta com o programa da minha vida, inluenciada, como
sempre e em tudo, por Samuel e Clemente. Como Catolicismo, era uma
religi�o bastante mon�rquica, cruzada e ib�rica para satisfazer o
primeiro; e como Sertaneja, era suicientemente popular e negro-tapuia
para ser considerada com simpatia pelo segundo. Posso, ent�o, concluir,
dizendo a Vossa Excel�ncia que foram esses os acontecimentos que me
trouxeram � minha atual condi��o de Profeta da Igreja Cat�licosertaneja
e Pr�ncipe de Sangue do Trono do Sert�o do Brasil!
� Entendo! � disse o Corregedor.
� Ent�o, j� pode entender tamb�m por que a V�spera de
Pentecostes era, naquele ano de 1935, t�o importante para mim, a
ponto de me tirar da Vila no momento em que ia se realizar uma
Cavalhada! Do ponto de vista lit�rgico, pol�tico e guerreiro, come�aria,
no dia seguinte, o tempo do Fogo pentecostal. Por outro lado, do ponto

de vista astrol�gico e zodiacal, naquele ano o Tempo de Pentecostes
coincidia com a for�a total do Signo de G�meos, que � o meu. Por isso,
naquela manh�, antes de sair a cavalo com Clemente e Samuel, fui para
a minha �Estalagem � T�vola Redonda�. Os vinte e quatro Cavaleiros que
iam tomar parte na Cavalhada esperavam, l�, por mim, para receber
ordens � incluindo-se entre eles, � claro, meus irm�os que iam ser
Cavaleiros e Reis, � tarde. Entreguei a todos as roupas, os mantos, as
selas, as lan�as e demais arreios e apetrechos-de-boniteza para a festa.
Dei ordem para que fosse servido a eles, na �T�vola Redonda�, um
almo�o que eu extorquira � e pago a peso de ouro � da Prefeitura. Dei
a meus irm�os as �ltimas instru��es. Ensinei como deviam se portar
com as bandeiras e estandartes, diante do Palanque, para n�o mostrar
nem vassalagem nem subservi�ncia diante daquelas autoridades da
Rep�blica. Lamentava n�o poder presidir ao almo�o daqueles
Cavaleiros da �T�vola Redonda�, mas tinha minhas obriga��es lit�rgicas
noutro ponto. Comecei, por minha vez, a fazer meus preparativos para
almo�ar no Lajedo, onde iria cumprir alguns rituais altamente
importantes e eicazes da Igreja Cat�lico-sertaneja. Para isso, teria de
cumprir certas obriga��es lit�rgicas, vestindo-me de modo especial:
cal�a e camisa �gandola� c�quis, alpercatas-de-rabicho e chap�u de
couro estrelado de metal � cabe�a, com signo-de-salom�o e tudo. Tinha,
ainda, o manto, � verdade. Mas este, eu o coloquei, dobrado, no bolso
direito da carona de �Pedra-Lispe�, primeiro porque ia sair
acompanhado de meus dois Mestres, e depois porque eu s� tenho
coragem de vesti-lo na estrada, j� longe dos olhares dos indiscretos da
Vila. Maria Saira, amante minha, tinha sa�do. Mas, antes de sair,
ordenara a Dina-me-D�i � a ilha do Profeta Naz�rio, que morava
conosco na �T�vola Redonda� � que me preparasse um farnel com
pa�oca, rapadura e queijo de coalho. Havia, ainda, um chaguer de couro,
cheio d��gua bem fria, e um pichel, tamb�m de couro de bode, cheio, at�
o gargalo de madeira, com meu famoso �Vinho Tinto da Malhada�.
Tomando tudo isso, e mais umas cajaranas que Lino Pedra-Verde tinha
me mandado de Estaca Zero, coloquei comidas e bebidas no bolso
esquerdo da carona. Voltei ao interior da �T�vola Redonda�, fui ao meu
quarto e, abrindo meu cofre de segredo, peguei meu �anel de pedra
amarela, de top�zio�, meu �anel de pedra verde, de esmeralda� e meu
�anel de pedra vermelha, de rubi�, assim como meu len�o de cambraia,

perfumado a benjoim e capim-s�ndalo. Peguei tamb�m o manuscrito do
Caminho M�stico do Peregrino do Sert�o, e o Caderno de Anota��es
Astrol�gicas e Geneal�gicas que tinha sido de meu Pai. Fechei o cofre,
voltei � rua, desamarrei �Pedra-Lispe� do p� de Tambor, e montado, fui
me juntar a meus dois Mestres, com quem sa� para a Caatinga. Como j�
disse, perdemo-nos no mato, mas terminamos encontrando o caminho
da volta, j� ao meio-dia, gra�as a meu Padrinho, Jo�o Melch�ades, que
nos guiou at� a Estrada Real. A�, Clemente e Samuel seguiram com ele
para a rua. Assim que os tr�s dobraram na primeira curva da Estrada,
olhei em torno, certiiquei-me de que estava realmente s�. Ent�o, tirei
do bolso da carona o Manto lit�rgico. Explico isso, porque tenho outro,
o r�gio, feito de peda�os costurados de couro de On�a e Gato-Maracaj�.
Mas aquele era o Manto prof�tico, feito de pano vermelho, cortado por
uma Cruz de ouro e tendo quatro crescentes, tamb�m de ouro,
colocados nos quatro quadril�teros vermelhos formados pelos bra�os
da Cruz. Tinha escolhido esse Manto, primeiro porque o Vermelho � a
cor lit�rgica de Pentecostes, e depois porque, num tempo que eu
julgava pr�ximo, por causa do �S�culo do Reino�, aquela seria,
aproximadamente, a forma e a cor dos nossos Estandartes, das
bandeiras de nossas tropas, para a �Guerra do Reino do Sert�o do
Brasil�!

A
FOLHETO LXXII
O Almo�o do Profeta
h, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos! Vejam como
� perigoso a gente se deixar possuir pelo fogo sagrado do sonho e
da Poesia! Quando eu vi, tinha deixado, j�, escapar essa coniss�o
tremenda! O Corregedor, por outro lado, foi implac�vel. Como um
Gavi�o, frechou sobre a presa que eu lhe oferecia, e, de dedo em riste,
falou para Margarida:
� Anote! Esse pormenor � important�ssimo para o inqu�rito!
Aterrorizado, iquei um momento em sil�ncio, olhando para ele,
magnetizado por seus olhos de cobra, enquanto Margarida, impass�vel,
anotava tudo, ao teleco-teco da m�quina de escrever. Quando ela
acabou, ainda meio atarantado, vi, por�m, que o jeito era continuar no
mesmo tom, como se aquilo que eu tinha dito fosse coisa sem gravidade
e perigo maior. Assim, falei:
� Al�m do manto de Cavaleiro, eu trouxera, tamb�m, minhas
outras ins�gnias imperiais e prof�ticas. O senhor j� ouviu falar num Rei
de Portugal chamado Dom Henrique?
� Dom Henrique, O Navegador? J�!
� N�o senhor, n�o � esse n�o! � outro, um velhinho, tio de Dom
Sebasti�o. Ele era Cardeal, e, quando Dom Sebasti�o morreu na Batalha
de Alc�cer-Quibir, o velhinho subiu ao Trono. Ora, al�m dele ser
Cardeal, estava velho e senil que era uma coisa demais! Portugal
precisava de um herdeiro para o Trono que, sem isso, iria cair nas m�os
de Filipe II, da Espanha, que era, tamb�m, tio de Dom Sebasti�o. A�, o
velhinho se animou. Conseguiu uma licen�a da Santa S� para gerar um
herdeiro para a Dinastia. Acontece, por�m, que se a Santa S� podia dar a
licen�a, n�o podia fazer o milagre que tornaria a licen�a eicaz. Pois
bem: o velhinho j� estava t�o senil e caduco que meteram v�rias ideias
na cabe�a dele. Uma dessas, foi a de mamar nos peitos de uma Ama
jovem para ver se, assim, recuperaria a virilidade, gerando um ilho

para o Trono. Conto isso somente para ilustra��o: porque, a mim, o que
interessa em Dom Henrique � que eu sou, como ele, uma esp�cie de
Cardeal-Rei, ou melhor, de Imperador e Profeta, sendo este o motivo
das minhas ins�gnias. Naquele dia, como j� disse, meu rile �Serid�� j� ia
amarrado no ar��o da sela. A minha legend�ria espada �Paje�� j� estava
pendurada � minha cintura. Assim, empunhei meu Ferr�o sagrado e
real, isto �, minha legend�ria lan�a �Cariri�, a aguilhada sertaneja que
me serve, ao mesmo tempo, de Cetro real, de B�culo prof�tico e de
Lan�a guerreira. E como j� estava com meu chap�u de couro estrelado �
cabe�a, completei-o com a parte superior de metal, formando, assim, a
legend�ria Coroa de couro e prata do Sert�o. Agora, eu, Dom Pedro
Dinis Quaderna, O Decifrador, podia me considerar legitimamente e
liturgicamente vestido com as roupagens e ins�gnias indicadoras da
minha qualidade de soberano, profeta e gr�o-mestre da �Ordem do
Reino�. Como o senhor v�, o meu � um posto que nada deve ao do meu
antepassado Dom Dinis, O Lavrador, aquele outro Rei de Portugal, que,
sendo Poeta e Cantador como eu, tinha sido tamb�m, no seu tempo,
gr�o-mestre da �Ordem de Cristo�. Ent�o, assim como lhe digo, de Coroa
de couro e prata � cabe�a, de manto vermelho �s costas e empunhando
a Lan�a com a m�o direita, sustentei as r�deas com a esquerda e,
pinicando �Pedra-Lispe� no cachorro-da-espora, esquipei cerca de
quil�metro e meio pela estrada, em dire��o � Vila, depois de dar tempo
suiciente para que Jo�o Melch�ades, Clemente e Samuel se adiantassem
a mim. Cheguei, ent�o, ao lugar que procurava. Apeei-me, puxei �Pedra-
Lispe� para fora da estrada, amarrei-o pelo cabresto num p� de
marmeleiro, e, a p�, comecei a subir o terreno ladeiroso, espinhento e
empinado que leva a meu Lajedo. O cheiro do mato, ali, era, agora, um
cheiro de folhas de marmeleiro machucadas, cheiro que se misturava a
outro, mais long�nquo, de madeiras resinosas mal queimadas. N�o
muito longe, algu�m devia estar queimando alguma coivara e era o
cheiro dela que se misturava ao das folhas de marmeleiro pisadas e
acumuladas na sombra. Desde que eu era menino, Sr. Corregedor,
aquele lugar era sagrado para mim. Uma vez, errando por ali ao acaso e
� aventura, eu encontrara um ninho de Juriti, pousado numa forquilha
de marmeleiro. Havia, nele, dois ovos pequenos, lindos, brancos, puros,
reluzindo sobre a penugem fofa e ainda quentes do calor da f�mea que
voara, espantada por meus passos. Naquele s�bado de 1935, como para

me advertir dos acontecimentos que iriam suceder, houve tamb�m uma
apari��o-de-p�ssaro. N�o foi uma Juriti: foi uma Codorniz que levantou
voo de repente, quase de cima dos meus p�s, assustando-me e
encantando-me. Acho que o senhor, homem da Capital, nunca passou
por isso, e portanto n�o pode saber como �! A gente vai andando no
mato, e, de repente, um Tejo enterra os p�s de bem perto, fazendo um
estrup�cio danado! O cora��o da gente ica batendo com o susto e a
excita��o, principalmente quando se traz, por acaso, a espingarda. Mas,
o melhor de tudo, � ouvir, logo depois que o bicho correu ou voou e
tudo est� calmo de novo, o sil�ncio e os barulhos normais do mato. Pois
bem: naquele dia, a Provid�ncia e os astros enviaram a Codorniz para
me avisar, e eu, homem cego e pecador, n�o entendi logo a advert�ncia.
Pelo contr�rio: como se aquele fosse um dia normal de Lajedo, comecei
a subir o serrote que leva � minha pedra-de-ara, picando-me nos
espinhos dos cactos e queimando-me nos ac�leos c�usticos das Favelas
e das folhas de Urtiga. Quando cheguei ao p� do Lajedo, j� tinha levado
uma furada de espinho de Mandacaru um pouco acima do joelho e uma
queimadura de Urtiga na m�o. Isso, por�m, n�o poderia ser
considerado aviso especial da Provid�ncia, pois estava dentro do
cabedal de acontecimentos normais daquela excurs�o. Mas o que veio
logo depois, isso foi aviso, e aviso claro. A subida do Lajedo � facilitada
por alguns blocos que tinham se destacado de cima, lascados pelo calor
ou pelos raios, assim como por sali�ncias, furnas e outras lascas
menores, o que formava uma esp�cie de escada irregular e complicada,
at� o topo da pedra grande. Comecei a subir. Quando j� estava perto da
parte de cima, numa �ltima volta que a subida dava, senti, de repente,
uma dor terr�vel no pesco�o, como se algum Dem�nio tivesse me picado
com uma agulha envenenada: um Maribondo-Caboclo, cuja casa eu
tinha assanhado sem ver, dera-me uma ferroada. Novamente a
Provid�ncia me dava um aviso, e eu insistia em continuar, inteiramente
cego aos recados divinos! Cheguei � parte de cima da grande e alta
pedra. Ia respirando fundo, coberto de suor e meio tonto, tanto pela dor
como pelo veneno c�ustico do terr�vel Maribondo vermelho, de duas
polegadas de tamanho. � medida, por�m, que a dor ia aliviando um
pouco mais, o suor e o calor come�aram a se dissipar, ante a ventania
que soprava ali, no alto, ainda fresca e pura por estarmos no m�s de
Junho, o mais agrad�vel aqui do Sert�o. Fiquei ent�o sentado uma

por��o de tempo, recuperando-me ali, em cima da pedra, ao abrigo da
folhagem de tr�s �rvores grandes que cercam meu Lajedo e cujas
frondes icam situadas acima do seu topo, uma Bra�na, um Angico e um
p� de Tambor. A dor ia desaparecendo aos poucos, pelo menos em sua
primeira fase. � verdade que, provavelmente, da� a pouco, eu come�aria
a sentir frio, febre e dor de cabe�a, com os g�nglios do pesco�o e dos
sovacos inchados. Mas como, felizmente, esses sintomas ainda n�o
tinham aparecido, iquei ali um bom peda�o de tempo sem fazer nada, a
n�o ser devanear e sonhar, olhando a ma�aranduba do Tempo e vendo,
por entre os galhos do p� de Tambor, os telhados das casas da Vila, que
podem ser avistados dali. N�o todos, mas os da Rua da Usina e os da
Rua do Chafariz, os telhados castanhos, batidos de Sol.
� A Rua da Usina � a rua da qual o cabra baixou para o leito
seco do Rio Tapero�, sendo morto ent�o, n�o � isso?
� �, sim senhor! Mas isso n�o tem grande import�ncia! O que
interessa � que estava chegando a hora do almo�o e eu precisava
cumprir meus rituais da Ordem da Pedra do Reino.
� O qu�, homem? � disse o Corregedor, com uma express�o
cheia de segundas-inten��es. � Os rituais da Pedra do Reino? N�o me
diga que voc� degolou algum cachorro ou mesmo algum menino!
� N�o senhor, o que iz foi coisa muito mais importante do que
isso! Ergui-me da ponta de pedra em que estava sentado, tirei o chap�u
de couro, que coloquei a um lado. Forrei uma sali�ncia chata do Lajedo,
que me servia de Altar, com o Len�o de cambraia. Pendurei no pesco�o,
por uma corrente longa, o anel amarelo de Top�zio. Coloquei, no anular
esquerdo, o anel de Rubi vermelho, e, no direito, o anel verde de
Esmeralda. Assim preparado, num dos lados do Altar de pedra, abri o
Caminho M�stico, do Santo Peregrino do Sert�o, isto �, Santo Ant�nio
Conselheiro de Canudos. Do outro, abri o Caderno Astrol�gico que meu
Pai me legara, copiado cuidadosamente pelo pr�prio punho dele, com
tinta negra e vermelha, heran�a inestim�vel para minha carreira de
Poeta de sangue, de ci�ncia e de planeta, de Decifrador e Mestre dos
Arcanos do Tar�. Coloquei tamb�m sobre o altar o pichel de vinho, o
farnel com pa�oca e queijo de coalho, e ent�o comecei a cerim�nia. Sim,
Sr. Corregedor, a cerim�nia. Porque na Igreja Cat�lico-sertaneja, o
almo�o n�o � somente uma refei��o: � um nobre e lit�rgico ritual,
cuidadosamente planejado para servir ao mesmo tempo ao prazer, ao

esp�rito e ao sangue dos nossos Fi�is! Mod�stia � parte, n�o existe, no
mundo, religi�o mais completa do que a minha! Nela, o almo�o,
principalmente quando organizado � base de pa�oca com carne de sol e
queijo de coalho, e tamb�m a bebida de vinho e a posse das mulheres,
tudo isso � colocado a servi�o da ediica��o da alma dos meus adeptos e
seguidores! Veja o senhor: o Juda�smo e o Cristianismo dos santos,
m�rtires e profetas, permitem o Vinho, mas s�o religi�es severas e
inc�modas como o diabo! O Maometanismo � uma religi�o deleitosa:
permite que a gente mate os inimigos e tenha muitas mulheres. Em
compensa��o, pro�be o Vinho! A Igreja Cat�lico-sertaneja � a �nica
religi�o do mundo que � bastante �judaica e crist�� para levar ao C�u e,
ao mesmo tempo, bastante �moura� para nos permitir, aqui logo, os
maiores e melhores prazeres que podemos gozar nesse mundo velho de
meu Deus! Ali�s, Vossa Excel�ncia j� deve ter notado isso, quando
ouviu, h� pouco, a hist�ria da Pedra do Reino que eu li para o senhor,
porque tudo aquilo que aconteceu por l� eram os rituais executados por
meus antepassados em sua extraordin�ria Desaventura tr�gicoepopeica.
A carne de sol, o queijo de cabra, o vinho, as sobremesas de
rapadura do Cear� ou de goiabada de Arcoverde, as mulheres � tudo
isso faz parte dos rituais religiosos com que prestamos nosso culto �
Divindade Sertaneja!
� Divindade sertaneja? E existe uma, especial? Quem �? N�o �
Deus, n�o?
� Conforme, Sr. Corregedor! Como o senhor sabe, essas coisas
de religi�o s�o di�ceis e complicadas. Isso, no geral. No que se refere ao
Catolicismo-sertanejo, ele �, muito mais do que o romano, povoado de
coisas astrosas e fat�dicas que o senhor s� ir� entendendo melhor aos
poucos! Por enquanto, basta que eu lhe diga que a nossa Divindade
Sertaneja � o mesmo Deus mouro, judaico e cat�lico, se bem que seja
mais parecido com aquele Deus do Deserto do que com o Deus que o
Padre Renato nos apresenta na Missa. O nosso Deus � mais parecido
com aquele que queimava a boca dos Profetas com uma brasa e que
aparecia no Sert�o da Judeia �vestido de coivara�!
� �Vestido de coivara?� � disse o Corregedor, intrigado.
� Eu digo desse jeito por �patriotismo sertanejo e brasileiro�!
Mas, se o senhor prefere, pode dizer de um jeito mais estrangeiro.
Nesse caso, o senhor se referir� ao Deus que aparecia no Deserto

judaico �sob a forma de uma Sar�a ardente�! Al�m disso, o senhor
precisa saber de outras diferen�as. Por exemplo: a Sant�ssima Trindade
cat�lica, comum, � formada por tr�s Pessoas. A nossa Sant�ssima
Trindade tem cinco, e � sempre igurada atrav�s do animal her�ldico e
armorial brasileiro por excel�ncia, a On�a Malhada. � por isso que,
naquele dia, como eu vinha contando, eu me voltei, primeiro, para a
dire��o do Paje�, onde est�o as duas Torres de pedra do nosso Reino. E,
abrindo o Livro escrito pelo Peregrino do Sert�o, comecei a recitar, em
tom de salmodia, minha primeira invoca��o a Adonai, � terr�vel
Divindade sertaneja e onc�stica que atende, tamb�m, pelo nome de
Aureadugo!
� Pelo nome de qu�? � perguntou o Corregedor, novamente
espantado.
� De Aureadugo, Excel�ncia. �Adugo� � o nome tapuio da On�a
Malhada. �Aureadugo� � o nome formado pela contra��o do artigo
��ureo�, isto �, �de ouro�, parte tapirista de Deus, com a preposi��o
�adugo�. O �Aureadugo� �, portanto, a On�a Malhada e de Ouro do
Divino. � o mesmo Adonai judaico e esses s�o os nomes mais terr�veis
do Deus sertanejo do Deserto da Judeia. Por isso, naquele dia, voltandome
na dire��o do Paje�, falei assim: �� Adonai! � meu Deus judaicotapuia
e mouro sertanejo! Considerai que qualquer coisa � bastante
para me tirar a vida! Uma gota de salmoura que des�a ao cora��o
entupindo uma art�ria, uma veia importante que se rompa em meu
peito, uma sufoca��o de tosse, uma forte opress�o interna, um luxo
impetuoso do meu sangue, uma Cobra-Coral que me morda, uma febre,
uma picada, um corisco de pedra-lispe incendiada, um raio, uma
pedrinha de areia nos rins, um inimigo audacioso, uma pedra que se
despenque de um serrote � tudo isso e qualquer coisa pode me cortar
o N� do sangue, roubando-me a vida em dois tempos! Por isso, Senhor,
n�o leveis a mal que, enquanto estou aqui no Mundo, capaz de gozar
esta vida que V�s mesmo engendrastes � juntando o barro da terra
sertaneja com o Sol e o furor dos vossos lombos �, eu vos preste as
homenagens deleitosas que devo � Divindade e que as inicie bebendo
uma boa lapada do meu Vinho Tinto e Sertanejo da On�a Malhada!�
Dizendo estas palavras, Sr. Corregedor, peguei o pichel de couro de
bode, tirei-lhe a tampa de madeira e, levando o gargalo � boca, ergui a
cara para o c�u e tomei a primeira grande lapada de vinho. Um doce

calor e um suave formigamento come�aram logo a me percorrer o
sangue, aliviando mais a dor da ferroada do maribondo e convidandome
logo a me espichar em cima do Lajedo, para cochilar. Mas, nessas
coisas de religi�o, eu sou duro e iel: havia, ainda, v�rias partes do ritual
a cumprir, de modo que reagi e n�o me deitei. Eu lera estas palavras,
que acabo de ler para o senhor, no Livro do Peregrino do Sert�o. Voltei a
p�gina, molhando o dedo na l�ngua, exatamente como via o Padre
Renato fazer com o Missal, nas missas dos domingos. A�, li de novo, em
voz alta: �� Adonai, � Adugo, � Jaguar Sertanejo do Terr�vel! Considerai
que sou um pecador, eu, bocado de terra parda e sertaneja amassada no
sangue e no Sol! Por isso, em terra brevemente me vou de novo a
converter! Lembrai-vos de quantas vezes, contra minha vontade, j� me
vi metido nas correrias, guerras e emboscadas do Sert�o! Posso, de
novo sem querer, me ver metido noutra e ser assassinado, com meu
corpo deixado ao Sol, na estrada empoeirada, para ser comido pelos
Carcar�s! E mesmo que eu tenha a sorte de morrer na cama, ainda
assim nada muda: serei sepultado na terra dura, quente e seca do
Sert�o, para ser pasto de animais cegos e salamandras de fogo, de pele
luzidia! Sim, porque o General Dantas Barretto j� adverte todos n�s de
que, no ch�o sertanejo, �os raios do Sol candente batem em cheio, com
intensidade destruidora, e o solo abre as entranhas por grandes fendas
em que se precipitam r�pteis famintos, � procura de alimentos que n�o
encontram � super�cie de fogo�. Assim, este corpo, que agora me d�
tantos estreme�os de prazer com Maria Saira, h� de apodrecer. Minha
cara, minha boca, meus cabelos, h�o de cair aos peda�os. Meus olhos
v�o ser comidos pelos Gavi�es! Meu corpo se tornar� um esqueleto, a
princ�pio f�tido e medonho; depois, embranquecidos pelo Sol, meus
ossos h�o de separar-se uns dos outros! Minha cabe�a h� de se apartar
do tronco, como aconteceu com a de meu bisav� na Pedra do Reino!
Assim, j� que vou ser comido pelos Gavi�es e Carcar�s, pelos Urubus e
Cachorros-do-Mato errantes no Sert�o, � Senhor, n�o leveis a mal que
agora, enquanto estou vivo, eu me deleite comendo a carne dos bichos
que cacei e matei, principalmente esta carne de pa�oca e estes nacos de
carne de sol assada, tirados do lombo e do patim do Bode que sangrei
ontem, em vossa homenagem!� Voltei ent�o as costas para meu Altar, Sr.
Corregedor, e, numa trempe de pedras que j� havia l�, suja de cinza por
outros rituais semelhantes que eu celebrara noutros dias, acendi fogo.

Usei, para isso, folhas secas e gravetos, que incendiei tirando fa�scas
com uma placa de a�o, na pedra do meu Corrimboque. Tirando uma
panela, que escondera, h� muito tempo, numa pequena loca da pedra,
coloquei e esquentei nela minha cheirosa e gostosa carne de sol com
pa�oca que a endemoninhada Maria Saira tinha preparado. Essa parte
de comer carne assada, �, ali�s, Sr. Corregedor, um dos rituais que eu
cumpro com mais prazer e gosto no meu Catolicismo-sertanejo.
Principalmente quando, como naquele dia, a pa�oca est� enriquecida
com ovos cozidos, cebolas e toicinho-de-terreiro, tudo bem torrado,
bem adubado e bem salgado! Comecei ent�o, como vinha dizendo, a
comer ritualmente os nacos de carne de sol, misturando-os com a
pa�oca e evitando os entalos e engasgos da comida seca e salgada,
gostos�ssima, com deliciosos e grandes goles do meu Vinho Sertanejo
da Malhada. Quando me fartei de carne assada e pa�oca, terminando
outra parte do ritual, voltei ao Altar, folheei o Livro do Peregrino do
Sert�o e o Almanaque Astrol�gico, Zodiacal e Geneal�gico do Cariri,
salmodiando de novo, nos seguintes termos: �� Adonai! � On�a Tapuia,
Negra e Malhada do Divino do Sert�o! Esta Rep�blica dominada por
Burgueses gordos �, sem d�vida, um grande mal para o Imp�rio do
Sert�o do Brasil! Ela pretende minar e desmoralizar o Povo da On�a
Castanha e o nosso Catolicismo-sertanejo, esta obra-prima de Deus,
religi�o mais perfeita e mais antiga do que o Catolicismo romano! Este,
tem somente vinte s�culos, enquanto a nossa sagrada Religi�o da Pedra
do Reino foi fundada no Deserto sertanejo da Judeia, junto �s Pedras do
Reino do Sinai e do Tabor! O Presidente da Rep�blica, seus cupinchas e
os gordos ricos, entendem que podem governar, trair e vender o
Imp�rio do Brasil a seu bel-prazer! No entanto, o Brasil est�
predestinado para o Monarca Castanho do Povo, aquele que foi
legitimamente constitu�do por Deus para fazer o bem e a grandeza do
Povo Brasileiro! Quanta injusti�a n�s, Cat�licos-sertanejos,
contemplamos amargurados! O poder do Presidente n�o � leg�timo, a
Rep�blica n�o � leg�tima! Todo poder leg�timo � uma emana��o da
Onipot�ncia eterna do Deus Sertanejo atrav�s do Povo, e portanto est�
sujeito � regra divina da nossa Santa Igreja da Pedra do Reino, tanto na
ordem temporal como na espiritual! Todos os Brasileiros deveriam
estar obedecendo a Quaderna, Pont�ice, Rei e Profeta, porque,
obedecendo a ele, � a Deus que todos obedecem! � evidente, para todas

as pessoas de bem, que esta Rep�blica permanece sob um princ�pio
falso e s� traz o mal, para o Povo Brasileiro! Ainda, por�m, que ela
trouxesse algum bem, ainda assim � m� por si mesma, porque contraria
a Lei sagrada do Povo e do Sert�o! Quem n�o sabe que o digno Pr�ncipe,
o Senhor Dom Pedro Dinis Quaderna, deveria, logo, ser coroado como
Dom Pedro IV, O Decifrador, Rei do Sert�o, Imperador do Brasil e Sumo
Pont�ice da Igreja Cat�lico-sertaneja, sendo, como tal, reconhecido
pelas Na��es? Negar estas verdades seria o mesmo que dizer que o Sol
n�o � divino e n�o descobre sempre um novo dia, aos raios de seu fogo
de Ouro! � erro, e erro grave, dizer que a fam�lia real dos Quadernas
n�o deve mais governar o Brasil, como fez h� um s�culo, na Pedra do
Reino do Sert�o do Brasil! Uma coisa � o Sert�o, outra � o Mundo! Se o
Mundo fosse divino, ainda se poderia duvidar. Mas o Sert�o � que �
divino, e o Sert�o s� jura e pune pelo sangue real dos Quadernas! Por
isso, esta Rep�blica da iniquidade cair� por terra e, mais cedo ou mais
tarde, Deus far� a devida justi�a! A Rep�blica se acaba breve: �
princ�pio de Espinhos! O Pr�ncipe � o verdadeiro dono do Brasil! Das
ondas do Mar, Dom Sin�sio Sebasti�o sair� com todo o seu Ex�rcito.
Tira a todos, no io da Espada, desse papel da Rep�blica, e o sangue h�
de ir at� a junta grossa. Quem for Republicano, mude-se para os
Estados Unidos! O Tempo est� chegando, o S�culo vem vindo! preciso
que Deus e o Povo n�o deixem em sil�ncio a causa verdadeira e a
origem de todos os obst�culos que o Presidente da Rep�blica e seus
cupinchas levantam, para impedir que a Fam�lia imperial dos
Quadernas chegue de novo ao Trono do Brasil: � o medo, � o horror de
que todos icaram possu�dos, ao saber que, na Pedra do Reino, h� um
s�culo, Dom Jo�o II, O Execr�vel, mandou sacriicar sete mil Cachorros
que, se o Reino tivesse continuado, teriam ressuscitado como ind�mitos
Drag�es, para devorar os poderosos e conirmar o Imp�rio, acabando a
escravid�o do Povo, a trai��o ao Brasil, e instaurando, de uma vez para
sempre, a justi�a e a monarquia do Povo, atrav�s da Coroa de couro e
prata da On�a Malhada do Sert�o!�
� De onde o senhor tirou toda essa lenga-lenga disparatada? �
perguntou o Corregedor, irritado.
� A maior parte das minhas palavras, Sr. Corregedor, era tirada
das li��es e escritos do Peregrino do Sert�o. Mas o senhor compreende
que eu tinha que acrescentar e adaptar certas coisas, para tudo icar

mais claro para o Povo Brasileiro, n�o � mesmo? Por exemplo: Santo
Ant�nio Conselheiro diz, de fato, � que �o digno Pr�ncipe, o Senhor Dom
Pedro III, tem poder legitimamente constitu�do por Deus para governar
o Brasil�. Mas eu substitu� Dom Pedro III por Dom Pedro IV. Por outro
lado, sempre que falo na Fam�lia Imperial, tenho o cuidado de
esclarecer que estou falando dos Quadernas, sen�o daqui a pouco os
Bragan�as v�o logo icar assanhados, pensando que minha refer�ncia �
a eles. Eu estava, Sr. Corregedor, vivendo um tempo de grandes
esperan�as! Minha fam�lia tinha reinado sobre o Brasil exatamente de
1835 a 1838, de modo que o S�culo do Reino vinha chegando, e era
tudo isso que se reletia nas minhas preces e invoca��es, no Lajedo.
Terminada, ent�o, aquela que acabo de contar, entrei pela parte da
comida de queijo de coalho, que comecei a comer aos peda�os, com p�o
bem manteigado, ainda sempre acompanhando os bocados com meu
Vinho Tinto da Malhada. Depois de terminar o queijo com p�o � parte
das mais lit�rgicas, porque, como o senhor sabe, o p�o e o vinho tinto
s�o coisas muito s�rias � voltei ao meu Altar e, segurando em dire��o
ao C�u o meu anel de pedra-amarela de Top�zio, falei assim: �� meu
Planeta! � Sol de Merc�rio! � Espada merc�rio-solar que o Zod�aco me
destinou! � L�mina astral de dois Gumes! Cobri-me com vossos raios,
em exalta��o, sob o inluxo do meu duplo Signo G�meo e Arqueiro!
Garanti minhas qualidades para as Artes e as Ci�ncias Ocultas! Garantime
meu Vinho, meu Reino, meu Poder, os Bodes para os sacri�cios, a
Coroa e o Cetro no Trono da Pedra do Reino! � meu astroso e fat�dico
Planeta! Livrai-me da atual Mulher, mercuriana e endemoninhada que
se apossou do meu sangue, e fazei aparecer diante de mim a Outra, a
Venusiana de signo louro-cabrum com que sonho h� tanto tempo! Daime
aquela a quem seu Planeta, regando o �rg�o feminino da gera��o,
coloque, no centro mesmo do seu corpo, um ponto sagrado de Reino e
Sangue, irme e seguro para mim, tanto na esfera espiritual como na
esfera sexual!�
Ao recitar essa parte, n�o deixei de lan�ar um rabo-de-olho para
Margarida, para ver se ela tinha entendido meu apelo oculto. Mas
Margarida, revelando, mais uma vez, sua natureza cruel e indiferente,
n�o me deu a menor import�ncia, nobres Senhores e belas Damas de
peitos brandos! Ent�o, dando um suspiro, voltei-me novamente para o
Corregedor e continuei a narra��o:

� Terminada essa reza-forte, e acabado o queijo de coalho com
p�o, fui � carona, que levara comigo para o alto da pedra, a im de
retirar, do seu bolso, uns Umbus e Cajaranas que tinha trazido, assim
como o pacote com os tacos de rapadura que seriam minha sobremesa
naquele dia. No momento em que, eniando a m�o, tinha pegado tudo e
j� ia retir�-la, senti de novo uma violent�ssima picada na ponta do dedo
m�dio da m�o direita: tinha sido picado por um Lacrau, ou melhor, por
uma Lacraia, porque era uma bicha enorme, aurivermelha, uma bicha
que eu, louco de dor e de raiva, consegui fazer sair do esconderijo e
esmagar com a sola das alpercatas, em cima do Lajedo. Lembrei-me
logo de que entre os versos de um Epigrama que eu tinha feito, aqui,
contra um Poeta escalavrado, havia uma estrofe que dizia:
�O Bode fede a Vida
mas a Lacraia pica e traz a Morte.
Vida � carne sentida:
� Sina mal cumprida
entre Clar�es de m� Cegueira e Sorte.�
� O que � que o senhor quer dizer com isso? � perguntou o
Corregedor.
� Sei n�o senhor! Eu estava comendo carne de bode e bebendo
vinho, e agora, picado por uma lacraia, era como se o Bode fosse um
signo da Vida, e a Lacraia envenenada um signo armorial da Morte! Era
mais um aviso dos astros e da Provid�ncia! O que eu sei � que, se n�o
ca� logo morto, ali, estatelado, foi porque j� estava icando vacinado aos
poucos com a espinhada do Mandacaru, as queimadelas de Urtiga e
com o veneno do Maribondo-Caboclo. Acho tamb�m que o Vinho tinto
ajudava, espalhando o sangue, sendo esse o motivo de eu n�o ter
morrido! Sentei-me, esperei um bocado para que a dor aliviasse mais, e
s� ent�o comecei a comer os Umbus e as Cajaranas, cujo suco, por sorte,
como todo mundo sabe, � �timo para veneno de Lacraia f�mea. Estava,
agora, chegando ao im da refei��o ritual, de modo que tinha de me
apressar nas preces, voltando a me dirigir de novo diretamente � On�a
Malhada do Divino. Terminando de comer as frutinhas, fui novamente
ao Altar e falei para a Divindade assim: �Quando chegar o S�culo do

Reino, e for anunciada a Vig�lia de fogo, o Senhor enviar� a Coluna de
brasas sobre o acampamento e o territ�rio dos estrangeiros e dos
criminosos e poderosos aliados seus. A On�a de fogo do Sert�o
destruir� seus Ex�rcitos, despeda�ando as rodas dos carros-decombate,
e todos os traidores ser�o arrojados do Sert�o para o fundo
do Mar. Dir�o assim os Estrangeiros: �Fujamos dos Brasileiros e outros
Latinos, porque o Deus de Fogo peleja a favor deles e contra n�s!� E o
Deus de Fogo dir� a Quaderna: �Estende a tua M�o desde a Pedra do
Reino at� o Mar, para que as �guas de Sal se voltem contra os
Estrangeiros e corroam seus Carros diab�licos, suas m�quinas de fogo e
sua cavalaria de engenhos de chamas!� E assim ser�! Quando Quaderna
estender sua m�o, quando o Rei brandir o seu Cetro e o Profeta seu
B�culo, o Pr�ncipe do Povo, o Mo�o-do-Cavalo-Branco ser� suscitado e o
Mar far� so�obrar os traidores, reluindo depois, ao amanhecer, para o
lugar que ocupava. Naqueles dias, o Rei escrever� um Canto para o
ensinar ao Povo do Brasil, aos ilhos do Sert�o do Mundo. E depois de
suscitado o Pr�ncipe pelo Canto, o Senhor do Fogo ordenar� a Sin�sio,
ilho de Dom Pedro Sebasti�o, dizendo: �Anima-te, s� forte e tem
coragem, porque tu far�s entrar os ilhos do Sert�o no Reino que lhes
prometi; e Eu estarei com o Povo.� Como de fato: logo que Quaderna
acabar as palavras deste Canto e desta Lei no seu Livro, ordenar� aos
Sertanejos que levem a Arca-de-Pedra-da-Alian�a ao Trono. E dir�:
�Tomai este Livro e enterrai-o ao p� das Torres de pedra da Catedral
encantada do Reino, para que ele sirva de fundamento e pedra-angular
para o Imp�rio do Brasil.� E quando os Estrangeiros fugirem,
desbaratados, juntamente com os traidores que os apoiam, encontrarse-
� o sagrado Deserto do Sert�o com as �guas salgadas e sagradas do
Mar. Assim, naquele dia, o Senhor do Fogo livrar� o Sert�o, e o Povo
ver� seus inimigos mortos na Praia do Mar, pelo castigo que a m�o
poderosa da Divindade executar� contra eles, contra sua injusti�a, sua
dureza e sua iniquidade. Ent�o Quaderna, subindo � sua Pedra, entoar�
com o Povo o sagrado Canto que o mesmo Quaderna fez, dizendo:
�Cantemos ao Deus de Fogo do Sert�o, porque ele manifestou
gloriosamente seu poder, precipitando no Mar as m�quinas e as
empresas, os engenhos infernais dos Estrangeiros e traidores,
castigando a for�a e o opr�brio dos Poderosos que nos oprimiam e
exaltando o Sert�o, com sua coragem, suas pedras, seus espinhos, seus

cavalos e seus Cavaleiros!�� Persignando-me ent�o, Sr. Corregedor, dei
as costas ao Altar pela �ltima vez, e comecei a comer tacos e tacos de
rapadura, sendo que, agora, n�o os acompanhava mais com Vinho e sim
com gostosos goles d��gua, bebidos no gargalo do meu chaguer de
couro. Este, deixando rever um pouco de umidade, tinha esfriado a �gua
de dentro que, derretendo a rapadura dentro da boca, chegava mesmo
na hora e estava uma del�cia, principalmente com a sede que tinham me
deixado o Sol, o sal da carne e o Vinho do pichel. E, chegando ao im
dessa parte, foi erguendo a �gua sacriical para Deus que lhe dirigi
minha �ltima s�plica, dizendo: �Meu Deus Sertanejo! Minha On�a
Malhada, meu divino Jaguar de sangue, fogo e pedras preciosas! Eu n�o
creio em nada! Vinde inlamar meu sangue com aquele dom de fogo
chamado a f�, mesmo que vossa F� venha a me queimar com a ventania
deste meu Reino sagrado e sangrado, o Espinhara, o �sert�o� incendi�rio
e abrasador! Esta ventania de fogo queima e maltrata, mas cura e
cicatriza, e �, portanto, o come�o da Salva��o. � On�a-Vermelha do Pai!
� On�a-Negra do Encourado! � On�a-Parda-e-Castanha do Filho! �
Cor�a Branca! � Gavi�o de Ouro do Sol do Esp�rito Santo! � preciso que
a On�a do Mundo � sarnenta, chagada e purulenta � se transigure na
On�a de Ouro Malhado, assentada, n�o mais sobre o Buraco vazio,
devorador e cego da cinza, mas sim sobre o Lajedo irme e forte do
Divino! S� assim meu Reino ser� verdade, s� assim meu sangue e meus
ossos ser�o verdade, s� assim ser� verdade a Furna do Mundo e a Furna
sagrada para onde todos n�s caminhamos e que sagra a On�a da Vida
pela On�a da Morte, realizando sua uni�o inal com a On�a Sagrada do
Senhor de Fogo! � isso o que espero de V�s, Senhor, agora e por todos
os s�culos dos s�culos, Am�m!�

BANDEIRA DO TOURO ALADO.

� S
FOLHETO LXXIII
Cavalhadas de S�o Jo�o na Judeia
aciado da fome que vinha sentindo desde que tinha me perdido
na Caatinga, Sr. Corregedor, e religiosamente dessedentado da
sede espiritual do Deserto Sertanejo, espichei-me ent�o �
sombra do p� de Bra�na que icava � direita do Lajedo. Deitado meio de
lado, com a cabe�a numa pedra sobre a qual eu colocara o manto
enrolado, � guisa de travesseiro, comecei a olhar o Tabuleiro que ali,
naquela hora, centelhava para todo lado, sob o Sol violent�ssimo do
meio-dia sertanejo. Meus olhos, treinados como os dos Gatos-
Maracaj�s, percorriam os lugares importantes em que naquele
momento estavam, ou deviam estar ao que eu presumia, os
Personagens mais importantes da terr�vel hist�ria de sangue, de amor e
de cavalarias bandeirosas, ligada ao nome e � pessoa de Dom Pedro
Sebasti�o, o Rei Degolado que fora meu tio, cunhado e Padrinho. Note
Vossa Excel�ncia que, naquele momento, mais ou menos � uma hora da
tarde, Sin�sio, O Alumioso, ainda n�o tinha chegado ali, de modo que
n�o deixa de ser um sinal astroso e fat�dico que, sem qualquer causa
aparente, eu estivesse me lembrando dele e do Pai. � verdade que eu
pensava em escrever um Romance-epopeico tendo como centro-deenigma-
e-de-crime-e-sangue a morte de meu Padrinho. Mas por que me
lembrava disso exatamente agora? Eu evocava o velho Rei barbado e
prof�tico em Canudos, em 1897; na Pedra do Reino do Paje�, para onde
ele viajara uma vez comigo, na c�lebre viagem ligada ao Tesouro e seu
roteiro; evocava-o na �Guerra de Doze�, travada no Sert�o da Para�ba,
em 1912; tamb�m em 1930, quando ele, vestindo seu famoso Gib�o
medalhado de guerra, lutara contra o famoso �Batalh�o Provis�rio� do
Presidente Jo�o Pessoa. Via-o ao lado de seu ilho predileto, o mais
mo�o, Sin�sio, nas coroa��es de Imperador do Divino Esp�rito Santo. E
inalmente via-o mais uma vez deitado no ch�o da Torre da Casa-Forte
da On�a Malhada, ensanguentado e degolado, na mesma posi��o em

que, ainda sem f�lego pela subida da escada e pelo arrombamento da
porta, eu o tinha avistado, come�ando a gritar desatinado, pelo terror,
pelo choque e pelo desespero. Agora, deitado ali sobre meu Lajedo, eu
estava come�ando a sentir mais os efeitos do vinho, dos signos e dos
rituais astrol�gicos da Igreja Cat�lico-sertaneja. A grande vantagem dos
Zod�acos, cartas de Baralho, bandeiras, Bras�es, mantos com Cruzes e
Crescentes, estrelas de Prata, Lan�as e outras ins�gnias r�gias da minha
Igreja e da minha Monarquia, era que, com eles, eu enchia o Buraco
cego e vazio do Mundo e o Deserto-ass�rio da minha alma. Sentindo
meu sangue pulsar com viol�ncia, n�o havia mais como duvidar de
mim. Meu sangue me garantia a exist�ncia do meu corpo, e o corpo, a
da minha Alma. Por sua vez, o Mundo tomava outro aspecto. Al�m de,
agora, divinamente embriagado, ter certeza de que eu mesmo existia,
olhava para o lugar onde, pouco antes, tinha visto o pardo Mundo �
On�a sarnenta, assentada sobre o abismo da Cinza � e n�o via mais
esse animal tinhoso, e sim uma On�a Malhada, bela, reluzente e
gloriosa, gigantesca, de pelo cor de ouro e malhas pardo-avermelhadas.
A Ra�a piolhosa dos Homens e os Lacraus pe�onhentos que eram os
animais, apareciam-me, agora, como uma Cavalgada muito bem
organizada, realizada por Reis, Valetes, Rainhas, Damas e Bispos,
montados a cavalo, uma Cavalgada bela, gloriosa, cheia de espadas e
bandeiras. Sua caminhada pela tez de fera do Mundo n�o me parecia
mais uma agita��o covarde e mesquinha, como uma tentativa
ignominiosa e in�til de fuga realizada por inapel�veis condenados �
Morte, mas sim uma Cavalhada como as que eu fazia aqui na rua e que
eram, tamb�m, rituais do meu Catolicismo � as minhas Prociss�es.
Essa Cavalhada do Mundo � da qual Deus era o Chefe e Rei-Mouro-e-
Cruzado (como eu era das minhas) � n�o se arrastava mais,
acovardada e feia, em dire��o do Reino de Cinza da Morte, mas sim
galopava valentemente em dire��o ao Sol Divino, ao Sol do Terr�vel. Por
isso, o Mundo n�o me aparecia mais como um animal doente e leproso,
como um lugar sarnento e pardo, nascido do Acaso, mas sim como um
Sert�o glorioso, fundado na Pedra, ao mesmo tempo harmonioso e
ardente. Do mesmo modo, a parte deste Mundo que me fora dada � o
Sert�o � n�o era mais somente o �sert�o� que tanta gente via, mas o
Reino com o qual eu sonhava, cheio de cavalos e Cavaleiros, de frutas
vermelhas de Mandacaru reluzentes como estrelas, bicadas pelas

lechas aurinegras dos Concrizes e respondendo �s cintila��es
prateadas de outras estrelas � as estrelas dos peitos das Damas, as
Estrelas negro-vermelhas dos Sexos femininos, as estrelas de metal
ostentadas nos estandartes das Cavalhadas ou nos chap�us de couro
usados pelos Tangerinos, Vaqueiros e Cangaceiros, os Fidalgos da
minha Casa Real, com suas coroas de couro de Bar�o. O pr�prio Deus
n�o era mais aquele sopro t�nue das outras religi�es: aparecia-me
como a Sant�ssima Trindade Sertaneja, um Sol ardente e glorioso,
formado por cinco animais num s�. Era a On�a Malhada do Divino,
integrada por cinco bichos: a On�a-Vermelha, a On�a-Negra, a On�a-
Parda, a Cor�a Branca e o Gavi�o de Ouro, ou seja, o Pai, o Encourado, o
Filho, a Compadecida e o Esp�rito Santo.
� Dom Pedro Dinis Quaderna, j� notei, duas vezes, que, na sua
religi�o, o Encourado faz parte da Sant�ssima Trindade e o Esp�rito
Santo � sempre representado por um Gavi�o. Por que � isso? �
perguntou o Corregedor.
� Bem, Excel�ncia, tudo isso aparece a�, primeiro, porque �
verdade, depois por causa da inlu�ncia de Samuel, de Clemente e, de
certa forma, do Padre Daniel. O Encourado � um revoltoso do Partido
Negro-Vermelho, e portanto precisa ser reabilitado e integrado na
Divindade. Depois, no meu Catolicismo, os bichos que servem de
ins�gnia ao Divino s�o todos rigorosamente brasileiros e sertanejos. Por
exemplo: na minha linguagem, nunca entram le�es ou �guias, bichos
estrangeiros, mas sim On�as e Gavi�es. Ora, al�m dessa idelidade
brasileira e sertaneja, sempre achei essa hist�ria de representar o
Esp�rito Santo por uma pombinha meio inapropriada. Fique logo claro
que o Esp�rito Santo n�o tem nada com isso: a culpa � de quem
inventou! Essa hist�ria da �pombinha� n�o tem nada de Profeciasertaneja,
� idiotice desses Profetas do estrangeiro! � por isso que, no
meu Catolicismo-sertanejo, o Esp�rito Santo � um Gavi�o, bicho macho
e sangrador, e n�o essa pombinha que sempre me pareceu meio sem
gra�a. Segundo nossas cren�as, Sr. Corregedor, foi a On�a Malhada do
Sol Divino que nos fez, a mim e ao Mundo, segundo sua pr�pria
imagem. Assim, n�o admira que o Jaguar divino izesse em rela��o ao
Mundo o mesmo que eu, como Rei, fa�o com o Sert�o. Por isso � que
Deus pegou o Campo azul e incendiado da bandeira do C�u, dispondo
nele as pe�as de ouro e prata de seu Bras�o, coruscante de s�is e

estrelas, com o Cruzeiro, o Sol e o Escorpi�o. At� mesmo a Morte, Sr.
Corregedor, era, agora, para mim, uma sagra��o bela e her�ldica,
armorial. Aparecia-me como uma gigantesca Cobra-Coral, enroscada no
C�u � nossa espreita. Era negra de �sable�, branca de �prata� e vermelha
de �goles�, com asas de Gavi�o, com dentes e garras de On�a � uma
Cobra cujo veneno passava a ser, para n�s, o �leo sagrado, necess�rio
para ungir-nos, indispens�vel � sagra��o sem a qual n�o podemos unirnos
ao Divino para identiicar-nos com ele, para nos tornarmos tamb�m
divinos. Bem, Sr. Corregedor: ent�o, naquele dia, os sonhos do vinho
tinto e os sonhos zodiacais e embandeirados do Catolicismo-sertanejo
come�aram a se juntar com as cintila��es que o Sol ia tirando aqui e ali
em pontas de pedra, em lascas de quartzo e em cristais de
malacachetas; e, de repente, quando menos eu esperava, tive uma
�vira��o�.
� Uma �vira��o�? O que � isso? De que �vira��o� o senhor est�
falando? �, por acaso, � brisa sertaneja que o senhor quer se referir?
� N�o senhor! Ali�s, n�o lhe faltando com o respeito, o senhor
est� revelando pouco conhecimento dessa quest�o das ventanias
sertanejas! Sr. Corregedor, aqui no Sert�o � terra espinhenta, parda,
pobre e pedregosa da Esquerda � absolutamente n�o existe nenhuma
�brisa�, que � uma ventaniazinha rom�ntica, besta e da Direita, muito
frequente no estrangeiro, e que, no m�ximo, pode aparecer aqui no
Brasil, uma vez ou outra, s� na Zona da Mata! O vento daqui do Sert�o,
ou � o cariri noturno, ou o espinhara, o vento abrasador do meio-dia e
das tardes da Caatinga! Quando eu digo �vira��o�, reiro-me a outra
coisa muito diferente. As �vira��es� s�o uns acessos apocal�pticos que
me assaltam de vez em quando, atacado que sou do �mal sagrado� dos
Vates, dos Poetas escumejantes e dos Profetas. Sofriam disso, tamb�m,
Dom Pedro I, Machado de Assis e dois Profetas sertanejos que viveram
no Deserto Judaico!
� Quem eram? Ant�nio Conselheiro e seu bisav�?
� N�o senhor, o Profeta Ezequiel e o Profeta Jo�o de Patmos,
mais conhecido como S�o Jo�o, O Evangelista, assim como meu bisav�
era conhecido por Dom Jo�o, O Execr�vel. Ezequiel era sujeito a
�vira��es�. Digo isso porque o Padre Renato, aqui, um dia, numa Missa,
leu um trecho da Cr�nica-epopeica que ele escreveu. O Profeta conta,
nesse trecho, que, estando um dia olhando um Deserto cheio de ossos

� que deviam ser esses esqueletos, caveiras e costelas de boi que a
gente encontra aqui, �s d�zias, no Sert�o �, teve, de repente, uma
visagem. Os ossos se juntavam aos poucos, iam se reunindo at�
completarem os esqueletos, e l� vinha uma ventania de fogo, e os
esqueletos dan�ando, e come�avam a aparecer umas grandes pedras
preciosas se incendiando em cima daquilo tudo, e surgia uma Saira
enorme, e um Cris�lito, tudo incendiado pela luz do fogo, e Carros de
chamas, e Querubins armados de espadas reluzentes, com asas de ouro
e prata, e o Anjo, e o Touro com asas, e a On�a e o Gavi�o... Era um
neg�cio terr�vel, Excel�ncia, um verso mortu�rio, cheio de ossamentas
e, ao mesmo tempo, glorioso, prateado, cheio de crava��es de pedras
estreladas. N�o sei se j� disse a Vossa Excel�ncia que eu, Samuel e
Clemente temos, todos tr�s, nossos �jogos pol�ticos e de Partido�...
� N�o, n�o disse n�o! Jogos pol�ticos? Isso me interessa muito!
O que � que o senhor chama de �jogos pol�ticos�? S�o as tramas que
tecem para conseguir seus objetivos?
� N�o senhor, s�o os jogos, os jogos mesmo! Clemente, que s�
v�, no Mundo, a realidade parda e afoscada dos famintos e miser�veis,
escolheu, como jogo preferido dele, o �jogo da Dama�, que, �sendo pobre
e despojado, feito de pedras negras e pedras brancas, � bem a igura e
imagem da luta dos Povos negros contra os brancos e ricos do Mundo�.
Samuel, que s� v� a parte sonhadora e brasonada do Mundo, com seus
Fidalgos, escudos e bandeiras, escolheu o �jogo do Xadrez�, por ser
povoado �de Reis, Rainhas e Bispos, que governam os Pe�es, montados
em Cavalos e protegidos por Torres idalgas e guerreiras de combate�.
Eu, sem ter mais o que escolher, resolvi, como sempre, unir as duas
ideias opostas deles num jogo s�, o do Baralho, conciliando os naipes
aurinegros do Povo, isto �, Paus e Espadas, com os naipes
aurivermelhos da Fidalguia brasileira, Copas e Ouro. Assim, em vez de
rebaixar o Povo, o que eu fa�o � erguer o Povo aurinegro e os Reis
aurivermelhos a uma Fidalguia s�, com os Reis negros de Paus e Espada
conquistando as Damas aurirrubras de Copas e de Ouro. � que, tendo
sofrido a inlu�ncia concomitante de Clemente e Samuel, tanto acho
belas as partes esquerdistas e despojadas da realidade sertaneja �
fosca, parda, pedregosa, empoeirada, faminta, miser�vel, cheia de
ossamentas de Vacas, Cabras e jumentas mortas � como acho belo o
Sonho de prata e joiaria que, �s vezes, vem se juntar a ela para

transigur�-la. Muitas vezes j� me aconteceu isso, quando, nas tardes de
muito sol, estou, por acaso, em cima do meu Lajedo. Estou ali, em cima,
olhando o Mundo sertanejo, fosco e empoeirado, por�m j� se animando
de uma Coroa gloriosa que o Ouro do sol-poente vai lhe emprestando.
Se, nesse momento, sucede passar por ali um Cigano, montado num
cavalo cujos arreios est�o enfeitados de moedas e medalhas, e o Sol
come�a a tirar fa�scas nesses metais ou nas malacachetas incrustadas
nas pedras, na mesma hora d�-se, em mim, uma �vira��o�; meu sangue
e minha cabe�a se incendeiam, e a realidade parda e afoscada se funde
ao fogo do Sol e dos diamantes do sonho. O Sert�o selvagem, duro e
pedregoso vira o �Reino da Pedra do Reino�, e enche-se de Condes
calamitosos e Princesas encantadas, eles vestidos de Pares de Fran�a
das Cavalhadas, e elas de Rainhas do Auto dos Guerreiros. O pobre
�tabuleiro sertanejo� vira uma enorme Mesa de Baralho, dourada pelo
Sol glorioso e ardente. Assim, Sr. Corregedor, n�o � querendo ser
orgulhoso n�o, mas esse fen�meno da �vira��o� a que eu sou sujeito, �
coisa muito vener�vel, uma vez que sucedia �quele outro Ap�stolo e
Profeta Sertanejo que foi S�o Jo�o de Patmos, O Evangelista. Acontecia,
tamb�m, a todos aqueles outros Profetas sertanejos que contaram a
hist�ria do Cristo. O senhor j� leu o Evangelho?
� Li uns peda�os, todo n�o!
� Devia ler, Sr. Corregedor, � uma das melhores cr�nicas
epopeicas que j� se escreveram, com a queda do trono, coroas e
monarquias do Cristo-Rei, com a cat�strofe sangrenta da morte dele,
com a degola��o de Jo�o Batista etc. Pois bem: no Evangelho, Mateus,
Marcos e Lucas contam que, l� um dia, aquele rapaz, a princ�pio simples
e pobre, chamado Manuel Jesus e ilho de um Carpinteiro sertanejo,
subiu a um serrote, a um Lajedo pedregoso e espinhento como os
daqui. Jo�o, Tiago e Pedro estavam olhando para ele quando, de
repente, tiveram uma �vira��o�. O rosto daquele rapaz comum come�ou
a icar refulgente como o Sol e suas vestiduras pegaram a resplandecer.
A partir da�, nunca mais aquele rapaz foi o mesmo: aquele donzelerrante,
aquele jo�o-sem-dire��o do Deserto judaico, �virou-se� na
igura do Cristo-Rei, um homem de palavras de fogo, um corisco a quem
passaram a perseguir como um Cachorro danado e a quem terminaram
vestindo com um Manto vermelho e coroando com uma Coroa real de
espinhos; um Rei de Copas e Espada, de cora��o sangrento, sustendo

nas m�os um Cetro de madeira que ele molhava com seu pr�prio
sangue, como ins�gnia de sua realeza. E se estas visagens deixaram de
acontecer a Pedro e a Tiago � n�o sei! �, o certo � que nunca mais
deixaram de acontecer a Jo�o. Tanto assim que, numa de suas vis�es �
ou visagens, que � a mesma coisa �, ele estava, um dia, olhando quatro
Cavaleiros judaico-sertanejos que passavam, montados em cavalos
magros, feios e comuns, quando, de repente, cavalos e Cavaleiros �se
viraram� em cavalos e homens de Cavalhadas, sonhosos, heroicos e
medalhados!
� Como �? � disse o Corregedor, fazendo uma careta. � E l� na
Judeia tamb�m havia Cavalhadas?
� Havia, exatamente como aqui no Reino do Sert�o e no Reino
da Normandia, Sr. Corregedor. Ah, quanto a isso n�o tenha a menor
d�vida, porque est� l�, contado num livro consagrado. Jo�o conta que
viu o Cordeiro abrir quatro selos e de cada selo sair um Cavalo, um
branco, um vermelho, um preto e um amarelo, todos montados por
Cavaleiros que traziam Arcos na m�o e Coroas na cabe�a, do mesmo
jeito que, aqui nas Cavalhadas sertanejas, trazem lan�as e capacetes.
Como o senhor v�, com isso ica provado que na Judeia havia
Cavalhadas. Com uma diferen�a, somente, para as daqui: nas
Cavalhadas e Pastoris sertanejos, os cord�es s�o somente dois, o Azul e
o Encarnado. Nas Cavalhadas judaicas, organizadas pelo Cristo, como se
v� por essas palavras de S�o Jo�o, havia quatro: o Branco, o Negro, o
Encarnado e o Amarelo. Sabe quem teve, aqui no Brasil, uma �vira��o�
parecida com aquela da transigura��o do Cristo, Sr. Corregedor?
� N�o!
� Euclydes da Cunha! Este, como um dos Profetas das terras
des�rticas de Canudos, viu Santo Ant�nio Conselheiro morrer do jejum
de protesto e dos efeitos de um ferimento de bala. Como vision�rio e
Profeta que era, viu, esticado no ch�o, o Santo e Profeta de todos n�s,
Sertanejos. Teve, a�, uma vira��o, e viu o Conselheiro transigurado e
exaltado, ressurreto �entre milh�es de Arcanjos descendo � gl�dios
lam�vomos, coruscando na altura � numa revoada�. � por tudo isso, Sr.
Corregedor, que eu digo que Ezequiel e Jo�o eram os Conselheiros
judaicos! � por isso que eu disse que, no dia em que chegou aqui o
nosso Pr�ncipe-do-Cavalo-Branco, estreando sua grande Marcha

desaventurosa de calamidades, vinha cercado por legi�es de Arcanjos e
Dem�nios perigosos!
� Entendi! Pode continuar!
� Tudo aquilo era muito importante para mim, Sr. Corregedor.
Primeiro, por causa da �aventura da visagem da On�a�, que j� lhe contei.
Depois por causa de outra, a �aventura da vis�o do Lajedo� que me
sucedeu e que passo a lhe contar. At� hoje eu n�o sei direito como foi
aquilo. Eu tinha me perdido na Caatinga. N�o sei se me sentei em dado
momento, tendo adormecido e acordado depois. Acho que foi o que
aconteceu, porque de repente dei comigo deitado, todo coberto de
gafeiras, apodrecendo como um l�zaro, ao p� de um enorme Lajedo,
alto e inacess�vel. Aparecia-me a igura da Morte Caetana com sua
Cobra-Coral e seus Gavi�es. Sem falar, s� olhando para mim, ela me
fazia saber que unicamente escalando aquele rochedo, erguido
verticalmente e cheio de Urtigas, � que eu cicatrizaria minhas gafas
feridentas, unindo-me ao Divino. Eu deveria subir como num sonho,
num pesadelo. Cortando-me e ferindo-me nas lascas, com a sola dos p�s
caindo ao contato com a pedra fumegante, conseguia chegar ao cimo. E
a�, milagre dos milagres!, eu descobria, ainal, ou melhor, eu sentia com
meu sangue, que tudo era divino: a Vida e a Morte, o sexo e a secura
des�rtica, a podrid�o e o sangue. O Lajedo parecia com a Pedra do
Reino, a do chuvisco prateado, e eu sabia, com o sangue, que, se
conseguisse escal�-lo, experimentaria, no alto, de uma vez s�, o gozo do
Amor, o poder do Reino, a frui��o da Beleza e a uni�o com a Divindade,
os quatro �xtases que lembram ao homem que, nesta Terra-Des�rtica,
neste Sert�o ass�rio e judaico, ele tem que se sobrepor � Esmeralda
verde-lodo da Terrestre e ao Rubi vermelho e sangrento da Paix�o, para
atingir, assim, o Top�zio de ouro da Hieros�lima. Era uma coisa t�o
importante, Sr. Corregedor, que o senhor acredite: naquele dia, quando
acordei realmente deitado perto dum Lajedo, tive uma decep��o ao ver
que n�o estava gafo e feridento conforme sonhara. Mas, da� em diante,
tudo isso se incorporou �s visagens e rituais da minha Igreja. Agora, ali,
b�bado de vinho e de sonhos, meu Lajedo come�ou, tamb�m, a se
povoar, mas n�o de cavalos, e sim de Mulheres, que logo come�aram a
me acariciar da maneira mais excitante que o senhor possa imaginar.
Enquanto elas faziam isso, outra Mulher, nua, espichava-se deitada, em
cima da pedra, ao meu lado, chamando-me para cima dela. Embaixo, no

Tabuleiro pedregoso do Xadrez sertanejo, � que estavam, mesmo, as
Damas, Cavaleiros e Pe�es do meu Reino, com Castelos pra todo canto,
rios de prata serpeando pra todo lado, e punhais e diamantes cintilando
no ar, com trop�is de cavalos e Bandeiras amarelas e vermelhas
desfraldadas ao vento. De certo modo, � explic�vel que eu visse aquilo,
porque, tendo sido criado por meu Pai, eu herdara dele a condi��o de
Mestre nos arcanos das Tr�s Astrologias. De fato, o que me aparecia
agora, ali, era uma visagem de todo o Imp�rio do Sete-Estrelo do
Escorpi�o, com seus Sete pontos cardeais e seus Doze lugares sagrados
� seis do Mar e seis do Sert�o � governados pelos sete Planetas e
pelos doze Signos do Zod�aco. Essa foi, ali�s, a minha �ltima visagem,
enquanto acordado. Porque, imediatamente depois dela, amodorrado
na madorna da saciedade, da embriaguez, do morma�o e da sombra,
peguei no sono. A �vira��o�, por�m, continuou, agora agravada por
todas essas coisas dementes que o sonho costuma nos trazer. N�o havia,
mais, aquela oposi��o entre a Mulher nua, que me tentava em cima do
Lajedo, e o Reino do Sert�o que se agitava e me deslumbrava l�
embaixo. Agora, tudo era uma coisa s�, pois o Reino me aparecia, ao
mesmo tempo, como uma cena de Batalha bandeirosa e como uma bela
Mulher nua, estendida e deitada sobre a grande cascata de ouro de seus
pr�prios cabelos, com o corpo perfeito tamb�m dourado pelo Sol. Por
esse �Reino da Princesa da Pedra Fina� que era ela, por essa Terraencantada,
povoada de grutas e colinas, errava eu, tamb�m encantado e
enfeiti�ado, descobrindo, acariciando, tocando, descerrando, e logo
assolando, invadindo, bebendo, penetrando, mordendo, despeda�ando
� espichado sobre fontes umbrosas e regatos, em cujo musgo e a cujo
remanso, na sombra esverdeada e fresca, reluziam frutas entreabertas e
corolas: as corolas encarnadas das Rosas-vermelhas, as macias e
brancas da lor do jasmim-cambraia, todas brilhando entre lianas
coleantes que envolviam meu tronco e meu pesco�o, acariciando-me as
costas e buscando tamb�m avidamente o que morder e apertar. E foi
chegando o momento em que tudo aquilo come�ou a se reunir numa
sensa��o de tanto gozo e gl�ria, que os cascos do Cavalo come�aram a
galopar em meu peito e nas minhas t�mporas, pulsando e
estremecendo ao ritmo do meu sangue. E eram cargas e trop�is,
Guerreiras estranhas em desiles e combates-mouros, ao som amarelo e
vermelho dos Clarins, tudo se confundindo com o galope dos cavalos,

com os gemidos da Mulher que estava chegando ao cume do Reino
juntamente comigo, e inalmente com o tiro amarelo e ensolarado de
um mosquete, que, ao mesmo tempo que partia de mim, me atingia no
sangue, nos olhos e no centro de mim mesmo, com o estralejar e a
fulgura��o do Cobre incendiado.

� C
FOLHETO LXXIV
A Astrosa Desaventura dos Gavi�es Cegadores
reio, Sr. Corregedor, que umas duas horas tinham se passado.
Eram, mais ou menos, de duas para duas e meia da tarde.
Naquele instante, j� tinha acontecido aquela cena entre Ant�nio
Moraes e Genoveva, e estava se desenrolando a conversa entre Gustavo
e Clara, no autom�vel. Eu comecei a acordar. Somente ent�o veriiquei
que aquele �sonho de joiaria e safadeza� que eu vinha sonhando tinha,
de fato, algumas liga��es com a �realidade raposa e afoscada�, ali
constitu�da pela Estrada e pelo Tabuleiro, l� embaixo. Realmente, fora
essa realidade que provocara pelo menos a parte inal do meu sonho,
pois a Estrada que passava a cerca de uns cem metros do Lajedo estava,
de fato, naquele instante, povoada por um tropel ruidoso de carretas,
miados de animais selvagens, piados met�licos de Gavi�es e gritos de
almocreves tangendo burros. Sem saber direito do que se tratava (pois
estava ainda adormecido quando aquilo come�ara), era talvez isso o
que eu vinha ouvindo em sonho � aqueles cascos de cavalos, o tinir
dos estribos batendo nas esporas de metal dos Cavaleiros, o chiar das
rodas das carretas, os gritos surdos dos cargueiros que conduziam os
animais enjaulados e as bagagens. S� mais tarde, j� mais perto do
crep�sculo � e enquanto Ar�sio dava no Bispo aquele soco terr�vel que
o prostrou, ensanguentado �, � que eu viria a saber, aqui na Vila, que
aquela era a cavalgada que nos trazia de volta a igura alumiosa do
nosso Prinspe da Bandeira do Divino do Sert�o. Mesmo que o soubesse,
por�m, eu n�o poderia ter observado nada naquele instante, porque a
outra parte do sonho, a do tiro do mosquete em meus olhos, tinha
tamb�m sua raz�o de ser, como descobri imediatamente, por mal dos
meus pecados. Sucede que eu tinha me deitado � sombra da Bra�na.
Mas, enquanto eu dormia, o Sol tinha caminhado um bom peda�o, de
modo que tinha me atingido a cara. Mesmo com os olhos ainda
fechados, sua luz violenta me encandeava completamente.

Possivelmente fora essa luminosidade que, no sonho, �se virara� num
tiro amarelo de mosquete, semelhante �queles que tinham sido
disparados pelos Brasileiros durante a �Batalha dos Guararapes�, no
s�culo XVII (como Samuel e Clemente n�o se cansavam de me dizer
desde que eu era menino). Isto, quanto aos olhos somente, gra�as a
Deus. Porque, felizmente, no outro �centro vital� que eu sentira explodir
no sonho, quem me atingira n�o fora gringo safado de qualidade
nenhuma, mas sim a bela Galega que eu tivera a sorte de encontrar
naquele dia, nua e deitada, evocada e invocada pelo Vinho e por meus
rituais astrol�gicos de encanta��o. Quanto aos olhos, por�m, Sr.
Corregedor, logo aconteceria algo que ia agravar minha situa��o: no
momento em que ia acordando, n�o tomei consci�ncia imediata de que
o Sol j� chegara a meu rosto, de modo que, sem tomar precau��o
nenhuma, abri os olhos diretamente para ele. Fui imediatamente
deslumbrado por uma luz fulgurante, que me deixou, desta vez,
completamente encandeado, durando isso o tempo exatamente
necess�rio para me impedir de ver claramente a cavalgada de Sin�sio, O
Alumioso, que ia passando pela estrada, em procura da Vila (onde
entraria daquele modo aciganado, glorioso e epopeico que j� lhe
contei). A impress�o do c�rculo do Sol, em meus olhos, enchera minha
vista obscurecida de fantasmagorias e cosmoramas luminosos, nos
quais eu via o enorme globo fulgurante boiar numa esp�cie de vasto
fogo feito de chumbo derretido, por entre velas, Barcos e bandeiras,
Esferas de ouro e frutos incendiados. Minha fronte come�ou a latejar de
dor-de-cabe�a, como se realmente tivesse sido atingida de rasp�o por
uma bala incandescente. Para atrapalhar ainda mais minha vista,
acontece que a cavalgada de Sin�sio estava levantando uma poeiragem
enorme, na estrada. O p� pardo-vermelho, dourado pelo Sol, envolvia os
Cavaleiros, que passavam, numa nuvem de imagens t�o �alumiosas e
encobertas� quanto o pr�prio Pr�ncipe que ali vinha. A dor, agora, davame
a sensa��o de um anel de ferro quente ou de um cintur�o de fogo
que apertasse impiedosamente minha fronte. E como, ao mesmo tempo,
eu come�asse a ouvir um som de trompa � provavelmente a mesma
buzina de ca�a que Sin�sio tocaria logo depois, na Pra�a �, o fogo
sagrado da Epopeia come�ou a me agitar, soprado pelas cordas da
Tiorba do genial Bardo brasileiro, Dom Raymundo Corr�a.
Involuntariamente, come�aram a se agitar e estremecer dentro de mim,

queimando-me o sangue e a cabe�a, aqueles seus versos prof�ticos, nos
quais, j� prevendo a chegada de Dom Sin�sio Sebasti�o, O Alumioso, ao
Reino pedregoso do Sert�o, acompanhado de Fidalgos cangaceiros e
aciganados pela estrada, Raymundo Corr�a cantara assim, uns quarenta
anos antes do fato:
�O Sol requeima a solit�ria Estrada.
Sil�ncio. Mas, al�m, j� chega o Bando:
o trom dos Cascos vem se aproximando
do galopar d�A Estranha Cavalgada!
S�o Ciganos, i�is da On�a-Parda:
castanhos-encantados, v�o passando!
E as Trompas, a soar, v�o agitando
o aurirrubro da Tarde ensolarada.
E a Caatinga se queima e se estremece:
da Cavalgada o estr�pito que aumenta
cega-se ao Gume e �s pedras desta Serra!
O Sil�ncio, outra vez, fogoso, desce:
o Sol sagra, do Rei, a Voz Poenta,
e O Alumioso ao sol-dos-mortos erra!�
* * *
� Assim, Sr. Corregedor, encandeado como estou lhe dizendo e
evocando os versos de Raymundo Corr�a, ouvi o tropel que passava e se
afastava cada vez mais. N�o tinha visto, claramente, nada, e julgava, em
minha moment�nea cegueira prof�tica, que fosse algum Circo ou tribo
comum de Ciganos que se dirigia para a feira, aqui na Vila. Permaneci
ali, ainda algum tempo, em cima do Lajedo, de costas para a rua e com o
rosto voltado para a estrada, com as m�os colocadas sobre os olhos
para fech�-los, proteg�-los e para ver se assim o encandeamento
melhorava mais depressa e eu recuperava a claridade da vista. Mas n�o

havia jeito. Mal eu entreabria os olhos, para experimentar, voltavam as
bolas-de-fogo, os pontos luminosos, as manchas de chumbo derretido
que, tornando-se insuport�veis quando eu insistia em manter os olhos
abertos, permaneciam, mais atenuadas e vistas ao contr�rio, quando eu
os fechava de novo. Deve ter sido enquanto iquei ali, tentando
melhorar meus olhos, que a cavalgada de Sin�sio entrou na Vila,
soltando os animais enjaulados e provocando todos aqueles
acontecimentos que contei, incluindo-se entre eles a �visagem� do
Profeta Naz�rio e a de Pedro Cego.
� Uma pergunta, Dom Pedro Dinis Quaderna! Noto que essas
�visagens� do Profeta Naz�rio e de Pedro Cego t�m estreita correla��o
com seu Catolicismo-sertanejo. Eles eram seus disc�pulos?
� De certo modo eram, Sr. Corregedor! Ouviam, todo ano, a
leitura do Almanaque do Cariri, que eu continuava a publicar depois da
morte de meu Pai, e conheciam todos os �folhetos� que eu imprimia e
vendia na feira, principalmente o da Pedra do Reino, porque da
divulga��o dele eu fazia quest�o, por ser isso muito importante para o
proselitismo da minha Seita!
� Anote isso, Dona Margarida! � um pormenor important�ssimo
para a solu��o do caso! Pode continuar, Dom Pedro Quaderna!
� O fato, Sr. Corregedor, � que, como eu vinha dizendo, foi mais
ou menos na mesma hora da liberta��o das On�as que eu recuperei a
claridade dos olhos. Mais do que isso, ali�s: como um dom sagrado mas
passageiro que eu tivesse recebido e que desejasse se despedir, mais
forte, no �ltimo instante em que morava em mim, minha vis�o n�o
voltou simplesmente �normal�, como era antes � exceto nos momentos
de �vira��o�. De repente, iquei dotado de uma vid�ncia-visageira fora
do comum, uma vid�ncia prof�tica e astrol�gica como nunca eu tinha
tido. Ai de mim, Sr. Corregedor! Mal sabia eu, naquele momento, que
essa vid�ncia r�gio-zodiacal me fora dada por um instante apenas, s�
para que eu, imediatamente, ca�sse, de uma vez para sempre, nas
intermit�ncias de uma cegueira cruel, prof�tica tamb�m, mas dura e
terr�vel de suportar!
� Uma cegueira? E o senhor cegou? Est� cego?
� Estou, sim senhor! Al�m de epil�tico, cego! J� viu que coisa
mais dolorosa para um pobre Epopeieta? O que me consola nessa

trag�dia � que isso de ser cego ica muito bem para um �G�nio da Ra�a�
como eu! Homero tamb�m era cego, o senhor sabia?
� Ent�o, o senhor est� cego! � disse o Corregedor, balan�ando
a cabe�a. � E cegou exatamente na hora em que, perto do senhor e do
Lajedo onde o senhor estava, dispararam o tiro que impediu, talvez, que
se apurasse essa hist�ria toda! Sabe que essa cegueira sua chegou
mesmo na hora, Dom Pedro Dinis Quaderna? Cego, o senhor vai me
dizer que n�o viu nada! Cego, o senhor torna-se objeto de compaix�o!
Cego, o senhor n�o poder� identiicar os assassinos, nem mesmo que
n�s venhamos a descobri-los! Olhe, Sr. Quaderna, n�o quero ser
indelicado n�o, mas n�o deixa de ser estranho que o senhor tenha
escolhido exatamente essa hora, para cegar! E, depois, que cegueira
mais estranha � essa sua! O senhor veio aqui para a Cadeia sem guia,
subiu a escada sem tatear, acertou facilmente com os degraus, sentouse
numa cadeira que lhe mostrei com um gesto h� pouco, viu que eu
estava vestido com uma toga negra e vermelha... Que � que signiica
isso?
� Sr. Corregedor, de fato, � uma cegueira muito estranha, essa
que me assaltou os olhos, naquele dia. A meu ver, ela � parenta pr�xima
da epilepsia-genial que tamb�m me atacou, como lhe disse. Deixaramme,
as duas, numa esp�cie de vid�ncia-penumbrosa, na qual o Mundo
me aparece como um Sert�o, um Desert�o, o De-Sert�o de que falavam
os geniais escritores Manoel de Oliveira Lima e Afr�nio Peixoto,
repetindo velhos cronistas brasileiros do tempo dos Conquistadores,
segundo me contaram Clemente e Samuel. � a� que o Sert�o me aparece
como o Reino da Pedra Fina do qual j� lhe falei. H� pouco, quando eu
vinha chegando aqui para a Cadeia, tive essa ideia de que o pr�prio
Sert�o era uma Cadeia enorme, cercada de pedras e sombras, de lajedos
fant�sticos e solit�rios, parecidos com Lagartos venenosos, cinzentos e
empoeirados que dormissem numa Terra Desolada. Ou ent�o parecidos
com as ru�nas, os esqueletos gigantescos e queimados de uma Cidade
de pedra, incendiada. Ora, acontece que eu, como disc�pulo do Padre
Daniel, sou Cat�lico; mas, como aluno de Clemente, sou, tamb�m, um
devoto da Mitologia Negro-Tapuia do Brasil. Foi, ali�s, plasmando esses
dois elementos que eu constru� o esqueleto central do Catolicismosertanejo.
Ora, segundo Clemente, o nosso Sert�o � a terra mais antiga
do Mundo, � o ber�o da Ra�a Humana. Diz ele que n�s, Sertanejos,

somos descendentes diretos do Tapuia, do �Homem castanho inicial�,
brotado da terra parda do Sert�o num dia em que ela estava umedecida,
e, depois, errante por entre os espinhos e as muralhas de pedra
sertanejas. Ali�s, acho essa ideia de Clemente mais l�gica do que as
ideias de outras Mitologias estrangeiras. � muito mais l�gico que o
Homem-castanho, emigrado daqui para a �frica, tenha se tornado
negro, l�, pelo calor, tornando-se branco, pelo frio, na Europa, e
permanecendo castanho no Egito ou na �ndia. Outra coisa que irrita
Clemente � a prefer�ncia inteiramente arbitr�ria que d�o, no Mundo, ao
que ele chama �a Mitologia biol�gica inglesa�. Ele indaga, indignado:
�Por que airmar que o homem descende do Macaco? � muito mais
l�gico que tenha sido de outros bichos, principalmente a On�a!� Isso,
ele diz nos momentos de raiva. Mas, nos momentos de maior calma,
explica que o Homem n�o descende de bicho nenhum e que a Mitologia
Negro-Tapuia est� muito mais perto da verdade cient�ica do que essas
outras Mitologias sax�nias, t�o arbitr�rias quanto qualquer outra e com
o agravante de serem pretensiosas. Olhe, Sr. Corregedor, sempre que
vou dizer alguma coisa sobre a Caatinga sertaneja, valho-me de tr�s
geniais escritores brasileiros, o General Dantas Barretto, o Tenente-
Coronel Durval de Aguiar e o Capit�o Euclydes da Cunha. Dou sempre
prefer�ncia ao General Dantas Barretto, primeiro por ser o mais
graduado de todos, na hierarquia militar, depois por ser escritor t�o
admir�vel que s� chamava o trem de �a rugidora Serpente mec�nica�.
Aqui, por�m, para o que tenho a dizer, devo lan�ar m�o do Tenente-
Coronel Durval de Aguiar. O senhor j� leu alguma coisa dele?
� N�o, nem nunca, nem ao menos, ouvi falar desse escritor!
� � pena! Ele e o General Dantas Barretto exerceram, em
rela��o a Euclydes da Cunha, o mesmo papel que Samuel e Clemente em
rela��o a mim! Descrevendo a Pedra do Reino do Sert�o, diz o Tenente-
Coronel Durval de Aguiar que essa terra � constitu�da, toda, de �serras
de pedra, naturalmente sobrepostas, formando Fortalezas e redutos
inexpugn�veis�. Euclydes da Cunha, plagiando o Tenente-Coronel,
descreve tamb�m o Sert�o e fala em �alinhamentos de penedias,
caprichosamente repartidos�, que semelham, �de fato, grandes cidades
mortas�, cidades ante as quais o Sertanejo passa �sem desitar a espora
dos ilhais do cavalo em disparada, imaginando l� dentro uma popula��o
silenciosa e tr�gica de almas do outro mundo�. E � a� que eu vejo que

Euclydes da Cunha absolutamente n�o pode ter sido o �G�nio da Ra�a
Brasileira�. Veja que leviandade, a dele! �Imaginando!� Imaginando, uma
porra! Tem, mesmo! Essa popula��o de almas do outro mundo, existe,
mesmo, aqui, em nossas pedras, de noite, de dia e no pino do meio-dia!
Bastariam as On�as, os Gavi�es, os Carcar�s, os Veados, os Bodes, as
Cobras e os Morcegos sertanejos, para provar que o nosso Reino
amuralhado de pedras est� povoado de Deuses e Dem�nios, de Anjos e
Divindades! Como me explicou Clemente, Sr. Corregedor, foi das
trepadas das Divindades solares entre si que nasceram a Terra e a �gua,
mijada por eles. Depois, da� em diante, o mais foi f�cil: pingos de gala de
Deuses machos ou pingos de boi de Deusas f�meas que ca�am no barro
da Terra, fazem nascer ou bichos ou plantas. Se um Deus qualquer,
depois da�, trepa com uma Veada, ou se uma Deusa se deixa cobrir por
um Gavi�o, nasce um homem ou uma mulher, conforme o caso. Foi,
portanto, dessas trepadas das Divindades tapuias com as On�as, os
Gavi�es, os Bodes, as Cabras, os Veados e outros bichos, que nasceram
os Tapuios castanhos, antepassados diretos dos Sertanejos e indiretos
de todos os outros homens. � por isso que o Sert�o, nos meus
momentos de maior cegueira prof�tica, me aparece como esse Reino
pedregoso de que lhe falei; Reino por onde erro eu, agora, como o
Valente Vilela, mas tamb�m destro�ado, processado, vagabundo,
perdido, extraviado e cego, incapaz de ver outra coisa a n�o ser esses
Lajedos, essas Caatingas espinhosas, esses morros descalvados, essa
Ra�a Sertaneja e esses bichos, semelhantes aos que, �s vezes, aparecem
em nossos pesadelos. Minha sorte, por�m, � que a cegueira que me
assaltou os olhos � intermitente! Cego como estou, �s vezes, quando
menos espero, sem qualquer pren�ncio que me avise, um raio fende o
escuro-penumbroso em que vivo mergulhado, e ent�o eu vejo, o que
atribuo, tamb�m, ao �mal sagrado� dos G�nios, de que acabo de ser
acometido em sua presen�a. A�, nesses momentos, eu vejo mesmo, vejo
pra valer! O que eu avisto, o que eu enxergo ent�o, nesses momentos de
�raio de pedra-lispe� e de �corisco e fulmina��o�, � visto em zonas
interrompidas, mas deslumbrantes, de claridade enceguecedora, � visto
como nenhuma coisa foi vista at� agora pelo comum dos mortais!
� Pelo comum dos mortais? E o que � o senhor? Algum
iluminado, ou alguma Divindade tapuio-sertaneja, por acaso? � disse o
Corregedor, ir�nico.

� Eu n�o chegaria a dizer tanto, por mod�stia e humildade
crist�! No m�ximo, o que me aconteceu foi um decreto insond�vel da
Provid�ncia Divina, que n�o podia permitir que o �G�nio da Ra�a
Brasileira� fosse inferior, em nada, ao �g�nio da ra�a grega�! Minha
cegueira seria muito parecida com a cegueira po�tica e prof�tica de
Homero, caso tivesse existido, mesmo, esse mavioso e distinto Poeta,
autor das tradu��es gregas da Il�ada e da Odisseia � o que digo porque,
como Samuel j� provou, o autor, de fato, dos originais brasileiros dessas
duas obras, foi o genial Bardo nordestino, Doutor Manoel Odorico
Mendes. Acredito, tamb�m, que foi mais ou menos no estado de
cegueira e ilumina��o em que me encontro que Ezequiel, o renomado
Poeta judaico-sertanejo de que lhe falei h� pouco, teve aquela sua
�visagem do campo de ossos� e aquela outra, precursora da Mitologia
Negro-Tapuia, na qual lhe apareceram umas �guias, uns grifos e uns
touros, sustentando o trono do Divino; visagem que eu tive logo o
cuidado de assertanejar mais, transformando as �guias em Gavi�es, os
grifos em cruzamentos de On�a com Seriema, e o le�o do Divino na
On�a do Divino!
� O senhor, com coisas t�o estranhas no pensamento, deve ter
uma cabe�a bastante aperreada do ju�zo, Dom Pedro Dinis Quaderna!
� disse o Corregedor, falando como se fosse para mim, mas, de fato,
para ser apreciado por Margarida.
Fazendo-me de inocente, concordei:
� � verdade, e tenho mesmo, Excel�ncia! Durante toda a vida,
sofri a inlu�ncia da Esquerda clementina, inlu�ncia que � cl�ssica e
despojada, por ser luz-matinal, popular, do rubi, celeste e do Sol. Sofri,
tamb�m, por outro lado, a da Direita samu�lica, que � rom�ntica, por
ser noturna, lunar-sat�rnica, idalga, da esmeralda, inf�rnica, verdelodo
e da Lua. Somando-se o elemento clementino ao samu�lico, temos
o quadernesco. � por isso que eu, sendo da tarde, do top�zio, do
purgat�rio, de merc�rio e do Sol, sou, ao mesmo tempo, cl�ssico e
rom�ntico, isto �, �completo, genial, modelar e r�gio�. Eu, Sr. Corregedor,
tendo nascido com dois olhos sertanejos, solares e cl�ssicos, sofri
depois, no Semin�rio, a inlu�ncia rom�ntica e prof�tica do genial Bardo
alagoano e judaico, o Padre Ferreira de Andrade, icando da� em diante,
no mundo, com um olho cego � queimado pela dem�ncia rom�ntica do
Deserto judaico e sertanejo assim como pela asa de fogo e navalha da

Musa do genial Poeta paraibano Augusto dos Anjos. O outro olho
permaneceu cl�ssico e popular, como nascera. O que � mais curioso,
por�m, � que o olho rom�ntico e queimado, que � o direito, depende do
olho cl�ssico e vidente, que � o esquerdo! E vice-versa! Porque, se o
Gavi�o rom�ntico e fogoso-des�rtico n�o tivesse queimado e
despeda�ado um dos meus olhos, o outro n�o teria obtido o privil�gio
de ver, na realidade parda e afoscada, essas Cavalhadas e batalhas,
cheias de bandeiras, essas Estrelas e moedas que vejo de vez em
quando coroando as frontes dos Cavaleiros sertanejos. Tamb�m, se eu
n�o gastasse toda a prata e todo o Sol do meu sangue com o olho
cl�ssico e vidente, o outro n�o seria capaz de enxergar o sofrimento e a
mis�ria, a feiura desdentada e barriguda das pessoas, os morcegos, os
urubus e as corujas das Furnas sertanejas, onde moram as Divindades
infernais, sat�rnicas e subterr�neas do meu Mundo astrol�gico e
zodiacal!
� Entendi! Continue, ent�o, a narrar os acontecimentos do dia
1� de Junho de 1935, em cima do seu Lajedo.
� Depois de me manter, um bom peda�o, com os olhos
fechados, como contei a Vossa Excel�ncia, achei que j� passara tempo
suiciente para me recuperar e abri os olhos. Eu tinha me voltado,
novamente, para o lado da Vila, de modo que os telhados da rua
apareceram subitamente diante de mim. Curioso � que eu via tudo,
agora, mais nitidamente do que antes. Tr�s casas se destacavam na
minha visagem prof�tica: o antigo casar�o da fam�lia Villar, mais perto
de mim do que as outras; a casa dos Garcia-Barrettos; e o Casar�o das
pinhas, perto do qual estava o �cabra� que atirou em Sin�sio. Ora, essas
eram aquelas casas onde se encontravam, como j� disse, personagens
dos mais importantes, no caso. E acredite Vossa Excel�ncia que eu �vi�
tudo aquilo num repente, como nunca antes vira coisa alguma, na
minha vida! Parecia que o Mundo me revelava, pelo menos em sua
parte sertaneja, �n�o suas apar�ncias, mas seu pr�prio sangue, suas
entranhas pardas, a alma felina e estranha que gerou a nossa�, como diz
Clemente sempre que me explica a �Introdu��o Mitol�gica Negro-
Tapuia� de sua c�lebre �Filosoia do Penetral�. Mas aquilo foi s� um
instante, Sr. Corregedor! Primeiro, porque a enorme bola de chumbo
derretido que o Sol imprimira na minha vis�o n�o tinha propriamente
se desvanecido. Parecia, apenas, ter se destacado dos meus olhos e

adquirido vida pr�pria, pois come�ou a boiar � meia altura, no
horizonte, entre o Lajedo e a Vila. Depois, porque foi ent�o que sucedeu,
mesmo, a cat�strofe irrepar�vel e deinitiva: essa mesma bola
incandescente de chumbo, enorme, mais alta do que um homem,
fendeu-se pelo meio, surgindo de dentro dela dois Gavi�es, um macho e
outro f�mea, os quais, como duas lechas, cortaram os ares na dire��o
do meu Lajedo, desferindo seus piados, �speros como um som de metal.
Que Gavi�es seriam esses, Sr. Corregedor? Seriam dois daqueles que
tinham vindo com Sin�sio e que estavam sendo, naquele instante, soltos
na Pra�a? Seriam Gavi�es comuns, do Sert�o, aparecidos ali por acaso?
Seriam os dois Gavi�es pertencentes � Mo�a Caetana, a jovem e cruel
Divindade negro-vermelha da Morte sertaneja? Seriam enviados da
Fatalidade astrosa, resolvidos a marcar minha fronte com aquilo que o
genial Poeta brasileiro Fagundes Varela chamava �o sigilo do G�nio�?
N�o sei! Eu pensava que, assim que eles me avistassem, iriam se desviar
do Lajedo e de mim, como normalmente acontece com os Gavi�es, de
modo que n�o tomei precau��o nenhuma para me proteger; e foi isso o
que me desgra�ou, Excel�ncia, porque foram eles que me cegaram,
despeda�ando e ferindo meus olhos para sempre!
� Dom Pedro Dinis Quaderna, n�o vou discutir se o senhor est�
cego ou n�o. Mas uma coisa eu garanto, porque estou vendo: seus olhos
n�o est�o despeda�ados n�o, est�o a�, inteiros e limpos que fazem
gosto!
� Pode ser, Sr. Corregedor! Para falar com exatid�o, n�o sei,
realmente, como foi que os Gavi�es agiram! N�o sei se eles usaram o
bico, as garras, ou se, apenas, se limitaram a encostar nos meus olhos,
um em cada olho, o cu de cada um, incendiado e lamejante! O que eu
sei, porque ainda cheguei a ver isso, � que eles fenderam os ares em
minha dire��o e, aproximando-se com terr�vel rapidez, logo chegavam
junto � minha cabe�a, em torno da qual come�aram a esvoejar, como
sempre acontece nos meus ataques do �mal sagrado�. Apavorado, ouvi
os estalos, os golpes secos das suas asas que me arrodeavam a cabe�a,
cada vez girando com mais velocidade. Tonteei, senti um calor estranho
cercando minha cabe�a e a testa. Os olhos come�aram a esquentar e
doer, de modo insuport�vel. Uma ventania de fogo soprou na minha
cara. E alguma coisa eles devem ter feito, porque, de repente, meus
olhos estalaram, como se tivessem sido chocados pela fornalha do

Inferno. Foi a derradeira coisa que enxerguei, Sr. Corregedor: ceguei
imediatamente, com o sangue e as l�grimas escorrendo, misturadas ao
humor salgado e vital dos meus olhos despeda�ados!

� C
FOLHETO LXXV
O Ajudante de Profeta
om um grito de dor e desespero, ajoelhei-me na Pedra e iquei
por ali, durante um bom peda�o de tempo, acariciando com as
duas m�os, do modo mais suave que me era poss�vel, a regi�o
que cercava meus pobres olhos dilacerados. Minha sensa��o era de
desespero total, convencido como estava de que meus olhos estavam
irremediavelmente cegos. E a inlu�ncia dos Poetas brasileiros,
principalmente a dos Acad�micos, � t�o poderosa em mim que, na
minha desgra�a, as palavras que me ocorriam para nome�-la eram
aqueles c�lebres versos do genial pernambucano Eust�quio Gomes, que
dizem:
�A Cegueira � o inquilino dos Olhos,
como a Ignor�ncia � o locat�rio
de todas as Paix�es mal�volas.�
� Bonito! � disse o Corregedor.
� Tamb�m acho! � concordei. � Mas, mesmo assim, minha
preocupa��o era terr�vel! Seria que, cego, iria me tornar um ignorante,
com a Ignor�ncia, locat�ria das Paix�es mal�volas, tornada inquilina da
minha cabe�a atrav�s dos olhos in�teis? Ser� que isso n�o iria me
impossibilitar, burriicando-me, de ver realizado o grande sonho da
minha vida � o de me tornar �G�nio da Ra�a Brasileira�? Eu sentia na
boca um gosto estranho de metal salgado, que devia ser o gosto
ferrujoso do sangue e do sal das l�grimas a escorrer dos olhos para a
boca. Esse gosto fazia-me entender, agora, o motivo pelo qual os olhos
dos Cegos sempre me tinham parecido, at� ent�o, como que feitos de
prata cegada ao Sol. � que eu sentia agora, em minha pr�pria Face cega,
que meus olhos tinham sido transformados, pela Ave-de-rapina do Sol

sagrado, em dois globos de Prata derretida, globos que logo se
endureceriam, tornando-se opacos para sempre. Eu sabia, agora, que
aquela bola de chumbo derretido, que povoara meus �ltimos instantes
de vis�o e que acompanhava minha cegueira singular, nunca mais me
abandonaria, permanecendo comigo at� o im da minha vida.
� E o senhor icou no Lajedo at� a noite?
� N�o senhor! Enim, icar ali � que n�o resolveria meu
problema! Melhor seria tentar regressar aqui � Vila, para procurar o
m�dico. Assim, tateando e arrastando-me, queimando-me de novo nas
Urtigas e ferindo-me nas arestas da minha Pedra sagrada, comecei a
descer o Lajedo, a im de empreender meu primeiro caminho de Cego,
de volta para casa. Arranhando-me, magoando-me de todas as maneiras
imagin�veis, gemendo, imprecando em brados enfurecidos contra a
Cat�strofe divina e diab�lica que desabara sobre mim, consegui,
inalmente, descer a Pedra, cruzar o peda�o de Tabuleiro ladeiroso que
ica entre ela e a estrada, e chegar, depois, ao lugar onde se encontrava
meu iel cavalo �Pedra-Lispe�. Assaltava-me uma terr�vel sensa��o de
inseguran�a, agora que conseguira descer do Lajedo, mas estava ali,
inerme, no Tabuleiro. Era como se todos os perigos do Mato sertanejo
me rondassem. Tinha medo de encontrar uma On�a; uma Cobra que me
engolisse como engoliu Pedro Ventania; algum Novilho desgarrado,
selvagem e enfurecido que despeda�asse minhas tripas com as pontas
aceradas de suas aspas; ou alguma Cobra-Coral que, picando-me o
tornozelo, conseguisse injetar o sangue da Mo�a Caetana na corrente do
meu sangue real, atrav�s da igura, tamb�m real e mortal, dos Cristais
de seu veneno. Ouvi, ent�o, �Pedra-Lispe� dar o ligeiro nitrido com que
sempre sa�da minha aproxima��o. Seguindo a dire��o do som,
consegui chegar at� ele, abra�ando-me ent�o com o nobre animal, em
cujo pesco�o, chorando, encostei a testa escaldante, ainda fumegosa do
fogo gavi�nico que me cegara. A�, Sr. Corregedor, minha Divindade
sertaneja deu-me um sinal, indicando que come�ava a se amercear de
mim. Ouvi uma voz que se aproximava, cantando pela Estrada, como
quem vinha da Vila de Estaca Zero para a Ribeira do Tapero�. A voz era
fanhosa, rouca e �spera, e pareceu-me logo familiar. O que mais me
impressionou, por�m, foi que ela vinha acompanhada pelos toques
prateados de uma Viola. Foram, novamente, os Cegos sertanejos que
vieram � minha imagina��o, Sr. Corregedor. Agora, eu sabia, n�o por

fora, mas de dentro mesmo do sangue, porque � que a voz e a Viola das
pessoas que s�o cegas sempre me pareciam mais �de Prata� do que as
dos Cantadores comuns. A�, j� pr�xima, a voz deu um grito-de-guerra,
dizendo: �Corre, meu Povo! Corre que o Alumioso chegou e a Guerra do
Reino vai come�ar!� E ent�o entoou uma estrofe corrida, que n�o me
deixou mais nenhuma d�vida sobre quem era o Cantador que vinha
chegando. Os versos eram os seguintes:
�Eu sou Lino Pedra-Verde,
sou Besouro de ferr�o,
eu sou a Tirana-Boia,
perigo deste Sert�o.
Pra brigar no Ferro frio,
n�o sirvo, n�o presto n�o.
Mas, solto aqui nesta Terra,
com uma Viola na m�o,
eu sou On�a comedeira,
Tigre e Rei do meu Bras�o,
sou Punhal, bala de Prata,
sangue de Cobra e Le�o!�
* * *
� Muito bem, Dom Pedro Dinis Quaderna! � comentou o
Corregedor. � De todas as suas charadas em verso, esta � a mais f�cil
de decifrar, pelo menos para n�s, n�o �, Dona Margarida? Pelos versos,
entendo que o Cantador que vinha chegando era Lino Pedra-Verde, n�o
� isso?
� � isso mesmo, Excel�ncia, e dou ao senhor os meus parab�ns
pela familiaridade que est� come�ando a ter com meu estilo r�gio!
� O senhor sabe que, segundo todo mundo fala aqui na rua,
esse Lino Pedra-Verde, al�m de intermedi�rio seu em v�rios neg�cios
escusos, � o elemento de liga��o entre o senhor e os fan�ticos, tolos e
ignorantes que o senhor conseguiu aliciar para a tal Ordem da Pedra do
Reino? Sabe disso?
� Sei sim senhor!

� E o senhor, sabendo disso, confessa que teve um encontro
com Lino Pedra-Verde na mesma hora em que mataram o �cabra�, a dois
passos do lugar de onde partiu o tiro?
� Confesso, sim senhor, porque � a pura verdade e eu sou
incapaz de mentir, mesmo que isso me prejudique!
� O encontro do senhor com ele foi, mesmo, casual, como voc�
deu a entender? Ou ser� que houve alguma combina��o pr�via entre o
senhor e Lino?
� O encontro foi casual, Sr. Corregedor!
� Foi mesmo? Me diga uma coisa: o senhor sabia que Lino
Pedra-Verde devia vir � Vila, naquele s�bado?
� Sabia, sim senhor, porque ele n�o perde feira, aqui, e era dia
de feira!
� E sabia, tamb�m, que a Estrada por onde ele devia vir era
aquela?
� Sabia, sim senhor!
� Muito bem! Anote tudo isso, Dona Margarida, � outro dado
fundamental para a decifra��o do caso! Pode continuar, Dom Pedro
Dinis Quaderna!
* * *
� Os passos de Lino se aproximaram, Sr. Corregedor. Eu n�o via
nada, extraviado na cegueira! A�, Lino parou, o que sei porque seus
passos pararam, e houve um momento de sil�ncio, durante o qual
imagino que ele icou me olhando estupefato, aterrorizado pelo
aspecto, na certa terrivelmente impressionador, do meu rosto
manchado pelo sangue e pelos humores que escorriam dos meus olhos
dilacerados. Ent�o, ap�s esse momento de sil�ncio e espanto, Lino
Pedra-Verde falou:
� �Dom Pedro Dinis Quaderna, meu Rei e meu Senhor! Que �
que voc� est� fazendo a�, sozinho, parado no meio da Estrada? Est�s
querendo dar parte de doido, Dinis?�
� Sr. Quaderna, quando izer a sua Epopeia, tenha cuidado com
os tratamentos. Agora mesmo, a� na frase de Lino, o senhor usou um
tratamento todo solene no come�o, depois passou para �voc�� e

inalmente para �tu�! Cuidado, porque isso � um descuido grave, num
Epopeieta!
� N�o senhor, n�o foi descuido n�o, o senhor est� enganado! Os
tratamentos que venho empregando s�o escolhidos com todo cuidado!
Para que o senhor entenda bem certas particularidades que Lino usava
no seu tratamento para comigo, � preciso que eu lhe explique certas
coisas. Primeiro, eu tinha procurado ensinar aos Cavaleiros da Ordem
da Pedra do Reino algumas f�rmulas cerimoniosas tiradas dos
romances de Jos� de Alencar e de Zeferino Galv�o, este um genial
escritor pernambucano e sertanejo, da Vila de Pesqueira, autor de O
Mosteiro de N�mes e de Helo�sa d�Arlemont. Aquele �Dom Pedro Dinis
Quaderna, meu Rei e meu Senhor� que Lino me dera no come�o vinha
da�. Mas, ao mesmo tempo, meus familiares me tratavam por Dinis. Ora,
Lino tinha sido meu companheiro na �On�a Malhada� e meu colega na
�Escola de Cantoria� de Jo�o Melch�ades, de modo que, ora usava o tom
cerimonioso e r�gio, ora o familiar. Ali�s, essa mistura de tratamentos
era e � tradi��o da nossa Casa. Na Pedra do Reino, os s�ditos de meu
bisav� Dom Jo�o II, O Execr�vel, ora o tratavam de �Rei e Majestade�,
ora o chamavam �simplesmente de Joca�, segundo est� escrito na
Cr�nica-epopeica de Ant�nio �ttico de Souza Leite. Assim, quando Lino
se dirigiu a mim daquele modo, perguntando se eu estava doido,
absolutamente n�o estranhei a familiaridade dele. Limitei-me a
responder:
� �Voc� pergunta o que eu estou fazendo aqui, s�, parado na
estrada? Estou aqui, me arrastando como posso, Lino, tentando voltar
para casa. � Lino, mesmo, que est� a�, n�o �?�
� �� ele mesmo, Dom Pedro Dinis Quaderna!� � disse Lino,
convicto. � �Estou indo aqui, em demanda do Tapero�, porque vai
haver, l�, a maior confus�o. Vai se abrir um boi-de-fogo danado, l�,
agora, e eu quero estar na rua para entrar de cu-de-boi adentro! Quero
logo lhe avisar que estou com a gota-serena, ouviu?�
� Com a gota-serena? � estranhou o Corregedor.
� � verdade, Sr. Corregedor, e, para falar a verdade, n�o teria
sido necess�rio que ele dissesse isso, para eu saber. Pelo acento
delirante e arrebatado de sua voz, eu j� tinha conhecido, desde a
chegada dele, que Lino tinha tomado uma ou duas lapadas do �Vinho
encantado e sagrado� da Pedra do Reino. Assim, o que me espantava,

n�o era ele �estar com a gota-serena� e com a �molesta dos cachorros�,
pois � assim que o Vinho sagrado nos deixa sempre. O que me admirava
era ele n�o demonstrar nenhuma estranheza por me ver ali, cego, com o
rosto todo ensanguentado. Resolvi ent�o chamar a aten��o dele para
isso:
� �Voc� deve estar espantado, Lino, por me ver assim, com o
rosto cheio de sangue!� � disse.
� �Voc�, Dinis? Que nada! Sua cara est� limpa como o Sol!�
� �O qu�, Lino?� � estranhei, espantado. � �Que � que voc�
est� me dizendo?�
� �Eu � que pergunto o que voc� est� me dizendo, Dom Pedro
Dinis! Voc� parece que tomou tamb�m umas lapadas do nosso Vinho?
Ou foi a apari��o da pantarma do Prinspe que endoidou voc�? A�, na
sua cara, n�o tem sangue de qualidade nenhuma, Dinis!�
� �E meus olhos, Lino? N�o est� saindo sangue deles, n�o?�
� �Est� nada, meu Senhor Dom Dinis! Por que voc� pergunta
isso?�
� �� que estou cego, Lino! Ceguei dos dois olhos de uma vez!�
� �Coitado do Rei! Coitado de Quaderna!� � disse Lino,
cuspindo de banda e acrescentando, enquanto eu ouvia o som de suas
mand�bulas mastigando a �erva-moura� da Pedra do Reino, que eu lhe
ensinara a mascar: � �Como foi que o senhor cegou? Faz tempo?�
� �Faz muito n�o, Lino! Foi agora mesmo, ali, em cima do meu
Lajedo sagrado! Mas o que eu estou admirado � de meu rosto n�o estar
cheio de sangue, porque senti perfeitamente quando o sangue escorreu
dos meus olhos.�
� �Ah, e o sangue correu dos seus olhos, foi, Dinis? Como foi
isso? Voc� estoporou, foi?�
� �Sei n�o, Lino! Sei que almocei, comi carne de sol com pa�oca,
tomei umas lapadas do Vinho Tinto da Malhada, dormi, e, quando
acordei, foi com o Sol na cara e nos olhos! Com isso, comecei a avistar
umas coisas esquisitas, l� por cima da casa de meu Padrinho, Dom
Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto, que a gente avista daqui, como voc�
sabe. De repente, comecei a ouvir e ver, na Estrada, umas coisas
esquisitas tamb�m � uns miados de On�a, uns esturros, uns piados de
Gavi�o, batidas de cascos de cavalos e chiados de rodas de carreta. A�,
dois Gavi�es me atacaram, esvoa�ando e batendo as asas em redor da

minha cabe�a. Da� em diante, n�o sei mais o que foi que aconteceu n�o,
Lino. Sei � que, de repente, meus olhos come�aram a esquentar, senti
aquela dor desadorada, eles chocaram, estalaram, e eu ceguei!�
� �Meu Jesus, minha Nossa Senhora! Ent�o voc� ouviu essas
coisas passando na estrada, foi? Era ele, n�o era?� � indagou Lino, em
del�rio, sem ligar muito para o que me acontecera e pensando, s�, no
Rapaz-do-Cavalo-Branco.
� �Ele, quem?� � perguntei espantado, porque, com os olhos
daquele jeito, a lembran�a de Sin�sio n�o me ocorrera, absolutamente,
depois do aparecimento dos Gavi�es.
� �Era o nosso Prinspe, Dom Sin�sio, O Alumioso, que voltou,
Dinis!� � gritou Lino, como se tivesse sido atingido pelo raio.
� �O qu�, Lino? Que � que voc� est� dizendo?� � perguntei,
incr�dulo, e atribuindo sua exalta��o a uma doideira causada pelo
Vinho da Pedra do Reino.
� �Bem que voc� nos dizia, meu Rei Dom Pedro Dinis
Quaderna!� � continuou Lino, exaltando-se cada vez mais. ��Bem que
voc� profetizou, para a era entre 35 e 38, o aparecimento do Rapaz-do-
Cavalo-Branco, no Almanaque do Cariri! Venha, venha comigo! Vamos
pra Tapero�, porque o Prinspe-do-Cavalo-Branco ressuscitou e vai
come�ar a tribuzana, o boi-de-fogo da Guerra do Reino do Sert�o!�
� �Lino, deixe de conversa!� � adverti-o. � �A gente est�
falando numa coisa e voc� vem com outra! Falei que apareceram umas
coisas em cima da casa de meu Padrinho, mas n�o era sobre Sin�sio que
eu estava falando n�o! Escute o que estou lhe dizendo, homem! Estou
cego, e estou espantado porque voc� n�o v� sangue na minha cara!
Como � que voc� n�o est� vendo isso, se eu senti o gosto da �gua-dosolhos
misturada com sangue, na minha boca? Senti perfeitamente
quando meus olhos se rasgaram, deixando escorrer para baixo a �guada-
vista! Tenho certeza, porque ainda estou sentindo, inclusive, o gosto
de metal enferrujado que tudo isso deixou na minha boca!�
� �Bem, Dom Pedro Dinis, disso a� eu n�o me espanto n�o,
porque, quando eu apareci ali, naquela curva da Estrada, voc� estava
aqui, parado no meio do tempo, feito doido, com sua faca-de-ponta
atravessada na boca!�
� �A faca? Na boca?� � falei eu, meio apalermado.

� �Sim!� � insistiu Lino. � �Quando eu apareci, voc� estava
mordendo a faca, feito doido! E lhe digo mais uma coisa: eu quase corro,
com medo, porque, do jeito que voc� estava, de alpercatas-de-rabicho,
roupa parda e chap�u de couro na cabe�a, com a faca assim na boca,
feito um cachorro-da-molesta, parecia uma assombra��o de Cangaceiro,
aparecida no meio do Mundo! Deve ter sido a faca-de-ponta que lhe deu
esse gosto de metal e ferrugem na boca! Voc� estava com ar de leso,
mordendo a faca e passando a l�ngua nela! Quando eu fui chegando,
voc�, certamente sem se sentir, tirou a faca da boca e icou com ela na
m�o!�
� E era verdade isso que ele dizia? � indagou o Corregedor.
� Era, sim senhor!
� Anote isso, Dona Margarida, � importante! O senhor estava
com a faca na m�o, n�o foi isso que o senhor disse?
� Foi sim senhor! S� quando Lino disse aquilo foi que eu notei
que estava, de fato, com a faca ainda na m�o! Eu me lembrei ent�o,
vagamente, de que, quando tinha come�ado a descer o Lajedo, tinha
tirado a faca da cintura, colocando-a atravessada na boca para o caso de
precisar dela. Eniad�ssimo, envergonhado diante daquele meu s�dito e
seguidor que me surpreendera numa leseira daquela, meti de novo a
faca na bainha e falei para Lino, ainda duvidoso:
� �Quer dizer que meus olhos est�o inteiros, Lino?�
� �Est�o, Dinis!� � respondeu ele, com seguran�a.
� �Ent�o como � que se explica que eu esteja cego, cego de
guia? N�o estou vendo voc� n�o! N�o estou vendo nem a claridade do
Sol! Quando olho para ele, s� vejo � aquela bola de prata, boiando no
fogo!�
� �Ent�o v� ver que o que voc� fez foi estoporar mesmo, como
eu tinha pensado, Dinis! Tamb�m, voc� � doido e extravagante que s� a
peste! Que extravag�ncia mais desadorada essa sua! Comer carne de
sol, tomar vinho e se espichar em cima de lajedo, � coisa conhecida, �
danado pra estoporar! � morte ou cegueira certa, e cegueira dessas da
gota-serena! Vou lhe dizer uma coisa, meu Rei velho de guerra: voc�
ainda teve sorte! Podia ter estoporado por um lugar menos sadio, e a�
era morte certa! Assim, estoporando pelos olhos, felizmente n�o
morreu, s� fez foi cegar! Quer que eu lhe sirva de guia at� a rua?�
� �Quero, Lino, me fa�a esse favor!�

� �Pois ent�o chegue aqui, venha montar no �Pedra-Lispe�! Eu
lhe ajudo!�
� �N�o, espere! Deixe, primeiro, eu tirar o manto da Ordem de
Distin��o da Pedra do Reino!�
� �N�o, n�o!� � protestou Lino. � �Tirar o manto pra qu�?
Logo agora, numa hora dessas, quando o Alumioso ressuscita e volta, �
que o Rei quer tirar o manto? N�o me diga que voc� perdeu a f�! N�o
me diga que sua Profecia estava errada! N�o me diga que n�o foi o
nosso santo Alumioso que voltou!�
O Corregedor interrompeu:
� Ele fez, mesmo, essa refer�ncia, clara assim, ao Rapaz-do-
Cavalo-Branco?
� Fez, sim senhor! Eu, por�m, no centro da cat�strofe que me
ferira, n�o tinha dado, at� ali, �s palavras estranhas de Lino, a aten��o
que elas mereciam. O que me chegara at� ao ju�zo, por entre a poeira e
o sol do meu desgosto, eu tinha atribu�do ao vinho e � erva-moura do
Reino. Agora, por�m, j� ia, aos poucos, me acostumando � desgra�a e
come�ava a voltar, mais, � realidade. Por outro lado, ele falara, agora, de
modo t�o claro, que comecei a suspeitar que alguma coisa de terr�vel
import�ncia estava sucedendo ou come�ando a acontecer. J� montado
em �Pedra-Lispe�, que Lino segurara pelo cabresto e ia puxando, falei
para ele:
� �Lino, que hist�ria � essa que voc� est� dizendo a�? Voc� falou
na ressurrei��o do Pr�ncipe-do-Cavalo-Branco, foi? Que hist�ria �
essa?�
� �Que hist�ria � essa? Que hist�ria � essa, uma porra! Voc�,
Dom Pedro Dinis, voc� que � nosso Rei e Profeta, est� duvidando? At�
nem parece que foi voc� quem sustentou a F� da gente, durante estes
cinco anos! Olhe, Dinis, vou lhe dizer uma coisa: aconteceu hoje, aqui na
Estrada, ainda agora, a coisa mais sagrada que podia nos acontecer! Eu
estava em Estaca Zero. Sa� para um ro�ado, e tive uma visagem, no
caminho, uma coisa horrorosa, um Cavaleiro do Inferno que depois lhe
conto! Voltei para a rua, e encontrei l� o maior cu-de-boi que se possa
imaginar! Parecia que o mundo estava se acabando: era menino
chorando, era grito de mulher tendo ataque, era o diabo! Vendo que a
gritaria era maior do que um estrup�cio comum, perguntei o que tinha
acontecido. Me disseram que tinha passado uma Cavalhada, toda luzida,

com um Frade e uma bandeira na frente, e com um Rapaz no meio,
montado num cavalo branco! A�, Dinis, fui eu que iquei feito doido! E
n�o era para menos, porque isso era o que voc� e o Profeta Naz�rio
tinham profetizado todo ano, desde 1930, no Almanaque do Cariri,
desde que roubaram e mataram o ilho mais mo�o do nosso Rei
Degolado, Dom Pedro Sebasti�o! � o nosso Prinspe Alumioso do Cavalo
Branco, que voltou ressuscitado, para fazer a desgra�a dos ricos e a
felicidade dos pobres aqui do Sert�o! Ah, meu velho Dinis, voc� n�o
imagina o borborinho que aquele Povo todo estava fazendo, na Estaca
Zero! Estava tudo com ar de doido, e eu s� ouvia era os gritos! Um dizia:
� O Prinspe da Pedra do Reino voltou e passou aqui pela estrada, em
procura de Tapero�! Outro gritava: � Vou ver se tenho a sorte dele me
aceitar pr�a Guerra do Reino, porque ent�o ressuscito tamb�m e nunca
mais morro! O pessoal do Prinspe, Dinis, tinha passado por Estaca Zero
sem parar, galopando, de modo que o Povo, meio ourado, n�o tinha tido
a ideia de seguir atr�s dele. Eu, por mim, como lhe disse, tinha chegado
atrasado. Assim, s� quase uma hora depois que passou a Cavalhada, foi
que o primeiro devoto meteu o p� na Estrada; mas, agora, j� est� tudo
quanto � de gente vindo de Estaca Zero, a p�, por a�, de Estrada afora!
Eu tive a sorte de amorcegar um Caminh�o, que me deixou no Cosme
Pinto! Pelo pessoal do caminh�o, soube que o primeiro tiroteio da
Guerra do Reino j� aconteceu, perto dum Lajedo, entre Cosme Pinto e
Estaca Zero. Venho, por isso, na frente do pessoal da minha rua, mas de
qualquer modo, me atrasei da Cavalhada do nosso Prinspe. Agora, vou
chegando a Tapero�, e, se Deus quiser, a Guerra do Reino vai come�ar
comigo dentro dela! Agora, eu lhe pergunto uma coisa: voc�, que estava
aqui na Estrada, viu passar por ela o nosso Prinspe? E se esse Rapaz
que veio por a�, montado num cavalo branco, for, mesmo, o nosso
Alumioso, voc� conhece ele?�
� �Eu sei l�, Lino Pedra-Verde! Se fosse antes, eu conhecia! Mas
assim como estou, cego, sei l�!�
� �� mesmo, isso � o diabo! Isso era, l�, hora de cegar, Dom
Pedro Dinis Quaderna! Sem voc�, sem uma pessoa ilantr�pica como
voc� � que � entendido no Lun�rio e em outras coisas lit�rgicas �, o
nosso Reino n�o vai de jeito nenhum! S� voc� � capaz de decifrar esse
entran�ado! O que foi que voc� disse que viu aqui na Estrada, antes d�eu
chegar?�

� �N�o posso lhe dizer direito ainda n�o, Lino, porque foi tudo
muito confuso! O que eu posso lhe garantir � que, pouco antes de cegar,
eu vi passar, ou melhor, eu ouvi passar pela Estrada uma tropa de
Cavaleiros, com as rodas das carretas chiando e com uns miados que
pareciam de bichos de Circo enjaulados! Na verdade, n�o posso dizer
que vi nada, porque estava j�, naquela hora, com os olhos encandeados
e magoados pelo Sol! Mas, se n�o cheguei a ver, mesmo, os cavalos e os
Cavaleiros, vi as imagens deles, projetadas na poeira, iluminada pelo
Sol!�
� �Ave Maria!� � gritou Lino, entusiasmado. � �E como � que,
tendo visto uma coisa dessas, voc�, meu Rei, ainda tem coragem de
dizer que n�o viu nada? Viu, voc� viu! Viu, e vamos embora logo, para a
rua, porque � ele! Ah, Dom Pedro Dinis Quaderna, est� esquecido
daquilo que voc� mesmo escreveu, na Profecia do come�o deste ano, no
Almanaque? Vamos pra Tapero�, porque essas imagens que voc� viu � a
lanterna-m�gica do Sol, � o Cosmorama da pantasmagoria que Frei
Sim�o e a Velha do Badalo profetizaram para a volta do nosso Prinspe,
Dom Sin�sio Sebasti�o, O Alumioso!�
� A Velha do Badalo? � estranhou o Corregedor. � Tamb�m �
Profetisa?
� �, sim senhor, se bem que seja, mais, do tipo de Profeta de
folheto! O �Badalo� � uma terra que tem, aqui em Tapero�, e que s� d�
doido! A velha Maria Galdina � de l�, e vive cantando umas modasantigas,
umas cantigas-velhas, do tempo do ronca e de Dom Pedro Cip�-
Pau! No Almanaque do Cariri do ano de 35 eu tinha publicado uma
dessas cantigas, e Lino, agora, pelo que eu via, estava achando que essa
cantiga se referia � chegada de Sin�sio!
� Entendi! � disse o Corregedor, cortante. � Estou
entendendo, Dom Pedro Dinis Quaderna, e o papel que voc�
desempenhou nisso tudo est� cada vez mais claro para mim! Pode
continuar!
Ah, nobres Senhores e belas Damas! Eu sentia, perfeitamente,
que estava me enredando cada vez mais no novelo-de-cobras que o
Destino tinha iado para mim. Mas o que � que podia fazer? Continuei:
� Lino continuava falando na maior exalta��o, Sr. Corregedor, j�
agora ligando minha cegueira � reapari��o de Sin�sio. Dizia ele:

� �Sabe duma coisa, Dinis? � bem poss�vel que n�o tenha sido
estoporamento! V� ver que foi a Vis�o da Pantasmagoria do Prinspe que
cegou voc�! Voc�, Dinis, apesar de Rei e Profeta, � homem safado e
pecador! Talvez esteja com algum pecado cabeludo nessa sua
consci�ncia preta, e foi por isso que n�o teve o direito de avistar o
nosso Prinspe Alumioso da Bandeira do Divino! Voc� mesmo escreveu
na sua Profecia deste ano que o nosso rapaz santo teria de voltar como
Criatura pura e limpa de toda mancha! Ora, � claro, clar�ssimo, que uma
Criatura assim n�o pode ser avistada por um sacana como voc�! Mas,
por outro lado, pecador ou n�o pecador, de consci�ncia limpa ou podre,
est� escrito que o Reino s� vai para o Prinspe pela m�o daquele que � o
Rei e o Profeta da Pedra do Reino! � por isso que, se voc� n�o foi capaz
de ver o Prinspe, p�de, pelo menos, ver o Cosmorama dele! E basta!
Tendo visto isso, sua obriga��o, Dinis, � reunir o Povo l� em Tapero�,
contando para todos como vai come�ar a Guerra do Reino do Sert�o do
Brasil! Vamos embora, Dom Pedro Dinis Quaderna! Vamos, que o Sol
est� se chegando para o poente, e eu quero chegar na Vila com ele ainda
de fora, com luz que d� para eu ver a cara alumiada do nosso Prinspe!�

Fuga
A DEMANDA DO SANGRAL

� Q
FOLHETO LXXVI
A Gruta Sumeriana do Deserto Sertanejo
uando chegamos aqui � Vila, Sr. Corregedor, encontramos a rua
subvertida pelo grande acontecimento! Os Burgueses e os
�senhores feudais da Aristocracia rural� � como chama
Clemente �, certos de que a Revolu��o Comunista tinha come�ado,
tinham se trancado a sete chaves e, depois, ido para a reuni�o com o
Bispo, como j� contei. Mas a rua estava cheia de gente do Povo, de modo
que, � medida que eu passava, se n�o via nada, ia ouvindo os gritos, os
choros e as impreca��es �da Plebe sertaneja, suja, mal lavada,
malcheirosa e fan�tica�, como diz Samuel. Pedi a Lino Pedra-Verde que
me levasse diretamente para minha casa, aquela que � pegada �
Biblioteca; e que, depois, voltasse � rua, para se informar, o mais
discretamente poss�vel, do que acontecera, a im de me fazer uma
narra��o segura de tudo. Arriei na minha espregui�adeira e Lino saiu
para cumprir o meu mandado. Da� a pouco voltava ele, ainda mais
excitado. Narrou-me tudo: a chegada de Sin�sio, a emboscada do lajedo,
o atentado da rua, a morte do �cabra� e a visagem do Profeta Naz�rio,
devidamente completada pela de Pedro Cego. Eu vi, logo,
imediatamente, que estava diante de acontecimentos decisivos para o
meu destino. Eram acontecimentos zodiacais e astrol�gicos, que
interessavam n�o somente � sorte do Brasil, mas � Obra, ao Castelo
Sertanejo que estava para ser ediicado pelo G�nio da Ra�a Brasileira,
predestinado a cantar aquela sorte e aquele Prinspe. Pedi ent�o a Lino
que fosse procurar Clemente e Samuel, avisando-os da desgra�a que se
abatera sobre mim e solicitando a presen�a urgente deles, pois eu tinha
grav�ssimos assuntos a discutir com os dois. Lino Pedra-Verde foi
encontr�-los reunidos, na casa de Clemente, que era a mais pr�xima,
pegada � minha. Estavam agarrados numa discuss�o ardorosa,
motivada, como n�o podia deixar de ser, pela reapari��o milagrosa e
enigm�tica de Sin�sio, pelas visagens que Naz�rio e Pedro Cego tinham

comunicado � multid�o e pelo verdadeiro sentido pol�tico daquilo tudo.
Como a casa de Clemente era bem perto, eles n�o demoraram a chegar,
conduzidos por Lino Pedra-Verde, para a sala da frente, pegada �
Biblioteca, onde eu me encontrava. Ambos estavam, ainda, com as
roupas de cerim�nia com as quais tinham comparecido ao Palanque, e
foi assim, de togas sobrepostas, que entraram na sala onde eu,
acariciando a testa em torno dos olhos irremediavelmente
despeda�ados, continuava sentado na espregui�adeira, imerso no maior
desespero, na maior desola��o que se possa imaginar. Meus dois
Mestres estavam profundamente perturbados. N�o com minha
cegueira, mas com a ressurrei��o de Sin�sio. De fato, a nossa situa��o
diante da fam�lia de meu Padrinho levava a isso. Eu, parente, agregado e
protegido, era mais velho do que Ar�sio somente tr�s anos, e treze mais
do que meu sobrinho e primo Sin�sio. Eu, Clemente e Samuel t�nhamos
morado muito tempo na �On�a Malhada�, na casa do velho Rei
Degolado, Dom Pedro Sebasti�o. Clemente e Samuel, por�m, eram
bastante mais velhos, de modo que tinham assistido, j� como adultos,
ao nascimento de Ar�sio e Sin�sio, assim como ao do outro ilho de meu
Padrinho, o bastardo Silvestre. Tinham sido, mesmo, como que os
preceptores e pedagogos nossos, meu e, mais especialmente, dos tr�s
Pr�ncipes, Ar�sio, O Proscrito, Silvestre, O Bastardo, e Sin�sio, O
Alumioso. At� aquele dia, ambos tinham como certa a morte de Sin�sio.
Agora, de repente, daquela maneira miraculosa, aparecia o Mancebo
ressuscitado, para reivindicar seus direitos � heran�a e � vingan�a do
Pai. Sim, porque essa era a opini�o un�nime do Povo: chegara o
Justiceiro, o vingador esperado. O fato � que, talvez por causa disso,
nem Samuel nem Clemente se dignaram dar import�ncia � minha
cegueira. Talvez fosse por causa da inumanidade que caracteriza
sempre os grandes homens, que n�o costumam descer de suas altas
preocupa��es para dar import�ncia a coisas de pouca monta como a
simples desgra�a individual de um ser humano. Talvez fosse porque
nunca me levavam realmente a s�rio, considerando-me um ex-disc�pulo
que, para vergonha sua, tinha se tornado apenas um charadista e
Decifrador, indigno das preocupa��es e da compaix�o deles.
� Ser� que eles perceberam, logo, que o senhor estava cego? �
indagou o Corregedor.

� Perceberam, Sr. Corregedor! A princ�pio, imaginei que Lino
n�o dissera nada e eles ignoravam o fato, apesar de que, como eu vim a
saber depois, o Cantador caolho dera com a l�ngua nos dentes, inclusive
na rua, onde a not�cia logo se espalhou no meio do Povo, como uma
fa�sca el�trica. Mas, al�m disso, Lino tinha contado tudo diretamente
aos dois. Mesmo assim, quando eles entraram na sala, ignoraram minha
cat�strofe. Dirigiram-se a mim, mas foi para continuar a conversa que
Lino interrompera e para comentar o estranho caso da ressurrei��o de
Sin�sio, com as profecias e tudo. O mais animado era Clemente. Samuel,
apesar de todos os esfor�os que fazia para esconder isso, estava
inquieto com a possibilidade de aquilo ser, mesmo, uma Coluna
comunista. �Se assim for� � dizia ele �, �isso signiicar� o meu
fuzilamento sum�rio pela Canalha.� As d�vidas, por�m, permaneciam
de parte a parte; a Esquerda tamb�m estava inquieta, porque Clemente,
por sua vez, n�o estava ainda muito seguro sobre �a verdadeira
orienta��o ideol�gica� daquele estranho grupo de Ciganos. Notei,
mesmo, que meus dois Mestres estavam se tratando mutuamente com
grande cortesia, o que absolutamente n�o era comum. Depois � que eu
entenderia o motivo disso: tinham feito uma esp�cie de pacto de
garantia m�tua. Se a Coluna fosse da Esquerda � como pensava o
Comendador Bas�lio Monteiro �, Clemente protegeria e esconderia
Samuel, que faria o mesmo com o rival, caso o grupo de Lu�s do
Tri�ngulo e do Cigano se revelasse como da Direita. Eu, vendo que eles,
absolutamente, n�o tomavam conhecimento da minha desgra�a,
arrisquei timidamente, na primeira pausa, uma informa��o e uma
queixa a respeito da cat�strofe-tr�gica que introduzira a Cegueira entre
os inquilinos de meus olhos, entre as minhas Paix�es mal�volas, �entre
as vicissitudes da minha atribulada exist�ncia�. Os dois mal
conseguiram ingir um interesse distra�do pelo fato. Samuel veio logo
com as Literaturas direitistas dele, para me consolar:
� �Olhe, Quaderna� � disse ele, s�rio �, �isso que, � primeira
vista, parece uma desgra�a, pode at� ser uma coisa ben�ica, pelo
menos para voc�, que deseja ser um Poeta �pico e fazedor de romances,
como nos confessou hoje! Ali�s, s� lhe dou essas informa��es porque
minhas ideias s�o outras e o fato de voc� fazer um romance n�o me
causa preju�zo nenhum. J� lhe disse que, na minha opini�o, a Obra da
Ra�a Brasileira ser� um Livro de poemas cifrados, um livro que s� um

Poeta, aqui, � capaz de fazer!� � disse ele, com um tom presun�oso que
me irritou ainda mais. E acrescentou: � �Mas voc� tem outro
pensamento, acha que deve escrever algo no g�nero �pico. Pois siga
esse caminho. Dou-lhe, de gra�a, um conselho: por que voc� n�o
escreve uma esp�cie de �romance brasileiro e medieval de cavalaria�,
parecido com os do genial escritor pernambucano de Pesqueira,
Zeferino Galv�o, e aproveitando para isso a Cr�nica da fam�lia Garcia-
Barretto? Voc� deveria partir n�o de seu Padrinho, mas da ressurrei��o
maravilhosa desse Rapaz-do-Cavalo-Branco! Mesmo pertencendo a
essa Aristocracia b�rbara, bastarda e corrompida do Sert�o, Sin�sio �
um Barretto, um descendente, portanto, da ilustre estirpe
pernambucana dos Morgados do Cabo. Assim, se voc� contar a hist�ria
dele, pode reintegrar, nela, o Brasil em seu verdadeiro caminho, o
caminho ib�rico-lamengo! Note que o genial Zeferino Galv�o, apesar de
nunca ter sa�do de Pesqueira, s� escrevia seus romances com a��o
passada na Proven�a, dando, com isso, uma grande prova de idelidade
�s ra�zes da nossa idalga Ra�a! Ele escreveu uma trilogia chamada
Helo�sa d�Arlemont, composta de tr�s obras geniais, A Corte de Proven�a,
O Mosteiro de N�mes e A Guerra dos Camisardos. Na minha opini�o, a
Obra da Ra�a deve ser escrita em versos e por um Poeta. Mas j� que
voc� deseja ser um �pico, escolha, para escrever sobre o Rapaz-do-
Cavalo-Branco, um romance de cavalaria, ib�rico-lamengo e brasileiro,
como os de Zeferino Galv�o, ou mesmo, de certa forma, como os desse
romancista para adolescentes, Jos� de Alencar, que voc� tanto admira,
com seus gostos de leitor de almanaques!�
� Na mesma hora, Sr. Corregedor, Clemente come�ou a
protestar, querendo levar Zeferino Galv�o no rid�culo, atrevimento do
qual s� recuou quando soube que o grande escritor da Vila de
Pesqueira tinha sido membro do Instituto Arqueol�gico de Pernambuco
e era, portanto, um escritor acad�mico, consagrado e indiscut�vel. Mas,
mesmo recuando nessa parte, continuou discordando de Samuel
quanto ao resto:
� �Olhe, Samuel� � disse ele �, �n�o quero ser indelicado com
voc�, principalmente tendo nosso pacto em vista. Mas discordo de uma
por��o de coisas, a� no que voc� disse. Em primeiro lugar, a Obra da
Ra�a Brasileira tem de ser um Livro ilos�ico-revolucion�rio, escrito
em Prosa e por um Fil�sofo, um homem mergulhado pelo sangue e pela

cultura na realidade social do nosso Pa�s. Mas, mesmo que a Obra da
Ra�a devesse ser �pica, como pensa Quaderna, n�o poderia, de modo
nenhum, ser um rid�culo romance de cavalaria ib�rico-lamengo!
Deveria ser, sim, um romance picaresco, sat�rico e popular, como j�
provei hoje pela manh�; um romance sem her�i individual � coisa
ultrapassada e reacion�ria � e cujo personagem fosse um homempovo,
um s�mbolo da fome e da mis�ria, enfrentando os Poderosos pela
ast�cia, errante e mal-andante pelas Estradas sertanejas! Esse Zeferino
Galv�o, genial como fosse, era um traidor do Brasil!�
� �De jeito nenhum, Clemente, desculpe o que lhe digo!� �
tornou Samuel, sempre procurando ser delicado, por causa do pacto. �
�Acho perfeitamente leg�timo que um escritor brasileiro, desgostoso
com os plebe�smos e misturas que corromperam o in�cio idalgo da
nossa Ra�a, escreva sobre outro tempo e outro lugar, como fazia
Zeferino Galv�o com a Proven�a do s�culo XVII. Que culpa tinha esse
pernambucano ilustre de que a realidade atual do Brasil n�o esteja �
altura dos nossos sonhos de Poetas idalgos? Acho que essa escolha de
Zeferino Galv�o � at� uma prova de bom gosto, porque, quando a gente
deixa de lado a realidade mesquinha e vulgar, pode exilar das nossas
Obras a vida grosseira e manchada, deixando lugar somente para a
imagina��o, a Legenda e o sonho!�
� �Veja, Samuel� � objetou Clemente �, �entenda que minha
cr�tica n�o � feita por Zeferino Galv�o ter sa�do das fronteiras
convencionais do Brasil, n�o! O que eu critico � que, ao sair dessas
fronteiras, ele n�o tenha seguido o caminho mouro e eti�pico, caminho
que, este sim, reconduziria o Brasil a suas verdadeiras ra�zes!�
� �Nada disso!� � insistiu Samuel. � �Zeferino Galv�o s� n�o
acertou inteiramente porque, ao deixar essa terra de Cafres e
gaforinhas em que se tornou o Brasil, escolheu a Proven�a, terra que,
sendo ainda meio ib�rica, � ainda meio morena! De gente morenoib�rica,
j� nos bastam o sangue portugu�s e o espanhol, que vieram a
princ�pio, mas que, depois, com a negralhada que se meteu, foram se
perdendo e abastardando. O que � necess�rio agora, para recuperarmos
o sangue da Ra�a, � um bom contingente de sangue n�rdico, para fundir
assim, no nobre cadinho brasileiro, a ra�a de Fidalgos brasileiros dos
nossos sonhos!�
O Corregedor interrompeu, observando:

� Noto, Dom Pedro Dinis Quaderna, que havia certa semelhan�a
de ideias e de palavras entre o Doutor Samuel e Gustavo Moraes.
� � verdade, Sr. Corregedor. Para ser justo, devo dizer que
Samuel j� tinha muitas dessas ideias. Mas depois que Pl�nio Salgado
passou aqui, no Sert�o do Cariri, e principalmente depois que Gustavo
Moraes veio do Recife para c�, essas ideias receberam grande impulso e
uma nova formula��o. Havia, aqui na Para�ba, no grupo do jornal A
Uni�o, tr�s escritores que inluenciavam Samuel nessas idalguias
ib�ricas, isso antes do Integralismo: eram Carlos Dias Fernandes, Eudes
Barros e Adhemar Vidal. Pois foi na linha de tudo isso que ele concluiu,
naquele dia, dizendo: �Zeferino Galv�o, a meu ver, deveria ter escolhido
a Flandres, ou talvez, melhor, a Borgonha, que, icando a meio caminho
entre a Ib�ria e a Flandres (e tendo tido um mesti�o de n�rdicoportugu�s,
Carlos, O Temer�rio, como seu �ltimo Duque), serviria
melhor para auscultar os ritmos do sangue da nossa Ra�a; o que digo de
dentro do problema e por experi�ncia pr�pria, porque, como leg�timo
Wan d�Ernes, sou um leg�timo Fidalgo ib�rico-lamengo e brasileiro!�
Assim falou Samuel, Sr. Corregedor, e meu sonho de ser o G�nio da Ra�a
Brasileira me tornava de tal modo possesso da Literatura, que, a
despeito de toda a minha desgra�a, aquelas conversas estavam, j�,
come�ando a incendiar minha cabe�a. Meu objetivo secreto era erguer,
eu mesmo, o meu Castelo, conciliando aquelas opini�es,
irredutivelmente contr�rias e incompletas, de Samuel e Clemente. Eu
escreveria uma Obra em prosa, como queria Clemente. Mas essa Obra
em prosa seria animada pelo fogo subterr�neo da Poesia e pelo galope
do Sonho, como queria Samuel. Seria escrita por um Poeta de sangue,
de ci�ncia e de planeta; toda entremeada de versos; e nela se uniriam,
pela primeira vez, a Literatura sertaneja de beira-de-estrada � na linha
do Comp�ndio Narrativo do Peregrino da Am�rica Latina � e a
Literatura idalga da Zona da Mata � na linha de A Corte de Proven�a,
de Zeferino Galv�o. Por isso, j� come�ando a me esquecer um pouco da
cegueira e tamb�m sem abrir muito meu jogo para n�o esclarecer meus
rivais, falei:
� �Olhem, para mim, o problema n�o ser�, propriamente,
descobrir como escrever a hist�ria de Sin�sio. Para mim, o que �,
mesmo, indispens�vel, � assistir a todos os acontecimentos at� o im,
para, de tal modo, saber de tudo e ter o que escrever! Como voc�s j� me

provaram muitas vezes, n�o tenho imagina��o para inventar, s� sei
contar o que vi. Ora, sei tudo o que se passou com os Garcia-Barrettos
at� o dia de hoje. Daqui por diante, nessa quest�o que, pelo visto, vai se
travar entre Ar�sio e Sin�sio, o problema fundamental � o do
Testamento e o do Tesouro que o Pai deles deixou. Pelo que estou
entendendo, o Advogado do Rapaz-do-Cavalo-Branco, Doutor Pedro
Gouveia da C�mara Pereira Monteiro, sabe disso melhor do que n�s.
Assim, ser� � busca do Testamento e do Tesouro que ele encaminhar�
Sin�sio. Pois bem: nessa hist�ria toda, houve um acontecimento que, a
meu ver, precisa ser bem interpretado, porque pode ser a chave de
muita coisa que j� aconteceu e ainda vai acontecer daqui por diante.
Sabem o que �? � essa visagem que o Profeta Naz�rio teve e que Pedro
Cego completou. Voc� ouviu a hist�ria deles, Clemente?�
� �Ouvi!� � disse o Fil�sofo, com olhos acesos.
� �Qual � sua opini�o sobre a visagem? Acha que � coisa de
pouca import�ncia?�
� �Vamos em termos e por partes!� � disse Clemente,
cauteloso. � �Acho, com voc�, que a visagem do Profeta Naz�rio � coisa
da mais alta import�ncia. O que ela n�o �, � visagem! Nada daquilo foi
inventado, Quaderna. Naz�rio e Pedro Cego devem ter visto alguma
coisa que pareceu a eles t�o estranha, que falam disso em tom m�stico,
reacion�rio e obscurantista. Me digam uma coisa: eu j� contei a voc�s a
aventura que me sucedeu, certa vez, numa Caatinga sertaneja e no
decorrer da qual iz uma descoberta arqueol�gica da mais alta
import�ncia para o Brasil?�
� �N�o!� � disse eu, acendendo, por minha vez, olhos
rebrilhantes de curiosidade.
� �� verdade! Estou falando disso pela primeira vez, porque,
dada a import�ncia da descoberta, eu queria guard�-la para o meu
Tratado da Filosoia do Penetral. Mas, com os acontecimentos de hoje,
vou revelar tudo, desde que voc�s me garantam segredo absoluto sobre
o que v�o ouvir. Voc�s garantem?�
� �Garantimos, Clemente!� � dissemos eu e Samuel ao mesmo
tempo.
� �Voc�s j� ouviram, alguma vez, alguma refer�ncia � legend�ria
Cidade c�rio-asteca, fen�cio-incaica e eg�pcio-tapuia, soterrada aqui e ali
no Sert�o brasileiro?�

� �J� ouvi algumas refer�ncias vagas!� � disse Samuel. �
�Sempre pensei, por�m, que essas hist�rias de inscri��es petrogr�icas
fen�cias, aqui, fossem intrujices de desocupados.�
� �Pois voc� est� enganado, Samuel!� � falou Clemente com ar
grave. � �Estudei detidamente o assunto e posso lhe garantir, hoje, que
os c�rio-troianos, os astecas, os incas, os tapuias, os sumerianos, os
eg�pcios, os fen�cios e os ciganos, tudo isso � uma coisa s�! A� por 1924
ou 1925, n�o me lembro direito, passou aqui pelo Sert�o da Para�ba um
s�bio estrangeiro a quem os Sertanejos chamavam Ludovico
Choven�gua. Ele foi recomendado a n�s pelo pr�prio Presidente
daquele tempo e eu tive oportunidade de lhe servir de guia, dando-lhe
v�rias informa��es que ele considerou preciosas e que transcreveu em
seu livro, o safado, sem comunicar a fonte em que bebera. Vou dar
algumas indica��es que v�o fazer voc�s icarem de queixo ca�do.
Primeiro: voc�s sabem que as inscri��es e desenhos petrogr�icos
brasileiros e sertanejos s�o feitos com �letras do alfabeto fen�cio e da
escrita dem�tica do Egito�? Sabiam que existem, aqui no Sert�o,
inscri��es com �caracteres da antiga escrita babil�nica, chamada
sumeriana�? Temos, tamb�m, alguns �escritos com hier�glifos eg�pcios�,
outros cretenses, alguns da C�ria � povo aliado dos Troianos, na
Guerra de Troia �, da Ib�ria e da Etr�ria. Um antigo funcion�rio da
Comiss�o Brasileira Demarcadora de Limites encontrou, no Sert�o,
ru�nas de uma Cidade, que julgou �ser de origem fen�cia�. E existem
outros dados. Os Fen�cios, quando andaram por aqui, constru�ram
v�rios estaleiros, alguns com aterros e subterr�neos, e a maior parte
deles no Litoral do Estado do Rio Grande do Norte � em Maracu, no
Lago Verde e no A�u, assim como um perto de Touros. Varnhagen conta
como os C�rios e os Troianos, depois de derrotados pelos Gregos, na
�Guerra de Troia�, emigraram para o Brasil, e cita in�meras palavras
comuns aos Tapuias, Eg�pcios, Sumerianos e C�rio-Troianos. Ali�s,
depois da �Guerra de Troia�, os povos aliados e confederados contra os
Gregos fundaram v�rias cidades em homenagem a Troia. Assim, houve
uma Troia perto de Veneza, outra no L�cio; houve uma Troia etrusca,
outra na costa atl�ntica da Ib�ria. A n�s, por�m, interessa mais � o
resto: � medida que todos esses Povos contornavam a �frica e se
dirigiam para o Brasil, n�o faziam mais do que sentir o fasc�nio das
origens e o desejo de regresso �s ra�zes Tapuias de que se originavam.

Foi assim que se fundaram duas Troias no litoral brasileiro, uma no Rio
Grande do Norte � cujo nome virou, depois, Touros � e outra na Bahia
� que virou Torre. Os C�rios, por sua vez, fundavam, no Sert�o, a
cidade de Carnatum, cujo nome, com o decorrer do tempo, se
corrompeu em Canudos. Sim, porque foi no Nordeste, segundo airma
Ludovico Choven�gua, entre os Rios Tocantins e S�o Francisco, que os
C�rios se estabeleceram. Vejam quantas coincid�ncias estranhas! Os
Fen�cios tiveram estaleiros no Litoral do Rio Grande do Norte, sendo
essa, talvez, a origem dos subterr�neos e aterros que o gringo Edmundo
Swendson encontrou na Fortaleza de S�o Joaquim. Por outro lado,
Canudos, o local da �Troia Sertaneja�, foi fundada pelos C�rio-Troianos!
N�o � uma coisa maravilhosa? Pois bem: mais maravilhoso ainda � o
que me aconteceu. Durante as minhas investiga��es arqueol�gicas e
paleogr�icas, eu me perdi, um dia, na Caatinga sertaneja do Serid�, do
Rio Grande do Norte. Voc�s sabem que essas inscri��es e ru�nas
encontram-se sempre em grandes aglomerados de pedras e lajedos.
Pois bem. Extraviado, encontrei, de repente, um amontoado de pedras
com um buraco, que parecia a entrada de uma gruta. Havia morcegos e
maribondos, que espantei, fazendo um facho de marmeleiro. Com essa
tocha me servindo de lanterna, entrei no buraco, cheguei ao fundo,
segui por um corredor lateral que era, evidentemente, constru�do pela
m�o do homem, e assim, cheguei ao im do corredor, onde me encontrei
numa vasta sala escavada na pedra. As paredes eram recobertas por
murais, com guerreiros sumerianos, sacerdotes astecas, reis incas,
sacerdotisas c�rias nuas � estas com os peitos desnudos pintados de
amarelo, com o ventre, os bra�os e o rosto pintados de vermelho. O
mais estranho � que havia uma semelhan�a completa, n�o s� nos tipos
�sicos representados, como nos ornamentos e roupas dos personagens.
Da sala, sa�am corredores e compartimentos menores. Num deles,
encontrei diversas m�mias, deitadas no ch�o, arrumadas umas ao lado
das outras. Perto delas, havia enormes discos de pedra, divididos em
doze setores uns, em dezesseis, outros, cada setor com um signo
particular. Todos tinham semelhan�a com os chamados �rel�gios
astecas� a que Alexandre Borghine depois fez refer�ncia em seu livro,
publicado em 1923. O mais importante, por�m, � que havia, numa sala
cujas paredes de pedra eram decoradas com animais � On�as, cor�as,
Gavi�es, seriemas, emas etc. �, um tesouro incalcul�vel, de cintos,

colares, coroas e joias, tudo incrustado de diamantes, top�zios e �guasmarinhas!�
� �E voc� tirou alguma coisa, Clemente?� � perguntei de ventas
e olhos acesos de excita��o, apesar de sentir nas palavras graves do
Fil�sofo um cheiro de intrujice muito meu conhecido.
� �N�o, estava tudo encaixotado, em caixotes pesad�ssimos! Por
outro lado, eu estava apavorado, com medo de me perder. Voltei na
carreira, sa� da Furna, e voltei para o campo raso, a im de procurar, de
novo, o caminho de volta. No outro dia, sem dizer nada a ningu�m,
voltei com um Vaqueiro experimentado ao local em que pensava ter me
perdido, mas n�o houve jeito de achar mais a entrada. Todos os
aglomerados de pedra se pareciam uns com os outros, de modo que
terminei desistindo. Enim, o importante � que, de fato, Naz�rio e Pedro
Cego podem ter achado ou esse lugar ou outro parecido, deixado,
tamb�m, pelos C�rio-Tapuias e Fen�cios. A maneira como eles contaram
a hist�ria, � meio m�stica e reacion�ria. Mas, de fato, se n�s
conseguirmos reencontrar uma Furna dessas, o achado e a revela��o do
Tesouro podem ser da mais alta import�ncia, tanto para minha vis�o-
ilos�ica do Mundo, como para a nossa Cultura e, sobretudo, para os
fundamentos da Revolu��o Brasileira!�

Q
FOLHETO LXXVII
Cantar do Fidalgo Pobre
uando Clemente concluiu a narra��o de sua aventura
extraordin�ria, voltei-me para Samuel e indaguei:
� �E voc�, Samuel? Nas suas aventuras e desaventuras de
Fidalgo, andando pelos Engenhos pernambucanos, fez alguma
descoberta sonhosa e legend�ria dessas?�
� �Quaderna� � disse o Fidalgo �, �eu n�o preciso ter um dia
fora do comum para viver essas coisas, porque toda a minha vida foi e �,
a cada instante, um Sonho e uma Legenda gloriosa! Eu, derradeiro
var�o da minha Casa, vivo eternamente numa Gruta Encantada, muito
superior, em sonhos e tesouros, � que esses Profetas sertanejos,
Naz�rio, Pedro Cego e Clemente, viram!� � disse ele, sorrindo
superiormente e j� meio esquecido do pacto. E acrescentou: � �Voc�s
sabem que eu tenho horror a esse f�nebre Poeta paraibano aqui de
voc�s, Augusto dos Anjos. Mas, no meio de toda a obra dele, h� um s�
poema que me toca. Com ele eu posso repetir:
�Meu Cora��o tem catedrais imensas,
templos de priscas e long�nquas datas,
onde um Nume de amor, em serenatas,
canta a Aleluia virginal das Cren�as.
Na ogiva f�lgida e nas Colunatas
vertem Lustrais irradia��es intensas
cintila��es de L�mpadas suspensas
e as Ametistas, e os Flor�es e as Pratas.�

� �Sim, Samuel!� � falei. � �Mas voc� acha que a visagem de
Naz�rio tem algum fundamento? Isso � o que importa saber, agora! Que
� que voc� acha? O que foi que Naz�rio viu?�
� �O que Naz�rio teve, Quaderna, foi uma vis�o gra�lica, de
natureza po�tico-ext�tica, um pouco b�rbara, como tudo o que � do
Sert�o, mas que, bem interpretada e corrigida por um verdadeiro Poeta,
bem pode ser encaminhada a seu verdadeiro sentido: o do Quinto
Imp�rio, sonhado por todos os nossos vision�rios, Profetas e
iluminados, desde Ant�nio Vieira at� Gustavo Barroso! Agora, que
entusiasmo eu posso ter com uma vis�o comunicada, a�, no meio dessa
canalha sertaneja, maltrapilha e malcheirosa, numa cena tipicamente
plebeia, onc�stica e clementina? A �nica coisa que me encanta nisso
tudo � o aparecimento desse Donzel, quem quer que seja ele, montado
num Cavalo branco! Ah se isso tivesse acontecido na Zona da Mata! A�,
n�o haveria d�vida: saber�amos logo que era o jovem Fidalgo, signo e
ins�gnia da Ra�a, ardente, puro e casto, o nosso Encoberto; o nosso
Encantado, predestinado a realizar o novo Imp�rio da Ib�ria, o
eldorado e cordiforme Bras�o da Am�rica Latina!�
� �Est� bem, Samuel� � disse eu �, �concordo. Menos com
uma airmativa sua, a�! Voc� disse que o Rapaz-do-Cavalo-Branco era
puro e casto. Pois, se �, ser� de maneira bem diferente da castidade do
Rei Dom Sebasti�o, porque, segundo Lino me contou, ele vinha, na
estrada, com o retrato de uma Mo�a no escudo!�
� �Isso n�o indica nada contra a castidade dele!� � retrucou
Samuel. � �Em primeiro lugar, aquela pode ser, apenas, a igura m�tica
da Dama que os Cavaleiros sempre t�m. Mas, provavelmente, o que
aquele retrato �, mesmo, � uma alus�o � Rainha e Luz do C�u, � �Lumen
Coeli Regina�. Quem sabe o que, na verdade, ter� acontecido ao Rapazdo-
Cavalo-Branco? Talvez ele tenha visto a Senhora do C�u, num �xtase
m�stico e guerreiro, votando-se, da� por diante, � busca do Divino e �
solid�o do Deserto! Sim, � isso! Deve ser isso! Essa seria a �nica causa
de um Donzel t�o puro e t�o her�ldico ter vindo buscar esse b�rbaro
Deserto Sertanejo! Quem sabe se ele n�o � �O Cavaleiro Pobre�, o jovem
Cavaleiro ardente e casto, fan�tico e possu�do pela Divindade, cantado
pelo genial Poeta militarista, idalgo e tradicionalista que foi Olavo
Bilac? Voc�s conhecem o poema de Bilac, pelo menos atrav�s da
reinterpreta��o tapirista que iz dele. A hist�ria � uma maravilha: � a de

um Cavaleiro que, um dia, teve uma vis�o dessas. Depois da�, colocou no
Escudo a face da Dama Celeste, radiosa e pura. O mundo passou a lhe
parecer um vasto e in�til Mausol�u. Enquanto os outros viviam,
gozavam e amavam, ele vivia devorado pelo Fogo do Divino, pois
somente o Divino, depois que ele o vira, seria capaz de saci�-lo e
puriic�-lo, mesmo que izesse isso pelo fogo e pela Destrui��o. Ent�o,
depois de procurar a Morte mil vezes, nos pr�lios da F�, o jovem
Cavaleiro retirou-se para o Deserto, onde terminou seus dias,
envelhecido, louco, com os olhos em brasa, rouco, devorado e destru�do
pelo Terr�vel que vira e por seu pr�prio cora��o incendiado. Voc� se
lembra, Quaderna? O poema que eu iz a partir do de Bilac � mais ou
menos assim:
�Ningu�m sabe quem era o Cavaleiro Pobre,
que viveu solit�rio e morreu sem falar.
Era simples e s�brio, era valente e Nobre
e p�lido como o Luar.
Antes de se entregar �s fadigas da Guerra
dizem que um dia viu qualquer coisa do C�u:
e achou tudo vazio! E pareceu-lhe a Terra
um vasto e in�til Mausol�u!
Desde ent�o, uma atroz, devoradora Chama
calcinou-lhe o Desejo e o reduziu a P�!
E nunca mais o Pobre olhou uma s� Dama,
nem uma s�! Nem uma s�!
Conservou, desde ent�o, a Viseira abaixada,
e, iel � Vis�o, e, ao seu Amor, iel,
trazia uma Inscri��o de tr�s letras, gravada
a fogo e sangue no Broquel.
Foi aos pr�lios da F�. Na Terra-Santa, quando,
no ardor do seu guerreiro e piedoso Mister,
cada ilho da Cruz se batia, invocando
um nome caro de Mulher,
Ele, rouco, brandindo a Espada no ar, clamava:
� Lumen Coeli Regina! � e, ao clamor desta Voz,
nas hostes dos Incr�us como uma F�ria entrava,

irresist�vel e feroz!
Mil vezes, sem morrer, viu a Morte de perto,
mas negou-lhe o Destino essa sorte melhor!
Foi viver no Deserto! E era imenso o Deserto,
mas o seu Sonho era maior!
E um dia, a se estorcer, s� e despeda�ado,
louco, velho, feroz, naquela Solid�o,
morreu, mudo, rilhando os Dentes, devorado
pelo Fogo do pr�prio Cora��o!��
� Quando Samuel acabou de recitar isso, Sr. Corregedor,
Clemente n�o p�de se impedir de protestar:
� �Samuel, nem esse poema foi voc� quem fez, nem o original �
de Bilac: � de um poeta estrangeiro, n�o me lembro qual!�
� �Clemente� � retrucou Samuel �, �j� lhe disse isso n�o sei
quantas vezes! O poema � meu, porque eu colaborei nele! Por exemplo:
ali, onde eu falo em espada Bilac colocou pique,�brandindo o pique no
ar�! Do jeito que eu botei, � muito mais bonito! Quanto � outra
observa��o sua, quero lhe explicar que, quando um Poeta brasileiro ou
portugu�s traduz uma obra estrangeira, para mim, o original ica sendo
o trabalho dele. Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o
mais que posso! Para mim, Manoel Odorico Mendes � o autor dos
originais da Il�ada e da Eneida Brasileira: Homero e Virg�lio s�o, apenas,
os tradutores grego e latino dessas obras dele! Castilho � o autor do
Fausto e do Dom Quixote, assim como Jos� Pedro Xavier Pinheiro � o
verdadeiro autor da Divina Com�dia, que Dante traduziu para o
italiano!�
� �Est� bem!� � disse eu, interrompendo. � �Entendi, mais ou
menos, a posi��o de voc�s. Cabe-me, agora, a vez de explicar a minha. A
meu ver, Sin�sio vai ter que organizar uma expedi��o para procurar o
Testamento extraviado e o tesouro escondido! Sim, porque, seja na
furna visageada por Naz�rio, ou na outra, cientiicamente descoberta
por Clemente, o fato � que o tesouro deixado pelo velho Rei Degolado
do Cariri est� enterrado por a�, numa furna sertaneja qualquer. Das
pessoas que integraram a comitiva de meu Padrinho quando ele partiu
para enterrar o testamento, a �nica ainda viva sou eu. Dom Pedro

Sebasti�o Garcia-Barretto tinha me nomeado testamenteiro, e me
prometera que, depois de enterrado o documento nessa furna, ele,
quando se sentisse perto da morte, me revelaria o lugar. Ora, para
Sin�sio, a descoberta desse testamento � fundamental. Assim, o Rapazdo-
Cavalo-Branco e seus dois protetores � o Doutor e o Frade � ter�o
que meter o p� no mundo, para encontr�-lo. Eu sou, portanto, pessoa
indispens�vel � expedi��o, terei que ir, como guia dela. Por outro lado,
essa ida �, para mim, indispens�vel, porque, se eu n�o presenciar todos
os acontecimentos, n�o poderei cont�-los depois, na Epopeia. Picaresca
ou de cavalaria, minha Obra ter� que se passar na estrada, no oco
empoeirado e aberto do Mundo, no centro da ma�aranduba do Tempo,
e isso s� ser� poss�vel se eu acompanhar Sin�sio, o Doutor e o Frade em
sua expedi��o aventurosa � procura do testamento. A� � que surge um
problema important�ssimo: como � que vamos arranjar os meios para
fazer a viagem? Nessas coisas de dinheiro, nunca ningu�m fala, mas,
sem dinheiro, pouca coisa se faz! Pois bem: desde que cheguei �
conclus�o de que terei de ir, venho pensando em organizar um Circo,
para empreendermos a viagem. Sempre tive vontade de ter um Circo, e
a hora � essa! N�s contar�amos com a ajuda de meus irm�os, que t�m,
todos, algumas habilidades. Alguns deles s�o tocadores de rabeca e
p�fano: ser� a orquestra! Se a tropa que veio com Sin�sio � mesmo de
Ciganos, alguns devem saber fazer piruetas e proezas em cima de
cavalos. Outros, deitar�o cartas. Das partes de dramas, com�dias e
trag�dias, eu me encarrego, com o �cavalo marinho�, o �mamulengo�, a
�Nau Catarineta� etc. Comprometo-me, tamb�m, a levar um �pastoril�,
formado com as mulheres-damas do R�i-Couro que frequentam a
minha T�vola Redonda. Assim, poderemos viajar de gra�a, divertindonos
e, ainda por cima, tendo algum lucro, com acomoda��es para todo
mundo e fazendo todas as expedi��es necess�rias ao encontro do
testamento. Sim, porque, na minha opini�o, a hist�ria da furna do
Profeta Naz�rio pode ter sido � uma revela��o de botija referente ao
tesouro e ao testamento do Rei Degolado! Agora, pergunto a voc�s: caso
o Doutor Pedro Gouveia me contrate para a expedi��o, voc�s
concordariam em viajar conosco, no meu Circo?�
� Os olhos dos dois se acenderam, Sr. Corregedor. Mas
amarrados e seguros como eram, come�aram logo a tomar precau��es.
Clemente falou primeiro:

� �Bem, Quaderna� � disse ele �, �� claro que a proposta nos
interessa. Mas existem v�rios pontos que precisam ser aclarados e
estabelecidos desde j�, principalmente quanto � parte inanceira! Em
primeiro lugar, me diga: n�s ser�amos convidados como h�spedes, com
todos os privil�gios e honrarias, no Circo?�
� �Claro que sim!� � concordei, alegre, vendo que eles estavam
inclinados a aceitar. � �Al�m da amizade que tenho a voc�s, preciso
demais dos conselhos liter�rios e pol�ticos dos dois!�
� �Ter�amos comida, bebida e dormida de gra�a?�
� �Teriam, sim! Inclusive, dentro das acomoda��es sempre
meio prec�rias de um Circo, eu conseguiria o melhor poss�vel, com
camarins especiais para voc�s dois!�
� �E no caso de encontrarmos o Tesouro?� � perguntou
Samuel. � �Ter�amos parte na divis�o dele?�
� �Bem, isso a� eu s� posso responder depois de conversarmos
com o Doutor Pedro Gouveia. Isso, por�m, n�o demora, tenho certeza.
Desse tipo de coisas eu entendo. Posso at� apostar: daqui a pouco,
chega algu�m, da parte do Doutor, para nos procurar!�
� �Ent�o, essa parte ica para ser decidida na presen�a do
Doutor!� � disse Clemente. � �Sobretudo, � preciso ver quem �,
mesmo, esse Rapaz-do-Cavalo-Branco e quais s�o suas verdadeiras
inten��es, os verdadeiros objetivos de sua apari��o, aqui. Eu e Samuel
somos funcion�rios p�blicos. Mas, se houver vantagem, trataremos de
conseguir licen�as para seguir na viagem e acompanhar, inclusive como
proissionais � eu como Advogado e ele como Promotor �, o caso do
testamento e da heran�a desse rapaz. Quanto a mim, como Fil�sofo,
terei, ao mesmo tempo, oportunidade de realizar uma Viagem
Filos�ica, como aquela que o s�bio brasileiro Alexandre Rodrigues
Ferreira realizou no s�culo XVIII, antecipando-se a todas as viagens de
naturalistas estrangeiros pelo Novo Mundo!�
� �Pois, para mim� � interveio Samuel �, �essa expedi��o ser�
uma viagem aventurosa e de sonho, como aquela que meu antepassado
Sigmundt Wan d�Ernes realizou, em companhia do Poeta-idalgo e
Soldado-lamengo que foi Elias Herckman, quando viajaram ambos, no
s�culo XVII, em demanda, pelo Sert�o da Para�ba, na busca
desaventurosa exatamente de um Tesouro e de minas de prata, coisa

que s� pode, mesmo, tocar muito na imagina��o de um Poeta e Fidalgo
como eu!�
Eu n�o esclareci nada a eles, naquele momento, para n�o revelar
minhas verdadeiras inten��es. Mas para mim, de fato, a viagem ia ser
era as duas coisas ao mesmo tempo! Seria uma Demanda novelosa e
zodiacal, uma Viagem cat�lico-sertaneja e sagrada em busca da Furna
do Terr�vel e na qual, ainda por cima, talvez tiv�ssemos a sorte de
encontrar o Tesouro da Pedra do Reino, identiicado por mim, nas
minhas elucubra��es botijais e ilosofais, com o tesouro de El-Rei Dom
Sebasti�o. E j� estava com o cora��o alvoro�ado de esperan�as quando,
de repente, me lembrei, de novo, da cat�strofe que despeda�ara meus
olhos, e dei um gemido tr�gico:
� �Ai, ai, ai de mim! S� agora me recordo! N�o adianta nem eu
sonhar, com o Circo e com a viagem aventurosa e desaventurosa que
voc�s est�o planejando! Como poderei ir, se estou cego?�
� �Ora, Quaderna, isso � nada!� � disse Samuel, com a maior
naturalidade. � �Isso � nada, para um homem como voc�! Seja forte,
seja homem, homem! Como eu estava dizendo h� pouco, o fato de estar
cego, que, � primeira vista, parece uma desgra�a, no seu caso pode at�
vir a ser um bem para voc�, uma vez que seu sonho � se tornar um
Poeta �pico! N�o sei se voc� sabe disto, mas Joaquim Nabuco
considerava a cegueira e o infort�nio como ingredientes indispens�veis
para o sangue de um autor de Epopeias! Ora, Nabuco era um Barretto:
n�o um Barretto como voc� e os outros Barrettos sertanejos, que s�o
bastardos e corrompidos, mas um Barretto da fam�lia do Morgado do
Cabo e, portanto, um leg�timo e puro Fidalgo pernambucano, de modo
que a palavra dele merece toda f�. Diz Nabuco que Cam�es s� passou de
Poeta l�rico a Poeta �pico depois que cegou. Acha ele, ao que parece,
que, para Cam�es, isso foi um bem, airma��o da qual discordo, porque,
como voc� sabe, considero os Poetas �picos como prosadores
disfar�ados � vulgares e enfadonhos como todos os prosadores. Mas,
com as ideias que voc� professa, Quaderna, e com o sonho de se tornar
Epopeieta, como diz voc�, sua opini�o deve ser igual � de Nabuco: para
voc�, Cam�es progrediu, quando passou de Poeta l�rico a �pico! Olhe,
console-se, porque � coisa ungida e consagrada, dentro de sua ordem
de ideias. Est� aqui, na genial confer�ncia que Nabuco escreveu sobre
Os Lus�adas!� � disse ele, levantando-se e indo buscar, na estante, o

livro a que se referira e do qual leu o seguinte trecho, que depois copiei
e guardei, como documento:
�Alguma indiscri��o em mat�ria de amores motivou a exclus�o
de Cam�es da Corte real, e, depois, o seu alistamento para combater os
Mouros, na �frica, onde ele foi ferido, perdendo um olho. Esse
ferimento marca uma �poca, na Literatura Portuguesa. Dissiparam-se,
por causa dele, as esperan�as de Cam�es como cortes�o, e desfaleceulhe
o orgulho de amante, vindo a sentir-se � merc� de quem lhe olhasse
o semblante desigurado. Sem a cegueira de Milton, o Para�so Perdido
teria sido bem outra composi��o. Sem o desiguramento de Cam�es, de
outro g�nero teria sido a sua Obra po�tica. Foi essa disformidade que
fez Cam�es renunciar, em desespero, ao Amor, � vida na Corte, a Lisboa,
a Portugal, e desferir seu voo rumo a Os Lus�adas. A meia-cegueira
converteu-lhe o Amor, que nele foi sempre uma obsess�o sensual, no
sentido do Divino. Transformou-lhe a L�mina envenenada � que s� lhe
servia, antes, para torturar-se a si pr�prio � no Cinzel que deveria
talhar o Poema nacional portugu�s.�

Q
FOLHETO LXXVIII
A Cegueira Epopeica
uando Samuel terminou de ler esse espantoso texto-prof�tico �
demonstrando inteira insensibilidade ante a parte humana e n�o
liter�ria do meu sofrimento, eu gemi queixoso:
� �Mas � poss�vel que voc�s ainda n�o tenham percebido a
extens�o da minha desgra�a? Estou cego, cego de guia, Clemente! A
gente cego, e Samuel vindo com Literatura!�
� �Coitado de voc�, Quaderna!� � disse Clemente, tentando
parecer menos insens�vel do que o rival. � �Capaz de voc� perder o
emprego na Biblioteca, ou de ser aposentado com vencimentos �nimos!
Em qualquer caso, por�m, seja voc� demitido ou aposentado, isso ser�
muito menos prejudicial para voc� do que para mim e para Samuel!
Olhe que pode vir, para a Biblioteca, um Diretor novo, que n�o tenha,
conosco, as mesmas defer�ncias que voc� tem! Al�m disso, as tert�lias
liter�rias da nossa Aleserpa se realizam na Biblioteca e v�o ser muito
prejudicadas com isso!�
� Aleserpa? � disse o Corregedor. � Que � isso? Que � a
Aleserpa? Alguma associa��o comunista, na certa!
� N�o senhor! Aleserpa � o endere�o telegr�ico do nosso
sodal�cio sertanejo, a Academia de Letras dos Emparedados do Sert�o
da Para�ba, que n�s fundamos e que tem sede aqui em Tapero�, na
Biblioteca!
� Ah, bem! E quantos s�o os Acad�micos?
� Tr�s: eu, Clemente e Samuel!
� Est� bem, pode continuar.
� Ouvindo Clemente falar daquela maneira, eu n�o queria
acreditar no que estava ouvindo. Seria poss�vel algu�m ser t�o ego�sta?
E manifestei minha estranheza:
� �Como �, Clemente? Voc� tem coragem de achar que minha
cegueira prejudica voc�s mais do que a mim?�

� �� isso mesmo, e n�o se admire n�o!� � insistiu o Fil�sofo. �
�Voc�, sendo um Charadista, um Decifrador proissional, um homem
que se dedica a resolver e armar Enigmas e logogrifos, ser� at�
beneiciado pela cegueira! Lembre-se de que o patrono do Suplemento
anual do Almanaque Charad�stico e Liter�rio Luso-Brasileiro � �dipo,
que terminou seus dias cego. Sendo assim, voc� n�o pode se queixar de
que o mesmo tenha acontecido com voc�, obrigado, agora, a seguir os
passos tr�pegos de seu Patrono pela estrada da cegueira. Como cego,
quem sabe se voc� n�o ir�, agora, receber, como compensa��o, a lucidez
de �dipo? �dipo, tendo decifrado o �enigma do homem ante a Esinge�,
tornou-se, depois de cego, um Decifrador t�o eiciente que teve a honra
de ser escolhido como Patrono de todos os Charadistas do mundo. Pelo
que me contou, aqui, o nosso Cantador caolho, Lino Pedra-Verde, foram
dois Gavi�es, um macho e outro f�mea, que cegaram voc�, n�o �
verdade?�
� ��!� � respondi de m� cara.
� �Pois voc� pode icar certo, Quaderna, de que, d�agora em
diante, voc� vai ser o �nico homem, no Mundo, capaz, ao mesmo tempo,
de ver as coisas machamente e femeamente, o que, sem d�vida, � uma
grande vantagem para o Decifrador e Epopeieta que voc� sempre quis
ser! Na minha opini�o, �dipo, quando mo�o e bom dos olhos, avistava
coisas demais, motivo pelo qual n�o via nada! S� depois de cego foi que
ele recebeu a lucidez esing�tica e p�de se aperceber de que o Mundo e
a vida s�o, como dizia o genial Tobias Barretto, �uma integridade
espantosa�. Creio que � por isso que os Professores alem�es de Filosoia
costumam airmar que �dipo, como cego, tinha um olho a mais!�
� �� claro que tinha, era o olho do cu!� � disse eu, que, a essa
altura, j� estava encolerizado por ver a ilosoia com que aqueles
sujeitos encaravam a desgra�a no meu couro. E acrescentei: � �E eu
acho que � por isso que os Professores brasileiros de Filosoia aqui da
rua dizem que pimenta no cu dos outros � refresco!�
� �N�o seja vulgar, Quaderna, n�o seja mesquinho!� � disse
Clemente, severo. � �Como � que voc� pode se preocupar com essas
quest�es de cegueira ou n�o cegueira sua, uma quest�o meramente
pessoal e de import�ncia secund�ria, quando acontecimentos talvez
fundamentais para o Brasil est�o tendo in�cio, como � o caso da chegada
dessa Coluna, comandada pelo Rapaz-do-Cavalo-Branco? Nesse

momento, a verdadeira quest�o, aquela que deve merecer o melhor de
nossos pensamentos e das nossas a��es, � essa! Quem sabe se esse
acontecimento n�o marca o in�cio da Revolu��o que vai estabelecer a
Rep�blica Popular do Brasil, a primeira da Am�rica Latina?�
� Anote esse pormenor, � muito importante, Dona Margarida!
� disse o Corregedor.
Margarida obedeceu, e o Corregedor voltou-se de novo para
mim:
� Muito bem! E o que foi que o Professor Clemente disse mais?
Ainda falou nessa Revolu��o?
� Parece que ele ainda ia falar, Sr. Corregedor. Mas, a�, foi
interrompido por Lino Pedra-Verde, que tinha sido meu colega na
escola da �On�a Malhada� e tamb�m aluno de Jo�o Melch�ades, de modo
que conhecia v�rios versos �de car�ter fat�dico e pol�tico�, todos muito
populares �entre a puer�cia e a juventude das escolas brasileiras�. Lino
continuava mascando a erva-moura, de modo que tinha baixado, nele, o
esp�rito da profecia e da sapi�ncia. Em tais momentos, ele dava para
falar di�cil, mania que pegara com Jo�o Melch�ades, e foi assim que se
dirigiu a n�s:
� �Senhores Doutores, desculpem eu me intrometer na
conversa de pessoas t�o esilantr�picas, mas tudo isso que est�o
dizendo me impressionou demais, porque tudo o que disseram �
verdade e muito importante, de uma import�ncia cachorra da molesta!
N�o pensem que eu, por n�o ser pessoa formada, por ser um ignorante,
seja a� um berdoega ou um ilho da puta qualquer! Dom Pedro Dinis
Quaderna, a�, me conhece, e pode me fornecer um atestado de conduta,
dado pela autoridade! Al�m disso, fui aluno de Vossas Senhorias. Deixei
os estudos e passei afastado muito tempo de Vossas Merc�s, mas n�o
por sacanagem e falta de car�ter! De modos que, de maneiras tais,
entendi tudo o que Vossas Excel�ncias disseram! Apesar de ser apenas
um simples Cantador de fama nacional, conhe�o muito bem o distinto
Poeta portugu�s Lu�s de Cam�es, autor dos �Lus�adas de Lu�s de
Cam�es�! Ali�s, Cam�es usava tr�s palavras que eu tamb�m gosto de
usar muito nos meus folhetos � por�m, carregada e todavia! Por isso
entendi o que disseram sobre o olho cego de Cam�es: � tudo verdade,
verdade da boa! E tanto � verdade que Portugal e o Brasil s�o muito

maiores e mais importantes do que a Fran�a e a Turquia juntas. Da� a
gente recitar, como recitava no tempo da escola:
�Cam�es, poeta Caolho,
grande Vate portugu�s,
enxergava mais com um olho
do que n�s todos com tr�s.
Na Fran�a, tudo � errado,
na Fran�a, tudo anda a esmo,
na Fran�a, pesco�o � cu,
no Brasil, cu � cu mesmo!��
* * *
� �Est� vendo, Quaderna?� � indagou Clemente, escarninho. �
�Ou�a a voz da sabedoria, aqui representada por esse digno Bardo de
chap�u de couro, seu condisc�pulo e correligion�rio. Ou�a e console-se
de sua cegueira! �dipo, enquanto teve vista, foi apenas um tiranete,
igual a muitos outros, na Gr�cia. Mas, depois de cego, tornou-se um
Decifrador, como voc�, Lino Pedra-Verde e Euclydes Villar. Cam�es,
enquanto tinha dois olhos, era apenas um Poeta l�rico, chor�o e
cortes�o. Cegando de um olho, tornou-se Epopeieta, e s� foi �pico de
segunda grandeza, imitador de Virg�lio, por ser apenas meio-cego e n�o
cego inteiro. Chega-se � conclus�o de que o G�nio de um Epopeieta �
tanto maior quanto mais olhos cegos ele tenha, sendo essa,
provavelmente, a causa profunda de Homero ser considerado o maior
de todos pelo Doutor Amorim Carvalho, Ret�rico de Dom Pedro II.
Coragem, portanto, Quaderna! Quem sabe se agora voc�, cego dos dois
olhos e com este magn�ico Rapsodo e vate sertanejo lhe servindo de
guia, n�o vir� a ser o Cam�es da charada sertaneja, ou, melhor ainda, o
Homero do Enigma Brasileiro?�
� O senhor acredite, Sr. Corregedor: apesar da maldade e das
ironias que me apunhalavam nas palavras de Clemente, aquilo foi o
come�o do meu consolo. Para ser o G�nio da Ra�a Brasileira, eu era
capaz de fazer qualquer acordo, e se o pre�o era a cegueira eu o pagaria

contente. Se o fato de n�o ser cego signiicava alguma desvantagem em
rela��o ao desgra�ado do Homero, a inferioridade estava, agora,
sanada, gra�as �s divindades-de-rapina da Morte Caetana. A contagem
de pontos at� subira muito em meu favor, porque Homero era cego, mas
n�o existira nem tinha sido completo. Eu, al�m de existir e ser
completo, genial e r�gio, agora n�o deixara mais um lanco sequer
aberto a meu advers�rio, pois at� cego dos dois olhos conseguira me
tornar! A ardente alegria que come�ava a experimentar por minha
cegueira n�o me tirou, por�m, o rancor contra Clemente e Samuel.
Resolvi fazer aos dois algumas amea�as, coisa de que s� lan�ava m�o
em casos extremos e que sempre surtia efeito. Por causa das
vicissitudes que eu tinha passado sempre em minha �atribulada
exist�ncia�, eu era muito relacionado entre o Povo � cabras-do-rile,
Cangaceiros, tangerinos, Vaqueiros, Mulheres-Damas, Cantadores etc.
Aqueles dois, apesar de viverem falando e ilosofando sobre o Povo,
viviam eternamente fechados entre o mofo das suas respectivas casas, a
poeira e as teias de aranha da Biblioteca, enim, no �mofo dos cap�es
intelectuais�, como costumava dizer meu primo Ar�sio Garcia-Barretto.
N�o sabiam nem como falar com a gente do Povo e tinham um secreto
pavor e um secreto mal-estar diante de tudo o que ao Povo era ligado.
Parecia, at�, que eram separados por uma linha invis�vel, linha que eu
tinha cruzado � for�a, muitos anos antes, quando, por v�rias
circunst�ncias, tinha sido expulso do meio em que vivera desde
pequeno. Al�m disso, meus irm�os bastardos, que viviam do outro lado
da linha, eram um elemento de liga��o valioso, que eu n�o deixava de
aproveitar. Era por isso que, de vez em quando, Samuel e Clemente me
davam indiretas, falando nos �parentes desclassiicados e
acangaceirados de Quaderna�. Pelo mesmo motivo, davam-se ao luxo de
me fazer certas picuinhas, mas mantinham sempre uma boa margem de
recuo, porque nem sabiam nunca como eu iria reagir, nem tinham
desejo nenhum de renunciar � poss�vel prote��o que eu lhes daria em
caso de perigo, com eles eventualmente amea�ados pelo pessoal �do
outro lado da linha�. E, inalmente, eu, a despeito de mim mesmo e
dentro das minhas aventuras de �Covarde Sortudo�, tinha participado
das correrias, emboscadas, guerras e tiroteios desencadeados pela vida
de meu Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o; eu, dizia, apesar de covarde,
tinha granjeado, na rua e principalmente para meus antigos Mestres,

uma certa reputa��o de �malvado e assassino� que n�o deixava de me
ser �til em certas ocasi�es. Naquele dia, foi disso que me vali, dizendo:
� ��, voc�s dois est�o a� fazendo galhofa com a minha cegueira!
A esperan�a de cada um � que essa Coluna e o Rapaz-do-Cavalo-Branco
tenham vindo favorecer a Esquerda ou a Direita! O fato, por�m, � que a
Pol�cia fugiu, e a nossa Vila est� � merc� da Coluna! Voc�s n�o se
esque�am de que Sin�sio, al�m de Garcia-Barretto, � um Quaderna! �
meu primo e meu sobrinho, de modo que, da Esquerda ou da Direita,
contra mim � que a Coluna dele n�o vai icar! N�o se esque�am tamb�m
de que Sin�sio, sendo um Quaderna, � descendente, como eu, da fam�lia
que, al�m de dominar o Sert�o na Serra do Rodeador e na Pedra do
Reino, fez, no espa�o de tr�s dias, uma carniicina das mais eicazes, o
que, ainal, n�o deve preocupar voc�s dois, porque s�o, ambos,
partid�rios do banho de sangue! Voc�s j� viram como o Povo est�
assanhado? Todos dois sabem como o Povo sertanejo � imprevis�vel
nessas coisas: pode tomar o lado da Aristocracia rural e pode tomar
outro rumo, completamente oposto! Agora, eu pergunto a voc�s: e se a
�Guerra do Reino� come�ar, mesmo, com Sin�sio ordenando, agora de
noite ou amanh� de manh�, o fuzilamento de tudo quanto � gente
poderosa, aqui? Voc�s pensam que, sem uma palavra minha, o
Advogado e o Promotor da nossa Vila v�o escapar ao fuzil?�
� Um momento, Dom Pedro Dinis Quaderna! � disse o
Corregedor, jubiloso. � Pare, porque tudo isso � important�ssimo!
Anote, Dona Margarida! Isto! Agora, o senhor pode continuar!
* * *
Novamente eu tinha me deixado levar pelo entusiasmo
cavaleiroso e r�gio, nobres Senhores e belas Damas! Minha situa��o
tornava-se cada vez mais perigosa. Mas como o que j� acontecera era
irrevers�vel e o mal praticado quase irremedi�vel, joguei-me para a
frente e continuei:
� Quando eu disse aquilo, Sr. Corregedor, Samuel e Clemente
empalideceram. Lino Pedra-Verde, por�m, saltou, como se tivesse sido
atingido por um raio:
� �O Rodeador? Voc� falou a�, Dinis, foi na Serra do Rodeador e
na Pedra do Reino? Isso sim, � importante! O resto do que voc�s

disseram � bom, mas importante mesmo foi a Guerra do Reino! Sim, �
isso! Doutor Samuel e Professor Clemente, o que � que os senhores me
dizem disso?�
� �N�o sei, Lino!� � respondeu Samuel pelos dois. � �N�o me
recuso a tratar do assunto porque Varnhagen era um grande
historiador brasileiro da Direita e falou sobre esses movimentos
sertanejos, pelo menos em sua primeira fase, a da Serra do Rodeador.
Mas, depois, surgiram tantas invencionices a esse respeito, que o
assunto perdeu a seriedade. Ali�s, parece que Varnhagen j� previa que
isso ia acontecer porque disse: �O acontecimento n�o deixar�, no futuro,
de prestar f�rtil e curioso assunto � imagina��o de Poetas e
romancistas.��
Foi a minha vez de saltar, porque aquilo me tocava demais no
meu sonho de ser G�nio da Ra�a escrevendo um romance-epopeico
sobre minha fam�lia. Al�m do mais, Varnhagen, sendo Visconde e
cat�lico, trazia uma boa contribui��o mon�rquica para minhas ideias e
minha genealogia. Por isso perguntei a Samuel:
� �Mas Samuel, como � que voc� sabe de uma coisa honrosa
dessas e n�o me avisa, durante todos esses anos?�
� �Quaderna, voc� j� � t�o pretensioso sem isso, que avalio
como n�o vai icar depois que eu lhe mostrar na Hist�ria Geral do Brasil
uma refer�ncia expressa a sua fam�lia! Mas, de qualquer modo, est� l� e
eu vou lhe mostrar onde. Diz Varnhagen: �Dediquemos um par�grafo a
dar uma sucinta Not�cia de certa ocorr�ncia que teve lugar na Serra do
Rodeador, no distrito do Sert�o de Bonito, Prov�ncia de Pernambuco,
em princ�pios de 1820. Da cren�a de que no alto desta Serra havia um
Lajedo, de baixo do qual sa�am Vozes, se aproveitou um certo Silvestre
Jos� dos Santos para contar muitos Prod�gios, espalhando Revela��es
feitas por Imagens aparecidas entre Luzes, prometendo constante
Vit�ria e muitas Fortunas aos que se alistassem por elas. Movidos por
curiosidade e supersti��o uns, levados outros por ambi��o e cobi�a, se
foram a� ajuntando dentro de pouco tempo umas quatrocentas pessoas.
Mandados dissipar, n�o obedeceram. Pelo contr�rio: resistiram
valorosamente aos primeiros Milicianos armados. Mas, por im, foram
submetidos pela Tropa, caindo prisioneiros muitos, aos quais El-Rei
perdoou como a Ilusos, mandando-os restituir a seus lares.��

Assim que Samuel leu isso, Clemente, apesar de toda a
perturba��o em que se encontrava pelos acontecimentos recentes,
sentiu ferver seu sangue esquerdista. Jogou fora o constrangimento
causado pelo pacto, e, pulando da cadeira, gritou:
� �V�-se logo, e bem, a reacionarice e safadeza desse Visconde,
cheira-cu de Dom Pedro II! Em primeiro lugar, Varnhagen omite o
signiicado de reivindica��o pol�tica e econ�mica que houve no
movimento da Serra do Rodeador! Depois, deixa de se referir,
propositadamente, ao massacre que as tropas do Rei Dom Jo�o VI, a
mando do Governador reacion�rio Lu�s do Rego, izeram contra aqueles
pobres Camponeses indefesos e iludidos pelo demente obscurantismo
dos parentes de Quaderna! Est� vendo como s�o as coisas, Quaderna? E
� Samuel, esse Fidalgo de merda, que vive, a�, arrotando patrioteirismo,
quem subscreve as palavras de Varnhagen, desrespeitando a
Independ�ncia do Brasil!�
� �Eu?� � protestou Samuel, espantado. � �Em que foi que eu
desrespeitei a Independ�ncia do Brasil? O que � que os parentes
fan�ticos de Quaderna, sejam os da Serra do Rodeador, sejam os da
Pedra do Reino, t�m a ver com a Independ�ncia do Brasil?�
� �Olhe, Samuel� � explicou Clemente �, �voc� sabe que eu
fa�o restri��es seri�ssimas a esses movimentos sem qualquer coer�ncia
e conte�do ideol�gico. Mas, mesmo assim, voc�, em vez de estar, a�,
espalhando as interpreta��es reacion�rias de Varnhagen, devia ler
eram as palavras do Comendador Francisco Ben�cio das Chagas,
escritor muito mais s�rio e genial do que Varnhagen! � verdade que o
Comendador, n�o sendo iniciado na minha Filosoia do Penetral, n�o
tinha suiciente lucidez pol�tica para saber que a �independ�ncia do
Brasil�, a farsa de 7 de Setembro de 1822, foi uma impostura. O Brasil s�
ser� de fato independente quando derrotar o imperialismo, l� fora, e a
rea��o, aqui dentro! De qualquer modo, por�m, o Comendador ouviu
cantar o galo, nesse assunto. E at� o sem-vergonha do nosso primeiro
Imperador, Dom Pedro I, chegou a se referir ao signiicado pol�tico do
epis�dio, dizendo, no seu �Manifesto aos Brasileiros�: �Lembrai-vos das
fogueiras do Sert�o do Bonito!� Com isso, Dom Pedro I mostrou, n�o s�
que estava a par dos movimentos sertanejos, mas que tinha consci�ncia
dos des�gnios pol�ticos impl�citos neles, apesar de todas as
incoer�ncias!�

� �Mas o qu�, Professor Clemente!� � interrompeu Lino,
novamente estupefato. � �� verdade, isso que o senhor est� dizendo
a�? O Imperador Dom Pedro I tinha not�cias da Serra do Rodeador, da
Pedra do Reino e das tribuzanas todas da fam�lia de Dom Pedro Dinis
Quaderna? Chegou a falar nisso, por escrito, coisa documentada,
garantida e do Governo?�
� �� verdade, Lino!� � conirmou Clemente.
� �T�, a� s� dizendo como nosso Mestre Jo�o Melch�ades: que
coisa ilantr�pica! Que coisa mais lit�rgica para a fam�lia do nosso Rei,
n�o �, Dinis? O senhor pode me dizer, Professor Clemente, onde � que
est�o as palavras desse tal Comendador?�
� �Posso, pois n�o, Lino!� � disse Clemente, satisfeito por estar
acertando a conversar com um homem do Povo. � �Olhe aqui!� �
acrescentou ele, tirando o volume da estante e lendo para n�s o
seguinte trecho do genial escritor pernambucano, Comendador
Francisco Ben�cio das Chagas:
� �Os tristes e lament�veis acontecimentos dados na Pedra do
Rodeador, pelos ins de 1819, mediando entre a Revolu��o de 1817 �
que fora sufocada pelo Poder Absoluto � e a de 1821, que vingou na
invicta Vila de Goiana, foram como que o pren�ncio da nossa
Independ�ncia, que se proclamou no memor�vel dia 7 de Setembro de
1822. Mostram eles, bem claramente, que a reuni�o dos Povos, na Pedra
do Rodeador, nesses tempos calamitosos, tinha ins verdadeiramente
pol�ticos. O Chefe do tal movimento, Silvestre Jos� dos Santos � Dom
Silvestre I �, alcunhado Mestre Quiou, que quer dizer o Maioral, na
l�ngua dos �ndios, n�o era um simples aventureiro, um impostor e
salteador, como se propalou ent�o, durante o Governo violento e
desp�tico do General Lu�s do Rego. Silvestre n�o era um impostor,
quando ensinava aos Reunidos que uma Santa ia falar, da Pedra, para
mostrar-lhes o que convinha adotar para melhorar a sorte de um Povo
sofredor. Foi isso explicado, depois da Independ�ncia, pelos Patriotas
bonitenses que estiveram em maior contato com o mesmo Silvestre. E
qual era essa Santa que ia falar, apontando muitas coisas �teis que o
Povo sofredor devia adotar? Era, certamente, a Santa Liberdade, era a
Independ�ncia do Brasil! A reuni�o de gente na Pedra do Rodeador
deu-se da seguinte maneira: pelo meio do ano at� o im de 1819,

apareceu naquele lugar um Misterioso, dizendo ser seu nome Silvestre,
e cuja Miss�o era escolher um S�tio...�
� �O qu�?� � gritou Lino, escumando pela boca e esbugalhando
os olhos. � �A� est� escrito assim mesmo, Doutor? Diz um Misterioso, �?
� assim que est� a�?�
� ��, Lino!� � disse Clemente, meio surpreso. � �Deve ter sido
erro de tipograia! Provavelmente o que o Comendador escreveu foi um
homem misterioso!�
� �Isso � sua opini�o, isso diz o senhor!� � comentou Lino. �
�Mas deve ter sido � um Misterioso, mesmo, que o Doutor escreveu!
Porque essas pessoas da Sant�ssima Trindade sertaneja, essas pessoas
como Padre C�cero e Silvestre, s�o sempre umas capacidades danadas
de misteriosas! E como � que se fala, a�, da Miss�o que Silvestre Quiou,
O Enviado, tinha? Diz a� que ele tinha de escolher um s�tio, �? Me diga
uma coisa: o que � um s�tio? N�o � um cerco, como o que houve em
1930, na Guerra de Princesa? �, eu sei que �, porque vi no jornal, e est�
escrito tamb�m assim no Almanaque do Cariri, publicado aqui pelo
nosso Rei, Dom Pedro Dinis Quaderna! Hoje eu sei perfeitamente que
Princesa, Canudos, a Serra do Rodeador, a Pedra do Reino, tudo aquilo
foi um s�tio da molesta, um cerco danado, uma Troia s�!�
� �Sim, Lino, mas s�tio, al�m de cerco, signiica tamb�m lugar,
local!� � explicou Clemente que, na sua qualidade de homem de
Esquerda, achava-se sempre na obriga��o de esclarecer o Povo. � �Mas
vamos continuar a leitura do texto do Comendador:
� �Dias depois, soube-se no Povoado que esse Silvestre
escolhera um Rochedo conhecido por Pedra do Rodeador, e a� estava
reunindo gente para que, em tempo oportuno, ouvisse a uma Santa que
ia falar, indicando o bom caminho que o Povo devia seguir. Dentro de
vinte dias, o n�mero dos Reunidos aumentou consideravelmente. O
Comandante do Destacamento Policial ordenou, por um O�cio dirigido
ao Chefe Silvestre, que izesse dispersar aquela gente sem perda de
tempo, pois que, se n�o o izesse, por ele, Comandante, seria tomada a
provid�ncia necess�ria, a im de ser desmanchada aquela il�cita
reuni�o. Nenhum efeito produziu, no �nimo de Silvestre, a intimativa, e
o n�mero de pessoas do Povo crescia de mais a mais, a ponto de formar
um Arraial. Silvestre, n�o dispondo de recursos para sustentar as
pessoas pobres que o acompanhavam, mandou intimar aos

Propriet�rios que lhe mandassem Gado, farinha, milho, feij�o etc., sob
pena de, � for�a de Armas, serem satisfeitas suas requisi��es. Com isso,
conseguiu ser atendido. Esse fato chegou ao conhecimento do
Governador Lu�s do Rego, pois o mesmo Governador mandou, tendo
como Chefe da dilig�ncia, o Tenente-Coronel Madureira, uma For�a para
dar um assalto � Pedra do Rodeador. Madureira, saindo do Recife �
frente de um corpo de linha, chegou a Vit�ria de Santo Ant�o, e a�
recebeu outro corpo de Milicianos, declarando que seu destino era
Paje� de Flores. A tropa saiu como se fosse para l�, mas, ao aproximarse
de Bonito, Madureira fez uma nega�a. Munido de bons guias,
internou-se pelos matos em dire��o � Pedra do Rodeador, onde chegou
�s tr�s horas e meia da madrugada, dividindo a tropa em dois corpos,
um de linha, sob seu comando, e outro dos Milicianos de Vit�ria de
Santo Ant�o, comandado por um Capit�o. Um destes corpos entrou pelo
lado oriental do Rochedo, e, outro, pelo lado ocidental, nas quebradas
do qual estava o Arraial fortiicado do Rei e Profeta Silvestre. O Chefe
miliciano chegou ao Arraial antes de Madureira. Houve grande tiroteio,
ao qual, acudindo o Tenente-Coronel a passo de marche-marche e
intervindo no conlito, houve grande carniicina. A grande popula��o
n�o teria sofrido tanto se os Soldados n�o tivessem incendiado as
habita��es do Arraial, fazendo v�timas das chamas muitos homens,
mulheres e crian�as, aprisionando e conduzindo para o Recife as
mulheres e os meninos que escaparam e que foram soltos depois,
porque se reconheceu n�o haver neles crime algum. O Chefe Silvestre
foi, depois, visto em Goiana, fazendo parte do Ex�rcito dos
Independentes, que tinham seus Chefes na cidade do Recife e em outros
pontos. Silvestre era de cor morena, representando uns quarenta anos
de idade. Sabia ler e escrever, era ativo, perspicaz e severo em suas
delibera��es. Nunca disse a ningu�m onde nascera, que proiss�o tinha
nem do que vivia.�
* * *
� Acho, Sr. Corregedor, que Lino Pedra-Verde ia comentar
qualquer coisa a respeito dessas �ltimas palavras, t�o prof�ticas, do
Comendador. Mas, nesse momento exato, fomos interrompidos pela
entrada de Jo�o Grilo, uma igura que morava na �T�vola Redonda� �

onde era meu assalariado � e que � personagem muito importante da
minha hist�ria. Moreno, magro, de estatura m�dia, com os cabelos
imundos, crescidos e encaracolados, vestia sempre uma velha e
esburacada camisa de meia, preta e encarnada, com listras horizontais
largas. Tinha um amigo e companheiro insepar�vel, Chic�, t�o sujo
quanto ele, mas cuja camisa, tamb�m velha e esburacada, era de listras
horizontais azuis e amarelas. Eram as camisas dos dois Clubes de
futebol da nossa Vila, o �Tapero� Futebol Clube� e o �Esporte Clube
Nordeste�, esquadr�es famosos no Sert�o e her�is de jornadas heroicas
que, a seu tempo, ser�o contadas. Jo�o Grilo era noivo de Dina-me-D�i,
ilha do Profeta Naz�rio e Dama de companhia de Maria Saira (assim
como Jo�o e Chic� eram meus Pajens e estribeiros). Ele entrou,
dirigindo-se a mim:
� �Seu Quaderna, tenho dois recados pr�o senhor. Um, � do tal
Doutor Pedro Gouveia, que veio com o Rapaz-do-Cavalo-Branco: ele
quer falar com o senhor, com o Doutor Samuel e com o Professor
Clemente. Disse que os senhores fossem l�, no casar�o dos Garcia-
Barrettos, que ele quer ter um particular com os tr�s. Mas eu, se fosse o
senhor, atendia primeiro era ao outro recado. Este, � para o senhor, s�;
Seu Ar�sio est� l�, na Tava, conversando com Seu Adalberto Coura, e
mandou dizer que o senhor desse um pulo l� que ele tem um neg�cio
urgente para falar com o senhor!�
� �Jo�o� � disse eu, meio severo �, �eu j� lhe ensinei, n�o sei
quantas vezes, como se dirigir a n�s, e voc� n�o toma jeito! N�o custa
nada voc� me tratar por Dom Pedro Dinis Quaderna, e Ar�sio por Dom
Ar�sio Garcia-Barretto! Esse neg�cio de Seu � feio pra burro! E, al�m
disso, o nome � T�vola Redonda, e n�o Tava, como voc� diz!�
� �Est� certo, Seu Quaderna, mas nem o senhor � Bispo, pra eu
estar chamando o senhor de Dom, e tanto faz dizer Tava como Tava!
Mesmo eu falando desse jeito, o senhor n�o me entende? Ent�o, �
melhor o senhor deixar dessas conversas semiconl�uticas e vir logo
pra Tava, porque aquele Seu Ar�sio, do jeito que est�, � um perigo!�

� S
FOLHETO LXXIX
O Emiss�rio do Cord�o Encarnado
amuel e Clemente estavam curios�ssimos, profundamente
excitados com a perspectiva de terem acesso ao centro, mesmo,
dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, por�m, estavam com
medo de ir, principalmente por terem de atravessar todo aquele Povo
reunido. Informaram-se cuidadosamente com Lino Pedra-Verde sobre
�as disposi��es em que estava aquela gente�, indagando, cheios de
precau��es, se �n�o havia alguma possibilidade de serem massacrados,
caso aparecessem na rua, sem garantias�. Lino tranquilizou-os,
aconselhando-os a se aproximarem da casa dos Garcia-Barrettos pela
parte de tr�s. Assim, poderiam passar despercebidos, porque a
multid�o estava toda aglomerada na parte da frente. Jo�o Grilo
conirmou que o Doutor Pedro Gouveia estava esperando por n�s no
muro do quintal, com o port�o traseiro trancado mas com gente � nossa
espera por tr�s dele. Combinamos ent�o que Clemente e Samuel iriam,
na frente, para a casa dos Garcia-Barrettos. Eu iria conversar com
Ar�sio e Adalberto Coura, saindo depois da �T�vola Redonda�
diretamente para encontr�-los. Sa�mos ent�o; os dois para pegar a Rua
do Chafariz, e eu para o im da Ch�-da-Bala, onde, numa casa afastada,
sombreada por um grande p� de Tambor, icava a minha �Estalagem �
T�vola Redonda�. Todo mundo estava na Pra�a, diante da Casa dos
Garcia-Barrettos, de modo que a Ch�-da-Bala estava deserta, e eu
percorri o caminho da �T�vola� sem que ningu�m me perturbasse.
Sempre com Lino Pedra-Verde me servindo de guia, cheguei assim �
porta de casa e entrei. No primeiro momento, n�o vimos ningu�m. A
�T�vola� estava deserta, com a mesa do bilhar abandonada, as cadeiras
trepadas em cima das mesas e sem ningu�m para atender. Nem Dina
nem Maria Saira estavam l�, e o pr�prio Jo�o Grilo, depois que me dera
o recado, tinha ido tamb�m, com Chic�, se reunir ao Povo. Chegando na
saleta onde icava a escada que levava ao s�t�o, ouvimos duas vozes de

homem, l� em cima. S� ent�o me lembrei de que Ar�sio devia estar,
mesmo, era fazendo companhia a Adalberto Coura na �gua-furtada em
que este morava. Esta express�o era de Samuel, que odiava Adalberto
Coura e que nos explicara que as pessoas como ele sempre moravam
em �guas-furtadas, lugares altamente pr�prios, acrescentava Samuel,
�para todos esses Lacraus e piolhos-de-cobra sediciosos, inimigos do
g�nero humano, esconderem seus pensamentos e projetos
endemoninhados�. Subi a escada, com Lino me puxando � frente, e
cheguei, assim, ao quarto de Adalberto Coura, aposento dividido por
tabuados, de telhado baixo, empoeirado e desarrumado. Apesar da
treva em que estava mergulhado por minha recente e estranha
cegueira, notei logo que, al�m de Adalberto Coura e Ar�sio, havia, no
quarto, uma terceira pessoa, que s� depois ir�amos saber quem era.
Essa pessoa estava na sombra formada pelo telhado baixo e inclinado
em declive, do s�t�o, e Lino Pedra-Verde, como me esclareceria depois,
logo viu, pelos cabelos compridos, que era uma mulher. No momento
em que entrei, Adalberto Coura, falando exaltadamente como era h�bito
seu, dirigia-se a Ar�sio, num tom em que se misturavam as s�plicas e as
amea�as. Era um rapaz magro, alvo, com cabelos pretos, franzino,
ardente, com olhos que luziam como olhos de febre. Era bem mo�o
ainda. Vestia cal�a escura, camisa branca, sem colarinho mas abotoada
at� o pesco�o, meias e alpercatas de frade, o que lhe dava um aspecto de
novi�o na cela ou de jovem frade renegado.
� Muito bem! � interrompeu o Corregedor. � Seja, agora, o
mais exato poss�vel, porque este Adalberto Coura pode ser a chave de
tudo o que aconteceu naquele dia. O que � que ele estava dizendo a seu
primo Ar�sio? Voc� � capaz de repetir exatamente as palavras que ele
estava dizendo quando voc� entrou?
� Sou sim senhor, porque me lembro como se fosse hoje! Ele
estava dizendo: �V�, Ar�sio, n�o recue diante de nada! Fa�a tudo, mas
n�o deixe de se apossar desse dinheiro, porque s� com ele na m�o � que
a coisa poder� caminhar!�
� Anote, Dona Margarida, isso � muito importante! � disse o
Corregedor.
� Ar�sio retrucou assim: �E quem disse a voc�, Adalberto, que
eu quero que a coisa caminhe?� Nesse momento, foi que ele percebeu

minha chegada, e falou para mim, dizendo: �Ah, Dinis, voc� chegou!
Entre e sente-se. Ouvi dizer que voc� cegou! � verdade?�
� ��, Ar�sio!� � respondi.
� �Esse Dinis enxerga mais longe do que se pensa e � um
sabid�o!� � disse ele, sem que eu entendesse bem o sentido de suas
palavras. � �Fique aqui, meu caro Dinis, estou precisando muito de
voc�. O nosso Profeta pol�tico, aqui, mandou me chamar para me dar
um conselho do qual eu n�o precisava absolutamente, o de me apossar
do meu dinheiro, de qualquer maneira! Fique descansado, Adalberto,
porque, de minha parte, estou decidido a tudo para n�o perd�-lo; e
quem se intrometer na minha frente para impedir isso ser� esmagado
como um percevejo!� � concluiu ele com express�o sombria.
� �Sim, eu conio em sua viol�ncia e sei que voc� � capaz de
esmagar qualquer um!� � disse Adalberto com estranho fervor e com
um rubor de febre subindo ao rosto p�lido.
� �Foi por acreditar nisso que voc� mandou me chamar?� �
perguntou Ar�sio.
� �Foi!� � conirmou Adalberto. � �N�o me envergonho de
dizer que n�o tenho as qualidades que voc� tem e que ser�o
indispens�veis quando chegar a hora de vingar todos os escorra�ados,
fazendo justi�a aos oprimidos!�
� �E quem foi que meteu na sua cabe�a a ideia de que eu quero
fazer justi�a aos escorra�ados?� � perguntou Ar�sio, sem esconder um
certo desprezo.
� �Ningu�m meteu isso na minha cabe�a, fui eu mesmo que me
convenci!� � falou Adalberto. � �Voc� pensa que me engana, Ar�sio?
Eu sei que voc� � solid�rio com os escorra�ados porque voc� mesmo �
um escorra�ado; tenho certeza de que � como escorra�ado que voc� se
sente, porque eu mesmo sou um escorra�ado e sei reconhecer meus
iguais! N�o � vergonha ser um escorra�ado, vergonha � a dos que nos
escorra�aram! Vergonha nossa seria deixar que a humilha��o nos
corrompesse! O que � necess�rio � lutar, colocando nossa humilha��o,
nosso ressentimento, a servi�o da Verdade e da Justi�a!�
� �Bonito, a verdade e a justi�a!� � disse Ar�sio com express�o
de mofa. � �O que � que eu tenho a ver com a verdade e a justi�a? Foi
por me julgar um apaixonado pela justi�a que voc� me mandou
chamar?�

� �Foi!� � repetiu Adalberto com a mesma express�o de fervor.
� �O Bispo morreu, Dinis?� � indagou Ar�sio, voltando-se para
mim e aparentemente sem muita liga��o com o rumo da conversa.
� �N�o!� � respondi. � �Pelo menos, n�o tinha morrido at�
quando vim para c�. Dizem que icou muito mal, desacordado, com o
rosto inchado e sangrando, porque parece que houve, inclusive, uma
hemorragia, que icou enchendo a garganta e o nariz dele de sangue.
Mas conseguiram estancar!�
� �Est� ouvindo, Adalberto?� � perguntou Ar�sio. � �Eu quase
mato um anci�o indefeso! E � a um homem desses que voc� vem falar
em verdade e justi�a?�
� ��, sim!� � insistiu Adalberto Coura. � �Eu sei que existem
homens que, sendo interiormente mansos e bondosos, t�m que se
esquecer disso em nome da justi�a e da viol�ncia revolucion�ria!�
� �E indo, nesse caminho, at� a crueldade?� � perguntou ainda
Ar�sio.
� �Sim, indo at� a crueldade, porque a crueldade � necess�ria! O
gesto que voc� praticou hoje contra o Bispo teve um sentido e, para
mim, foi a prova deinitiva de que voc� tem todas as qualidades
indispens�veis a um revolucion�rio! Acho que os outros icaram
perplexos, mas eu entendi o que voc� quis dizer e mandei cham�-lo.
Cheguei, tamb�m, � conclus�o de que est� na hora do rompimento e da
viol�ncia! Por enquanto, n�o existem ainda entre n�s as condi��es para
a luta revolucion�ria organizada. S� depois que o Sul e o Recife se
manifestem � que poderemos nos levantar de vez. Mas temos que criar
imediatamente o ambiente de �dios e ressentimentos que h�o de
favorecer a insurrei��o, e foi isso que sua agress�o ao Bispo come�ou!�
� �Voc� se refere aos atos de terrorismo? O assassinato,
inclusive?�
� �Sim, por que n�o? Na R�ssia, n�o foi assim que tudo
come�ou? Uma certa toler�ncia, a paz dos charcos, � programa de todos
os grupos que det�m o Poder. A Paz, em certos momentos, s� serve para
favorecer a Ordem constitu�da, o que, em nosso caso, signiica a
manuten��o da injusti�a e do Mal! Por isso, � preciso come�ar a matar.
Ali�s, as mortes j� come�aram entre n�s, com o assassinato do
Sacrist�o, o do Padre...�

� �... E o do seu irm�o tamb�m!� � concluiu Ar�sio. � �Foi voc�
quem matou os tr�s, por acaso?�
� �N�o!� � disse Adalberto icando ainda mais p�lido. � �Mas
fui eu que escrevi as cartas an�nimas interpretando essas mortes em
seu verdadeiro sentido! No nosso caso, os assassinatos est�o
moralmente justiicados, porque j� s�o um revide a tudo o que os
poderosos t�m feito contra os fracos! Al�m disso, do ponto de vista
t�tico, os atos violentos despertar�o rea��es ainda mais violentas; e se
esse ambiente perdurar por uns tr�s anos, j� teremos ressentidos e
vingadores em n�mero suiciente para dar consist�ncia � Revolu��o.
Vamos aproveitar a confus�o da rua: voc� indo comigo, terei coragem
de matar o Juiz, o Prefeito e o Padre!�
� �E o que � que vir� depois?� � indagou Ar�sio, curioso, a
despeito de si mesmo e como se estivesse simplesmente a fazer uma
an�lise de car�ter que tinha diante de si.
� �O que vir� depois� � disse Adalberto quase delirando �
�ser� o banho de sangue puriicador, e a instaura��o do sol da Justi�a
para todos!� � Ergueu-se da cama onde se mantivera meio deitado at�
a� e acrescentou: � �No nosso caso particular, o que vir� � mais do que
isso ainda, porque s� depois desse banho de sangue � que
come�aremos, mesmo, a ser uma Na��o! Uma Na��o uniicada e forte,
capaz de enfrentar e derrotar a Besta Loura que vive sugando o nosso
sangue!�
� �Ah, j� estava tardando essa express�o!� � disse Ar�sio com
ironia. � �Essa, voc� me desculpe, Adalberto, mas foi diretamente
bebida nas ideias e conversas dos Mestres de todos n�s, dos dois
Cap�es, Clemente e Samuel, nossos Mestres amados e nunca
esquecidos!�
� Os dois Cap�es? Foi assim que ele se referiu ao Promotor e ao
Advogado? � estranhou o Corregedor.
� Foi, Excel�ncia! Era sempre assim que Ar�sio se referia aos
nossos Mestres. Adalberto, como todos n�s, tinha sofrido a inlu�ncia
deles, e era disso que Ar�sio agora escarnecia. Mas o ardoroso e doentio
revolucion�rio n�o se desconcertou. Disse, com a mesma veem�ncia:
� �E que import�ncia tem que minhas express�es venham da
inlu�ncia dos dois Cap�es, como voc� chama, se pelo menos nisso eles
est�o certos? � preciso somente ajustar e radicalizar o que eles vivem

papagueando inconscientemente e inofensivamente para os Poderosos,
para aqueles que � preciso esmagar! E voc� mesmo, Ar�sio, apesar de
escarnecer assim dessa inlu�ncia, j� sustentou tamb�m tudo isso,
ensinado e entusiasmado por eles!�
� �Sim!� � disse Ar�sio, em tom evocativo. � �Era a� por 1924
ou 1925, quando come�aram a chegar aqui uns livros nacionalistas,
vindos de S�o Paulo! Samuel enchia nossas cabe�as com eles, e eu e
Dinis sonh�vamos com a funda��o da Falange Nacionalista Latinoamericana,
ampliando nossos sonhos para o Continente inteiro, que n�s
quer�amos ver unido num Pa�s s�, o Ariel Ib�rico sonhado pelo
uruguaio Rod� e que n�s quer�amos levar ainda mais adiante dos seus
sonhos! Lembra-se, Dinis? Tudo isso s�o velhas ideias! Eu ainda n�o me
tinha posto inteiramente adulto e n�o sabia ainda, com a cabe�a, o que
queria, se bem que, na a��o e com o sangue, j� praticasse tudo o que
desejava. Como era o nome daquele livro que Samuel lia para n�s
naquele tempo, Dinis?�
� �N�o sei, ele lia tantos! Seria o Sonho de Gigante, Ar�sio?�
� �Sim, Sonho de Gigante, era isso! O �gigante� era, naturalmente,
o Brasil, Pa�s fat�dico ao qual estava coniado o papel vertiginoso de
organizador da Uni�o Latino-americana! Dinis, coitado, sonhava tanto
que chegou a criar, na cabe�a, o Partido pol�tico que iria realizar esse
sonho. Era a Falange Nacionalista da Am�rica Latina, FANAL � nome
bem escolhido, porque dava ideia de farol luzindo nas trevas, dizia ele.
Como, de fato, nessas coisas, ele se interessa, mesmo, � pelas ins�gnias,
chegou at� a imaginar, junto com o irm�o pintor, uma camisa para o
Partido, camisa azul com uma On�a de ouro, malhada de pingos negros
e vermelhos; a On�a ou Leopardo ib�rico, com as malhas simbolizando
o sangue dos Negros e �ndios!�
� �Isso cheira a Fascismo italiano, Integralismo portugu�s e
Falange espanhola!� � disse Adalberto. � �Al�m disso, tudo n�o passa
de sonho!�
� �E � proibido sonhar?� � protestei logo. � �Antes de ser uma
Na��o, o Brasil foi um sonho na cabe�a de uma por��o de gente. Assim,
deixem-me sonhar, desde agora, com uma das maiores Na��es do
mundo, pegando do M�xico � Patag�nia! E quem sabe se daqui a muitos
anos a Eti�pia, a Angola, a �frica, a �ndia, Portugal e a Espanha n�o v�o

querer se juntar a n�s, realizando, no Mundo, o sonho da Rainha do
Meio-Dia?�
� �Sim!� � conirmou Ar�sio. � �N�s, os Latino-americanos,
�cat�licos e cavalheirescos, amigos da pompa e da Arte, seduzidos por
todas as belezas � desde a pl�stica sensual at� as mais elevadas
manifesta��es do ritmo moral�, como dizia o livro, ser�amos os leg�timos
herdeiros do esp�rito mediterr�neo. Por isso, ser�amos o Povo indicado
para se opor � sacr�lega, subalterna e desumana Cruzada industrial dos
Americanos, herdeiros da brutalidade fan�tica e puritana dos N�rdicos,
do ego�smo e do apego ao dinheiro dos anglo-sax�es. Mas, como eu lhe
dizia, tudo isso passou. Hoje, essa � uma ideia que pode seduzir o cap�o
Samuel Wan d�Ernes, o cap�o Gustavo Moraes e o patrono de todos eles,
o cap�o Joaquim Nabuco! Para mim, esses sonhos s�o insuicientes, n�o
matam a sede do meu sangue! Sabe por que, Adalberto? Porque a
solu��o apresentada por esse pessoal todo � a solu��o do esp�rito, o
que � o mesmo que dizer a solu��o dos castrados! O tal J. A. Nogueira
chegava a dizer, se n�o me engano, que o Brasil terminaria ganhando a
luta surda, j� travada entre ele e os anglo-sax�es do Norte, porque a
vit�ria inal cabe sempre, n�o aos mais fortes, como Aquiles, por�m sim
aos mais cultos, aos mais espirituais e sagazes como Ulisses!�
� �Para mim, que sou um Decifrador, isso n�o est� mal!� �
confessei.
� �Pois eu concordo � com Ar�sio!� � disse Adalberto,
exaltando-se cada vez mais. � �Eu, Ar�sio, talvez n�o passe de um
fraco, de um espiritual e sagaz, como voc� diz. � por isso, exatamente,
que preciso de voc�!�
� �Para que eu sirva de bra�o ao sopro do Esp�rito?� �
perguntou Ar�sio.
� �Exatamente! Voc� � corajoso e violento e, se se encaminhar
no rumo certo, poder� colocar a viol�ncia de seu sangue a servi�o da
Justi�a. � por isso que, se eu confesso que preciso de voc�, voc� precisa
entender que precisa tamb�m de mim!�
� �Para qu�?� � disse Ar�sio, rebelando-se um pouco.
� �Para iluminar seu caminho com o fogo do esp�rito, porque
isso eu tenho! Voc�, com as ideias do Doutor Samuel e do Professor
Clemente, s� viu a primeira metade da estrada; � preciso ver a segunda,
Ar�sio! A primeira parte, consiste, realmente, em enxergar o inimigo, a

Besta Loura Calib� que precisamos enfrentar e derrotar, aqui! Para isso,
todos n�s estamos de acordo em realizar a uni�o da Am�rica Latina!
Entretanto, mesmo entre n�s que pensamos assim, existe, e deve se
acentuar mais ainda, uma cis�o, duas fac��es opostas, representadas,
no s�culo XIX brasileiro, por Joaquim Nabuco, de um lado, Sylvio
Romero e Manoel Bonim, do outro, como o livro de J. A. Nogueira, ali�s,
explicava, mas tomando o partido errado, o de Nabuco! Para Joaquim
Nabuco e seus seguidores, o Brasil �, e deve se esfor�ar por ser cada vez
mais, um prolongamento da Pen�nsula Ib�rica. No fundo, todos esses
s�o traidores da nossa luta, saudosos da Europa, exilados e
desenraizados aqui! Nosso caminho deve ser outro. Temos que
aprofundar e ampliar a picada aberta por Sylvio Romero, Manoel
Bonim e Euclydes da Cunha. Sim, Ar�sio, na luta que inevitavelmente
se vai travar entre os Latinos e os N�rdicos, deveremos icar, primeiro,
i�is a nossas ra�zes ib�ricas. � o primeiro passo, com o qual estamos
todos de acordo. Mas n�o devemos esquecer, tamb�m, que todos os
Povos submetidos e explorados do mundo s�o Negros, qualquer que
seja a sua cor. Da�, a solidariedade que deve haver entre n�s, Latinoamericanos,
os Negros e os Asi�ticos!�
� �Olhe, Adalberto� � disse Ar�sio, pondo-se s�rio de repente
�, �n�o tenho nada a ver com sua vida, mas de uma coisa preciso
adverti-lo. Ou melhor, de duas! A primeira, � que essa �ltima parte de
suas ideias vem do cap�o Clemente. Por isso, como acontece com todas
as ideias de cap�o, est� cheia de lugares-comuns e f�rmulas. Para
Clemente, que nisso tem uma viseira, tudo se passa de acordo com
esquemas preestabelecidos. Um desses, � que o Povo brasileiro,
descendente de Negros e �ndios, ter� sempre um inimigo na casta dos
Senhores, esta representada pelos Propriet�rios de terra, pelos Padres
e pelos Soldados. Quem sabe se o caminho da Am�rica Latina n�o
surpreender� todo mundo? Uma das idiotices do cap�o Clemente �
subestimar o papel das For�as Armadas e da Igreja, na Am�rica Latina.
A outra advert�ncia que tenho a lhe fazer � esta: cuidado com os
Mestres e Senhores que ocupam a c�pula de seu Partido. Talvez eles
n�o aprovem suas ideias, e podem entregar sua cabe�a � Pol�cia com a
maior sem-cerim�nia! Voc� morrendo, representar�, para eles, uma
dupla vantagem: livram-se de um correligion�rio heterodoxo e
perigoso, e criam um m�rtir para a luta!�

� �Eu n�o tenho nem Mestres, nem Senhores, Ar�sio!� � disse
Adalberto. � �Na minha luta, n�o conto com ningu�m! E com quem eu
poderia contar? Mais ainda: com quem n�s poder�amos contar, n�s,
Latino-americanos, Negros e Asi�ticos? Com os Russos? Os Russos j�
desempenharam seu papel e n�o nos entender�o. Veja esse problema
do qual eu falava h� pouco: na Revolu��o, os Russos se aproveitaram de
todas as cargas de �dios e ressentimentos surgidos pelos assassinatos,
pelas bombas, pelas punhaladas, pelas execu��es e fuzilamentos, e
assim podem se dar hoje ao luxo de condenar o terrorismo. A mesma
coisa eles far�o no plano mais amplo, n�o reconhecendo, na luta
travada pelos Povos negros do mundo, uma luta parecida com a deles
em 1917! Quanto � minha cabe�a, n�o me incomodo se a cortarem!
Pode ser que, assim, minha fam�lia se torne ressentida e queira vingar a
minha morte, nem que seja por esp�rito de vingan�a sertaneja. A�, ser�o
mais trinta ou quarenta ressentidos vivos em troca de um s� morto;
trinta ou quarenta ressentidos que ser�o trinta ou quarenta
revolucion�rios em potencial!�
� �Est� bem!� � disse Ar�sio. � �Mas eu tenho, ainda, uma
obje��o a fazer a suas palavras. Voc� falou como se fosse um igual dos
Negros e pobres do mundo. Mas voc� tem que reconhecer que, queira
ou n�o queira, � branco e de fam�lia poderosa!�
� �Eu sei, e voc� � igual a mim. Eu n�o teria f� nenhuma, nem
em mim nem em voc�, se n�o tivesse ocorrido conosco o mesmo
incidente � a expuls�o realizada pela fam�lia, a velha hist�ria do Pai, do
ilho, do homem, do anjo e da espada � porta! Isso nos tornou
proscritos, expulsos, escorra�ados e ressentidos, aproximando-nos dos
Negros e pobres do mundo pela humilha��o. Olhe, Ar�sio: no Brasil, a
situa��o � a mesma de toda a Am�rica Latina, porque, como dizia o
livrinho de Nogueira, os Andes n�o separam duas culturas diversas e
todos n�s somos herdeiros da Pen�nsula Ib�rica. De modo que eu s�
penso em termos de Am�rica Latina, porque nosso caminho � o da
uni�o. Ora, acontece que, entre n�s, os Conquistadores ib�ricos
dominaram os Povos negros e vermelhos, e foi sobre o exterm�nio ou
sobre a escravatura que se fundaram esses arremedos de Na��es que
somos n�s. Veja como o problema � grave: separadamente, nenhum de
n�s � ainda um Pa�s, e s� unidos � que seremos, no Mundo, a Na��o que
temos o direito de ser. Mas vamos adiante: dentro de cada um dos

nossos arremedos de Na��o, qualquer que seja a cor de um Brasileiro
ou Mexicano pobre, ele � um Negro, submetido e escravizado. Por mais
estranho que lhe pare�a, nosso destino peculiar de herdeiros dos
Ib�ricos s� poder� se realizar na medida em que caminharmos na
dire��o do Povo, isto �, dos Negros! Sim, porque os descendentes dos
Conquistadores ib�ricos que n�o izerem isso, terminar�o traindo.
Subornados pela riqueza e pela tenta��o vulgar do conforto, fazem o
jogo da Besta Loura e escravizam o Povo, vendendo a Na��o em troca
de uma pequena participa��o nos despojos, participa��o
humilhantemente consentida por seus patr�es da Besta Loura! O Brasil
s� ser� uma Na��o quando reparar essa injusti�a, acabando essa
dualidade. S� assim, Ar�sio: acabando, pelo banho de sangue da pureza
revolucion�ria, essa separa��o entre Brancos-ricos e Negros-pobres, e
tornando-nos, todos n�s, orgulhosamente Negros, Vermelhos e
Brasileiros!�
� �A On�a amarela, com malhas negras e vermelhas, a On�a
malhada de Quaderna!� � disse Ar�sio sorrindo.
� �V� l�, se voc� prefere chamar assim!� � disse Adalberto
erguendo os ombros.
� �Olhe, Adalberto, n�o nego que tenha simpatia por voc�!� �
disse Ar�sio, pesando bem suas palavras, como se temesse mentir
involuntariamente. � �Acontece, por�m, que, como eu disse, para mim,
tudo isso s�o ideias mortas e passadas! Veja bem que n�o digo ideias
erradas ou mortas para todo mundo. Mas s�o ideias mortas para mim,
porque, h� muito tempo, deixei de me interessar pelo que pode ser
certo ou que pode ser errado. Acho que essa busca incessante para
distinguir o certo e o errado � coisa do esp�rito e n�o do sangue. Mas, de
qualquer modo, a t�tulo de informa��o para voc�, vou lhe dizer uma
ideia que me ocorreu, a mim que tenho muito poucas. � que eu, n�s,
nada temos a ver com a sorte do Povo. A quest�o n�o � de justi�a, n�o, �
de Poder. Se o Povo puder conquistar o poder, conquiste. Por enquanto,
s� existem dois tipos de Governo: o dos opressores do Povo e o dos
exploradores do Povo. O primeiro, � o dos Tiranos, o segundo, � o dos
Comerciantes. No primeiro tipo, o Povo � submetido e esmagado em
nome da grandeza, no segundo � explorado em nome da Liberdade.
Pois bem: ao contr�rio de voc�s, que colocam suas op��es em termos
abstratos de Justi�a, Verdade, Liberdade etc., eu coloco as minhas num

plano puramente pessoal e concreto, o plano do Poder. N�o nego que,
em outros tempos, eu tenha me deixado seduzir por esses problemas
que os dois cap�es colocavam diante de n�s, a respeito do Brasil, do
Povo brasileiro, da Uni�o Latino-americana, da Cultura Ib�rica e de
todas essas palavras sonoras que eles s�o mestres em inventar! Mas
mesmo quando eu fazia isso, era por um motivo puramente pessoal: era
por ter nascido aqui, por ser tamb�m, como diz voc�, um Ib�rico
transplantado, um meio-negro, de modo que, de certa forma, esse era o
caminho para que eu, inconscientemente, aumentasse meu poder
pessoal de homem! Por isso, interessava-me indiretamente a grandeza
da Am�rica Latina, para que eu mesmo tamb�m crescesse, porque sou
tamb�m um de voc�s, com tudo o que isso implica de qualidades e
defeitos, e orgulhando-me tanto das qualidades quanto dos defeitos!�
� �Sim!� � concordou Adalberto. � �E eu me lembro de um dia
em que voc� teve, comigo, uma conversa important�ssima, e me disse
algumas palavras que, para mim, foram o come�o de tudo! Eu era quase
um menino, e estava muito orgulhoso de voc� conversar comigo
daquela maneira. Depois, quando voc� j� tinha ido embora, eu n�o
conseguia dormir. Peguei um caderno, e reproduzi o que voc� tinha me
dito. Guardo sempre comigo a c�pia dessas palavras, Ar�sio, e vou
repeti-las para voc�. Eu copiei tudo � noite, depressa, com o
pensamento correndo adiante da m�o, pois estava com medo de me
esquecer de alguma coisa mais importante. Posso ter cometido algum
engano quanto �s palavras, mas o pensamento, a ess�ncia do que voc�
disse, creio que est� a�, inteiramente iel. E mesmo as palavras, acredito
que sejam as suas. Eu ouvia voc� com tal fervor, que acho muito di�cil
ter me esquecido de alguma coisa. Em todo caso, ou�a e seja voc�
mesmo o juiz!� � concluiu ele, tirando um papel do bolso e lendo as
seguintes palavras, das quais lhe pedi c�pia e que anexo, agora, ao
inqu�rito, porque � uma pe�a importante para esclarecimento do caso:
�Ah, esses negociantes e usur�rios do mundo! Querem nos
moldar � imagem deles, a n�s, Povos morenos dos pa�ses quentes, n�s,
os ardentes, os que ainda temos a capacidade de ser felizes, de fruir a
vida, num mundo em que isso vai icando cada vez mais raro! Eu
gostaria que nos deixassem fruir da nossa Vida, que eles consideram
suja, e enfrentar a nossa Morte, que consideram irracional! Ficassem
para l�, com sua riqueza amontoada por s�culos de trabalho est�pido e

tenaz, com seu poderio acumulado em m�quinas e dinheiro, com seus
ideais puritanos de higiene e virtude! Mas n�o! Eles precisam nos
vender seus produtos, para acumular mais dinheiro! Ent�o, procuram
nos corromper para nos dominar, sob o pretexto de que somos uns
adolescentes b�rbaros, encantadores mas irrespons�veis, que � preciso
conter e domar com r�dea curta, sen�o atrapalham e sujam a ordem do
Mundo! A prova que apresentam disso � que n�s, principalmente os do
Povo, os mais pobres, os que mais deviam pensar no dia de amanh�,
somos incapazes de amealhar. Deixamo-nos comer, de bom grado, pela
fome e pelas doen�as, contanto que possamos cantar e dan�ar
imprevidentemente sob o Sol das nossas terras quentes e iluminadas.
Ent�o, a pretexto de salvar-nos dessa vida de ignom�nia e dessa morte
desonrosa, v�m nos corromper e nos roubar. Vendem-nos, ao mesmo
tempo, os produtos para a nossa higiene e os ideais de um mundo
organizado � base da poupan�a burguesa, da mealha, do trabalho duro,
desumano e organizado. Mas tudo o que eles possuem e querem nos
passar s�o os frutos apodrecidos da impot�ncia para o prazer, para a
alegria, para a felicidade animal e selvagem. Esses Povos de
comerciantes, os mais tristes do mundo, nascidos e criados entre o frio,
o escuro e a severa infelicidade dos ideais puritanos, querem impingir
suas receitas de vida a n�s, Povos morenos, criados ao Sol! Como � que
poder�o, nunca, nos entender? Esse Negro que se veste de Rei no Auto
dos Guerreiros sabe que gastou quase tudo o que possu�a para comprar
o Manto e a Coroa, mas acha que a alegria de vesti-lo � compensa��o
muito maior do que o pre�o pago. Aquele Caboclo, cassaco da cana-dea��car,
sabe que o rio, contaminado, est� cheio de doen�as mortais que
v�o inch�-lo por fora e comer suas entranhas por dentro, entupindo seu
cora��o de dep�sitos calc�rios de bichos estranhos ao sangue humano.
Ele sabe de tudo isso, porque, todo dia, v� seus companheiros inchando
e morrendo assim. Mas acha que, na sua vida miser�vel e sem
perspectivas, primeiro s� acha o que comer entrando no rio; e depois
sabe que tem poucas alegrias iguais ao puro e selvagem prazer do
banho de rio ao meio-dia, estando ele cansado e suado do calor do Sol.
Aquele outro, que � Sertanejo, sabe que ser� morto, se escolher a vida
livre das Caatingas, as correrias do Canga�o. Mas sabe, tamb�m, que,
enfrentando essa vida incerta e essa morte certa, ter� direito ao que
nunca teve: uma vida sem dono, uma vida de Senhor e sem trabalho

escravo. Por isso, n�o se importa de viver perseguido como um
cachorro mordido. Sabe que esse � o pre�o que ter� de pagar para
poder possuir mulheres com as quais, antes, n�o poderia nem sonhar,
as ilhas da gente poderosa, lindas e orgulhosas, que passeavam os
olhos por ele sem nem ao menos o avistarem, como se ele n�o existisse,
e que agora o veem, com espanto, terror e perturba��o, vestido com sua
Armadura de couro e com as ins�gnias de prata de sua realeza,
aparecendo diante delas n�o mais como um ser ignorado e desprezado,
mas como o temeroso Senhor da sua honra e de seu destino, o
Emiss�rio de uma vida cruel, selvagem, errante e guerreira, fascinadora
e terriicante. Todos esses s�o homens de Ra�a idalga, degredados e
degradados numa vida de ignom�nia, inferior a eles. Quem teria o
direito de acus�-los e incrimin�-los, se se revoltam e procuram uma
outra vida, mais de acordo com os impulsos e a ra�a do seu sangue?
Quem teria o direito de reprovar a escolha que eles fazem, condenandoos
em nome dos ideais desses Povos tristes e duros de Burgueses
dominicais, apavorados pelos Pastores, pela opini�o, pela ilantropia
das sociedades protetoras de animais e pela higiene? Como � que esses
paroquianos podem entender a selvagem alegria de uma briga de
touros ou de galos, com o prazer e o encanto da luta, das apostas, do
jogo, da festa, da sagra��o da vida inocente e cruel? Eles jamais
entender�o que a morte cruel de um touro ou de um galo vale a alegria
de um punhado de homens; n�o aceitam isso porque prezam mais suas
regras e f�rmulas ilantr�picas do que a alegria dos homens. N�s n�o
precisaremos nunca de inventar uma imagem falsa da Vida para poder
am�-la. Porque, na dureza e sob o Sol, n�s aprendemos � for�a a am�-la,
com o que ela tem de ardente e glorioso, mas tamb�m com o que possui
de degradado, sangrento e sujo. O que � cruel e sujo tamb�m faz parte
da vida, e ter� que ser enfrentado com as armas do sangue, do riso e da
luta, com a valente tenacidade do homem diante do que a Vida tem de
mais desordenado � o sofrimento, a humilha��o e a Morte.�
* * *
� Quando Adalberto terminou de ler essas palavras, Sr.
Corregedor, Ar�sio falou com uma estranha e inesperada entona��o de
melancolia na voz:

� �Sim� � disse ele �, �era assim que eu falava naquele
tempo!�
� �Eu n�o lhe disse?� � falou Adalberto. � �Lembro-me de
tudo! Eu escutei atentamente! No outro dia, viajei para o Recife, e foi a
partir dessas palavras suas e da minha viagem, que se iniciou aquilo
que voc�, h� pouco, antes de Quaderna chegar, chamou ironicamente de
minha instru��o revolucion�ria. Agora, eu lhe pergunto: voc�
acreditava, mesmo, em tudo aquilo que me disse?�
� �Acreditava sim, Adalberto! E se falei com alguma ironia
quando me referi a sua instru��o revolucion�ria, a ironia foi mais
dirigida contra mim do que contra voc�!�
� �Ent�o, por que � que se recusa a iniciar sua instru��o
revolucion�ria, assim como a apoiar e ajudar a minha?�
� �Creio que a explica��o disso est� nas minhas palavras, que
voc� guardou e repetiu t�o bem. Voc�, seduzido por uma parte, parece
que deixou de prestar aten��o � outra. Acho que voc� n�o anotou isso
a�, devidamente, porque, sem querer, guardou mais o que correspondia
a seus sonhos e seus desejos. Creio que seus amigos, mestres e
companheiros do Recife n�o aceitam, de modo nenhum, minhas ideias.
N�o falo nem dessas de hoje, mas das daquele tempo, mesmo! Todos
eles pensam por esquemas, e como as minhas ideias n�o cabem nos
esquemas preestabelecidos por eles, nem sequer as examinam. Por
exemplo: seus amigos s�o incapazes de ver que o Ex�rcito e a Igreja s�o,
na Am�rica Latina, os �nicos Partidos organizados, disciplinados e
verdadeiramente existentes. S�o incapazes de ver que a hostilidade
com que eles tratam esses dois Partidos � uma estupidez, que s�
favorece os nossos inimigos de fora. Sim, porque enquanto n�s nos
dilaceramos aqui em divis�es est�reis, eles v�o entrando, corrompendo,
furtando e se apossando � vontade de tudo o que desejam. A uni�o da
Am�rica Latina tem que se fazer atrav�s dos nossos Ex�rcitos, e para
isso, temos que forjar um pensamento novo, uma nova Teoria do Poder,
original, resultante das nossas qualidades e defeitos, das nossas
peculiaridades e singularidades. Mas voc�s icam papagueando as
ideias feitas que nos v�m de fora. O liberalismo � uma delas. Voc�s n�o
veem que o liberalismo s� interessa, aqui, aos que querem nos roubar?
� por isso que, l� fora, de vez em quando, come�am a sair ataques
contra o que os gringos chamam o caudilhismo latino-americano, o

militarismo latino-americano, os golpes latino-americanos, as ditaduras
militares latino-americanas. Os gringos sabem, muito bem, que se
aparecer um verdadeiro Soldado, que re�na as qualidades do Caudilho
e do Rei, n�s levantaremos a cabe�a. O Brasil primeiro, porque � maior;
depois toda a Am�rica Latina, que formar� um Pa�s de duzentos
milh�es de habitantes. � isso o que eles n�o querem, e vem da� toda a
propaganda que fazem para nos impingir, de cima e por fora, o regime
da Inglaterra vitoriana ou dos Estados Unidos puritanos, cru�is e
avarentos. Pronto, j� falei demais: a� est� uma ideia de cap�o, que
ofere�o a voc� e a Dinis, para se aproveitarem dela como quiserem. Mas
tenho que lhe lembrar, ainda, algumas coisas que eu dizia, mesmo
naqueles meus tempos de entusiasmo. N�o sei se voc� se lembra, mas
eu dizia, tamb�m, que n�o poderia nunca aceitar a igualdade como
ideal, porque, sendo tamb�m ilho desse sangue Latino-americano, do
sangue que d� os Cangaceiros, profetas e Caudilhos, eu sei que cada um
de n�s tem de realizar a seu modo a gl�ria ardente da sua Vida, e
enfrentar, tamb�m a seu modo, a sujeira e o sangue da Morte, ambas
diante do Sol. Sim, porque diante dessas coisas, a Vida e a Morte, cada
um tem de se atar sozinho, pois icamos sempre inteiramente s�s
diante delas!�
� �Sim!� � insistiu Adalberto, como se teimasse em s� ouvir
uma parte das palavras de Ar�sio. � �Sim, eu sei! � preciso corrigir e
ajustar o que existe ainda de desviado em seu pensamento, porque voc�
d� alguns erros graves de interpreta��o. H� pouco, por exemplo, voc�
disse que s� existiram at� hoje, no mundo, dois tipos de Governo, o dos
comerciantes que exploram o Povo e o dos tiranos que oprimem o Povo.
Dou certa raz�o a voc�. Quanto ao Governo dos comerciantes, estou
inteiramente de acordo. Acho, mesmo, que uma das tarefas do
pensamento Latino-americano � desmascarar as imposturas da
Democracia liberal-burguesa, o regime dos comerciantes, como voc�
chama. Ali�s, n�s temos tudo para isso, porque nossa tradi��o pol�tica
n�o � essa, da Democracia burguesa. Entenda bem o que estou dizendo,
para n�o torcer meu pensamento depois, Quaderna! Eu pessoalmente,
talvez pelo fato de termos sido s�ditos de Filipe II, tenho mais simpatia
por aquela Autocracia total que, no s�culo XVI, determinava at� o modo
de vestir dos vassalos, do que pela impostura da Democracia dos
comerciantes ingleses, que nos foi imposta artiicialmente, por ideais

superpostos, que n�o correspondem � nossa vida e � nossa forma��o.
No s�culo XVI, Ar�sio, a op��o era entre a Autocracia coroada e meio
teocr�tica de Filipe II e a Rep�blica de comerciantes, da Holanda ou da
Inglaterra. Hoje em dia, os Estados Unidos s�o uma esp�cie de Holanda
em ponto grande � um Povo de comerciantes farisaicos e puritanos,
organizado na mais poderosa das imposturas que j� se izeram em
torno do Bezerro de Ouro!�
� �E qual ser�, hoje, a Autocracia total e meio teocr�tica que se
op�e aos Estados Unidos? A R�ssia?� � indagou Ar�sio, novamente
ir�nico.
� �Sim, � a R�ssia, por que n�o?� � retrucou Adalberto, com o
mesmo fervor de antes. � �� a R�ssia, com tudo o que o Comunismo
tem de teocr�tico e de apocal�ptico, de inquisitorial e escatol�gico, o
que digo, n�o de modo pejorativo, e sim como Latino-americano e
herdeiro da tradi��o autocr�tica de Filipe II! Mas o que eu ia dizer,
mesmo, era que voc� esqueceu, nas suas palavras, de fazer uma
distin��o importante: existem, de fato, somente dois tipos de governo, o
dos que exploram e o dos que oprimem o Povo. Mas, entre os que
oprimem, existem, tamb�m, dois tipos: os que oprimem em nome da
grandeza, como Filipe II, e os que oprimem para realizar a justi�a, como
L�nine!�
� �E qual � a diferen�a, para o Povo que � oprimido?� �
indagou Ar�sio, meio impaciente.
� �A diferen�a � que os que oprimem em nome da justi�a
esperam instaurar a felicidade para todos!� � disse Adalberto no
mesmo tom de fervor doentio.
� �Ah, a felicidade!� � disse Ar�sio com desprezo. � �Esse �
um ideal mesquinho, no plano individual, e um sonho de cap�es quando
passa para o coletivo!�
� �Um ideal mesquinho?� � disse Adalberto admirado. � �N�o,
� o ideal de todos! Todo mundo procura a felicidade, a tranquilidade, a
alegria e a paz!�
� �Todo mundo?� � insistiu Ar�sio. � �Todo mundo, n�o! Das
pessoas que est�o aqui, quantas procuram a felicidade? Voc�, procura o
sofrimento e um castigo, que, n�o sei por qu�, deseja, desde que o
conheci!�

� �Isto s�o frases!� � rebateu Adalberto. � �E mesmo que
fosse verdade a meu respeito, Quaderna � alegre e procura a felicidade!
Talvez at� j� tenha achado a tranquilidade, a paz e a alegria, se bem que
eu n�o concorde com os m�todos que ele empregou para isso!�
� �A verdadeira alegria, Adalberto, a alegria ardorosa e pura
que n�s somente pressentimos, � imposs�vel para o homem, assim
como a paz e a felicidade s�o os ideais mesquinhos dos fr�volos,
covardes e supericiais. Isso, no plano individual, como eu dizia. Se voc�
pensa em todos os homens, esse ideal mesquinho de felicidade e paz se
amplia, em tamanho e estupidez, no ideal da justi�a. O mais que o
homem verdadeiro procura, em seu conlito com o mundo, � colocar
uma prec�ria ordem em sua vida e um certo estilo em sua melancolia,
em seu destino, que �, por natureza, despeda�ado, triste, falhado,
enigm�tico e tr�gico. Para isso, o homem tem duas fontes, duas ra�zes
de defesa � o choro e o riso. Mas o choro e o riso verdadeiros, aqueles
incados profundamente e cujo ritmo se alimenta de sangue e de
subterr�neo. Dinis Quaderna n�o � alegre, Adalberto. Quem passou o
que ele passou e viu o que ele viu, n�o pode ser alegre. Os subterr�neos
do sangue dele s�o como os meus, povoados de mortos sangrentos, que
lutuam no rio da desordem. Apenas, enquanto eu resolvo meu conlito
pelo choro e pelo suor do sangue e da viol�ncia, ele resolve o seu pelo
riso; mas eu n�o sei qual o mais despeda�ado, se o meu sangue ou se o
riso dele!�
� �Pois reajam!� � gritou Adalberto. � �Reajam e lutem,
porque, como eu estava dizendo, existem os que oprimem de in�cio,
sonhando com uma justi�a mais alta, com uma sociedade nova, com
uma vida em que ningu�m, principalmente os pobres, que est�o s�s,
tenha que enfrentar mais, sozinho, a sujeira e a desordem da vida! �
por isso que eu acredito na Am�rica Latina! Quando n�s n�o nos
envergonharmos mais da nossa tend�ncia para o caudilhismo, a
guerrilha e o canga�o, quando n�s provarmos que a nossa voca��o
autocr�tica pode ser orientada e inclinada para a organiza��o de um
verdadeiro Estado, a� sim, teremos todas as qualidades do nosso Povo
retiicadas e uniicadas pela verdade. Ficar� claro que s� num
verdadeiro Estado, organizado � base da verdade e da justi�a, � que o
homem pode realizar sua inclina��o natural para o bem, a mansid�o, a
fraternidade, a generosidade, e tudo mais que nos afasta do ego�smo e

da crueldade. Suas ideias, Ar�sio, deixar�o de ser uma faca de dois
gumes, e os mansos e misericordiosos n�o ter�o mais que se dilacerar
na viol�ncia justa e na crueldade necess�ria, porque, pela primeira vez
na Hist�ria, a justi�a e a miseric�rdia estar�o reunidas e uniicadas
numa coisa s�!�
� �� um belo sonho!� � disse Ar�sio. � �Infelizmente, nosso
tempo n�o permite mais esses sonhos! O nosso tempo estala, Adalberto,
� um tempo tr�gico!�
� �O mais tr�gico, nele, Ar�sio, n�o � que o v�cio e a maldade
tenham aumentado, como dizem os supericiais, que acham, sempre,
que, no passado, no tempo deles, tudo ia melhor. O pior, agora, � que a
ordem e as virtudes antigas n�o s�o mais suicientes. � por isso que,
entre outras coisas, as no��es de liberdade e justi�a das democracias
liberais perderam a for�a de a��o e reivindica��o que possu�am no
s�culo XVIII. A tal ponto, que, hoje, essas no��es n�o entusiasmam mais
ningu�m, a n�o ser os membros das Academias e dos clubes
ilantr�picos de comerciantes. Hoje, todos n�s estamos exigindo,
pedidas por nosso sangue e formuladas por nosso pensamento, uma
liberdade mais violenta e uma justi�a implac�vel, para que o homem
abra seu caminho em dire��o �quilo que os religiosos chamam o Divino
e que n�s chamamos o mais elevado e o mais nobre do humano!�
� �Meu caro Adalberto� � disse Ar�sio �, �voc� �, e ser�
sempre, um professor! Abra o olho, sen�o termina icando como os dois
cap�es! Isso �, ali�s, a mesma coisa que eu vivo dizendo aqui ao nosso
Dom Pedro Dinis Quaderna! Mas Quaderna, sendo meu primo, tem um
pouco do meu sangue e �, pelo menos, um Poeta a cavalo, como diz o
Padrinho dele, Jo�o Melch�ades. Quaderna ca�a, anda e corre a cavalo
pelas estradas, enquanto voc� ica aqui, trancado entre essas quatro
paredes, pensando, sonhando e falando s�! Cuidado com o mofo e as
teias de aranha!�
� �Eu sei que estou correndo esse perigo, Ar�sio!� � concordou
Adalberto. � �Foi por isso, ali�s, que mandei cham�-lo aqui: tenho
conian�a em voc�, assim como, de certa forma, tamb�m ainda espero
alguma coisa de Quaderna! Mas como � que poderemos agir
indiscriminadamente, agir sem pensar? E como pensar sem nos
isolarmos entre quatro paredes? � ainda a injusti�a, a desordem do
mundo em que nasci, que est� me tornando um monstro mental e

moral, como transforma em monstros �sicos os barrigudos, inchados
de vermes e amarelos de fome, que voc� viu na Zona da Mata e dos
quais fal�vamos h� pouco! Pois bem: aceito sua cr�tica a respeito do
meu mofo e recebo de bom grado as suas ironias, contanto que voc� me
ou�a tamb�m, reletindo e pesando suas decis�es. Talvez voc� at� v�
sentir desprezo pelo que vou lhe dizer agora, mas vou ainda mais longe
nas minhas coniss�es. Voc� estava falando h� pouco, em tom de
zombaria, do livro de J. A. Nogueira. Pois olhe, est� aqui: eu tamb�m iz
essa coisa rid�cula, escrevi um livro, que mandei imprimir por minha
conta, em Campina, e que cont�m o fruto dos meus pensamentos. Ou, se
voc� preferir, que cont�m as teias de aranha e o mofo dos sonhos que
sonhei durante os cinco anos em que estive ausente daqui. Voc� ter�
paci�ncia de ouvir o resumo do que escrevi?�
� �Claro, estou at� curioso, dependendo do assunto. E voc�,
Dinis?�
� Eu concordei que tamb�m queria ouvir. Ent�o Adalberto
Coura tirou de sob o colch�o da cama uma pequena brochura suja, com
o t�tulo de Pensamentos sobre o Estado. O livro tinha algumas indica��es
que izeram Ar�sio sorrir, porque indicavam a extrema juventude em
que ainda se achava o autor. Em primeiro lugar, na capa, anunciava-se
logo que aquela era a primeira edi��o, indicando-se, assim, que o autor
esperava tal demanda do p�blico que logo se seguiria outra. Depois, na
folha de rosto do livro, via-se escrito �Cole��o Livros Eternos � 1�
Volume�. Em terceiro lugar, a brochura era enfaticamente dedicada ��
igura indel�vel de meu tio, Josu� Coura, vagabundo, escorra�ado e
revoltado nas estradas do Sert�o�. Ora, Sr. Corregedor, o tio de
Adalberto, Josu�, ilho de uma das nossas melhores e mais importantes
fam�lias, era um exc�ntrico, meio doido, atacado da mania religiosa das
peregrina��es, um homem que vivia esmolambado e solit�rio, errando
de estrada em estrada, ningu�m sabe � procura ou � espera de qu�.
Finalmente, o livro tinha uma introdu��o, t�o breve e min�scula quanto
ele, mas n�o menos enf�tica, e que dizia textualmente: �Este livro est�
dividido em tr�s partes. Das duas primeiras � ou seja, das partes sobre
a Vida e sobre a Verdade � decorre a �ltima, a parte sobre o Estado, a
mais importante de todas, principalmente por anunciar a realiza��o, no
mundo, do verdadeiro Estado, num futuro de cuja chegada as atuais
experi�ncias e �xitos do Socialismo s�o os primeiros arautos. E embora

os pensamentos nele contidos n�o expressem com idelidade o alto
esfor�o mental que exigiram do autor, o leitor perceber� que eles
encerram a mais elevada Filosoia.� Quando Adalberto Coura leu isso
para n�s, Ar�sio n�o p�de deixar de sorrir. A conversa se encarni�ou
ent�o, em torno dos setenta e dois aforismos que o livrinho continha, e
que, elaborados pelo �alto esfor�o mental do autor�, revelavam, segundo
sua pr�pria opini�o, �a mais elevada Filosoia�, rival, portanto, da
�Filosoia do Penetral�, de Clemente. Ali�s, os aforismos mostravam
uma mistura daquelas ideias que Adalberto, muito mo�o ainda, ouvira
de Clemente, de Samuel e do pr�prio Ar�sio, ou que bebera depois, em
leituras desordenadas, feitas na nossa Biblioteca, em Campina Grande e
no Recife. O ponto de partida do novo rumo tomado pela discuss�o foi o
t�tulo dado por Adalberto Coura �s tr�s partes do livro, principalmente
as duas primeiras, que versavam sobre a vida e sobre a verdade. Ar�sio,
agora com mais energia, voltava a airmar o direito � disputa e �
viol�ncia. Dizia que todas essas airma��es a respeito da bondade e da
justi�a eram hipocrisias e disfarces para a fraqueza. O homem era,
naturalmente, cruel e �vido, e a vontade de poder era a verdadeira mola
de todos os nossos atos. Adalberto, fervorosamente, concordou com ele:
� �Mas eu estou de acordo com voc�, Ar�sio. A vontade de
poder � a lei da vida, que � a luta para satisfazer suas necessidades e
impulsos naturais! Agora, o que acontece � que o Estado deve existir,
cada vez mais s�lido e forte, exatamente para que todos os homens
possam satisfazer, com perfei��o e em seguran�a, suas necessidades e
sua vontade de poder!�
� �Pois abra o olho com seus Mestres e patr�es, aviso
novamente, porque essa � uma parte de seu pensamento que n�o ser�
tolerada nos esquemas deles!�
� �Isso n�o � comigo! N�o tenho culpa de que eles n�o tenham
intelig�ncia �gil para entender que n�s, Latino-americanos, n�o
podemos pensar como os il�sofos alem�es do s�culo XIX! � preciso
reconhecer que nossos advers�rios t�m raz�o em certas coisas. Toda
alegria e toda felicidade prov�m da consci�ncia de algum poder. No
atual estado de coisas, � imposs�vel uma felicidade atingir todos os
indiv�duos, porque o poder alcan�ado por um e que produz sua
felicidade � sempre o poder perdido por outro. Nossos advers�rios
viram isso, mas tomaram o caminho errado, icando do lado da

desordem. � preciso mostrar que o diagn�stico est� correto, mas que o
�nico rem�dio � a instaura��o do verdadeiro Estado, ou Estado do
Futuro, onde o interesse de um ser� o de todos.�
� �E a verdade?� � disse Ar�sio.
� �Ah, a pergunta de Pilatos!� � disse Adalberto sem sorrir. �
�Chama-se verdade, Ar�sio, uma airma��o com a qual mais de um
homem concorda. Quanto maior o n�mero desses homens, maior a
import�ncia dessa verdade. O resto, � confus�o e sonho dos idealistas!
Assim como n�o existe Verdade em si, tamb�m n�o existe falsidade em
si. Uma falsidade � somente e sempre um choque de verdades. Da� eu
dizer, no meu livro, que quanto mais verdades sociais e menos verdades
individuais existirem, mais haver� progresso, compreens�o e felicidade
entre os homens.�
� �Mas ent�o, as airma��es do seu livro, sendo puramente
individuais, est�o sujeitas a todas as contesta��es!� � ponderou Ar�sio.
� �A� � que voc� se engana! As airma��es do meu livro � entre
as quais a mais importante talvez seja essa da verdade como coisa
estabelecida socialmente pela maioria � s�o incontest�veis, porque o
testemunho de todos os homens comprova que, no tempo da selvageria,
havia um n�mero de verdades ininitamente inferior ao de agora, com a
Civiliza��o e o seu desenvolvimento. E isso era de esperar: porque � a
organiza��o econ�mica total e absoluta que produz a organiza��o das
verdades parciais num todo indiscut�vel. Ser� da organiza��o e da
semelhan�a de todas as verdades num todo comum que decorrer� a paz
entre todos. Essa, ali�s, � a raz�o do sucesso sem precedentes que o
Socialismo, todo baseado no fundo econ�mico, vem tendo na R�ssia,
por mais que voc� zombe dela!�
� �N�o, eu n�o zombei coisa nenhuma! Estou somente
veriicando que sua Autocracia, sua Teocracia � bem mais violenta e
uniicada do que a de Filipe II, que inclusive n�o teve �xito! Agora, eu
lhe pergunto, n�o por mim, mas por causa, aqui, do nosso Quaderna: e
Deus? O que � que sua Teocracia vai fazer sem essa ideia central de
todas as Teocracias?�
� �Como tudo mais, Ar�sio, a exist�ncia de Deus � relativa. Na
Am�rica Latina, eu n�o posso deixar de examinar esse problema. Deus
existe por enquanto, porque os homens Latino-americanos, que s�o
aqueles com os quais terei que lidar, fazem perguntas a esse respeito.

Mas, de fato, s�o os grandes Estados que instituem as grandes
verdades; s� um Estado total pode nos tirar do beco sem sa�da das
verdades particulares, cujo choque produz a desordem atual. Sim,
porque se verdade � a airma��o feita por um conjunto de homens, o
Estado � um conjunto organizado de verdades. Da vida, surge a
verdade, e de ambas surge o Estado!�
� �Mas Adalberto, parece at� que voc� sonha com um mundo
em que todo mundo agisse e pensasse da mesma maneira!�
� �Sim, e por que n�o haveria de sonhar com isso, se as
diferen�as at� hoje s� causaram sofrimento e desordem? Ali�s, todo
mundo sonha com isso, mas n�o tem coragem de confessar! Eu tenho
essa coragem! No verdadeiro Estado, n�o haver� nenhum enigma,
nenhum mist�rio, e todas as perguntas ilos�icas ter�o respostas
absolutamente id�nticas por parte de todos os indiv�duos. Ah, Ar�sio,
n�o acredito que voc� n�o sonhe com isso, imaginando quanto ser� boa
a vida num verdadeiro Estado, onde n�o exista a mais leve sombra de
desordem, de oposi��es e choques. E vou mais longe ainda: digo-lhe
que, no futuro, a concep��o do Estado dever� substituir a concep��o do
Universo.�
� ��E como voc� espera instaurar essa ordem perfeita do
verdadeiro Estado? Atrav�s da viol�ncia e da desordem da Revolu��o?�
� �Sim, pelo menos no come�o! A constru��o do verdadeiro
Estado ter� que ser feita pela Revolu��o, mas sua continua��o e
solidiica��o ser� tarefa da Educa��o, de uma Educa��o total. Esta ser�
t�o perfeita, que cada pessoa de uma determinada idade pensar�
absolutamente do mesmo modo que outra de idade semelhante.�
� �E os choques de gera��o?�
� �N�o ocorrer� nada disso, porque cada faixa de idade ser�
aproveitada em setores de trabalho independentes.�
� �E os sonhos e pensamentos extravagantes de cada
indiv�duo?�
� �Tamb�m n�o haver� nada disso. Todos os pensamentos de
todos os indiv�duos girar�o em torno das coisas e interesses do Estado,
uma vez que, fora disso, nada ser� verdadeiro. Queira voc� ou n�o
queira, Ar�sio, o mundo marcha para o Socialismo em grau cada vez
mais elevado. Vai chegar o dia em que, de uma forma ou de outra, a
organiza��o total do Estado triunfar�, o pr�prio Capitalismo

marchando tamb�m para isso. Haver� ent�o leis para o pensamento,
para as a��es, para os sentimentos, para as alegrias, para os
julgamentos, para as individualidades e at� para as surpresas. Voc� est�
fazendo cara feia, mas foi porque eu falei em leis. Talvez voc� veja que
eu n�o estou divagando, se eu substituir a palavra e disser que haver�
uma conduta estabelecida e determinada para cada situa��o. N�o � esse
o sonho do homem, h� tanto tempo? Por que � que existem os ritos
religiosos e sociais, se n�o para organizar um pouco a desordem da
vida? Quando morre um parente nosso, todo mundo nos d� p�sames,
para ter alguma coisa a dizer. Assim acontece em tudo, e a melhor
sociedade ser� aquela que n�o deixar nada ao acaso e � inven��o
individual. � ineg�vel, portanto, que o progresso da Humanidade est�
na transposi��o das pequenas para as grandes Verdades, das verdades
e interesses dos grupos para os do Estado. � por isso que eu digo,
sempre, que o nome de Humanidade � dado a alguma coisa que ainda
n�o existe. O primeiro momento de exist�ncia real da Humanidade
surgir� somente quando aparecer a primeira verdade que n�o receba
contesta��o de nenhum homem. Da� em diante, a verdade ir� se
estendendo e tudo terminar� sendo integralmente aceito por todos,
pois tudo o que existir ser� unanimemente reconhecido como sendo
uma �nica coisa, j� que o pensamento de um ser� o pensamento de
todos, ser� o pensamento do Estado.�
* * *
Terminando de contar essa parte da hist�ria ao Corregedor � o
que iz valendo-me do exemplar da brochura de Adalberto Coura que
tinha guardado comigo � passei-lhe esta, que ele mandou anexar aos
autos do inqu�rito; e ent�o comentei:
� Naquele dia, Sr. Corregedor, j� no escuro da noite, Adalberto
disse e leu essas coisas tremendas para n�s. Quando repetiu a �ltima
frase, estava com uma express�o sonhosa e exaltada, no rosto p�lido e
magro de jovem Profeta, rec�m-sa�do da adolesc�ncia e ainda malhabituado
ao desconforto em que tinha sido jogado depois que fora
expulso de casa, exatamente por causa daquelas ideias que acabara de
expor. Quando ele acabou, Ar�sio disse:

� �Muito bem, meu caro Adalberto, ouvi e entendi tudo. Se n�o
simpatizasse com voc�, diria tr�s ou quatro palavras convencionais e
icaria por a�. Como simpatizo, digo-lhe que tudo isso s�o lugarescomuns,
� a linguagem comum do rebanho em que voc� anda metido.
Mas isso n�o vem ao caso. O que me interessa, agora, � satisfazer uma
curiosidade, talvez para voc� inesperada. � que me interessa, demais,
saber a opini�o que Quaderna tem de tudo isso. Voc� tamb�m acha que
tudo isso � lugar-comum, Dinis?�
� �Acho n�o, Ar�sio!� � disse eu com sinceridade. � �N�o sei
se � porque sou menos lido e menos bem informado do que voc�s, mas
confesso que, pelo contr�rio, estou � assombrado com tanta coisa nova.
Nunca pensei que essas coisas fossem nem sequer pensadas!�
� �Est� vendo, Adalberto? Anime-se, porque o proselitismo
ainda � poss�vel e voc� pode conseguir adeptos. Mas ainda quero saber
uma coisa, Dinis: j� que voc� se impressionou tanto, me diga, por favor,
qual foi o pensamento que deixou voc� mais espantado nisso tudo.�
� �O pensamento? Mas o pensamento de qu�? Voc� se refere ao
que Adalberto disse ou ao que ele leu no livro?�
� �A tudo.�
� �Bem, de tudo, entre o que ele disse e o que nos mostrou no
livro, o que mais me impressionou foram certas partes parecidas com
as profecias do meu santo Peregrino, Santo Ant�nio Conselheiro de
Canudos. Por exemplo: gostei muito de uma frase que diz: � imposs�vel
existir um mundo sem vida ou a vida sem mundo. Essa frase foi a que
mais me impressionou. Primeiro, porque parece com aquelas do
Conselheiro: Em 1897 haver� muitos chap�us e poucas cabe�as etc. E
depois, a frase me causou uma impress�o danada porque eu n�o
entendi patavina dela!�
� �Isto, gostei de ver!� � disse Ar�sio, rindo. � �Pois a mim,
Adalberto, o que me impressionou mais, em tudo, foi o absolutismo de
seu pensamento. Voc� icou ainda mais simp�tico, para mim, pelo fato
de se parecer mais com os Profetas que anunciaram a Revolu��o do que
com os razo�veis de hoje, que jamais aceitariam seu sonho do
verdadeiro Estado, do Estado total!�
� �Quer dizer que voc� aceita o fundamental do meu
pensamento?�� perguntou Adalberto soerguendo-se de novo e com tal

express�o de ansiedade que se fez um sil�ncio meio embara�oso no
quarto, depois que ele se calou.
Ar�sio, por�m, foi duro:
� �N�o, n�o aceito!� � disse ele, com irmeza. � �Eu disse que
admirava seu absolutismo, mas n�o que concordava com seu verdadeiro
Estado.�
� �E por que n�o concorda? Voc� n�o acha que s� assim � que
poderemos sonhar com a Verdade absoluta, a Justi�a absoluta?�
� �E quem disse a voc� que eu sonho com a Justi�a, Adalberto?
Olhe, n�o quero enganar voc�, de modo que vou lhe dizer o que resolvi,
de uma vez por todas, a esse respeito. Como aconteceu com todos n�s,
aqui, um dia eu me vi diante dessas ideias de verdade e justi�a, ideias
que os dois cap�es n�o cessavam de discutir e que o Padre Renato
tamb�m agitava de vez em quando, nos serm�es dele. Sim, porque, no
fundo, todos eles s�o, entre si, mais parecidos uns com os outros do que
julgam. Podem discordar sobre o modo de realizar a Justi�a, mas est�o
de acordo em que a Justi�a e o bem devem ser procurados e realizados.
No fundo, s�o todos uns cap�es e hip�critas, essa � que � a verdade! Eu
tenho sangue forte, Adalberto, e por isso tenho horror � hipocrisia. L�
um dia, comecei a me rebelar contra todas essas teias de aranha, que se
erguiam como obst�culos � satisfa��o dos impulsos do meu sangue.
Tive a coragem de fazer uma pergunta: por que seria eu obrigado a
procurar ser bom? Por que seria eu for�ado a contrariar meu sangue,
impedindo-me de ser cruel, de desejar o Poder, de exercitar minha
viol�ncia, de possuir todas as mulheres que desejasse e que tivesse �
minha disposi��o? Eu tenho �dio a esses hip�critas que se dizem
partid�rios do bem e da justi�a, da verdade e da bondade, e no entanto
se envilecem no conforto, envilecendo tamb�m os ilhos, que se
habituam a adotar a humildade por covardia, a bondade por fraqueza, e
o amor � pobreza por incapacidade de assaltar o Poder e o dinheiro!
N�o, Adalberto, nessa ordem de coisas, ou se � um santo ou um
impostor. Eu tenho �dio � impostura e, por outro lado, meu sangue n�o
permite que eu seja um santo � o que tamb�m confesso que n�o
quero! Foi por isso que resolvi abandonar de vez todas essas ideias de
verdade, justi�a, bondade e bem, sendo pelo menos sincero com meus
impulsos de maldade, desejo e viol�ncia.�

� �Quer dizer que n�o posso contar com voc�?� � indagou
Adalberto, com a mesma ansiedade.
� �N�o, voc� n�o pode contar comigo para seus sonhos de
justi�a, revolucion�ria ou n�o! O que eu iz com o Bispo, hoje, n�o foi,
como voc� parece ter pensado, nenhum atentado terrorista, nenhum
ato revolucion�rio, nenhum ato de repara��o das injusti�as feitas pelos
ricos e poderosos com o Povo! Foi um ato inteiramente arbitr�rio e
pessoal.�
� �Inteiramente pessoal? Qual era seu objetivo, ent�o?�
� �N�o sei!� � disse Ar�sio, desviando a vista. � �Para falar a
verdade, quando entrei na sala n�o tinha a menor ideia de dar um soco
no Bispo. Dei porque, de repente, me veio essa vontade, sem que eu
soubesse por qu�. Por isso, � melhor que voc� procure outro parceiro.
J� o aconselhei a procurar os Padres e os Soldados. Voc�, obsedado
pelos esquemas, continua a ver neles um grupo de inimigos. Pois seja,
n�o tenho nada a ver com seus equ�vocos! Mas j� que voc� quer
continuar com esses enganos, procure pelo menos o Padre Daniel, que �
quase da sua idade e, sendo um dos seus iguais, � um jovem Profeta
ardente, desejoso de justi�a para todos e ansioso por ser martirizado
por seus ideais.�
� �A religi�o � nossa advers�ria, � o �pio do Povo e eu n�o quero
alian�a com padre de qualidade nenhuma!� � disse Adalberto um tanto
infantilmente, a se levar em conta a advert�ncia sobre os esquemas que
Ar�sio acabara de fazer.
� �Isso � um mal-entendido que surgiu entre voc�s, n�o sei por
qu�, pois, no fundo, voc� e o Padre Daniel querem a mesma coisa. Voc�
mesmo disse, aqui, que era um Latino-americano t�pico. Siga, portanto,
as linhas peculiares da luta pol�tica da Am�rica Latina. A meu ver, voc�s
que sonham ainda com a independ�ncia e a justi�a na Am�rica Latina
deveriam se juntar todos � padres, soldados e jovens intelectuais
como voc�. Voc� acha que n�o: paci�ncia! Por mim, n�o perco nada,
porque n�o � com a grandeza da Am�rica Latina nem com a justi�a para
os pobres que eu me preocupo. Mas, j� que voc� tem outras ideias, n�o
se esque�a de que na Revolu��o de 1817, Frei Caneca e o Padre Jo�o
Ribeiro, dois profetas e m�rtires que queriam a justi�a e tiveram a
coragem de morrer por ela, se aliaram a outros revolucion�rios que n�o
eram padres, tentando, todos, instaurar, pela viol�ncia, o Estado justo,

aquilo que para eles, naquele tempo, era o verdadeiro Estado. Est�
chegando novamente o tempo em que, na Am�rica Latina, v�o se unir
os negros de todo tipo, como voc� diz � os escorra�ados, os
humilhados, os doentes, os ressentidos �, para, sob o comando de
Padres sect�rios, marginais, divisionistas, e de ardentes revolucion�rios
doentios como voc�, tentarem outra Revolu��o. Tenha a coragem e a
ast�cia de sair na frente, Adalberto! Convide o Padre Daniel e partam,
voc�s dois, para os atos de terrorismo. Ali�s, eu tinha mais respeito a
voc�s, porque pensava que j� tinham entrado nisso e que essas mortes
misteriosas que surgiram aqui tinham alguma coisa a ver com voc�s.
Sim, voc�s j� deviam ter se aliado. Que importa que, no grupo dos
revolucion�rios, existam alguns que tenham f� em Deus e outros n�o?
N�o � a justi�a teocr�tica e total, a ordem pura e o bem, que todos voc�s
querem instaurar? Por outro lado, voc� mesmo n�o disse que o Divino,
dos religiosos, � o mesmo Humano mais elevado dos revolucion�rios?
Quanto a mim, n�o gosto de imposturas, e digo aqui, claramente, que
pretendo esgotar at� o im a sujeira, a gl�ria e o sangue da vida, como
qualquer revoltado. Veja bem: revoltado, e n�o revolucion�rio.
Revoltado em proveito do sangue de sua pr�pria vida, e n�o
revolucion�rio sonhando com a justi�a, o bem e outros ideais abstratos,
os ideais elevados da Humanidade como voc� diz t�o infantilmente em
seu livro!�
� �Mas se voc� tem �dio � impostura� � insistiu Adalberto �
�deve acompanhar-nos, porque o nosso � o �nico caminho para acabar
com ela!�
� �N�o, n�o �, meu querido Adalberto. Seu caminho � uma
impostura, como � uma impostura o caminho do Padre Renato e do
Padre Daniel. E, por mais estranho que isso lhe pare�a, at� mesmo voc�
� um impostor!�
� �Eu? Por que voc� diz isso?� � disse Adalberto, espantado,
como se aquilo fosse uma coisa que ele nunca tivesse esperado.
Ar�sio come�ou a cerrar a cara:
� �Digo isso, porque voc� � um padreco igual aos outros. At�
esse lugar que voc� arranjou na casa de Quaderna cheira a padre a dez
l�guas de dist�ncia. E voc�, com esses p�s inos e brancos, a� metidos
em alpercatas, com essa camisa sem colarinho e esse corpo ino e
magro, � mesmo um fradeco hip�crita, como todo frade que se preza!

Voc� quer ver eu provar como voc� � um impostor, Adalberto? Ent�o
vou lhe fazer uma pergunta: voc� sabe quem � essa mo�a que est� a� e
que voc� chamou para c� unicamente para que ela ouvisse suas
conversas e visse voc� brilhar diante de n�s?�
� �� claro que sei!� � disse Adalberto, cada vez mais
espantado. � �Essa mo�a se chama Maria Inominata e � minha noiva!�
� �Ouvi falar desse noivado. Soube, mesmo, que seu noivado
com ela, ilha de um simples morador, foi uma das causas de sua
expuls�o de casa, n�o foi isso? Voc� sabe que ela morava nas terras que
foram de meu Pai?�
� �Sei, ela me contou!� � disse Adalberto.
� �Mas provavelmente voc� n�o sabe por que ela saiu de l�:
essas coisas, nunca ningu�m diz aos interessados! Voc� contou a ele,
Maria, por que saiu da �On�a Malhada�?�
� �N�o!� � ouvi a voz de Maria Inominata responder num
sopro e logo acrescentar, de modo quase inaud�vel: � �Pelo amor de
Deus!�
Confesso que meu cora��o se confrangeu, porque eu tamb�m
sabia de tudo, e o tom de Ar�sio revelava que ele estava entrando de
novo naquela perigosa disposi��o de esp�rito que todos temiam nele.
Indiferente ao temor e � s�plica da mo�a, Ar�sio explicou ent�o:
� �Ela saiu de l�, Adalberto, por minha causa! Um dia, passei
diante da casa dela. Maria estava na porta e me olhou de um modo
estranho! Ah, Adalberto, voc� tem raz�o quando diz, no livro, que o
impulso sexual � um dos mais intensos! H� certos olhares que as
mulheres nunca deviam lan�ar a homem nenhum! Maria Inominata �
linda, como voc�, apesar de tudo, h� de ter notado! Ela � muito atraente,
com essa cor morena, esses cabelos castanhos e lisos que v�o at� a
cintura, com esse busto n�o muito desenvolvido de adolescente, mas
com as ancas e as coxas fortes, lisas, duras e bem-feitas. Eu ia partir
para possu�-la ali mesmo, porque o olhar que ela me lan�ara signiicava
que eu n�o seria repelido. Mas, nesse momento, saiu de dentro da casa,
com uma foice na m�o, o irm�o dela, Amaro Inominato, um sujeito que,
pela cara, a gente conhece que � perigoso. Eu estava desarmado, de
modo que disfarcei e continuei meu caminho. Mas Maria e Amaro,
apesar de eu n�o ter dito nada nem chegado a esbo�ar nenhum gesto,
tinham entendido tudo. O Pai dela, o velho Manuel Inominato, � desses

moradores antigos que, n�o tendo lido seu livro, Adalberto, julgam que
podem manter uma vida digna, no meio da sujei��o e da submiss�o. Ele
era muito amigo de meu Pai e, n�o querendo ver a ilha prostitu�da pelo
ilho do dono das terras, foi pedir prote��o ao nosso inimigo, Ant�nio
Moraes. Foram todos morar l�, nos Angicos, e nunca mais eu tinha visto
Maria at� hoje!�
� �E o que � que voc� quer me dizer com isso?� � indagou
Adalberto, mais admirado e ainda n�o ofendido, porque se julgava na
obriga��o de se revelar compreensivo, por ilosoia e pelas ideias
progressistas que professava.
� �Quero lhe falar disso para lhe mostrar sua impostura!� �
disse Ar�sio, cada vez mais cheio de dureza. � �Voc�, mesmo sabendo,
talvez, o que se passara comigo e ela, resolveu noivar com Maria,
primeiro para exibir seu senso de igualdade; depois, para reparar a
honra de Maria, que voc� julgava ofendida; e inalmente porque, no
fundo, tinha consci�ncia de que s� de uma mo�a inferior socialmente �
que voc� teria coragem de se acercar. Os covardes e fracos como voc�,
Adalberto, sentem-se mais seguros assim: icam certos de ser aceitos
por gratid�o. No seu caso, quaisquer que fossem suas poucas
qualidades viris, de homem, voc� poderia estar seguro de que iria
deslumbrar Maria, pelo fato de um rapaz pertencente � classe superior
desej�-la, n�o para amante, e sim para mulher! Mas, mesmo assim, tudo
isso n�o bastou: voc� quis que hoje, aqui, ela visse voc� brilhando, como
professor, diante de mim e de Quaderna! � por isso que lhe dou raz�o
quando voc� escreveu no livro que todo desinteresse aparente �, no
fundo, um interesse real, e que a pessoa s� consente em diminuir seu
poderio, ou em troca de um prazer, ou julgando que o est� fazendo
crescer. Pois bem, Adalberto, vou aceitar seu jogo: vou competir com
voc� diante de Maria e usando as mesmas armas. Em primeiro lugar,
quero tamb�m brilhar como professor diante dela, de voc� e de
Quaderna. Digo-lhe, ent�o, que n�o existe unidade nenhuma em seu
pensamento. Se o ponto de partida dele foram aquelas ideias sobre o
Povo, o Brasil, a Am�rica Latina, a �ndia e a �frica, n�o vejo como ligar
tudo isso ao verdadeiro Estado, ao Estado total dos seus sonhos. Para
lhe ser franco, seu pensamento me deu a impress�o de um monstro de
duas cabe�as, uma bela e outra demon�aca, n�o precisando dizer que a
cabe�a demon�aca, feia e monstruosa � a do verdadeiro Estado, e a bela

� a da Rainha do Meio-Dia. A cabe�a monstruosa surgiu quando eu
menos esperava, n�o como uma conclus�o harmoniosa, mas sim como
um reverso monstruoso da medalha da outra. Para mim, isso n�o tem a
menor import�ncia, porque, como lhe disse, estou ainda no est�gio
primitivo, aquele no qual, como diz seu livro, bem � o que satisfaz os
impulsos do meu sangue, e mal � o que os impede. Mas voc� quer
realizar a justi�a, � um homem dedicado aos outros, e n�o a si mesmo.
Cuidado, ent�o, com as contradi��es do seu pensamento. Cuidado para
que sua exalta��o do humano, feita a partir dos Povos negros do
mundo, n�o caia numa esp�cie de nega��o total do nosso humanismo
Latino-americano, do nosso amor quase pag�o pela vida, do nosso
modo de fruir do mundo como se soub�ssemos que a nossa vida e o
mundo foram feitos para ser dissipados!�
� �Voc� est� querendo me ofender, Ar�sio, mas n�o julgue que
est� falando com uma pessoa comum!� � disse Adalberto, numa voz
surda que desmentia um pouco suas palavras. � �Eu j� tinha
conhecimento de que a fam�lia de Maria sa�ra da �On�a Malhada� por
sua causa! Que � que me importa isso, se n�o houve nada entre voc� e
ela? Quanto ao que voc� disse sobre meu pensamento, acusando-me de
criar um monstro de duas cabe�as, voc� est� completamente errado! Eu
tive o cuidado de pensar em tudo, Ar�sio. Foi por isso que falei, de
prop�sito, na Autocracia teocr�tica e total de Filipe II, que nos
governou. A tradi��o Latino-americana em pol�tica � exatamente essa, a
de um Governo poderoso governando s�ditos ferozmente livres. Como
pessoas, n�s, os Negros do mundo, n�o damos grande import�ncia ao
Governo, porque, sendo todos n�s verdadeiras comunidades de
Fidalgos cobertos de andrajos, sabemos ser ferozmente livres e felizes
de modo selvagem e independente! O verdadeiro Estado, ent�o, cuidar�
de que n�o haja injusti�a nem fome. Oprimir� e esmagar�, at� que os
burgueses, envilecidos pelo conforto e pela trai��o, n�o tenham mais
ambiente para continuar sugando sua riqueza e seu poder � custa da
mis�ria e da doen�a do Povo. Quanto ao mais, o nosso pr�prio Povo se
encarregar� de faz�-lo. Sua imagem do monstro de duas cabe�as
tamb�m precisa ser retiicada, porque, atualmente, o monstro que nos
rodeia tem tr�s cabe�as, e n�o duas. A primeira, � a cabe�a de ouro dos
ricos; a segunda � a do Poder armado; e a terceira � a do Povo, a da
mis�ria extrema. As duas primeiras s�o aliadas, porque os comerciantes

montaram seu aparelho de repress�o armada, juntando-se, para isso,
aos Soldados. � preciso que o Povo, rebelando-se, corte a cabe�a de
ouro, porque a� o Monstro deixar� de ser monstro. Das duas cabe�as de
ignom�nia, a dos comerciantes desaparecer�, cortada, e a do Povo
perder� sua feiura e sua humilha��o, saindo da mis�ria. Com isso, o
Ex�rcito passar� a ser uma Mil�cia ligada ao Povo, identiicada com o
Povo. O Monstro ser� transformado num animal harmonioso, com duas
cabe�as n�o mais contradit�rias e sim aliadas num perfeito
entendimento, a do Povo livre e feliz, e a do Poder armado total, livre
das imposturas da democracia dos comerciantes e colocada a servi�o
da justi�a! � por isso que eu acredito ser o Brasil, ou melhor, a Am�rica
Latina, o Pa�s destinado a realizar a mais bela forma de Socialismo j�
surgida no mundo! Viu agora, Ar�sio, como o verdadeiro Estado � a
conclus�o l�gica, e n�o a contradi��o, das nossas ideias sobre a Am�rica
Latina e os outros Povos negros do mundo?�
� �N�o, mas n�o vou perder mais tempo discutindo, n�o,
porque parece que, nessa hist�ria de l�gica, voc� ganha, mesmo, para
mim, meu querido Professor de justi�a!� � disse Ar�sio, com uma
viol�ncia cada vez mais concentrada. � �Mas voc� se esquece de que,
em mim, a parte mais importante � a outra, a do sangue! Eu nunca
renuncio a um prazer do sangue. Naquele dia, fui impedido, mas, agora,
vou levar Maria Inominata comigo, porque Amaro est� longe e voc�,
como homem, n�o representa nem um d�cimo dele! Quero ver se voc�,
depois, ainda querer� Maria, por ilosoia, ou se � um impostor como eu
estou julgando!�
� �Ar�sio, n�o fa�a isso n�o, sou eu quem lhe pe�o!� � intervim
eu, aterrorizado e confrangido, sabendo quanto sofrimento aquilo iria
causar a tantas pessoas, inclusive a ele mesmo, mas sabendo tamb�m,
de antem�o, que era in�til qualquer pedido.
� �Eu estou desarmado!� � disse Adalberto, como se isso
tivesse algum efeito sobre o inexistente senso de lealdade de Ar�sio em
tais ocasi�es.
� �Tanto melhor, porque, quanto a mim, eu estou armado!� �
disse ele erguendo-se e marchando para Maria, a quem segurou pelo
bra�o.
� �Largue Maria!� � gritou Adalberto, aproximando-se dele e
com um furor inusitado na voz.

A�, tudo se precipitou. Ar�sio, puxando o rev�lver, deu com ele
uma pancada violenta na cabe�a de Adalberto, que caiu tonteado. A
outra m�o dele continuava fechada, como um anel de ferro, em torno do
bra�o de Maria Inominata. Com uma tor��o, ele a impeliu em dire��o �
escada, enquanto guardava o rev�lver na bainha. Ao chegar junto de
mim, tirou a carteira cheia de dinheiro e me entregou tudo, dizendo:
� �Olhe a�, dono de pens�o: esse dinheiro � pelo aluguel do
quarto onde consegui a mo�a. Quando o professorzinho acordar, lembre
a ele aquelas palavras de Santo Agostinho que o cap�o Samuel leu para
n�s, um dia. Voc� ainda se lembra? Os rapazes pag�os violavam as
mo�as e mulheres crist�s que, habituadas � morna castidade dos
maridos e noivos, tamb�m crist�os, icavam terrivelmente perturbadas
diante daquela sensualidade poderosa e brutal, t�o cheia de novidades
e t�o sem escr�pulos. Iam, ent�o, depois de violadas e possu�das de
todos os modos, procurar o Santo, com remorso por terem gozado
daquela maneira nunca antes experimentada e nunca t�o intensa. Santo
Agostinho absolvia todas elas, dizendo que n�o tinham culpa de que o
corpo estremecesse involuntariamente e barbaramente ao ser
solicitado, de modo t�o violento e acariciador, no que tinha de mais
�ntimo. Pois voc� diga isso ao professorzinho. Hoje, a noiva dele talvez
n�o chegue a sentir muito o que confessar, porque o sofrimento da
primeira vez talvez impe�a o prazer, se bem que eu esteja disposto a
fazer tudo para que isso n�o aconte�a. Mas como pretendo guard�-la
comigo ainda por uma semana, telegrafarei depois a ele, para que Santo
Adalberto absolva Maria de seus estreme�os!�
Ent�o, Ar�sio desceu a escada, impelindo Maria Inominata na
frente dele e desaparecendo das nossas vistas. Assim que ele saiu, eu e
Lino corremos para junto de Adalberto. Lino Pedra-Verde pegou uma
quartinha d��gua que estava em cima da mesa de cabeceira, e,
molhando um len�o, come�ou a pass�-lo na testa de Adalberto, que
continuava de olhos fechados. Eu tamb�m me ajoelhara junto dele, e,
tanto eu como Lino, julg�vamos que o rapaz continuava desmaiado. De
repente, com uma sensa��o misturada de constrangimento e
compaix�o, n�s dois notamos, ao mesmo tempo, que Adalberto estava
chorando. �V�o-se embora, pelo amor de Deus!� � disse ele, com
ambas as m�os cobrindo o rosto. N�s vimos que, no momento, era o
que havia de melhor a fazer. E como t�nhamos combinado ir ao

encontro de Samuel e Clemente para a entrevista com o Doutor Pedro
Gouveia, descemos a escada e sa�mos tamb�m.

� U
FOLHETO LXXX
O Roteiro do Tesouro
m esclarecimento s�, antes de contar o resto, Dom Pedro Dinis
Quaderna! � disse o Corregedor. � O senhor aceitou o
dinheiro que Ar�sio Garcia-Barretto lhe deu naquela noite?
� Aceitei, Sr. Corregedor! Em primeiro lugar, eu precisava viver.
Depois, o que � que adiantaria a Adalberto ou a Maria Inominata que eu
recusasse o dinheiro?
� Est� bem: anote esse pormenor, Dona Margarida! Agora, pode
continuar!
� Ao chegar embaixo, tomamos o caminho da Rua do Chafariz,
encaminhando-nos para a parte dos fundos do casar�o dos Garcia-
Barrettos: ali se daria a minha entrevista com o Doutor Pedro Gouveia,
a mais decisiva, talvez, em todo aquele dia. Aproveitando o mais
poss�vel o escuro da rua, passamos despercebidos e chegamos ao
port�o traseiro que procur�vamos e diante do qual n�o havia ningu�m,
pois todo mundo estava aglomerado diante da parte da frente da casa,
na Pra�a. Bati discretamente, e de fato, segundo o que fora combinado,
o port�o foi aberto imediatamente. Vimo-nos diante de um dos Ciganos
que tinham vindo na comitiva de Sin�sio, um rapagote que, segundo
soubemos depois, chamava-se Manuel Briante. Estava armado de rile e
perguntou quem �ramos. Ao ouvir meu nome, deixou que pass�ssemos.
Recomendei por�m a Lino que me esperasse fora, porque pressentia
que, para o Doutor Pedro, quanto menos pessoas houvesse na
entrevista, melhor. Eu era velho familiar tamb�m daquela casa, de modo
que ningu�m precisava me guiar. Cruzei o quintal, o terra�o traseiro que
ladeava a cozinha, entrei na sala de jantar e, passando pelo corredor,
cheguei � sala de visitas onde estavam Samuel, Clemente e o Doutor
Pedro Gouveia. N�o estavam l� nem Frei Sim�o, nem Sin�sio, e eu
imaginei que os dois estavam no pavimento superior: o Doutor Pedro
Gouveia s� nos deixaria ter uma entrevista com Sin�sio depois de tudo

estabelecido entre n�s, disso eu tinha certeza. Agora, eu iria travar
conhecimento imediato, pela primeira vez, era com as ast�cias e
cortesias do Doutor Pedro Gouveia, o homem mais gentil e cheio de
habilidades que eu tive oportunidade de conhecer, Sr. Corregedor. Acho
que, de todas as pessoas que conheci, a conviv�ncia com o Doutor Pedro
Gouveia foi, para mim, a mais proveitosa e cheia de ensinamentos �teis.
� Mais do que a do Professor Clemente e a do Doutor Samuel?
� No que se refere a coisas pr�ticas, sim, Sr. Corregedor! A
inlu�ncia de Clemente e Samuel foi mais l�tero-pol�tica, mas a
conviv�ncia com o Doutor Pedro iria, por um lado, me conirmar em
certas descobertas de ast�cias que eu j� izera sozinho, e por outro me
abrir in�meras perspectivas novas � chaves e caminhos que iriam me
pondo ao alcance um n�mero cada vez maior de ardis e defesas novas,
coisas de valor inestim�vel para a vida pr�tica! Assim que eu entrei, ele
se levantou, pressuroso mas sem espalhafato. E falou, dando-me a
primeira li��o:
� �Este � um dos grandes momentos da minha vida, o dia em
que travo conhecimento com tr�s dos mais distintos intelectuais e
acad�micos residentes na Para�ba, tr�s grandes homens dos quais um �
sertanejo de Tapero� e os outros dois, vindos de fora, foram
desapropriados para n�s, de modo que os tr�s, hoje, honram a nossa
pequena e heroica Para�ba. Sr. Pedro Dinis Quaderna: com o Doutor
Samuel Wan d�Ernes e com o Professor Clemente Har� de Ravasco
Anv�rsio j� travei conhecimento h� alguns instantes. Agora, tenho a
honra de conhec�-lo. Estava esperando o momento de sua chegada para
iniciar nossa conversa, entrando no assunto principal que me levou a
ter a ousadia de pedir que viessem aqui. Mas sente-se, sente-se.
Precisamos conversar!�
� �O Doutor Pedro Gouveia, Quaderna� � explicou Samuel �,
�tem um assunto da mais alta import�ncia para conversar conosco.�
� �Para ser mais exato, dois assuntos!� � acrescentou o Doutor
Pedro. � �Mas esses dois assuntos se entrela�am de tal maneira que
terminam sendo um s�. A primeira coisa que devo comunicar para
come�ar nossa conversa � que o Excelent�ssimo e Reverend�ssimo
Senhor Arcebispo da Para�ba fez-me a honra de me nomear Vidama do
Cariri, Condest�vel e Rei d�Armas da Vener�vel Ordem do Templo de S�o
Sebasti�o.�

� �Como �?� � indaguei espantado, e j� enxergando o perigo
que aquele homem bem-educado, e ainda por cima Doutor,
representava para minhas grandezas e monarquias.
� �N�o me admira o seu espanto!� � disse o Doutor Pedro. �
�N�o me admira, porque eu mesmo me espantei a princ�pio. O senhor
sabe o que � um Vidama?�
� �N�o!�
� �O Vidama � o representante temporal e senhor dos feudos
heredit�rios de um Bispado. O Vidama, al�m disso, comanda
eventualmente as tropas armadas que o Bispo porventura mantenha.
Sendo assim, o Senhor Arcebispo da Para�ba deu-me a grande e
imerecida honra de me escolher para Vidama do Cariri, isto �, para
encarregado dos bens temporais e Comandante das tropas do
Arcebispado aqui no Cariri da Para�ba.�
� �Ah, quer dizer que esses Cangaceiros ciganos que vieram
com o senhor s�o as tropas armadas do Arcebispo da Para�ba?� �
perguntei cada vez mais inquieto.
� �N�o exatamente, se bem que, de certa forma, se possa
entender assim! Mas as verdadeiras tropas do Sr. Arcebispo ser�o
organizadas proximamente aqui na Para�ba, num sentido mais
espiritual do que temporal e de uma forma que os senhores logo
entender�o. Acontece que o Sr. Arcebispo est� empenhado numa
campanha para a reforma ou constru��o de templos em todas as
cidades principais do Estado. Para isso, precisa angariar fundos, e
instituiu tr�s Ordens honor�icas na Para�ba, sendo que a do Cariri foi
colocada sob a invoca��o de S�o Sebasti�o. No nosso caso, dadas as
liga��es de S�o Sebasti�o e d�El-Rei Dom Sebasti�o com a fam�lia
Garcia-Barretto, acho que essa coincid�ncia teve algo de
verdadeiramente miraculoso!� � disse ele, mostrando-se cada vez mais
bem informado. E continuou: � �Existe uma Ordem para o Litoral e o
Brejo, uma para o Cariri e outra para o Alto Sert�o, os sert�es da
Espinhara e do Rio do Peixe. � claro que o Gr�o-Mestre de todas elas � o
Sr. Arcebispo, mas ele houve por bem me conceder plenos poderes no
Cariri, sendo este o motivo de minha humilde pessoa carregar, hoje,
esta Cruz aqui, pendurada ao meu pesco�o pelo colar. Mas, para
encurtar a conversa e para que n�o haja d�vidas sobre meus t�tulos e
minhas atribui��es, aqui est� o pergaminho da minha nomea��o.�

Ent�o, diante de n�s todos, que est�vamos ali fascinados, com os
olhos reluzindo, o Doutor exibiu-nos um pergaminho, cuja c�pia pe�o
que seja anexada aos autos. Era assim:
�Dom Adauto Aur�lio de Miranda Henriques, Arcebispo
da Para�ba, usando das atribui��es que lhe confere o Direito
Can�nico, invocando o Esp�rito Santo e as b�n��os de Deus
para todos os que contribuam, de alguma forma, para a
reforma e a constru��o de Templos dignos das nossas
tradi��es de F�, resolve:
Artigo 1� � Fica institu�da a Vener�vel Ordem do
Templo de S�o Sebasti�o, que se destina a perpetuar nossa
gratid�o a todos aqueles que prestarem relevante
colabora��o para a constru��o de templos na Para�ba.
Artigo 2� � Cada Ordem ter� jurisdi��o sobre
determinada parte do Estado, sendo este, em particular, o
regimento da Vener�vel Ordem do Templo de S�o
Sebasti�o do Cariri.
Artigo 3� � A ins�gnia da Ordem ser� uma Cruz
semelhante � da Ordem de Cristo, que foi como que uma
ins�gnia gloriosa de f� nos tempos do Descobrimento e da
Conquista do Brasil. Para diferen��-la, por�m, da Cruz da
Ordem de Cristo, os esmaltes ser�o gravados em ouro e
goles.
Artigo 4� � A Ordem conferir� condecora��es, que
se distribuem nos graus de Gr�-Cruz, Comendador e
Cavaleiro.
Artigo 5� � A Gr�-Cruz ser� pendente de uma ita
amarela e branca � as cores de Sua Santidade o Papa �
pendente, em linha direita, do pesco�o para o peito, e ser�
usada, nas ocasi�es solenes, com uma faixa das mesmas
cores, passada a tiracolo, da direita para a esquerda.
Artigo 6� � Para cada uma das Ordens, � nomeado
um Vidama e Condest�vel, sendo as nomea��es lavradas
por Decreto nosso, em nossa qualidade de Gr�o-Mestre.

Artigo 7� � Mediante proposta encaminhada pelo
Conselho das Ordens, havemos por bem nomear Vidama e
Condest�vel da Vener�vel Ordem do Templo de S�o
Sebasti�o do Cariri ao Doutor Pedro Gouveia da C�mara
Pereira Monteiro, a quem agraciamos desde j� com a Gr�-
Cruz da Ordem.
Artigo 8� � Ao Vidama e Condest�vel compete
distribuir t�tulos e condecora��es por servi�os prestados,
sendo os nomes dos agraciados inscritos no Livro de Ouro e
Nobili�rio da Ordem, livro que, depois de aprovado e
encerrado, ser� recolhido aos arquivos da Arquidiocese ad
perpetuam rei memoriam.
Artigo 9� � O lan�amento no Nobili�rio ser� feito
em ordem cronol�gica, dele constando, al�m do nome do
agraciado, sua nacionalidade, proiss�o, dados biogr�icos,
t�tulos e condecora��es.
Artigo 10� � O Vidama e Condest�vel est�
autorizado, al�m disso, a mandar fazer pergaminhos
contendo as Cartas Patentes e de Agraciamento, o que deve
ser feito de modo art�stico e seguindo o padr�o anexo.
Artigo 11� � Em casos especiais, o Vidama e
Condest�vel est� autorizado a agraciar e passar
pergaminhos gratuitamente, considerando os m�ritos e
servi�os relevantes de pessoas escolhidas.
Artigo 12� � Os casos omissos ser�o resolvidos
pelo Vidama e Condest�vel e comunicados ao Arcebispo
para san��o, rogando-se aqui aos Senhores P�rocos e
Vig�rios que seja dada toda assist�ncia e ajuda ao
Condest�vel e membros da Ordem.
Dado e passado neste Pa�o Arquiepiscopal da
Para�ba, a 20 de Janeiro de 1935, dia do glorioso m�rtir
S�o Sebasti�o.
Dom Adauto Aur�lio de Miranda Henriques,
Arcebispo da Para�ba.�
* * *

Tal era o extraordin�rio documento, diante do qual nossa
imagina��o imediatamente pegou fogo. Pelo menos a minha pegou, e
tenho certeza de que a de Samuel tamb�m. O Arcebispo Dom Adauto,
al�m de Pr�ncipe da Igreja, era de uma das fam�lias mais idalgas da
Para�ba. Samuel lembrou imediatamente que, em 1757, o Rei Dom Jos�
I tinha enviado para c� uma Carta Patente na qual se dizia que,
atendendo aos servi�os e merecimentos de Francisco Xavier de
Miranda Henriques, Cavaleiro professo da Ordem de Cristo e Mo�o
Fidalgo da Casa de Sua Majestade, era ele nomeado Capit�o-Mor da
Capitania da Para�ba. O nosso Arcebispo e toda a grei dos Miranda
Henriques descendiam desse antepassado ilustre, o que conferia uma
autoridade idalga toda especial � Ordem agora institu�da. Eu por�m,
apesar de t�o fascinado quanto Samuel, estava muito cismado com
aquela hist�ria toda, assim como achando horr�vel aquele t�tulo de
Vidama. Foi o meu pretexto para abrir as hostilidades. Falei:
� �Est� tudo muito bom, Doutor, mas uma coisa eu lhe digo:
esse neg�cio de seu t�tulo ser de Vidama vai dar em galhofa, aqui em
Tapero�!�
� �Nada disso!� � interveio Samuel. � �N�o h� motivo nenhum
para galhofa, a n�o ser por parte dos ignorantes de sua marca,
Quaderna! O t�tulo foi muito bem escolhido e est� heraldicamente
correto!�
� �Pode estar correto como esteja, mas eu conhe�o o Povo e sei
que a primeira coisa que eles v�o fazer � transformar o t�tulo. V�o dizer
a Vidama do Cariri, ou a Mulher-Dama do Cariri ou coisa pior ainda! Por
isso, por seguran�a, acho melhor, ou o senhor publicar o nome como O
Vidamo, ou ent�o usar somente o nome de Condest�vel!�
� �Magn�ica ideia!� � disse o Doutor Pedro, mostrando, desde
logo, como era homem de acordos. � �Vou usar s� o t�tulo de
Condest�vel!�
Havia por�m ainda um problema que teria de ser resolvido logo:
era o do choque entre a minha soberania e as atribui��es do Doutor
Pedro. Eu n�o era idiota para conseguir uma posi��o durante anos e
anos de lutas e ideias e, de repente, deixar que ela me fosse arrebatada
em dois minutos, por um Vidama qualquer! Comumente, eu n�o falava
em p�blico das minhas realezas, nem reivindicava nada que pudesse
ferir e chocar os outros, para n�o angariar inimigos. Entretanto, mesmo

na vida dos pol�ticos, feita de ast�cias e transig�ncias, h� uns dois ou
tr�s momentos cruciais de choque grave em que as decis�es t�m de ser
tomadas e os caminhos escolhidos, momentos nos quais a ast�cia tem
de ser deixada de lado. Ali, agora, eu via que estava diante de um desses
momentos decisivos. Tudo tinha que ser resolvido de uma vez para
sempre, antes que fosse tarde. Assim, preparando-me para uma luta de
vida ou de morte, falei:
� �Existe, por�m, um outro problema, Doutor Pedro, e ele
precisa ser resolvido logo, antes de passarmos adiante. � que existem,
aqui no Cariri, ligadas � fam�lia Garcia-Barretto, umas certas
particularidades her�ldicas e mon�rquicas, que n�o sei se s�o do seu
conhecimento...�
� �O senhor se refere, naturalmente, � Ordem de Distin��o do
Reino do Cariri, da qual seu falecido tio, Dom Pedro Sebasti�o Garcia-
Barretto, era o Gr�o-Mestre e o senhor o Rei d�Armas... Estou
inteiramente a par disso. A par e de acordo, pois ningu�m melhor do
que eu reconhece a legitimidade dos seus t�tulos, Sr. Pedro Dinis
Quaderna. Ali�s, quero lhe declarar que o Sr. Arcebispo est� a par
tamb�m de tudo, e, de certa forma, foi a Ordem de Distin��o do Reino
do Cariri que inspirou a cria��o da Ordem do Templo de S�o Sebasti�o.
Quero ent�o, logo de in�cio, esclarecer-lhe duas coisas: primeiro, � que a
nossa Ordem � uma Ordem Arquiepiscopal e s�, n�o se estendendo sua
jurisdi��o absolutamente ao campo pol�tico e temporal! Eu sou
Condest�vel, Heraldo e Rei de Armas somente dessa Ordem, e nada
mais reivindico nem poderia reivindicar! A segunda � que eu n�o
poderia nem deveria, nunca, objetar coisa alguma � Ordem de Distin��o
do Reino do Cariri, uma vez que todas as pretens�es do meu protegido
e pupilo Dom Sin�sio Sebasti�o Garcia-Barretto se estribam nessas
legitimidades: ou o pessoal da Ordem apoia Sin�sio ou ele estar� s�!
Quero lhe dizer assim, desde logo, que, n�o s� reconhe�o a legitimidade
da Ordem e a qualidade de Rei de Armas do senhor, como vou
reivindicar, eu mesmo, minha inscri��o nela, como agraciado, nem que
seja no grau mais humilde e modesto, o grau de Cavaleiro!�
Que grande homem era aquele! Com uma penada s�, afastava
todos os meus receios! N�o haveria briga nenhuma dele comigo: os
horizontes se aclararam e um largo sorriso de felicidade e beatitude se
estampou no meu rosto. Era a primeira vez que um homem nobre, de

nobreza t�o indiscut�vel ou mais indiscut�vel do que a de Samuel �
pois era declarada oicialmente por um Pr�ncipe da Igreja �,
reconhecia publicamente minhas grandezas e monarquias! Clemente e
Samuel, preocupad�ssimos, olharam-me com o maior despeito deste
mundo e houve um instante de grande sil�ncio e constrangimento.
Ent�o Samuel, n�o suportando mais aquilo, venceu a cerim�nia que
ainda tinha com o Doutor Pedro e falou:
� �Mas Doutor Pedro Gouveia, a seriedade dessa Ordem
Arquiepiscopal e a import�ncia dos seus t�tulos n�o permitem que o
senhor, assim sem maiores exames � desculpe o que lhe digo �
reconhe�a essas coisas caricatas de Quaderna como heraldicamente e
idalgamente leg�timas!�
� �O senhor est� enganado, Doutor Samuel!� � disse
gravemente o Doutor Pedro Gouveia. � �Estou perfeitamente
informado a respeito de tudo o que se passa aqui e sobre as pessoas
realmente importantes da muito leal e nobre Vila Real da Ribeira do
Tapero�. � por isso que tomei informa��es sobre cada um e todos,
sobre as fam�lias, sobre as qualidades de ra�a etc. Porque, se bem que a
Ordem seja mais de natureza espiritual, ra�a � uma coisa importante,
important�ssima! Por isso tomei informa��es, e posso hoje declarar,
com seguran�a, quais ser�o as pessoas realmente dignas de igurar
entre os agraciados por um Pr�ncipe da Igreja como Dom Adauto! Posso
tamb�m dizer que posso ter encontrado algu�m a sua altura, Doutor
Samuel, mas ningu�m que o excedesse em t�tulos de linhagem e
sangue!�
� �O senhor se informou sobre mim tamb�m?� � indagou
Samuel, curioso.
� �Sobre o senhor tamb�m, � claro! Creio, mesmo, que vou
revelar hoje, aqui, sobre sua ilustre fam�lia, particularidades que nem o
senhor mesmo conhece!�
� �O qu�? � poss�vel?� � disse Samuel, espantando-se.
� �� poss�vel, o senhor ver�!� � conirmou o Doutor. � �Olhe,
Doutor Samuel: em Pernambuco, voc�s t�m a Nobiliarquia
Pernambucana, de Borges da Fonseca. Aqui na Para�ba a nossa
Nobiliarquia, o nosso Gotha, s�o as Datas e Notas para a Hist�ria da
Para�ba, de Irineu Pinto, e sobretudo os Apontamentos para a Hist�ria
Territorial da Para�ba, do genial Jo�o de Lyra Tavares. Sim, porque os

Senhores de datas e sesmarias concedidas pelos Reis, foram, nos
s�culos XVI, XVII e XVIII, os troncos de nossa Aristocracia territorial e
feudal. Pois bem: segundo informa��o de Irineu Pinto, em 1719 um
certo Diogo Vandernes governou a Para�ba, formando uma Junta de
homens nobres, com Jo�o de Moraes Valc��ar, Feliciano Coelho de
Barros, Francisco Souto Maior, Jer�nimo Coelho de Alvarenga e Eug�nio
Cavalcanti de Albuquerque. Ora, como o senhor sabe, nessas Juntas
governativas s� entrava gente da mais alta idalguia, escolhida entre os
homens-bons dos da governan�a da terra, como dizem os velhos
documentos, o que prova, mais uma vez, a ilustra��o e a aristocracia do
nobre sangue dos Wan d�Ernes, de Pernambuco, que s�o os mesmos
Vandernes, da Para�ba.�
� �Mas como � que se escreve o sobrenome desse tal Diogo?� �
indagou Samuel, querendo acreditar, mas ainda cauteloso.
� �O nome dele se escreve pegado, com v no come�o e s no im,
mas a fam�lia � a mesma, sem d�vida nenhuma! Tanto assim que, a 16
de Fevereiro de 1759, aparece um ilho de Diogo, Cosme Fernandes
Vandernez, requerendo, na Para�ba, terras a El-Rei. Este escreve Wan
d�Ernes ainda pegado e com v, mas com z no im. As diferen�as s�o
causadas unicamente pelo desleixo e pela ortograia arbitr�ria do
s�culo XVIII, principalmente no que toca a nomes pr�prios. De qualquer
maneira, iz minhas pesquisas e posso atestar que a fam�lia do nobre e
ilustre Sigmundt Wan d�Ernes, companheiro e familiar do Conde Jo�o
Maur�cio, Pr�ncipe de Nassau-Siegen, deitou ra�zes em Pernambuco �
onde seus descendentes mantiveram o nome como ele sempre usou;
mas passou, depois, � Para�ba, para onde veio um descendente seu, pai
daquele Diogo e av� do Cosme que requereu terras em 1759. Da� para
c�, n�o se encontra mais refer�ncia a nenhum Wan d�Ernes, o que me
leva a crer que a fam�lia tenha se extinguido aqui na Para�ba!�
� �Bem, pode ser!� � disse Samuel lisonjeado. � �Talvez esse
parente nosso tenha traduzido o nome para evitar complica��es
pol�ticas, quem sabe? H�, tamb�m, a possibilidade de ter sido ele um
bastardo. Esses Wan d�Ernes antigos eram uns danados! Talvez algum
deles tenha tido um ilho bastardo, a quem n�o autorizou usar o nome
leg�timo, tendo-o traduzido e aportuguesado assim. Quem sabe? �
poss�vel! Mas o que eu quero saber � com que inalidade o senhor
perdeu seu precioso tempo fazendo essas pesquisas!�

� �Fiz essas pesquisas porque na Ordem do Templo de S�o
Sebasti�o h� graus e graus de nobreza. Era preciso fazer distin��es,
porque, quando f�ssemos inscrever os agraciados no Nobili�rio, n�o
ir�amos igualar um comerciante qualquer, a�, com um leg�timo Wan
d�Ernes!�

ESCUDO DE ARMAS DO DOUTOR SAMUEL WAN D�ERNES.

� �Quer dizer que o senhor pensa em me agraciar como
Cavaleiro da Ordem?� � perguntou Samuel, meio incr�dulo a despeito
de si.
� �Mas como, Doutor Samuel? O senhor indaga se eu penso em
agraci�-lo como Cavaleiro? N�o, n�o, seria muito pouco para um Wan
d�Ernes! Se entrarmos em entendimento, o senhor ser� Comendador da
Ordem do Templo de S�o Sebasti�o!�
� �Se entrarmos em entendimento? Que � que o senhor quer
dizer com isso? Terei que pagar alguma coisa para entrar na Ordem?�
� perguntou Samuel que, apesar de idalgo, tinha horror a gastar
dinheiro, fosse com que fosse.
� �O senhor n�o ter� que pagar nada, � claro!� � tranquilizou-o
o Doutor Pedro. � �Isso de pagar, ica para os comerciantes. O senhor �
uma daquelas pessoas de m�rito excepcional a que se refere o Decreto
Arquiepiscopal, e como tal ser� considerado. Assim, a �nica d�vida que
ainda tenho a seu respeito nisso tudo, � a respeito do nome das terras a
que ser� ligado seu t�tulo de Bar�o!�
� �Bar�o? Eu? Eu serei Bar�o?� � disse Samuel quase sem voz.
� �Mas � claro que ser�, e, nisso, nem a Arquidiocese nem a
nossa Ordem fazem favor nenhum ao senhor, cuja nobreza
absolutamente n�o precisa dessas coisas! A �nica coisa que vamos fazer
� outorgar-lhe um t�tulo de nobreza que reconhece, formalmente, o
senhorio feudal e a linhagem ilustre do nobre sangue dos Wan d�Ernes!
Que o senhor tem direito ao t�tulo de Bar�o e ao correspondente
Escudo de Armas, que lhe ser� passado juntamente com a Carta de
Bras�o, isso � incontest�vel. O que quero saber � que terras
escolheremos para ligar ao baronato! Isto � o senhor quem vai decidir.
Se quer lig�-lo �s terras dos Wan d�Ernes na Para�ba, ser� Bar�o do
Riacho do Jacu, pois essa foi a sesmaria de Cosme Vandernez. Se prefere
as de Pernambuco, ser� Bar�o do Guarup�. Qual � o nome de sua
prefer�ncia?�
� �O de Bar�o do Guarup�, � claro: � nome pernambucano, � o
senhorio de terras mais antigo da fam�lia e inalmente n�o tem essa
horr�vel conota��o sertaneja e b�rbara de Riacho do Jacu!�

� �E qual ser� o bras�o de Samuel?� � perguntei, despeitado,
mas fazendo todos os esfor�os para me mostrar superior e sereno. O
Doutor respondeu:
� �Bem, n�o � preciso criar nada de novo nem gastar os miolos
procurando: o escudo ter� que ser composto com o velho bras�o dos
Wan d�Ernes.�
� �E os Wan d�Ernes t�m bras�o?� � perguntei desconiado,
porque Samuel nunca tinha nos falado disso, o que n�o deixava de ser
estranho.
� �Claro que os Wan d�Ernes t�m bras�o!� � insistiu o Doutor.
� �Existe at� uma carta do Conde Jo�o Maur�cio de Nassau
reconhecendo isso! O bras�o � esquartelado por uma cruz de iletes de
ouro. O primeiro quartel � de goles, ou vermelho, com uma cruz de
lisonjas de azul coticadas de ouro. O segundo, � de verde, com cinco
pombas volantes de prata, armadas de vermelho e postas em aspa, e
assim os contr�rios. O timbre, � uma Anta, de sua cor.�
� �Cinco pombas volantes em campo verde?� � interrompeu
Clemente rindo, e achando inalmente um motivo para extravasar seu
despeito, dez vezes maior do que o meu. � �Est� bom, o bras�o, est�
�timo para esse galinha-verde, esse integralista de segunda ordem,
lambe-cu de Pl�nio Salgado! Primeiro, porque o campo � verde, e verde
� a cor dos integralistas. E depois porque, quem diz cinco pombas
volantes, diz cinco caralhos voadores, que � a mesma coisa!�
� �Prezado Professor Clemente� � disse o Doutor Pedro
cortesmente mas com irmeza �, �eu, se fosse o senhor, moderaria as
express�es sobre a nossa Ordem e sua Her�ldica! Porque se o senhor
n�o reconhece a validade de ambas, est�, ipso facto, desmoralizando a
sua linhagem e os t�tulos de nobreza que Sua Excel�ncia
Reverend�ssima, o Senhor Arcebispo da Para�ba, me autorizou
expressamente a lhe outorgar!�
� �O qu�?� � gaguejou Clemente. � �E o Arcebispo me
conhece?�
� �Conhece, sim, e aprovou seu nome para a Ordem!�
� �Digno Ant�stite!� � comentou Clemente. � �N�o sabia que
ele j� tinha ouvido falar de mim!�
� �Quem � que, na Para�ba, n�o conhece o senhor, pelo menos
de fama? Um Fil�sofo, um professor, um jurista que honra a cultura

brasileira!�
� �Mas Clemente � negro e comunista!� � disse Samuel,
desesperando-se ao ver que o cafre iria ser igualado a ele.
� �A nossa Ordem n�o tem conota��es pol�ticas, Doutor
Samuel!�� disse o Doutor. � �M�rito � m�rito! Al�m disso, o Professor
Clemente � bisneto do Visconde de Caic�!�
� �As not�cias que correm aqui s�o muito diferentes!� � teimou
Samuel. � �Consta que Clemente � bastardo. O av� dele, fazendeiro,
teve sua ilha raptada por um almocreve negro que, depois de seduzi-la
e engravid�-la, foi capado pelos irm�os da mo�a!�
� �Isso � verdade, mas absolutamente n�o invalida minhas
palavras, porque esse fazendeiro, av� do Professor Clemente, era
exatamente ilho do Visconde de Caic�. Outra coisa: nos cart�rios de
Caic�, Rio Grande do Norte, encontrei documentos que provam que o
av� do Professor Clemente terminou consentindo no casamento da
ilha, o que torna a descend�ncia perfeitamente leg�tima. Isso, por�m,
n�o seria nada se os ascendentes do Professor Clemente n�o estivessem
no nosso Gotha Sertanejo, como idalgos possuidores de terras. Mas
est�o: a 13 de Mar�o de 1615, Pedro Har� de Ravasco requer e obt�m
do Rei, na Para�ba e no Rio Grande do Norte, terras da Ribeira do
Guraj�. Esse Pedro Har� de Ravasco � ascendente direto do Visconde de
Caic�, bisav� do Professor Clemente que, como Comendador da nossa
Ordem, ter� somente que escolher seu t�tulo: ou Bar�o do Guraj�, ou
Visconde de Caic�, � sua escolha!�
� �Preiro o de Visconde de Caic�!� � falou Clemente, para
surpresa minha. Eu julgava, Sr. Corregedor, que ele ia recusar
asperamente tanto o t�tulo quanto a vers�o de sua descend�ncia do
fazendeiro, da qual ele tinha tanta raiva e que lhe atribu�a sangue
branco ao lado do negro e do tapuia dos quais tanto se dizia orgulhoso.
Mas n�o, o desgra�ado aceitou! Seu rosto exultava: pela primeira vez se
via colocado em p� de igualdade nobili�rquica com o Fidalgo dos
engenhos pernambucanos. Havia muita diferen�a em ser neto de um
fazendeiro comum e ser bisneto de Visconde. Para ser Visconde, ele
faria o acordo, para nunca mais ter que discutir seus olhos agateados e
as marcas de sangue negro que havia em todo o seu corpo. Eu, danado
da vida, joguei tudo isso na cara de Clemente, exprobando-lhe,
inclusive, a trai��o que ele fazia ao Sert�o e a suas ideias de tantos anos.

Mas o Doutor Pedro rebateu minhas palavras, vindo em socorro de
Clemente. Disse:
� �N�o h� nada de estranho em o Professor Clemente ser
Visconde! Os Cavalcantis de Albuquerque t�m sangue tapuia, e o Bar�o
de Cotegipe tinha sangue negro!�
Eu esperava que Samuel, diante disso, viesse com suas galhofas
habituais sobre a nobreza bastarda, a nobreza cafre, castanha etc. Mas
ele estava t�o temeroso de desmoralizar a Ordem que o ia agraciar, t�o
envolvido pelo Doutor Pedro Gouveia, que n�o se atrevia mais a criticar
nada. Ent�o eu mesmo resolvi lutar. Intervim, indagando:

ESCUDO DE ARMAS DO BACHAREL CLEMENTE HAR� DE
RAVASCO ANV�RSIO.

� �E Clemente ter� bras�o, tamb�m?�
� �Sim, � claro!� � respondeu o Doutor. � �O bras�o dele � de
ouro, com os dois cachorros negros dos leais, passantes e armados de
vermelho, e com uma orla de goles, carregada de sete estrelas de prata.
O timbre � uma On�a vermelha, passante, como os cachorros do
escudo.�
� �Cachorro preto, est� muito bem escolhido como animal
her�ldico de Clemente!� � n�o p�de se impedir de observar Samuel. �
�Mas veja que coincid�ncia, Doutor: no meu bras�o, existe uma Anta, e
meu movimento liter�rio � exatamente o Tapirismo; no de Clemente,
existe uma On�a, e o dele � o Oncismo! Agora, tem uma coisa: n�s
chamamos Quaderna, comumente, de Quaderna, O Castanho! N�o me
diga que Quaderna tamb�m ter� bras�o e que no dele existe um Cavalo
castanho!�
� �Existe, sim!� � disse o Doutor Pedro, e meu cora��o deu um
pulo no peito. � �Existe um Cavalo castanho, sim. N�o no escudo,
propriamente, mas sim no timbre. O escudo dos Quadernas �
esquartelado. No primeiro quartel, h�, em campo de ouro, um veado
negro vilenado, inscrito numa quaderna de quatro crescentes
vermelhos. No segundo, em campo vermelho, cinco lores-de-lis de
ouro, postas em santor, ou aspa, e assim os contr�rios. O timbre � um
cavalo castanho, com asas, com as patas dianteiras levantadas e as
traseiras pousadas, entre chamas de fogo!�
� �Valha-me Deus, Doutor Pedro!� � disse Samuel. � �N�o �
poss�vel! Existem, aqui, duas vers�es sobre a fam�lia de Quaderna.
Segundo a primeira, Quaderna descende daqueles fan�ticos, assassinos
e b�rbaros, que se coroaram como Reis do Brasil, na Pedra do Reino.
Mas o Pai dele, Pedro Justino Quaderna, um raizeiro e parasita dos
Garcia-Barrettos, vivia espalhando outra vers�o, segundo a qual os
Quadernas eram descendentes do Rei Dom Dinis de Portugal. N�o me
diga que o senhor se deu ao trabalho de pesquisar, tamb�m, a
genealogia de Quaderna!�
� �Pesquisei, sim! Ali�s, � meu intento fundar, aqui, um certo
Instituto Geneal�gico e Hist�rico do Cariri, exatamente para

institucionalizar e codiicar essas pesquisas, ordinariamente deixadas
ao acaso, aqui na Para�ba.�
� �N�s j� temos, aqui, a nossa Academia, Doutor Pedro!� �
informei, pressuroso.
� �Eu sei, eu sei! N�o � a admir�vel Academia de Letras dos
Emparedados do Sert�o da Para�ba? Mas, tamb�m a�, n�o haver�, entre
n�s, conlito de jurisdi��o, porque a Academia � liter�ria e o nosso
Instituto ser� hist�rico e geneal�gico. Ali�s, n�o � preciso dizer que
meus caros amigos aqui presentes ser�o convidados para a sess�o
inicial e ser�o, portanto, s�cios-fundadores do Instituto!�
� �Magn�ica ideia!� � aprovou Clemente. � �Mas o senhor n�o
disse qual das duas vers�es sobre a fam�lia de Quaderna � a verdadeira,
se a dos Reis do Paje�, se a de Dom Dinis!�
� �As duas, meu caro, as duas, porque os Reis do Paje�
descendiam do Rei Dom Dinis de Portugal! Dom Dinis deixou alguns
ilhos bastardos, entre os quais Dom Afonso Sanches, de quem
descendem os Albuquerques. Mas, de uma certa Maria Gomes, ele
deixou dois ilhos, Maria e outro Afonso. A mo�a casou-se com Juan de
La Cerda, e o rapaz com uma certa Joana Ferreira. O ilho de Juan de La
Cerda chamou-se Jo�o de Lacerda e seduziu sua prima, Catarina
Ferreira, ilha de Afonso, gerando um bastardo que, sendo orgulhoso,
n�o quis usar o nome da fam�lia Lacerda. Trocou as letras e chamou-se
Jo�o Ferreira Dacerla. Este, teve outro bastardo que se chamou Dinis
Ferreira Dacerna. O ilho deste, tamb�m bastardo, chamou-se Pedro
Dinis Ferreira Caderna: foi pai de Jo�o Ferreira Quaderna e av� de Dinis
Ferreira Quaderna, o primeiro a vir para o Brasil. Mas o antepassado
mais ilustre dos Quadernas brasileiros � um certo Jo�o Ferreira
Quaderna, que viveu aqui no tempo do reinado curto e glorioso de Dom
Sebasti�o. E vejam que coincid�ncia estranha: quando Dom Sebasti�o
legitimou os ilhos bastardos de Jer�nimo de Albuquerque, agraciou o
Quaderna com um t�tulo de nobreza. Sabem qual foi esse t�tulo? O de
Conde da Pedra do Reino! Creio que foi por isso que os Quadernas,
depois, batizaram seu trono de pedra do Paje� com o mesmo nome de A
Pedra do Reino. � por isso que o bras�o dos Quadernas � uma variante
do escudo dos Lacerdas, porque a cada mudan�a de nome, havia trocas
no bras�o. Por exemplo: desapareceu o castelo, um le�o de p�rpura
virou veado negro, surgiu o timbre do cavalo castanho etc. As lores-de

lis por�m permaneceram. Mas o s�mbolo her�ldico mais caracter�stico,
mesmo, dos Quadernas � a quaderna de crescentes vermelhos e o
grande Veado negro inscrito nele!�
� �Esta parte � que n�o est� boa, Doutor!� � protestei
imediatamente. � �O veado � um bicho meio suspeito, e meus inimigos
vir�o, na certa, com galhofas para o meu lado por causa disso!�
� �Voc� teria raz�o, meu caro Quaderna, se o veado n�o fosse
vilenado como �! Voc� sabe o que signiica vilenado, em Her�ldica?�
� �Sei n�o!� � confessei.
��Vilenado quer dizer com o sexo � mostra e de esmalte
diferente do resto do corpo do animal. O veado de seu escudo � negro,
mas tem o sexo � mostra e pintado de vermelho!�
� �Bem, se � assim, a coisa muda de igura!� � falei. � �Se o
veado do meu bras�o tem o pau vermelho � mostra, eu posso provar a
quem vier com gra�as que o nosso � um Veado s�rio, um veado macho,
e n�o aveadado como poderia parecer. Entretanto, por seguran�a, e j�
que cautela e caldo de galinha n�o fazem mal a ningu�m, vamos trocar,
no meu escudo, o veado negro por um Jaguar preto, macho e vilenado
de vermelho. Ou pode ser, tamb�m, a On�a castanha e a quaderna de
crescentes pretos. Sei n�o, depois a gente decide! Agora, outra coisa,
Doutor: mesmo que o senhor me d� esse direito, eu n�o quero ser
Comendador, n�o. Preiro ser Cavaleiro!�
� �Deixe de ser burro, Quaderna!� � falou Samuel. � �O t�tulo
de Comendador � muito mais importante!�
� �Mas o de Cavaleiro � mais bonito!� � teimei. � �Sempre
desejei ser declarado oicialmente, episcopalmente, regiamente,
Cavaleiro, e minha oportunidade � essa: n�o quero ser Comendador
n�o, quero ser � Cavaleiro!�
� �Pois ser� Cavaleiro da Ordem do Templo de S�o Sebasti�o!�
� disse o Doutor Pedro Gouveia, com solenidade que me arrepiou. �
�E seu t�tulo? N�o tem curiosidade de saber alguma coisa a esse
respeito n�o?�
Fiquei numa entaladela. Tudo indicava que meu t�tulo deveria
ser o de Conde da Pedra do Reino. Mas, se eu aceitasse esse t�tulo n�o
estaria renunciando, implicitamente, � Coroa real? Com as maiores
cautelas do mundo indaguei isso, como se se tratasse de uma consulta
inteiramente impessoal. A Provid�ncia Divina e os astros estavam,

por�m, decididamente a meu favor: o Doutor Pedro me deu
informa��es seguras que me garantiam eu poder assumir, sem riscos, o
bel�ssimo t�tulo de 12� Conde e 7� Rei da Pedra do Reino. At� os
n�meros, 12 e 7, eram fat�dicos, astrosos e gloriosos, e iquei um
momento a sonhar, com as mais exaltadas esperan�as. Logo, por�m, o
Doutor Pedro nos chamava de volta � realidade. Disse:
� �Bem, senhores, as cartas est�o na mesa e o que vamos
decidir agora � se o jogo se trava e continua, ou tem que ser
interrompido deinitivamente, de uma vez por todas! N�s n�o somos
crian�as e todos j� devem ter entendido que, se eu aceno com
possibilidades t�o honrosas, � que tenho que pedir alguma coisa em
troca. Como j� expliquei, no caso de voc�s tr�s n�o se trata das
exig�ncias que seriam feitas �s pessoas comuns. O que quero, dos tr�s, �
o apoio decidido e total � causa de Sin�sio Garcia-Barretto, causa que
hoje se inicia aqui!�
� �Bem, Doutor Pedro, vamos examinar tudo cuidadosamente!�
� disse Samuel. � �O problema n�o � t�o f�cil como o senhor parece
pensar. A grande d�vida �: ser� que o Rapaz-do-Cavalo-Branco que
chegou hoje aqui com o senhor � o mesmo Sin�sio Garcia-Barretto
desaparecido em 1930? Se �, como foi que ele ressuscitou? � preciso v�lo,
� preciso provar que ele n�o morreu etc.�
� �Tudo isso ser� provado e esclarecido a seu tempo!� � disse
o Doutor Pedro com irmeza. � �Mas tamb�m n�o vou fazer a exig�ncia
absurda de que tomem uma decis�o imediata. Hoje, infelizmente, o
Rapaz-do-Cavalo-Branco n�o pode se deixar ver. Amanh�, por�m,
garanto que facilitarei um encontro dele com os tr�s. Assim, a quest�o
do agraciamento e das cartas de bras�o ica em suspenso at� a decis�o
de voc�s. Uma coisa, por�m, eu digo logo: o ponto fundamental de toda
a quest�o � o problema do testamento e dos bens deixados por Dom
Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto. Algum dos presentes poderia me dar
as informa��es iniciais a esse respeito?�
� �Eu posso!� � avancei. � �Vou revelar agora, ao senhor, o que
nunca revelei a ningu�m a esse respeito. Fa�o isso porque, de minha
parte, j� tomei minha decis�o, Doutor Pedro. Meu sangue me garante
que o Rapaz-do-Cavalo-Branco � Sin�sio, meu primo e sobrinho, o
Pr�ncipe Alumioso da Bandeira do Divino do Sert�o. Estou do lado dele,
para o que der e vier!�

� �Dou-lhe os meus parab�ns, nobre Conde da Pedra do Reino!�
� disse o Doutor Pedro passando imediatamente a me tratar por meu
t�tulo. � �Dou-lhe os meus parab�ns, porque a decis�o que o senhor
tomou foi nobre e acertada, o senhor n�o se arrepender�! Amanh�
combinaremos o que falta sobre seu bras�o, e o senhor receber� o
pergaminho e carta que lhe reconhecem o t�tulo que acaba de
conquistar neste momento, o de Cavaleiro professo na Ordem do
Templo de S�o Sebasti�o e Conde da Pedra do Reino!�
ESCUDO DE ARMAS DE DOM PEDRO DINIS QUADERNA, 12�
CONDE DA PEDRA DO REINO E 7� REI DO QUINTO IMP�RIO

E DO QUINTO NAIPE DO SETE-ESTRELO DO ESCORPI�O.

� �Registro e agrade�o!� � disse eu, mod�stia � parte com
alguma majestade. � �Agora, vou ent�o comunicar ao senhor tudo o
que sei sobre o testamento e o tesouro!�
* * *
Comecei ent�o a contar ao Doutor Pedro Gouveia tudo o que
sabia a esse respeito. Meu Padrinho fora casado com Dona Maria da
Puriica��o, m�e de Ar�sio, sob o regime de separa��o de bens, e com
minha irm�, Joana Quaderna, sob o de comunh�o. Al�m disso, sabia-se
como certo que ele deixara um testamento legando tudo aquilo de que
podia dispor a Sin�sio. Assim, Ar�sio icaria praticamente reduzido �
mis�ria, caso se achasse o testamento e se provasse que o Rapaz-do-
Cavalo-Branco era, mesmo, Sin�sio. Constava que o testamento estava
em poder do gringo Dom Edmundo Swendson, pai de Clara e Heliana.
Dizia-se que meu Padrinho coniara ao gringo o testamento, que estava
na Fortaleza de S�o Joaquim da Pedra, trancado a sete chaves, e que
teria de ser encontrado e retomado � for�a, uma vez que Dom Edmundo
Swendson, tendo rompido com meu Padrinho, era agora aliado dos
Moraes, e tinha interesse, portanto, em favorecer Ar�sio, prestes a
oicializar seu noivado com Genoveva. O mais importante, por�m, em
tudo, n�o era o testamento: era o tesouro que, se fosse encontrado pelo
pessoal de Sin�sio, daria o poder ao Rapaz-do-Cavalo-Branco com ou
sem testamento, com legitimidade ou ilegitimidade de suas pretens�es
a ilho de meu Padrinho. Desiei, ent�o, como vinha dizendo, tudo isso
perante o Doutor Pedro Gouveia, que, enquanto eu falava, ia anotando
as informa��es mais importantes. A�, terminada essa primeira parte
referente ao testamento, comecei minha narrativa sobre o tesouro.
Disse:
� �Foi entre 1920 e 1930 que ouvi falar com mais exatid�o
sobre esse fabuloso tesouro dos Garcia-Barrettos. Vou contar, primeiro,
a parte que o pessoal considera mais real e de fato, e depois a parte da
legenda que, a meu ver, � mais segura do que a primeira. Ocorre que,
desde 1907 ou 1908, o comportamento de meu Padrinho come�ou a
icar meio estranho. Ele sempre fora um homem trancado, r�spido e
autorit�rio, austero e religioso. De repente, deu para icar meio fan�tico,

atacado de mania religiosa, o que come�ou a perturbar suas rela��es
com a primeira mulher. Passou a frequentar as prociss�es da Vila, n�o
normalmente, como tinham feito seu Pai, seu Av� e ele mesmo, a
princ�pio, mas sim vestido de opa roxa e de balandrau � m�o. Na
Quaresma, deu para cobrir a cabe�a com sacos, polvilhando-se
inteiramente de cinza dos p�s � cabe�a. Entregava-se ent�o a terr�veis
jejuns e penit�ncias. Come�ou, tamb�m, a preparar o t�mulo no qual
pretendia ser sepultado. Escolhera, para isso, n�o o Cemit�rio da nossa
Vila, mas um lajedo enorme que ele mandou escavar e no qual
come�aram a trabalhar todos os canteiros daqui, homens habituados a
lidar com a constru��o das amuralhadas cercas-de-pedra sertanejas.
Depois, comecei a frequentar o Semin�rio. Habituei-me ent�o a
organizar aqui as festas anuais dedicadas ao Divino Esp�rito Santo. Meu
Padrinho consentiu em aparecer nessas festas para ser coroado
Imperador do Divino. Comparecia a elas acompanhado por seu ilho
mais mo�o, Sin�sio, que, muito novo ainda, era coroado Pr�ncipe no
mesmo palanque que o Pai. Seguiam-se Cavalhadas, desiles, Naus
Catarinetas, cortejos, Prociss�es, tudo ao som da M�sica de rabecas,
violas, p�fanos e tambores. Parece que tudo isso ia subindo � cabe�a de
Dom Pedro Sebasti�o sem que n�s suspeit�ssemos de nada. E o tempo
foi passando. Morreu Dona Maria da Puriica��o, veio 1912 com todos
os aperreios e inquieta��es da Guerra de Doze. Em 1921 ou 22, mais ou
menos, Dom Pedro Sebasti�o come�ou a empregar uma fortuna na
compra de terras na Matureia, em Itapetim, Brejinho, Pianc�, Princesa,
Monteiro e Picu�, isto �, em todos os lugares em que constava haver
ouro ou prata, na Para�ba. A�, come�aram a correr aqui as mais
estranhas not�cias. Como o ouro e a prata extra�dos por meu Padrinho
n�o apareciam, come�aram a espalhar, aos cochichos, que as enormes
quantidades encontradas por ele desses metais preciosos estavam
sendo fundidas em barras que eram enterradas numa furna de pedra
que s� meu Padrinho sabia onde se encontrava. Dizia-se que as pessoas
que conduziam as barras eram, depois, assassinadas, para n�o se
revelar o segredo. Por outro lado, como Dom Pedro Sebasti�o
come�asse tamb�m a trabalhar nas minas de top�zio e �gua-marinha de
Picu�, come�ou a correr o boato de que pedras preciosas e diamantes
estavam sendo enterrados com o ouro e a prata. Corria tamb�m a
not�cia de que aquele antepassado de meu Padrinho, aquele velho Dom

Sebasti�o Garcia-Barretto que morrera lechado pelos Tapuias, viera ao
Sert�o, pela primeira vez, para enterrar um tesouro, o Tesouro do
Reino, caixas e caixas de madeira atulhadas de ducados e dobr�es de
ouro e de prata. Falava-se ainda numa vers�o estranha: esse mesmo
velho antepassado nosso, o segundo Dom Sebasti�o, achara a
decifra��o do velho enigma das Minas de Prata, que tantos
Conquistadores e sertanistas antigos tinham procurado em v�o. Deixara
a seus descendentes uma caixa contendo velhos pergaminhos, mapas e
roteiros. Essa caixa, deixada ao abandono durante muito tempo, fora
encontrada por Dom Pedro Sebasti�o, e era este o motivo de ter sido ele
o Garcia-Barretto destinado a tocar na fabulosa fortuna. Dizia-se que o
motivo principal de todos aqueles que tinham procurado as fabulosas
Minas de Prata de Rob�rio Dias terem errado o roteiro fora o fato de
que eles interpretavam mal certos top�nimos fundamentais, o que os
levara a pensar que a prata, o ouro e os diamantes estavam na Bahia.
Dom Sebasti�o Garcia-Barretto decifrara certas inscri��es e legendas
tapuio-fen�cias e chegara � conclus�o de que o tesouro se encontrava
era na Para�ba. Por exemplo: certos velhos documentos, conhecidos de
todos, falavam em Itabaiana e no Serrote da Prata. O pessoal pensava
que a refer�ncia era feita a Itabaiana de Sergipe. Ora, todo mundo sabe
que existe uma Itabaiana na Para�ba, e que, no nosso munic�pio de
Monteiro, existe um lugar chamado o Serrote Agudo da Prata. Falava-se
ainda em lorins holandeses, resultantes do apresamento e naufr�gio de
uma frota, e em velhas moedas portuguesas e espanholas. E come�aram
a se misturar essas vers�es todas, como sempre acontece nestes casos.
Come�ou a correr um boato de que a furna do tesouro era a mesma do
jazigo de Dom Pedro Sebasti�o, do t�mulo cavado no interior do lajedo
e que formava, segundo as not�cias, uma enorme cova subterr�nea. As
moedas e as pedras preciosas estariam sendo carreadas em segredo, �
noite, em lombos de burros, e trancadas no jazigo de pedra para serem
sepultadas com o dono. Esse seria o motivo, diziam, de Dom Pedro
Sebasti�o manter sempre, em torno de seu futuro t�mulo, uma por��o
de cabras armados. A�, chegou 1926. Aconteceram os combates,
emboscadas, correrias e tiroteios da �Guerra da Coluna�. Durante essa
guerra, meu Padrinho icou muito agitado. Ele tomou parte ativa nela,
de modo que toda aquela agita��o meio febril dele me parecia, um
pouco, resultado da paix�o pol�tica. Mas era que seu car�ter j� se

encaminhava aos poucos da excentricidade para a dem�ncia. Deu para
sair �s vezes da �On�a Malhada� � noite, inesperadamente, s�, passando
dias e dias fora de casa. Ao voltar, n�o falava com ningu�m sobre a
viagem, nem permitia a ningu�m nenhuma refer�ncia sobre ela. De uma
feita, chamou um grupo de homens de sua conian�a, ordenando a eles
e a mim que o acompanh�ssemos. Partimos de madrugada, com meu
Padrinho � frente e armados at� os dentes, como ele recomendara.
Galopamos at� as nove horas da manh�, mais ou menos, indo acampar
inalmente perto de umas pedras que icam mais ou menos a meio
caminho entre Tapero� e Teixeira. Dom Pedro Sebasti�o mandou que
n�s nos escond�ssemos, em grupos de dois ou tr�s, por tr�s das pedras,
lajedos e serrotes que margeiam a estrada. Eu estava aterrorizado,
julgando que se reacendera a �Guerra da Coluna� e que �amos emboscar
alguma tropa inimiga que passaria por ali. Maldisse a minha pouca
sorte que, depois de ter permitido que eu escapasse das empreitadas da
Guerra ia agora me lan�ar noutra, inteiramente inesperada. Pensei em
correr, em desertar, como tinha visto tanta gente fazer em 1912 e 1926.
Mas, se eu tinha medo da guerra, tinha ainda mais de meu Padrinho, de
modo que iz das tripas cora��o e iquei. Esperamos, esperamos e nada.
O suor corria em bicas da minha testa. Ao meio-dia, o Rei do Cariri
permitiu que com�ssemos alguma coisa. E ali icamos at� as seis horas
da noite, quando ele nos ordenou que volt�ssemos para casa, o que
izemos com ele � frente, num mutismo absoluto. E foi a partir da� que
tudo come�ou a se agravar. Deixo de contar tudo com pormenores
porque, para mim, tudo aquilo era de uma tristeza terr�vel. Conto
apenas, porque � mais importante, que l� um dia, ele convocou aquele
grupo de doze Cavaleiros que ele chamava de os Doze Cavaleiros de
Doze...�
� Dom Pedro Dinis Quaderna � interrompeu o Corregedor �,
consta, aqui, que foi o senhor o principal respons�vel pela loucura
religiosa e mon�rquica de seu Padrinho. Dizem, inclusive, que foi o
senhor quem meteu na cabe�a dele essa hist�ria dos Doze Cavaleiros
que tinham tomado parte na tal �Guerra de Doze�, e que formariam,
para ele, uma esp�cie de Guarda de Honra, de Doze Pares de Fran�a.
Pelo que j� sei do senhor, v�-se que � verdade. O senhor conirma isso?
� A parte dos Cavaleiros � verdade, foi ideia minha. Mas o resto,
n�o; eu me limitava a cumprir as ordens que meu Padrinho mesmo me

dava.
E continuei a contar a hist�ria do tesouro ao Doutor Pedro
Gouveia. Falei:
� �Meu Padrinho convocou os Doze Cavaleiros, que se reuniram
na grande sala da frente da �Casa-Forte da On�a Malhada�. Dom Pedro
Sebasti�o estava com Sin�sio ao lado, porque Ar�sio se retirara em sinal
de protesto. Ar�sio detestava as fant�sticas estranhezas do Pai,
pressentindo, com seu orgulho, que elas atra�am desconsidera��o para
toda a fam�lia Garcia-Barretto (desconsidera��o que a maioria dos
pr�prios Doze Cavaleiros mal podia disfar�ar). O homem que, nos bons
tempos da �On�a Malhada� era o encarregado de reunir os cachorros
para as ca�adas, tocou na buzina de chifre. Selaram-se os cavalos e
partimos todos, em demanda, para uma serra que havia no meio das
terras dos Garcia-Barrettos, um lugar ermo e �spero, no qual se subia
aos poucos, levando, por�m, para um Serrote pedregoso de onde o ch�o
ca�a a pique sobre a plan�cie da Espinhara, l� embaixo. Esqueci-me de
dizer que meu Padrinho e Sin�sio estavam todos dois de gib�o. Meu
Padrinho tinha ganho, dado por um Presidente sertanejo que estava
ent�o no governo da Para�ba, um gib�o de honra e boniteza, feito de
duas qualidades de couro � couro castanho de vaqueta e couro
amarelo de veado. Amedalhara-se tamb�m o gib�o com moedas de
prata, e Dom Pedro Sebasti�o mandara fazer um igual para Sin�sio, que
estava, ent�o, com dezesseis anos e, ao contr�rio de Ar�sio,
acompanhava o Pai em tudo. Caminhamos uma por��o de tempo, com
meu Padrinho e Sin�sio � frente. Os cavalos come�aram a subir com
mais diiculdade a encosta que, suave a princ�pio, ia se tornando cada
vez mais �ngreme e pedregosa. Finalmente, depois de horas de
caminhada di�cil, por entre enormes blocos de pedra que pareciam ter
sido despeda�ados dos enormes lajedos de cima por raios ou pelo Sol,
chegamos ao topo da serra, encimado pelo grande serrote. A um sinal
de Dom Pedro Sebasti�o, n�s nos detivemos a uma certa dist�ncia,
dispondo-nos em semic�rculo. Quanto ao Senhor da On�a Malhada,
meteu o cavalo mais para cima, ladeando, com risco de vida, um
despenhadeiro de quase cem metros de pedra a pique. Sempre
acompanhado por Sin�sio, grimpou, montado, a parte inferior do
grande Serrote. Da� se descortinava quase toda a chapada que vai de
Tapero� at� o Pico do Jabre, no Teixeira. Meu Padrinho icou durante

uma boa por��o de tempo montado, olhando a nua e bela paisagem,
embaixo. Depois, puxou da cintura a buzina de chifre que tinha pedido
ao homem dos cachorros, desferindo, nela, um toque �spero, belo,
rouco e castanho como o som deste meu Canto. Sin�sio olhava tudo isso
sem dizer palavra. Quando o som morreu nas quebradas da serra, Dom
Pedro Sebasti�o colocou a m�o direita em concha no ouvido, como se
esperasse ouvir uma resposta, enquanto seus olhos esquadrinhavam o
vasto Tabuleiro que se perdia em sua vista, l� embaixo. Depois de
repetir isso v�rias vezes, pareceu, de repente, que ele obtivera o
resultado que aguardava, pois seu rosto se iluminou. Gritou para n�s
que, embaixo, o olh�vamos espantados mas silenciosos, sem ousar fazer
nenhum coment�rio: � � ele, � ele! Eu n�o disse? E, cravando na terra
deserta e nua, no chapad�o coberto de cactos e pedras que cintilavam
ao sol violento do meio-dia, seus olhos de vision�rio, gritou para l�: �
Deus o salve, meu Senhor, Deus o salve! Quem seria? O terr�vel Senhor de
todas as coisas? O Rei? Nunca se soube! O olhar dele pareceu
acompanhar a passagem de Algu�m que cruzava, a cavalo, a chapada, l�
embaixo. Digo a cavalo porque pela rapidez com que seus olhos
acompanhavam o Cavaleiro invis�vel, n�o podia ser pessoa que
estivesse passando a p�. O fato � que, quando o Cavaleiro j� se perdia no
horizonte, n�s ouvimos Dom Pedro Sebasti�o dizer ainda, como numa
b�n��o ou numa despedida: � Deus o leve e o traga de novo, em paz!
Ent�o, persignou-se e voltamos todos para a �On�a Malhada�. Eu me
lembrava daqueles versos de �lvares de Azevedo que dizem:
�Cavaleiro das armas brilhantes,
onde vais, nos Sert�es chamejantes,
com a Espada Sanguenta na m�o?
Por que brilham teus Olhos ardentes
e esses Gritos nos l�bios frementes
vertem Fogo do teu Cora��o?
Cavaleiro, quem �s? O Remorso?
Do Corcel te debru�as no dorso
e galopas, chapada atrav�s.
Oh! da Estrada acordando as poeiras

n�o escutas luzirem Caveiras
e o Profeta da Pedra a teus p�s?
Onde vais na Caatinga lamante,
Cavaleiro das armas brilhantes,
doido e ardente, qual Morto na tumba?
N�o escutas? Na p�trea Montanha
meu tropel teu Galope acompanha
e um clamor de Vingan�a retumba!
Cavaleiro, quem �s? Que mist�rio?
Quem te for�a, na Morte, no Imp�rio,
pela Tarde assombrada a vagar?
� Sou o Sonho da tua Esperan�a,
tua Febre que nunca descansa,
o Del�rio que te h� de matar!��
� �A essa primeira sa�da, seguiram-se outras, sempre com as
mesmas vestes de Vaqueiro, as mesmas armas, os mesmos toques da
buzina de chifre, as mesmas palavras e a mesma passagem do Cavaleiro
no chapad�o, enquanto n�s, na serra, nada v�amos. Entretanto,
impression�veis como s�o os Sertanejos, apareceram logo algumas
pessoas declarando que realmente n�o viam nada, mas ouviam o galope
do Cavalo, primeiro chegando, cruzando a chapada e perdendo-se
depois, na dist�ncia. Um dia, ousei fazer perguntas a meu Padrinho
sobre sua visagem, sobre a identidade do Cavaleiro e sobre o sentido
que tudo aquilo tinha para ele. Dom Pedro Sebasti�o fechou a cara, mas
disse: � � um Cavaleiro que eu vou encontrar e que vejo na chapada, l�
embaixo. � E quem � ele? � indaguei. � N�o sei! � cortou meu
Padrinho, com o ar obstinado de quem se recusa a passar adiante num
assunto pessoal. Insisti: � Mas ele passa, mesmo, a cavalo, como est�o
dizendo? Alguns dos nossos j� est�o come�ando a ouvir o galope de um
cavalo! � Ah, j� est�o ouvindo! � comentou Dom Pedro Sebasti�o entre
ir�nico e vitorioso. � Pois t�m toda raz�o, porque � mesmo a cavalo que
ele passa! Sim, a cavalo pela chapada, entre os raios do Sol e nuvens de

fogo, coberto de mantos e pedrarias, por entre os bodes e as pedras, que
ele ro�a com suas esporas, tirando fa�scas nelas. No dia em que ele vem,
eu j� acordo com o ouvido ino de quem foi mordido de cobra. Quando ele
vem muito longe, come�o a ouvir os cascos de seu Cavalo, tirando fogo
nas pedras. � ent�o que me visto, pego as armas e convoco os Doze
Cavaleiros com a buzina que antes me servia para a ca�a e agora serve
para tocar a rebate. Corro para a serra com voc�s e � assim que ainda
n�o deixei de atender a nenhum dos chamados dele! � Os chamados
dele? E ele fala com o senhor? � perguntei. � N�o! � respondeu meu
Padrinho. � Para que, se n�s nos entendemos perfeitamente, sem isso?
Basta que eu saiba que ele est� vigilante e que ele saiba, por sua vez, que,
chegado o momento, eu estarei no lugar preciso. � para isso que n�s nos
encontramos, porque nossa hora chegar�! A�, Dom Pedro Sebasti�o
arredou-se e n�o houve insist�ncia minha capaz de faz�-lo continuar.�
* * *
� �Um dia, por�m� � continuei �, �meu Padrinho se vestiu do
mesmo jeito, e, sem convocar os Doze nem Sin�sio, me mandou que o
acompanhasse. Era, para mim, uma honra inaudita. O Bar�o do Guarup�
e o Visconde de Caic�, aqui presentes, j� tinham se insinuado v�rias
vezes para conseguir um convite desses, tendo por�m esbarrado
sempre com a taciturnidade glacial de Dom Pedro Sebasti�o, que
cortava toda vez as insinua��es. Ele mandou que eu conduzisse um
velh�ssimo e pequeno ba� de couro, todo tauxiado, que eu nunca vira.
Montou no seu cavalo, e partimos em dire��o � serra. Desta vez, por�m,
n�o houve nem buzina nem passagem do Cavaleiro. Quando chegamos
l�, meu Padrinho desceu do cavalo e mandou que eu izesse o mesmo.
Ficou durante alguns momentos olhando a plan�cie �spera e quente, l�
embaixo, murmurando, aqui e ali, algumas palavras inaud�veis. Depois,
voltando-se bruscamente para mim, disse: �N�o trouxe Sin�sio para n�o
arrisc�-lo, voc� � quem vai ser o Guarda do Selo dos Tesouros. O
tesouro! Eles falam, falam, mas n�o sabem da missa nem a metade! �
Belchior Moreia, � Rob�rio Dias, � Dom Sebasti�o, � a Bahia... Nada
disso, � a Para�ba, � Tapero�, � a Pedra do Reino e a On�a Malhada, com
a data do Cora��! Vou lhe dizer uma coisa: do jeito que as coisas v�o
com o tesouro, antes a sociedade com o homem dos navios, na

Fortaleza de S�o Joaquim da Pedra! Os navios! Voc� devia v�-los, Dinis!
S�o enormes, bonitos, pintados de amarelo e de vermelho, com
serpentes, drag�es e cabe�as de cavalo e cachorro nas proas. Tem o
�Narciso�, o �Upanema�, o �Pedra Verde�, o �Gar�a Cor-de-Rosa�, mas o
mais bonito de todos � o Estrela da Manh�. As velas s�o brancas, mas
quando eles passam em Penedo, nas Alagoas, desviam-se da coroa de
areia vermelha onde est�o os martins-pescadores lechando peixes, e
onde est� o rio todo cheio de barca�as com velas coloridas � azuis,
vermelhas, amarelas, pretas com listras de ouro etc. Eles carregam
a��car, carv�o, sal de Macau, e sobretudo carregam pedras � o top�zio,
a esmeralda, o sol, a lua; sim, porque existe a pedra chamada olho-degato,
e outra chamada olho-de-tigre, e a pedra-da-lua e a pedra-do-sol, e
tudo isso vai sendo encontrado e sepultado na pedra, com o ouro e a
prata que servir� para os engastes. Voc� vai com Sin�sio ver os navios:
s�o muitos, viajam do Sert�o para o Mar, e depois de deixarem o S�o
Francisco e o Sert�o das Piranhas, bordejam a costa pelo Mar, passando
na Fortaleza de Nazar� do Cabo, em Pernambuco, e vindo at� a de S�o
Joaquim da Pedra. Voc�s v�o l� e n�o se arrepender�o, porque � bonito
e bom de ver!�, disse ele, passando a m�o pelo rosto e pela barba, como
para dissipar um pouco o emaranhado dos sonhos. Depois, com ar mais
razo�vel, disse: �Tome aqui essa chave e abra o ba�!� Eu obedeci, com os
olhos reluzindo e as m�os tremendo de curiosidade. Havia, l�, uma
por��o de velhos pergaminhos, muito estragados pelo tempo, escritos
num Portugu�s bastante antigo. Naquele dia, meu Padrinho me deu
tudo aquilo. O primeiro estava escrito assim:
�Instruc��o q. deo o Padre Antonio Pereyra o da Torre de
Garcia
d�Avila a Jo�o Calhelha do anno da Gra�a de N. S�or. Jesu
Christo
de hum mil seis centos & cincoenta & sinquo annos. = Na Serra
&tc. na mais alta das Pontas della pondose hum homem da
banda
do Sul ahi est� o Haver & a ponta vae inclinada ao Leste &
debaxo

desta Ponta ao Leste bem abaxo qu�do faz grandes
ynvernadas leva
huma Beta & e se esta enorme Beta he de Prata ou de Ouro
Deos o
sabe & quando forem ao Taboleiro em sima, pondose da parte
do
Sul, h�o de achar muytos Crystaes & da banda do Sul para o
Norte
outras Pedras muytas q. me parecem de concidera��o & donde
morreo
Gabriel Soares est� huma Serra por nome Itaiuper� q. he de
Xumbo
mas anuncia o haver do Tesouro & tomem a Ribeyra donde
nasce o
rio chamado em tapuia Ubatuba & corram por ela abaxo &
n�o
ique Grota q. n�o vejam.��
� �Os outros documentos eram todos escritos no mesmo
Portugu�s antigo. Decifrei tudo cuidadosamente, tirando uma c�pia que
� esta que apresento aqui, pela primeira vez. Havia uma carta de Dom
Sebasti�o Garcia-Barretto, na qual ele dizia que, tendo realizado uma
entrada que partira do Pilar, se metera pelo Rio Para�ba e pelo Tapero�
adentro. Dizia que o nosso antepassado, aquele Dom Sebasti�o Barretto
que airmavam ser o Rei Dom Sebasti�o, viera para o Brasil trazendo o
haver do Reino e dos Mouros. Dizia que Gabriel Soares, e Belchior Dias
Moreia e Afonso de Albuquerque Maranh�o tinham encontrado tra�os
do tesouro e tinham deixado tudo em linguagem cifrada, dando pistas
falsas para que pensassem que aquela fortuna incalcul�vel se
encontrava na Bahia. Mas n�o vou transcrever tudo em Portugu�s
antigo, para n�o diicultar a leitura. Havia o seguinte:
�Assento do Coronel Belchior da Fonseca Saraiva Dias Moreia,
o
Muribeca. = No ano da gra�a de 1675, governando este Estado
do

Brasil o Ilustr�ssimo Senhor Dom Roque da Costa Barretto,
mandou
El-Rei Nosso Senhor a Dom Rodrigo de Castelo Branco que
izesse
averiguar as Minas de Itabaiana a Itaperu�, pelas not�cias e
tradi��es
de Belchior Dias Moreia. E foi o dito Dom Rodrigo ao Serrote
Agudo, mas terminou se retirando, ambicioso das not�cias que
ent�o
corriam das esmeraldas, do ouro e da prata, e o mataram,
deixando
ele o Tenente-General seu Cunhado para ir examinar as Minas.
No ano de 1675, fui eu, com Jorge Soares, uma das pessoas que
Sua
Alteza mandou a ver se eram de minas as Serras. Achamos um
�ndio
Cariri, velho de cem anos, que nos levou pelo campo frio, ao
norte
do Salitre, cortando muitas l�guas de mato e Caatinga, sem
�gua
nem gravat� que a tivesse. Mas, com ra�zes de umbu e
mandacaru,
remediou-se a pen�ria da gente que abriu o caminho. O velho
mostrou
o caminho e o lugar onde Belchior Dias, meu bisav�, achou o
que buscava. O �ndio disse que outro homem de sua na��o fora
quem levara ali a meu bisav�, dando-lhe umas Pedras que
muito o
tinham alegrado. Achamos sinais cert�ssimos de haver estado
gente
branca ali: foram o dito Belchior Dias e seu sobrinho Francisco
Dias
D�vila, o primeiro, no ano de 1628, e o segundo, depois. Mas
n�o
descobriram a Mina, porque n�o conheciam o que n�s agora
conhecemos, porque Belchior Dias lhes ordenara n�o mostrar
nunca

a branco nenhum aquele lugar, porque os Flamengos
terminariam
sabendo e viriam tomar a sua terra. Por isso, ele nunca quisera
falar
nem mostrar o caminho. Se descobrirem essa incalcul�vel
riqueza
que a terra do Brasil tem sonegado h� tantos anos dos olhos
dos
cegos, Sua Majestade por� um freio ao Turco e sopear� os
potentados
da Europa. Mas por n�o haver quem reconhe�a os sinais e as
duas
Pedras, que est�o inc�gnitas, Deus as descobrir� quando for
servido.
H� o papel que o Padre Ant�nio Pereira, da Torre, deu a Jo�o, o
Calhelha, e a seus irm�os, mas n�o deram em nada porque as
serras
s�o muitas, di�ceis os sinais das Pedras e eles ignorantes de
minas,
roteiros e metais.��
� �Havia outro documento, important�ssimo, que dizia assim:
�A Sua Excel�ncia o Mui Alto Senhor Conde de Sabugosa, Vice-
Rei
do Estado no Brasil = Da parte do Coronel Pedro Barbosa Leal.
=
Muito alto Senhor: Nos primeiros anos da povoa��o, entrou
pelo Rio
Itapero� o Tenente-Coronel Sebasti�o Garcia-Barretto, ao
qual, vindo
naquela dilig�ncia, lhe trouxe o gentio do Sert�o uma pedra
cravada
de ouro. O ilho dele fez seu caminho at� a ponta da Serra,
onde

fez uma Casa-Forte. O Alferes Jo�o Martins Torres, com quem
falei
depois no Sert�o do Tapero�, homem velho e de bom cr�dito,
me
assegurou que vira a Casa-Forte e estivera assentado sobre
uma pe�a
de campanha que ali se achava. Seguiu ent�o, aquele, a sua
rota, e
descobriu o que acusa o Roteiro, que � de Dom Sebasti�o. Foi �
Pedra
Furada, passou a Serra Branca. E como a este tempo se sabia
j� do
Roteiro, resolvi entrar pelo mesmo caminho do Sert�o; mas,
mesmo
fazendo v�rias dilig�ncias, n�o descobri o tesouro. Mas � sem
d�vida
que a Serra � a das Pedras, porque ali esteve o Garcia-Barretto
e cheguei a achar tr�s letras de pedra postas a m�o, a saber,
um P, um D e
um Q, e entrela�adas com estas, um A, um V e um S, de um
lado, e do
outro, um S, um G e um B, tudo a pouca dist�ncia, com uma
Cruz
sobre uma Laje. Segui a rota, atravessando setenta l�guas de
Caatinga
em que perdi vinte e oito cavalos, mas como me faltava o
Roteiro,
n�o pude encontrar. Perto das Serras, nos campos do Cora��,
depois
do S�tio do Curral do Meio, vi e passei pelo Serrote de pedras
ametistas
e me garantiu o Principal daqueles Cariris que, perto daquele
Morro,
achava-se outro, todo de pedras amarelas. A Serra � a que
chamam da
Pedra Furada, porque I quer dizer �gua, ta � pedra, e tudo
signiica

�gua da Pedra Furada. Isto mesmo se acha na Pedra, diz-se ao
Reino,
porque do centro dela sai uma ribeira de �gua por um Canal
de pedra
que entra de serra adentro sem se lhe ver o come�o. Mandei
entrarem
cinco homens com fachos de cera acesos, e entrando eles cerca
de tr�s
ou quatro bra�as, ainda continuava aquele canal de pedra
para o centro
da Serra. Os sinais do Roteiro s�o uma grande �rvore de
Sucupira,
as duas Pedras, o cap�o de canas bravas a que chamam
Tabocas e a
grande �rvore ainda hoje cravada de balas, do tempo da
Conquista.
Falta descobrir a Beta que vem referida no Roteiro, pois o
homem chegou a airmar que o haver do Rei e o ouro e a prata
e as pedras s�o
tantas quanto � muito o ferro em Bilbao. Queira Deus que no
tempo
do governo de Vossa Excel�ncia se logre esta felicidade e que
para dirigir e franquear este assunto, guarde Deus a Vossa
Excel�ncia por muitos anos. Aos vinte e dois de Novembro de
1725. Pedro Barbosa Leal.��
� �Quando terminei de ler isso, meu Padrinho me mostrou uma
por��o de velhas escrituras referentes �s terras dos Garcia-Barrettos na
Para�ba e no Paje� de Pernambuco, todas com refer�ncias ao Cora��, �
Pedra Furada, � Lagoa do Meio, ao Serrote Agudo da Prata etc. Depois
me disse que o problema era o Roteiro, mas que o Roteiro ele tinha.
Mostrou-me ent�o um velho mapa do Nordeste, um daqueles mapas
dos s�culos XVI, XVII ou XVIII, cheio de emblemas, bras�es, bandeiras,
rosas-dos-ventos, serpentes marinhas, peixes com asas, on�as e
caravelas. No pergaminho, abaixo do mapa, havia uma esp�cie de

explica��o cifrada de tudo, escrita pelo pr�prio punho de meu
Padrinho, Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto. Era a seguinte:
�Na encruzilhada das On�as, a 32 passos, o Covo de pedra com
a
Abada de ouro, ao poente do Poderoso. Perto do padr�o de
pedra
que ica mais ao Sul, dentro do Penedo brocado, os dois
tesouros do
grande Poder. Na testa da Casa de Pedra, o boi de ouro sem
armas,
e a 45 passos da�, o Cavalo de prata, rompido do lado direito e
cheio
de moedas velhas. No pino do Sol, o belo Haver mesti�o de
pe�as de
ouro. No caminho da galeria subterr�nea do Castelo de Pedra,
o
balde de cobre cheio de medalhas e diamantes. Na torre da
Casa-
Forte, as palagranas do Rei, cozidas em barro negro, com as
Cust�dias
de ouro e as caixas de diamantes. Embaixo do p�lpito ou
Trono,
o Labrusco de ferro com um n�mero incont�vel de Moedas
latinas.
Sob o Cruzeiro, dentro do ch�o, no rumo da Pedra incrustada,
as 12
Armaduras de ouro e o �dolo de prata dos Reis Mouros de
Castela.
Para o lado das Covas, as alfaias do Bispo Negro com as caixas
de
diamantes da Sacerdotisa vermelha. Aos p�s do ninho do
Gavi�o, a
Cancela e as cain�as de Ouro que vieram de Alc�cer. A 21
passos do

Rochedo Espalmo, no leito das Areias negras, o tabuado de
madeira,
e, debaixo dele, a Cova cheia de moedas de prata com a e�gie
do
Castanho. No meio dos dois Castelos, o haver de prata
guardado
pelo Bezerro: se quereis o haver, n�o toqueis no Bezerro. Perto,
dentro
do Leopardo de prata, est�o as valias do Tem�vel. Ao p� da
On�a
de Pedra da entrada, os diamantes do Antigo. A tr�s passos das
Urtigas
e da lasca dos Peranhos, a entrada para o canal de pedra e
para
as 12 salas de Ouro, lavrada por desconhecidos. No im da
galeria,
na Fonte, o legado do Restaurador, todo de ouro, debaixo do
cascalho,
ao bater do Sol na ponta de pedra, quando chega a hora
s�tima. A oito passos da corrente forte, a est�tua da Moura,
enorme,
de prata e bronze, com um peito de rubi e outro de esmeralda,
e tendo no ventre baixo a caixa de top�zio amarelo e pelos de
ouro:
ao p� da Est�tua, est� o peso dela em diamantes. Ao p� do
Rochedo
de dois bicos, o sangue dos Guerreiros mortos. Na guarda da
Porta
subterr�nea, os 12 homens esculpidos em pedra, com as letras
p�nicas
no alizar do m�rmore. No escoamento, a Espada de copos de
prata
e pegadouro de brilhantes: ouvi o som, � som garcia dos
barros e
barrettos que a� chegaram. Na sobreinca, as riquezas da
Renegada,

embaixo do terceiro arco. Na canga de pedra, as 7.000 dobras
de
ouro: ao pino do meio-dia, bate-lhe o Sol na linha direita do
Serrote
Agudo. Guardai o roteiro e lembrai-vos da sua chave que est�
nas
letras e no mapa: tr�s do lado direito, tr�s do lado esquerdo e a
On�A
do meio, no cora��o do cora��o dos tr�s. Achada a entrada o
resto
ser� f�cil: na primeira Sala da furna de pedra, est� a primeira
Urna de
prata, e dentro dela, a On�a Malhada de ouro. Na segunda,
uma
Cor�a de ouro, guardada por um enorme Gavi�o de ouro, com
as
asas de diamante. Na terceira, a On�a negra de diamante e
carb�nculo, sustida pela On�a castanha de ouro. Guardai bem
tudo
isso, pois os dois picos de pedra guardam o todo do Terr�vel.
Com o
esconjuro do Sinal da cruz e a Sagrada Pedra Cristalina,
Am�m.��
� �Quando meu Padrinho terminou de me mostrar isso, eu
disse que tudo me parecia cheio de sentidos ocultos, mas que me era
imposs�vel decifr�-lo. Ele me disse que ocultara, de prop�sito, a
decifra��o, para que o roteiro e o tesouro n�o ca�ssem em m�os
estranhas. Disse-me que, chegado o momento, me comunicaria a chave
do enigma e tudo me pareceria t�o claro que eu me espantaria de n�o
ter atinado com ela no mesmo instante. � verdade que, de vez em
quando, tudo aquilo me pareciam refer�ncias � Pedra do Reino e aos
dois rochedos g�meos que eram as torres do nosso Castelo. Mas como
meu Padrinho me prometia a revela��o de tudo para depois, conformeime
na hora e voltamos para casa. Passou 1927, passou 1928, passou
1929. Come�ou o terr�vel ano de 1930 e novamente Dom Pedro

Sebasti�o se viu metido nas lutas pol�ticas da Para�ba. Come�ou a
Guerra de Princesa. Um dia, em 1930, procurei meu Padrinho e pedi-lhe
que me fornecesse a chave para a decifra��o do roteiro, porque, com
aquelas lutas, combates e emboscadas em que ele andava metido, podia
morrer a qualquer momento, e Sin�sio icaria sem saber o que
importava. Ele concordou. Mandou que eu trouxesse o roteiro e o mapa
e icou horas e horas olhando. Depois, espantado, olhou para mim e
disse que tinha se esquecido totalmente da decifra��o! Simplesmente:
tinha se esquecido! Aquilo que era claro como �gua, antes, estava
emaranhado e enigm�tico como um labirinto! Disse, por�m, que eu n�o
desanimasse, ele iria se esfor�ar e, assim que se lembrasse, me diria
tudo, para que eu, como Guarda do Tesouro, o izesse chegar �s m�os do
seu ilho mais mo�o, Sin�sio. Assim foi o tempo passando, at� que
chegamos ao fat�dico dia 24 de Agosto de 1930. Nesse dia, pela manh�,
meu Padrinho me comunicou que estava a ponto de decifrar tudo.
Disse-me que subiria para a torre da Casa-Forte e que desceria de l�
com a chave do roteiro pronta, porque encontrara o caminho da
mem�ria e agora iria at� o im. Subiu para a torre, e foi a �ltima vez que
o vi vivo: porque da� a umas duas ou tr�s horas, quando sentimos falta
dele, fomos encontr�-lo degolado, daquela maneira que todos
conhecem. Perto dele, estavam o mapa e essa �ltima parte do roteiro
que acabo de comunicar-lhes. Ningu�m deu import�ncia a tudo aquilo.
Apanhei o papel, guardei-o e � por isso que o tenho aqui, agora!�
Exibi ent�o ao Doutor Pedro Gouveia, a Clemente e a Samuel, o
mapa e o roteiro manchados do sangue do velho Rei do Cariri. Os tr�s
estavam siderados. O Doutor Pedro falou, ainal:
� �E depois disso, ningu�m lhe falou mais do tesouro?�
� �N�o! Agora, o que me impressionou hoje, demais, foram as
visagens de Naz�rio e Pedro Cego, porque tudo indica que a furna da
On�a que eles viram � a mesma do Tesouro. Seja este um tesouro
ib�rico de dobr�es espanh�is e portugueses � como eu acho que pensa
Samuel � ou seja um tesouro fen�cio-tapuia como aquele que foi visto
por Clemente, o fato � que o tesouro existe e eu acredito que a entrada
da furna � na Pedra do Reino. Minha ideia, portanto, � que eu, o senhor,
Clemente, Samuel, Frei Sim�o, os ciganos e, naturalmente, Sin�sio,
organizemos uma expedi��o sob forma de Circo. Iremos � Pedra do
Reino, seguindo, passo a passo, os top�nimos dos documentos deixados

pelo velho Dom Sebasti�o Garcia-Barretto. S�o setenta l�guas de
Caatinga des�rtica. No caminho, eu e o senhor iremos estudando o
mapa e o roteiro, tentando encontrar a chave inal da Charada
enigm�tica que o velho Rei n�o p�de matar, tendo sido, talvez,
assassinado por causa disso. Porque, uma coisa eu lhe digo: o tesouro �
a riqueza mais incalcul�vel que j� ter� sido dada a um mortal!�
� �Poder�amos fazer, com ele, a Revolu��o, a grande revolu��o
brasileira com que vivo sonhando!� � disse Clemente, com olhar
perdido e nost�lgico.
� �O Brasil poderia icar mais importante do que o Imp�rio de
Filipe II, realizando n�s, aqui, o Quinto Imp�rio profetizado por Ant�nio
Vieira!� � disse Samuel com o mesmo ar melanc�lico do outro.
� �Nada disso, meus caros!� � falou de l� o Doutor Pedro
Gouveia, com ar pr�tico. � �Tesouro � tesouro: n�o tem dono, pertence
a quem o achar! Se n�s acharmos o tesouro, ele ser� nosso, isto �, de
voc�s, meu e do Rapaz-do-Cavalo-Branco. Est�o de acordo?�
� �Estamos, sim, � claro!� � ecoamos n�s tr�s, descobrindo,
mais uma vez, como aquele homem era h�bil e precioso.
� �Pois ent�o, icamos de acordo!� � disse ele, como se nos
despedisse. � �Amanh�, voc�s ter�o a entrevista com Sin�sio. Tomar�o
suas decis�es a respeito da Ordem e da viagem e, se Deus quiser, sair�
tudo pelo melhor!�
N�s nos erguemos. Despedimo-nos e sa�mos de novo pelo
port�o dos fundos, onde Lino me aguardava ielmente. Com ele � frente,
tomamos o caminho da Pra�a, onde estavam se desenrolando fatos da
maior import�ncia.

O MAPA DO TESOURO.

Q
FOLHETO LXXXI
A Cantiga da Velha do Badalo
uando n�s chegamos diante do casar�o dos Garcia-Barrettos, a
confus�o estava a maior do mundo, e n�s nos misturamos �
multid�o. A parte da frente da casa estava completamente fechada e o
Povo se mantinha ali � espera, numa atmosfera de tens�o religiosa fora
do comum. Notei logo que o dedo de meus irm�os bastardos andava
por ali, porque na cal�ada, de cada lado do port�o, estava uma igura
esculpida em madeira por aquele que era santeiro e imagin�rio, Matias
Quaderna. A primeira era um torso do Cristo, enorme, brutal, esculpido
num s� tronco de bara�na, com a cabe�a coroada por raios estrelados e
folhagens, e com quatro iguras entalhadas na parte de tr�s, como se
tivessem sido geradas por seu lombo � uma on�a, um touro alado, um
anjo e um gavi�o. A outra era uma Nossa Senhora, tamb�m enorme,
com chap�u de couro, estrelado de doze estrelas, � cabe�a, com os p�s
sobre a Serpente e com as duas m�os apoiadas, uma num cervo, a outra
numa On�a. Pendurados ao muro e perto das gigantescas imagens de
madeira, estavam dois outros objetos que me indicavam a presen�a, ali,
de meu irm�o Ant�nio Papacunha Quaderna, o tocador de p�fano e
pintor de bandeiras de todas as prociss�es de Tapero�. Eram dois
modelos, pintados em papel, para as bandeiras de prociss�es recentes.
O primeiro, representava, no centro, uma �rvore em cujos galhos viamse
umas On�as; embaixo da �rvore, havia um Vaqueiro a cavalo e outro
tangendo um boi. O segundo, era uma representa��o do Cristo
cruciicado. O corpo do Cristo era coberto de ferimentos que reluziam e
que o faziam semelhante a um Leopardo ferido, coberto de malhas
sangrentas: do lado direito, montado a cavalo, estava um Vaqueiro,
ainda sustendo a lan�a que transixara o peito do Cruciicado; do lado
esquerdo da cruz, estava uma Nossa Senhora vestida de cangaceira e
com o peito traspassado por sete punhais compridos; um galho de
mandacaru pendia dos bra�os da cruz, parecendo uma enorme

amplia��o da coroa de espinhos, e uma chuva de pingos de sangue ca�a
do alto, formando, embaixo, um mar de sangue vermelho, preto e
amarelo. Ali�s, meus irm�os Ant�nio, S�lvio e Virgolino � tocadores
respectivamente de rabeca, p�fano e viola � estavam no meio da
multid�o, com outros tocadores seus companheiros e prontos para o
que desse e viesse, como logo depois eu iria veriicar. Por enquanto,
por�m, e dentro de certos limites, o Povo ainda estava sossegado, e
resolvi tomar o sintoma do ambiente para auscultar as opini�es. Assim,
avistando um grupo de mendigos que se mantinha meio afastado e
relativamente em sil�ncio no meio da multid�o exaltada, pedi a Lino
que me levasse at� l�. Esses mendigos n�o moravam na rua, mas sim
em tudo quanto era biboca e p� de serra, s� aparecendo na Vila nos dias
de feira. Usavam, todos eles, uns camis�es sujos e remendados, cajados
e longas barbas prof�ticas e grisalhas, destacando-se entre eles a igura
patriarcal do velho Misael Casc�o, uma esp�cie de chefe e Rei que
sempre julguei ter vindo ao mundo sem ajuda de pai e m�e, brotado das
pedras e da terra parda do Sert�o. Apesar de ter querido passar o mais
despercebido poss�vel, eu era uma igura muito conhecida e muito
ligada a todos aqueles acontecimentos para n�o ser notado. De modo
que, quando me dirigia para l�, fui descoberto, gra�as a Deus por pouca
gente; e minha passagem, agarrado ao bast�o de cego que Lino me
improvisara, causou certa sensa��o:
� �� Seu Pedro Dinis Quaderna! � o Profeta da Pedra do Reino!
Bem que ele tinha profetizado a vinda do nosso Prinspe!� � eram estas
as frases que eu ia ouvindo � medida que me encaminhava para o grupo
de mendigos.
� E � verdade que voc� tinha profetizado tudo aquilo, Dom
Pedro Dinis Quaderna? � perguntou o Corregedor.
� Para falar a verdade, Sr. Corregedor, desde 1930 que eu
esperava e profetizava, todo ano, a volta do meu sobrinho e primo
Sin�sio. Naquele dia, por�m, esquecida de todos os anos em que eu
errara a profecia, aquela gente s� se lembrava da �ltima, a que eu tinha
publicado no Almanaque do Cariri para 1935. De qualquer modo, com
certa diiculdade, consegui chegar junto ao velho Misael Casc�o, no
momento exato em que o Povo come�ou a notar a chegada de Samuel e
Clemente, que tinham vindo comigo e que estavam ainda com roupas
de cerim�nia, de toga e tudo. Os mendigos estavam sentados na

cal�ada, formando um meio c�rculo, no meio do qual, sentada tamb�m
na cal�ada, mas encostada com as costas � parede da casa dos Garcia-
Barrettos, estava a Velha do Badalo, com seu rosto de bronze e pedra,
engelhado e ro�do pelo tempo. Somente ent�o entendi por qual motivo
os mendigos se mantinham como que alheados ao esvozear da Pra�a,
num sil�ncio atento e fascinado. � que a Velha n�o se calava um s�
instante, desde v�rias horas � ao que me disseram � falando e
dizendo coisas estranhas, num murm�rio cont�nuo que s� podia ser
decifrado com grande diiculdade. Qual seria o teor desses murm�rios
eu pude avaliar pelo que se seguiu. Porque, assim que cheguei � roda,
ela de repente come�ou a cantar, com uma voz que parecia sair do
bronze e da pedra do seu corpo e de seu sangue. Cantou uma daquelas
cantigas velhas e sepultadas, que somente ela e Tia Filipa ainda
conheciam, na Vila. A m�sica, a solfa dessa cantiga, nunca mais me saiu
da cabe�a, Sr. Corregedor; porque, assim que ela come�ou a cantar, eu
me lembrei de que Tia Filipa tamb�m cantava aquilo �s vezes, me
botando pra dormir. Era assim:
�Nosso Rei foi se perder
nas terras do Malpassar.
Deitam sortes � Ventura
quem o havia de buscar.
O Cavaleiro escolhido
n�o se cansa de chorar:
vai andando, vai andando,
sem nunca desanimar,
at� que encontrou um Mouro
num Areal, a velar.
� Por Deus te pe�o, bom Mouro,
me digas, sem me enganar,
Cavaleiro de armas brancas
se o viste aqui passar.
� Esse Cavaleiro, amigo,
diz-me tu, que sinal traz.
� Brancas eram suas Armas,
seu cavalo � Tremedal.

Na ponta de sua Lan�a
levava um branco Cendal,
que lhe bordou sua Noiva,
bordado a ponto real.
� Esse Cavaleiro, amigo,
morto est�, neste Pragal,
com as pernas dentro d��gua
e o corpo no Areal.
Sete feridas no peito,
cada uma mais mortal:
por uma, lhe entra o Sol,
por outra, entra o Luar,
pela mais pequena delas
um Gavi�o a voar!
Mas � engano do Mouro,
n�s vamos nos aliar:
o nosso Rei encantou-se
nas terras do Malpassar
e, um dia, no seu Cavalo,
nosso Rei h� de voltar!�
� Quando a Velha do Badalo terminou de cantar esse romance,
meio-cavalariano, meio-prof�tico � inclusive porque j� trazia uma
refer�ncia ao nome do cavalo de Sin�sio �, um homem que estava no
meio do Povo me avistou e gritou de l�:
� �Seu Quaderna, � verdade que esse Rapaz-do-Cavalo-Branco
veio para come�ar a Guerra do Reino? Ele �, mesmo, Dom Sin�sio
Sebasti�o, O Alumioso que apareceu de novo pra fazer a felicidade de
n�s?�
� �N�o sei!� � respondi com a voz soturna que a cegueira
agora me emprestava. � �Como � que eu posso saber isso, se estou
cego? De tarde, eu estava bonzinho dos meus olhos, ali perto da estrada
de Campina, sentado em cima de uma pedra. Estava bonzinho, com os
olhos perfeitos que Deus me deu e que eu sempre tive! De repente,
passou pela estrada a tropa de Cavaleiros e carretas que vinha com o

Rapaz-do-Cavalo-Branco: na mesma hora, dois Gavi�es desceram do Sol
e me cegaram! Estou cego, cego de guia!�
� �Valha-me Deus! Ave Maria! Nossa Senhora!� � gritou a
mesma voz que tinha falado antes. � �J� vi que o Rapaz-do-Cavalo-
Branco � Ele mesmo! Voc�s est�o vendo o que eu dizia? � verdade ou
n�o �? Cad� aquele cego que estava aqui, ainda agora?�
� �Que cego? Pedro Cego?� � indagaram algumas vozes.
� �N�o, o outro que chegou depois e icou por aqui, com a
gente!�
� �Est�o dizendo, por a�, que ele foi curado da cegueira, por
milagre!� � explicou outra voz. � �Depois que atiraram no Rapaz-do-
Cavalo-Branco, dizem que o cego chegou pra perto do Prinspe, tocou na
roupa dele e icou bom da vista!�
� �Pois ele icou bom na mesma hora em que eu ceguei!� �
disse eu, assombrado.
� �Meu Jesus Cristo! Minha Nossa Senhora!� � gritou, de novo,
a mesma voz que falara primeiro. � �Acho que foi por isso que o cego
daqui icou curado! Na certa, tem sempre a mesma conta de cegos, no
mundo: como o daqui foi curado por ter tocado na roupa do Prinspe,
Seu Quaderna icou cego no lugar dele!�
� �Ai, meu Deus!� � gritou uma mulher ainda jovem, sobrinha
da Velha do Badalo e t�o doida quanto ela, caindo redondamente no
ch�o, torcendo-se e escumando pela boca como se tivesse sido mordida
de cachorro-da-molesta.
� �Meu Jesus! Minha Nossa Senhora!� � come�ou a gritar a
multid�o, tocada pela fa�sca, pelo raio de corisco e pedra-lispe que
sempre lhe d� nesses momentos.
� Acresce, Sr. Corregedor, que, como acabo de lhe dizer, por
entre aquela sertanejada toda, tinham aparecido tocadores de viola, de
rabeca, de p�fanos e tambores, todos vindos para a Cavalhada e agora
ajuntados ali como se tivesse havido uma combina��o entre meus
irm�os e eles. Logo quando foi da nossa chegada, segundo nos disse
Samuel, algumas pessoas, junto dele, tinham come�ado �a tocar e cantar
uns hinos b�rbaros, umas m�sicas arrepiadoras, algumas sem letra,
outras cujas palavras enigm�ticas disparatadas parece que viviam no
sangue daquela doida gente sertaneja�. Uma dessas m�sicas eu a
conhecia bem, era O Piado do Cachorro, uma m�sica que se tocava em

rabecas e p�fanos, com tambores acompanhando. De repente, Lino
Pedra-Verde, enervado pela erva-moura e pelo Vinho sagrado da Pedra
do Reino, gritou para o Povo:
� �Minha gente, vamos cantar o nosso sagrado Hino da Santa
Pedra do Reino!� � e ele mesmo, por conta pr�pria, come�ou a entoar a
m�sica, com a voz fanhosa, insistente e �spera dos Cantadores. Al�m de
meus irm�os, havia, na Pra�a, v�rios m�sicos que eram da nossa Ordem
dos Cavaleiros da Pedra do Reino. Esses conheciam perfeitamente o
hino, e logo come�aram a acompanhar o canto de Lino Pedra-Verde com
seus instrumentos.
� Uma informa��o, Dom Pedro Dinis Quaderna! �
interrompeu, de novo, o Corregedor. � O senhor tamb�m cantou?
� N�o senhor! Sempre me abstive, prudentemente, de fazer
essas coisas em p�blico!
� Por qu�?
� Em primeiro lugar, por acanhamento, e depois para n�o ser
mal interpretado pelas autoridades constitu�das! Porque, repito mais
uma vez a Vossa Excel�ncia, minha pol�tica mon�rquica da Pedra do
Reino sempre foi inteiramente pac�ica e inocente! Mas como eu ia
dizendo: os inumer�veis Cavaleiros da Pedra do Reino que estavam por
ali, maltrapilhos mas idalgos, disseminados entre a multid�o da qual
faziam parte, todos eles come�aram a cantar, repetindo v�rias vezes as
duas estrofes do nosso Hino; de modo que, da� a pouco, todo o Povo,
impressionado e magnetizado, cantava tamb�m!
� Anote a senhora a�, Dona Margarida, que o nosso Dom Pedro
Dinis Quaderna confessa que, naquele ano de 1935, os seus adeptos j�
eram inumer�veis, e que, no dia da chegada do Rapaz-do-Cavalo-
Branco, todo o Povo cantava o tal Hino da Pedra do Reino!
Margarida anotou mais aquele fato terrivelmente
comprometedor que eu deixara escapar, nobres Senhores e belas
Damas. Quando ela terminou de anotar, o Corregedor voltou-se de novo
para mim, dizendo:
� Agora, repita bem devagar, para que Dona Margarida tamb�m
anote, as palavras textuais do Hino da Pedra do Reino!
� � f�cil, Sr. Corregedor! � disse eu. � � f�cil, porque ainda
agora, aqui neste momento, j� passados tr�s anos, parece que eu estou

vendo a cara que Lino Pedra-Verde fazia naquela noite, enquanto
cantava!
� Vendo? � espantou-se o Corregedor. � E o senhor n�o estava
cego? Ali�s, quero lhe dizer que notei v�rias contradi��es a esse
respeito em suas palavras, e s� deixei passar todas elas porque queria
que icasse tudo registrado e documentado no inqu�rito! O senhor,
al�m de ter visto v�rias coisas no quarto de Adalberto Coura, avistou as
esculturas e quadros de seus irm�os e o grupo de mendigos na cal�ada,
reunido em torno da Velha do Badalo!
� Sim, � verdade, n�o deixa de ser verdade! � disse eu,
balbuciando. � Mas Vossa Excel�ncia n�o se esque�a de que minha
cegueira logo iria se revelar como uma cegueira toda especial, criada
pela Provid�ncia exclusivamente para favorecer o G�nio da Ra�a
Brasileira em seu cotejo com Homero! Depois, estou apenas usando
uma imagem, como outra que Samuel usa frequentemente: assim como
ele diz que foi assassinado moralmente pela cal�nia, eu estava vendo
tudo naquele momento era com os olhos da alma! Mas continuo: Lino
Pedra-Verde, com o ar mordido que o vinho sagrado tinha dado a ele,
cantou, impressionando terrivelmente a multid�o:
�A On�a, por ser esperta,
j� come�a o seu Caminho.
Fez da sua Furna o ninho
e esturra que est� alerta!
Ser� a Cadeia aberta!
Quanto ao Porco, � muito certo:
fugir� para o Deserto,
e a On�a, com seu bramido,
libertar� O Ferido,
o nosso Prinspe-Encoberto!
A On�a vai esturrando
atr�s do Porco-selvagem:
mat�-lo-� na passagem,
com nosso Prinspe ajudando!
O Rei vai ressuscitando

no Prinspe, sua Crian�a.
E a Espora da remonstran�a,
Pedra do Reino e da Prata,
no sangue desta Escarlata,
no sert�o desta Vingan�a!�

� C
FOLHETO LXXXII
A Demanda do Sangral
omo lhe disse, Sr. Corregedor, depois da quarta ou quinta vez
que Lino e os outros Cavaleiros da Pedra do Reino cantaram
isso, a multid�o, como se um sopro de ins�nia sagrada tivesse
passado por ali, come�ou a repetir as estrofes, dizendo as palavras
trocadas, estropiadas e do jeito que Deus era servido. Era uma coisa t�o
impressionante que eu mesmo comecei a icar arrepiado. Mas Samuel e
Clemente, aqueles homens incr�us e �mpios, mesmo com as novas
disposi��es em que se encontravam por causa da Ordem do Templo de
S�o Sebasti�o, permaneciam frios. Samuel, aproveitando um momento
em que Lino, cansado, parara de cantar um pouco, interrogou-o:
� �Lino, que disparates mais descabelados s�o esses? � terra do
Malpassar, � on�a, � porco, � prinspe, � espora! Que diabo de confus�o �
tudo isso?�
� �E o senhor n�o sabe o que s�o essas coisas n�o?� �
perguntou Lino, espantado de que ainda houvesse, no mundo, gente
capaz de ignorar fatos t�o importantes e claros. � �T�, Doutor Samuel,
eu me admiro � que o senhor, um homem formado, que vive t�o perto
do nosso Dom Pedro Dinis Quaderna, ainda n�o tenha entendido a
hist�ria toda, acontecida desde o come�o, com o nosso Prinspe-do-
Cavalo-Branco! Quaderna � homem mon�rquico, prof�tico e
astrol�gico, e pode muito bem explicar ao senhor que o nosso Donzelo
da pedra sagrada � o mesmo Prinspe da Bandeira do Divino e da Pedra
do Reino do Sert�o. Eu mesmo ouvi Vossas Senhorias falando sobre
isso, e � por isso que me admiro que o senhor agora esteja estranhando
tanta coisa! Nosso Prinspe apareceu na Serra do Rodeador, no tempo do
ronca, no tempo de Dom Jo�o Pamparra e de Dom Pedro Cip�-Pau.
Estava escondido na Casa da Pedra de onde a Santa falava, no
soterranho! O nome do nosso Prinspe varia, ora � Dom Sebasti�o, ora �
S�o Sebasti�o, conforme a necessidade! Ali, na Serra do Rodeador,

mataram o nosso Prinspe e mataram tamb�m o Profeta dele, Silvestre
Jos� dos Santos, o homem dos santos, tamb�m chamado de Mestre
Quiou, O Enviado. Era o Profeta montado em seu alaz�o, e o Prinspe no
cavalo branco! Mas o Prinspe ressuscitou, e apareceu de novo, na Pedra
do Reino do Paje�, sustentado pelos quatro Reis, os bisav�s, aqui, do
nosso Rei e Profeta, Dom Pedro Dinis Quaderna. Tem gente que fala em
tr�s Reis, mas eu sei, de fonte segura, que eram quatro: Dom Jo�o I,
chamado tamb�m Dom Jo�o Ant�nio; Dom Pedro I, ou Dom Pedro
Ant�nio; Dom Jo�o II, ou Dom Jo�o Ferreira-Quaderna, casado com a
Princesa Isabel; e Dom Sebasti�o Barbosa, que era o mesmo Rei Dom
Sebasti�o, escondido e encoberto na pedra, como sempre!�
� �O qu�, Lino?� � interrompi eu, pois esse quarto Rei era
novidade at� para mim mesmo. � �E havia um quarto Rei, chamado
Dom Sebasti�o Barbosa, na Pedra do Reino?�
� �Havia, sim! � coisa segura, porque este ainda chegou a ser
conhecido pelo Major Optato Gueiros, da Pol�cia de Pernambuco! Que
valha a palavra dele, j� que eu sou um ignaro e, comparado com Vossas
Senhorias, n�o passo de um batr�quio contemplando as tr�s estrelas do
Escorpi�o! Mas o certo � que, ignaro ou n�o ignaro, tenho tamb�m
alguns estudos que iz com Jo�o Melch�ades e aqui com meu
companheiro na Arte da Poesia, Dom Pedro Dinis Quaderna, O
Decifrador! Eu li o Lun�rio Perp�tuo e o Chernoviz, assim como o Tar�
Adivinhat�cio, de modo que conhe�o certas coisas bastante misteriosas
e capacit�rias, coisas que d�o pr�o gasto! Por exemplo: eu sei, de fonte
segura, que, na Pedra do Reino, mataram de novo o nosso Prinspe, que
estava no Sacr�rio, trancado, escondido e encoberto pelo
encantamento! O folheto que o nosso Quaderna, aqui, publicou sobre o
assunto explica tudo: dessa vez, foram os Pereiras, a fam�lia de Sinh�
Pereira! N�o sei se Vossas Senhorias conheceram Sinh� Pereira, mas eu
e Quaderna chegamos a conhecer: era um homem de fam�lia ilustre, um
homem forte, valente como uma On�a e brabo que s� uma Caninana! O
nome dele era nome sagrado, porque Dom Sebasti�o Pereira era como
ele se chamava! Foi por isso que, na for�a do nome dele, os Pereiras
conseguiram vencer os quatro Imperadores da Pedra do Reino! E
sabem quem era o pai de Sinh� Pereira? Era o Bar�o do Paje�! O Bar�o
tinha ilhos leg�timos, como Sinh�, e tinha um ilho da puta, ilho dele e
de uma Cigana, o tal do Cigano Pereira! Esse pessoal todo, junto, deu um

fogo na Pedra do Reino! Atiraram no sacril�gio das Torres encantadas,
e, para vencer o sangue, cobriram a terra de sangue � sangue que icou
ali, vermelho, ensopando a poeira e queimado pelo Sol! A�, o nosso
Prinspe morreu de novo. Mas ressuscitou outra vez, agora no Imp�rio
do Belo-Monte de Canudos, em 1897, j� no tempo do reinado do nosso
Dom Pedro III, mais conhecido como Pedro Justino Quaderna, pai aqui
do nosso Dom Pedro IV! � por isso que, no Belo-Monte de Canudos, o
nosso santo Conselheiro dizia: Quem n�o sabe que o digno Pr�ncipe, o
Senhor Dom Pedro III, tem poder legitimamente constitu�do por Deus
para governar o Brasil? O pessoal pensava que ele estava falando era do
ilho de Dom Pedro II, mas como podia ser isso, se Dom Pedro II n�o
tinha ilho? � claro: o Conselheiro estava falando era do nosso Dom
Pedro Justino Quaderna, porque no Reino � sempre assim que as coisas
se passam: � um Rei castanho, no seu alaz�o, servindo de Profeta e
sustan�a para o Prinspe-do-Cavalo-Branco! E o fato � que ali em
Canudos foi aquela guerra desadorada, aquela Troia, tudo quanto foi de
Pol�cia e Ex�rcito de todas as Turquias do mundo, lutando contra o
sagrado Imp�rio do Belo-Monte! Para despistar, eles diziam que a raiva
deles era contra o pessoal guerreiro que apareceu brigando na Guerra.
Mas era mentira! A luta daqueles turcos do Diabo n�o era nem contra o
Conselheiro, nem contra Paje�, nem contra Pedr�o, nem contra o Major
Sariema, nem contra nenhum daqueles Chefes guerreiros de Canudos!
Toda aquela guerra, foi porque o Governo de turcos tem medo e raiva
do nosso Prinspe, do Pr�ncipe do Povo! Sim, porque ele estava l�, como
sempre, trancado no Sacr�rio. O pessoal de fora, cego, s� via Aqueleque-
aparecia, o Descoberto, o nosso Santo Peregrino, Ant�nio
Conselheiro. Mas est� a� o nosso Quaderna, que � bisneto dos
Imperadores da Pedra do Reino e que sabe disso muito melhor do que
eu. O que o Conselheiro fazia era somente cumprir as ordens do
Prinspe, que vivia escondido e encoberto, dentro do Santu�rio, por tr�s
de um v�u bordado com o Sol, a Lua e as Estrelas! A�, pressentindo o
perigo, mandaram para l� um Herodes, o Corta-Cabe�as que tinha sido
Imperador de Roma, o Coronel Moreira C�sar, o mesmo C�sar que tinha
mandado as on�as comerem os Crist�os no circo de Roma e que l�, na
Roma deles, tinha tamb�m mandado matar S�o Sebasti�o. E a� � que se
v�, mesmo, o motivo do medo deles: � que S�o Sebasti�o � o mesmo S�o
Jorge montado no cavalo branco e matando o Drag�o; e � o mesmo Dom

Sebasti�o, que liberta a On�a castanha e manda ela matar o Porco
branco que vem do estrangeiro! E � o mesmo Dom Pedro Sebasti�o, pai
de Dom Sin�sio Sebasti�o e que foi degolado! Todos esses s�o uma
pessoa s�, a On�a da Ressurrei��o! � por isso que, na Pedra do Reino, o
nosso Rei Dom Jo�o Ferreira-Quaderna ensinava que, al�m dos meninos
e das mulheres, era preciso degolar os cachorros, que terminariam
ressuscitados sob o comando da On�a, para acabar com os que
maltratam o Povo! Ent�o o Governo adivinhou que o nosso Prinspe
estava vivo de novo, e mandaram o Coronel C�sar, Imperador de Roma,
para acabar a Guerra do Reino que o Povo sertanejo ia ganhar de vez,
revirando essa merda toda numa tribuzana macha! O certo � que, ganha
aqui, fode-se ali, terminaram matando de novo o nosso Prinspe! Mas a�
chegava o nosso tempo e a vez desse Cariri velho do inferno das pedras!
E apareceu o nosso velho Rei, Dom Pedro Sebasti�o, e l� ele mandava
chamar para morar com ele o nosso Dom Pedro III! E l� Dom Pedro
Justino se casava com Dona Maria Sulp�cia, e l� nascia o nosso Dinis, o
nosso Dom Pedro IV! E era tudo esperando o nascimento do Prinspe,
porque, como Dom Pedro III tinha explicado no Almanaque do Cariri,
Dom Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto era o mesmo Dom Sebasti�o da
Pedra do Reino, era o mesmo que matou o Porco para libertar a On�a,
na �frica! Primeiro, nasceu o primeiro Prinspe, Ar�sio, que era contra o
Povo. Era preciso, ent�o, que o velho Rei emprenhasse outras mulheres,
pra ver se nascia o Desejado! Ele emprenhou Maria Todo-Mundo, e l�
nasceu, ressuscitado, o nosso Silvestre, ou melhor, Mestre Quiou, O
Enviado, Profeta da Serra do Rodeador. A�, Dom Pedro Sebasti�o casou
com Joana, ilha de Dom Pedro III, porque era preciso que o Prinspe
tivesse o sangue do pessoal Quaderna, da Pedra do Reino! Tudo isso foi
sendo explicado aos poucos, no Almanaque! E a�, em 1910, nascia o
nosso Prinspe, vindo do Sol, montado num cavalo de asas e trazido pelo
cometa! Era, ainal, o nosso Dom Sin�sio Sebasti�o, o ilho de S�o
Sebasti�o, o Santo-do-Cavalo-Branco. E l� come�ou, de novo, a
tribuzana da Guerra do Reino! Primeiro, foi em 1912, com a Guerra de
Doze, com o nosso Rei Dom Pedro Sebasti�o montado no cavalo alaz�o
dele, com o Negro Vicente, com Seu Hino, Germano, Severino M�ezinha
e aquela cangaceirada toda! E veio a Guerra do Santo Padre do Juazeiro
em 1913, e a Guerra da Coluna, em 1926, com Lu�s Carlos Prestes e a
Guarda dos Doze que tinha icado da outra guerra! E a�, em 1930, veio a

Guerra de Trinta, a Guerra de Princesa, com o Governo j� de novo
pressentindo o perigo. Sabiam que o Povo ia terminar ganhando a
briga, atr�s do cavalo alaz�o do Rei e do cavalo branco do Prinspe! A�,
para que isso n�o acontecesse, mataram o nosso Rei Dom Pedro
Sebasti�o, que foi degolado pelo Corta-cabe�as da Roma de Canudos,
aquele desgra�ado! No mesmo dia, roubaram o ilho dele, o Rapaz santo
e sem mancha, o Prinspe do Povo. Enterraram o coitado com uma
corrente amarrada no p�, l� longe, perto da Turquia, j� perto da beira
do Mundo e pra l� do inferno-das-quengas, tr�s dias de viagem! A�, no
buraco debaixo da terra, deixaram o Prinspe morrer de fome, pra ver
se, assim, ele icava sepultado de uma vez e nunca mais ressuscitava! E
ele morreu mesmo, coitado, de fome e desespero, sem Pai, sem M�e e
sem ningu�m para punir por ele, sofrendo tudo quanto foi de maltrato,
sem dizer malcria��o nenhuma contra aqueles homens ruins! Mas n�o
adiantou nada, essa maldade: porque, assim que se passou o prazo de
um ano e um dia, o nosso Prinspe ressuscitou e reapareceu, sendo
achado numa estrada por Frei Sim�o. Vinha vestido de uma t�nica
branca, com uma corda prendendo a cintura e com duas lores na m�o,
uma de Pau-d�arco amarelo e outra de Coralina encarnada � o Ouro e o
Sangue! Estava esquecido de tudo, pelos sofrimentos que tinha
passado, mas Frei Sim�o e o Doutor Pedro ensinaram tudo de novo a
ele! Ele montou no Cavalo branco e voltou para o Cariri, para fazer a
felicidade do Povo sertanejo! Como foi que ele apareceu, saindo de novo
de debaixo da terra? Ningu�m sabe! O que se sabe � que ele apareceu e
entrou hoje aqui, porque Dom Sin�sio, O Alumioso, Prinspe da Bandeira
do Divino, � o ilho de S�o Sebasti�o, Rei do Brasil e da Pedra do Reino
do Sert�o!�
Quando Lino Pedra-Verde terminou essa magistral explica��o,
estava com os olhos cheios de l�grimas, um pouco pela emo��o e um
pouco por embriaguez. Julguei que Samuel e Clemente, aqueles dois
homens empedernidos, iriam se abalar e inalmente, abandonando a
vida �mpia que tinham levado at� ent�o, se converter � nossa santa F�
cat�lico-sertaneja! Mas qual! Continuaram na mesma obstina��o, na
mesma quizila de sempre, duvidando de tudo o que � sagrado, e, o que �
pior ainda, tentando explicar a chegada de Sin�sio e dos Cavaleiros que
o acompanhavam como um epis�dio dos movimentos subversivos de

cada um dos dois. Samuel veio logo com as implic�ncias direitistas dele
contra o Sert�o. Disse:
� �Olhe, Lino, tudo isso que voc� est� dizendo � uma confus�o
terr�vel, que s� podia partir, mesmo, da cabe�a de um Cantador
sertanejo instru�do por Quaderna, como voc�! N�o nego que, de certa
forma, at� simpatizo, em bloco, com o que voc� diz, mas � preciso
esclarecer tudo, sen�o o resultado � p�ssimo! Confundir, por exemplo,
um Rei cruzado, cat�lico e cavaleiresco, um Rei fat�dico como foi Dom
Sebasti�o, com essas barbaridades sertanejas da Pedra do Reino e de
Canudos, � coisa que devia ser proibida na Constitui��o! O
Sebastianismo, Lino, foi a coroa e a rosa da Ra�a Latina! Foi fruto do
sangue portugu�s e superior a tudo o que a pr�pria Espanha p�de
conceber nessa linha, porque Dom Sebasti�o foi uma pessoa que existiu
mesmo e se transcendeu em Mito; enquanto na Espanha, o m�ximo que
se conseguiu, no mesmo estilo, foi uma cria��o meramente liter�ria. E
esp�ria, ainda por cima, porque foi sa�da n�o do sonho da Cavalaria,
mas do esc�rnio, do �carnaval fant�stico da Cavalaria�, como disse
Tobias Barretto num de seus poucos acessos de intelig�ncia! E outra
coisa, Lino: n�o confunda S�o Sebasti�o, o santo que foi morto em
Roma, com Dom Sebasti�o, o Rei de Portugal que morreu na �frica, na
Batalha de Alc�cer-Quibir! S�o Sebasti�o foi um, Dom Sebasti�o foi
outro!�
� �N�o sei, Doutor, n�o sei!� � disse Lino, com ar duvidoso e
c�tico, co�ando a cabe�a ante a necessidade em que se via de discordar
de uma pessoa formada como Samuel. � �Mas, como o senhor � pessoa
ilustre, at� pode ser que tenha raz�o! Mas uma coisa eu lhe digo, Doutor
Samuel: ande com cuidado, porque todos esses assuntos s�o muito
misteriosos. N�o pense que o senhor, por ser formado, resolve todos
eles assim, com uma penada s�, n�o! A gente fala, assim de oitiva,
dessas coisas, mas o fato � que o Prinspe Alumioso e a Guerra do Reino
do Sert�o s�o coisas s�rias demais, Doutor! O senhor falou, a�, em S�o
Sebasti�o, n�o foi? Pois me diga uma coisa: o que � que o senhor sabe
sobre a morte dele? N�o quero saber coisa ouvida de oitiva n�o, quero �
coisa garantida, coisa lit�rgica e s�ria, aprendida nos livros! Como foi
que S�o Sebasti�o morreu?�
� �Olhe, Lino� � disse Samuel, hesitante �, �� muito di�cil
dizer somente coisas s�rias, aprendidas nos livros, sobre um assunto

como esse! Para mim, por�m, para mim que acredito no Sonho e na
Legenda, para mim, derradeiro Fidalgo desta p�tria prosaica, a Legenda
e o Real s�o uma coisa s�! Assim, posso lhe dizer que foi o Imperador
quem mandou lechar S�o Sebasti�o.�
� �O Imperador?� � disse Lino, aboticando os olhos. � �Oi, foi
o Imperador? Que Imperador? C�sar?�
� �Bem, tanto faz dizer C�sar como dizer o Imperador.�
� �Ah, tanto faz, �? E ent�o por que � que o senhor vem com
conversa iada pra meu lado, dizendo que tudo o que eu disse est�
errado? Esse Imperador n�o morava em Roma? O nome dele n�o era
Moreira C�sar? Ele n�o era Coronel do Ex�rcito? N�o era amigo do
Marechal Floriano Peixoto? N�o foi ele quem jurou que ia cortar a
cabe�a do Prinspe-do-Cavalo-Branco, em Canudos?�
� �Lino, tenha paci�ncia, mas Canudos foi outra coisa! A morte
de S�o Sebasti�o, ordenada pelo Imperador, foi em Roma e aconteceu
h� muito tempo!�
� �Doutor Samuel, tenha paci�ncia tamb�m, mas por isso n�o!
Por isso n�o, porque a Troia do Conselheiro tamb�m aconteceu h�
muito tempo, e tanto faz Roma como Canudos, tudo aquilo foi uma
Troia s�, est� a� Dom Pedro Dinis Quaderna que o diga! Est� l� tudo
isso, escrito no folheto de Jota Sara! E tem mais: o senhor n�o disse, a�,
que lecharam S�o Sebasti�o?�
� �Flecharam, sim, mas dizem que ele n�o chegou a morrer com
essas lechadas! Foi deixado no mato, como morto, mas sobreviveu e foi
encontrado por umas santas mulheres, que o levaram para Byblus e
ungiram o corpo dele, estancando o sangue das feridas, de modo que
ele sobreviveu e escapou!�
� �Est� vendo?� � disse Lino, vitorioso. � �E o senhor ainda
vem duvidar! Queriam matar S�o Sebasti�o, mas ele escapou e
ressuscitou. E n�o sou eu quem diz isso n�o, � o senhor mesmo, pessoa
formada e ilustre! Ent�o, est� provado: o Coronel Moreira C�sar,
Imperador de Roma, do Marechal Floriano Peixoto e do General
Deodoro da Fonseca, quis matar S�o Sebasti�o, mas ele escapou, e tudo
isso se passou foi em Canudos, aquela Troia! O senhor disse, a�, que ele
foi deixado como morto mas que, de fato, estava vivo. Est� certo, eu at�
compreendo que o senhor fa�a assim: o senhor � homem formado e ica
com vergonha de acreditar em certas coisas. Mas eu, que sou homem

ignaro, tenho direito de n�o ter vergonha de acreditar na verdade. Por
isso lhe digo: quando essas mulheres encontraram S�o Sebasti�o ele
estava era morto mesmo � morto, ungido e consagrado! Agora, o que
acontece � que o Prinspe-do-Cavalo-Branco � um desprop�sito, para
ressuscitar: o Governo facilitou, ele ressuscita! E me diga outra coisa,
Doutor Samuel: depois que S�o Sebasti�o morreu das lechadas e
ressuscitou, icou vivo de vez ou morreu de novo?�
� �Olhe, Lino, o que vou lhe dizer � o que li no Missal: o
Imperador mandou prend�-lo de novo, em Byblus. Arrancaram-no da
m�o das santas mulheres e o mataram a cacetadas. As mulheres, em
pranto, colocaram-no num cadafalso de �bano e ouro, e assim ele foi
enterrado!�
� �N�o sei, Doutor Samuel, n�o sei!� � disse Lino com o mesmo
ar duvidoso. � �Mas se o senhor garante que leu isso no Missal, deve
ser verdade! Esse tal de Seu Missal deve ser pessoa sagrada e lit�rgica.
Mas eu confesso ao senhor que as not�cias que tenho s�o muito outras,
e foram dadas por pessoas t�o ilantr�picas quanto o senhor e Seu
Missal! O senhor tem certeza de que o caix�o onde enterraram o santo
era de ouro? Ouvi falar que era de pedra e que � por isso que S�o
Sebasti�o foi sepultado nas duas torres de pedra da Catedral da Pedra
do Reino, no Sert�o do Paje�! Mas me conte, a�, mais cinco tost�es dessa
hist�ria! Me diga uma coisa: antes dessa morte por lechadas, n�o
houve, com S�o Sebasti�o, umas tribuzanas brabas, uns barulhos
danados de guerra na �frica? N�o foi uma batalha contra os turcos? E
S�o Sebasti�o n�o estava na batalha, montado no cavalo branco de S�o
Jorge?�
� �Lino, pelo amor de Deus, entenda!� � disse Samuel, j�
impaciente. � �A�, agora, nessa batalha, j� era, mesmo, Dom Sebasti�o,
Rei de Portugal! � aquele Rei que queria transferir a sede da monarquia
portuguesa para o Brasil!�
� �Ent�o � ele mesmo, eu estava certo, Doutor! Est� vendo,
Dinis? Est� vendo, Professor Clemente? Foi ele em Canudos e foi ele na
Pedra do Reino, porque aquilo ali, na Pedra do Reino, foi um
desprop�sito, uma monarquia da gota-serena, com guerras, coroas,
confus�es e tudo! Al�m disso, no Sert�o � que est� enterrada a
Monarquia do Brasil! � por isso que eu estava dizendo: tudo isso � uma
coisa s�, � a Monarquia de Dom Sebasti�o, do Brasil, do Sert�o, de

Portugal, da �frica e do Imp�rio da Pedra do Reino! Me diga uma coisa,
Doutor Samuel: eu n�o ouvi o senhor dizer, uma vez, que Dom Sebasti�o
lutou, e pelejou pra vencer, com a mouraria dos Ciganos, na �frica?�
� �Ouviu sim, Lino!�
� �E ele n�o estava montado num cavalo branco?�
� �Estava, porque cederam um cavalo dessa cor a ele.�
� �Oi, cederam? Quem cedeu? Quem era o dono do cavalo?�
� �Era Jorge de Albuquerque Coelho, idalgo dos engenhos,
Senhor e Conde de Pernambuco!�
� �Est� vendo, Doutor Samuel? � o senhor mesmo quem
confessa que o dono do cavalo branco se chamava Jorge e morava num
Engenho, ali para os lados do Paje�, no Sert�o de Pernambuco! O que eu
me admiro � que o senhor, sabendo todas essas coisas, ainda se meta a
duvidar! Ave Maria, s� mesmo quem quer ir para o Inferno! � claro,
Doutor, que quem deu o cavalo branco ao Rei era o mesmo S�o Jorge
que apareceu no Paje�! � o S�o Sebasti�o que apareceu na Pedra do
Reino, que � o mesmo Dom Sebasti�o que apareceu naquela Troia,
naquela �frica que foi o Imp�rio de Canudos!�
� �Bem, por isso n�o, porque h� quem diga que esse
problem�tico cavalo branco de Dom Sebasti�o pertencia, n�o a Jorge de
Albuquerque Coelho, e sim a Dom Ant�nio, Prior do Crato!� � disse
Clemente.
� �O qu�, Doutor Clemente?� � gritou Lino, dando um salto. �
�O senhor disse Dom Ant�nio, foi? E disse que ele era do Crato, foi? Do
Crato, ali no Sert�o do Cear�, perto do Juazeiro do Padre C�cero? Est�
vendo, Doutor Samuel? Um dos Reis da Pedra do Reino chamava-se Jo�o
Ant�nio, e terminou indo para o Crato, no Sert�o do Cear�. E se esse tal
Dom Ant�nio que deu o cavalo a Dom Sebasti�o era Prior do Crato, v�
ver que era ele quem estava na Batalha da �frica � o nosso Rei da
Pedra do Reino, Jo�o Ant�nio, Prior do Crato! E � isso mesmo, porque
todos eles s�o uma pessoa s� � Dom Sebasti�o Barbosa, S�o Sebasti�o,
Dom Ant�nio Galarraz, Dom Jo�o Quaderna, Dom Ant�nio Conselheiro,
Dom Pedro I �, todo esse pessoal santo e guerreiro, as sete pessoas da
Sant�ssima Trindade! Ali, na �frica, o pau cantou, eram os Mouros
contra os Crist�os, e o cavalo branco, e as lan�as da Cavalhada, e o
Cord�o Azul e o Encarnado... A briga foi feia, e n�o admira que o Prinspe
mude de nome, aqui e ali, para despistar a Pol�cia! Cada vez que ele

aparece, adota um nome diferente, de acordo com as necessidades e
perigos da Guerra do Reino! � Dom Sebasti�o, � Dom Pedro, � Dom
Pedro Sebasti�o, � Dom Ant�nio Conselheiro, � Dom Pedro Ant�nio, �
Ant�nio Mariz, � Ant�nio Peri, � Perival, � Persival, � Ant�nio Gala-
Foice, � Ant�nio Galarraz, � Sin�sio Sebasti�o, ilho de Dom Pedro
Sebasti�o, e por a� vai! Quem foi que acabou com o nosso Rei Silvestre
Quiou, no Rodeador, Professor Clemente?�
� �Foi o Governador Lu�s do Rego, que enviou uma Divis�o do
ex�rcito r�gio, comandada pelo Marechal Lu�s Ant�nio Moscoso e que
tinha como Ajudante principal o Major Madureira.�
� �Ouvi falar, ouvi falar! Sei, de fonte segura, que esses homens
malvados que acabaram com o Reino da Pedra do Rodeador foram os
mesmos que botaram Dom Pedro II pra fora, foram o Marechal Floriano
Moscoso e o General Deodoro Madureira! O fato � que o nosso Silvestre
foi passado a io de espada, mas terminou ressuscitando, em Goiana, e
aparecendo depois, de novo, na Pedra do Reino, com o nome de Dom
Sebasti�o Barbosa!�
� �Meu Jesus, que misturada mais danada!� � disse Samuel,
com um suspiro. � �� pior do que as de Quaderna, mestre dele! Que
Dom Sebasti�o Barbosa que nada, Lino! Que voc� fale em Dom
Sebasti�o como presente na Pedra do Reino, ainda v�! Mas que use,
para ele, um sobrenome qualquer a�, como se ele fosse um almocreve
sertanejo, isso � que me d�i, porque � um disparate completo!�
� �Que disparate que nada, Doutor Samuel! O senhor veja que o
Major Optato Gueiros � homem ilustre, Major da Pol�cia e protestante,
homem s�rio, incapaz de mentir! Lutou contra Lampi�o, brigou no
Cear�, perto do Crato do Prior do Crato, de modo que est� muito
escolado nessas Troias todas! Pois o Major jura, pela H�stia e pelo
c�lice, que o nome do Prinspe Encoberto da Pedra do Reino era Dom
Sebasti�o Barbosa! � claro que estou falando do Rei Coberto no sacr�rio
das pedras, porque os Reis que apareciam eram os bisav�s, aqui, do
nosso Dom Pedro Dinis Quaderna! E o senhor n�o se espante n�o,
porque � mesmo assim que essas coisas s�o. � como eu dizia num verso
que escrevi:
�Com o C tamb�m soletro:

Canudos, Cebasti�o,
Cin�sio, �ofrive, Certo,
Cilvestre, Cristo e Cert�o.
Morrem uns a bem dos outros:
e � assim que as coisas s�o!��
� �� por isso� � continuou Lino � �que eu digo que tudo isso �
uma coisa s�: porque, quando o nosso Santo Ant�nio Conselheiro de
Canudos disse que a monarquia da Revolu��o e da Guerra do Reino ia
se dar era no Sert�o, � porque j� sabia que Dom Sin�sio Sebasti�o, O
Alumioso, ilho de Dom Sebasti�o, o Degolado, ia ser Prinspe da Guerra,
aqui no Cariri! O Conselheiro, Doutor, esse era homem sagrado e foi por
isso que teve for�a para levar � frente a tribuzana macha de Canudos!�
� �O que n�o impediu que acabassem com ele e com sua guerra
do Sert�o, Lino!� � disse Clemente, com ar pensativo.
� �N�o sei, Professor Clemente, n�o sei!� � repetiu Lino. � �O
senhor � quem est� dizendo, mas ser� que o Governo acabou, mesmo,
aquela guerra? Ali em Canudos foi uma troia, um desprop�sito! O
senhor conhece os versos que meu colega Jota Sara fez com a hist�ria
de Canudos?�
� �N�o, Lino!�
� �S�o versos muito importantes! Quaderna tem o folheto, que
eu decorei para cantar na feira. Come�a assim:
�O Leitor j� viu contar
a hist�ria do Conselheiro?
Foi um simples Penitente
que assombrou o mundo inteiro:
modesto, honesto e valente,
que fascinou muita gente
neste Sert�o brasileiro!
Sua Arma era uma verga
na esp�cie de bast�o.
Era o tipo de Mois�s

pregando pelo Sert�o:
imitava-o no Sinai
e o Povo o tinha por Pai
e autor da Reden��o!
A Na��o gastou dinheiro
e cinco mil Oiciais!
Nos pelados de Canudos
est�o seus restos mortais!
Os ossos, petriicados:
veio gente dos Estados
que n�o voltou nunca mais!
Reuniu-se aquela gente
pr�o dia da Reden��o,
esperando o Salvador
e o Rei Dom Sebasti�o!
Gente fazia ileira:
foi a Troia Brasileira
nos carrascais do Sert�o!��
� �Est� ouvindo, Samuel?� � gritou logo Clemente, com ar
triunfante. � �Est� ouvindo voc� tamb�m, Quaderna? Est�o vendo a
simpatia com que o Cantador fala do Povo, opondo-o aos Oiciais do
Ex�rcito? E voc�s dois insistindo, um nessa porcaria da Direita, o outro
nessa bosta confusa de Monarquia da Esquerda!�
� �Eu nunca duvidei de que esses Cantadores e Cangaceiros
sertanejos fossem da Esquerda!� � retrucou Samuel. � �Como podia
ser de outra forma, se s�o da Plebe e brotados dessa sociedade b�rbara
de Almocreves que � a de voc�s? O que eu sempre disse foi que, no dia
em que o Povo brasileiro vier a conhecer seus verdadeiros Senhores,
deixar� essas barbaridades e fanatismos e entrar� pelo caminho
cat�lico, cruzado, lamengo-ib�rico e idalgo do Brasil! De modo que
voc�, Clemente, dirija suas cr�ticas a� para o outro lado, porque quem
adota essas misturadas de Povo sertanejo, Troia, Canudos, soldados e
monarquias da Pedra do Reino � Quaderna!�

� �Pois ent�o Quaderna deve estar muito desgostoso, ouvindo
agora, por interm�dio, aqui, de seu disc�pulo, que o Povo sertanejo pode
sofrer alguns desvios ideol�gicos, mas, no fundo, � a favor da Esquerda,
da Esquerda pura, da Esquerda verdadeira, e n�o dessa doidice de
Esquerda com coroas, reinos, tronos, bras�es, bandeiras, cavalos e n�o
sei que mais!� � disse Clemente, voltando-se para mim.
Eu, que n�o estava para acordos, principalmente naquela hora,
t�o importante para n�s, voltei-me para Lino Pedra-Verde e, por entre
os gritos e lamenta��es da multid�o, que continuava com seus brados e
vozerios, chamando pela presen�a do Alumioso, disse:
� �Lino, vamos mostrar, de uma vez para sempre, a verdade a
esses dois teimosos! Repita aqui, para esses dois �mpios que vivem
querendo tapar o Sol com peneira, aqueles dois versos do romance de
Jota Sara que falam desta Rep�blica de traidores do Brasil como se
fosse uma safadeza, e que elogiam o Imp�rio do Impostor Pedro II que,
apesar de usurpador, pelo menos era Rei, usava coroa e icou a favor do
Conselheiro!�
Lino, sem se fazer de rogado, cantou as seguintes estrofes:
�Denunciaram pr�o Rio
ao Governo Imperial.
Dom Pedro II disse:
� Esse homem n�o faz mal!
Mudaram, ent�o, de estilo:
queriam mandar pr�o Asilo,
Manic�mio ou Hospital.
No ano de 93
izeram grandes asneiras:
deram vivas � Rep�blica,
cobraram imposto nas Feiras.
Era insulto ao Conselheiro!
E seu Povo estava ordeiro
para ser posto �s carreiras!

O Conselheiro montou
no seu iel Alaz�o.
Com mulheres e crian�as
foi, caminho do Sert�o!
� tarde, seguiu a Cruz:
dando viva ao Bom Jesus,
e ao rei Dom Sebasti�o!�
� ��!� � falou Clemente, suspirando. � �A gente vai ter uma
certa esperan�a no esp�rito revolucion�rio dessa gente, termina sempre
sendo tra�do! Esse Povo brasileiro � mesmo uma desgra�a! O peste do
Cantador ia at� bem, no come�o: mas j� come�ou a dizer besteira!�
� �Besteira? Besteira uns cus!� � disse Lino, com a exalta��o
que lhe era comunicada pelo Catolicismo-sertanejo, pelas salmodias da
multid�o e pelo Vinho sagrado da Pedra do Reino. � �O que �
importante e eu quero que me digam � o seguinte: o nome � Peri,
Perival ou Persival? Dom Ant�nio Mariz, o homem do livro que
Quaderna me emprestou, � o mesmo Dom Ant�nio, Prior do Crato?
Onde foi a Demanda do Sangral, feita por Dom Ant�nio Galarraz e
Perival? Foi no Crato, perto do Juazeiro de Padre C�cero e terra do Prior
do Crato, ou foi aqui no Cariri, na Espinhara, no Paje� e no Serid�, entre
o mar do Rio Grande do Norte e o sert�o do Rio S�o Francisco?�
� �O qu�, Lino? Que confus�o � essa?� � perguntou Samuel,
espantado.
� �Confus�o? Confus�o, uma porra!� � disse Lino, escumando
pela boca. � �O senhor, Doutor Samuel, conhece o Romance da
Demanda do Sangral, que se canta aqui na Espinhara, no Sert�o da
Para�ba?�
� �N�o!�
� �Pois escute! Escute, que, com essa, o senhor vai amarelar, vai
icar empenado e vendo como tudo isso � uma coisa s�, porque esta,
al�m de ser a hist�ria astrol�gica do Rapaz-do-Cavalo-Branco, � uma
hist�ria da gota-serena, uma hist�ria mordida de cachorro, Dom Pedro
Dinis, a�, que o diga!�
E Lino, aboticando os olhos, come�ou a recitar os seguintes
versos, que j� tinha cantado diversas vezes para mim:

�S�o cento e cinquenta Homens
� procura do Sangral,
rubi vermelho do Sangue
na esmeralda do Grial!
De todos os Cavaleiros
que o puderam avistar,
tem um ruim, que � Dom Galv�o,
sangue negro e luz do Mal.
Este monta um Corcel negro
que tem nome de Punhal
e deseja, como os outros,
apossar-se do Sangral.
Todos viram este C�lice
mas s� um o rever�.
� nosso Prinspe sagrado:
seu nome, quem saber�?
� Sin�sio? � Galarraz?
Sebasti�o? Persival?
Por vinte anos e um dia
na Caatinga ele errar�,
montado em seu Poldro branco
que se chama Tremedal,
de Gib�o, chap�u e esporas
� cabo de ouro em seu punhal!
S�o tr�s vezes sete anos
pelo Sert�o a vagar.
E um dia, junto a uma Pedra
� a Rocha do Escalar� �
Dom Galv�o ataca o Pr�ncipe
e este consegue o matar.
O Prinspe vence e a vit�ria
nunca mais se esquecer�.
Por�m o sangue do morto
nosso Prinspe embeber�.

Desde ent�o, ferve em dois sangues:
Sol do bem e luz do Mal.
Desde ent�o, tem dois Cavalos
e os dois passa a cavalgar:
monta em Tremedal de dia
e, de noite, no Punhal,
monta o branco sob o Sol
e o negro sob o Luar.
Quem, agora, gosta dele?
Que mulher o querer�?
A Dama dos olhos verdes,
a cansada de sonhar!
Ent�o, na Pedra da Sorte,
de tanto assim a escalar,
o sangue vermelho p�de
ao sangue negro limpar.
E, ap�s o dia do Fogo
� Rosa, brasa, Sol-lunar �
junto � Laje da Aspers�o,
entre o Sert�o e o Mar,
clariando a escuridade
o Prinspe viu o Grial,
chama rubra do Sert�o
e chama verde do Mar,
sangue vermelho do C�lice,
ta�a de Jaspe lunar!
Desde ent�o, n�o mais se ouviu
na Demanda se falar,
nem daqueles que viviam
para o Sangral encontrar:
uns dizem que se mataram
pra ir o Sol habitar,
outros, que eles se abrasaram
no Fogo que os foi sagrar.

Quanto ao Prinspe e a Sonhosa,
nada se p�de apurar!
Diz um Cego que se uniram
sob a Pedra a coruscar,
no Reino Estranho que havia
numa Furna, a se ocultar,
entre Frutos capitosos
e a Rom� do divinal.
Por�m jura um Cantador
que um Anjo os veio raptar,
nesse Reino consagrado
do Sert�o � beira-mar,
entre balas, ladainhas,
e espadas a lamejar,
enquanto chamas e Arcanjos,
em torno, vinham cantar,
esvoa�ando e encobrindo
a Sagra��o do casal.
O certo � que se encantaram,
na Terra do Alumiar,
cavalos e Cavaleiros
que buscavam o Sangral,
e o Prinspe ardente do Sol,
e a Dama e gar�a do Mar!�

� O
FOLHETO LXXXIII
O Vinho da Pedra do Reino
utra charada de versos enigm�ticos! � comentou o Corregedor.
� Foi exatamente isso o que o Doutor Samuel disse a
Lino naquela noite, Sr. Corregedor! � expliquei. � Quando
Lino acabou de recitar esse logogrifo em forma de romance, o Fidalgo
pernambucano falou:
� �Ah, meu Deus, essa b�rbara Civiliza��o do couro estraga tudo!
Parece que � a hist�ria ib�rica e nobre da Demanda do Santo Graal, mas
inteiramente deturpada! Os nomes aparecem errados, e l� vem a
Caatinga, e um cavalo chamado Punhal, e um Cavaleiro vestido de gib�o
e chap�u de couro, e l� aparece o Sert�o metido onde nunca esteve, e l�
aparece uma Mulher, de olhos verdes e parecida com uma gar�a,
estragando, com sua presen�a, a ideia de castidade absoluta que se
deve ligar � imagem do Cavaleiro, que deveria ser um misto de
Guerreiro e monge... Que mau gosto desgra�ado! E falta tudo o que, na
hist�ria ib�rica, existe de mais belo! Falta a roupa do jovem Cavaleiro,
do casto Galaaz, roupa que deveria constar de loriga, brafoneiras, elmo,
guarnacha e sobressinais de eix�mete vermelho! N�o aparece nenhum
alf�mbar, nem c�lices esculpidos em esmeraldas verdes e contendo o
sangue precioso do Cristo! N�o aparece, sobretudo, aquela Espada que,
retirada da bainha pelo Cavaleiro maldito, sai toda molhada de sangue,
de um sangue t�o quente e vermelho como se a tivessem sacado h�
pouco do corpo de um homem ferido de morte! De maneira, Lino, que,
na sua cantiga, s� existem duas coisas que se podem considerar
verdadeiramente herdadas da tradi��o ib�rico-brasileira: a presen�a do
Cavaleiro maldito e os cento e cinquenta homens que empreendem a
Demanda!�
� �Bem, Samuel� � interrompi eu. � �De qualquer maneira,
voc� mesmo reconhece que alguma coisa icou! E, se � assim, voc� pode
entender que a viagem que vamos empreender com o Rapaz-do-Cavalo

Branco � uma Demanda novelosa e idalga! Pode nos dar o seu apoio,
ganhando suas armas e seu t�tulo de Bar�o e, ao mesmo tempo, me
ajudar, para que eu tente desencantar o tesouro e assistir aos
acontecimentos, para ter assunto para minha Epopeia!�
� �Quaderna, sua receita liter�ria � t�o ruim, que
absolutamente n�o tenho medo de que voc� passe na minha frente, na
parte l�tero-po�tica! Quanto � outra parte, a her�ldica, estou de acordo:
vou empenhar, com o Condest�vel Pedro Gouveia, minha palavra de
Fidalgo!�
� �Meus parab�ns, Bar�o!� � disse eu, imitando o Doutor
Pedro. � �E voc�, Clemente?�
� �Digo o mesmo que Samuel disse, porque, quanto � parte
liter�ria, n�o tenho medo de nenhum dos dois. Quanto � outra parte,
tamb�m vou! N�o porque tenha resolvido trair minhas ideias, mas
porque � necess�rio n�o dar argumentos � Direita contra o Fil�sofo do
Povo!�
� �Pois �timo para todos n�s!� � falei, contente. � �Quanto a
mim, verei tudo, gravarei tudo na cabe�a e no sangue, e vou escrever
uma Epopeia sobre a viagem do Rapaz-do-Cavalo-Branco!�
� �Isto, Quaderna!� � concordou Lino Pedra-Verde. � �Vamos
meter o p� na estrada e, com a guerra, voc� escreve um romance dos
bons, que � para a gente imprimir e fazer um folheto! Mas n�o escreva
coisa besta, n�o: quero uma hist�ria lit�rgica, epopeica, lun�ria,
astrol�gica, solar, risadeira, de putaria, bandeirosa e cavalariana, tendo
como centro a Demanda Novelosa da Guerra do Reino, que a gente vai
fazer!�
Tanto eu como meus dois Mestres t�nhamos, ainda, alguma coisa
a falar, mas nesse momento o esvozear da multid�o subiu um pouco e
vimos que a porta da casa dos Garcia-Barrettos tinha se aberto, com o
Doutor Pedro Gouveia da C�mara Pereira Monteiro aparecendo no
limiar. De cima do velho batente de pedra, ele dominou a multid�o com
sua presen�a e falou:
� �Meu Povo, meus ilhos! V�o embora, por favor! O nosso
Sin�sio est� cansado e n�o pode mais aparecer a voc�s hoje, de jeito
nenhum! Fiquem descansados em suas casas, porque a nossa causa
ser� vitoriosa! Ainda existem ju�zes em nossa terra, e coniamos em
Deus e no nosso Direito. Mas n�o causem confus�es com as autoridades

n�o, porque isso pode, inclusive, nos prejudicar! Digo isso em bene�cio
do nosso Sin�sio, do Rapaz-do-Cavalo-Branco, desse Esperado, t�o
querido, t�o amado pelo Povo do Sert�o do Cariri!�
O Corregedor me interrompeu, perguntando:
� A seu ver, Dom Pedro Dinis, a que era que o Doutor Pedro
estava se referindo quando falou nessa causa? Ao problema do
testamento e da heran�a, ou � tal Guerra do Reino?
� N�o sei, Sr. Corregedor! � respondi prudentemente. � O que
eu sei � que, quando ele falou nisso e disse que Sin�sio era O Esperado,
eu vi, mais uma vez, que aquele Doutor Pedro era um homem com
quem eu iria aprender muita coisa, num campo em que, at� aquele dia,
eu tinha sido �nico, aqui na Vila. O que era ruim era aquela minha
situa��o de cego, que me impedia de v�-lo e de ver outras coisas t�o
importantes para mim, agora. Queixei-me disso a Lino, que me
retrucou:
� �Por que voc� n�o experimenta o Vinho sagrado da Pedra do
Reino pra ver se melhora da cegueira? O vinho, que j� fez tantos
milagres, pode at� fazer mais esse!�
� �� mesmo, Lino! Como � que n�o me lembrei disso, antes? Eu,
o Rei e Profeta da Pedra do Reino, n�o ter me lembrado, logo, das
virtudes do Vinho cuja receita secreta foi encontrada por minha fam�lia!
N�o � danado? Chega a parecer coisa do C�o!�
� Um momento! � interrompeu o Corregedor. � Preciso saber
uma coisa: esse Vinho, parece t�o importante em sua vida e na hist�ria
toda, que preciso de alguns esclarecimentos sobre ele. Se n�o me
engano, de acordo com Pereira da Costa, trata-se de uma mistura de
jurema e manac�, n�o � isso?
� Existem outros ingredientes, Sr. Corregedor, mas esses outros,
o senhor pode me prender, pode at� mandar me matar, mas eu n�o
revelo quais s�o, de jeito nenhum!
� Por qu�?
� Primeiro, porque � segredo de fam�lia e sustent�culo
principal da nossa Casa Real Sertaneja; e depois porque � ele o segredo
do meu estilo genial, ou r�gio! Minha sorte foi que os outros escritores
que escreveram antes sobre meu assunto � como Euclydes da Cunha,
Ant�nio �ttico de Souza Leite, Jos� de Alencar e o Comendador
Francisco Ben�cio das Chagas � s� descobriram, da receita integral,

uma pequena parte, a da jurema e do manac�! Se algum deles tivesse
descoberto o resto, teria feito e bebido o Vinho, tornando-se assim o
G�nio da Ra�a Brasileira, caso em que eu estaria perdido! Gra�as a
Deus, por�m, s� descobriram aquela parte, e lascaram-se! Eu, com mais
sorte e sendo da Fam�lia, consegui tudo! Meu Pai era raizeiro e guardou
a receita das tradi��es da nossa Casa. Eu herdei os cadernos
astrol�gicos dele, e foi assim que acrescentei, � jurema e ao manac�, o
cumaru, a erva-moura, a raspa de entrecasco de quixabeira, a catuaba e
o resto que n�o posso revelar, porque foi o Vinho completo que
terminou sendo minha salva��o como Poeta e como homem!
� Sua salva��o como homem? Por qu�?
� � que eu, em vida de meu Pai, tinha sido destinado para
Padre, como j� lhe contei. Ora, para isso, eu precisava de mais
intelig�ncia, porque, em menino, minha cabe�a era dura, aterrada que
s� cabe�a de tejo! Ent�o meu Pai, vendo que, de outra maneira, eu
nunca seria aprovado nos exames do Semin�rio, me deu, para beber, um
ch� de cardina. A cardina realmente abriu minha cabe�a, tornando-me
uma das capacidades mais misteriosas que j� passaram pelo Semin�rio!
� Voc� pode me conseguir um ch� desses, para que eu tamb�m
possa progredir em minha carreira de Magistrado? � disse o
Corregedor, sorrindo superiormente para Margarida.
� Bem, poder, posso, mas n�o aconselho o senhor a tomar o ch�
n�o!
� Por qu�?
� Porque a cardina d�, de fato, � pessoa, uma intelig�ncia
danada, mas, ao mesmo tempo, apaga a hom�ncia do sujeito!
� Vote! � disse o Corregedor que, tomado de surpresa, n�o
tinha tido tempo de se lembrar da presen�a de Margarida e saiu-se com
aquela vulgaridade. � E voc� perdeu a sua? � indagou ele, curioso.
� Perdi, sim senhor, foi o come�o da minha trag�dia! No
come�o, isso n�o chegou a ser um problema, porque eu ia ser Padre, e
padre n�o precisa da chamada sustan�a dos pa�ses-baixos! Mas eu fui
expulso do Semin�rio, com as artimanhas de Maria Saira. E agora,
como � que ia ser, eu sem hom�ncia? S� me restava o caminho e a
consola��o da Poesia, que eu aprendera com Jo�o Melch�ades! Resolvi
ser Poeta! Mas logo a�, surgiria outro problema. Jo�o Melch�ades tinha
me explicado que havia seis tipos de Poeta e que os grandes, os grandes

de verdade, eram os que reuniam as seis qualidades. Poeta de ci�ncia,
eu era, sem nenhuma d�vida, por causa da cardina. Mas eu teria que ser,
tamb�m e principalmente, poeta de estro. Isso me era airmado tanto
por Jo�o Melch�ades, como pelo Doutor Amorim Carvalho, Ret�rico do
Impostor Pedro II, que escrevera, na p�gina 49 de seu livro: �A
imagina��o e a inspira��o, tais s�o os dois elementos do g�nio, ou estro
po�tico. O que, sobretudo, se prefere nas produ��es do g�nio � a cria��o
do assunto, � o fogo da imagina��o, � o sopro da inspira��o.� Fui ao
Dicion�rio Pr�tico Ilustrado, e, l�, encontrei que estro era sin�nimo de
�inspira��o, engenho po�tico, fogo da imagina��o, desejo sexual, cio,
cavalga��o e reina�o�! N�o havia mais d�vida: era o Dicion�rio � livro
consagrado, indiscut�vel e oicial � que me garantia que os verdadeiros
Poetas-Reis, os Poetas de reina�o, eram os que possu�am, como uma
coisa s�, o fogo da inspira��o zodiacal, a ci�ncia do engenho po�tico e o
cio da hom�ncia do sangue, no sol astrol�gico dos Planetas! Fiquei
desesperado: porque, agora, al�m de n�o poder mais fazer cavalga��o
em cima de mulher nenhuma, n�o poderia mais reinar no meu Reino e
Castelo sertanejo, fazendo meu romance de cavalga��o, bandeiras,
reina�o e cavalarias! Cheguei a pensar em dar um tiro na cabe�a. Foi
Lino quem me salvou, falando-me pela primeira vez do Vinho que,
escondido de n�s, meu Pai fabricava e vendia secretamente, e cuja
receita deveria estar nos cadernos que ele tinha deixado. Encontrei a
receita, e o Vinho me restituiu minha hom�ncia, fazendo de mim, ao
mesmo tempo, o �nico Poeta completo, genial e r�gio que existe no
Mundo! � que nosso Vinho da Pedra do Reino � a beberagem do Poder,
da Fortuna, do Dom-prof�tico e do Amor!
� Tudo isso?
� Tudo isso e mais alguma coisa, Sr. Corregedor. Porque, por
exemplo: essa fortuna que o Vinho nos d�, n�o � a fortuna sem
imagina��o dos Burgueses ricos; nem o Dom � o simples dom dos
poetas s� de ci�ncia. Tamb�m o Amor que ele d�, n�o � o amor l�rico e
fraco do qual falava Joaquim Nabuco. �, tudo, o Poder do reino e dos
tesouros guerreiros, o engenho po�tico-fogoso e zodiacal do sangue, e o
amor de cavalga��o e reina�o. Meu bisav�, o Rei Dom Jo�o Ferreira-
Quaderna, era atrav�s dessa beberagem que revelava os tesouros e
propiciava a posse das mulheres desejadas, a si e a seus s�ditos!

� E Euclydes da Cunha? E Jos� de Alencar? � perguntou o
Corregedor, como indagando o que � que tinham a ver com aquilo dois
consagrados escritores brasileiros.
N�o me dei por achado e respondi:
� Euclydes da Cunha fala da jurema como sendo a �rvore
predileta dos Sertanejos, por ser o seu haxixe capitoso, que lhes fornece
inestim�vel beberagem que os revigora, feito um iltro m�gico. Quanto a
Jos� de Alencar, � num bosque de juremas que Iracema d� a Martim
umas gotas de estranho e verde licor que era exatamente o vinho verde
de jurema � um dos ingredientes do Vinho total. Pois bem: mesmo
com a receita incomplet�ssima de Jos� de Alencar e Euclydes da Cunha,
s� por beberem essa parte do Vinho, entre Martim e Iracema as
safadezas que grassam s�o as maiores do mundo! Diz Jos� de Alencar
que, depois de beber vinho de jurema, Iracema come�ou a icar feito
uma On�a no cio, desejando abrigar Martim contra todos os perigos e
recolh�-lo em si como num asilo impenetr�vel. Mas, se Iracema era,
mesmo, um asilo impenetr�vel, era para os outros, porque, para
Martim, ela era mais do que penetr�vel, era penetrabil�ssima! Martim �
que parece que era meio afracado, meio arriado dos quartos, como eu
no tempo da cardina. Iracema, j� completamente tarada pelo vinho, v�
que o jeito � dar o licor a Martim tamb�m. Ent�o, Martim bebe o licor
verde de jurema. A coisa melhora e conta l� o nosso idalgu�ssimo
cearense: �Os bra�os de Iracema cingiam a cabe�a do Guerreiro e a
apertavam ao seio. O Crist�o sorri, a Virgem palpita. Como o Sa�
fascinado pela Serpente, ela vai declinando o lascivo talhe, que se
debru�a enim sobre o peito do Guerreiro. J� o estrangeiro a preme ao
seio e o l�bio �vido busca o l�bio que o espera, para celebrar nesse
�dito agreste, reservado aos mist�rios do Rito b�rbaro, o himeneu do
Amor. Martim libou as gotas do verde e amargo licor. Agora, podia viver
com Iracema e colher em seus l�bios o beijo que ali vi�ava entre
sorrisos, como o fruto na corola da lor. Podia am�-la, e sugar desse
amor o mel e o perfume. O gozo era vida, pois o sentia mais forte e
intenso. A juriti que divaga pela Caatinga, ouve o terno arrulho do
macho: bate as asas e voa, a conchegar-se ao t�pido ninho. Assim a
virgem do Sert�o aninhou-se nos bra�os do Guerreiro. Quando veio a
manh�, ainda achou Iracema ali debru�ada, qual borboleta que dormiu
no seio de formoso Cacto.� Est� vendo, Sr. Corregedor?

� Estou vendo, o qu�?
� O que eu quero mostrar � que, por esse trecho, a gente v� que,
tanto Euclydes da Cunha como Jos� de Alencar n�o se limitaram a falar,
somente, do Vinho de jurema: ambos devem t�-lo bebido! Se n�o fosse
assim, eles n�o escreveriam como escreveram � meio b�bados,
escumando pela boca e vendo visagens como esta, umas safadas, como
as de Iracema, outras heroicas, como as de Canudos! A gente v�,
perfeitamente, que � Jos� de Alencar que, sob o disfarce de Martim,
entra no bosque sagrado de Iracema, suga o mel da corola da lor e
depois faz penetrar a Cobra no t�pido ninho-de-juriti dela! E � assim
mesmo que acontece, Sr. Corregedor. Quem toma meu Vinho, mesmo na
receita incompleta dos outros escritores, consegue, na vida, a fortuna, o
poder e o amor, e, na Poesia, aquela mistura de zod�aco e real que � o
g�nio. E tem outra vantagem, mais: os iltros m�gicos comuns
conseguem essas coisas boas para n�s, mas perdem infalivelmente a
nossa alma. O Vinho da Pedra do Reino, n�o: sendo completo, arranja
tudo e ainda por cima salva a alma, permitindo que a gente, ainda vivo e
aqui no mundo, circule dentro do sangue da visagem felina do Divino �
aquela mesma que meus antepassados reais mostravam a seus devotos,
momentos antes de cortarem suas gargantas. Todo escritor, portanto,
que queira escrever sobre o Reino sagrado do Sert�o � �nico assunto
digno do g�nio, como provou Fagundes Varela �, tem que beber desse
Vinho, nem que seja na f�rmula incompleta de Alencar, Euclydes da
Cunha e Ant�nio �ttico de Souza Leite. Quando um n�o bebe e se mete a
escrever, a gente conhece logo: ele n�o escreve escumando, e tudo o que
sai de sua pena � falso, iniel �s pedras, aos espinhos e ao sangue do
Sert�o! Quanto �s qualidades de cio, cavalga��o e reina�o do Vinho,
tamb�m s�o indiscut�veis, porque s�o aian�adas por outro genial
escritor brasileiro, o qual, al�m de Acad�mico, era um grande M�dico,
perfeitamente autorizado, portanto, para fornecer esse tipo de
atestado!
� Quem era?
� Afr�nio Peixoto. Conta ele, num romance que fez, que um
rapaz e uma donzela, que n�o se amavam, tomaram desse vinho juntos,
sem saberem do que se tratava. Na mesma hora, a Urtiga sangrenta,
venenosa, espinhenta e deleitosa do amor envolveu os dois e eles
icaram enredados de paix�o para o resto da vida. Isso me interessa

muito, Sr. Corregedor, porque foi a mesma coisa que sucedeu, depois,
entre Sin�sio e sua jovem Dama, a bela Heliana, a mo�a sonhosa dos
olhos verdes. Sim, porque o nosso Vinho � realmente assim: se o senhor
o beber sozinho, pensando numa mulher, ela se entrega, na visagem, e o
senhor pode goz�-la como quiser. A coisa n�o passa disso e, quando o
senhor acorda, est� livre e desimpedido � a mulher n�o sofreu nada
nem soube de nada tamb�m. Mas se um homem e uma mulher bebem o
Vinho juntos, a� icam eternamente enredados, de um amor terr�vel, um
amor ao mesmo tempo espiritual e sensual, sexual e divino, que passa a
alimentar com o sangue dos dois amantes o sar�al de Urtigas e favelas
do Terr�vel, loridas mas causticantes, as Urtigas espinhentas e
queimosas do Amor. Diz Afr�nio Peixoto que, assim que os dois
beberam o vinho, pareceu ao rapaz que um arbusto de espinhos agudos
e lores odorantes aprofundara as ra�zes no sangue do seu cora��o, e
ele, com os bra�os fortes, se enla�ava ao belo corpo de sua amada, ao
mesmo tempo que o sar�al enleava os dois para sempre, seu corpo, seu
pensamento, seu sangue e seu desejo. Por isso, eu nunca bebi meu
vinho junto com mulher nenhuma, porque n�o quero me enredar
deinitivamente com mulher nenhuma. Mas j� o bebi sozinho v�rias
vezes, botando o sentido da minha hom�ncia nas mo�as aqui da Vila.
Assim, consegui ter minhas visagens amorosas com todas as que
desejei. Principalmente com as louras e pertencentes � nossa
Aristocracia; porque eu, sendo moreno e tendo essa cara enfarruscada
que parece feita de pedra, sou tarado por galegas alouradas!
Ao dizer isso, olhei para Margarida que, sendo loura e da
Aristocracia, aumentou a cara de avers�o que fazia sempre para meu
lado. Mas ela se manteve calada, para n�o me dar liberdade, e eu
continuei, falando para o Corregedor:
� Posso garantir a Vossa Excel�ncia que, na mesma hora em que
a gente bebe o Vinho da Pedra do Reino, entra num bosque, sertanejo,
sagrado e deleitoso, feito de juremas, angicos, bra�nas, urtigas e favelas.
Ali, o licor verde-vermelho pinga de todas as frondes, como gotas de
esmeralda e rubi incendiadas pelo top�zio do Sol. � um bosque cheio de
mel e abelhas cor de ouro, espanejando luz e p�len fecundante. Um
bosque onde esvoa�am concrizes aurinegros e sa�ras que parecem joias.
Um bosque povoado de cascav�is e cobras-corais, assim como de
mulheres de longos cabelos. Em todo canto, h� corolas vermelhas e

odorantes, cactos e urtigas, lianas coleantes e cheias de espinhos,
favelas eri�adas de folhas causticantes e espinhosas, coralinas e
mulungus de lores vermelhas, cana�stulas e paus-d�arco de lores
amarelas. Tudo isso nos impele, rendidos e embriagados, para o seio e o
ninho de mulheres vi�osas, macias e enleantes, mulheres cujo corpo �,
ele mesmo, como um bosque, com as colinas rijas e suaves dos peitos, e
o escuro concriz negro-vermelho pregado de asas abertas na entrada da
fonte, com a casa-das-abelhas e o mel e a corola � mulheres que n�s
possu�mos na sombra verde e umbrosa das �rvores e moitas, salpicados
como estamos pelo orvalho, deitados na areia ina e cheia de cristais,
ouvindo o som da �gua que corre sobre os seixos e vendo em cima, nas
frondes agitadas suavemente pela verde ventania, pomos e pomas que
reluzem, � brasa incendiada e coada entre os ramos da luz do Sol!
* * *
Quando terminei de dizer isso, tanto o Corregedor como
Margarida estavam meio estatelados, respirando forte e com os olhos
aboticados pra minha banda. Infelizmente, por�m, essa era uma das
partes que eu tinha escrito e decorado de antem�o, para, depois, vers�la
e inclu�-la em minha Epopeia. O trecho decorado terminava a�, de
modo que minha eloqu�ncia se esgotou. Os dois sacudiram-se, como
para afastar o quebranto, e o Doutor Joaquim Cabe�a-de-Porco voltou �
sua perigosa impassibilidade habitual:
� Dom Pedro Dinis Quaderna � falou ele, j� de novo com seu
jeito cortante�, me diga ent�o uma coisa: os ataques que o senhor tem,
e que atribui ao mal sagrado dos g�nios, n�o ter�o alguma coisa a ver
com esse vinho n�o?
� Pode ser, Sr. Corregedor! N�o posso lhe responder assim com
seguran�a porque nunca iz investiga��es cient�icas maiores a esse
respeito! � disse eu com o tom mais c�ndido e honesto que pude
arranjar.
� Antes de vir para c�, voc� n�o ter�, por acaso, bebido o vinho?
� Bebi, sim senhor! Tomei umas duas ou tr�s lapadas, para
tomar coragem e melhorar a vista!
� Est� bem, anote tudo isso, Dona Margarida! Agora, continue a
narra��o dos acontecimentos daquela noite, no dia da chegada de

Sin�sio!
� O senhor escolhe um bom momento, do ponto de vista
liter�rio, Doutor! As Postilas de Gram�tica e Ret�rica recomendam,
sempre, um certo encadeamento, nas Epopeias. Ora, est�vamos falando
do Vinho: pois foi exatamente naquela noite que eu, gra�as a Lino
Pedra-Verde, descobri que o Vinho exercia uma forte a��o modiicadora
na minha cegueira, o que foi de grande conforto para mim! Lino estava
com o pichel de couro amarrado na cintura, e me aconselhou a tomar
umas talagadas, o que iz imediatamente, tomando uns dez ou vinte
goles. Imediatamente, meu sangue come�ou a correr melhor, da cabe�a
aos p�s, e uma certa claridade alumiou, um pouco, o campo de visagem
diante de meus olhos. Vi, ent�o, que a noite j� ia alta, mas que o Povo
improvisara tochas e lanternas, que se juntavam � pouca luz da nossa
gloriosa Vila, dando � reuni�o da Pra�a, como disse Samuel, �um
aspecto de reuni�o de catacumbas e de marcha lamejante�. Enquanto
eu bebia, por�m, o Doutor Pedro Gouveia continuava a responder �s
indaga��es ansiosas e ardentes que algumas pessoas do Povo lhe
faziam sobre Sin�sio. Voltei-me na dire��o dele, tentando avist�-lo
melhor, por entre as n�voas incandescidas que ainda emaranhavam
minha vis�o, ou, melhor, �por entre a n�voa que a pupila tr�mula
embaciava�, como dizia aquele genial folheto que � A �ltima Corrida de
Toiros em Salvaterra. Nesse momento exato, algu�m gritou para o
Bacharel Pedro Gouveia:
� �Doutor Pedro, � verdade que o senhor encontrou o Rapazdo-
Cavalo-Branco, nuzinho, andando por uma estrada, sem se lembrar
de ningu�m, sem saber de onde tinha vindo e sem saber at� mesmo
como era o nome dele?�
� �Por que voc� pergunta isso, meu ilho?� � indagou o Doutor
Pedro, que n�o batia prego sem estopa nem andava sem saber onde
estava pisando.
� �Pergunto, Doutor, porque a discuss�o sobre isso, aqui na rua,
est� a maior do mundo! Uns dizem que o rapaz foi encontrado nu, e,
outros, que ele vinha vestido numa esp�cie de camisol�o branco, tendo
na m�o esquerda duas lores � uma amarela e outra encarnada � e
segurando, na m�o direita, uma bandeira! Qual � a hist�ria verdadeira,
Doutor?�

� �Todas duas, meu ilho!� � explicou solenemente o Doutor, e
eu, mais uma vez, vi que tinha muito a aprender com aquele homem. �
�As duas vers�es s�o verdadeiras, n�o criem divis�es entre os nossos!
Eu encontrei Sin�sio perdido, extraviado, nu como Deus o criou,
coitado, e trazendo, como voc� disse, numa m�o as duas lores � a
amarela e a vermelha � e na outra m�o a bandeira do Divino! Sem uma
roupa para dar a ele naquela hora, improvisamos, com um len�ol, a
t�nica branca da qual voc�s ouviram falar! Ele estava, al�m disso, um
pouco perturbado pelos sofrimentos que passou. Mas, com todo
cuidado, n�s tratamos de reeduc�-lo e de lembrar a ele os fatos mais
importantes de sua vida, de modo que ele, hoje, j� est� quase
inteiramente recuperado! Mas amanh� � que tudo isso ser� melhor
esclarecido, para conhecimento de todos! V�o embora, saiam, v�o para
suas casas! Dispersem-se, que, amanh�, eu prometo que o nosso Sin�sio
falar� com todos voc�s e at� os olhos dos cegos se esclarecer�o!� �
concluiu ele.

� E
FOLHETO LXXXIV
O Enviado do Divino
ram j� quase onze horas da noite, Sr. Corregedor, e meus olhos
se clareavam cada vez mais. Pedi novamente a Lino Pedra-Verde
a borracha-de-couro e tomei outra lapada de Vinho, maior ainda
do que a primeira. A terr�vel e milagreira bebedice da Pedra do Reino
come�ou a me subir, de vez, do sangue para a cabe�a. Visagens de
coroas e coriscos dan�avam nos meus olhos, misturadas com tudo o
que eu tinha visto e ouvido desde a manh�. Ent�o, como eu olhasse
casualmente para os lados da Rua Grande, vi que, por ali, vinha
chegando o Frade do burel branco, vestido ainda daquela maneira que
tinha impressionado tanto a sertanejada. Trazia, na m�o, a bandeira do
Divino e vinha a cavalo, regressando da Igreja Nova, onde se mantivera
rezando durante todo aquele tempo, sempre de mosquet�o cruzado nas
costas pela correia � bandoleira. Chegando na entrada da Pra�a, o Frade
apeou-se do cavalo e encaminhou-se para o Palanque, que n�o fora
desarmado. Contornou-o, subiu por uma das escadas laterais e passeou,
de cima, o olhar pela multid�o. O Povo, por�m, de costas para ele e de
olhos ixos no casar�o onde devia estar Sin�sio, n�o tinha percebido sua
chegada nem sua subida ao Palanque. Somente eu o olhava e, para mim,
era vis�vel que o Frade queria se dirigir ao pessoal. Logo ele conirmou
minha impress�o, porque, curvando um pouco o torso herc�leo e
encostando a bandeira do Divino a uma das colunas, apoiou-se com
ambas as m�os na balaustrada. Assim, projetou-se um pouco para a
frente e gritou:
� �Amados ilhos em Nosso Senhor Jesus Cristo!�
O Povo, por�m, sempre fascinado pela casa dos Garcia-Barrettos,
n�o deu a menor aten��o ao apelo. Ali�s, mesmo que quisesse ter dado,
ningu�m poderia t�-lo ouvido, porque, ap�s a interven��o do Doutor
Pedro Gouveia, algu�m tinha tido a magn�ica ideia de puxar uma
ladainha, que, agora, estava sendo rezada por uns e cantada por outros,

mas, de modo geral, gritada por todos. Irritado, o Frade tirou o
mosquet�o das costas, deu um tiro para o ar, e, no sil�ncio que se seguiu
imediatamente ao tiro, gritou com voz trovejante:
� �Sil�ncio, cambada de ilhos da puta! N�o est�o ouvindo o
ministro do Senhor falar n�o?�
Imediatamente, todos se voltaram para o Palanque, e um
sil�ncio tumular reinou na Pra�a. A� o Frade, voltando ao apost�lico tom
anterior, falou assim:
� �Amados ilhos em Nosso Senhor Jesus Cristo! Voc�s est�o
todos reunidos aqui, como que � espera de um grande acontecimento! E
t�m raz�o de proceder assim, porque tudo o que � ligado � F� � grande.
Ora, essa atitude de voc�s vem da F�: logo, tem grandeza e � um grande
acontecimento. Voc�s n�o precisam mais procurar e esperar, porque o
grande acontecimento j� sucedeu. A nossa chegada, o fato miraculoso
de termos escapado � emboscada que pessoas de cora��o mau nos
armaram na Estrada, o milagre de ter falhado o tiro que foi disparado
contra o Rapaz-do-Cavalo-Branco, tudo isso s�o acontecimentos por
demais sagrados para serem explicados sem a interven��o de Deus! Na
emboscada, amados ilhos em Nosso Senhor, v�rios tiros foram
disparados contra mim: miraculosamente, as balas batiam no meu
h�bito branco e, por causa da prote��o do Divino Cora��o de Jesus,
ca�am inofensivamente dentro do cano das minhas botas e nos bolsos
da batina. Olhem!�
E o Frade, tirando dos bolsos as c�psulas que tinha apanhado na
estrada, deixou-as cair, aos punhados, do Palanque embaixo. Vendo que
tinha causado bastante efeito com a revela��o desse fato, continuou:
� �Mas ser� que ainda vem outro acontecimento, maior do que
esses que j� sucederam? Vir�? N�o vir�? S�o perguntas, essas, que
inquietam a todos n�s! Uma coisa, por�m, j� �, por si, um grande sinal,
um grande milagre: � o aparecimento do Rapaz-do-Cavalo-Branco, com
sua Bandeira na m�o, isto exatamente na Vig�lia de Pentecostes! �
preciso, portanto, que todos n�s nos tornemos dignos de tudo o que
aconteceu e de tudo o que est� ainda para vir. Est�o ouvindo? O sino
come�ou a tocar! Fui eu que mandei toc�-lo, porque est� chegando a
meia-noite, e, com ela, os primeiros momentos do dia sagrado de
Pentecostes! Esses toques de sino anunciam, portanto, a todos n�s, que,
por mais escura que seja a noite, dentro de alguns instantes o Sert�o vai

ser alumiado e queimado pelo fogo de Pentecostes! Est� l�, escrito no
Evangelho, o livro santo, que n�o pode errar: �E quando se completavam
os dias de Pentecostes, estavam os Doze todos juntos, num mesmo
lugar, e, de repente, veio do C�u um estrondo, como de uma ventania
que soprasse com grande viol�ncia, enchendo toda a casa onde eles
estavam assentados. Ent�o, apareceram a eles, repartidas, umas
esp�cies de l�nguas ou chamas de Fogo, que repousaram sobre cada um
dos Doze, e todos icaram cheios do Esp�rito Santo.� Entenderam estas
palavras sagradas, amados ilhos em Nosso Senhor? Esta bandeira que
trago aqui, comigo, e que nunca mais abandonei desde o dia em que
assumi minha miss�o junto ao nosso Pr�ncipe, � a Bandeira de
Pentecostes, a bandeira da Coroa, do Sol e das chamas de fogo do Divino
Esp�rito Santo. Ela comemora o dia no qual o fogo de Pentecostes
incendiou para sempre a nossa carne grosseira e o nosso sangue pag�o,
ferrando-nos com o sinete divino, sinal que h� de lembrar, at� o im dos
tempos, que � um simples desterro, um mero ex�lio, esta nossa
passagem pela terra parda deste Sert�o, por esta segre imensa que � o
Mundo! O Pai veio para criar, para castigar e expulsar. O Filho veio para
remir e perdoar. O Esp�rito Santo vem para reinar e iluminar! O Reino
do Pai se encerrou, e j� estamos chegando ao im do Reino do Filho. Vai
come�ar o Reino do Esp�rito Santo, e ai daquele que for encontrado com
mancha de pecado no sangue! Este Sert�o nosso � o Reino sagrado e
misterioso, que foi predito por um dos grandes Profetas da nossa terra,
Frei Ant�nio do Ros�rio, ilho da Capucha de Santo Ant�nio do Brasil, o
qual, vendo nas Aves do Ceo tantos exemplos de vida austera & penitente,
dizia que era passaro solitario, Ave do Monte & Pellicano da soledade! � o
Reino sagrado, cortado pelos rios que secam e se enchem
misteriosamente, rios dos quais dizia aquele mesmo Profeta, Frei
Ant�nio: Rios sagrados, rios mysteriosos, por representardes os quinze
rios do mar do Rosario, Rios da terra que o Ceo amea�ou com os ays do
Apocalipse! Ay, ay, ay, tres vezes ay!� � gritou o Frade. E logo o Povo
todo, Sr. Corregedor, come�ou a chorar e a se lamentar, repetindo com
ele as suas lamenta��es, agora meio salmodiadas: � �Ay, ay, ay! Ay dos
pensamentos, ay das palavras, ay das obras que habitam na terra de que
sou composto! Ay das tres potencias d�alma, tam mal empregadas nos
moradores da terra! Ay do entendimento perdido, ay da vontade cega, ay
da memoria desencaminhada, ay dos habitadores da terra que se n�o

lembram que s�o terra! Quem tem pecado, se arrependa, quem tem
mancha, que me procure! Est�o voc�s dispostos, amados ilhos em
Nosso Senhor, a se alistar debaixo da bandeira do Divino Esp�rito
Santo?�
� �Estamos, Santo Pai, estamos! A gente n�o trai a Bandeira do
Divino, de jeito nenhum!� � foram os gritos que partiram de todos os
lados, por entre os cantos, as pragas, os juramentos e as impreca��es.
� �Seu Frade, me desculpe eu perguntar, mas a gente precisa
saber, pra se garantir!� � gritou, perto de n�s, o Cantador caolho, Lino
Pedra-Verde. � �O senhor � Frei Sim�o, o frade santo da Serra do
Rodeador e da Pedra do Reino? O rapaz que veio com o senhor � o
nosso Prinspe, o Santo-do-Cavalo-Branco, que vem comandar os
Sertanejos para a nossa Guerra do Reino? � verdade que ele veio para
vingar o Pai, provar que � o Filho e, ao mesmo tempo, trazer o fogo do
Esp�rito Santo para acabar com as injusti�as e os sofrimentos do
mundo?�
O Frade, vendo que o momento era bom, pegou a bandeira
vermelha do Divino e aprestou-se para descer do Palanque. J� na
escada, falou, respondendo � pergunta de Lino:
� �Voc�s perguntam se o rapaz � o Pr�ncipe... Quem sou eu para
responder? Pode ser e pode n�o ser! Tudo se esclarecer�, e a Justi�a �
quem dar� a palavra deinitiva e inal! Ser� que esse rapaz � Sin�sio,
ilho do fazendeiro degolado aqui, em 1930? Pode ser e pode n�o ser, e
voc�s mesmos avaliar�o, pelo que acontecer daqui por diante, se ele �
ou n�o � o que voc�s esperam. Uma coisa, por�m, eu digo e garanto a
voc�s, meus ilhos: � que o muito tem vergonha de dar pouco e, se a
justi�a humana falhar, a Justi�a divina absolutamente n�o falhar�!� �
concluiu ele com ar majestoso e come�ando a descer os degraus.
� �� Frei Sim�o, meu Povo, � Frei Sim�o! S� pode ser Frei
Sim�o!�� gritou Lino Pedra-Verde com ar de doido, escumando pela
boca e revirando os olhos. � �Vamos beijar a m�o dele, meu Povo,
porque � m�o sagrada, � m�o que esteve com Silvestre, O Enviado, com
o nosso Conselheiro e com os Imperadores da Pedra do Reino!�
O Povo, tamb�m com ar de doido e tanto mais impressionado
porque entendera muito pouco das palavras do Frade, come�ou a beijar
as m�os e a �mbria do h�bito branco de Frei Sim�o que, mansamente,
os afastava, dizendo com exemplar mod�stia:

� �Que � isso, meus ilhos? Que doidice � essa? Guardem seus
respeitos para Deus e para aquela criatura limpa e santa que veio
conosco, montado em seu cavalo branco! Guardem seus respeitos para
ele, porque eu, eu sou um pecador! Mea culpa, mea culpa, mea maxima
culpa!�
� �� um santo! � um santo! � Frei Sim�o! � o nosso Conselheiro
que voltou, para o desencantamento e a Guerra do Reino do Sert�o!� �
gritava o Povo endoidecido.
� Vossa Excel�ncia, Sr. Corregedor, com seu faro de Decifrador,
j� deve ter pressentido que estou chegando ao im da minha narra��o.
H� de compreender, ent�o, que, depois desse discurso de Frei Sim�o, s�
um milagre pode sustentar, ao mesmo tempo, a situa��o do Rapaz-do-
Cavalo-Branco e um tom genial e r�gio que permane�a � altura de um
Cantar epopeico como este. Pois, gra�as a Deus, foi o que aconteceu.
Posso dizer que tudo come�ou quando eu senti dentro de mim um tro�o
estranho, uma coisa fervendo, que era, ao mesmo tempo, uma vira��o e
uma ilumina��o. O sagrado Vinho da Pedra do Reino tinha subido
completamente � minha cabe�a e eu recuperara, j�, toda a minha vis�o.
Aquelas visagens que, desde h� pouco, dan�avam no meu sangue e nos
meus olhos, come�aram de repente a me arrastar, a me impelir como
um ridimunho. Acho que meu desejo era me dirigir tamb�m ao Povo,
como izera Frei Sim�o, mas foi a� tamb�m que os acontecimentos se
precipitaram, impedindo meu impulso inicial. Quando dei acordo de
mim, meus doze irm�os Cavaleiros estavam bem perto de n�s, seis do
Azul e seis do Encarnado, os dois da frente segurando o meu cavalo
�Pedra-Lispe�. Montei nele, sustentando a Bandeira azul e vermelha,
separada por um tra�o amarelo, bandeira que eu carregava sempre �
frente das Cavalhadas. Meu chap�u de couro j� estava � cabe�a, o manto
foi-me pendurado aos ombros. O que vou contar dagora por diante, Sr.
Corregedor, � baseado no que Clemente, Samuel e Lino Pedra-Verde me
narraram depois: por mim, eu n�o poderia contar nada com exatid�o.
Estava me sentindo realmente possesso, num arrebatamento divinodiab�lico
que eu herdara, certamente, do sangue da Pedra do Reino,
mas que, agora, tinha sido despertado e exacerbado por tudo aquilo.
Mas mesmo as outras pessoas eram mais ou menos confusas e
contradit�rias no relatar do fato milagroso, prestes a suceder da� a
pouco. Por uma sorte que os incr�us atribuir�o ao acaso e que eu

atribuo aos astros e � Provid�ncia Divina, meus irm�os tinham trazido,
tamb�m, a �gua vermelha de Clemente, �Coluna�, e o corcel negro de
Samuel, �Temer�rio�, assim como outro cavalo selado, desocupado, que
nos seria providencial da� a pouco. Mas como eu vinha dizendo:
algumas pessoas que tinham estado na Pra�a, diziam que o milagre
come�ara com os toques de sino. � verdade que Frei Sim�o mandara
tocar os sinos da Igreja Nova, mas agora era o sino da Igreja Velha, a de
S�o Sebasti�o, que icava na Pra�a, pegada � casa dos Garcia-Barrettos,
que come�ava a tocar a rebate, com repiques t�o violentos e
misteriosos que racharam a maioria das vidra�as e ecoaram no Sert�o
inteiro. Outros, discordavam dessa opini�o, dizendo que o som de
bronze s� pegara uma parte do Sert�o, isto �, o nosso velho e sagrado
Reino do Sert�o dos Cariris Velhos da Para�ba do Norte. Todos, por�m,
eram un�nimes quanto ao resto: no mesmo instante em que o sino
come�ava a tocar freneticamente, eletrizando a multid�o, por cima da
velha Casa ancestral dos Garcia-Barrettos o espa�o se fendeu, revelando
algo de muito grande, estranho e cheio de fogo. Por entre chamas,
resplendores e estalos de raio, apareceu no C�u uma gigantesca On�a
Malhada, de pelos cor de ouro, cabe�a negra e malhas vermelhas. Acima
dela, via-se o enorme Gavi�o Real, alando asas e criando, com isso, uma
ventania de fogo, parecida com as ventanias incendi�rias da Caatinga.
Abaixo dela, na primeira linha, estavam duas outras On�as, uma negra e
outra vermelha, e, abaixo destas, sozinha, uma Cor�a parda. A On�a
tinha o corpo ferido e resplandecente de chagas e malhas, e tudo estava
banhado, como na Bandeira desenhada por meu irm�o, por uma chuva
de gotas de sangue, que eram recolhidas embaixo por um enorme
C�lice de ouro em forma de Ta�a. Circundando tudo, via-se aquilo que o
nosso Povo costumava e costuma ver sobre os pa�os dos Reis mais
estimados � l�nguas de fogo, griais, esferas de ouro, cavalos, clarins,
eix�metes vermelhos, ata�des de prata incendiada, catervas de Mouros,
freires e combates de Paladinos nas alturas �, o sangue e as visagens
antecessoras da Pedra do Reino. A vis�o causava em todos, como devia
ter causado, outrora, ao Cavaleiro Pobre referido por Olavo Bilac, uma
sensa��o ao mesmo tempo de terror e plenitude, de gozo sexual
perfeito � com o gosto obsceno da Morte e o gosto sumarento do fruto
da Vida; uma sensa��o que deixou todas as pessoas que a
experimentaram saciadas ali e sedentas para o resto da exist�ncia,

insatisfeitas com o mundo e com a vida porque pressentiam que a vida
e o mundo eram �o vasto Mausol�u calcinado� do Cavaleiro Pobre, por
serem incapazes de oferecer a mesma coisa que todos, agora, estavam
experimentando. E foi ent�o que veio a segunda parte do milagre, a
parte sangrenta, bandeirosa e cavalariana. Porque, enquanto todo
mundo permanecia assombrado, todos olhando uns para os outros na
comunica��o beatiicada e muda do que estavam sentindo no sangue da
alma, a tropa de Cangaceiros, comandada pelo Capit�o Ludugero Cobra-
Preta, desembocou na Pra�a, atirando por cima do Povo e assolando
tudo a patas de cavalo. Levantou-se uma gritaria terr�vel, se bem que
ningu�m tivesse sofrido ferimentos graves naquele primeiro momento.
Parece que o Capit�o Ludugero, homem bravo e generoso, dera ordem a
seus cabras para atirarem por cima das cabe�as, apenas para causar
p�nico e dispersar a multid�o, pois o que ele queria, mesmo, era pegar
o Rapaz-do-Cavalo-Branco, e n�o atirar naquele pessoal inerme. Meus
irm�os e eu est�vamos desarmados de armas de fogo. Ainda assim,
Malaquias e os outros puxaram os punhais de Cavalhada com que
estavam, e postaram-se em torno de mim para me defender. A coisa,
por�m, evidentemente n�o era conosco. Os Cangaceiros procuravam era
afastar a multid�o, para entrar na casa dos Garcia-Barrettos, de onde o
Doutor Pedro se sumira, ningu�m vira como. Aconteceu, por�m, o que o
Capit�o n�o esperara: o Povo, em vez de correr da Pra�a, aluiu e se
concentrou todo diante da casa, formando uma barreira di�cil de ser
transposta. Os Cangaceiros, vendo isso, come�aram a impelir os cavalos
para a multid�o, a im de afugent�-la. Quando a primeira pessoa foi
mais atingida pelo peito de um cavalo e caiu, um homem do Povo
destacou-se do meio dos outros e meteu um facho aceso na cara do
Cangaceiro que a derrubara. Eu conhecia esse homem: chamava-se
Chico Dion�sio, mas era mais conhecido por Chico da Marca��o. Era um
sujeito enorme, vermelho de sol e louro, com os cabelos de estopa e
com a testa muito grande e muito branca, no lugar em que o chap�u de
couro � que ele tirava raramente � protegia a pele contra os raios do
Sol. Chico Dion�sio era uma on�a, de valente: tinha punhos grossos e
m�os enormes, cobertas de pelos amarelos. Quando ele meteu o facho
aceso na cara do Cangaceiro, deu um berro enorme, como se fosse ele, e
n�o o outro, o ferido. Mas muito maior foi o berro do Cangaceiro, que
levou as duas m�os � cara queimada e caiu do cavalo, sendo

imediatamente apunhalado. Ent�o o Capit�o Ludugero puxou o rev�lver
e atirou em Chico Dion�sio. A bala pegou-o em plena testa, ele largou o
facho e tombou morto. A visagem da On�a Malhada desaparecera:
campeavam a viol�ncia e a chacina, e o Gavi�o de Ouro do Divino foi
substitu�do pelo cruel Gavi�o da morte, que pairou um momento sobre
Chico Dion�sio e o Cangaceiro que ele matara, bebendo o sangue de
todos dois. Ouvi a voz do Doutor Pedro Gouveia gritando: �Calma!
Calma, pessoal!� Mas a viol�ncia e o sangue tinham se desencadeado,
era muito di�cil que for�a humana fosse ainda capaz de det�-los. Eu
estava farejando sangue, muito sangue por todo lado. Tiros estalavam,
por entre gritos e os repiques do sino, que n�o tinha parado de tocar.
Outro homem dos nossos, Dinis Vitorino, deu uma foi�ada num
Cangaceiro. A foice ia atingir a cabe�a do homem, mas, antes disso, foi
detida por seu bra�o, que levou um corte terr�vel. Com o outro bra�o,
por�m, o Cangaceiro eniou um longo punhal no ventre de Dinis, que
caiu, estripado, e icou no ch�o, nos estreme�os da morte. A�, Ludugero,
contaminado pela viol�ncia, arrega�ou os dentes e gritou para os seus:
�Atirem pra matar, nesses cachorros!� E ele pr�prio tirou o mosquet�o
das costas, dando o primeiro tiro, para abrir caminho em dire��o � casa.
O pessoal dele come�ou a atirar indiscriminadamente contra a
multid�o, que urrava. Abriam-se claros, v�rios corpos j� estavam
ca�dos, embebendo de sangue a poeira da Pra�a. Ouviam-se gritos,
pragas e impreca��es. Um homem fort�ssimo, chamado Marino Quel�
Pimenta, que fora da Guarda dos Doze de meu Padrinho e que izera
prod�gios na Guerra da Coluna, p�de chegar junto dum Cangaceiro
montado. Pegando-o pelos bra�os, conseguiu pux�-lo da sela.
Derrubou-o no ch�o, agarrou-o pela garganta e estrangulou-o
brutalmente. A�, no meio do tumulto, ouvi algu�m se dirigir a mim, de
bem perto, dizendo: �Quaderna, vamos para o Tabuleiro que ica perto
do Cemit�rio!� Era o Doutor Pedro Gouveia, a p�, ali a dois passos, e
acompanhado por uma pessoa a cavalo em quem tive diiculdade de
reconhecer Frei Sim�o, pois ele tirara o h�bito para n�o ser distinguido.
�E o Rapaz-do-Cavalo-Branco?� � perguntei ao Doutor Pedro,
espantado de que ele abandonasse assim aquele que era o centro e
motivo de todo o barulho. Mas eu estava subestimando o Doutor que,
montando lestamente o cavalo que meus irm�os tinham trazido, disseme
calmamente: �O rapaz est� l�, no Tabuleiro, com o Cigano Praxedes e

Lu�s do Tri�ngulo! Eu, com medo de alguma trai��o como esta, mandei
que ele sa�sse pelos fundos da casa, escondido, e fosse dormir numa
tenda do acampamento!� Vi, ent�o, que o melhor era seguir sua
sugest�o. Disse a Lino que, assim que part�ssemos, ele, aos poucos,
espalhasse entre o Povo a ordem de reuni�o no Tabuleiro do Cemit�rio.
Gritei, ent�o, para meus irm�os: �Vamos, todos, para o acampamento
dos Ciganos! Protejam Clemente e Samuel!� Esta �ltima recomenda��o,
era, ali�s, desnecess�ria, pois meus dois Mestres, lentos em todos os
momentos de a��o, eram rapid�ssimos nas fugas. Estavam j� montados,
abra�ados aos pesco�os dos cavalos, t�o encolhidos, t�o unidos aos
corpos dos animais que montavam que era di�cil dizer ali quem era
gente e quem era cavalo. Come�amos, assim, a sair da Pra�a: nem muito
devagar, para n�o nos arriscarmos muito, nem muito depressa, para
n�o chamar aten��o. Mas os Cangaceiros n�o nos impediram, julgando
que aquele movimento nosso era uma retirada que facilitaria a tomada
da casa. Assim, pudemos sair e tomamos o caminho do alto e pedregoso
Tabuleiro, j� agora com o Doutor Pedro � frente, para n�o sermos
detidos ou feridos pelas sentinelas, dispostas desde a sa�da da rua at� o
alto. Era, portanto, o pr�prio Destino que nos impelia a todos,
obrigando-nos a tomar partido ao lado do Rapaz-do-Cavalo-Branco.
Chegando ao acampamento, fomos acolhidos a tendas especiais que os
Ciganos tinham preparado para os dois Chefes, Frei Sim�o e o Doutor
Pedro. Vi ent�o que todas as disposi��es guerreiras estavam tomadas:
as tropas de Lu�s do Tri�ngulo estavam disseminadas por tr�s de tudo
quanto era pedra e grota que havia no Tabuleiro, prontas para o que
desse e viesse. Mas os Cangaceiros n�o vieram naquela noite. Depois �
que soubemos o que houvera na Pra�a: o Povo, guiado por Lino Pedra-
Verde e vendo que n�s nos encaminh�vamos para o alto Tabuleiro
situado fora da Vila, compreendeu, instintivamente, que para l� � que se
deviam dirigir todos os que fossem partid�rios do Rapaz-do-Cavalo-
Branco. Por isso, afastaram-se da casa dos Garcia-Barrettos, abrindo
passagem aos Cangaceiros que, encontrando aberta a porta que assim
fora deixada pelo Doutor Pedro Gouveia, entraram, varejaram tudo e,
n�o encontrando ningu�m, sa�ram e abandonaram a Vila, conduzindo
seus mortos e feridos. O mesmo fez o Povo que, conduzindo os corpos
dos companheiros estendidos na Pra�a, come�ou a subir o Tabuleiro,
indo se juntar a n�s. Assim passamos a noite: de vez em quando,

chegava um homem do Povo, armado de foice, de espingarda e
querendo alistar-se debaixo da Bandeira do Divino. Da minha tenda, eu
ouvia gritos de desaio, por entre os cantos das excel�ncias rezadas
pelos que tinham morrido. Assim, via que, quisesse ou n�o quisesse, ia,
mais uma vez, me ver envolvido nas lutas da fam�lia do velho Dom
Pedro Sebasti�o Garcia-Barretto. Estavam j� delimitados os dois
campos, com os partid�rios de Ar�sio na rua, e os de Sin�sio no alto
Tabuleiro que dominava a Vila. Ia se travar a luta. Houvera a primeira
fase, cuja crispa��o mais sangrenta fora o assassinato do velho e
austero Rei, morto por degola. Surgia, agora, outra fase, a daquele
enigm�tico Valete de Copas brotado do sangue dele e que abria a nova
rodada do jogo. Encerrava-se a fase do Crime, ia come�ar a da Vingan�a
implac�vel.

A VISAGEM DA ON�A DO DIVINO.

C
FOLHETO LXXXV
A Sagra��o do G�nio Brasileiro Desconhecido
omo Vossas Excel�ncias podem ver pelo tom das minhas palavras
inais, nobres Senhores e belas Damas de peitos macios, eu chegara
ao im do meu depoimento. Falara durante quatro horas seguidas. O
Corregedor notou isso de repente e, vendo que a noite tinha ca�do,
sentiu-se com o direito de icar cansado. Estirou-se, torceu os bra�os,
bocejou, sorriu, pediu desculpas a Margarida e disse:
� Muito bem, a noite j� come�ou! J� est� escuro e � melhor
icarmos por aqui!
� � verdade, Excel�ncia! � concordei. � Al�m do mais, creio
que j� falei o suiciente para demonstrar minha inoc�ncia, de modo que
pe�o ao senhor que me libere de outras sess�es de depoimento,
principalmente tendo em vista o meu estado de sa�de que, como o
senhor viu, n�o � dos melhores.
� O qu�, Dom Pedro Dinis Quaderna? � admirou-se o
Corregedor, com ar falso e num tom de prop�sito exagerado. � �
poss�vel? O senhor quer me deixar, assim, de vez? N�s n�o
concordamos absolutamente com isso, n�o �, Dona Margarida? Logo
agora, que tudo est� icando realmente interessante, � que o senhor
quer nos deixar? Coloque o caso em si, Dom Pedro Dinis Quaderna!
Suponha que voc� fosse o Juiz e eu o depoente e acusado. O senhor
chega aqui na Cadeia e v�-se diante da hist�ria de um homem que foi
degolado perto de mim. Eu sou um dos herdeiros desse homem e servi
de Conselheiro a ele durante a maior parte da sua vida. No mesmo dia
da morte dele, seu ilho mais mo�o desaparece, e depois � encontrado
morto. Desde ent�o, eu passo a profetizar, todo ano, a ressurrei��o e a
volta desse Rapaz, meu primo e sobrinho. Nas v�speras da Revolu��o
comunista de 1935, aparece, aqui na Vila, uma coluna de Ciganos,
cheiada por dois homens estranhos, que v�m trazendo de volta um
rapaz que eles encontraram na estrada, meio esquecido das coisas, e

que, segundo dizem, � o ilho mais mo�o daquele homem, ilho agora
ressuscitado, como eu tinha predito. Algu�m tenta matar o Rapaz. O tiro
falha, e o capanga � assassinado, com outro tiro, partido do lugar em
que eu me encontro no momento. A�, eu volto para a cidade. A luta entre
o Rapaz e o irm�o mais velho come�a, e eu tomo o partido do
ressuscitado: no meio de um tiroteio violento, saio com os Chefes da
coluna para o acampamento de suas tropas, momento que, segundo
minhas pr�prias palavras, �encerra a fase do Crime e inicia a da
Vingan�a�. Me diga uma coisa: o que � que o senhor faria num caso
como esse? Fale francamente, Dom Pedro Dinis Quaderna! Voc�
encerraria o caso, permitindo que eu abandonasse, a�, o depoimento, ou
quereria ouvir o resto?
� N�o sei, Sr. Corregedor! � disse eu, baixando a cabe�a,
intimidado. � Eu nunca fui Juiz! Por isso, sou capaz de achar que podia
icar tudo como est�, porque talvez fosse melhor para todos n�s!
� Ah, n�o! Que � isso? Coragem, Dom Pedro Dinis Quaderna!
Quer encerrar os depoimentos antes de terminar a hist�ria? Veja que,
assim, sem as certid�es e por causa do cotoco, voc� nunca conseguir�
escrever sua Epopeia!
� Isso n�o signiicaria grande coisa n�o, Sr. Corregedor! � at�
uma tradi��o dos Romances epopeicos sertanejos, isso de icarem
incompletos! Na obra de meu precursor Jos� de Alencar, por exemplo, �
assim que acontece com as Epopeias! O Sertanejo termina sem acabar,
com o mist�rio da vida do velho J� sem conclus�o e sem se resolver o
amor de Arnaldo Louredo por Dona Flor. O autor, ali�s, est� consciente
disso, porque termina dizendo assim: �Aqui termina a hist�ria a que dei
o t�tulo de O Sertanejo. O mist�rio que envolve o passado de J� s� depois
veio a revelar-se. E como esses acontecimentos se prendem,
intimamente, � vida de Arnaldo, guardo-me para referi-los mais tarde,
quando escrever o im do destemido sertanejo, cujas proezas foram,
por muitos anos, naqueles gerais, o entretenimento dos Vaqueiros, nos
longos ser�es passados ao relento, durante as noites de inverno.� Mas
Jos� de Alencar morreu, antes de contar essa parte que prometia: nem
por isso O Sertanejo deixou de icar valendo. Ora, Vossa Excel�ncia h�
de se lembrar de que o velho J� era um t�pico Profeta sertanejo,
barbado e meio doido, como meu Padrinho, enquanto que Arnaldo
Louredo era um perfeito Pr�ncipe sertanejo � jovem, valente e vestido

de gib�o, como Sin�sio. Assim, n�o vejo nada demais no fato de eu
alinhar todos estes acontecimentos que lhe narrei numa ordem
epopeica e depois parar aqui, sem contar o desfecho do amor de Sin�sio
e Heliana, a decifra��o do Crime inexpi�vel de que foi v�tima o velho Rei
Degolado, e a �pica Demanda novelosa que empreendemos, afrontando
os perigos e as incertezas do Mar e as emboscadas e vinditas da �spera
e pedregosa Caatinga sertaneja. Lembre-se, tamb�m, de que, com O
Guarani, sucede coisa parecida: a hist�ria termina com Peri e Ceci
agarrados numa palmeira que desce o rio aos trambolh�es, lutuando
ao sabor de uma correnteza furiosa e que se some no horizonte. Muitas
vezes releti sobre esse im de romance-epopeico, perguntando a mim
mesmo, alito: os dois escaparam? Morreram afogados? Depois pensei
melhor e vi que estava colocando mal o problema. Se o caso fosse de
estilo raso, Peri e Ceci morreram de qualquer modo. Se n�o morreram
ali, na hora, afogados, j� est�o mortos e enterrados, de velhos, agora,
pois a hist�ria deles se passa no s�culo XVI e n�o tem quem viva tanto,
no mundo. Eles morreram, ent�o, velhos, feios e desdentados, coisa
com a qual n�o me conformo de jeito nenhum. Mas se o caso � de estilo
r�gio, ent�o eles n�o morreram, nem l�, nem depois. Consumaram
aquele amor meio espiritual e meio tarado que tinham um pelo outro, e
permanecem ali, possuindo-se um ao outro no embalo da palmeira,
num amor de divindades, vivos para sempre e eternamente jovens,
imortalizados naquele epopeico momento de romance que � sempre o
mesmo, sempre renovado a cada leitura. Ora, uma vez, li no Almanaque
Charad�stico que, entre outras qualidades, o g�nio deve ter a da
originalidade. O senhor n�o vai negar que haveria certa originalidade
em eu propor tudo isso que propus com minha narra��o; em colocar o
pessoal todo naquela expectativa, com a briga iniciada, os partid�rios
de Sin�sio dum lado, os de Ar�sio noutro, e depois deixar tudo a�, em
suspenso, como no im dos romances de Jos� de Alencar. Outra coisa: j�
que o senhor mandou que eu supusesse ser o Juiz, pe�o ao senhor,
tamb�m, para supor que eu morra por acaso, antes de lhe dar outro
depoimento. N�o haveria nada de estranh�vel nisso: Jos� de Alencar
n�o morreu antes de contar o resto da sua hist�ria? Meu depoimento
teria que icar encerrado aqui, mas nem por isso o senhor deixaria de
utiliz�-lo no inqu�rito, n�o � isso? Quanto � Epopeia, icaria, como eu
disse, uma hist�ria pelo menos original, com essa hist�ria toda iniciada,

mas sem conclus�o nenhuma, como sucedeu com a hist�ria de Peri e
Ceci e como sucede sempre, ali�s, na vida!
O Corregedor olhou-me com seus astutos olhos de porco.
Quando falou, foi para me dar um bote seguro, pegando-me pelo meu
fraco:
� Sim � disse ele �, mas a� � que entraria, mesmo, o senhor,
com suas obriga��es de Epopeieta, G�nio da Ra�a Brasileira e G�nio
M�ximo da Humanidade! Se o senhor n�o for adiante de Jos� de Alencar
e de Homero, que foram geniais mas incompletos, n�o poder�
ultrapass�-los! Que � isso? Est� afracando? Quer perder a briga para
esses dois? Veja que voc� mesmo foi quem disse que uma Obra, para ser
de g�nio, precisa ser r�gia, modelar, de primeira classe e, sobretudo,
completa! Se o senhor n�o contar o resto, n�o poder� obter certid�es
sobre tudo, e sua Epopeia icar� original, � certo, mas incompleta!
Aquele homem era mesmo que o C�o! Eu estava encostado �
parede. Falei:
� O senhor tem raz�o; mas � que estou vendo, Sr. Corregedor,
que, para contar tudo, eu vou terminar arriscando o pesco�o!
� O destino dos g�nios � esse mesmo, Dom Pedro Dinis
Quaderna! A Hist�ria est� cheia da narra��o das desgra�as deles! S�o,
todos, uns infortunados! Principalmente os que carregam a Hist�ria de
suas p�trias no sangue e nos ombros, como uma cruz. Ali�s, a pr�pria
Hist�ria n�o passa de uma narrativa sombria, enigm�tica e sangrenta,
para usar as palavras que o senhor usou em rela��o � morte do velho
Rei e � vida de seu sobrinho Sin�sio, o Rapaz-do-Cavalo-Branco! Passe
uma vista pela Hist�ria do Brasil: s�o massacres, infort�nios, incestos,
mortic�nios, guerras, calamidades e desgra�as de todo tipo! Toda coroa
� manchada de sangue, como o senhor mesmo disse. E se voc� aspira,
mesmo, a essa coroa de Poeta nacional do Brasil, tem de jogar sua sorte
e arriscar sua cabe�a, juntamente com a sorte do Brasil!
� Est� bem! � disse eu, resignado, e, ao mesmo tempo,
fatidicamente impressionado com aquelas palavras agoureiras que o
Corregedor ia alinhavando com ironia, imitando, aqui e ali, meu tom de
voz e posando assim de arguto e espirituoso para Margarida. � Vossa
Excel�ncia exige que eu volte... Se eu n�o morrer, como Jos� de Alencar
morreu, voltarei!

� �timo! Teremos, ent�o, oportunidade de continuar, aqui, esta
nossa conversa, t�o interessante, t�o cheia de sugest�es e revela��es! O
inqu�rito continua aberto e em suspenso, de modo que, pelo menos por
enquanto, sua Obra icar� assim, em suspenso e aberta, dependendo
sempre de novos depoimentos que o senhor nos prestar. Talvez, at�, ela
dure o resto de sua vida e nunca chegue a terminar, de acordo com o
teor do que o senhor tiver para nos dizer! � disse ele com um sorriso
cruel, que me deixou terriicado. � At� amanh�, ent�o! Espero o senhor
aqui, na mesma hora! E, para seu pr�prio bem, n�o fale nada do que eu
lhe perguntei nem do que o senhor me disse, a pessoa nenhuma! Escute
o que estou lhe dizendo: se eu souber que voc�, de qualquer maneira
que seja, delatou qualquer coisa do que se passou aqui, o senhor ser�
imediatamente demitido e preso! At� amanh�!
� At� amanh�, Sr. Corregedor! At� amanh�, Margarida! �
despedi-me eu, com ar terno, da mo�a, que n�o se dignou responderme.
* * *
Ent�o, nobres Senhores e belas Damas, sa� da Cadeia,
encaminhando-me para casa. Com os olhos ainda dotados da estranha
vid�ncia que o Vinho da Pedra do Reino me dera, olhei para os lados da
casa do Capit�o Clodoveu Torres Villar, para ver se descobria o dono ou
a dona dos olhos amaldi�oados que tinham causado minha vertigem.
Mas n�o vi ningu�m. Teria sido uma visagem minha? Era imposs�vel
descobrir com certeza.
As sombras da noite ca�am sobre nossa heroica Vila, trazendo
uma ventania que refrescava cada vez mais e que, da� a pouco, esfriaria
o mundo com o sopro noturno do cariri. Por isso, um cheiro de jasmins
e bogaris j� embalsamava o ar, diante dos jardins, das grades e dos
port�es por onde eu ia passando, ouvindo vozes e murm�rios no
interior das casas, vendo luzes que se acendiam e barulhos de pratos e
talheres, todos esses rumores familiares que, nessa hora do anoitecer,
sempre me d�o um sentimento de ex�lio e nostalgia. Por outro lado,
apesar de tudo o que me acontecera, de todos os perigos que me
amea�avam, de tudo o que eu contara de comprometedor, tanta � a
for�a das coniss�es que eu estava me sentindo descarregado e

puriicado � e tudo isso, junto, me dava uma sensa��o de solene e
nost�lgica melancolia.
Como eu n�o quisesse falar com meus dois rivais e mestres, em
vez de vir diretamente pela Rua Grande, cruzei o Beco dos Villares, de
modo a entrar em minha casa pelo fundo do quintal, que dava para o
Chafariz. Tamb�m n�o fui para a �Estalagem � T�vola Redonda�, onde
poderia ter uma refei��o melhor, preparada por Maria Saira, mas onde
icaria muito exposto ao conv�vio e �s perguntagens dos outros: eu
queria icar s�, para pensar em tudo o que me acontecera.
Consegui passar despercebido e entrar em casa sem ser notado.
Chegando, fui logo para o arm�rio. Peguei uma garrafa do meu Vinho
tinto da Malhada, um bom peda�o de p�o, manteiga �de gado� e queijo
de coalho do Cariri, o melhor queijo de cabra que existe no mundo,
como todos sabem. Ent�o, assim provido, sentei-me numa
Espregui�adeira e iquei a repassar muitas coisas na cabe�a. Eram
lembran�as po�ticas e legend�rias, que me traziam uma estranha
saudade. Todos aqueles sonhosos acontecimentos � meus amores, os
combates e andan�as sertanejas em que me vira metido durante tanto
tempo ao lado do velho Rei demente e degolado da Legenda
Ensanguentada do Sert�o � desilavam diante de mim. Eu via,
principalmente, toda a Desaventura novelosa, a Demanda guerreira e
enigm�tica que t�nhamos empreendido, por terra e por mar, seguindo
Sin�sio, O Alumioso, e que terminara acabando daquela maneira cruel e
terr�vel que todo o Sert�o conhece. Pensava tamb�m, inquieto, no
estranho Processo no qual estava mais uma vez envolvido. Parecia que
meu destino era ser sempre implicado nos casos de crime e heran�a
daquela minha ilustre e poderosa fam�lia materna dos Garcia-Barrettos.
Era como se a Justi�a, sem ter condi��es de envolver em suas malhas os
membros mais importantes daquela Casa real sertaneja, resolvesse se
encarni�ar sobre o outro, o leg�timo, o Quaderna, o verdadeiro Rei e
Profeta, por saber que eu, arruinado, n�o tinha condi��es para me
defender, isto apesar de meus m�ritos de Poeta, Astr�logo e Decifrador,
e apesar da Ra�a real do meu sangue da Pedra do Reino.
Imperceptivelmente, sem que eu quisesse ou notasse isso, o
aspecto real e pol�tico de todos aqueles acontecimentos foi icando de
lado e cedendo passo ao aspecto po�tico-liter�rio, muito mais real e
embandeirado do que o outro. Coisas grandiosas, guerreiras e

cavalarianas misturavam-se, insensivelmente, com amores � po�ticos,
solares e legend�rios no caso de Sin�sio e Heliana, esverdeados e
lunares no de Gustavo e Clara, tigrinos, sat�rnicos e subterr�neos no de
Ar�sio e Genoveva. Na minha cabe�a e no meu sangue, amalgamava-se
tudo aquilo, de modo cada vez mais confuso, belo e glorioso. A
agrad�vel sensa��o do queijo, do p�o com manteiga e do vinho � que
eu ia engolindo em grandes nacos e goles � espalhava-se em minhas
veias, causando-me um calor, um torpor e um formigamento no corpo, o
que era tanto mais gostoso porquanto, por fora, eu come�ava a ser
envolvido, j�, pelo frio da noite do velho Sert�o do Cariri.
Foi nesse momento que devo ter adormecido, pois a �ltima
sensa��o mais ou menos l�gica que me lembro de ter experimentado
foi a de avistar, em torno da luz ba�a, da l�mpada suja de poeira e de
teias de aranha, algumas mariposas que esvoa�avam. �Vai chover
amanh�, e o inverno, este ano, parece que vai ser bom!� � pensei
comigo mesmo. E ent�o, adormeci na espregui�adeira.
* * *
Tudo o que eu vinha pensando na minha doce embriaguez se
juntou, ent�o, num sonho s�. Eu terminara minha Epopeia, minha Obra
de pedra e cal, ediicando, no centro do Reino, o Castelo e Marco
sertanejo que tinha sido o sonho de toda a minha vida. O Reino do
Sert�o se estendia, agora, sob um Sol acobreado de crep�sculo,
esbraseado, cercado de nuvens cor de chumbo e orladas de fogo, um Sol
que dourava as pedras e muralhas do Chapad�o pedregoso, �spero e
solit�rio, formigante de Pe�es, bispos, Rainhas, Reis, torres, cavalos e
Cavaleiros � rudes Cavaleiros vestidos com armaduras de couro
medalhadas, gib�es, guarda-peitos e chap�us de couro estrelados, e
acompanhados pelas belas Damas de copas e espadas que os amavam.
No meio do Reino, incada sobre uma serra pedregosa e situada entre
os dois rochedos iguais que lhe serviam de torres, a Catedral e castelo
da minha Ra�a reluzia seus muros afortalezados, a que o Sol dava
tamb�m relexos acobreados, batendo nas pedras esquadrejadas,
unidas com a argamassa do meu sangue.
A obra estava inda, motivo pelo qual ia haver uma cerim�nia
r�gia. A Academia Brasileira de Letras, que n�o era sen�o uma esp�cie

de meu Conselho da Coroa, era formada por Doze Pares do Cord�o
Encarnado e outros Doze do Cord�o Azul, conforme sua Literatura fosse
mais aproximada ou mais afastada do Povo. Integrava ela, assim, aquele
grupo zodiacal e astrol�gico de 24 Anci�es, que meu velho e demente
companheiro, o Cantador judaico-sertanejo Jo�o de Patmos, tinha
visageado na sua Epopeia-enigm�tica e logogr�ica, vulgarmente
conhecida como �O Apocalipse�. Era o dia da minha coroa��o, e lembrome
bem de que a minha maior alegria era causada pela vit�ria
alcan�ada sobre meus dois rivais, o Doutor Samuel Wan d�Ernes e o
Bacharel Clemente Har� de Ravasco Anv�rsio. Meus m�ritos e minha
superioridade eram, agora, indiscut�veis. Sa�ra da minha condi��o
inferior de charadista, passando a respirar os ares puros do alto
daquela Serra pedregosa, escarpada e sagrada, que s� os g�nios s�o
capazes de escalar e dominar. Eles veriam agora, pela primeira vez em
sua real import�ncia, as dimens�es e o signiicado desta On�a, desta
Cobra-Coral que eles tinham ca�do na tolice de criar, agu�ando meu
sangue e meu veneno com suas conversas, suas ideias, seus sonhos,
seus remoques e seus desaios.
E chegava a �ltima Embaixada que ainda estavam aguardando, a
delega��o de Doze membros do Instituto Hist�rico e Geogr�ico
Paraibano, os quais, vestidos de Embaixadores mouros da �Nau
Catarineta� e cheiados por Carlos Dias Fernandes e Jos� Rodrigues de
Carvalho, tinham solicitado a honra de, como conterr�neos, me
levarem, como Guarda de Honra, ao recinto do Conselho da Coroa, onde
o Arcebispo da Para�ba iria me coroar. Magniicamente vestido de Rei
do �Auto dos Guerreiros�, eu me punha � frente dos Doze Pares do Reino
da Para�ba, e era assim que fazia minha entrada triunfal na Academia,
onde j� estavam os 24 Anci�es, vestidos de Pr�ncipes do �Bumba-meuboi�.
O Arcebispo da Para�ba, com um enorme chap�u de Guerreiro �
um chap�u que parecia um templo asi�tico e era todo enfeitado de
espelhos e de bolas de vidro coloridas �, vestia uma Opa amarela,
semeada de cruzes azuis e sobre a qual pendia, para suas costas, um
manto vermelho, com Cruz e crescentes de ouro. Ele pegava uma Coroa
de louros, cujas folhas eram de prata. Ia me coroar com ela, quando
Rodrigues de Carvalho e Sylvio Romero � que eram estranhamente
parecidos com Jo�o Melch�ades e Lino Pedra-Verde � interrompiam,
dizendo:

� Em nome dos Cantadores e do Reino, conjuro todos a coroar o
nosso Rei com a Coroa de couro e prata do Sert�o, tran�ada de espinhos
de mandacaru e medalhada com folhas de ouro de Angico, Bra�na e
Pau-brasil!
O Arcebispo da Para�ba consultava o Mestre de Cerim�nias, que
n�o era outro sen�o Joaquim Nabuco, sempre amaneirado, diplomatado
e entendido nessas coisas cortes�s. Joaquim Nabuco, um pouco a
contragosto e contrariado em seu cosmopolitismo, tinha que concordar,
�porque essa fora, tamb�m, a vontade manifestada pelo Rei�. Ent�o,
acolitado por Dom Jos� de Alencar e por Dom Euclydes da Cunha, o
Arcebispo da Para�ba me coroava inalmente como Rei da T�vola
Redonda da Literatura do Brasil, ante a alegria delirante do Povo
Brasileiro e ao som de uma M�sica sertaneja de tambores, p�fanos,
tri�ngulos, violas e rabecas. Eram galopes e repentes-esporeados; o
principal chamava-se A Pedra do Reino e era estranhamente parecido
com aquele �spero Piado do Cachorro que tinham tocado no dia da
chegada de Sin�sio. Todos os Condes e idalgos ali reunidos cantavam,
com essa m�sica, uns versos de autoria do genial Vate paraibano
Ant�nio da Cruz Cordeiro J�nior, versos nos quais, j� antevendo a
minha Coroa��o, ele escrevera, no s�culo XIX:
�De onde vem esse Bardo Peregrino
e esse Canto de fogo e do Divino,
de Arcanjos, pedra e Luz?
Ante o G�nio da Ra�a o Povo anseia
e a grande P�tria sua Voz alteia
pois o G�nio reluz!
� Quaderna, perdoa! Esse del�rio
quer dizer que teu G�nio, a� do Emp�reo,
adeja sobre n�s!
Perdoa, � Rei, se aqui, aos p�s do Trono,
viemos teu Sonho, e a Vis�o e o Sono
quebrar com rude Voz!
� que, da Turba brilhante,
teu Vulto se destacou:
muito acima e muito adiante

como um Gavi�o plainou.
No voo de Fogo altaneiro
� o Gavi�o Brasileiro
que mais alto se elevou.
Subiu, subiu e seu Grito
foi sagrado no Ininito
onde o Sol o consagrou!�
Para falar a verdade, nobres Senhores e belas Damas, os versos
tinham sido um pouco modiicados para a ocasi�o. Por exemplo: ali
onde o genial Vate paraibano tinha colocado ��guia�, eu ordenara que
pusessem o brasileir�ssimo e sertanejo Gavi�o-Tourano, que, sendo a
Musa dos folhetos dos Cantadores, servia muito melhor de ins�gnia para
minha realeza do que aquele best�ssimo Gavi�o estrangeiro que � a
�guia. Na ess�ncia, por�m, era esse o Enigma e logogrifo em versos que
cantavam e que eu aproveito para, com ele, dar por terminado este
folheto e romance do Canto Genial da Ra�a Brasileira.
Recife, 19-VII-58
9-X-70

POSF�CIO

O
A PEDRA DO REINO
Maximiano Campos
Brasil encontra agora em Ariano Suassuna, que j� era o seu maior
dramaturgo, um grande romancista. Este seu livro, m�gico,
violento e belo, e o Grande Sert�o: Veredas, de Guimar�es Rosa, s�o
romances superiores, desses livros que transcendem ao mero enredo e
fabula��o e nos fazem icar tentados a cham�-los de epopeias, como j�
izeram Cavalcanti Proen�a, com rela��o ao romance do escritor
mineiro, e Afr�nio Coutinho, ao se referir desta maneira a Os Sert�es de
Euclydes da Cunha: �Os Sert�es s�o uma obra de ic��o, uma narrativa
heroica, uma epopeia em prosa, da fam�lia de Guerra e Paz, da Can��o
de Rolando e cujo antepassado mais ilustre � a Il�ada.�
Romain Rolland considerava Guerra e Paz a mais vasta epopeia
dos nossos tempos, airmando ser o romance de Tolst�i uma Il�ada
moderna. �lvaro Lins, depois de citar a conversa entre Tolst�i e Gorki,
onde o pr�prio Tolst�i, referindo-se a Guerra e Paz, havia dito: �Sem
falsa mod�stia, � como a Il�ada�, airma: �Guerra e Paz �, na verdade, a
epopeia de uma �poca em que n�o se escrevem epopeias, como a
epopeia � o romance de uma �poca em que n�o se escreviam
romances.� Michel Butor, um dos principais escritores do Novo
Romance franc�s, j� disse que o romance evolui para uma esp�cie nova
de poesia ao mesmo tempo �pica e did�tica. Mas, seja qual for a
denomina��o ou classiica��o que lhe queiram dar os cr�ticos, o grande
romance, o bom romance, continua sendo a mais completa das
manifesta��es criadoras em literatura. E, segundo Henry James, um
romancista � algu�m para quem nada est� perdido. Certa ocasi�o,
Michel Butor disse a Leyla Perrone-Mois�s: �O p�blico mudar�, tornarse-
� cada vez mais exigente e melhor. O Novo Romance � uma coisa que
n�o existe, portanto n�o haver� um futuro para o Novo Romance.
Haver� o futuro dos romancistas, o futuro do romance, e este � muito
belo.�
Ariano Suassuna n�o limitou o mundo � vis�o do Sert�o
nordestino, mas, atrav�s dessa vis�o de criador, fez do Sert�o um palco
gigantesco onde s�o representados, atrav�s dos seus personagens, os

dramas da condi��o humana. Nisso, Suassuna se assemelha a
Kazantz�kis, que fez coisa semelhante com a sua ilha de Creta.
Todas as artes se assemelham: a m�sica, a pintura, a literatura, a
escultura. Ezra Pound, referindo-se ao Ulisses de James Joyce, disse que
esse romance pertencia � grande classe dos romances em forma de
sonata. E. M. Forster tentou fazer uma aproxima��o entre a Quinta
Sinfonia de Beethoven e o ritmo que existe em certas passagens da obra
de Proust. Alberto Moravia diz que �em todo escritor que tenha um
conjunto de trabalhos que revele o seu esfor�o, a gente encontrar�
temas que se repetem. Assim, tanto um �nico romance, como a obra
toda de um escritor, � semelhan�a de uma composi��o musical em que
os personagens s�o os temas, completam, de varia��o em varia��o, toda
uma par�bola�. Faulkner j� nos falou de um trovejar e de uma m�sica da
prosa, que se processam em sil�ncio. Lendo o romance de Suassuna,
temos a impress�o de estar diante de um grande mural em que o pintor
usasse as palavras como se fossem as tintas vigorosas da sua
imagina��o. E estas cores v�m revestidas tamb�m de som. Nesse livro,
homens, feras, a beleza e a mis�ria, o sonho e a realidade, o mito e a
descren�a, o �dio e o amor, nos envolvem e povoam a solid�o da nossa
leitura. E ningu�m sair� impune dessa leitura porque nela encontrar� a
farsa do mundo a ser representada. O Diabo est� solto e arma as suas
tramas e o Cristo continua sempre dando novas oportunidades para o
bem e o mal. Parece-nos que, nesse livro, o romancista, � semelhan�a do
autor do Cristo Recruciicado, mais do que a beleza, procurou a
reden��o. Poderiam ser de Suassuna estas palavras de Butor: �N�o
escrevo romances para vend�-los, mas para obter uma unidade na
minha vida.� Est� nesta poesia sobre o seu pai a marca que ainda hoje o
artista carrega:
�Aqui morava um Rei, quando eu menino:
vestia ouro e Castanho no gib�o.
Pedra da sorte sobre o meu Destino,
pulsava, junto ao meu, seu Cora��o.
Para mim, seu Cantar era divino,
quando, ao som da Viola e do bord�o,

cantava, com voz rouca, o Desatino,
o Sangue, o riso e as mortes do Sert�o.
Mas mataram meu Pai. Desde esse dia,
eu me vi, como um Cego, sem meu Guia,
que se foi para o Sol, transigurado.
Sua E�gie me queima. Eu sou a Presa,
Ele, a Brasa que impele ao Fogo, acesa,
Espada de ouro em Pasto ensanguentado.�
A inf�ncia marcada pelo assassinato do pai, um Cavaleiro
sertanejo que chegou � presid�ncia da Para�ba, as lutas da sua fam�lia e
as persegui��es sofridas, lhe deram uma vis�o tr�gica do mundo. Vis�o
esta que est� carregada de s�mbolos e mitos, c�digos de honra e
disputas de vida e morte. Com essa vis�o � que Suassuna fez o seu
castelo de sonho e beleza; � o menino, j� adulto e feito escritor, que
tenta interpretar e conviver com essa fera bravia, a sua terra. Aprendeu
que o mundo tem dois senhores: Deus e o Diabo, o bom e o mau
fazendeiro. N�o despreza nem o �dio nem o amor, mas n�o acredita na
mesquinharia, porque acreditar nela seria uma maneira de fazer com
que ela existisse. Acredita na grandeza predestinada do seu pa�s, e v�
reis, rainhas, condes, idalgos, em todos aqueles negros, mesti�os ou
morenos brasileiros. Nesse seu romance, Suassuna distribui os seus
t�tulos de nobreza, daquela nobreza que o Brasil possui nos seus
cangaceiros, vaqueiros, cantadores, nos homens e mulheres do povo
que, �s vezes, cansados da mis�ria e da fome, se vestem de reis e
rainhas nos espet�culos populares. Acredita na desgarrada e bela luta
desta na��o continente e nobre, fera a quem as jaulas do mundo n�o
conter�o submissa.
Trata-se de um livro desigual, disforme mesmo, porque, em
algumas ocasi�es, a sua for�a o faz assim. N�o � um desses romances
bem-comportados e lineares, n�o � um livro moino. Em certas
passagens, temos a impress�o de estar lendo, na sua prosa, uma poesia
sem m�trica, uma maneira paradoxalmente barroca e nova de contar e

dizer as coisas. Quaderna, o seu personagem, d�-nos a impress�o de
estar num grande circo que seria o mundo, rodeado pelas vis�es da sua
imagina��o, que fazem o grande espet�culo: pedras, espinhos, on�as,
cobras, incestos, vingan�as, �dio, amor, reis alucinados e sangue
derramado nos �speros carrascais sertanejos. E, sabendo que quem
est� no palco ou no picadeiro � sempre julgado, presta o seu
depoimento, que � tamb�m a presta��o de contas do seu sonho e a
coer�ncia da sua loucura.
Para Mathias Aires, moralista barroco brasileiro do s�culo XVIII,
o interior do homem � �como a cortina de um teatro; nela se veem
pintados primorosamente hier�glifos, medalhas, inscri��es e
atributos... Mas, se algum impaciente e indiscreto for�a a cortina, e
entra, o que v� � um lugar escuro, embara�ado, sem ordem nem asseio;
v� atores ainda cobertos de roupas miser�veis; alguns, vestida a gala e
empunhado o cetro (adornos alheios e supostos), v� chegados a uma
luz desanimada, recordando de um papel imundo as palavras de que a
mem�ria se encarrega com trabalho�.
Do mesmo modo, Quaderna, o personagem de A Pedra do Reino,
sabe que tudo aquilo sucedia e sucede dentro do seu sangue e da sua
cabe�a, da sua mem�ria, isto �, de seu talento de cantador, �onde havia
um estrado e uma Cortina que, no momento em que se fechasse
deinitivamente, acabaria o Espet�culo, aquele sonho glorioso e
grotesco, cheio de rosnados e clarins, de farrapos e mantos de ouro,
sujo e embandeirado�.
Existe, entre o teatro de Suassuna e esse seu romance, uma certa
unidade no serem eles uma tentativa de interpreta��o do Brasil. Desse
Brasil maioria, cuja grandeza est� na descomunal maneira de ser
originalmente, morenamente, mesti�amente, uma grande na��o. Um
Brasil n�o dos burocratas, dos burgueses que confundem a ordem com
a incapacidade do sonho e da cria��o. Mas um Brasil dos seus poetas,
dos seus idalgos populares e sonhadores, dos cantadores, dos
vaqueiros, dos trabalhadores que genialmente improvisam e criam essa
sua grandeza. H� que distinguir o Brasil legal do real. Afonso Arinos j�
airmou que Os Sert�es resultou do choque que Euclydes da Cunha
experimentou ao descobrir de repente a diferen�a entre o Brasil legal, o
Brasil supericial que ele vivia nas cidades, e o Brasil real, do qual ele
tomava conhecimento diante do povo e da terra do sert�o.

S�o livros como A Pedra do Reino que nos ajudam a decifrar essa
na��o continente, essa fera misteriosa. Tamb�m temos o nosso sonho,
os nossos profetas, os nossos reis, os nossos m�rtires, as nossas feras e
uma inigual�vel for�a no povo e na terra. E por termos tudo isso, talvez
tenhamos agora a nossa epopeia, �spera, sertaneja e mesti�a, criada por
um escritor nordestino que, come�ando apenas a escrever uma est�ria,
n�o parou e continuou contando as suas vis�es; e nessas suas vis�es
sabemos: o Brasil � o grande palco que tem os dois eternos
encenadores conlitantes da trag�dia, farsa e com�dia do mundo �
Deus e o Diabo. Mas o nosso Diabo, levado pela conversa do povo,
seduzido pelos encantos da gente rude e brava no viver, tem os seus
momentos de fraqueza ou distra��o e deixa-nos intacta, algumas vezes,
essa estranha mania de confundir o ver e o sentir, a realidade quase
sempre feia, com o sonhar e o querer, o mito vencendo o tempo.
Jorge Luis Borges, escrevendo sobre o Quixote, disse que,
comparado com outros livros cl�ssicos como a Il�ada, a Eneida, a
Fars�lia, a Com�dia dantesca, as trag�dias e com�dias de Shakespeare, o
Quixote � realista e que esse realismo, sem d�vida, diferia
essencialmente do exercido pelo s�culo XIX. E � ainda o escritor
argentino que nos chama aten��o para Conrad, que airmara que
exclu�ra de sua obra o sobrenatural, porque admiti-lo parecia negar que
o cotidiano fosse maravilhoso. Pois esse maravilhoso, essa magia do
cotidiano, existe fortemente na Am�rica Latina. E foi o despertar
atrav�s da percep��o dessa realidade m�gica que tem dado ao pr�prio
Jorge Luis Borges, a Gabriel Garc�a M�rquez, a Miguel �ngel Asturias,
como deu a Guimar�es Rosa e agora a Ariano Suassuna, a possibilidade
de criar os seus romances onde a fantasia n�o � nega��o ou
camulagem da realidade, mas a liberta��o de uma vis�o menor da
realidade, que tamb�m � disforme e m�gica. Guimar�es Rosa j�
airmara: �O mundo � m�gico.�
�lvaro Lins comparou o romance a um espelho: �Um homem se
debru�a nele para conhecer a sua pr�pria realidade humana. Sucede
apenas que este espelho � daqueles que se usam nos circos como um
divertimento: ampliam, deformam, desiguram. N�o divertem, por�m,
porque sentimos, apesar de tudo, que esta imagem deformada � a nossa
imagem verdadeira. Muito mais verdadeira do que a outra � a exterior
� que os espelhos habituais devolvem com exatid�o.�

Sartre disse que, �para o homem contempor�neo, o fant�stico �
apenas um modo entre cem de reaver a pr�pria imagem�. Pois o mundo
de Quaderna, o personagem de A Pedra do Reino, est� nessa sua vis�o
fant�stica: �Sou um grande apreciador do jogo do Baralho. Talvez por
isso, o mundo me pare�a uma mesa e a vida um jogo, onde se cruzam
idalgos Reis de Ouro com castanhas Damas de Espada, onde passam
Ases, Peninchas e Curingas, governados pelas regras desconhecidas de
alguma velha Canastra esquecida.� Ali�s, a pr�pria prosa de Ariano
Suassuna tem muito do tra�ado, da her�ldica e da beleza das cartas do
baralho. Quaderna sabia que o mundo � um jogo onde todos n�s
pagamos a entrada com a vida. Nesse jogo, os que izerem mais pontos
e os que souberem perder sem trapa�as s�o aqueles que ser�o dignos
de estar na cartola dos grandes m�gicos: Deus e o Diabo, os senhores da
desdita e da sorte.
Algumas obras podem ser comparadas com os Evangelhos, s�o
narrativas. N�o ser� o Quixote a prega��o de um evangelista espanhol,
Cervantes, que vestiu a armadura no Cristo, transformando-o naquele
sonhador incorrupt�vel? N�o seria o Cristo um Quixote do qual S�o
Pedro seria o Sancho? A Pedra do Reino se assemelha com o Apocalipse,
porque �, tamb�m, al�m de um romance, uma profecia, que, no Sert�o
do Brasil, Quaderna tenta decifrar. Nesse sentido, poder�amos dizer
que, se a obra de um Tolst�i seria a de um evangelista, a de Dostoi�vski
est� muito mais pr�xima do Apocalipse. E, entre as obras liter�rias, a
mais apocal�ptica de todas, nessa conceitua��o, seria a Divina Com�dia
de Dante, com quem o romance de Suassuna, tamb�m nesse aspecto,
tem la�os de parentesco, atrav�s das vis�es e palavras de Quaderna. Ele
diz ao Juiz-Corregedor que vai julg�-lo: �Euclydes da Cunha, por mais
genial que fosse, era apenas um precursor meu: n�o era Astr�logo e
Decifrador... de modo que n�o sabia que, na verdade, a face do Sert�o �
tripla, e n�o dupla! � o Inferno, o Purgat�rio e o Para�so; uma parte
macha, uma macha-e-f�mea e outra somente f�mea � a Saturnal, a
Solar e a Lunar... � por isso que, na minha Epopeia, quando, l� um dia, o
senhor for l�-la, olhando com cuidado encontrar� um Inferno, um
Purgat�rio e um Para�so � o Pai, o Diabo, o Filho, a Mulher e o Esp�rito
Santo �, Saturno, o Sol e a Lua.�
� preciso n�o esquecer, por�m, que a Divina Com�dia de Dante
se origina da 11� raps�dia da Odisseia e do 6� canto da Eneida: a

corrente �pica mediterr�nea marcou tamb�m as ra�zes de cria��o de A
Pedra do Reino. Quaderna, o personagem de Suassuna, v� no seu
antepassado, no rei degolado da Pedra Bonita, e nele pr�prio, um pobre
sertanejo, o descendente de uma casa real, o Dom Pedro IV do Brasil. O
Quixote, de tanto ler livros onde se contavam as fa�anhas dos
cavaleiros, resolveu correr o mundo com o seu sonho incorrupt�vel.
Quaderna, de tanto conversar literatura com Samuel e Clemente, de ler
folhetos, de ouvir as aventuras dos seus ancestrais cantadas pelos
poetas populares e narradas por esses seus dois amigos, resolveu
escrever uma epopeia, uma Brasileida. E tenta empreender, na
literatura, aventuras t�o fortes e insanas quanto as do Quixote nos
campos da Espanha. Mas, de tanto se preparar para tais aventuras e
empreendimentos liter�rios, fornece-nos perip�cias e fa�anhas tais que
fazem com que, ao lado da est�ria principal, existam outras, correndo
paralelas. Isto faz desse livro de Suassuna um romance dentro do qual
existem outros romances, formando um mural onde estivessem
retratados o sert�o e o mundo em cores fortes e reais, apesar de todos
os sonhos e loucuras de que est� repleto. Quaderna � uma esp�cie de
Quixote que, n�o se contentando em viver as suas aventuras, resolvesse
tamb�m cont�-las.
Ariano Suassuna � autor de uma obra popular. O seu Auto da
Compadecida, hoje, anda pelos teatros do mundo, levando a sabedoria
do �amarelinho�, que vai armando as suas artimanhas para vencer os
poderosos. Ali�s, Otto Maria Carpeaux, no seu pref�cio a Fogo Morto �
o romance de Jos� Lins do Rego �, tenta esclarecer essa quest�o de
�literatura erudita� e �literatura popular�, ao airmar: �H� um malentendido
em torno do conceito de literatura popular. Os romances que
tratam dos pobres, dos m�seros, dos humildes, do povo, s�o literatura
dos ricos, dos cultos, dos literatos. O pr�prio povo n�o gosta da
literatura popular; prefere a outra, que lhe parece literatura culta e que
lhe conta hist�rias de banqueiros ladr�es e datil�grafas princesas;
prefere Carlos Magno e os her�is do cinema. A verdadeira literatura
popular � grande literatura; � diferente, � popular, apenas pelo estilo
diferente, estilo de tempos passados, arcaico, n�o escrito mas oral.
Parece mal escrito, porque n�o � escrito, mas ouvido e falado. Os
contadores proissionais de hist�rias falam, contam assim.�

Gramsci j� percebera coisa parecida com rela��o ao romance de
folhetim: �Pode-se dizer que, no povo, a tend�ncia � fantasia depende
do complexo de inferioridade (social) que determina longas fantasias
sobre a ideia de vingan�a, de puni��o dos culpados pelos males
suportados etc. No Conde de Monte Cristo, existem todos os elementos
para gerar tais fantasias e, portanto, para propiciar um narc�tico que
diminua a sensa��o de dor etc.�
Sabemos que a poesia dos poetas populares nordestinos est�
repleta de sertanejos valentes, vencendo pela coragem a fazendeiros e
senhores de engenho; de �amarelinhos�, os Jo�o Grilo, os Cam�es, os
Pedro Malasartes, verdadeiros Lazarilhos de Tormes nordestinos, esses
p�caros que enganam os reis e poderosos e lutam com a ast�cia e o
repente das ideias contra a for�a e o poder dos maus. � que os poetas
populares procuram, quase sempre, no sonho e na cria��o, fazer com
que sejam redimidas as injusti�as da vida real, onde o �amarelinho�
continua � e a� � quando talvez se assemelhe tamb�m com o Quixote
� apenas no sonho e no desejo de justi�a e melhores dias. Nestas
est�rias do nosso cancioneiro popular, o �amarelinho� tem alguma coisa
de um Quixote a p� e sem erudi��o, um n�o idalgo feito Sancho, que,
em vez de escudeiro e bobo da corte, e bem mais magro, magr�ssimo,
raqu�tico at�, houvesse ganho as estradas para se bater numa luta onde,
em vez da lan�a e do escudo, levasse a for�a do riso e o poder da
sabedoria popular. Jo�o Grilo, personagem do Auto da Compadecida, �
um misto de Quixote e Sancho, com predomin�ncia de Sancho.
Quaderna � um misto de Quixote e Sancho, com predomin�ncia do
Quixote.
Emerson talvez tivesse raz�o quando airmava, querendo se
referir a Shakespeare: �O maior g�nio � o homem mais endividado.� Por
isso, existe e existir� sempre um parentesco entre as grandes obras
universais. Esse parentesco que h� entre o romance de Joyce e a obra de
Homero, a ilosoia de Nietzsche e a m�sica de Wagner, entre
Dostoi�vski e G�gol, a poesia de Baudelaire e a de Edgar Allan Poe.
Certa ocasi�o, Hemingway confessou que, vendo os quadros de
C�zanne, havia aprendido a escrever melhor. Nesse livro de Ariano
Suassuna encontramos esse parentesco com Cervantes e o Daudet de
Tartarin de Tarascon. Principalmente com o Dom Quixote, com o sonho
�pico, o riso e a ironia do seu autor.

Ainidades esse romance tem com tudo o que � brasileiro.
Ainidades de prop�sitos com as poesias de Gon�alves Dias e Castro
Alves, os romances de Jos� de Alencar e Jos� Lins do Rego, a obra de
Euclydes da Cunha, a m�sica dos compositores barrocos do s�culo XVIII
e a de Villa-Lobos, a cr�tica de Sylvio Romero e a pintura selvagem de
Francisco Brennand. Ainidades com os cantadores e poetas populares
nordestinos, com os quais Jos� Lins do Rego disse haver aprendido
mais do que com romancistas europeus. Ainidades com alguns artistas
mais novos que, no Recife, Suassuna tem descoberto e incentivado.
Michel Butor, e n�o apenas Ezra Pound, chama a aten��o para o
que existe de semelhan�a entre a pr�tica de Joyce e a dos m�sicos:
�Ficando cada vez mais cego � medida que elaborava essa obra, ele
(Joyce) se tornou cada vez mais sens�vel � natureza sonora do material
que empregava e ao �ntimo parentesco que liga o romance, n�o apenas
� poesia, como tamb�m � m�sica.� Com Ariano Suassuna, como j�
dissemos, parece haver ocorrido fen�meno parecido em rela��o �
pintura. Distante do Sert�o, ao escrever, algumas das suas p�ginas est�o
cheias de cor da terra, da gente daquela ��frica brasileira�, para usar as
palavras de um dos seus personagens.
Todo romancista tem alguma coisa de m�gico e Suassuna �
tamb�m um desses m�gicos das palavras, usando-as algumas vezes
ensolaradas e �speras, noutras ocasi�es revestidas da cor e do cheiro da
terra. Mas n�o � apenas uma for�a m�gica da palavra que existe em A
Pedra do Reino. Nesse livro h� tamb�m uma estranha magia
impregnando as situa��es e os personagens: o Rapaz-do-Cavalo-
Branco, a vis�o do Profeta Naz�rio, o amor selvagem de Saira, o
estranho comportamento da bela Heliana que passava mel nos seios.
Sim, porque em A Pedra do Reino h� tamb�m a vertente da novela de
cavalaria � uma novela sertaneja de aventuras em que Sin�sio � o
Cavaleiro e a bela Heliana a sua Dama.
Um bom romancista tem muito de poeta, de encenador, de
m�sico, de profeta, de arquiteto, da paci�ncia de um confessor, do
improviso do repentista. E, nesse romance, vemos Ariano Suassuna em
todas essas condi��es, construindo, com o aux�lio do sonho e a for�a do
seu poder criador, o seu castelo rude e po�tico, sertanejo e barroco,
�spero e iluminado como as terras do seu Sert�o.

Recife, novembro, 1970.

CRONOLOGIA DE
ARIANO SUASSUNA
1927
Nascimento de Ariano Vilar Suassuna, a 16 de junho, na cidade
da Para�ba (atual Jo�o Pessoa), capital do Estado da Para�ba. Oitavo dos
nove ilhos do casal Jo�o Urbano Suassuna e Rita de C�ssia Vilar
Suassuna, Ariano nasce no Pal�cio do Governo, pois seu pai exerce, �
�poca, o cargo de presidente da Para�ba, o que equivalia ao atual cargo
de governador.
1928
A 22 de outubro, terminado o seu mandato, Jo�o Suassuna passa
o cargo de presidente a Jo�o Pessoa. A fam�lia Suassuna volta a seu
lugar de origem, o sert�o da Para�ba, indo residir na fazenda Acauhan,
pertencente a Jo�o Suassuna e localizada no atual munic�pio de
Aparecida.
1929
Iniciam-se, na Para�ba, as dissens�es pol�ticas que antecedem a
Revolu��o de 30.
1930

Come�a a luta armada na Para�ba. O coronel Jos� Pereira Lima,
l�der pol�tico do munic�pio de Princesa e aliado de Jo�o Suassuna,
declara a independ�ncia do seu munic�pio, que passa a se chamar
Territ�rio Livre de Princesa, resistindo �s investidas das tropas de Jo�o
Pessoa. A 26 de julho, o presidente Jo�o Pessoa, que se encontrava no
Recife, � assassinado por Jo�o Dantas. Entre os dias 3 e 4, rebenta a
Revolu��o de 30, na Para�ba. A 6 de outubro, Jo�o Dantas � assassinado
na Casa de Deten��o do Recife. A 9 de outubro, Jo�o Suassuna, ent�o
deputado federal, que viajara ao Rio de Janeiro para defender-se junto �
C�mara dos Deputados da injusta acusa��o de c�mplice no assassinato
de Jo�o Pessoa, � por sua vez assassinado, aos 44 anos de idade, na Rua
do Riachuelo, por um pistoleiro de aluguel, a mando da fam�lia Pessoa.
1933
D. Rita, agora chefe da fam�lia Suassuna, muda-se para Tapero�,
sert�o da Para�ba, icando sob a prote��o dos seus irm�os.
1934-1937
Em Tapero�, Ariano Suassuna estuda as primeiras letras,
primeiro em casa, depois na escola, com os professores Em�dio Diniz e
Alice Dias. Assiste, pela primeira vez na vida, a um desaio de viola, uma
peleja travada entre os cantadores Ant�nio Marinho e Ant�nio
Marinheiro. Numa feira, assiste tamb�m, pela primeira vez, a uma pe�a
de mamulengo, o tradicional teatro de bonecos do Nordeste. Dona Rita,
em diiculdades inanceiras, vende a fazenda Acauhan, para custear a
educa��o dos ilhos.

1938-1942
Ariano Suassuna faz o curso ginasial no Col�gio Americano
Batista, no Recife, em regime de internato, passando os per�odos de
f�rias escolares em Tapero�. Seus primeiros mestres de literatura s�o
de Tapero�: os tios Manuel Dantas Villar, �meio ateu, republicano e
anticlerical�, e Joaquim Duarte Dantas, �monarquista e cat�lico�. O
primeiro lhe indica leituras de E�a de Queiroz, Guerra Junqueiro e
Euclydes da Cunha; o segundo, a leitura de Dom Sebasti�o, de Antero de
Figueiredo. Muitos dos livros que l� s�o encontrados na biblioteca
deixada por Jo�o Suassuna, que foi um grande leitor. Em 1942, a fam�lia
Suassuna ixa-se no Recife. A 30 de novembro de 1942, Ariano discursa
como Orador da Turma na solenidade de encerramento do curso
ginasial.
1943
Estuda no Gin�sio Pernambucano (Col�gio Estadual de
Pernambuco), no Recife. Torna-se amigo, no col�gio, de Carlos Alberto
de Buarque Borges, que o inicia em m�sica erudita e em pintura.
1945
Estuda no Col�gio Oswaldo Cruz, no Recife, tornando-se amigo
do pintor Francisco Brennand, seu colega de turma. A 7 de outubro,
inicia-se na vida liter�ria, com a publica��o do poema �Noturno�, no
Jornal do Commercio, do Recife.
1946

Ingressa na tradicional Faculdade de Direito do Recife. Na
Faculdade, junta-se ao grupo que, liderado por Hermilo Borba Filho,
retoma, sob nova inspira��o te�rica, o Teatro do Estudante de
Pernambuco (TEP). Torna-se amigo do poeta e tradutor Jos� Laurenio
de Melo. Organiza, com o apoio do Diret�rio Acad�mico de Direito, uma
apresenta��o de cantadores, levada ao palco do Teatro Santa Isabel, no
Recife, a 26 de setembro. D� in�cio � publica��o dos seus primeiros
poemas ligados ao romanceiro popular nordestino, em peri�dicos
acad�micos e suplementos de jornais do Recife.
1947
Baseando-se no romanceiro popular nordestino, escreve a sua
primeira pe�a de teatro, Uma Mulher Vestida de Sol. A pe�a, que n�o �
encenada, recebe, no ano seguinte, o pr�mio Nicolau Carlos Magno.
1948
Escreve a pe�a Cantam as Harpas de Si�o, montada no mesmo
ano pelo TEP, com dire��o de Hermilo Borba Filho e cen�rio e igurinos
de Aloisio Magalh�es. A pe�a estreia a 18 de setembro, durante a
inaugura��o da �Barraca�, palco erguido no Parque Treze de Maio, no
Recife, sob inspira��o do trabalho de Garc�a Lorca. O primeiro ato de
Uma Mulher Vestida de Sol � publicado na revista Estudantes, do
Diret�rio Acad�mico da Faculdade de Direito.
1949

A 6 de mar�o, conclui a pe�a Os Homens de Barro, iniciada no ano
anterior.
1950
Escreve a pe�a Auto de Jo�o da Cruz, com a qual recebe o pr�mio
Martins Pena. Forma-se em Direito, pela Faculdade de Direito da
Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco).
Adoece de tuberculose, indo para Tapero�, � procura de bom clima para
se tratar.
1951
Em Tapero�, para receber sua noiva Z�lia e alguns familiares
seus que o foram visitar, escreve seu primeiro trabalho ligado ao
c�mico, uma pe�a para mamulengo, intitulada Torturas de um Cora��o
ou Em Boca Fechada n�o Entra Mosquito, pe�a por ele mesmo montada,
com acompanhamento musical do �terno de p�fanos� de Manuel
Campina. Converte-se ao catolicismo. � publicado pela Livraria-Editora
da Casa do Estudante do Brasil, do Rio de Janeiro, � de Toror� �
Maracatu, primeiro volume da Cole��o Dan�as Pernambucanas,
contendo o seu ensaio �Notas sobre a m�sica de Capiba�.
1952
De volta ao Recife, trabalha como advogado no escrit�rio do
jurista Murilo Guimar�es. Escreve a pe�a O Arco Desolado, com a qual
participa de concurso organizado pela Comiss�o do IV Centen�rio da
Cidade de S�o Paulo.

1953
Escreve O Castigo da Soberba, entremez baseado num folheto da
literatura de cordel. Assina coluna liter�ria no jornal Folha da Manh�,
do Recife.
1954
Escreve O Rico Avarento, entremez baseado numa pe�a
tradicional do mamulengo nordestino. Ministra curso de teatro no
Col�gio Estadual de Pernambuco, dirigindo os estudantes numa
montagem de Ant�gona, de S�focles, que ele mesmo traduziu, e cuja
estreia se d� a 9 de novembro, no Teatro Santa Isabel, com cen�rio e
roupagens de Aloisio Magalh�es. Participa do grupo de artistas,
escritores e intelectuais que funda O Gr�ico Amador (1954-1961),
importante movimento de artes gr�icas sediado no Recife.
1955
A 24 de maio, estreia a sua tradu��o da pe�a A Panela, de Plauto,
montada pelo Teatro do Col�gio Estadual de Pernambuco, ainda sob sua
dire��o, com cen�rio e roupagens de Aloisio Magalh�es. Escreve a pe�a
Auto da Compadecida. Publica o poema Ode, em edi��o de O Gr�ico
Amador, do Recife.
1956

Estreia, em abril, no n�cleo do SESI de Santo Amaro, no Recife,
nova montagem de A Panela, de Plauto, sob sua dire��o, agora encenada
por um grupo de oper�rios. A 14 de maio, dia do anivers�rio do Col�gio
Estadual de Pernambuco, o grupo de teatro do Col�gio apresenta, sob
sua dire��o, a pe�a em ato �nico O Processo do Cristo Negro, que escreve
num s� dia, e que �, nas suas palavras, �uma esp�cie de �facilita��o� do
terceiro ato do Auto da Compadecida�. � convidado para ensinar
Est�tica na Universidade do Recife (atual Universidade Federal de
Pernambuco) e abandona deinitivamente a advocacia. Escreve o seu
primeiro romance, A Hist�ria do Amor de Fernando e Isaura, que
permanecer� in�dito at� 1994. A 11 de setembro, o Auto da
Compadecida estreia no Teatro Santa Isabel, em montagem do Teatro
Adolescente do Recife, com dire��o de Cl�nio Wanderley e cen�rio de
Aloisio Magalh�es. A partir de 12 de setembro, a convite de Mauro
Mota, passa a assinar coluna sobre teatro no Di�rio de Pernambuco.
1957
Casa-se, a 19 de janeiro, dia do anivers�rio de nascimento do seu
pai, com a artista pl�stica Z�lia de Andrade Lima. Viaja para o Rio de
Janeiro, em lua de mel, e assiste � consagradora apresenta��o do Auto
da Compadecida no Primeiro Festival de Amadores Nacionais,
promovido pela Funda��o Brasileira de Teatro e realizado no m�s de
janeiro, no Teatro Dulcina. A pe�a � apresentada no dia 25, pelo mesmo
Teatro Adolescente do Recife, dirigido por Cl�nio Wanderley, e � logo
considerada pela melhor cr�tica do pa�s uma obra-prima, recebendo a
Medalha de Ouro do Festival. De 10 de junho a 26 de julho, escreve a
pe�a O Casamento Suspeitoso. A 27 de julho, estreia, pelo Teatro Amador
Sesiano de Pernambuco, sob sua dire��o, a pe�a As Trapa�as de
Escapim, de Moli�re, que ele pr�prio traduziu, com igurino assinado
por sua irm�, Germana Suassuna, e cen�rio de Juv�ncio Lopes. A 30 de
setembro, nasce seu primeiro ilho, Joaquim. Em outubro, o Auto da
Compadecida � publicado pela editora Agir. De 7 a 18 de novembro,
escreve a pe�a O Santo e a Porca.

1958
A 6 de janeiro, no Teatro Bela Vista, em S�o Paulo, estreia a pe�a
O Casamento Suspeitoso, em montagem da Companhia Nydia
Licia/S�rgio Cardoso, sob dire��o de Hermilo Borba Filho. Entre janeiro
e mar�o, reescreve a sua primeira pe�a, Uma Mulher Vestida de Sol. A
pe�a O Santo e a Porca estreia no Teatro Dulcina, no Rio, a 5 de mar�o,
em montagem da companhia Teatro Cacilda Becker, sob dire��o de
Ziembinski. De 12 a 13 de maio, reescreve a pe�a Cantam as Harpas de
Si�o, mudando seu t�tulo para O Desertor de Princesa. Em junho, encerra
sua coluna teatral no Di�rio de Pernambuco. A 21 de julho, no Teatro
Santa Isabel, no Recife, � apresentada uma montagem do Auto de Jo�o
da Cruz, pelo Teatro do Estudante da Para�ba, sob a dire��o de Cl�nio
Wanderley, no �mbito do I Festival Nacional de Teatros de Estudantes. A
4 de outubro, nasce sua ilha Maria das Neves.
1959
Escreve a pe�a A Pena e a Lei, a partir do entremez Torturas de
um Cora��o, de 1951. Funda, com Hermilo Borba Filho, o Teatro
Popular do Nordeste (TPN). O Auto da Compadecida � publicado na
Pol�nia, na revista Dialog, em tradu��o de Witold Wojciechowski e
Danuta Zmij (Historia o Milosiernej czyli Testament Psa).
1960
A Pena e a Lei estreia a 2 de fevereiro, no Teatro do Parque, no
Recife, em montagem do TPN, sob dire��o de Hermilo Borba Filho. A 4
de outubro, nasce seu ilho Manuel. Escreve a pe�a Farsa da Boa
Pregui�a. Forma-se em Filosoia, pela Universidade Cat�lica de
Pernambuco. O Auto da Compadecida � publicado em Portugal, na

Cole��o Teatro no Bolso, impresso na Editora Gr�ica Portuguesa, de
Lisboa, sem refer�ncia ao ano da edi��o.
1961
A Farsa da Boa Pregui�a estreia a 24 de janeiro, no Teatro de
Arena do Recife, em montagem do TPN, sob a dire��o de Hermilo Borba
Filho, com cen�rios e igurinos de Francisco Brennand. A pe�a O
Casamento Suspeitoso � publicada pela Editora Igarassu, do Recife.
1962
Escreve A Caseira e a Catarina, pe�a em um ato. A 25 de
novembro, nasce sua ilha Isabel. Publica, na revista DECA, do
Departamento de Extens�o Cultural e Art�stica da Secretaria de
Educa��o e Cultura de Pernambuco, n� 5, a primeira parte da Colet�nea
da Poesia Popular Nordestina: Romances do Ciclo Heroico.
1963
Publica, na revista DECA, n� 6, a segunda parte da Colet�nea da
Poesia Popular Nordestina: Romances do Ciclo Heroico. O Auto da
Compadecida � publicado nos Estados Unidos, pela editora da
Universidade da Calif�rnia, em tradu��o de Dillwyn F. Ratcliff (The
Rogues� Trial).
1964

Publica, na revista DECA, n� 7, a terceira e �ltima parte da
Colet�nea da Poesia Popular Nordestina: Romances do Ciclo Heroico. As
pe�as Uma Mulher Vestida de Sol e O Santo e a Porca s�o publicadas pela
Imprensa Universit�ria da Universidade do Recife. A 21 de junho, nasce
sua ilha Mariana. A 23 de dezembro, deixa o Teatro Popular do
Nordeste (TPN).
1965
O Auto da Compadecida � publicado na Holanda, pela funda��o
Ons Leekenspel, de Bussum, em tradu��o de J. J. van den Besselaar (Het
Testament van de Hond), e na Espanha, pelas Edi��es Alil, de Madrid,
em tradu��o de Jos� Mar�a Pem�n (Auto de la Compadecida).
1966
A pe�a O Santo e a Porca � publicada na Argentina, pelas edi��es
Losange, de Buenos Aires, em tradu��o de Ana Mar�a M. de Piacentino
(El Santo y la Chancha), junto com a pe�a Lisbela e o Prisioneiro, de
Osman Lins, em tradu��o de Montserrat Mira (Lisbela y el Prisionero).
De 7 a 30 de mar�o, escreve o romance O Sedutor do Sert�o ou O Grande
Golpe da Mulher e da Malvada, inicialmente pensado como roteiro de
cinema. A 10 de junho, nasce sua ilha Ana Rita.
1967
Recebe, da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, o
t�tulo de Cidad�o de Pernambuco. Por indica��o de Rachel de Queiroz,
torna-se membro fundador do Conselho Federal de Cultura.

1968
Torna-se membro fundador do Conselho Estadual de Cultura de
Pernambuco.
1969
O reitor Murilo Guimar�es o nomeia diretor do Departamento de
Extens�o Cultural (DEC) da Universidade Federal de Pernambuco.
Inicia, no DEC, os trabalhos que ir�o abrir caminho para o lan�amento,
no ano seguinte, do Movimento Armorial. Estreia o ilme A
Compadecida, do diretor George Jonas, primeira vers�o cinematogr�ica
da pe�a Auto da Compadecida.
1970
Recebe, a 3 de outubro, da C�mara Municipal de Tapero�,
Para�ba, o diploma de Cidad�o Taperoaense. A 9 de outubro, data do
anivers�rio da morte de Jo�o Suassuna, conclui o Romance d�A Pedra do
Reino e o Pr�ncipe do Sangue do Vai-e-Volta, que come�ara a escrever a
19 de julho de 1958, no dia do anivers�rio de sua esposa Z�lia. Com o
concerto Tr�s S�culos de M�sica Nordestina � do Barroco ao Armorial e
uma exposi��o de artes pl�sticas, � lan�ado oicialmente, a 18 de
outubro, na Igreja de S�o Pedro dos Cl�rigos, no Recife, o Movimento
Armorial, por ele idealizado para procurar uma arte erudita brasileira a
partir da cultura popular. O Auto da Compadecida � publicado na
Fran�a, pela editora Gallimard, em tradu��o de Michel Simon-Br�sil (Le
Jeu de la Mis�ricordieuse ou Le Testament du Chien).

1971
A pe�a A Pena e a Lei � lan�ada, em junho, pela editora Agir. Em
agosto, � publicado, pela Editora Jos� Olympio, o Romance d�A Pedra do
Reino. Para o exemplar do editor, escreve a seguinte dedicat�ria:
�Mestre Jos� Olympio: A �nica coisa que posso lhe dizer neste momento
� que a edi��o deste livro por voc� era um sonho meu. Estou, ent�o, n�o
� alegre, n�o: � profundamente orgulhoso. Com o afetuoso abra�o de
Ariano. Rio, 1. IX. 71�.
1972
Funda o Quinteto Armorial. O Romance d�A Pedra do Reino
recebe o Pr�mio Nacional de Fic��o, do Instituto Nacional do Livro �
INL/MEC. Deixa o Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco.
Estreia, no Jornal da Semana, do Recife, na edi��o de 17 a 23 de
dezembro, uma p�gina liter�ria semanal, intitulada �Almanaque
Armorial do Nordeste�.
1973
Desliga-se do Conselho Federal de Cultura.
1974
A Editora Jos� Olympio publica tr�s de suas pe�as: em janeiro,
em volume �nico, O Santo e a Porca e O Casamento Suspeitoso; em maio,
a Farsa da Boa Pregui�a, ambos os volumes com estampas de Z�lia

Suassuna. Encerra a publica��o do �Almanaque Armorial do Nordeste�
no Jornal da Semana, na edi��o de 2 a 8 de junho. A Editora da
Universidade Federal de Pernambuco publica O Movimento Armorial,
contendo a base te�rica do Movimento lan�ado em 1970. � publicado,
pelas Edi��es Guariba, do Recife, o �lbum Ferros do Cariri: Uma
Her�ldica Sertaneja. A 1� de outubro, � dispensado, a pedido, da dire��o
do DEC/UFPE. Em dezembro, a Editora Jos� Olympio publica, em
conv�nio com o INL/MEC, a Seleta em Prosa e Verso de Ariano Suassuna,
com estudo, coment�rios e notas de Silviano Santiago e estampas de
Z�lia Suassuna, livro que ser� lan�ado no in�cio do ano seguinte.
1975
Publica Inicia��o � Est�tica, pela Editora da Universidade
Federal de Pernambuco. A convite do prefeito Ant�nio Farias, assume o
cargo de secret�rio de educa��o e cultura do Recife. A 15 de novembro,
d� in�cio � publica��o de �Ao Sol da On�a Caetana�, primeiro livro da
Hist�ria d�O Rei Degolado nas Caatingas do Sert�o, em folhetim semanal
no Di�rio de Pernambuco. A 18 de dezembro, com a estreia, no Teatro
Santa Isabel, da Orquestra Roman�al Brasileira, por ele fundada,
encerra-se a primeira fase do Movimento Armorial, chamada de
�Experimental�, iniciando-se a segunda, a fase �Roman�al�.
1976
A 25 de abril, conclui os folhetins do primeiro livro de O Rei
Degolado, iniciando, a 2 de maio, a publica��o do segundo, intitulado
�As Inf�ncias de Quaderna�, no mesmo Di�rio de Pernambuco. A 18 de
junho, estreia, no Teatro Santa Isabel, o Bal� Armorial do Nordeste, por
ele idealizado, com dire��o e coreograia de Fl�via Barros. �
inaugurada, a 26 de agosto, no Recife, no Casar�o Jo�o Alfredo, a
exposi��o Os Dez Anos de Casa Caiada no Mundo do Armorial, com

tapetes criados a partir dos desenhos que realizou para ilustrar o
Romance d�A Pedra do Reino e a Hist�ria d�O Rei Degolado. A exposi��o
segue para o Rio, sendo inaugurada no Museu Nacional de Belas Artes,
a 16 de dezembro. A 30 de dezembro, defende, na Universidade Federal
de Pernambuco, sua tese de livre-doc�ncia, intitulada A On�a Castanha e
a Ilha Brasil: uma Relex�o sobre a Cultura Brasileira, com a qual recebe
diploma de doutor em Hist�ria.
1977
Publica��o, em mar�o, pela Editora Jos� Olympio, do primeiro
livro da Hist�ria d�O Rei Degolado nas Caatingas do Sert�o, intitulado
�Ao Sol da On�a Caetana�. A 19 de junho, conclui a publica��o dos
folhetins de �As Inf�ncias de Quaderna�. A 26 de junho, com o artigo �A
coniss�o desesperada�, passa a assinar coluna opinativa aos domingos,
no mesmo Di�rio de Pernambuco.
1978
A 31 de maio, � exonerado, a pedido, do cargo de secret�rio de
educa��o e cultura do Recife.
1979
O Romance d�A Pedra do Reino � publicado na Alemanha, edi��o
de Hobbit Presse/Klett-Cotta, de Stuttgart, em tradu��o de Georg
Rudolf Lind (Der Stein des Reiches).

1980
Lan�a o �lbum de iluminogravuras Dez Sonetos com Mote Alheio.
1981
Publica, no Di�rio de Pernambuco, a 9 de agosto, o c�lebre artigo
�Despedida�, encerrando a sua colabora��o dominical com o jornal e
comunicando o seu afastamento da vida liter�ria. Deixa de dar
entrevistas e de participar de eventos culturais, limitando-se � sua
atividade docente na Universidade Federal de Pernambuco.
1985
Lan�a o �lbum de iluminogravuras Sonetos de Albano
Cervonegro.
1986
O Auto da Compadecida � publicado pela editora Di�, de St.
Gallen/ Wuppertal, em tradu��o alem� de Willy Keller (Das Testament
des Hundes oder Das Spiel von Unserer Lieben Frau der Mitleidvollen).
1987

Estreia o ilme Os Trapalh�es no Auto da Compadecida, baseado
em sua obra e dirigido por Roberto Farias. A 16 de junho, para
comemorar seu anivers�rio de 60 anos, intelectuais, artistas populares
e admiradores em geral promovem uma grande festa em frente � sua
resid�ncia, na rua do Chacon, no bairro de Casa Forte, no Recife.
Tamb�m por ocasi�o do seu anivers�rio, a Editora da UFPE lan�a a
plaquete Suassuna e o Movimento Armorial, de George Browne R�go e
Jarbas Maciel. Volta a escrever para teatro, com a pe�a As
Conchambran�as de Quaderna.
1988
Em setembro, a pe�a As Conchambran�as de Quaderna estreia no
Teatro Valdemar de Oliveira, no Recife, em montagem da
Cooperarteatro, com dire��o de L�cio Lombardi e cen�rios e igurinos
de Romero de Andrade Lima.
1989
� publicada, pela Editora Record, do Rio de Janeiro, sua tradu��o
do livro The Revolution that Never Was (A Revolu��o que Nunca Houve),
do escritor norte-americano Joseph A. Page. Aposenta-se do cargo de
professor da Universidade Federal de Pernambuco, onde lecionou
Est�tica, Hist�ria da Arte, Cultura Brasileira, Teoria do Teatro e
disciplinas ains.
1990

A 26 de abril, morre sua m�e, D. Rita Suassuna, aos 94 anos. A 9
de agosto, toma posse na Academia Brasileira de Letras (cadeira n� 32).
Filia-se, pela primeira vez na vida, a um partido pol�tico, o Partido
Socialista Brasileiro (PSB).
1991
A 26 de outubro, � publicada, na Folha de S.Paulo, uma extensa
entrevista concedida a Marilene Felinto e Alcino Leite Neto, anunciando
a escritura de um novo romance.
1992
O Auto da Compadecida � publicado na It�lia, pela
Guaraldi/Nuova Compagnia Editrice, em tradu��o de Laura Lotti.
1993
� realizada, em S�o Jos� do Belmonte, Pernambuco, por jovens
do munic�pio, a I Cavalgada � Pedra do Reino. A editora Francisco Alves,
do Rio de Janeiro, lan�a o livro O Sert�o Medieval: Origens Europeias do
Teatro de Ariano Suassuna, de Ligia Vassallo. A 1� de dezembro, toma
posse na Academia Pernambucana de Letras (cadeira n� 18).
1994

A 12 de julho, a Rede Globo de Televis�o exibe o especial Uma
Mulher Vestida de Sol, baseado na sua primeira pe�a de teatro e dirigido
por Luiz Fernando Carvalho. A editora Baga�o, do Recife, publica o seu
primeiro romance, A Hist�ria do Amor de Fernando e Isaura, cujo
lan�amento ocorre a 7 de outubro. A Editora da Universidade Federal
da Para�ba publica a Aula Magna, transcri��o da confer�ncia que
proferiu na institui��o a 16 de novembro de 1992.
1995
A convite do governador Miguel Arraes, assume, a 1� de janeiro,
a Secretaria de Cultura de Pernambuco. A 28 de maio, participa, em S�o
Jos� do Belmonte, da III Cavalgada � Pedra do Reino, agora organizada
pela Associa��o Cultural Pedra do Reino, que lhe confere o t�tulo de
Cavaleiro da Pedra do Reino. Em junho, apresenta o Projeto Cultural
Pernambuco-Brasil, por ele elaborado para nortear as a��es da
Secretaria de Cultura, entre as quais se inclui a apresenta��o de �aulasespet�culo�
contendo explica��es �sobre a cultura brasileira popular e
erudita, com exibi��o de n�meros de m�sica e dan�a ou de imagens
ligadas � arquitetura, � escultura, � pintura etc.� A 30 de novembro, a
Universidade Federal de Pernambuco concede-lhe o t�tulo de Professor
Em�rito. A 5 de dezembro, a Rede Globo de Televis�o apresenta o
especial A Farsa da Boa Pregui�a, baseado em sua pe�a, com dire��o de
Luiz Fernando Carvalho e cen�rios assinados por seu ilho, Manuel
Dantas Suassuna.
1996
Escreve A Hist�ria do Amor de Romeu e Julieta, pe�a em um ato, a
partir de um folheto de cordel. Com Antonio Madureira, que liderara o
Quinteto Armorial, funda o Quarteto Roman�al, ligado � Secretaria de
Cultura de Pernambuco. A 26 de setembro, realiza, no Teatro do Parque,

no Recife, a �Grande Cantoria Louro do Paje��, aula-espet�culo em que
apresenta repentistas, em comemora��o ao cinquenten�rio da cantoria
por ele organizada em 1946, enquanto estudante de Direito. A 14 de
novembro, estreia, no Teatro da Universidade Federal de Pernambuco, a
pe�a A Hist�ria do Amor de Romeu e Julieta, montagem da Trupe
Roman�al de Teatro, sob a dire��o de Romero de Andrade Lima, com
cen�rios de Manuel Dantas Suassuna e igurinos de Luciana Buarque.
1997
A 19 de janeiro, o suplemento �Mais!�, da Folha de S.Paulo,
publica o texto da pe�a A Hist�ria do Amor de Romeu e Julieta, ilustrado
com gravuras de J. Borges. A 15 de junho, um domingo, o Jornal do
Commercio, do Recife, publica caderno especial em homenagem aos
seus 70 anos. A 26 de agosto, � inaugurado, no Recife, o Teatro Arraial,
fruto do seu trabalho na Secretaria de Cultura, e cujo nome homenageia
o arraial de Canudos. A 20 de novembro, estreia, no Teatro do Parque,
do Recife, A Pedra do Reino, uma adapta��o teatral do seu romance,
realizada por Romero de Andrade Lima, que tamb�m assina a dire��o,
com cen�rios de Manuel Dantas Suassuna. A 16 de dezembro, o artista
pl�stico Guilherme da Fonte inaugura, na Academia Pernambucana de
Letras, a exposi��o Mosaicos Armoriais, com trabalhos em granito e
m�rmore, realizados a partir dos seus desenhos. O Minist�rio da
Cultura lan�a o v�deo Aula-Espet�culo, com dire��o e roteiro de
Vladimir Carvalho, contendo um registro condensado da aulaespet�culo
que apresentou a convite do Minist�rio, na Universidade de
Bras�lia.
1998
Concebe e escreve o roteiro do espet�culo de dan�a A Demanda
do Graal Dan�ado, que estreia a 19 de mar�o, no Teatro Arraial, com

� q �
coreograia de Maria Paula R�go e dire��o de arte e cenograia de
Manuel Dantas Suassuna. Elabora o roteiro musical para o espet�culo
de dan�a Pernambuco � do Barroco ao Armorial, cuja estreia ocorre a 22
de maio, no Teatro Arraial, com dire��o geral de Marisa Queiroga,
coreograias de Helo�sa Duque e cen�rios e igurinos de Manuel Dantas
Suassuna. A 9 de setembro, � lan�ado, no Recife, o CD A Poesia Viva de
Ariano Suassuna, em que declama seus poemas sob fundo musical de
Antonio Madureira. O Romance d�A Pedra do Reino � publicado na
Fran�a, pelas edi��es M�taili�, de Paris, em tradu��o de Idelette Muzart
Fonseca dos Santos (La Pierre du Royaume). � editado, em Portugal,
pela Ar�on Publica��es, de Lisboa, o seu ensaio Olavo Bilac e Fernando
Pessoa: uma presen�a brasileira em Mensagem?, originalmente
publicado na revista Estudos Universit�rios, da UFPE, em 1966. A 31 de
dezembro, com o im do governo de Miguel Arraes, deixa a Secretaria
de Cultura de Pernambuco.
1999
De 5 a 8 de janeiro, a Rede Globo de Televis�o exibe os quatro
cap�tulos da miniss�rie O Auto da Compadecida, adapta��o de sua pe�a
realizada por Guel Arraes, Adriana Falc�o e Jo�o Falc�o, com dire��o de
Guel Arraes. A 2 de fevereiro, estreia coluna semanal, �s ter�as-feiras,
no jornal Folha de S.Paulo, na se��o �Opini�o�. A 19 de mar�o, estreia, no
programa NE-TV:1� Edi��o , da Rede Globo, o quadro �O Canto de
Ariano�, apresentado semanalmente, �s sextas-feiras. Ainda em mar�o,
estreia coluna mensal na revista Bravo!, na se��o �Ensaio!�. A Editora da
UFPE publica uma antologia de seus poemas organizada por Carlos
Newton J�nior. O Auto da Compadecida � publicado em bret�o, na
cidade de Brest, Fran�a, em tradu��o de Remi Derrien. A Editora da
Unicamp lan�a o livro Em Demanda da Po�tica Popular: Ariano Suassuna
e o Movimento Armorial, de Idelette Muzart Fonseca dos Santos.

2000
A 27 de abril, recebe, em Natal, o t�tulo de Doutor Honoris Causa
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em junho, encerra sua
colabora��o com a revista Bravo!. A 4 de julho, encerra a coluna que
vinha escrevendo na Folha de S.Paulo, �s ter�as, para estrear a 10 de
julho, em novo formato e no mesmo jornal, �s segundas, uma outra
coluna, que chama de �Almanaque Armorial�. � inaugurada, a 25 de
agosto, na unidade do SESC de Casa Amarela, no Recife, a exposi��o
Iluminogravuras, com exemplares dos dois �lbuns lan�ados na d�cada
de 1980. A 15 de setembro, estreia, nos cinemas, O Auto da
Compadecida, dirigido por Guel Arraes, ilme montado a partir da
miniss�rie exibida no ano anterior. Toma posse, a 9 de outubro, na
Academia Paraibana de Letras (cadeira n� 35). � lan�ada, pela editora A
Uni�o, de Jo�o Pessoa, a plaquete Ariano Suassuna, escrita pelo
jornalista Jos� Nunes para a s�rie hist�rica �Para�ba: Nomes do S�culo�.
A 6 de dezembro, � lan�ado, no Recife, no Forte das Cinco Pontas, o
n�mero 10 da cole��o Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto
Moreira Salles, dedicado � sua obra. A 26 de dezembro, � exibido, na
Rede Globo, o especial O Santo e a Porca, baseado em sua pe�a, com
roteiro de Adriana Falc�o e dire��o de Maur�cio Farias.
2001
A 26 de mar�o, encerra a publica��o do �Almanaque Armorial�
na Folha de S.Paulo. A 31 de outubro, recebe, no Rio, t�tulo de Doutor
Honoris Causa, concedido pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
2002

� homenageado no carnaval do Rio de Janeiro pela escola de
samba Imp�rio Serrano, que desila na Sapuca� com o enredo
Aclama��o e Coroa��o do Imperador da Pedra do Reino Ariano Suassuna.
A 15 de maio, recebe, em Aracaju, t�tulo de Doutor Honoris Causa,
concedido pela Universidade Federal de Sergipe. A 16 de junho, por
ocasi�o do seu anivers�rio de 75 anos, o jornal A Uni�o, da Para�ba,
dedica-lhe um caderno especial, editado pelo jornalista William Costa.
A 29 de junho, em Jo�o Pessoa, recebe t�tulo de Doutor Honoris Causa,
concedido pela Universidade Federal da Para�ba. A 10 de agosto, recebe,
em Salvador, o Pr�mio Nacional Jorge Amado de Literatura e Arte. A
editora Palas Athena, de S�o Paulo, publica o livro O Cabreiro
Tresmalhado: Ariano Suassuna e a Universalidade da Cultura, de Maria
Aparecida Lopes Nogueira.
2003
Em maio, reescreve a pe�a Os Homens de Barro, cuja primeira
vers�o havia sido conclu�da em 1949. A 29 de setembro, recebe, em
Mossor�, t�tulo de Doutor Honoris Causa concedido pela Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte. A 25 de novembro, na sede da
Academia Brasileira de Letras, no Rio, � lan�ado o document�rio em
longa-metragem O Sert�omundo de Suassuna, do cineasta Douglas
Machado.
2005
A editora Agir lan�a edi��o especial do Auto da Compadecida, em
comemora��o aos 50 anos da pe�a. A edi��o � ilustrada por Manuel
Dantas Suassuna e cont�m textos cr�ticos de Braulio Tavares, Carlos
Newton J�nior e Raimundo Carrero. A 31 de julho, o jornal O Povo, de
Fortaleza, lan�a caderno especial sobre a sua obra, editado pela
jornalista Eleuda de Carvalho, antecipando as comemora��es dos seus

j p �
60 anos de vida liter�ria, completados a 7 de outubro. A 25 de agosto,
recebe, em Passo Fundo (RS), t�tulo de Doutor Honoris Causa,
concedido pela Universidade de Passo Fundo. A 25 de novembro,
recebe, no Recife, t�tulo de Doutor Honoris Causa, concedido pela
Universidade Federal Rural de Pernambuco. A editora 7 Letras, do Rio
de Janeiro, lan�a Teatro e Comicidades: estudos sobre Ariano Suassuna e
outros ensaios, de v�rios autores, com organiza��o de Beti Rabetti. O
fot�grafo Gustavo Moura lan�a o livro Do Reino Encantado, com
fotograias inspiradas no sert�o suassuniano.
2006
A 14 de mar�o, ministra aula-espet�culo de abertura do ano
acad�mico na Academia Brasileira de Letras e participa, logo em
seguida, na Galeria Manuel Bandeira, da abertura da exposi��o Do Reino
Encantado: Iluminogravuras de Ariano Suassuna e fotograias de Gustavo
Moura, sob a curadoria de Alexei Bueno. A 13 de maio, � apresentado o
�ltimo programa do quadro �O Canto de Ariano�. A 25 de maio, recebe,
na C�mara Municipal de S�o Paulo, o t�tulo de Cidad�o Paulistano.
Estreia em S�o Paulo, a 20 de julho, no Teatro Anchieta, do SESC, o
espet�culo A Pedra do Reino, adapta��o para teatro do Romance d�A
Pedra do Reino e da Hist�ria d�O Rei Degolado, realizada e dirigida por
Antunes Filho. A 21 de agosto, antecipando as comemora��es dos seus
80 anos, a Universidade Federal de Pernambuco lan�a o N�cleo Ariano
Suassuna de Estudos Brasileiros (NASEB).
2007
A convite do governador Eduardo Campos, assume, a 1� de
janeiro, a Secretaria Especial de Cultura de Pernambuco. A 19 de
janeiro, comemora, com Z�lia, ilhos e netos, as suas Bodas de Ouro. A
23 de abril, por ocasi�o da abertura do 11� Cine PE, no Centro de

Conven��es de Pernambuco, � exibido o document�rio em longametragem
O Senhor do Castelo, do cineasta Marcus Vilar, sobre sua vida
e obra. Recebe, em Salvador, na Assembleia Legislativa, a 10 de maio, o
t�tulo de Cidad�o Baiano. Por ocasi�o do seu 80� anivers�rio, recebe
uma s�rie de homenagens. Em Jo�o Pessoa, � homenageado durante o
3� CINEPORT (Festival de Cinema de Pa�ses de L�ngua Portuguesa), de 4
a 13 de maio, com uma exposi��o de fotograias de Gustavo Moura. No
Rio de Janeiro, realiza-se, entre os dias 10 e 17 de junho, sob a
coordena��o art�stica da atriz Inez Viana, o projeto Ariano Suassuna 80,
promovido pela Sarau Ag�ncia de Cultura Brasileira, com apoio da Rede
Globo. O projeto � iniciado com uma aula-espet�culo no Theatro
Municipal e segue com uma �Semana Armorial�, com extensa
programa��o de palestras, mesas-redondas, exposi��es, apresenta��es
musicais, exibi��o de ilmes etc. De 12 a 16 de junho, a Rede Globo
exibe a miniss�rie A Pedra do Reino, em 5 cap�tulos, adapta��o do seu
romance realizada por Luiz Fernando Carvalho, Lu�s Alberto de Abreu e
Braulio Tavares, com dire��o de Luiz Fernando Carvalho. A 14 de junho,
� lan�ado, no munic�pio de Floriano, durante uma �Semana de Arte
Armorial� promovida pelo Centro Federal de Educa��o, Ci�ncia e
Tecnologia do Piau�, o document�rio em m�dia-metragem Ariano
Suassuna: Cabra de Cora��o e Arte ou O Cavaleiro da Alegre Figura, do
cineasta Claudio Brito. A 12 de julho, a Academia Brasileira de Letras
promove uma mesa-redonda em sua homenagem, no Sal�o Nobre do
Petit Trianon, com Moacyr Scliar, Jos� Almino de Alencar e Carlos
Newton J�nior, seguida da abertura da exposi��o Ariano Suassuna, uma
fotobiograia, na Galeria Manuel Bandeira. De 18 a 30 de setembro,
realiza-se, em S�o Paulo, o projeto Ariano Suassuna 80 anos: o local e o
universal, tamb�m iniciado com aula-espet�culo do autor e com uma
extensa programa��o de palestras, exposi��es, mostra de ilmes etc. De
29 a 30 de outubro, realiza-se, na Universidade Paris X � Nanterre,
Fran�a, o Col�quio Ariano Suassuna 80 anos, com confer�ncias e mesasredondas
sobre a sua obra. Ainda no �mbito das comemora��es dos
seus 80 anos, s�o lan�ados tr�s livros sobre a sua vida e a sua obra: ABC
de Ariano Suassuna, de Braulio Tavares, pela Editora Jos� Olympio;
Ariano Suassuna: Um Peril Biogr�ico, de Adriana Victor e Juliana Lins,
pela Editora Jorge Zahar; Ode a Ariano Suassuna, organizado por Maria
Aparecida Lopes Nogueira, contendo ensaios e depoimentos de v�rios

autores, pela Editora da UFPE. A 25 de setembro, recebe, na C�mara
Municipal de Natal, t�tulo de Cidad�o Natalense. Em dezembro, a
Editora Paulistana, de S�o Paulo, lan�a Discurso e Mem�ria em Ariano
Suassuna, com textos de v�rios autores e organiza��o de Guaraciaba
Micheletti.
2008
� homenageado no carnaval de S�o Paulo pela escola de samba
Mancha Verde. A 20 de agosto, � lan�ado, no Rio de Janeiro, pela Editora
Jos� Olympio, o Almanaque Armorial, colet�nea de seus ensaios
organizada por Carlos Newton J�nior.
2009
A 21 de setembro, � lan�ado, em Jo�o Pessoa, o document�rio
em m�dia-metragem Ariano: Impress�es, do cineasta Claudio Brito.
2010
A 10 de junho, recebe, em Fortaleza, t�tulo de Doutor Honoris
Causa, concedido pela Universidade Federal do Cear�. A 24 de agosto,
em Macei�, recebe o t�tulo de Doutor Honoris Causa, concedido pela
Universidade Federal de Alagoas. A 6 de outubro, no Recife, morre seu
ilho mais velho, Joaquim, aos 53 anos. A 31 de dezembro, deixa a
Secretaria Especial de Cultura de Pernambuco.

2011
A Editora Jos� Olympio publica sua pe�a Os Homens de Barro. O
artista pl�stico Alexandre N�brega lan�a o livro O Decifrador, ensaio
fotogr�ico realizado a partir das suas viagens para ministrar aulasespet�culo
em diversas cidades do pa�s. A 13 de agosto, na fazenda
Carna�ba, em Tapero�, sob a coordena��o art�stica de seu ilho, Manuel
Dantas Suassuna, d� in�cio � execu��o da �Ilumiara Ja�na�, conjunto
escult�rico em baixo-relevo que ser� descrito no Romance de Dom
Pantero no Palco dos Pecadores.
2013
A 17 de abril, o cineasta Claudio Brito lan�a mais um
document�rio sobre a sua obra, o longa-metragem Ariano: Suassunas.
Come�a a apresentar problemas de sa�de. A 21 de agosto, � internado,
no Hospital Portugu�s, no Recife, devido a um infarto. A 4 de setembro,
recebe alta do Hospital, para continuar tratamento de recupera��o em
casa.
2014
� homenageado no carnaval do Recife pelo bloco O Galo da
Madrugada, comparecendo ao desile. A 18 de julho, ministra, em
Garanhuns, Pernambuco, no �mbito do Festival de Inverno, aquela que
seria a sua �ltima aula-espet�culo. A 21 de julho � internado, no
Hospital Portugu�s, no Recife, v�tima de acidente vascular cerebral
hemorr�gico, morrendo a 23 de julho, de parada card�aca. � sepultado,
no dia 24, no cemit�rio Morada da Paz, em Paulista, munic�pio da
Regi�o Metropolitana do Recife. Deixa, in�dito, entre outras obras, o
Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores. � homenageado na

10� Festa Liter�ria Internacional de Pernambuco (FLIPORTO), que
acontece de 13 a 16 de novembro, em Olinda. A 19 de dezembro, o
Tribunal de Contas do Estado da Para�ba inaugura, em Jo�o Pessoa, o
Centro Cultural Ariano Suassuna, edi�cio projetado pelo arquiteto
Expedito Arruda, contendo audit�rio, sal�o de exposi��es, biblioteca
etc.
2015
A revista liter�ria Hoblicua dedica n�mero especial em sua
homenagem. A 4 de outubro, realiza-se em Tapero�, Para�ba, no �mbito
do IV Festival Internacional de Folclore e Artes do Cariri, mesa-redonda
em comemora��o aos 60 anos do Auto da Compadecida, com
participa��o do ator Matheus Nachtergaele, do artista pl�stico Manuel
Dantas Suassuna e do escritor Carlos Newton J�nior.
2016
O condom�nio de herdeiros de Ariano Suassuna assina contrato
para edi��o de toda a sua obra com a editora Nova Fronteira, do Rio de
Janeiro.

DIRE��O GERAL
Ant�nio Ara�jo
DIRE��O EDITORIAL
Daniele Cajueiro
EDITORA RESPONS�VEL
Jana�na Senna
PRODU��O EDITORIAL
Adriana Torres
Andr� Marinho
FIXA��O DE TEXTO E CRONOLOGIA DE ARIANO SUASSUNA
Carlos Newton J�nior
REVIS�O
Rita Godoy, Luara Fran�a, Raquel Correa, Pedro Staite, Rachel Rimas,
Roberto Jannarelli, Fernanda Mello, Stella Lima, Marluce Faria,
Alessandra Volkert, Jos� Grillo, Olga de Mello
DIRE��O DE ARTE
Manuel Dantas Suassuna
CAPA E PROJETO GR�FICO
Ricardo Gouveia de Melo
PRODU��O DO EBOOK
Ranna Studio









O Grupo Amigos dos Livros e Outros  tem o prazer de lançar hoje mais um livro digital para atender aos  deficientes visuais !

ROMANCE DA PEDRA DO REINO - ARIANO SUASSUNA
SINOPSE:
O romance Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna, conta a história de Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna, um homem que foi preso por subversão em Taperoá, na Paraíba. O livro é narrado como um memorial de defesa de Quaderna perante o corregedor

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