terça-feira, 10 de agosto de 2010 By: Fred

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O FOGO E AS CINZAS

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obra completa

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O FOGO E AS CINZAS

Título: O Fogo e as Cinzas (9.* edição)

Autor: Manuel da Fonseca

Capa: Armando Alves

Arranjo gráfico: José Serrão

Revisão tipográfica Fernanda Castro, Fernanda Abreu e Rita Pais

0 Editorial Caminho, SARL Lisboa, 1981

N ° de edição: 9/82

Tiragem: 10 000 exemplares

Composição: Fototexto, Lda.

Impressão e acabamento: Gris Impressores, SARL

Data de impressão: Maio de 1982

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9.a edição

revista e prefaciada

pelo autor

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obras do autor

Rosa dos Ventos, poemas (1940)

Planície, poemas (1942) Aldeia Nova, contos (1942)

<Jf

Cerromaior, romance (1943) O Fogo e as Cinzas, contos (1951)

Seara de Vento, romance (1958) Poemas Completos, contos (1968)

Tempo de Solidão, contos (1973)

índice

Prefácio

O largo

A harpa

O fogo e as cinzas

Noite de Natal

Amor agreste

O retraio

A testemunha

O último senhor de Albarrã

Um nosso semelhante

Sempre é uma companhia

Meio pão com recordações

9

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45

65

79

95

107

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133

145

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"SSiSLIOTECA MiJ.'C"-Yl CAMÔf.S"
Prefácio
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Breves meses vividos em Santiago, ao voltar a Lisboa, estávamos nos primeiros dias do já distante Outono de 53, aguardava-me esta surpresa: um livro de contos acabado e pronto a entrar no prelo.

O livro é este, este O Fogo e as Cinzas. Devo-o a Carlos de Oliveira.

No seu modo peculiar de fugir a agradecimentos, ao pôr-me diante do facto, Carlos de Oliveira logo o minimizou, descrevendo-o, seco e breve, como originado por um ocasional acontecimento. Limitara-se a deixar correr. E, apressado, não fosse eu insistir, ele, de olhos semicerrados, sobrolho soerguido em asa, evocou precisamente o testemunho dos dois cúmplices, ambos ali presentes Maria Angela e José Gomes Ferreira.

Não sei como Carlos de Oliveira conseguiu localizar os contos. Eu não fazia ideia, pois, de há muito,

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MANUEL DA FONSECA

PREFÁCIO

os havia esquecido. Fora uma colaboração incerta e desatenta, sem cépias nem datas, por jornais e revistas, algumas já desaparecidas. Mas, Maria Angela, vencendo com aquele sorriso de discreta serenidade quantos obstáculos se lhe depararam, descoberta a revista ou o jornal, consultando, folheando, lá os foi buscar.

E, ainda segundo Carlos de Oliveira, nem a Maria Angela nem a José Gomes Ferreira eu devia agradecer. O mais de acordo com a circunstância e único agradecimento possível, segundo ele, era, agora que já estavam reunidos, editar os contos.

Não foi fácil convencer-me. Por essa altura, atravessava eu uma fase de desânimo no que dizia respeito a edições. A fase começara depois da saída do Cerromaior, romance que marcou, com os poemas da Rosa dos Ventos, o período que veio dos anos 40 a 43, em que publiquei os primeiros quatro livros. Esse ritmo de trabalho e de interesse pela literatura desvanecera-se. Houve como que um desencanto. Que, em certo sentido, ainda hoje perdura. Escrevia, lá de quando em quando, um conto, ao calhas, em casa ou num café. Se possível, nesse mesmo dia, vendia-o (seria para isso que escrevia?) a uma revista, a um jornal. Não guardava cópia, não tomava nota da data. Depois se veria. Logo que saísse, havia de, pensava eu, guardar o jornal, a revista. O resultado adivinha-se: esquecia-me. Naturalmente. Esquecia-me de os comprar. Ou, se comprava, perdia os jornais, emprestava as revistas sabia lá a quem.

Do sucedido nenhum mal resultaria, entenda-se. Entretanto, assim não pensou Carlos de Oliveira.

Aí estavam, pois, os contos eis o seu gesto, delicado, sóbrio. E, com o leve, vago sorriso de quem compreende e desculpa desvios de entendimento, insistia: editor não faltava, o José Cardoso Pires abriria um espaço na colecção das "3 Abelhas", que mais era preciso? Lesse-os, ordenasse-os, arranjasse-lhes um título.

Relutante embora, meti-me ao trabalho. Para a nenhuma vontade, acrescia ser a primeira vez que relia escritos meus, depois de impressos. Mas, ao retomar o convívio com esta gente, com a paisagem humana destes contos, foi como se, alvoroçado, voltasse a encontrar pessoas conhecidas.

Não seriam? Esse o tudo ou o nada da ficção. Penso que eram. Eram indivíduos que eu conheci e de quem o tempo, a força transformadora do tempo, me deixou apenas o que neles era essencial, e me surgiam agora, não exactamente como haviam sido, mas, movendo-se, de súbito, na minha frente, mais verdadeiros, mais reais. Vivos.

Vivos. Maneiras de falar os contos tinha-os eu escrito, era eu próprio quem pensava sobre eles. Além do mais, recentes, três, quatro anos, que circunstâncias estas e que tempo é esse para ajuizar, concluir? Tudo isto levava a opiniões demasiado pessoais. Que não serão inéditas, decerto. Mas são, afinal, as que tenho e me ensinam.

Estreita, asselvajada ou espelhando luaceiros de

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MANUEL DA FONSECA

ternura e sorrisos sem malícia, a minha área desbravo-a eu, à conversa, diante de raros amigos, como quem, lá de quando em quando, se entretém a desfazer mistérios. Agora mesmo repito o desacerto, desta vez perante desconhecidos. Seja. Releve-se-me, pois, que relate, assim tão fugidiamente e à superfície, as breves conclusões que a minha experiência conquistou.

As pessoas de quem escrevo são as que houve na minha vida. Gente de família ou conhecida. Nelas me fui descobrindo e sendo eu próprio as vidas que contei. É isso, eu. Até quando escutava a vida de algum desconhecido, logo descobria que esse desconhecido era dois ou três indivíduos que eu já conhecia um dos quais, com o tempo, começava a ser eu. Contar a vida dos outros é interrogar a nossa própria vida. Só o tempo depura. Ficção constrói-se com o que fica do passado. Revive-o.

Do mesmo modo a paisagem é um ser vivo tem de se reinventar: só assim será real, como na vida.

Antes de falar do chão destes contos, darei, para contraste do planalto, um relance do areal, de quase cem quilómetros, que vem, desde Tróia, até ao farol do cabo de Sines. São as dunas da costa da Nau, onde mal vinga o arbusto da camarinheira, que produz uma baga redonda e alva, com veios rosados que, mesmo nos dias quentes de Verão, dá um líquido frio, gostoso.

No raso do areal, deixando o leve toque dos esguios dedos estrelados das patas, corre, velocíssima, a andorinha-branca, que amanha o ninho desleixada-

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PREFÁCIO

mente e ao acaso, exposto sem defesa a ser pisado, por quem vá, de caminho, à procura do sítio propício para a pesca à cana.

A meio das dunas, ficam as lagoas de Melides e de Santo André. Embora diferentes de recorte e encostas, são semelhantes quanto à produção e uso. Das águas baixas da lagoa de Santo André, cada Primavera renovadas pelo mar, onde vogam as tainhas, a irós, os linguados, o requeime, alastram os charcos barrentos que tapam, depois, as várzeas de verdes arrozais. Dos moradores nocturnos das moitas de colmo dos ilhéus arenosos, desaparecido o pato-real, apenas o galeirão ergue agora o voo cada madrugada.

Fazia-se ali, todos os anos, uma concorrida caçada ao pato-real. Antes do dia nascido, já os barcos a remos, em cada um, além do remador, um caçador e um cão, se dispunham à batalha. Criança ainda, eu ia com meu pai como ajudante de cão de caça. Mal a ave era atingida, ainda vinha no ar como pedra que cai, deitava-me à água, ao desafio com o cão.

Para o sul do cabo de Sines, erguem-se arribas, onde a gaivota esconde o ninho, e abrem-se anfiteatros de rochas, conformando praias Sines, São Torpes, Porto Covo, Milfontes, praias da minha infância até onde o rio Mira entra no oceano.

Assim, à caça e à pesca, conheci esta faixa marítima. Desde os rochedos e das areias, os pinheirais, vinhas, pomares, terras chãs e enrugadas onde se alapardam lebres, coelhos, céus voados por pombos-bravos, codornizes, tordos, alargam-se por terras que

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sobem lentamente dos vales, galgam socalcos, até aos cimos eriçados dos densos sobreirais da serra, cimos que se alongam paralelos com o mar distante e dividem nitidamente a zona animada e verdejante da costa, onde há a pequena propriedade, da zona agreste e seca da imensidão do planalto.

Aqui começa o latifúndio: fome e solidão. Zona esta onde se situam os contos deste livro. Vasta região, com a serra do litoral por fronteira, que daí vem, ondulando por outeiros e barrancos tapados de matagal e oliveiras nascidas entre pedregulhos, até à savana, triste e pesada, das baixas do Sado e, depois, a seara, planícies de seara, que vão por Ferreira e descem para o sul, a Aljustrel, a Castro Verde e, daqui, flectem a poente, por Ourique, Santa Luzia, Colos, até aos cerros, arredondados como seios, do Cercal, já de novo à vista do mar.

Procurei trazer aqui Carlos de Oliveira. Queria mostrar-lhe estes sítios familiares. Na demora da viagem, sempre adiada por um que outro motivo, sucedia descrever-lhe acontecimentos que ilustrassem as minhas evocações, reinventando-os a partir do facto evocado. Dois dos contos, que depois escrevi e vêm neste livro, contei-lhos nesses momentos.

Também, às vezes, me imaginei num grupo, deambulando pelo planalto. Entre eles vinha Carlos de Oliveira. E lá íamos, pelos ermos, de aldeia em aldeia. A Abela, escondida no vale, na beira do regato. Ermidas Gare, que vi nascer no plaina, ao lado da estação do caminho-de-ferro. Montes Velhos, a terra de Nena.

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PREFÁCIO

Alvalade, ao rigor do gelo do Inverno e do lume do Verão. Casével, onde nascerá um menino que há-de trazer as chaves do reino e, com elas, a paz. Torre Vã, monte acastelado, onde paira ainda a lenda do último senhor feudal.

Os contos, excepto o exame de "O retraio" e a "Noite de Natal", passados em Beja, tiveram estas terras por espaço de acção. Principalmente Santiago. Mas nenhum dos locais nomeados é exactamente esse espaço. Tal como as pessoas, assim os lugares recriados foram duas, três imagens sobrepostas, que se reajustaram, completando-se numa só imagem do campo, ou da aldeia, ou da vila. Ou de um pormenor desses lugares. De um pedaço de seara, de rua, uma porta, um largo.

No que diz respeito à acção, creio que, tal como todos os autores, tenho acumulado valioso material. Que só por si não chega. O que conheço é apenas um ponto de partida para a imaginação criar. Apenas a imaginação conforma e desenvolve e completa coerentemente os incríveis factos acontecidos na vida. Apenas ele lhes dá realidade. Creio ter lido, não recordo onde, que se é certo que a imaginação do autor é a vida da ficção, não é menos certo que a vida é o mais imaginoso dos autores.

Quanto ao título tirei-o, como de uso, de um dos contos. Não terá sido a melhor escolha. Queria um título que desse, em síntese, a sugestão do conteúdo do livro. Um título que desse o antes e o depois dos acontecimentos do livro. Para isso, o primeiro dos contos, "O largo", onde se dá conta das modificações originadas pela chegada do comboio à vila, ou "Sempre é

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uma companhia", que descreve a mudança operada na aldeia pela telefonia, seriam preferíveis. Mas nenhum tem, nos títulos, as palavras-chave da ideia antes e depois, que é a constante do conjunto do livro. "O fogo e as cinzas", abstraindo o tema do próprio conto, será, na ordem inversa das palavras, o menos mau dos títulos, se aceitarmos que das cinzas pode renascer o fogo, para o caso, uma nova Fénix.

Ouvindo isto, pelo que me pareceu, Carlos de Oliveira achou melhor a explicação do que o título. Está certo. Até como ironia. Sempre esclarecedora, sempre conciliadora.

Assim como as possíveis edições dos outros trabalhos, vai o presente em edição revista e emendada. Usa-se também o prefácio que, nesta espécie de edições definitivas, de igual modo desempenha uma função adequada. Será a memória dos factos que o autor arbitrariamente entende relacionados com o livro, quer antes quer durante ou em seguida ao seu aparecimento.

Neste sentido, e na continuação do jeito informal e breve que tem atenuado a pintura sempre solene e pretensiosa da tabuleta "edição definitiva, prefaciada, revista e emendada", devo ainda recordar aqui um outro facto.

Por altura do aparecimento deste livro, o comentador literário do jornal A República estranhava, em nota crítica, no mesmo diário, a semelhança saliente de "A testemunha" com o conto de Artur Portela, pai, "Tragédia rústica", aparecido, em livro, cerca de um ano antes.

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PREFÁCIO

A fase de desencanto das coisas literárias porque então passava, levou-me a adiar de dia para dia, até à desistência, a ida à revista Eva, onde a "A testemunha" fora publicada pela primeira vez, uns oito meses antes do livro de Artur Portela, pai, sair. Parecia-me uma tarefa inútil e absurda apurar o dia, o mês e o ano do número da revista.

Não sei se Artur Portela, pai, com quem de quando em quando me encontrava ao passar no Chiado, terá lido a nota da República. Se a leu, calou-se. Da razão da semelhança dos dois contos sabíamos nós dois a causa: ambos havíamos lido, em O Século a notícia da morte de um homem. Aí estava a ideia dos contos. O caso dera-se em condições pouco vulgares. Podia até pensar-se num crime praticado, por intermédia pessoa. E o interesse pelas causas pressentidas, levar a-nos, com base na notícia, a construir, cada um a seu modo, uma presumível história.

Retomando a intenção que orientou a abertura destas notas, renovo aqui, no lugar próprio, este livro que lhes devo e a que quero ligar o vosso nome, Maria Angela, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, a lembrança da minha amizade e da minha gratidão. E, dadas as circunstâncias, quero ainda acrescentar outra palavra: se alguma coisa devo a estes largos anos de actividade nas letras, uma das mais valiosas foi a de ter convivido com Carlos de Oliveira, escritor maior, um clássico da língua portuguesa.

Manuel da Fonseca

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O largo
Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido, o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.

O comboio matou o Largo. Sob o rodado de ferro morreram homens que eu supunha eternos. O senhor Palma Branco, alto, seco, rodeado de respeito. Os três irmãos Montenegro, espadaúdos e graves. Badina, fraco e repontão. O Estróina, bêbado, trocando as pernas, de navalha em punho. O Má Raça, rangendo os dentes, sempre enraivecido contra tudo e todos. O lavrador de Alba Grande, plantado ao meio do Largo com a sua serena valentia. Mestre Sobral. Ui Cotovio, rufião, de caracol sobre a testa. O Acácio, o bebedola do Acácio, tirando retratos, curvado debaixo do grande pano

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MANUEL DA FONSECA

preto. E, lá ao cimo da rua, esgalgado, um homem que eu nunca soube qiiem era e que aparecia subitamente à esquina, olhando cheio de espanto para o Largo.

Nesse tempo, as faias agitavam-se, viçosas. Acenavam rudemente os braços e eram parte de todos os grandes acontecimentos. À sua sombra, os palhaços faziam habilidades e dançavam ursos selvagens. À sua sombra, batiam-se os valentes; junto do tronco de uma faia caiu morto António Valmorim, temido pelos homens e amado pelas mulheres.

Era o centro da Vila. Os viajantes apeavam-se da diligência e contavam novidades. Era através do Largo que o povo comunicava com o mundo. Também, à falta de notícias, era aí que se inventava alguma coisa que se parecesse com a verdade. O tempo passava, e essa qualquer coisa inventada vinha a ser a verdade. Nada a destruía: tinha vindo do Largo. Assim, o Largo era o centro do mundo.

Quem lá dominasse, dominava toda a Vila. Os mais inteligentes e sabedores desciam ao Largo e daí instruíam a Vila. Os valentes erguiam-se no meio do Largo e desafiavam a Vila, dobravam-na à sua vontade. Os bêbados riam-se da Vila, cambaleando, estavam-se nas tintas para todo o mundo, quem quisesse que se ralasse, queriam lá saber cambaleavam e caíam de borco. Caíam ansiados de tristeza no pó branco do Largo. Era o lugar onde os homens se sentiam grandes em tudo que a vida dava, quer fosse a valentia, ou a inteligência, ou a tristeza.

Os senhores da Vila desciam ao Largo e falavam de

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O LARGO

igual para igual com os mestres alvanéis, os mestres-ferreiros. E até com os donos do comércio, com os camponeses, com os empregados da Câmara. Até, de igual para igual, com os malteses, os misteriosos e arrogantes vagabundos. Era aí o lugar dos homens, sem distinção de classes. Desses homens antigos que nunca se descobriam diante de ninguém e apenas tiravam o chapéu para deitar-se.

Também era lá a melhor escola das crianças. Aí aprendiam as artes ouvindo os mestres artífices, olhando os seus gestos graves. Ou aprendiam a ser valentes, ou bêbados, ou vagabundos. Aprendiam qualquer coisa e tudo era vida. O Largo estava cheio de vida, de valentias, de tragédias. Estava cheio de grandes rasgos de inteligência. E era certo que a criança que aprendesse tudo isto vinha a ser poeta e entristecia por não ficar sempre criança a aprender a vida a grande e misteriosa vida do Largo.

A casa era para as mulheres.

No fundo das casas, escondidas da rua, elas penteavam as tranças, compridas como caudas de cavalos. Trabalhavam na sombra dos quintais, sob as parreiras. Faziam a comida e as camas viviam apenas para os homens. E esperavam-nos, submissas.

Não podiam sair sozinhas à rua porque eram mulheres. Um homem da família acompanhava-as sempre. Iam visitar as amigas, e os homens deixavam-nas à porta e entravam numa loja que ficasse perto, à espera que saíssem para as levarem para casa. Iam à missa, e os homens não passavam do adro. Eles não entravam

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MANUEL DA FONSECA

em casas onde fossem obrigados a tirar o chapéu. Eram homens que, de qualquer modo, dominavam no Largo.

Veio o comboio e mudou a Vila. As jojas encheram-se de utensílios que, antes, apenas se vendiam nos ferreiros e nos carpinteiros. O comércio desenvolveu-se, construiu-se uma fábrica. As oficinas faliram,

os mestres-ferreiros desceram a operários, os alvanéis

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passaram a chamar-se pedreiros e também se transformaram em operários. Apareceu a Guarda, substituiu os pachorrentos cabos de paz, e prendeu os valentes. As mulheres cortaram os cabelos, pintaram a boca e saem sozinhas. Os senhores tiram agora os chapéus uns aos outros, fazem grandes vénias e apertam-se as mãos a toda a hora. Vão à missa com as mulheres, passam as tardes no Clube, e já não descem ao Largo. Apenas os bêbados e os malteses se demoram por lá nas tardes de domingo.

Hoje, as notícias chegam no mesmo dia, vindas de todas as partes do mundo. Ouvem-se em todas as vendas e nos numerosos cafés que abriram na Vila. As telefonias gritam tudo que acontece à superfície da terra e das águas, no ar, no fundo das minas e dos oceanos. O mundo está em toda a parte, tornou-se pequeno e íntimo para todos. Alguma coisa que aconteça em qualquer região todos a sabem imediatamente, e pensam sobre ela e tomam partido. Ninguém já desconhece o que vai pelo mundo. E alguma coisa está acontecendo na terra, alguma coisa terrível e desejada está acontecendo em toda a parte. Ninguém fica de fora, todos estão interessados.

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O LARGO

A Vila dividiu-se. Cada café tem a sua clientela própria, segundo a condição de vida. O Largo que era de todos, e onde apenas se sabia aquilo que a alguns interessava que se soubesse, morreu. Os homens separaram-se de acordo com os interesses e as necessidades. Ouvem as telefonias, lêem os jornais e discutem. E, cada dia mais, sentem que alguma coisa está acontecendo.

Também as crianças se dividiram: brincam em comum apenas às da mesma condição; param às portas dos cafés que os pais ou irmãos mais velhos frequentam. O Largo, agora, é todo o mundo. É lá que estão os homens, as mulheres e as crianças. No outro Largo, só os bêbados e os madraços dos malteses e aqueles que não querem acreditar que tudo mudou. O certo é que ninguém já liga importância a esta gente e a este Largo.

As grandes faias ainda marginam o Largo como antigamente e, à sua sombra, João Gadunha ainda teima em continuar a tradição. Mas nada é já como era. Todos o troçam e se afastam.

João Gadunha, o bêbado, fala de Lisboa, onde nunca foi. Tudo nele, os gestos e o modo solene de falar, é uma imitação mal pronta dos homens que ouviu quando novo.

Grande cidade, Lisboa! diz ele. Aquilo é gente e mais gente, ruas cheias de pessoal, como numa feira!

Gadunha supõe que em Lisboa ainda há largos e homens como ele conheceu, ali, naquele Largo marginado pelas velhas faias. A sua voz ressoa, animada:

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MANUEL DA FONSECA

Querem vocês saber? Uma tarde, estava eu no

Largo do Rossio...

No Largo"do Rossio?

Sim, rapaz! afirma Gadunha erguendo a cabeça, cheio de importância. Estava eu no Largo do Rossio a ver o movimento. Vá de passar o pessoal para baixo, famílias para cima, um mundo de gente, e eu a ver. Nisto, dou com um tipo a olhar-me de esguelha. Cá está um larápio, pensei eu. Ora se era!... Veio-se chegando, assim como quem não quer a coisa, e meteu-me a mão por baixo da jaqueta. Mas eu já estava à espera!... Salto para o lado e, zás, atiro-lhe uma punhada nos queixos: o tipo foi de gangão, bateu com a cabeça num eucalipto e caiu sem sentidos!

Uma gargalhada acolhe as últimas palavras do Gadunha.

Um eucalipto?

Apenas por um pormenor, estragou uma tão bela história. Fosse antigamente, todos ouviriam calados. Agora, sabem tudo e riem-se. Mas Gadunha teima. Diz que sim, que já esteve no Largo do Rossio, lá em Lisboa.

Vocês já viram um largo sem eucaliptos, ou faias, ou outra árvore qualquer? pergunta ele, desnorteado.

Todos se afastam, rindo.

João Gadunha fica sozinho e triste. Os olhos arrasam-se-lhe de água, a bebedeira dá-lhe para chorar. Agarra-se às faias, abraça-as, e fala-lhes carinhosamente. Aperta-as contra o peito, como se tentasse

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O LARGO

abarcar o passado. E as suas lágrimas molham o tronco carunchoso das faias.

Vai morrendo assim o Largo. Aos domingos, é ainda maior a dor do Largo moribundo. Vão todos para os cafés, para o cinema ou para o campo. O Largo fica deserto sob a ramaria das faias silenciosas.

É nesses dias, pelo fim da tarde, que o velho Ranito sai da venda rangendo os dentes. Outrora, foi mestre-artífice; era importante e respeitado. Hoje, é tão pobre e sem préstimo que nem sabe ao certo o número dos filhos. Apenas sabe embebedar-se. Pequeno e fraco, o vinho transforma-o. Entesa-se, ergue o cacete e, sem dobrar os joelhos, apenas com um golpe de pés, pula para o ar e dá três cacetadas no pó do Largo antes de tocar de novo com os pés no chão. Ergue a cabeça e grita, estonteado:

Se há aí algum valente, que salte para aqui! Mas já não há nenhum valente no Largo, já não há

ninguém no Largo. Ranito olha em volta com o olhar espantado.

A vista turva-se-lhe, range os dentes:

Ah vida, vida!...

Volteia o cacete sobre a cabeça. Vai de roda, feroz, pelo Largo ermo de vida, atirando cacetadas contra o chão. Vai, de cinta solta rojando, ágil e ridículo, a desafiar homens que já morreram.

Até que se cansa naquela luta desigual. O cacete despega-se-lhe das mãos e ele fica lasso, desequilibrado. Aos tropeções, pende para a frente e cai, tem que cair, o Largo já morreu, ele não quer, mas tem de cair. Pesado de bebedeira e de desgraça, cai vencido.

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MANUEL DA FONSECA

Uma nuvem de poeira ergue-se; depois, tomba vagarosa e triste. Tomba sobre o Ranito esfarrapado e tapa-o.

Ele já não pode ver que o Largo é o mundo fora daquele círculo de faias ressequidas. Esse vasto mundo onde qualquer coisa, terrível e desejada, está acontecendo.

A harpa

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Era a vez do Luciano. Curvou-se, pôs o joelho em terra e apontou o berlinde. Atento, Júlio esperou. Mas o golpe demorava. Luciano parecia alhear-se cada vez mais da jogada, como se escutasse qualquer ruído distante. Acabou por erguer a cabeça.

Estrada abaixo, Lena corria de braços abertos. Vinha de sapatos pretos, meias pretas, bibe preto. E, sobre os cabelos claros, um grande laço preto. Toda ela vestia de luto carregado. Mas os seus movimentos eram leves e cheios de vivacidade. Passou, sentindo o prazer da corrida, airosa e veloz. O vento abriu-lhe o bibe e, por momentos, apareceu a descoberto o colo muito branco que formava com o rosto uma mancha alva no meio do luto.

Parece uma andorinha disse Júlio.

Os dois garotos iam virando a cabeça e seguiam-na com os olhos. Nenhum sabia ao certo se ela os vira,

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MANUEL DA FONSECA

embora a ambos parecesse que Lena os havia olhado de soslaio.

Luciano continuava de joelhos no pó alvacento do largo. Sempre a correr, Lena ia agora saltando, ora sobre um pé, ora sobre o outro. Por fim, desapareceu na curva da rua, a caminho de casa da madrinha.

Luciano voltou-se. Apontou o berlinde entalado entre os dedos, desfechou o golpe, e falhou. Júlio, já de joelho no chão, preparava-se para jogar, quando Luciano levantou a pequena esfera e disse:

Não jogo mais.

Júlio, viu-o ir sentar-se à sombra. Aproximou-se:

Ficaste zangado, hem?

Eu?

Pois! acrescentou Júlio. Ela passou sem olhar para ti.

Quero lá saber disso!

Então porque deixaste de jogar?

Luciano olhou-o de revés, por cima do ombro. Mas nada respondeu. Esticou as pernas, foi-se voltando, e acabou por ficar estendido sobre o passeio, com o queixo encostado aos punhos.

Júlio curvou-se e começou a desenhar com o dedo sobre o pó do largo. Parecia completamente absorvido. Súbito, a mão parou-lhe:

Não te percebo. Ela anda sempre à tua volta, e tu corres com ela; agora, que passou sem te olhar, ficaste danado.

Fiquei nada! cortou Luciano. Júlio sorriu com tristeza:

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A HARPA

Bem vi que ficaste.

Voltou a correr com o dedo sobre o pó:

Se fosse comigo, já eu a namorava.

Tu?

Sim... É bem bonita, a Lena...

Luciano ergueu o tronco, recolheu as pernas, e sentou-se:

Se achas que ela é assim tão bonita, porque é

que não a namoras?

Júlio curvou-se ainda mais para o chão:

Ela só gosta de ti...

Quem te disse isso?

Ninguém respondeu Júlio, encolhendo os ombros. Mas vê-se muito bem.

Não... murmurou Luciano, logo acrescentando, com vivacidade. Não, eu não gosto nada da família dela. É uma gente que nem eu sei!

Mas que tem que ver com isso a família dela?

Tem muito. Uma pessoa ou gosta de uma família toda ou não gosta de ninguém dessa família.

Júlio esqueceu os desenhos sobre a poeira.

Mas, eu... começou ele, hesitante , eu não gosto nada da família da Lena, e gosto dela.

Isso és tu.

E Luciano, com um ar superior, voltou a estender-se ao comprido sobre o passeio. Um carreiro de formigas passava-lhe perto do nariz e, como Júlio nada mais dissesse, entretido a riscar de novo o pó, Luciano pôs-se a observar as evoluções das formigas.

Assim estavam, quando Lena apareceu. Corria

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MANUEL DA FONSECA

como se fosse direitinha para casa, mas, dando uma larga viragem, Começou a andar às voltas pelo largo. Júlio seguia-a com os olhos. Luciano olhava para o carreiro das formigas.

Lena ia abrindo cada vez mais os círculos; passava agora muito perto do passeio. No entanto, fazia-o como se não desse pela presença dos rapazes. Pulava, abria os braços, rodava sobre os calcanhares, ora vagarosa, ora rápida. Tudo isto parecia ser feito com um fim especial. Mas, como não alcançasse nenhum resultado, Lena, ao descrever a última volta, quase pisou o carreiro das formigas.

Olha! exclamou ela, numa exagerada surpresa. Um carreiro de formigas!

E das grandes! disse Júlio, rapidamente. Luciano continuava a olhar para as formigas como

se em nada tivesse reparado. Lena curvou-se, cruzando os braços atrás das costas:

Essas são das que mordem, não são?

Sim respondeu Júlio mas não dói nada.

Mordem muito, não é? repetiu Lena, sem tirar os olhos de Luciano.

Júlio voltou o rosto e pôs-se a olhar em frente. Luciano continuava imóvel, de pálpebras caídas. Lena estendeu o braço e Luciano viu-lhe o dedo esticado aproximar-se, a medo, do carreiro. Ergueu a cabeça:

Que queres tu daqui? Vai-te embora.

Nada... eu não quero nada respondeu Lena endireitando o busto, sem se afastar. Estava a ver as formigas...

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A HARPA

Luciano levantou-se:

Já te disse que te fosses embora.

Lena ergueu para ele os grandes olhos azuis. Depois baixou a cabeça; o enorme laço preto pendeu-lhe para a testa de mistura com os caracóis. E, muito vagarosamente, de braços caídos, afastou-se, a caminho de casa.

Apesar de todos os motivos invocados e até, por fim, da recusa formal, a avó não cedeu e Luciano teve que acompanhá-la. Ia desesperado. Não gostava nada de fazer visitas e, agora, a avó levava-o, à viva força, àquela casa onde nunca entrara, a visitar uma gente que, embora somente conhecesse de vista, tão antipática lhe era! Durante o trajecto, tomou uma resolução: apenas daria as boas-tardes, nem mais uma palavra.

Depois do largo, avistou a casa, um antigo e enorme prédio, meio em ruínas. Erguia-se, desamparado, no meio dum quintal cujo muro havia derruído com o tempo. As paredes sujas e carcomidas, de janelas sempre cerradas, vidros poeirentos" aumentavam-Ihe ainda mais o sombrio ar de abandono. Desprendia-se de todo o edifício um tão misterioso e recolhido silêncio que, na ideia de Luciano, lá por dentro, através de tenebrosos corredores, Lena, vestida de luto, errava, aterrada, constantemente perseguida pelo severo olhar dos pais.

Ao chegar junto da porta, enquanto a avó erguia o batente, pensou fugir. Voltou-se, abrindo os braços

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MANUEL DA FONSECA

mas uns dedos secos poisaram-lhe sobre os ombros; a voz sibilada da avó fê-lo estacar:

Luciano!

A porta descerrou-se, gemendo. E Luciano entrou pela primeira vez na casa de Lena.

Pelo corredor escuro, onde os passos se sumiam, abafados, uma velha de rosto meio oculto no lenço negro levou-os para a sala.

you avisar os senhores.

E desapareceu, sem ruído, toda curvada.

Luciano sentou-se, inquieto, como se tivesse passado subitamente do dia para a noite. Quando se habituou à pouca luz, ergueu-se, olhando em volta, tomado de surpresa.

Nesse instante, os pais de Lena entravam, seguidos pela filha. Luciano disse:

Boa tarde.

Baixando a cabeça, tornou a sentar-se.

Enquanto falaram dele não mudou de posição. Só muito depois, quando a conversa incidia sobre outro assunto a avó pedia desculpa de há tanto tempo ali não vir pensou que era altura de olhar de novo para as paredes e para o chão. Pensou também que devia fazê-lo com cautela, de modo que ninguém desse por isso. Mas, por mais cuidados que usasse, tinha a certeza de que Lena havia de estar a olhar para ele.

Começou a erguer o rosto vagarosamente.

Uma profusão de objectos que nunca vira enchiam as paredes. Zagaias cruzavam-se por todos os lados, aqui e além, lanças compridas e ferrugentas, escudos

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A HARPA

redondos, pretos, com embutidos vermelhos, penachos amarelos, armados sobre tiras de coiro, catanas recurvas, mocas. No chão, figuras agressivas, talhadas em troncos negros, com olhos de vidro, oblíquos. A própria mesa, escura, de pés retorcidos, gordos, era pesada, soturna. E, na obscuridade, evolava-se de tudo aquilo uma distante e terrível ameaça.

Obcecado pelo estranho encantamento, Luciano, a pouco e pouco, caiu numa grande lassidão; olhava para tudo como se sonhasse. Cada vez mais ia avolumando a vaga sensação de qualquer coisa sem princípio nem fim dir-se-ia que o tempo tinha parado para sempre naquela casa. E, na penumbra, como que vinda de longe, a voz do pai de Lena chegava-lhe agora aos ouvidos, muito branda e muito nítida:

Sinto ainda, como se fosse neste momento, a morte de todos eles... E tudo tão de repente; meus irmãos, meus pais, os meus filhos, os meus pobres filhos... Todos se foram, todos...

Eduardo pedia suavemente a mulher não te mortifiques...

Mas, Maria, tu sabes bem que penso neles a toda a hora.

Logo se tornou quase incompreensível a Luciano tudo quanto diziam; apenas adivinhava, no murmúrio arrastado das palavras, um lento, longo diálogo de recordações. A custo, volveu a cabeça, procurando Lena pela sala. Ela estava sentada entre o pai e a mãe, e o seu rosto claro sobressaía, num sorriso.

Luciano serenou. Mas, de súbito, viu quanto eram

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MANUEL DA FONSECA

velhos os pais de Lena. A mulher estava cheia de rugas, o homim tinha os cabelos brancos.

Sim, sim... dizia a avó naquele instante que grande saudade eu tenho desse tempo...

Como tudo passa... disse o homem.

Tudo... murmurou a mãe de Lena.

Pelo canto dos olhos, Luciano espreitou a escultura que lhe ficava mais perto. Foi voltando o rosto até a olhar de frente. Por muito tempo, ficou preso do homúnculo de madeira negra, rugosa. Custou-lhe desviar a vista. E, quando o conseguiu, ainda trazia nos olhos aquela expressão implacável, a um tempo feroz e repousada.

Viu o pai de Lena levantar-se, ir a um canto e arrastar, com grande esforço, uma enorme caixa preta que roçava pelo chão com um ruído gemebundo.

É melhor não, Eduardo... ciciou a mulher.

Não faz mal. Apenas um pouco, não faz mal respondeu ele. E, voltando-se: Lembra-se?

Luciano nem ouviu a resposta da avó. Inquieto, não despegava os olhos da alta caixa negra. O pai de Lena abraçava-a com tanta tristeza como se dentro estivesse o cadáver de um ente querido. Abriu-a cuidadosamente, puxou para fora um objecto que Luciano desconhecia e, sentando-se, inclinou-o para o peito.

O homem concentrou-se, de olhos semicerrados. Estendeu a mão, e feriu uma das cordas metálicas alinhadas de alto a baixo. Um som claro repercutiu na sala. Logo outro se seguiu, espaçado. Outro soou. E, lenta, uma harmonia alongou-se, sonora e grave. Era

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A HARPA

qualquer coisa de muito triste e dolorosa para o pai de Lena; a própria lentidão dos gestos o tornava mais desolado. Parecia que nada poderia impedir tanta amargura. Nada.

Estava de cabeça caída, os dedos iam desfiando o desgosto, um frio e duro desgosto quando a outra mão correu, rápida, sobre as cordas. Fez-se um sussurro suave, de notas límpidas, uma fugaz alegria que, mais altos, os tons graves apagaram. Mas, de novo, o sussurro voltou, tornou-se nítido. E correu, livre, como uma alegria que transborda e se solta. A água de um rio deslizando ao sol, sobre pedras brancas. Uma dança de raparigas, risos, lábios vermelhos. O homem mexia nervosamente os dedos, sacudia a cabeça, quando a amarga tristeza voltou, ressoando passo a passo. Mas já com ela se misturava o alegre sussurro. E morria: apenas a saudade ecoava. Uma profunda saudade. Então, o pai de Lena, desnorteado, começou a misturar tudo: alegria e dor, desolação e esperança. Tirava das cordas tudo quanto lhe afogava o coração. Ansiado e desorientado, enrodilhava os dedos. E ia ficando só a dor e a alegria. A dor e a alegria em todas as cordas. Um enovelado de sons cada vez mais alto, como se alguém chorasse. Um choro de dor e de alegria que repentinamente se calou, com um grande soluço morrendo pela sala.

Luciano estava de pé, mãos soerguidas. No rosto afogueado, os olhos negros, parados, profundos como num sonho, fitavam o pai de Lena.

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MANUEL DA FONSECA

A HARPA

No outro dia, ao sair da escola, Luciano largou a correr e só paipu em casa. Foi ao quarto, abriu a arca, e tirou lá do fundo um velho punhal de cabo recurvo, negro com embutidos doirados. Apertou-o carinhosamente entre as mãos, como se acariciasse um tesoiro. Era a sua maior fortuna.

Fora do avô o punhal, e Luciano apenas consentira em mostrá-lo a raros amigos. Olhou-o de novo com ternura. Rápido, meteu-o debaixo do bibe, entalado entre o calção e a camisa, e desandou para o largo.

Ao vê-lo chegar, Júlio desafiou-o:

Queres jogar à malha?

Não.

Então, jogamos ao berlinde.

Também não.

Júlio fitou-o, admirado. Só então reparou que o amigo olhava para a casa de Lena. Foi sentar-se na beira do passeio. Daí observava Luciano e parte da estrada.

Ao sentir-se espiado, Luciano atravessou o largo e sentou-se no passeio fronteiro. Mas ergueu-se logo. Lena acabava de sair de casa e abria os braços, correndo, estrada abaixo.

Cada um do seu lado, os dois garotos viram-na entrar no largo, passar, e foram voltando a cabeça até a deixarem de ver. Ambos pensaram que ela devia estar, agora, a bater à porta da casa da madrinha. A espaços olhavam-se disfarçadamente. Daí a pouco, Lena voltou, caminhando a passo.

Luciano levantou-se:

Olá, Lena!

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A rapariga estacou, surpreendida. Compôs o laço negro, e aproximou-se, muito séria:

Olá, Luciano.

No outro lado, junto das faias, Júlio ergueu-se. com um olhar magoado, observou-os. Depois, afastou-se e saiu do largo.

Luciano olhava para o chão:

Queria pedir-te uma coisa...

Que é?

Tu fazes o que eu te pedir?

Faço.

Luciano fitou Lena nos olhos. Pôs-lhe a mão no ombro:

Então, vem daí comigo.

Avançaram pela estrada. Em frente da velha casa, Luciano meteu a mão debaixo do bibe e tirou o punhal:

Toma, Lena. É para o teu pai. Ele pode pô-lo lá nas paredes, junto dos outros.

Lena hesitava.

Leva-lho! ordenou Luciano. Eu já gosto do teu pai.

A rapariga obedeceu. Ia a chegar junto da porta, quando Luciano a chamou:

Também quero dizer-te uma coisa...

Tinha o rosto vermelho. Mas, ganhando coragem, ergueu a cabeça e disse:

Gosto muito de ti.

E Lena, com o punhal sobre as palmas das mãos abertas, sorriu.

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O fogo e as cinzas
Mestre Poupa bombeiro, André Juliano e eu formávamos uma trindade falhada. Positivamente, três velhos falhados e tontos.

Há momentos em que vejo isto com uma grande clareza. Mas de nada me vale. Os factos miúdos que me estragaram a vida pegam de novo em mim e arrastam-me. Desviam-me cada vez mais de toda a gente e isolam-me numa apatia da qual não tenho forças para escapar-me. Serei acaso um cobarde? Talvez. Ao certo apenas sei que, volta não volta, Antoninha das Dores me vem à memória com uma nitidez atroz. Aparece-me, não recatada e séria como ela sempre foi, mas em fralda de camisa. Sim, senhor; no meio da rua, em fralda de camisa. E deitada nos braços do grandalhão do Chico Biló!

Foi isto que me estragou trinta anos de vida.

Já a mágoa que consumia Mestre Poupa não era de

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MANUEL DA FONSECA

ordem amorosa. Lamentava a toda a hora que tivessem acabado os incêndios grandes e devastadores, como havia antigamente. Vamos lá a perceber tal coisa! Poderá acaso ser este o drama de um chefe de bombeiros? Pois era.

Quanto a André Juliano, as razões do seu desgosto toda a vila as sabe. com cinquenta anos, e o pai, homem rico, ainda lhe não consentia mandasse no que viria a ser seu, e apenas lhe dava vinte e cinco tostões por dia.

Vinte e cinco tostões!

Enfim, éramos os três inseparáveis, cada um roendo o seu osso.

Hoje, praticamente, só resto eu. Mestre Poupa morreu num incêndio um fogo dos bons, como ele gostava. E André Juliano jaz, à espera da morte, no fundo de uma cadeia.

No entanto, estão tão presentes na minha memória que a todo o momento me parece natural ir encontrá-los ao voltar de uma esquina. E posso, sem o mínimo esforço, engendrar uma conversa. Sei e oiço as suas respostas às minhas palavras, vejo as maneiras peculiares de mexerem os lábios, de sorrirem com tristeza, ou de ficarem taciturnos por largos espaços. De tal modo ainda fazem parte da minha vida que, todos os dias, mal acabo de almoçar, saio de casa direitinho ao café onde costumávamos encontrar-nos.

Hoje aconteceu atardar-me, interessado na leitura do jornal. Quando dei por mim e olhei para o relógio ergui-me num salto, e lá vim eu cheio de pressa pelas

O FOGO E AS CINZAS

ruas fora. Cheio de pressa, como se eles estivessem à minha espera...

Mas, como sempre sucede, ao entrar o entusiasmo arrefeceu e fui sentar-me, desconfiado, na mesa do canto. Como sempre, pus-me a pensar por que seriam aquelas pressas. Para que faço eu isto todos os dias?

Vai o cafezinho do costume, Sr. Portela? Surpreendido, encaro o criado. E grito-lhe sem

querer, com a voz transtornada:

Ha?!... mas logo, as palavras me ocorrem, submissas. Pois... o cafezinho do costume...

Passava aqui todas as tardes com André Juliano e Mestre Poupa bombeiro. Agora, sozinho, mal o Maneta põe sobre o mármore sujo a chávena fumegante e se afasta, eu começo com as manigâncias habituais para matar o tempo. Demoro o café, adoçando-o com pitadas, colher a colher, bebo-o a pequenos goles. Isto dá-me à volta de quinze minutos. De soslaio, lanço uma mirada pelos grupos que falam de mesa para mesa. Passeio o olhar pelo grande espelho suspenso da parede, pelas moscas que volteiam em redor dos nojentos "cemitérios" caídos do tecto, em espiral. "Belo", digo de mim para mim, "já lá se foi um quarto de hora..."

Segue-se o cigarro, muito embora o médico me aconselhe a não fumar. Quero lá saber! Aí uns dois minutos lucro eu enquanto meto as mãos pelos bolsos à procura das mortalhas, da onça e do isqueiro.

Coloco tudo isto em cima da mesa segundo uma

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ordem: o livro das mortalhas, à esquerda; ao meio, a onça; e o isquejro, à direita. Despego a mortalha, dobro-lhe uma estreita tira no sentido longitudinal e rasgo-a, pois gosto do cigarro delgado. Abro a onça com uns vagares ronceiros e calculo sobre a palma da mão a quantidade de tabaco precisa; cato entre os fios as impurezas, e só então o começo a enrolar. Guardo as mortalhas e a onça, pego no isqueiro e raspo lume. Outros quinze minutos!

Estas e outras coisas acarretam-me a fama de ter o miolo avariado. Eu sei. Até há quem se ponha a seguir as minhas manobras e sorria.

Que querem? Estou aqui, paguei o meu café, faço o que me apetece!

E, de tronco direito, sopro para longe as primeiras fumaças. Mas ninguém se importa com estes ares de desafio. Aos poucos, a cabeça vai-me tombando entre os ombros vergados pela vida. Os meus olhos, nevoentos, voltam-se para o passado.

O passado. Do fundo do tempo, aparecem pedaços de recordações. Demoram-se um instante, doem-me suavemente, e somem-se, num tropel, da memória cansada. Caio numa complicada malha de coisas vagas e sem nexo. Para ali fico, dobrado num sonolento quebranto. De súbito, estremeço: lá vem a Antoninha das Dores seminua! Lá vem ela nos braços do Chico Biló fardado de bombeiro!

Apavorado, ergo a cabeça e olho em roda. Não, ninguém pode descobrir o que estou pensando^ E, impune, revejo gulosamente a imagem da minha noiva

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em fralda de camisa. As fontes vão-se-me perlando de um suor gelado; amarfanha-me a raiva de não poder voltar atrás, mudar o tempo, e recomeçar a vida. Se fosse possível! Que me importava a mim o que aconteceu!... Poltrão! Porque não casei eu com a Antoninha das Dores?

Enrolo novo cigarro. Mas, agora, com a pressa, caem-me pedaços de tabaco dos dedos trémulos. Firo lume e sorvo uma ansiada fumaça. O espelho, em frente, mostra-me o meu carão esverdinhado de velho. Vejo-me, de queixo caído, a apertar as mãos uma na outra até os ossos dos dedos estalarem. Poltrão. É isso: um cobarde. Sempre o fui, e só a presença dos meus amigos me ajudava a suportar melhor a imagem tão odiada e tão querida de Antoninha das Dores.

Eu chegava sempre primeiro ao café. Depois, Mestre Poupa. Mal encetávamos a conversa, víamos, através do vidro da montra, o corpo enorme de André Juliano sair de casa e iniciar lentamente a custosa subida. com alvoroço, eu dizia:

Lá vem o André!

Nunca passou uma tarde sem que o dissesse. Às vezes, pensava: "Amanhã, não digo aquilo. Pois se Mestre Poupa o vê ao mesmo tempo que eu..." Ora bem; ao outro dia, a porta abria-se, o corpo pachorrento saía para a rua, e era fatal a minha inquieta alegria:

Lá vem o André!...

Agora mesmo ia jurar que o estou a ver despegar-se com moleza dos umbrais. Mas, em realidade,

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apenas vejo para lá do vidro, ao fundo da rua, a casa destruída pelo fogo. Tudo tal qual como no fim do incêndio: a parede negra, sem portas nem janelas.

Foi aí que Mestre Poupa bombeiro morreu, lutando contra as chamas. André Juliano, esse ainda está vivo; mas em Lisboa, atrás das grades da Penitenciária.

Dou voltas na cadeira, torço-me, enterro o chapéu pela cabeça abaixo. Tudo em vão. Antoninha das Dores continua na minha frente, deitada nos braços do Chico Biló. Saem-lhe da camisa as pernas, o ventre e um pedaço do seio; de volta, o povo arregala os olhos. Vejo-os a todos, rosto a rosto, com a facilidade de quem está olhando vagarosamente uma fotografia. Como os odeio!

Depressa, Maneta, outro café!

Espero, esfregando as mãos. E, ao esvaziá-lo, de queixo erguido, vejo no espelho o meu carão de tal forma espantado que "me parece ter acabado de beber veneno. Coberto de suor, lá you aos poucos serenando.

André Juliano, meu amigo de infância, como nós mudámos... Sim, senhor, como mudámos. Na escola éramos temidos. Passávamos as tardes de castigo e, um dia, armámos uma desordem medonha. Partimos carteiras, o quadro grande, e saímos cheios de trofeus: pedaços de bibes rasgados, os peitos das camisolas salpicados de medalhas de tinta. Fomos expulsos. Acabámos por aprender as letras, os números e uma fantástica História de Portugal com o bebedola do Jaime Ursulino, que nos ia matando à varada e a quem,

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por fim, esmurrámos de sociedade. Nossos pais consideraram maduramente no caso, e concluíram que estávamos quites com a cultura. Foi um alívio.

O largo, e mais tarde os bailes desordeiros do campo e a noite sem lei das ruas da vila passaram a ser o nosso mundo. Um mundo cheio de sustos, mas mais leal que as aritméticas do Ursulino e as falinhas choronas dos moços da escola.

Veio um dia, e vimo-nos obrigados a mudar de rumo. Quisemos aceitar o passo, segundo as regras, e começaram as topadas, escorregadelas, desvios. No dia-a-dia enviesado e traiçoeiro da vila, onde muitos dos choramingas da escola ganhavam dinheiro grosso e honestas reputações, nós caímos de desilusão em desilusão.

Não sei como isto foi. Mas, anos depois, vencido, eu emagrecera; secara, nodoso e cheio de rugas, como o tronco carcomido de um sobreiro. Pelo contrário, derrotado na luta inglória com o forreta do pai, André Juliano engordou, engordou muito. Apesar disso, quando às vezes o olhava, com aquele olhar distraído mas que, de súbito, parece atingir a verdade que há nos homens e nas coisas, eu julgava estar a ver-me diante de um espelho côncavo. Sim, senhor, tal qual como eu: todas as raivas, todos os ciúmes, as invejas, os fracassos mas inchado e balofo.

Nestes momentos, o ódio contraía-me as feições, e largava um palavrão. Fitava-o com o olhar endurecido:

Estamos tramados, André, estamos tramados!

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"

Não consegui nunca saber se ele adivinhava os meus pensamentos; o certo é que me respondia de beiço caído, comd"num eco:

Tramados, amigo, tramados...

Olho o relógio. Quatro horas. Doidas, as moscas tecem um emaranhado de círculos em volta dos "cemitérios". Ponho-me a observá-las, e faço cálculos sobre qual dos papéis cobertos de melaço peganhento atrairá a primeira. Por fim, cansado, caio numa modorra. Um murmúrio distante vem devagar, engrossa, até soar nitidamente dentro de mim. É a voz autoritária de Mestre Poupa bombeiro. Vejo-o e oiço-o como se realmente ele estivesse à minha mesa.

Fogo?! exclama a voz. E, logo, desiludida: Já não há incêndios...

Era o seu assunto preferido. Mestre Poupa tinha artes de ir desviando qualquer conversa até aparecer com naturalidade o caso de um fogo.

Hoje em dia, já não há incêndios comentava ele. Vejam vocês: toca o sino da igreja, a autobomba desce do quartel, puxa-se a mangueira e, pronto!, está o fogo apagado. Fogo?... Qual fogo, se nem deixamos atear nada!

Lá isso é verdade concordava eu, inquieto. Vinha-me à ideia Antoninha das Dores e, muito embora preferisse calar-me, era certo acrescentar: É isso mesmo... Já não há incêndios...

Como que saindo da névoa do fumo de tabaco que enche o café, André Juliano surge do outro lado da mesa. Enrola um cigarro entre os dedos enormes. Os

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*

olhos, caídos, desaparecem-lhe sob a gordura das pálpebras. Abana a cabeça, suspirando:

Já não há nada... Até dá doença uma vida destas!...

Ora lá disse você uma verdade. Isto, hoje, até dá doença.

Porque seria que eu me fiz amigo de Mestre Poupa? Sempre que me interrogo a este respeito, ocorrem-me várias razões capazes de justificar o facto. Mas a todas abandono e acabo por concluir que foi obra do acaso.

Por esse tempo, a vila andava acesa em discussões originadas pela acção dos bombeiros voluntários. "As coisas não podem continuar assim!", dizia-se alto e em bom som. As "coisas" era isto: fogo que houvesse, os prejuízos maiores não os faziam as chamas mas os bombeiros improvisados, na ânsia de tudo molharem e de tudo salvarem. Abriam caminho à machadada, arrombavam tabiques, partiam mobílias e loiças, sem dó nem piedade. Estragos do lume apenas uma que outra chaminé, ou um carunchoso soalho.

Enfim, chegara a tais termos que um dia, ao declarar-se incêndio na chaminé do Elias Tarro, como alguém corresse a puxar o badalo da igreja velha, o homem postou-se entre os umbrais da porta, de espingarda em riste:

Quem entrar, morre!

E impediu que os bombeiros lhe assaltassem a casa, enquanto, com baldes de água, pelo quintal, a família apagava as labaredas.

Choveram ameaças e insultos de parte a parte. À

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má cara, os bombeiros abandonaram a presa. E, não era passada uma semana quando o Elias Tarro apareceu com a caf>eça cheia de pensos e ataduras. Fora o Chico Biló que o esmurrara, após breve discussão.

Ao pagar a conta na farmácia do Durães onde andara a tratar-se, Elias Tarro deu graças pelo preço em que lhe ficara o incêndio.

Vá lá... Antes isto que os malandros me terem invadido a casa.

Mas a vila, aterrada, mudou a direcção dos bombeiros voluntários. E, por cartas, ajustou com um técnico de Lisboa a chefia da mal afamada corporação. Foi Mestre Poupa quem apareceu.

Dias depois, já eu passava horas a ouvi-lo. Havia sido um incêndio que me arruinara a vida e, para ele, os incêndios, que o tinham enchido de glória, eram agora a causa da sua amargura. O material moderno, as muitas bocas de água espalhadas pelas ruas e a técnica moderna tornavam, conforme nos dizia, a extinção fácil e rápida, o que era impossível antigamente. Só queria que vocês assistissem ao incêndio da Rua da Madalena, lá em Lisboa. Isso é que foi um fogo bom! recordava ele, animado e feliz. Morreram dezenas de pessoas. As mulheres atiravam-se lá de cima com as crianças ao colo e esborrachavam-se contra a calçada. E a gente, entre as chamas, todos chamuscados! As escadas partiam-se, não havia água: vá de machadadas, vá de baldes de areia. Vi colegas com a farda a arder, salvei crianças, mulheres, e caí ferido e sem forças. Fui parar ao hospital com uma

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clavícula fracturada e um braço queimado. Mas apagámos aquilo, caramba! E eu ganhei uma medalha.

Aqui, Mestre Poupa começava a entristecer. Contava ainda outros casos: morria gente, ele salvava, apagava e era, de novo, condecorado tinha o peito cheio de medalhas. Abria um desgostoso silêncio, um largo intervalo de anos.

E agora? Agora já não sirvo para nada; acabaram-se os bons fogos!...

O cigarro de André Juliano apagava-se sem que ele desse por isso. Estou certo de que nem ouvira uma única palavra de Mestre Poupa bombeiro, muito embora se lhe escapasse a costumada frase agoniada e lenta:

Estamos tramados...

Enrugava a venta solitária no meio da face enorme; o beiço decaía-lhe para a papada e, sem esperar que o assunto mudasse, começava:

Lá andei... lá andei toda a manhã às voltas com ele. Já nem sei que faça à minha vida.

com a respiração difícil que lhe engorgitava as carnes e punha nos olhos o lucilar do terror, a voz escorria-lhe, pastosa:

Está cada vez pior, o meu pai...

". O pai. Um miserável dum avarento que, ultimamente, nem todos os dias dava ao filho os tristes vinte e cinco tostões do costume! André Juliano nem se podia mexer para lado nenhum. De casa para o café, do café para casa, e mais nada. Aquela penúria tolhia-o. Muitas modas haviam passado depois que o Jerónimo Alfaiate lhe talhara, em má fazenda, o único fato que

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tinha. Estava a cair aos pedaços, e ele supunha tapar aquela miséria trazendo sobre os ombros, mesmo no Verão, a velha samarra. A princípio, admirei-me. Um sol de rachar, e André Juliano atravessando a rua num lago de suor, sob a samarra.

Sei lá desculpou-se ele, de olhos baixos. Isto, às vezes, até pode chover...

Claro que era eu quem lhe pagava os cafés e, ainda por cima, emprestava dinheiro. Eu, este reles amanuense reformado, a fazer empréstimos ao filho de um homem rico! Pensava muito nisto. Parecendo que não, dez tostões hoje, cinco mil réis amanhã, ao fim de anos perfazem uma soma medonha. Segundo as minhas contas, ia já muito além de quatro mil escudos. Quase cinco contos! Chegava a enfurecer-me:

A culpa é tua! gritava-lhe eu. Se soubesses impor-te, se soubesses encaminhar as coisas, já tinhas convencido o teu pai de que isso não pode continuar assim. É uma vergonha para nós todos. Principalmente para mim, que sou teu amigo, bolas!

André Juliano avermelhava de pânico:

Oh, homem, pois se não se passa um dia sem que eu batalhe com ele!... Esta manhã, até nos íamos pegando. Pôs-se a berrar, como de costume: "Tem tempo de gastar tudo quando eu morrer! Agora, enquanto eu for vivo, nem mais um tostão!"

Desolado, baixava os olhos para o mármore da mesa:

Quando morrer... Mas quando é que o raio do velho morre, não me dirão!

-*

O FOGO E AS CINZAS

Calávamo-nos. Por momentos, eu e estou certo que Mestre Poupa também desejávamos que André Juliano, quando voltasse a casa, fosse encontrar o pai na agonia. Mas, logo, para desviar este infeliz pensamento, ao mudar a conversa, eu caía noutro ainda mais penoso:

Pois é murmurava, olhando para Mestre Poupa. Os incêndios, agora, são um nada comparados com os de outrora.

E sentia-me descorar.

Vai fazer trinta anos que aquilo aconteceu. Uma tarde, a arrecadação da lenha, na casa de meu padrinho, começa a arder. No primeiro andar, apenas em camisa, sobre a cama, Antoninha das Dores dormia a sesta. A família esquece-a, e sai para a rua enquanto o sino da igreja toca a rebate. Os voluntários largam o trabalho, vão a casa, vestem a farda e põem, com grandes vagares, o capacete amarelo. Junta-se gente. A bomba, puxada a quatro homens, desce do alto da vila e começa a batalha.

Sob o olhar apavorado de meu padrinho, os bombeiros partem as janelas à machadada e atiram com os móveis para a rua.

Eu chego a correr no momento preciso em que o Chico Biló aparece à porta, transportando nos braços a minha noiva, que desmaiara ao súbito fragor dos vidros e dos caixilhos estilhaçados. A camisa subira-lhe para a barriga e estava nua sob o reluzente capacete, no meio dos destroços da mobília.

Todos se aproximaram para ver de perto.

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Eu fiquei hirto, vazio, de braços abertos, como um espantalho. E, ainda hoje, ainda agora, neste momento, me parece que lá estou a olhar os homens, as mulheres, os rapazes extasiados em volta das coxas, do ventre e do seio de Antoninha das Dores, minha noiva desgraçada.

A vila conheceu tudo isso de vista. Tudo.

Do fogo já ninguém fala, pois não resistiu a seis baldes de água. Mas do resto ainda se recordam e contam, mesmo que não venha a propósito. Eu sei.

E poderia eu ter casado com Antoninha, depois de todos a observarem de barriga ao léu? Ainda agora coro ao pensar que estive quase, quase a fazê-lo.

Também é certo que noutras ocasiões me amargura não ter casado. Mudo de instante a instante. Velho casmurro. Eu odiava e adorava o fogo, tal como Mestre Poupa. Só André Juliano se aborrecia.

Vocês não falam de outra coisa repontava. Estão sempre no mesmo.

Mas chegou um dia em que, à força de tanto ouvir, ganhou interesse. Como eu, ele fazia perguntas, perguntas inquietas, seguidas de longos silêncios. E, entre nós dois, Mestre Poupa bombeiro pontificava:

Um fogo começa sempre sem que ninguém repare. É esta a primeira questão a atender. Portanto, quando notam, já a coisa está séria...

E vinham exemplos: casas reduzidas a cinzas, gente morta, medalhas. E eu, amarelo, com a imagem da minha noiva diante dos olhos.

Certa tarde, André Juliano levantou inesperada-

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mente a mão quadrada e pediu, por tudo, que mudássemos de assunto. Foi uma admiração.

Oh, homem ofendeu-se Mestre Poupa , pois você já estava a gostar disto e, agora, sai-me com essa!

De olhos aflitos, André Juliano levantou o corpanzil redondo:

A gostar, eu?

E, como que desamparado, deixou-se cair sobre a cadeira.

Surpreso, entrei a interrogá-lo. André Juliano, de cabeça caída sobre a papada, apenas respondia:

Nada. Isto não foi nada.

Esteve dois dias sem aparecer; julgámo-lo doente. Só quando voltou soubemos que não. "Tive aí umas voltas a dar...", informou. E passámos ao nosso assunto de todas as horas.

Noites depois, acordei ao rebate do sino da igreja velha. Vesti-me rapidamente. "É fogo!", dizia eu. E, ansiado de amargo prazer, corri para a rua, como sempre faço quando há um incêndio. "Onde será, onde será?", indagava a todos que apareciam. E lá fomos correndo; eu na frente de todos, pois nessas ocasiões não sei que forças me renovam que me sinto jovem e ágil. Cortei pela Rua Direita, passei a praça e desci para o lado do clarão.

Era na casa de André Juliano!

As chamas saíam pelas janelas e pelo telhado fazendo dançar grandes sombras vermelhas sobre os outros prédios. As traves estalavam; ouviu-se um baque

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MANUEL DA FONSECA

surdo e, da esquina da empena, soltou-se um turbilhão de faíscas. f

Procurei Mestre Poupa entre os bombeiros. Lá estava ele. Parecia mais pequenino e mais escuro debaixo do enorme capacete amarelo.

Belo fogo! gritei-lhe eu.

Só então notei como ele tinha o rosto transtornado. Apitava sem energia, dava ordens gaguejadas, vinha-se desviando das chamas. Atravessei a rua para não ver aquele corpo miúdo e avelhentado a tremer de susto.

Mestre Poupa bombeiro tinha, afinal, medo do fogo!

Ao chegar ao passeio do outro lado, descobri, no meio de um grupo, a cara engelhada do Chico Biló. Olhámo-nos com o mesmo pensamento.

É, sim, senhor disse-me ele. Mestre Poupa está com medo do fogo... Coitado, já não serve para estas coisas.

Deu uns passos em frente apoiado nas muletas, pois que o reumatismo e a velhice não o deixam caminhar de outro modo. E, de cabeça alta, a olhar para as chamas, murmurou:

Ah, que se fosse no meu tempo, já estava tudo apagado!...

No tempo dele! Afastei-me com a imagem de Antoninha das Dores a dançar-me nos olhos marejados. De repente, vi a cara desmaiada de André Juliano. Como me acudisse uma certa ideia, pus-lhe a mão no ombro:

O FOGO E AS CINZAS

Deixa lá. Há incêndios que desgraçam um homem para sempre, mas há outros que salvam.

Nem me ouviu. Os queixos tremiam-lhe sobre a espessa papada, e cravava os olhos, atónitos, na casa incendiada. Recuei. Nesse momento, Mestre Poupa passou-me pela frente, pôs-se a olhar com severidade para aquele rosto apavorado. E, lentamente, exclamou:

Senhor André Juliano!...

Pela primeira vez me ocorreu que o fogo irrompia por todos os lados da casa. Atemorizado, gritei:

André!...

André Juliano dobrou-se e escondeu a face nas mãos papudas. Voltei-me:

Mestre Poupa, vá salvar o velho! Corra! Oiça, eu sei que, se você quiser, pode salvá-lo.

Mestre Poupa fitou-me percebendo que eu me referia a todos os actos heróicos que lhe ouvira narrar durante anos. Meteu-me dó a sua expressão. Vi-o dar meia volta, atravessar a rua e desaparecer entre o fumo, pela porta da casa.

Coragem, André!...

Ouvia-se o bater áspero dos jactos de água contra o lume. Sobre as escadas, os bombeiros lutavam como podiam; outros andavam lá por dentro. A espaços, apareciam silhuetas escuras atrás das janelas. Eu nunca tinha visto um incêndio assim.

Houve um afluir de gente; três bombeiros saíam da porta transportando uma velha e estreita cama de ferro. A roupa ardera quase completamente e, deitado ao comprido, via-se o corpo calcinado do pai de André Juliano.

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MANUEL DA FONSECA

A custo, aproximei-me.

O velho tinha os pulsos e as pernas amarrados aos ferros. Estaví hediondo. E já eu, todo curvado, me preparava para afastar dali, quando dois outros bombeiros apareceram. Traziam, agora, o corpo sem vida de Mestre Poupa. Entre os dedos enclavinhados de uma das mãos viam-se ainda pedaços de corda que faltavam no leito.

Andei o resto da noite de rua em rua, como que embriagado.

Hoje, já me passou mais a impressão que tudo isso me causou. Somente já não consigo ir ver nenhum incêndio, por mais que a vontade me puxe.

Não faz mal. Seja onde for, posso rever a minha desgraça.

Sento-me em qualquer parte em casa ou aqui, no café bebo a minha xícara, faço um cigarro. Logo começo a apertar as mãos até os ossos estalarem. E Antoninha das Dores vem. Vem com o corpo moreno e fresco de jovem, mal coberto pela brancura da camisa. E assim fica horas diante dos meus olhos rasos de água.

Ultimamente, já não é Chico Biló quem a traz nos braços. É Mestre Poupa bombeiro. A seu lado vem André Juliano, meu amigo de infância.

E é tudo isto o que eu levo da vida!...

Noite de Natal

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Os três soldados entraram de roldão, gritando. A rapariga pulou na cadeira. Estava quase a cair de sono. Tinha os olhos fechados e a cabeça pendia-lhe sobre a criança adormecida, enrolada no xaile esburacado. De sumida, a luz do candeeiro a petróleo deixava a noite afogar a taberna, quando eles entraram e foram, cambaleando, esbarrar contra o balcão.

Venha a bela da vinhaça!

Abriu os olhos. Por cima do balcão, três cabeças de lábios descerrados, olhos nevoentos de vinho, debruçavam-se sobre ela. Instintivamente, estendeu a mão e espevitou a luz; as sombras recuaram um pouco para os cantos. E a criança, sobressaltada, rompeu num grande choro.

com os olhos orlados de rugas, ela observou de novo o rosto dos soldados.

Que maneira de entrar, raios os partam!

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MANUEL DA FONSECA

Queremos vinho e o mais são histórias. Passou os dedos pelos olhos que lhe ardiam de

sono. Que horas seriam? Bocejou.

Três copos de tinto?

Não disse o mais alto dos soldados. Uma garrafa de litro!

Levantou-se. Foi pôr o filho, que não deixava de chorar, sobre a pele de carneiro, dentro de um caixote assente em duas tábuas com a forma de meias-luas. Deu-lhe um safanão, e o caixote ficou a baloiçar com a criança chorando de braços esticados ao lado da cabeça.

Ao soerguer o busto franzino, a rapariga sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.

Acorda, Maria, acorda, acorda, Mariazinha...

cantavam dois soldados que se haviam afastado do balcão. Batiam as mãos grossas num estralejar cadenciado e saltavam, atirando com os pés contra o chão de terra negra da taberna.

Vejam se param com isso, se não ponho-os na rua. Ouviram? Parem lá com isso!

Um dos soldados abandonou a dança. Tirou o boné e veio colocá-lo sobre a tábua escura e peganhenta do balcão:

Não te zangues, Maria.

Ponho-os fora, já disse repetiu a rapariga, com voz fraca. Vocês bebem e saem, que eu tenho que fechar a venda.

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NOITE DE NATAL

Deixa-te disso. Tu precisas do nosso dinheiro, e a gente paga como os outros.

A pequena estatura do soldado desaparecia dentro do enorme capote que lhe chegava até aos pés. A gola, erguida, passava-lhe ao lado das orelhas, muito despegadas e vermelhas de frio. Tinha o crânio todo rapado, de um branco farinhento, e no rosto magro, moreno, os olhos pequeninos sorriam inquietos:

Hoje é noite de festa, não te zangues. A gente tem andando para aí a beber e a cantar, caramba!... Eh, camaradas, vai outra?

Agarrando-se ao rebordo do balcão, o soldado afastou o tronco. De súbito, com o olhar vago, como se todos os pensamentos o tivessem levado para muito longe, cantou vagarosamente:

Quem são os três cavaleiros que fazem sombra no mar?...

Pára com isso gritou a rapariga. Vocês já estão bêbados; nem devia tê-los deixado entrar. Bebam e saiam, que eu não quero demoras, já disse!

O sorriso voltou aos olhos do soldado:

Deixa lá. A gente está um bocado tocados, é verdade. Mas quem bebe num dia destes não é o que se pode chamar um bêbado.

Encolheu os ombros; a cabeça rapada quase se sumiu dentro do capote:

De resto, por mais que a gente queira, como há-de um soldado fazer a festa de outro modo?

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MANUEL DA FONSECA

Maria curvou-se para a criança que chorava ainda, e deu outro safanão ao caixote. Ergueu-se, compondo o cabelo que the caíra sobre os olhos. A curva das costas, muito magras, aumentava ainda mais o seu ar de submissão e de cansaço:

Vocês, aqui, não cantam. Vocês podem muito bem beber e falar sem fazer tanto barulho; isto já não são horas para cantorias.

O soldado mais alto dobrou o tronco, atirando uma palmada ao balcão:

Vinhaça! gritou, estonteado. Basta de conversa: é a tua vez, Chico Valinhas. Estás a fazer-te esquecido, mas não pega. É ou não a vez dele, compadre Charneco?

Charneco, que até ali se conservara taciturno, de cabeça enterrada entre os ombros, olhos fitos no caixote onde a criança chorava, voltou-se. Parecia despertar de um pensamento doloroso. Agarrou o soldado alto pelo braço:

Eu devia ter-lhe dado logo disse, com voz vagarosa e tensa. Ele estava mesmo a pedir um murro que o afocinhasse no chão. Mas tu agarraste-me, Luís Palmito... Tu não me devias ter agarrado. É a última vez que fazes isso.

Do outro lado, Chico Valinhas repontava:

Eu a fazer-me esquecido? Eu? Para que imaginas tu que eu quero o dinheiro, Luís Palmito?

Levantou a aba do enorme capote, tirou do bolso das calças umas tantas moedas, contou-as, uma por uma, e bateu com elas sobre o balcão:

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NOITE DE NATAL

Dezasseis mil e duzentos! Eh, Maria, olha: tudo para vinho! Mas, se tu quisesses era para outra coisa... Pronto, não te aborreças; temos tempo para falar no caso. Dá cá uma garrafa de litro. E três copos.

Os soldados sentaram-se junto da mesa gretada e suja que ocupava quase inteiramente, um dos lados da taberna. Maria veio encher os copos, e poisou a garrafa. Voltou a aproximar-se do caixote. Lamuriando baixinho uma cantilena sem palavras, tentava calar o

filho.

Palmito, de cabeça deitada para trás, esvaziou o copo de um trago. Estremeceu, voltou a enchê-lo. Perto, o rosto largo e ossudo do Charneco adoçava-se como se uma névoa o cobrisse. Fitava vagamente:

Nem sabes o desgosto que me deste com aquilo. Tu nunca mais me agarras, Luís Palmito. Cada um é livre para fazer o que lhe der na real gana. É assim mesmo. Quando eu quiser andar à porrada, nem tu nem ninguém me pode impedir.

Pegou no copo, sempre com o mesmo olhar velado:

Cada um é livre, faz o que quer... Envolvida nos trapos, a criança chorava, num torn

esganiçado, cansada. A rapariga abanava o caixote compassadamente.

O teu moço não se cala, Maria disse Valinhas, de lábios repuxados num largo sorriso. Parece um chibo quando lhe põem o barbilho. Dá de mamar ao moço, rapariga!

Sei o que queres... mas não vês respondeu Maria, sem o olhar, curvada para o filho. Nem

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MANUEL DA FONSECA

ele tem vontade de mamar; anda é doente da barriga.

Já lhe fiz uma data de coisas, e não lhe passa. Se

& calhar, tenho que ir com ele ao médico. Não o dou

calado; chora toda a noite e todo o dia. Mas vocês, agora, é que tiveram a culpa. Ele estava a dormir sossegadamente, e vocês acordaram-no com aquele despropósito.

Qual barriga! Tem é fome. Dá-lhe de mamar, Maria. Tira isso para fora se queres vê-lo calado.

E Valinhas riu-se, com o olhar rebrilhante e inquieto:

Até eu me calava, caramba!

Lá fora ouviam-se ranchos que passavam cantando. Eram as loas ao Deus Menino, na noite de Natal. O povo cantava pelas vielas, pelas ruas, pelos largos. Depois, calava-se, à espera da esmola, sob o céu frio, onde as estrelas tremiam, distantes. Os grupos de soldados conheciam-se mesmo sem os ver; bastava ouvi-los. Cantavam coisas diferentes. Esqueciam o Deus Menino e a sua voz falava de saudade. Saudade de outra vida que levavam lá na terra, saudade da família. Nesse momento, uma toada entrava na taberna, chorava de queixa em qualquer rua, vinha crescendo, unida:

Oh, Beja, terrível Beja, terra da minha desgraça...

Em volta da mesa, os soldados emudeceram. A mão de Luís Palmito, que levava o copo à boca, parou, desceu, bateu no tampo negro.

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NOITE DE NATAL

Eram três horas da tarde, quando cá assentei praça...

Luís Palmito ergueu-se:

Camaradas!...

Olhou para os dois soldados. Mas estes tinham as cabeças tombadas, só se lhes via o boné. Voltou-se:

Maria! Eu para aqui a rir e, a esta hora, a minha velhota a chorar, lá no monte!...

Encostado aos cotovelos, Charneco inclinara o tronco sobre a mesa. O copo vazio sumia-se-lhe entre os dedos grossos:

Eu era livre, fazia o que me dava na gana... E agora? Agora, lá no quartel, todos mandam, um homem é como um trapo. Que sou eu desde que vim para Beja? Nada. Que é que eu tenho que ver com a tropa, Palmito? Fui eu que quis vir? Não, senhor. Eu nunca quis vir, eu nunca quis esta vida. Eu era ceifeiro, quando era na ceifa, cavador quando era preciso. Ganhava a vida. Estão a ouvir? Eu ganhava a minha vida! Pegava numa junta de bois e abria uma folha que ninguém tinha nada a dizer. Regos como linhas, de ponta a ponta! Eu cantava aos bois e eles, mansos, a passo quieto, abrindo o rego. Dava gosto.

A criança adormecera, cansada de chorar. Maria aconchegou melhor o xaile em volta do peito. Fora, a canção quase se não ouvia na distância:

Beja da minha desgraça!...
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MANUEL DA FONSECA

A pobre não queria que eu a deixasse recomeçou o Palmitg. Mas teve que ser...

Tinha-se sentado, e olhava para a garrafa, sem se importar que o ouvissem ou não:

Teve que ser. A gente somos oito irmãos e, hoje, já nenhum está com a minha mãe, Zé Charneco. Ela sempre me pediu: "Tu não me hás-de deixar. Os teus irmãos nunca quiseram saber de mim. Mas, olha, se tu me deixares, eu you e mato um de vocês." Parecia uma fera. Mas aquilo era só da boca. Que ela nem sabia o que me havia de fazer para eu andar contente. Está muito velha, coitada. Já não pode fazer trabalho nenhum, ninguém a quer ajustar para coisa nenhuma. E ela tem medo de ficar sozinha, por causa da fome. Se não tiver quem lho ganhe, aonde é que o vai arranjar?

Valinhas ergueu-se, esvaziando o copo. As pernas mal lhe obedeciam. Cerrou os dentes e, forçando o corpo, arrastou-se até ao balcão:

Quero dizer-te uma coisa.

Estendeu o braço e agarrou a rapariga pelo ombro:

Se tu quisesses, Maria... quando a gente saísse, deixavas a porta encostada, hem? Depois eu voltava... Olha.

Larga da mão disse a rapariga, chegando-se para trás, num movimento de cansaço e de sono. Tu estás mas é bêbado.

Valinhas levantou a aba do capote. Mas as mãos,

dormentes da bebedeira, não atinavam com os bolsos.

Absortos, Palmito e Charneco falavam, cala-

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NOITE DE NATAL

vam-se, voltavam a falar. De quando em quando olhavam-se com rancor. Sem que se apercebessem por completo, uma raiva que dormitava lá no fundo vinha ao de cima. Os olhos luziam-lhes num brilho mau. Depois, voltavam ao mesmo: as cabeças oscilando, vagarosamente, de ombro para ombro, a voz pastosa.

Ganhava, e bem ganho, o meu dia, fosse em que trabalho fosse. Na ceifa, até o manajeiro me punha nas pontas. Estás a ouvir, Luís Palmito? Nas pontas, a puxar pelos outros. Levava três regos e ia a passo e, quando queria, punha todos num suadoiro que nem se lambiam. Era como um leão... Depois, ia para as feiras, quando as havia e ninguém, ninguém me punha o pé à frente. Eu era um homem, Luís Palmito!

Valinhas acabou por tirar as moedas. Mostrava-as na palma da mão:

Olha. São para ti. Hem? Deixas a porta encostada; eu safo-me deles, aí em qualquer esquina, e volto.

Respirava a custo. Puxou-lhe pela mão:

Queres, Maria?...

A rapariga deu um esticão ao braço:

Não quero nada, larga-me.

Porque é que não queres? Não sou igual aos outros? E o meu dinheiro acaso será diferente do di-

nheiro dos outros?

Procurava de novo agarrá-la. A rapariga, ao fugir-Ihe num movimento brusco, tropeçou no caixote e acordou o filho. A criança ergueu dolorosamente o pulso fraco; abrindo os olhos, recomeçou a chorar. O

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MANUEL DA FONSECA

NOITE DE NATAL

rostozinho amarelado, onde o crânio avolumava, encheu-se-lhe de rugas como a cara de um velho.

Oito irmãos, e todos a abandonaram... O que ela não há-de ter passado. Aquilo nem sabia que mais fizesse para eu andar contente. Também, eu dava-lhe a jorna quase toda. Olha que Natal que a pobre tem...

Furtando-se às investidas do soldado, Maria saiu do balcão:

Por hoje, acabou. Quero fechar a porta. Quem é que paga a despesa?

Palmito ergueu a cabeça; nada ouvira:

Eu aqui a rir e a minha mãe a chorar, lá no monte, Maria.

Valinhas tirou umas tantas moedas da palma da mão:

Toma. E, se quiseres o resto, já sabes...

Não devias ter feito aquilo insistia o Charneco. Lá no quartel, todos mandam em mim. Eu já não sou homem nem nada. E, vai, tu ainda me agarras, conho!

Palmito segurou-o pelo capote:

Mas tu não tinhas razão.

Larga!

Charneco deu um passo atrás. Do impulso, o banco foi bater contra a parede e Palmito tombou sobre a garrafa, que caiu para o chão. Endireitou-se logo, de cabeça levantada. Aquela raiva oculta que os subjugava vinha ao de cima, impetuosa. Os dois homens encararam-se de rosto endurecido.

Maria tentava desviá-los:

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Não quero aqui desordens! a voz fraca subia-Ihe a um torn agudo, lamentoso. Saiam! Quero fechar a porta!

Charneco correu para o meio da rua:

Anda cá agarrar-me agora, Luís Palmito! Anda cá, se és homem!

Maria empurrava Chico Valinhas que ia de costas, renitente:

Ouve, eu volto...

Dentro do caixote, a criança quebrava-se num choro esganiçado. Lá fora, ouvia-se crescer um coro aberto para a noite.

Se queres, dou-te já o dinheiro.

A custo, a rapariga ia fechando a porta. A canção vinha por vielas e esquinas dos lados das Portas de Moura. Vinha como um pranto, a loa ao Deus Menino:

O menino está na neve, a chorar e a tremer...

A porta da taberna fechou-se de todo; ouvia-se a tranca de ferro roçar pela madeira. Despeitado, sentindo uma profunda raiva, Chico Valinhas virou-se, lentamente, de punhos cerrados.

Músculos tensos, troncos inclinados para a frente, os três soldados aquietaram-se, cegos, no negrume. Só aos poucos os olhos se iam habituando à luz velada que escorria das estrelas. Tinham as caras ásperas de frio e fitavam-se, atónitos, sob a imensidão da noite desolada.

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MANUEL DA FONSECA

Agarra lá se és capaz!

Perante aquela voz, Chico Valinhas recuou. Rápido, Luís Palmito tirou o cinturão e enrolou-o no pulso, bem seguro pela ponta. Deu um passo de lado; o cinturão volteou no ar e a fivela apanhou Charneco pela cara. Chico Valinhas tirara também o cinto. Charneco avançou, todo curvado.

Silenciosos, atiram-se agora pontapés e socos; batem às cegas, de respiração entrecortada. De repente, Valinhas endireita-se, leva as mãos à barriga, e cai desamparado sobre a calçada:

Ai que me mataram!...

Os dois soldados recuam. Ficam um momento espantados, de braços abertos. Charneco aperta ainda, bem firme na mão, o cabo da navalha. Passado aquele instante de estupor, fogem, cada um para seu lado, num grande ruído de botas cardadas que se afastam.

Lá das Portas de Moura, a canção vem cada vez mais perto, ouve-se agora como um grande soluço estrangulado:

Ó menino da minh'alma, quem te pudesse valer...

Amor agreste

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Era meio-dia quando o Elias Carrasca chegou ao Monte de Alba Grande. A casa, de janelas e portas fechadas, pareceu-lhe deserta; apenas o Maia, um velho criado da herdade, atraído pelo tropear do cavalo, apareceu entre as ombreiras do largo portão da adega. Desmontou. E, de rédea sobre o braço, a passos duramente marcados no terreiro de chão batido, a sua alta e poderosa figura cresceu sobre o camponês. Brusco, indagou:

O filho do teu patrão?

O Maia observou-lhe atentamente o rosto demudado, onde a barba de dias negrejava.

Foram todos, ontem, para a vila... respondeu com voz apreensiva, lenta. Mas o patrão António ainda cá volta.

Hoje?

Sim, senhor...

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MANUEL DA FONSECA

Os olhos de Elias Carrusca, grandes e salientes, erraram, indecisos, pelo chão.

Há alguma novidade? prosseguiu o velho Maia. Como não obtivesse resposta, fingindo-se alheado,

sacou da onça e do livro de mortalhas. com gestos vagarosos pôs-se a enrolar o cigarro. Preparava-se para petiscar lume na acendalha de cordão amarelo quando, erguendo a cabeça, semicerrou os olhos sob a grande aba do chapéu todo deformado pelo uso:

Creio que é ele que aí vem. Elias Carrusca voltou-se.

Sobre o plaino batido pela luz crua do Sol, um cavaleiro avançava para o monte. Ao chegar à azinheira, solitária naquele ponto da herdade, meteu a galope. Inesperadamente, quase à entrada do terreiro, o animal tropeçou e caiu sobre as patas, de focinho estendido. Destribado, o cavaleiro rolou pelo chão fora.

Abrindo os braços numa expectativa, o velho Maia deu dois passos em frente. Elias Carrusca continuou imóvel, como se nada tivesse acontecido.

Rápido, António de Alba Grande ergueu-se. No rosto magro, ossudo, os olhos resplandeciam-lhe numa expressão feroz. Deu um puxão às rédeas e, atirando um pontapé ao cavalo, obrigou-o a levantar-se. De pescoço esticado para o alto, sacudindo a cabeça, o animal recuava, coxeando. com um assobio modulado, o Alba Grande aquietou-o. Ajoelhou-se e, segurando-lhe a perna, dobrou-lha repetidas vezes pelo jarrete, tenteando.

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AMOR AGRESTE

Eu estava à espera disto! exclamou para o Maia, que se aproximava. Leva-o lá!

Endireitou-se, caminhando para o terreiro. Era alto, de ombros largos. Tal como Elias Carrusca, vestia jaqueta justa, botas caneleiras. Da emoção da queda, os seus olhos, muito negros, ainda rebrilhavam, irados.

O estupor fez-me cair, hem!

Mas ao atentar melhor no rosto de Elias Carrusca estacou, concentrando-se, como se instintivamente deparasse com um inimigo.

Que há...?

Elias Carrusca deixou que o velho Maia se afastasse com o cavalo. Só então respondeu:

Tenho que falar contigo disse. Vim aqui para falar contigo.

Frente a frente, os dois homens encaravam-se de olhar fixo.

Ouve rcomeçou pausadamente Elias Carrusca. Tu namoras a minha irmã; já toda a gente o sabe... Mas andas metido com a filha dos lavradores da Pedrosa, essa a que chamam a Zabela...

Como duas asas esgalhadas, os ásperos sobrolhos do Alba Grande ergueram-se, agressivos:

Que tens tu com isso?

Nada, por enquanto... volveu Elias Carrusca. Mas vieram contar-me que ela ia hoje a minha casa para pôr tudo a limpo... Agora, ouve-me bem: eu não quero escândalos. Se tal acontecer, tens que entender-te comigo. Só te queria dizer isto.

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MANUEL DA FONSECA

Deu um passo, como que para afastar-se.

Espera um pouco! exclamou António de Alba Grande. Decerto não vieste aqui com a intenção de me meteres medo, como se faz aos garotos...

Elias Carrasca virou-se. De cabeça enterrada nos ombros salientes, aguardou.

Sabes bem que, quando e onde quiseres, eu não sou homem que te volte a cara.

Sei respondeu Elias Carrasca. Como mais velho que tu, também sei que estes assuntos se não resolvem por imposição. Só a ti compete resolvê-los. Mas o que disse está dito de uma vez por todas.

Então, ouve-me tu agora.

O Alba Grande avançou de braços arqueados:

Namoro a tua irmã há um mês; a Zabela conheço-a há muito mais tempo. E you ser-te franco: ainda não sei de qual gosto mais. Quando o souber, fico com uma delas.

Elias Carrasca estremeceu. De maxilares cerrados, só daí a pouco conseguiu articular, com voz rouca:

Pois então escolhe depressa, António de Alba Grande. Escolhe antes que seja tarde.

De salto, subiu para o cavalo, e galopou pelo campo fora.

Cabeça alta, olhos num desafio, o Alba Grande, especado à beira do terreiro, ficou-se a observá-lo com os cantos da boca arrepanhados num distante sorriso.

Para lá do portão, meio oculto na sombra, o velho Maia espiava.

Vagaroso, António de Alba Grande voltou-se e en-

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5,1

AMOR AGRESTE

trou na cavalariça. Deu uma olhadela à perna do cavalo, já envolvida pelo jarrete num pano esbranquiçado, e quedou-se, apreensivo.

De face enrugada pela curiosidade, o Maia não se conteve:

Que foi que aconteceu...?

Como se só naquele instante tivesse dado pela sua presença, o Alba Grande fitou-o.

Ouve cá disse , o cavalo claro, está incapaz de andar?

O velho encolheu os ombros, despeitado:

Agora?... Nem dá um passo: já esfriou.

Bem. Não há outra coisa a fazer... Engata as mulas aí no carro. Isso para já.

Mas... interpôs o Maia aonde vai o patrão

António?

Deixa-te de perguntas, homem. Faz o que te

digo.

E, saindo da cavalariça, atravessou o terreiro.

Entrou em casa. Foi ao quarto, tirou um revólver da mesa-de-cabeceira e, depois de observar miudamente o tambor, meteu-o no bolso da jaqueta.

Quando voltou, o carro aguardava-o. Atrás, o velho Maia, como homem que sabe do seu ofício, amarrava criteriosamente nas pontas dos varais a golpelha, o largo saco de palma onde é costume transportar a palha para as mulas. António de Alba Grande subiu para o churrião. De pé, esticando as rédeas, ergueu o chicote e fustigou os animais. Aos solavancos, o carro deixava para trás uma nuvem de poeira.

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MANUEL DA FONSECA

Após meia hora de marcha, parou num cruzamento, junto dum sqpreiral. Era por ali que Zabela havia de passar se fosse ao Monte da Carrusca. Meteu o carro debaixo da copa rala de um enorme sobreiro, de forma a que as muares ficassem menos expostas ao calor violento do Sol, e sentou-se no chão com as costas apoiadas ao tronco da árvore. Sempre atento ao caminho que entrava pelo sobreiral, acendeu um cigarro, impassível e imóvel, de expressão parada, aguardando, sem que o seu espírito obstinado desse mostras de impaciência ou o corpo de cansaço.

Àquela hora, na agreste solidão dos campos, sequer uma asa cruzava o céu esbranquiçado e trémulo de lume. No entanto, pressentia-se vagamente o aparecer da tarde: a calma esmorecia um pouco e a sombra dos troncos alongava-se pela terra gretada e poeirenta. A espaços, as mulas sacudiam a cabeça, afastando as moscas, e as guiseiras retiniam, vibrantes, quebrando violentamente o profundo silêncio.

De súbito, António de Alba Grande levantou-se; Zabela aparecera ao longe, por entre os sobreiros. Foi esconder-se atrás do carro e, mal a rapariga chegou ao cruzamento, saiu a cortar-lhe o passo:

Aonde vais?

Zabela fitou-o. Era ainda muito nova. Embora esguia, as ancas arqueavam-se-lhe sob a saia rodada, e o xaile, traçado, desenhava os seios erectos. Trazia na cabeça um chapéu de homem; por baixo, o lenço envolvia-lhe o rosto afogueado. Os olhos rasgados, negros, brilhavam intensamente.

86

AMOR AGRESTE

A ti, que te importa?

Eu sei, Zabela.

Pois se sabes, deixa-me passar.

Não. Eu não quero que tu vás.

Como te enganas!...

Os lábios carnudos de Zabela tremiam ao de leve. Na expressão, voluntariosa, transparecia um desígnio inabalável. Respirou profundamente, soerguendo o peito:

Há-de ser hoje. Ou eu, ou ela.

Afastou-se para o lado, e avançou. Ao sentir-se agarrada pelo braço procurou safar-se num movimento brusco; o chapéu caiu-lhe para o chão. De queixo esticado sobre o ombro, olhos aguados, murmurou com a voz estrangulada:

Nem que me mates!

Então, António de Alba Grande sentiu que eram inúteis todos os seus esforços; Zabela iria, de qualquer modo, ao Monte da Carrusca. A ira toldou-lhe o rosto. De novo, os cantos da boca se lhe enrugaram, como num distante sorriso. Rápido, levantou-a ao ar e correu com ela para o carro. Meteu a mão dentro da enorme golpelha amarrada aos varais, e tirou uma corda. Deitando a rapariga ao chão, começou a atar-lhe os braços e as pernas.

Sou eu quem te vai levar gritou. Ficarás a saber que quem manda sou eu!

Tirou o lenço do bolso, enrolou-o numa estreita tira.

Sou eu! repetia, tomado de raiva. Eu é que resolvo as coisas da minha vida! Eu!

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MANUEL DA FONSECA

À força, abriu a boca da rapariga; meteu-lhe a tira do lenço entre osjientes, e apertou-o com um nó atrás da nuca. Nos olhos escancarados de Zabela lucilava um misto de espanto e de ódio.

Abrindo a vasta golpelha, António de Alba Grande meteu lá dentro a namorada. Foi apanhar-lhe o chapéu, atirou-o para o fundo do carro, tapando-o com uma saca, e pôs-se a caminho.

Ao chegar ao Monte da Carrusca parou junto do barranco. Saltou do carro e subiu a encosta.

Mal o reconheceram, dois criados foram-se chegando para o terreiro. Entre os umbrais da porta, Adriana esperava-o. No fundo do corredor, ao lado de Elias Carrusca, apareceu a mãe, gorda e baixa, toda vestida de negro.

Vem daí comigo intimou António de Alba Grande. Preciso de dizer-te uma coisa.

Adriana desceu da soleira. Inquieta, olhava de soslaio para o rosto do Alba Grande como que a estudar-Ihe a expressão. Era de mediana estatura, olhos azuis, cabelos loiros e ondeados. De feições delicadas, pele muito branca, as asas do nariz, fino e pequeno, moviam-se com um tique nervoso de animal que fareja. E, embora tudo nela denotasse precaução, os seus passos eram leves, graciosos. A seu lado, o Alba Grande, muito alto, mexia-se com desenvoltura: a cada passo, os tacões das botas caneleiras batiam contra o chão e as esporas tilintavam.

À porta do monte, de onde a mãe a espreitava, apareceu Elias Carrusca. Do terreiro, os dois criados

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AMOR AGRESTE

olhavam-no como se esperassem uma ordem. Elias Carrusca aquietou-os com um aceno de cabeça. Os homens recuaram para a sombra do terreiro, e aí ficaram, atentos.

António de Alba Grande levou Adriana para junto de uma das rodas do carro, procurando que ela ficasse de costas para onde a golpelha pendia, amarrada.

Venho falar-te de uma coisa que tu já sabes começou ele. A minha pena é de não ter sido eu o primeiro a contar-te. Mas, umas vezes por isto, outras por aquilo, nunca calhou. E, agora, o teu irmão foi-me com uma conversa de que nada gostei.

De olhos baixos, Adriana murmurou com voz macia:

Não te entendo, António...

Qual quê! Estás farta de entender-me! disse o Alba Grande, erguendo-lhe o queixo. Levanta os olhos e olha-me de frente: quero que compreendas por inteiro o que te you dizer.

Largou-lhe o queixo, e recomeçou:

É isto apenas: eu ainda não sei se gosto mais da Zabela ou de ti. Ora como sou eu quem escolhe, não admito que ninguém se meta neste assunto.

Adriana recuou, voltando a cabeça para o lado. Mas, contendo-se, ciciou com voz monocórdica, surda:

Tu atreves-te a comparar-me com essa... essa do Monte da Pedrosa...?

A golpelha mexeu-se com um rumor de palha. Adriana voltou-se desconfiada.

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MANUEL DA FONSECA

Não procures ofender a quem não conheces disse pausadameate o Alba Grande. Ela está tão pura como tu. Nada devo a nenhuma: sou livre de fazer o que quero.

Adriana fitou-o, baixando um pouco a cabeça, como que à escuta. Parecia presa de uma remota desconfiança.

E vieste aqui apenas para me humilhares...

Humilhar-te? fez o Alba Grande, numa surpresa. Nunca pela cabeça me passou tal coisa. Vim só para saberes da minha boca o que se passa. Agora, vou-me.

Como se não acreditasse na simplicidade daquelas palavras, Adriana, de rosto ensombrado, aguardava ainda o que quer que fosse. Novamente lhe chegou aos ouvidos o rumor da palha, logo abafado pelo tilintar metálico das guizeiras. Deu a volta ao carro e olhou. Dentro da golpelha alguém se movia com dificuldade; por fora, notavam-se nitidamente as saliências de um corpo. E a remota desconfiança ganhava vulto aos olhos de Adriana. As narinas arfavam-lhe nervosamente. Olhou para o namorado numa imperiosa e muda interrogação.

Os lábios grossos do Alba Grande distenderam-se, sorrindo. Todo o seu rosto, normalmente duro, se iluminou, cheio de ingenuidade e de franqueza:

Não tenhas receio: é um cabrinha montesa que apanhei no caminho! Está amarrada; não te fará dano, nem a ti nem aos teus!...

A golpelha ondeou de uma ponta a outra. Por entre

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AMOR AGRESTE

o rumor da palha, ouviu-se um som inarticulado, rouco. A face de Adriana contraiu-se, num assomo de raiva. Impotente, voltou-se, e começou a subir a encosta, muito devagar.

António de Alba Grande subiu para o carro e tornou ao caminho por onde viera.

Sentado junto da lança, com as pernas bamboleantes, caídas para fora, acendia um cigarro, já distante do Monte da Carrasca, quando ouviu o tropear de um cavalo. Sem se voltar, tirou o revólver do bolso interior da jaqueta e entalou-o entre a camisa e o cós das calças.

Ao chegar perto do carro, Elias Carrasca refreou o galope e apeou-se, correndo ainda uns passos ao lado do cavalo:

Que disseste a minha irmã gritou ele que lá ficou lavada em pranto, e não há quem lhe arranque uma palavra?

António de Alba Grande deixou-se escorregar para o chão; passou por detrás da mula, e encostou-se ao taipal. Muito sossegadamente, respondeu:

Isso é comigo e com ela. Se ficou a chorar, não tem importância: são arrufos de namorados...

com um movimento brusco, o irmão de Adriana recuou a mão para a algibeira atrás das calças. O Alba Grande ergueu um pouco os braços; as pontas da jaqueta afastaram-se, deixando ver o cabo do revólver:

Faz como entenderes, Elias Carrasca! exclamou de dentes arreganhados. Eu estou por tudo!

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MANUEL DA FONSECA

De corpos imobilizados, rígidos, quedaram-se longamente, com os rostos contraídos pela atenção. E todo o soturno silêncio da planície parecia arrastar-se plainos fora, deixando como que o eco de uma apavorada expectativa. Por fim, Elias Carrusca afastou a mão do bolso das calças.

O que te vale a ti sei eu! disse, olhando de través. Anda a minha irmã metida no caso, percebes? Mas toma cuidado que pode vir um dia que eu esqueça tudo! E ficou-se, inquieto, de olhos esbugalhados, perante a calma do Alba Grande. Já te podes ir tornou. Por que esperas?

Por nada. Estou aqui porque quero.

Elias Carrusca abanou a cabeça, torcendo o tronco sobre as pernas subitamente inseguras. Desorientado, rodou nos calcanhares. Saltou para o cavalo e, de punhos cerrados, estendido sobre o pescoço do animal, vibrou-lhe duas violentas esporadas. Tinha o ar de quem se afasta o mais depressa que pode de modo a que não o obriguem a praticar um crime.

Quando António de Alba Grande chegou ao cruzamento dos caminhos, pôs-se em pé sobre o carro e olhou atentamente em roda.

A tarde ia em meio. Dentro do sobreiral fazia uma penumbra de troncos retorcidos, com os ramos, nodosos e duros, apontando para o alto. Pela lomba das encostas reluziam pedregulhos negros; de onde em onde, azinheiras desgarradas, de copa à banda, pareciam debruçar-se numa atitude de escuta. Um pássaro, rápido, riscou o céu com um pio longo e triste. E logo

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t ii"

AMOR AGRESTE

a agreste solidão se reconcentrou, mais pesada e carrancuda.

António de Alba Grande, que tirara a namorada de dentro da golpelha, livrou-a da mordaça e da corda que lhe tolhia os membros. Afastou-se um pouco para o lado.

Atordoada, Zabela cambaleou, sem tino. Sentia o peito oprimido por uma profunda angústia, uma grande vontade de chorar. Doíam-lhe as pernas e os braços, os olhos arrasavam-se-lhe de lágrimas, e um fio de sangue escorria-lhe de um canto da boca. Incerta, cheia de pedacitos de palha que se lhe haviam pegado ao vestido e aos cabelos, deu uns passos. Fechou o punho enfraquecido, e começou a atirar murros ao acaso contra o tronco do Alba Grande.

Exausta, tomada de desalento, agarrou-se-lhe à cintura. E, encostando a cabeça ao largo peito do namorado, o pranto reprimido correu, abundante, entrecortado de soluços.

O homem envolveu-a nos braços.

Zabela, parece-me que já escolhi... murmurou ele. Tu, ao menos, és da minha raça: tudo quanto sentes se espelha nos teus olhos!

Nunca a sentira tão feminina e frágil, tão necessitada do seu amparo, da sua imensa força. Baixando a cabeça, de lábios estendidos, António de Alba Grande procurou a boca da rapariga.

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O retrato

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Certa manhã, meu pai ordenou-me inesperadamente:

Diz a tua mãe que te vista o fato novo para ires tirar o retrato.

Admirei-me:

Mas hoje não é dia dos meus anos...

Pois não. Mas lá em Beja precisam de dois retratos teus. É para te identificarem.

Identificarem?

Sim. Para saberem que és tu e não outro.

Não percebo recomecei, desconfiado. Como podem eles supor que vai outro em meu lugar?

Daqui por diante, a conversa complicou-se de tal modo que meu pai perdeu a serenidade; gritou-me:

Faz o que te digo, rapaz!

Fiz. Nada mais havia a replicar quando meu pai me chamava rapaz. Era uma regra que, à custa de alguns

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MANUEL DA FONSECA

sopapos, eu acabara por introduzir nas nossas relações. Respeitando a regra, fui, pois, a minha mãe, que me vestiu de ponto em branco.

Daí a pouco, com grande escândalo dos meus amigos, passei pelo largo, a caminho de casa do Sr. Rodrigo. Passei vestido "à mamã", expressão que entre nós designava, não apenas o fato, mas certos rapazitos, medrosos e tímidos, quase sempre vestidos daquele modo e que, por isso, achávamos que não sabiam brincar nem prestavam para nada. A peça de roupa que mais caracterizava um "mamã" era o colarinho gomado aberto sobre o casaco e tapando-o até aos ombros. E eu, tido e respeitado como um rapaz às direitas, lá ia de enorme colarinho de goma, ao lado de meu pai.

Nem olhava para ninguém.

E, ainda hoje, após tantos anos, sinto vergonha. Não já pela gola, mas pelo rosto de estarrecido espanto com que fiquei no ré trato.

As coisas são como são não temos que nos queixar. A horrível fotografia aí está na primeira folha da minha caderneta de aluno do liceu. Sempre é um documento que gostamos de mostrar às pessoas conhecidas, e eu estou impedido de fazê-lo. Não quero que vejam aquela cara. Principalmente depois que, por um acaso infeliz, Delinha, a rapariga que eu amo, a folheou:

Como tu eras...! exclamou ela, surpreendida.

Ora esta impressão a meu respeito não corresponde à verdade. A culpa de tudo foi de eu ter crescido mui-

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O RETRAIO

to, de ter ido a Beja fazer exame e de o Sr. Rodrigo, o fotógrafo, viver uma vida de loucos sobressaltos. Foi isso e mais nada. Daí o espanto que ficou na minha fotografia tirada no momento preciso em que se desencadeou qualquer coisa como um terramoto, e a mim me pareceu que tudo se ia modificar na face da Terra.

De facto, as coisas modificaram-se; depois que entrei para o liceu, o mundo deixou de ser o que era. Tornou-se imenso e agreste. E, como agora já não posso reviver os doces dias da infância, aborrece-me a desolada expressão com que a abandonei. Mas basta olhar o retrato para ver quanto é triste deixar de ser criança.

Fui, pois, fazer exame a Beja. Ao terminar, todos acharam que sim, que ficara bem. A professora disse:

Apenas erraste duas coisas. Mas não deve ter importância...

Meu pai, que me acompanhou, foi da opinião que eu podia ter respondido certo. Repetiu as perguntas e eu respondi certo.

Ora vês como sabias? Hum... acho que te não vão reprovar por isso...

Estava pois assente que eu ficara bem. Mas só quando daí a um imenso quarto de hora afixaram os resultados, desapareceu de vez aquele retraimento que pesava sobre nós. A professora beijou-me exclamando:

Eu não disse! Pois claro que foi um belo exame! Só tiveste um defeito: falaste demasiado, nunca te calavas. Olha que quem muito fala... Mas, enfim, já podes entrar para o liceu.

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MANUEL DA FONSECA

Meu pai passava-me os dedos pelo cabelo. Pusera-se muito sério e pálido. Só então vi quanto era profunda a sua alegria; tive vontade de chorar. Subitamente, ele, erguendo a mão, disse:

you mandar um telegrama!

E correu para a estação.

Ao ver-me rodeado de caras risonhas, os dias anteriores, tão enervantes e difíceis, perderam o sentido. Da minha memória desapareceram as regras da Gramática, os problemas, os rios, as linhas dos comboios e as grandes figuras históricas. E as guerras, com datas e heróis, decorados um a um, sumiram-se-me da cabeça. Senti-me límpido e feliz, de novo criança. A vida era bela, e diante de mim abriam-se caminhos radiosos: ia voltar a ser um pequeno rei na minha vila.

Como estava bem longe de pensar que, meses depois, uma grande tristeza me assombraria!

Saímos de Beja na manhã seguinte. Estrada fora, olhando através da janela do carro para a imensidão dos plainos, reparei que o mundo era bem maior do que eu imaginava. E a Geografia, que tanto trabalho me dera a decorar, começou a ter para mim um certo jeito de coisa, afinal, verdadeira. "Talvez que a Terra seja redonda, e tão grande como o livro diz", pensei eu, resignado.

Quando chegámos, minha mãe chorou; a avó comoveu-se um pouco. Depois, apesar de os dias correrem, todos os meus falavam ainda do exame e de Beja. Mas falavam de tal modo que, por fim, me pareceu que era meu pai, minha mãe e a avó que iam para o

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O RETRAIO

liceu cursar o primeiro ano. Cá por mim só pensava no jogo da bola e nas correrias pelo largo.

Veio pois aquela manhã, quase no fim do Verão, em que meu pai me levou a casa do Sr. Rodrigo. Até aí, eu só tirara retratos no dia do meu aniversário. Meu pai escrevia a data na parte de trás; dava um à avó, outro aos meus padrinhos, e guardava os restantes. Às vezes, mostrava-os às visitas. Eram todos eu, desde a idade dos cueiros até ao horrível colarinho de goma, tirado no ano anterior. Em nenhum havia nada de especial: apenas a cara que eu tinha quando os tirei. Agora, ia para Beja, para longe da família; meu pai já me tinha dito várias vezes que a minha vida ia levar uma grande volta, que estava um homenzinho e tinha de proceder de outro modo: passar a ter juízo.

Ter juízo! Naquele mesmo instante, rua fora, me ia repetindo tais palavras. Claro que eu não caminhava com o à-vontade do costume; o fato vincado e a gola dura em volta do pescoço faziam-me caminhar contrafeito. Tinha de conservar o tronco hirto, de modo a adaptar o corpo à solenidade do vestuário.

Pai... murmurei eu lá em Beja tenho de andar sempre assim?

Pois claro que tens!

Pensei ainda repetir a pergunta de modo a saber se, além de andar daquela maneira, teria que vestir sempre aquele fato. Mas achei inútil. Pois não ia eu para o liceu, não ia eu tirar o retrato para que gente estranha visse bem se era eu ou não o tal que já era um homenzinho e estava em Beja, distante de tudo que me era querido, e cheio de juízo?

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MANUEL DA FONSECA

Entrei com graves suspeitas em casa do fotógrafo.

Na verdade, j) Sr. Rodrigo ia tirar o retrato ao fim da minha infância. Era como se alguma parte de mim morresse e a fotografia viesse a ser o meu rosto nesse momento de morte. Tudo isto, mais o que depois aconteceu, foi a origem daquela expressão que tanto alarmou Delinha. Felizmente que há coisas que se podem remediar; e eu creio ter apagado já da memória da minha noiva a desgraçada imagem dos meus últimos dias de menino.

O Sr. Rodrigo recebeu-me com cara de poucos amigos, que era a que tinha para quem quer que fosse. Alto e magro, de bigode com as pontas reviradas para cima, os olhos abriam-se-lhe desmesuradamente por detrás dos óculos de aros de ouro, e o rosto, envelhecido, parecia sempre carregado de espanto e de ira contra tudo que via à sua volta. Falava aos gritos, abrindo ainda mais, se é possível, os olhos negros e redondos.

Tinha chegado à vila, havia muitos anos, com uma máquina fotográfica às costas. Ia a casamentos, a baptizados e às feiras. Um dia, tais manobras fez em volta da máquina e por debaixo do enorme pano preto ao fotografar, de corpo inteiro, a família do lavrador da Chancuda, que a filha deste, a quem chamavam a Chancudinha, e era tímida, ficou apaixonada. Casaram. E, quando o Sr. Rodrigo já estava habituado a viver dos rendimentos do sogro, o lavrador e a filha enlouqueceram quase ao mesmo tempo. Foi a avarenta da sogra quem passou a mandar em tudo. E que mão de ferro ela tinha!

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O RETRATO

Desde aí a vida do Sr. Rodrigo transformou-se num inferno. Pai e filha levavam o tempo a fazer tropelias. Partiam loiça, móveis; corriam pela casa, atirando cadeiras ao chão. Só depois de muito cansados se aquietavam. Então, adquiriam a expressão, entre medrosa e inocente, de duas pobres crianças que apenas haviam andado a divertir-se um pouco. Mas quando o Sr. Rodrigo julgava que ia passar o resto do dia em sossego, recomeçavam as correrias, os desatinos. Muita vez vi o lavrador da Chancuda, de grandes suíças brancas, a cantar alegremente, à janela:

Ó Rodrigo, com quem dormes tu?

Depois, a filha aparecia na varanda e, imitando a voz do marido, acabava o verso. E riam com tanto gosto, na cara do Sr. Rodrigo, que nem pareciam doidos. Também a vila achava imensa graça àquela cantiga. O Sr. Rodrigo, esse, esfalfava-se, correndo o dia inteiro atrás da mulher e do sogro, a fechar portas e janelas. De vergonha, quase que não saía à rua.

Insensível a tudo, a sogra recebia os feitores, dava-Ihes ordens, e arrecadava os dinheiros a sete chaves.

Teve de voltar, desalentado, à antiga profissão, o fotógrafo. E lá ia esperando. Mas os anos corriam, a mulher e o sogro estragavam-lhe os dias, e a sogra parecia cada vez mais fresca e cheia de saúde. Tais factos, por certo, influíam na maneira como o Sr. Rodrigo encarava o mundo.

Posto isto, reparem que estou sentado na cadeira

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MANUEL DA FONSECA

O RETRAIO

fatídica, diante da complicada máquina cujo fole foi esticado ao máximo, como de propósito para não per-

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der nada da minha atrapalhação. E pois este homem, que espera com raiva a morte da mulher, do sogro e da sogra, principalmente da sogra, quem vai, sem se aperceber, fotografar a morte da minha infância.

Ponho-me quieto, não há que fugir, e componho uma expressão de circunstância. Assim uma cara de acordo com aquela seriedade que meu pai exige de mim, lá em Beja. De resto, a goma endurecida da gola facilita muito esta atitude; um ar formalizado, rígido; boca séria, olhos graves. Até o cabelo, sempre revolto, está cuidadosamente penteado.

Sou, pois, uma criança cheia de infinita amargura, especada e sem jeito, diante do olho redondo e sinistro que me vai matar.

Ferozmente, o Sr. Rodrigo analisa-me. Acima de tudo, ele é um artista que não consente que qualquer fedelho o deixe mal colocado.

Quase nem respiro.

O Sr. Rodrigo avança, torce-me a cabeça com dureza, puxa-me o queixo, empurra-me a testa para trás. Recua e ordena-me brutalmente:

Sorria com naturalidade!

Sucumbi num esgar contrafeito de choro. Mas o Sr. Rodrigo exclamou:

Exactamente! Quieto! Olhe para aqui! Revirei os olhos, numa agonia.

Um...! Dois...! Três!

Nesse momento, tive a impressão que a casa desa-

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bava: o estuque caiu do tecto, numa chuva branca; um ruído enorme abanou as paredes oscilei na cadeira, como se fosse cair para sempre. Ouvia-se uma correria desordenada, gritos, patadas contra o soalho, risos dementes.

Já está! berrou num nervosismo feroz o Sr. Rodrigo, avançando para mim.

Pulei da cadeira, e saí dali tão desnorteado que mal ouvi meu pai desculpar os "pobres de Deus", como ele chamou à mulher e ao sogro do fotógrafo.

Por muito tempo, andei sorumbático, alheado. Ao chegar a hora da partida, senti que me afastavam de tudo quanto amava. Já longe, no alto das Cumeadas, voltei-me para as casas, para o largo, para as estradas em volta da vila. Os olhos arrasaram-se-me de lágrimas, e chorei longamente. Chorei como se nunca mais voltasse.

Depois, quando dei por mim, estava em Beja, sozinho, estranho no meio daquela gente, e os professores gabavam-me o juízo e a aplicação ao estudo. Foi uma alegria para meus pais. Dela não comparticipei, pois não podia esquecer os meus amigos de infância, livres e felizes, lá no largo!

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A testemunha
Para encurtar caminho, fugindo à tempestade, Ivo Moura obrigou o alazão a descer as ravinas pedregosas que vão acabar abruptamente no estreito e longo vale do Morgadio.

Sob as densas copas dos castanheiros fazia uma penumbra triste e, a espaços, a folhagem farfalhava, agitada por bruscas lufadas de um vento morno. Fogoso, despegando do solo pedaços de areão que voavam para os lados, o cavalo galopava. Ao sair do vale, já nos plainos altos e rasos do Chão das Donas, grossos pingos começaram a cair com ruído sobre a terra seca e gretada.

com pouco, a chuva caiu, violenta, cerrando tudo em volta. Insofrido, fustigado pelas cordas de água, o cavalo acabou por estacar. E ladeava, fumegante de suor, quando um súbito relâmpago abriu no escuro uma explosão de luz. O animal ergueu-se todo sobre as

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MANUEL DA FONSECA

A TESTEMUNHA

patas, rodou impetuosamente, relinchando, revolvendo as mãos contra o céu. Cego pela faísca, Ivo Moura sentiu-se desamparado no ar, despegado da sela. E, ao levantar-se da terra lamacenta, viu ainda por momentos, através da chuva, o cavalo afastar-se de crinas eriçadas, numa correria espavorida, sob o ribombar do trovão. Foi apanhar o chapéu, sacudiu-o de encontro às pernas, e palpou o casaco sobre o bolso da carteira. Seguro de que o animal iria parar à vila, começou a andar num passo rápido.

Breve se apercebeu que caminhava entre os cabeços redondos do Monte do Zorro. Então, hesitou. Mas, como por perto não houvesse outro abrigo, decidiu-se, encosta acima. Cada vez mais nítida, aparecia, no alto do cerro, a velha e escura construção.

Entre os umbrais da porta estava o Zorro.

Era um velho atarracado, enxuto de carnes, de pernas arqueadas, firmes sobre a soleira. Os seus olhos, redondos e penetrantes como os das aves de rapina, fitavam Ivo Moura com uma expressão fria. Quando este se aproximou, saudando e pedindo abrigo, o Zorro, como resposta, afastou-se para o meio da casa.

Na vasta lareira, uma velha, acocorada junto ao lume, voltou o rosto. De olhar parado, baço, imobilizou a cabeça numa grande atenção a todos os ruídos.

É o Moura, o feitor do Sabugal informou o Zorro.

A cega continuou imóvel, de cabeça um pouco inclinada.

Ivo Moura tirara o chapéu e, enquanto a água escorria, passava a mão pela cara molhada.

Homem convidou o Zorro , chegue-se para o lume!

Pouco à vontade, Ivo Moura desabotoou o colete e tirou o casaco. Mas, antes de o pendurar perto das chamas, disfarçadamente, sacou da carteira e meteu-a no bolso das calças. Foi sentar-se no único mocho disponível, estendeu as pernas e, após ter enxugado bem as mãos, enrolou um cigarro.

Fuma, lavrador?

Na. Nunca fumei.

Os trovões afastavam-se, reboando ao longe, e a chuva refervia sobre a telha vã. A espaços, grandes relâmpagos iluminavam o interior da casa. Silencioso, o Zorro parecia aguardar uma explicação. Ivo Moura, como que desatento, estendeu as mãos para o calor:

Parece que a tempestade vai passando.

O rosto vincado do Zorro continuou impassível. A luta surda entre os dois homens foi breve. Por fim, contrafeito, Ivo Moura pôs-se a tartamudear o percalço que o afastara para ali.

Sei isso tudo interrompeu o Zorro. Avistei-o muito antes de o cavalo se espantar. Para onde ia você?

Para o Sabugal.

Pagar a jorna aos trabalhadores, não?

Ainda pensei que escapava à chuva atalhando pelo vale do Morgadio continuou Ivo Moura. Mas de nada me serviu.

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MANUEL DA FONSECA

Pagar a jorna? insistiu o Zorro.

Ivo Moura atentou melhor na cara severa do Zorro, observou-lhe os olhos fixos e profundos.

Sim, pagar a jorna disse. Hoje é sábado. Inesperadamente, a voz da cega soou no canto da

lareira:

O senhor é filho do Moura, de Canhestros?

Os dois homens viraram-se, como que surpreendidos pela sua presença.

Sou, lavradora.

A sombra das chamas oscilava no rosto inexpressivo da velha, e as suas palavras escorriam brandamente:

Conheci-o, conheci-o muito bem. Tinha grandes herdades; era rico e respeitado. Mas há quanto tempo isso lá vai... Afinal, aconteceu-lhe o mesmo que a nós: perdeu tudo. Agora, quem o respeita?

Ele já morreu disse Ivo Moura.

Morreu? admirou-se a cega. Então deixe-me que lhe diga: tanto melhor para ele. Antes a morte que a pobreza. Se o senhor soubesse o que a gente tem passado...

Oh, mulher! gritou o Zorro. Para que são essas lamúrias?

O seu olhar agudo incidia sobre a velha; depois, vagaroso, focou Ivo Moura. E, abanando a cabeça, a voz arrastou-se-lhe, traindo ao de leve uma funda irritação.

Sabe o senhor? Dá-me raiva ouvir seja quem for lamentar-se. Eu nunca me lamento! Mas esta mulher e o filho passam a vida nisso.

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A TESTEMUNHA

Brusco, afastou-se para a porta; ficou especado entre os umbrais, a boca distendida num arreganho de escárnio:

Que gente!

A chuva ia amainando, e os trovões ressoavam, distantes. Custosa, a magoada claridade do entardecer irrompia pela penumbra da casa. A velha conservava a cabeça levantada, e os olhos muito abertos, brancos, paravam-se como que num assombro:

Acaso me é vedado desafogar? Não! Hei-de fazê-lo quando me apetecer. Cheguei ao fim, vivo na miséria, e estou cega: já não temo ninguém. Nem a ti. Oiça, senhor. As minhas queixas são estas: nós temos duas courelas, mas ninguém nos empresta sequer um tostão. Porque não penhoramos uma para cultivar a outra? O meu filho apenas desejava isso. Mas quem há neste mundo capaz de convencer o meu marido?

Ivo Moura encolheu as pernas, passou a mão pelo pescoço ainda húmido. Sentia que tudo aquilo lhe era penoso, estranho. Atrás dele, sobre a soleira da porta, o Zorro havia-se voltado:

Penhorar, penhorar! exclamava, avançando para a lareira. Pois esqueces que foi por hipotecar a herdade que fiquei sem ela? Antes quero as courelas comidas pelo mato que vê-las noutras mãos. Não. Por enquanto, mando eu. Depois de eu morrer, o teu filho que faça o que quiser.

Atenta, a cega parecia aguardar ainda o que quer que fosse. Mas nenhuma voz soou em seu auxílio. A chuva havia cessado de todo; apenas o ruído das

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MANUEL DA FONSECA

goteiras quebrava agora o silêncio hostil que pairava no monte. Ivo Moura ergueu-se, pegou no casaco:

Bem. Vou-me andando.

O rosto alterado do Zorro readquiriu num momento a habitual expressão de tranquilidade e de domínio:

Desculpe a velha; está caduca.

Ivo Moura agradeceu o abrigo e o lume. E ia a despedir-se quando o Zorro, com um olhar pesquisador, o interrogou:

Você tem alguma arma?

Se tenho alguma arma? fez Ivo Moura, recuando a cabeça. Eu...

Já vi que não tem... murmurou o Zorro. Espere. you emprestar-lhe uma espingarda.

Foi ao quarto da cama e voltou com uma velha caçadeira:

Leve... Não tem cartuchos. Mas sempre afugenta quem aparecer a tolher-lhe o passo.

Não é preciso, lavrador. Eu nunca ando armado. E, se Deus quiser, não há-de haver novidade.

Pegue nisso, homem. Pois quer pôr-se a caminho sem uma arma e com a carteira atestada de dinheiro? Lembre-se que assaltaram e roubaram um marchante de Colos, aqui bem perto, faz agora um mês.

Isso é verdade. Mas... Bem. Talvez tenha razão concordou, pegando na espingarda. Cá lha envio, depois de amanhã. Adeus, lavradora.

A velha nada respondeu. De cabeça inclinada para o peito, parecia adormecida.

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A TESTEMUNHA

Ivo Moura cruzou a porta. Sem se voltar, desceu

o cerro.

Para o poente, sob as nuvens escuras, escoava-se um pálido clarão arroxeado; para trás, os longos piainos, ermos e desolados, anoiteciam. Ao chegar às encostas do vale do Morgadio avistou um homem que caminhava em sentido contrário. Quem quer que fosse trazia uma espingarda ao ombro e um coelho pendurado no cinto. Ivo Moura semicerrou os olhos, abrandando os passos. Distinguia-lhe nitidamente o perfil, negro, contra a luz do poente. Mas só perto o reconheceu:

Olá, José António.

Por aqui a estas horas, Ivo Moura?

Deixa-me cá. Venho de casa do teu pai. O cavalo espantou-se com um relâmpago, atirou-me ao chão e fugiu para a vila. Eu ia ao Sabugal pagar a jorna.

Uma ruga profunda uniu as sobrancelhas rectas e negras do filho do Zorro. Os olhos vagueavam-lhe pelo chão e, de lábios descerrados, deixava ver os dentes compridos e muito brancos, sob o bigode farto.

Então, essa espingarda emprestou-ta o meu pai disse ele. Conheço-a bem.

Emprestou. Mas é só para meter medo; não tem cartuchos.

Os olhos errantes de José António percorreram os campos em volta, numa grande atenção, e aquietaram-se, demorados, fitando ao longe. Os pensamentos pareciam acorrer-lhe à custa de um difícil esforço. De face enrugada, baixou a cabeça, levou a mão à cartucheira:

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MANUEL DA FONSECA

Olha, tu vais levar um cartucho. Toma-o lá. Sempre é melhor.

Por momentos, Ivo Moura ficou de braços estendidos, segurando o cartucho entre os dedos. Quase com humildade, sem o fitar, José António pediu:

Mete-o na câmara...

Ha? murmurou Ivo Moura, soerguendo os olhos, perplexo. Sim... you metê-lo na câmara.

com a voz apressada, o filho do Zorro atalhou:

Sabes? Tu não devias ter vindo por aqui. Ao sair do monte, há uma vereda, entre os cerros, que vai dar ao fim do vale. Sempre ganhavas caminho. Mas agora já não há nada a fazer. Adeus.

E afastou-se a passo largo.

Ivo Moura ainda o olhou por algum tempo. Depois, vagaroso, espiando a um lado e a outro, desceu a encosta, afundou-se no escuro do arvoredo. Evitando o atalho que ia serpeando pelo fundo do vale, caminhava a certa distância, rente aos troncos. Os castanheiros erguiam-se, negros, e das altas e quietas copas derramava-se um grande silêncio.

Havia uns quinze minutos que Ivo Moura caminhava quando um ruído de passos, brandos sobre a terra molhada, o fez estacar.

Perto, desenhado na sombra, um vulto descia a encosta. Vinha de cotovelos erguidos, braços em gancho, apontando uma espingarda. Atirando-se para o lado, Ivo Moura encostou-se a um tronco. Quis gritar, mas as palavras mal se lhe ouviram:

Nem mais um passo...

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A TESTEMUNHA

O vulto avançou ainda. Ivo Moura premiu o gatilho e o clarão do disparo iluminou repentinamente o fundo do vale. O vulto abriu os braços, largou a arma. De pernas arqueadas, a cabeça tombada para trás, ficou por instantes só com as pontas dos pés a tocarem o solo, e caiu de costas, desamparado.

O cheiro acre da pólvora penetrou nas narinas de Ivo Moura. Nos seus olhos demorava-se ainda a imagem do vulto no momento da queda. Ansiado, agarrou-se à árvore. E assim estava quando lhe chegou aos ouvidos um grito. Pareceu-lhe que alguém corria para ali. Endireitou-se, estonteado. Rápido, começou a pular de tronco para tronco, sem atinar de que lado ia aparecer o novo perigo.

És tu, Ivo Moura?

Sim! respondeu, ofegante. Sou eu!

Do escuro denso dos castanheiros, José António surgiu, correndo. Foi agachar-se junto do vulto caído, mas ergueu-se logo, sem lhe tocar. Apertou as mãos uma na outra e os ossos dos dedos estalaram como

uma matraca.

Ivo Moura aproximou-se vagarosamente. Só então reconheceu no rosto sangrento, apoiado contra o chão, os olhos redondos do Zorro, muito abertos e já sem vida. Recuando, murmurou:

O teu pai!...

José António continuava a apertar as mãos. O olhar fugia-lhe, errando de árvore em árvore, e na face escura os dentes brilhavam, alvos e compridos, como os de um animal feroz.
MANUEL DA FONSECA

Muito lentamente, arrastando sílaba a sílaba, disse: Apenas tens uma coisa a fazer: avisar a Guarda,

quando chegares à vila. Eu fico por tua testemunha,

Ivo Moura.

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O último senhor de Albarrã
Que pessoa quezilenta, sempre irritado, o velho Medina! Pequenino e magro, o chapéu de aba em riste tombado sobre o nariz, olha com dureza para a "gente de hoje" e apenas tem palavras de desprezo, secas risadinhas de escárnio, por tudo quanto acontece à sua volta. Um exemplo: vem a feira, armam-se as barracas na Courela do Fidalgo; um mundo de gente acorre dos campos, despovoa-se a vila. Vai um qualquer, diz:

Que bela feira, a deste ano!

Está armada a questão; agressivo, o velho Medina

avança:

Feira? Ha? O senhor chama feira a isto?

Quem se atreve a contrariá-lo? Irado, de olho luzidio, Medina conta como era, descreve tudo miudamente. Por fim, lá acalma um pouco:

Feira, hem? Qual quê! Feiras eram as do meu tempo!

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MANUEL DA FONSECA

O ÚLTIMO SENHOR DE ALBARRÃ

E assim por diante tudo mudou para pior. Tudo. Principalmente as pessoas.

Aquilo é*que era gente!... murmura o velho cheio de admiração e de saudade. Agora? Agora já não prestam para nada!...

E ocorrem-lhe, para escarmento e opróbrio dos vivos, sujeitos famosos que já morreram, grandes acontecimentos que o tempo apagou. Tem uma linguagem fluente, pitoresca. E uma memória prodigiosa, ou talvez uma extraordinária imaginação, o velho Medina. Tudo quanto descreve se anima, revive, ao sopro da sua amorosa evocação. Na verdade, ele mesmo parece remoçar quando fala do passado.

Fora disto é intratável. Irrompe desabridamente com inesperadas opiniões, agita-se, agressivo, atacando seja quem for, à má cara e com sete pedras na mão. Mas eu aturo-lhe a casmurrice, pois gosto de ouvi-lo quando está de maré. Daí talvez o motivo por que me trata com certa consideração, apesar da grande diferença de idades que nos separa.

Você, meu rapaz diz-me ele, de quando em quando, com um ar arrogante e protector , é, em tudo e por tudo, uma criança ao pé de mim.

Costumamos encontrar-nos no café do Retorta. Há dias, lá estávamos nós, sozinhos, a matar o tempo. Enquanto esvaziávamos as xícaras, ainda tentei de vários modos obrigá-lo a falar. Mas o velho nem se dignava responder-me, carrancudo e impassível, como se estivesse a séculos de distância. Fazia muito calor. No silêncio, as moscas ziguezagueavam, monótonas. In-

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sensivelmente, fui-me afundando no marasmo desta santa calacice provinciana.

Assim dormitava, quando me apercebi que, junto da bomba da gasolina, no outro lado da rua, havia parado um automóvel. Através da sonolenta névoa que me velava os olhos vi sair do carro um rapaz alto, de casaco branco sobre os ombros. Junto do guarda-lamas da retaguarda, já o Foia, curvado, de mangueira enfiada no depósito, seguia atento o rodar dos números no mostrador da bomba.

Então, inesperadamente para mim, o velho Medina ergueu-se, cheio de interesse, e foi até à porta. Só voltou quando o carro desapareceu, lá para o largo. Vinha com um jeito misterioso:

Sabe? Aquele fulano é o neto...! Despertei, de beiço estendido, numa surpresa:

O neto?

Sim. O neto do grande lavrador de Albarrã! Deixando-se cair sobre a cadeira, o velho Medina

encarava-me com uma expressão de dó:

Quê? Nunca ouviu falar do Palma de Albarrã? Perante o meu silêncio, fez algumas considerações,

nada agradáveis, acerca da ignorância da juventude de hoje. E acrescentou:

Se calhar, nem sabe onde é Albarrã? Uma das maiores herdades cá do Alentejo!... Pois é no concelho de Castro, meu rapaz. Mas nada disso tem importância. Interessa é saber quem era o Albarrã. Isso, sim. Gente daquela raça já não existe. Eram outros tempos, caramba!

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MANUEL DA FONSECA

Aqui, começou uma história deveras estranha. No alto de um cerrOj em sítio desértico, a meio de vasto terreiro murado, erguia-se Albarrã, uma tosca e rude construção. Como que um castelo de senhor feudal, dominando a planície, pois, ao tempo, nem a lei nem a Guarda ali entravam por léguas e léguas em redor, uma única vontade imperava: a do Palma de Albarrã. Era um homem terrível...

... Ainda o vi uma vez, teria eu os meus quinze anos murmurava, de olhar semicerrado, o velho Medina. Que homem!... Alto, de encontros poderosos, e com um rosto tão vincado, fero, que quem o olhasse um instante apenas não mais o esquecia. Depois de bem bebido, os seus olhos eram duas labaredas vivas: metiam medo. E ninguém tinha coragem, ninguém, por toda essa terra de gente brava, tinha coragem de se lhe pôr pela frente. Fosse onde fosse que estivesse, era como um rei!

Os olhos do velho Medina dilataram-se, numa sentida raiva:

Onde há, hoje, um homem como esse? Diga-me?

Abanei a cabeça, de venta murcha:

De facto...

Nem sombra! Que era mau, diziam. Pois seria. Mas à sua volta nunca houve miséria. Todos os trabalhadores de Albarrã andavam fartos de comida e bem agasalhados no vestir e no calçar. Veja hoje. Os lavradores, na ânsia de lucros, comem terras e gentes, tudo a eito. O de Albarrã, não. Vivia com os ganhões. E

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O ÚLTIMO SENHOR DE ALBARRÃ

todas as festas da roda do ano, fazia-as na herdade. Mesmo depois de casado, levou a mulher, uma dos Mendos, de Ourique, para o monte. Mas ela não tinha alma para emparceirar com ele. Era frouxa e submissa como uma cadela. Eu lhe conto.

Intervalando a narrativa de remoques contra os dias e as pessoas de hoje, o velho Medina acabou por erguer, inteiro, na minha frente, o carácter bravio do lavrador de Albarrã. Fê-lo com um facto agora, outro logo, tudo despegado, mas isso de modo nenhum diminuiu a minha atenção e interesse.

Duma vez, andava ele na feira de Castro, como senhor e dono, rompendo a direito por aquele mar de gente. Todos se afastavam, abrindo uma larga rua. Nisto, dá com um pobre de Cristo, cavador de enxada, homem escorreito e de olhar lavado. "Desvia-te!", grita-lhe o lavrador. E o outro, quieto, encarando-o de frente. Vai o de Albarrã enlaça no punho a volta do cavalo-marinho. Não teve tempo para mais: num repente, o homem desferiu-lhe uma cacetada que o tornbou. Levaram-no para a herdade, de cabeça aberta. Veio o médico tratá-lo. Ao cabo de duas semanas, já refeito, mandou que, a bem ou a mal, lhe trouxessem o homem. Quatro malteses escolhidos a dedo saíram de manhã; pela tarde, escoltando o cavador, que se havia despedido da família como se fosse para a morte, entravam no terreiro. Mal o viu, o de Albarrã disse para todos: "Aqui está um homem da minha igualha!" Sentou-o à sua mesa e fez-lhe uma grande festa. No fim, levou-o à cavalariça, onde animais de raça escoucinha-

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O ÚLTIMO SENHOR DE ALBARRÃ

vam as baias. E disse-lhe: "Vieste a pé, vais voltar a cavalo: escolhe Aquele que melhor te parecer." O pobre fez a escolha. "É teu", rematou o lavrador. "Adeus. E, quando te vires em apertos, toma o caminho de Albarrã e encontrarás um amigo."

Era desta raça, o homem! exclamou o velho Medina, após breves momentos de silêncio. Haverá disto, hoje em dia?

Ergueu-se, começou a passear, soprando, furibundo, de um lado para o outro. Já eu temia que o ódio sentido contra este tempo e esta gente destruísse no velho o amor ao passado, levando-o a esquecer naquele ponto a narrativa, quando ele veio direito a mim de dedo estendido:

E o que esse homem fez pela filha dos Mendos de Ourique, enquanto se namoraram! Sabe lá a que rasgos o levou o amor! Oiça isto: a família dela odiava-o, não queria o casamento por nada deste mundo. Vai, afastam-na para casa de uma tia, em Beja, escoltada pelos irmãos, dois homens que nem duas torres. Pois o de Albarrã, alta noite, aparecia na cidade e batia-se, sozinho, veja bem, sozinho contra cinco ou seis facínoras pagos para lhe tolherem o passo. Ninguém lhe resistia, nem os cunhados. Por uma bagatela uma mulher!... arriscou a vida dez, vinte vezes. E ao dealbar da aurora, quando a rapariga, inquieta, erguia a cortina da janela, lá estava ele, no passeio fronteiro, sangrento e vitorioso, a sorrir-lhe!...

Agarrando-me pelo ombro, o velho Medina sacudiu-me:

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O senhor está a ouvir? Acaso tem alma para compreender a grandeza desta paixão?

Largou-me e afastou-se, abanando a cabeça. Ao voltar, parecia desolado:

Mas o que é o amor?... O amor... Uma imaginação de quem ama, mais nada. Sim: como todos, ele amava a mulher que idealizara e não a criatura que ela era na realidade. Amava um sonho. Ele queria-a para acabar de vez com a solidão e com a loucura da vida que levava, pois era órfão desde muito novo, não tinha ninguém, sentia-se só, desgraçado, perdido num mundo de bebedeira e de violências, e desejava uma mulher, filhos, um lar, ternura. E depois? Depois que a raptou e se casaram? Desfez-se a ilusão. A coitada não tinha préstimo nenhum. Sequer um filho lhe deu. E covarde: sempre a choramingar pelos cantos, sempre doente, roída de saudades da casa paterna. Que mal que aquilo acabou! Ele espancava-a e chorava, chorava o grande amor que ela tinha desfeito.

O velho Medina emudeceu, numa profunda comoção. Parecia que todos estes factos se haviam passado com ele. Sentou-se, observando-me longamente com os olhos humedecidos:

Ouviu tudo quanto eu disse?

Ouvi.

E compreendeu o drama?

Creio que sim, Sr. Medina.

Cerrou as pálpebras, erguendo as sobrancelhas:

Estes jovens de hoje!... Não têm sensibilidade nem alma. Não têm nada... Na sua idade, ouvisse eu

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O ÚLTIMO SENHOR DE ALBARRÃ

uma coisa destas, e eram logo as lágrimas a correrem-me às bagadas pela cara abaixo.

Encolheu os ombros, como que resignado.

Não sei se já lhe contei que o lavrador teve muitas amantes recomeçou. Uma delas era bonita, sã de corpo e de cabeça, cheia de mocidade; deu-lhe um filho. Pois bem. Que devia ele fazer? Ir com a dos Mendos a Ourique, pô-la em casa dos pais, e dizer: "Fiquem-se com a vossa filha; agora, tenho mulher!"? Mas o destino havia-o já amarrado àquela paixão. Não podia fugir-lhe. Até, por último, começou a dar-se com má gente, uma escória de patifes perseguidos pela lei que viviam acoitados em Albarrã. Ele mesmo cometeu alguns desacatos, coisas de certa monta. Depois, fazia verdadeiras orgias. E, já perdido de bêbado, lá pela noite dentro, punha toda a gente fora dos muros, a tiro. Procurava a mulher, e rogava-lhe, chorando, que o desviasse daquela vida. A mísera encolhia-se de medo, sem ânimo sequer para uma palavra. Então, uma grande ira secava os olhos do Albarrã. "Cadela", gritava-lhe. "Que fizeste tu da outra que eu amava?..." Rasgava-lhe os vestidos. De rastos, levava-a para o terreiro, atrelava-a à nora e, à chicotada, obrigava-a a puxar, toda nua, de tranças desmanchadas e soltas!...

Mas, Sr. Medina disse eu, estremecendo. Só um selvagem...

Cale-se! O senhor não percebe! gritou-me o velho, num torn arrastado e veemente. O senhor não sabe o que sente um homem sem ninguém, rodea-

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do pela vastidão dos ermos, um homem que já perdeu a esperança de alcançar o que sonhou, e solitário sobre este imenso mundo! Está a ouvir? Pense em tudo quanto lhe contei, vá a Albarrã, olhe à sua volta, e compreenderá um pouco.

Ainda tentei dizer qualquer coisa, mas o velho fitava-me de rosto endurecido:

Não me interrompa mais, e oiça. Um dia, veio de Castro uma forte escolta de guardas. Entrou à força em Albarrã e, de espingardas em riste, levou dois facínoras que se haviam acoitado ali. O lavrador estava de cama, doente. Quando teve conhecimento do facto, já a guarda ia longe. Mas fizesse agora o que fizesse, naquela tarde tinha findado o seu domínio Albarrã, a antiga, não era agora mais do que um monte igual a todos os outros. Quando apareceu no terreiro, ganhões e malteses recuaram diante da sua expressão devastada. Ele apenas apontou para o portão chapeado de ferro, e disse: "Descerrem-no de par em par. De hoje para sempre, ficará aberto noite e dia." Entrou em casa, sentou-se à cabeceira da enorme mesa e, em silêncio, começou a beber. Lá pela madrugada, foi ao quarto, arrastou a mulher pelos cabelos, pô-la, toda nua, de pé, sobre a mesa. Sentou-se, de olhar inquieto. Parecia que tentava recordar qualquer coisa há muito esquecida. Mal a mulher se mexia, atirava-lhe violentos golpes de cavalo-marinho pelas pernas, pelo tronco: "Quieta!" De cabelos caídos até às coxas, a mulher gemia baixinho, trémula como uma cadelita espancada. Acabou por trambulhar para o chão, sem sentidos.

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De novo, o cavalo-marinho lhe estalou sobre a carne: "Levanta-te! Levanta-te!" Mas quando se apercebeu de que ela já o não ouvia, o lavrador de Albarrã ajoelhou-se, beijou-lhe as feridas e disse: "Perdoa-me." Absorto, o velho Medina repetiu:

Perdoa-me!...

E, muito lentamente, interrogou-me:

Agora, já está a adivinhar o que vai acontecer, não?

Bem... tartamudeei eu, pouco seguro sobre o fim de tais acontecimentos. Creio que o melhor era a separação, talvez o divórcio...

O divórcio?

O velho Medina ria-se-me na cara, cheio de desprezo.

Qual divórcio! Ele não era homem para bagatelas dessas! Pois quando um indivíduo duma tal natureza pede perdão, seja a quem for, não se vê, com grande facilidade, o que vai acontecer? Caramba! Oiça, que o resto já pouco tem que contar. O de Albarrã nunca mais falou a ninguém; andava alheio a tudo, como que adormecido. Uma noite, pôs sobre a mesa todas as garrafas da adega. Bebeu até fartar. Pegou num pau e desfez as garrafas à cacetada. O chão lajeado ficou coberto de vidros... Está a ver o chão cheio de vidros, vidros de garrafas, hem?

Estou, Sr. Medina.

Bem. Então, o de Albarrã despiu-se, subiu para cima da mesa e atirou-se de borco para o chão! Ergueu-se com o corpo cravejado dos cacos agudos das

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O ÚLTIMO SENHOR DE ALBARRÃ

garrafas. Atirou-se novamente para o chão. Tornou a erguer-se, sangrento, tornou a atirar-se. E assim fez, sem que ninguém lhe acudisse, até ficar a esvair-se em sangue, uivando de dor como um animal bravio!

Que bicho!... murmurei, arrepiado.

Mas o velho Medina nem sequer me ouviu; parecia rever-se na cena que acabava de contar.

Como os homens mudaram!... lamentava-se ele. E pensar eu que esse que há pouco aí esteve a meter gasolina, esse peralvilho de casaco branco sobre os ombros, é neto de um homem daquela têmpera.

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Um nosso semelhante
Leonel Badanas, o bombeiro, acaba de vestir a farda cheia de botões dourados. Está diante do espelho e põe de várias maneiras o amarelo, rebrilhante, enorme capacete. Vira-se para um lado e para outro. Torna a mudar-lhe a posição sem se decidir por nenhuma. Mas, como não tem pressa, ainda teima em pôr de acordo aquele extraordinário chapéu com a alevantada e grave expressão do rosto.

Por fim, já com os músculos da cara doridos, sai, muito embora não vá plenamente satisfeito.

Na rua, alarga um passo de ginasta e adianta o peito. A espinha flecte em arco, pondo em grande relevo as nádegas magras. Apesar disso, Leonel Badanas sacode os braços com arrogância. Tem assim como que uns longes de galo, de asas meio abertas, chispando raios de Sol da luzidia crista.

De repente, ao voltar da esquina, tropeça numa

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MANUEL DA FONSECA

súbita ideia, e tudo aquilo se desfaz. Equilibra-se a custo: fica uma Jarda amarrotada, lá dentro, um homenzinho mirrado com uma enorme campanula amarela na cabeça.

Desalentado, o bombeiro retrocede. Empurra a porta de casa e grita, levantando lentamente as mãos:

Onde está a minha medalha?

Do quarto sai uma mulher de feição apagada e receosa:

Estive a areá-la... Esqueci-me...

Vai buscá-la, mulher!

"Que irritação! Por um pouco, e entrava no jardim sem a medalha! No jardim, onde está toda a gente da vila, na grande festa a favor das Florinhas da Rua!.,." Mesmo agora, enquanto a mulher lhe cose na farda a fitinha que segura a medalha, ele a descompõe. De instante a instante, repete:

Olha se eu me esquecesse, hem!

De novo na rua, volta ao passo largo e seco; peito arqueado, nádegas saídas. Dependurada da farda, a medalhinha branca agita-se em movimentos desordenados. E reluz ao sol, num alegre desafio com o capacete.

Esta medalha ganhou-a ele no último Inverno. Os bombeiros formaram em parada diante da casa-esqueleto onde fazem exercícios ao domingo. O povo, rodeando as individualidades mais representativas, assistiu. E, após ter falado cerca de dez minutos, o comandante dos Voluntários parecia muito comovido. Depois de condecorar o bom do Leonel, abraçou-o carinhosamente.

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UM NOSSO SEMELHANTE

Em seguida, o presidente da Câmara desenrolou uma folha de papel, pôs as lunetas, e começou a ler num estranho torn de voz, áspero e sacudido. Louvou o Badanas, comparou-o com os mais abnegados heróis da humanidade, enalteceu a corporação e o seu chefe. Espraiou-se sobre as belezas da paisagem em redor da vila, falou das riquezas agrícolas do concelho, elogiou de novo Badanas. E, com palavras ainda mais sacudidas e ásperas, disse que ia dar uma grande novidade: em breve, os Voluntários teriam, enfim, a sua autobomba!

Apesar de esta informação não constituir surpresa para ninguém, a assistência rejubilou. Enquanto as palmas reboavam, todos se voltaram enternecidos para o Leonel Badanas. Em sentido, rígido como uma estaca espetada no chão, debaixo do capacete amarelo, Badanas, de pálpebra caída, fitava modestamente os barrotes da casa-esqueleto.

E, muito embora se não fizesse nenhuma referência aos motivos que haviam originado tal cerimónia, talvez não seja de todo descabido narrá-los. É certo que, enquanto discursava, o presidente da Câmara aludiu vagamente "ao salvamento de um nosso semelhante". Mas, quem pensou, sequer por momentos, que tais palavras se referiam ao velho Rana? Ninguém. Já todos o haviam esquecido.

Ora, a verdade acerca dos factos que levaram o Leonel a ganhar a medalha e os elogios é esta: por um sol-posto frio, vindo não se sabe de onde, o Rana chega à vila e vai parar junto de uma das vendas. Para ali

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MANUEL DA FONSECA

fica, reles e miserável, encolhido contra a parede. Os ossos do rosto parecem apostados numa vã tentativa de esticar a pele engelhada e escura. O resto é uma confusão de pêlos de cor indecisa que lhe tapam a boca e o peito. E no meio das barbas, no fundo dos ossos, brilham dois olhinhos parados, fixos.

"Um nosso semelhante"! com medo que o enxotem, como se faz aos cães, nem se atreve a entrar na venda. Somente se encolhe ainda mais. Quase toca com a barba nos joelhos, como se assim, miudinho e sumido, a nortada que corre pela planície não atente tanto contra o corpo arroxeado que os farrapos destapam a cada momento.

Em dada altura, ergue a mão para um homem que se aproxima. Este sacode a cabeça, negando esmola. Mas o Rana quer apenas um pequeno favor. A única dificuldade consiste em encontrar as palavras. Os olhos têm a mesma fixidez, só as rugas, mais cavadas, denunciam o doloroso esforço do cérebro. Por fim, lá consegue explicar-se. Acaso o homem sabia onde morava o Chico Rana? Vagaroso, o homem aponta para um casebre, ao fundo da estrada que sai do largo, já fora da vila.

Arrastando-se, o mendigo vai todo em arco, a vara numa das mãos, a outra premendo a quebradura contra a virilha. Em frente do casebre, os pêlos da barba mexem-se ao sopro duma palavra:

Chico!

Dentro ninguém ouviu, tão fraca é a voz. Daí a pouco, a porta range nos gonzos ferrugentos, e aparece

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UM NOSSO SEMELHANTE

uma mulher. Traz um fogareiro que coloca no chão, de modo a que o vento ajude a atear o lume. Feito isto, olha para o velho e diz:

Aqui é que vossemecê vem pedir? Acocorada, ajeita os pedacitos de madeira que teimam em não arder:

Vá à vila, tiozinho, vá à vila. Lá é que lhe podem dar esmola. Mas acrescenta, abandonando o torn de censura hoje não pense nisso: só ao sábado é que dão.

Entretanto, um homem aparece entre os umbrais da porta. Olha demoradamente para o velho e o rosto endurece-lhe:

com que então é você!

Admirada, a mulher levanta-se. O mendigo continua curvado; mas, como adiantou o queixo, sorrindo humildemente para o filho, a nortada brinca-lhe com as barbas.

Sempre acabou por descobrir-me, hem? exclama o homem, descendo da soleira. Que quer, diga lá?

O velho recua. Aquela voz irritada torna-se-lhe agora compreensível. Na sua frente, Chico Rana oscila a cabeça, como para conter as frases de ira que o atormentam. Mas acaba por soltá-las:

Quer casa e mesa, não? Isto não é hotel! Está velho? Que tenho eu com isso? Comer não arranjamos nós todos os dias!

Vai à mulher e empurra-a para dentro do casebre. Volta-se de braços erguidos:

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E eu? Que me deu você? Nem a ponta dum como! Em que é que^você é meu pai, diga lá?

O mendigo vai recuando. Sem tirar a mão de entre as pernas, cauteloso pela descida que o atalho faz até à entrada, toma a direcção da vila. Atravessa-a sempre de olhar fixo. E desaparece ao longe, enrolado no vento e na noite que cresce sobre a planície.

Volta no outro dia, batendo de porta em porta como não é sábado, nada lhe dão. Pelo meio-dia, escorrega rente à parede da venda do largo. Ajeita-se melhor, todo dobrado, a barba contra os joelhos.

Parecem de cego os olhos que a fome tornou baços. Parados, nada vêem. Assim a mesma quietude por todo o corpo, como se a imobilidade da morte lhe houvesse tocado no coração.

Um camponês passa pelo Rana, olha-o atentamente, e entra na venda:

Sabem quem é esse que está aí fora?

Dois homens afastam-se até à porta. Devagar, examinam o mendigo coberto de farrapos.

Na diz um deles. Não o conheço.

O camponês está junto do balcão, de costas para a rua:

É o Rana. Vira-se, e repete:

O Rana, um que, por último, trabalhava na Herdade da Salgada.

Tem razão diz o dono da venda, encostando-se ao mostrador. Vi-o andar por aqui, ontem, e não o reconheci. Olha quem me havia de dizer que o Rana, um homem de trabalho...

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UM NOSSO SEMELHANTE

É verdade recomeça o camponês, sorrindo contrafeito. Trabalhou sempre. Agora, a pedir.

Baixa a cabeça. O rosto some-se-lhe sob a aba do chapéu:

Encha-me aí um copo, mestre Zé. Endireita-se, fita os dois homens:

Vocês já pensaram que, quando a gente não prestar para nada...

Cala-se. No silêncio, ouve-se a torneira do barril ranger, depois, o vinho escorrendo para o copo.

Fora, pesadas nuvens negras escurecem o dia muito antes do sol desaparecer, e a ventania gelada varre o largo deserto. Os camponeses saem da venda a caminho de casa. Apenas o Rana continua sentado junto da parede.

Súbito, atira a mão para a frente e ergue-se, trémulo. Deixa abandonados no chão os seus únicos bens: a vara e o saco vazio. E, de braços abertos, caminha, inseguro e desolado, como os ébrios. Perto do poço que há a um canto do largo, a dor trava-lhe os pés. Cuidadosamente, ajeita o intestino entre as pernas; encosta-se ao bocal, com o braço livre puxa o corpo, e tomba para dentro.

A pancada na água ressoa no largo. Aparece gente, correndo.

Leonel Badanas é o primeiro a debruçar-se sobre o bocal. Logo que os olhos se habituam ao escuro do poço, grita:

Teve sorte, o raio do velho!

Todos vêem agora o Rana, ansiado de boca aberta,

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MANUEL DA FONSECA

como para vomitar. A água dá-lhe pelos ombros. Então, compreendenj a frase do Badanas. O velho caiu no estrado de madeira que apanha metade do círculo do poço, um pouco abaixo do nível da água, e serve para os trabalhos de limpeza quando, no Verão, a nascente enfraquece.

Dirigindo o salvamento, Leonel Badanas dá ordens. Vem uma escada. Descem-na até ao estrado, e o bombeiro prepara-se para saltar, quando lhe ocorre uma ideia. Para quê molhar-se com um frio daqueles? Seguindo o curso do pensamento, ordena ao mendigo:

Sobe, maroto!

A cabeça do Rana desaparece debaixo da água. Por momentos, cresce a expectativa em volta do bocal. Banadas ainda sobe para a escada, mas de novo estaca. Nesse instante, a cabeça do mendigo reaparece. A água escorre-lhe da boca e das barbas.

Sobe, malandro! grita Leonel Badanas. Senão you lá abaixo!

Reanimado, o Rana volta a mergulhar. Quer morrer. No entanto, já sob a água, no último momento, não consegue evitar aquele retesamento de músculos que lhe estica imperiosamente o corpo. Respira de novo o bom ar da vida, e o primeiro movimento é a mão que o faz, introduzindo-se entre as pernas, compondo a quebradura.

Badanas corre à venda e volta com uma comprida vara. Intima o mendigo a subir. Como este se não resolve, aplica-lhe uma varada na cabeça.

Sobes ou mato-te, patife!

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UM NOSSO SEMELHANTE

As pancadas sucedem-se umas às outras. O velho mete a cabeça debaixo de água: vem a aflição da asfixia ergueu-se: cá fora espera-o uma varada. Estonteado, por fim sobe a escada, de mão na virilha, gemendo.

Malandro, que te mato! grita o bombeiro, de

vara no ar.

Levam-no até à Câmara Municipal. O presidente adianta-se e, com os modos carrancudos de sempre, começa a falar ao Badanas. Nos olhos do mendigo abre-se um luaceiro de esperança; decerto, iam castigar aquele maldito que o não deixara aquietar-se de vez. Mas tudo acaba de modo diferente. O presidente aperta a mão do bombeiro:

Vai então ganhar a medalha, hem? Merece-a. Salvou um homem.

Assim veio a acontecer. Datava de há muito pouco a corporação dos Voluntários e de modo nenhum se deixaria passar aquela esplêndida oportunidade para lhe justificar os préstimos. O próprio comandante já ali estava a tomar nota do caso. E Leonel Badanas baixa os olhos, cheio da natural modéstia dos homens decididos.

Nesse momento, alguém ergue o Rana por debaixo dos sovacos. É o carcereiro. Pingando água, de mão entre as pernas, o mendigo é arrastado como um saco para dentro da cadeia.

Não assistiu à cerimónia junto da casa-esqueleto onde os bombeiros fazem exercícios aos domingos, nem teve notícia dos discursos em louvor do "salva-

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V4,
MANUEL DA FONSECA

mento de um nosso semelhante", pois foi posto na rua e enxotado para fora do concelho dois dias depois de preso. Antes disso, no entanto, ainda ficou por largo tempo olhando de longe para as grades da cadeia. Tinham-lhe dado de comer enquanto lá estivera.

Sempre é uma companhia

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António Barrasquinho, o Batola, é um tipo bem achado. Não faz nada, levanta-se quando calha, e ainda vem dormindo lá dos fundos da casa.

É a mulher quem abre a venda e avia aquela meia dúzia de fregueses de todas as manhãzinhas. Feito isto, volta à lida da casa. Muito alta, grave, um rosto ossudo e um sossego de maneiras que se vê logo que é ela quem ali põe e dispõe.

Pois quando entra para os fundos da casa, vem saindo o Batola com a cara redonda amarfanhada num bocejo. Que pessoas tão diferentes! Ele quase lhe não chega ao ombro, atarracado, as pernas arqueadas. De chapeirão caído para a nuca, lenço vermelho amarrado ao pescoço, vem tropeçando nos caixotes até que lá consegue encostar-se ao umbral da porta. Fica assim um pedaço, a oscilar o corpo, enquanto vai passando as mãos pela cara, como que para afastar os restos do

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MANUEL DA FONSECA

sono. Os olhos, semicerrados, abrem-se-lhe um pouco mais para os campos. Mas fecha-os logo, diante daquela monotonia desolada.

Dá meia volta, enche a medida com o melhor vinho que há na venda, coloca-a sobre o balcão. Ao lado, um copo. Puxa o caixote, senta-se e começa a beber a pequenos goles. De quando em quando, cospe por cima do balcão para a terra negra que faz de pavimento. Enterra o queixo nas mãos grossas e, de cotovelo vincado na tábua, para ali fica com um olhar mortiço.

Às vezes, um rapazito entra na venda:

Tio Batola, cinco tostões de café.

O chapeirão redondo volta-se, vagaroso:

Ha?...

Cinco tostões de café!

Batola demora os olhos na portinha que dá para os fundos da casa. Mas é inútil esperar mais. "Ah, se a mulher não vem aviar o rapazito é porque não quer, pois está a ouvir muito bem o que se passa ali na loja!" Quando se assegura que é esta e não outra a verdade dos factos, Batola tem de levantar-se. Espreguiça-se, boceja, e arrasta-se até à caixa de lata enferrujada. Mede o café a olho, um olho cheio de tédio, caído sobre o canudinho de papel.

Volta a encher o copo, atira-se para cima do caixote. E, no jeito que lhe fica depois de vazar vinho goela abaixo, num movimento brusco, e de ter cuspido com uns longes de raiva, parece que acaba de se vingar de alguém.

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SEMPRE E UMA COMPANHIA

Tais momentos de ira são pedaços de revolta passiva contra a mulher. É uma longa luta, esta. A raiva do Batola demora muito, cresce com o tempo, dura anos. Ela, silenciosa e distante, como se em nada reparasse, vai-lhe trocando as voltas. Desfaz compras, encomendas, negócios. Tudo vem a fazer-se como ela entende que deve ser feito. E assim tem governado a casa.

Batola vai ruminando a revolta sentado pelos caixotes. Chegam ocasiões em que nem pode encará-la. De olhos baixos, põe-se a beber de manhã à noite, solitário como um desgraçado. O fim daquelas crises tem dado que falar: já muitas vezes, de há trinta anos para cá, aconteceu a gente da aldeia ouvir gritos aflitivos para os lados da venda. Era o Batola, bêbado, a espancar a mulher.

Tirando isto, a vida do Batola é uma sonolência pegada. Agora, para ali está, diante do copo, matando o tempo com longos bocejos. No estio, então, o sol faz os dias do tamanho de meses. Sequer à noite virá alguém à venda palestrar um bocado. É sempre o mesmo. Os homens chegam com a noitinha, cansados da faina. Vão direito a casa e daí a pouco toda a aldeia dorme.

Está nestes pensamentos o Batola quando, de súbito, lhe vem à ideia o velho Rata. Que belo companheiro! Pedia de monte a monte, chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana. Até fora a Beja. Voltava cheio de novidades. Durante tardes inteiras, só de ouvi-lo parecia ao Batola que andava a viajar por todo aquele mundo.

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MANUEL DA FONSECA

Mas o velho Rata matara-se. Na aldeia, ninguém ainda atina ao ç^rto com a razão que levou o mendigo a suicidar-se. Nos últimos tempos, o reumatismo tolhera-lhe as pernas, amarrando-o à porta do casebre. De quando em quando, o Batola matava-lhe a fome; mas nem trocavam uma palavra. Que sabia agora o Rata? Nada. Encostado à parede de pernas estendidas, errava o olhar enevoado pelos longes. Veio o Verão com os dias enormes, a miséria cresceu. Uma tarde, lá se arrastou como pôde e atirou-se para dentro do pego da ribeira da Alçaria.

Aos poucos o tempo apagou a lembrança do Rata, o mendigo. Só o Batola o recorda lá de vez em quando. Mas, agora, abandonou a recordação e o vinho, e vai até ao almoço. Nunca bebe durante as refeições.

Depois, o sol desanda para trás da casa. Começa a acercar-se a tardinha. Batola, que acaba de dormir a sesta, já pode vir sentar-se, cá fora, no banco que corre ao longo da parede. A seus pés, passa o velho caminho que vem de Ourique e continua para o sul. Por cima, cruzam os fios da electricidade que vão para Valmurado, uma tomada de corrente cai dos fios e entra, junto das telhas, para dentro da venda.

E o Batola por mais que não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão no fundo dos córregos. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a solidão dos campos. E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que dorme

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SEMPRE É UMA COMPANHIA

profundamente. Oh, que despropósito de plainos sem fim, todos de roda da aldeia, e desertos!

Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. A noite vem de longe, cansada, tomba tão vagarosamente que o mundo parece que vai ficar para sempre naquela magoada penumbra.

Lá vêm figurinhas dobradas pelos atalhos, direito às casas tresmalhadas da aldeia. Nenhuma virá até à venda falar um bocado, desviar a atenção daquele poente dolorido. São ceifeiros, exaustos da faina, que recolhem. Breve, a aldeia ficará adormecida, afundada nas trevas. E António Barrasquinho, o Batola, não tem ninguém para conversar, não tem nada que fazer. Está preso e apagado no silêncio que o cerca.

Ergue-se pesadamente do banco. Olha uma última vez para a noite derramada. Leva as mãos à cara, esfrega-a, amachucando o nariz, os olhos. Fecha os punhos, começa a esticar os braços. E abre a boca num bocejo tão fundo, o corpo torcido numa tal ansiedade, que parece que todo ele se vai despegar aos bocados. Um suspiro estrangulado sai-lhe das entranhas e engrossa até se alongar, como um uivo de animal solitário.

Quando consegue dominar-se, entra na venda, arrastando os pés. E, sem pressentir que aquela noite é a véspera de um extraordinário acontecimento, lá se vai deitar o Batola, derrotado por mais um dia.

De facto, na tarde seguinte apareceu uma nuvenzinha de poeira para as bandas do sul: ouvia-se ronronar um motor. Pouco depois, o carro parou à porta da ven-

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da. Fazia anos que tal se não dava na aldeia. Pelas portas, apareceram mulheres e crianças.

Dois homens saíram do carro. Um deles trazia fato de ganga, o outro, bem vestido, adiantou-se até à porta:

Não nos pode dispensar uma bilha de água? Batola, daí a pouco, sai com a infusa a escorrer.

O do fato de ganga, que havia tirado a tampazinha da frente do carro, pôs-se a deitar a água para dentro. Enquanto isto acontece, o sujeito bem vestido dá uma mirada pela aldeia, pelos campos. Sopra, afogueado:

Que sítio!...

Mas ao ver os fios da electricidade e a ligação que entra junto das telhas da casa, olha para o Batola com atenção, medindo-o de alto a baixo. Entra na venda, põe-se a observar as prateleiras. O exame parece agradar-lhe. Volta-se, sorridente, para o Batola, que lhe segue, desconfiado, todos os movimentos:

Tem cerveja?

Na. Só vinho...

Traga o vinho.

Muito instado, Batola bebe também. E aqui começa uma conversa que ele não entende. Só percebe, e isso agrada-lhe, que o homem é simpático e franco. Mas agora há uma pergunta a que tem de responder.

Não, senhor...

O sujeito vai à porta, e diz para o motorista:

Calcinhas, traz aí uma caixa do modelo pequeno.

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SEMPRE É UMA COMPANHIA

A caixa é colocada sobre o balcão. De dentro sai uma outra caixa, mas de madeira polida. Ao meio tem um rectângulo azul, cheio de letras e, em baixo, ao comprido, quatro grandes botões negros.

Não tem uma tomada?

Em face da resposta, o homem vai ao automóvel. Volta e sobe ao balcão. Tira a lâmpada, enrosca aí a tomada, puxa o fio que sai da caixa, liga-o, e salta para o chão. Só nesse momento o Batola compreende. A princípio, apenas saem ruídos ásperos da caixinha, mas, aos poucos, desaparecem. Vem então uma música modulada, grave.

Hem? Que tal?

Esfregando as mãos, começa a enumerar rapidamente as qualidades de um tal aparelho:

É o último modelo chegado ao país. Quando se quer, é música toda a noite e todo o dia. Ou então canções. E fados e guitarradas! Notícias de todo o mundo, desde manhã até à noite, notícias da guerra!...

Aponta para o rectângulo azul:

Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui, a América. É simples: vai-se rodando este botãozinho...

Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama:

Dou-lhe a minha palavra de honra que não encontra nenhum aparelho pelo preço deste!

Sem dar tempo a qualquer resposta, ordena:

Traz a pasta, Calcinhas!

Vem a pasta. Batola, aturdido, olha para os papéis de várias cores que vão aparecendo sobre o bal-

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SEMPRE É UMA COMPANHIA

cão. A música, vibrante, enche a venda, ressoa pelos

campos. f

Aqui é Londres, hem! grita o homem. O senhor sabe ler? Então leia aqui!

Mostra os papéis, gesticula e sorri, sorri sempre. Batola coça o queixo com os dedos grossos. Olha as contas que o outro lhe mostra, olha de soslaio para a mulher. Volta a coçar-se. E tudo isto se repete durante uma longa hora.

Batola, por fim, cabisbaixo, emudece, como que vencido. Rapidamente, o vendedor preenche, sobre o balcão, um largo impresso e, depois, doze letras. São as prestações. Dá a caneta ao Batola que se põe a assinar penosamente papelinho a papelinho. Está quase a acabar a difícil tarefa quando a mulher o interrompe, numa voz lenta e carregada:

António, tu não compras isso.

Então, inicia-se uma luta entre o vendedor e a mulher. Mas as frases e o sorriso do homem bem vestido não surtem agora o mesmo efeito: vão-se sumindo, sem remédio, diante daquele rosto ossudo e decidido. Ali, só há uma palavra:

Não.

A cara redonda do Batola começa a encher-se de fundas rugas. Num repente, pega na caneta e assina o resto das letras:

Pronto! Quem manda sou eu!

Os olhos da mulher trespassam-no. Volta o rosto pálido para o vendedor de telefonias, torna a voltar-se para o marido. Por momentos, parece alheada de tudo

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quanto a cerca. Vagarosa, no torn de quem acaba de tomar uma resolução inabalável, apruma-se, muito alta, dominadora, e diz:

António, se isso aqui ficar eu saio hoje mesmo de casa. Escolhe.

Toda a gente da aldeia que enche a venda sabe que ela fará o que acaba de dizer. Até o vendedor pressente que assim será. Pensativo, olha para o Batola. De súbito, tira um papel qualquer de dentro da pasta e adianta-se:

Bem, a senhora não se exalte. Faz-se uma coisa: a telefonia fica à experiência, durante um mês. Se não quiserem, devolvem-na; nós devolvemos as letras. Assine aqui, Sr. Barrasquinho. Pronto. Agora já a senhora pode ficar descansada.

Mas pergunta ainda a mulher quanto se paga de aluguer por esse mês?

Nada! responde o homem, de novo risonho. Por isso não se paga nada!

E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara que já é muito tarde. Apressado, conta que veio por ali devido a um engano no caminho. Sai da venda, entra no carro, e diz ao Batola, aproveitando o ruído do motor:

Você, agora, arrume a questão: tem um mês para a convencer.

Mal o carro parte, deixando uma nuvem de poeira à retaguarda, atira a pasta para o assento de trás, e grita alegremente:

Hem, Calcinhas! Levou-me uma tarde inteira, mas foi. Foi de esticão!

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*
MANUEL DA FONSECA

De facto, era sol-posto, pelos atalhos, os ceifeiros recolhiam à aldeia.

Mas, nessa tarde, vieram todos à venda, onde entraram com um olhar admirado. Uma voz forte, rápida, dava notícias da guerra.

Só de lá saíram depois de a voz se calar. Cearam à pressa, e voltaram. Era já alta noite quando recolheram a casa, discutindo ainda, pelas portas, numa grande animação.

Um sopro de vida paira agora sobre a aldeia. Todos sabem o que acontece fora dali. E sentem que não estão já tão distantes as suas pobres casas. Até as mulheres vêm para a venda depois da ceia. Há assuntos de sobra para conversar. E grandes silêncios quando aquela voz poderosa fala de cidades conquistadas, divisões vencidas, bombardeamentos, ofensivas. Também silêncio para ouvir as melodias que vêm de longe até à aldeia, e que são tão bonitas!...

Acontece até que, certa noite, se arma uma festa na venda do Batola. Até as velhas dançaram ao som da telefonia. Nos intervalos, os homens bebiam um copo, junto ao balcão, os pares namoravam-se, pelos cantos. Por fim, mudou-se de posto para ouvir as notícias do mundo. Todos se quedaram, atentos.

Ah! grita de repente o Batola. Se o Rata ouvisse estas coisas não se matava!

Mas ninguém o compreende, de absorvidos que estão.

E os dias passam agora rápidos para António Barrasquinho, o Batola. Até começou a levantar-se cedo e

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SEMPRE É UMA COMPANHIA

a aviar os fregueses de todas as manhãzinhas. Assim, pode continuar as conversas da véspera. Que o Batola é, de todos, o que mais vaticínios faz sobre as coisas da guerra. Muito antes do meio-dia já ele começa a consultar o velho relógio, preso por um fio de ouro ao colete.

Só a mulher quase deixou de aparecer na venda. E ninguém sabe que pensa ela do que contam as vozes desconhecidas aos homens da aldeia, pois, através do tabique de ripas separadas por grandes fendas, ouve-se tudo que se passa na venda. Ouve-se e vê-se, querendo, a alegria que certas notícias trazem aos ceifeiros, o gosto e o propósito que eles têm ao ouvir determinada voz que é de todas a mais desejada e acreditada.

E os dias custaram tão pouco a passar que o fim do mês caiu de surpresa em cima da aldeia da Alçaria. Era já no dia seguinte que a telefonia deixaria de ouvir-se. Iam todos, de novo, recuar para muito longe, lá para o fim do mundo, onde sempre tinham vivido.

Foi a primeira noite em que os homens saíram da venda mudos e taciturnos. Fora esperava-os o negrume fechado. E eles voltavam para a escuridão, iam ser, outra vez, o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão. A esperança de melhor vida para todos, que a voz poderosa do homem desconhecido levava até à aldeia, apagava-se nessa noite para não mais se ouvir.

Dentro da venda, o Batola está tão desalentado como os ceifeiros. O mês passou de tal modo veloz

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que se esqueceu de preparar a mulher. Sobe ao balcão, desliga o fio e aguma o aparelho. Um pouco dobrado sobre as pernas arqueadas, com o chapeirão a encher-Ihe a cara de sombra, observa magoadamente a preciosa caixa.

Assim está, quando um pressentimento o obriga a voltar a cabeça: junto da porta que dá para os fundos da casa, a mulher olha-o com um ar submisso. "Que terá acontecido?", pensa o Batola, admirado de a ver ainda levantada àquela hora.

António murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda. Eu queria pedir-te uma coisa...

Suspenso, o homem aguarda. Então, ela desabafa, inclinando o rosto ossudo, onde os olhos negros brilham com uma quase expressão de ternura:

Olha... Se tu quisesses, a gente ficava com o aparelho. Sempre é uma companhia neste deserto.

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Meio pão com recordações
O descampado corria de todos os lados e cercava o casebre solitário. Distantes, solevando-se como uma brusca aparição, cabeços e montados recortavam-se a negro contra o fundo cor de cinza. Áspera, a ventania desabava sobre os plainos, agitava matos e sobreirais, vinha e gemia contra as telhas, contra a empena desmantelada.

Sentadas sobre os mochos, no fundo do casebre, Júlia e a velha Amanda Carrasca fitavam o chão. Sombras espessas faziam das paredes e dos recantos uma só mancha circular, apenas as cantarias da lareira se salientavam aprumadas.

Lentamente, Júlia volveu a cabeça. Na sua voz fraca, rouca, havia um profundo torn de desalento:

Faz-se umas sopas do resto do pão, não acha?

Sim respondeu a velha. Ainda aí temos uns alhos.

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.L.
MANUEL DA FONSECA

Júlia ergueu-se. Abriu a gaveta da mesa de pinho, tirou metade de um pão escuro e chato e começou a cortá-lo para dentro da tigela. A velha foi ao armário e. veio colocar sobre a mesa os restos duma cabeça de alhos. Levemente curvada, de olhos pequenos e vivos, seguia com avidez as fatias que tombavam do gume da faca.

Mal acabou de migar a metade do pão, Júlia desviou a tigela, e servindo-se da lâmina como de uma espátula começou a esmagar os alhos. O rosto comprido e trigueiro adoçou-se-lhe, numa esperança:

Se o Inácio matasse um coelho!... mas, repentinamente, levantou a cabeça. Foi o Bento que tossiu?

Na. É essa ventania a raspar contra as telhas.

Ainda bem... ciciou Júlia. Era mesmo bom, o coelho... cozia-se. Ao menos, hoje, enchíamos a barriga.

Fora, uma lufada violenta desferiu um gemido assobiado da empena do monte, um gemido longo que envolveu o casebre. Contrafeitas, as mulheres alongaram o olhar através da porta. O vento desgarrava-se da espessura do sobreiral e o cerro sacudia-se todo numa confusão de estevas.

Júlia sentou-se, poisou a faca sobre as fatias que enchiam a tigela e apoiou o queixo na palma da mão. Os olhos, salientes e ensombrados, desviavam-se num estrabismo que a tolhia numa atitude de alheamento para tudo que a cercava. Parecia apenas atenta ao que era distante e invisível.

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..l J*"

MEIO PÃO com RECORDAÇÕES

Será que vai haver trovoada, mãe?

Não me parece. Isto são nuvens de água. Agachada na lareira, Amanda acamava um feixi-

nho de estevas sobre as achas. Riscou o fósforo e pegou-lhe lume. Por mais que desviasse a cabeça, o fumo resinoso envolvia-a. com os olhos marejados de lágrimas, pegou no abano e sacudiu-o numa toada rápida.

Que sítio... suspirou Júlia. Até parece que me dá quebranto. Nem sei... mas, nestes dias, sinto-me aparvalhada, como se de repente fosse acontecer uma desgraça.

Ora!... Mariquices tuas.

A velha sentara-se no mocho. Sem deixar de abanar, limpava os olhos a uma das pontas do lenço. A pele, repuxada sobre os malares descarnados e sobre o nariz agudo, avermelhou:

Tu nunca mais te esqueces do Zambujal, mulher.

Como quer a mãe que me esqueça?

Fora, o choro do vento esvaía-se, numa agonia. Amanda Carrusca olhou para o lume tomada de súbita tristeza:

O meu mal é que já não tem sítio onde mude... Estou que nem me posso mexer, com dores.

Rápida, Júlia voltou-se:

Você só pensa em si! Se lhe digo que me sinto mal, a senhora está sempre pior! Nervosa, pegou na cafeteira, foi ao poial das bilhas, encheu-a de água, e veio pô-la sobre a trempe. Sempre gostava de saber o que lhe dói!...

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MANUEL DA FONSECA

Amanda Carrasca ensimesmou-se. Depois de reconsiderar longa/nente, encolheu a cabeça entre os ombros aguçados:

Eu sei lá... É assim uma dor. As mãos descarnadas tactearam sobre o peito, sobre as ilhargas. Nem eu sei ao certo...

Ora aí está!...

Acocorada, Júlia separava as cavacas e metia-as no lume. Mas o gemido do vento trespassou de novo a telha vã. Largou as achas e levantou-se:

Isso é do caruncho dos anos, senhora!

Os olhos miúdos de Amanda rebrilharam, límpidos e intensos:

Estás enganada, que não sou assim tão velha como tudo isso. O caruncho é de outra coisa.

Pegou no abano e esganiçou-se, espevitada:

Olha! Dês que me conheço, que a minha vida foi sempre a lidar. Caruncho dos anos... Por último, já tinha netos, até ceifei!

Júlia estava agora mais calma. As palavras exaltadas de ambas haviam quebrado um pouco a fria solidão do casebre. O vento soava, mais brando, com um ruído estrangulado pelo cano da chaminé.

Ceifar!... No meu tempo, era trabalho só para homens. Mas a vida deu uma grande volta...

Ajeitou os cabelos de um branco sujo sob o lenço puído. "Que a vida nunca foi boa, isso não", prosseguiu a velha, lentamente, como se falasse para ela própria:

Mas vinha o Natal e os lavradores davam peda-

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MEIO PÃO com RECORDAÇÕES

cos de toucinho. No Ano Novo, a gente ia por essas herdades cantar as Janeiras, e vinham chouriços, paios, bocados de lombo. E, em toda a roda do ano, sempre lhes sobravam umas pingas de azeite e uns saquitos de farinha. Agora, é tudo comprado... Quem há aí, na classe dos lavradores, que dê sequer dois dedos de toucinho?

De rosto lasso, Amanda repetiu, olhando para o lume com suavidade:

Toucinho...

O gato atravessara a porta, num salto, e viera silenciosamente até à lareira. Expôs ambos os lados do corpo ao calor, arqueou a espinha num movimento gracioso, patas esticadas, e abriu a boca num bocejo que fez tremer a grande sombra desenhada na parede.

O raio do gato anda farto!... exclamou a velha, mudando bruscamente.

Pudera disse Júlia. Tem andado aos ratos, lá pelo barranco.

Mas Amanda voltara a cabeça para o lume:

Se eu gostava de toucinho... Quando era daquele alto, cozido com feijão, comia-o às garfadas. A minha pena foi nunca comer quanto a barriga me pedia.

Eu também gostava muito de toucinho murmurou Júlia, sentando-se a olhar para o chão. Mas frio, em fatias delgadas. Lembra-me sempre lá no Zambujal... Pela manhã, no Inverno, punha-me a comê-las com pão, até a lavradora olhar para mim e

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MANUEL DA FONSECA

dizer: "Oh, moça, olha que arrebentas!" Se ela era minha amiga... f

Os olhos da velha reluziam por entre as sombras das chamas que lhe bailavam no rosto:

Ó Júlia! E pedaços de lombo fritos na banha vermelha?

Lá no Zambujal continuava Júlia havia sempre comida à farta, e eu servia-me de tudo que ia para a mesa dos patrões. Era a única criada a quem consentiam isso.

A voz das mulheres havia-se tornado lenta e cheia de uma ternura tensa.

Nunca me enjoava de carne, fosse qual fosse lembrava Amanda Carrasca. De porco, então, isso nem se fala. Como eu gostava de sentir a gordura a escorrer-me pelo queixo abaixo!...

com a cabeça levemente inclinada, Júlia olhava para a faca. No rosto e nos olhos desviados, imobilizara-se a suave expressão de quem recorda. A pouco e pouco, os lábios enrugaram-se-lhe, num trejeito de desânimo. Ergueu a cabeça:

A pena que me deu quando saí lá do Zambujal... E ia dizer ainda qualquer coisa quando reparou nas

magras e escuras fatias dentro da tigela. Meio pão. Apenas meio pão, nada mais que isso. Mexeu os lábios mas não conseguiu falar; ficou, muda, de olhos pregados na tigela.

No silêncio do casebre, a ventania ressoou solta, introduziu-se entre as telhas que se tocaram num ruído tilintado; no cano da lareira, rumorejou, soturno, aba-

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MEIO PÃO com RECORDAÇÕES

fando a chiada rabugenta da água a ferver sobre a trempe.

Os dedos de Amanda Carrasca haviam penetrado pela abertura da blusa e procuravam entre a camisa e a pele. Tirou-os, esfregou sisudamente o polegar contra o indicador, abriu-os, e a pulga estalou dentro do lume.

Saciado, o gato abriu de novo a boca, bocejando. Ligeira, a velha levantou a tenaz, mas o gato furtou-se à pancada com um meneio delicado de corpo. Rodeou o lume, e foi deitar-se no outro canto.

Oh, senhora? gritou Júlia, subitamente irritada. Que mal lhe fez o bicho?

Nenhum. Mas então que queres? Dá-me zanga o raio do gato.

Deixando cair a tenaz sobre a pedra da lareira, quase sem transição, Amanda recomeçou:

Pois é verdade... Isto deu uma grande volta. Aquela raça dos lavradores antigos acabou-se. Os de hoje já não dão nada. Moram nas vilas, têm casas nas cidades, não dão um passo sem ser de automóvel, inventam festas, não há cinemas nem teatros a que faltem. E para um estadão desses é preciso dinheiro e mais dinheiro: nunca se fartam. Por isso é que eles nos açulam os feitores às canelas, que nem deixam o pessoal respirar. Agora é tudo à má cara e de relógio na mão. Se até inventaram leis para um trabalhador ir abaixar-se atrás de uma moita!

Amanda Carrasca desviou os olhos para o lume. Esteve assim por momentos, depois olhou para a filha:

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MANUEL DA FONSECA

Uma coisa é certa: o mau passadio e as muitas canseiras é que foram o caruncho. Quem diz a verdade é o teu marido. Que já não valho as sopas que como, diz ele. E é assim mesmo.

Mas quem lhe disse essa mentira, criatura?

Ninguém.

Então como sabe?

Ora! Calculo eu.

As mãos de Júlia espalmaram-se sobre as saias. Alterada, movia a cabeça de um lado a outro:

Você passa o tempo a magicar coisas só para me fazer danar! Acha que é pequeno o inferno em que vivo? Acha?

Amanda Carrusca entesou o busto; as pontas do lenço atadas debaixo do queixo adiantaram-se, trémulas:

Oh, mulher! Se ele o dissesse, não era motivo para tanta espantação! Já dei o que tinha a dar e a culpa não é minha, pronto. Comecei por guardar porcos; agora cuido do teu filho.

Vejam lá!... O que para aí tem dito só porque lhe chamei velha... Você é mesmo geniosa, senhora!

O estampido de um tiro estalou ao longe, passou pelo casebre, e prolongou-se, despegando ecos de barranco em barranco. As duas mulheres levantaram-se ao mesmo tempo e ficaram a olhar-se, ansiadas, até o som morrer, levado pelo vento.

Teria ele matado o coelho?...

Decerto que matou! Amanda Carrusca, de

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MEIO PÃO com RECORDAÇÕES

olhos rebrilhantes, esfregava as mãos. O teu homem nunca erra um tiro!

Júlia pegou na tigela cheia de pão migado:

Que Deus a oiça!... Bem. Agora a mãe vá buscar o Bento. Veja se consegue trazê-lo que já está muito frio.

As duas mulheres mexeram-se, apressadas e leves, na penumbra da casa. Amanda suspendeu o abano do prego, foi à porta, e gritou com voz esganiçada:

Anda cá, Bento!

Segurou o bico do lenço, cuja ponta negra lhe voejava sobre as costas como uma asa, e pôs a outra mão ao lado da boca:

Pois tu não ouves, Bento?

Por cima das estevas, o penacho dos cabelos amarelos ia e vinha num baloiço certo.

Amanda saiu ao terreiro. O vento pegou-lhe nas saias e subiu-lhe pelas pernas; um arrepio obrigou-a a aconchegar os antebraços sobre a cintura. Junto do monte de pedras quase tapadas pela terra, avançou cautelosamente.

Vamos, Bento. Anda para casa.

Ao apelo respondeu um grunhido que se foi modulando ao compasso do incessante movimento de vaivém que Bento imprimia ao tronco.

Vamos.

O grunhido foi-se calando com o ritmo cada vez mais vagaroso do baloiço. com a cara de lado, Bento correu o olhar pelo corpo da avó, lentamente, desde os pés à cabeça, até ficar imóvel, de queixo levantado. As

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MANUEL DA FONSECA

pálpebras roxas abriam-se-lhe desmesuradamente, como se uma névqj lhe turvasse a vista. A cabeça torcida e o jeito dos braços soerguidos desenhavam-no na atitude de espanto e de alerta do animal que se apercebe da aproximação do inimigo.

A medo, Amanda adiantou a mão até tocar-lhe no ombro:

Anda, Bento.

Mas retirou-a vivamente. O neto arremetera, e com os dentes apanhara-lhe o braço um pouco acima do pulso. Do choque, Amanda rolou pelo monte de pedras, safando o braço num esticão.

Já fora de perigo, meio acocorada, observou através do rasgão recém-aberto as duas manchas avermelhadas que afloravam sobre a pele. Olhou em redor pelo chão lamacento, apressada, curvou-se e tentou tirar uma pedra. Mas o pedregulho estava encravado na terra e não saiu. Os olhos da velha fixaram-se sobre o neto. Avançou, devagar, e atirou-lhe um pontapé ao joelho. Bento arremeteu outra vez. Arrastava-se, ajudando com as mãos.

Às arrecuas, Amanda procurava agora o momento oportuno para novo pontapé. O vento enfunava-lhe as saias e a ponta do lenço, dobrada para o alto da cabeça, semelhava uma enorme crista negra.

De súbito, o temor fê-la correr para casa. Perto, voltou-se. O corpo franzino de Bento permanecia ainda na mesma atitude: os dentes arreganhados, o braço erguido e arqueado como uma pata prestes a desferir o golpe.

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MEIO PÃO com RECORDAÇÕES

Esfregando sobre a palma da mão o pulso dorido, Amanda Carrusca cruzou a soleira. Sentou-se no mocho, poisou o olhar nas chamas, e disse com voz amarga:

Vai tu buscá-lo que ele não quer vir.

Eu? Deixe lá; espera-se que o pai chegue. De há um tempo para cá, até ando com medo dele.

Raio da mulher, que tem medo de tudo! Reanimada pelo calor brando do lume, Amanda

aconchegou-se melhor. Abriu as pernas e puxou as saias até ao meio das canelas:

Pois olha, se tu quiseres, eu pego aí num pau e verás se o trago ou não para casa.

A cabeça adiantou-se-lhe quase toda fora do lenço:

Queres?

O moço é algum cão, senhora?

Escarninha e azeda, a cara de Amanda Carrusca reentrou no bioco do lenço:

Pudera! Não há-de ele fazer o que quer!... Olha para isto: atirou-me ao chão, e ainda por cima me mordeu.

O rosto macilento de Júlia inclinou-se para o pulso que a velha lhe estendia:

Que quer que lhe faça? Quer que mate o moço? Isso, também, nem ferida fez. O pior foi o rasgão.

Pois, o pior foi o rasgão! exclamou Amanda, erguendo as mãos e deixando-as cair abertas sobre os joelhos. E eu, que me não posso mexer com dores, que seja mordida e derrubada!

Irritada, Júlia explodiu:

Deixe-me, deixe-me!

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MANUEL DA FONSECA

Mas a velha levantou-se, afastou-a, e correu para a porta. Modificando a expressão por completo, Júlia seguiu-a.

Lá vem o teu homem!... disse Amanda Carrusca, semicerrando os olhos. Vês alguma coisa? Ainda não alcanço bem daqui!... Tu vês, vês o coelho?

Longe, na tarde tempestuosa, por momentos o perfil do Palma apareceu, negro, no alto de uma colina, com a espingarda segura pela câmara. Logo se sumiu, entre estevas.

Especadas sobre a soleira, as duas mulheres aguardavam numa grande incerteza. O próprio casebre parecia compartilhar da mesma expectativa. Estava meio em ruínas. O sol, chuvadas e ventanias haviam comido a cal e aberto fendas nas paredes. O telhado abatera-se numa breve reentrância, como um quarto crescente com os bicos voltados para o céu. E os buracos mal desenhados das janelas sem vidros fitavam com espanto a agressiva desolação da planície.

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