Editor � Henrique F�lix
Assistente editorial � Jacqueline F. de Barros
Prepara��o de texto � L�cia Leal Ferreira
Revis�o de texto � Pedro Cunha J�nior (coord.) / Elza Maria Gasparotto
Maria Cec�lia Kinker Caliendo
Gerente de arte � Nair de Medeiros Barbosa
Coordena��o de arte � Marco Aur�lio Sismotto
Diagrama��o � MZolezi
Projeto gr�fico de capa e miolo � Homem de Melo Et Tr�ia Design
Suplemento de leitura e projeto de trabalho interdisciplinar � Arlete Betini
Dados Internacionais de Cataloga��o na Publica��o (CIP)
(C�mara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
D�ria, Antonio Sampaio
Um amigo inesquec�vel / Antonio Sampaio
D�ria ; ilustra��es Marcelo Martins. - S�o Paulo :
Atual, 2003. - (Entre linhas)
Acompanha projeto de trabalho interdisciplinar,
guia do professor.
ISBN 85-357-0311-X
1. Literatura infanto-juvenil I. Martins, Marcelo.
II. T�tulo. III. S�rie.
03-0006 CDD-028.5
�ndices para cat�logo sistem�tico:
1. Literatura infantil 028.5
2. Literatura infanto-juvenil 028.5
� Antonio Sampaio D�ria, 2003.
Copyright desta edi��o:
SARAIVA S.A. Livreiros Editores, S�o Paulo, 2003.
Av. Marqu�s de S�o Vicente, 1697 - Barra Funda
01139-904 - S�o Paulo - SP
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Sum�rio
Parte um: Inf�ncia 5
Parte dois: 0 clube 37
Parte tr�s: A capital 117
O autor 140
Entrevista 142
Aos meus amigos e amigas
que de uma forma ou de outra sempre est�o presentes.
E sem os quais
a vida n�o teria esse inesquec�vel sabor.
Parte um:
Inf�ncia
1
A fam�lia era como todas as fam�lias: o copo de leite na mesa, os len��is
arrastados at� o meio do quarto, o sol na soleira da porta, as m�os se
agitando na despedida: tchau, pai! 0 dia passado nos quintais, areias e
matos, vem almo�ar, menino, almo�ava correndo, voltava a brincar.
Para mais tarde me arrepender, quando a sujeira tinha de ser esfregada
de todo jeito. Sentado na bacia de lata, a �gua quente que logo ficava
gelada, s� deixava tirar o casc�o do p�, o resto levava de heran�a.
� Quando voc� morrer � Nana dizia - vai ter tanta sujeira que
nem vai precisar jogar terra por cima.
� Ent�o ningu�m vai ter trabalho por minha causa!
Sentado na sala, o cabelo brilhando de molhado, a risca que n�o
podia ser tocada, minha m�e sorria: assim que eu gosto. E come�ava
a testar minha intelig�ncia: um mais um � dois, dois mais dois �
quatro. E cad� o queijinho que estava aqui? 0 rato comeu. E cad� o
rato? 0 gato pegou. E cad� o gato?
0 gato fugia da l�gica sem fim assim que ouvia o barulho de
chave na porta, o pai chegou!
E antes que a porta se abrisse, eu subia a escada, mergulhava em
arm�rios e sa�a como um imperador etrusco: roupas de baixo me serviam
de coroa, gravatas moldavam o cintur�o real e a maquiagem, a
maquiagem da minha m�e, pingava na m�scara que eu havia criado.
Descia solenemente a escada e minha m�e ensaiava um gesto de
horror que meu pai, admirado, cortava:
� Que gra�a!
Podia desfilar a minha gl�ria no tapete da sala, enquanto a turba aplaudia.
Podia exigir que fizessem minhas vontades, que meus s�ditos me
carregassem. Subia no lombo do elefante e castigava sua barriga com os
p�s: mais r�pido, mais r�pido! S� ficava ressabiado quando a travessia
terminava na sala de jantar. Ali, um prato de sopa me esperava.
� Um avi�ozinho, dois avi�ezinhos...
Horas depois, alguns avi�es tinham sofrido acidentes de percurso,
e eu ainda n�o tinha terminado. Mas bastava raspar o prato para
deixar todos felizes: cada fim de refei��o era uma festa, e ent�o
traziam a sobremesa. Eu me esbaldava com doces, gelatinas, com os
prazeres que s� uma ordem cortava:
� Hora de ir para a cama.
Ca�a no ch�o desmaiado: tinha comido demais.
Puxavam-me pela m�o. Sem escapat�ria, subia a escada, mas a�
iniciava-se um novo jogo: um degrau, dois degraus...
� Oito degraus...
Os �ltimos passos eram lentos, demorava para contar. 0 pai e a
m�e n�o podiam desgrudar os olhos, afinal ELES � que tinham inventado
o jogo.
� Vinte!
Tudo, no fim das contas, era uma quest�o de n�meros. Avi�es,
gatos, ratos, degraus. E depois do vinte?
� Boa noite � meu pai dizia, esperando que eu entrasse no quarto
e apagasse a luz. Eu entrava, apagava, e voltava ao fim da escada,
em surdina. Do que estariam falando?
� Voc� mima demais esse menino � dizia minha m�e. - Isso n�o
� educa��o. Que esp�cie de homem ele vai ser?
� Deixa! Ele ainda � crian�a.
� N�o sei, n�o.
Quem diria, falavam de mim! Voltava silenciosamente � cama e
ficava pensando. Ele ainda � crian�a, dizia meu pai. Que esp�cie de
homem ele vai ser? dizia minha m�e. Ficava pensando e dormia.
� Carlo! Carlo!
Ca�a da cama com Nana abrindo a janela e o sol entrando. As
vezes, a m�e entrava com uma fita m�trica:
- Mais um cent�metro: quatro anos e j� est� gigante!
Por um instante eu crescia tanto que n�o cabia mais naquela casa: o
teto estourava com a press�o da minha cabe�a, e fic�vamos sem abrigo.
Minha m�e me tranq�ilizou: ficaria do tamanho do papai, um
pouco mais, um pouco menos.
� E se eu crescer mais ainda?
- Os filhos ficam iguais aos pais. Na apar�ncia, no tamanho...
- E depois?
� Voc� vai se casar, constituir fam�lia... Como seu pai.
0 pai saindo de casa, a pasta na m�o, o beijo na porta: eu seria assim?
0 fusca cinza fazia um barulh�o at� esquentar.
0 pai aproveitava para limpar o sereno do vidro.
A m�e dava adeus, sa�a de casa e ficava o dia inteiro fora.
Sozinho, ca�a das nuvens. Nana ia para a cozinha e eu ia atr�s dela:
� E se eu n�o casar?
� 0 que voc� vai fazer, ent�o?
- Ficar com minha m�e e meu pai.
� Ag�entando dois velhos rabugentos? Precisa casar, onde j� se viu!
- E voc�, por que n�o casou?
Nana ficava em sil�ncio, para ent�o responder:
- Quem disse que n�o vou casar? Ainda sou mo�a.
- J� est� noiva?
- Vai brincar no quintal, vai.
Eu ia para a sala, entrava no quadrado de sol e ficava pensando.
De tanto pensar, resolvi nunca mais abrir a boca.
- S� uma colher...
0 que era dif�cil ficou imposs�vel. N�o comia um gr�o de arroz.
0 pai e a m�e preocupados: nem um gr�o de arroz! Nada al�m de
um copo de toddy!
- Est� virando um esqueleto.
Peguei uma gripe. Recusava comida, cuspia as sopas no travesseiro.
A m�e ficou nervosa, ouvi uma conversa no corredor:
- N�o tem amor � vida, esse menino.
- Bobagem - disse o pai.
Chamaram um m�dico. Eu j� estava de olho na porta, quando ele
chegou: um homem alto, de branco, com uma mala preta.
- Ent�o esse rapaz n�o quer comer?
N�o respondi nada. Com m�os ossudas ele me examinava.
- Precisa comer. Sabe o que acontece com crian�a que n�o come?
Continuei quieto. 0 m�dico tinha um sorrisinho:
- Sabe o que acontece, sabe?
A resposta veio r�pida: ele levantou no ar uma inje��o e empurrou
o l�quido, at� a gota escorrer.
- N�o quero!
Minha m�e veio tirar a cal�a do pijama; o m�dico passou �lcool,
mas fui mais r�pido: chutei seu nariz, a inje��o voou longe. 0 m�dico
pulou fora da cama:
- Filho de...
- Perd�o, doutor � disse mam�e. � Machucou?
- S� uma picada.
- Infelizmente, a agulha entortou.
- Bem... Um fortificante resolve.
Comecei a comer novamente. Guloseimas, biscoitos. Meu grande pr�mio
foi uma caixa com cem chicletes. At� dei um para o filho da vizinha.
� Ele est� se recuperando.
� S� precisa escovar os dentes.
Um belo dia, minha m�e saiu-se com essa:
- Me diga uma coisa, Carlo, de onde v�m os beb�s? Voc� sabe?
De onde vinham os beb�s? Ora essa, que pergunta absurda! N�o
era ela que devia explicar isso para mim?
- Acontece que voc� sempre tem resposta para tudo � disse ela. Ent�o
voc� n�o sabe? Bem, eu vou explicar: o pai p�e uma sementinha
na barriga da m�e.
- Sementinha? - estranhei. � Onde?
- Aqui � disse ela. � Mais ou menos aqui.
- E depois?
- Depois nasce o beb�.
- E por onde ele sai?
- Isso depois eu explico. Mas, digamos que isso acontecesse comigo.
Nesse caso o que voc� preferiria: irm�ozinho ou irm�zinha?
Sentado no sof�, fiquei mudo, sem atentar para uma resposta:
irm�ozinho ou irm�zinha? Que responsabilidade!
- Ent�o, Carlo, o que voc� prefere?
- Nenhum dos dois! - respondo, pulando do sof�.
� noite, volto a ficar paralisado diante do prato de sopa. 0 pai e a
m�e conversam sem parar. Do beb�, ningu�m fala. Mas n�o vou
dormir antes de esclarecer essa quest�o.
- Ora, isso n�o � importante, meu filho � diz mam�e. � 0 que
importa � que... � que logo voc� vai para um lugar maravilhoso.
- Que lugar? � estranhei.
- Surpresa! - disse ela, misteriosa.
Eu insisti, e ela apenas disse que eu adoraria o tal lugar. Um lugar
cheio de divertimentos e aventuras. E n�o contou mais nada.
Subindo a escada, fiquei escondido ouvindo o pai e a m�e conversar.
- E ent�o? - perguntou o pai - Como ele reagiu?
- Bem. Eu acho.
Acordava com Nana abrindo a janela e gritando:
� Hora de ir para a escola!
Short azul com suspens�rio, lancheira, bota marrom, lindo de morrer!
Fiquei satisfeito, sa� cheio de banca. Mas, ao chegar � escola e ver
que estavam todos vestidos igualzinho, n�o achei gra�a nenhuma.
Levei uma banana, o menino disse que eu era macaco, n�o quis nunca
mais levar outra. Levei p�o com manteiga, riram e disseram que minha
casa era casa de pobre, n�o quis mais saber de p�o com manteiga.
Fiquei exigente: bolo embrulhado com papel alum�nio, bem dobrado.
0 papel tinha um rasgo, n�o queria levar. A meia do Topogigio
n�o estava lavada, n�o queria sair. Se me puxavam pela m�o, era
pior: chegava a morder a m�o de Nana. Ela reagia de dedo em riste:
� Deus est� vendo tudo. Quando voc� morrer, vai para o inferno!
� Ah, �? Ent�o eu vou mesmo. - E rolava para debaixo dos m�veis.
� Deixa estar � Nana chamava minha m�e, e ela chamava meu pai.
� Olha o que seu filho est� aprontando � minha m�e dizia.
� 0 que aconteceu? - o pai chegava, ficava me olhando.
� N�o quero ir para a escola. Prefiro o inferno.
� P�ra de repetir o que a gente fala! Voc� tem que ir � escola.
� N�o vou.
-Vai.
- N�o vou.
- Vai.
- N�O VOOOOOOOOOOU!!!
Ent�o o di�logo parava: pai e filho, olhando um para o outro.
- Temperamento forte - dizia ele, intrigado, para minha m�e. �
A quem ser� que esse diabinho puxou?
- S� pode ser o lado do seu pai, que est� sempre mandando em
tudo e nunca est� satisfeito. Velho ranzinza!
- Meu pai? E da sua fam�lia, voc� n�o diz nada? Quem tem uma
av� que ficou louca?
Discutiam, discutiam, n�o chegavam a um acordo. 0 pai sa�a balan�ando
os ombros.
No dia seguinte, a mesma cena: vai, n�o vou, vai, n�o vou.
0 pai, na porta, avisava: estou atrasado.
A m�e andava de um lado para o outro.
E eu escapulia para brincar no quintal.
Um dia, por�m, antes que eu escapulisse, mam�e enganchou meu
bra�o e me arrastou para o carro.
Acelerou, mas a dire��o tomada n�o foi a da escola. Eu s� olhava,
sem saber onde iria me levar. Chegamos a um bairro diferente.
- Olha s� para isso - disse ela. - Voc� sabe o que � isso?
N�o, eu n�o sabia. Isso o qu�? Ruas de movimento, lojas, ser� que
ia comprar alguma coisa? Um presente, talvez? Meu anivers�rio estava
chegando?
- Olha s� aqueles meninos pobrezinhos. N�o v�o � escola, n�o
t�m onde morar, s� vendem lim�o na esquina. � isso que voc� quer
para voc�?
Fiquei olhando os meninos passeando entre os carros. Na cal�ada,
dois deles lutavam, mas por brincadeira. Os carros sa�ram a toda, e
os meninos fizeram um c�rculo.
- Isso n�o d� vontade de ir para a escola?
Eu n�o tinha vontade nenhuma de ir para a escola, mas n�o disse
nada porque percebi que minha m�e enxugava uma l�grima no rosto.
N�o falei nada, mas a resposta s� podia ser sim. E minha m�e
voltou a acelerar.
A escola. Um grande pr�dio, e em volta um batalh�o de meninos e
meninas correndo, como um furac�o subindo ao c�u.
- Obede�a a professora � disse minha m�e, no port�o.
Entrei, e logo uns meninos que eu n�o conhecia me cercaram.
- Qual � o seu nome?
- Cario � respondi com firmeza.
Chamaram-me para brincar, fui desconfiado. Mas a corrida, os
gritos, n�o era dif�cil entrar no furac�o. Pega-pega, esconde-esconde,
pique-salva. Para qu�! Logo chegou a professora:
- Os menores fazem fila para ir ao gramado.
Dormir sobre colchonetes, no meio da tarde? Por que todos ficavam
ali, deitados, ouvindo hist�rias de coelhinhos? Sa� de fininho.
- Onde voc� vai, gracinha?
Levei um susto, a professora tr�s de mim:
- Eu vou... no banheiro.
- Ao banheiro? Mas a entrada � l� fora, no p�tio.
Pela m�o ela me puxou, bem diferente de Nana: andava r�pido, a
m�o gorda apertada.
Logo fugir se tornou um desejo incontrol�vel. Fugir da tia V�nia.
As crian�as seguiam em fila, eu dava um jeito de ir por �ltimo e
entrar atr�s do galp�o. Voltava quando dava vontade. Onde � que eu
tinha estado? No banheiro, respondia, sempre no banheiro.
At� que os meninos me perguntaram onde � que me metia:
- Tia V�nia � cega - falei. - Fui at� a esquina, comprei um
chiclete e voltei.
Eles duvidavam, eu mostrava o chiclete como prova, mas a verdade
� que inventava tudo. E a id�ia ia crescendo na cabe�a:
� Se quiserem, um dia levo voc�s.
Perguntavam, mas eu adiava o dia de lev�-los para fora da escola.
Fugir! Eu falava tanto, que come�ava a parecer verdade. Seria possivel?
0 port�o de ferro por onde entr�vamos n�o encorajava. S� era
aberto antes e depois da aula. Os muros tamb�m eram altos.
Um dia, um loirinho se aproximou de mim:
� Diz uma coisa. Por onde que voc� foge?
0 menino parecia meio bobo, mas agora eu n�o podia desmentir.
- N�o posso contar - falei. - Sen�o todo mundo vai querer vir atr�s.
S� no fim da tarde o port�o se abria: minha m�e j� estava l�. Eu
pulava no banco de tr�s, e ela perguntava como tinha sido meu dia.
- Igual.
- Como, igual? Voc� n�o aprendeu nada novo?
� Sim, aprendi. Aprendi como fugir da escola.
- Fugir? E quem te ensinou isso?
- Ningu�m. Descobri sozinho. Mas s� vou fugir quando crescer
mais um pouco.
Na mesa, o pai perguntava:
� Que id�ia � essa de fugir da escola?
Eu bocejava, teimando em terminar o prato de sopa.
- Voc� n�o gosta de estudar l�?
� Estudar o qu�? L� s� tem pintura a dedo e hist�rias de coelhinhos.
Meu nome j� sei escrever, e nem isso eles ensinam. S� estou esperando
para sair de casa e vender lim�o no farol.
Eles insistiam, mas eu encerrava a conversa:
� Boa noite! � dizia, subindo para o meu quarto.
�
Na escola, tia V�nia estava mais atenta aos meus movimentos:
� Quem quiser pode ir ao banheiro. Agora.
Eu n�o tinha vontade de ir ao banheiro.
No recreio ficava riscando o ch�o com um galho.
E olhava uma grande seringueira: os galhos se espalhavam, um
deles ia dar direto no muro. J� tinha aprendido a subir em �rvores, a
come�ar pela que havia no quintal de casa.
- Vamos brincar de passar anel?
Na minha frente havia uma menina magrinha, que eu n�o conhecia.
Parada com um sorriso sem-gra�a.
- Passar anel? � respondi. � Que brincadeira idiota.
Ela saiu r�pido, mais sem-gra�a ainda. Ficou sentada num banco.
Logo tia V�nia chegou, formando a fila. A menina continuou sentada,
balan�ando as botas, e me olhou quando sa�: era de outra classe.
- Carlo s� conta lorota. Que foge, que nada.
- Fujo � respondi, com f�ria. � Quantas vezes quiser!
- Ent�o foge. Agora! J�!
Os meninos come�aram a fazer um grande escarc�u � minha volta.
Gritavam, e agora eu s� queria mesmo fugir.
At� que tive uma id�ia genial. Sim, s� havia essa solu��o: no fim
do recreio chamei o menino loirinho:
- Vou contar tudo � falei. - Mas tem uma condi��o. N�o pode
mostrar para ningu�m.
Ele me acompanhou, prometendo n�o contar nada. Chegamos at�
a grande seringueira. Pulei no primeiro galho:
- Est� vendo? - disse, subindo. - 0 galho chega at� o muro.
- E como voc� vai pular?
- Tem uma escada do outro lado - falei. � Deixei encostada.
Olhos fixos, ele me olhava esperando que eu pulasse.
- Quando o sinal tocar � falei.
- E por que voc� contou para mim?
- Porque desta vez vou fugir para sempre. Para nunca mais voltar.
0 sinal tocou, ele saiu correndo, eu ainda dei tchau.
Todos seguiram em fila, o p�tio ficou vazio, e desci da �rvore.
Corri atr�s do galp�o. L� escondido entre as t�buas, vi quando tia
V�nia entrou pelo p�tio e foi dar na seringueira. Outras professoras
vieram correndo.
Logo se ouviu uma sirene: era o carro da pol�cia chegando.
0 rebuli�o prosseguiu; fiquei sem saber o que fazer. 0 movimento
aumentava, n�o tinha coragem de sair. Mas logo me encontraram.
Minha m�e estava ali, e me abra�ou.
- Ent�o o senhor estava a� - disse tia V�nia, as m�os na cintura.
Voltamos para casa.
Minha m�e n�o disse nada: a conversa s� aconteceu � noite.
- Para o quarto � disse o pai, bravo.
Sem recursos, subi. Mas l� de cima escutava:
- ... se ele n�o se adapta, � melhor sair.
- Deus me livre � a voz da m�e. - De um jeito ou outro ele vai se
adaptar. Nem que seja na marra.
�
Voltei � escola. Depois, claro, de in�meras proibi��es.
Agora eu n�o fugia mais. Tamb�m n�o brincava, n�o corria e nem
entrava no furac�o. Estava t�o comportado que at� come�aram a estranhar.
S� que havia uma raz�o, da qual ningu�m desconfiava.
A menina magrinha chamava-se Lucimar. Fic�vamos sentados no banco
durante o recreio, at� dividia meu lanche com ela.
Em casa, todos perguntavam. Brincou muito? Aprendeu n�o-seio-
qu�? Eu mal respondia, cansado com essa insist�ncia.
- E ent�o? - diz meu pai, uma certa noite. � Est� come�ando a
gostar da escola?
- N�o muito...
- Fala a verdade � interfere minha m�e. � Voc� est� gostando
sim, sen�o j� tinha aprontado uma das suas. Ou ser� que... arranjou
uma amiguinha?
Essa � demais: amiguinha! Mas como? Talvez tenha nos visto na
hora da sa�da.
- Amiguinha, n�o. Namorada!
Os dois querem saber mais detalhes, perguntam, insistem, mas eu
saio da mesa:
-� segredo � respondo, j� subindo a escada.
Agora todos acreditam. "Carlo tem uma namorada", repetem pelos
cantos. A diferen�a � que agora levo umas bolachas embrulhadas
para ela. �s vezes Nana suspira e at� coloca uns docinhos na lancheira.
Ficamos sentados no banco, balan�ando as pernas. Ela tem uma
bota maior que a outra, id�ia de um m�dico que custa car�ssimo. Pedi
para minha m�e uma igual, mas ela disse que na loja n�o tinha.
0 que fazemos, os dois? Levei-a ao meu esconderijo, atr�s do galp�o.
As vezes eu puxava uma raiz, e da terra pulavam formigas com ovos
brancos, minhocas, centopeias. Ela n�o gostava, mas depois perdeu o
medo, e �s vezes era a primeira a calcar sua superbota na terra fofa.
Tudo estava caminhando t�o bem que eu j� tinha certeza de que
ia casar com ela. Por isso anunciei minha decis�o.
- Casamento � t�o complicado... - disse minha m�e com um
suspiro. � At� l� voc� muda de id�ia!
Eu fiquei fulo com isso, porque tinha certeza ABSOLUTA, entendeu?
Mas minha m�e disse que eu ia conhecer outras meninas, e...
- Eu vou casar com ela, PONTO FINAL! � subi correndo a escada
e bati a porta do quarto.
Ningu�m acreditava que iria dar certo. Paci�ncia! A vida � assim
mesmo, pensei com desgosto. Mas prometo a ela que vamos nos casar.
E come��vamos a ir atr�s das moitas, ali onde um bambuzal fazia
um c�rculo. Eu adentrava a sombra dos bambus, sobre o tapete branco
das folhas secas, apontando: aqui � a sala, ali o quarto...
0 momento de colocar a sementinha se aproximava � afinal, nosso
relacionamento estava ficando cada vez mais s�rio. (Por isso, sempre
levava um pouco de alpiste no bolso.)
0 que n�o sab�amos � que est�vamos sob vigil�ncia. Era inevit�vel:
correndo atr�s das moitas, algu�m tinha de desconfiar. Foi assim
que, quando o momento chegou, quem � que aparece? Tia V�nia:
- Deus do c�u! � gritou, ao nos ver sem roupa. � 0 que � isso?
Sa� correndo, mas logo fui alcan�ado.
- Aproveitando da menina! - ela esbravejou, descendo tapas na
minha bunda.
Levou-me para a diretoria. Fiquei horas esperando, longe de todos.
As l�grimas corriam. E Lucimar? 0 que estava esperando, afinal?
Em casa, a situa��o ficou feia. Minha m�e dava voltas sem parar:
- S� quero ver o que seu pai vai dizer.
Se ela desse um belisc�o eu ficaria tranq�ilo. Mas agora, esperando
o pai resolver a situa��o, nem podia imaginar o que iria acontecer.
0 pai chegou. Minha m�e contava tudo, ele n�o entendia nada:
- Fique calma � disse o pai.
- Como, calma?
- N�o aconteceu nada.
- Mas eu n�o admito. Em filho meu s� eu posso bater!
Ent�o o problema n�o era comigo, ora essa � minha m�e estava
fula com a professora. Quando fui dormir, ainda discutiam.
No dia seguinte Nana me enfiou o uniforme, mas minha m�e
disse:
- Hoje voc� n�o vai � escola - sorriu. - Quem vai sou eu.
E saiu com um vestido vermelho. N�o para ter aula, decerto. 0
que ia fazer l�? � noite, as conversas s�rias continuaram � o pai
falava uma coisa, a m�e falava outra.
No dia seguinte, foram os dois juntos - � escola, novamente.
Cheguei a pensar: "Amanh� eles v�o levar a Nana".
Errei feio. Naquele mesmo dia, ou melhor, naquela noite, me chamaram
at� a sala. Os dois estavam sentados. E meu pai anunciou que
eu n�o voltaria � escola. Pelo menos, n�o durante um bom tempo.
- Por qu�?
Minha m�e levantou do sof� e me abra�ou.
- Essa escola n�o merece voc�, meu filho.
Envolvido no abra�o demorado, fiquei sem rea��o. Tudo indicava
que eu deveria chorar, e estava mesmo sentindo vontade.
- N�o fica triste � disse ela, levando-me ao quarto. - Voc� vai esquecer.
Em um minuto j� tinha esquecido. Nunca mais ir � escola!, pensei,
dando pulos na cama. Poderia fazer o que quisesse!
Dali para frente haveria apenas um mal-estar a cada vez que algu�m
pronunciasse a palavra escola. Os olhos baixos, e a mudan�a de assunto.
Quanto a Lucimar, nunca mais vi. De qualquer forma, aprendi uma
li��o espantosa: quando o amor acontece, todo mundo fica contra!
Meus pais passaram dias confabulando sobre minha educa��o. Portugu�s,
matem�tica, quem ia me ensinar tudo o que eu n�o estava aprendendo?
Discutiram, discutiram, e acabaram me deixando mesmo com a Nana.
Um dia escapuli de casa. Mas como? 0 menino n�o estuda e vai para
a rua? Foi um bafaf�, mas minha m�e acabou deixando eu brincar com os
filhos da costureira � desde que Nana n�o tirasse os olhos de mim.
Eu corria, subia em �rvores, jogava bete - e Nana sempre atr�s.
Se a bola corria do outro lado da rua, ela ia buscar. Se subia numa
�rvore, ela vinha me pegar - a maior brincadeira era fugir da Nana.
No fim do primeiro dia, Nana deitou na cama com os p�s para cima:
� Quer que chame um m�dico? � perguntou minha m�e.
� N�o... senhora. � s� a press�o, logo... passa.
No dia seguinte, tudo igual. � noite, Nana veio ao meu quarto de
camisola.
� Vamos rezar... para o Papai do C�u.
Sentada na cama, ela fechava os olhos e rezava, quase caindo de
sono: Pai nosso... 0 coque desmanchava e os cabelos pretos chegavam
at� a cintura. Um cheiro de banho rec�m-tomado.
� Nana, voc� pulou uma parte!
� Eu? Imagina... N�o... n�o pulei n�o.
� Pulou. A pimenta do reino.
- Ent�o vamos come�ar de novo.
E come�ou a dizer tudo de novo. Por que eu nunca ficava quieto?
- Nana, quantos anos voc� tem?
Com um susto Nana abriu os olhos. Ficou pensando:
- Vinte e seis - respondeu.
- Voc� vai casar?
Nana riu at� ficar sem gra�a. Enxugou os olhos e se levantou:
- Fica com o Anjo da Guarda.
Papai do C�u, Anjo da Guarda, eu j� estava acostumado: nunca
ficava sozinho.
- Nana - gritei � Espera eu dormir! Conta uma hist�ria.
- O Anjo da Guarda te protege.
- N�o quero anjo! Quero voc�.
Nana disse boa noite e fechou a porta.
i
Acordava com Pedro chorando, Pedro Pedra, Pedro Pedreiro, esses os
apelidos que a m�e inventava para o menino quej� crescia e engatinhava.
Eu concordava com ela: Pedro era chato como uma pedra, Pedro fazia
barulho como um pedreiro. As vezes chorava e Nana trocava sua roupa.
- 0 que � isso?
- Fralda para n�o fazer pipi na cama.
Pipi na cama! Que menino tonto! Para facilitar o trabalho de Nana,
um dia levei-o at� o banheiro e o deixei dentro da privada. Minha
m�e ficou brava, Nana disse que eu ia para o inferno.
- E se ele morresse afogado? Hein?
Se Pedro era uma pedra, certamente afundaria quando jogado na
�gua. Nos fundos de casa havia um po�o � haveria a oportunidade
de fazer essa experi�ncia?
Nana sa�a no quintal com o carrinho de beb�. Para tomar sol, dizia.
- N�o faz barulho que ele est� dormindo.
E Nana foi para a cozinha. Barulho de panelas, cheiro de comida.
Empurrei o carrinho at� o banco do jardim, subi e peguei o menino.
Levei-o at� o po�o, coberto por fina madeira. Pedro come�ou a se
mexer. L� embaixo, pelas frestas, a �gua brilhava no buraco escuro.
- Olha aqui, Pedro, olha.
Ele revirava as m�os quando Nana saiu no quintal:
- O que voc� est� fazendo?
- Nada.
Nana chegou e pegou Pedro no colo:
- Queria p�r ele no sol? Por que n�o me chamou?
- Eu tenho for�a � respondi.
Nana n�o desconfiou de nada. Ficamos no sol, como sempre. �s
vezes sa�amos com o carrinho at� a pra�a e volt�vamos r�pido.
- Por qu�?
- O sol est� muito forte.
Crian�a � assim mesmo, diziam. Um dia brincaria comigo, mas
esse dia estava longe. Na verdade eu tinha perdido os amigos de
brincadeira, porque n�o podia sair sozinho.
- Eu ainda mato ele � decidi. S� n�o tinha decidido como.
- O que voc� est� fazendo a�? - dizia Nana, se eu me aproximava
do ber�o.
- Nada.
- Se acordar o menino, voc� me paga.
Agora estavam atentos a tudo o que eu fazia. Mesmo que eu n�o
fizesse nada.
- Crian�a que n�o vai � escola fica mal acostumada.
A �ltima da casa era dizer, a troco de qualquer coisa, que crian�a que
n�o vai � escola fica mal acostumada. Eu fingia que n�o era comigo. Mas
Nana estava sempre achando ruim isso ou aquilo. Dizia que eu tinha
nascido como anjo, mas dia ap�s dia estava deixando de ser um deles.
- Depois, se voc� n�o for para o c�u, n�o adianta chorar.
- Por qu�?
- Crian�a tem de ser obediente. N�o v� o Pedro? Ele � beb� e d�
menos trabalho que voc�.
Na minha cabe�a, Pedro iria para o c�u muito antes do que eu.
Enquanto isso, eu passava o dia em volta de casa com meu velo
c�pede, rodando, rodando.
No quintal de casa havia uma boa descida. Descendo com toda
velocidade, tinha dificuldade de fazer a curva. Indo reto, o carrinho
sa�a na terra, sacolejava at� encontrar um buraco.
No quintal apareceu um formigueiro, e na minha cabe�a um plano
genial: com um urso grande e velho calculei o peso, a dist�ncia,
deixando um tijolo que brecasse o carrinho na hora certa. A experi�ncia
foi feita, o carrinho virou de lado, e o urso virou banquete de
formigas: exatamente como naquela hist�ria que Nana contava, o
Negrinho do Pastoreio.
0 plano era simples: um dia, pai e m�e fora de casa, Nana cozinhando,
fiquei com Pedro na sala quase toda a manh�.
Os detalhes estavam definidos. Levei Pedro e o encaixei no banco,
o que o divertiu muito. A descida daria velocidade e, como j� testado,
o formigueiro seria seu destino. Se as formigas quisessem comer
Pedro como tinham comido o Negrinho do Pastoreio, isso era problema
delas.
Pedro estava adorando o programa. Ria at� n�o poder mais.
Cheguei ao fundo da casa, ali onde come�ava a descida. O sol forte
chegava a ofuscar. 0 trajeto estava livre, a terra seca. Era s� dar o impulso.
0 carrinho seguiu no rumo certo, mas um grito cortou o ar:
� 0 que voc� est� fazendo?
Era a m�e que chegava enquanto o carrinho ganhava velocidade.
� 0 que � isso? - disse meu pai, que vinha �s vezes almo�ar em casa.
� Veja s� � disse ela. � Carlo colocou Pedro no carrinho.
Os dois chegaram e viram Pedro no meio da terra, ali onde uma
valeta tinha acabado de brecar o veloc�pede:
� Que gra�a - disse minha m�e. � Os dois brincando juntos!
� Espera que eu vou tirar uma foto � disse meu pai.
A m�quina de foto foi trazida, e Pedro fotografado dentro do carrinho,
com sua carinha espantada. Eu tamb�m apareci nas fotos, do
lado de Pedro em meu kart, e minha m�e, sorrindo atr�s dos filhos.
� Vamos comprar um carrinho com dois lugares! � disse meu pai,
entusiasmado.
� Quem sabe Papai Noel traz um no Natal � disse minha m�e.
E os dois ficaram satisfeitos, n�o perceberam nada. Pensando bem,
foi melhor assim. Aos poucos, acabei percebendo que Pedro podia ter
mil e uma utilidades.
Pedro se tornou uma esp�cie de brinquedo gigante: jo�o-bobo que se
mexia, ca�a e levantava, sem vontade pr�pria.
Sobre o buffet ficava o grande vidro de bolachas, vidro fechado
com tampa, proibi��o absoluta fora do hor�rio de refei��es.
� Pega, Pedro, pega.
Virando-se ele vinha com passos tr�pegos na minha dire��o.
� � gostoso, Pedro, � gostoso.
Olhos esbugalhados, Pedro deu com a m�o no vidro, que escorregou
e se espatifou no ch�o.
Rapidamente engoli uns biscoitos, coloquei outros dentro da camisa,
e subi correndo ao quarto onde minha m�e costurava.
� M�e, Pedro quebrou o vidro de bolachas.
� Deus do C�u.
E assim era. Pedro abria a geladeira, Pedro ligava a televis�o,
Pedro mexia nas coisas de Nana.
Mas ele nunca colocava a cara fora de casa, e os meninos da rua
mal acreditavam que eu tinha um irm�o. Levei-o ent�o para brincar,
e Nana veio correndo busc�-lo, espavorida:
� E se passa um carro e atropela o menino?
Essa possibilidade n�o tinha me passado pela cabe�a. De qualquer
maneira, Pedro gostava de sair comigo.
� O que ele faz? - perguntou Manolo se aproximando com sua
bermuda. Manolo era um dos filhos da costureira.
� Nada � respondi. - S� chora.
� Tive uma id�ia. Ping�im, vem c�.
Ping�im era um dos meninos pobres da favela.
� Tira a roupa � ordenou Manolo.
� Eu? � disse Ping�im. � T� louco, s�.
� Tira, estou mandando! A camisa e o short.
Seguro pelas m�os, o menino foi obrigado a tirar a roupa, que
pusemos em Pedro. Ping�im recebeu as outras em troca.
� Onde voc� vai levar ele? - perguntei.
� Espera a�. Como � que a gente faz ele chorar?
� Como? Sei l�. Chora, Pedro!
� Chora! Chora! Chora!
Pedro olhava para n�s at�nito, e nada de chorar. Inacredit�vel.
Em casa estava sempre chorando, e agora fazia manha.
� J� sei � disse Manolo.
Manolo trouxe um punhado de terra, que esfregou na cara de
Pedro. Mas ele n�o come�ou a chorar.
� Mas por que ele precisa chorar? - perguntei.
� Um plano que me bateu na cabe�a � disse Manolo.
Matutei, matutei, at� conseguir lembrar: sempre que tiravam sua
chupeta, Pedro come�ava a chorar.
� Espera a� - falei. - Vou em casa. Segura ele.
Sa� correndo em busca da chupeta e, quando me distanciei, Pedro
come�ou a chorar.
� Ei! � disse Manolo. � P�ra a�.
Parei, e Pedro ao me ver de volta se aquietou.
� Vai de novo!
Sa� correndo, e Pedro voltou a chorar: o problema estava solucionado.
Era s� ficar escondido de sua vista, e ele abria o berreiro.
� 0 plano vai dar certo � disse Manolo, levando Pedro.
Manolo entrou na avenida das casas grandes, e puxando Pedro
pelo bra�o tocou uma campainha. De dentro apareceu uma mulher
de bobs:
� Desculpa incomodar a senhora, mas a m�e saiu para trabalhar e
n�o deixou nada de comer. Meu irm�o est� chorando de fome.
A mulher de bobs logo trouxe biscoitos e um peda�o de bolo.
Pedro continuou chorando, e Manolo tocando as campainhas. De
tr�s de uma �rvore eu acompanhava tudo: uma velhinha abriu a
porta, e Manolo j� come�ava a aumentar a hist�ria:
� Foi depois que o pai saiu de casa. Minha m�e foi pro hospital,
mas n�o deram o rem�dio para ela. A� ela teve que pedir emprestado.
A� o leite acabou, ela n�o teve tempo de passar na venda. E olha que
eles nem vendem fiado!
A velhinha, chorando, pegou Pedro no colo, tentando consol�-lo.
0 saldo da campanha foi um par de ma��s, tr�s laranjas, um chocolate
branco, um pacote de bolachas, um peda�o de bolo. Sem contar o
que os dois tinham comido no percurso. Fizemos um piquenique.
Nana, quando veio atr�s de n�s teve um ataque ao ver Pedro com
a cara suja. E, � noite, ele n�o quis saber de comer nada.
Na cal�ada organizavam-se brincadeiras segundo as alturas:
� Manolo � maior que Pepe. Pepe � maior que Carlo. Carlo �
maior que Batatinha. Batatinha � maior que Ping�im. Ping�im �
maior que Pedro.
Eu gostava desses nomes. �s vezes os nomes eram ainda melhores:
Sovaco, Meia-cal�a, Saci.
� Pedro � o menor. Ent�o � ele quem vai servir de isca.
�amos at� o quintal do seu Z�, velho rabugento dado ao chicote.
Pedro entrava primeiro, passando sob o arame farpado: come�ava a
pegar as jabuticabas, e se ningu�m aparecesse todos os outros seguiam
atr�s.
Um barulho de porta rangendo bastava para que todos sa�ssem
em disparada, gritando. Pedro, sem entender nada, corria atr�s de
mim. A cara assustada, ele se agarrava na minha perna e eu era
obrigado a lev�-lo no colo.
� Eu j� disse que Pedro n�o tem idade para brincar na rua � disse
minha m�e, � noite. � Que isso n�o se repita.
� Ora essa � meu pai replicou. � Moleque tem que viver solto.
Aqui n�o passa carro nem nada.
� "Ora essa" digo eu. Basta o primeiro. 0 segundo voc� n�o vai estragar.
E Pedro ficou proibido de sair de casa.
Na rua, era Manolo quem tomava as iniciativas. Pepe, seu irm�o
menor, sempre obedecia.
� Vamos l� na venda do seu Lico. Voc� me d� cobertura.
Eu come�ava a achar os planos de Manolo arriscados, mas
n�o falei nada. Todos participavam: eu comprava um quilo de
a��car, Pepe dava cobertura tapando a vis�o de seu Lico, Ping�im
mexia nos sacos de feij�o, enquanto Manolo roubava uma
caixa de chocolates.
� Ei, moleque! No que voc� est� mexendo? Chamo a pol�cia, hein?
Tirando a caixa de chocolates das m�os de Manolo, seu Lico ainda
lhe deu um cascudo na cuca. Sa�mos na rua sob os gritos do
velho:
v
� Se voltarem aqui eu capo voc�s. Experimentem!
Antes de chegar � esquina Manolo come�ou a xingar Pepe.
� N�o me deu cobertura. Imbecil.
Pepe n�o respondia nada. Perguntei:
� E o que eu fa�o com esse a��car? Gastei minhas moedas � toa.
� Me d� aqui - disse Manolo, pegando o pacote da minha m�o,
rasgando-o e pegando um punhado. - Engole, cara-de-sapo.
Manolo segurou Pepe pelos cabelos e lhe enfiou o a��car na boca.
Pepe engasgou e quase sufocou, tossindo, mas depois disse:
� Eu at� gostei. � docinho.
� Gostou, �? Toma ent�o, filho-de-uma-mula.
Manolo foi para cima de Pepe, dando-lhe socos. Pepe saiu correndo
e chorando:
� Voc� vai ver. Vou chamar o Meia-cal�a.
� Chama, covarde. Em casa a gente conversa.
Pepe sumiu e ficamos andando sem destino. N�o nos restava nada
a fazer a n�o ser colocar o a��car numa lata e fazer um foguinho. 0
a��car derretia e depois endurecia como um cristal, mas logo eu
perdi a vontade de comer aquilo. De repente Manolo se levantou e
chutou uma lata:
� Inferno!
- Que foi? � perguntei.
- A gente n�o vale nada nessa vida - disse ele.
Eu n�o entendia muito bem aquilo, mas fiquei quieto, pois ele
parecia saber do que estava falando. Manolo �s vezes era revoltado.
Se passava algu�m com uma bicicleta nova, dizia:
- Olha l�, o filhinho de papai.
Desfazia do filhinho de papai at� n�o poder mais. Depois, se chegava
a conhecer o menino, pedia:
- Posso dar uma volta?
Ficava amigo, convidava para brincar, mas a hist�ria nunca durava
muito. Renato foi um desses. Tinha bicicleta, morava na avenida,
usava t�nis e meia branca.
- Na sua casa tem piscina?
- Tem.
Ficamos esperando para saber quando botar�amos os olhos nessa
piscina. Antes do dia chegar, por�m, Batatinha implicou com Renato:
- Ele disse que eu tenho o p� torto.
- E n�o tem? � perguntou Manolo.
- N�o - disse Batatinha. - Jogo bola melhor que ele.
- Isso eu n�o sei.
A primeira bola cruzada, Batatinha foi em cima de Renato. Ele
n�o gostou:
- Sujou meu t�nis. Vai ter que lavar.
Batatinha n�o quis lavar o t�nis de Renato.
- Ent�o n�o trago mais a minha bola de couro, oficial.
Manolo tentou acalmar, at� que o jogo continuou.
Contudo Renato imp�s uma condi��o: n�o dever�amos mais brincar
com Batatinha. Na rua, a bicicleta rodava de m�o em m�o, e
Batatinha ficava olhando.
- Ele me paga.
A primeira bola que rolou na rua, Batatinha entrou em Renato,
por tr�s. Renato caiu no ch�o, ralou o joelho. Saiu sangue.
- Eu avisei que ele n�o podia entrar. Agora quero um band-aid.
Armou-se uma confus�o na rua. Ningu�m trazia band-aid, Renato
quis levar a bola.
- Qual � o problema? - disse Manolo. - Voc� � maior que ele.
Renato era maior, mas Batatinha era invocado e parecia um
toco:
- Quero ver quem vai me tirar. Eu sempre joguei aqui.
- Cala a boca - disse Manolo. - Voc� quer estragar tudo?
- E o meu band-aid? - insistia Renato.
Armou-se a confus�o. Manolo falou, falou, e achou um jeito de
acomodar todos:
- Batatinha fica no gol.
0 jogo continuou. Mas Batatinha provocava Renato:
- Vai, perna de pau. A bola � tua mas foge de voc�!
Renato quis fazer um gol. Batatinha foi mais r�pido, avan�ou e
chutou a bola. Ou melhor, chutou a canela de Renato, que caiu no
ch�o uivando de dor.
- Foi p�nalti.
- N�o foi.
Outra confus�o. Manolo decidiu:
- Foi p�nalti e pronto.
Renato levantou r�pido e ligeiro para cobrar o p�nalti.
- Goool! � Renato gritou correndo, at� pegar a bola e ir embora.
- Onde voc� vai?
- Vou fazer curativo.
- E o jogo?
- Tenho aula de nata��o.
- Mas... - Manolo ficou com cara de bobo.
- N�o vou jogar mais aqui, n�o. No meu clube tem campo de grama.
Renato n�o jogou mais na rua. Voltamos a usar a velha bola de
borracha. A piscina de Renato tinha sido apenas uma miragem.
- Alegria de pobre dura pouco.
Mas Manolo nunca desistia de seus planos:
- Tive uma id�ia genial - anunciou uma tarde.
Escolados com as id�ias de Manolo, ningu�m disse uma palavra.
- Podemos ter um baita lucro - Manolo insistiu.
Roubar seu Lico? Ningu�m tinha mais coragem. E de onde viria
esse lucro m�gico?
� Voc�s v�o ver.
Todos come�aram a perguntar, e Manolo, manhoso, n�o contava:
� Esperem at� s�bado. S� vou contar para quem vier aqui na
pracinha.
A pracinha nada mais era que o terreno baldio onde t�nhamos
encontros. Naquele s�bado, com a expectativa criada por Manolo,
havia l� pelo menos uns dez. Pedro foi tamb�m.
� Bem, antes de come�ar, vou fazer uma pergunta - disse Manolo. �
Algum de voc�s freq�enta a igreja de Santa Terezinha?
Igreja de Santa Terezinha? Ningu�m entendeu a pergunta.
� Se voc�s freq�entam, o plano n�o vai dar certo.
Se algu�m freq�entava, n�o teve coragem de dizer. Minha m�e j�
tinha tentado me levar � igreja, mas depois da primeira tentativa
nunca mais se arriscou.
� Ent�o vamos prosseguir. Quem est� com roupa nova tem de
trocar. Quem est� de t�nis vai tirar.
Quase ningu�m tinha roupa nova. Algumas roupas velhas foram
providenciadas pelos que moravam na favela. Pedro gostou:
� Essa roupa pode sujar.
� Ei! - disse Manolo. - Esse reloginho tamb�m.
Tirei meu rel�gio e sa�mos em caravana, um bando de maltrapilhos.
Para nossa surpresa, havia uma festa no p�tio da igreja. Uma
fila para pegar bolo, outra para pegar sandu�che, outra para tomar
ki-suco.
� Calma. Tem para todos.
Uma fila em forma de serpente. Meninos da favela, m�es com
filhos no colo:
� Deus lhe pague.
� Am�m.
A mulher que organizava a fila fazia quest�o de dizer que toda a
comida tinha sido benzida pelo padre.
� 0 ki-suco tamb�m?
� Vamos apertar para caber todo mundo!
A fome dos convidados era maior do que a esperada, e as reclama��es
come�aram a aparecer:
� Olha s� meu sandu�che, veio sem salsicha.
� Calma! Daqui a pouco v�m os brinquedos.
Um tumulto come�ou a se formar, todos queriam saber onde estavam
os brinquedos, e acorreram em dire��o � entrada da igreja. Algu�m
tinha visto um saco gigante no altar. A porta da igreja foi fechada:
� Pelo amor de Deus, um pouco de sentimento!
Ningu�m dava um passo para tr�s. Ao contr�rio, come�aram a pressionar
para entrar de uma vez, e uma voz subiu em tom de amea�a:
� Ser� que vamos ter de chamar a pol�cia?
0 apelo foi atendido. 0 empurra-empurra cessou, todos ficaram
bonzinhos, esperando os presentes. Mas Manolo orientou:
� N�o vamos sair daqui, que esses brinquedos v�o acabar antes
da hora.
Os presentes come�aram a ser entregues dentro da igreja, por
mulheres e um Papai-Noel. Quando vimos os carrinhos azuis, as bolas
de pl�stico e as bonecas cor-de-rosa quisemos desistir.
� N�o � disse Manolo. � A gente vende depois.
Continuamos esperando. Pedro estava se divertindo. Quando chegamos
perto do altar, quem estava l�, dando os brinquedos? Ningu�m
menos que minha m�e. Ela olhou para n�s, e voltou a olhar, sem rea��o:
� Pedro! Carlo!
Ver Pedro nos trajes favelados deve ter feito mal a ela, pois se
sentou e uma mulher veio acudir.
Sem pensar sa� da fila, e ia saindo da igreja quando ouvi o grito:
� CAAAAARLO!
0 grito ecoou na igreja, mas n�o voltei atr�s. Escapuli para a rua,
para longe, e depois de andar sem destino acabei chegando � pracinha,
�nico lugar que me ocorreu.
Fiquei ali quieto. Enquanto isso o c�u escurecia. S� mais tarde
Manolo chegou com os outros, carregados de brinquedos de pl�stico.
� Eu n�o falei? - disse Manolo.
Os brinquedos foram guardados, para depois se transformar
em lucro. Batatinha queria ficar com uma bola de pl�stico, mas
segundo Manolo o dinheiro daria para comprar uma bola de couro,
das boas.
� E meu irm�o? - perguntei.
� Sua m�e levou, e mandou voc� levar as roupas dele.
Carregando uma sacolinha de pl�stico, cheguei em casa sem um
ru�do. Esperava uma explos�o. Fiquei na cozinha enquanto Nana
preparava o jantar.
� 0 que foi que voc� aprontou? � ela perguntou.
� Eu? � perguntei. � Nada.
� Boa coisa n�o deve ter sido. Sua m�e est� uma arara.
A hora do jantar chegou e todos se sentaram � mesa, em sil�ncio.
Eu esperava a bronca, mas s� na hora da sobremesa minha m�e
falou: esse tal de Manolo n�o era boa influ�ncia, eu devia procurar
outras companhias.
� � verdade - disse meu pai. - Voc� tem tanto brinquedo, para
que pegar os presentes dos pobres? N�o tem pena deles?
Envergonhado, n�o disse nada. Pouco a pouco eu percebia que
uma palavra aqui, outra ali davam o tom: eles nunca aprovavam
nada do que eu fazia. E o que faria com Manolo?
� H� amizades que n�o compensam � disse minha m�e. � Esse
menino n�o � flor que se cheire.
� N�o posso andar muito com voc� � falei para Manolo, no dia
seguinte. � Se minha m�e perceber vai dar problema.
� Eu sei � disse ele.
Ficamos quietos, mas eu podia ver que ele estava com raiva.
� Voc� ficou com raiva? � perguntei.
� J� estou acostumado. Minha costa � larga.
� 0 que eu posso fazer?
� Nada � disse ele. - � a lei. Tem de obedecer.
E dizendo isso foi embora.
As coisas que Manolo dizia me surpreendiam. 0 que isso queria
dizer? Fiquei em d�vida. Mas confiei que, com o tempo, continuar�amos
t�o amigos como antes.
Uma tarde, os meninos tocaram a campainha de casa:
- Estamos indo para o Taquaral � anunciou Manolo, � frente de
todos.
E esperavam uma resposta minha. Mas o que fariam no Taquaral?
- Tem represa, peixe para pescar. Tem caqui no p�.
0 Taquaral era um local distante, do qual eu s� tinha ouvido falar.
- E como voc�s v�o at� l�?
- Andando, u� - disse Batatinha. - Em meia hora a gente chega.
- Eu n�o posso - falei. � Minha m�e n�o vai gostar.
Eles insistiram, mas eu sabia que desta vez n�o tinha jeito. Levar�amos
muito tempo para ir e voltar, e quando eu voltasse tudo j�
estaria de ponta-cabe�a. Eles se despediram, fiquei no port�o.
N�o tinha volta. Permaneci ali, preso, como se houvesse um peso
acorrentando meus p�s � mas que peso era esse? Eu n�o sabia. E at�
quando seria assim?
Mas o tempo trouxe outras respostas: Manolo n�o conseguiu juntar
dinheiro com os brinquedos de pl�stico, pois todo mundo tinha ganhado
um igual. N�o compramos bola nenhuma, e a de borracha furou.
Manolo come�ou a trabalhar com o pai no caminh�o de verduras.
Chegava tarde, e tinha de estudar � noite. Deixamos de ter algu�m
para comandar a turma, mas minha m�e estava aliviada: agora sua
maior preocupa��o n�o existia mais.
� Aonde voc� vai?
Estilingue no bolso, embornal a tiracolo, eu escapulia sem dar
satisfa��o. Sabia que a press�o tinha diminu�do. Agora, sem Manolo,
era eu quem tomava as iniciativas:
� Por que n�o constru�mos uma casa no alto da �rvore?
Eu tinha muitas id�ias: precis�vamos de corda e resolvi roubar
n�ilon do quintal de dona Am�lia, onde tinha varal.
Esperamos dona Am�lia sair com seu carrinho de feira. Mas �
decep��o � o port�o estava trancado.
� Por tr�s.
Juntamos caixotes do lado de um muro, como se entrar ali fosse a
coisa mais f�cil do mundo. Pulamos. Pedro, mais uma vez, atr�s de n�s.
Os fios de varal dando sopa, enrolamos num carretel � a quest�o
era arranc�-los dali. Com um caco de vidro cortamos os fios mas o
�ltimo deles, ao ser cortado, inexplicavelmente desarmou o varal
todo, levando roupas molhadas ao ch�o.
� Vamos sumir � falei, desatando a pular o muro. S� que n�o era
f�cil. Batatinha foi o primeiro. Pedro, menor, n�o conseguia alcan�ar
a beirada.
� D� a m�o.
� N�o consigo.
� Espera, vou jogar o caixote.
N�o houve tempo. Dona Am�lia j� tinha chegado e rompeu no
quintal com um grito estridente. Pulei do outro lado e a ouvi dizer:
� Dem�nios.
E agora? Desta vez n�o iria esperar � Pedro j� estava nas m�os
dela. Corri para casa, subi ao meu quarto e fiquei esperando a bomba:
pela veneziana vi dona Am�lia chegando, puxando Pedro pela orelha.
P�s-se a gritar diante de casa, mas minha m�e n�o abaixava a crista:
� N�o est� certo, reconhe�o, mas em filho meu ningu�m p�e a m�o.
� E minhas roupas, jogadas no ch�o sujo? � disse dona Am�lia.
� Eu pago.
� Paga? Como assim, paga?
- Pago o sab�o, a lavadeira, o que a senhora quiser. Mas em filho
meu ningu�m p�e a m�o.
Dona Am�lia saiu chispando, mais nervosa que antes. Minha m�e
bateu a porta e entrei debaixo da cama, esperando que ela n�o me
achasse, at� passar o nervoso. A tarde escureceu, e pelo visto minha
m�e n�o estava com pressa � e o belisc�o, o castigo?
Nos �ltimos tempos era assim. A explos�o tardava, o castigo dava
lugar a uma conversa s�ria. Por algum motivo eu preferia como era
antes, mesmo que o belisc�o fosse ardido.
A noite chegou. Os ru�dos do carro, o barulho de chave na porta,
e ent�o...
- N�o posso mais com ele � dizia minha m�e, na sala.
- Bobagem. Moleque � assim.
- Eu n�o aceito! Se for sozinho, nem digo nada. Mas que ele leve
o mais novo, n�o, isso � demais.
- Fala baixo.
Ent�o era isso. Eu sabia! Eu era o problema, o �nico problema
naquela casa. Voltei para o quarto. Agora s� havia uma sa�da:
- Vou me matar � decidi, olhando no espelho. � Me matar... para
sempre.
Olhando no espelho, eu repetia: "Para sempre". E como se daria o
feito? No po�o do quintal. Ou talvez... parando de respirar, at� morrer
por falta de ar. Sim! Agora mesmo!
Estava come�ando quando meu pai entrou no quarto:
- Bonito! - disse ele. � Sabia que sua m�e est� aborrecida?
Continuou, sem olhar para mim:
- Entrar na casa dos outros, roubar coisas... E a educa��o que
damos a voc�s?
Parecia realmente desgostoso. Mas eu j� estava quase conseguindo:
minha boca estava a ponto de explodir, e eu segurava com for�a.
Comecei a chutar o colch�o.
- 0 que � isso? � meu pai estranhou.
- AAAHH ! - gritei, soltando o ar, sem for�a para segurar mais.
Em um instante ele compreendeu tudo. Ficou ali, desconsolado,
olhando o Filho errado, que nem conseguia se matar:
- �... - disse ele. - Sua m�e est� muito chateada.
Dessa vez eu n�o tinha recursos, n�o podia negar nada. Agora
eles sabiam quem eu era. Meu pai aproximou o rosto espesso de
mim:
- Mas se voc� quer saber � disse ele �, isso n�o tem import�ncia.
Quando moleque, eu fazia igual � e me abra�ou, como se estivesse se
reconciliando comigo. Contudo, deu recomenda��es: n�o fazer aquilo
de novo para n�o aborrecer mam�e.
Meu pai saiu satisfeito, e fiquei sem saber o que pensar. Ainda ouvi:
- E ent�o? - disse minha m�e. ;
- Prometeu se comportar.
- Deus queira que sim. Sen�o vamos ter de tomar provid�ncias.
E que provid�ncias seriam essas? N�o sabia, tudo estava estranho.
No jantar, deixei metade da comida no prato e ningu�m reclamou.
Naquela mesma semana, num dia � tarde, chegou a not�cia: um
caminh�o tinha pegado Manolo, quando ele trabalhava com o pai.
Diziam que ele estava no hospital, mas ningu�m sabia o que tinha
acontecido.
Batatinha veio em casa, e sa�mos pelas ruas do bairro. Pepe, irm�o
de Manolo, n�o aparecia, e n�o t�nhamos coragem de ir � sua
casa. Juntaram-se a n�s Ping�im, outros que jogavam bola, e seguimos
andando.
Minha m�e nos avistou, e me chamou para dentro de casa. A
tarde chegava ao fim.
A noite, a turma apareceu em casa. Fui at� o port�o. Batatinha
disse que estavam indo � igreja, onde estava Manolo. Era o vel�rio,
explicou. Mesmo sem ter entendido, voltei para dentro. Preparei-me
para ir com eles, peguei uma malha, e minha m�e se op�s:
- Voc� n�o vai, n�o.
- Mas eu tenho de ir! � bradei cheio de espanto ao p� da escada,
j� com a malha amarrada na cintura.
- A situa��o n�o � adequada para um menino de sete anos.
Minha m�e fincou p�, mantendo a proibi��o, e foi pessoalmente
ao port�o avisar os meninos que eu n�o podia ir. Pela janela, vi eles
se afastarem sem dizer uma palavra.
Por que eles podiam e eu n�o? Por que a m�e deles n�o proibia?
Sa� pela porta dos fundos, dei a volta na casa e me preparava para
sair pelo port�o quando minha m�e apareceu:
� Carlo, volta aqui. Eu disse n�o! Voc� n�o vai dormir � noite!
� Se eles v�o eu tamb�m vou � disse, abrindo o port�o.
� Carlo! � ela gritou. � Se voc� for n�o vai mais voltar para casa!
Eu estou mandando � e por um instante parei, instante que minha
m�e aproveitou para me puxar para dentro. Foi me levando e explicando
que, agora, o melhor a fazer pelo Manolo seria rezar por ele,
que ele j� estava no c�u.
Inconformado, bati a porta do quarto. Mas eu n�o rezaria coisa
nenhuma! Tranquei a porta. Ali estava o ursinho idiota, descansando
sobre a cama. Abri a janela e joguei-o para fora. Joguei o meu carrinho
de pedalar, e o barulho de pl�stico quebrado encheu a rua.
Meu pai estava chegando nesse instante, pois ouvi sua voz:
� Carlo! Que � isso?
0 arm�rio de brinquedos continha objetos sem utilidade: a cobra
de pano rasgada, o martelinho de madeira. Joguei um por um pela
janela.
� Carlo! Carlo! Abre a porta.
Mas eu n�o abria. Procurava no fundo do arm�rio, mas agora via
ali a bola de borracha furada, e eu n�o queria jog�-la.
� Carlo! � disse minha m�e. - Abre a porta.
E eu n�o abria. Ouvi ainda:
� Deus do c�u! 0 que fazer com esse menino?
Vozes se afastando, ru�dos de passos na escada. T�o longe que eu
abri a porta para ouvir, mais uma vez:
� As circunst�ncias justificam � disse o pai. � Daqui a pouco
tudo volta ao normal.
� 0 que � o normal?
� Ele volta a ser um pestinha.
� Mas n�o basta. Pelo sim, pelo n�o, � melhor enfi�-lo de uma
vez por todas em uma escola.
Assim, descobri o que eles pretendiam fazer comigo.
Parte dois:
1
0 clube
A escola era como todas as escolas: aula, recreio, campainha. Eu
sentava num canto, mordiscava um sandu�che, e olhava de longe: de
um lado meninas conversando, de outro meninos levantando poeira
do ch�o.
0 sinal tocava, corriam todos para as salas de aula, empurr�ndose
na entrada, para copiar letras da lousa, ou montar quadrados de
pl�stico.
Um dia, no recreio, algo aconteceu e todos correram para ver: no
meio da roda um menino, grande, amea�ava outro, bem menor:
- Voc� provocou, safado. Agora vai ter.
Avan�ou com chutes e socos. 0 outro tentava, mas n�o conseguia
se defender. As meninas gritavam, os meninos intervinham:
- Acerta!
- No saco!
A viol�ncia foi tanta que o menor come�ou a sangrar no nariz. Eu
cheguei a ter medo: e se me pusessem no meio da briga? Por que
brigavam?
- Foi por causa de mulher! - disse algu�m, e uma voz explicou:
o menor tinha dado um beijo na namorada do outro.
- Ah ! Ent�o ele merece!
Uma briga, e por causa de mulher!
� E a que traiu, onde est�?
� Mas ela n�o teve culpa � comentou uma menina. - Ela foi
beijada sem dar permiss�o!
Logo veio o bedel do col�gio, para apart�-los. Veio tamb�m a
coordenadora pedag�gica. Levaram os dois para a diretoria � e o que
ia acontecer com eles? 0 sinal tocou, voltamos para a sala de aula.
Agora, no recreio, eu ficava ainda mais quieto, mordiscando meu
sandu�che. Havia uma �nica quadra, disputada pelos que queriam
jogar futebol. Sempre que algu�m ca�a, outra briga amea�ava estourar.
Eu preferia ficar longe, bem longe.
E comecei a reparar num menino pequeno, que tamb�m n�o jogava
futebol e nem ficava correndo na hora do recreio. Sempre nos
cantos, �s vezes cruz�vamos o olhar, mas n�o convers�vamos.
At� que um dia, na classe, ca�mos na mesma mesa. Nossa tarefa
era montar quadrados de pl�stico:
� Brincadeira imbecil - disse ele, com ar superior. - Sei montar
coisa muito mais dif�cil.
� Eu tamb�m � menti. Na verdade, achava interessante montar
aqueles quadrados.
� J� montei at� um ca�a americano.
� Eu montei um submarino � falei, lembrando-me de um brinquedo
na vitrine.
Ele n�o se impressionou com meus feitos. Enquanto eu me empenhava,
montou os quadrados de qualquer jeito e n�o trocou palavra.
Na hora do recreio eu sempre olhava para ele tentando estabelecer
um v�nculo. Mas ele andava sozinho, sem dar aten��o a ningu�m.
At� que come�aram a me chamar para brincar disso ou daquilo.
Eu entrava na brincadeira, ele continuava distante. Um dia, no pega-
pega, um dos meninos o chamou:
� Ei, Raul! Quer entrar?
S� a� descobri seu nome. Mas ele disse:
� N�o, obrigado.
Comecei a brincar mais e mais, Raul nunca entrava.
� Metido a besta.
Inventaram at� um apelido: Mosquito. �, Mosquito!, diziam quando
passava. Mas eu n�o achei que era metido a besta. Por que raz�o n�o
brincava era uma coisa que eu queria descobrir.
Um dia, cruzei com ele. Resolvi arriscar:
� Ei, Raul. Quer jogar bafo?
� Estou indo para um lugar.
� Que lugar?
� Um esconderijo. Depois, meu �lbum est� completo.
Que esconderijo era esse eu n�o sabia. Mas achei estranho que ele
j� tivesse um �lbum completo: eu mal conseguira metade das
figurinhas.
Nas vezes em que ele entrava em alguma brincadeira, dava palpite
e queria mudar as regras. Foi assim quando brinc�vamos de chutar
bola ao lado da quadra:
� 0 goleiro tem de revezar - disse Raul. � Sen�o n�o vale.
Quem n�o queria ser goleiro protestava, e ele insistia na id�ia. Eu
concordava, mas todos preferiam deixar Luisinho no gol improvisado,
e n�o mexer em nada.
At� que um dia aconteceu algo inesperado: Jo�o, um dos maiores
da escola, deu por falta do seu rel�gio no fim do jogo.
� Quem foi que pegou? Olha que eu mato.
Come�ou a perguntar a todo mundo onde estava seu maldito
rel�gio. Logo se formaram dois grupos, os que estavam do seu lado,
e os outros. Jo�o tinha amigos quase t�o grandes quanto ele.
� Quem foi?
� Eu n�o fui � diziam todos, a cada vez que Jo�o olhava para um deles.
At� que Jo�o parou e encasquetou com Raul:
� E voc�, Mosquito? - se aproximou. - Essa cara lambida n�o
me engana, n�o. Onde est� meu rel�gio? - e foi passando a m�o no
rosto de Raul.
� Tira a m�o de mim, filho da m�e - reagiu ele.
Jo�o congelou. N�o podia acreditar no que tinha ouvido:
� 0 que foi...? 0 que voc� disse? Repete, se for homem.
Uma roda se formou em torno dos dois. Raul, muito menor que
Jo�o, n�o dizia nada.
- Pede perd�o � disse Jo�o. � Pede perd�o de joelhos.
Raul n�o pedia perd�o e n�o parava de olhar, sem demonstrar medo.
- Pede perd�o - insistia Jo�o. � Sen�o... - e mostrava o punho
fechado.
Eu sabia que Raul n�o ia pedir perd�o de jeito nenhum, e alguma
coisa come�ou a gelar dentro de mim � um medo, uma raiva, n�o
sabia bem. Raul n�o s� n�o pedia perd�o, como n�o abaixava a cabe�a.
Senti o cora��o apertar, mas de repente me deu coragem de sair
no meio do c�rculo, e tentei falar forte:
- Covarde! Bate em mim primeiro.
Uma confus�o se armou. Jo�o, olhando para Raul, n�o esperava
essa rea��o. Algu�m veio por tr�s e me empurrou para a briga. Outros
chegaram, os amigos de Jo�o, e sobraram tapas e socos para
todos os lados. Mais uma vez o bedel veio apartar. Acabamos todos
na sala da coordenadora pedag�gica:
- Voc�s precisam aprender a dialogar, meninos � disse ela.
Todos come�aram a falar ao mesmo tempo. Acusa��es voaram
contra Jo�o, que pelo visto era detestado.
- Eu s� estava procurando meu rel�gio, que eles roubaram.
- Mentira!
- Mentira � o rabo da tua m�e.
Depois de v�rios xingamentos, a coordenadora mandou todo
mundo embora:
- Da pr�xima vez suspens�o geral!
Cada qual foi para seu canto. A conclus�o � que acabei ficando amigo
de Raul. Nunca mais algu�m teria coragem de mexer com a gente!,
pensamos, com orgulho. De qualquer forma, n�o pretend�amos arriscar.
- Vou te mostrar um segredo � disse ele, e se encaminhou para
tr�s do pr�dio, onde havia um corredor escuro. Passamos por vassouras,
subimos uma escada e chegamos a um tri�ngulo: o esconderijo.
Ali, por uma fresta, via-se o p�tio e a quadra.
- De camarote - ele disse, me oferecendo um tijolo para sentar.
Levamos coca-cola, batatinha chips, fic�vamos olhando a dist�ncia
as brigas que espocavam aqui e ali, certos de que est�vamos
seguros. E come�amos a nos sentir mais adultos:
� Figurinha � coisa de crian�a � afirmou Raul.
Eu estava enjoado de figurinha e concordei. Mais tarde, por�m, os
que jogavam bafo vieram desafiar:
� Por que voc� n�o joga?
� Eu n�o tenho mais � disse Raul. � N�o compro.
� N�o faz mal. Toma. Empresto.
0 menino, feroz batedor de bafo, arrumou as figurinhas no ch�o. Raul
bateu uma, ganhou, duas, perdeu, e na quarta ganhou tudo de volta.
� Chega! J� ganhei bastante.
� Ganhou uma ova! Essa figurinha � minha.
� U�! Eu n�o joguei? - estranhou Raul.
� Figurinha emprestada, meu! Era s� jogo.
� Ent�o toma � e Raul jogou as figurinhas no ar.
Outra briga quase come�ou, mas fomos embora com uma conclus�o:
crian�a � assim mesmo!
Raul �s vezes trazia o almanaque do escoteiro. Havia os que iam para
o meio do mato, constru�am cabanas, comiam frutas, faziam o que bem
entendiam. Havia at� um desenho de uma cabana feita de galhos.
� Est� vendo? Fizeram um cantinho.
� N�o � cantinho que est� escrito. � CANTIL. Tem que levar quando
vai para o mato.
Raul j� sabia ler melhor que eu. Mas eu estava extasiado: t�nhamos
de dar um jeito de acampar no mato. 0 mais r�pido poss�vel.
� Pode ir tirando o cavalinho da chuva � disse minha m�e.
� Por qu�? - perguntei.
� No mato, aos oito anos? Quando crescer, n�s conversamos.
� Minha m�e fala a mesma coisa - disse Raul, no dia seguinte. Temos
de dar um jeito de crescer r�pido.
� Como?
� Comendo bastante, acho. Tem outro jeito?
Comecei a comer bastante, e de tudo. Minha m�e, maravilhada,
ordenava � Maria, a cozinheira:
� Pode fritar mais bifes. Aproveitar a fase.
0 motivo � ficar grande para sair de casa, acampar � permanecia
um segredo entre mim e Raul. Comi, comi, e depois
de uma semana estava do mesmo tamanho. Raul tamb�m desanimou:
- D� at� moleza comer demais - concluiu.
Voltamos a ser dois magros empedernidos, Raul mais que eu. E
por que outra raz�o todos o chamavam de Mosquito?
Contudo, um dia ele reagiu:
- N�o gosto que me chame desse nome � disse para um menino.
- E da�? Todo mundo chama voc� de Mosquito.
- Todo mundo, v�rgula. Meu nome � Raul. Entendeu?
- Entendi.
0 menino n�o disse mais nada. Mas essa firmeza de Raul foi aos
poucos gerando uma atitude contr�ria, implic�ncia, vontade de
enfrent�-lo:
- E a�, Mosquito?
- Tudo bom, Mosquito?
- Cuidado com o Rodiasol, Mosquito.
Muitas vezes ele ficava quieto, e com raiva. Vez ou outra, por�m,
reagia. Est�vamos indo ao esconderijo, e uma menina magrinha apareceu
no meio do caminho:
- Onde voc�s est�o indo?
- N�o interessa - Raul respondeu.
- � proibido ir l� atr�s, a tia disse. Ou ser� que voc� gosta de lixo,
Mosquito?
- 0 que eu gosto n�o � da sua conta.
- N�o � mesmo. Mas bem que dizem...
- Dizem o qu�?
- Voc� n�o tem o que comer, por isso � magrinho desse jeito.
- E voc�, por acaso � gorda? Toma cuidado, sua calcinha est�
aparecendo.
Deixamos a menina plantada sem resposta, sumimos no corredor.
- E se descobrirem o esconderijo? � perguntei.
- N�o v�o. 0 corredor � escuro, eles t�m medo.
Fic�vamos quase o tempo todo ali. Como no almanaque, faz�amos
uma fogueirinha de gravetos, e esquent�vamos peda�os de p�o.
Um dia resolvi pegar uma banqueta que ficava encostada na parede.
Qual foi minha surpresa quando no meio do trajeto uma menina
apareceu na janela:
� Vou contar para a professora � disse sem se abalar, com seu
colarinho engomado.
� Pode contar � falei, com raiva de sua cara de fuinha. � Voc�
conta porque � vesga.
Ela desatou a chorar e voltou para dentro. Que eu soubesse, nunca
contou nada para ningu�m.
Est�vamos convencidos da nossa superioridade. Assist�amos a tudo
do esconderijo, as disputas na quadra de futebol, as brigas entre os
mais fortes. E se nos provocavam, Raul sempre dava o troco. Uma
menina loira foi chamada de Lassie, um gordinho foi chamado de
Manteiga, um pesco�udo de Giraf�o.
� Mosquito, n�o adianta botar apelido, porque s� pega em voc� �
disse uma menina.
� S� em mim? Voc� n�o sabia que todo mundo te chama de Isafeia?
� Mentira.
� Pode perguntar. Quase ningu�m sabe que seu nome � Isabela.
Tamb�m, n�o tem nada a ver.
Os que estavam em volta deram risada, a menina ficou sem gra�a.
Mas as provoca��es continuaram. Um grito, uma risada, um
assobio:
� Mosquitinho!
� Zum-zum!
Raul n�o tinha como escapar. Nem ignorar. Eram rea��es dispersas,
sem uma origem definida. �s vezes, conversavam em voz baixa.
� Temos que tomar cuidado � disse Raul.
� Por qu�?
� N�o sei o que est�o planejando.
Olhares atentos. Se pass�vamos do lado, paravam de conversar. E
se descobrissem nosso esconderijo? Eu tamb�m achava que alguma
coisa estavam tramando. Muitos deviam estar envolvidos.
Minha vontade, agora, como no come�o, era n�o ir mais � escola.
Mas Raul apenas dizia, firme:
� A gente n�o pode abaixar a cabe�a.
Eu admirava a decis�o de Raul, mas n�o sabia se isso estava certo.
As vezes, tinha vontade de dar uma boa resposta para alguns, mas n�o
de brigar com todos. Na verdade, n�o queria brigar com ningu�m.
� 0 que est� acontecendo? � perguntei.
� N�o sei. Todo mundo anda quieto. Acho que est�o com medo de n�s.
Ou est�o fazendo um plano, pensei.
At� que aconteceu. N�o foi um plano, mas aconteceu.
Est�vamos no recreio fazendo embaixada. Eu mal conseguia fazer
quatro. Raul fazia mais � apesar de n�o jogar na escola, tinha
uma bola em casa.
At� que algu�m viu, no lixo que estava sem tampa, uma revoada
de mosquitos. Tanto mosquito que a monitora mandou levar o lixo
embora, por perigoso. 0 guarda levou, todo mundo foi gritando:
� Mosquito, mosquito!
� 0 que foi? � perguntou Raul.
Os gritos continuaram, ele ergueu a cabe�a. Mas os gritos n�o
pararam, e ainda come�aram a jogar pedrinhas sobre ele.
� Mosquito! Mosquito!
A rea��o foi geral. A nuvem de pedrinhas cresceu, como uma
tempestade.
� Mosquito! Mosquito!
Parecia uma brincadeira, uma festa. Eu, que estava perto de Raul,
tamb�m fui atingido. Ele s� p�de proteger o rosto.
Pedras no rosto, nos ouvidos, no nariz. Senti-as por um momento,
mas Raul saiu correndo e foram atr�s dele, gritando "Mosquito",
e cobrindo-o de pedrinhas.
S� fui v�-lo mais tarde. Estava, claro, no esconderijo.
� Machucou? � perguntei.
Ele n�o disse nada. Acendi o fogo, n�o tinha o que dizer. Estava
surpreso, essa a verdade. Foi a primeira vez - �nica? � em que vi
Raul chorando.
No meio do terceiro ano, apareceu um novo aluno na escola. Muito
gordo, gord�ssimo, chegou a causar espanto. Todo mundo sa�a da
frente para ele passar. As lancheiras eram escondidas. Do lado dele
ningu�m sentava, o que n�o parecia incomod�-lo. Seu apelido �
inevit�vel � ficou sendo Bola.
No recreio, comentavam:
- Contou os sandu�ches que ele come?
- Engole sem mastigar.
- Imagina quando est� no banheiro.
Bola vinha chegando, entrando, ocupando espa�os sem cerim�nia.
Esbarrava na gente e n�o pedia desculpas. Corria nos pedregulhos
do p�tio levantando poeira e ia ficando vermelho, suado, mais
vermelho ainda, para espanto de todos:
- Vai estourar, n�o � poss�vel.
- Ou � ataque de cora��o.
Mas Bola n�o estourava, nem tinha ataque. Corria ainda mais,
n�o parava de se movimentar, e logo come�ou a jogar futebol no
disputad�ssimo hor�rio do recreio. Tamb�m, com aquele tamanho,
quem iria questionar sua presen�a? Onde quer que estivesse, o melhor
era sair de perto.
Foi no futebol que surgiu a primeira rusga. Uma bola dividida
entre Bola e Jo�o � quem mais podia ser? � fez o segundo cair no
ch�o e ralar o bra�o.
� Voc� me paga, baleia � amea�ou Jo�o.
� Baleia � a m�e! - respondeu Bola.
� � a sua. Mas depois da aula n�s acertamos. Me espera na esquina,
se for homem.
Alvoro�o geral. Quem ganharia a briga? Alguns apostavam em
Bola, ainda inc�gnito. Jo�o ganhava todas as lutas, mas muitos achavam
que seria imposs�vel suportar aquela carga:
� Deve pesar 100 quilos. Viu as banhas?
� Prote��o natural. Mesmo levando um soco, n�o sente. Amortece.
� Eu aposto no Bola.
Muitos seguiram esse racioc�nio e Bola liderava as apostas.
Meio-dia, fim de aula, todos se aglomeraram na esquina do col�gio.
Um bando de pelo menos trinta. Jo�o chegou pedindo licen�a e
todos abriram caminho. Tirou o rel�gio, o pul�ver, e come�ou a se
aquecer, dando pulinhos de um lado para o outro. Jo�o forte, Bola
gordo. Quem podia mais? Ningu�m ag�entava esperar.
At� que Bola chegou com os cadernos na m�o, o uniforme bem
arrumado. Estendeu a m�o, conciliador:
� Vamos fazer as pazes, Jo�o � disse com dignidade.
A turma toda vaiou, gritou, fez a maior arrua�a. Bola tentava,
mas n�o conseguia acalmar o pessoal.
� Acontece que eu n�o posso brigar � ele dizia, abrindo as m�os. �
Meu pai n�o deixa.
Todas as explica��es seriam in�teis. Jo�o estava por cima. Os
bra�os cruzados, limitava-se a dar risadinha e olhar com desprezo.
N�o falava nada e n�o precisava, pois os outros falavam por ele:
� Arregou!
� Covarde.
� Maricas.
� Mas meu pai n�o deixa! � dizia ele, tentando convencer pelo
argumento. Mas n�o adiantava. Ningu�m ali o perdoava. Jo�o, calmamente,
deu o veredicto:
- Nunca mais vai jogar futebol na hora do recreio.
E foram embora, todos eles, atr�s de Jo�o. Bola ficou parado,
cabisbaixo, e me encarou:
- 0 que � que est� olhando? � disse, logo para mim, que n�o o
havia xingado nem uma vez.
Eu n�o disse nada, dei-lhe as costas e fui embora: bem feito para ele.
Agora Bola n�o jogava mais na hora do recreio. E o que ele fazia?
Tentava entrar em outras brincadeiras, puxava conversa, ficou simp�tico.
Mas n�o adiantava, ningu�m queria brincar com ele, mal davam aten��o.
Bola n�o teve alternativa al�m de ficar conversando com as meninas.
Passava todo o tempo com elas, o recreio, dividia parte do seu
lanche, mas o resultado foi pior:
- Gordo bicha.
- Veste saia, duma vez!
- Ai, ai, coisa fofa.
Agora Bola n�o conversava mais com as meninas. Ficava todo
o recreio em cima do trepa-trepa, sentado na parte mais alta. Bem
feito! eu pensava, ainda ressentido com seu jeito balofo e
estabanado.
Quanto a mim e Raul, continu�vamos passando boa parte do tempo
no esconderijo. Um dia, est�vamos ali quietos, esquentando fogo,
quando vimos uma figura no meio do corredor escuro:
- Quem �?
- A professora?
Por um momento o nosso segredo ficou a ponto de desmoronar.
- Cuidado, est� chegando.
N�o havia como escapar, s� existia aquela sa�da. Mas o rosto que
subiu as escadas e despontou foi o de Bola:
- Que legalzinho - disse ele, olhando nossas instala��es, o fog�o,
o banco, os tijolos.
Nem eu nem Raul dissemos nada, surpresos, at� que:
- 0 que voc� est� fazendo aqui? - disse Raul, com autoridade. Este
lugar � nosso!
- P�, Mosquito, deixa eu ficar, vai - Bola tentava ser simp�tico,
com sua cara embolachada.
- N�o!
- 0 que custa, Mosquito?
- N�o. Este lugar j� � nosso, voc� nem cabe aqui. Fora!
Raul foi t�o firme que Bola n�o teve o que dizer. Desceu as escadas
quieto e emburrado, foi embora.
- E se ele contar para algu�m? - perguntei.
- Contar para quem? Ele n�o conversa com ningu�m.
Fiquei mais sossegado, o nosso segredo estava mantido. Mas naquele
mesmo instante, no corredor escuro, apareceu um vulto misterioso.
- Ele voltou?
- S� pode ser. Olha, est� parado. Alguma est� tramando.
- Pode deixar! - falei. - Eu resolvo.
Desci a escadinha com o firme prop�sito de expuls�-lo de vez.
Afinal, podia ser t�o duro quanto Raul. Mas qual foi minha surpresa
quando vi Bola parado no corredor, de costas, com o rosto vermelho
coberto de l�grimas. N�o tive coragem de falar nada. "No fundo",
pensei, "o Bola � bom".
Voltei para o esconderijo, tentando convencer Raul a deix�-lo vir.
- Ele s� quer porque n�o tem amigos � disse Raul.
- Vamos dar uma chance.
Raul cedeu, mas avisou para Bola:
- Contanto que n�o banque o beb� chor�o!
Bola entrou, sentou num tijolo, e a partir desse dia o esconderijo
ficou mais apertado. Mas nos adaptamos. Consider�vamos que est�vamos
formando um trio, e eu e Raul pensamos em tirar proveito da
situa��o: no caso de uma briga, Bola nos serviria de escudo:
- � s� jogar seu peso em cima.
Mas ele n�o gostava nem de ouvir falar dessa hist�ria de briga. De
qualquer forma, divid�amos o lanche, que consistia em p�o, queijo, e
nas novidades que Bola trazia. As latas de salsichas, por exemplo,
que esquent�vamos no fogo e eram irmanamente repartidas por Bola:
uma para mim, uma para Raul, sete para ele mesmo. E eu ainda
pensava: "0 Bola � bom".
Form�vamos um estranho trio. Um dia, uma menina chegou a comentar:
� Parecem o Dumbo e os dois ratinhos.
Sem d�vida, Bola pesava mais do que eu e Raul juntos. Mas isso
n�o nos preocupava.
E o que faz�amos? Reuni�es di�rias, que Raul presidia. Discut�amos
at� chegar a uma decis�o, que era alcan�ada por maioria de votos.
0 que decid�amos? Em que gastar os nossos cruzeiros, se em
chicletes, chocolates, ou coca-colas. As discuss�es duravam horas:
� Chocolate � melhor, mas chiclete dura mais. E � mais barato.
� Mas chocolate alimenta � dizia Bola.
Sa�amos pela rua comparando pre�os. Fic�vamos em volta da escola
depois da aula, at� a hora de ir para casa.
As f�rias estavam chegando. Agora, a perspectiva de n�o ter aula parecia
horr�vel. Eu teria de ficar em casa, ou brincar com os meninos da rua.
� Talvez n�o - disse Raul. � Voc�s percebem o que significa isso?
� apontou o esconderijo.
� Como assim?
� Quer dizer que n�s temos um clube. Um clube � isso, voc�s n�o
sabiam?
Eu n�o achava que aquele canto parecia um clube, mas ouvi as
id�ias de Raul: uma associa��o de pessoas, um lugar. Quer dizer, o
clube j� existia, s� precis�vamos de um local permanente. Marcamos
de nos encontrar de tarde, numa pra�a, e convenci minha m�e a me
levar. Raul, para minha surpresa, j� tinha id�ias na cabe�a: dever�amos
achar um lugar que n�o fosse muito longe da casa de ningu�m,
e estabelecer a� a sede.
� E se minha m�e n�o quiser me levar? � perguntei.
� Para que serve �nibus?
Fiquei sem resposta, com vergonha de dizer a verdade: nunca
tinha andado de �nibus sozinho. Mas segui Raul e Bola � procura
do lugar. Ali�s, j� estava desobedecendo minha m�e, ao sair da
pra�a.
Andamos por ruas desconhecidas. Bola nos levou perto de onde
morava: seu tio tinha uma loja, e ao lado desta um terreno. No terreno
havia um galp�o, cheio de madeiras velhas.
� A gente guarda as madeiras � disse Bola ao tio. - P�e um
pl�stico em cima.
Parecia at� milagre! Depois de conversar, o tio de Bola concordou
em ceder o galp�o: era um terreno baldio que n�o servia para nada,
e corria o risco de ser ocupado pelos maloqueiros.
A id�ia era �tima, mas como contar para minha m�e? Eu j� imaginava
ela perguntando que esp�cie de clube era esse. E o que eu
responderia, se nem eu mesmo sabia?
Dito e feito. No dia seguinte, minha m�e fez quest�o de me levar
de novo, de carro. Queria porque queria conhecer meus amigos.
� � aqui?
Ela estacionou na frente do terreno, saiu do carro para espiar. Eu
estava sem-gra�a, mais sem-gra�a seria imposs�vel. E por qu�? N�o
sabia!
De repente, entendi. Bola e Raul sa�ram do galp�o, e ficaram parados.
A figura dos dois, um imenso, gordo, outro pequeno e magro,
tinha um qu� de rid�culo em si mesma. Os dois nada disseram, mas
minha m�e os cumprimentou.
� De tarde eu volto para te pegar.
Entramos no clube silenciosos. Esse sil�ncio durou muito tempo,
at� ser quebrado por id�ias de como melhorar o local. Que coisa
estranha!, pensei. Como os pais da gente atrapalham!
� Vamos pintar de cal.
Uma lata de cal, uma brocha, ficamos a tarde pintando e sonhando
com uma vida independente. Eu estava fascinado, mas esse
prazer era corro�do pela lembran�a de que, logo, minha m�e viria
me buscar.
Logo a buzina soou, me chamando.
� Voc� vem amanh�? - perguntou Raul. � Na mesma hora?
� Venho... � respondi, ainda indeciso. - Venho.
Bola e Raul foram at� a porta para se despedir. A id�ia de repetir
toda a experi�ncia, contudo, n�o me animava.
Na hora do jantar, minha m�e contou tudo para o meu pai. Eu nem
ag�entava ouvir sua narrativa de como eu tinha ido brincar num lugar
t�o longe de casa, imagine s�, um terreno baldio, um galp�o velho.
� Amanh� eu vou de novo � falei.
- Eu te levo.
- N�o � cortei, decidido. � Eu vou de �nibus.
- E desde quando menino da sua idade anda de �nibus?
O tom era suave, mas eu finquei p�: s� iria se fosse de �nibus. Ela
achou que era brincadeira, eu continuei insistindo.
A quest�o n�o seria resolvida facilmente. Meu pai intercedeu, dizendo
que eu devia ir de �nibus.
- Com sete anos eu circulava por a� � dizia o pai.
- Os tempos eram outros. E os sequestros? E o terrorismo?
- N�o exagera.
Dessa vez, a vontade do pai se imp�s. Eu iria de �nibus, ele
disse, ponto final. Minha m�e n�o se conformou, exigindo que a
Maria fosse comigo at� o ponto. 0 ponto final?, eu perguntei. N�o,
s� at� o ponto da esquina. Concordei. Desde que ningu�m visse, ela
poderia ir.
Mas toda essa conversa escondia um medo terr�vel. Aos nove anos,
nunca tinha andado de �nibus - o que poderia acontecer? Maria me
explicou que bastava puxar uma cordinha e descer.
S� que na hora, s� na hora, percebi que era imposs�vel alcan�ar a
cordinha � o pior tinha acontecido.
0 �nibus me levou para longe. Por um momento, perdi minha
fam�lia, minha casa, fui raptado por bandidos.
Bem in�til tinha sido minha coragem! Eu mesmo tinha insistido,
e agora estava perdido. A verdade � que Raul tinha um ano a mais
que eu, e Bola morava l� perto. Esse o resultado de bancar o valente!
Algumas l�grimas, perguntaram por que estava chorando, e decidiram
parar o �nibus ali mesmo, no meio da rua. Consegui chegar
ao clube s�o e salvo. Por pouco!, pensei, esquecendo rapidamente o
epis�dio.
- 0 clube est� fundado.
Raul ficou sendo o presidente, eu o bra�o direito, Bola o conselheiro.
Brindamos com coca-cola. Mesmo com a proibi��o de fazer um fog�o l�
dentro, Bola levou um fogareiro a �lcool: suficiente para estourar pipocas.
E qual seria o nome do clube? A sugest�o de Clube do Bola, dada
por Bola, foi descartada. Pensamos e pensamos, ningu�m concordou
com nada, ficou um clube sem nome. Ou Clube, simplesmente.
11
Passamos as f�rias nos divertindo. Ou melhor, trabalhando: limpamos
o lugar, tiramos teias de aranha, passamos rodiasol que minha
m�e deu para espantar escorpi�o.
Tudo tinha utilidade se pudesse ser levado para o clube. No af� de
enriquecer nossa propriedade, cheg�vamos a furtar coisas: um capacho,
um caixote, uma l�mpada que pendurei com barbante.
- N�o acende.
- E da�? � sempre dia quando estamos aqui.
Foi tanto o movimento que come�amos a chamar a aten��o. Na rua,
passavam moleques rodando pneus; �s vezes paravam para olhar o clube.
- Nunca viu? - perguntou Raul, um dia.
Eles sa�ram e continuaram rodando pneus.
- Temos de tomar cuidado � disse Raul.
- Por qu�?
- Eles t�m inveja. Podem roubar nossas coisas.
Nossos trastes adquiriram valor de um tesouro. Pusemos uma corrente
e um cadeado na porta.
A curiosidade aumentava. Tinha gente que vinha conversar s�
para ver o que havia l�. H�lio, que trabalhava com o tio de Bola,
vinha espiar. Gostou, e logo ficou �ntimo:
- D� at� para trazer mulher aqui dentro.
Negro, um tanto mais velho que n�s, entrava sem fazer alarde, e
trazia informa��es sobre a rua, sobre os moleques que rodavam pneus:
- Aquela molecada � viciada.
Eu n�o entendia muito do que ele dizia e n�o abria a boca. Mas o
mundo que H�lio apresentava tinha a sua l�gica:
- Se o cara n�o trabalha, cai no v�cio. Voc� j� viu eles trabalhando?
As fisionomias que passavam, de fato, tinham aspecto perigoso. Os
pneus sendo rodados tamb�m eram estranhos. Seriam bandidos mirins?
� A vantagem do cara ser assim � ter mulher - dizia H�lio. � Mas
acho que eles n�o t�m, n�o. � tudo pivete!
E ent�o, o assunto ia para as mulheres. Aquela rua tinha muitas
lojas, e movimento de saias. H�lio j� estava �ntimo de toda a fauna:
� Ela passou e deu uma piscada para mim. Opa!, eu falei.
Raul, Bola e eu ouv�amos bastante o H�lio. Ele sempre conseguia
cativar nossa aten��o, conversando assuntos que para ele eram muito
naturais.
� Oi, ternurinha � ele dizia para uma menina que passava. A
menina nada respondia, e ele completava: � Aposto que est� gamada.
Andando na rua, �s vezes cruz�vamos com meninas que passeavam
em trio. Na verdade elas estavam sempre passeando, mesmo que
fosse para ir de uma esquina a outra, e de l� fazer o caminho de volta.
� Chuchu belezinha! - H�lio assobiava. A resposta era um riso
que elas soltavam, sem olhar para tr�s.
Aos poucos fic�vamos mais ousados:
� Olha s� os peitinhos � eu dizia, quando via dois barquinhos
ondulando para cima e para baixo, no andar oscilante da menina.
� Aposto que � apertadinha - dizia H�lio.
� � mesmo - dizia Bola.
Raul era o �nico que ficava quieto, n�o arriscava nada. As vezes
ria de Bola, de H�lio, de mim:
� At� parece que voc�s entendem de mulher.
� E n�o? - disse H�lio. - J� andei com o Dudu at� a zona.
H�lio mostrava na pr�tica sua habilidade. Conversava com as
meninas, ficava amigo:
� At� na m�o eu j� peguei.
� E da�? S� para dar um filipe*.
H�lio tinha passado um filipe para a menina, e ela fora obrigada a
dar um presente em troca.
� S� isso? � H�lio reclamou, ao receber um pente.
� 0 que eu posso fazer se sou pobre?
"Filipe: dois gr�os de caf� fundidos. No interior de S�o Paulo, as crian�as
costumavam "passar o filipe", isto �, dar a algu�m esses gr�os geminados
(e relativamente raros), a fim de receber, em troca, um pequeno presente.
As meninas passavam e sorriam para n�s. Come�amos a ficar
�ntimos, elas sabiam nossos nomes:
� Oi, Carlo, tudo bem?
� Tudo bem, Soninha. E voc�?
Esse era um truque inventado por H�lio: passar os nomes para
o diminutivo. S�nia virava Soninha, Lurdes, Lurdinha, Angela,
Angelinha.
� Ela ficou at� sem gra�a quando eu falei - eu me vangloriava.
Excitad�ssimo, eu me deslumbrava com as possibilidades. E o que
aconteceria? Eu j� me imaginava pegando na m�o. E depois?
� Depois voc� vai passando a m�o, passando, passando...
Mal conseguia esperar! Mas nem tudo eram flores nesse universo.
Bola quis se engra�ar com uma menina, e ela n�o deu bola. A amiga
ainda saiu rindo:
� Imagina aquele peso em cima.
� Ia virar uma panqueca!
Bola insistiu, chamando outra menina de "meu chantilizinho".
Mais uma resposta atravessada:
� Sai de mim, Bal�o!
Bola perdeu totalmente a vontade de seduzir as mulheres. De fato,
nem tudo eram flores. 0 pr�prio H�lio foi o primeiro a admitir:
� Mulher � bom, mas tem o perigo da gonorr�ia.
Segundo ele, Isa�as, que trabalhava na loja e puxava de uma perna,
tinha tido a tal gonorr�ia � o resultado era vis�vel.
� N�o � gonorr�ia � protestou Raul, convicto. � � de nascen�a.
� � a gonorr�ia - repetia H�lio.
Nessa disputa, eu n�o tinha id�ia do que dizer e fiquei quieto nunca
soube o real problema de Isa�as. Outros acontecimentos vieram
mostrar que n�o era t�o f�cil se movimentar a�. Um dia, no
col�gio, um menino disse:
� Olha l� o Carlinho com seus cachinhos.
Eu estava mesmo com o cabelo grande e n�o respondi. Raul alertou:
� Se eu fosse voc� reagia � disse ele.
� Mas...
� Ele est� insinuando que voc� n�o � homem.
Muitas coisas me escapavam. Algumas vezes a inten��o estava
clara, outras vezes as palavras me tra�am.
Para uma menina bonitinha que passava na rua eu disse:
- Ai, se eu pudesse ser o seu sabonete...
Aconteceu que uma mulher velha a acompanhava e reagiu:
- Que � isso, safado? Vai mofar com tua m�e! N�o v� que a menina
� pequena? Onde est� tua m�e que te deixa na rua, fazendo bobagem?
A rea��o me deixou bobo! Qual o mal de ser um sabonete?! Por
que tanta raiva? 0 que minha m�e tinha a ver com isso?
Eu n�o entendia, ningu�m explicava, eu n�o sabia como perguntar.
H�lio falava bastante, mas o problema � que falava demais. Quem
me explicou tudo, finalmente, foi Raul:
- Voc� n�o sabe como faz filho? 0 homem tem de encostar o
pinto no da mulher, ali nos p�los. S� assim d� certo.
- Voc� est� falando s�rio? � perguntei, desconfiando de Raul,
pela primeira vez na vida.
-� claro! H� muito tempo eu sabia disso.
Eu ainda n�o acreditava, mas de repente algumas coisas come�aram
a fazer sentido. Algumas palavras, portas fechadas...
- Mas ent�o...
- Seu pai fez com a sua m�e, claro. Sen�o voc� n�o nascia.
Era inacredit�vel e, muito pior, inaceit�vel!
- Arg, que coisa nojenta! - falei.
Ficamos em sil�ncio, e eu sentia muita dificuldade de admitir aquilo.
0 pior n�o eram os outros, mas meus pais. Como � que pessoas
adultas faziam aquilo? E eles ainda queriam botar moral!
- Se voc� quer saber � disse Raul - eu tamb�m acho.
- Mas...
- 0 problema � n�o ter filho. Se voc� n�o faz, n�o tem filho.
- Eu n�o vou fazer isso de jeito nenhum! � afirmei.
- Mas vamos supor que voc� queira casar � disse Raul. � E da�?
- Eu n�o vou casar � respondi. � Nunca.
E eu nem gostava de filhos � ainda bem! Pelo menos disso estava
livre. E ainda pensava, com revolta: "Arg!".
Desisti do namoro, de qualquer vida sentimental. Mas o clube trazia
prazeres insuper�veis. Fal�vamos dos nossos futuros acampamentos,
e �s vezes eu levava Pedro s� pelo prazer de ter algu�m que nos
oferecia uma admira��o irrestrita:
� Um dia � Pedro dizia - eu tamb�m vou ter um clube.
Na escola, come�amos a ensaiar o hino nacional. Fic�vamos todos
em forma��o militar. No dia 7 de setembro teve um desfile, e os
menores marcharam com chap�us feitos de jornal, erguendo espadas
pintadas de verde e amarelo.
� Viva o Brasil - gritavam todos, aplaudindo ao fim do hino. Viva
o presidente Garrafa Azul!
A maior novidade, por�m, era outra: a coordena��o decidiu que
ter�amos um centro c�vico, cuja diretoria seria eleita pelos pr�prios
alunos. As chapas podiam se formar, as inscri��es estavam abertas.
Raul ficou animado, e quis formar uma chapa: afinal, n�s t�nhamos
um clube, vot�vamos as id�ias, sab�amos como a coisa funcionava.
� Podemos mudar muita coisa na escola.
0 qu�, por exemplo? Os jogos de futebol no hor�rio do recreio,
disse ele. 0 ideal era fazer um campeonato. V�rios times se revezariam,
todos teriam oportunidade de jogar.
� J� estou vendo � disse Bola. - N�o vai dar certo, n�o.
- Por qu�? - Raul estranhou.
- Voc� n�o conhece essa turma?
0 entusiasmo de Raul n�o foi suficiente para convencer Bola. 0
jeito foi formar uma chapa com dois meninos de outra classe. 0 que
faz�amos? Campanha eleitoral. Ao t�rmino das aulas fic�vamos no
port�o do col�gio, dando folhetos mimeografados: VOTE NA CHAPA
JARC, J�. VOC� N�O VAI SE ARREPENDER!
E o que prop�nhamos? Inicialmente nada. 0 folheto consistia nessas
frases, al�m de uma explica��o sobre o JARC: as iniciais de nossos nomes.
- Voc�s est�o perdendo tempo � disse Bola. - E o clube?
Mais uma diferen�a: sem participar, Bola n�o tinha o que fazer. Ir
ao clube sozinho n�o tinha gra�a; ele ficava nos esperando:
- A que horas vai terminar?
Mal sabia ele como nossas reuni�es eram longas.
J�nior foi um dos que entrou na nossa chapa. De �culos, estava
sempre conversando com professores, fazia trabalhos que ganhavam
elogios. Suas id�ias eram surpreendentes: prop�s uma feira de ci�ncias,
um torneio de xadrez, uma competi��o que avaliasse o Q. I. dos alunos.
- Para que isso? � disse Raul. - Para voc� mesmo ganhar?
- Claro que n�o! Eu ficaria no m�ximo em segundo, pois ningu�m
ganha do Schmidt. Quer dizer, at� agora ningu�m ganhou.
Andr�, o outro membro, aceitava qualquer id�ia, desde que a escola
organizasse uma viagem � Disneyl�ndia - j� que seu irm�o
tinha ido e ele n�o. Quanto a mim, eu ficaria feliz se as aulas come�assem
meia hora mais tarde: era sempre dif�cil acordar de manh�.
Na falta de um consenso, escrev�amos todas as propostas, de forma
que ningu�m ficasse descontente. Raul era o mais enf�tico de todos.
Organizava as atividades, estimulava o corpo-a-corpo com o eleitor:
- Com a gente vai ser mais f�cil ag�entar esta escola!
E olha que tivemos respostas positivas! Alguns at� nos pediam para
incluir no programa id�ias inusitadas: mandar embora a professora de
matem�tica, permitir que sa�ssemos da escola na hora do recreio.
- Eu concordo � disse Raul. � Essa id�ia vai ser inclu�da.
E a campanha continuava.
At� que, um dia, marcamos com Bola de nos encontrar no clube.
Eu e Raul fomos de �nibus. Bola nos esperava na frente:
� Esqueci a chave � disse ele.
Ao entrar no clube, a surpresa: a porta estava aberta. E dentro,
n�o havia mais nada, ou quase nada. As redes tinham sumido, o
tapete, o fogareiro, a cole��o de revistas, a faca, todos os utens�lios
para acampamento: o vazio, apenas.
� Onde est�o nossas coisas?
Era dif�cil acreditar. Ficamos olhando as paredes vazias, de onde
at� p�steres tinham sido arrancados; s� restavam caixotes. Revolta,
espanto, ficamos a ponto de chorar.
� � o fim � disse Raul. - Acabaram com tudo.
� Eu n�o falei? � disse Bola. - Voc�s estavam se esquecendo do
clube! Por isso algu�m entrou e levou nossas coisas.
� E a sua chave? � disse Raul, s�rio. � Onde est�?
Bola achava que a tinha esquecido em casa. Mas n�o estava certo.
� Est� vendo? - disse Raul. � Voc� deve ter perdido.
� Mas eu sempre deixei aqui...
Bola n�o achou sua chave em lugar nenhum: nem em cima, nem
em baixo dos caixotes, onde costumava ficar.
� A porta n�o foi arrombada � disse Raul. - N�o h� marcas,
sinais, e o cadeado sumiu.
� Ent�o Bola perdeu a chave na rua � conclu� - e algu�m achou.
� � prov�vel - disse Raul. - Mas n�s estamos perdendo tempo. 0
que vamos fazer agora? Ficar de bra�os cruzados?
N�o sab�amos que atitude tomar. Ficamos quebrando a cabe�a. E
quem teria roubado as nossas coisas?
� Devem ter sido os moleques que passam rodando pneus - disse
Raul. � Eu n�o dizia que eles tinham inveja?
Sim, por isso t�nhamos colocado um cadeado na porta.
� Se n�o tivessem achado a chave... � lamentei.
Raul insistiu que era preciso tomar uma atitude em vez de lamentar.
Marchamos at� a esquina, � procura dos tais meninos.
� Est� vendo? � exclamou Raul. - Eles est�o sempre aqui. Por
que sumiram, de repente?
A explica��o s� podia ser uma. E como eles tinham tido
coragem?
� Eu queria matar um por um � falei, cheio de �dio.
Seguimos para conversar com H�lio na loja. Provavelmente ele
sabia onde moravam.
� Sei, sim. E na vila.
A vila era um bairro de casas velhas, com o reboco caindo. E o
que fazer? Ir at� l�, enfrent�-los?
� N�o � disse Raul. - No campo inimigo, a vantagem � deles.
Temos de nos enfrentar com eles aqui mesmo.
Uma guerra terr�vel se aproximava. Era inacredit�vel � mas pod�amos
ficar quietos, simplesmente? N�o, mil vezes n�o. A aproxima��o
dessa guerra nos enchia de medo, mas tamb�m de arroubos de
coragem:
� Quero fazer picadinho deles! � falei.
� Se o Bola jogasse o peso dele em cima...
� Meu peso? Voc� n�o sabia que eu emagreci?
T�nhamos um objetivo real e imediato: acabar com os moleques
da esquina. Seria minha primeira briga de verdade. A excita��o tomava
conta de mim.
Em casa, comentei que o clube havia sido roubado.
� Que pena - disse minha m�e. � 0 que voc�s v�o fazer?
Por pouco n�o disse a verdade. Mas, se dissesse, ela n�o me deixaria
sair de casa por v�rias semanas.
� Por enquanto nada � disfarcei.
Em meio aos planos de vingan�a, Bola quis arregar:
� 0 que vai adiantar brigar com eles? V�o devolver nossas coisas,
por
acaso?
Eu estava a ponto de xing�-lo, mas Raul ponderou:
� Concordo: brigar por brigar vai ser in�til. 0 importante � provar
que eles roubaram.
E como provar isso? Eles nunca confessariam. S� ter�amos a prova
se eles fossem idiotas a ponto de andar com nossas coisas para
cima e para baixo.
� N�o v�o fazer isso. Temos de provoc�-los, at� que eles acabem
entregando a verdade. E se algu�m ouvir vai servir de testemunha.
0 plano parecia perfeito. Eles acabariam confessando sem querer,
mesmo porque todo segredo � dif�cil de guardar. H�lio serviria de testemunha
� se n�o devolvessem nossas coisas chamar�amos a pol�cia.
Simples, n�o?
Simples at� demais, eu diria. Bem, o importante era arrancar a
confiss�o, j� que os tr�s eram maiores que n�s.
- Mesmo assim, devemos estar preparados para tudo � disse Raul. Uma
guerra � sempre uma guerra.
Bola, por�m, admitia enfrent�-los, desde que n�o tivesse de brigar.
Pelo sim, pelo n�o, levamos pedras no bolso, um estilingue, um
canivete: eu n�o teria medo de esfaque�-los, jurei: a emo��o da primeira
briga tomava conta de mim.
Eles estavam na esquina, rodando pneus. Ao nos verem fingiram
n�o notar; um deles me olhou com uma cara bem lambida.
- Agora tenho certeza - falei. - Olha a cara dele!
- Calma - disse Raul. � Eles t�m de confessar primeiro.
H�lio vinha atr�s de n�s, mas tamb�m n�o queria saber de briga. Que
atitude tomar? S� agora eu via que o plano n�o previa todos os detalhes.
Ficamos quietos, at� que um deles, o mais alto e magricela, falou:
- 0 que foi? Que est�o olhando?
- Estamos procurando quem roubou nosso clube � falei, sem
medo. � Ser� que foram voc�s?
- Ah, desgra�ado, est� me chamando de ladr�o?
- Eu, chamando? Voc� � que...
N�o houve tempo para nada, a briga j� tinha come�ado. 0 mais
alto deu um tapa na cara de Raul, ele reagiu com um soco. Dois
vieram me empurrar, e antes que a rea��o fosse poss�vel eu j� estava
no ch�o. Jogaram um peda�o de barro nas costas de Bola, jogaram
pedras em mim e em Raul. Eu quis pegar minhas pedras, mas uma
coisa me acertou no rosto: o sangue escorreu e em segundos j� est�vamos
os tr�s correndo, at� chegar ao clube.
As paredes do clube, escurecidas, pareciam maiores: o ru�do da
nossa respira��o ecoava no vazio. Ent�o a briga j� tinha acabado!
- Vamos embora � disse Bola. � Eu que nem queria brigar estou
todo sujo e arranhado.
Em casa, minha m�e se escandalizou:
- Voc� leva uma pedrada e nem lava o rosto?
N�o falei da briga, mas ela adivinhou:
- Voc� n�o vai voltar mais para esse clube.
� Mas m�e...
� Nunca mais, eu disse.
Um curativo no rosto, o clube havia chegado a seu fim. A briga
mostrava que n�o pod�amos recuperar nossas coisas - nem ter�amos
�nimo para ficar ali, no grande espa�o vazio.
Pelo menos, pensei, nos ver�amos sempre na escola. Mas n�o foi a
mesma coisa. S� encontrava Raul em fun��o da campanha: J�nior e
Andr� queriam ganhar as elei��es de todo jeito.
A coordenadora pedag�gica resolveu fazer uma reuni�o com todas
as chapas inscritas. Segundo ela, havia um n�mero muito grande de
alunos concorrendo, o que poderia dispersar os objetivos da elei��o.
Por que n�o fund�amos as chapas em duas, no m�ximo? Assim seria
mais f�cil ganhar votos, e os vencedores teriam mais representatividade.
Essa proposta causou discuss�o. Muitos n�o queriam abrir m�o
de suas chapas, de suas id�ias.
� Independente do n�mero de chapas � disse Raul �, o que essa
elei��o vai adiantar? V�o aceitar as nossas propostas, se formos eleitos?
� De que proposta voc� est� falando?
� 0 uniforme, por exemplo. Na nossa plataforma, uniforme n�o
seria
obrigat�rio.
A coordenadora ficou quieta:
� Bem... � come�ou. � Essa � uma regra da escola... Ser� que os
seus pais v�o querer abolir o uniforme? E estragar roupas boas?
� E o que n�s podemos ou n�o podemos mudar? � insistiu Raul.
� Voc�s podem fazer um jornal, por exemplo. Um jornal criativo,
engra�ado. Aquela id�ia do campeonato de xadrez, por sinal, � muito boa.
� E abrir o port�o durante o recreio? Para quem quiser sair e comprar
na padaria, ao inv�s de gastar na cantina, que � muito mais cara?
� Abrir o port�o? � ela se assustou. - Mas e os alunos menores?
E se algu�m sumir, o que a escola vai dizer?
� E se algu�m sumir na hora da sa�da? - perguntou Raul. �
Nessa hora, todo mundo sai da escola e ningu�m toma conta.
A discuss�o n�o avan�ou. A coordenadora disse que est�vamos fugindo
do objetivo: as chapas concorriam para promover atividades, n�o para
"mudar" a escola. Reiterou que a "uni�o faz a for�a": se uma chapa de
poucos alunos ganhasse, ela n�o teria for�a para integrar todos os alunos.
Alguns aceitaram essa id�ia, e formou-se uma chapa com mais de
vinte nomes. Os outros concorreram isolados. Logo saiu o resultado
da elei��o: a grande coaliz�o venceu, naturalmente, e J�nior ainda
botou a culpa pela derrota em n�s:
� Por mim eu teria entrado.
Raul ficou decepcionado, mas logo se lembrou de outra coisa:
� N�s abandonamos o clube. Daqui a pouco aqueles moleques
v�o entrar l� e tomar conta.
Por mais que o clube estivesse vazio, essa id�ia me do�a. Ser� que
o tio de Bola deixaria, se eles entrassem l�?
Raul marcou uma reuni�o. Bola, que andava afastado, ficou em
d�vida. Raul insistiu:
� Vamos pelo menos fazer um piquenique.
Sentados no ch�o de t�buas, no meio do clube vazio, entre batatas
chips e peda�os de bolo, Raul come�ou:
� Voc� tinha raz�o desde o in�cio, Bola. Foi a maior besteira ter
entrado naquela elei��o fajuta. Esquecemos do clube e fomos roubados,
essa � a verdade.
Bola ficou em sil�ncio, olhando para baixo. Essa era sua atitude,
quando n�o sabia o que dizer.
� Mas nem tudo est� perdido � Raul disse e se levantou, passando
a examinar as paredes do clube.
� 0 que voc� est� fazendo? - perguntei.
� Tirando uma d�vida. Olha! Olha aqui!
Raul havia achado uma t�bua que estava um pouco solta.
� Eu estava estranhando a id�ia da chave de Bola ter sido achada
no meio da rua � disse Raul. - Seria coincid�ncia demais, n�o seria?
� Voc� quer dizer...
� Olha aqui! Se algu�m empurrar a t�bua, outro pode entrar pelo v�o.
Era verdade. N�o algu�m como Bola, claro, mas um magrinho
podia entrar ali. A t�bua n�o estava pregada na parte de baixo.
� A chave de Bola estava dentro do clube, como sempre � continuou
Raul. - Eles entraram pelo buraco, e s� depois abriram o cadeado
com a chave. N�s n�o tivemos intelig�ncia para perceber isso.
Raul parecia estar certo. Se a chave tivesse ca�do na rua, como
eles poderiam ter adivinhado que era nossa?
- Mas o que isso vai mudar? � falei. � Agora que eles j� roubaram
nossas coisas?
- Isso muda tudo, muda a psicologia da situa��o: tenho um plano
para recuperar nossas coisas.
- Plano? � reagiu Bola. � Voc� quer brigar com eles de novo?
- N�o - disse Raul. � Nesse plano n�o haver� praticamente nenhum
risco.
Bola desconfiou desse "praticamente nenhum risco". E como n�o
haveria risco?
- Confiem em mim. Eu vou contar o plano por partes.
A primeira provid�ncia foi arranjar dois novos cadeados: um para
a porta, outro para a janela. Bola quis consertar a t�bua solta, mas
Raul disse que isso n�o seria necess�rio, de maneira alguma.
Raul tinha id�ias realmente incr�veis...
Come�amos a levar novas coisas ao clube. Carreg�vamos copos,
peda�os de carpete, mas tamb�m muitas caixas de papel�o vazias.
- 0 importante - disse Raul � � fazer volume.
Fizemos muito volume em tr�s dias. Havia muita porcaria ali, mas
segundo Raul isso era necess�rio.
- Por qu�? - perguntou Bola.
- Com certeza eles est�o percebendo nossa movimenta��o � disse
Raul. � E devem estar com a pulga atr�s da orelha.
- Eles n�o est�o por aqui � disse Bola. - N�o viram nada.
- Voc� � que pensa. Eles sabem de tudo, pode ter certeza.
- E o que vamos fazer? � perguntei.
- Prefiro n�o dizer j�. Lembre-se: algu�m pode estar escutando.
Olhei para Bola e olhamos em volta: seria poss�vel que algu�m
estivesse ouvindo aquela conversa? Raul estava ficando louco?
Naquela tarde fomos atr�s de H�lio:
- Precisamos de autoriza��o para ficar na loja, hoje � noite.
A noite?, pensei, prevendo problemas em casa.
- Voc� pode ficar com a chave? - pediu Raul.
Ficou resolvido: H�lio avisaria o tio de Bola e nos esperaria com a
chave. Quanto ao clube, deixamos tudo trancado, e deixamos tamb�m
um caibro de madeira encostado na parede.
� Se o plano for feito � noite - falei -, vou escutar quando
chegar em casa.
� Eu sei � disse Raul. � Mas � o �nico jeito.
No fim da tarde, fingimos estar indo embora, mas entramos por uma
porta lateral que havia na loja. Fomos aos fundos, espiar por cima do muro.
� E agora?
� Eles v�o aparecer, podem esperar.
Ficamos esperando s�culos, e eles n�o apareceram.
� Est� vendo? � disse Bola. � S�o quase oito horas.
� Vamos esperar mais um pouco.
H�lio n�o entendia o que estava acontecendo, e Raul n�o explicou.
Logo eram quase nove:
� Tudo bem � disse Raul. � Vamos embora, mas n�o vamos desistir.
Amanh�, tudo se repete: ficamos aqui de vig�lia.
Em casa, a rea��o foi a que eu previa:
� Carlo! Voc� quer me deixar louca, esperando?
� E da�? 0 pai chega a hora que quer, voc� nem reclama mais. Por
que eu n�o posso?
No dia seguinte tudo se repetiu. Bola voltou a questionar o plano
de Raul:
� A troco de qu� eles v�o voltar? J� roubaram tudo.
� Voc� nunca leu romances policiais? 0 criminoso sempre volta ao local
do crime. Claro que eles v�o voltar. Devem estar louquinhos de vontade.
� E o que vamos fazer? � insistiu Bola.
� Se voc� n�o entendeu ainda, vai saber hoje � noite.
A tarde, voltamos � loja. Para H�lio, que ficava cada vez mais
curioso, Raul assegurou:
� Voc� vai ter uma fun��o muito importante no nosso plano.
A noite, de novo espiando atr�s do muro, qual foi minha excita��o
quando vi os moleques chegando devagar ao clube, silenciosos,
puxando a t�bua e entrando l� dentro! Inacredit�vel!
� Agora! � disse Raul, pulando o muro.
Raul deu um salto, mas alguma coisa n�o funcionou.
� Que foi? � perguntei, vendo-o parado.
� A dor - disse ele. - Ca� de mal jeito.
Em um segundo entendi tudo. Entendi o plano de Raul, entendi
que a rapidez era essencial: quando eles vissem que n�o havia nada
de valor, fugiriam imediatamente.
Escorreguei do muro para evitar uma queda brusca. Corri ao clube
e usei o caibro como um cal�o, bloqueando a t�bua solta.
Imediatamente eles come�aram a bater na t�bua, tentando escapar.
Bola, H�lio e Raul chegaram.
� Abre, desgra�ado � gritou um deles. � Sen�o eu te mato.
� Mata? Como? � perguntou Raul. � Tem um rev�lver a�?
� Tenho. E vou atirar.
� Pode atirar. Estamos esperando.
N�o se ouviu nada. Eles voltaram a chutar a t�bua:
� N�s vamos matar voc�s, desgra�ados.
� Com rev�lver, faca ou veneno? - perguntei.
Mais uma vez chutaram a t�bua. 0 caibro era forte.
� Por que voc�s n�o procuram a chave? � disse Raul. � Se voc�s
acharem, podem abrir o cadeado.
Bola estava excitad�ssimo: "E agora?", perguntou. Raul mandou
que ele e H�lio telefonassem para seu tio. Os dois correram � loja, e
em instantes o tio de Bola chegava ao clube:
� Voc�s invadiram propriedade particular, meninos � disse ele
em voz alta e firme. � Agora v�o ter que devolver o que j� roubaram.
Os moleques ficaram quietos l� dentro.
� Ouviram? Devolvam tudo aos verdadeiros donos, sen�o ir�o presos.
� Como a gente vai devolver, se n�o foi a gente que roubou?
� Ent�o vamos chamar a pol�cia, eles resolvem isso.
Pressionados, eles acabaram concordando em dizer onde estavam
nossas coisas. Fomos de carro com o tio de Bola at� a Vila: ali, numa
casa abandonada, estavam as redes, o fogareiro a �lcool, a lamparina,
as revistas. Eles tinham simplesmente feito um clube igual ao nosso!
Amea�ados pelo tio de Bola, os moleques prometeram nunca mais nos
incomodar. Raul teve de enfaixar o p� que havia torcido na hora do pulo.
E o clube, depois de um per�odo de trevas, voltou a ser o que era antes.
Durante as f�rias, Bola pouco aparecia no clube, pois sempre ficava de
recupera��o. Foi a� que conheceu um novo aluno, rec�m-entrado no
col�gio. Chamava-se Fino. Um dia, no p�tio, Bola o apresentou:
� Prazer � disse Fino, estendendo-me a m�o.
� Prazer � respondi, surpreso com aquela hist�ria de se cumprimentar
como adulto.
Na escola, Fino conseguia melhorar o uniforme, usando cal�a
comprida, cinto, sapato. Fora, ainda acrescentava camisa de abotoar,
andava elegante. Bola acabou levando-o ao clube.
� Prazer � disse ele mais uma vez.
Raul, que estava sentado no ch�o martelando uma banqueta, levantou
os olhos e respondeu de supet�o: "prazer".
Fino foi logo se sentando no tapete, seguido por Bola. Que surpresa
eu tive quando ele tirou um ma�o de cigarros do bolso e come�ou,
naturalmente, a fumar! Ofereceu o ma�o a Bola que, tamb�m para
minha surpresa, aceitou prontamente. E o ofereceu a mim.
Fiquei sem-gra�a, mas a verdade � que havia muito tempo eu
queria saber o que significava fumar. Aceitei, num impulso. Raul
respondeu:
� Obrigado, n�o fumo.
Com toda naturalidade, risquei o f�sforo, fiz exatamente o que
eles estavam fazendo. A minha curiosidade de saber que gosto tinha
aquilo foi logo saciada: gosto de fuma�a.
- Voc� traga? � perguntou-me Fino.
- Claro � respondi, e logo pus-me a fazer a fuma�a sair pelo
nariz, como ele fazia.
Senti uma tontura, gosto de queimado, l�grimas vieram aos olhos
e n�o pude evitar um acesso de tosse.
- E a bronquite � falei, lembrando-me da doen�a de Pedro.
Fino tinha sempre alguma novidade. Na escola, conversava com
meninas, que estavam admiradas com aqueles trajes:
- E que eu estudei em col�gio militar � ele explicava.
E, volta e meia, aparecia no clube.
- E incr�vel como voc�s conseguiram construir um lugar assim �
dizia Fino, com admira��o.
- Na verdade, n�o constru�mos � Raul respondeu. � Isso era um
dep�sito. S� pintamos e enfiamos algumas coisas.
- Mesmo assim. E r�stico mas bem feito, parece um albergue.
Olhamo-nos com estranheza, enquanto Fino olhava as paredes.
Pelo visto ningu�m sabia o que albergue queria dizer.
- Melhor dizendo, parece at� uma oca. Por causa das redes, quero
dizer.
Depois desse coment�rio, o sil�ncio reinou.
Fino era mais alto do que eu e Raul. Magro, tinha o nariz curvo, e
na escola logo come�ou a ser chamado de Turquinho. Mas Fino n�o
ouvia, ou fingia n�o ouvir.
Numa sexta-feira, Fino foi convidado a participar de um piquenique
no clube, e levou uma caixa de chocolates com licor.
- Cuidado para n�o ficar b�bado - disse para Bola.
E o efeito, de fato, era embriagante: depois de comer v�rios chocolates
eu podia sentir uma tontura agrad�vel.
- Voc�s n�o sabem da maior: tem uma festa, amanh�. Querem ir?
Festa? Essa palavra quase n�o fazia parte do nosso vocabul�rio. E
que tipo de festa era essa?
- E de uma amiga minha. Vai estar assim de menina, �.
� Legal - disse Bola, olhando para mim e Raul. � Quem sabe a
gente vai.
Depois de Fino ir embora o assunto veio � baila. Valeria a pena ir
a essa festa? 0 que aconteceria l�?
� Eu n�o vou � disse Raul. � N�o conhe�o ningu�m.
� P�, Raul, vamos l� � Bola insistiu.
� Pode ir, u�. Voc� n�o depende de mim.
� Mas � mais legal ir junto - percebendo que a resposta positiva
n�o vinha, ele se voltou para mim: � Vamos, Carlo?
Eu tinha vontade, mas tamb�m receio. Bola conhecia Fino bem
mais que eu. E o que faria se ficasse sozinho nesta festa?
� N�o vou porque n�o sei que roupa usar � se adiantou Raul. �
Se for para ir como o Fino, estou fora.
Fino tinha outro estilo. Alunos da quinta s�rie, us�vamos bermudas
e est�vamos distantes de tudo que ele fazia, a come�ar pelas
milhares de meninas que dizia conhecer. A conclus�o � que nem
Raul nem Bola nem eu fomos � tal festa.
Fino se aproximava de n�s de maneira impercept�vel. �s vezes,
depois da aula, nos convidava para um bar. A proposta, estranha a
nossos ouvidos, logo se tornou natural. Sent�vamos no balc�o, e
fal�vamos da vida:
� Essa vida � desgastante � dizia Fino. � Sair � noite, voltar tarde
para casa, ficar com ressaca no dia seguinte...
Segundo ele, nessas festas bebia-se muito. Eram divertidas,
mas a divers�o tinha um pre�o alto. Nossos planos, por outro
lado, n�o tinham mudado: acampar no meio do mato, vivendo
de subsist�ncia.
� Algo que sempre quis fazer - dizia Fino. � No col�gio militar
tivemos li��es de subsist�ncia e primeiros socorros.
� E nunca colocou em pr�tica? - perguntou Raul.
� N�s colocamos � ele disse. - Fomos ao Pico das Cabras.
Raul estranhou aquilo, pois ao que sabia o Pico das Cabras n�o
era um lugar pr�prio para acampamento.
� Na verdade, foi s� uma excurs�o... � disse Fino. � Mas eu nunca
tive tempo para essas coisas, porque sempre sa� de fim de semana...
Fino conseguia entender um pouco de todos os assuntos. Quanto
�s festas, deu todos os detalhes sobre a m�sica, as luzes, as bebidas
alco�licas que eram oferecidas. Eu acreditei. Essas festas, afinal, estavam
se tornando famosas, pois um dia ouvi uma amiga da minha
m�e comentando na sala:
� Um horror. Um inferninho, como dizem. E � tudo escuro! As
meninas com unhas escurecidas, dan�ando sob luz negra... Os dentes
at� brilham! E elas dan�am com qualquer um, todos dan�am com
todos, com aquela m�sica... black, se n�o me engano.
Eu s� ficava imaginando.
Fino se tornou menos formal na maneira de vestir. Na escola, jogava-
se bola, fazia-se exerc�cio, e ele nem sempre estava preparado:
� Poxa, esqueci meu desodorante.
Outra novidade. Eu nunca tinha usado desodorante, nem Bola,
nem Raul.
� Nunca vi ningu�m usar desodorante por aqui � disse Raul.
� E vai dizer que n�o � necess�rio? Eu suo, voc� n�o sua?
Andando pelo col�gio, �ramos sempre quatro. Um dia Fino foi ao
nosso velho esconderijo. Mal cab�amos no pequeno espa�o, mas Fino
viu uma nova utilidade naquele tri�ngulo:
� D� para fumar aqui.
Que ele quisesse fumar escondido era uma id�ia inusitada. No
clube n�o havia problemas, mas por que ali? Ora, � claro que o prazer
vinha da proibi��o! Ent�o Fino tinha suas desobedi�ncias, ele
que parecia t�o certinho. Gostei de saber disso. Fum�vamos, eu fumava
tamb�m � sem tragar. Raul n�o fumava.
Um dia, contudo, o bedel nos pegou. Resultado: fomos parar na
sala da coordenadora.
� Foi um erro � disse Fino. - Eu sei que foi um erro. Mas no
col�gio militar todos fumavam, eu estava acostumado.
� Isso n�o vem ao caso. 0 caso � que voc�s n�o t�m idade para
isso. Os quatro. E sabiam que era proibido.
Raul n�o havia fumado, mas foi o primeiro a reagir:
� Eu n�o sabia � argumentou. � Nunca ningu�m me disse que
era proibido. Est� escrito em algum lugar?
- Escrito? Mas... nunca foi permitido fumar aqui. Voc�s n�o sabem
que tr�s alunos da s�tima s�rie foram suspensos?
- Eu n�o sabia - disse Raul. � N�o s�o do nosso ano.
A coordenadora ficou em sil�ncio. Fino aproveitou a deixa:
- N�o vai acontecer mais. N�s prometemos.
- Mesmo assim, voc�s v�o ficar dois dias suspensos. Isso porque
� a primeira vez.
- Dois dias? � Raul se indignou. � Dois dias, por uma coisa que
nunca foi esclarecida?
A coordenadora olhou impaciente para Raul:
- Uma laranja podre � disse ela, com severidade � pode estragar
todo o cesto. Estou me perguntando qual de voc�s � essa laranja podre...
- Nenhum � eu reagi. - A id�ia foi de todos.
- Voc�s querem dar mau exemplo aos outros?! - disse ela.
- Quem d� mau exemplo � a professora de matem�tica, que passa
a aula toda fumando � disse Raul.
A conclus�o � que n�o fomos suspensos nem por um dia. Fino
ficou radiante:
- Gostei de ver � repetia para Raul. - Achei que voc� estava
fazendo besteira, mas deu certo.
- Claro - Raul respondeu, com orgulho. - Querem me fazer de bobo?
Na semana seguinte a coordenadora foi de classe em classe deixar
claro quais eram as regras da escola: era proibido fumar, o
uniforme continuava obrigat�rio, o hor�rio de entrada era �s sete e
meia e por ai afora. A maneira como ela enfatizava certas palavras
fez todos se perguntarem o que tinha acontecido. Satisfeitos, nunca
revelamos nada.
Com isso, no clube, e s� no clube, estabelecemos um ritual que
come�ava com um cigarro. Raul chegou a fumar pouqu�ssimas vezes.
Dizia n�o sentir prazer.
- Por falar em prazer - disse Fino, com mal�cia. - Tenho uma
coisa que voc�s v�o gostar.
Ficamos curiosos, mas Fino n�o contava:
- � melhor que cigarro, podem saber.
Raul achou que essa era apenas uma das invencionices de
Fino.
Quando, enfim, Fino levou ao clube uma revista de mulher pelada,
ficamos sinceramente impressionados: elas mostravam tudo! At�
Raul admitiu que a revista era das boas:
� J� vi uma que s� mostrava os peitos.
� Tenho outras em casa � disse Fino. � Americanas.
A novidade rendeu horas de coment�rios e conversas excitad�ssimas.
Bola punha a l�ngua de fora, �vido:
� Preciso bater uma.
E pegou a revista emprestada de Fino. No dia seguinte fez quest�o
de mostr�-la na escola:
� Cuidado, a revista n�o � minha - Bola abria s� algumas p�ginas,
no meio de uma roda. - Cuidado! A professora! � gritava, e n�o
se dispunha a abrir mais a revista, apesar dos protestos.
Raul tamb�m levou a revista para casa, e eu tamb�m - apesar de
n�o saber muito bem o que fazer com ela.
� 0 maior tes�o � eu disse no dia seguinte, satisfeito por ter
olhado com aten��o todas as p�ginas.
Os gostos se diferenciavam. Bola gostava das magrinhas, Raul se
excitava com as cheinhas, Fino gostou de uma morena deitada numa
rede. Todos, por�m, concord�vamos numa coisa: as mulheres de verdade
estavam em lugares distantes, como nas p�ginas de revista. As
meninas do nosso ano eram fraquinhas: umas t�buas.
� S� a Ione tem peito de verdade. Voc� viu?
As exig�ncias se multiplicavam. Diante das fotos ach�vamos defeitos,
os gostos se apuravam:
� Dessa que voc� gostou? N�o tem cintura!
Fal�vamos tamb�m do que far�amos com elas, ou elas em n�s:
� Eu prefiro que ela venha por cima. Encaixa melhor.
Tornamo-nos especialistas. Ao longo de discuss�es estabelecemos
crit�rios: peitos muito juntos ou pernas finas perdiam pontos. As que
tinham muita cara de puta tamb�m sa�am perdendo.
� E o que voc� acha que todas essas s�o? � disse Raul. � Freiras,
por acaso?
� Tudo bem - disse Fino. - A mulher pode at� ser puta, mas n�o
pode parecer puta.
Eram horas comentando, analisando, discutindo mulheres � t�nhamos
at� p�steres na parede. De tantas discuss�es surgiu uma quest�o,
�bvia, inevit�vel: Fino estava sempre entre n�s, j� n�o era hora
de efetiv�-lo como membro do clube?
A quest�o foi levantada na sua aus�ncia, claro.
� � necess�rio? � perguntou Raul. � Ele vem aqui quando quer.
� Seria mais justo, p� - disse Bola. � Ele j� trouxe as revistas, os
p�steres, traz comida. N�o � justo?
� E o que ele seria? J� temos o presidente, o bra�o direito, o
conselheiro. Est� completo.
� Ele mesmo disse que pode ser o segundo conselheiro.
� Quer dizer que voc� j� falou com ele? - estranhou Raul. - N�o
estou acreditando que voc� passou por cima de mim, Bola!
Houve um mal-estar, que eu tentei consertar:
� At� certo ponto � natural - falei. � Fino est� sempre aqui, e
sabe que a possibilidade existe.
Raul n�o disse nada. Bola emendou:
� Tudo n�o � resolvido por vota��o? Vamos votar.
� Outro problema - disse Raul. - Agora somos tr�s, um n�mero
�mpar. Se forem quatro, o que vai acontecer quando a vota��o empatar?
0 problema era real. Eu imaginava Bola e Fino fincando p� em
qualquer assunto, e o impasse nos impedindo de resolver qualquer
coisa. Como resolver isso? Eu queria que Fino entrasse no clube, mas
tamb�m n�o queria me indispor com Raul. Quem achou a solu��o foi
Bola:
� Se empatar, voc�, como presidente, decide. Certo?
Raul acabou concordando a contragosto, e votamos a admiss�o
de Fino:
� Eu voto a favor - disse Bola.
� Eu tamb�m � falei.
� Eu voto em branco � disse Raul.
Por uma quest�o �tica, o resultado n�o foi comentado com Fino. E
ele passou a fazer parte do clube.
As mesas de bares tornaram-se o lugar ideal para grandes debates.
Beb�amos e discut�amos assuntos que nos preocupavam: os perigos
do cigarro, por exemplo:
� Fumei um ma�o de cigarro mentolado, perdi o f�lego para correr
- disse Bola.
� E algum dia voc� teve f�lego? � perguntei.
� Claro, p�. S� comecei a fumar porque emagrece.
Outra preocupa��o era o sexo em excesso:
� Teve um homem que fodeu tanto que teve de ser castrado.
� 0 qu�? N�o � poss�vel.
� Claro que �. Isso tamb�m acontece se o cara se masturba demais.
Na hora da transa n�o funciona.
� Demais? E quantas vezes � demais?
� Mais de tr�s vezes por dia j� � demais.
� Voc� est� brincando!
Conscientes desses perigos, nos limit�vamos a admirar as mulheres
que passavam. A bebida, contudo, era a velha coca-cola, ou uma
gini. Com gelo e lim�o, e apar�ncia de bebida mesmo.
At� que um dia Raul pediu:
� Uma cerveja, por favor.
Pequeno, Raul n�o impunha respeito. 0 gar�om riu:
� Espera uns aninhos, nen�.
Fino deitou e rolou:
� Vai dizer que n�o sabia que era proibido, Mosquito.
� Se ele quisesse ele dava. Mas n�o me chama de Mosquito. Nunca mais.
Raul explicou que j� tinha bebido cerveja na sua pr�pria casa, sua
m�e n�o via nada de errado. E com isso apareceu no clube com uma
cerveja gelada.
Todos experimentamos. Eu n�o gostei: parecia um xarope de t�o amarga.
� Vou trazer vinho um dia desses - disse Fino. � � muito melhor.
E Fino trouxe o vinho � que realmente era mais f�cil de beber,
principalmente com bastante gelo. Agora certas reuni�es no clube
come�avam com uma bebida, que antecedia o cigarro.
�s vezes, fic�vamos b�bados - seria outro o motivo que nos fazia
Ficar dan�ando e beijando as mulheres em suas partes �ntimas?
� Eu te adoro � dizia Bola, passando a l�ngua no p�ster.
Fino trouxera uma vitrola a pilha: os discos giravam at� altas
horas, enquanto desafi�vamos o hor�rio de voltar para casa.
Mas n�o t�nhamos luz el�trica. Diante dessa dificuldade Fino adaptou
uma chapa de a�o ao fogareiro a �lcool. Com uma esp�tula imitava
o procedimento de um cozinheiro, derretendo queijo e presunto.
Comida, m�sica, sexo. Tanta anima��o tinha de gerar suspeitas,
claro. Um dia, eis que algu�m bate na porta.
� Quem �? � perguntamos temerosos, abaixando o volume. Cheguei
a pensar que era minha m�e, mas felizmente estava enganado:
era a m�e do Fino.
� Abram a porta, por favor. 0 que voc�s est�o fazendo a�?
Escondemos os cigarros e as bebidas antes que ela entrasse:
� Onde voc� estava, meu filho? 0 motorista foi te buscar no clube,
n�o te encontrou.
Fino n�o perdeu o rebolado:
� Ora, m�e. Come�ou a garoar, por isso n�o joguei t�nis.
S� depois desse di�logo ela nos cumprimentou e olhou em volta, como
se estivesse examinando. Achou que o clube estava bem organizado �
com exce��o dos p�steres, que podiam ficar guardados em lugar discreto.
Fino saiu com ela, mas os resultados n�o tardaram a aparecer:
� O que voc�s est�o aprontando naquele clube? � perguntou minha
m�e, desconfiada.
- Por qu�? A m�e do Fino fez fofoca?
- Tem motivo para fofoca? Quero saber o que voc�s fazem l�
dentro, n�o posso?
Os desejos vinham de todos os lados. Um dia fomos ao cinema,
ver um filme para quatorze anos.
� A carteirinha, por favor � disse o porteiro.
Ningu�m tinha a carteirinha, e sem ela n�o entramos.
- N�o acredito que fomos barrados! � disse Fino. � Tudo por sua
culpa, Raul.
- Minha culpa? Ora essa, por qu�?
� Olha como voc� se veste! Se ao menos pusesse uma camisa de
homem, um sapato decente!
� Essa � boa! N�o tem nada a ver.
- L�gico que tem. Ele nos levaria mais a s�rio.
Sem d�vida, ningu�m se vestia como Fino, mas Raul era de todos
o mais esculachado. Usava t�nis sem meia, e short que n�o escondia as
pernas finas.
Fino arranjou uma carteirinha falsificada. Eu e Bola quisemos
tamb�m, Fino prometeu arranjar. S� Raul n�o pediu. Na hora de
entrar no cinema, por�m, Raul acabou passando.
� Eu n�o falei? � disse Raul.
No col�gio, o bedel implicava com Raul:
� Esse short n�o faz parte do uniforme.
- E da�? A cor � a mesma.
Raul n�o entendia como Fino, que tamb�m usava roupas diferentes,
n�o despertava a implic�ncia do bedel. Claro: cal�a azul de prega, jaqueta
de n�ilon, tudo seguia o padr�o, com a diferen�a de parecer mais chique.
Na escola, a �ltima chapa eleita para o centro c�vico nada havia
feito al�m de uma gincana. Dizia-se que tinham gastado a verba em
uma festa particular. Mas havia novidades: novos professores, reformas
no p�tio. Deocl�deo, o novo professor de hist�ria, demonstrava
como os governos do Brasil privilegiavam a elite: era o caso dos
monarquistas, por exemplo.
� O conchavo entre as for�as conservadoras e retr�gradas.
Estudando a pol�tica, fic�vamos loucos da vida com os monarquistas,
que defendiam a escravid�o e impediam que os republicanos
fizessem as reformas.
E o Poder Moderador? Um aut�ntico golpe de estado. Os monarquistas
n�o admitiam perder o poder de jeito nenhum! Ao ouvi-lo, fic�vamos
t�o revoltados que t�nhamos vontade de esganar os monarquistas.
No entanto, era dif�cil ficar a favor de algu�m: se num momento
apoi�vamos os republicanos, no momento seguinte os republicanos
faziam as piores artimanhas para permanecer no governo, como na
Rep�blica do Caf�-com-Leite. Sem falar do voto de cabresto e do
coronelismo. Quem dev�amos apoiar, ent�o?
A essa pergunta Deocl�deo se mostrava hesitante:
� Cada momento � diferente, a escolha varia.
� Mas quem o senhor apoia, agora?
Deocl�deo nunca dava uma resposta clara. N�o havia mais republicanos
e monarquistas, dizia ele. E os movimentos populares tinham
desaparecido, pois sofriam press�o. Mas era poss�vel que, no
futuro, voltassem a aparecer, se as condi��es permitissem...
Os membros do centro c�vico, para n�s, equivaliam aos monarquistas.
N�o haveria outra elei��o? 0 ano chegava ao fim, eles n�o
tinham feito nada, por que n�o nos candidat�vamos?
A lembran�a da elei��o da qual particip�ramos tirava qualquer �nimo.
No entanto haveria uma reuni�o, em que assuntos p�blicos seriam discutidos:
� 0 nosso col�gio � um exemplo de civismo � disse o novo coordenador
pedag�gico, que assumira o posto havia pouco tempo.
A discuss�o prosseguiu, entre risadas. As elei��es eram vistas como
um evento, assim como as gincanas em que um grupo sa�a vencedor.
� E o voto de cabresto? � disse Raul. � Ser� que vai acontecer de novo?
� Cabresto? � estranhou o coordenador. � Do que voc� est� falando?
Raul explicou que nas �ltimas elei��es de que participara uma
chapa com mais de vinte pessoas havia ganhado � �bvio, pois s� os
amigos dessas pessoas j� somavam um n�mero vitorioso.
� Voc� est� confundindo as coisas, meu filho � disse ele, com um
sorriso. � Voto de cabresto � coisa bem diferente. Coisa do Nordeste.
� E como se chama esse tipo de voto? Em que se forma um grupo
majorit�rio, e que por isso ganha a elei��o?
� Democracia! Todos votaram, um grupo ganhou. Onde est� o
problema?
� Mas era um grupo que se formou s� com esse prop�sito. Pois
quem estivesse de fora n�o teria chance.
� Ora, por que n�o? Cada um podia votar em quem quisesse. Voc�
n�o est� entendendo o princ�pio da coisa.
� Acho que o senhor � que n�o est� entendendo. Afinal, n�o
estava aqui quando isso aconteceu.
A conversa, no come�o cortada por risinhos e ru�dos, passou a ser
acompanhada por todos; um sil�ncio caiu na sala. A coragem de
Raul em dizer exatamente o que pensava ainda me surpreendia.
� E ser� que voc� vai poder me explicar? - disse friamente o
coordenador, que usava uma camisa social.
� Bom, eu... � Raul ficou quieto, subitamente sem resposta.
� Ser� que h� outras pessoas insatisfeitas? � perguntou o coordenador,
olhando para todos. � Algu�m mais tem obje��es?
Diziam que a substitui��o da coordenadora pelo novo coordenador
se devia � eleva��o de n�vel do estabelecimento, pois tratava-se de um
profissional qualificado. Agora eu via que isso era verdade, pois ele, ao
contr�rio da anterior, parecia nunca perder o controle da situa��o.
� 0 que voc�s est�o achando dessas coloca��es? � perguntou o
coordenador, olhando em volta.
� Acho que ele n�o gostou de perder � disse uma menina, que
obviamente tinha ganhado.
� Talvez. Talvez voc� � disse para Raul - devesse levar isso em
conta. As elei��es, lembre-se, servem a todos, n�o a um s�.
Alguns come�aram a falar. 0 coordenador granjeava simpatia,
pois muitos ali faziam parte do centro c�vico. Sa�mos da reuni�o e
Raul saiu chutando poste:
� Queria ganhar a elei��o s� para esse imbecil ver, mas sei que � imposs�vel.
Fazem uma chapa com quarenta pessoas e ganham de qualquer jeito!
� Ganhar elei��o para qu�? � disse Fino, com t�dio. � Voc� est�
querendo arranjar briga � toa.
� Voc� entrou no meio da reuni�o e n�o entendeu nada � disse Raul.
Fino realmente n�o entendia do assunto, nem queria entender.
Suas preocupa��es eram bem diferentes. Algumas semanas depois
anunciou que entrara nas aulas de dan�a do Clube Municipal. Raul
disse que aquilo era frescura.
� Frescura? - respondeu Fino. - Frescura voc� vai ver quando
um monte de mulheres cair na minha m�o. Frescura vai ser dan�ar
assim, �, quando chegar o Baile Negro - e deu um passo de dan�a,
acariciando no ar a silhueta de uma mulher imagin�ria.
� Quero ver.
Mas Raul n�o foi ver. 0 Baile Negro estava sendo comentado na escola,
na rua, em toda a cidade. Seria num s�bado, os convites eram disputados
a tapa. Fino conseguiu arranjar convites para n�s. A expectativa era
imensa. Minha m�e at� mandou fazer um terninho especial para a ocasi�o,
e no dia me arrumei com cuidado, passando gomalina no cabelo.
� Um verdadeiro homem � disse ela satisfeita, ajeitando meu
colarinho.
Fino, afinal, entendia das coisas. De uma forma ou de outra conseguia
entrar nos lugares certos, na hora certa, criando oportunidades.
Sa� de casa, peguei um t�xi e encontrei Bola.
� E Raul? - perguntei.
� Disse que n�o vai.
� Vamos passar na casa dele.
A m�e de Raul nos atendeu, atravessamos uma sala. Raul fazia
um desenho no seu quarto.
� P�, Raul - disse Bola. - Vamos l�.
� Eu j� dei minha resposta � disse Raul.
� S� para acompanhar a gente. 0 t�xi est� a�.
� N�o d� para s� acompanhar voc�s. Ou eu vou ou n�o vou.
� E por que n�o vai? � despeito com o Fino, por acaso?
� Eu n�o vou porque tenho senso de rid�culo. Por acaso voc�s j�
se olharam no espelho?
Olhei para Bola, sua cara vermelha, o cabelo empastado de
gomalina, a camisa que mal escondia a gordura. Ser� que eu estava
t�o rid�culo quanto ele?
O t�xi nos deixou na porta do Clube Municipal. Todos entravam
elegantes, com ternos, vestidos longos.
Na pista, tive a surpresa de ver todos dan�ando num ritmo fren�tico.
As roupas chiques, gravatas e paletos n�o eram empecilho para
a anima��o.
Fino era quem mais dan�ava. Com um blazer azul- escuro, camisa semiaberta,
dan�ava com mulheres mais velhas, dan�ava com meninas, dan�ava
sozinho; fazia reviravoltas, erguia um bra�o, depois o outro.
Eu e Bola nos sentamos no fundo do sal�o. Fino veio falar conosco:
- Viram as meninas? � disse, com uma piscada maliciosa, e apontou
um grupo de meninas em volta de uma mesa. - Est�o esperando
que voc�s as tirem.
- N�o sabemos dan�ar � disse Bola.
Ficamos ali sentados. 0 tempo custava a passar. Bola ainda n�o
tinha se acostumado com o colarinho duro, e ficava repuxando o
pesco�o. Olh�vamos tudo a dist�ncia, sem vontade nenhuma de sair
dali. Todos circulavam sem parar, as meninas em volta da mesa soltavam
risinhos. 0 m�ximo que fizemos foi tomar uma coca.
- E ent�o? � disse Fino, depois de mais demonstra��es na pista.
- Daqui a pouco as meninas � que v�o tirar voc�s.
Diante dessa perspectiva resolvemos ir embora. Sa�mos discretamente,
pegamos um t�xi. Bola desceu primeiro, voltei sozinho para casa.
- E ent�o? - disse minha m�e, descendo a escada de camisola. �
Como foi o baile?
- Bom - respondi, subindo a escada. - Mas faltou m�sica lenta.
- M�sica lenta?
- Claro. Pular de l� para c�, onde est� a gra�a? N�o sou macaco.
- Mas a moda atual...
- Eu n�o sigo a moda, m�e. E estou com sono � o toque de sua
m�o no palet� se perdeu, subi ao quarto. Tirei a roupa que tinha
vestido com tanto entusiasmo. Tinha raiva daquela roupa, raiva do
baile, raiva de Fino, raiva de mim mesmo. E por qu�?
N�o sabia dizer. Fino aparecia como uma esp�cie de farsante, que
inventava hist�rias e falava demais, mas na verdade n�o podia culp�lo
de nada. Dormi. S� o sono podia aplacar o que sentia.
15
Bola e eu juramos nunca mais voltar ao Clube Municipal. Fino, por�m,
era sempre capaz de inventar alguma novidade. Dezembro chegou,
e resolvemos passar o ano-bom no clube. Fino preparou uma
festa de r�veillon, levou salgadinhos, levou at� champanhe.
� 0 Fino � muito fino � disse Raul.
� Claro � ele respondeu. - Da pr�xima vez vai ter caviar.
Mas a pr�xima vez estava distante: o ano entrou, Fino viajou com
os pais, Bola ficou mais uma vez de recupera��o. Est�vamos s� eu e
Raul no clube.
� Se ao menos pud�ssemos ouvir m�sica... - comentei.
� Se Fino tivesse deixado a vitrola, voc� quer dizer � disse Raul.
Fino tinha levado sua vitrola, mas alegando medo de um roubo,
como o que j� acontecera.
� Talvez ele pudesse ter deixado - falei. - Mas ser� que isso
bastaria para voc�s se darem bem?
� Por qu�? - ele me olhou. � Voc� acha que n�s n�o nos damos bem?
Fiquei quieto. Havia coisas que nunca eram comentadas. J� estava
arrependido de ter tocado no assunto, mas n�o podia voltar atr�s.
� N�o sei � falei, sem gra�a. � Voc�s dois sempre discordam.
� Todos n�s discordamos, os quatro.
Sim, era comum que um quisesse impor seu ponto de vista, e cada
assunto virasse uma batalha.
- Mas voc� e o Fino s�o os que mais discordam - falei, com
sinceridade. - N�o sei por qu�, mas � o que acontece.
- Talvez Fino seja mais exclusivista que n�s, talvez seja isso �
disse Raul.
� Exclusivista? � estranhei. � 0 que � isso?
- Quer dizer que ele... s� faz o que gosta, e que todos t�m de fazer
o que ele gosta.
- Voc� quer dizer que ele �... ego�sta?
Raul n�o disse nada. Mas na minha cabe�a n�o era assim. Por mais
que eu entendesse o lado de Raul, Fino n�o podia ser chamado de ego�sta.
Ele arranjava convites, levava comidas, n�o pedia nada em troca. Ao
contr�rio, ainda fazia novos convites. N�o, Fino n�o era ego�sta.
- A quest�o... � disse Raul.
Esperei. Ele continuou:
- Na verdade, eu � que sou diferente de voc�s � falou.
- Diferente? � eu me espantei. � Por qu�?
� Voc�s querem ser os gostosinhos, os bacaninhas. Eu, n�o.
� E quem disse que eu quero ser o bacaninha? � reagi, de imediato. �
claro que n�o.
� Ser� que n�o, Carlo? � disse Raul, me olhando.
- Tenho certeza � respondi.
Talvez eu tivesse respondido r�pido demais, mas no meu �ntimo
achava que era verdade. Sabia do que ele estava falando. Roupas,
certas "frescuras", e as pretens�es do Fino.
� H� muitas coisas que me fazem discordar do Fino � repeti,
convicto. � Eu n�o poderia ser como ele, de jeito nenhum.
� Tudo bem, acredito � disse ele.
� 0 importante � a amizade. N�s continuamos amigos como sempre,
certo? � perguntei.
� Isso nunca foi colocado em quest�o.
Depois dessa conversa as coisas melhoraram. Durante aquelas f�rias
voltamos a sonhar com o antigo projeto de um acampamento no
mato. Aproveitamos a aus�ncia de Fino e Bola para pegar �nibus que
sa�am dos limites da cidade, tentando planejar a aventura. Raul achava
que est�vamos ficando moles demais, acomodados, at� mesmo pouco
m�sculos. Faltava esfor�o em n�s. Pod�amos batalhar por alguma
coisa, e a �nica coisa que faz�amos era cozinhar. Que iria acontecer
no futuro? Raul tinha a certeza de que uma atividade f�sica poderia
preencher o nosso tempo, de forma que nem as discuss�es teriam
como acontecer.
Um acampamento seria ideal. Um desafio, um aprendizado, a certeza
de depender s� de n�s mesmos.
Na volta �s aulas, comunicamos nossos planos a Bola e Fino.
Eles concordaram, at� se animaram. Mas os planos se referiam ao
futuro, e o dia-a-dia se mostrou diferente. Fino tinha outras id�ias
na cabe�a; achou, por exemplo, que os p�steres deviam ser retirados
da parede.
� N�o entendi � disse Raul. � Voc� mesmo trouxe e quer tirar?
� Voc�s n�o acham que eles s�o de mau gosto? - disse Fino.
� Eles s�o seus. Se voc� quiser levar embora, a decis�o � sua.
� N�o quero levar embora. Podem ficar guardados num caixote.
Raul levantou as m�os, como se dissesse que aquilo era incompreens�vel.
� Fa�a a sua vontade � disse Raul. � Quem pode saber o que h�
por tr�s disso?
� N�o enche, Raul. N�o tem nada por tr�s disso. Eu simplesmente
amadureci, modifiquei a minha id�ia.
� Voc� amadureceu em tr�s meses?
As discuss�es come�avam assim, do nada. Se Fino quisesse levar
seus p�steres, seria muito simples. Mas ele queria nos convencer de
que seria melhor tir�-los, como se isso significasse amadurecimento.
J� que era assim, Raul prop�s uma vota��o: tirar ou n�o tirar?
� Eu voto contra - disse o pr�prio Raul.
� Eu tamb�m � falei.
� Eu voto... em branco � disse Bola, impaciente.
S� Fino queria tir�-los e perdeu a vota��o. 0 assunto morreu ali,
mas as mulheres peladas agora estavam sempre nos observando, como
se tivessem adquirido uma express�o ir�nica no olhar.
O anivers�rio de Fino chegou, e seria comemorado com uma festa
em sua casa. A quest�o para n�s n�o era que presente dar a ele, mas
que roupa usar no dia.
- N�o sei, n�o - disse Raul.
Pronto!, pensei. Raul n�o iria, e ter�amos outro mal-estar no
clube.
Mas no dia da festa, Bola, Raul e eu chegamos l� com uma camisa
de seda - embrulhada. Fino nos conduziu � piscina. L� estavam seus
parentes, e amigos da escola.
Ao longo do almo�o, Fino nos servia, servia seus familiares, e
servia uma menina com insist�ncia. Loirinha, nenhum de n�s a conhecia,
e Fino levava refrigerante, espetinhos, oferecia coisas sem
parar.
Na hora dos parab�ns Fino cortou a primeira fatia de bolo e a
ofereceu a ela. Os risos e aplausos deixaram os dois subitamente
vermelhos.
Pronto! Depois de dois dias Fino anunciou que estava namorando:
� Voc�s v�o estranhar, mas agora n�o vou estar sempre aqui avisou.
- � um compromisso.
� Ele deve ter amadurecido mesmo - Raul comentou, depois de
Fino ter ido embora.
Aproveitamos o ensejo para trabalhar: Raul quis que arranc�ssemos
o mato que crescia em volta do clube, dando-lhe um ar de abandono.
Logo, por�m, Fino voltou ao clube avisando que tinha uma
"sogra" terr�vel: a namorada s� podia v�-lo neste ou naquele hor�rio,
isso se tivesse feito as li��es.
Fino revelava seus progressos: tinha pegado na m�o, dado um
beijo, ou melhor, v�rios beijos.
� U�, voc� n�o disse que j� conhecia mulher? � disse Raul. �
Agora vem falar de beijo como se fosse a melhor coisa do mundo.
Fino descobria o prazer da conquista. Pacientemente, avan�ava
um cent�metro, ou um mil�metro, mas n�o desistia. E assim conquistou
direito ao cinema, � pra�a, ao milk-shake.
� A coisa mais deliciosa � beijar depois de um milk-shake, principalmente
se for de morango. Experimentem!
Mas ningu�m fora ele tinha essa oportunidade. Fic�vamos no clube
gastando nosso tempo com palavras cruzadas, revista de mulher pelada
ou martelando uma mesa que Raul inventara de construir.
Um dia, est�vamos ali, martelando a mesa, quando quem nos aparece?
Fino e sua namorada. Outra menina tamb�m os acompanhava.
A conversa que corria solta de repente acabou. Fino as apresentou
e apontou os p�steres:
� Eu mesmo trouxe quando era moleque. Agora perdeu a gra�a.
A conversa n�o recome�ou. Raul permaneceu num sil�ncio s�rio,
Bola ficou sem gra�a, olhava o ch�o. E eu n�o sabia o que dizer.
� Vamos sair um dia desses � disse Fino.
E sa�ram os tr�s. Eu imaginei que, assim que sa�ssem, voltar�amos
a conversar. Mas isso n�o aconteceu.
Por qu�?, pensei. Os olhares n�o se cruzavam. Que coisa estranha!
Fino voltou depois de uma hora e o pau quebrou.
� Voc� n�o tinha direito � disse Raul. � Este � o nosso clube, n�o seu.
� Direito de fazer uma visita? 0 que � isso?
� N�s est�vamos � vontade. Eu estava sem camisa, Bola estava
sem camisa.
� Grande coisa.
� Aqui n�o � lugar de mulher.
A energia subia na dire��o errada. 0 teto poderia explodir? N�o
dev�amos aceitar a presen�a de meninas? 0 meu medo era que a
briga pudesse acabar com o pr�prio clube. E os dois continuavam:
� Voc� � muito exclusivista � disse Raul.
� E voc� � taxativo. Sempre, taxativo - disse Fino.
Taxativo?, pensei. 0 que era isso? Eu n�o sabia, e meu cora��o
come�ou a bater mais forte. De repente interrompi:
� Vamos parar com isso agora! - bradei.
� Por qu�?
� Preciso de um dicion�rio!
Fino e Raul perderam o fio da meada, ficaram me olhando. E
naquele momento percebi que eu era importante. Sim, eu, que pouco
falava, tinha uma fun��o essencial naquele clube. Eu era o bra�o
direito, e minha voz devia ser ouvida.
� N�o quero briga aqui dentro! � bradei com autoridade.
Fino e Raul ficaram me olhando, mas acabaram caindo na risada.
� Isso � engra�ado? � perguntei.
� N�o - disse Raul. � Mas voc� nunca falou assim antes. Dicion�rio!
De onde tirou essa id�ia?
� Bem, se voc�s quiserem demonstrar tanta cultura, vamos para a
biblioteca da escola.
Os dois ficaram sem gra�a. Bola s� ouvia.
� Lembrem-se de que n�s temos regras aqui � eu falei.
� Sim, eu sei - disse Raul. - Nesse caso, quem est� certo? Vamos
dar nossa opini�o, vamos votar!
� Calma, Raul - eu disse. � Votar em qu�?
� � certo trazer meninas aqui? Voc� gostou, Bola? Voc� se sentiu
� vontade?
Bola demonstrava irrita��o. Aparentemente n�o participava de
tudo o que discut�amos, mas respondeu:
� N�o, n�o gostei.
� Est� vendo? � insistiu Raul. � E voc�, Carlo, ficou � vontade?
� N�o sei � respondi. - A situa��o era estranha.
� � o que eu estou dizendo! 0 clube � nosso!
Fino s� cruzava os bra�os, como se demonstrasse que est�vamos
agindo com total infantilidade. Eu levei em conta o seu lado:
� De qualquer forma � falei - duvido que Fino tenha feito de
prop�sito.
� � claro � disse Fino. � At� trouxe uma menina que voc�s podiam
namorar! E voc�s reclamam!
Dessa vez Raul fez um olhar, como se dissesse que o infantil era
Fino.
� Acho que chegamos a uma conclus�o � falei. - A maioria n�o
est� � vontade com meninas aqui. Concordam?
Com certo espanto, concordaram. Fino, claro, deu a entender
que est�vamos perdendo com essa decis�o. E Raul mudou de atitude
comigo. Eu senti que, a partir desse dia, ele dava mais import�ncia
ao que eu falava, como se a palavra final estivesse nas minhas
m�os.
� N�o sei por que voc�s ficaram t�o surpresos - falei, como se
tudo fosse muito natural.
� Surpreso, eu n�o sei � disse Raul. � Mas � bom que voc� tenha
essa iniciativa. Se voc� tamb�m se imp�e, � o clube que sai ganhando.
Fiquei satisfeito. Esses coment�rios me enchiam; Raul era meu
amigo, mas eu sabia que raramente dizia uma palavra elogiosa.
A partir da� passei a acreditar que poderia controlar os �nimos. E
evitar que as diferen�as estragassem o principal, ou seja, o clube, que
para mim era a coisa mais importante.
Quanto a Fino, acabou desmanchando o namoro:
� A coisa estava ficando s�ria demais, e eu sou muito mo�o.
E, assim, voltamos � rotina.
16
Logo depois das f�rias, o coordenador da escola veio com uma novidade:
um concurso em que seria escolhido o "aluno-modelo do ano".
A d�vida consistia em saber o que se entendia por "aluno-modelo".
Diante das perguntas, disseram que o aluno-modelo n�o seria o
que obtivesse as notas mais altas. Tamb�m n�o seria o melhor nos
esportes, nem o mais inteligente. Que qualidades teria esse ser ideal
era um mist�rio a ser desvendado, pelo visto.
As meninas interpretaram a "aluna-modelo" de maneira pr�pria.
Come�aram a desfilar no p�tio, cabe�a erguida, como se estivessem
numa passarela. E a moda pegou a tal ponto que todas queriam se
encaixar no perfil de "aluna-modelo": alguns quilos a menos, meias
lurex, sand�lia de pl�stico, era dif�cil para o bedel controlar esses
acess�rios que chamavam mais aten��o que o pr�prio uniforme.
O coordenador foi de classe em classe desfazer o mal-entendido.
Segundo ele, o aluno-modelo deveria reunir outras qualidades.
� Mas o que eu fa�o, se quiser ser aluna-modelo? � disse uma
menina, ingenuamente.
� Posso ganhar depois de pegar recupera��o? - outro perguntou.
� Lembrem-se � disse o coordenador -, n�o � uma competi��o.
N�o adianta fazer isso ou aquilo, de prop�sito, para ser aluno-modelo.
� Mas ent�o...
0 suspense crescia a cada palavra que o coordenador dizia. Todos
se indagavam, ningu�m entendia nada, e nesse momento percebi
que ele fazia isso de prop�sito: depois de nos deixar em d�vida,
prop�s um debate. Quais seriam as qualidades do aluno-modelo?
� Eu acho que devia ser um bom aluno. Sen�o, qual o sentido
disso? � disse uma menina que era boa aluna.
� E o que � mais importante? Tirar notas boas e s�? Se algu�m
fica em recupera��o, e passa, n�o merece uma chance?
A menina ficou em d�vida, talvez decepcionada.
� E se o cara falta muito? - disse um aluno que faltava muito.
� E se ele for muito gordo, pode ser modelo? � a pergunta foi feita
por um aluno que sentava do lado de Bola, e todos come�aram a rir.
0 debate continuou; cada um perguntava indiretamente sobre seu
pr�prio caso: se atrasasse, se fosse muito ao banheiro...
� Como voc�s v�em, estamos chegando a uma conclus�o disse
o coordenador. � 0 aluno deve estudar, mas essa qualidade
n�o garante que ele seja importante para a escola como
um todo.
� Mas ent�o...
� Ent�o conclu�mos que as qualidades importantes s�o:
receptividade, participa��o, sociabilidade.
Ningu�m entendeu, e ele se disp�s a explicar: receptividade a
qualquer proposta, de forma a participar da atividade em quest�o, o
que s� poderia ser conseguido com sociabilidade � n�o era claro?
N�o, n�o era. 0 que para ele era �bvio, para n�s era muito obscuro.
� Vejam bem... 0 que podemos esperar de um aluno? A escola �
formada por professores e alunos. Se um aluno tem uma boa rela��o
com os professores, pode promover atividades, fazendo com que todos
sejam mais atuantes.
� Mas se ele n�o estuda...
� Se n�o tira boas notas, pode ter a iniciativa de chamar colegas
para estudar em grupo � estamos at� reservando salas para isso. Ali�s,
este pode ser o come�o de um belo trabalho em equipe. Voc�s sabiam
que existe uma favela aqui perto, com gente que precisa de ajuda?
At� ent�o quieto, Raul arriscou uma pergunta:
� E o que tem a ver essa... boa rela��o com os professores?
� Tudo, pois os professores prop�em atividades. Aquele que concorda,
ou melhor, se interessa pelas atividades pode fazer com que
outros tamb�m se interessem.
As vozes subiram. A nossa curiosidade tinha sido estimulada, pois
todos queriam saber mais. Contudo, ningu�m estava satisfeito,
pois as regras para o tal "concurso" n�o eram claras.
� Do jeito que a coisa est� � disse Raul � voc�s v�o conseguir um
resultado muito ruim com este concurso.
� Ruim? � ele estranhou. - Por que ruim?
� Pois essa hist�ria de se dar bem com professores... Voc�s v�o
promover o puxa-saquismo dos alunos, isso sim.
As palavras de Raul ca�ram como �gua na fervura. 0 coordenador,
de m�-vontade, voltou a dizer que ningu�m devia fazer nada de
prop�sito para ganhar o concurso. 0 fato de iniciar a discuss�o � que
era importante.
E, mesmo assim, muitos quiseram ganhar. Fino foi um deles. Ficou
mais falante e social. Entrou nos grupos de trabalho de alunos da s�tima
s�rie. Os grupos tinham at� direito de pedir um monitor, tal era o interesse
da escola em que tom�ssemos "as nossas pr�prias" iniciativas.
Mas n�s consideramos a id�ia uma grande babaquice. �amos para
o clube como sempre, e ach�vamos que todos que participavam dos
grupos s� faziam isso para ser notados. Fino s� aparecia no clube
pelo fim da tarde:
� Estou livre, n�o preciso estudar � noite.
Contudo, j� era tarde, e logo volt�vamos para casa.
� Por que voc�s n�o ficam mais? - disse Fino, um dia.
N�o pod�amos, fomos embora. Mas a situa��o se repetiu:
� S� mais um pouco � insistia Fino.
N�o era h�bito nosso ficar l� � noite. Raul tentou colocar os pingos
nos is:
� N�o d� para fazer tudo, Fino. E imposs�vel ficar aqui e na escola
ao mesmo tempo.
� Isso � �bvio � disse Fino.
� Mas voc� n�o quer abrir m�o de nada. Quer fazer parte do
clube, quer entrar nos grupos de trabalho.
� E da�?
� Se as coisas acontecem ao mesmo tempo, voc� tem de escolher, ora.
0 pr�prio Deocl�deo disse que a gente tem sempre de escolher. Qual �
a sua escolha?
Fino n�o respondeu nada. E depois demonstrou irrita��o:
� Voc� est� querendo me podar, isso sim.
� Eu? - Raul estranhou.
A discuss�o, apenas uma entre muitas, prosseguiu, Raul tentando
provar que n�o queria podar ningu�m, e Fino tentando mostrar que
o clube era independente dos grupos de trabalho. Para tanto lan�ou
um desafio:
� Estar aqui de dia, isso � bobagem � disse, com superioridade. �
Afinal, j� n�o somos grandes o suficiente para sair... � noite?
Um desafio � um desafio. Assim, a conversa mudou de rumo:
� Fiquei sabendo de um lugar � disse Fino.
� Que lugar?
� N�o � para crian�a. Querem conhecer ou n�o?
Fino continuaria nos grupos de trabalho, mas o desafio estava
lan�ado, e a nossa vontade agora era ir ao tal local, demonstrando
que n�o era nada do outro mundo fazer tal coisa.
� E que tipo de lugar � esse?
Fino jurou que o lugar n�o tinha nada a ver com o Clube Municipal.
Seria praticamente a nossa primeira sa�da, � noite. E t�o natural
quanto essa sa�da seria inventar uma desculpa para nossos pais. Dissemos
que haveria um anivers�rio de uma menina.
� Que menina � essa? � perguntou minha m�e, desconfiada.
� E uma tal de... Leonarda.
De onde tirei tal nome, n�o me perguntem. Nos encontramos �
noitinha. Fino estava de sapatos, cal�a comprida, com as m�os nos
bolsos.
Entramos num �nibus que rodou por avenidas que eu mal conhecia.
Confiamos inteiramente em Fino; sua preocupa��o de se tornar
aluno-modelo desaparecia diante dessa iniciativa. Pela primeira vez
est�vamos fora de casa num hor�rio proibido, em meio �s sombras
da noite, sem que soubessem do nosso destino.
� � aqui.
Eu observava tudo com curiosidade. Era um galp�o num bairro
distante. Havia uma fila na porta, de pessoas mais velhas que n�s:
faziam press�o para entrar, empurravam-se, e o porteiro, um negro
grande, come�ou a esbravejar:
� Daqui a pouco n�o entra ningu�m!
Quase dez horas; minha m�e sempre fazia quest�o que eu chegasse
antes das oito. Esse princ�pio de tumulto n�o era nada inspirador.
� Precisa ter carteirinha?
� Pode deixar - disse Fino. � Tenho um convite carimbado.
Fomos amassados, empurrados, mas era quest�o de honra n�o
desistir. Entramos, ejetados para dentro, em meio a um turbilh�o.
E ent�o, eu vi: um lugar que s� n�o era totalmente escuro em raz�o
dos raios que piscavam aqui e ali, partindo a vis�o em cacos incompat�veis.
De um lado, casais se abra�ando, de outro figuras que dan�avam
como se estivessem loucas, abrindo e jogando os bra�os para o infinito. E,
ao fundo, a famosa luz negra: quando as luzes n�o piscavam, viam-se
fantasmas roxos e irreais, andando no escuro como almas penadas. Sem
d�vida, eu estava pela primeira vez num daqueles falados inferninhos.
� Vamos beber � disse Fino.
N�o vendiam bebidas alco�licas. Mas Fino tinha sempre uma carta
na manga do colete: pequenas garrafas de rum que despejava na
coca-cola.
Como quem estava habituado, and�vamos com nossos copos de
cuba-libre, sem saber para onde ir: de qualquer forma, era um lugar
t�o escuro que isso n�o tinha import�ncia.
� Incr�vel! � disse Raul, olhando duas meninas com decote.
� E aquela, de barriga de fora? - disse Fino.
Figuras ex�ticas, rapazes altos, de cal�a jeans e camisa aberta.
N�o �ramos como eles, mas naquela mistura pass�vamos despercebidos.
Eu mal acreditava que at� as brigas tinham ficado para tr�s.
Raul e Fino resolveram perambular, at� dan�ar na multid�o, j� que
todos dan�avam sozinhos.
� E voc�, Bola? � perguntei. � N�o vai se arriscar?
� Por enquanto estou analisando.
Um pouco mais de coca, e eu seria capaz de esquecer tudo, at�
mesmo onde estava, uma esp�cie de purgat�rio que poderia se tornar
tanto o inferno como o c�u. A diferen�a era m�nima. Prevalecia a
sensa��o de um mundo novo, cheio de formas e cores desconhecidas,
que uma vez adentrado n�o permitiria volta; eu estava no limiar.
No fim do ano, depois de muito "trabalho" e entrega de latas de
leite em p�, o pr�mio de "aluno-modelo" foi entregue a uma menina
da oitava, que conversava com todos e dizia que queria fazer o magist�rio.
Simp�tica, e mesmo assim a escolha gerou antipatia. Outros
dois alunos ganharam men��es honrosas, e Raul � quem podia ter
imaginado? - ganhou um pr�mio pelo "esp�rito questionador e mentalidade
cr�tica".
Conseguiram peg�-lo de jeito. Sem rea��o, Raul n�o teve alternativa
a n�o ser ir � frente da forma��o de alunos, e agradecer. Mais tarde
desdenhou o pr�mio, mas ficou na d�vida: ser� que realmente davam
valor ao que ele dizia, ou era s� uma forma de ado�ar a sua l�ngua?
Fino n�o gostou nada de ter "perdido". Ficou com raiva da escola
e fez um coment�rio malicioso:
� Raul se faz de dif�cil, mas adorou ter ido l� na frente.
N�o passei o coment�rio adiante; afinal, Fino estava com muita
raiva, era preciso dar um desconto.
17
Mesmo com as perguntas insistentes dos nossos pais, voltamos outras
vezes ao inferninho.
Eu colocava minha cal�a U.S. Top, e me sentia diferente. A diferen�a
era que pod�amos fazer qualquer coisa, dan�ar ou n�o, beber
ou n�o � s� que tudo isso na presen�a de meninas.
As vezes nos posicion�vamos estrategicamente e dan��vamos sem
dizer nada, mas demonstrando que est�vamos com elas. Elas correspondiam.
Dan�ando mais animadamente, criando coreografias.
Um p� para frente, outro para tr�s: qual era a l�gica desses passos?
Havia uma menina que sempre estava l�. Cabelo escorrido preto,
dan�ava compenetrada. N�o sei como chegou a dan�ar na minha frente.
Olhava-me �s vezes, indicando que eu podia ficar ali, diante dela. E os
passos? Eu tentava seguir seu desenho. Se ia para tr�s, eu ia para frente,
e vice-versa. Mas �s vezes era imposs�vel! De lado, eu n�o sabia: deveria
ir para o mesmo lado, ou o outro? Rodopios deveriam ser imitados?
Eu tentava. Simplificava para n�o errar, e ficava com a impress�o de
n�o estar dan�ando quando ela inventava seq��ncias mais complexas.
No final, ela olhava para mim e dizia:
� Tchau...
E eu prontamente respondia:
� Tchau.
Tinha certeza de que dali a uma semana a veria de novo.
� Vamos embora! � dizia Fino, ap�s dan�ar com uma menina,
que nunca era a mesma.
Rach�vamos um t�xi, os quatro.
Depois de uma semana, volt�vamos l�. Mas a menina de cabelo
escorrido n�o aparecia mais. Duas semanas, tr�s, nunca mais a vi no
inferninho.
Um dia resolvemos n�o pegar um t�xi. Sa�mos andando pela noite
e sentamos no meio-fio. Uma garoa fin�ssima come�ou a cair.
� A gente vai ficar doente � disse Bola.
Esse coment�rio n�o foi suficiente para nos fazer levantar. Talvez
fosse o caso de ficar doente mesmo. Ficar de cama, longe da escola
durante uma semana. Do c�u a garoa ca�a como uma poeira branca,
a uma velocidade surpreendente, como se aquelas raspas tivessem
pressa de chegar ao ch�o.
Sa�mos novamente andando. 0 cansa�o nos entorpecia.
� Tem um lugar aqui perto que voc�s nem imaginam... - disse Fino.
� Que lugar? - perguntou Raul.
� Esquece. Voc�s n�o v�o ter coragem de ir.
� E voc�, tem coragem?
S� o debate, no meio da madrugada, era capaz de nos acordar.
Fino e Raul se provocaram por algo que nem tinha sido mencionado,
at� que Fino revelou:
� � uma putaria que conheci. Querem ir?
Segundo Fino n�o est�vamos longe desse prost�bulo que ele,
assumidamente, s� conhecia pelo lado de fora.
� Voc�s t�m coragem ou n�o?
N�s t�nhamos coragem para isso e muito mais, � claro, mas n�o
exatamente agora.
� Eu s� n�o vou porque bebi demais - disse Bola.
� Isso est� cheirando a conversa fiada � disse Raul. - Fino est�
querendo dar uma de entendido.
� Eu n�o estou querendo nada � disse Fino. � Mas agora est�
resolvido que eu vou, pronto. Quem quiser ir est� convidado.
Todos n�s admitimos a possibilidade, e o assunto poderia ter
morrido a�. Mas Fino, na semana seguinte, insistiu:
� Quero saber quem vai comigo.
Estaria falando s�rio? A proposta era ousada, mas ningu�m fazia
men��o de recusar.
� Vai ser na sexta-feira � disse Fino.
A curiosidade inicial diminuiu: ningu�m dizia sim nem n�o.
� S� n�o entendi uma coisa � disse Raul. � Por que voc� conheceu
esse lugar e n�o entrou?
� Porque naquela �poca eu namorava. A� n�o dava, l�gico.
� Bem, eu n�o conhe�o esse lugar � disse Raul. � S� posso saber
como � se for at� l�.
� Mas ser� � disse Bola � que v�o deixar a gente entrar?
� N�o sei - disse Fino. � Eu n�o entrei, j� disse que n�o estou
querendo dar de entendido. S� cheguei at� a porta.
� E o que foi que voc� viu? - perguntou Raul.
� 0 que voc� acha? Mulheres, l�gico.
� Mas Bola tem raz�o � falei. � E se n�o deixarem a gente entrar?
� Se n�o deixarem, a gente vai embora - disse Fino. � Temos
alguma coisa a perder?
Assim, ficou acertado que ir�amos na sexta-feira. T�nhamos alguma
coisa a perder? Talvez apenas uma oportunidade de ir ao inferninho.
� N�o d� para fazer os dois � disse Fino. � Vou ficar totalmente
sem energia.
Claro, esse era um aspecto important�ssimo, que n�o podia ser
descuidado de jeito nenhum: a energia.
Gemada com caracu, amendoim, ovo de codorna - e o que mais?
Os dias custavam a passar, e a excita��o aumentava. Ser� que,
dessa vez, tudo aconteceria? Minha m�e estranhava a quantidade de
ovos consumida em t�o curto espa�o de tempo.
0 dia chegou. Seguimos de �nibus como se estiv�ssemos em mais
uma noitada, como de h�bito ignorada pelos nossos pais. Eu pensava:
e se a pol�cia chegasse e pedisse a carteirinha e nos prendesse?
Mas n�o ousava pensar isso em voz alta.
� Estamos chegando.
Era um lugar mais afastado que o inferninho, as casas mais pobres.
- � ali.
Uma casa sobre um barranco, apoiada em colunas de tijolos. Viam-
se o barro e �gua escorrendo sob a laje. Nada indicava que fosse um
lugar diferente dos outros.
Fino tomou a iniciativa e foi na frente.
Uma porta se abriu. Apareceu uma mulher gorda. Fino foi entrando
sem dizer nada e seguimos atr�s.
As mulheres: uma loira mais ou menos bonita, uma de vestido
vermelho, uma com cara de �ndia, e outra mulher servindo bebidas
no balc�o. Todas olharam para n�s. A loira, com cara de espanto.
- Vamos sentar.
0 sof� era de um couro vermelho barato, descosturado nas beiradas.
Sentamos ali os quatro, um pouco amontoados.
- Tudo bem?
A loira, com o cabelo esbranqui�ado e a barriga aparecendo sob o
n� da blusa, chegou t�o perto que parecia imensa.
- Tudo bem � respondemos.
Ela voltou ao seu posto, dando uma voltinha e jogando a cintura
de lado. Fino apenas fez um sinal, como se dissesse "vamos ver". De
repente, uma m�sica supostamente moderna come�ou a tocar.
- Tem cerveja? � disse Fino.
A mulher se virou do outro lado do balc�o. Fino logo voltou com
uma garrafa e quatro copos.
- Pensei que voc� n�o gostasse de cerveja � disse Raul.
- Voc� acha que tem champanhe, aqui?
S� ent�o eu percebi que do lado do balc�o havia um fliperama
iluminado. Um pouco velho e apagado, mas mesmo assim um fliperama.
Um homem entrou, com grande chap�u de vaqueiro.
- 0 que voc�s est�o achando? � disse Fino.
- A �nica bonita � aquela morena � disse Raul.
- A loira � pass�vel - falei, pensando naquele cabelo oxigenado.
Alguns homens entraram, com roupas exageradas. Estampas coloridas,
camisas abertas, e mesmo assim o homem com chap�u de
vaqueiro, todo branco, era o que mais chamava a aten��o.
Uma m�sica rom�ntica come�ou a tocar. Um dos homens quis
dan�ar com a morena. Eu n�o conseguia tirar os olhos do fliperama.
At� que a loira se aproximou de n�s:
- E ent�o, rapaz? - a loira fez men��o de tirar Fino para dan�ar
e ele se levantou. Engataram na m�sica lenta, m�os na cintura.
- 0 que voc� est� achando, Bola? - Raul perguntou.
Bola estava emburrado.
- N�o sei - disse ele. - � muito escuro, n�o d� para ver nada.
No entanto eu via o fliperama, e pensava: poderia comprar uma
ficha e jogar?
� Eu n�o gostei da cerveja - disse Raul. � Nunca vi essa marca.
Agora eram dois casais: o vaqueiro dan�ava com a de vestido
vermelho.
� Queria saber se elas vendem fichas para aquela m�quina - falei.
Raul soltou uma risada:
� Se desse para fazer um campeonato...
Essa, ali�s, era uma das nossas id�ias mais recentes: comprar um
pebolim para o clube.
A m�sica mudou. Da m�sica rom�ntica para uma m�sica caipira �
nos entreolhamos, como se estiv�ssemos acordando de um sonho.
Fino voltou e disse em voz baixa:
� N�o d�. Ela tem um cheiro insuport�vel de perfume barato. E
voc�s viram aqueles pe�es? Acho que aqui � ponto de b�ia-fria.
Em um instante, aquela m�sica se tornou rid�cula. Est�vamos no lugar
errado, um lugar de baixo n�vel, que portanto n�o tinha nada a ver!
� Vamos embora.
Sa�mos atabalhoadamente, e a gorda veio atr�s de n�s, com dois olhos
deste tamanho. Mas j� t�nhamos ganhado a rua, e seguimos andando.
� Uma furada! - disse Fino. � E aquele cara de chap�u?
� A id�ia foi sua � disse Raul.
� Tudo bem, mas eu n�o sabia. E aquela m�sica?
� E a gorda?
� E voc�, Bola? � eu perguntei. � 0 que achou?
� Eu estava com sono. E enjoado. Deve ser uma coisa que comi.
� Aquele monte de ovos � eu falei.
Seguimos andando, e eu ainda pensava no fliperama.
� Sabe do que eu fiquei com vontade? - falei. � De comprar um
pebolim para o clube. Por que n�o come�amos a juntar dinheiro?
Todos assentiram e continuamos andando.
18
Aquele ano, o �ltimo do gin�sio, avan�ava sem alarde, mas trazia
uma d�vida: o que seria feito de n�s, ao seu fim?
Ter�amos de mudar de escola, essa a �nica certeza. Mas para qual?
Por enquanto, nossa obriga��o era passar em todas as mat�rias. E
quando uma bateria de provas acabava, faz�amos uma comemora��o.
Beb�amos, vez ou outra acab�vamos vomitando na porta do
clube. J� era uma rotina.
� E hoje? � disse Fino. � Por que n�o vamos �quela festa?
Todos se entreolharam, ningu�m respondeu nada.
� E o inferninho? � insistiu Fino.
Mais uma vez, n�o houve resposta.
� Aquele lugar est� cheio de babacas � disse Raul, por fim.
� Eu sabia! - disse Fino. - Tinha que ser ele!
� Tinha que ser ele o qu�? � reagiu Raul, de imediato.
� Tinha que ser voc� para tirar o nosso �nimo � disse Fino. � �
sempre assim. Eu tenho mil id�ias. Mas voc�s est�o vendo que �
sempre o Raul que...
� Cala a boca - disse Raul. - Raul isso, Raul aquilo. Voc� n�o
cresce?
� E voc�, cresce para qu�?
� Eu tenho opini�o. Aquele pessoal � babaca. Mas isso n�o vem
ao caso. Eu tenho de convencer voc�? Ou voc�, me convencer?
� Mas...
� A gente precisa sair junto, sempre? Claro que n�o! Cada um
faz o que quer, e ningu�m enche o saco de ningu�m. N�o � melhor
assim?
Ficamos em sil�ncio. Essa frase caiu como �gua na fervura. Era
verdade que n�o precis�vamos sair sempre juntos, mas...
� N�o � bem assim - falei. � Se n�o fiz�ssemos nada juntos, o
que significaria este clube? Por que estamos aqui, ent�o?
� Tudo bem � disse Raul. - Mas cada um tem que ter a liberdade
de fazer o que quer. Se voc�s quiserem, podem ir.
Todos ficaram emburrados. Ent�o toda a nossa cumplicidade iria
desmoronar? Fino cruzou os bra�os com m�-vontade. E agora? Eu
poderia fazer alguma coisa para impedir que isso acontecesse?
Fino fez um gesto: o gesto definitivo?
� N�o - disse Fino. � Eu n�o estou com vontade de sair hoje. Por
mim fico aqui.
� Eu tamb�m � disse Bola. - Gastar dinheiro para qu�?
Como uma m�gica, decidimos ficar todos e curtir a noite ali mesmo.
Mas o que fazer? Raul jogou as cartas sobre a mesa:
� Voc�s j� aprenderam o p�quer?
� Mais ou menos � disse Bola.
Come�amos a repassar as regras do jogo, e ficamos a noite toda
jogando p�quer. Fino acendeu um cigarro. Logo esse se tornou um
novo h�bito: noites passadas em volta de uma mesa de jogo.
� Agora j� era - disse Fino. - Se n�o for a dinheiro n�o tem gra�a.
� E todo mundo aqui � filhinho de papai? - contestou Raul.
Acabamos concordando em jogar a dinheiro, desde que as quantias
fossem pequenas: a empolga��o era maior. Jog�vamos falando mal dos
colegas da escola, que nada sabiam a respeito de sexo, e nem bebiam.
� Ainda fazem cole��o de carrinho.
� Ou de selo, que nem o Schimidt.
Contudo, esse era outro aspecto que negligenci�vamos: a escola,
com suas regras, seus pr�mios, suas proibi��es.
Sim, havia os alunos que fumavam escondido no banheiro, mas
para n�s esse desafio era infantil. Quer�amos desafios maiores. Assim,
come�amos a levar nossas garrafinhas para a escola. Pod�amos
comprar coca e jogar rum dentro. A no��o de que �ramos adultos e
independentes nos dominava.
N�o sab�amos, por�m, que essas brincadeiras estavam sendo reprimidas
a s�rio. Resultado: fomos pegos.
Todo mundo n�o fumava no banheiro e at� na porta da escola?
N�o levavam um car�o e a coisa n�o acabava por a�? Por que com a
gente seria diferente?
Achando gra�a, fomos levados para a diretoria em meio aos olhares
dos colegas. �ramos as estrelas; pod�amos at� nos dar ao luxo de
fazer, como os hippies, o sinal de "paz e amor".
Na sala da diretora, por�m, o c�u fechou. Pela janela abafada por
grossas cortinas, uma r�stia de luz entrava com dificuldade. Entramos,
nos sentamos: a diretora nada dizia, s� anotava alguma coisa
em sua mesa.
0 sil�ncio intermin�vel. Os quatro se entreolhando. E a diretora
escrevendo, sem levantar os olhos.
� Muito bem � disse ela, colocando um ponto final. � Acho que
voc�s j� est�o arrependidos. Uma semana de suspens�o vai ser suficiente.
Concordam?
Em casa, o esc�ndalo. Minha m�e n�o se conformava: como � que
um filho que "tinha tudo" podia dar aos pais um desgosto desse? A
seis meses da formatura! Sem falar do exemplo que estava dando a
Pedro, o inocente.
� 0 problema � esse Raul. � ele que tem essas id�ias.
� Mas m�e...
� N�o tem mas nem meio mas. Eu vejo as coisas. Os outros s�o
comportados. Raul � p�ssima influ�ncia. E voc� acaba perdendo o ano.
N�o adiantava explicar que Raul sempre ia bem nas mat�rias, ao
contr�rio de Bola e Fino, que pegavam recupera��o.
Fui proibido de ir ao clube. Uma semana sem sair de casa. Uma
semana girando em c�rculos. Uma semana no telefone:
� Em casa foi igual � disse Fino. � Ela acha que eu vou perder o ano.
� Estou de castigo � disse Bola. � Fiquei sem sobremesa.
Contudo, Fino n�o deixaria de ir a uma festa, Bola n�o deixaria
de ir ao clube. Eu era o �nico que estava acorrentado, e n�o entendia
como uma brincadeira tola podia ter tantas conseq��ncias.
� Voc� n�o v� a gravidade da situa��o? � disse minha m�e. �
Voc� tem de estudar para recuperar as aulas que est� perdendo.
Gravidade ou chatice? No fundo eu sabia que era s� copiar a
mat�ria, decorar algumas coisas antes das provas, e passar com uma
nota boa: nisso consistia a vida escolar.
De volta ao col�gio na segunda-feira, entramos na sala da diretora,
os quatro. A sala agora n�o estava escura: a cortina aberta jogava
luz contra o cabelo ralo da diretora, e via-se a sombra de um bigode.
- � triste perder aulas - disse ela. - Mas agora elas ter�o um
novo significado para voc�s.
E come�ou a falar do nosso destino, que estava inextrincavelmente
ligado ao destino da na��o. Que na��o seria essa, com filhos que se
entregavam ao v�cio? Que for�a ter�amos para empunhar a bandeira
da p�tria, sob o efeito devastador do �lcool? Como pod�amos nos
deixar corromper pela mais infame das dissipa��es?
Era preciso olhar o destino de frente. De tal forma que s� nos
comprometendo com a excel�ncia poder�amos fazer jus � educa��o
exemplar que nos era ofertada.
Portanto, era preciso prometer e se comprometer. A nunca mais
beber, n�o cair no apelo f�cil das drogas.
Rapidamente concordamos com tudo, prometemos tudo. Fino admitiu
que aquele era um erro lament�vel, s� justificado pela curiosidade:
as garrafinhas tinham sido oferecidas por um amigo, e ele nem
sabia que aquela bebida era t�o intrag�vel!
Quando tudo estava quase certo e todos estavam felizes, Raul
saiu-se com essa:
- Desculpe, mas n�o posso prometer nada.
- N�o pode... prometer? Por qu�? � espantou-se a diretora.
Instado a dar a palavra de honra, Raul mostrou escr�pulos:
� N�o posso, porque provavelmente amanh� vou estar bebendo
de novo, � inevit�vel.
� Inevit�vel... ? � ela se levantou de tr�s da mesa. - Como assim?
� � o v�cio � disse ele, com um gesto de impot�ncia. - A senhora
sabe, quando o v�cio pega, n�o tem jeito.
� Sei... - ela dava passos lentos em torno da mesa. - E que
atitude voc� espera que eu tome? - disse a diretora, desconfiad�ssima,
sem saber se Raul falava a s�rio ou se gozava da sua cara.
� Eu n�o espero nada. Foi a senhora que pediu minha palavra de
honra, e isso eu n�o posso dar.
� E seus colegas? Que exemplo voc� est� dando?
� Eles n�o precisam seguir meu exemplo. Ou talvez usem o meu
exemplo para n�o fazer o que eu fa�o.
Parada contra a luz, ela parecia hesitar.
� Voc�s - disse para n�s � podem ir. Voc� � apontou Raul - fica.
Sa�mos silenciosamente, enquanto Raul continuou sentado. 0 que
ia acontecer? Nada era mais importante do que isso. Entramos em
sala atrasados; esperamos uma resposta, mas at� o fim das aulas n�o
havia nenhuma; Raul n�o estava ali.
No clube n�o encontramos Raul. Ningu�m arriscou telefonar. S� no
dia seguinte � que soubemos da bomba: Raul fora expulso do col�gio.
Rodamos como baratas tontas. N�o havia a quem perguntar coisa
alguma. Voltamos �s aulas sem uma explica��o; Fino concluiu, enf�tico:
� Eu sabia que isso ia acontecer. Ele estava pedindo!
Mas ainda era cedo para uma conclus�o. S� ouv�amos coment�rios desconexos.
Soubemos que a m�e de Raul tinha aparecido na escola. Argumentando
com a diretora, teria dito que o �lcool n�o representava um
perigo; na Fran�a, crian�as a partir dos doze anos tomavam um copo de
vinho em cada refei��o. A diretora teria respondido que felizmente n�o
est�vamos na Fran�a, pa�s de h�bitos permissivos e moral duvidosa.
A professora de matem�tica foi quem mais falou. Concordou com
a diretora, dizendo que ela estava numa posi��o dif�cil, e que "corria
o risco de ter um interventor fazendo dilig�ncia na escola". Lembrou
a hist�ria das laranjas: uma laranja podre poderia estragar todo o
cesto. E por a� afora.
� 0 fato - disse minha m�e - � que seu amigo n�o se adapta �
sociedade. Talvez n�o seja culpa dele, mas eu n�o quero isso para voc�.
Aquele tom s�rio e firme me surpreendeu. Mas felizmente minha
m�e n�o fez nenhuma proibi��o.
Eu ainda n�o conseguia acreditar que isso estivesse acontecendo
com Raul. No clube, eu, Bola e Fino esper�vamos; ele n�o aparecia.
� E agora?
� Deve estar envergonhado do que fez - disse Fino. - � por isso
que n�o vem.
No dia seguinte, j� era de tarde e Raul ainda n�o tinha aparecido:
quatro dias sem not�cia! Ser� que nunca mais ia voltar ao clube?
� N�o d�! � falei, sem conseguir me conter. � Temos que buscar
Raul na casa dele.
� Buscar por qu�? - estranhou Fino. � Ele n�o tem pernas?
Esse coment�rio me deixou fulo: Fino sempre colocava as coisas
de um jeito que ficava dif�cil explicar.
� Tem - respondi. - Mas como amigo dele eu fa�o quest�o de ir
l� pessoalmente.
Pegamos um �nibus, os tr�s. Na sala, a m�e de Raul pintava um
quadro no cavalete:
� Podem subir, meninos.
No seu quarto, n�o sab�amos o que dizer:
� 0 clube n�o pode ficar sem presidente - eu falei.
� Claro, sem voc� n�o tem gra�a - disse Fino, dando um tapa nas
costas de Raul.
Bola n�o dizia nada.
Raul ficou sem gra�a:
� Eu ia l� amanh� mesmo...
E, de fato, Raul voltou no dia seguinte ao clube, mostrando que
nada havia mudado. Pelo menos, aparentemente.
19
Raul entrou para outro col�gio. A nossa rotina continuou a mesma,
mas agora estava mais dif�cil reunir todos no mesmo programa. Fomos
a uma festa sem Raul, para descobrir que ele estava certo em
recusar: no escuro de uma garagem tocavam as mesmas m�sicas do
inferninho, mas ningu�m dan�ava.
E a situa��o se repetiu: eram sa�das em que os quatro nunca se
juntavam. Raul estava mais quieto que antes, Fino parecia desinteressado,
s� Bola continuava o mesmo. At� que, um dia, eu perguntei:
- 0 que est� acontecendo, afinal?
- N�o sei � disse Bola, fritando um hamb�rguer. � Acho que
Fino est� arranjando outros amigos. Vi ele combinar com o Andr�.
Com o babaca do Andr�? Ent�o cada um iria para o seu lado, �
procura de novos amigos?
- Ser� que vai ser o fim do clube? - perguntei, inconformado.
- 0 clube n�o acaba, n�o - disse Bola. � Sabe por qu�?
- Por qu�?
- Porque aqui a gente tem liberdade � disse ele, mordendo o
hamb�rguer.
Liberdade? Eu pensava que ele iria dizer "amizade", mas Bola
dissera "liberdade". Era isso que realmente contava? Eu via o clube
como um lugar sem dissimula��es, um lugar em que todos se ajudavam.
Mas Bola talvez estivesse ali apenas para comer quando quisesse,
e Fino para n�o voltar cedo para casa.
Sim, eu tamb�m gostava de estar longe da escola, de n�o ter regras
para seguir. Mas isso s� fazia sentido porque t�nhamos criado aquele
lugar com as nossas m�os. Ao contr�rio da escola, o clube era nosso!
- Voc� saiu com o Andr�? - perguntei a Fino, no dia seguinte.
- Eu? � Fino se surpreendeu. � Ele me convidou...
- Ser� que n�o vamos sair mais, os quatro?
- Vamos... Mas o que eu posso fazer, se voc�s nunca est�o a fim?
Ser� que a iniciativa teria de ser, mais uma vez, exclusivamente
minha?
No fim de semana nos reunimos. Vimos um filme, e depois fomos
ao clube jogar p�quer.
� Quem est� com a banca pode apostar? - perguntou Raul, com
as cartas na m�o.
- Claro � disse Fino. � Contanto que embaralhe muito bem.
0 tom desconfiado de Fino ficou evidente. Ainda que esbanjador,
Fino tinha pavor de ser passado para tr�s.
- Eu n�o preciso trapacear - disse Raul. � Ali�s, quem prometeu
nunca mais p�r a boca numa bebida alc�olica n�o fui eu.
Todos est�vamos bebendo vinho com gelo e ningu�m disse nada.
Mas Fino, depois de duas rodadas, voltou � carga:
� E voc� n�o se arrependeu? � perguntou com cinismo.
- Eu? - Raul estranhou. - Claro que n�o!
� E, mas voc� teve de mudar de col�gio, fora a confus�o que aprontou.
� Aquele col�gio n�o valia nada. E estou com minha consci�ncia
tranq�ila.
� Por que voc� falou a verdade? Bobagem. � Fino levantou o
copo. - 0 que significa isso? Beber socialmente? Grande coisa! Garanto
que a diretora tamb�m bebe um uisquezinho. Mas voc� quis
bancar o importante.
� Eu n�o quis me vender, isso sim.
� Nossa Senhora! � Fino fez men��o de rir. � Esse assunto tem
alta import�ncia, mesmo!
� Voc� n�o entende � disse Raul. - Eu n�o minto por princ�pio.
� Uma mentirinha, quem se importa? N�s s� falamos o que ela
queria ouvir, e nos demos bem. Onde est� o problema?
� Tudo bem. Vamos continuar jogando.
0 pesado sil�ncio voltou a cair sobre n�s. Fiquei pensativo, e fui o
primeiro a falar:
� No fundo Raul est� certo � falei. - Ningu�m teve coragem de
falar a verdade para a diretora.
� Coragem para qu�? - perguntou Fino. � Para dizer que bebe?
Raul, o her�i do copo! Cad� a vantagem?
� Voc� est� enganado � cortou Raul. � N�o foi por isso que fui
expulso. Foi porque eu falava demais. Porque questionava as coisas,
porque incomodava.
� Voc� gosta de bancar o diferente, isso sim � disse Fino, em tom
de acusa��o. � S� que isso n�o vai te levar a lugar nenhum.
Ficamos quietos, e o jogo logo acabou. Eu j� n�o sabia a quem
dar raz�o. Eu, que tinha prometido "nunca mais" fazer aquilo, fiquei
seriamente em d�vida. 0 que era mais importante: falar a verdade ou
se safar do problema? Que Raul tinha coragem, isso era ineg�vel.
Mas n�o sabia se poderia agir assim.
0 que mais me preocupava, no entanto, era o fato do clube n�o
ser mais o mesmo. Qualquer coisa era motivo para briga. Um dia,
Fino teve um ataque de infantilidade ao ver que a agulha da sua
vitrola estava quebrada.
� Eu n�o sei de agulha nenhuma � disse Bola, enquanto eu e
Raul ecoamos a negativa.
� Quem foi, ent�o? � disse Fino, inconformado. - 0 Esp�rito
Santo? - e levou a vitrola embora.
Sem m�sica o clube ficava ainda mais vazio. Seria uma forma de
se retirar aos poucos?
Nossos pais tamb�m dificultavam as coisas. Minha m�e queria me
ver em casa �s sete horas. A m�e do Fino fazia exig�ncias parecidas.
Mas quem apareceu no clube, num s�bado � noite, n�o foi nenhuma
das duas.
T�nhamos tomado um resto de vinho, e Raul estava com uma lata
de cerveja na m�o. Foi a� que o pai do Bola, um homem grande e
gordo, teve a maldita id�ia de chegar de surpresa:
� 0 que � isso? - disse ele, olhando para n�s.
Ficamos paralisados. 0 pai do Bola apenas fez um olhar terr�vel e,
aproximando-se, arrancou a lata de Raul. Olhou para todos n�s gravemente,
e ningu�m teve coragem de falar nada.
Ele parecia a ponto de bater em algu�m. E com voz indignada
apontou os p�steres, a bagun�a em que viv�amos, as bebidas, o cinzeiro.
Ser� que ach�vamos que a vida era isso, essa "pura degrada��o"?
Suas palavras nos transformavam em viciados, em p�rias, em
parasitas da sociedade. Eu estava impressionado, pois n�o achava
que �ramos t�o ruins assim.
� Afinal � disse ele �, o que voc�s est�o pretendendo da vida?
Uma pausa dram�tica se seguiu. Mas Raul - quem mais podia
ser? - respondeu:
� Eu n�o sei o que esperar da vida. 0 senhor tem alguma id�ia?
� Id�ia... ? � estranhou ele.
� Sim, se estamos errados, o que devemos fazer?
Decerto ele n�o esperava esta resposta, porque ficou olhando para
Raul, incr�dulo.
� Ora essa! � respondeu, finalmente. - Estudar, trabalhar!
� N�s j� estudamos bastante. E aos s�bados?
� Por que voc�s n�o jogam bola, como os moleques da sua idade?
� insistiu, com o mesmo tom indignado.
� Vou dizer uma coisa � disse Raul. � Essa turma que joga bola,
depois enche a cara de cerveja. Eu mesmo vi.
0 pai de Bola ficou im�vel, olhando friamente para Raul:
� Estou come�ando a perceber quem d� o mau exemplo aqui.
� Desculpe, mas eu n�o preciso dar exemplo para ningu�m. Mi nhas
costas n�o s�o t�o largas assim.
0 pai do Bola come�ou a ficar irritado e vermelho, exatamente
como Bola ficava:
� E quem � que d� a id�ia, insolente? Quem � o cabe�a, aqui?
� Eu n�o sou.
� E de onde vem essa id�ia de beber porcaria? Como � que voc�s
foram inventar esse mau costume?!
0 tom enf�tico fez com que fic�ssemos em sil�ncio. Mas Raul,
depois de uma pausa, voltou a arriscar:
� Pensando bem, acho que se n�s bebemos � para ser como voc�s,
adultos. Voc�s n�o bebem? Ent�o o exemplo vem de cima. E, se
fazem isso, deve ter algum bom motivo. Sabe como �, assim nos
sentimos mais velhos, independentes. Agora que o senhor falou cheguei
a essa conclus�o. 0 senhor, por acaso, n�o bebe?
0 pai do Bola ficou ainda mais vermelho:
- Sabe de uma coisa? 0 que eu devia era... � levantou a m�o.
� Me bater? 0 senhor n�o � meu pai.
� Pois � isso que falta a voc�, moleque. Um pai que te ensine, que
te d� umas boas chineladas. - e dizendo isso pegou Bola pelo bra�o
e o arrastou para fora do clube.
Pela primeira vez algu�m tocava no fato de Raul, desde pequeno,
n�o ter pai.
- Voc� desrespeitou o pai do Bola � disse Fino, depois de uma
longa pausa.
- N�o desrespeitei ningu�m.
� Como n�o? Respondeu, desacatou!
- S� falei a verdade. Estou cansado de ser culpado de tudo! Parece
at� que todo mundo � santo.
A discuss�o seguiu nos dias subseq�entes. 0 pai de Bola exigia que
acab�ssemos com o clube, e o tio do Bola, dono do terreno, n�o sabia
que decis�o tomar. Diziam que o clube tinha virado um antro, at� mesmo
com prostitutas. E Fino insistia que Raul n�o respeitava mais ningu�m, que
era um revoltado! Diante dos fatos, segundo ele, s� havia uma solu��o.
� Que solu��o? � perguntei.
- Votar imediatamente a expuls�o de Raul � disse Fino.
- Voc� est� brincando � reagi, incr�dulo.
� N�o estou, n�o � disse Fino. � Daqui a pouco vamos ser proibidos
de pisar aqui.
- 0 que ele fez de t�o errado? Todo mundo aqui sempre bebeu e
fumou quando quis.
� Ele brincou com fogo.
Eu protestei, bati o p�, mas foi in�til. Tentei convencer Bola, reservadamente,
mas ele apenas respondeu:
� Grande coisa. Voc� sempre concorda com o Raul.
� Eu? � estranhei. - E as vezes em que eu dei raz�o a voc�?
� Foram t�o poucas que eu nem lembro.
A cara magoada do Bola mostrava que ele trazia esse pensamento
havia muito tempo. Foi uma surpresa. Talvez isso viesse desde a
inf�ncia, quando eu de fato era mais pr�ximo de Raul.
A vota��o foi feita. Fino e Bola votaram pela expuls�o, eu votei
contra. Dois a um. Assim que Raul veio ao clube, Fino comunicou a
decis�o.
� Tudo bem � disse Raul. - N�o vou mais atrapalhar voc�s.
Raul pegou suas coisas, saiu silenciosamente. Eu senti um grande
aperto, e tamb�m vontade de irromper, brigar, dizer que estava do
seu lado. Mas n�o disse nada. Ele devia saber que eu tinha votado
contra a expuls�o. Mais tarde ter�amos a oportunidade de conversar.
Mas ainda pensava nas palavras de Bola: "voc� sempre concorda
com Raul". Teria ele raz�o? Ser� que, por amizade, eu n�o conseguia
ver os erros dele? Ser� que Raul tinha realmente extrapolado?
0 clube se esvaziou, e tivemos as provas, os preparativos para a
formatura. Minha m�e me proibiu de sair de casa. Queria que eu
terminasse o ano com as melhores notas da classe.
E a formatura finalmente chegou. No p�tio iluminado do col�gio,
n�s, os alunos, de cal�a azul e camisa branca, convers�vamos sobre
os anos passados ali, como seja estivessem distantes. Os pais permaneciam
sentados em cadeiras ao ar livre, esperando a cerim�nia.
Como tinha passado r�pido! De repente �ramos quase adultos.
Olhando em volta eu me lembrava das brigas, da correria sobre os
pedregulhos... E de repente, eu vi. No canto, algu�m encostado.
N�o era poss�vel! Mas era ele!
Eu me aproximei. Raul estava ali, junto ao pr�dio principal. Quase
indistinto, sob a sombra.
� Raul!
� Como est�, Carlo?
Ele tinha o cabelo mais comprido, usava as roupas de sempre,
talvez mais desgrenhadas. Eu senti uma esp�cie de medo, n�o sabia o
que, alguma coisa se agitava em mim.
� Que surpresa.
Ele me olhava, sem pressa de dizer alguma coisa. 0 contraste
entre n�s, entre nossas roupas, saltava aos olhos. 0 que estaria fazendo
ali? E por que aquelas roupas? Tive vontade de fazer mil perguntas,
mas apenas falei:
� Tirei o segundo lugar da classe, vou ler uma poesia.
� Parab�ns � disse ele.
Raul tinha os olhos distantes, apagados. Olhando em volta, disse:
� Lembra-se do nosso esconderijo? Ficava ali naquele canto.
Por que teria vindo?, eu pensava, sem ousar perguntar. Por que
aparecer ali, na formatura, com aquelas roupas? A escola em que
havia passado tantos anos, e que o havia expulsado.
� � verdade, o esconderijo... � repeti.
Teria ele coragem de interromper a cerim�nia com um gesto de
rep�dio, por vingan�a? Eu bem sabia que ele n�o tinha dificuldade
em desafiar os mais velhos, em dizer em voz alta o que pensava.
Estaria ali para isso?
� Nossa id�ia de um acampamento nunca se realizou � disse ele.
� E verdade... � falei, me lembrando.
Naquele momento percebi que eu n�o podia ser como Raul. Pois
tinha medo de que estragasse a cerim�nia, estragasse aquele momento
que, pelo menos para nossos pais, era especial. Tive vontade
de pedir que n�o fizesse nada, mas como dizer isso?
Ficamos nos olhando e falei, de impulso:
� Eu n�o queria que voc� sa�sse do clube � disse, tentando esclarecer
um assunto n�o esclarecido. - Votei contra, mas eram dois
contra um. Pretendia conversar com voc� a semana que vem.
� Eu sabia que podia contar com voc�.
0 que havia naquele olhar distante? No p�tio, eu via os alunos se
perfilando para a cerim�nia; o padre havia chegado.
� Preciso ir - falei. � E voc�?
� Vou ficar um pouco. Pode ir, n�o se preocupe.
Voltei para o p�tio. N�o se preocupe, ele dissera, mas eu estava
preocupado. Ser� que planejava fazer alguma coisa? Tirei o segundo
lugar, disse, e ele respondera "parab�ns". Com ironia? Durante a cerim�nia
fiquei segurando a fita azul da classe B, e na hora de ler a
poesia tropecei em duas palavras.
Fino foi o �ltimo a falar. Ergueu uma rosa vermelha no ar, e disse
que queria oferecer essa rosa a sua m�e, e a todas as m�es presentes.
�s m�es que tinham nos alimentado, apoiado e orientado sem nada
exigir! �s m�es que nos seguiam e nos desviavam dos perigos. �s
m�es que, com sua aten��o, nos faziam chegar ao final desse ciclo. E
como poder�amos agradec�-las? Estudando, respondeu, e nos tornando
homens verdadeiros.
Minha m�e foi uma das mais entusiasmadas ao aplaudi-lo. A cerim�nia
acabou, e olhei em volta. Procurei, mas Raul n�o estava mais ali.
Durante o jantar de comemora��o, com meus pais e tios, mal
prestei aten��o ao que diziam.
0 jantar se encerrou com um brinde. Voltamos para casa, e eu
sentia que havia um sil�ncio incomum.
Meu pai se sentou na sala, e eu podia adivinhar que ia dizer alguma
coisa.
- Muito bem - disse ele. � Agora temos que decidir seu futuro.
Eu n�o estava entendendo nada: que futuro?
- Voc� se formou com �timas notas, est� de parab�ns. A quest�o
� saber em que col�gio vai estudar agora.
- Como assim? E o Arquidiocesano?
Meu pai fez uma cara de desaprova��o; s� nesse momento eu
percebi como tinha envelhecido nos �ltimos anos.
- N�o � bom o suficiente. N�o garante que voc� v� entrar na
faculdade. Agora voc� vai estudar na capital.
- Mas...
- 0 col�gio j� aceitou a sua matr�cula, porque voc� foi o primeiro
da classe.
- 0 segundo.
- Aqui n�o tem col�gio t�o bom quanto esse. � o seu futuro que
estamos levando em conta.
Minha m�e entrou na sala, e os dois olharam para mim como se o
assunto j� tivesse sido decidido entre os dois.
� E onde eu vou morar?
� Com a sua tia, claro.
� N�o sei se vou querer, pai.
� Dessa vez n�o tem querer. Voc� j� sabe o que vai ser?
� N�o.
� Por isso mesmo. Sem um bom col�gio, voc� n�o entra em faculdade
nenhuma, e as melhores est�o na capital.
Eu j� sabia que n�o adiantaria argumentar. 0 tom de voz, a firmeza
do meu pai indicavam tudo. Se eu estivesse decidido a fazer alguma
coisa, poderia bater o p�. Mas meu horizonte ainda era o col�gio
que havia acabado de deixar, o clube, o futuro era uma palavra solta,
o futuro na verdade n�o existia.
Eu estava sendo empurrado em dire��o a ele. Talvez n�o houvesse alternativa.
Talvez, se dependesse de mim, minha vida teria parado ali mesmo.
Parte tr�s:
A capital
20
0 col�gio escolhido por meus pais era diferente de todos os col�gios
que eu conhecia. No primeiro dia um professor avisou: estudar�amos
agora para n�o estudar na v�spera do vestibular. Quarenta aulas por
semana, fora trabalhos e provas.
Pouco tempo sobrava para conhecer algu�m. Eu observava os que
estudavam comigo, mas sempre a dist�ncia.
Havia os riquinhos. Alunos que chegavam de moto, de motorista,
at� dirigindo. Aquelas roupas me faziam pensar que estavam sempre
indo para uma festa.
� N�s vamos ao shopping - disse-me um dia uma menina desse
grupo. � Quer ir com a gente?
� Eu? - estranhei. � N�o posso, tenho um... compromisso.
� Que pena...
Ela pareceu decepcionada. Afastou-se, e eu ainda falei:
� Mas na pr�xima eu vou!
Ela fez um leve gesto de despedida.
Droga! Por que tinha recusado? Certamente porque n�o tinha uma
cal�a Fiorucci nem aqueles chaveiros pendurados.
"Mas na pr�xima eu vou." Que frase rid�cula! E ela certamente
n�o tinha acreditado. Pudera. Nem eu acreditava que poderia ir com
eles. Era muito caipira para isso.
Mas a situa��o me incomodava. Voltei para a casa de minha
tia, jurando para mim mesmo que da pr�xima vez seria diferente.
Podia n�o ser f�cil, mas tinha de come�ar de alguma maneira
� j� que, depois de meses, ainda tinha a sensa��o de n�o ter
come�ado.
Eu ficava observando, esperando uma oportunidade para agir com
naturalidade. Vez ou outra encontrava a menina, e dizia "oi". �s
vezes chegava at� a dizer "tudo bem?"
At� que a oportunidade surgiu. Percebi que ela e seus amigos
estavam marcando de sair. Ao fim da aula, me aproximei:
� Tudo bem?
� Tudo bem.
Estava no rumo certo! Era s� dar a chance para ela me convidar:
� Ainda bem que amanh� n�o tem prova � falei.
� Amanh�? Mas nunca teve prova na quinta.
� � que... � eu me atrapalhei. � Amanh� � quinta? Puxa, pensei
que j� fosse sexta.
� Distra�do.
� Estou estudando demais. Estou com a cabe�a cheia.
� Vamos para um snack-bar. Se voc� quiser...
Ufa! Por pouco n�o tinha dado errado. Mesmo sem saber o que
era snack-bar eu j� seguia com eles, e numa avenida movimentada
pegamos um t�xi.
�ramos tr�s caras e quatro meninas. Foi com naturalidade que
entramos no restaurante e o ma�tre nos levou at� a mesa. Estava
euf�rico! Tudo era t�o f�cil, no fim das contas!
Susto levei ao ver os pre�os. Tudo car�ssimo. Pedi o lanche mais barato.
Os outros, distraidamente, pediram milk-shakes, os itens mais caros.
Conversavam sobre pessoas que eu n�o conhecia. A menina tentava
me explicar, mas na maior parte do tempo eu s� escutava. Era
um tal de Lima, outro tal de Galucci � para mim essa hist�ria de
chamar algu�m pelo sobrenome era novidade.
� Olha a�, pessoal. Vamos rachar?
Todos concordaram em rachar a conta, e a menina (qual era mesmo
seu nome?), um tanto preocupada, olhou para mim:
� Desculpe, n�o passei no banco. Voc� paga para mim?
� Cia... claro.
Meu medo era n�o ter dinheiro suficiente. Foi com �mpeto que
abri a carteira para constatar que dava, em cima. Como se tivesse
adivinhado!
Fora do restaurante, eles se indagavam:
� Est� cedo. Que tal um boliche?
Em sil�ncio, eu podia prever que tudo iria se repetir! E agora?
� Desculpe, mas eu...
0 mais dif�cil era inventar uma desculpa. N�o sabia mentir.
� Preciso voltar para casa, porque...
Eles me olhavam.
� Minha tia est� me esperando. � um anivers�rio de fam�lia.
0 anivers�rio era verdadeiro, s� que j� tinha acontecido. 0 al�vio
foi a melhor sensa��o da noite. Peguei um �nibus e voltei para casa,
feliz por estar economizando. Em menos de duas horas tinha gasto o
or�amento da semana! E a tal menina? Nunca mais conversei com
ela. N�o � � toa que n�o lembro seu nome.
Entre os alunos havia tamb�m os mais pobres, ou que pelo menos
se vestiam como se n�o tivessem dinheiro algum: sand�lias, cal�as
amarrotadas, camisas de algod�o.
�s vezes se sentavam pelos cantos, ou no gramado, tocando viol�o.
Eu ficava � parte; n�o me imaginava cantando no meio de todo
mundo.
� Para que serve isso?
� Tu amarra assim, e faz assim.
A menina de tran�as queria me vender uma pulserinha de fios
tran�ados. Aceitei para n�o parecer antip�tico.
� Faz um pedido - disse ela.
� J� fiz - respondi.
� Qual?
� Isso � segredo.
A resposta deve ter parecido interessante, porque ela me olhou com
um sorriso malicioso. Talvez isso tenha ajudado a nos darmos bem.
� E a�, cara? - dizia ela, quando me encontrava nos corredores.
� Tudo bem, e voc�?
Esse jeito expansivo, esse olhar atento me deixavam sem gra�a.
Ser� que ela estava interessada?
Um dia ela me levou at� o tal grupo que tocava viol�o.
� Gente, esse � o Carlo.
� Fala a�, carinha.
� Tudo bem, e a�? � respondi.
Eu j� me sentia quase integrado. "E a�? E a�?" Era preciso ser o
mais espont�neo poss�vel.
Come�amos a cantar. N�o estava t�o � vontade, mas tentava pegar
a letra: "Vi tanta areia, andei..."
� Gente, n�o acredito � disse um deles, olhando para mim.
� 0 que foi? � perguntei.
� Voc� � a cara do Farinha. Voc�s n�o acham?
Alguns concordaram, outros n�o, que eu era a cara do tal
"Farinha".
� Mas � ele escrito. At� o jeito de cantar, assim, meio fino.
� Fino? � estranhei.
� N�o liga, n�o - disse a menina. - � que tua voz est� mudando.
� S�rio? Mas... - Aos quinze anos, eu n�o tinha muita consci�ncia
da minha voz. � E onde est� esse tal de Farinha?
� Infelizmente, morreu. Estava muito chumbado, foi atropelado.
� Chumbado?
� Gente, vamos mudar de assunto? - disse a menina. - Ningu�m
sabe direito o que aconteceu.
Continuamos cantando alegremente. Fiquei encafifado, s� imaginava
o que havia acontecido � ser� que corria algum risco?
E sempre que a encontrava nos corredores eu ficava sem gra�a,
at� porque ela era alta, quase da minha altura.
� Tu n�o sabe, est� pintando uma festa - disse ela. - Na pr�xima
sexta. Est� a fim?
� Na pr�xima sexta? Bem, eu... � A m� experi�ncia de recusar
convites ainda estava presente. - Claro, na sexta estou pintando l�.
Que tipo de festa era essa s� podia imaginar. Seria o caso de
arranjar sand�lias, ou batas artesanais? Todos eles se vestiam assim.
Com a sand�lia do meu falecido tio eu a encontrei numa esquina.
S� que ela estava surpreendentemente chique. Ou melhor, chique no
seu estilo: o cabelo tran�ado com conchas, o vestido rendado e transparente
(sem suti�!}, um sapato sem salto, cheio de mi�angas. Aquela
minha sand�lia preta, na verdade, tinha um ar f�nebre que n�o combinava
nem um pouco.
Pegamos um �nibus. A minha cal�a velha, a minha camisa solta
haviam de n�o chamar a aten��o, pensei.
A tal festa n�o ficava muito perto. Era um bairro afastado, e a
casa um tanto simples. A vantagem era o terreno grande, onde os
convidados se espalhavam, alguns descal�os.
Os grupos se sentavam em almofad�es. Ouviam m�sica nordestina,
que naquela �poca fazia sucesso. Dan�avam lentamente e com
movimentos harmoniosos. Eu me surpreendia ao ver como eram contidos,
ao contr�rio do que tinha imaginado; talvez a dan�a fosse para
eles uma esp�cie de transe.
� Voc� dan�a? � ela me perguntou.
� Na verdade... n�o. N�o nesse ritmo.
Se pelo menos tocassem as m�sicas do inferninho...
A turma do col�gio estava ali. Sentamos todos em uma roda, e de
repente come�aram a fumar � n�o, eu n�o estava enganado. 0 cheiro n�o
enganava. 0 fato de passar o cigarro um para o outro tamb�m deixava
evidente: era um daqueles t�o falados cigarros de maconha.
Felizmente eu j� tinha preparado uma desculpa, at� mais de uma.
� E melhor n�o - falei, quando o cigarro chegou a mim. � Estou
tomando um rem�dio para bronquite.
� Que � isso, cara � disse a menina, pr�xima. � Relaxa.
Ela tinha um jeito t�o natural que resolvi ser sincero:
� Na verdade n�o estou acostumado.
� Eu tamb�m n�o estava � disse ela, sorrindo. � N�o grila.
Incentivado por aquele sorriso, resolvi tentar:
� Chega � falei, depois de duas tentativas.
� 0 que � isso? Tu nem prendeu a fuma�a. Nunca fumou, n�o?
� J� fumei, claro, mas cigarro comum.
� D� quase na mesma.
Segui em frente. Uma, duas, tr�s vezes. E n�o � que aquele ambiente
que parecia estranho se transformou? Todo mundo ficou mais
ligado. A m�sica se intensificou, lembrando-me as noites mais animadas
do inferninho.
Resolvemos dan�ar e a �ltima coisa que eu me lembro � que n�o
parava de dan�ar de jeito nenhum. Joguei as sand�lias de lado, depois
a camisa, pois estava calor. 0 que importava para mim era a
anima��o! Por que eles n�o se animavam tamb�m?
Os amigos da escola, que no in�cio achavam gra�a, come�aram a
me mandar calar a boca. Mas a partir da� eu j� n�o me lembro de nada.
Acordei enjoado no dia seguinte na casa de algu�m. Eu me espan
tei, e ainda mais com o hor�rio: uma da tarde!
� Onde � que eu estou?
� Calma. N�s j� ligamos para sua tia, ela vem te buscar � disse
uma senhora.
� Mas que lugar � esse?
� Casa do Mel. Voc� n�o � amigo do Mel?
� Cla... claro.
� Ele teve que sair. Mas � melhor p�r uma camisa dele, porque a
sua est� cheirando a v�mito.
Eu nem lembrava direito qual deles era o Mel. Na verdade, eu
havia me confundido desde o princ�pio, pois quando algu�m dizia "e
a�, Mel?", eu entendia "e a�, meu?".
Voltei com minha tia e, apesar de dizer que tinha apenas "bebido
demais", tive de ouvir recomenda��es o dia inteiro. Minha m�e ainda
ligou para dar bronca. Imagina se soubessem a verdade!
Quanto �quela menina hippie, n�o tive mais coragem de conversar
com ela. A lembran�a do esc�ndalo me deixava morto de vergonha.
Mas ela tamb�m j� n�o parecia interessada: quando n�o estava
com amigos passava o tempo tran�ando pulseiras.
21
Por mais que tivesse me esfor�ado, terminei o primeiro semestre com
tr�s recupera��es. E o segundo, com cinco. A fam�lia ficou em choque.
0 filho que passava nos primeiros lugares estava em vias de
tomar bomba.
Dificuldade de adapta��o? Revolta, por estar cursando um col�gio
que n�o tinha escolhido? Crise de puberdade?
Um pouco de tudo, mas ningu�m percebeu o �bvio: aquele col�gio
era muito mais dif�cil que o anterior.
� Voc� precisa se dedicar.
Como se eu n�o me dedicasse! Assim, era preciso inventar aulas
particulares, cortar as f�rias, tudo para que eu n�o repetisse de ano.
� E se eu repetir?
� Voc� nunca faria essa desfeita para seus pais.
E o mais dif�cil era perceber que eu n�o estava no meu lugar. A
lembran�a da minha cidade, do clube, voltava sempre. Agora eu via
que a melhor fase da minha vida tinha ficado para tr�s.
S�o Paulo era diferente. Era preciso fazer parte de um grupo, agir
como o grupo, ser igual a eles. Ser� que conseguiria, um dia, ser
assim? E de que grupo faria parte?
Tinha um certo prazer em pensar na decep��o que causaria se n�o
passasse de ano. Talvez at� me tirassem do col�gio. E quem sabe eu
poderia... voltar.
Acabei passando por um triz. A rotina dos estudos, ent�o, continuaria
inalterada. S� de vez em quando poderia voltar para casa.
Mas, a cada vez que voltava, n�o encontrava ningu�m.
0 clube havia se transformado num galp�o para a estocagem de
telhas, t�buas, sacos de areia.
Bola estava morando em outra cidade. Seu pai queria que fizesse
um curso t�cnico e virasse contador. Fino viajara para os Estados
Unidos, provavelmente faria faculdade l�.
E Raul? Diziam que tamb�m tinha ido para S�o Paulo. Mas sua
m�e n�o morava mais na nossa cidade. Por mais que perguntasse, e
eu sempre perguntava, nada descobria.
� Agora o importante � passar no vestibular. E cursar uma boa
faculdade, de prefer�ncia.
Come�ava o �ltimo ano do colegial. "Boa faculdade" era equivalente
a faculdade que n�o acarretasse despesas, j� que as melhores
faculdades eram (e ainda s�o) p�blicas.
No col�gio, havia uma menina que, como eu, vivia �s voltas com
provas e recupera��es. Chamava-se Luciana. Aparentemente n�o tinha
muitos amigos, e resolvemos estudar juntos. Eram conceitos de
matem�tica que ela me explicava:
� Sempre tive cabe�a para resolver problemas.
Em compensa��o, eu lhe ensinava portugu�s:
� Sempre fiz muita palavra cruzada.
Um dia emprestei-lhe o livro Para viver um grande amor, do
Vin�cius de Morais - sem pensar, pois me arrependi um minuto
depois: o que ela poderia interpretar? Mas ela o devolveu dizendo
apenas que era "muito bem escrito".
Emprestou-me A hist�ria de C�ndido urbano urubu, do Carlos Eduardo
Novaes, e eu lhe devolvi dizendo que era "muito engra�ado".
Continuamos assim muito tempo. Haveria a� alguma coisa, ou s�
imagina��o? Ela tinha o cabelo castanho, n�o era muito alta, usava
camisetas justas, que �s vezes me deixavam at� sem gra�a.
� A prova na sexta vai ser dif�cil � disse ela. � Por que voc� n�o
vem estudar em casa?
Esse convite me pegou desprevenido. Estudar na casa dela?
� A que horas? � perguntei.
� Depois do jantar. L� pelas oito...
Com que roupa ir? Um encontro assim � noite dava o que pensar.
Ser� que deveria levar um presente? E os pais dela, estariam rondando?
� Boa noite � ela me disse, abrindo a porta e deixando que eu, de
camisa branca, entrasse. - Voc� est� chique!
� Voc� tamb�m.
Na verdade, ela estava vestida como sempre, de camiseta apertada,
jeans, t�nis e rabo de cavalo. Sua m�e apareceu:
� Podem estudar sossegados � disse, apontando a sala de jantar.
Inevitavelmente, pensei: ser� que a m�e dela deixava?
Sua camiseta deixava entrever formas arredondadas. A curva do
pesco�o e do ombro, que ficavam evidentes com o cabelo preso de
um jeito engra�ado.
� Seu cabelo est� engra�ado � falei.
� Por qu�?
� Parece um... espanador.
Para minha surpresa, ela riu:
� � poss�vel, Carlo. Quando era crian�a, meu cabelo parecia
uma fonte espirrando �gua. Mas vamos estudar � disse com um
tom pr�tico.
Esse mau come�o foi esquecido com as escolas liter�rias, cujas
caracter�sticas tent�vamos decorar:
� 0 Romantismo se caracteriza pela idealiza��o da mulher amada
� expliquei. � Os poetas tinham suas musas inspiradoras, mas sempre
havia um obst�culo que impedia a aproxima��o.
� Que obst�culo? - ela perguntou.
� A sociedade, a fam�lia...
� Por que eles n�o enfrentavam esses obst�culos?
� Sei l� � respondi. � Nunca dava certo. E eles terminavam morrendo,
ou se matavam.
� Que coisa mais absurda!
Sentados os dois, lado a lado, eu podia sentir seu cheiro. E o que
ela queria dizer? Que eu enfrentasse os obst�culos?
� De qualquer forma � falei � era melhor do que no Arcadismo.
Naquela �poca, eles faziam poesias para mulheres que n�o existiam.
� N�o existiam, como?
� N�o existiam. Eram inventadas. Mar�lia de Dirceu era um nome
inventado.
Ela fez um ar de reprova��o:
� N�o � � toa que eu vou mal em literatura.
N�o soube o que dizer. Mas resolvi, pela primeira vez, ser ousado:
� Quer que eu te passe cola?
� Oh, n�o, n�o d� certo. � Ela fez um ar triste. � Se fosse matem�tica,
tudo bem. Mas em portugu�s d� para ver que as respostas
s�o iguais.
Eu queria sugerir que ela parafraseasse, mas n�o tive coragem.
A noite acabou sem maiores riscos. Est�vamos cansados de tantas
literaturas.
� Tenho a impress�o de que todas elas est�o embaralhadas na
minha cabe�a � disse ela. � Mas tudo bem, n�s tentamos.
Tentamos!, ela dizia. Mas eu achava que, apesar de criticar os poetas
e os amores imposs�veis, ela n�o fazia muito � ou nada � para que
algo acontecesse. Ser� que a cr�tica trazia uma mensagem cifrada?
� Por que n�s n�o... sa�mos com o pessoal na pr�xima semana? �
sugeri. � Fiquei sabendo que eles v�o a um bar.
� Boa id�ia � disse ela, abrindo os olhos, e pela primeira vez tive
a certeza de ter falado a coisa certa. Peguei um t�xi com a certeza de
que na pr�xima semana a boa id�ia se concretizaria.
Naquele dia, por�m, a coisa foi diferente. Havia muita gente, era
um bar com mesas na cal�ada. Todos bebiam cerveja. Uma menina
simp�tica de cabelo cacheado me ofereceu batatinha, e Luciana ficou
emburrada.
� Algum problema? - perguntei.
� N�o � respondeu Luciana. - � que eu n�o conhe�o ningu�m.
� Mas as pessoas s�o simp�ticas.
� Nem com todo mundo.
Que ela tivesse uma rea��o de ci�mes, me deixava cheio. Chei�ssimo.
A menina de cabelos cacheados s� tentava ser natural, mas Luciana parecia
n�o gostar nem que eu lhe dissesse obrigado. Eu j� estava a ponto de
estourar, mas nessa confus�o dois caras se aproximaram de n�s.
� Raul! - eu gritei, pulando da cadeira. - Quanto tempo!
Ele tamb�m estava surpreso, embora tivesse me reconhecido antes.
� Voc� n�o mudou nada � ele disse, satisfeito.
� Eu cresci � respondi.
Sim, eu havia crescido, e Raul havia crescido mais ainda, t�nhamos a
mesma altura. Ficamos nos olhando: ele havia perdido o ar de menino,
embora o cabelo ainda estivesse um pouco comprido, e a apar�ncia fosse
rebelde. Usava uma camisa de flanela, e uma jaqueta jeans disforme.
� Voc�s se conhecem? � perguntou o conhecido de Raul.
� Claro - disse Raul. � H� muito tempo.
As apresenta��es foram feitas, e a conversa retomada. Como eu,
ele tamb�m achava dif�cil se adaptar � cidade grande. Mas no tocante
� sua vida e seus interesses, Raul fez um silencioso mist�rio:
� Podemos sair um dia desses � ele disse. � Conversar.
Eu realmente esperava a oportunidade. Quando ele se foi, ainda
estava sob o efeito da surpresa.
� Quem � ele? - Luciana perguntou.
� Um velho amigo de inf�ncia - respondi. � Meu melhor amigo.
Tive a certeza de que agora as coisas estavam no rumo certo.
Come�ava a conhecer pessoas, e reencontrava Raul! Era como se os
bons tempos pudessem voltar. Mas, quando conseguimos nos falar
por telefone, ele mais uma vez foi misterioso:
� Podemos ir aonde voc� quiser. Mas quero te mostrar um lugar.
� Que lugar?
Raul desconversou. Eu estava surpreso com tudo, e esse tom reservado,
distante, me dava a impress�o de que ele havia mudado muito.
Quando nos encontramos, tivemos tempo para mais uma vez nos
admirar com a passagem do tempo. Sugeri um bar, e ele lembrou:
� 0 bar fica para depois.
N�o havia alternativa a n�o ser deixar-me levar. 0 "lugar" era um
pr�dio feio, onde paramos na porta.
� E a�, Z�? � disse uma menina.
Z�?, estranhei. Desde quando Raul era Z�? E eles haviam piscado
o olho, ou era impress�o minha?
Entramos, e havia muita gente aglomerada em um sal�o. 0 debate
foi aberto. Imediatamente, antes que eu pudesse entender qualquer
coisa, as pessoas come�aram a falar em voz alta, como se quisessem
ganhar uma discuss�o.
� Est�o barrando direitos leg�timos da classe estudantil!
� Quatro estudantes foram presos!
� Abaixo a ditadura!
Falavam com �mpeto. Mas aparentemente todos concordavam com
todos, e portanto eu n�o entendia por que tanto empenho, tanta
exalta��o.
� Os estudantes est�o unidos � classe trabalhadora e agora...
� Vamos entrar em greve de uma vez!
Por mais que concordassem entre si, um cortava o outro.
� Por que afinal os militares t�m tanto medo de n�s?
� Simples: porque n�s n�o temos nada a perder.
� Nem carro, nem bens, nem as vantagens da burguesia!
� Nem trabalho, nem dinheiro � disse um que estava silencioso.
� N�o � bem assim, companheiro. Muitos aqui trabalham para se
sustentar.
� E os estudantes de medicina? Esses n�o podem trabalhar, simplesmente
porque n�o d� tempo.
� Os estudantes deveriam exigir uma mesada do governo, isso sim.
� Apoiado!
Nesse momento, o grande grupo que parecia coeso se desfez em
fac��es.
� Um momento, por favor. Quest�o de ordem! � disse uma mo�a
morena, que aparentemente era uma l�der natural.
Os discordantes ainda debateram um pouco, mas a discuss�o cedeu.
� Estou inteiramente de acordo � disse ela � que os estudantes
merecem pens�o, comida e casa do governo. Mas o momento �
delicado. Os companheiros trabalhadores que amea�aram greve foram
reprimidos. Chegou a hora dos estudantes assumirem o co
mando de todos os setores insatisfeitos com o governo, mas a quest�o
� saber como!
� Fazer panfletagem n�o d� mais. Quatro estudantes foram
presos.
� E voltamos para casa com o rabo entre as pernas? 0 que n�o d�
� ficar escondido, com medo de que eles arranquem nosso pirulito.
� Apoiad�ssimo, companheira!
A discuss�o recome�ou, e muitos eram os apartes, as quest�es de
ordem. Ficou resolvido que se encontrariam de novo para resolver
tudo aquilo.
A maior surpresa n�o foi o debate pol�tico, mas perceber que, no
seu transcorrer, uma menina se aproximou e ficou com Raul. Ficaram
pr�ximos, de m�os dadas. Eu tinha vontade, vez ou outra, de chegar
at� Raul e fazer perguntas, mas vendo os dois juntos achei melhor n�o.
� Esta � minha companheira, Lena � disse ele. � Este � meu
amigo, Carlo.
� Nome de guerra? � perguntei.
Os dois riram, e eu me afastei. Estava mais que surpreso. A maneira
como conversavam, aparentemente sobre pol�tica, estava al�m
da minha compreens�o. A rela��o dos dois tinha algo de compromisso
s�rio.
� Vamos sair! � disse Raul.
� E sua namorada? - perguntei.
� Mais tarde.
Aparentemente Raul havia manobrado para conversarmos a s�s.
Guardei meus pensamentos em sil�ncio. A mesa de um bar, foi ele
quem come�ou:
� 0 que voc� achou de tudo?
� Bem...
Eu me sentia constrangido, e nem sabia exatamente o porqu�.
� N�o sei � respondi por fim. � Arriscado, talvez.
� Arriscado? Voc� n�o acha isso importante?
� N�o entendo muito. Por que esse clima de... conspira��o?
� Porque estamos na clandestinidade! Eles n�o toleram reuni�es
ou atos p�blicos de estudantes.
� Eles quem? - estranhei.
� A pol�cia, o governo. A UNE foi fechada j� faz muito tempo.
� E o que voc�s t�m a ganhar com isso?
� Muita coisa! Os militares est�o se enfraquecendo, o povo est�
tomando consci�ncia. A ditadura pode ser derrubada.
� Isso � imposs�vel - falei. � Como � que simples estudantes...
� Carlo, isso � real. Eles t�m medo dos estudantes.
� Mas se eles est�o no poder...
� Ningu�m fica no poder para sempre � afirmou Raul.
� E quem vai tomar o poder? Voc�s? � perguntei, com ironia.
Raul me olhou com estranheza, e desviei o olhar. O conflito surgia
entre n�s, e nem eu mesmo sabia por que falava daquela maneira.
� Os estudantes s�o o setor mais informado da sociedade � disse
ele, pacientemente - e podem ser decisivos nessa batalha.
� N�o sei, n�o sei... � respondi, vagamente.
� O movimento estudantil est� renascendo, Carlo! � disse ele, com
�mpeto. � At� mesmo elei��es diretas podemos ter em breve no Brasil!
� Isso � ilus�o.
Mais uma vez, o sil�ncio constrangido caiu entre n�s. Era o mesmo Raul
de antes, ou apenas um rosto familiar? Eu n�o entendia de pol�tica, mas
sabia que a repress�o existia. Eles se arriscavam ao fazer essas reuni�es.
� E por que voc� est� tentando me convencer? � perguntei.
� Isso � �bvio. Voc� n�o tem vontade de entrar para o movimento
estudantil?
Sim, era �bvio, mas eu preferia ver as coisas de outra forma.
Aquele encontro com Raul havia acendido uma chama. Se a amizade
do passado fosse retomada, tudo seria mais f�cil.
� E o vestibular? � perguntei.
� Vou prestar no fim do ano. Arquitetura. E voc�?
� Estou em d�vida - confessei. � De qualquer forma, � preciso
estudar muito, eu n�o vou ter tempo.
� Sempre sobra um tempinho.
E Raul ainda tentou me convencer do ideal que unia todos aqueles
estudantes. Explicou que havia entrado no movimento aos poucos,
e que a� conhecera Lena, a namorada, que cursava jornalismo.
� Ent�o ela � mais velha que voc� � falei.
� � � disse ele, com cara de menino. � Um ano...
E logo continuou:
� Entrar no movimento foi a melhor coisa da minha vida. Se voc�
entrasse...
Se eu entrasse, minha vida mudaria muito. Mas ele tinha um motivo
especial para participar do movimento.
� Voc� sempre levantou a voz, sempre se rebelou � falei. � � o
seu jeito. N�o sei se eu poderia...
Ficamos nos olhando, como se a amizade, a inf�ncia, pudessem
retornar imediatamente.
� Posso te perguntar uma coisa? � falei.
� Claro.
� Como � que voc�s... come�aram a namorar?
� Como assim?
� Como tudo... come�ou?
Eu estava sem gra�a e ele j� estava rindo.
� N�o h� uma maneira estipulada, Carlo.
� Mas como aconteceu?
Ele concedeu, tentando falar s�rio:
� Come�amos a nos olhar. Ela parecia estar preocupada com outra
coisa, mas eu insistia. Nesse olhar havia v�rias coisas subentendidas,
claro.
� Que coisas?
Por pouco ele n�o riu de novo.
� Uma coisa quente. Ou m�gica. Como se um olhar ficasse preso
ao outro.
� E depois?
� Carlo, assim n�o d�! O que mais voc� quer?
� S� quero saber o que voc� disse, s� isso.
� Bem... Depois daqueles olhares, ela j� estava interessada. A� eu
disse "e a�?"
� "E a�"?
� A� falamos de pol�tica.
� Voc�s s� falaram de pol�tica?
� Acho que sim. � E emendou, malicioso: � Se voc� entrasse...
Que tal participar da pr�xima reuni�o?
� N�o sei, Raul. Preciso pensar.
Na verdade eu estava pensando em mim mesmo. Agora entendia
a diferen�a. Comigo n�o aconteciam olhares com coisas subentendidas.
N�o ia direto ao ponto, rodeava sem achar o gesto certo. E
ainda tinha dado a Luciana o livro Para viver um grande amor. Que
rid�culo!
Voltei para casa. Pensava em tudo aquilo, quando minha m�e me
telefonou:
� Ouvi dizer que tem movimento estudantil a� em S�o Paulo. �
verdade?
� Estudantil? N�o sei � respondi com surpresa.
� Cuidado, Carlo. Por qualquer coisa est�o levando estudante preso.
N�o v� entrar nessas hist�rias, pelo amor de Deus.
� N�o sei por que voc� teve essa id�ia.
Desliguei o telefone. Como ela podia ter adivinhado? Ser� que
mandava algu�m ir atr�s de mim na rua?
N�o pensei mais no assunto. De volta � escola, s� pensava em
mudar de t�tica com Luciana. Olhares m�gicos. Inten��es subentendidas.
Quentura.
01hando-a, durante a aula, consegui captar sua aten��o. Eu olhava,
ela olhava, os olhares se cruzavam. Raul estava certo. Era preciso
que, pelo menos, houvesse uma cumplicidade, uma inten��o n�o
declarada. Talvez, se voltasse a fumar... Uma nuvem de fuma�a poderia
criar o mist�rio.
No fim da aula nos aproximamos:
- 0 que voc� estava olhando? - Luciana perguntou.
- Voc�, ora... � respondi.
- J� sei. Queria falar sobre a prova?
- Mas que prova? � perguntei, confuso.
- Voc� n�o est� sabendo da prova de amanh�?
Eu n�o estava sabendo de prova nenhuma: estava no ar.
- Vamos estudar depois da aula? - ela perguntou.
Teria sido uma �tima id�ia, se uma amiga dela n�o tivesse se
juntado a n�s para resolver um monte de problemas. Ao fim do trabalho,
ela sugeriu:
- A gente podia sair um dia desses.
Escaldado por tantos mal-entendidos, respondi:
- Com que objetivo?
- Para conversar, ora � disse ela.
- Sobre o qu�?
- Nossa, Carlo, como voc� est� diferente - ela me olhou. - 0 que
aconteceu?
- Nada...
- Voc� n�o quer sair?
- Quero - falei. � Desde que seja algo... mais s�rio.
Um pouco surpresa, ela assentiu. Eu tamb�m estava surpreso com
essa conversa. Mas no dia marcado outros colegas apareceram.
- E um filme supers�rio � ela anunciou. � At� ganhou o Oscar.
Todos se animaram para ver o filme "s�rio" sobre o Vietn� � ser�
que ela n�o tinha entendido? E, surpreendentemente, havia at� uma
cena de sexo no meio do drama. Durante essa cena ningu�m disse
nada, ao contr�rio dos outros momentos. Depois do filme, numa lanchonete,
a pol�mica surgiu:
- Eu n�o faria aquela cena de jeito nenhum � disse uma das
meninas.
- Eu faria dentro de um contexto - disse outra.
- Justamente. 0 contexto do filme n�o tem nada a ver. Por que
numa hist�ria de guerra eles t�m de mostrar aquilo?
- Para mostrar que a guerra desestrutura a vida das pessoas! Claro!
A pol�mica prosseguiu, com a maioria das mulheres contra a cena,
e os homens a favor. Quando chegou sua vez, Luciana afirmou:
- Tamb�m achei a cena apelativa. N�o faria, n�o.
N�o houve tempo para dizer mais nada. Fui embora, irritado com tudo
e todos. Falavam em fazer uma cena de sexo como se j� tivessem feito
muitas na vida! Na frente da c�mera, ou atr�s dela? E ainda queriam se
vangloriar de dizer que n�o, que era �ntimo demais. Que vantagem!
Estava cansado. Tinha vontade de n�o fazer nada por alguns dias.
E agora sentia que o cansa�o n�o era do estudo, mas da pr�pria vida.
Parecia at� exagero, mas fechado no quarto, diante da escrivaninha
coalhada de livros, era o que sentia: cansado da vida. N�o tinha
coragem de dizer isso na frente de algu�m, mas era verdade.
0 que me reservavam os pr�ximos anos? N�o conseguia nem
mesmo escolher a faculdade. Administra��o? Direito, como meu pai
sugeria? Era incr�vel, mas, mesmo sem saber, precisava passar em
uma delas.
Seria preciso desafiar todos, e n�o estudar para as provas. Essa
id�ia me tentava. Mas e depois? Seguiria um rumo incerto, ficaria
vagando, para voltar inevitavelmente ao ponto de partida.
Por que a noite demorava tanto a chegar? Eu estava sempre � espera
de alguma coisa que nunca chegava. Seria tolo imaginar que essa situa��o
iria mudar r�pido. N�o eram os fins de semana a solu��o, nem as
pr�prias semanas, simplesmente porque um me fazia desejar o outro.
E pensava no convite de Raul. Seria essa uma resposta para a
minha insatisfa��o?
Fiquei dias mergulhado em pensamentos, incapaz de continuar
com a rotina. Toda a minha vida voltava � tona, as mem�rias da
inf�ncia: "Que esp�cie de homem ele vai ser?", perguntava minha
m�e. Nana deixando cair os cabelos pretos, a tentativa de fugir da
escola. E o clube.
S� agora percebia o quanto me apoiara em Raul, nas suas iniciativas.
Gostava de ver como ele desafiava os adultos. Mas, e agora?
Aceitaria seu convite, s� para preencher um vazio?
Quando encontrei Raul em um bar, tinha uma resposta:
- Infelizmente, vai ser imposs�vel participar do movimento � falei.
� Vou come�ar o cursinho, n�o vai dar tempo.
- Ser� � disse Raul, com vivacidade � que � s� uma quest�o de
tempo? Afinal, eu tamb�m preciso fazer cursinho...
- Eu sei. No fundo, admito que n�o � quest�o de tempo.
Ele ficou me olhando, um pouco surpreso.
- Lembra-se de quando voc� apareceu no col�gio, na noite da
formatura do gin�sio? - perguntei.
- Vagamente. Faz tanto tempo... Por que se lembrou disso?
- Naquela noite, fiquei apreensivo. 0 meu grande medo era que
voc� levantasse a voz, tentasse estragar a cerim�nia. Uma coisa infantil,
talvez, mas era o que eu sentia.
- Medo? - Raul estranhou. � E por que isso era t�o importante
para voc�?
- Por mais que gostasse de ver voc� desafiando os mais velhos,
eu n�o era igual a voc�. Meus pais estavam l�, eu n�o queria
decepcion�-los. Se algo desse errado, eles ficariam aborrecidos. E,
sendo seu amigo, eu me sentiria c�mplice.
- Nesse caso voc� n�o seria c�mplice.
- Mas eu me sentia assim. Eu n�o queria que voc� fizesse nada,
pois aquela noite tinha uma import�ncia, um significado...
- Significado... � disse ele, pensativo. � E qual o significado do
movimento para voc�?
- Seria a mesma coisa. Se entrasse, estaria desafiando meus pais.
- Voc� se preocupa demais com seus pais, Carlo.
Parei para pensar sobre aquela frase.
- Talvez sim. Mas o que eu realmente quero agora n�o depende
deles, depende s� de mim. E eu n�o tenho essa sua vontade de pro
testar, fazer movimento � afirmei, olhando-o.
- E do que voc� tem vontade?
Naquele momento tive a impress�o de ficar vermelho.
� De fazer certas coisas... que n�o fiz ainda. S� isso.
Ficamos nos olhando.
� Bem - disse ele, com ar entendedor. - Temos festas tamb�m.
Voc� poderia aparecer...
- Quem sabe.
E Raul foi embora. Mas eu sabia que, por mais que me entendesse,
havia ali uma diferen�a. Era ineg�vel que ele tinha avan�ado muito
mais que eu � ele tamb�m tinha percebido. Por mais que eu at� quisesse
ser como ele, e fazer parte de um movimento, teria de chegar l� sozinho.
Em alguns meses as coisas poderiam mudar. Depois de entrar na
faculdade e conquistar mais autonomia, muitas novas possibilidades
surgiriam naturalmente.
Continuei saindo com Luciana. Vez ou outra, fic�vamos nos olhando
em sil�ncio, sem nada dizer. 0 que havia no ar? Haveria uma
inten��o por parte dela?
Mas nossa conversa seguia um rumo pr�prio, o das aulas, das
provas, e nada mais. Quest�o de tempo? Era a minha �ltima esperan�a:
que aquele ano, com todas as suas impossibilidades, desse a chance
de alguma coisa acontecer.
Seguimos para o bar junto com a turma. 0 mesmo bar da primeira
vez, as mesmas pessoas, as mesmas conversas. Para que tudo se repetisse,
a menina de cabelos cacheados tamb�m estava ali:
- Voc�s querem batatinha? � ofereceu. - Vou pedir.
Eu aceitei e Luciana, mais uma vez, recusou:
� Ela mal conhece a gente.
H� uma raz�o para cada coisa que acontece? Cada gesto, cada
palavra, todas as coincid�ncias? Tudo se repetia no bar das mesas na
cal�ada, a �nica diferen�a era o frio que ca�a.
At� que eu vi. Aquele cara, o mesmo que conhecia Raul. Ele ficou
sem gra�a quando me viu. Estava com outras pessoas, n�o falou
comigo. Mas, quando se levantou, resolvi ir cumpriment�-lo. T�nhamos
um v�nculo.
- E a�? � perguntei. - Tem visto Raul?
- Raul? � se surpreendeu. - Ent�o voc� n�o sabe?
- Sei o qu�?
Ele me puxou de lado e falou baixo, para que ningu�m ouvisse:
- Ele morreu. Foi na manifesta��o. A pol�cia reagiu. Uma bala
perdida...
As palavras rodaram na minha cabe�a: bombas de g�s lacrimog�neo,
cacetetes, bala perdida... Demorei muito a entender o significado
dessas palavras. E mais ainda a acreditar.
- Mas como aconteceu isso? � perguntei, incr�dulo.
- Voc� n�o sabia que ele participava do movimento estudantil?
- Sabia, mas...
- Faz uns quinze dias. Abafaram o caso. Mas mesmo assim saiu em
um jornal. N�o deram nome porque ele era menor. Voc� n�o viu?
- N�o...
Eu n�o lia jornais. E ainda me parecia imposs�vel que aquilo tivesse
acontecido - e sa�do no jornal. Tudo de maneira t�o fria... Mas
no fundo eu j� sabia que era exatamente assim que a morte acontecia:
do nada.
- E por que justamente ele? - perguntei com revolta.
- Azar. E agora querem diminuir a import�ncia da coisa, dizendo que
houve baderna, que a manifesta��o amea�ou a seguran�a das pessoas.
- Ele era um lider?
- Os estudantes n�o querem ter l�deres. Fica mais f�cil prender e
reprimir. Mas est�o querendo fazer um protesto. Afinal, ele morreu �
frente da passeata.
Coragem. Essa era a explica��o para tudo? Ele tinha a coragem
que eu n�o tinha? Me veio � cabe�a uma frase de minha m�e: Raul
nunca se adaptaria � sociedade.
Mas qual de n�s estava certo? Eu, que n�o arriscava nada, ou ele,
que arriscava tudo?
Eu demoraria muito a entender o significado de tudo isso, o significado
dessa morte. E durante muito tempo Raul apareceu na minha
frente repetindo palavras de ordem. Muitas dessas frases vinham da
inf�ncia, quando ele propunha atividades, tarefas, desafios. Mas agora
eu n�o pensava nada. Sabia apenas que estava distante quando tudo
aconteceu. E ele ainda nem tinha dezoito anos.
Naquele momento, prometi a mim mesmo que na faculdade entraria
para o movimento estudantil. Mesmo que fosse s� para perguntar,
entender como aquilo podia ter acontecido. Eu me sentia
pequeno, e esse era o �nico pensamento que me segurava.
Voltei � mesa.
� E ent�o? � disse Luciana. � Vamos para o shopping?
� Acho que n�o... � respondi, absorto. - Vou para casa.
� Achei que voc� fosse gostar do convite.
Ela tinha uma voz decepcionada. Eu podia sentir a vida correndo,
agora em dire��o ao fim; o tempo tinha encurtado; haveria muitos
fatos, mas todos seriam breves e passageiros. As conversas nas mesas
dos bares preencheriam um pouco do espa�o vazio. Mas... E depois?
De repente, eu me sentia velho.
� Desculpe � falei. � N�o quero te decepcionar. Voc� n�o deve
esperar muito de mim.
� Esperar? � ela estranhou. � Como assim?
� No come�o � falei � eu imaginava que isso se tornaria um
namoro. E agora vejo que foi s� amizade.
Ela ficou quieta. E depois falou, de um jeito nada distra�do.
� Eu tamb�m pensei. Mas...
� Percebi de repente. Espero que n�o esteja te decepcionando,
agora.
� N�o � disse ela. � Eu imaginava, mas achava que podia ser...
criancice.
� Talvez - falei. - Dos dois lados.
� Preciso ir embora - disse ela. � N�o est� ficando frio?
E Luciana foi embora com uma amiga. E por que eu n�o ia embora
tamb�m? Talvez porque a menina dos cabelos cacheados tivesse me
olhado de relance, a dist�ncia. Custava olhar de volta? Olhar com
aten��o? Olhar deixando uma s�rie de coisas subentendidas. Olhar at�
que um olhar se prendesse ao outro. Uma coisa quente. Ou m�gica.
Voc�s devem achar que sou o pr�prio Carlo, narrador deste
livro. Na verdade, n�o, embora tenha vivido algumas situa��es
parecidas. Nasci, como ele, na d�cada de 1960, s� que n�o no
interior, e sim na capital do Estado, S�o Paulo.
0 mundo em que eu vivia era em grande parte imagin�rio. A
capacidade de imaginar coisas, inventar situa��es, alimentava meus
dias: criava cen�rios de teatro, desenvolvia um enredo, vestia fantasias.
Quando havia primos, outras crian�as, eu os colocava no meio do
cen�rio, e eles representavam um papel na minha hist�ria. Ah, esqueci
de dizer que minhas inven��es tamb�m inclu�am trens-fantasmas,
cheios de caveiras e outras coisas deliciosamente horrorosas.
Ler era outro prazer. Das revistinhas a romances policiais, como
os de Agatha Christie, minha imagina��o corria solta. Era � e � �
muito bom poder viajar em situa��es t�o fantasiosas, naquelas
hist�rias mirabolantes do Tintin, por exemplo.
0 que eu n�o sabia � que, paralelamente � minha realidade, havia
outra realidade mais dura: a pol�tica. Aos 14 anos fui a um com�cio, e
descobri o que era, de fato, a repress�o, a ditadura, a luta pela democracia.
Para se ter uma id�ia, ningu�m votava para prefeito, governador, presidente...
Havia at� os chamados senadores "bi�nicos", que eram indicados
pelo regime militar e n�o queriam perder o poder de jeito nenhum. Fui me
conduzindo por entre essas duas realidades. Eu queria manter viva a
chama criativa, mas tamb�m me interessava pelo que acontecia
� minha volta, pois sempre achei que precis�vamos reagir, que muitas
coisas no Brasil eram inaceit�veis � at� hoie s�o... Assim, fiz Arqui
tetura, em seguida Teatro, mas sempre mantive o h�bito de escrever.
De l� para c� escrevi contos, pe�as, e publiquei o romance A
educa��o pela espada, pela editora Ysayama, sobre um jovem que
encontra um mestre japon�s e come�a a mudar sua vis�o rom�ntica
a respeito do mundo. Essa contraposi��o entre o que sonhamos,
idealizamos, e a crua realidade sempre foi para mim algo muito
significativo, � desse choque que tirei muitas li��es.
Hoje dou aulas de l�nguas para jovens e adultos. Minhas mudan�as
na �rea profissional v�m junto com essa vontade de abrir
caminhos, criar novos mundos. Naturalmente, posso realizar essa
vontade de forma mais plena atrav�s dos livros que escrevo - e
acredito que a imagina��o e a criatividade t�m, sim, um ponto de
contato com a realidade que est� a�, e podem modific�-la, at�
mudar seu rumo, se tivermos olhos para ver, ouvidos para ouvir,
e cabe�a para sonhar.
� sempre bom conhecer um pouco mais os autores das hist�rias que
lemos � a experi�ncia da leitura se enriquece. Vamos bater um papo
com Antonio Sampaio D�ria?
CARLO E SEUS AMIGOS PARECEM CAMINHAR COM CERTA DIFICULDADE NA PASSAGEM DA
INF�NCIA PARA A ADOLESC�NCIA E, DEPOIS, PRINCIPALMENTE CARLO, NA PR�PRIA
ADOLESC�NCIA. PARA VOC� ESSE CAMINHO TAMB�M FOI DIF�CIL?
� Sim, foi dif�cil, principalmente pela minha timidez. E comum que o
jovem se sinta assim, eu acho. Eu tinha a impress�o de que tudo o que
eu fazia seria observado e comentado pelos outros. E as meninas, ent�o?
Um problema. Como agir, o que dizer? Tive a oportunidade de colocar
neste livro algumas experi�ncias desse tipo, inclusive as primeiras sa�das
noturnas, quando explodiu a m�sica "discoteque".
A PRIMEIRA EXPERI�NCIA SEXUAL DE UM JOVEM, AT� ALGUNS ANOS ATR�S, DAVA-SE
QUASE SEMPRE COM UMA PROSTITUTA. HOJE ESSA PR�TICA PARECE ESTAR SUPERADA,
POIS A EXPERI�NCIA OCORRE COM A PR�PRIA NAMORADA. VOC� ACHA QUE OS JOVENS
ATUAIS T�M A GANHAR COM RELA��O A ESSE ASSUNTO?
� Claro! Naquela �poca, ningu�m "ficava", como hoje. As prostitutas
eram a primeira refer�ncia no assunto, assim como as revistas com
mulheres nuas. Hoje todo mundo vai "ficando" e logo est� transando.
� mais natural. Acho que assim v�o aprender mais cedo e se
tornar adultos mais bem resolvidos - j� que a sexualidade ainda � um
bicho-de-sete-cabe�as para muita gente. Tomando os devidos
cuidados, sexo � dez.
0 MITO DE QUE A CRIAN�A � PURA E INOCENTE PARECE SER CONTRARIADO POR CARLO,
NAS V�RIAS TENTATIVAS QUE FAZ PARA ELIMINAR O IRM�OZINHO PEDRO. VOC� CONCORDA
QUE A MALDADE � INERENTE � CRIAN�A, AO CONTR�RIO DA OPINI�O CORRENTE?
� Eu n�o esperava que essa passagem gerasse tanta controv�rsia.
Escrevi aquilo sem pensar muito. Para mim, que j� presenciei ci�mes
terr�veis entre irm�os, era apenas curioso que isso acontecesse. A
crian�a � "pura" na sua espontaneidade, portanto expressa os sentimentos
livremente, inclusive o ci�me. Ela pode ser m�, �s vezes,
mas n�o tem plena consci�ncia dos seus atos. 0 adulto, ao contr�rio,
pode dissimular sentimentos considerados negativos, e isso acaba
sendo bem mais perigoso.
A FUNDA��O DO CLUBE, COM TODO 0 TRABALHO REALIZADO PELOS GAROTOS PARA QUE O
LOCAL SE TORNASSE AGRAD�VEL, FEZ COM QUE, CONFORME DISSE CARLO, SEUS TRASTES
ADQUIRISSEM VALOR DE TESOURO. ESSE FATO SUGERE QUE, TENDO QUE SE ESFOR�AR PARA
ADQUIRIR AS COISAS, O SER HUMANO AS VALORIZA MAIS. QUAL A SUA OPINI�O SOBRE
ESSA ID�IA E SOBRE A APLICA��O DA MESMA NA EDUCA��O?
� Sim, todo mundo concorda que, quando h� obst�culos, o valor da
conquista � maior. Ent�o os pais muitas vezes concluem que � melhor
n�o dar "tudo" aos filhos, para que eles tenham garra de lutar pelas
coisas. Essa id�ia, transposta para a educa��o, pode gerar uma
mudan�a de atitude. O aluno deixa de ser um recept�culo de
conhecimentos, algu�m que s� "aprende", ele passa a ser algu�m que
tamb�m produz conhecimento. E como se d� isso? Quebrando a
estrutura r�gida de aulas e provas, deixando que o aluno tome a
decis�o de como vai aprender e usar aquele conhecimento. Portugu�s
passa a ser visto como "comunica��o", algo essencial, Matem�tica �
associada a finan�as e administra��o. A hora de usar os conhecimentos
� agora, e o jovem, hoje, tem todas as condi��es de ser mais ativo
que receptivo, usando inclusive as novas e poderosas tecnologias,
como a Internet.
RAUL DEMONSTRA, DESDE MUITO JOVEM, CAPACIDADE DE ARGUMENTAR, SENSO CR�TICO E
CORAGEM PARA ENFRENTAR O PODER. ACABA MORRENDO EM CONSEQ��NCIA DE SUA
PARTICIPA��O NA LUTA ESTUDANTIL CONTRA A DITADURA MILITAR. VOC� SERIA CAPAZ
DE, COMO ELE, ARRISCAR A VIDA POR UM IDEAL?
� Um ideal nos traz perseveran�a, �mpeto, f�. Houve um tempo em que
o confronto dos ideais libert�rios com a dura realidade era uma quest�o
de vida e morte. Mas, hoje, algu�m no Brasil morreria por uma causa?
Parece que n�o. O preto e o branco se misturaram, ficou tudo meio
cinzento. Ent�o conclu�mos que n�o h� mais ideais � falso! Os ideais
continuam sendo necess�rios, s� que n�o vamos morrer por eles, e sim
viver por eles. O Brasil � um pa�s rico em recursos, mas empobrecido
pela corrup��o. Vemos todos os dias, nos jornais, pol�ticos que t�m
fortunas de 10, 20, at� 100 milh�es de reais � e isso � s� a ponta do
iceberg. 0 que estamos esperando para fazer alguma coisa? Dever�amos
lutar pelo ideal de um pa�s limpo, justo, com riqueza para todos, ou ser�
que isso n�o vale a pena?
EM QUE MOMENTO DE SUA VIDA A VONTADE DE SER ESCRITOR SE MANIFESTOU? VOC� FOI
BOM ALUNO EM PORTUGU�S?
� Lembro-me at� hoje de uma reda��o (ou melhor, um conto) que fiz
na sexta s�rie. 0 fato ficou marcado porque foi a primeira vez em que
tomei consci�ncia do poder da linguagem � isto �, descobri que a escolha
e a disposi��o das palavras s�o capazes de criar surpresa, estranheza,
admira��o, enfim, de fazer com que o leitor veja as coisas de forma
diferente. � a possibilidade da cria��o de um outro universo. Claro,
houve um est�mulo da professora para escrevermos de forma menos
ing�nua, e at� hoje sou grato a ela por ter tido essa id�ia. Escrever � um
prazer, uma porta para novas e imprevis�veis experi�ncias.
De: Reginaldo Mendes
Abraços !
Reginaldo Mendes /
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