FLOR DE INVERNO
Angela Davis-Gardner
Distribuição e Formatação
Disponibilização e Tradução: Jo Slavic
Revisão Inicial: Bruna da Costa
Revisão Final: Vania Gusmão
Formatação: Karina Rodrigues
Esta é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, lugares e feitos são produtos da imaginação da autora ou são usados ficticiamente. Qualquer semelhança com feitos, lugares ou pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Título original: Plum Wine
© Angela Davis-Gardner, 2006
© Editorial Planeta, S. A., 2008
Avinguda Diagonal, 662, 6.a planta. 08034 Barcelona (Espanha)
Desenho e Ilustração da coberta: © Ideie
Primeira edição em Coleção Booket: novembro de 2007
Segunda impressão: fevereiro de 2008
Printed in Spain - Impresso na Espanha
Para Heath
Flor de ameixeira.
Coração e nariz para senti-la.
ONITSURA
Sinopse
Barbara, uma jovem professora norte-americana que leva uns meses dando aulas em uma universidade japonesa, recebe uma terrível noticia: Michiko, sua anfitriã e única amiga, acaba de falecer. Como legado, deixa-lhe uma linda, mas misteriosa lembrança: o diário das mulheres de sua família. Com a ajuda de um tradutor tão enigmático como atraente Barbara começará a decifrar os escritos de Michiko e suas antepassadas, e irá descobrindo o difícil destino de uma saga de mulheres que, como as flores de inverno, tiveram que lutar contra muitas coisas para sobreviver e dar seu fruto.
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO 1
O baú chegou em uma tarde cinza de finais de janeiro, quando tinham transcorrido três semanas da morte de Michi. Havia começado a nevar, e os flocos flutuavam sem rumo, para cima e para baixo, de maneira que não se sabia onde ficava o céu. Debruçada em frente a uma mesa baixa com aquecedor elétrico, Barbara comia manteiga de amendoim e bebia chá verde enquanto lia os trabalhos de suas alunas sobre o pecado original. De vez em quando, olhava pela janela e pensava na negativa de Rie a fazer o trabalho. Michi-san a teria tranqüilizado, lhe aconselhado o que fazer. Oxalá Michi estivesse aqui... O pensamento voltava a sua mente uma e outra vez, como um mantra.
Ia levar a boca outra colherada de manteiga de amendoim quando bateram na porta. Tirou as pernas debaixo da mesa e levantou-se de um salto. Junko, Hiroko e Sumi, as estudantes que compartilhavam uma habitação no andar abaixo, tinham comentado que passariam para vê-la. O apartamento parecia um desastre — fazia dias que não limpava — mas já não havia remédio.
Na rádio, Mick Jagger uivava sua insatisfação. Barbara decidiu não desligá-la. Como dizia Sumi, as garotas começavam a desfrutar da cultura ocidental. Mas ao outro lado da porta não esperavam os rostos alegres das estudantes, a não ser um grupo muito formal. A senhorita Fujizawa, presidente da Universidade Kodaira, olhava-a fixamente sob suas pálpebras cansadas. Acompanhava a senhora Nakano, chefa do Departamento de Língua Inglesa, a pessoa que a tinha contratado em Chapel Hill no ano passado. Atrás das mulheres estava Sato e Murai operários da universidade. Os quatro inclinaram a cabeça e desejaram-lhe boa tarde, as mulheres em inglês e os homens em japonês.
Estava claro que queriam entrar. Barbara repassou mentalmente o estado das habitações; necessitaria de um minuto para recolher a roupa suja dispersada.
— Sentimos incomodá-la — disse a senhorita Fujizawa. — A professora Nakamoto lhe deixou uma herança.
— Uma herança? — Olhou para o apartamento de Michi-san, no outro lado do vestíbulo. Era a primeira vez, desde a morte de Michi, que via a porta aberta.
— Um tansu. Não é especialmente bonito, temo eu. — A senhorita Fujizawa assinalou com um gesto da cabeça a pequena arca que sustentavam os dois operários — Havia uma nota. Entregou a Barbara um envelope (magro) sobre o qual havia um papel com uma frase em inglês: "Para a Barbara Jefferson, apartamento 6, de Sango-kan, com meus melhores desejos em sua descoberta pelo Japão. Cordialmente, Michiko Nakamoto."
A arrumada letra de Michi resultava-lhe tão familiar que parecia estar ouvindo sua voz.
— Ao que parece, tinha-a a você em grande estima — disse a senhorita Fujizawa. — Repartiu seus bens pessoais entre umas poucas pessoas. Podemos entrar?
— É obvio, passem. Doso. — Barbara apagou a rádio da cozinha.
Apoiando-se com um bastão, a senhorita Fujizawa encabeçou a comitiva, seguida da senhora Nakano, uma mulher de bochechas rosadas que levava o lustroso cabelo negro recolhido no alto de sua cabeça, como um barrete. Em seguida, entraram os dois operários levando o tansu de três gavetas, uma arca três vezes menor que o que Barbara usava como roupeiro. As placas de metal que sustentavam os puxadores representavam flores de ameixeira.
— A arca do licor! — exclamou.
Os operários o depositaram no salão, sobre o tatami, entre a mesa kotatsu e a arca grande.
— Do licor? — perguntaram ao mesmo tempo à senhorita Fujizawa e a senhora Nakano.
Abriram a primeira gaveta entre as duas. A senhorita Fujizawa começou a falar rapidamente em japonês com a senhora Nakano. Barbara não entendeu uma palavra, mas o tom lhe soou de preocupação. Michi-san tinha lhe explicado que, embora os homens japoneses pudessem beber, não era muito bem visto que mulheres de certa classe social bebessem álcool, especialmente na Universidade Kodaira. Às senhoras só estava permitido tomar um pouco de licor de ameixa — umeshu — porque era bom para a digestão.
É umeshu — disse Barbara. Olhou por cima do ombro da senhora Nakano e viu a fileira de garrafas. Estavam envoltas em um grosso papel de arroz atadas com uma corda e seladas com lacre vermelho. Todas tinham uma data escrita com tinta e pincel e, abaixo, uma linha vertical de caligrafia, talvez com uma data em japonês. Uma noite em que estiveram bebendo umeshu, Michi lhe mostrou as garrafas, mas Barbara não recordava ter visto as datas. Aproximou-se para lê-las. A da direita era do ano passado, 1965, e junto a ela estava a de 1964.
A senhorita Fujizawa fechou a primeira gaveta e, sem deixar de falar com a senhora Nakano, abriu o segundo. Barbara teve desejos de tocar as garrafas; estava impaciente para que as visitas partissem.
— Lamentamo-nos, senhorita Jefferson. — A senhorita Fujizawa voltou-se para ela. — Estávamos convencidas de que continha peça de cerâmica ou um algo parecido. Farei com que se levem as garrafas. Estou segura de que a professora Nakamoto não queria estorvá-la.
— Mas ela queria... — Mostrou-lhe a nota do Michi. — Aqui escreve que a arca era para...
— A nota refere-se à arca, não a seu conteúdo. — A senhorita Fujizawa fez um gesto de rechaço. — Sem dúvida sabia que você necessitaria de outro móvel para seus pertences.
Percorreu a habitação com o olhar: Montanhas de livros e papéis sobre o tatami, e na mesa baixa, entre uma pilha de exames, o pote de manteiga de amendoim, com a colher cravada no meio como um ponto de exclamação. Sobre o tokonoma — oco destinado aos artigos de beleza e maquiagem, — uma pilha de jerséis e roupa interior tampavam a parte inferior da mulher raposa, o desenho enrolando que pendia do teto.
— Por favor — disse Barbara, — gostaria de conservar o licor, por razões sentimentais. Só é umeshu. Michi... Nakamoto sensei o preparava com as ameixas do campus e também em sua casa, quando era uma menina.
— Temo-me que se equivoca. O umeshu é guardado em grandes jarros, não em pequenas garrafas fabricadas no estrangeiro. Estas garrafas devem conter licores mais fortes.
— Mas eu já as tinha visto, estou segura de que é licor de ameixa. Por favor, para mim seria um consolo...
A senhorita Fujizawa cravou nela um olhar furioso. Tinha a mesma expressão que o dia em que se apresentou sem avisar na classe de conversação e encontrou a Barbara dançando bailes modernos — twist, monkey, swim — para imenso regozijo de suas alunas. A professora que precedeu a Barbara, Carol Sutherland, nunca teria exibido semelhante comportamento. Barbara tinha visto seu retrato no catálogo do colégio: ensinava a classe no palco.
— Poderíamos armazenar o licor na adega do vestíbulo — disse por fim a senhorita Fujizawa. — Assim não terá que preocupar-se, para você é um estorvo. Porque não acredito que você seja uma bêbada — acrescentou com uma risadinha.
A senhora Nakano riu educadamente, cobrindo a boca com a mão. Sato e Murai sorriram e assentiram várias vezes com a cabeça. Não entendiam o inglês, mas estavam acostumados aos incidentes cômicos no apartamento da gaijin.
— Sente-se entristecida pela morte da sensei Nakamoto — disse a senhora Nakano.
— Exatamente — disse Barbara.
Em sua mente surgiu dolorosa claridade a imagem de Michi-san na porta do apartamento. Parecia um pássaro, com sua saia e seu pulôver marrom, e levava na mão seu prato de tempura recém feito: "Como está? Estava com vontade de te ver."
— O desafortunado falecimento da professora Nakamoto entristeceu a todos — disse a senhorita Fujizawa. — Se for tão amável de esperar na sala ocidental, senhorita Jefferson, colocarão o arca em seu quarto.
Dirigiu-se em japonês aos operários e assinalou a gaveta aberta por onde apareciam as garrafas. Os homens ficaram em posição de firmes e deram um passo à frente.
— Hai — disseram, assentindo com energia. — Hai, hai.
— Quero ficar com o licor — exclamou Barbara. — Michi-san me deu isso, não me podem tirar isso.
Quatro pares de olhos a observaram com gravidade. Logo, todos baixaram o olhar educadamente, exceto a presidenta.
— Lamentamos tê-la incomodado — disse. — Iremos deixá-la em paz.
A comitiva deu meia volta e dirigiu-se à saída através da cozinha e do salão ocidental. A senhorita Fujizawa aproveitou para observar o estado das habitações. Quando fecharam a porta, Barbara esperou para ouvir seus passos baixando a escada e se sentou junto ao tansu. Aspirou ao aroma escuro e penetrante. Michi tinha lhe explicado que se tratava de um móvel especial, feito com madeira de cânfora. Cada uma das atarracadas garrafas de licor estavam apertadamente envoltas em papel. Barbara tocou-as e a frieza do vidro lhe deu arrepios. Michi-san devia saber que ia morrer, ou não lhe teria dado o arca.
Voltou a ler a nota. Havia uma data: 1-1-1966. O primeiro dia do ano, umas semanas atrás. Barbara tinha estado no apartamento do Michi. Teria escrito a nota antes ou depois do jantar de Ano Novo? Imaginou-a sentada à mesa, depois de recolher os pratos, escrevendo. Quatro dias mais tarde, morreu.
Levantou-se com um salto e se dirigiu ao apartamento do Michi. A porta não estava fechada com chave. Entrou no salão, onde só ficavam as esteiras e as paredes nuas. As estantes lotadas de livros, as gravuras em madeira, as xilografias, a coleção de bonsais e a mesa baixa junto à janela. Ali era onde Michi tinha servido a Barbara o jantar de Ano Novo, especialmente preparada para ela: os mochi, esses gomosos bolos de arroz, dourado envolto em folhas de bambu, acompanhado de cenouras esculpidas em forma de tartaruga "para dar sorte e longa vida". Havia dito Michi para que tenha "sorte e larga vida" Viu seu olhar cálido e penetrante, sua boca de lábios grossos... Não esboçou um sorriso melancólico?
A senhorita Fujizawa disse que Michi tinha morrido de um "ataque ao coração". Certamente tinha notado os sintomas — angina no peito — e se preparou.
Percorreu a sala tocando as paredes, frescas e lisas exceto por um prego torcido que se sobressaía. As esteiras ainda mostravam os rastros das pernas da mesa. Michi e ela haviam ficado muitas noites ali, freqüentemente com uma taça de licor de ameixa. Michi o chamava a "taça de boa noite".
— Por que vieste ao Japão, Barbara-san? — perguntou-lhe em uma ocasião.
— Por minha mãe.
Começou a lhe contar-lhe que sua mãe tinha sido correspondente no Japão nos anos trinta, antes da guerra, e que sempre recordava havê-la ouvido falar do Japão. Por esta razão se matriculou no seminário da senhora Nakano sobre literatura moderna japonesa traduzida, e um dia lhe ocorreu lhe perguntar se teria um lugar na universidade. Vivia um momento de estancamento: saía de uma relação sentimental e se sentia entupida com a tese doutoral.
Michi tinha um doutorado em História — um pouco habitual entre as japonesas, — mas Barbara ignorava qual era sua especialidade ou por que tinha elegido História. Pela enésima vez desde sua morte, lamentou não haver lhe feito mais perguntas. Agora já era tarde, pensou, percorrendo a sala com o olhar.
Saiu do apartamento e fechou a porta com cuidado. Ao entrar em sua casa, pareceu-lhe que a arca tinha um aspecto abandonado no meio do salão. Não havia espaço para outro móvel. Entrou no pequeno dormitório que dava à sala. A cama, feia e metálica, ocupava quase todo o espaço. Era muito grande, e, além disso, lhe fazia sentir-se uma giganta, como Alice no País das Maravilhas quando aumenta de tamanho e se encontra embutida na toca do coelho. Desfazia-se da cama, pensou, poderia dormir em um futón — o da Carol seguia guardado no roupeiro — e o tansu caberia no dormitório.
Colocou o arca contra a parede sul do dormitório, de maneira que ficasse próxima a sua cabeceira. Tinha adotado a tradição japonesa de que só os mortos dormem olhando ao norte. Veio-lhe à mente a imagem de Michi em seu ataúde, e a afastou imediatamente. Além disso, Michi estava convertida em cinzas. Como podem as cinzas olhar ao norte? Parecia um desses absurdos koan da filosofia zen.
Estava escurecendo e nevava ininterruptamente. Através da janela via-se um espesso véu de brancos flocos. Correu as cortinas e se sentou junto à arca. As garrafas de licor estavam dispostas por ordem cronológica da direita para a esquerda, como a escrita japonesa. Faltavam as dos anos de 1943 a 1948, e no oco ocupavam uns papéis enrugados. A garrafa mais antiga, de 1930, estava na última gaveta. Michi-san tinha mais de quarenta anos quando morreu; em 1930 era uma menina, muito jovem para fazer licor.
Abriu de novo a primeira gaveta e tirou a garrafa do ano 1965, o licor feito com as ameixas do verão passado. Desatou a corda, rompeu com as unhas o selo de lacre e separou o grosso papel de arroz. Quando o desdobrou, conteve o fôlego: estava coberto de apertadas colunas de caracteres japoneses escritos com uma caligrafia arrumada e delicada, certamente com um pincel. A maioria dos caracteres eram kanji, os difíceis ideogramas que os estudantes japoneses demoram anos para aprender. Barbara não conhecia nem a escritura kanji nem nenhuma outra. Nem o caractere mais singelo da escrita que tinha em mãos — um C ao reverso com uma espécie de apóstrofo no alto — tinha sentido para ela. Era como contemplar a partitura de uma música desconhecida e ser incapaz de ouvir a melodia.
A seguinte garrafa datava de 1964. Desembrulhou o papel coberto de caracteres.
— É a história de minha vida — disse Michi com uma amarga gargalhada na noite em que lhe mostrou a arca. Havia contando a Barbara seu fracasso: não conseguiu publicar trabalhos acadêmicos, um campo dominado pelo professorado masculino. Mas Barbara acreditou que se referia à elaboração de licor, uma tarefa que não se considerava própria de mulheres.
Escolheu ao azar uma garrafa da gaveta central. Como lhe custava desatar a corda, tirou-a deslizando-a por cima e com pressa de abrir o selo de lacre rasgou o papel com a unha. Ao menos não havia nada escrito, disse-se. Mas ao desenrolar o papel viu mais colunas de caracteres japoneses e um desenho de flores de ameixeira feita com tinta da China. Com os olhos cheios de lágrimas, acariciou a superfície do móvel que tinha herdado. Emocionava-lhe pensar que Michi o tinha deixado a ela.
Percorreu o apartamento, atravessou à cozinha — onde Michi lhe tinha ensinado a dirigir os queimadores, tão difíceis de acender, — a sala ocidental, que agora lhe parecia muito mais excêntrica que fria, com seus feios móveis de estilos variados, e entrou na habitação grande. Todo o apartamento parecia mudado, alterado pela presença do Michi.
O desenho da mulher raposa que pendurava no escuro nicho13 também o poria no dormitório. Quando Michi viu o desenho pela primeira vez — uma mulher com cara de raposa, vestida com um quimono, com a larga cabeleira ondeando ao vento — ficou atônita: "Onde o encontraste?" Barbara lhe explicou que um japonês havia dado a sua mãe. Achava-a tão encantadora com seu comprido cabelo loiro que, disse-lhe, que devia ser uma raposa em forma de mulher.
— Uma coincidência interessante — disse Michi. — Minha mãe assegurava que entendia a linguagem das raposas. No Japão há muitas histórias sobre mulheres raposa. Acredito que este desenho ilustra a de uma mulher raposa que abandona o seu filho.
Barbara desprendeu o desenho e extraiu o prego da parede. Utilizando seu grosso guia turístico do Japão a modo de martelo, pendurou a mulher raposa em seu dormitório. Ainda não era noite, muito cedo para dormir, mas tinha preparado o futón e tinha vontade de cobrir-se com a manta elétrica. Despiu-se e se meteu na cama. O aroma alcanforado da arca impregnava no dormitório com um sutil aroma. Por que Michi lhe havia entregado a arca precisamente a ela, a única pessoa do campus que não sabia ler japonês?
Elevou o olhar para a mulher raposa: parecia estar viva. No dormitório via-se mais claramente que no nicho. Voltava à cabeça para ver pela última vez seu filho, metade humano e metade raposa, antes de desaparecer pelo caminho ladeado de salgueiros. Tinha um perfil feminino e delicado e em sua boca ligeiramente entreaberta se adivinhavam uns agudos incisivos. Podia estar falando, dizendo adeus. Fosse pela hora ou pela luz que recebia o desenho, Barbara acreditou perceber um sentimento que nunca até então tinha notado no rosto da mulher raposa.
É curioso como se modificam os objetos quando os mudam de lugar, pensou o mesmo com as pessoas. Barbara nunca tinha encontrado seu sítio, nunca tinha criado raízes em nenhuma parte. Aqui, onde se sentia tão estrangeira — era loira, alta e não sabia ler japonês, — tinha sido mais consciente do sentimento de não pertencer que a tinha acompanhado toda sua vida. Quando pequena tinha sido a menina católica em um povo de batistas, uma cria desajeitada com sapatilhas de dança, estranha, distinta. Barbara os atribuía às maneiras e os costumes dos estados sulinos, onde em certo sentido eram tão convencionais e tão formais como os japoneses.
Subiu a manta elétrica até o queixo. O quarto estava em penumbra; apenas se distinguia a janela e o desenho que pendurava da parede. Recordou os contos populares que Michi lhe tinha contado sobre desenhos que criavam vida e partiam, deixando um papel em branco. Havia um sobre um bando de pardais que saíram de um biombo; e outro de um cavalo de uma pintura muito conhecida que pelas noites saía para comer grama. Na débil luz do anoitecer, o pergaminho da mulher raposa parecia vazio, como se tivesse ininterrupto seu caminho até perder-se de vista.
CAPÍTULO 2
Esteve nevando a noite toda. A neve foi caindo sobre cobrindo os telhados de curvas telhas e sobre os bosques de cedros japoneses. Quando Barbara saiu de Sango-kan para dirigir-se a sua aula, o curvo caminho através do bosque havia se transformado em um rio branco e os escuros ramos das árvores pareciam traços de tinta sobre o papel.
A imagem lhe recordou a caligrafia de Michi, os papéis de arroz, curvados de tanto permanecerem enrolados ao redor das garrafas. Pareceu-lhe que tudo tinha sido um sonho, e que a paisagem nevada não era mais que sua continuação. Quando chegou ao pátio deteve-se um instante. A neve derretia assim que caía no lago e ao redor das folhas de lótus formou-se uma montanha de gelo. Junto ao lago encontrava-se erguida uma reprodução da Vênus de Milo, obséquio da Universidade Kodaira nos Estados Unidos. Agora, com os ombros e a cabeça cheios de neve e os flocos que revoavam ao seu redor, a Vênus parecia ter sido surpreendida em plena criação.
A primeira classe de Barbara tratava sobre literatura norte-americana do século XIX, e era a última sessão antes dos exames. Enquanto falava, seguindo as notas que tinha passado a máquina em casa, observou que Rie, a única aluna que não tomava apontamentos, contemplava-a com uma expressão divertida e desdenhosa; havia atado uma velha cinta na cintura, lembrança da manifestação de um mês atrás em protesto pela chegada de um destruidor da armada americana a Yokosuka.
Pela janela via-se o telhado branco do Sango-kan, que aparecia por cima das árvores cobertas de neve. Barbara se propôs escapar um momento antes da classe seguinte. Tinha a necessidade quase física de dar uma olhada nos papéis de Michi. Assim que encerrou a aula, antes que Rie tivesse oportunidade de abandoná-la, correu sobre a neve rangente até seu apartamento. Naquela manhã tinha tirado todos os papéis e havia coberto com eles o chão do dormitório, e sobre cada papel tinha apoiado a garrafa correspondente. Sentou-se no chão e desdobrou sobre o tatami o papel que correspondia a l965. Os caracteres kanji pareciam pequenos mapas cheios de vida. Os traços eram elegantes, feitos por uma mão perita. Era estranho que Michi não tivesse deixado seus papéis a um familiar ou a um colega. Teria familiares em alguma parte, disse-se Barbara, embora talvez não se desse bem com eles.
Na parte superior da folha, a escritura era apertada, como que escrita no último momento. Podia ser uma nota, uma explicação para ela. Havia um caractere — uma parte de T com uma barra no meio e um floreio no pé — que aparecia duas vezes. Barbara entrou na habitação ocidental e olhou em seu livro de escritura kanji e kana. Era um caractere com diversos significados, dependendo do contexto: tempo, astronomia, céu, paraíso ou Via Láctea. Depois da aula iria à busca da senhora Nakano e lhe pediria que o traduzisse. Enrolou o papel com cuidado e o colocou em uma pasta vazia.
Encontrou à senhora Nakano na sala dos professores, tomando o chá com a senhorita Yamaguchi, professora de línguas, e com a senhora Ueda, uma mulher de meia idade e cabelo espaçado que em público cobria a cabeça com uma espécie de turbante. Barbara ficou em um extremo da sala, fingindo que lia as notas do quadro de anúncios, embora todos os papéis estivessem em japonês salvo os horários de exames. Não se atrevia a mostrar o papel à senhora Nakano enquanto as outras professoras estivessem presentes, mas na verdade, embora lhe mostrasse o papel em particular, o mais provável era que a senhora Nakano o contasse a seus colegas. E a senhora Ueda era amiga íntima de Michi. Não a ofenderia saber que Barbara ficou com os papéis? O que pensariam as demais?
Chegou com atraso à aula de conversação. Sumi Junko, Hiroko, Rie e outras estudantes avançadas estavam sentadas ao redor da mesa oval e conversavam em inglês. Barbara tomou assento junto a Junko e depositou a pasta no chão, entre os pés. Começaram por repassar as conjugações: está nevando, nevou, talvez volte a nevar... Shigeko, uma aluna de porte aristocrático aficionada a escrever haiku e tanka, levantou a mão:
— A neve está mais bonita à noite, quando brilha contra o céu escuro. Mas também me inspira um pouco de melancolia, um sentimento espectral.
— Ocorre-me o mesmo — disse Rie. — A neve é poética, muito japonesa.
Barbara inspirou profundamente.
— Nos Estados Unidos também temos neve, inclusive no sul — disse. — De fato, na Carolina do Norte o clima é muito semelhante ao de Tóquio.
— Mas não é o mesmo — insistiu Rie. — Temos os preciosos telhados, os templos, as deliciosas rochas dos jardins japoneses onde se deposita a neve. Vocês não têm a poesia da neve.
— Aqui, no campus, as ameixeiras floresceram cedo este ano — disse Sumi, — e estão cobertas de neve. É uma maravilhosa experiência japonesa; há poemas que descrevem esta imagem.
— Em inglês há um poema assim — disse Barbara. — O escreveu A. E. Housman. Mas fala de flores de cerejeira, não de ameixeira.
— Jefferson sensei pode entender a poesia da neve — disse Junko. — Nisto é igual à japonesa.
As demais assentiram com um murmúrio, exceto Rie, que ajustou sua cinta de protesto e levantou a mão para falar.
— A poesia japonesa contém referências difíceis de entender para um estrangeiro. No haiku que diz "A camélia cai, derramando a água da chuva de ontem", Buson referia-se a um samurai ao qual lhe deceparam a cabeça.
— Também é assim na poesia ocidental — disse Barbara. — A terra baldia, do T. S. Eliot, é um poema cheio de alusões que muitos leitores não entendem, mas isto não impede que se emocionem. Obrigado por sua intervenção, Rie.
Rie tornou a levantar a mão.
— Aqui na Kodaira nos reunimos para contemplar a neve. É muito poético — disse, e cruzou os braços sobre o peito.
— Que bonito! — Barbara olhou o relógio. Havia-se passado metade da aula, e tinha deixado os papéis estendidos sobre o tatami. E se a senhorita Fujizawa enviasse os operários a sua casa aproveitando que ela não estivesse? Fez-lhe um nó no estômago. — Acabamos. Podem ir ao laboratório de idiomas e praticar. Entregar-me-ão as cintas na sexta-feira. Têm que ser de quinze minutos, falando de um tema que prefiram...
As alunas começaram a abandonar a sala de aula, mas Junko aproximou-se para lhe perguntar se queria comer com ela, Hiroko e Sumi no Kokubunji. Barbara duvidou, mas as garotas pareciam esperançosas, e eram as melhores amigas que tinha. De fato, estavam mais perto dela em idade que qualquer uma das professoras. Combinaram a uma. Barbara passaria por seu apartamento.
Rie a esperava fora.
— Jefferson sensei, não posso escrever meu trabalho final de literatura norte-americana.
— Por que não? — Barbara tentou manter a calma.
— O pecado original é um conceito estranho para os japoneses. Estou desesperada. Não entendo A letra escarlate, do Hawthorne.
Barbara ficou olhando-a. Era uma garota de rosto largo, com uma franja que quase chegava aos olhos, e parecia a ponto de chorar.
— Tenho uma idéia. Por que não escreve sobre o que não entende?
— Quer que escreva sobre o que não sei?
— Sim, sobre por que te resulta estranho o pecado original. Qual é a idéia japonesa do pecado? Compara as idéias japonesas e americanas sobre o mal e o pecado. Para o pensamento japonês, quais são as conseqüências, neste mundo ou no mais à frente, de fazer algo muito mau?
Rie inclinou a cabeça.
— Ah. Isso talvez possa fazê-lo.
Por fim, pensou Barbara aliviada, e se dirigiu a passos largos para a saída, mas a senhorita Fujizawa a chamou desde seu escritório.
— Senhorita Jefferson, pode vir um momento?
— OH, senhorita Fujizawa, acabo de mandar às alunas ao laboratório de idiomas... Acabamos logo.
A senhorita Fujizawa lhe indicou que tomasse assento.
— Desculpe-me por havê-la inquietado ontem, senhorita Jefferson. Por favor, conserve as garrafas por razão sentimental. Entretanto, talvez deseje as guardar em caixas para destinar o móvel a outros usos.
— É muito amável. Muito obrigado, senhorita Fujizawa — disse Barbara, aliviada. — Não necessito caixas no momento. Eu gostaria de conservar intacto o tansu, como lembrança.
— Entendo. — A senhorita Fujizawa franziu o sobrecenho. Barbara dirigiu o olhar a sua mesa, e lhe pareceu curioso ver ali uns chocolates Whitman. — Falando de recordar — continuou a senhorita Fujizawa, — estamos preparando um memorial comemorativo para a professora Nakamoto no 49º dia após sua morte. Normalmente estas cerimônias se celebram na casa da pessoa falecida ou em um templo. Mas como não tem familiares que nos aconselhem...
— Estava-me perguntando isso precisamente — disse Barbara. — Não tem nenhum familiar?
— Não que eu saiba. Por este motivo, decidimos celebrar a cerimônia em nosso campus. — A senhorita Fujizawa tomou ar. Seu enorme busto se elevou, para cair de novo com um sonoro suspiro que Barbara não soube dizer se era de tristeza ou de irritação. — Terá de ser adiada a festa de fim de ano a fim de que as professoras possam estar pressente para pronunciar umas palavras em sua memória. Gostaria de participar?
— Seria uma honra. Poderia falar de sua experiência como professora de história. Ela me Contou algumas coisas, mas terei que perguntar à senhora Ueda.
— O mais apropriado seria que falasse do que ela fez por você. Outras já falarão de temas mais amplos. Agradeço-lhe que me tenha dedicado um momento, senhorita Jefferson — a senhorita Fujizawa se levantou. — Confio para que suas alunas progridam satisfatoriamente.
— Sim, muito obrigado. Estão muito adiantadas. — Barbara se despediu com uma leve inclinação de cabeça.
— Ah, senhorita Jefferson.
A cabeça calva e redonda do senhor Doi apareceu pela porta de seu escritório. Era o especialista no Shakespeare da Kodaira e aliado da senhorita Fujizawa. Gostava de "chatear um pouco" a Barbara, como estava acostumado a dizer, porque ela assegurou que se sentia preparada para dirigir os ensaios da peça Sonho de Uma Noite de Verão, que se apresentaria no festival da escola. A apresentação, prevista para o dia 3 de fevereiro, estava voltando.
— Não parece muito animada — lhe disse. — Confio em que não seja este o inverno de seu descontentamento.
Uma citação fácil, de Ricardo III, pensou Barbara, e respondeu com outra citação da mesma obra.
— É obvio que não. Converter-se-á em um glorioso verão sob o sol do Japão.
O senhor Doi riu.
— Muito bem, muito bem, senhorita Jefferson. Não conseguirei deixá-la sem resposta.
— É possível.
Barbara se dirigiu rapidamente para a saída, mas o professor a seguiu com passinhos pequenos e saltitantes.
— Espero que tenha ensaiado sua parte — disse. Referia-se ao papel da rainha Titania, que interpretaria Barbara. Ele faria de rei Oberón. — Quer que ensaiemos juntos na hora de comer?
— Hoje é impossível, tenho um compromisso.
— Que lástima. Você sempre está comprometida.
Barbara empurrou a pesada porta principal.
— Ver-lhe-ei mais tarde, senhor Doi.
Atravessou o campus açoitada pela neve que o vento lhe jogava na cara. A pista de atletismo tinha ficado convertida em um retângulo branco bordejado por pólos de neve. Ao longe se ouvia um koto17, e o som doloroso das cordas, que normalmente lhe recordava o lar, hoje lhe parecia-se muito com a essência de mistério que estava vivendo.
Tal como havia notado Sumi, os ramos das ameixeiras estavam carregadas de flores e de neve. Barbara agarrou um ramo e sacudiu a neve. Alguns casulos congelaram antes de abrir-se e os que estavam abertos tinham um aspecto murcho e amarelado. Colocou-se debaixo dos pesados ramos e olhou para cima, para a espessa brancura. Na primavera, Michi-san gostava de sentar-se sob as árvores e contemplar as flores das ameixeiras recortadas contra o céu azul; "sempre me infundem esperança", havia dito a Barbara. E a esperança só é importante quando estamos se desesperados.
Recordou a nota que Michi tinha escrito antes de morrer e o papel que tinha guardado na pasta, com aquele caractere que parecia ter sido acrescentado no último momento. Podia significar "céu"? Seria uma nota de suicídio? Encheram-se os pulmões de um ar tão frio que doía. Permaneceu imóvel, escutando a neve que caía, e pela primeira vez distinguiu o tímido tamborilar que fazia ao cair, apenas perceptível, como se sob a quieta superfície houvesse algo escondido.
Tinha ficado com suas alunas em um restaurante que ia freqüentemente com Michi-san, no segundo andar de um edifício perto da estação Kokubunji. Estavam sentadas em volta de uma mesa ocidental junto à janela. Barbara e Michi sempre escolhiam a zona de tatami, ao fundo.
Barbara colocou a pasta no chão de maneira que lhe tocasse a perna. Não tinha dado tempo de retornar a Sango-kan e os papéis seguiam espalhados pelo apartamento. Isto a inquietava, mas pelo menos tinha fechado com chave; não era provável que entrassem. Sempre se preocupava muito. Como repetia sua mãe: "ficará doente de preocupação."
Quando chegou a garçonete, pediram sopa de miso e tempura. Enquanto as garotas tomavam a sopa, Barbara recordou o dia em que Michi-san as apresentou. Ela acabava de chegar ao Japão. "Parecemos-lhe todas iguais, não é verdade?", perguntou-lhe Michi sorridente. E assim era, embora na época Barbara o negasse. Agora, pelo contrario, parecia-lhe impossível as confundir. Junko praticava a caligrafia diariamente, tinha um cabelo precioso, negro azulado, e uns rasgos tão finos e elegantes que bem poderia ser uma dama do século XI, da corte Heian. A jovem de óculos, Firo, era apaixonada e veemente, declarava-se marxista e sempre tentava falar com a Barbara a respeito do comunismo, Vietnam e China. Quanto à enérgica Sumi, de bochechas rosadas e covinhas junto às comissuras dos lábios, procedia dos Alpes Japoneses, a fria região da qual fala Kawabata em sua famosa novela. Sumi tinha o objetivo de ser lingüista e ajudava à senhorita Yamaguchi a compilar um léxico de slang americano.
Trouxeram-lhes o tempura: camarões-rosa, batata-doces e raízes de lótus. Em uma ocasião viu Michi, com um avental branco comprido até os pés, preparando tempura, inundando no azeite fervendo as folhas murchas de crisântemo.
— Nakamoto sensei lhes preparou tempura alguma vez? — perguntou às alunas. Sabia que Michi as tinha convidado a seu apartamento em alguma ocasião.
Elas assentiram com entusiasmo.
— Uma cozinheira excelente — disse Junko.
— Estive pensando nela — disse Barbara. — Morreu que forma tão repentina... Sabem se encontrava mal, ultimamente?
As garotas se olharam umas a outras.
— Pergunto-lhes isso por que... Chegou-me de herança um tansu.
— Sou desuka? — perguntaram, quase ao mesmo tempo.
— Sobre o móvel havia uma nota onde dizia que era para mim. Suponho que pressentiu que ia morrer. Sabem se tinha ido ao médico recentemente?
As jovens discutiram acaloradamente em japonês. Sumi tomou a palavra.
— Eu a encontrei. Na manhã de sua morte entrei em seu apartamento para limpar, como de costume.
— É terrível — disse Barbara. Imaginava a cena: Michi tendida no futon, com os olhos abertos olhando a um nada.
— Junto a ela havia um frasco de medicamento.
— Quer dizer...
Sumi assentiu.
Hiroko soltou uma exclamação em japonês e acrescentou:
— Todos os frascos têm uma última pastilha. Não devemos tirar conclusões precipitadas.
— Mas antes de morrer deixou uma nota ao Jefferson sensei — disse Junko.
— Mas fala só do tansu, sim?
Barbara assentiu.
— Acredito que tinha uma paixão na alma — disse Hiroko. — O mesmo aconteceu com meu avô.
Junko deixou um momento os palitos e se inclinou para a Barbara.
— Vou contar uma coisa que Nakamoto sensei me disse quando lhe falei de um problema pessoal. Comentou-me que as paixões não se debilitam com a idade. Disse-me que isto a tinha surpreendido. E me surpreendeu ouvi-la dizer, porque as sensei japonesas e as alunas se mantêm a distância. Não é como falar com você, ou com outra professora americana. A verdade, é que quase me escandalizou ouvi-la falar assim. Foi um comentário pessoal, de coração. Penso que tinha uma paixão secreta.
Barbara sentiu um calafrio. A resposta podia estar nos papéis que guardava em sua pasta. Talvez devesse mostrá-los a suas alunas.
— Estou em desacordo com minha amiga Junko — disse Hiroko. — A paixão nem sempre se refere a um romance. Nakamoto sensei era uma apaixonada pela causa da paz. Recentemente, por exemplo, escreveu uma carta editorial sobre o tratado entre o Japão e Coréia. E mais de uma vez falamos da guerra do Vietnam.
— Nunca me mencionou a guerra — disse Barbara.
Fez-se um silêncio, e no ar ficou a resposta não pronunciada: porque é americana.
— Hinko se equivoca — disse Junko. — Ao contar a Nakamoto sensei meu problema pessoal, fiz brotar sua tristeza.
— É uma teoria romântica. — Hiroko afundou os palitos no arroz. — Nakamoto sensei morreu por uma falha cardíaca, estou segura. Não deixou nota de explicação. Se fosse suicídio, como diz Junko, teria deixado uma carta de desculpa ou explicação. Os japoneses não tiram a própria vida sem deixar uma carta.
— Nunca? — perguntou Barbara.
— Normalmente, não. É a tradição.
Hiroko e Sumi começaram a falar em japonês.
Barbara olhou pela janela e viu às pessoas caminhando pela neve. As garotas tinham um bom coração, mas não podia confiar nelas. Algo que comentasse a respeito da morte do Michi, algo que dissesse sobre os papéis seria motivo de fofoca no campus. Prometeu-se que depois dos exames finais e o festival da escola procuraria um tradutor em Tóquio, embora a idéia de que um desconhecido lesse os papéis de Michi lhe resultasse dolorosa. Não sabia o que fazer. A única pessoa que poderia ter aconselhado-a se foi para sempre.
CAPÍTULO 3
O dia em que soube da morte de Michi-san, Barbara tinha ido ao centro de Tóquio a comprar um presente de aniversário para sua mãe. De volta ao Sango-kan, enquanto estava comendo, chegou o homem da lavanderia para lhe entregar a roupa limpa e lhe deu também um pacote envolto em papel de embalar.
— Nakamoto sensei não responde. — Com um gesto da cabeça assinalou a porta do apartamento de Michi-san.
A senhorita Ota saiu de seu apartamento e falou em japonês com o homem.
— Ah, sou desuka — respondeu ele com alívio. E assim que a senhorita Ota lhe pagou, desceu correndo as escadas.
A senhorita Ota era uma mulher normalmente muito correta, em um sentido britânico, já que fez sua tese doutoral em Cambridge, sobre Henry James, e dali lhe vinha o costume de vestir objetos de tweed e de tomar chá inglês. Barbara ficou surpresa ao vê-la um pouco suja, e esperava que voltasse a meter-se rapidamente em seu apartamento, mas, para sua surpresa, a senhorita Ota atravessou o vestíbulo em direção a ela. Levava um singelo quimono de algodão, e o branco cabelo — que normalmente estava recolhido em um monte — lhe caía solto até os ombros.
— Lamento lhe dizer que Nakamoto sensei já não vive — disse.
Barbara sentiu uma pontada de terror, mas pensou que se produziu um mal-entendido.
— Quer dizer que não está em casa?
A senhorita Ota negou com a cabeça.
— Michi-san já não vive aqui?
— Não, não — a senhorita Ota elevou as mãos com gesto de impotência.
— Está doente?
— Lamento dizer que expirou...
— Morreu?
— Temo-me que sim.
— Por quê? O que aconteceu?
— Foi esta noite, enquanto dormia — explicou. — A causa exata é desconhecida.
A Barbara nublou-se a vista. O rosto da senhorita Ota tremeu ante seus olhos, e o vestíbulo se obscureceu.
— Mas a vi recentemente... — Apertou contra seu peito o pacote da roupa limpa e olhou a seu redor.
— Lamento sua tristeza — disse a senhorita Ota. — Cuidava de você, desu NE? Triste, muito triste. — amassou-se no quimono e voltou rapidamente para sua casa.
Barbara ficou olhando a porta do apartamento de Michi. Não tinha idéia de que Michi-san tivesse morrido. Tinham estado juntas na tarde anterior, retornaram juntas para casa. Olhou pela janela em direção ao apartamento de Michi, que formava um L na parte traseira do edifício. Não havia luz nas janelas. Deitou-se sem despir-se e ficou amontoada sobre a cama, tremendo de frio, com o pacote de roupa limpa entre os braços. Ontem mesmo, Michi parecia estar perfeitamente bem, e no caminho a casa tinham conversado de coisas normais: a aula de literatura da Barbara, o tempo tão estranho que estava fazendo nesse mês janeiro, as ameixeiras... Michi comentou que as ameixeiras não demorariam a florescer. Em um momento em que o caminho se estreitava, Barbara caminhou atrás dela. Recordava sua figura miúda e rígida e as antiquadas meias que levava, com uma feia costura que lhe dividia as panturrilhas em dois. Não falaram mais até chegar ao Sango-kan. Ao entrar no edifício, tiraram-se os sapatos e os colocaram na entrada. Michi parecia distraída.
— Perdão, mas tenho que falar com a senhora Ueda — disse.
Foi à última vez que Barbara a viu com vida. Poderia ter ido atrás dela e lhe dito obrigado pelo jantar de Ano Novo. Poderia ter lhe dito: "Sempre foste amável comigo." Mas não lhe disse nada. Despediram-se em silêncio. Só escutou-se o sussurro dos sapatos de Michi enquanto se afastava.
Sentou-se e acendeu a luz. A tristeza lhe oprimia o peito. Jogou um olhar e viu ao seu redor as paredes vazias, a porta trilho de papel de arroz de seu armário. Olhou o relógio: eram às 22h30min; na Carolina do Norte era manhã. Desceu nas pontas dos pés pela escada e marcou o número de telefone de sua mãe do mostrador do vestíbulo. Pensou em sua mãe: estaria sentada na cozinha, bebendo café em sua taça de porcelana de Limoges, lendo o jornal entre bocejos. Com certeza que ainda estava de sandálias e levava o penhoar azul escuro. Entretanto, a voz de sua mãe soou totalmente acordada.
— Barbara! Como está, carinho? Agora mesmo estava escrevendo as primeiras linhas de minha coluna... Já te disse que colaboro com o Raleig Times?
— Sim. É estupendo.
— Jonathan diz que gostariam que escrevesse sobre minhas lembranças da Ásia, como o que estava acostumado a fazer no Flora Lewis21.
— Morreu a Michi-san — disse Barbara.
— Como? Quem?
— Michi-san, a professora que tão bem tinha me acolhido aqui.
— OH, Bobbie, que horror. O que lhe passou?
— Não tenho nem idéia, acabo de saber de sua morte. Causou-me uma impressão muito forte... E parecia tão sã.
— Suponho que nunca se sabe o que pode ocorrer. — Houve um silêncio. — Sinto muitíssimo, carinho. De verdade que o sinto.
— Detesto isto — soltou Barbara. — Eu gostaria que viesse para ver-me.
— Agora está triste por sua amiga. Já passará. Como disse que se chamava?
— Michi, Michi Nakamoto.
— O que vestirá para o funeral?
— Meu Deus, mamãe...
— Às vezes é útil pensar em assuntos práticos. Ajudou-me muito durante todo o divórcio e as destrezas de seu pai.
— Tenho que desligar mamãe. — Barbara pendurou o telefone e retornou a seu apartamento. As pernas lhe pesavam tanto que mal podia subir a escada. Voltou para a cama e se colocou de barriga para baixo, com o pacote de roupa limpa entre a parede e o ombro, um almofadão grosso e confortável. Uma noite no outono passado, quando Barbara ainda não havia se acostumado ao Japão, Michi a convidou a seu apartamento para ver um capítulo do Gunsmoke22. Barbara se sentou junto ao Michi frente à mesa baixa do salão, e enquanto Matt Dillon e Chester tentavam arrumar seus problemas no salão da senhorita Kitty, elas bebiam licor de ameixa. Barbara recordava que os atropelados diálogos em japonês não tinham sincronia com os movimentos dos lábios, e quase podia saborear o forte licor de ameixa. Aquela noite estava tão triste que bebeu uma taça atrás de outra.
Recordou a ocasião em que mostrou a Michi as fotografias de sua mãe no Japão. Michi as colocou sobre a mesa: a mãe da Barbara, alta e loira, aparecia posando frente a casas e templos, e também frente a uma imensa estátua da Buda; levava o cabelo recolhido em um apertado coque no alto da cabeça. A Barbara aquele penteado sempre lhe recordava um chapéu.
— Parece-te com ela — disse Michi.
— Temos a mesma cor de cabelo, nada mais. — Forçou uma gargalhada.
Michi empilhou as fotografias e foi pondo sobre a mesa de uma em uma, nomeando os lugares que apareciam nelas: o grande Buda de Kamakura, o santuário Heian de Kioto, os cervos do parque Nara. Em uma das fotografias, a mãe da Barbara olhava por cima do ombro enquanto subia por uma montanha. Michi comentou que podia estar no caminho para o templo do Hakone. Quando chegaram à última foto, onde posava com uma japonesa em frente a um edifício de telhado curvo, Michi fez um comentário:
— Isto já não o poderá ver.
— Por que não? — perguntou Barbara.
— Era o Shintenza, o teatro Kabuki de Hiroshima.
— Hiroshima!
— Sim, não o reconstruíram. Pergunto-me como chegou sua mãe a Hiroshima. Era um centro militar, e aos americanos normalmente não os deixavam entrar.
Barbara olhou a fotografia de perto. Estava a certa distância, para incluir todo o edifício na imagem.
— E não poderia tratar-se de outro teatro Kabuki?
— Não, o Shintenza era um edifício singular, muito conhecido. Sua mãe escreveu sobre Hiroshima?
— Não sei, teria que perguntar-lhe É estranho, nunca falava do tema, somente sobre o Pearl Harbor... — ficou vermelha de vergonha. — Desculpe. — Pigarreou e ficou olhando a mesa. — É uma de minhas primeiras lembranças. Tinha dois anos. Minha mãe estava esfregando os pratos e ouviu gritos na rua. — Não quis contar que sua mãe tinha ouvido coisas como: "Em seis meses acabaremos com estes macacos amarelos. — Minha mãe começou a chorar e eu me aproximei dela e puxei-lhe a saia, mas não me fez conta. Era um desses momentos em que o tempo para, entende?
Michi assentiu.
— Quando minha mãe me olhou, tinha uma expressão perdida, como se não recordasse quem eu era. Suponho que se lembrava das pessoas e dos lugares que conheceu no Japão... Estava acostumada a dizer que tinha sido a melhor época de sua vida.
Michi cravou nela um olhar pouco amistoso, quase duro.
— Isto te parece ridículo — disse Barbara.
Michi baixou o olhar e começou a ordenar as fotografias, agarrando-as com cuidado pela borda. Fez uma pilha perfeitamente alinhada e, quando teve o monte em cima da mesa, acabou-o de ajustar com um ligeiro golpe.
— Nada disso — murmurou. — Tem que me desculpar, estou muito cansada — disse, e pôs ante a Barbara a pilha de fotos. Na porta do apartamento, sorriu e deu-lhe uma palmada no braço.
— Um dia eu gostaria de te levar aos lugares onde esteve sua mãe.
Agora Michi já não a acompanharia a nenhuma parte. Barbara voltou-se na cama. Como ia suportar sem ela? Alargou a mão para agarrar o pacote de roupa e o apertou contra o peito. Pelo menos, tinha visitado Kamakura com Michi. Deixou que a imagem da imensa estátua de bronze de Buda enchesse sua mente, recordou seu rosto sereno e seus hipnóticos olhos dormitados.
— Parece inclinar-se para nós — disse Barbara. E Michi, que tinha permanecido em silêncio, abriu a guia para lhe mostrar uma fotografia tomada de uma colina próxima. Viam-se as costas do Buda, com os ombros para frente, a cabeça ligeiramente inclinada.
— Sim — disse Michi, — esta é a imagem que mais me comove. É como se carregasse humildemente com nossos problemas.
Podia-se entrar na estátua através de uma porta que se abria sob o joelho esquerdo. O interior do Buda era fresco e escuro. Uma escada de ferro permitia acessar a uma plataforma depois das costas. Dali, através de umas aberturas podia-se admirar a paisagem: uma nuvem de incenso subia ao céu do altar de pedra, e ao longe se divisavam as colinas de Kamakura. Barbara pensou em sua mãe, que tinha contemplado a mesma cena. Olhou suas mãos agarradas ao corrimão da escada. Talvez sua mãe tivesse posado as mãos no mesmo lugar, anos atrás. De repente, sentia tanta vontade de vê-la que se sentiu enjoada.
Depois de visitar o santuário caminharam por uma rua rodeada por arvores. Era outono, e as folhas luziam brilhantes cores vermelhas e alaranjadas.
— Estivemos no ventre de Buda — comentou Michi.
— É curioso que diga isto, porque acabo de sentir uma conexão quase física com minha mãe... Foi como se, ao ter estado no mesmo lugar que ela, em certo modo tivesse me convertido nela.
Michi se deteve e a olhou.
— Ah. Isso é muito interessante.
— Minha mãe sempre quis uma filha como ela, uma mulher aventureira e convencional ao mesmo tempo. Algo como uma mulher que levasse colares de pérolas e soubesse pilotar um avião. Um dia me disse que se não fosse pela cor de meu cabelo — agarrou uma mecha — acreditaria que se confundiram de bebê no hospital.
— Creio que sua mãe não te conhece — disse Michi.
— Não, absolutamente.
— Acredito que se te conhecesse te apreciaria muitíssimo.
— Muito obrigado. — Barbara olhou ao Michi. Viu sua expressão inteligente e honesta, seus olhos cansados.
No trem de volta a Tóquio, sentaram-se juntas no mesmo banco. Michi parecia esgotada, pálida e com as pálpebras inchadas. A viagem era longa e tinha escurecido. Michi dormiu. Barbara recordou o reflexo das duas no guichê do trem: ela olhava para frente, Michi apoiava a cabeça em seu ombro e tinha os olhos fechados.
O funeral celebrou-se em um templo budista em Kokubunji, um povoado próximo. Barbara se sentou nos últimos bancos, junto às estudantes, e escutou o monótono recital dos sutras no recinto cheio de incenso. O ataúde estava atrás do altar, sobre uma plataforma. E no altar, entre dois banners com caracteres japoneses que Barbara não soube ler, havia uma foto emoldurada de Michi-san. Era uma fotografia de uns anos atrás, quando não tinha cabelo grisalho, embora levasse o mesmo estilo felino de óculos, os mesmos arreios de massa com extremos bicudos. O rosto também tinha um ar felino, largo nas maçãs do rosto e estreito no queixo. Os lábios eram grossos, e os olhos tinham um brilho malicioso. Na fotografia inclinava a cabeça para meu lado, como se quisesse falar.
Barbara reprimiu um soluço. Recordou a noite de sua chegada ao Japão, quando se viu jogada em um mundo de pesadelo onde não entendia nada: as vozes do aeroporto, os letreiros de néon em meio da noite. Um comitê formado por mulheres a recebeu com frieza. Barbara não foi capaz de lembrar seus nomes. A viagem do aeroporto lhe pareceu eterna. A mulher que se sentou junto a ela no carro não lhe dirigiu nenhuma palavra. Mas quando chegaram ao Sango-kan, a mulher lhe estendeu a mão e a guiou escada acima.
— Deve estar esgotada.
O sacerdote já tinha acabado de orar, e todo mundo ficava de pé. Barbara se sentiu enjoada. Tinha que partir já? Talvez fosse como na Igreja católica, onde só os fiéis podem aproximar-se do altar. Michi-san lhe teria sussurrado como comportar-se.
Viu que Hiroko entrava no corredor central, seguida do Junko, e foi atrás delas. Já não estava enjoada, mas lhe tremiam as pernas. Quando chegaram ao altar, polvilhou de incenso um queimador fumegante e subiram até o ataúde. O rosto de Michi-san via-se pequeno e escuro, em surpreendente contraste com a fotografia. Tinha as sobrancelhas mais espessas do que Barbara recordava, e a frente mais alta. Os óculos de gata estavam cuidadosamente dobrados junto a sua cabeça.
Saiu do templo junto a Sumi, Junko e Hiroko. Rich McCann, o professor do programa Fulbright, um homem de meia idade que dava aula de política externa americana, parou um táxi e fez um gesto de convite a Barbara, lhe assinalando a porta aberta. Mas ela meneou a cabeça e pronunciou em silêncio: "Não, obrigado."
— Virá ao crematório, sensei? — sussurrou Junko.
Barbara ignorava que havia uma cerimônia no crematório; ninguém lhe havia dito nada. Sentiu vertigem.
— Não me encontro bem — disse.
As estudantes deliberaram entre si.
— Levaremos-lhe de retorno ao Sango-kan — disse Junko.
— Não, não. Vão vocês.
Observou que a senhorita Fujizawa falava com duas mulheres maiores e um homem jovem que permanecia um pouco afastado e muito sério, quase severo. Não ia vestida como americana, a não ser com um pulôver de pescoço alto e uma jaqueta. Olhou para a Barbara, abriu muito os olhos e lhe fez uma inclinação de cabeça, como se a conhecesse. Logo se deu meia volta.
— São familiares do Nakamoto sensei? — perguntou ao Sumi em voz baixa.
— A mulher que fala com a senhorita Fujizawa tem um pequeno restaurante no Takanodai. A mulher cega é sua cunhada. Creio que ela e Nakamoto sensei eram velhas amigas.
Deu uma olhada às mulheres. Uma delas levava um bastão e mantinha a cara inclinada e olhando ao céu. Não lhe podia ver os olhos.
— E o homem quem era?
— É o filho de uma delas. Tenho entendido que foi aluno do Nakamoto sensei.
Tinha vontades de retornar ao apartamento e se abriu caminho entre a multidão. Notava sobre ela o olhar do homem, mas não quis olhar. Tinha que sair dali tinha que chegar à cidade. Caminhou por uma rua que não conhecia, com árvores de um lado e casas do outro. Por cima dos muros divisava casas de madeira e as telhas dos telhados. As janelas reluziam ao sol do entardecer e o ar cheirava a fumaça, aos fogos que se acenderam para esquentar a água do banho, às fogueiras onde se queimavam as folhas secas. O cadáver de Michi estaria a ponto de chegar ao crematório.
Apertou o passo. Viu um banho público, uma loja onde vendiam tofu24 e uma papelaria; deteve-se e entrou. Vendiam cadernetas feitas à mão, onde cada página estava formada por duas folhas de arroz juntas. A capa estava forrada com papel encaracolado. Comprou uma caderneta vermelha e voltou para a rua. Viu ao longe um trem que se detinha e deixava descer aos passageiros. Quando chegou mais perto viu o letreiro da estação: Moçai Koganei. Tinha chegado andando até a segunda parada depois do Kokubunji. Comprou um bilhete para o Shinjuku, no centro de Tóquio. Recordou que tinha ido ali com Michi a um restaurante de sushi e sentiu-se aliviada quando se encontrou rodeada de gente no vagão. Viajou com os olhos fechados, agarrada à alça que pendurava no teto, e se deixou balançar pelo movimento do trem até que ouviu que anunciavam sua estação.
Quando saiu à rua era quase de noite e os letreiros de néon estavam acesos. Encaminhou-se para a zona de restaurantes e encontrou em seguida o pequeno local onde tinha estado com Michi, junto ao GO Coffe Shop. Sentou-se no mesmo lugar onde se sentou com Michi, ao fundo, e pediu o mesmo cardápio: atum, cavala e polvo. Olhou a seu redor e não viu ninguém conhecido. Pediu uma cerveja e tirou de sua bolsa a caderneta.
"Querida Michi — escreveu. — Há tantas coisas que eu teria gostado de te perguntar. Estava casada? Nunca lhe chamavam senhora ou senhorita, somente sensei ou san. Não sei onde te criou nem onde foi ao colégio, onde aprendeu tão bem inglês. O que te passou durante a guerra? Cheguei a conhecer a essência de sua personalidade (algo, pelo menos), mas não conheço nada sobre sua vida. Isto é o que mais lamento."
CAPÍTULO 4
Sentiu-se aliviada ao ver que o tansu estava tal como o tinha deixado pela manhã antes de ir à aula: uma gaveta aberta, papéis e garrafas espalhados pelo chão. Recolheu as garrafas, enrolou os papéis ao redor e os guardou na gaveta. Observou que as datas estavam escritas em inglês e pareciam recentes. A tinta não tinha perdido a cor, nem sequer a das datas mais antigas. Deduziu que Michi tinha datado os papéis para que ela não se confundisse de ano. Imaginou sentada no quartinho onde tinham encontrado o tansu, molhando o pincel no tinteiro. O que estaria pensando? Tinha tentado predizer sua reação, parou-se a considerar o problema da tradução? Michi a tinha animado freqüentemente a estudar japonês, mas não podia pretender que esperasse anos e anos até poder decifrar os caracteres kanji.
Talvez pudesse encontrar um tradutor através de uma escola de idiomas. Já lhe ocorreria algo, disse-se, enquanto acariciava uma fileira de garrafas de licor. Enquanto isso limparia o apartamento para fazê-lo digno do tansu. Começou pela cozinha, onde havia pilhas de pratos por lavar. O rádio estava sintonizado no canal Gradeia e Estrelas. O presidente Johnson anunciava que se reatavam os bombardeios do Vietnam do Norte depois de uma trégua de 37 dias. Barbara procurou com o dial uma emissora japonesa onde soava a música de um shamisen e uma flauta.
No salão ocidental varreu e tirou o pó ao redor do estorvo de cama, que seguia como ela a tinha deixado, cruzada em diagonal, e se sentou ante seu desordenado escritório, abarrotado de papéis e revistas. Tirou de entre os papéis sua tese ainda inacabada: "O mausoléu da esperança e o desejo: metafísicas do tempo nas novelas de Faulkner Enquanto agonizo e O ruído e a fúria."
Em outro monte encontrou as fotografias em que aparecia com Michi em Kamakura, entre elas, uma muito tremida do monte Fuji tirada do guichê do trem. Seguiu procurando até encontrar aquela em que apareciam as duas ante o grande Buda. Michi estava erguida e sorridente, com a cabeça ligeiramente inclinada a um lado. Sorria e entreabria os olhos, esgotados atrás dos óculos, o que acentuava seu aspecto felino, de maçãs do rosto altas e fino queixo. Sua expressão era de sábia doçura. Barbara, muito mais alta, tinha as mãos metidas nos bolsos do casaco cor de camelo e o cabelo ondeando ao vento. Atrás delas estava o imenso Buda de olhar sereno.
Depositou a fotografia sobre a arca e se prometeu emoldurar a foto. Seguindo com a limpeza, recolheu a roupa suja da habitação de seis esteiras e colocou sobre o tokonoma um bonito vaso azul. Ao recolher a roupa que tinha atirada no chão do armário, viu cair o pacote que haviam trazido para Michi da lavanderia, ainda envolto. Desatou a corda e o abriu: sobre uns lençóis e toalhas dobradas repousavam duas cintas largas, uma vermelha e outra amarela, com as pontas cortadas em forma de cauda de andorinha. Apartou as cintas e desdobrou um pequeno quimono e um diminuto pijama com flores de ameixeira bordadas. Eram objetos de menino, devia tratar-se de um engano. Equivocaram-se de pacote na lavanderia? Mas sob as toalhas viu dois panos de cozinha que lhe resultavam familiares, e uma toalha anil e branco que recordava ter visto na mesa de Michi. Dobrou com cuidado a roupa, colocou em cima as cintas de cores e os objetos infantis e se dirigiu ao apartamento da senhorita Ota. Estava a ponto de desistir quando por fim lhe abriram a porta.
— Perdoe que a tenha feito esperar, mas não conseguia fechar minha mala. Amanhã vou a Yonago a ver minha sobrinha.
— Lamento incomodá-la...
A senhorita Ota jogou uma olhada à roupa que Barbara levava nas mãos.
— Acabo de abrir o pacote de Nakamoto-san que trouxeram da lavanderia, e me perguntava... Há objetos de menino.
— Já vejo. Passe, por favor. Dozo.
A senhorita Ota lhe indicou que se sentasse frente à mesa kotatsu, repleta de papéis escritos à mão, alguns em japonês e outros em inglês. Logo recolheu os papéis e os guardou em um escritório.
— Minha obra magna — disse. — Agora que me aposentei, dedico a isto exclusivamente.
— Sobre Henry James? — perguntou Barbara, ao tempo que se acomodava frente à mesa kotatsu.
— Sim, a respeito da influência de Henry James nos escritores japoneses do século XX. Intitular-se-á "A figura sobre o tatami."
— Como A figura na tapeçaria de James?
— Exato. — A senhorita Ota lhe dedicou um sorriso. — Prepararei-lhe um chá — disse, e se dirigiu à cozinha.
Barbara jogou um olhar ao redor. O salão estava lotado de móveis e todo tipo de objetos. Havia uma estante de estilo inglês junto a um santuário dedicado aos antepassados. Uma livraria acristalada mostrava os lombos das novelas inglesas, ordenadas por autores: Dickens, Thackeray, Trollope; Henry James ocupava duas prateleiras. Uma estante estava ocupada por um grupo de figuras de porcelana: damas e cavalheiros britânicos com antiquadas perucas.
A senhorita Ota apareceu com um serviço de chá de porcelana com rosas pintadas sobre uma bandeja de prata. Serve o chá, ofereceu- leite a Barbara e abriu o de açúcar.
— Um ou dois? — Tomou um torrão com tenazes de prata.
— OH, não tomo açúcar, obrigado — disse Barbara, mas viu sua anfitriã tão desgostada que retificou: — Um torrão somente.
A senhorita Ota se serve dois.
— O que lhe parecem suas alunas?
— Estupendas muito inteligentes. E se tomam muito interesse.
— As alunas da Kodaira não são como a maioria das estudantes japonesas, que estudam para fazer algo. Nossas alunas levam muito a sério.
— Entendo. Senhorita Ota...
— Comamos algo. Assim não terei que comer sozinha, com o senhor James como única companhia. — Voltou para a cozinha e retornou com uma bandeja com várias terrinas tampadas. — Sirva-se, por favor — lhe disse, indicando as terrinas.
Barbara desentupiu o menor.
— Chawan mushi! — exclamou. Era seu prato japonês preferido. Michi estava acostumada a preparar-lhe Agarrou uma colher e saboreou o cremoso caldo com porções de espinafres e cogumelos.
A senhorita Ota pegou uma terrina com o mesmo preparado.
— Era sua comida!
— Não há problema. Dizemos que é o prato mais adequado para os anciões e os meninos, porque é muito fácil de digerir.
Barbara tomou rapidamente a sopa de miso, a berinjela cozida e o pescado, e apurou os últimos grãos de arroz com seus palitos.
— Estou encantada de vê-la comer com apetite — disse sorridente a senhorita Ota. — Quando retornar de Yonago deve comer aqui de vez em quando. Convém-me ter companhia, e suponho que você sente falta da Nakamoto sensei.
— Muitíssimo. — Barbara tinha um nó na garganta.
A senhorita Ota esperou um instante antes de falar.
— É obvio, intriga-lhe ter encontrado estes objetos entre a roupa da Nakamoto sensei. Sabia que tinha uma filha?
— Sério? De verdade tinha uma filha?
— Sim, certamente.
Barbara deu uma nova olhada aos objetos. Michi-san era muito grande para ter uma menina que levasse tranças.
— Uma filha adotada?
— OH, não. Era uma filha biológica — se aplaudiu o ventre.
— Mas então, devia ser jovem quando a menina nasceu — observou Barbara.
— Sim, a idade que você tem agora, ou possivelmente um pouco mais jovem. Mas ela já morreu.
— Refere-se à filha?
A senhorita Ota assentiu.
— Morreu?
— Nunca teve muita saúde. Morreu de uma espécie de câncer no ano passado, no princípio do verão. Levava tempo hospitalizada.
— Michi-san não me contou nada.
A senhorita Ota guardou silêncio. Tampou sua terrina de caldo e colocou cuidadosamente a colher ao lado.
— Então, estava casada?
— É obvio — respondeu muito digna a senhorita Ota.
— É obvio, mas ele também morreu?
— Sim, faz muitos anos. Estiveram casados pouco tempo.
Bateram na porta. A senhora Ueda vinha comunicar que o banho estava pronto. A senhorita Ota começou a falar em japonês com ela.
— Ah, sou desuka? — disse a senhora Ueda várias vezes e se voltou para a Barbara. — Acredito que tem você uns objetos que podiam pertencer à filha de Nakamoto-san. Permite-me os ver?
Barbara não teve remedeio a não ser lhe passar o pacote de roupa. A senhora Ueda repassou os objetos dobrados até dar com o quimono. Desdobrou-o e acariciou os bordados com delicadeza.
— Recordo a Nakamoto-san fazendo estes bordados para a Ume. Posso confirmar que estes objetos lhe pertenciam. — Olhou a Barbara com severidade. — Imagino que este pacote chegou por acaso a seu apartamento, não?
— De todas as maneiras, Barbara-san queria muito bem a Nakamoto — interveio a senhorita Ota. — Gostará de ficar com estes efeitos pessoais.
— Assim o é, muito obrigado. O agradeço. — Barbara recolheu o quimono do braço da senhora Ueda. — Agora, senhorita Ota, deixarei-lhe tomar seu banho. — despediu-se com uma ligeira inclinação de cabeça e atravessou o vestíbulo em direção a seu apartamento.
Ficou escutando junto à porta até ouvir que a senhora Ueda descia lentamente a escada. Era egoísta ao querer ficar com esses objetos? Entrou no dormitório e desdobrou as roupas de Ume. Tirou uma das cintas — um tecido de linho grosso, de um vermelho brilhante — e a acariciou. Imaginava a Michi penteando a sua filha. Voltou a colocar a cinta sobre a roupa. Não podia desprender-se dessas lembranças. Colocou-se a camisola sobre o corpo: chegava-lhe à cintura. Ume devia ser muito menina quando a tinha posto. Talvez fosse uma espécie de túnica batismal. Acariciou com um dedo o bordado da flor de ameixeira. Ume significava ameixa. Michi-san a tinha chamado assim pelas flores que tanto gostava. Talvez a morte de Ume lhe tivesse levado a perder toda esperança.
Voltou a dobrar a camisola. O silêncio lhe parecia muito opressivo. Serviu-se uma taça de uma das garrafas mais recentes e bebeu um bom gole. Tirou da arca uma garrafa sem abrir — 1939, seu ano de nascimento, — rompeu o lacre que selava o papel e o desenrolou. Michi tinha escrito isto na mesma época em que a mãe da Barbara estava grávida, ou talvez para então já tivesse dado a luz. Foi, conforme contou a Barbara, um parto exaustivo de vinte horas.
Um par de anos mais tarde, a mãe da Barbara perdeu um bebê: um menino que nasceu morto. Nunca falava disso, Barbara soube por seu pai que a perda a mudou. "Sua mãe nunca voltou a ser a mesma. Parecia ter perdido toda a alegria."
Abriu o papel de 1965 e o estudou. Talvez mencionasse a Ume, era o ano em que morreu. A idéia lhe entristeceu e lhe encheram os olhos de lágrimas. Olhou fixamente os sinais e por um momento se fez a ilusão de que podia lê-los se prestasse muita atenção. Apurou a taça de licor e se serviu outra. Se Michi e sua mãe se conheceram, Michi lhe teria falado de Barbara. "Sei que estará você preocupada — lhe haveria dito, — eu também tive uma filha."
CAPÍTULO 5
O festival do campus não pôde ser celebrado em meados de outono porque a senhorita Fujizawa tinha estado presidindo um congresso nacional sobre os direitos das mulheres, assim que se atrasou até o inicio de fevereiro. E embora só restasse uma semana para os exames, as estudantes se empenharam a fundo adornando o campus com bandeirinhas e montando barracas aonde serviriam castanhas assadas, yakitori e taças de chá.
Barbara e seu grupo de teatro no Clube Inglês deviam representar sua cena de Sonho de Uma Noite de Verão no auditório. Embora Barbara dirigisse a obra, o senhor Doi tinha colocado, sem lhe consultar, exemplares da versão editada por ele. Isto deu lugar a uma tensa discussão na sala de fotocópias.
— Não é a época mais apropriada para representar O Sonho de Uma Noite de Verão — comentou Barbara. Suas alunas teriam preferido Casa de Bonecas, de Ibsen.
— De fato, não somos de acordo sobre a época do ano em que transcorre a obra — disse o senhor Doi. — É em maio ou no verão?
Barbara confessou que não sabia.
— Já vê! Além disso, os japoneses têm o costume de pendurar um desenho de inverno no verão, e vice-versa. O contraste faz parte de nossa estética.
Barbara fitou seu disfarce de Titania, um antiquado vestido de noiva, e ocupou seu lugar no cenário, tombada sob um estilizado pinheiro japonês de cartão feito pelas estudantes. Sem dúvida, pensou, a representação estaria dominada pelo contraste, porque o cenário era mais próprio do teatro tradicional Não o de uma obra isabelina.
Os contra regras não conseguiam levantar o pano de fundo, e o senhor Doi, disfarçado de rei Oberón, com uma espécie de bata vermelha e uma coroa de papel dourado, tentava com todas suas forças mover as cortinas. O público se impacientava.
Barbara tinha a esperança de que a senhorita Fujizawa não estivesse entre os espectadores. Tinha dado a entender que o festival contaria com prestigiosos visitantes, e — dada a opinião que tinha da Barbara — seguro que estava lhes ensinando as amostras de caligrafia ou a cerimônia do chá.
Atrás da Barbara aguardava Rie, pronta para pronunciar o monólogo com o qual se iniciava a representação. Levava sapatos com salto, casaco verde com franjas e um gorro bicudo: um Puck gordinho, mas entusiasta. Dada a animosidade que sentia para a cultura ocidental, era curioso que se disfarçou tão bem, pensou Barbara. No trabalho de investigação, a conclusão de Rie tinha sido a seguinte: "Só os cristãos do Ocidente sofrem o peso do pecado original. No Japão não temos pecado."
O pano de fundo se levantou finalmente entre chiados. Rie se aproximou saltando ao longo do cenário e saudou o público com um amplo movimento do braço e uma profunda reverência.
— Bem vindos ao trabalho levado a cabo pelo Clube Inglês. Eu, Puck, porei-lhes a par de qual é o problema da noite de verão. Nosso rei Oberón se zangou com sua rainha Titânia porque se mostrou ciumenta ao vê-lo flertar com outras mulheres. E para lhe dar uma lição à rainha, Oberón me pediu o peralta Puck, que lhe traga umas gotas de um suco mágico.
Rie se aproximou com torpes saltos à dormida Titânia e se inclinou para observar-la de perto. Logo se ergueu e disse, como em um sussurro teatral, o bastante alto como para que a ouvisse o público:
— Titânia se apaixonará pela primeira criatura que veja ao abrir os olhos. E casualmente, Bottom, um homem de povo, acaba de ser transformado em um asno.
A aparição do Hiroko com tamancos geta, o calçado tradicional dos camponeses japoneses, e umas orelhas de asno, levantou risadas entre o público.
Era o turno da Barbara. Sentou-se e se espreguiçou.
— Que anjo desperta de meu leito de flores? — Ao ver o Bottom deu um grito afogado de assombro e seguiu a tropicões pelo cenário. O público estalou em gargalhadas.
— Agora nos saltaremos uma parte — anunciou Rie, — e os populares farão sua representação.
Barbara voltou para sua árvore para representar um segundo sonho. Os populares, Hiroko/Bottom como Píramo, Chieko como Tisbe, e Sumi que fazia de muro, começaram a representar a comédia dos desgraçados amantes. Os diálogos eram difíceis de pronunciar e de entender em inglês. Barbara fechou os olhos, atenta aos movimentos sobre o cenário e à reação do público. Houve risadas quando Sumi, fazendo de muro, simulou um oco com os dedos para que os amantes pudessem falar-se, e também quando quão jovem fazia de leão saltava de um lado a outro do cenário. Os suicídios se representavam como o tradicional estripamento com uma espada de cartão e mediante os exagerados movimentos do teatro Kabuki. Tinha sido idéia de Rie, quem assegurava que assim o público japonês o entenderia melhor. Barbara não tinha querido discutir. Agora, tendida no cenário com os olhos fechados, recordou o frasco de pastilhas vazio de Michi, viu seu cara escura no ataúde, com os óculos dobrados ao lado. Ouviu um gemido e algo que caía ao chão, seguido de umas risadas incômodas. Ia haver outra morte. Tampou-se as orelhas com as mãos e as risadas aumentaram. Disse-se que estaria contribuindo a criar um efeito cômico.
— Despertou muito logo, minha rainha — bramou o senhor Doi. Inclinou-se e lhe tocou a frente com uma varinha. — Minha Titânia, o que ocorreu esta noite será tão somente um desconcertante sonho. — Olhou-a fixamente e sussurrou — Refiro a seu asno.
— Como? OH! — Titânia se voltou para o público. — Sonhei que estava apaixonada por um asno.
— Aí está seu amor — o senhor Doi assinalou ao Bottom.
Hiroko se levantou, esfregou-se os olhos e declamou:
— Não há olho que visse, nem ouvido que ouvisse, nem mão que apalpe nem língua que entenda, nem alma que relate o sonho que tive. Chamarei-o "O Sonho de Fondón" — fez um gesto teatral para enfatizar suas palavras, — porque não tem fundo.
— Assim acaba nossa representação — gritou o senhor Doi.
Barbara interrompeu os aplausos do público:
— Um momento. Falta Puck! — E com um gesto indicou ao Rie que saísse a saudar. Mas o pano de fundo já descendia. Ao dar-se conta de seu engano, os contra regras o começaram a levantar e Barbara lhes apressou com a mão a levantá-lo mais. Sorridente, tirou da mão a Rie e ao senhor Doi para saudar o público.
— É normal que haja mal-entendidos, senhor Doi — disse, — quando se representa O sonho de uma noite do verão em uma tarde de inverno que no Japão é o começo da primavera.
Sem lhe dar tempo a responder, correu a trocar-se. Estava satisfeita. A representação tinha acabado e não tinha visto à senhorita Fujizawa nas primeiras filas. Tirou-se o vestido de noiva e se uniu a Junko e a Sumi para ver outros atos e atividades do Clube Inglês. Percorreram a exposição de acertos florais e se detiveram frente à sala de debates.
Rich McCann, único colega americano da Barbara na Kodaira, moderava um debate sobre a guerra do Vietnam. Tinha-lhe pedido a Barbara que se passasse por ali se por acaso necessitava "reforços". Na tribuna havia estudantes do clube de debate da Kodaira, e Rie estava com elas, mas as garotas permaneciam em silêncio, em tanto que os jovens de sua escola rival, Keio, enfrentavam verbalmente ao senhor McCann desde a primeira fila. Um deles acusou aos Estados Unidos de utilizar armas químicas para destruir as colheitas do Vietnam do Norte. Como o justificava McCann? O professor olhou a Barbara, quem se limitou a lhe saudar com a mão.
Enquanto se afastavam da cena, Junko e Sumi guardaram um discreto silêncio. Em uma ocasião lhe perguntaram sobre sua postura em relação à guerra do Vietnam. Barbara respondeu que não sabia o que pensar. Hiroko tinha comentado que Michi se opunha firmemente à guerra. Pediria ao Hiroko que lhe explicasse melhor a postura do Michi.
Entraram na sala de caligrafia e se detiveram admirar cada pergaminho.
— Algum é de Nakamoto sensei? — perguntou Barbara.
— Não, todos são de estudantes — respondeu Junko.
Barbara comentou que gostaria de ser capaz de lê-los e Junko lhe explicou que na arte do shodo ou caligrafia japonesa, os caracteres podiam trocar dependendo da intenção do artista, de maneira que um pergaminho não sempre é fácil de ler, inclusive para um japonês.
— Você também pode fazer caligrafia, sensei.
— Ainda não conheço os caracteres.
— Poderia aprender, de um em um. Em caligrafia, o mais importante é a inocência e o desejo.
Havia gente fazendo fila para entrar na sala da cerimônia do chá, mas as estudantes insistiram que Barbara entrasse sem esperar seu turno. Deram-lhe um lugar de honra, à direita das duas mulheres que levavam a cabo a cerimônia do chá. Uma era de aspecto severo e orgulhoso e tinha um proeminente lunar na maçã do rosto. A outra mulher, de cabelo branco, torcia a cabeça em um ângulo forçado. Estava secando a borda de uma terrina com um pano. Barbara recordou que as tinha visto no funeral de Michi. Havia um homem de pé junto a elas, com uma jaqueta de quimono, calças largas de trabalhador e uma espécie de lenço branco enrolado na cabeça. Quando se voltou e fixou nela seus olhos escuros, Barbara o reconheceu: era o filho de uma das mulheres. Barbara lhe sorriu com acanhamento e bebeu uns sorvos de chá. Não voltou a lhe dirigir o olhar durante a cerimônia, mas ao sair, ele a esperava no vestíbulo.
— Perdoe que não me tenha apresentado antes. Sou Seiji Okada. Gostou-me de muito sua representação teatral.
— Viu a obra? Havia muitos enganos. Era uma comédia de enganos.
Estavam de pé no vestíbulo, em metade da gente que se apressava de um lado a outro.
— Me gostou de muito. Esteve você muito bem.
Ao contrário que muitos japoneses, que ficavam nervosos quando falavam com ela, parecia sereno e tranqüilo.
— Sou Barbara Jefferson. Vi-lhe no funeral de Michi Nakamoto, e estava com... Não são sua tia e sua mãe?
— Sim. — Ele assentiu com a cabeça.
Barbara tivesse querido saber qual das duas era sua mãe, mas não perguntou.
— Nakamoto sensei era amiga minha. Tenho entendido que foi sua professora.
— Sim. Fazia muitos anos que nos conhecíamos.
— A conhecia há pouco tempo. Era a única pessoa com a que podia falar... Refiro-me a falar de temas pessoais.
— Estou ensinando raku yaki a umas estudantes. Conhece este tipo de cerâmica?
— Sim, mas nunca vi como se faz.
— Ao melhor gostaria de assistir a uma demonstração.
— Eu adoraria. Onde será?
— Conhece o campo de esportes? É ali.
Dito isto, despediu-se com uma inclinação e partiu. Barbara observou que o cabelo comprido e desgrenhado tampava o pescoço da jaqueta tipo quimono. Viu-lhe pentear-se para trás com os dedos e olhar pela janela do vestíbulo. Estava segura de que morria de vontades de voltar-se para olhá-la, e não pôde evitar um sorriso.
Junko e Sumi lhe tinham aproximado e murmuravam entre si.
— Que exposição você gostou mais? — perguntou Junko.
— Todas me interessaram.
— Tinha assistido já à cerimônia do chá? — Sumi acompanhou sua pergunta com um divertido olhar a Junko.
— Não, mas tinha muitos desejos. É uma das coisas que minha mãe achou fascinantes quando esteve no Japão, em 1930.
— Acredito que sua mãe foi muito aventureira — disse Junko. — Parece-me admirável.
As garotas a convidaram a comer, mas Barbara disse que primeiro tinha que ir a seu apartamento. Penteou-se, pintou-se os lábios e logo se encaminhou para o campo de esportes. Não era provável que se encontrasse com seus estudantes ali. Os trabalhadores do colégio tinham acendido uma boa fogueira no meio do campo de esporte e o calor tinha derretido a neve ao redor. De noite haveria música e baile.
A demonstração de cerâmica se levava a cabo em um extremo do campo, onde tinham acendido uma pequena fogueira. Seiji tirou uma terrina das cinzas e o depositou em um banco, junto a uma fileira de terrinas de forma irregular.
— Gostaria de provar? — Seiji tomou nas mãos uma bolota de argila e a estendeu a Barbara.
— Não saberia como começar.
— O mostrarei.
Esmagou a argila com uma mão e começou a amassá-la. Barbara contemplou fascinada seus dedos fortes, suas unhas manchadas de argila. Seiji não demorou para dar forma a uma terrina e, com umas tenazes, aproximou-o do fogo até que adquiriu brilho. Então o depositou sobre as cinzas junto à fogueira e falou em japonês com um jovem, ao parecer para que o substituísse.
Barbara se aproximou das terrinas já acabadas. Seiji permanecia a seu lado.
— Parece-lhe interessante?
— Eu gosto de muito a cerâmica, mas nunca tinha visto nada tão formoso.
— De verdade? Alegro-me. — Seiji se inclinou sobre as terrinas e estendeu a Barbara uma de cor negra. — Esta terrina é igual ao que viu na cerimônia do chá. Por favor, o aceite como presente.
— Muito obrigado. Domo arigato gozaimasu. — Fez uma pequena reverência.
Olharam-se sorridentes. Barbara observou os sinais de que Seiji tingia o cabelo e viu rugas em seu rosto. Não era tão jovem como ela tinha acreditado. Suspendeu a terrina que acabava de lhe dar de presente; era ligeiro, mas com um corpo, muito agradável.
— É precioso — disse. — Foi muito amável ao me dar de presente o
— Me alegro de havê-la conhecido.
— Também eu, de lhe haver conhecido... — De repente se sentiu nervosa e olhou para o bosque de bambu, ao outro lado do campo. Os altos canos que se recortavam contra o céu começavam a verdear. — Disse que fazia muitos anos que conhecia Michi-san.
— Desde minha infância — respondeu com voz fria.
— Algum dia eu gostaria que falássemos dela.
— Também eu gostaria. — fez-se um silêncio. — Tem um interesse especial na cerâmica?
— Sim, em meu estado natal há um lugar chamado Seagrove onde eu estava acostumado a ir. É famoso por sua cerâmica, com influências asiáticas. Ali comecei a me interessar pela cerâmica japonesa.
— É fantástico. Tem que dever ver minha oficina, no Takanadoi, caminho da Tachikawa, junto a nosso pequeno restaurante familiar. Pode ir andando, não fica longe.
— Irei ver o, obrigado. — Sorriu, mas sua voz tinha divulgado muito formal.
— Se vier esta noite à festa ao redor da fogueira lhe darei um mapa. Agora tenho que voltar para raku.
Barbara levou a terrina de chá ao Sango-kan e voltou para edifício da escola. Pensando em Seiji, em suas mãos trabalhando a argila, percorreu os postos e as exposições. Aproximou-se da sala da cerimônia de chá e viu a mulher cega sentada em uma cadeira, com o rosto ainda inclinado para cima em um ângulo forçado. A outra mulher estava recolhendo as coisas. Dirigiu a Barbara um olhar severo e ela se retirou com uma pequena reverência.
Aquela noite foi à festa junto à fogueira e viu o Seiji. Trocou de roupa e levava um pulôver negro de pescoço alto e uma americana. Tendeu a Barbara um cartão com caracteres japoneses.
— Por favor, fique. Desenhei atrás o caminho a minha casa. Virá logo a ver-me?
— O próximo fim de semana, ao melhor.
— Estarei esperando. — Depois de uma inclinação de cabeça, voltou-se bruscamente e se afastou a toda pressa.
CAPÍTULO 6
Foi uma semana muito chuvosa e a água fez desaparecer os últimos restos de neve. No sábado pela manhã, Barbara andou com cuidado pelo enlodado caminho que levava a casa de Seiji. O canal ia grande e os bosques estavam desprovidos de vida e tão silenciosos que Barbara ouvia seus próprios passos e sua respiração. Nada, nem o salto de um esquilo de árvore em árvore, rompia a quietude.
Um menino em bicicleta passou junto a ela a toda velocidade e a salpicou de barro. Ao dar-se conta, voltou-se para ela e pediu desculpas, "Sumimasen", sem deixar de pedalar. Voltou à cabeça bem a tempo para evitar estelar se contra uma árvore. Tinha-a deixado empapada; agora tinha as meias molhadas e o vestido rosa todo salpicado. Até o lenço furoshiki rosa e cinza no qual levava uns pasteizinhos para a família Okada tinha ficado manchado de barro.
Aspirou uma baforada de ar frio carregado de aroma de folhas molhadas e a arbustos. A Seiji não importariam umas poucas manchas. As árvores que arrematavam o canal estavam florescendo. Vistas de longe, os ramos formavam um rosado encaixe. O pára-lama do ciclista brilhou na distância antes de desaparecer depois de uma curva. Acabava de observar a uma mulher que caminhava na mesma direção. Barbara a olhou com olhos entrecerrados: baixa, de cabelo curto, com um jaquetão escuro e um furoshiki cinza. De longe se parecia tremendamente a Michi-san, que provavelmente tinha feito esse mesmo caminho para visitar a família Okada. Barbara acelerou o passo, mas a mulher caminhava tão rápido como quando a encontrou no caminho ao Sango-kan. Barbara quis lhe ver a cara e quase correu pelo escorregadio caminho cheio de barro. Estava a ponto de alcançá-la quando a mulher se internou na concorrida rua que conduzia ao Kokubunji sem deter-se e subiu a um ônibus.
Com uma inexplicável sensação de opressão no peito, ficou olhando o tráfico de carros e de pessoas que se apressavam em todas as direções. É obvio aquela mulher não era Michi. Ao outro lado da rua pareciam escuras e silenciosas as árvores do bosque. Tirou do bolso o mapa que lhe tinha desenhado Seiji e o estudou. Teria que tomar o caminho junto ao canal, em direção ao Takanodai até a Tachikawa.
Passou junto a um santuário de madeira com coberto balanço. A entrada estava presidida pela tradicional porta torii com postes que suportavam duas vigas transversais de forma curva. As duas raposas de pedra que guardavam a entrada a contemplavam com as orelhas levantadas. A pedra tinha adquirido um tom escuro e estava emendada de um líquen negro. A raposa da direita tinha um olho coberto de líquen e o da esquerda tinha perdido parte do focinho e parecia sorrir. Era um santuário dedicado a Inari, deus xintoísta da fertilidade, que estava acostumado a representar-se guardado por raposas. Um dia, passeando com Junko, Barbara viu um santuário parecido no centro de Tóquio. Alguns diziam que a raposa era o mensageiro do deus Inari e outros acreditavam que também era divino, explicou-lhe Junko. Mas a Barbara pareciam graciosos e bem cuidados. Tinham-lhes atado lenços vermelhos em torno do pescoço e tinham deixado em frente a eles terrinas com sake e tofu frito.
Seguiu adiante com certa inquietação. O vento agitava com força os ramos das árvores. Recordou o desenho da mulher raposa e o olhar furtivo que jogava em suas costas. Desde pequena, aquele olhar a assustava. Parecia-lhe que a mulher raposa pretendia atraí-la e levar-lhe longe de casa. E agora estava ali, muito longe do lar.
Ante ela se abria um campo de trigo outonal, e mais à frente se divisava um caminho e duas granjas de teto de palha. Seguiu o caminho da costa até que se acabaram as árvores. De cima contemplou os telhados reluzentes de uma aldeia e o caminho que dividia em dois o mosaico multicolorido de triângulos e retângulos de terra em aro. Viu no horizonte o brilho de arredondadas construções de metal, e ao divisar imensos hangares deduziu que era a base aérea de Tachikawa. Um avião se elevou no horizonte e desenhou um branco rastro no céu.
Desceu pelo caminho e voltou a consultar seu mapa. Ali estava a loja de tofu e a casa de banhos detrás. Uns meninos jogavam a perseguir-se na rua.
— Olá, senhora americana! — gritou um.
Barbara lhe sorriu e lhe saudou com a mão.
— Olá!
Os meninos se dispersaram entre risadas.
Passou ante uma loja de comestíveis que expunha caixas de frutas e verduras e um barril de bonito seco junto à entrada. Uma mulher que acabava de depositar em seu cesto um repolho ficou olhando. Mais à frente viu umas quantas lojas e um telefone público onde um jovem de aspecto vulgar conversava animadamente. Ao ver a Barbara, seguiu-a com o olhar.
Chegou a um pequeno restaurante com uma cortina de cor azul na entrada. No batente da janela, um gato de gesso levantava a pata em um gesto de saudação. No mapa, o lugar estava apontado com uma flecha e marcado com uma X como "Restaurante Okada". Também havia «
"Entre aqui, por favor,". Barbara apartou a cortina e entrou no local, de somente cinco ou seis mesas. Uma mulher com quimono a saudou com um amplo sorriso e lhe indicou que tomasse assento.
— Okada Seiji-san? — perguntou Barbara.
A mulher assinalou ao fundo do restaurante.
— No exterior — disse.
Barbara inclinou a cabeça em um gesto de agradecimento e saiu à parte traseira do restaurante, onde havia um terreno nu emoldurado por dois largos abrigos. Junto a um deles se empilhavam gavetas de madeira e através da porta aberta se via uma fileira de terrinas de argila sobre uma larga mesa. Barbara olhou a um lado e a outro, sem saber o que fazer. Chamava Seiji ou se limitava a entrar em um dos abrigos? A garçonete a estava observando. Seiji apareceu carregando um pesado cubo. Parecia triste e cabisbaixo, mas assim que viu Barbara, lhe iluminou o rosto. Com uma exclamação de surpresa, deixou cuidadosamente o cubo no chão e se apartou o cabelo da cara. Levava um grosso suéter azul marinho, calças largas de trabalho e botas negras de borracha, e tinha manchas de argila na frente e nas bochechas. Aproximou-se sorridente e saudou com uma inclinação de cabeça.
— Está aqui.
Seu olhar sereno inspirava tranqüilidade.
— Sim. Trouxe uma coisinha para sua mãe e sua tia. — Desatou com dificuldade o nó do furoshiki e tirou a lata de bolachas.
— Obrigado, gostarão. — Fez uma pausa. — Alegra-me que tenha vindo. Agora brilha o sol.
Barbara sorriu.
— Muito obrigado. Eu também me alegro de ter vindo.
— Dozo — disse Seiji. — Quer ver minha oficina?
Entraram no abrigo destinado à olaria, carregado de um intenso aroma de terra molhada. Custou-lhe acostumar-se à penumbra, já que a única luz provinha da porta aberta e do turvo cristal da janela. O volto de oleiro estava junto à entrada, e ao redor do abrigo havia mesas cobertas de peças de cerâmica, envernizadas ou não.
Seiji assinalou umas fileiras de brilhantes taças, terrinas e pratos. A maioria eram de um tom escuro, negro com bolinhas marrons ou marrom escuro com bolinhas douradas. Barbara acariciou o bordo de uma taça negra e pôs a mão sobre uma vasilha escura salpicada de bolinhas avermelhadas.
— É precioso.
— Tem bom gosto — disse Seiji. — É de Hamada, o melhor ceramista do Japão.
— Ah, já, de Mashiko. Vi fotos de seu trabalho.
— Estiveste em Mashiko?
— Só o conheço pelos livros.
— Sou afortunado porque posso estudar ali, com Hamada sensei.
Barbara agarrou uma terrina para admirá-la. Confiava em que fosse uma peça de Seiji.
— Pensa ir a Mashiko para estudar com ele? — Talvez por isso houvesse tantas caixas de madeira empilhadas.
— Eu adoraria viver ali, mas tenho que cuidar de minha mãe. Está cega e depende de mim.
— Sinto muito.
Seiji assentiu para agradecer suas palavras, mas não parecia disposto a dizer mais, e Barbara não se atreveu a seguir perguntando. Calculou que tivesse mais de trinta anos. Talvez estivesse casado; uma mulher lhe ajudaria a cuidar de sua mãe.
— Estiveste casado? — perguntou-lhe.
— Não.
Seiji se voltou bruscamente e ficou a ordenar as peças de cerâmica da mesa mais próxima. Quando se voltou para ela, seu olhar se adoçou.
— Faz perguntas diretas. Tome cuidado, porque eu faço o mesmo.
Barbara lhe sorriu.
— De acordo, me pergunte. Dozo.
— Tem noivo nos Estados Unidos?
— Não.
Seiji sorriu abertamente.
— Ah. Isto está muito bem.
— Sim — disse Barbara. Pigarreou, devolveu a seu lugar a terrina negra e agarrou uma taça de cor marrom escura salpicada de pedrinhas douradas. Era bastante pesada e muito suave ao tato.
— Você gosta? Dou a você de presente.
— Já me deu de presente uma taça muito bonita.
— Esta é mais apreciada que a cerâmica raku. Preparo um chá para que possa estreá-la?
— Muito obrigado, eu adoraria.
Seiji a conduziu a uma mesa repleta de figuras de argila, já cozidas, mas ainda sem envernizar, que representavam guerreiros, cavalos e mulheres com bebês às costas.
— São figuras haniwa — lhe explicou. — Ouviste falar da cerâmica haniwa? É um costume antigo. Tenho-as feito para pô-las à venda em Mashiko e tenho escrito um folheto informativo. Diga-me o que te parece, por favor.
Barbara aproximou o papel à luz. Por um lado estava escrito em japonês, assim que lhe deu a volta para ler a versão em inglês: "Guia de haniwa. História dos ídolos de argila. Conta-se que faz 1700 anos, quando um imperador do período Yamato morria, seus criados e familiares os enterravam vivos com ele. Devia ser horripilante ouvir seus gritos dia e noite. Mas o costume do sacrifício era aceito naqueles tempos, até que Nomi no Sukune, um alto cargo de palácio, teve a idéia de fazer haniwa. Quando a imperatriz morreu, mandou modelar homens e cavalos em argila para enterrá-los com ela. As figuras haniwa se faziam virtualmente com o mesmo material que se empregava para os ídolos de barro. Estudamo-lo a fundo e podemos imitá-lo bem. Os entendidos em arte apreciam estes trabalhos; compram para fazer um presente ou para decorar um quarto."
— Temo-me que meu inglês é pobre — comentou Seiji quando Barbara acabou de ler o folheto.
— Não, está muito bom, de verdade.
— Não trocaria nada?
— Só pequenos detalhes.
— Se me indicar as correções, agradecer-lhe-ei isso.
— Estarei encantada de te ajudar se me ensinar japonês em troca.
— OH, é um bom trato. — Cruzou os braços sobre o peito e a contemplou sorridente. — Acredito que será uma excelente estudante.
— A verdade é que há uma coisa que necessitaria que me traduzisse. — Barbara falou lentamente, escolhendo as palavras. Estava segura de que Seiji seria o tradutor ideal. Tinha conhecido Michi-san e não formava parte da universidade, então não havia perigo de "vazar"' informação. Já se via com Seiji em seu quarto de seis tatamis, bebendo licor de ameixa e estudando os textos. — Se trata de uns escritos de Michi-san.
Do rosto do Seiji se apagou o sorriso.
— Refere ao Nakamoto sensei?
— Sim.
— Que classe de textos?
— Uma espécie de jornal, acredito. Conhecia o tansu onde ela guardava o licor de ameixa?
Seiji pareceu surpreso.
— Um tansu para guardar licor? — Apartou o olhar da Barbara para posá-lo em um ponto remoto. — Sim, já sei qual é. Como é que o conhece?
— Deixou-me isso como herança.
— Deu-lhe isso a ti?
— Sim. As garrafas estão envoltas em uns papéis com escritos. Cada garrafa tem seu texto, ao que parece.
Seiji permanecia em silêncio, olhando carrancudo ao chão.
— Ajudará a traduzi-los? Como você a conhecia muito... — Não soube o que acrescentar.
— Legou-te esses escritos para que ninguém os conhecesse — Seiji olhou a Barbara. — Suponho que porque não sabia o japonês.
— Mas se não queria que ninguém os lesse teria queimado os papéis, não?
O rosto do Seiji se escureceu ainda mais. Parecia a ponto de dizer que não.
— É melhor que desse seus escritos você, que a conhecia bem, a que a outra pessoa. Tinha pensado em pedir ajuda a uma de minhas alunas, ou a alguém da escola de idiomas...
— Nada de escola de idiomas, nada de estudante — disse, açoitando o ar com a mão. — Eu os lerei. — deu-se meia volta e saiu do abrigo.
Barbara o seguiu.
— Lamento-o. Não queria te pôr nervoso.
Seiji se voltou para a Barbara. Ficaram olhando-se.
— Sumimasen — disse Seiji. — Sinto me haver posto nervoso. Estarei encantado de traduzir esses textos.
— Verdade?
— Verdade. Tomamos o chá?
— Sim, encantada.
Seiji a conduziu ao outro lado do jardim. Passaram perto de um bambu e entraram em um pátio com um edifício de uma planta. As portas trilhos estavam abertas e deixavam ver um chão brilhante, talher de tatamis, e o extremo de uma mesa. Ao outro lado do pátio havia um edifício menor coberto de palha, e diante do edifício um jardim em miniatura com novelo, um chão de cascalho limpo e cuidado e um pequeno lago coberto de folhas secas.
— Por favor, espere enquanto agarro seu presente e vamos tomar um chá.
Seiji lhe indicou com um movimento de cabeça o edifício pequeno. Na entrada tirou rapidamente as botas. Barbara se perguntou se tinha se comportado como uma gaijin ao abordar com franqueza o tema dos escritos de Michi. Não podia pedir conselho a ninguém, porque a única pessoa que lhe podia ter explicado as regras era a própria Michi. Recordou a ocasião em que lhe tinha levado um enorme buquê de flores e Michi lhe disse que nunca deviam dar tantos presentes. Bastava dois ou três, mas não quatro, já que o caráter que indica quatro, shi, é o mesmo que morte. E agora Michi estava morta. O só pensamento há deixou um instante sem fala.
Voltou-se sobressaltada para ouvir uns passos. Seiji se aproximava pelo caminho de cascalho. Lavou-se a cara e estava recém penteado. Sobre o braço levava uma jaqueta azul escuro com estampado em branco, e a estendeu assim que esteve bastante perto.
— Pensei que terá frio na casa de chá. Será melhor que ponha isto.
Era um haori de um tecido cálido e suave. Barbara se embrulhou nela.
— Muito obrigado, muito amável.
Consciente de que ele a olhava liberou o arbusto de cabelo do pescoço da jaqueta e a sacudiu.
— Me acompanhe, por favor.
Atravessaram o jardim por um caminho que chegava até o outro lado da casa de chá. O chão frente à entrada estava talher de musgo com grandes pedras planas. Ao pé de uma velha árvore retorcida havia uma reprodução a grande tamanho de uma figura haniwa: a mulher com um menino às costas. Ao aproximar-se da entrada, seus braços se tocaram. Foi um ligeiro roce, mas Seiji se apartou e lhe assinalou com um gesto à esquerda.
— A zona dos preparativos — disse, — e este é o salão de chá. A porta de entrada é baixa para nos ensinar humildade.
No salão coberto com um tatami havia duas almofadas e um braseiro em forma de cabaça onde se esquentava uma pava de ferro. Um ramo nu, descascado e polido emoldurava o tokonoma, à esquerda. Sobre a estante do tokonoma havia três pedras azuis, e ainda por cima delas pendurava um desenho em tinta a imagem de umas montanhas rodeadas de névoa. Seiji dispôs uma almofada para a Barbara de maneira que olhasse ao tokonoma.
— Não te aborreça enquanto preparo o chá — disse sorrindo.
Barbara ficou olhando para o tokonoma. Ouvia os ruídos que chegavam da cozinha e se perguntava se Michi tinha estado ajoelhada nesse mesmo lugar, olhando para as mesmas pedras azuis, o mesmo desenho. Seiji retornou levando uma bandeja com o serviço de chá. Ajoelhou-se e o preparou com muita cerimônia: mediu a quantidade de chá verde, adicionou-lhe água quente e a agitou com uma varinha de bambu. O chá, verde e espumoso, parecia uma vitamina de erva. Barbara tomou um sorvo e olhou ao Seiji, que esperava sua reação com expressão solene.
— É delicioso — disse.
— Agora tem que fazer girar a taça para a esquerda, duas vezes, e deixá-la sobre a mesa com inapetência, como se você gostasse muito.
— Mas é que eu gosto muito — disse Barbara, e deixou a taça sobre o tatami.
Seiji preparou seu próprio chá e beberam em silêncio. Barbara se deu conta de que ele a olhava fixamente. Notou um formigamento no peito e nos braços e se perguntou se seria certo o que tinha ouvido que os japoneses não costumavam beijar.
— Foi muito amiga de Nakamoto sensei?
— Era a única pessoa daqui que me dizia a verdade.
— Falou-te de sua vida pessoal?
Barbara duvidou.
— Você conhecia a Ume-chan?
— Sim. — Seiji apartou a vista e começou a secar sua taça com um pano branco. — Quando era pequena gostava de fazer voar cometas. Sempre a lembrança assim, correndo por um prado com um cometa. — Colocou na bandeja o serviço de chá. — Lamento não ter biscoitos para te oferecer. Volta outro dia e te prepararei um chá mais completo. O de hoje foi muito pobre.
— OH, esteve muito bom. Mas eu gostaria de voltar.
— Amanhã pela tarde, por exemplo?
Barbara ficou surpreendida.
— De acordo, amanhã vai bem.
Seiji saudou com uma pequena reverência.
— Por favor, traz os papéis do Nakamoto sensei. Posso traduzi-los e lhe devolvo isso.
— Quer dizer que lhe deixe isso aqui?
— Temo-me que a tradução me levará um tempo. Meu inglês não é muito bom.
— Eu te posso ajudar. Podemo-lo fazer juntos. Trarei um dicionário. Você e eu o escrevemos, de acordo?
— Sim, mas me temo que não seja tão singelo.
Dirigiu-se à cozinha e retornou com uma caixa de madeira e o furoshiki da Barbara. Envolveu a tigela no lenço, depositou-o dentro da caixa e a atou com uma cinta marrom. Barbara não podia apartar a vista de seus dedos, compridos, fortes e elegantes. Com uma inclinação de cabeça, aceitou a caixa que Seiji lhe tendia. Ao ficar de pé, os joelhos lhe rangeram. Não sabia se tinham chegado a um acordo. Ignorava se Seiji era consciente de que só lhe entregaria uma folha para traduzir cada vez e que a voltaria a levar a casa, assim ao chegar à saída, voltou-se para ele.
— Por que não vem amanhã a meu apartamento? Ensinar-te-ia o tansu e veria quantos papéis há cada um enrolado ao redor de uma garrafa. Você gosta do licor de ameixa?
— Só poderia ir acompanhado de minha mãe ou de minha tia. Não é apropriado que entre em sua casa sozinho. — E acrescentou com um sorriso — Salvo que subiria pela parede e entre pela janela, como Romeo.
Barbara riu, mas as bochechas lhe ardiam.
— Enquanto isso — acrescentou ele, já mais sério, — por que não vem amanhã às três?
— Virei às três.
Mais tarde se deu conta de que não lhe havia devolvido a jaqueta haori. Jogou uma olhada à porta, mas estava fechada. Bem, devolvê-la-ia amanhã. No caminho de volta, ao passar frente à quitanda, o telefone público e a loja de sova, pareceu-lhe que a olhavam com mais curiosidade que antes. Ao tomar o caminho que levava a bosque, pensou em quão estranha devia lhes resultar, com o cabelo loiro e solto sobre o pescoço da jaqueta haori, igual à mulher raposa quando partia e desaparecia entre as árvores.
CAPÍTULO 7
Ao dia seguinte pegou um táxi para ir à casa de Seiji. Tinha estado todo o dia nervosa, e um ataque de indecisão no último momento — que papel levar, como levá-lo, o que a atrasou. Seiji a esperava na rua, frente à casa. Nada mais vê-lo, Barbara esqueceu a desculpa que tinha preparado por não lhe devolver a jaqueta e pelo atraso.
— Olá — lhe saudou com voz afogada.
— Olá — respondeu ele com um radiante sorriso.
Barbara lhe estendeu a jaqueta. Seiji a pôs sobre o braço abriu a porta do jardim e a convidou a passar.
— Dozo.
Vestiu-se para a ocasião: calças escuras, uma camisa branca e uma jaqueta de quadros escoceses. Os sapatos estavam recém escovados.
Seguiram o caminho de cascalho, passaram diante do lago e chegaram às pedras planas sobre o escuro musgo. Barbara caminhou sobre elas como se cruzasse um rio artificial e subiu à plataforma da casa de chá com mais graça que o primeiro dia.
— Entre, por favor — disse Seiji. — Eu prepararei o chá.
Agachou a cabeça para entrar. O interior estava úmido pelo vapor que desprendia a pava sobre o braseiro e cheirava a fragrante incenso. No meio da sala havia uma mesa baixa com um dicionário japonês-inglês, dois blocos de papel de papel e duas canetas, tudo muito bem ordenado. Barbara se ajoelhou sobre a almofada que olhava à porta. A outra almofada não estava em frente, a não ser junto a ela; sentar-se-iam um ao lado do outro.
Seiji trouxe da cozinha duas bandejas de bolinhos de feijões de soja e se ajoelhou frente ao braseiro para preparar o chá. Comeram e beberam em silêncio, exceto por algum oishi, isto é, «delicioso», de Barbara e as correspondentes expressões de agradecimento de Seiji, que parecia nervoso e apenas a olhava. Barbara olhou atentamente a seu redor: o tokonoma com o desenho e as pedras azuis, cuidadosamente colocadas, a porta baixa emoldurada por um ramo de pinheiro, como se fora uma pintura. Tudo tinha uma elegância contida, shibumi, o ideal estético japonês de que Michi lhe tinha falado.
Enquanto Seiji lavava a louça e os utensílios do chá na cozinha, Barbara tirou do furoshiki o único escrito que havia trazido: correspondia à garrafa de 1965. Ao princípio tinha acrescentado os papéis de 1964 e de 1963, mas no último momento decidiu que não tinha sentido discutir sobre onde deixar os papéis se só teriam tempo para traduzir um. Com um formigamento no estômago, pôs sobre a mesa o papel de arroz enrolado e pacote com uma cinta, e tirou também o caderno que tinha comprado para copiar a tradução. Por fim saberia o que tinha escrito Michi. Quando Seiji voltou da cozinha, explicou-lhe:
— Trouxe só um escrito, o mais recente. Pensei que era melhor começar por este.
— De acordo — Não disse mais, mas seu rosto expressava desaprovação.
Agarrou o cilindro de papel, desatou com cuidado a cinta e o estendeu sobre a mesa. Do bolso da calça tirou duas pedras negras e as colocou sobre as esquinas superiores do papel para sujeitá-lo. Tirou uns óculos do bolso interior da jaqueta e se inclinou sobre a página.
Esteve tanto momento em silêncio que Barbara começou a perguntar-se se tinha dificuldade para entender algum caráter kanji, mas quando viu que não movia os olhos compreendeu que não lia, mas sim se limitava a olhar o papel. Para chamar sua atenção, pigarreou e se acomodou na almofada.
— Nakamoto-san fala de sua filha — disse Seiji finalmente. Tirou-se os óculos e as pôs sobre a mesa. — É necessário que te explique algo primeiro. Sua filha Ume-chan estava doente.
— Já sei. Tinha câncer — disse Barbara. — A senhorita Ota me contou isso.
— Sim, mas antes... — Seiji consultou o dicionário e lhe assinalou uma palavra na página aberta.
— Macrocefalia? O que significa? — Entreabriu os olhos para ler a definição no dicionário — Cabeça pequena.
— Exato, embora de fato a cabeça de Ume-chan era de tamanho normal, mas é um transtorno que provoca atraso mental. Embora morresse aos dezenove anos, tinha uma mentalidade de seis. — Fechou o dicionário e o deixou a um lado.
— É terrível — disse Barbara.
— Não imagina qual é a causa. — Seiji a olhou aos olhos.
— Não.
— Quando lançaram a bomba atômica, Nakamoto sensei vivia em Hiroshima e estava grávida de Ume. — tocou-se o ventre. — A menina nasceu assim porque esteve exposta às radiações.
— Não tinha nem idéia — murmurou Barbara. Veio-lhe à mente a imagem da imensa nuvem em forma de cogumelo que tinha visto pela televisão, expandindo-se lentamente sobre a cidade. Recordou Michi olhando a fotografia de sua mãe em Hiroshima.
Seiji se colocou de novo os óculos.
— Traduzirei-lhe isso: "1 de janeiro de 1966. É tarde, e a casa está em silêncio. É meu primeiro escrito do ano. Se olho pela janela, tudo está escuro como a tinta a China. Se pudesse molhar o pincel na noite, como escreveria! Se minha filha fosse capaz de ler o que escrevo com meu pincel, escreveria para ela. Diria-lhe que não é tão fácil ser mãe. Que sempre comete enganos."
Barbara sentiu que lhe arrepiavam as ninharias da nuca. Michi-san se dirigia a ela.
— Tem lido isto? — assinalou-lhe um escrito na parte superior da página que parecia um aplique posterior.
— Não, isto fala do tempo. Faz uma boa temperatura, e assim. Como vê esta escrita fala de Ume-chan e de assuntos familiares. Escreve: "Este ano 1966 é o ano do Cavalo de Fogo. Minha mãe nasceu em um ano de Cavalo de Fogo, faz sessenta anos. A superstição diz que é o pior ano para nascer mulher. Freqüentemente pensei que era correto no caso de minha mãe, uma mulher atormentada, que não estava preparada para ter filhos. Sempre me doía a frieza com que me tratava, mas não posso esquecer que em duas ocasiões me deu a vida."
Deteve-se para que pudesse transcrever suas palavras. Barbara se disse que, se Michi vivesse, gostaria de falá-lo com ela.
— Não diz quando foi a segunda ocasião?
Seiji negou com a cabeça.
— Segue falando de sua filha. "Ume-chan morreu de leucemia faz cinco meses, em 12 de julho. Lembro-me dela todos os dias, e freqüentemente a vejo em meus sonhos."
Barbara escreveu em silêncio. A ponta da caneta lhe parecia mais pesada sobre o fino papel. Olhou a Seiji, mas este tinha os olhos fechados.
— Encontra-te bem?
— Ah, gomen nasai, perdão. — Procurou o ponto do escrito onde o tinha deixado. — Nakamoto descreve sua comoção, apesar de que o médico lhe tivesse advertido. Diz: "Quando contemplo sua pobre carinha sobre o travesseiro, só posso pensar: onde está à autêntica vida que lhe correspondia viver?"
Perdido em seus pensamentos, Seiji contemplava a página e, com muita delicadeza, apoiava dois dedos sobre as pedras negras. Barbara sentiu desejos de pôr a mão sobre a dele.
— Rogo-te que me perdoe — disse Seiji, olhando-a aos olhos, — mas não entendo por que Nakamoto lhe deu estes escritos. Tem que tratar-se de um engano.
Olharam-se em silêncio.
— Me quis deixar isso — disse Barbara. — Escreveu-me uma nota e a deixou sobre o tansu. Não se trata de um engano. Tínhamos muito em comum.
— Eu gostaria de ver a nota, e também outros papéis. Eu gostaria de ver todos os papéis.
— Pensava que não te parecia bem ir sozinho a meu apartamento. Se tanto te incomoda, será melhor que procure a outra pessoa para traduzir os papéis.
— Não, eu sou o único que lerei os papéis. — golpeou-se o peito com a mão aberta. — Tem que jurá-lo.
— De acordo — respondeu Barbara, assustada. — Mas o vais traduzir tudo? — Assinalou-lhe o escrito ao princípio da página.
— Como já hei dito, fala do tempo. "Não faz frio, mas há uma espessa névoa. Fui passear para ver as cerejeiras. Este ano estão florescendo muito cedo e as geladas matarão sua fragrância. Recordo a ama cega...", isto significa — Seiji consultou seu dicionário: — pessoas que dão massagens; "... a ama cega que se aproximava até nossa casa em Hiroshima atraída pelo aroma das flores de ameixeira de mamãe".
— Hai. Isso é tudo. — Acendeu um cigarro e voltou para texto principal. — Nakamoto sensei recorda o último dia que Ume estava o bastante bem para sair. Foi um sábado do passado maio, faz um ano. Diz: "Quando levei ao Ume ao hospital, notei que tinha engordado. Isto me pareceu esperança dor, porque imaginava que a enfermidade a emagreceria, mas a enfermeira me disse que era pela medicação. O pulôver e a saia ficavam pequenos, e tinha pouco cabelo. Entristecia-me muito... — Seiji fez uma pausa — ver kokoro... o espírito de uma menina pequena apanhado no corpo doente de uma mulher."
Barbara imaginou o rosto infantil de Ume, uma versão miúda da cara felina de Michi, sobre um corpo grosso de peitos e ventre inchados.
— "Fomos ao santuário Meiji e contemplamos as íris florescidas. Ume recordou que se plantam formando uma curva, como o meandro de um rio. A idéia adorou, e ficou a correr torpemente ao longo das flores plantadas gritando Irisgawa. O rio Íris!"
Seiji esperou a que ela tivesse acabado de escrever.
— "Para comer havia maki-sushi e cerejas cobertas de açúcar, a guloseima favorita de Ume. Enquanto eu estava tirando a comida, Ume cortou as flores de íris e as recolheu em sua saia para me trazer isso A briguei com severidade, e agora me arrependo de lhe haver quebrado seu último dia de pic-nic por uma tolice. Ume ficou de joelhos e chorou. Abracei-a contra meu peito. Agora penso em como devia chorar em meu ventre quando eu abraçava junto ao rio Motoyasu o dia do pesadelo."
Fez-se um comprido silencio. Seiji permanecia imóvel, com o olhar no papel. No exterior, a luz tinha trocado, e um frio entardecer entrava através das janelas. Barbara sentiu uma intensa nostalgia do lar.
Seiji apoiou o cigarro aceso sobre um prato e continuou lendo.
— "Tínhamos que ir às compras, mas Ume molhou a saia e a levei de volta ao hospital. A excursão e meu aborrecimento a tinham posto muito nervosa. Fui as compras, e quando retornei ao hospital a encontrei dormida com sua velha boneca kokesh na mão. O laço de seu cabelo parecia uma mariposa que se posou sobre sua cabeça. Tinha a inocência de uma criatura que começa a viver."
Seiji exalou um suspiro e tirou os óculos.
— Umas linhas mais e acabamos. — ficou de pé para estirar-se e o colete de ponto lhe levantou por cima do cinturão.
Barbara lhe olhou a cintura. Que magro estava!
— Deve estar cansado.
— Quer mais chá, ou prefere uma cerveja?
— Uma cerveja, obrigado.
Seiji foi à cozinha e voltou com duas garrafas de cerveja Kirin.
— Não há copos, sinto muito. Importa-te beber da garrafa?
— Claro que não — estendeu a mão para agarrar a garrafa.
Seiji a olhou sorridente.
— Uma professora que bebe cerveja! Igual a Nakamoto sensei. — O sorriso se apagou de seu rosto.
— Sério?
Talvez por isso à senhorita Fujizawa se preocupasse com o licor de ameixa de Michi; talvez Michi bebesse muito. Talvez tivesse tomado as pastilhas para dormir com licor de ameixa, ou com uma bebida mais forte, e lhe resultou fatalmente.
— Está mal visto que as professoras bebam álcool?
— Em público, está mal visto que tomem inclusive cerveja. No Japão, os sensei têm uma categoria e uma consideração que devem manter em especial as professoras.
Reacomodou-se na almofada e continuou com a leitura.
— "Esta noite com a Ume-chan penso em Soichi e no pequeno Haru, cujo cadáver nunca se encontrou. A lembrança mais precisa que tenho de suas caras é o daquele dia longínquo de nossa infância em que fomos ao monte Mitaki a colher castanhas com papai e mamãe."
— Alguma vez encontraram ao Haru?
Seiji meneou a cabeça e ficou em silêncio. Logo pigarreou e seguiu lendo.
— "O chão, coberto de folhas amarelas e vermelhas, parecia um tapete turco. Soichi agarrava castanhas com aplicação e Haru brincava de correr lhe dando a lata. Recordo sua carinha, tão viva e graciosa, tentando espionar o interior de uma árvore. Posso ver suas sobrancelhas espessas e Yamato, fina e, mas bem bicuda. Quando tento imaginar qual seria o verdadeiro rosto de Ume, é o de Haru o que me vem à mente.»
Barbara escrevia com rapidez, ao tempo que tentava imaginar-se Haru, o verdadeiro rosto de Ume.
— Estas são as últimas frases — disse Seiji: — "Nestes últimos anos minhas lembranças sobre aquele dia no monte Mitaki são mais claros, como se em lugar de me afastar me aproximasse daqueles tempos. Talvez mamãe estivesse no certo quando acreditava que existia um lugar de descanso onde todos nos reuniremos Ume e eu, papai e mamãe, Soichi, o pequeno Haru, a avó Ko, Kenzaburo e... outros que estão perto de meu coração.»
Seiji se tirou os óculos e se esfregou os olhos.
— Isso é tudo.
— Quem é Kenzaburo?
— O marido do Nakamoto sensei. Morreu durante a guerra.
— Michi-san nunca me mencionou isso. — ficou olhando ao Seiji, inclinado sobre a mesa, com a cabeça entre Isto mãos tem que te resultar duro. Era sua professora de infância.
Seiji levantou a cabeça e começou a enrolar lentamente o papel sem olhá-la. Tremiam-lhe as mãos.
— Você também estava ali.
Seiji ficou imóvel.
— Sim — disse.
Tentou imaginar o cogumelo nuclear, e Seiji debaixo, um menino ainda, mas não o conseguiu. Ficou observando enquanto ele seguia enrolando o papel.
— Sinto-o muitíssimo — sussurrou.
Seiji agarrou a cinta, colocou-a sobre o cilindro e, com muito cuidado, passou um extremo sobre o dedo indicador para fazer um primoroso laço.
— Você gostaria de ver a arca de licor? — perguntou Barbara.
— Agora mesmo? — Seiji elevou o olhar para ela.
— Agora, ou quando quiser.
— Sim, obrigado — disse ele. — Eu gostaria de ir agora mesmo. Podemos ir em minha caminhonete.
CAPÍTULO 8
Resultou ser um condutor bom, mas impaciente. Passava de uma pista a outra e tocava a buzina, mas mantinha as mãos firmes sobre o volante e não havia dúvida de que conhecia o caminho.
— Quando foi Michi-san tua professora?
— Eu tinha uns doze anos, e ela estava começando.
— Mas mais adiante também tinha relação com ela.
— Sim. Sua família era vizinha da minha em Koi, um subúrbio de Hiroshima.
Detiveram-se ante um semáforo em vermelho. Seiji acendeu um cigarro do pacote que tinha no poeta luvas.
— E que idade tinha então?
— Treze anos.
Tinha o olhar fixo no semáforo e a fumaça obrigava a entrecerrar os olhos. Barbara estudou seu perfil. De ter tido uns anos mais, teria sido soldado na guerra. O semáforo passou a verde e Seiji pisou no acelerador. Barbara olhava pela janela. Quando menina não tinha sabido nada das bombas atômicas; nem sequer soube que havia uma guerra. Quando estava na universidade foi ver o filme Hiroshima mon amour: ainda recordava as cenas retrospectivas da cidade arrasada e os cadáveres carbonizados. E em primeiro plano, sobre estas cenas de horror, os corpos nus de dois amantes, duas figuras que ao princípio resultam imprecisas, como uma paisagem que se vai afastando. "Conheço Hiroshima", diz a mulher francesa. "Você não sabe nada de Hiroshima — responde o homem japonês, e repete: — Você não sabe nada."
Quando chegaram à universidade, Seiji estacionou na calçada em lugar de entrar no recinto. A porta estava aberta e não havia ninguém em recepção, mas quando passaram ante a biblioteca e ante o edifício principal, seguindo o caminho de cascalho que conduzia ao apartamento através do bosque, Barbara estava tensa. Nos terrenos do campus não viram ninguém e quando chegaram ao Sango-kan, Barbara se alegrou de ver que não estava o carro da senhora Ueda; passava o dia fora, tal como lhe anunciou. Quanto à senhorita Ota, não tinha retornado de Yonago.
Tiraram-se os sapatos no vestíbulo e Barbara entregou a Seiji umas sapatilhas de convidado. No apartamento das estudantes se ouvia a rádio, mas a porta estava fechada. Atravessaram o vestíbulo e subiram pelas escadas sem que ninguém os visse, e Barbara teve a sensação de ter entrado sem permissão. No apartamento, acompanhou Seiji à habitação ocidental.
— Espera aqui, por favor. Temo-me que o quarto do tansu está muito desordenado.
Recolheu os objetos dispersados pelo dormitório, fruto de sua indecisão matinal, e as colocou a toda pressa no armário; não estava arrumado e encontrou um pote de lata, uns cachos e um espelho, e sobre o tatami um par de garrafas já desprovidas dos papéis que tinha decidido não levar-se a casa de Seiji. Depois de pôr um pouco de ordem, tirou da primeira gaveta da arca o escrito onde Michi lhe anunciava seu legado e o colocou sobre o móvel, junto à foto emoldurada onde aparecia ela junto a Michi-san.
O salão, pelo menos, estava apresentável. Seiji seguia ali, olhando pela janela em direção ao apartamento de Michi.
— Já está — anunciou Barbara. — Dozo.
Seiji se voltou para ela com um sorriso.
— Ordenaste a habitação?
Quando estiveram sentados frente ao tansu, Barbara lhe mostrou a nota de Michi.
Seiji a leu atentamente e a devolveu a seu lugar.
— Foram juntas a Kamakura — disse aproximando-se da fotografia.
— Em outubro. — Assinalou com um movimento de cabeça os papéis junto ao móvel são os escritos de 1963 e 1964. Quer lê-los agora?
— Sim, mas primeiro eu gostaria de ver o móvel, posso?
Abriram a primeira gaveta, e Seiji rodeou com a mão a primeira garrafa envolta em papel. Foi tocando as seguintes garrafas com suavidade, apoiando sobre cada una a palma da mão. Fechou a primeira gaveta, abriu o segundo, olhou as garrafas e abriu a última gaveta.
— Sah! — e acrescentou algo em japonês.
— O que? — perguntou Barbara.
A mão do Seiji seguia suspensa sobre a garrafa mais antiga, de 1930. Finalmente desistiu, fechou a gaveta e voltou a abrir o primeiro. Tirou a garrafa de 1961, desfez o laço e rompeu o selo de lacre. Leu em silêncio, sem oferecer-se a traduzir, logo envolveu a garrafa no papel.
— Me poderia ler isso
— Melhor fazê-lo por ordem. Temos lido 1965, e agora toca 1964.
Que mandão, pensou Barbara, mas não disse nada. Levaram os textos de 1964 e 1963 ao quarto dos seis tatamis e se sentaram frente à mesa baixa. Barbara abriu seu caderno e esperou a que Seiji lesse.
— Já posso traduzir — disse por fim. — Está preparada?
Barbara respondeu em um tom de exagerada cortesia:
— Sim, acredito que estou preparada.
Ele, entretanto, não pareceu advertir seu sarcasmo.
— Está marcado como o primeiro escrito do ano, igual ao outro, mas também há notas anteriores. "15 de junho. A maturação das ameixas me tomou de surpresa. Estava tão ocupada com outras coisas que cheguei tarde à colheita. Muitas ameixas caindo das árvores e estavam esmagadas na erva; só se tinham salvado as dos ramos mais altos. Recolhi-as sem emprestar muita atenção. Hoje penso em mamãe, no jardim de casa, faz muitos anos, quando Hiroshima não significava mais que "ilha grande"."
Seiji fez uma pausa: sentado com as costas muito retas, apertava tanto o papel que os dedos lhe haviam posto brancos. Barbara sentiu uma pontada de compaixão. Tinha que ser insuportável reviver as memórias da bomba atômica.
— Quer tomar algo? Uma taça de chá ou um copo de vinho?
Seiji rechaçou o convite.
— Está obscurecendo. — Barbara acendeu a luz. — Melhor agora?
— Sim, obrigado. Nakamoto explica aqui que sua mãe colocava panos sob as árvores para que as ameixas não se danificassem ao cair. — Pigarreou. — Diz: "Um dia, eu estava recolhendo o salão de chá e me chamou do jardim, "Michi, vêem ver as jóias douradas". Ainda ouço sua voz autoritária e vejo as delicadas frutas caídas sobre o pano, brilhando ao sol. Ajoelhei-me junto a minha mãe e juntas recolhemos as ameixas, ainda úmidas de rocio. Era como agarrar ovos frescos, suaves e primorosos. Muitos anos depois, quando minha mãe estava agonizando no hospital, recordava aquelas ameixas. Levava dias com uma febre muito alta, e desde dia da bomba as únicas palavras que pronunciava eram uma espécie de linguagem de raposa..."
— Michi-san me disse que sua mãe entendia a linguagem das raposas — interrompeu Barbara.
— Não se refere a isso — explicou Seiji, — a não ser ao que chamamos pikadon, o resplendor e o estrondo da bomba atômica. A mãe de Nakamoto atribuiu a bomba a raposas-demônios. E também a chuva negra que caiu depois da bomba... Isso era um terrível tempo de raposas. A avó Ko tinha retornado do mundo dos espíritos e o havia dito. Agora traduzo o que diz o texto: "O fantasma da avó Ko estava sempre com minha mãe na habitação do hospital, junto à janela ou sentada em uma cadeira ao lado da cama. Quando papai trouxe as cinzas de Soichi, a avó disse a mamãe que se esfregasse com elas as queimaduras, porque só assim se curaria. Mamãe se melou a cara com as cinzas. Parecia um fantasma. Não falava mais que com a avó, de modo que me surpreendeu quando, de repente, voltou-se para mim e me perguntou com sua voz de antes: "Michi-san, recorda as jóias douradas?"Pôr-me a mão no ventre, onde estava o bebê, e disse: "Jóia dourada." E assim foi como lhe pôs nome a sua neta: Ume, jóia dourada, fruto da ameixeira. Não viveu para conhecê-la, mas nos últimos anos, quando Ume estava no hospital, eu notava a presença de minha mãe. Então lhe perdoei muitas coisas."
— Não diz que coisas?
— Aqui acaba o texto — disse Seiji. — Não há mais.
Tomou o papel e o enrolou lentamente ao redor da garrafa. Tomou o trabalho de voltar a colocar a corda e de fazer o nó.
— Já não podemos ler mais por hoje.
— Estou de acordo — disse Barbara.
Seiji ficou de pé de um só movimento e se estirou.
— Eu gostaria de te oferecer algo de comer, mas não tenho quase nada.
— Temo-me que não é muito boa dona-de-casa — disse ele com um sorriso. — O que dirá seu marido?
Barbara ficou de pé e lhe sorriu, mas não soube o que responder.
— O melhor será ir a um restaurante — disse Seiji.
Não se encontraram com ninguém ao sair do edifício. No negro céu brilhavam umas quantas estrelas e um raio de lua. Só se ouviam seus passos sobre o caminho de cascalho e o sussurro dos ramos das árvores, agitadas pela brisa. Barbara olhou por volta do caminho pelo que tinha passeado com Michi o último dia, uma brecha escura entre as árvores.
Seiji a levou a um restaurante que ela não conhecia: o Kamiya, em uma ruela do Kokubunji, um local alegre e ruidoso, com fotografias de atores Kabuki nas paredes. As garçonetes, vestidas com quimono, sapateavam ruidosamente sobre tamancos geta e repetiam em voz alta os pedidos.
Sobre sua mesa pendurava o desenho de um guerreiro vesgo de ameaçador sorriso. As garçonetes e alguns clientes saudaram o Seiji e olharam a Barbara com curiosidade, mas ele não fez gesto de apresentá-la.
A carta estava em japonês. Barbara não entendia nada.
— Você gosta do unagi... A enguia? — perguntou-lhe Seiji.
— Nunca a provei. — E a idéia de prová-la não o fazia muito feliz.
— Há outro tipo de enguia, anago, que é deliciosa, a especialidade de minha terra.
— Então a provarei — assentiu Barbara. Depois de sua experiência com a medusa, que era como mastigar uma borracha elástica, a enguia não podia ser pior.
A garçonete lhes trouxe chá e toalhas quentes. Seiji pediu a comida em japonês. Barbara se esfregou as mãos com a toalha. Seiji usou a sua para secar o suor da cara e o pescoço, e se limpou as mãos.
— Quando diz "minha terra", refere a Hiroshima?
— Sim — disse ele, olhando-a aos olhos. — Hiroshima.
— Vai freqüentemente?
— Só tornei duas ou três vezes. Agora é uma cidade nova. — Fez uma pausa antes de perguntar: — Onde está seu lar nos Estados Unidos?
— Carolina do Norte. Neste costa, no sul. — Desenhou um pequeno mapa em uma página de sua agenda: Esta costa, o oceano cheio de peixes, Florida, com suas vinhas e laranjeiras, Carolina do Norte, cheia de árvores e de montanhas, e no meio do estado, um asterisco marcando Raleigh e as palavras "Minha casa".
— Parece um sítio precioso. Eu gostaria de ir ver o.
— Eu gostaria que viesse.
Olharam-se sorridentes. Barbara elevou a vista para o guerreiro samurai.
— É de Sharaku, um famoso artista japonês — disse Seiji.
— Conheço-o. Michi-san tinha um desenho de uma gueixa do mesmo artista.
Chegou sua comida, consistente em terrinas cheias de arroz coroados com oleosos pedaços de enguia. Seiji tinha pedido também sake, em uma pequena garrafa de cerâmica com seus dois copos. Seiji lhe serve o sake.
— Agora você tem que me servir — lhe disse.
Barbara tomou a garrafa, que estava quente, e lhe encheu o copo.
Seiji elevou seu copo para brindar.
— Kampai. Você gosta?
— Sim — respondeu Barbara, embora o sake nunca a tivesse entusiasmado, com esse sabor a plátanos quentes e amadurecidos. Mas a enguia tinha um saboroso toque defumado que adorou. Comeu rapidamente, com a terrina à altura da boca, como os japoneses.
Seiji se inclinou para ela e fingiu surpresa ao ver a terrina meio vazio.
— Vejo que tem bom apetite.
Barbara riu e lhe tendeu o copo para que o enchesse. O sake parecia cada vez melhor.
— Tinha ouvido falar da avó Ko, e de outras coisas que conta Michi-san?
— Alguns detalhes me surpreenderam.
Esperava que continuasse, mas Seiji não disse nada mais.
— Era interessante o escrito de 1961?
Ele assentiu sem olhá-la.
— Do que trata? Fala de Ume?
— De diversas coisas. É uma miscelânea de sucessos anteriores. — Concentrado em seu arroz, recolhia os últimos grãos da terrina.
— pensei muito na morte de Michi-san. Pensa que foi um ataque ao coração ou crie que pôde fazer algo por... Desespero?
Seiji elevou a cabeça tão bruscamente que a assustou.
— Quero dizer... Por causa de Ume — atinou a esclarecer.
Com os lábios tão apertados que formavam uma linha, Seiji colocou os palitos perfeitamente alinhados junto à terrina.
— Acaso não seja impossível conhecer a alma de outro ser humano — disse.
— Sinto muito. Não tinha nem idéia. Só queria dizer...
Seu olhar se adoçou.
— É normal que te faça essa pergunta. Foi amiga de Nakamoto sensei.
Fez-se um comprido silencio.
— Não a chamava alguma vez Michi-san? — perguntou Barbara.
— Algumas vezes, mas inclusive aos amigos estão acostumados a chamá-los pelo sobrenome.
— Eu deveria ter feito o mesmo?
Seiji se encolheu de ombros.
— Você é gaijin.
Gaijin significava "estrangeiro, não japonês". A Barbara a recordavam freqüentemente. Aos gaijin lhes perdoavam muitos enganos, não se esperava muito deles.
— Quando poderá voltar a traduzir? — perguntou. — Poderia ir a sua casa uma tarde, a semana próxima.
— Lamento-o, devo ir a Mashiko para fazer uma partilha.
— OH — Barbara se sentiu decepcionada.
— Talvez dentro de duas semanas.
— Estarei ocupada com o exame de ingresso na universidade, e logo estarei de viaje até o dia da graduação, em 18 de março.
— Entendo.
Alegrou-lhe comprovar que ele também se sentia decepcionado.
— Então, não estará o dia do funeral quando se cumprem 49 dias de sua morte, não? — disse Barbara. — É sexta-feira.
— Sim, já estarei de volta. Poderíamos nos ver depois do serviço.
— Seria estupendo.
— Muito bem, pois. Espero esse dia — disse Seiji com uma pequena reverência.
Levantou-se e pagou a conta. Logo saíram em busca da caminhonete.
— Falará de Nakamoto sensei no funeral? — perguntou Barbara.
— Não.
— Mas a conhecia muito.
Seiji não respondeu.
Quando estiveram na caminhonete, Barbara comentou:
— Pediram-me que fale sobre ela.
— Ah, sou desuka? — Olhou-a surpreso.
— É estranho, não? Conheci-a o passado verão.
Durante um momento, Seiji conduziu em silêncio.
— E o que vais dizer de Nakamoto sensei?
— Falarei de sua generosidade, por exemplo. Um dia me trouxe um pescado precioso, com cabeça e tudo. Como viu que não sabia o que fazer com ele, ficou em casa e o cozinhou. Logo me escreveu um pequeno caderno de receitas, e a primeira era "Como cozinhar um pescado".
Seiji parecia impressionado.
— De verdade não sabia cozinhar?
— Ao estilo japonês, não — disse Barbara. Em realidade sabia muito pouco. Sua mãe não suportava que a incomodassem na cozinha.
— Conhecia muito bem a Nakamoto? — Seiji a olhou com atenção.
Barbara viu a si mesma em casa de Michi, sob o abajur redondo com tela de papel, como uma lua brilhante. Do primeiro momento se estabeleceu entre elas uma cálida compreensão que lhes permitia falar ou comer juntas, ou estar simplesmente em silêncio.
— Havia uma conexão entre nós que é difícil de explicar.
— Os sentimentos humanos são misteriosos, não?
Tinham chegado à universidade e Seiji reduziu a marcha.
— Quer que te acompanhe dentro?
— Não faz falta, me deixe aqui.
Estacionou um pouco além da entrada ao recinto. A luz da entrada iluminou fracamente o interior do veículo. Barbara logo que distinguia o perfil de seu rosto.
— Muito obrigado pelo jantar. Passei-o muito bem. Espero que possamos ler juntos outros textos de Michi-san.
Seiji inclinou a cabeça e lhe tendeu a mão.
— Adeus ao estilo americano — disse.
Estreitaram-se as mãos com muita ênfase e riram.
— É estranho como nos uniu o destino... É como um matrimônio consertado — disse Seiji com um sorriso. — Confio em que nos levemos bem.
CAPÍTULO 9
Aquela noite Barbara despertou angustiada. O coração lhe tinha disparado no peito. Tinha sonhado que uma raposa lhe falava e ela o entendia. Mas já não recordava nada, só a sensação de perigo.
Acendeu a luz e olhou o desenho da mulher raposa; tinha uma expressão enigmática, mas afável. Agarrou o caderno de notas que tinha deixado junto à cama e o folheou. Seiji não tinha querido traduzir um texto; teve que lhe empurrar a ler o parágrafo mais importante de 1965. Abriu a primeira gaveta e tirou a garrafa de 1965. Um intenso aroma alcanforado alagou a fria habitação. O papel se desenrolou facilmente. Barbara estudou os apertados signos e consultou suas notas. Por que resistia Seiji a ler sobre o tempo que fazia o dia de Ano Novo? Recordou como se golpeou o peito dizendo "Só eu, Okada Seiji, lerei estes papéis". Não seria melhor encarregar a outra pessoa para traduzir essa parte?
Serve-se uma taça de vinho e se tampou os ombros com a manta elétrica. Podia levar o texto ao International House. Michi-san lhe tinha apresentado à bibliotecária, que certamente conheceria algum tradutor, mas seria mais rápido se encontrava um tradutor na própria universidade. Repassou as opções: uma estudante, a senhorita Ota, a senhora Nakano... Seu escritório estava em frente ao do senhor McCann, quem falava bem japonês e se ofereceu a ajudá-la "no que necessitar querida".
À manhã seguinte foi ao despacho do senhor McCann. Como a porta estava aberta, apareceu e o viu lendo exames.
— Olá, Barbara. — ficou de pé e se penteou com as duas mãos o cabelo já cinza. — Passe, passe. Ia preparar um café.
Tomou assento enquanto ele preparava café solúvel. De vez em quando levantava a vista e lhe sorria como se queria retê-la ali. A amabilidade de McCann tinha uma ponta de desespero. Segundo a senhora Nakano, a mulher do professor não pôde se acostumar ao Japão e tinha voltado para os Estados Unidos no verão passado.
McCann dispôs as taças sobre a mesa e colocou frente à Barbara uma caixa de chocolates Whitman.
— Dozo — disse. — Um pequeno presente de casa.
— Ah, é você o fornecedor da senhorita Fujizawa.
Escolheu um chocolate cheio de cereja. O professor escolheu dois bombons e se ajeitou na cadeira.
— Me diga Barbara-san, como vai tudo?
— Queria lhe pedir um favor. — Tirou da pasta o cilindro de papel.
— Me conte.
— Trata-se de traduzir um texto breve…
— Será um prazer.
Desenrolou o papel.
— É confidencial.
— Que mulher tão misteriosa! — Ao ver seu gesto dúbio, acrescentou: — É obvio não se preocupe.
Barbara colocou uma folha em branco sobre o manuscrito, de maneira que só se visse o parágrafo que queria traduzir, e a depositou cuidadosamente sobre o escritório.
— Poderia me ler este parágrafo?
— Só isto?
O senhor McCann tamborilou com os dedos sobre o papel em branco e levantou um pouco um extremo.
— Só isto — insistiu Barbara.
— Uma carta de amor? — O professor arqueou as sobrancelhas.
A Barbara seu fôlego cheirava a café. Não respondeu. Talvez tivesse se equivocado de pessoa. O professor se inclinou sobre o papel e percorreu os signos com um dedo.
— Já vejo um escrito recente. De janeiro passado, só que em lugar de janeiro de 1966 põe Show 35. Assim indicam a data os japoneses, utilizando o nome formal do imperador, neste caso o do Hirohito, reinado de paz. Irônico, não?
— Que mais põe? — Barbara tentou conter a impaciência.
— O estilo parece feminino. É uma descrição poética de um passeio depois de escrever… suponho que se refere a isto — disse, pondo a mão sobre os papéis.
Barbara resistiu o impulso de lhe apartar a mão.
— Sim, refere-se a outro texto que está em bastante mal estado.
— Faz um calor impróprio da estação, e há névoa. Os brotos da ameixeira saíram, brotaram, por assim dizê-lo, muito logo. Gostaria de poder fechar os brotos. Recorda Hiroshima, Hiroshima.
Barbara seguia apertando o papel com os dedos.
— Continue, por favor.
— Hiroshima, onde a massagista cega se aproximaria de sua casa guiada pelo aroma das ameixeiras em flor. Vê o que lhe disse? É bastante poético. Teme que — se deteve, e Barbara lhe animou com um gesto a continuar — que este ano a geada gele os casulos e as flores não cheguem a despedir sua fragrância.
O professor se ergueu.
— Isso é tudo?
— É tudo, salvo que queira que siga lendo o resto.
— Não, não faz falta. Muitíssimas obrigado — pôs os papéis fora de seu alcance. Sentia tal alívio que estava a ponto de gritar. — Rogo-lhe que não diga nada disto.
— Meus lábios estão selados.
No ofício em memória de Michi, nos dia 49 depois de sua morte, Barbara se sentou nas primeiras filas do templo com outros membros da faculdade que foram pronunciar umas palavras. Ao entrar tinha divisado Seiji, na penumbra dos últimos bancos. O templo tinha o mesmo aspecto que o dia das exéquias. Sobre o altar, uma foto grande de Michi, um buquê de flores e uma vasilha onde se queimava incenso. Em lugar do ataúde, no centro da mesa havia uma caixa tampada com um brocado branco; devia conter as cinzas. A caixa era como um ataúde em miniatura, e Barbara recordou o que tinha escrito Michi a respeito das cinzas de seu irmão, que a mãe se lubrificou na cara para aliviar as queimaduras das radiações. Agora de Michi só ficavam cinza e pedacinhos de osso. Junko lhe tinha contado que havia um osso, a garganta de Buda, que estava acostumado a recolher-se de entre as cinzas com uns palitos para colocá-lo na caixa.
Apartou o olhar do rosto melancólico do Michi para concentrar-se no sacerdote calvo que cantava sutras frente ao altar. Seu rosto, sulcado de profundas rugas como o de um sabujo, tinha um ar antigo e austero. Parecia um homem sábio, mas quem podia assegurá-lo? Barbara estava cansada de não entender. Tudo lhe parecia profundo e misterioso, inclusive as coisas singelas, de um cliente que discutia um preço com o lojista até o que diziam os alto-falantes da estação.
O sacerdote saudou, voltou-se para a audiência e, depois de saudar de novo, murmurou umas palavras que sem dúvida davam passo à senhorita Fujizawa, porque esta se levantou de seu assento ajudando-se com a fortificação e se aproximou do altar. Ia muito elegante com seu vestido negro e um colar de pérolas, e falava muito rápido. De vez em quando lançava severos olhares ao público por cima das lentes. Barbara supôs que suas palavras eram as habituais: Nakamoto sensei tinha sido uma excelente professora, estimada por seus colegas, e sua morte representava uma grande perda para a Universidade Kodaira e para a comunidade. Barbara contemplou o rosto largo e de dobro papada da senhorita Fujizawa. Seguro que tinha conhecimento do frasco de pastilhas vazio; que conclusão tinha extraído? Quando a presidenta voltou para seu sítio, um pouco sufocada, a senhorita Ota a substituiu. Barbara jogou uma olhada à fila de assentos: depois da senhorita Ota vinham duas mais — a senhora Nakano e a senhora Ueda — e logo ela. Encolheu-lhe o estômago.
Quando se deu conta de que a senhorita Ota falava em inglês, Barbara levantou a vista surpreendida e emprestou atenção.
— Não cabe a menor duvida — dizia — de que Nakamoto sensei se estava convertendo em uma das principais especialistas no complexo campo das relações entre o Japão e o estrangeiro. Por desgraça, como era mulher nunca o teriam reconhecido. Falávamos freqüentemente destes temas. Uma destas ocasiões foi quando estivemos dois dias juntas na Universidade de Berkeley. Ela fazia o doutorado e eu ia caminho de Londres. — Barbara se inclinou para frente. Ignorava que Michi-san tivesse vivido na Califórnia. — Estivemos horas nos arquivos históricos de Berkeley procurando dados para uma investigação do Nakamoto sensei — levantou a folha que estava lendo e a passou ao final. — Visitamos as exposições de arte asiática e comemos no bairro de São Francisco habitado por descendentes de japoneses. A professora Nakamoto lamentava muito — a senhorita Ota dirigiu um olhar a Barbara, — ao igual a todos, não ter podido completar em sua curta vida seu ensaio sobre o capitão de navio Matthew Perry e suas viagens ao Japão. De todas as maneiras, tanto seus estudantes como os que a conhecemos nos enriquecemos com sua inteligência e conhecimento, por não mencionar sua generosidade e entrega.
Barbara se sentiu decepcionada ao comprovar que a senhora Nakano não fazia seu discurso em inglês. Viu que lia umas notas escritas em finos papéis; parecia uma biografia ordenada e completa, como as que escrevia sobre os escritores que estudavam em classe.
O discurso da senhora Nakano acabou em seguida. Quando a senhora Ueda se levantou e deixou vazio o assento contínuo, Barbara se secou na saia as Palmas das mãos. A senhora Ueda estava emocionada; tinha os olhos inchados e apertava contra o peito um enrugado lenço. Ao contemplar seu rosto pálido sob o turbante negro, Barbara tentou recordar o que Michi lhe tinha contado sobre ela: uma vida desgraçada, um matrimônio difícil. Tivesse-lhe gostado de falar de Michi-san com a senhora Ueda, mas esta sempre lhe tinha parecido fria e inalcançável. Só tinham trocado frases de cortesia.
Ao acabar seu discurso, a senhora Ueda inclinou a cabeça e voltou para seu assento. Barbara se encaminhou ao altar, um pouco aturdida. O coração lhe galopava no peito.
— Gomen nasai por não falar em japonês — disse. Olhou as notas. A mão lhe tremia violentamente. — Nakamoto Michiko sensei era uma mãe para mim. Quando cheguei, recebeu-me com amabilidade na porta do Sango-kan. Mais tarde descobri que era ela quem tinha preparado meu apartamento e tinha enchido de comida a despensa. Deu-me suas almofadas para pôr junto à janela, seu rádio relógio, inclusive seu próprio travesseiro.
Jogou uma olhada a suas notas. Tinha lido muito rápido.
— A verdade é que conhecia muito pouco a Michi, perdão, Nakamoto sensei, em comparação com vós. Com ela me passava como acontece com um menino com sua mãe, que quase não sabe nada de seus anos de juventude. — antes de seguir, olhou ao público. — Recentemente, fiquei muito surpreendida ao saber que era de Hiroshima e tinha sobrevivido à bomba atômica.
Suas palavras ficaram flutuando no ar. Na sala se fez um silêncio total. Todas as pessoas da primeira fila — exceto a senhorita Fujizawa, que cravava nela um severo olhar — baixaram a vista. Umas filas mais atrás, Junko e Sumi a contemplavam estupefatas. Sumi tinha a boca aberta. Barbara procurou o Seiji no fundo da sala; olhava-a sem piscar.
— Quão único posso acrescentar, gomen nasai, é que era uma mulher muito boa e generosa, como todos sabem.
Voltou para seu sítio com as bochechas ardentes. O sacerdote disse umas palavras e todos ficaram de pé. Quase ninguém falava. Ouvia-se o entrechocar das cadeiras e um murmúrio surdo.
A senhorita Ota a esperava ao final do corredor.
— Sua emoção me comoveu. — Deu-lhe uns tapinhas na mão para consolá-la.
A senhorita Fujizawa se limitou a lhe dar as obrigado em tom glacial. Barbara procurou com o olhar à senhora Nakano, mas esta se partiu já, perdeu-se entre a gente que se dirigia à saída.
Seiji permanecia em seu assento. Ao sair, Barbara se deteve junto a ele e lhe perguntou com um sussurro:
— Vemo-nos fora? Tenho que falar contigo.
— Agora tenho que falar com o sacerdote, mas te verei mais tarde no restaurante Kamiya — respondeu ele em voz baixa, sem olhá-la.
À saída do templo, Junko, Hiroko e Sumi falavam em sussurros. Calaram-se quando Barbara lhes aproximou.
— Pensam que falei mais da conta.
— Estamos surpreendidas — disse Sumi. — Não sabíamos que Nakamoto sensei era hibakusha.
Meu deus, disse-se Barbara. Era pior do que pensava.
— Então, era um segredo?
— Há hibakusha que fazem pública sua experiência e advogam pela paz — disse Hiroko. — Outros preferem o anonimato. Se te contou isto, confiava muito em ti.
— Me perdoem, tenho que fazer recados. Ver-lhes-ei mais tarde — se desculpou Barbara.
Caminhou rapidamente para deixar atrás às pessoas congregada frente ao templo. Tinha traído a Michi e tinha feito o ridículo. McCann lhe dirigiu um sorriso cheio de intenção; tinha estabelecido a relação entre Michi-san e o texto traduzido. Barbara sentiu náuseas.
O Kamiya estava virtualmente vazio; só havia um operário na barra. Embora fosse meia tarde, no local flutuava um intenso aroma de enguia. Barbara tomou assento sob o desenho do samurai vesgo. A garçonete apareceu à cabeça por detrás da cortina do fundo e retornou com uma toalha quente e uma taça de chá. Barbara conseguiu lhe fazer entender em japonês que estava esperando a outra pessoa. Viu que falava com o homem do bar e que os dois se voltavam a olhá-la.
Bebeu seu chá a pequenos sorvos. A luz do entardecer conferia ao local um aspecto desastrado, com suas flores de plástica e suas velhas toalhas de vinil. Seiji demorava para resolver seus assuntos com o sacerdote. Quando finalmente apareceu, levava um pacote envolto em um furoshiki branco. Barbara se sentiu irritada: deteve-se a fazer recados.
— Olá — disse.
— Olá. — Colocou o pacote na cadeira contínua e lhe pediu à garçonete uma cerveja Kirin.
Quando a garçonete desapareceu detrás da cortina, Barbara não agüentou mais.
— Sinto-me fatal. Não deveria ter contado... As estudantes nem sequer sabiam que Michi-san...
— Não conhecia as razões dos hibakusha para mantê-lo em segredo, mas não tinha má intenção.
— Obrigado. Tem razão, não queria ofender.
A garçonete trouxe a cerveja e Seiji entreabriu os olhos e jogou a cabeça para trás para beber.
— Eu gostaria que me explicasse... As razões dos hibakusha para mantê-lo em segredo.
— Ao melhor um dia lhe posso explicar isso. — Seiji deixou a garrafa e jogou uma olhada à cadeira junto a ele. — Trouxe as cinzas de Nakamoto sensei.
— Como?
Tocou o pacote envolto em um lenço. Sob o tecido se adivinhava a forma retangular da urna.
— Michi... — Lhe encheram os olhos de lágrimas. — O que fará com as cinzas?
— De momento, colocá-las-ei no butsudan, o santuário dos antepassados. Mais tarde as levarei a Hiroshima.
Michi tinha um butsudan em seu pequeno dormitório com tatami. Barbara recordava havê-lo visto quando Michi lhe mostrou a arca, mas apenas o recordava: era um móvel escuro.
— Em sua casa? Quer dizer que te legou suas cinzas?
Seiji cravava o olhar em seu copo de cerveja e o movia brandamente.
— Nakamoto viveu uns anos em minha casa, quando chegou a Tóquio. E também Ume-chan.
— Assim que a conhecia bem.
— Sim. — Deixou de mover o copo, mas não elevou o olhar. Apertava a mandíbula com expressão séria.
Barbara se sentiu culpado. Tinha duvidado dele.
— Sinto-o — disse.
Seiji fez um gesto de assentimento.
— Obrigado.
— Entendo por que se sente tão mal. Surpreende-te que não te tenha deixado os papéis.
Seiji a olhou aos olhos.
— Alegra-me que o entenda.
— Minha mãe foi correspondente estrangeira no Japão, antes da guerra, e esteve em Hiroshima. Ao melhor por isso me escolheu.
— Não me tinha contado isso. O que escreveu sua mãe a respeito de Hiroshima?
— Não sei. — Em seu apartamento guardava a única mostra que ficava da época de sua mãe no Japão: um artigo sobre sua visita a Hakone. O resto se tinha perdido.
O chá se esfriou e tinha um sabor amargo. Barbara bebeu um sorvo e olhou em direção ao pacote sobre a cadeira.
— Crie que Michi me perdoaria este arrebatamento? — E acrescentou, ao ver a perplexidade do Seiji: — Quero dizer, que tenha falado impulsivamente sobre ela.
Esta vez, Seiji sorriu.
— Claro. É sua natureza.
Concordaram que continuariam com a tradução na segunda-feira no Sango-kan; todo mundo teria saído de férias. Seiji levantou com cuidado o pacote envolto no furoshiki. Sob o lenço se adivinhavam as agudas esquinas.
Barbara voltou pelo caminho mais largo, através do bosque. O sol estava a ponto de ocultar-se e as sombras sob as árvores eram frescas e alargadas. Deteve-se junto ao rio e se imaginou que a urna baixava lentamente, levada pela água.
CAPÍTULO 10
À manhã seguinte, muito cedo, bateram na porta.
— Rie! — exclamou Barbara com assombro.
— Podemos falar sensei? — Já não levava a cinta de protesto e se acabava de lavar o cabelo.
— É obvio. Quer um chá ou uma Coca-cola?
Rie não queria nada. No quarto ocidental ficou olhando os livros nas estantes.
— Tem muitos livros de literatura japonesa.
— O ano passado estudei literatura contemporânea japonesa com Nakano sensei em minha universidade, e desde que estou aqui me compro tudo o que encontro. Mas são traduções, claro, não é quão mesmo em japonês.
Rie se voltou para ela.
— Ouvi suas palavras no funeral de Nakamoto sensei. Quero lhe agradecer seu sincero esforço.
— Pensava que tinha feito o ridículo, e que tinha posto em ridículo também a Nakamoto sensei.
Rie sacudiu a cabeça.
— No Japão temos duas palavras importantes: tatemae e honne. Tatemae significa "aparência", e honne, "autêntico sentimento". À maioria dos japoneses lhes importa mais o primeiro, mas você falou de autêntico sentimento. Parece-me admirável.
— Obrigado, Rie, muitíssimas obrigado.
— Estive pensando no pecado original. Eu gostaria de fazer outro trabalho sobre esse tema. Lerá-o?
— Claro que sim — respondeu Barbara com um sorriso.
— Também me dizem que rápido minha opinião muito livremente, NE? — Sorriu, e em suas bochechas apareceram duas covinhas. — Depois de tudo, parecemo-nos em algumas coisas.
— Suponho que sim.
Enquanto Rie descia correndo a escada, Barbara recordou o que estava acostumado a dizer seu pai: "Ainda há milagres", ao que sua mãe respondia, invariavelmente: "Mas deixará de havê-los. Em realidade, cada vez há menos."
Pela tarde, quando retornava de corrigir exames, a senhora Ueda convidou-a tomar o chá em sua casa. Era a primeira vez que entrava no apartamento da senhora Ueda, com a mesma orientação sudeste que o de Michi-san, e o encontrou muito agradável. As estantes estavam a transbordar de livros e no rack havia pilhas de discos de música. Sobre uma das estantes pendurava o desenho de uma japonesa em quimono com um obi cor salmão. Era o desenho do Sharaku que tinha pertencido a Michi-san.
A senhora Ueda a convidou a sentar-se.
— Dozo — lhe disse, assinalando a mesa.
Barbara tomou assento — a mesa estava junto à janela traseira, igual à do Michi — e a senhora Ueda entrou na cozinha e retornou com o chá e pasteizinhos de feijões. Sentou-se frente à Barbara. Não levava o turbante; feito um monte e o couro cabeludo aparecia sob o cabelo cinza. À luz do dia lhe viam bolsas sob os olhos, mas tinha uma pele de marfim. Não cabia dúvida de que tinha sido formosa.
— Tem você um desenho de Nakamoto-san — observou Barbara.
— Sim, deixou-me toda sua coleção.
— Me alegro. A senhorita Fujizawa comentou que havia poucos herdeiros individuais.
— A maioria de suas coisas se venderam e se entregou o dinheiro a certo hospital, mas ela se ocupou primeiro de seus legatários, não é?
Barbara se moveu incômoda na cadeira.
— Estou-lhe muito agradecida por me haver deixado o tansu.
— A mim, pessoalmente, não me interessa o umeshu. Faz tempo que não tomo álcool.
Barbara assentiu aliviada. Ao parecer, a senhora Ueda não sabia nada dos textos.
— Estive pensando no que disse de Nakamoto sensei. Tinha-lhe falado de sua experiência em Hiroshima?
Barbara pensou antes de responder.
— Bom, sabia.
— Surpreende-me.
— Minha mãe esteve em Hiroshima no final dos anos trinta. Michi... Nakamoto sensei e eu tínhamos falado do tema. Talvez por isso não lhe importasse que soubesse.
— É possível, e também porque não é você japonesa. — Voltou a encher a taça da Barbara.
— Obrigado. Senhora Ueda, dou-me conta de que não tinha que ter mencionado que Michi-san era hibakusha. Pode me explicar por quê? Não o entendo.
— Aos sobreviventes da bomba atômica lhes relaciona com a morte e com a desgraça. Além disso, como estiveram expostos às radiações, considera-se que podem poluir. No Japão, os hibakusha são quase uns animais.
— Resulta difícil entender que se marginem as vítimas de um bombardeio.
— A razão se remonta muito atrás, nas mesmas raízes do pensamento japonês. Margina-se a qualquer grupo que seja diferente ou que esteja de alguma forma desonrado. Os sobreviventes da bomba nuclear não encontram casal, porque se teme que não possam ter filhos sãos. E também há motivos menos racionais... Como o temor a perder a reputação. Isto ocorria com os soldados japoneses derrotados, sobre tudo quando se conheceram as atrocidades que se cometeram na guerra. Inclusive os que eram inocentes carregaram com esta culpa. Meu próprio marido a sofreu quando voltou da guerra. Era outro homem.
— Sinto muito. — Barbara não sabia o que dizer. — Mas você não é de Hiroshima, não?
— Não, ao acabar a guerra estava em Gifu, minha cidade natal.
A senhora Ueda olhava fixamente sua taça enquanto removia o chá. Barbara jogou outra olhada ao desenho.
— Este Sharaku é precioso, verdade? Recorda-me a Michi-san.
A senhora Ueda levantou a vista da taça e olhou um instante a Barbara.
— Tenho outras coisas de Ume-chan que talvez queira ver.
— Eu gostaria de muito.
A senhora Ueda entrou no quarto continuo e voltou com uma caixa de papel de arroz que depositou em cima da mesa. Do interior tirou uma fotografia emoldurada: Michi de joelhos junto a uma menina que olhava para o céu com a boca aberta. Era Ume. Ao fundo, árvores e pássaros brancos.
— Mostrou-lhe esta fotografia? — perguntou a senhora Ueda.
— Não, nunca tinha visto uma foto dela. De quando é?
— Ume tinha completado sete anos. Era o primeiro ano que Nakamoto sensei dava aula na Kodaira. Fomos ver uma colônia de garças brancas. — Tirou da caixa um quimono de seda vermelha com estampado de flores. — Ume o pôs para o festival Sichi-go-san, o dia em que os pais levam aos meninos de três, cinco e sete anos ao santuário local. Também as acompanhei o primeiro ano, mas a fotografia é dessa ocasião. — Acariciou o quimono e arrancou um fio que pendurava da prega. — Foi um dia triste. Embora Ume fosse pequena, via-se que não tinha um desenvolvimento normal. Nakamoto fazia quanto podia, mas então não havia ajuda para os hibakusha que viviam fora de Hiroshima.
— Teve que ser espantoso. Mas era uma mãe extraordinária, não?
— Sim, embora nunca se sentisse o bastante boa. Não conheci a outra pessoa tão entregue a sua filha, ou a seus amigos. Eu perdi a minha filha faz uns anos, e Nakamoto me consolava quando estava triste. — Voltou o olhar a sua taça de chá.
— É terrível. Que idade tinha sua filha?
— Dois anos. Morreu de cólera nos primeiros anos da guerra. — Alisou o quimono e o devolveu com cuidado à caixa. — Aqui guardo algumas mais. Dê uma olhada.
Barbara olhou o interior da caixa: quimonos dobrados e uma boneca de madeira. Tirou-a da caixa; a cabeça era uma bola de madeira com a cara de uma menina grafite; o corpo, um simples cilindro com raias vermelhas, já muito tênues, na base.
— É uma boneca kokeshi?
— Sim, bastante antiga. Pode ser que pertencesse a Nakamoto sensei.
Barbara se aproximou a boneca à cara. Recordou a descrição que Michi fez de Ume quando estava no hospital com uma boneca na mão: "Tinha a inocência de uma criatura que está começando a viver."
CAPÍTULO 11
Na segunda-feira pela manhã foi ao Kokubunji a comprar comida para a visita de Seiji. Comprou bolos de feijões, chá verde de qualidade e, no caso de ficava para jantar, salmão e tirabeques. Tentou comprar desodorante na farmácia servindo-se de seu dicionário de bolso inglês-japonês, mas não havia tradução para "desodorante", só para "desodorizar", e a garota lhe entregou um ambientador, um sabonete e uma bacia. Barbara recorreu aos gestos: levantou o braço e se esfregou a axila, mas a garota sacudiu a cabeça sem entender. Como se o fazia tarde, Barbara decidiu que teria que arrumar-lhe com os sabonetes. De caminho a casa comprou umas flores: três crisântemos amarelos para o tokonoma, e um caule de íris, com um casulo médio aberto e outro fechado, para o tansu.
O campus estava quase deserto; só se viam um par de pessoas ao longe. Embora com um pouco de atraso pelo funeral de Michi, as férias tinham começado. Na metade de março, alunas e professoras voltariam para a cerimônia de graduação, mas as aulas não começariam até abril. No caminho que levava a entrada principal, um carro se deteve junto à Barbara. Era a senhorita Fujizawa, com seu chofer.
— Olá, senhorita Jefferson — disse, baixou o guichê e olhou com curiosidade as flores e as viandas. — Não pensa em visitar o Japão?
Barbara lhe explicou que tinha ficado na sábado no Kioto com uma aluna, e que tinha trabalho. Antes que a senhorita Fujizawa fizesse mais perguntas, anunciou que possivelmente iria uns dias a Hakone.
— Minha mãe esteve ali antes da guerra.
— Sério? Bom, cuide-se muito, senhorita Jefferson. Sentimo-nos responsáveis por seu bem-estar. De ter sabido seus planos, minha secretária lhe poderia ter feito uma reserva no hotel Hakone.
— OH, não importa — respondeu Barbara, mas a senhorita Fujizawa já tinha fechado o guichê.
Sentiu-se aliviada quando chegou ao Sango-kan e não viu o carro da senhora Ueda; possivelmente estava de viagem. A senhorita Ota tinha voltado para Yonago, e a senhorita Yamaguchi estaria em Kyushu com sua família. Tinha todo o edifício para ela sozinha. Como não fazia frio, abriu todas as janelas e as portas trilhos. Dispôs as flores em dois vasos, um sobre o tansu e outro no tokonoma, junto às terrinas de chá presente de Seiji, que estavam sobre umas caixas de madeira. Pôs em cima da mesa kotatsu papel, canetas e seu dicionário japonês-inglês. Ao redor da mesa estavam às almofadas zabuton.
As duas em ponto chamaram brandamente à porta. Barbara se dirigiu lentamente à entrada, tentando não parecer ansiosa. Seiji a saudou com uma profunda reverência.
— Espero ser pontual — lhe tendeu três lírios de um verde pálido e uma caixa de bolachas. — Para os japoneses, as flores expressam os sentimentos, e as bolachas são uma comemoração a seu lar.
Na caixa de bolachas havia caracteres japoneses e um nome em inglês: Carolina Beauty Bourbon Snaps. Em letra menor, lia-se: "As coisas belas estão mais à frente do tempo. O coração da mulher nunca deixa de desejar a beleza."
— Acredito que este lema vai contigo.
— OH, sim, muito obrigado. Dozo. — Barbara inclinou a cabeça duas vezes e lhe conduziu ao salão. — Podemos trabalhar aqui. Fique cômodo — disse, e assinalou a mesa kotatsu.
Seiji olhou a seu redor, como se fora a primeira vez que via algo assim.
— Muito natural. — Fez um gesto de assentimento. Então viu as terrinas em cima do tokonoma e se voltou para ela sorrindo. — Ah, vejo que estou em um lugar preferencial.
Barbara se ruborizou.
— Certamente. Vou pôr estas flores na água — anunciou. — Volto em seguida.
Quando retornou ao salão, Seiji já não estava. Encontrou-o ajoelhado junto à arca. Tinha aberto a primeira gaveta e tirava um pacotinho envolto em papel branco.
— O que é? Onde o encontraste?
— Estava detrás das garrafas.
Dentro do pacote apareceu um pacote menor envolto em um tecido de seda vermelha e pacote com uma corda. Seiji o desembrulhou.
— Wah! Kitsune! Uma raposa! — Sustentava entre os dedos uma raposa branca de uns sete centímetros.
— Dêem-me isso, por favor. — Barbara tendeu a mão e Seiji lhe entregou com cuidado a raposa.
— Acredito que há outro. — Removeu os papéis que havia no fundo da gaveta.
A raposa, esculpida em madeira e laqueado, era uma figura expressiva, embora um tanto obscurecida e lascada. As patas, as ancas e a cauda, levantada e apertada contra o lombo, estavam só esboçadas. As orelhas eram dois pequenos triângulos. No afiado focinho lhe tinham pintado uns bigodes e uma boca que era uma linha ligeiramente curvada para baixo. Os olhos se reduziam a duas pinceladas, mas a expressão era de astúcia. Barbara recordou o que Michi lhe tinha contado sobre a linguagem das raposas; aquele parecia capaz de falar.
Seiji tirou da gaveta outro pacotinho.
— Deixe me abrir isso. — Barbara estendeu a mão. Depositou a raposa sobre a arca e desembrulhou o segundo pacote. Dentro havia um pacote de seda com uma corda; uma segunda raposa.
— O que imaginava. É o casal. — Seiji se aproximou dela e seus ombros se tocaram.
Barbara tomou uma raposa em cada mão. Eram idênticos salvo pela boca, que em um era uma linha e no outro um triângulo. Parecia que estivessem dizendo-se algo.
— Têm algo que ver com a linguagem das raposas, ou com os truques das raposas?
— Não é o mesmo. Conhece o santuário de Inari com sua raposa guardiã?
Barbara assentiu.
— Como o que há no caminho a sua casa.
— Sim, mas há outro maior, há muitos por todo o Japão. Inari é o deus da agricultura, e a raposa é seu mensageiro. A gente vai ao santuário para orar e pede ao sacerdote que benza duas raposas como estas. Se vêem completo seu desejo, devolvem as raposas ao santuário. Por isso os denominam raposas de desejos.
— Ao melhor o desejo de Michi-san não chegou a cumprir-se.
— Parecem antigos mais velhos que Nakamoto-san. — Jogou uma olhada ao desenho da mulher raposa que pendurava do teto. — Deu-te de presente também este desenho?
— O deram de presente a minha mãe quando esteve no Japão. Um homem o deu porque lhe disse que era tão formosa como a mulher raposa.
Seiji lhe dirigiu um sorriso.
— Então acredito que te parece com sua mãe.
Barbara se ruborizou de novo.
— Muito obrigado. Michi acreditava que este desenho ilustrava a mulher raposa que abandona a seu filho. Mas eu não conheço a história. E você?
— No Japão temos muitas histórias de raposas. Normalmente, a raposa se converte em uma formosa mulher para enganar a um homem. O mais popular, que conhecem todos os estudantes, é o da esposa raposa. Fala de um caçador que um dia perdoa a vida a uma raposa. Ao dia seguinte, uma formosa mulher se apresenta em sua casa e se oferece a ser sua esposa. Casam-se, têm um filho e, durante uns anos são muito felizes. Mas um dia, o homem descobre a verdade sobre sua mulher; possivelmente passando junto a um lago, porque o reflexo na água sempre mostra a verdadeira natureza das coisas. Então a esposa tem que abandonar a seu marido, e também a seu filho.
— Um final muito triste.
— É um final muito japonês. Nós o chamamos tristeza elegante, consciente. Mas te posso contar outras histórias de raposas, ao melhor com um final mais alegre.
— Eu adoraria.
— Temos muitas coisas que nos contar, parece-me. Levar-nos-á tempo.
— Sim, eu também acredito. — Começava a sentir-se incômoda e evitava olhá-lo. Fechou a última gaveta e abriu o primeiro. — Quer que procuremos outro papel para traduzir? Podemos começar pelo de 1961 que leste para ti mesmo a última vez.
— Melhor que sigamos por aonde íamos. — Seiji tirou a garrafa de 1963.
Barbara se encolheu de ombros. Não valia a pena discutir. Agarrou as duas raposas e seguiu ao Seiji ao salão.
Sentaram-se frente ao kotatsu. Barbara pôs as raposas ante si, sobre a mesa, e abriu seu caderno de notas. Seiji desembrulhou o papel e o desdobrou. Sentaram-se muito juntos a fim de que cada um pudesse sujeitar uma esquina. Seiji pôs os óculos e se inclinou sobre o papel.
— Como a vez anterior, é o primeiro escrito do ano. — Percorreu com o dedo os primeiros caracteres e seguidamente folheou o dicionário. Barbara contemplou seus dedos, compridos e magros, delicados, e suas asseadas unhas. — Como se pronuncia? — perguntou, assinalando uma palavra em inglês.
— Psicológico.
— Ah, sim. — Seiji voltou para escrito de Michi. — Agora lhe posso ler isso Barbara tomou a caneta. — "A nora do imperador, a princesa México, recuperou a voz depois permanecer muda durante uns meses. Ao parecer, não sofre de câncer nem de apoplexia, como se pensou. trata-se de uma afecção psicológica, resultado de um trato pouco amável por parte do imperador e de sua sogra, depois de seu matrimônio com o príncipe Akihito." — Continuou lendo em silêncio, e reatou a leitura em voz alta: — "A experiência da princesa me recordou à avó Ko, que também foi tratada com dureza por sua sogra. E também a minha mãe, que era um bebê de poucos meses quando Ko desapareceu. Para um menino, é muito duro crescer com um vazio no lugar que devia ocupar sua mãe. A minha mãe afetou muito. Tenho que perdoá-la e não me esquecer nunca disso com respeito a Ume-chan."
— Não diz por que Ko desapareceu?
— Não o explica. — Continuava percorrendo o texto com o dedo. — Mas aqui há algo que te interessará porque fala do tanto.
— O meu?
— Escuta, por favor. Nakamoto escreve: "Durante o dia e a noite de hoje, em que tinha que estar acabando minhas felicitações de Ano Novo, estou relendo as histórias que escreveu minha mãe sobre a avó Ko. A ela não havia nada que gostasse tanto como quão escritos falavam sobre sua mãe. O mesmo dia de sua morte, minha mãe chamou a meu pai e a mim e nos sussurrou que cuidássemos de seus papéis, os primeiros escritos do ano. Disse-nos que procurássemos debaixo de uma pedra no jardim do salão de chá; tinha-os guardado ali para proteger os dos bombardeios. Uns dias depois de que morrera minha mãe, meu pai e eu encontramos estes papéis em uma caixa de madeira, enrolados e atados."
— As histórias de sua mãe!
Seiji assentiu.
— O primeiro escrito era de 2 de janeiro, ou o 6 de idade, quando Nakamoto tinha oito anos. Diz: "Meu pai e eu nos sentamos juntos e líamos com emoção os escritos de mamãe. Subidos a uma poeirenta caixa de madeira, descobrimos também as garrafas de licor que tinha preparado minha mãe. Todas tinham o ano escrito de engarrafado. E como para cada ano havia um texto, me ocorreu enrolar os papéis ao redor das garrafas. Meu pai esteve de acordo, e decidiu fazer um tansu para as garrafas e os papéis. Quando o acabou, disse que era um trabalho singelo, mas eu sei que está orgulhoso do resultado. Fez-me muito feliz poder guardar o licor de minha mãe e os papéis em um arca. Agora, os pensamentos de minha mãe e da avó Ko compartilham o mesmo espaço. Meu pai me disse: "Michi-san, fabriquei uma arca o bastante grande para conter o licor e os escritos de vários anos. Eu gostaria que continuasse a tradição de sua mãe. "Eu gostaria muito". "E assim o tenho feito."
Barbara e Seiji se levantaram e entraram no dormitório. O tanto parecia brilhar com a luz do entardecer.
— É formoso, verdade? — disse Barbara. — Tem que ter sido difícil de fazer.
— Certo. O senhor Takano não era um carpinteiro, mas o móvel está muito bom.
Ajoelharam-se junto à arca. Seiji acariciou os cantos de uma gaveta e Barbara apoiou a palma da mão em um lado do móvel: notava-se sólido e maciço.
— Não é habitual fazer todo um arca de madeira de cânfora. Suponho que é o único — comentou Seiji.
— Conhecia a árvore da cânfora?
— Conhecia-o muito bem.
Abriram de novo a terceira gaveta e olharam as garrafas mais antigas. Barbara se estremeceu de emoção ao tocar a garrafa de 1930. Ficavam muitos tesouros por descobrir.
— Leremo-lo logo?
— Ao melhor. — Seiji parecia distraído.
— Tinha ouvido falar dos escritos de sua mãe?
Seiji sacudiu a cabeça.
— Mas suponho que sabia algo dos escritos de Michi-san, porque viviam na mesma casa.
— Não sabia nada — respondeu secamente.
— Mas o licor... Você...
— Hai. — Seiji se levantou e saiu da habitação.
Pensou que lhe tinha ofendido. Encontrou-o no quarto ocidental.
— Seiji? Ocorre-te algo?
Demorou um momento em responder.
— Me perdoe, por favor. O arca me trouxe más lembranças.
— Claro, entendo-o. — Seiji era aluno do Michi, conheciam-se bem. Tinham compartilhado uma trágica experiência: os dois foram hibakusha.
Tocou-lhe o braço.
— Quer uma taça de chá?
— Obrigado.
Entrou na cozinha, pôs a água a ferver e preparou uma bandeja com as taças de chá e umas bolachas Carolina Bourbon Torradas. Ao cabo de um par de minutos, Seiji apartou a cortina de contas, entrou na cozinha e o olhou tudo com curiosidade. Tirou do armário um pote de manteiga de amendoim, abriu-o e ofereceu o conteúdo.
— Quer provar? — Lubrificou manteiga de amendoim em uma bolacha e a deu. Seus dedos se roçaram. Seiji comeu com expressão divertida. Já não parecia absolutamente zangado.
Barbara levou a bandeja ao salão e voltaram a sentar-se à mesa para tomar o chá. As bolachas cheias tinham um sabor distinto de que recordava. Certamente, não pareciam da Carolina do Norte, mas tampouco pareciam japonesas. Quando acabaram de tomar o chá, elevou a garrafa de licor de ameixa.
— Quer uma taça?
— Hai.
Serviram-se o um ao outro. Barbara saboreou sua taça. Seiji bebeu um gole e tendeu a taça para que a voltasse a encher.
— É muito bom — disse sorridente. Tocou as raposas que estavam sobre o kotatsu. — Espero que tenha algum desejo.
Barbara lhe devolveu o sorriso.
— Claro que sim. Todo mundo deseja algo, não?
— Suponho que sim. — voltou-se e jogou um olhar à habitação. — É aqui onde dorme?
Pergunta a pegou despreparada.
— Não. Durmo na habitação das três esteiras.
— Você não gosta das camas?
— Tinha uma, mas agora uso um futón.
— Ah, isso é muito japonês.
Bateram na porta. Os dois ficaram imóveis. Por um momento, Barbara pensou não abrir, mas logo se disse que seria pior; quem quer que fosse tinha que havê-los ouvido falar. Assim que se levantou de um salto e abriu. Era a senhora Ueda, com um avental branco de manga larga e um turbante na cabeça.
— Olá. Pensei que estava você de viagem — disse Barbara.
— Não, tinha saído a comprar. Comprei em Takashimaya uma carne muito boa. Quer jantar comigo?
— É você muito amável, mas agora estava trabalhando.
— Suponho que tem você que parar para comer. — A senhora Ueda elevou a cabeça para espionar o interior do apartamento.
Barbara jogou uma olhada a suas costas. Seiji estava fora de seu alcance, junto ao kotatsu.
— Um amigo me está ajudando com uma tradução, mas muito obrigado de todos os modos. Outro dia, talvez.
— OH, sim, outro dia. — A senhora Ueda deu meia volta e baixou rapidamente as escadas.
No salão, Seiji se estava pondo a jaqueta.
— Agora vou. Será melhor que a próxima vez traga os papéis a minha casa. Quando voltaremos a nos ver?
— Estava pensando em ir a Hakone.
— Sério? É um lugar maravilhoso. Quanto tempo ficará?
— Dois ou três dias, acredito, até finais de semana. Fiquei com uma estudante no sábado em Kioto.
— Ah. — Fez uma pausa. — Hakone eu gosto de muito.
— Sim? Poderíamos continuar ali a tradução.
— É uma boa idéia. Onde pensava te alojar?
— No hotel Hakone — disse Barbara, recordando a recomendação da senhorita Fujizawa.
— Eu posso dormir em um ryokan próximo.
— Sairei na quarta-feira pela manhã — disse Barbara. Assim teria tempo de preparar a viagem.
— Muito bem. Irei te buscar ao hotel às duas da tarde. — despediu-se com uma inclinação de cabeça e saiu rapidamente.
Barbara ficou escutando seus passos, atenta se por acaso ouvia vozes no vestíbulo. Ao comprovar que tudo estava em silêncio, suspirou com alívio. A senhora Ueda não tinha saído de seu apartamento.
Correu a olhar pela janela e alcançou a ver sair ao Seiji do edifício com as mãos nos bolsos e a cabeça bem alta. Que familiar lhe resultava sua figura!
CAPÍTULO 12
O hotel Hakone era um edifício de paredes estucadas que se assentava sobre uma levantada ladeira frente ao lago Ashi. Em seu artigo sobre Hakone, a mãe da Barbara mencionava a célebre imagem investida do monte Fuji na superfície do lago, mas hoje o monte Fuji estava talher de nuvens, e as cúpulas das montanhas que rodeavam o lago estavam envoltas em névoa.
Barbara se registrou no vestíbulo lotado de turistas australianos. Em seguida a acompanharam a sua habitação, ampla e ocidental, sem personalidade. Além disso, não dava ao lago, a não ser à ladeira da montanha. Como era logo, decidiu desfazer a bagagem. A bolsa onde levava os papéis de Michi era de resistente couro, como as de médico; os cilindros de papel nem sequer se enrugaram. Tinha consigo seis escritos, três de Michi e três de sua mãe; debaixo dos papéis, envolta em uma toalha, tinha colocado uma das garrafas de licor. Em um dos bolsos estava seu jornal, com o artigo de sua mãe sobre o Hakone dobrado entre as páginas, e o caderno de notas; no outro bolso tinha posto as raposas de Michi, em seus pacotes de papel e seda e protegidos com um pulôver de caxemira, e o diafragma, acrescentado no último minuto.
Sentia-se muito atrevida. Tinha preparado essa saída como se tratasse de uma entrevista, por mais que sua desculpa fora visitar um dos lugares onde tinha estado sua mãe. Sentada na cama, desdobrou o enrugado artigo que datava de 1938.
RELATÓRIO DESDE o HAKONE, UM DOS LUGARES MAIS FORMOSOS DO JAPÃO
Pela Janet Girard
Meus anfitriões insistiam que não podiam deixar de visitar Hakone, considerado como uma das sete maravilhas do Japão. Próximo ao monte Fuji, Hakone é famoso por seu clima saudável, por suas águas termais — das que se assegura que curam algo, da dispepsia até a impotência — e por seus espetaculares vista de Fuji-san.
Chegamos ao hotel Fujiya bem a tempo para a comida. E que festim! Pombinho perca pescada no lago Ashi, ovos de codorna assados e trespassados em elegantes brochetas de marfim. Havia uma fonte com o que me pareceram ovos em conserva, mas que, conforme me explicou um dos comensais, tinham enterrados cem anos e tinham sido desenterrados em minha honra. (OH, exclamei, não tinham por que fazê-lo! E me criem que o pensava.)
Leu por cima o resto do artigo, que acabava com uma descrição do santuário do Hakone, que durante séculos foi um refúgio em caso de guerra. Mencionava também as atividades militares do Japão na China, e uma mamem que não podia conter as lágrimas ao pensar em seu filho no fronte. Não havia indícios de nostalgia ou de arrependimento. Voltou a dobrar o artigo. Se Michi estivesse ali, provavelmente compartilhariam habitação e poderiam falar de sua mãe. Claro que então não teria uma entrevista com o Seiji. Sentiu-se emocionada e culpado ao mesmo tempo. O que pensaria Michi dessa entrevista?
Tirou da bolsa seu jornal. «Querida Michi — escreveu. — vim ao Hakone para traduzir seus escritos com o Seiji Okada. Sinto-me muito atraída por ele. Se o visse na rua, iria detrás dele. "Dá-me um pouco de medo...»
Deu um salto quando soou o telefone. O recepcionista lhe comunicou que um cavalheiro tinha vindo a procurá-la.
Seiji estava sentado no vestíbulo, mas assim que a viu chegar se levantou e saudou com uma inclinação de cabeça. Tinha um aspecto formal — jaqueta de ponto, calças marrons, sapatos reluzentes — e parecia tão nervoso como ela mesma.
— Vamos ver o panorama? — propôs Barbara.
— Sim, há umas vistas muito formosas.
— Eu gostaria de visitar o santuário do Hakone, onde esteve minha mãe... Ao outro lado do lago.
Quando saíram, o navio turístico se afastava vagarosamente deixando uma larga esteira. Os turistas se amontoavam no corrimão. A neblina flutuava sobre as águas do lago.
— Será melhor que aluguemos um navio — disse Seiji.
No varadero, um homem fumava e escutava a rádio. Seiji lhe falou em japonês.
— Diz que nos levará até o santuário — comunicou a Barbara.
Subiram a uma barco de motor com assentos de tablones. Depois de arrojar seu cigarro à água, o homem arrancou o motor e entraram ronronando no lago. A água estava frisada e lhes salpicou a cara. A embarcação se movia acima e abaixo. As nuvens estavam cada vez mais baixas. Barbara contemplou o formoso perfil do Seiji, sua pele fina e suave.
— Espero que não chova — disse.
— Aqui o tempo é muito cambiante. Pode que esclareça.
Farrapos de névoa penduravam sobre o lago como retalhos de fino tecido branco. Em momentos, viam-se imersos na névoa. Barbara olhou para trás: já não se divisava a borda. A paisagem se feito íntimo, como se encontrassem em uma pequena habitação. Seiji se voltou para ela e lhe sorriu. Barbara olhou suas mãos sobre o assento, quase se tocavam.
A embarcação chocou levemente contra o mole e se balançou. Seiji lhe tendeu a mão para ajudá-la a sair. Dirigiram-se ao santuário por um caminho flanqueado de altos cedros e chegaram a uns degraus que Barbara reconheceu: os que apareciam na foto de sua mãe.
— Michi estava no certo. Minha mãe esteve aqui.
O santuário, de madeira escura, estava aberto por todos os lados menos por um, onde se levantava uma casa coberta; tinha que ser a casa do tesouro que mencionava sua mãe. Não havia mais visitantes nem sacerdotes à vista. Seiji tocou o gongo e juntou as mãos para orar. Barbara passeou pela plataforma e aspirou o aroma de madeira velha e úmida. O santuário tinha setecentos anos. Sua mãe e ela não eram mais que partículas em sua larga história de séculos, de um tempo sagrado... Mas só era consciente da presença do Seiji. Quando desceram pelas escadas sem corrimão, Barbara titubeou e Seiji a tirou do braço.
Retornaram no navio turístico, os dois de pé e aparecidos no corrimão. A névoa se dissipou e se divisavam as montanhas ao longe, embora o monte Fuji ainda permanecesse envolto em nuvens. Estavam tão juntos que Barbara via o Seiji em detalhe: seu cabelo escuro com reflexos avermelhados, as dobras de seu pescoço. Seiji se voltou e a olhou muito sério.
— Onde nos instalaremos para traduzir? — perguntou Barbara quando já tinham desembarcado. Depois deles ia o grupo de turistas australianos.
— Iremos à estalagem.
Barbara subiu a sua habitação em busca dos papéis do Michi. Quando voltou com a bolsa, Seiji estava fumando e contemplando o lago, de novo talher de névoa.
— Está a dez minutos daqui — disse, agarrando a bolsa.
Começou a assobiar brandamente uma melodia que a Barbara resultou familiar. Era a mesma que soava na rádio do mole. Subiram em silencio por uma estrada bordeada de pinheiros envoltos na neblina.
A estalagem era pequena e tranqüila. Não havia vestíbulo nem zona de recepção. Tiraram-se os sapatos na entrada e se dirigiram à habitação do Seiji, coberta por tatamis. No centro da habitação havia um velho kotatsu com fogão de carvão e uma mesa coberta por uma toalha acolchoada. Seiji abriu uma porta trilho que dava a um jardim com árvores e um farol de pedra. Mais à frente se estendia a verde ladeira da montanha.
— Sente-se junto ao kotatsu — disse Seiji. — Pedirei algo quente.
Sob a toalha acolchoada, as pernas da Barbara penduravam sobre os carvões acesos. O calor começou a estender-se por todo seu corpo. Olhou para o jardim. Os farrapos de névoa se moviam rapidamente, desenhando um novo panorama a cada momento. De vez em quando, um cano de bambu no cano de uma fonte deixava escapar um estalo que produzia um efeito rítmico e tranqüilizador.
Seiji se sentou com ela sob a toalha acolchoada. Depois dele entrou uma criada que trazia sake e uma bandeja de bolachas senbei. Beberam o sake quente enquanto contemplavam o jardim. A quietude era tão absoluta que Barbara começou a ficar nervosa.
— Isto é muito tranqüilo. Começamos com a tradução?
Seiji aproximou a bolsa à mesa.
— O que preparaste? — perguntou.
— Começamos pelos escritos da mãe do Michi? Eu gostaria de saber mais costure sobre a avó Ko. — Tendeu-lhe os papéis de 1930 e tirou sua caneta e seu caderno de notas.
Seiji desenrolou o escrito de 1930 e deixou escapar um suave assobio.
— Estes kanji são antigos. — Passou o dedo pela linha de caracteres. — Tal como pensávamos, é o escrito da mãe de Nakamoto-sejam. Tem escrito seu nome: Takasu Chie... Takasu é o nome de sua família. É de 2 de janeiro, o primeiro escrito do ano. Diz que o ano passado preparou seu primeiro umeshu. Esteve duvidando, porque sua sogra lhe advertiu que uma vez começa a preparar umeshu não pode deixar de fazê-lo; dá má sorte. Agora tem que prepará-lo cada ano.
— E o que te ocorre se deixar de fazê-lo?
— A ameixeira se entristece — disse Seiji sorrindo. — Ou ao melhor Chie é uma má esposa. No Japão, a ameixeira se associa com a mulher. — inclinou-se sobre o papel. — Chie escreve: «Michi tem oito anos. É viva como um macaco parece mais um menino que uma menina. Digo ao Fumio que deve sentido por ter uma menina em lugar de um menino. Ele diz que não, mas eu acredito que assim é. Na escola inglesa, Michi demonstrou grande facilidade para o inglês. "Tagarela em inglês com todos os estrangeiros da estalagem Nakajima, e todos jogam com ela.»
Barbara levantou a vista do caderno.
— Minha mãe também teria preferido ter um menino.
— De verdade? Pois me alegro de que não fora assim.
— Obrigado. — Barbara se ruborizou. — A estalagem Nakajima se encontra na Hiroshima?
— Sim, na Hiroshima.
— Conhecia-a?
— Acredito que estava nas montanhas, perto do Koi.
— Então, desapareceu?
— Talvez. Embora haja edifícios perto do Koi que seguem ainda em pé.
— Eu gostaria de vê-los... Eu gostaria de conhecer Hiroshima.
Seiji a olhou fixamente.
— Pode ir, mas não entenderá nada se não te acompanhar um nativo — disse com voz fica.
— Poderia me acompanhar você.
— De acordo.
— Obrigado. — Voltou a fixar o olhar em seu caderno de notas.
Seiji pigarreou.
— Há mais. É sobre o Nakamoto sensei. Chie diz: «Recentemente, Michi voltou a chegar tarde a comer. Eu lhe disse: "e se não tivesse mãe, Michi-sejam? Se eu me partisse e não voltasse jamais"? "Ela riu e disse: "Papai cuidaria de mim." Filha desnaturada.»
Seiji deixou o escrito e acendeu um cigarro.
— Aqui se acaba 1930.
O escrito de 1931 era muito mais largo, enrolava-se várias vezes ao redor da garrafa. Seiji o estudou um momento e concluiu que continha uns kanji difíceis chamados kanbun que lhe levaria um tempo traduzir. Sentaram-se em silêncio, contemplando como caía a noite sobre o jardim.
— Talvez tivesse que voltar para hotel — disse Barbara.
Seiji lhe serve mais sake e se sentou mais perto dela, de maneira que seus braços se tocavam. Barbara não podia mover-se. Sentia o braço do Seiji contra seu corpo e ouvia hipnotizada o rítmico estalo do cano da fonte. Ao longe, um pássaro deixou ouvir sua chamada formosa e cheia de melancolia.
— O que foi isso? — perguntou Barbara.
— Suponho que é um pássaro que chama a seu amor.
Barbara riu e Seiji lhe aconteceu o braço pelos ombros e a beijou na maçã do rosto. Logo enterrou o rosto em sua juba e murmurou umas palavras em japonês.
— O que? — Barbara lhe acariciou a cara. — O que há dito?
— Dá-me pena que vá.
— A mim também. Não tenho que ir agora mesmo.
Mas Seiji já se levantou. Barbara ficou de pé com dificuldade. Ele fez gesto de agarrá-la do braço, mas a soltou em seguida.
Quando saíram da estalagem estava obscurecendo. Suas mãos se roçaram. Baixaram agarrados da mão e se detiveram o divisar o hotel iluminado a seus pés. Seiji a abraçou com estupidez e a beijou nos lábios. Barbara o rodeou com os braços e sentiu os dois corações pulsando ao uníssono. Seiji lhe desejou boa noite e empreendeu o caminho de volta. Barbara o seguiu com o olhar até que sua figura se perdeu na escuridão.
Não voltou a lembrar-se da bolsa até que despertou sobressaltada em metade da noite. Os papéis do Michi — e seu próprio jornal, com o que tinha escrito do Seiji, — inclusive seu diafragma, o tinha deixado tudo no ryokan.
CAPÍTULO 13
Pela manhã caía uma garoa fria e constante. Barbara despertou com as primeiras luzes, mas até as nove não empreendeu o caminho para a estalagem do Seiji. Estava convencida que ele não olharia o conteúdo da bolsa em sua ausência.
Quando chegou à estalagem pensou que era muito logo. A porta estava aberta, mas o corredor se via escuro e silencioso. Entretanto, viu o fundo uma pequena luz e lhe chegou um ligeiro aroma de comida.
— Ohayo gozaimasu — disse, sem atrever-se a elevar a voz.
Dirigiu-se à habitação do Seiji, e lhe surpreendeu ouvir vozes masculinas. Abriu a porta com acanhamento.
— bom dia. Espero que não seja muito cedo para começar a trabalhar.
— Ah, Barbara-sejam. — Seiji estava descalço e levava uma bata marrom sobre um pijama branco e azul. — Apresento a meu amigo, o senhor Kawabata. É o dono da
Um ancião de olhos vivazes e barba de cabrito estava sentado com as pernas cruzadas frente à mesa kotatsu. Olhou a Barbara por cima dos óculos e a saudou com uma inclinação. Sustentava nas mãos um escrito do Michi.
— Tem aberto a bolsa! — exclamou Barbara.
— Sim, e tive a sorte de que o senhor Kawabata se ofereceu a me ajudar com os difíceis caracteres kanbun dos escritos de Chie-sejam.
O senhor Kawabata lhe disse algo em japonês.
— Kawabata sensei diz que é como uma aparição — explicou Seiji. — Uma mulher de cabelo dourado que se apresenta em uma estalagem em uma manhã de chuva.
— Obrigado — disse Barbara, embora não estava segura de que se tratasse de um completo. — lhe Diga que ele também é uma aparição.
Ajoelhou-se frente ao kotatsu e agarrou a bolsa. Seiji traduziu as palavras da Barbara. O ancião riu a gargalhadas.
— Encontra-te graciosa — disse Seiji.
— Já o vejo.
Do outro lado da mesa, o homem cravava nela um olhar malicioso. Disse algo em japonês que Barbara não entendeu. Como podia ajudar na tradução se não sabia uma palavra de inglês?
— O senhor Kawabata pergunta se quer tomar o café da manhã — disse Seiji.
— Já comi muito obrigado — respondeu Barbara em japonês, e saudou com uma pequena reverência ao senhor Kawabata.
O ancião se levantou e abandonou a habitação sem deixar de falar.
— Diz que te aproxime da estufa para te esquentar e que sua esposa trará o chá. Enquanto isso vestirei-me. Não esperava que te levantasse tão cedo — acrescentou Seiji com um sorriso.
Barbara sorriu e colocou as pernas sob a mesa kotatsu.
— Sério? Pensava que era uma preguiçosa?
— Não, imaginava que você gostava de dormir, como aos gatos.
Barbara se ruborizou. Seiji não se deu conta; estava abrindo a mala.
— Tem lido algo mais? Começaste os textos do Michi?
— Somente um, do ano 1931, mas é muito comprido. Não o teria conseguido sem a ajuda do senhor Kawabata.
Assim que Seiji saiu da habitação, Barbara abriu um dos bolsos da bolsa e comprovou aliviada que seu jornal e o caderno de notas seguiam como ela os tinha deixado. E o diafragma estava em seu estojo, envolto no furoshiki. Seiji não tivesse sido capaz de revolver suas coisas. Tirou o caderno e desenrolou o papel de 1931. Inclusive ela se dava conta de que os caracteres eram distintos dos do Michi, mais recarregados. E as pinceladas eram mais grosas, tanto que às vezes pareciam borrões. Resultava emocionante ignorar o que tinha escrito Chie e esperar a averiguá-lo. O processo de traduzir — com o Seiji — o fazia sentir uma excitação quase sexual.
A chuva caía mansamente sobre o jardim, ricocheteava em uma pedra junto ao pinheiro e empapava o verde musgo. Cheirava a terra molhada e a tatami úmido, e também chegava um ligeiro aroma de incenso desde algum lugar da estalagem. A senhora Kawabata, uma mulher agradável de cabelo branco, trouxe chá e pasteizinhos de feijões. Seiji retornou ainda descalço, mas bem penteado. Levava a mesma roupa do dia anterior. Sentou-se junto à Barbara.
— Está lendo? — perguntou sorridente.
— Oxalá pudesse.
— Mas então eu não estaria contigo. Alegra-me que necessite minha ajuda.
Barbara não pôde evitar um sorriso.
— Eu também me alegro — disse.
Seiji tomou o escrito de mãos da Barbara e pigarreou.
— Chie conta aqui a vida da avó Ko — disse. — Recordará as alusões do Nakamoto a sua avó.
— É obvio. — Era a vida do Michi. Passou as páginas de seu caderno para começar uma folha em branco.
— Escreveu-o em 2 de janeiro de Show sete, seu ano 1932. Chie descreve ao Nakamoto quando era menina: «Michi, seu nome significa sabedoria, mas é desobediente e travessa. Não escuta a sua mãe. Escrevo isto para ti, para o dia em que possa entendê-lo. Esta é a história de sua avó Ko. "Procedia do Matsue, no Izimo, a província dos deuses.» Agora se denomina Shimane — explicou Seiji. — «É uma zona rural na costa oeste, no mar do Japão.»
Seiji esboçou um pequeno mapa ao início da página que Barbara estava escrevendo.
— «Ko era a primogênita de um rico samurái. Era elegante como uma deusa. Diziam que seu cabelo, comprido até os joelhos, era como um rio negro e reluzente como a noite. Tinha uma pele tão Lisa e sedosa como uma pérola. Ko conhecia os segredos da cerimônia do chá e do acerto floral, e era uma perita em dança clássica. Seu pai lhe tinha permitido estudar em casa com um tutor, de maneira que sabia ler e escrever muitos kanji. — Isto não era habitual naquele tempo, nem sequer no caso da filha de um samurái, explicou Seiji. — Ko também sabia algo de inglês e de grego, graças a um estrangeiro amigo da família. Tinha chegado quase aos vinte anos — era major para as garotas daquele tempo — e não tinha recebido oferta de matrimônio. Todos os intentos de lhe encontrar marido através de intermediários tinham sido infrutíferos. "O problema era que se acreditava que a família era kitsune mochi.» O senhor Kawabata traduz esta expressão como «possuída pela alma da raposa».
— O que significa?
— Se tinha rumor que a família tinha em casa 75 raposas, e que a eles devia seu bem-estar econômico. O senhor Kawabata me explicou que as raposas são muito ardilosas, e se seu amo o pede, saem a roubar os tesouros de outros. Acreditava-se que as raposas representavam um perigo para qualquer que se casasse com o Ko, porque a seguiriam e cometeriam tropelias contra a família política; atuariam como ladrões a salário do clã Matsudaira.
— E a gente acreditava nestas coisas?
— Sim, sobre tudo na costa do mar do Japão. Uma garota nascida em uma família que tenha raposas não encontra marido.
— Inclusive hoje em dia?
— O senhor Kawabata ouviu falar de casos atuais. Entretanto, o pai do Ko encontrou um intermediário da Hiroshima que não conhecia os rumores, e apresentou a uma família samurái com um filho. Chamavam-se Takasu. — Seiji escreveu o nome no caderno da Barbara. — Os Takasu viviam em um povo próximo a Hiroshima. Eram gente orgulhosa, e como Ko vinha de uma família rica e era uma moça formosa e refinada, pensaram que seria uma boa partida para seu filho Hiroshi, um menino doentio e estudioso. Ignoravam a verdadeira idade do Ko (o intermediário lhes disse que tinha quinze anos) e certamente não sabiam nada das raposas. Assim que se lembrou o matrimônio e Ko empreendeu um comprido viaje das montanhas até a Hiroshima, no sul, longe de sua família.
Seiji ampliou o mapa que tinha começado a esboçar no caderno da Barbara e desenhou uma linha de pontos que marcava a viagem do Ko desde mar do Japão, ao outro lado das montanhas, até a Hiroshima.
— Agora te leio as palavras exatas do Chie. — Seiji se deteve para despedir com uma inclinação de cabeça ao senhor Kawabata, que partia. — Diz: «Roku, a babá do pequeno Takasu, que mais tarde me cuidou, contou-me a história de minha mãe Ko a sua chegada à casa da Hiroshima. Levava um quimono de noiva branco sobre o quimono vermelho, e os olhos lhe brilhavam tanto no branco rosto que o jovem Hiroshi ficou mudo ao vê-la. "Mais tarde, sua sogra a acusou de ter enfeitiçado ao Hiroshi do primeiro dia; disse que assim que a viu suspeitou dela devido a seu rosto ardiloso e de forma triangular.»
Seiji olhou a Barbara.
— O que vem agora é algo íntimo. Espero que não te importe. «À sogra do Ko, aquele matrimônio lhe pareceu antinatural desde o começo. "O casal passava horas encerrada no dormitório, dia e noite.» — Uma conduta pouco usual em um matrimônio japonês acrescentou Seiji, olhando a Barbara. — «Hiroshi deixou de preocupar-se com os assuntos familiares. Gostava mais que nunca escrever haiku e aprendeu a tocar em seu shamisen uma melodia do Izumo que Ko lhe tinha ensinado. Banhavam-se juntos, e os ouvia rir e emitir sons que à sogra pareciam indecorosos. Uma noite de chuva os viu nus no jardim. Ko estava sentada sobre as costas do Hiroshi, com o cabelo solto, e ria como uma possessa. Roku conta que a sogra viu faíscas que saltavam a seu redor.»
Barbara notou que Seiji a olhava, mas não levantou a vista do caderno.
— «O filho dos Takasu trocou também em relação com sua mãe. Ao princípio, o sogro ficou de parte do Ko, apesar de sua atitude orgulhosa, de sua ignorância nas tarefas do lar e de seu absoluto desinteresse por aprender a levar as contas ou por conhecer o negócio familiar. O único que lhe importava era passá-lo bem. Segundo Roku, Ko podia passar-se todo o dia arrumando-se. Fazia que duas criadas lhe lavassem o cabelo com uma infusão de ervas especial. "Quando desde o Izumo chegou o rumor de que a família do Ko tinha raposas e de que um estrangeiro que cheirava a carne tinha ensinado inglês, a sogra do Ko o entendeu tudo.»
— Cheirava a carne?
— Assim se descrevia antes aos estrangeiros, sobre tudo nos tempos em que os japoneses não comiam carne e lhes parecia que os ocidentais cheiravam estranho. Mas isto não é mais que um detalhe. A sogra disse que Ko tinha cara de raposa, com seus maçãs do rosto altos, seu queixo bicudo e seus olhos amendoados. Os Takasu se sentiam enganados. A sogra estava convencida de que tinham sido objeto de uma mutreta de raposa, e que a própria Ko era uma mulher raposa.
— Acreditava- de verdade ou simplesmente tinha ciúmes de sua nora?
— Ao melhor se convenceu a si mesmo, desho? A mãe de Nakamoto-sejam explica que a sogra assinalou que o tofu frito era a comida favorita das raposas, e que todo mundo sabia o muito que gostava ao Ko. Além disso, comia muito, mais do normal em uma mulher humana. Conforme contou ao Roku, a sogra seguiu um dia ao Ko até o santuário Inari e se escondeu para observá-la enquanto rezava ante as estátuas de raposas. Assegura que viu as raposas mover a cauda e que ao redor do Ko caiu a neve, embora fosse verão. É muito estranho, sim?
Barbara tirou as raposas da bolsa negra e começou a desembrulhá-los.
— trouxeste as raposas! — riu Seiji.
Barbara colocou as figurinhas sobre a mesa.
— «O sogro, que tinha uma mente mais científica, não podia acreditar que Ko fora uma mulher raposa — continuou Seiji. — Mas a sogra se mostrou muito insistente. "Contou que um dia caminhava pela Rua Hondori, no centro da Hiroshima, e lhe pareceu estar caminhando por campos desertos; entendeu que Ko era uma raposa com aparência de mulher, por isso tinha a faculdade de provocar alucinações.»
Abriu-se a porta e apareceu o matrimônio Kawabata. A mulher colocou sobre a mesa kotatsu umas terrinas de louça bem tampados para conservar o calor. Ao ver as raposas, o senhor Kawabata agarrou um e exclamou algo em japonês.
— O que há dito? — perguntou Barbara ao Seiji.
— Comenta em brincadeira que suas suspeitas se confirmaram e que é uma mulher raposa.
Barbara olhou ao senhor Kawabata e se imaginou como a via ele: loira e estrangeira, não de tudo humana.
— Tome o como um completo — disse Seiji. — Também há dito que estas figuras são valiosas.
— Talvez pertencessem ao Ko.
Quando os Kawabata partiram, Barbara sentiu alívio. As terrinas continham um guisado caseiro de carne, macarrão e verduras. Jogou uma olhada às figuras das raposas e a seu caderno de notas. Imaginou ao Ko no santuário do Inari, com a cabeça inclinada e a reluzente mata de cabelo lhe cobrindo o rosto. Certamente se sentia assustada e só em um lugar estranho, quase tão estrangeira como ela mesma.
— Agora vem uma parte muito dura. Temo que te afete muito — disse Seiji.
— Quero ouvi-la.
Seiji voltou a agarrar o cilindro de papel.
— «Aconteceram duas coisas que provocaram um conflito — continuou. — O armazém principal onde se armazenava o arroz ficou destruído por um incêndio. A sogra estava convencida de que tinha sido obra do Ko. "E enquanto Hiroshi estava no fronte da guerra russo-japonesa, Ko deu a luz um bebê, mas não um menino, a não ser uma menina, e em 1906, ano do Cavalo de Fogo.» Como saberá — acrescentou Seiji olhando a Barbara, — isto acontece a cada sessenta anos, e naquele tempo muitos pensavam que era o pior ano para que nascesse uma menina. Uma menina que nasça neste ano traz má sorte, porque se diz que devorará a seu marido. Muitas vezes as matavam.
— A sério o faziam?
— Sigo lendo. Chie escreve que o nascimento da menina foi para a sogra a prova definitiva de que Ko era uma mulher raposa, e Hiroshi não estava ali para defender a sua esposa. «Chamaram um feiticeiro para que mediante um exorcismo tirasse a raposa do Ko. Se ela morria no processo, significava que era uma raposa totalmente. Uns anos mais tarde, Roku explicou ao Chie no que tinha consistido o exorcismo. "Soube graças a outra criada que tinha atendido ao Ko.»
Barbara deixou a caneta sobre a mesa.
— «Encerraram ao Ko em uma habitação sem comida, a fim de que a raposa se sentisse faminto e disposto a abandonar o corpo da mulher. O dia do exorcismo aplicaram-lhe pimenta no nariz, nos olhos e na boca para afugentar à raposa. Esfregaram-lhe todo o corpo com barras de ferro quentes, das que se usam para remover os carvões do braseiro. E apesar disso, a raposa não quis sair, embora lhe ouvisse uivar dentro do Ko. "O feiticeiro teve que servir-se de um punção para lhe furar o peito e o abdômen a fim de deixar sair à raposa.»
Barbara se levou a mão ao peito. Seiji se deteve.
— Não, segue, segue.
— Esta era a pior parte — disse. — «Ninguém voltou a ver o Ko em sua forma humana. Alguns disseram que tinha morrido e que a tinham enterrado sem nenhuma cerimônia. Segundo outros, a sogra fez que o sacerdote lhe enfaixasse as feridas e a devolveu ao Izumo, mas enquanto atravessavam as montanhas, um dos criados viu uma raposa de pelagem avermelhada que corria entre as árvores, e quando olhou no antiquado palanquín, viu que estava vazio. "Roku e outros criados da família estavam convencidos de que o espírito do Ko tinha adotado a forma de uma raposa, o fora ou não antes, e que se converteu em uma gueixa para poder cuidar de sua menina na Hiroshima.»
— Assassinaram-na! — gritou Barbara. — E estas histórias as inventaram somente para aliviar sua culpa.
— Não está tão claro — disse Seiji. — Chie escreve o seguinte: «Quando me converti em uma jovenzinha, perguntei a meu avô Takasu o que lhe tinha ocorrido ao Ko. Custou-me muito perguntar, porque meu avô podia ser muito sarcástico. Entrei em sua habitação quando ele estava fumando seu cachimbo e lendo sua revista de medicina. Tinha-me preparado uma pergunta muito bem formulada, mas estava tão nervosa que o soltei de repente: "O que aconteceu com minha mãe? Morreu durante o ritual de exorcismo?" "Onde ouviste isso?", perguntou-me. Expliquei-lhe que me tinha contado isso Roku. "Não deveria fazer caso do que dizem as criadas. Sua mãe e sua avó não se entendiam e levamos a sua mãe a um lugar onde pudesse viver em paz." Quando lhe perguntei onde, sacudiu a cabeça. "Tem que deixar de pensar nela", disse-me.
»Meu avô era um bom homem. Quando eu nasci no desgraçado ano do Cavalo de Fogo, minha avó pensou que o melhor era me matar para que não atraísse a desgraça, e para liberar a minha família da sombra da raposa. Às meninas que corriam esta sorte as denominada "visitantes de um dia". Mas o avô entregou ao Roku, que também tinha tido um bebê. Durante muitos anos acreditei que ela era minha mãe, mas mais tarde, quando soube a verdade, dava-me conta de que o peito que recordava era o do Ko, e podia rememorar o aroma de sua cabeleira, que me envolvia como uma suave manta. "Isto explica por que, de menina, despertava de repente em meio da noite com a sensação de que um pouco muito suave, um tecido ou uma cabeleira, tinha-me roçado a cara, e em ocasiões sentia que na habitação havia alguém mais, me olhando.»
Barbara e Seiji ficaram em silêncio. Barbara se sentia imersa na história do Ko. Ela, Seiji e Michi, Ko e Hiroshi..., todos formavam parte da história, como as figuras de uma tapeçaria.
— Ao melhor ainda existe a casa das gueixas — disse. Prometeu-se visitá-la, localizar os lugares da vida do Michi.
Mas Seiji sacudiu a cabeça.
— Estava na Hiroshima.
— OH, claro. Mas talvez haja arquivos.
— Os nomes das gueixas não se arquivavam. — Começou a enrolar o papel. — E, além disso, isto não é mais que uma ocorrência do Roku e do Chie. Takasu-sejam a pôde enviar a outro sítio.
— De volta ao Izumo?
— É possível. Embora fosse uma vergonha muito grande. Certamente a enviou a servir como criada a outra parte do Japão. Ou talvez a mataram. Nunca saberemos.
Seiji ficou de pé e se estirou. Logo abriu a porta.
— Olhe, chove e faz sol. Isto significa que há umas bodas de raposas. — voltou-se para ela sorrindo. — por que não saímos? Quando pare de chover teremos uma bonita vista do Fuji-sejam.
CAPÍTULO 14
O senhor Kawabata decidiu que Barbara tinha que ver o monte Fuji «a vista de pássaro», assim que os levou de carro a um vulcão próximo por uma estrada de curvas. Enquanto ele falava e gesticulava sem parar, Seiji e Barbara, no assento de atrás, viam-se sacudidos de um lado a outro. Barbara fazia esforços para não olhar o abismo que se abria ao bordo da estrada. Imaginou o incômodo trajeto que fez Ko em seu palanquín, quando atravessou as montanhas para casar-se.
— Parece-me que logo nos deixará — disse Seiji em voz baixa.
O senhor Kawabata cantarolava com voz aguda.
Barbara arqueou as sobrancelhas e lançou ao Seiji um olhar inquisitivo.
— Está recitando um poema — lhe explicou ele. — Se sente inspirado pelo dia e pela presença de uma formosa mulher raposa. Igual a eu.
— Está inspirado por uma mulher raposa?
Seiji sorriu.
— Se você for uma mulher raposa, eu sou um homem raposa.
Barbara riu nervosa.
— Há homens raposa nestas histórias japonesas?
— Acredito que são sobre tudo mulheres raposa, mas em realidade a mulher raposa não causa muito dano, só engana.
— O engano pode causar uma grande dor.
O carro deu um inclinação brusca em uma curva fechada, entrou em um caminho de cascalho e se deteve junto a um cinema de aspecto desvencilhado. Barbara jogou uma olhada a seu redor: onde se acabavam as árvores, começava a rocha nua. Os débeis assentos do cinema subiam dificultosamente até o topo por entre largas patas de metal. Fizeram uma pequena reverência ao senhor Kawabata e lhe disseram adeus com a mão. Compraram bilhetes para o cinema e esperaram na plataforma até que duas cadeiras os levantaram por detrás. Seiji a ajudou a sentar-se tomando-a do braço.
Logo deixaram atrás as últimas árvores. Barbara olhou para baixo. O coração lhe golpeava no peito. Seiji lhe agarrou da mão.
— A nossas costas há uma vista preciosa — disse.
O lago brilhava a seus pés em um verde terreno baixo; mais à frente, a imponente figura do monte Fuji refulgia ao sol. O cabo da poltrona tremeu. Barbara fechou os olhos e apertou a mão do Seiji.
— Enjoa-te?
— Não — disse Barbara com uma breve gargalhada. Contemplou o rosto do Seiji de olhos escuros, quase negros, e as delicadas pestanas, médio ocultas pelas dobras das pálpebras.
— Me alegro de te haver conhecido — disse Seiji.
Passou o braço por detrás da Barbara, com a mão lhe roçando o ombro, e ela sentiu que algo se desbloqueava em seu interior. Mais relaxada, recostou-se contra o respaldo, aspirou profundamente e olhou a seu redor. A paisagem, as montanhas, as vaporosas nuvens..., tudo lhe parecia resplandecente.
Umas cadeiras mais atrás viajava outro casal. A mulher levava um casaco de cor mostarda e seu cabelo escuro brilhava ao sol. O homem fumava um cigarro. De repente, jogou-o no vazio. Barbara viu cair o cigarro e temeu que provocasse um incêndio, mas a seus pés só havia rocha nua. Aqui e lá se elevavam pequenas nuvens de vapor.
— Estamos ao bordo do vulcão — disse Seiji.
— Quando foi a última erupção?
— Faz centenas de anos, acredito, mas ainda se apreciam os efeitos.
Olhava fixamente para baixo com expressão solene. Barbara pensou que aquela paisagem erma podia lhe recordar Hiroshima. A ascensão se fez mais pronunciada, e de repente viram ante eles a afiada crista da montanha, com amarelados penachos de fumaça que brotavam das fissuras na rocha. O poltrona deu uma sacudida, como um navio que chega ao mole, e as cadeiras se encaminharam para a plataforma de saída. A Barbara tremiam as pernas. Seiji a ajudou a baixar.
— Sobrevivemos — riu Seiji.
Aproximaram-se do escritório de informação turística e encontraram um mapa da zona. Uma senhorita uniformizada lhes indicou como chegar até o lugar de onde se divisava "o grande hervidero". Tinham que tomar um atalho que nascia ao outro lado do estacionamento, tão estreito que logo que cabiam eles dois. A seu redor só havia rocha e cantos rodados tão quentes que soltavam vapor, e o ar cheirava a enxofre. Ao subir por um ligeiro pendente viram emplastros de terra ressecada e argila fervente que fervia entre as fissuras do chão rochoso. Um letreiro em inglês rezava: "Não saiam do caminho." Outro letreiro os dirigiu para «Vista panorâmica».
O casal que tinha subido com eles no cinema se encontrava na plataforma de madeira, olhando para baixo. O homem fumava outro cigarro e se arranhava a perna; a mulher se tampava o nariz e a boca com o pescoço do casaco.
Pareciam muito desgraçados quando abandonaram a plataforma, sobre tudo a mulher. O homem tinha os olhos chorosos e emprestava a álcool.
Barbara e Seiji se aproximaram da cerca para contemplar o panorama. A seus pés se estendia uma zona de argila fervente, e o aroma de ovos podres era muito mais intenso quase insuportável. Retornaram ao caminho principal. Diante deles ia o matrimônio que tinham visto antes, o homem diante e a mulher detrás, caminhando torpemente sobre seus incômodos sapatos de salto.
— Vinham conosco — disse Barbara. — Acredito que estão em sua lua de mel.
— Mas não são como Ko e Hiroshi — disse Seiji.
— Não.
— O que te pareceu a lua de mel de Ko e de Hiroshi?
— Deve ter sido muito bonita. — Barbara pigarreou. — Maravilhosa.
— É formoso quando há verdadeira paixão, não te parece?
— Sim.
Seiji a agarrou da mão e a soltou em seguida, mas seu gesto teve um profundo efeito sobre a Barbara. De repente, tudo a seu redor parecia mágico e sensual: os regatos entre as rochas, a branca argila, inclusive o vapor sulfuroso. Ao final do caminho, entre nuvens de vapor, divisou um barraco de madeira. Ali estava o outro casal, falando com uma mulher de rosto corado que levava um lenço na cabeça. Barbara e Seiji se detiveram frente ao barraco e contemplaram outro poço de barro fervente. Mediante um sistema de polias, um homem tirava do barro uma cesta repleta do que pareciam sujos pedras brutas.
— São ovos cozidos na argila vulcânica — disse Seiji. — Os vendem como comida. — Assinalou com um gesto ao matrimônio do interior do barraco, que tinha começado a cortar a quebrasse dos ovos: por dentro eram negros. A mulher comeu dois pequenos bocados e envolveu o resto em um lenço; o homem tinha a boca cheia de ovo. Seiji e Barbara entraram no barraco. A mulher de atrás do mostrador assinalou a cesta cheia de ovos cinzentos e disse algo em japonês.
— São ovos em conserva?
— Diz que são frescos cozidos de hoje. Temos que prová-los.
Seiji lhe pôs na mão um ovo, ainda quente. Barbara o golpeou brandamente contra o mostrador para romper a quebrasse, que se desprendeu com facilidade. Por dentro era brilhante e negro como a tinta. Que estranho ritual, comer um ovo no meio do aroma de ovos podres! Seiji já estava comendo o seu. Barbara provou um pequeno bocado e logo outro, até que conseguiu acabar-lhe Desde não ser pelo aroma, era quase como um ovo normal.
A mulher do mostrador sorriu com aprovação.
— Pareceu-te delicioso? — perguntou Seiji com ironia.
— Parece-me que é quão pior comi nunca — confessou.
— Durante a guerra, minha mãe fazia um guisado com erva que encontrava junto ao caminho. Isso é quão pior eu comi.
Seguiram andando em silêncio. Barbara contemplava a árida paisagem e procurava desesperadamente uma pergunta adequada. Estava desconcertada pelas mudanças de humor do Seiji, que voltava a ter uma expressão impenetrável. Felizmente, ao final do caminho pareceu recuperar a normalidade.
— Quer que tomemos algo?
Barbara se sentiu aliviada. Entraram em um café e se sentaram junto a um janela que dava ao monte Fuji.
— Subiste aos Fuji-san? — perguntou Barbara.
— Uma vez. — Seiji não apartava os olhos da janela.
— Passa-te algo?
Ele se esforçou por sorrir.
— Sumimasen. Temo-me que às vezes não sou boa companhia.
Retornaram ao estacionamento para tomar o ônibus que os levaria a pé da montanha. Fizeram a viagem em silêncio, muito juntos. O monte Fuji flutuava no horizonte. A última luz do entardecer conferia aos objetos uma intensidade especial. Quando chegaram ao hotel Hakone, empreenderam o caminho para a estalagem do Seiji sem intercambiar uma só palavra. Anoitecia e as árvores se viam imprecisos na distância, mas a Barbara parecia que as ervas junto ao caminho queriam saudá-la.
A habitação do Seiji estava poda e ordenada. Tinham recolhido os papéis, e a bolsa da Barbara estava junto à mesa kotatsu. As raposas seguiam ali, sob um abajur redondo com tela de papel que emitia uma luz suave. Entrou uma criada com o chá e lhes perguntou algo sobre ofurô.
— Quer tomar um banho antes de jantar? — perguntou Seiji.
— Trata-se de uma banheira comunitária ou privada?
— São banhos separados para homens e mulheres — explicou Seiji com um sorriso. — É muito agradável, com água termal. Ela te indicará. — Fez-lhe um gesto à criada, que conduziu a Barbara por vários corredores até uma habitação ladrilhada e cheia de vapor e lhe entregou uma toalhinha, uma cesta para que depositasse a roupa e um quimono para depois. Havia uma pequena zona para despir-se e uma banheira do tamanho de uma piscina infantil, com torneiras, tamboretes e cubos de água ao redor para lavar-se e esclarecer-se antes de entrar.
Barbara se despiu, sentou-se em um tamborete e começou a ensaboar-se. Uma mulher que saía da banheira com a pele avermelhada se ofereceu a ajudá-la. Deu-lhe as obrigado em japonês e deixou que a mulher lhe arrojasse em cima cubo detrás cubo de água. Logo se levantou, colocou um pé na piscina e voltou a tirá-lo o notar a alta temperatura da água. A mulher riu. Finalmente, Barbara conteve o fôlego, entrou na água, apoiou a nuca na borda e relaxou.
— Atsui, desu NE? — comentou uma das banhistas.
— Hai, atusi desu.
Quando voltou para a habitação, encontrou Seiji já vestido com o quimono e com o cabelo molhado.
— Estiveste tanto tempo que agora acredito que é um peixe. Quer uma taça?
Sobre a mesa kotatsu havia duas taças e uma garrafa de licor de ameixa.
— Sim, por favor.
Barbara se sentou junto a ele. Serviram-se licor e brindaram. A criada trouxe o jantar: sopa de miso, rodelas de atum cru, duas terrinas de arroz e encurtidos, tudo perfeitamente apresentado. Comeram e beberam em silêncio. O atum era delicioso, suave como a manteiga.
— Está tudo muito bom — disse Barbara em japonês.
— Tem muito boa pronúncia. E também sabe dirigir os palitos. É uma boa estudante, tal como eu havia predito. — Tocou brincalhonamente o pé da Barbara com o pé.
— Tem a pele muito quente — murmurou ela.
A criada retornou para recolher os pratos. Tirou do armário dois futones, depositou-os no chão, um ao lado do outro, e se despediu com uma ligeira inclinação de cabeça. Seiji abriu a porta que dava ao jardim para que entrasse o murmúrio da fonte e o sussurro dos ramos do pinheiro agitadas pela brisa. Logo se sentou junto à Barbara.
— Quer que te conte a história da mulher raposa?
— Sim, por favor.
— É antiga, talvez a mais velha história de mulheres raposa. — Tomou a mão da Barbara, girou a palma para cima e começou a lhe acariciar a palma e os dedos.
"Era uma vez um homem solitário que desejava ter uma esposa. Um dia encontrou no bosque a uma mulher formosa e gentil e lhe pediu que fosse sua esposa. Ela aceitou, e não demoraram para ter um filho. Quase ao mesmo tempo, a cadela do homem também pariu, e resultou que começou a ter ciúmes da mulher: grunhia cada vez que a via. A esposa pediu ao homem que matasse à cadela, mas ele não tinha a coragem de fazê-lo. Um dia que a cadela ladrava furiosa à mulher, viu que ela saltava a cerca e escapava com sua verdadeira forma de raposa. Mas o homem estava tão apaixonado por sua mulher que não podia esquecê-la. Pediu-lhe que voltasse pelas noites e dormisse com ele, e ela aceitou. O nome da mulher é o de todas as raposas do Japão: kitsune. Alguns dizem que isto tem um dobro sentido em japonês, porque os mesmos caracteres, lidos de outra maneira podem dizer kite neru, "vêem e dorme".
— Kite neru — repetiu Barbara, com o olhar posto na mão do Seiji sobre a sua.
Voltou-se para ele e Seiji lhe segurou um braço sobre os ombros. Cheirava levemente a enxofre, como o sabão do banho. Abraçaram-se com as bochechas muito juntas. Seiji lhe apartou o cabelo da cara e lhe sussurrou ao ouvido: Kite neru. Kitsune. Vêem e dorme comigo.
CAPÍTULO 15
Quando despertou, a luz da manhã alagava a habitação. Voltou-se para Seiji. O futón estava vazio. Não viu sua roupa nem sua mala, e lhe pareceu incrível que se foi sem lhe dizer nada. Vestiu-se rapidamente. Sobre a mesa kotatsu havia um bule e uma taça, mas nenhuma nota. Abriu a porta do jardim e viu um lagarto com o lombo de uma fantástica cor azulada que tomava o sol tranqüilamente sobre uma pedra. O repentino "toe" da fonte a sobressaltou.
— Ohayo gozaimasu. — Seiji entrou na habitação.
— Onde estava?
— Falando com o hospedeiro. — Fez uma leve reverencia. — Espero que tenha dormido bem.
— Muito bem. Foi fantástico.
— Sim — disse Seiji em voz baixa, sem olhá-la aos olhos. — Lamento ter que partir agora.
— Agora mesmo?
— Hamada sensei quer que volte para Mashiko para que lhe ajude com uma exposição no estrangeiro. Tínhamos acordado que voltaria hoje.
— E nossa tradução?
— Traduzi-te um papel em seu caderno. — Indicou com um gesto a bolsa negra. — Espero que tenha uma boa viagem de volta.
Barbara olhou a bolsa. Seiji tinha guardado já todos os papéis de Michi.
— Não retorno diretamente a Tóquio.
— Não retorna?
A evidente surpresa do Seiji lhe produziu uma sensação prazenteira.
— Uns amigos me convidaram a passar um par de semanas em Kioto. Acredito que aceitarei o convite.
— Ah. — Inclinou a cabeça. — Espero que o passe bem.
— Estou segura. — Barbara se obrigou a sorrir. — E eu espero que o passe bem com Hamada sensei.
Olharam-se e se disseram adeus. Barbara sentiu uma corrente quase evidente que fluía entre ambos. Ficou escutando os passos de Seiji. Ouviu vozes no vestíbulo e a caminhonete que se afastava. Agarrou seu caderno e a bolsa negra e saiu pelo jardim. Não daria ao senhor Kawabata e a outros o prazer de ver partir a gaijin. Desceu pela colina meio andando, meio correndo, com a bolsa lhe golpeando a coxa. De repente pensou que não tinha comprovado que não ficasse nada na habitação; talvez Seiji se esquecesse de guardar as raposas. Deteve-se e apalpou o bolso lateral: ali estavam bem envoltos. Olhou para trás; a estalagem tinha desaparecido depois das árvores, como uma miragem.
Tombou-se na cama do hotel e pensou em Seiji, em suas delicadas pestanas, em seu rosto sobre o travesseiro. Tinham dormido abraçados. Ainda notava a perna de Seiji sobre seu corpo, em um gesto de intimidade que ela não tinha experimentado nunca. E, entretanto, partiu-se sem mais. Sentiu uma pontada de saudade. Levante-te, disse-se, faz algo; não fique aqui se lamentando. Tirou a mala do armário e começou a fazer a bagagem. Devia haver um trem pela manhã. O recepcionista lhe disse que o próximo ônibus saía ao cabo de uma hora, assim agarrou a mala e empreendeu o caminho.
Era um dia tão claro que a alta silhueta coroada de neve do monte Fuji, ao outro lado do lago, parecia próxima. Barbara ficou olhando o reflexo do monte Fuji no lago; a famosa imagem investida. Era uma imagem muito bela, como um postal de Hakone. Se pudesse lhe escrever a Seiji, diria-lhe: "Eu gostaria que estivesse aqui." No ônibus, colocou a bolsa no assento do lado e fechou os olhos para que ninguém a incomodasse.
Seiji tinha apagado a luz e se aproximou dela. Barbara murmurou: "Seiji." Ele percorreu com os dedos suas sobrancelhas, seu nariz, sua boca, e tocou brandamente seu peito com um gesto que era uma pergunta. Abraçaram-se em silêncio. "Barbara — sussurrou ele com a cara afundada em seu cabelo. — Barbara-san" repetiu, e os dois riram. "Seu nome soa muito duro", disse. "Então me dê um nome japonês". "Ah, Kirekitsu. Kirekitsu-san. Significa raposa formosa." Barbara ficou dormida com a respiração de Seiji junto a sua bochecha. E pela manhã, ele se tinha ido. Talvez houvesse uma sutileza cultural que lhe escapava. Talvez Seiji não desejasse que o hospedeiro soubesse que tinham dormido juntos. Embora o senhor Kawabata não parecesse precisamente dissimulado. Mas voltaria a ver Seiji. Estava segura de que ele a chamaria.
O vagão estava virtualmente vazio. Depois de que passasse o revisor, Barbara abriu a bolsa negra. Seiji tinha enrolado todos os papéis de Michi em um feixe e os tinha atado com uma corda. No caderno de notas, tinha copiado o texto de Chie de 1933 com laboriosa letra infantil.
"Freqüentemente, enquanto educava a minha filha — começava o texto — senti falta da minha mãe Ko. Teria-me gostado que me aconselhasse sobre Michi-san." Barbara leu por cima os dois parágrafos seguintes, que falavam sobre as dificuldades de educar corretamente a uma filha. "Este ano novo tirei a caixa onde guardo as pertences que Ko trouxe para Hiroshima como dote. O mesmo dia em que Ko desapareceu, Roku as tirou da habitação e as guardou para me entregar isso anos mais tarde.
"Há um papel enrolado e pacote com uma antiquada cinta de seda negra. Contém uma receita: "Como preparar licor de ameixa." E é a que segui para preparar licor com as ameixas de meu jardim em Hiroshima."
Michi lhe havia dito que seguia a receita de sua mãe, mas provinha de sua avó Ko. Barbara fechou os olhos e pensou nas noites de paixão de Ko e de Hiroshi, uma paixão que fazia saltar faíscas. "É formoso quando há verdadeira paixão, não te parece?" Tinham deixado aberta a porta do jardim para que entrasse o ar fresco e os aromas da terra. Seiji lhe acariciou a palma da mão. "Kite neru. Vêem e dorme comigo."
Enquanto ela dormia, Seiji esteve copiando a tradução e, de vez em quando, levantava a vista para olhá-la.
Voltou para a leitura do caderno. Parecia-lhe ouvir a voz de Seiji: "O objeto mais prezado do dote de Ko era seu desenho ukiyoe de uma mulher que abandona sua casa e um menino pequeno que lhe tende os braços. Cada vez que o veja me encolhe o coração. Detrás da porta de papel se adivinha o perfil raposa da mulher. É uma mulher raposa que abandona a seu filho! Michi-chan, se um dia lê isto, olhe o desenho. É o retrato de sua avó Ko, que provém do oeste do Japão, da borda do lago Shinji."
Agora entendia por que Michi ficou tão surpreendida quando viu em seu apartamento o desenho da mulher raposa. Recordava a sua própria história.
"Algum dia, este emblema de sua avó Ko te pertencerá, Michi-chan. E então talvez possa me entender." Mas o desenho não estava pendurado no apartamento de Michi. Barbara o teria visto. Talvez estivesse dentro do tansu, enrolado com outros papéis. Releu a descrição que fazia Chie do desenho da mulher raposa. Podia sentir o desespero da menina que se agarra pela saia de sua mãe. Recordou um episódio que tinha permanecido oculto em sua memória durante anos. Ela e sua mãe caminhavam em direções opostas, cada uma para um extremo da casa, e Barbara — que devia ter nove ou dez anos — gritou de repente: "por que não é mais maternal?" Sua mãe se deteve, perplexa, e soltou uma gargalhada. "Não entendo a que demônios te refere."
Recostou-se contra o respaldo e fechou os olhos, embalada pelo movimento do trem. Vêem e dorme comigo, Kite neru. Um desenho desse momento também estaria cheio de desejo: a luz matinal no dormitório vazio dos amantes, os cigarros esmagados no cinzeiro e um futón com o cobertor aberto.
CAPÍTULO 16
Não o fazia graça chegar a um edifício deserto e escuro, e se alegrou de saber que a senhora Ueda a esperava no Sango-kan para jantar. Entretanto, resultava um tanto inquietante que a senhora Ueda soubesse exatamente sua hora de chegada. Ao parecer, a secretária da senhorita Fujizawa tinha telefonado ao hotel para informar-se exatamente de seus movimentos. Se tivesse reservado uma habitação com Seiji no ryokan, todo o campus se teria informado.
Em casa da senhora Ueda estava a mesa posta, e junto ao serviço da Barbara havia uma carta com carimbo de Escócia. Era de seu pai, que lhe tinha rabiscado umas linhas e lhe mandava também uma fotografia dele e da Gina em um campo de golfe. "desejei jogar a golfe em Escócia desde que tive meu primeiro ferro. Como vai no país das gueixas e o sol nascente? Por favor, escreve a seu velho pai." A fotografia estava tomada da distância: Gina e o pai da Barbara eram duas figuras em uma imensidão esmeralda; Barbara logo que distinguia seu cabelo prateado e seus olhos escuros, e se disse que seu pai se encontrava efetivamente tão longe como na foto.
A senhora Ueda se pôs os óculos para estudar a fotografia.
— Um homem distinto — disse. — Sua mãe tem um aspecto muito jovem.
— É minha madrasta. Meus pais estão divorciados.
— Entendo. Sua mãe se casou?
Barbara negou com a cabeça.
— Está muito amargurada.
— Então, foi ele quem quis o divórcio.
— Sim, embora ela também fosse muito desgraçada. Acredito que lhe teria gostado que a decisão tivesse provindo dela.
— Sinto-o muito por ela. Quando meu marido voltou da guerra, teve uma relação com uma garota pão-pão, uma prostituta. Eu também me senti amargurada durante bastante tempo.
— Pediu o divórcio?
A senhora Ueda soltou uma brusca gargalhada.
— Não. Ele começou a beber sake e morreu alcoolizado.
— Sinto muito. E Michi-san? Foi feliz em seu matrimônio?
senhora Ueda suspirou.
— A pobre Nakamoto teve uma vida muito dura. Seu marido morreu na guerra.
— E antes disso?
— Estiveram juntos pouco tempo. Suponho que foram felizes.
— Era um matrimônio consertado?
— Parece-me que sim.
Barbara a ajudou a levar a comida à mesa.
— Temo-me que o porco ficou seco.
— Não, está delicioso. E foi muito amável ao me esperar para jantar.
— Temo-me que não sou uma dona-de-casa tão perfeita como Nakamoto.
— Queria lhe perguntar se tiver um desenho de Michi, um de Yoshitoshi que representa à mulher raposa que abandona a seu filho.
— Não recordo nenhum desenho assim, nem desse pintor nem de outro. — A senhora Ueda contemplou atentamente a Barbara. — Ouviste falar desse desenho?
— Falei várias vezes do tema com Michi-san. Sua mãe assegurava que entendia a linguagem das raposas. E resulta que, faz anos, minha mãe me deu de presente um desenho japonês de uma mulher raposa. Por isso me interessam estas histórias. — Tomou fôlego e o soltou de repente. — Michi-san tinha um desenho assim.
— Ao melhor o perdeu durante a guerra. Naqueles anos todo mundo perdeu algo.
Quando voltou para seu apartamento, Barbara levou a bolsa negra à habitação. Tirou da última gaveta as garrafas de Chie e desembrulhou os papéis um a um. Nos primeiros não encontrou nada estranho, nenhum desenho, mas o de 1939 era diferente: a escritura não parecia caligráfica, mas sim de traços grossos e mais descuidados. O mesmo ocorria com os papéis seguintes. Não havia garrafas dos anos 1943 e 1944, e a de 1945 estava envolta em várias capas de papel. Barbara teve esperanças de encontrar o desenho e foi desembrulhando capa detrás capa de papel de arroz. Tinha que haver algo importante. A última capa era um tecido muito fino, e a garrafa estava deformada, cheia de vultos. Depositou-a sobre o tatami para desatar a corda. Ao lhe tirar o tecido, começou a entender: estava vazia. Não podia conter nada porque o cristal se fundiu e as paredes se tocavam no interior, como se uma mão gigante a tivesse esmagado. O pescoço da garrafa estava retorcido, apoiado sobre si mesmo. Sentiu-se enjoada. Foi à cozinha e pôs as mãos sob o grifo aberto para molhá-la cara. A garrafa se fundiu com a bomba atômica. Talvez proviesse da casa de Michi.
De novo veio a sua mente a imagem da nuvem em forma de cogumelo que tinham irradiado os noticiários. Michi tinha estado ali, gritando e tampando-os ouvidos, ajoelhada no chão. E também Seiji, que então era só um menino. Quando voltou para a habitação, tudo tinha perdida cor e textura. Tomou uma das terrinas de Seiji que estava sobre o tokonoma e o voltou a deixar em seu sítio. Sobre o tecido junto ao tansu, a garrafa parecia um feto disforme. Apressou-se a envolvê-la e a guardá-la. Tirou uma garrafa aberta da primeira gaveta e bebeu um gole de licor diretamente do gargalo. Tinha que haver imaginado, deveria ter esperado ao Seiji para abrir a garrafa de 1945.
Estava obscurecendo e ela se encontrava em meio de uma desordem de garrafas e papéis, com as gavetas do escritório abertos. Custava-lhe respirar e abriu a janela. O ar que entrou cheirava a lenha queimada. Sato-sab estava esquentando água para o banho. Ao longe, um pássaro deixou ouvir um canto monótono e harmonioso. "Um pássaro que chama a seu amor", havia dito Seiji.
Barbara envolveu as garrafas de 1930 e as dos primeiros anos da década seguinte. O rangido dos papéis retumbava de forma exagerada em meio de um silêncio só quebrado pelo canto do pássaro, cada vez mais longínquo.
Pensou que o desenho estaria com os textos de Michi-san e abriu a garrafa de 1949, envolta em quatro papéis. Desdobrou-os de um em um; o texto devia ser de Michi, porque sua mãe morreu pouco depois da guerra. Havia três folhas escritas e nenhum desenho. Na garrafa de 1951 tinha pegado uma fotografia. Barbara a separou com cuidado e a depositou na palma da mão: eram Michi e Ume. Michi estava inclinada, tentando que uma mal-humorada Ume olhasse à câmara. A menina aparentava três ou quatro anos; levava um vestido floreado e um enorme laço na cabeça. Tinha o queixo bicudo, como Michi, e a cara, mas bem larga. Não tinha a cabeça pequena. Depois delas duas, a longe, via-se uma ponte: o Golden Gate de São Francisco. Emocionou-lhe pensar que Michi tinha estado na Califórnia aquele ano; seguro que tinha escrito algo. Disse-se que esse seria o próximo texto que traduziriam.
Nas garrafas seguintes só tinha escritos, mas na de 1955 encontrou uma fotografia de Michi, Ume e Seiji, ajoelhados frente à mesa. Estavam em meio de uma comida. Michi e Seiji tinham deixado de comer para olhar à câmara, mas Ume estava inclinada sobre o prato, preparada para levar-se a boca os macarrão que tinha pegado com os palitos. Michi olhava a sua filha com ar de preocupação, igual a olhava às vezes a Barbara. Seiji permanecia ligeiramente afastado delas e olhava à frente, um pouco incômodo, como se não formasse parte do grupo.
Ao desembrulhar a garrafa de 1959, descobriu outra fotografia. Esta vez era Seiji com um quimono negro, muito elegante ante uma caixa de cristal que continha terrinas de cerâmica, possivelmente uma exposição de seu trabalho. Embora parecesse uma ocasião feliz, sua expressão era solene.
Barbara pensou na noite passada com Seiji, no pouco que havia dito. Talvez ele fosse sempre assim, talvez se mostrasse reservado sobre seus sentimentos. Dispôs-se do silêncio a seu redor e recordou um verso do Lawrence Durrell: "Acaso não depende tudo de como interpretemos o silêncio?"
De repente, levantou-se, correu à cozinha e pôs a rádio. Soava uma canção do The Mama and the Papas. Da bolsa negra tirou o maço de papéis que se levou ao Hakone. Faltava o de 1961. Olhou dentro da bolsa e no compartimento lateral, mas não havia nada. Haver-se-ia traspapelado? Abriu a última gaveta, tirou as garrafas de 1930 e as desembrulhou de novo uma por uma, para comprovar as datas. Desembrulhou a garrafa de 1960, colocou a mão debaixo do tansu, moveu o arca para procurar por detrás, olhou por toda a habitação... O papel não estava. Mas no trem de volta não tinha tirado os papéis, só o caderno de notas. Deduziu que o texto de 1961 tinha que estar no Hakone.
Baixou correndo ao vestíbulo e chamou por telefone. Falou baixinho, para que a senhora Ueda não a ouvisse, e conseguiu que a operadora lhe pusesse com o ryokan Akai Hana. O senhor Kawabata respondeu ao telefone.
— Kawabata sensei. Jefferson Barbara desu.
O senhor Kawabata riu.
— Ah. A mulher raposa me chama por telefone. Olá, senhorita raposa.
Barbara tentou lhe explicar em japonês que tinha perdido um papel. Logo o repetiu em inglês.
— Perdi um papel.
— Perdeu-se?
— Não. Sumimasen. Um papel. Encontrou um texto que me deixei? Você o estava traduzindo com a Okada Seiji.
— Ah, o texto da mulher raposa. Não, aqui não há texto.
Recordou que era o escrito que Seiji tinha lido para si no apartamento e se negou a traduzir. Agora o tinha levado.
— Okada Seiji... Mashiko NE denwa. — Conhecia as palavras "telefone" e "número", mas não recordava como se dizia em japonês "número de telefone". — Mashiko denwa arimasuka?
— Mashiko denwa? Wakarimasen. — O senhor Kawabata não a entendia.
— Mashiko denwa — repetiu Barbara, quase gritando. — Denwa, por favor, onegai shimasu.
A senhora Ueda saiu de seu apartamento com um penhoar rosa e uma toalha enrolada na cabeça.
— Algum problema?
— Perdi um papel... — Barbara se despediu do senhor Kawabata e pendurou.
— Lamento-o. Parece que tinha muita importância para você.
— Ao melhor me deixei isso no trem.
— Se for assim, tê-lo-ão guardado. Quer que o averigúe?
— O agradeceria muito.
A senhora Ueda fez várias chamadas à companhia ferroviária, se por acaso o papel se perdeu na viagem de volta a Tóquio, e também ao escritório de objetos perdidos da companhia. Mas finalmente pendurou o telefone com um gesto de negação.
— Lamento-o, não encontraram seu papel.
Barbara ficou pensando, com o olhar perdido. Seiji tinha que haver o levado.
— Acredito havê-la ouvido mencionar a Okada Seiji. É o Okada do Takanodai?
— Sim.
— Entendo.
— Encontramo-nos ali por acaso.
A senhora Ueda a olhava sem dizer uma palavra.
— Conheci-o no festival universitário. Tinha sido aluno de Michi, assim tivemos muito do que falar.
— Entendo — repetiu a senhora Ueda.
— Bom boa noite. Obrigado por sua ajuda.
— Cuide-se — disse a senhora Ueda.
— Não se preocupe, estou bem.
Quando voltou para apartamento, repassou os papéis que se levou a Hakone e procurou outra vez na bolsa, mas sabia que era inútil: o texto de 1961 tinha desaparecido.
CAPÍTULO 17
Ao dia seguinte, passou-se a manhã tentando falar com Seiji. Utilizou o telefone do edifício das salas de aula para que a senhora Ueda não a ouvisse, mas não conseguiu falar com ninguém até o meio-dia. A tia de Seiji lhe disse, em um tom gelado, que era impossível lhe telefonar a Mashiko.
Pensou então em lhe escrever uma nota e levá-la a sua casa. Escreveu "Querido Seiji" em uma folha de papel e a enrugou. Encontraria outro tradutor; um homem discreto no que pudesse confiar um profissional com o que não houvesse absurdas complicações. Michi lhe tinha apresentado a uma bibliotecária do International House, no centro de Tóquio; seguro que conhecia algum tradutor. Inclusive podia passar a noite no International House. Convinha-lhe sair em lugar de ficar esperando que Seiji a chamasse.
Voltou para apartamento e abriu a primeira gaveta do tansu. Em meio das garrafas envoltas em papel, a de 1961 parecia nua. Desembrulhou as garrafas de 1960 e 1962 e colocou os papéis na bolsa negra, junto com uma muda. No último momento acrescentou o papel de 1951 e se dirigiu à estação.
Na habitação do International House se sentiu como em casa: duas camas, uma poltrona e um banho privado de estilo ocidental, com água quente. Tombou-se na cama. Estava exausta e lhe doía todo o corpo, como se estivesse incubando uma gripe.
Quando despertou, eram perto das cinco. A biblioteca já estaria fechada, mas pelo menos tinha ante si uma tarde tranqüila. Tomou banho com calma e lavou os cabelos com o xampu Prell que tinha comprado na farmácia americana. O aroma lhe recordou a Aliem Haywood, o primeiro menino que a beijou. Estavam na entrada de sua casa, sorrindo-se, e de repente, ele a beijou e afundou as mãos em seu cabelo. Barbara adorou.
— Gostei demais — disse.
Enquanto se vestia para jantar, ouviu as notícias. O Senado dos Estados Unidos rechaçava a emenda contra a resolução do golfo do Tonkín, e o secretário de Defesa, Robert McNamara, anunciava o envio de 20.000 homens que se somariam aos ao redor de 215.000 que já estavam no Vietnam. Aliem Haywood não tinha ido à universidade; ao melhor o tinham chamado a filas. Barbara apagou a rádio e baixou para jantar.
O restaurante estava repleto: nenhuma mesa livre. Um cambojano que jantava sozinho a convidou a sentar-se com ele. Era atrativo, embora de estilo afetado: brilhantina, dente branquíssimos e lenço se sobressaindo do bolso do casaco. Fizeram as apresentações. Ele trabalhava no serviço diplomático e acabava de assistir a uma reunião.
— Pensava ficar uns dias mais. Posso lhe perguntar se estiver sozinha?
— Não estou casada, se referir a isso.
Não havia razão para rechaçar o convite. Ao fim e ao cabo, não estava comprometida com o Seiji. Parecia um homem inteligente e poderia lhe contar muitas coisas sobre o Camboja.
Quando lhes serviram a comida, o cambojano utilizou um tom suave e sedutor para lhe perguntar se tudo estava a seu gosto. E assim que lhes retiraram os pratos, aproximou-se mais a Barbara.
— Gosta de uma taça de brandy, senhorita Jefferson? Tenho uma estupenda garrafa do Courvoisier em minha habitação.
— Não, muito obrigado. — Recolheu seu livro, disposta a partir. Seguro que pensava que as norte-americanas eram fáceis de conquistar.
O cambojano apoiou os braços sobre a mesa e se inclinou para ela.
— Quer que exploremos juntos a vida noturna de Tóquio?
— Tenho uma reunião há primeira hora.
— Talvez amanhã pela tarde...
Barbara procurou o garçom com o olhar.
— Agora estou muito ocupada.
— É uma lástima. — reclinou-se na cadeira e cruzou os braços sobre o peito. — Mas se tiver um momento, senhorita Jefferson, me diga uma coisa: qual é sua opinião sobre a política imperialista de seu país no Vietnam?
Barbara lhe dirigiu um olhar glacial.
— A sua é uma estranha forma de diplomacia.
— Os norte-americanos, os legisladores do mundo, os que tudo sabem! — gritou com raiva, levantando as mãos como se invocasse ao céu.
Barbara assinou o recibo e se apressou a subir a sua habitação. Que indivíduo mais desagradável! Para tentar esquecê-lo, tombou-se na cama a ler a revista Teme, mas o artigo principal falava das deliberações do Senado sobre o Vietnam. Passou umas quantas páginas e deu com umas declarações nas quais o boxeador Cassius Clay se queixava de que o tinham chamado de cão. Arrojou a revista ao chão e apagou a luz. Tinha que informar-se melhor sobre o Vietnam; cada vez havia mais gente que fazia pergunta sobre a guerra.
A cama não era tão cômoda como um futón. A da estalagem era fantástico, mais grossa que o do Sango-kan. Pensou em Seiji junto a ela na escuridão, lhe sussurrando coisas ao ouvido: "Barbara-san." O texto de 1961 tinha cansado debaixo da mesa e se ficou esquecido. Mas também era possível que ele pensasse que tinha direito de ficar. Recordou o ofendido que se sentou pelo fato de que ela tivesse herdado o tansu e os papéis. Tinham discutido como irmãos que debatessem sobre uma herança.
Intrigava-lhe saber o que punha no papel de 1961. Falaria do tempo, do ano...; não lhe ocorria nada mais. Tentou recordar os signos, mas só tinha visto o escrito uma vez, quando fez a bagagem para ir a Hakone. Sonhou que dormia com Seiji, e que seus corpos nus estavam repletos de signos de escritura. Parecia inglês, mas ela não conseguia lê-lo. Quando se inclinou para decifrar as palavras, os signos começaram a desaparecer, afundaram-se em sua carne.
A bibliotecária, pálida e de rosto ovalado, era muito bonita. Lembrava-se perfeitamente de Barbara. Michi as tinha apresentado o passado outono. Sim, tinha ouvido falar da morte de Nakamoto sensei; lamentava-o muito. Barbara lhe explicou que estava procurando um tradutor para uns velhos papéis, embora não mencionou a procedência. Depois de umas quantas chamadas de telefone, a bibliotecária lhe disse que tinha encontrado à pessoa idônea.
— O senhor Natsume Wada é um estudioso do teatro. Vive em Musashi Koganei, perto da universidade, e me há dito que pode recebê-la esta mesma tarde.
O senhor Wada era um homem gordinho, de rosto amarelado e aspecto cansado, e fumava como um carreteiro. Recebeu a Barbara em um salão ao estilo ocidental e com a janela aberta. Sua mulher trouxe uma bandeja com chá e doces da loja de abaixo. Barbara mordeu um pasteizinhos — estava cheio de uma nata pegajosa e sabia a rançoso — e voltou a deixá-lo sobre o prato.
— Não está bom — disse a senhora Wada movendo a cabeça com pesar.
— OH, sim que eu gosto. Está muito bom — assegurou Barbara. Com a ajuda do chá, conseguiu tragar algo mais.
Logo passaram ao estudo do senhor Wada e ele se sentou ante o escritório. Barbara tomou assento em uma incômoda poltrona e folheou os papéis escritos antes e depois do texto perdido. Olhou os de 1960 e 1962 e também o de 1951, o ano em que Michi tinha estado em São Francisco. Finalmente, tendeu ao senhor Wada o escrito de 1960.
— Não está escrito em kanbun, mas posso lhe trazer outros que sim.
O senhor Wada desdobrou o papel sobre a mesa para lê-lo. Barbara vigiava com temor a cinza que se ia acumulando na ponta do cigarro. Quando viu que caía cinza sobre o papel, apressou-se a varrê-la com a mão.
— Por favor, tome cuidado. É um texto muito importante.
O senhor Wada levantou a cabeça.
— Posso lhe perguntar como chegou isto a suas mãos?
— Deu-me isso uma amiga.
— Entendo — disse, mas seu rosto expressava perplexidade, como se algo não encaixasse. — Esta mulher... — deixou o cigarro no cinzeiro e gesticulou sobre o papel como se estivesse lhe dizendo a sorte — sofre uma grande pena. Fala de sua filha atrasada, Ume. Escreve algumas costure muito poéticas, inclusive um haiku, que é um tipo de poema japonês.
— Já sei o que é um haiku, e também o haicai e o tanka.
— Para os ocidentais é difícil entender as referências...
— Conheço bastante bem a literatura japonesa.
— Mas não lê você em japonês, não?
— A verdade é que não. Leio traduções.
— Ah, claro, não é o mesmo. — Acendeu outro cigarro.
— Não, já sei.
O senhor Wada sorriu e se tampou a boca com a mão.
— Se por acaso lhe interessa para o futuro, dou classes de japonês. — Como não houve resposta, voltou sua atenção ao escrito. — Não posso lhe prometer uma tradução precisa do haiku que respeite o cômputo de sílabas e demais.
— Só necessito o sentido geral. O que diz?
— O porei por escrito.
— Tenho outros dois papéis. — Barbara tirou da bolsa os textos de 1962 e 1951.
O senhor Wada jogou uma olhada aos escritos. Ao ler o segundo papel, exclamou sorrindo:
— Califórnia!
— Em realidade, seria possível que traduzira primeiro este? — A fotografia do Michi e de Ume frente ao Golden Gate lhe intrigava.
— Como quero, mas me levará um tempo traduzir os três escritos. Quer voltar dentro de um par de horas?
— Preferiria ficar, se não lhe importar.
Enquanto o senhor Wada passava a tradução a máquina, Barbara folheava a revista Teme. De vez em quando jogava uma olhada à cinza do cigarro que o tradutor ia alternando entre a boca e a mão direita. Finalmente, o senhor Wada tirou um papel da máquina de escrever e o entregou.
"2 de janeiro de 1951. Este Ano Novo me encontro em Berkeley, Califórnia. A amável professora Ota, que me deu aula na Kodaira, dispô-lo tudo para que possa estudar um projeto que minha mãe sempre tinha desaprovado. Entretanto, estaria contente de saber que decidi procurar o rastro da avó Ko em São Francisco. Faz muitos anos, enviaram-na ali para casar-se."
— Vá! Está muito bem — exclamou Barbara. — Muitíssimo obrigado.
— Temo-me que não está tão bem, mas sempre tento fazê-lo o melhor possível. — Inclinou a cabeça com humildade e lhe indicou com um gesto que queria voltar para trabalho.
Barbara seguiu lendo.
"O ano passado, antes de morrer, meu pai me entregou uma carta escrita pela avó Ko na Califórnia, em 1940. A tinha enviado ao bisavô Takasu, e este a entregou a meu pai. Meu pai me disse que entregar a carta a minha mãe tinha sido o pior equívoco de sua vida. Pensou que a confortaria saber que Ko seguia com vida, mas a notícia a alterou muito, e possivelmente acelerou sua morte. Não podia acreditar que sua mãe estivesse viva e a tivesse esquecido tão absolutamente que nem sequer perguntasse por ela; insistia que Ko levava muito tempo no mundo dos espíritos, e em que a visitava freqüentemente de ali.
"Estou decidida a encontrar o rastro de Ko para tentar entendê-la. É possível que ainda viva, porque agora teria uns sessenta anos. Por isso punha em sua carta, teve dois filhos e uma filha, e se tinha ganhado reputação como autora de tanka e haiku. Ao falecer seu marido, antes de 1940, ficou sem meios de subsistência, e o bisavô Takasu lhe enviava dinheiro até que estalou a guerra com os Estados Unidos."
O bisavô Takasu devia ser o sogro de Ko. Barbara recordou que se havia oposto às cerimônias de exorcismo. Certamente, tinha disposto o matrimônio do Ko em São Francisco para lhe salvar a vida.
«Apesar de meus propósitos, adiantei pouco em minha busca. "Só tenho feito duas chamadas de telefone a pessoas que se apelidam Yokogawa em São Francisco."
Yokogawa repetiu-se Barbara. Ko Yokogawa era um nome melodioso, parecia o de uma poetisa. Seguiu lendo emocionada.
«As duas pessoas me disseram que não conheciam meu parente, mas uma delas me aconselhou que perguntasse na zona de São Francisco que chamam Pequena Osaka. Estou muito ocupada e não sei o que fazer. Tenho que ir a aula e trabalhar em minha tese, mas enquanto isso vejo sofrer Ume. Contratei a uma jovem japonesa para que a cuide, mas embora Tomoe seja simpática e carinhosa, não tem experiência com meninas como Ume. Quando chego, minha filha se agarra para mim como se o fora a vida nisso. "Eu lhe digo que não se preocupe que no verão iremos juntas a percorrer a formosa Califórnia, e que talvez encontrássemos à bisavó."
Barbara releu várias vezes o escrito. Recordava a fotografia: Michi acariciava a cabeça de Ume.
Quando o senhor Wada acabou, entregou-lhe os papéis dobrados e dentro de um envelope. Em troca, lhe deu um sobre com os bilhetes que tinham acordado, bem dobrados no interior.
Passeou pelas ruas sem saber aonde ir. Não queria ler ainda as traduções, e não tinha vontades de retornar a casa. Entrou em um restaurante que lhe recordou de Kamakura, onde tinha estado com Seiji. Fez seu pedido e voltou a ler o texto de Califórnia. Era como se Michi estivesse com ela. Cheia de gratidão no momento presente, olhou pela janela às pessoas que acontecia. Quando retornou à estação, era o horário de pico e o trem que a levava a Kokubunji ia lotado. Guardou com cuidado os papéis de 1951 e se dispôs a ler a tradução que tinha feito o senhor Wada do texto de 1960.
"Este ano ajudei a Kondo-san a preparar os bolos mochi." Quem seria Kondo-san? A tia do Seiji? Michi já vivia em Tóquio naquela época.
«Disse-me que não os tinha misturado bem, embora me doem os braços. Disse-lhe que se meus mochi não tinham ficado bem, podíamos comprar outros na loja, e se zangou. Como me sentia mal, fui a meu quarto e me tendi no futón. Pus-me a chorar, e Ume se tornou a meu lado e apoiou sua bochecha em minha cara. Em momentos assim, não me parece uma menina atrasada. "Entre nós se estabelece uma corrente de entendimento.»
O senhor Wada lhe tinha escrito um famoso haiku ao pé da página: "Uma branca nuvem de plumas / apanhada entre as árvores. / De repente, dois pássaros escapam e voam livres."
O trem se deteve e as comporta se abriram com um suspiro. As pessoas se esbarravam para entrar e para sair. Quando o trem ficou de novo em marcha, Barbara releu o poema e recordou a fotografia do Ume e do Michi na colônia de garças brancas. O poema devia referir-se a aquele momento.
— Boa tarde, senhorita.
Elevou o olhar e viu frente a ela a dois soldados americanos. Apresentaram-se como Jim, de Macon, Geórgia, e Coleman, de Ame, Iowa. Estavam destinados no Vietnam e lhes tinham concedido uns dias de licença. Barbara lhes explicou que ela era da Carolina do Norte.
— Estava seguro de que foi uma garota do Sul — disse Jim com um sorriso. — E arrumado a que em seu instituto foi à rainha da beleza. Que demônios faz aqui?
Explicou-lhe que era professora de inglês.
— Uf — se desculpou Jim, — será melhor que tome cuidado com o que digo!
— Como é o do Vietnam? — perguntou-lhes.
Os dois jovens ficaram em silêncio, balançando-se ao ritmo do trem. Coleman se voltou para a janela de em frente. Jim fixou o olhar na distância e tragou saliva. Barbara contemplou seu rosto bem barbeado e seus pequenos olhos azuis. Viu como tragava saliva antes de responder; sua noz do Adão se movia acima e abaixo.
— Não se pode descrever com palavras — disse por fim.
O trem chegava à estação do Kokubunji. Barbara começou a despedir-se.
— Sinto muito, tenho que me baixar aqui.
— Sabe no que estou pensando? — perguntou Jim, subitamente animado. — Em um andaime. Quando retorna aos Estados Unidos?
— Não sei; este verão suponho.
— Quando voltar a casa tome um sanduíche a minha saúde.
— É obvio. — Estreitou- a mão ao Coleman e logo ao Jim, quem lhe reteve a mão uns instantes. Barbara a notou úmida.
— Importaria-te...? — Jim tragou saliva e olhou a seu companheiro. — Dá um beijo para me desejar sorte?
Barbara olhou a seu redor, mas não viu no vagão a ninguém conhecido.
— De acordo — disse.
Jim a rodeou com o braço, apertou os lábios contra sua boca e se apartou. Barbara lhe estreitou a mão.
— Boa sorte aos dois.
O trem se deteve. Barbara baixou à plataforma e se voltou para dizer adeus. Resultava estranho beijar a alguém a quem não voltaria a ver. Os soldados a olhavam com a mão levantada. Seus rostos sorridentes e ansiosos se perderam na distância. Quando o estrépito do trem deixou de ouvir-se, ficou um estranho silêncio. Uma multidão anônima de cabelo negro a arrastou para a saída. Quando chegou o ônibus era quase de noite. Sentou-se na parte de atrás e abriu o envelope para ler o segundo papel traduzido pelo senhor Wada.
«Show 37, 1962
»É um Ano Novo cheio de melancolia, sem chamadas nem presentes. Vejo pela janela uma chuva persistente. Ume passeia acima e abaixo como um animal enjaulado. Tem um espinho cravado no coração. Pelas noites a ouço gritar em sonhos: "Não, não." Se a acordado começar a chorar, mas não diz nada. Sou uma mãe demônio por fazê-la sofrer desta maneira.
»Penso em minha mãe tão freqüentemente que é como se ela me chamasse. Em vida, foi uma mãe ausente, sempre pensando no passado, mas agora não posso esquecer como me ajudou quando conheceu meu problema. "Agora sinto que tenta me ajudar de novo.»
«E como a vez anterior, conclui com um haiku», tinha escrito o senhor Wada.
«As flores de ameixeira, / brancas como o osso, flutuam rio abaixo. / "A chuva crava agulhas de prata em meu coração.»
Barbara pregou o papel. O que queria dizer com mãe demônio? Ao melhor se referia a que havia trazido para o mundo a uma menina doente; mas não tinha sido culpa dela, mas sim da bomba atômica.
Ao chegar a Kodaira, desceu do ônibus com o coração encolhido e se dirigiu lentamente ao Sango-kan.
CAPÍTULO 18
À manhã seguinte tinham deslizado um telegrama sob a porta: "Por favor, vêem a Mashiko. Toma a linha Tohoku desde Ueno 13, e logo a linha de Mito até Mashiko. Busca o ryokan Shirakawa. O dono me avisará. Date pressa, querida senhorita Jefferson. Teu Okada Seiji."
Barbara leu a mensagem duas vezes: chamava-a querida senhorita Jefferson e lhe pedia que se desse pressa. Correu as cortinas da cozinha. Era um dia esplêndido, sem uma nuvem. Calculou que demoraria meia hora em preparar-se e que estaria no Mashiko de noite. Seiji lhe esclareceria o ocorrido com o papel de 1961.
Fez a bagagem para uma semana e baixou ao vestíbulo. Escreveu uma nota para a senhora Ueda em que lhe explicava que fazia uma viagem breve e logo passaria o resto das férias em Kioto, na casa do Junko. Qualquer mensagem ou correspondência lhe podia enviar ali. Depois de depositar a nota no compartimento da senhora Ueda, pensou em voltar para apartamento para agarrar os papéis do Michi. A Seiji interessaria saber que Michi tinha estado procurando a Ko na Califórnia, e poderia lhe pedir também que explicasse as circunstâncias dos textos de 1960 e 1962, embora talvez a chave estivesse no papel de 1961. Se Seiji lhe traduzia esses textos, ela se veria obrigada a pretender que não os conhecia. Logo se disse que Seiji não tinha falado dos papéis, que só queria vê-la a ela, e saiu correndo à rua.
Mashiko estava há duas horas ao noroeste de Tóquio. Barbara desceu na estação de Mito e subiu a um velho trem de vapor que a transportou ao passado: pelo guichê entravam voando as cinzas da locomotiva, e nos campos se divisavam os chapéus de palha de quão camponeses plantavam arroz. Imaginou que a estalagem seria discreta e antiquada: dois futón colocados um ao lado do outro, uma banheira de suave madeira de hinoki e uma autêntica mesa kotatsu com estufa de carvão onde poderiam se sentar juntos para esquentar as pernas.
As ruas do Mashiko estavam repletas de mesas e bancos onde se expor peças de cerâmica. Pelas portas abertas das casas se divisava aos oleiros em pleno trabalho de modelar e vidrar, e nas ladeiras dos arredores se dispunham fileiras de arredondados fornos de argila.
Tal como Barbara tinha imaginado, a estalagem se encontrava mais acima do povo, semi-oculta em um bosque. Encarregada-a, uma jovem com calças de estilo camponês, conduziu a Barbara a uma habitação ampla coberta com tatami e lhe serve chá e torta de feijões.
— Okada Seiji? — perguntou Barbara, e acrescentou em japonês: — Está-me esperando.
— Hai, hai. — A mulher assentiu e foi telefonar lhe.
Ao cabo de vinte minutos, a porta da habitação se abriu e deixou passo ao Seiji.
— Me alegro de que tenha vindo — disse, inclinando a cabeça. — Resulta-me difícil expressar o que sinto por ti.
Barbara respondeu com uma gargalhada.
— Eu também me alegro de verte.
Sentaram-se à mesa, um em frente de outro.
— Trouxe-te um presente.
Seiji tirou de seu furoshiki um pacotinho muito bem embrulhado. Barbara notou o aroma a madeira de sândalo. Era um leque de grosso papel de arroz onde tinham desenhado com tinta a China uma delicada paisagem de nuvens e montanhas.
— Minha visão do Mashiko — explicou Seiji. — Espero que você goste do lugar; é mais bonito inclusive que Hakone.
A Barbara soou a desculpa.
— Muito obrigado.
A empregada entrou com mais chá e uma taça para Seiji e partiu sem pronunciar palavra. Barbara serve o chá.
— O que faremos primeiro? Levará-me para dar uma volta por Mashiko?
— Por desgraça, esta tarde, tenho que retornar à oficina de Hamada sensei. Inaugura-se um forno de cerâmica.
— Mas... — Barbara deixou a taça sobre a mesa tão bruscamente que o chá se derramou. — Disse-me que era urgente que viesse.
— E o era. Tinha que verte.
— Aqui estou.
— Não soube até hoje que havia uma inauguração. Sinto muito. Está zangada por minha culpa.
Barbara não disse nada.
Seiji tirou do furoshiki um cilindro de papel e o desdobrou ante ela.
— Traduzi-te umas coisas.
— O papel de Michi! — Barbara o agarrou. — Estive muito preocupada!
— Com as pressas por retornar a Mashiko, esqueci-me de lhe dizer isso Sinto te haver preocupado.
— Me alegro de havê-lo recuperado.
Desdobrou o cilindro: junto ao escrito do Michi estava a tradução, em um papel pautado.
— Muito obrigado.
— Daijsobu — respondeu Seiji. — De nada.
Barbara leu a tradução completa. O novo ano tinha começado com muito trabalho, e fazia bom tempo. A colheita de ameixas tinha sido abundante. Michi tinha escrito um artigo sobre o capitão Perry e a tinham convidado a uma conferência em São Francisco, mas não tinha podido assistir. Não havia nada que explicasse por que Michi ia se sentir ao ano seguinte como uma mãe demônio. Barbara contemplou atentamente o escrito.
— Estava muito interessado neste texto. Quando o leste pela primeira vez, parecia fascinado, e não quis traduzi-lo.
— Não recordo — respondeu Seiji, carrancudo. — Claro que estes escritos me impressionaram e me surpreenderam, e ao princípio não sabia o que dizer.
— Já entendo. — Barbara voltou a enrolar a tradução dentro do escrito do Michi.
Seiji se ajoelhou junto a ela. Barbara ficou também de joelhos e cravou o olhar em seus olhos sérios e escuros. Seiji a beijou. Abraçaram-se com tanta força que seus corações pareciam pulsar ao uníssono.
— Voltarei para anoitecer — sussurrou Seiji.
Jantou sozinha, contemplando como caía à tarde, e já era totalmente de noite quando a criada entrou para abrir a cama. Despiu-se, deitou-se e tentou ler. As onze apagou a luz pensando que tinha sido uma parva ao ir à primeira chamada, ou pelo menos isso lhe haveria dito sua mãe.
Quase se tinha dormido quando ouviu a porta.
— Seiji?
Viu sua escura figura movendo-se sobre o tatami; viu-o tirá-la roupa e meter-se na cama com ela.
— Kirekitsu-san — sussurrou, e lhe pôs o braço por cima.
— E se me tivesse partido e outra pessoa ocupasse a habitação?
Seiji riu.
— Seria uma surpresa, uma triste surpresa. Todo o dia estive pensando em ti.
— E por que não vieste antes?
— Tive que esperar até que a empregada estivesse dormindo. Uma espera muito larga. — Sussurrou algo em japonês e começou a desatar o nó da yukata.
— O que há dito?
— Acredito que me enfeitiçaste — disse, e cobriu sua boca com um beijo.
Quando despertou, o quarto estava banhado pela suave luz matinal e a sombra de um pinheiro se recortava claramente contra a porta shoji. Seiji a beijou na nuca.
— Agora nos vestimos — disse em voz baixa. — Eu saio e entro em ryokan como se viesse de fora. Digo que devo tomar o café da manhã contigo.
— Mas não sabem que dormiste aqui?
— Talvez, mas não têm por que reconhecê-lo.
Deram-se as costas para vestir-se. Seiji saiu ao jardim e voltou a entrar pela porta principal. Barbara ouviu que a encarregada o saudava e o conduzia à habitação. Sentaram-se em silêncio, um pouco incômodos, enquanto lhes preparavam o café da manhã.
— Que tal esteve à inauguração do forno de cerâmica? — perguntou Barbara ao cabo de um momento.
— Muito bem. Havia peças muito bonitas. Hoje tenho que voltar para ajudar.
— Agora?
— Temo-me que sim.
— Não posso suportar que vá e volte uma e outra vez. Por que te partiu tão precipitadamente de Hakone?
— É meu defeito. Não o posso remediar.
— O que quer dizer?
— Temo-me que não sou capaz de amar a ninguém.
Barbara brincou com o leque. Tinha que fazer esforços para não chorar.
— Mas não entendo... Ontem disse que seu sentimento... E esta noite...
— É meu defeito — repetiu em voz baixa.
A empregada lhes serviu o café da manhã e se retirou.
Comeram em silêncio. Seiji não a olhava aos olhos. Estava-se afastando dela.
— Poderia ir contigo e te ajudar.
— Com a cerâmica?
— Sim, por que não?
— É um trabalho sujo. Manchar-te-á o vestido.
— Não me importa.
Foram à oficina caminhando por um atalho. Hamada, um homem grandote e sorridente que a Barbara pareceu um monge jovial, estava sentado frente a um torno, estudando uma peça que acabava de fazer. Seiji ficou nervoso ao fazer as apresentações, mas Hamada parecia encantado de conhecê-la e olhou a Barbara de cima abaixo.
— Temos nova ajudante — disse.
Seiji e Barbara se uniram a outros dois ajudantes da Hamada. Era um trabalho pesado: tinham que introduzir-se agachados nas estruturas de argila para extrair as peças já cozidas, de uma em uma. Terei que lavar cada taça e cada terrina e baixar a ladeira para levá-lo a oficina. Foram compassando seus movimentos, e ao final do dia Barbara se sentia cansada, mas satisfeita: ele a tinha deixado entrar em seu mundo. Hamada lhe deu de presente uma de suas terrinas, de um negro brilhante com toques de vermelho.
Aquela noite Seiji voltou a entrar no dormitório através da porta shoji. Levava um yukata e tinha o cabelo molhado, mas a pesar do banho ficavam restos de argila nos dedos. Quando acariciou a Barbara a cara, os peitos e os braços, ela notou a aspereza de suas mãos e se sentiu como se fora uma peça de argila e a estivessem modelando. Ficaram um momento quietos, abraçados. Seiji se levantou, acendeu um cigarro e se inclinou a lhe acariciar o cabelo.
— Quando diz que não pode amar a ninguém — disse Barbara, — refere-te a que tem medo de amar? Acredito que também me ocorre.
Seiji se voltou e esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Talvez possa me entender se lhe conto minha vida.
— Eu gostaria de entender.
Tombou-se junto a ela de barriga para cima, olhando ao teto. Barbara só distinguia seu perfil.
— Como sabe, nasci na cidade da Hiroshima.
— Sim. — Acariciou-lhe a mão.
— O dia da bomba, ocorreu algo estranho. — penteou-se o cabelo com os dedos e deixou ouvir uma risada nervosa. — Como me doía um molar, minha mãe me atou um lenço na cabeça de maneira que me tampasse as bochechas e me ordenou que ficasse em casa. Eu ia todos os dias ao centro da cidade com meu pai e com meu irmão Itsuko. Estávamos derrubando casas para fazer uma saída de emergência; esperávamos um bombardeio como o de Tóquio e quase todas as demais cidades. Hiroshima não tinha sofrido bombardeios. Meu pai acreditava que eu podia trabalhar, mas minha mãe disse que não. Quando meu pai e minha irmã partiram, pus cara triste, mas no fundo estava contente de não ter que trabalhar.
Levantou-se e acendeu outro cigarro. Logo se voltou a tombar e continuou.
— É normal que não queria trabalhar... — Barbara se tinha incorporado e se apoiava no cotovelo.
Pum! O ruído a sobressaltou. Seiji tinha golpeado o chão com a palma aberta.
— A casa tremia muito. Pensei que era um terremoto e saí à rua. A casa de Nakamoto, junto à nossa, estava meio ruída.
— Michi-san estava dentro?
— Não, ela vivia com sua família política, e felizmente seus pais estavam fora da cidade. Vi a enorme nuvem negra que se levantava sobre a cidade e pensei que teriam bombardeado a fábrica de munições, mas por que não se ouviu nada? O céu ficou completamente negro e havia um terrível silêncio. Baixei correndo à cidade. Tudo era fumaça e casas ruídas. A gente estava morta ou agonizando na rua. Alguns — fez uma pausa — tinham a pele pendurando, queimada... Não pareciam seres humanos. Um deles me chamou por meu nome, mas não fui capaz de lhe reconhecer. Estava totalmente queimado, tão negro como se cansado dentro de um hibachi.
Barbara tremia com o rosto apoiado no braço do Seiji. Imaginou correndo através da fumaça, tampando-a boca com a mão... E não era mais que um menino.
— Encontrou a sua família?
— Corri para o lugar onde estavam fazendo a saída de emergência, mas tudo tinha desaparecido. Os edifícios estavam ardendo ou em ruínas. Pensei que meu pai e Itsuko podiam ter deslocado para o rio. Percorri as ruas, procurei no rio... Finalmente encontrei a minha mãe no hospital; sofria graves queimaduras e se ficou cega porque lhe tinham parecido cristais nos olhos. A pobre chorava porque não podia me ajudar a procurar a meu pai e ao Itsuko. Estive a ponto de me jogar na pira funerária que tinham feito frente ao hospital. Se não me tivesse queixado de dor de dente, minha mãe não estaria cega, e eu teria morrido em lugar de minha irmã. Mas tinha que cuidar de minha mãe e encontrar os restos de meu pai e do Itsuko. Durante semanas vaguei pela cidade em ruínas sem encontrar nenhum rastro deles; demorei a compreender que tinham sido reduzidos a cinzas em um instante.
Barbara se sentia comovida. Tendido a seu lado, Seiji apagou o cigarro antes de continuar.
— Itsuko-san era a que tinha que haver ficado em casa, e não seu irmão maior. — cobriu-se a cara com as mãos. — Ela morreu em meu lugar. Meu pai está envergonhado de mim. — levantou-se, ficou o yukata e começou a percorrer inquieto a habitação.
"Pensei que encontraria algum resto deles; estava obcecado encontrando a camisa de Itsuko ou o relógio de meu pai. Muita gente procurava entre as ruínas, órfãos, ou ladrões que vinham de outros povos... algum deles levaram o relógio de meu pai. Estive perguntando por toda parte, inclusive no mercado negro. A todo mundo perguntava se tinha visto um bonito relógio de ouro com o mar interior do Japão gravado na tampa.
— E o encontrou?
— Não. — Voltou para futón, se deitou junto a ela e acendeu outro cigarro. — Um dia conheci um colecionador de sombras.
— A que te refere?
— Igual a meu pai e minha irmã, muitas pessoas se volatilizaram em um instante, e em ocasiões ficava sua sombra na rua ou em uma parede. O colecionador de sombras recortava esses estranhos retratos e os levava a casa. Comecei a lhe ajudar porque sabia que assim poderia encontrar pelo menos a sombra de minha irmã. Imaginava sua silhueta com a cabeça levantada para ver o pára-quedas branco; certamente o olhou com atenção para me explicar isso mais tarde — disse com voz entrecortada.
Barbara se aproximou e lhe aconteceu o braço pelos ombros. Juntos se balançaram adiante e atrás.
Seiji se apartou.
— É uma história muito larga. Estará cansada.
— Não, absolutamente — disse Barbara. Acariciou-lhe a bochecha e lhe beijou a mão. — E como seguiu adiante?
— Minha mãe e eu mudamos para a casa de minha tia em Fukuyama, um povo junto ao mar interior do Japão, ao norte de Hiroshima. Ali o ar era mais puro.
»Eu seguia sonhando todas as noites com a Hiroshima. Não tinha fome, embora a comida de Fukuyama fosse muito melhor. Tinha febre e me enchi de furúnculos. O médico disse que tinha adoecido por causa da bomba, e que me estavam desfazendo os ossos; provavelmente não chegaria aos vinte anos. Para me curar era indispensável o repouso e as sessões de quimioterapia, assim como uma bebida que chamamos "suco milagroso verde", e que se faz com couve frisado. Minha tia a plantou em seu jardim para que sempre tivesse. Passei-me cinco anos como um inválido.
— Cinco anos, até os dezoito. — Toda uma adolescência na cama. — Mas logo te pôs bem.
— O médico se equivocou, eu não estava tão doente. Nakamoto sensei convenceu a minha tia para que me levasse a hospital de Cruz Vermelha na Hiroshima. O especialista me disseram que não me estavam desfazendo os ossos e que os furúnculos eram uma enfermidade passageira. Não ia morrer-me.
— Que bem! Você e sua família e Nakamoto sensei, todos estariam contentes.
Seiji meneou a cabeça.
— Sentia-me envergonhado. Depois de cinco anos em cama, estava envergonhado e furioso; odiava meu corpo fraco e pálido. Era um jovem fraco — disse, levantando a voz — e estava viva graças à dor de dente. Empenhei-me em voltar andando desde a Hiroshima, uma distância de quarenta quilômetros, embora não expliquei a razão a minha mãe e a minha tia. Durante meses, fiz o caminho andando. Ao princípio tinha que me sentar cada hora a descansar, porque as pernas não me sustentavam, mas fui fortalecendo. Tinha os pés tão ulcerados que ao me tirar os sapatos me arrancava à pele. Andei diariamente até me pôr forte. Queria sossegar minha fúria, mas não o consegui.
Voltaram a meter-se na cama.
— Sou egoísta — seguiu Seiji. — Só pensava em quão furioso estava. Não tinha estudos nem ofício algum. Tinha o corpo de um homem, mas não era um homem. Tivesse desejado lutar e morrer na guerra. Um dia discuti com minha tia e me parti da Fukuyama. Comecei a caminhar para o norte; negava-me a usar meios de transporte. Queria encontrar trabalho em Tóquio para não depender de minha tia nem de minha mãe nem da caridade dos vizinhos.
— Não acredito que fosse egoísta — disse Barbara, — a não ser muito forte.
Seiji não deu amostras de havê-la ouvido.
— Pelo caminho tentei trabalhar para me manter, mas naqueles tempos, pouco depois da guerra, havia poucas oportunidades. Um dia, em um passeio ao pé de Fuji-san, encontrei a um oleiro em pleno trabalho. Deixou-me provar com o torno — gesticulou como se sustentara uma terrina — e me disse que tinha boas mãos. Ele tinha estudado aqui no Mashiko e me aconselhou que fizesse o mesmo. Assim segui meu caminho para o norte, passei Tóquio de comprimento e me vim aqui.
— Cheguei nesta época, na primavera, e o povo era tão fresco e tranqüilo como o vê agora. Aqui parecia que a guerra não tinha tido lugar. Passear pelas ruas mastreadas do Mashiko me fez chorar de alegria. Converti-me em aprendiz da Hamada sensei e fiquei três anos com ele.
Olhou-a fixamente.
— Agora já conhece minha vida. Surpreende-me ter falado tanto. Isto não o contei a ninguém de fora da Hiroshima. Minhas cicatrizes não se vêem. Alguns hibakusha só têm cicatrizes por dentro.
— Sinto-me muito honrada. — Fez uma pausa. — Todos os hibakusha acreditam que é impossível amar?
Seiji demorou em responder.
— Ao melhor não pode entendê-lo.
Barbara respirou fundo.
— Mas o estou tentando...
Seiji lhe agarrou a mão.
— Hai. Tenta-o com todas suas forças, já sei.
Ao dia seguinte, pela tarde, ajudou Seiji a empacotar figuras haniwa para seu envio. Estavam em uma oficina pequena, sem janela, com o chão de terra e a porta aberta à rua. Trabalhavam tranqüilos e em silêncio; alinhavam caixas de cartão com papel enrugado e colocavam dentro as figuras: soldados medievais e cavalos. Barbara recordava ter visto na oficina do Seiji uma figura de uma mulher com um bebê às costas. Tinha a boca aberta, segundo ele porque estava cantando, embora lhe parecesse, mas bem que chorava. Não podia se tirar da cabeça a imagem do Michi protegendo o ventre com as mãos para que a bomba não afetasse ao Ume, ou do Seiji correndo através da espessa fumaça.
Começaram a cair grandes gotas que deixavam uma marca no caminho de terra frente à oficina. Seiji preparou chá e se sentaram a tomá-lo olhando a chuva. Uma família de pássaros alvoroçava nos matagais de em frente.
— Eu também queria entender sua vida — disse Seiji.
— Em comparação com o que viveste você, minha vida foi muito normal.
— Desde não ser pela bomba atômica, minha vida teria sido muito normal — disse. — Por favor, me fale de sua família.
Barbara lhe falou de sua infância em Raleigh, da casa em Stone Street, do jardim japonês de sua mãe.
— Vim ao Japão em busca de minha mãe, embora ao princípio não fosse consciente disso. E em seu lugar encontrei Michi-san.
— Entendo. — Seiji a olhava muito sério.
Contemplaram a chuva em silêncio. Barbara pensou no Michi em Califórnia. Depois de Hiroshima, ou melhor, a busca de Ko tinha sido um entretenimento para ela. Oxalá houvesse trazido o seguinte texto de Califórnia para traduzir. Era estranho que Seiji tivesse elegido o de 1961; em Hakone tinham estado traduzindo os textos de Chie... Podia ter continuado.
— Por certo — disse. — Não trouxe mais papéis.
— Parece-me que não nos aborrecemos. — Seiji lhe agarrou a mão.
Barbara contemplou a delicada linha da mandíbula do Seiji e pensou na infância que lhe tinham roubado. Quem lhe houvesse dito que aquela manhã em que ficou em casa com dor de dente seu mundo ia desaparecer em um instante? Que vulneráveis somos! Não só às bombas, mas também a todo tipo de câmbio e calamidades. E que triste era viver com medo ao amor. Ao pensá-lo lhe encheram os olhos de lágrimas.
De noite, quando estavam em cama, abraçados, perguntou ao Seiji por que lhe resultava difícil expressar o que sentia por ela.
— Não posso explicá-lo.
— Nem sequer em japonês?
— Nem sequer em japonês.
— Eu também sinto algo inexprimível por ti — disse ela, — muito inexprimível.
Seiji riu e lhe deu um beijo.
— Terei que ir ao Kioto — disse Barbara.
— Não pode ficar um pouco mais?
— Voltarei para Tóquio dentro de um par de semanas. Dar-me-á mais lições de cerâmica?
— Claro. Agora é meu aprendiz, desho?
— Espero que não seja tão mandão como até agora — disse em tom de brincadeira, — que inclusive me diz que textos terá que traduzir.
— Kirekitsu-san decidirá. — Seiji a atraiu para si. — Mas acredito que teríamos que continuar de onde estávamos com as histórias de faz tempo.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO 19
Jornal do Chie, 1934
Embora tenha quase doze anos, Michi segue sendo uma menina teimosa. Tem em suas veias o sangue de uma raposa selvagem, igual a sua avó Ko.
Este Ano Novo contei ao Michi-chan a história de meu surpreendente encontro com Ko, faz muitos anos. De pequena, no verão eu adorava me atirar ao rio da ponte, e um dia me golpeei a cabeça com uma rocha e fiquei inconsciente. Uma senhora muito bonita, uma gueixa, tirou-me da água e me levou a casa. Rumo, a criada, disse-me que minha mãe Ko era uma mulher raposa e que tinha adotado a aparência de gueixa para me ajudar; quando se deu meia volta, disse convencida, aparecia à cauda de raposa por debaixo do quimono.
Em abril, quando se reataram as classes depois das férias, Barbara ia todos os fins de semana a casa do Seiji. No sábado ou no domingo depois de comer, e às vezes os dois dias, ia andando ao Takanodai através do bosque. As primeiras semanas, ele a esperava na porta e entravam juntos na casa de chá. Às vezes Seiji lhe ensinava a nova peça de cerâmica que estava fazendo, e lhe levava amostras da caligrafia que aprendia com o Junko. Já sabia fazer o fogo, a água, a árvore, e praticava uma e outra vez cada caráter com o pincel até que podia desenhá-lo em um papel grande de arroz. Para escrever "bakeru" — posse — só se necessitavam quatro traços, mas havia pictogramas difíceis que requeriam ângulos e grossuras muito exatas. Junko lhe explicou que a caligrafia como arte era muito pessoal; era importante pôr a alma em cada risco. Barbara pensou no Seiji, em como respirava junto a sua orelha enquanto ela praticava o pictograma de bakeru. Junko tinha reunido os pictogramas e os tinha pegado em um bonito painel. Barbara o deu de presente ao Seiji com um gesto desajeitado.
— Não sei se o pode ler, mas significa bakeru... Porque também me há possuído.
— É precioso — disse ele, um pouco afligido, e pendurou o painel no tokonoma da casa de chá.
Jornal do Chie, 1935
Um dia disse a Fumio que tínhamos que fazer as compras de Ano Novo e fui com Michi ao bairro das gueixas em Kamiya-cho. Fomos casa para casa perguntando se conheciam Ko, uma bonita mulher de Izumo que pensávamos que se converteu em gueixa. Em cada casa onde nos parávamos, descrevia-a e lhes contava que anos atrás tinha vindo a minha casa uma gueixa que podia ser uma mulher raposa. Algumas riam, mas acredito que não os fazia muita graça. Uma gueixa mãe nos convidou a passar e a tomar algo porque parecíamos cansadas. Sentamo-nos frente à porta aberta, contemplando o rio. Eu não podia apartar o olhar da gueixa, uma mulher de uma beleza antiquada, de nariz aristocrático e frente limpa. Perguntei-lhe se era do Izumo ou de outra província longínqua e me respondeu que todas as gueixas da Hiroshima vinham de longe. Quando vi que estava ensinando Michi a tocar no shamisen uma melodia triste e melancólica, parti-me sem dizer nada. Michi demorou horas em voltar para casa. Chorava assustada porque se perdeu. Disse-lhe que devia recorrer a seu instinto de raposa para encontrar o caminho. Já tinha treze anos e era hora de que começasse a dirigir-se sozinha.
Em cada visita, Seiji preparava o chá e Barbara tirava da bolsa um papel para traduzir. Nos meses de abril e maio traduziram os textos do Chie, logo discutiram se continuavam ou voltavam para os do Michi. Barbara estava impaciente por ler o seguinte escrito sobre Califórnia, mas finalmente acessou a seguir a ordem cronológica. Logo se alegrou de ter cedido, porque começava a entender a história do Michi e a razão pela que lhe tinha deixado os papéis em herança. As duas tinham tido a uma mulher raposa como mãe; eram filhas da ausência.
Barbara e Seiji passavam as largas tardes traduzindo tranqüilamente e bebendo chá. Quando começava a anoitecer, Seiji tirava o futón do armário.
— E se aparecerem sua mãe ou sua tia? — perguntou-lhe Barbara um dia em que estavam abraçados na cama depois de fazer o amor.
— Minha tia só reparte classes de cerimônia do chá pelas manhãs, e ultimamente não se encontra bem. Não se preocupe — lhe sussurrou junto à orelha, — aqui ninguém nos incomodará.
Uma tarde estavam traduzindo quando de repente se olharam e começaram a despir-se. Sentada escarranchado sobre ele, Barbara fechou os olhos e beijou suas pálpebras, seus lábios, suas axilas, que cheiravam a almíscar. Seiji murmurava contra sua boca.
— Kirekitsu-san.
De repente ouviram uma voz fora.
— Shigeko-san!
— Não lhe pares — disse Seiji. — É minha mãe. Não entrará. — meteu-se na boca uma mecha do cabelo da Barbara, que lhe caía sobre o peito.
Ouviram um som: scrich, scrich.
— O que é isso? — perguntou Barbara.
— Está rastelando o cascalho. — Apertou-a contra seu peito. — Não passa nada, não passa nada.
Aquela noite lhe ensinou como acessar à casa de chá por uma porta traseira, seguindo um caminho coberto de erva. Após a Barbara tomava sempre esse caminho, tanto ao chegar como ao partir, e no fim de abril a erva já estava aplanada, como se uma raposa tivesse estado acontecendo freqüentemente por ali.
Jornal do Chie, 1936
O bebê chegará dentro de dois meses. Roku trouxe um pequeno santuário de Inari para meu quarto e me ensinou a acariciar a barriga da raposa e logo minha própria barriga. Fumio acredita que será um menino, mas eu estou segura de que será outra menina. Roku diz que seguro que acerto. Pensa que sou filha de uma mulher raposa e que por isso posso adivinhar o futuro.
Quando não estava na casa de chá, Barbara pensava continuamente no Seiji. A suave brisa da primavera em sua bochecha se convertia na carícia do Seiji; tudo fazia referência a ele. Recordava perfeitamente como tinham feito o amor, e saboreava cada detalhe como se tratasse de um bocado delicioso. E assim começou a imaginar uma vida a seu lado, parte do ano no Mashiko e parte nos Estados Unidos. Ele seria um reconhecido professor ceramista, e os dois repartiriam classes na mesma universidade.
Em classe de conversação deixava que as alunas escolhessem os temas. Um dos favoritos era o das bodas consertadas, até que Washington começou a bombardear objetivos comunistas na Camboja. Todas as estudantes se opunham aos bombardeios e à intervenção de Washington no que uma delas qualificou de «disputa familiar entre vietnamitas». Barbara não participava do debate e assistia dia a dia às discussões como se as visse através de um cristal. Enquanto as estudantes faziam suas redações no sala de aula, ela olhava pela janela e pensava em Seiji. Conhecia de cor cada parte de seu corpo, o contorno de suas costas e suas nádegas, seu peito, o suave pêlo de seu ventre. Cada vez faziam o amor com mais paixão e lhe parecia que saltavam faíscas a seu redor, igual a ocorria com o Hiroshi e Ko.
Jornal do Chie, 1937
A pequena Haru tem já oito meses. Quando a estreito contra meu peito me lembro de mãe Ko. Um dia fui com o Haru ao distrito das gueixas para que pudesse conhecer a avó, mas não encontrei a casa. Seguro que desapareceu como revestem fazer as mulheres raposa. Michi não quis vir. Ela não acredita que a avó fora uma mulher raposa. Eu lhe hei dito que é uma menina boba e que um dia estará contente de ter conhecido à avó.
Fumio está muito deprimido. O seu amigo, o pintor Murayama, mataram-no a pedradas em um descampado porque se dizia que era contrário à guerra. Fumio se nega a entregar todos os objetos de metal para contribuir à guerra e enterrou sua estatueta de bronze do deus Ebisu detrás da casa de chá. Ko me apareceu em sonhos e me advertiu que tome cuidado com o que digo.
As ausências da Barbara os fins de semana despertaram a curiosidade dos habitantes do Sango-kan. À senhorita Yamaguchi, que foi a seu apartamento para lhe perguntar sobre expressões coloquiais em inglês, respondeu-lhe que "tinha que sair apitando", e a senhora Ueda lhe dirigia olhadas cheias de intenção quando a encontrava no vestíbulo.
Um dia, a princípios de maio, quando as árvores tinham todas suas folhas e o bosque estava fresco e sombrio, encontrou-se Rie no caminho para Takanodai. Ao princípio pensou que era um menino, porque levava calças e tinha o cabelo curto, mas quando se apartou para lhe deixar passar, ouviu que a chamavam.
— Jefferson sensei.
— Rie!
A garota tinha plantado suas fortes pernas a ambos os lados da bicicleta. Tinha a cara mais tinta que de costume e o cabelo junto à cara molhado de suor.
— Vai caminho de Takanodai ou de Tachikawa? — perguntou.
— Caminho para fazer um pouco de exercício. Há um restaurante no Takanodai onde eu gosto de comer de vez em quando.
— Conheço-o. O proprietário é Okada, o ceramista.
— Conhece-o? — tremia-lhe a voz.
— Sim. — Rie sorriu. — Sayonara, sensei, que fique bem. — Subiu de um salto à bicicleta e se foi.
Voltaram-se a encontrar um par de vezes mais no mesmo caminho. Rie a saudava com um sorriso.
— Vai comer ao restaurante da Okada, sensei?
Um dia Barbara sentiu curiosidade.
— E você aonde vai? Sempre nos encontramos à mesma hora.
— Tenho trabalho que fazer na Tachikawa.
— Tem um trabalho? — Não sabia de outras estudantes que trabalhassem. Sempre estavam no campus, na biblioteca ou na residência, salvo quando foram em grupo à cidade há passar o dia. — O que faz?
— É um segredo, minha vida oculta, poderia dizer-se. Estive pensando sobre o pecado original, sensei, e decidi que eu gostaria de fazer meu tese sobre este tema. Ajudar-me-á?
— Sim. — Barbara tivesse querido fazer mais perguntas, mas a jovem já se partiu.
Jornal do Chie, 1938
Embora ele não o diga, ao Fumio entristece não ter um filho varão. Roku assegura que dentro de pouco voltarei a ficar grávida. Confessou-me que esteve pondo um pouco de saliva de raposa todas as tardes no sake de Fumio. Isto fará que logo chegue um bebê varão, são e forte.
Um dia Barbara recebeu a visita da senhora Ota.
— Espero não incomodá-la, querida — disse. — Faz muito que não temos um de nossos bate-papos.
Quando se dirigiam ao salão, a senhorita Ota jogou uma olhada ao quarto de três esteiras.
— Meu deus! — voltou-se para a Barbara. — Tem você raposas. É realmente surpreendente. Em meu lar, no povo de Yonago, há muita superstição, inclusive hoje em dia, mas não sabia que podiam encontrar-se estes objetos em Tóquio. Como é que lhe interessam as crenças japonesas sobre raposas?
Barbara lhe explicou que o desenho lhe vinha de sua mãe, a quem a tinha agradado.
— Acredito que a mulher raposa a trouxe para você ao Japão. — A senhorita Ota acariciou as raposas sobre o tansu. — Parecem bastante antigos. Como já saberá, chamamo-los raposas do desejo ou da prece. Também os deu sua mãe?
— Não, deu-me isso uma amiga.
— De verdade?
Olhou-a com curiosidade, aguardando uma explicação, mas Barbara não acrescentou nada mais.
Jornal de Chie, 1939
Shoichi já nasceu. Envergonha-me reconhecer que o nascimento de um menino não me deu a alegria que esperava. Estive sumida na tristeza. Um dia perguntei a Fumio se considerava que a vida do menino valia mais que as de Michi ou Haru, e me olhou assombrado. Confessei-lhe que lhe tinha oculto o autêntico ano de meu nascimento — Cavalo de Fogo — e que podia ter sido "visitante de um dia"; de não ser pelo Roku e por meu avô, me teriam matado ao nascer. Ao princípio, Fumio pareceu assustado, mas como é um homem de idéias modernas e assim gosta de considerar-se, recuperou-se. Disse-lhe também que podia ser filha de uma mulher raposa e que talvez não tivesse o aspecto de uma menina normal quando nasci. Expliquei-lhe a história de minha família. Ele ficou um momento com o olhar perdido no jardim, logo soltou uma gargalhada e se aplaudiu o joelho. Mais tarde disse ao Roku que estava inquieto por mim, porque as preocupações do menino e da guerra me tinham afetado muito.
Um sábado pela manhã bateram na porta da Barbara. Era Junko, despenteada, com os olhos inchados e avermelhados.
— Tenho um problema, sensei. Poderia me aconselhar?
— O que te ocorre? Passa, por favor. — Olhou o relógio; queria chegar cedo à casa de Seiji. Tinha uma surpresa para ele: ficaria com o quimono que acabava de comprar em Takashimaya.
— Certamente sabe que tenho um amigo especial.
Barbara assentiu com a cabeça. Junko tinha falado dele em classe, era um estudante da Universidade Keio.
— Pensávamos nos casar o ano que vem, mas meus pais me procuraram um marido. Para uma garota japonesa é muito difícil desobedecer a seus pais, mas eu não posso viver assim. — Olhou a Barbara com os olhos cheios de lágrimas. — O que devo fazer Jefferson sensei?
Barbara a agarrou das mãos.
— Faz o que lhe ditem seus sentimentos. Como vais renunciar à pessoa que quer?
— Não posso renunciar a ele — disse chorando. — Sumimasen. Sinto-o muito.
— Por favor, Junko, lhe peça conselho a alguém mais. Eu não sei se fizer bem; não me posso imaginar o que seria...
— Nakamoto sensei haveria dito o mesmo. Ela tinha a mesma natureza apaixonada que você — disse Junko, e baixou correndo as escadas.
Foi ao Takanodai em táxi. Não encontrou ao Seiji na casa de chá. Apressou-se, despiu-se e pôs o quimono de seda, um tecido suave verde pálido com delicados motivos de ramos de ameixeira em flor, pinheiro e bambu. Ouviu os passos ligeiros do Seiji no caminho de cascalho e logo na plataforma.
— Está muito bonita — sussurrou. — O quimono te sinta bem.
— Pareço japonesa? — perguntou Barbara sorridente.
Seiji soltou uma gargalhada.
— Não, absolutamente — disse, e se dispôs a preparar o chá.
Barbara ficou olhando as mangas de seu quimono e se sentiu absurdamente triste. Tomaram o chá em um tigela. Seiji desenrolou o papel correspondente a 1940 e começou a lê-lo com expressão de assombro.
— O que ocorre? — perguntou Barbara.
— Surpreender-te-á o que diz Chie: "Este ano ocorreu algo estranho. Uma mulher que diz ser minha mãe tem escrito uma carta a Fumio lhe pedindo dinheiro. Não fala de mim, só de uma filha que tem fome. Diz que vive no estado da Califórnia. Seu marido morreu e ela tem que sair adiante sozinha."
Barbara fingiu surpresa.
— «Fumio quer ajudá-la, mas eu digo que não. É uma armadilha de uma raposa malvada que detesta a minha mãe raposa. Minha verdadeira mãe deve ter morrido de outra maneira viria a me buscar. Expliquei ao Fumio que uma raposa má é capaz de muitas coisas. A semana passada houve um acidente em Iwakuni causado por uma raposa que tomou a aparência de trem. "Mas Fumio não me entende e está zangado porque tenho lido sua carta.»
— De modo que Ko estava em Califórnia. Muito interessante — comentou Barbara. Sua própria voz lhe soou falsa. Alguma vez tinha sido hábil guardando um segredo. — Como crie que chegou até ali?
— Aqui não o põe.
— Talvez por isso fosse Michi a Califórnia.
— Ela te disse isso?
— Não te lembra do funeral? A senhorita Ota comentou que Michi tinha estudado em Califórnia. Ao melhor seu verdadeiro motivo era procurar o Ko.
— Foi ali a estudar.
Disse-o com tanta segurança que Barbara esteve a ponto de lhe replicar, mas se mordeu a língua e aguardou em silêncio a que desenrolasse o seguinte texto.
— Chie escreve que isto é a linguagem de raposa que falava sua mãe Ko. Olhe... — Barbara se inclinou sobre o papel. — O resto do escrito é uma mescla de uma espécie de hiragana e traços sem nenhum sentido — disse, assinalando os caracteres.
— Pobre Chie. Deveu voltar-se louca, não? Entre sua obsessão pelas raposas e o abandono de sua mãe...
Desenrolaram o papel de 1942.
— O mesmo? — perguntou Barbara.
— Sim, o mesmo.
— Outras pessoas perdem a sua mãe e não enlouquecem — disse Barbara. — Foi à idéia de que podia seguir viva; e as histórias sobre raposas que lhe contou Roku.
— Acredito que se sentia envergonhada e culpado — disse Seiji. — Sua mãe foi desterrada quando ela nasceu.
Obscurecia, e se tinha levantado uma brisa que agitava a erva e golpeava o ramo de um pinheiro contra a parede da casa. Seiji serve vinho no tigela de chá.
— Depois começaremos com os escritos de Michi-san — disse Barbara.
— Hai.
Barbara bebeu um sorvo de vinho e logo aconteceu com Seiji o tigela.
— Uma de meus estudantes me há dito que lhe recordo a Michi-san por minha natureza apaixonada.
— Como? — Seiji parecia assustado.
— Referia-se a minhas opiniões — acrescentou com um sorriso.
— Nakamoto tinha opiniões firmes.
— Sentia-se muito unido a ela, não?
Seiji demorou tanto em responder que parecia que não a tinha ouvido.
— Desde não ser por ela, ao melhor não estaria vivo — disse finalmente.
— Fez que lhe levassem a médico adequado...
— E antes disso. Quando eu estava doente na Fukuyama vinha freqüentemente a me visitar. Lembrança o dia em que me trouxe os livros da escola. Era o primeiro trimestre depois da guerra e os norte-americanos tinham imposto que nos livros de texto não podiam mencioná-las vitórias militares do Japão, nem o caráter divino do imperador. Era necessário para a nova democracia, mas para muitos japoneses isto resultou mais traumático que a derrota na guerra. Imagina? De um colchão — moveu a mão no ar como se dirigisse um pincel — apagaram toda nossa história.
Deixou cair à mão sobre a mesa e Barbara a agarrou.
— Acredito que me imagino... Quase. — olharam-se um momento em silêncio. — Querido Seiji.
Ele se levantou e se sentou a seu lado. Colocou a mão sob o quimono e lhe tocou o peito nu.
— Umm.
Barbara se desatou o cinturão e se abriu o quimono. Seiji a beijou; os dois tinham sabor de vinho. Barbara molhou os dedos no tigela e se pintou de vinho os mamilos. Ele se agachou a lambê-los e a chupá-los, agarrando meigamente os peitos com as mãos como se fossem terrinas. Quando se deitaram juntos, sussurrou-lhe:
— Às vezes me pergunto qual de minhas vidas é um sonho, a que vivo contigo ou minha vida anterior.
CAPÍTULO 20
O jardim de Michi, na parte posterior do Sango-kan, converteu-se durante a primavera em uma emaranhada selva de novelo e galhos. Um dia, quando tirava o lixo, Barbara observou que em um rincão, detrás das pedras, cresciam jacintos brancos e azuis que despediam um intenso aroma. Em outro rincão havia um grupo de margaridas e um espesso arbusto em flor. Uma fileira curva de pedras dividia o jardim em dois. Ao outro lado das pedras, entre as más ervas, aparecia uma fila de caules altos e emplumados que podiam ser cenouras, assim como outras novelo verdes que não reconheceu. Ajoelhou-se no chão e tirou uma cenoura larga e estreita como seu dedo mindinho. Colocou-a sobre as pedras e começou a limpar o jardim de galhos. Estava absorta em sua tarefa de tentar arrancar um arbusto quando viu a senhorita Ota a seu lado.
— Alegra-me ver que se ocupa do jardim de Nakamoto-san. Ela estaria muito contente, e você parece estar muito a gosto.
— Estou a gosto em muitos aspectos. — Barbara ficou de pé. — Eu gostaria de ficar na Kodaira. — Disse-o com tanta emoção que quase se pôs a chorar.
— Fala sério? — A senhorita Ota ficou pensativa. — Talvez possa interceder por você ante a senhorita Fujizawa.
— Fá-lo-ia? OH, estaria muito agradecida.
— Aconselho-lhe que fale com a senhora Nakano. Enquanto isso, eu atuarei por minha conta.
Uns dias mais tarde, a senhorita Fujizawa a chamou a seu escritório. Barbara levou consigo um bonito ramo de jacintos e margaridas em um vaso e o depositou sobre a mesa da presidenta.
— É do jardim do Nakamoto sensei — disse, com uma inclinação de cabeça.
A senhorita Fujizawa se limitou a jogar uma olhada ao ramo.
— Muito bonito. Obrigado, senhorita Jefferson. Tenho entendido que agora se encontra mais a gosto aqui. E casualmente nossa candidata estrangeira para no próximo ano nos falhou. Gostaria de ficar outro curso conosco?
— Sinto-me muito honrada e encantada. Eu gosto de muito o Japão, eu gosto desta universidade, seus estudantes... Todo mundo foi muito generoso comigo. Mil obrigado, senhorita Fujizawa.
— Não há de que. — A senhorita Fujizawa se permitiu um sorriso. — Seu entusiasmo juvenil resulta contagioso. Como vão seus estudos de japonês?
— encontrei um estupendo professor, o senhor Wada, de Hitachi Koganei. Irei à aula várias vezes por semana — mentiu Barbara.
Ainda não tinha consertado uma entrevista com ele. Telefonou ao senhor Wada desde seu escritório e consertou uma entrevista para a primeira lição. Algum dia lhe falaria com o Seiji em seu próprio idioma, mas de momento preferia mantê-lo em segredo. Já era tarde quando saía da biblioteca e se topou com o senhor Doi.
— minha senhora, aonde se dirige você? Talvez se encaminhe a um lugar do Takanodai?
— O que quer dizer?
— foi você vista com certo cavalheiro.
A surpresa quase a deixou muda.
— E o que tem que mau nisso? — conseguiu articular.
— O digo por seu próprio bem. Como professora da Universidade Kodaira, teria que ser discreta. — O senhor Doi se despediu com uma inclinação de cabeça.
— E sou discreta! — gritou quando o senhor Doi se afastava. Dois estudantes que passavam junto a ela agacharam à cabeça, assustadas.
Pequena desfaçatez. Seguro que ao senhor Doi não lhe ocorreria lhe fazer semelhante advertência a um professor. Barbara não estava disposta a deixar que a chateassem; Seiji procuraria outro lugar para estar juntos. Mais tarde, entretanto, enquanto preparava o jantar, começou a preocupar-se. O senhor Doi podia falar com outros membros da faculdade, inclusive com a senhorita Fujizawa, e isso poderia fazê-la trocar de opinião quanto a prorrogar o contrato.
Ao dia seguinte se apresentou no despacho da presidenta para perguntar que curso lhe tocaria o próximo semestre. Antes de partir, comentou que seu japonês tinha melhorado muito, tanto que estava ajudando a uma pessoa a traduzir para o inglês um artigo sobre haniwa. Assim, a senhorita Fujizawa não sentiria saudades se ouvia algo sobre suas visitas ao Takanodai.
Enquanto dava a aula de literatura norte-americana, não deixava de olhar ao Rie. Devia falar com ela para lhe pedir discrição ou não serviria mais que para complicar as coisas? Rie lhe devolvia um olhar impressionada.
Aquela tarde foi aos banhos públicos com Junko, Sumi e Hiroko, e quando estavam inundadas na água quente aproveitou para comentar quão ocupada estava com uma tradução.
— Vá! Pensávamos que tinha você um romance! — exclamou Junko.
— Junko sempre está pensando em romances — disse Hiroko.
Mais tarde, a senhora Ueda se apresentou em seu apartamento.
— Faz tempo que quero lhe comentar uma coisa. Posso passar?
Barbara notou um nó no estômago.
— Sim, claro. Gosta de uma taça de chá?
— Não, obrigado.
Sentaram-se frente à mesa do salão.
— O senhor Doi lhe há dito algo, não é certo? — perguntou Barbara.
— Assim é. Pareceu-nos mais apropriado que eu falasse com você, de mulher a mulher. — A senhora Ueda a olhou aos olhos. — Perdoe minha franqueza, mas acredito que se quer prolongar sua estadia aqui teria que cuidar sua relação com o senhor Okada.
— O senhor Doi ignora que o senhor Okada e eu estamos traduzindo uns textos... Sobre cerâmica.
— E tem que transladar-se ao Hakone para fazer sua tradução?
Barbara se ruborizou. Não cabia dúvida de que a senhora Ueda tinha ouvido sua atropelada conversação com o senhor Kawabata. E talvez outras conversações.
— Tínhamos habitações em distintos hotéis, ninguém nos viu.
A senhora Ueda não respondeu...
— Terei mais cuidado — disse Barbara. — E lhe agradeço que não tenha comentado isto com ninguém mais.
— É você uma moça e está aqui sozinha, sem uma mãe que a aconselhe. Por isso acredito que é meu dever lhe falar da reputação do senhor Okada.
— O que tem que me dizer?
— É possível que não seja totalmente leal.
— Quer dizer que...
A senhora Ueda lhe deu uns tapinhas na mão com uma estupidez que revelava o pouco habitual do gesto.
— Seria preferível esperar a voltar para casa para pensar em amores, seria mais singelo para você — disse, levantando-se para partir.
— Espere me diga...
— Lamento havê-la preocupado. Só queria ajudá-la.
A senhora Ueda partiu e Barbara ficou pensativa. Havia-lhe dito que Seiji não era leal, uma forma delicada de dizer que era infiel. Recordou à garçonete do restaurante Okada. Chamava-se Kimi, e Seiji a chamava Ki mi. No restaurante se tratavam com muita confiança. E podia haver outras mulheres no Mashiko, talvez por isso fosse ali tão freqüentemente. Quão mesmo seu pai com suas viagens de negócios e suas noites no escritório. Recordou com emoção o tempo passado com Seiji em Mashiko, à noite em que lhe contou sua vida e a tarde na oficina, quando se sentaram juntos a contemplar a chuva.
No sábado ficou nervosa tentando decidir que papéis levaria a casa de Seiji. Embora tivessem acabado com os textos do Chie e tinham que traduzir os do Michi, não tinham acordado por onde começar; seguindo a ordem cronológica tocava 1949, mas Barbara tinha vontades de ler o texto de 1952, quando Michi estava em Califórnia. Finalmente colocou todos os papéis na bolsa. Ao ver a garrafa deformada se perguntou se devia acostumar-lhe ao Seiji; não lhe havia dito nada. Cheia de dúvidas, colocou a garrafa na bolsa e a voltou a tirar. Talvez preferisse que não lhe recordassem aquele dia.
No Takanodai, uma mulher a saudou pela rua.
— Sou a senhora Ta ki Kondo, tia de Seiji Okada — disse, olhando-a com os olhos entrecerrados.
— OH, como está você? — Barbara devolveu a saudação. Agora a reconhecia, era a mulher de aspecto severo e o lunar na bochecha. — Precisamente vou visitar lhe.
A senhora Kondo assentiu. Estava claro que suas visitas não eram nenhuma novidade para ela.
— Senhorita Jefferson, eu gostaria que hoje ficasse para jantar conosco.
— OH, muito obrigado — gaguejou Barbara. — Será um prazer.
Encaminharam-se para a casa.
— Este é nosso restaurante, já o conhece — disse a senhora Kondo quando chegaram ao local. Entraram no jardim dianteiro. — Imagino que Sei-sejam a está esperando.
— Sim, disse-lhe que hoje passaria a vê-lo.
Barbara atravessou o jardim com toda a dignidade que foi capaz de reunir. Seiji estava na cozinha preparando o chá. Ao vê-la chegar, foi a seu encontro e a beijou. Ela o tirou dos ombros e lhe obrigou a olhá-la à cara.
— Acabo de me encontrar com sua tia na rua e aceitei um convite para jantar.
— Em minha casa?
— Não te parece bem?
— Claro que sim. Estou encantado.
Mas não o parecia; estava carrancudo. Barbara o seguiu à sala e ficou observando-o enquanto preparava o chá. Enfim, isso era o que fazia sempre: cortejar as mulheres.
Seiji lhe serve uma taça.
— Tenho que te dizer uma coisa — disse Barbara. Sua voz soou mais séria do que pretendia.
— Como?
— Vou ficar-me todo o outono, ou mais tempo incluso.
— Sério? — Abriu muito os olhos. — Estupendo.
Barbara esperava ouvir algo mais, mas não houve mais comentários.
— Você não gostaria de ficar em liberdade... Para sair com outras mulheres?
— Sair?
— Para ter relações sentimentais com outras mulheres.
Seiji riu.
— Não quero outra mulher, como te ocorre?
— Não sei. — Sentiu um grande alívio. — Algumas pessoas da universidade sabem que venho aqui. Temos que nos ver em outro lugar... Alugar um apartamento ou uma habitação.
— Seria muito caro.
— O que vamos fazer? Temos que ter mais cuidado.
— Já nos ocorrerá algo — disse Seiji. Antes de voltar para a cozinha com as taças, beijou-a. Quando voltou para a sala olhou a bolsa negra. — O que trouxeste hoje?
Barbara tirou os papéis de 1949, três deles em um só cilindro, e os de 1952 e 1953.
— Vá! Vamos ter muito trabalho — comentou Seiji. — Muito trabalho — acrescentou com um sorriso.
Agarrou os papéis de 1949 e os leu para si. Levou-lhe um bom momento ler as três páginas.
— Como sabe — disse finalmente, — este é o primeiro escrito do Nakamoto. Conta um assunto muito complicado, e acredito que será melhor que traduza isto por minha conta.
Queria ficar com o texto do Michi.
— De acordo — disse Barbara. — Mas me devolva isso quanto antes.
— Assim o farei. — Voltou a enrolar os papéis e ficou de pé. — Você gostaria de ver meu novo trabalho?
Conduziu-a a oficina. Sobre a mesa havia várias peças de barro com um ar primitivo e tosco, inacabado. Barbara acariciou os bordos rugosos.
— Tenho-as feito a mão, não no torno — explicou Seiji.
— São formosas, têm muita força.
— Talvez porque as fiz pensando em ti.
Barbara lhe agarrou a mão e a beijou. Estava emocionada, nunca lhe tinha ouvido expressar tão abertamente seus sentimentos. Seiji a conduziu até um abrigo escuro e sem janela que havia fora; dentro só havia um cama de armar. Ao fechar a porta ficaram às escuras.
— Aqui ninguém pode nos ver — murmurou Seiji, e a beijou.
— OH, Seiji.
A provas tenderam-se sobre o cama de armar. Seiji colocou as mãos sob seu vestido e lhe tirou as médias. Beijaram-se trementes. Barbara ouviu que se baixava a cremalheira da calça e rodeou com as pernas sua cintura.
— Kirekitsu — sussurrou Seiji.
Depois de fazer amor, ficaram um momento quietos, ofegando. Barbara notava a boca do Seiji contra sua orelha.
— Eu gosto de muito estar contigo — disse. Teria-lhe gostado de lhe ouvir dizer que a queria, mas ele se levantou, subiu as calças e abriu a porta do abrigo. Barbara permaneceu tendida, contemplando a silhueta do Seiji recortada contra o retângulo de luz. Tinha que preparar-se para o encontro com sua família. Seiji lhe deu uma toalha para que pudesse lavar-se na pilha. Não havia espelho. Barbara se sacudiu e alisou a saia.
— Estou bem?
— Claro — disse sorrindo. — Está muito bem.
Na plataforma à entrada da casa, tiraram-se os sapatos. Entraram em uma ampla sala com o chão coberto de tatami. Todas as portas de papel shoji estavam abertas. Ao fundo se via um jardim. Junto à porta havia uma mesa baixa, posta para o jantar.
— Tadaima — disse Seiji. — Estamos em casa.
A senhora Kondo saiu da cozinha com um avental.
— Bem vinda — lhe disse. — Em seguida jantaremos.
Barbara se voltou para o Seiji.
— Pode me ensinar o butsudan de Michi-san?
Seiji e sua tia se olharam.
— Temo-me que a habitação está cheia de pó — disse a senhora Kondo.
— Não me importa, eu gostaria de muito vê-la.
Seiji a conduziu por um corredor até um pequeno quarto ao fundo da casa.
— Aqui dormia Nakamoto — lhe disse, — e aqui está seu butsudan.
Só havia uma pequena janela e uma lâmpada nua pendurando do teto.
— Aqui também dormia Ume?
Seiji assentiu.
— Sem o butsudan havia mais espaço, claro.
O butsudan, uma sorte de te tempere de madeira, ocupava o centro da habitação. Nas estantes havia queimadores de incenso de metal, agrade com inscrições em japonês e pequenas fotografias emolduradas. A caixinha branca que continha as cinzas de Michi não estava à vista; devia estar no interior do butsudan. Na estante superior havia uma foto de Michi quando era jovem. Estava de pé ante uma cerejeira em flor e não levava óculos. Sua sorridente carinha parecia mais felina e delicada do que Barbara recordava. Inclinou-se para olhar uma fotografia de cor sépia: uma mulher de aspecto severo, vestida com um quimono, flanqueada por duas meninas e com um bebê no braço.
— Deve ser Chie. Aqui está Michi — assinalou à menina de cara travessa com um vestidinho de marinheiro — com Haru e Soichi.
Seiji cravava o olhar no chão.
Quando voltavam para salão, Barbara viu um tokonoma médio escondo entre as sombras. Aproximou-se e descobriu com assombro um desenho que representava a uma mulher vestida com um quimono que saía de uma habitação. A silhueta, depois do painel translúcido da porta shoji, era a de uma raposa. Um garotinho engatinhava atrás dela e lhe tendia a mão.
— É o desenho que descreve Chie em seu jornal. Por que não me disse que o tinha?
— Não me ocorreu.
Voltaram para a sala e a tia do Seiji mostrou a Barbara o assento que lhe estava reservado, um lugar de honra de onde se via o jardim. No assento continuo se sentava a mãe de Seiji, a senhora Okada, com a cara permanentemente voltada para o outro lado, de maneira que a Barbara seria impossível lhe falar. Seiji se sentava frente à Barbara e a senhora Kondo junto a ele, no lugar mais próximo à cozinha.
Enquanto a senhora Kondo entrava e saía da cozinha com a comida — sopa de miso em terrinas laqueadas e bem tampados, incutidos, salada de espinafres, sashimi e fatias de pescado cru, — ninguém pronunciou uma palavra. Seiji parecia deprimido.
Finalmente, Barbara rompeu o silêncio. Em um japonês lhe balbuciem, perguntou-lhe à mãe do Seiji por sua saúde. A senhora Okada voltou o rosto para ela, tirou-a do braço e lhe respondeu com voz tremente. Barbara respondia "Hai, hai". Não entendia nada, mas estava emocionada. Imaginava à senhora Okada indo procurar a medicina para a dor de dente do Seiji, logo a explosão, os vidros que a deixaram cega.
Quando a senhora Kondo voltou para a mesa perguntou a Barbara se queria dizer uma prece.
— Em realidade... Bom, se vocês revistam fazê-lo...
— Pensava que os americanos estavam acostumados a dizer uma prece antes de comer. Aqui, como você certamente sabe o que dizemos é "itadakimasu", comamos.
Assim que todos disseram itadakimasu e começaram a comer em silêncio. Barbara deu uma olhada a seu redor: tinha a sensação de que faltava alguém.
— Oishi — disse ao provar a primeira colherada. — A sopa de miso está deliciosa.
A senhora Okada disse algo com sua voz quejumbrosa. Seiji se apressou a traduzir suas palavras.
— Diz que está contente de que você goste da comida japonesa, e apresenta desculpas por não te haver convidado antes.
— Estou encantada — respondeu Barbara com um radiante sorriso sulino. — É um prazer conhecer sua mãe e a sua tia.
— Meu sobrinho me há dito que lhe interessa a arte da cerâmica — disse a senhora Kondo. — Diga-Me, o que lhe parece à obra de Seiji?
— É preciosa, deliciosa..., as cores, as formas...
— Também Carol-san admirava seu trabalho — disse a senhora Kondo. — Dizia que era uma obra a um tempo refinada e cheia de força.
— Carol? — Barbara olhou ao Seiji. — Refere-se à Carol Sutherland, a professora da Kodaira? Conhecia-a?
— Um pouco. Tomou classes de cerimônia do chá com minha tia.
Continuaram comendo em silêncio. Seiji fugia seu olhar. Talvez a isso se referisse à senhora Ueda, a que Seiji gostava de ter namoricos com as gaijin loiras.
— Barbara-san é do Sul dos Estados Unidos — disse Seiji.
— De Washington, a capital? — perguntou à senhora Kondo.
— Não, do estado da Carolina do Norte.
— Carolina do Norte — a senhora Kondo fechou os olhos para recordar. — Nunca tinha ouvido falar desse lugar — concluiu.
— Carolina do Norte é um pouco como o Japão — explicou Barbara. — O clima é similar, e também os maneiras... Alegra-me dizer que vou ficar-me outro semestre, ou talvez um ano mais.
— Já o tinha ouvido — disse a senhora Kondo.
— Sério? — Barbara olhou ao Seiji, que contemplava a sua tia com assombro. — Quem o disse?
— Alguém da universidade, não recordo quem.
— Você sabia Seiji?
Ele meneou a cabeça.
— Minha tia sempre é primeira em inteirar-se das intrigas.
Acabaram de jantar em um tenso silêncio. Barbara não levantou os olhos do prato. Que família tão estranha, disse-se.
— Acredito que tenho que ir — anunciou.
— Temos que tomar a sobremesa, é especial.
A senhora Kondo entrou na cozinha e voltou com um sorvete em um recipiente de cartão.
— Happy girl — anunciou.
— Happy girl! — A senhora Okada aplaudiu como uma menina.
Antes de servir o sorvete nas terrinas, a senhora Kondo mostrou a Barbara o cartão: tinha grafite a cara de uma menina japonesa com uma espécie de gorro esquimó e debaixo o nome escrito em inglês: "Happy girl."
— Era o sorvete favorito de Carol-san. Espero que a você também goste.
— Parece que Carol-san vinha freqüentemente — observou Barbara.
Seiji apertava os lábios.
— Nós gostávamos de muito convidá-la — disse a senhora Kondo. — Era uma jovem muito bonita e simpática. Happy girl!
Seiji se levantou da mesa e anunciou que tinha que levar a senhorita Jefferson a sua casa. Quando foram sair do jardim, Barbara lhe pediu que a esperasse.
— Esqueci-me a bolsa.
Entrou correndo na casa de chá, procurou provas os papéis do Michi e os guardou na bolsa. Seiji a esperava ante a porta.
— Levo-me os papéis — disse Barbara. — Ao melhor os podemos ler em outro momento.
Seiji parecia zangado, mas não disse nada. Quando chegaram à caminhonete, não lhe abriu a porta como de costume. Barbara subiu ao veículo e fechou a porta de um golpe. Seguro que Carol também tinha montado na caminhonete. Tão bonita e simpática!
— Me diga, teve uma aventura com a Carol?
— Conhecia-há muito pouco.
Circulavam pelo Kokubunji, por diante dos salões e do restaurante onde tinham comido enguia.
— Trouxe para a Carol a este restaurante? — perguntou Barbara.
— Um dia, ao melhor, com minha tia. É muito ciumenta.
— Isso crie?
— Por que te leva os papéis do Nakamoto?
— E por que não? São meus.
Seiji não respondeu.
— Por que não me disse que tinha o desenho de Michi-san?
— Já te hei dito que não me ocorreu.
Não intercambiaram mais palavras. Ao chegar ao campus, Seiji deteve a caminhonete e ficou sentado sem voltar o olhar. Barbara sentia náuseas.
— Por favor, me diga a verdade sobre a Carol.
Seiji suspirou.
— Não há nada que contar. O que ocorre é que a minha tia gosta de fazer estas coisas.
— E a ti?
— O que quer dizer?
Barbara abriu a porta e saltou ao chão. Seiji pôs em marcha a caminhonete e se afastou sem dizer uma palavra.
CAPÍTULO 21
Sentada na habitação ocidental, Barbara bebia licor de ameixa. Um raio de luz se projetava sobre o chão. A lua cheia iluminava a parte traseira da casa e produzia brilhos na janela do apartamento de Michi-san.
Amanhã mesmo chamaria o senhor Wada e lhe encarregaria à tradução dos textos. Tentou imaginar o que pensaria Michi de tudo isso, mas não encontrou a resposta. Baixou e rodeou o edifício para entrar no jardim de Michi. O apartamento da senhora Ueda tinha as janelas abertas e a luz apagada; certamente já estava na cama. À luz da lua, as roseiras eram de cor prata e as margaridas, pálidas como fantasmas. Privadas de cor, as outras novelo eram silhuetas que arrojavam largas sombras sobre o chão. Barbara se tendeu na terra, apartou uma pedra que lhe cravava nas costas, uniu as mãos detrás da nuca a modo de travesseiro e fechou os olhos. Sentia o contato com a terra e a luz da lua sobre as pálpebras, e pouco a pouco começou a relaxar-se. Pensou no comportamento do Seiji com respeito aos papéis. Michi lhe haveria dito: já os traduzirá alguém, a pessoa que você escolha; ao fim e ao cabo, os papéis são teus.
Ao dia seguinte, cedo, telefonou ao senhor Wada, quem lhe respondeu que estava livre.
— Hoje minha mulher faz a limpeza da primavera e estará encantada de me ter ocupado.
O senhor Wada a esperava na porta da rua. Sua esposa estava muito atarefada e apagou um momento a aspiradora para saudar. Assim que chegaram ao estudo, Barbara tirou os papéis de 1949 e os entregou ao senhor Wada; este os leu franzindo o sobrecenho.
— Levará-me tempo.
— Não me importa esperar.
Ele se sentou frente ao escritório com os papéis e a convidou a jogar uma olhada a sua biblioteca.
— Tenho alguns livros em inglês, incluídas minhas traduções de teatro Não. Se o preferir, pode aparecer ao balcão.
A maioria dos livros estavam em japonês, mas havia uma estante de obras em inglês: Ivanhoe, A panela de ouro, as obras completas de lorde Byron, Ana, a de Telhas Verdes — era estranho ver ali um título juvenil — e um livro de poemas de sir Thomas Wyatt. Também havia seis volumes do teatro japonês, traduzido por Wada Masaro. Barbara tomou o livro de poemas do Wyatt, saiu ao balcão e se sentou em uma incômoda cadeira de metal.
Ao outro lado da rua havia uma sala e um bar. De algum restaurante próximo chegava aroma de comida. No estudo, o senhor Wada começou a escrever a máquina. Barbara abriu o livro de poemas; Wyatt gostava. O primeiro poema que leu dizia: "Os que antes buscavam-me rejeitam agora." Fechou o livro de repente e entrou no estúdio. O senhor Wada levantou a vista surpreso.
— Vou dar um passeio — disse Barbara, — acredito que irá bem um pouco de exercício.
— Pode ir às compras — respondeu o senhor Wada. — Isto me levará pelo menos uma hora.
Ao sair, Barbara viu que a senhora Wada tentava baixar umas persianas do salão.
— Quer que a ajude? — perguntou.
— Não, não. Não se preocupe.
Mas Barbara esperou a que baixasse as persianas e a ajudou às levar a porta traseira. A senhora Wada mostrou umas sandálias de madeira e lhe assinalou outro par de sandálias.
— Dozo. Fique com as de meu marido, por favor.
Repicando sobre o asfalto, foram até uma mangueira de rega que havia na rua, lavaram as persianas e as puseram a secar em um varal. Quando voltavam para a casa, a senhora Wada lhe comentou quanto sentia falta da sua filha, que vivia no Hokkaido; ela estava acostumada ajudá-la com a limpeza da primavera. De todas as maneiras, insistiu em que Barbara já não podia fazer mais e em que tinha que ir-se a casa porque estaria cansada.
O senhor Wada saiu do estudo e entregou a Barbara um sobre fechado.
— Por favor, leia-o quando chegar a casa — disse muito sério, e antes que ela pudesse lhe pagar ou lhe perguntar pela próxima lição, saudou com uma inclinação de cabeça e se voltou a meter no estudo.
A senhora Wada baixou as escadas com a Barbara.
— Tem que perdoar a meu marido. Ultimamente não se encontra bem; sofre de lumbago e se cansa em seguida. Mas lhe agradeço muito que hoje tenha sido minha filha.
Barbara partiu desanimada. Talvez fosse melhor procurar a outra pessoa, porque o senhor Wada era um pouco desagradável... Olhou o sobre que levava na mão e se disse que não poderia esperar a chegar a casa para saber o que punha, assim entrou em uma cafeteria decorada com um estilo gritão, em negro e prata, e pediu um café. Os únicos clientes eram dois jovens ante um tabuleiro de GO; levantaram o olhar e seguiram jogando. Quando uma borrada garçonete lhe serve o café, Barbara provou um sorvo, comprovou que era horrível, pior que a porcaria foto instantânea que preparava em seu apartamento, e abriu o sobre do senhor Wada.
"2 de janeiro de 1949, Show 24.
»Hoje recupero o costume de mamãe de fazer um primeiro escrito do ano. Recordo a minha mãe Chie ajoelhada ante a mesa com expressão severa. Tinha a cara pálida e alargada e sobrancelhas espessas; a sua maneira era formosa, como a avó Ko, suponho. Depois de ler os escritos de minha mãe, entendo o muito que sentia falta da avó Ko. Também eu queria havê-la conhecido. Quando era menina, eu sentia falta da minha mãe, e agora pelo menos compreendo a razão de que estivesse tão ausente.
»E lembrança que a força de vontade de minha mãe foi o que me salvou. Ela haveria dito que esta força vinha de sua mãe raposa, e em certo sentido era verdade, porque pelo menos tinha um amor instintivo por sua cria.
"Ume-chan, tem já três anos. (Nota do senhor Wada: "Os japoneses contam a idade do momento da concepção.") Ainda não fala bem, mas os médicos dizem que não me preocupe porque também demorou a aprender a andar. Acredito que é como o gingko, que cresce devagar, mas acaba por converter-se em uma árvore muito forte. Um dia, quando for maior e já não me necessite, quando eu já tenha morrido, lerá este texto que estou escrevendo na velha casa de chá de minha mãe em Hiroshima. E se não te contei que maneira você e eu salvamos milagrosamente a vida, aqui conhecerá a história."
Michi-san tentava convencer-se de que Ume teria uma vida normal. Era muito triste, pensou Barbara. E agora, ela estava lendo um escrito especialmente dirigido ao Ume. Ao pensá-lo, estremeceu-se. Logo continuou lendo.
«Pode estar orgulhosa de seu pai, Kenzaburo; era um bom homem. Embora não gostava da guerra, aceitou corajosamente sua sorte e se converteu em soldado. Antes da guerra, era professor de botânica na Universidade de Hiroshima. Na única carta que recebi dele, descrevia-me as folhas e as sementes da selva do Guam. Na primavera de 1945 lhe deram uma permissão de uns dias. Foi então quando lhe concebemos. "E aquele mesmo mês de julho faleceu em Saipan de dengue, embora isto não soubesse até depois da guerra."
Barbara tentou imaginar o aspecto que tinha Kenzaburo, mas não recordava que houvesse nenhuma sua fotografia no butsudan de Michi.
"Como já saberá quando encontrar este escrito, filha minha — Barbara voltou a ler atentamente a frase, — Hiroshima foi destruída em 6 de agosto de 1945 as 8.15 da manhã. Em um momento, minha cidade se converteu em um inferno.»
"Eu vivia com a mãe de Kenzaburo no centro, em um bairro chamado Castle Town. Naquele momento estava na cozinha preparando o café da manhã, enquanto a senhora Nakamoto se encontrava ocupada no pátio traseiro. Como nos primeiros meses de gravidez sofria náuseas matinais, tinha-me entretido preparando o arroz e os feijões. Aquela manhã recordei um dia em que, de menina, tive náuseas e nossa criada Yuko me deu uma rodela de limão. De pé na cozinha, fechei os olhos e pensei na frescura de uma rodela de limão; foi o último pensamento de minha vida normal."
Barbara passou a página com mão tremente.
«Não tenho nenhuma lembrança nítida da bomba nem de como se vieram as casas abaixo. Minhas lembranças são muito vagas, e possivelmente provenham do que me contou minha mãe. E este é o milagre que te quero contar, Ume-chan. Minha mãe — sua avó Chie — se foi duas semanas antes a visitar sua irmã maior no Kaitaichi. Meu pai insistiu em que partisse porque tinha o pressentimento de que passaria algo na Hiroshima. A cidade não tinha sofrido bombardeios, apesar de ser a capital militar, e a gente fazia cabalas. Alguns acreditavam que em Hiroshima vivia um norte-americano importante, talvez inclusive um familiar do presidente Truman. Outros, que os norte-americanos queriam conservar a cidade, que era muito bonita, para construir suas casas de recreio depois da guerra. Mas meus pais temiam um ataque.
»Durante sua estadia no Kaitaichi, minha mãe sonhava diariamente com sua mãe. Estava convencida de que a avó, convertida em um sábio espírito raposa, lhe aparecia para lhe advertir que sua filha Michi e sua neta por nascer corriam um grave perigo. Suponho que foi sua própria intuição, mas na manhã de 6 de agosto minha mãe tomou um trem até a Hiroshima e logo um bonde até nossa casa. No momento em que caiu a bomba, ela estava no alpendre a ponto de dizer "bom dia". Tinha começado, mas não pôde terminar porque houve um grande estrondo e um estalo de luz, e a casa se derrubou. As pranchas do alpendre lhe caíram em cima, mas conseguiu sair. Se tivesse estado dentro da casa, teria ficado sepultada sob as telhas e as pesadas vigas do teto, como aconteceu com ti e a mim.
»Não recordo ter gritado, mas minha mãe me ouviu chamá-la com voz débil "Mamãe, mamãe". Contou-me que só graças à força que lhe concedeu sua mãe raposa conseguiu me resgatar de entre os escombros. Eu estava inconsciente, assim que me carregou sobre os ombros e correu para o rio. As casas tinham desaparecido como esmagadas por um gigante, e muitas ardiam. Tudo estava escuro como a noite, talher de uma fumaça espessa e gordurenta. O chão se encontrava talher de cadáveres e de feridos que gemiam fracamente, alguns tão queimados que era impossível reconhecê-los; outros permaneciam quietos, em estado de choque, ou se moviam como sonâmbulos.
Muitos se lançavam ao rio para aliviar suas queimaduras. "Até uns dias mais tarde, minha mãe não advertiu que tinha queimaduras na cara e nas mãos.»
Barbara fechou os olhos. Podia ver a cena com tanta claridade como se a tivesse gravada na mente. Obrigou-se a seguir lendo.
«Lembrança que estava na borda do rio e que minha mãe me molhava a cara. Colocou-me em cima de um ramo grande e me empurrou rio abaixo. Havia um aroma terrível como a enxofre e um silêncio sepulcral a nosso redor. Só se ouvia chamar "Mamãe, mamãe". Acreditei que era um pesadelo e suponho que dormi, porque não recordo ao oficial militar que falou com minha mãe. Estava de pé na borda, com o uniforme feito farrapos e um buraco no ventre que se cobria com as mãos para evitar que lhe saíssem os intestinos. Olhou a minha mãe aos olhos e lhe aconselhou que não ficasse no rio. Como falou com tal segurança e como eu não o recordava, minha mãe concluiu mais tarde que era sua própria mãe disfarçada. Além disso, quando pouco depois me levou a borda, o oficial tinha desaparecido. Fora como fosse não nos afogamos no rio como muitos outros, e sobrevivemos. Minha mãe diz que aquela noite, da que eu não recordo nada, foi tão horrorosa que não se pode descrever com palavras.
»Suponho que voltamos para casa ao dia seguinte. Lembrança a espessa fumaça que saía das casas, os cadáveres empilhados junto à estrada, pessoas que caminhavam como mortos viventes, sem saber aonde foram, pessoas que gemiam do estou acostumado a pedindo água, sem que ninguém pudesse atendê-los. Vi uma mãe abraçada a um bebê morto, e isso me fez pensar em ti, Ume-chan. Pus as mãos sobre meu ventre e rezei porque estivesse a salvo.
"Chegamos a nossa Rua Koi. — Barbara recordou que Seiji tinha mencionado Koi e leu mais de pressa. — A maioria das casas tinham ficado destruídas, mas não todas. Nossa moradia estava em ruínas, mas lembrança a alegria de minha mãe ao ver que a casa de chá não tinha sofrido danos. As folhas das ameixeiras tinham caído ao chão, enegrecidas. Não encontramos a meu pai, nem a minha irmã Haru, nem a meu irmão Soichi, e minha mãe foi ver os vizinhos — Barbara se perguntou se trataria do Seiji — e lhe disseram que papai tinha saído em busca do Haru e do Soichi, que estavam trabalhando na saída de emergência. Também tinham ido em minha busca.
"Uma caminhonete levou os mortos e alguns feridos as instalações da escola elementar de Koi. Unimo-nos às pessoas que subia pela colina para o templo do Mitaki. Ali encontramos água, mas não pudemos comer em vários dias. Finalmente chegou meu pai com o cadáver de Soichi; Haru não a tinha encontrado. sentiu-se aliviado, porque tinha ido a casa de minha sogra e tinha visto a casa ardendo e à senhora Nakamoto convertida em um monte de ossos e cinzas.
"Incineramos a seu jovem tio Soichi e pusemos suas cinzas em uma terrina. A pena de minha mãe foi tão grande que se deprimiu e após esteve no hospital. Durante semanas seguimos cuidando de minha mãe e procurando o Haru-chan, até que meu pai disse que tínhamos que aceitar que tinha desaparecido na explosão. Durante meses senti um grande desespero, e de não ter estado grávida de ti, acredito que me teria tirado a vida.»
Barbara respirou profundamente e começou a última página.
«Nasceu em fevereiro, Ume-chan, pouco depois de que morrera minha mãe. Meu pai se foi a viver ao Kaitaichi enquanto reparavam nossa casa. Insistiu em que o acompanhasse, mas eu não quis: seguia procurando Haru-chan. Comia com os vizinhos e ajudava à senhora Okada, que se tinha ficado cega. Tanto o pai como a pequena Itsuko estavam desaparecidos. Às vezes me acompanhava Seiji, o filho dos Okada, e juntos percorríamos a cidade em busca de nossos familiares.
»Pelas noites dormia na casa de chá. Uma manhã me senti tão cansada que não podia me levantar e pensei que estava muito débil, a ponto de morrer. Pensar que morreria sem ter encontrado Haru fez chorar. Além disso, começou a me doer o ventre. "Sei-sejam ouviu meu pranto e vinho correndo.»
Sei-sejam devia ser Seiji; assim o tinha chamado sua tia.
«Disse que sua mãe estava no hospital de Cruz Vermelha, mas que ele me ajudaria. Partiu e voltou correndo com um cubo de água, tiras de tecido e uma manta com a que me tampou. Eu pensava que talvez não vivesse Ume-chan, porque te tinha movido muito pouco em meu ventre. Quando ouvi seu pranto, acreditei que morria de alegria. Seu nascimento foi mais milagroso que o florescer das ameixeiras em nossa paisagem desolada.
»Seiji Okada esteve no momento de seu nascimento, Ume-chan. Quando te aproximei de meu peito, ele estava ajoelhado junto a nós. "Sei-sejam nos ajudou, e nesse momento se converteu em um homem.»
Barbara elevou o olhar do papel e ficou contemplando as cadeiras de cor negra, o vidro rajado da janela, os estudantes que jogavam GO... Tudo lhe parecia irreal, uma magra capa que podia cortar-se como uma maçã. Quando viu que se aproximava a garçonete, deixou o dinheiro sobre a mesa, saiu do local e tomou automaticamente o caminho da estação. Em um estado de atordoamento, voltou para campus, entrou no Sango-kan e subiu as escadas. Seus passos ressonaram no edifício vazio. De pé na cozinha de seu apartamento, envolveu-se na cortina de contas e se sentiu tão só que não pôde suportá-lo; saiu e bateu na porta do apartamento da senhora Ota.
CAPÍTULO 22
— O que ocorre querida? Passa.
— Trata-se de Michi-san — disse Barbara. — Soube que era uma sobrevivente de Hiroshima graças a uns textos que me deixou.
— Ah.
— Traduziram-me a parte onde conta o que ocorreu aquele dia e o acabo de ler. Como pôde suportá-lo?
A senhora Ota a fez entrar e lhe ofereceu assento frente à mesa kotatsu.
— Nakamoto sensei teria emocionada a ver que seu texto lhe chegou ao coração — disse. — E também me emociona.
Barbara recordou que Seiji se apartou dela para ler a história do Michi.
— Por que não deixou seus escritos a uma amizade japonesa, a alguém que entendesse melhor sua experiência?
— Talvez quisesse que você compreendesse; ao parecer, conseguiu-o.
Barbara escondeu o rosto entre as mãos. A senhora Ota foi à cozinha e voltou com dois copos de xerez.
— Muito obrigado, senhora Ota. Não sei o que faria sem você.
— Para mim também foi um prazer conhecê-la, um raio de alegria em minha vida. — Bebeu um gole e anunciou — Pouca gente sabe que eu nasci no Texas.
— No Texas! — Resultava-lhe difícil acreditá-lo.
— Meu pai era técnico agrícola e trabalhava em um projeto nas planícies do oeste do Texas. Voltamos para o Japão quando eu era adolescente. Graduei-me na Kodaira e vivi uns anos em Cambridge, embora nunca me sentisse cômoda. Sou como o patinho feio, nunca me hei sentido totalmente integrada nem no Ocidente nem no Japão.
— Entendo — Barbara assentiu.
A senhora Ota lhe agarrou a mão.
— Terá a amabilidade de me fazer companhia durante o jantar?
Aquela noite Barbara ficou muito tempo acordada pensando na história de Michi-san: a premonição de Chie, o militar junto ao rio sujeitando o ventre para que não lhe saíssem os intestinos, a mulher com um menino morto nos braços, Michi quando deu a luz ajudada por Seiji. Não era estranho que Seiji fora incapaz de lhe traduzir esses textos. Que mesquinhos lhe pareciam agora seu ciúmes pela Carol!
Ao dia seguinte, depois das aulas da manhã, Barbara se dirigiu a Takanodai através do bosque. Pela primeira vez advertiu que todas as árvores eram jovens, nenhum tinha o tronco tão grosso como o carvalho que plantou seu pai quando se instalaram em Stone Street. Ao ser uma zona próxima a Tóquio, provavelmente tinha sido bombardeada. Sob a verde paisagem se ocultava outro devastado, e debaixo havia outro mais.
Seiji estava comendo no restaurante, com o Kimi sentada frente a ele. Os dois falavam e riam. Barbara ficou na porta, passando a bolsa negra de uma mão a outra. Assim que a viu, ele ficou sério; apagou o sorriso de seus lábios e disse algo ao Kimi, que se levantou apressadamente e entrou na cozinha.
Barbara se sentou frente a ele. A cadeira de plástico conservava o calor do Kimi. Na mesa ficava domburi, arroz com ovo e verduras.
— Lamento interromper, mas queria falar contigo — disse Barbara. — Em privado — acrescentou ao ver que Kimi saía da cozinha e transportava depois do mostrador.
Seiji se levantou da mesa.
— Não quer acabar de comer?
Ele fez um gesto negativo e conduziu a Barbara até a oficina de olaria.
— fabricaste alguma peça nova?
— Hoje não. — Acendeu um cigarro e ficou a ordenar as terrinas de uma prateleira.
Barbara lançou uma olhada ao quarto onde tinham feito o amor; a porta estava fechada.
— Trouxe os textos de 1949 — disse lhe tendendo o cilindro de papéis, — e quero me desculpar pelo da outra noite. Estava desgostada... Por outras coisas.
Seiji aceitou os papéis com uma inclinação de cabeça.
— Obrigado. Acredito que compliquei as coisas com meu comportamento. Lamento-o.
— Quer que os leiamos juntos? Bom, quando for bem. — Não se atreveu a confessar que os tinha feito traduzir. Pela expressão que lia em sua cara, soube que não a perdoaria.
Seiji a olhava fixamente.
— OH, Seiji, é que não quer me ver mais?
Ele se aproximou e a abraçou com cautela, sem soltar os papéis. Barbara deixou cair a bolsa e estreitou ao Seiji entre seus braços.
— Quero verte — sussurrou Seiji.
— Quando?
— A península Bozo é um lugar muito bonito — disse, depois de pensar um momento. — Ali poderíamos ler os papéis e fazer as pazes. Quer ir este fim de semana?
Barbara lhe deu um beijo na bochecha.
— De acordo. Fica com os papéis até então. Ao melhor assim resulta mais fácil transcrevê-los.
— Fá-lo-ei, se tiver tempo.
Saíram à rua.
— No sábado, me espere às nove da manhã na parada de táxis de Kokubunji — disse Seiji. — Recolherei-te ali.
No sábado era um dia tão quente e primaveril que baixaram os guichês da caminhonete. Durante a viagem falaram pouco e de coisas sem importância. Seiji conduzia muito sério, olhando à frente. Barbara se tinha colocado junto aos pés a bolsa negra com textos correspondentes aos anos cinqüenta, se por acaso tinham tempo de traduzi-los, e não deixava de pensar nos papéis que ele deveria ter trazido. Quando Seiji lhe lesse a história de Michi-san, teria que comportar-se como se fosse a primeira vez que a ouvia. Provavelmente, ele também estaria pensando no texto de 1949 e não teria desejos de recordar a experiência do Michi nem a sua própria. Ao fim e ao cabo, todo mundo tinha pensamentos secretos. Muito possivelmente os dois estavam pensando no mesmo, salvo que ele era inocente e ela o tinha enganado. Detiveram-se frente a um semáforo. Junto à estrada esperava uma anciã com as costas dobrada por uma pesado marmita de ramos.
— Seiji, traduziste os textos de 1949? — perguntou Barbara. Ele respondeu com um gesto negativo. — Os podemos ler juntos.
A viagem até a península durou só duas horas. Tomaram um desvio e entraram em uma estrada estreita que percorria um escarpado junto a muito um azul resistente, salpicado de bolinhas brancas. Estacionaram a caminhonete em uma curva e apareceram ao escarpado. Imensas ondas rompiam com fúria contra as rochas de afiados bordem e se desfaziam em branquíssima espuma. A Barbara lhe encheram os olhos de lágrimas devido ao forte vento que lhe açoitava o rosto. Timidamente, tocou- a mão ao Seiji e ele respondeu a seu gesto.
Alojaram-se em um hotel nos subúrbios de um pequeno povo. Barbara se tinha imaginado um lugar com vistas ao mar, mas estavam ao outro lado da estrada, em uma habitação diminuta, com uma débil luz no teto e uma mesa débil. Deixou sua mala e a bolsa negra em uma esquina da habitação e seguiu à criada até o banho, ao outro lado do corredor. A água da banheira não estava limpa — havia um par de cabelos flutuando, — assim que se lavou como pôde sem inundar-se e colocou seu yukata. Quando retornou à habitação, Seiji não estava. Voltou meia hora mais tarde, com a pele avermelhada pelo banho, e se sentou frente à mesa a ler o periódico. Para jantar lhes serviram tempura quase frio e com um empanado muito grosso. Seiji se bebeu quase todo o sake e pediu mais. Quando lhes trouxeram o futón para dormir, tinha os olhos avermelhados.
Sem dizer uma palavra, despiram-se e se deitaram. Barbara se aproximou dele e pôs uma mão sobre seu peito. Seiji se tombou sobre ela. Cheirava tanto a sake que Barbara teve que apartar a cara. Em um momento, tudo tinha acabado.
— Sinto-o — se desculpou. — Estou um pouco cansado. — Imediatamente, deu meia volta e ficou dormido.
Barbara o ouviu roncar brandamente e ficou tombada, olhando ao teto na escuridão. Tinha vontades de chorar. Despertou mais tarde para lhe ouvir espirrar e o viu levantar-se e sair da habitação. Voltou com uma máscara. Tinha os olhos avermelhados e um aspecto lamentável.
— Temo-me que não sou muito boa companhia — disse com voz apagada depois da máscara.
— Não se preocupe. Lamento que esteja doente.
Trouxeram-lhes o café da manhã, que consistia em sopa de miso e arroz com pescado e algas. Seiji se tirou a máscara para tomar a sopa, mas a pôs de novo e seguiu lendo o periódico até que Barbara acabou de tomar o café da manhã.
— Prefere voltar para casa? Ao melhor não sente com ânimo para traduzir — propôs Barbara.
— Não, não passa nada.
Quando se levaram os restos do café da manhã, Seiji desenrolou os papéis e Barbara preparou seu caderno de notas. Ainda notava na boca o sabor a algas e se sentia um pouco enjoada. Seiji leu com voz vacilante. Ouvia-lhe tão mal depois da máscara que Barbara tinha que inclinar-se para ouvir. Foi escrevendo tudo, tentando que suas perguntas e comentários soassem naturais à medida que ele lia a história de como a mãe do Michi tinha chegado no preciso momento em que a casa se derrubava e como tinha conseguido levar a sua filha até o rio. Ao chegar à parte do homem que falava com absoluta formalidade apesar de que tinha que sujeitar o ventre para que não lhe saíssem os intestinos, Barbara comentou: «É assombroso», mas Seiji nem sequer a olhou. Limitou-se a seguir a escritura com o dedo e a ler mais devagar a descrição de como Michi e sua mãe retornaram a Koi e descobriram que a casa de chá seguia em pé, embora seu lar tenha ficado destruído.
Sofreu um ataque de tosse, levantou-se a máscara e se soou. Logo continuou lendo o seguinte episódio, que falava de sua família, do desaparecimento de seu pai e de sua irmã e da cegueira de sua mãe por causa dos vidros de um bonde. Barbara tinha o coração encolhido.
— É terrivelmente triste — murmurou.
Ume, daquele momento em que ele se converteu em um homem, mas Seiji enrolou lentamente as folhas e as atou com uma corda.
— Isto é tudo?
— Sim.
Estava claro que não estava disposto a lhe traduzir esse capítulo. Levantou a máscara e acendeu um cigarro, mas assim que deu a primeira imersão, começou a tossir.
— Não deveria fumar — disse Barbara. Seiji lhe indicou com a mão que não necessitava seus conselhos, ficou em pé de um salto e saiu da habitação para ir ao lavabo. Quando retornou, propos-lhe sair a passear.
— A sério gosta?
— claro que sim. Não estou tão doente.
Barbara agarrou a câmara de fotos. O céu estava cinza e soprava um vento úmido e salgado.
— Parece que vai chover — disse.
Seiji se encolheu de ombros e não respondeu. Barbara sentiu que a invadia a tristeza. Circularam lentamente contemplando um oceano de cor aço. Em um momento dado, a estrada se afastava do mar e se internava em um grupo de casas e lojas. Seiji entrou na farmácia para comprar outra máscara; logo passearam pelo povo olhando as cristaleiras: em um havia porções de tofu de um branco impoluto, em outro pincéis e acessórios de escritura, e outro expor objetos ocidentais de brechó. Na cristaleira de um restaurante se exibiam reproduções em plástico dos pratos que se serviam dentro.
Barbara o olhava com a extremidade do olho. Com a máscara sujeita à orelha, Seiji oferecia um aspecto vulnerável. Havia também algo comovedor no fato de que não queria lhe traduzir que tinha assistido ao Michi no parto e que isso lhe converteu em um homem. Ele mesmo se definiu como um homem débil que seguia viva graças à dor de dente.
Em um restaurante ao bordo do oceano lhes deram uma mesa fora, tão perto do mar que notavam as salpicaduras de água salgada na cara. A comida era muito melhor que no hotel. Serviram-lhes vários tipos de pescado, cru e cozido, e cerveja. Seiji se tirou a máscara.
— Queria me desculpar pelas palavras de minha tia — disse. — Se disser essas coisas da senhorita Sutherland é para te dar ciúmes. Tem mal caráter e quer te incomodar.
— De maneira que, em realidade...
Seiji se voltou para ela.
— Carol Sutherland não significava nada para mim.
— Acredito-te, mas por que quer sua tia que eu tenha ciúmes?
Uma imensa onda se chocou contra as rochas e se retirou. Seiji apurou seu copo de cerveja.
— A vida a há voltado amargurada. Casou-se com um soldado durante a guerra contra China e se instalou com ele em Manchuria. Quando seu marido partiu à frente, ela teve que cortar o cabelo e ficar calças para proteger-se dos homens chineses. Como seu marido não voltava, retornou ao Japão sem ele, e ao acabar a guerra soube que se casou com outra mulher. — Fez girar na mão o copo vazio.
— Casou-se sem divorciar-se dela?
— Hai. Ao parecer, agora vive em Tóquio. Por isso ela quis instalar-se primeiro em Tóquio, para encontrá-lo, mas não o conseguiu.
— E para que queria encontrá-lo?
— Para arrumar o divórcio. Sua família lhe tinha deixado um pouco de dinheiro, o suficiente para comprar o restaurante, mas seu marido não lhe deu nada. Comportou-se muito mal com ela, NE? Tive sérios conflitos com minha tia, mas não posso esquecer quão mau o passou na vida. Além disso, levou-se muito bem com minha mãe e comigo; depois da guerra nos ajudou até que eu pude lhe dar uma mão no restaurante.
Barbara se lembrou do Kimi, de que os tinha visto conversando.
— Há outra mulher em sua vida agora?
— A que vem essa pergunta?
— ouvi rumores...
Seiji ficou de pé ante ela.
— Quem esteve falando de mim?
— A senhora Ueda me comentou algo.
— Ueda Suetsu?
— Conhece-a?
— Acredito que minha tia a conhece.
— Assim não te conhece diretamente...
Seiji sacudiu com a cabeça.
— Isso imaginava. — ficou contemplando a água em silêncio. Quando voltou o olhar para o Seiji, invadiu-a uma quebra de onda de ternura e lhe tirou da mão por debaixo da mesa. — por que não te tira a máscara? Se tiver que me contagiar, contagiarei-me de todas as formas.
— É um costume japonês. Parece-nos de má educação não tampá-la cara.
No momento de partir, Seiji voltou a colocá-la máscara. Quando chegaram ao hotel pôs-se a fazer a sesta e despertou só para jantar, mas assim que trouxeram o futón ficou seu yukata e se meteu na cama.
— Lamento muito me encontrar tão cansado — disse, e se deu meia volta para dormir.
Barbara lhe deu um beijo na frente e apoiou a mão em suas costas para sentir sua respiração. Atacou-lhe o terrível impulso de lhe contar toda a verdade.
— Seiji — sussurrou. Ele não respondeu. — Quero que saiba que, se não queria traduzir todo o texto do Michi, não me importa. — A respiração do Seiji pareceu alterar-se ligeiramente. — Quero que saiba que o entendo.
CAPÍTULO 23
Na segunda-feira seguinte Rie não assistiu a aula de conversação; era a primeira vez que faltava a uma aula. Barbara perguntou por ela, mas não obteve resposta, tão somente umas risadas afogadas. Durante o almoço, Junko lhe explicou que no sábado Rie tinha tido um acidente: "caiu no canal de Tamagawa."
— Mas está bem? Não lhe aconteceu nada? Suponho que caiu da bicicleta. — Recordou o caminho junto ao canal, cheio de buracos e pedras brutas.
— Não, resulta que se deteve para agarrar umas flores que cresciam junto à água — disse Junko. — Está na enfermaria, mas acredito que sobre tudo está ferida em seu orgulho. Algumas estudantes maliciosas dizem que se cansado porque estava muito gorda.
Ao dia seguinte, ao ver que sua aluna não aparecia, Barbara foi à enfermaria que havia no porão, uma sala com chão de cimento e sem janelas, como uma prisão. Com os olhos fechados, Rie parecia dormir na cama mais afastada da porta. Barbara ficou dúbia. Tinha-lhe levado calamar seco, seu prato preferido; podia deixá-lo na mesinha de noite com uma nota. Aproximou-se nas pontas dos pés à cama, depositou o calamar sobre a mesa e procurou em seu bolso uma caneta e um papel.
— Sensei! — A jovem se incorporou na cama. Tinha uma mão enfaixada e contundida na frente.
— Sinto muito, despertei-te.
— Não estava dormida. Surpreende-me vê-la aqui. — Tinha os olhos inchados e avermelhados.
— Estava preocupada.
— Ninguém mais veio para ver-me. Não tenho amigas; todas riem de mim. — As lágrimas começaram a deslizar-se por suas bochechas. Furiosa, esfregou-se a cabeça com os nódulos da mão sã. — Às vezes penso em me matar, mas sou muito covarde.
— Tem-te cansado ao rio; pode-lhe passar a qualquer. Além disso, às vezes se necessita mais valor para viver — disse Barbara, lhe acariciando o ombro. — E estou segura de que tem mais amigas das que crie. Junko está preocupada com ti.
A jovem não respondeu. Tinha as costas rígida, como se contivera o fôlego.
— Dói-te a mão? — Barbara observou que a atadura estava frouxa e mau colocada, como se a tivesse posto a própria Rie. — Talvez devêssemos fazer uma radiografia.
Rie furtou a mão sob os lençóis.
— Envergonha-me dizer que isto é uma desculpa para não ir a classe. Se não puder escrever, não posso seguir o curso.
— Mas se fica atrasada será pior, não?
— Já vou atrasada. Minhas companheiras se graduaram em mês passado de março. Faz mais de um ano que teria que me haver graduado.
— Dentro de uns anos isto não terá importância. Enquanto isso pode fazer seus trabalhos aqui. Que tal vai sua tese?
— Não a comecei. Sou uma má estudante, uma vergonha para minha família. — Outra vez começou a esfregá-la cabeça com os nódulos.
Barbara a agarrou da boneca.
— Basta. Pode começá-la agora. Faz um rascunho dizendo tudo o que queira. Logo a reescreve.
Ficaram olhando-se, Rie com a mão sobre a cabeça, Barbara lhe agarrando a boneca. A jovem soltou a mão e dirigiu a sua professora um olhar malicioso.
— Assim o farei.
— Bem. Posso te encarregar outros deveres. Importa-te se trouxer para o Junko?
— Não, não me importa — murmurou.
— Trouxe-te um pouco de calamar. — Colocou a bandeja sobre a cama. — Devo ir. Tem caneta e papel para escrever?
— Por favor, lhe diga a Junko-san que me traga. Muito obrigado, sensei. Sempre recordarei isto.
Quando dois dias mais tarde entrou na cozinha, Barbara viu que tinham deslizado sob a porta um sobre marrom onde punha: «Para o Jefferson sensei. "Confidencial.» Continha várias folhas escritas com a letra bicuda do Rie.
O encabeçado da primeira página era: "Um esboço de minha tese", e continuava: "Acima de tudo, sensei, quero que saiba no que consiste meu trabalho em Tachikawa. O que faço é arrumar cadáveres, maquiar os rostos dos soldados americanos mortos no Vietnam. Está escandalizada? Faço-o porquê é um trabalho muito bem pago. E se fizer este trabalho entende que paguem bem, porque não todo mundo tem o valor de trabalhar com cadáveres. Eu sim, eu posso suportá-lo para pagar minha educação e me graduar na Universidade Kodaira, o que meu pai deseja acima de tudo. Você disse que era uma pena que não me graduasse e isso me chegou ao coração. Tem razão: devo fazê-lo por minha família.
»Mas vou contar lhe a parte de meu trabalho que me faz sentir culpado. Os militares americanos querem que se maquiem os cadáveres para que as mortes destes jovens não pareçam tão violentas. Acredito que isso é hipócrita e desonesto. Seria preferível que as famílias norte-americanas conhecessem a autêntica cara da guerra. De todas as formas, faço o trabalho porque me interessa egoístamente. Isto me envergonha, mas decidi que um dia reunirei o valor necessário para escrever sobre isto e sobre outras coisas que me aconteceram e que podem ser um ensino para muitos. Não é que eu seja sábia, mas conheço coisas que pouca gente sabe.
»Outra coisa que lhe surpreenderá sensei, é que nasci na Hiroshima e tinha dois anos quando atiraram a bomba sobre minha cidade. Minha família vivia na parte mais afastada da colina Hijiyama, onde ficaram algumas casa em pé. Pareceu que minha mãe e eu tínhamos saído ilesas, mas minha mãe morreu por causa das radiações. Meu pai era um soldado e estava no campo militar próximo à zona zero. Foi um milagre que sobrevivesse, e uma indignidade para ele. Pensar no que teve que suportar ao sobreviver me dá forças para seguir adiante.
»Admiro muito a meu pai. Depois do bombardeio da Hiroshima trabalhou duramente vendendo agulhas e finalmente conseguiu ter sua própria loja. Sua mãe, minha avó, era uma pobre viúva que vendia pescado na rua; nem sequer tinha uma loja. Já vê que provenho de famílias muito diferentes das de outras alunas da Kodaira. Graças a Nakamoto sensei, você sabe agora que na universidade há outras pessoas que sofreram a tragédia de Hiroshima ou de Nagasaki, assim como os bombardeios de outras cidades, embora a maioria não dizem nada, em especial os hibakusha, que significa "vítima de bomba atômica". No Japão são uma nova classe de intocáveis. Em certo modo, entretanto, o bombardeio da Hiroshima ajudou a minha família a prosperar, já que as classes sociais perderam importância depois da guerra. Só importava comer e sobreviver. Nós não fomos ricos, mas tínhamos casa, e durante uns anos tive pai e mãe, embora logo joguei a minha mãe muito de menos. Em secundária e no instituto estudei muito. Meus professores me animaram a estudar na Kodaira e solicitaram uma beca para mim.
»Eu não recordo o bombardeio, mas minha família, minha cidade e as pessoas de meu entorno sofreram a pior desgraça que pode ocorrer desde o começo dos tempos. É certo que o Japão, em sua ignorância, atacou tanto a China como aos Estados Unidos, e que por esta razão sofremos o castigo. Mas acredito que o pior foi utilizar o conhecimento da divisão do átomo, um segredo da natureza, com fins destrutivos. Talvez o Japão fizesse o mesmo com Washington, de ter podido. Você me perguntou qual era nossa idéia sobre o pecado, mas para os japoneses não existe o pecado original. A filosofia budista acredita que o ser humano é puro em seu estado original, e que devemos tentar retornar a essa pureza. O mal que fazemos se deve a nossa ignorância e falta de compaixão. Somos todos irmãos, NE? Por isso se diz: esse cão poderia ser sua mãe ou essa mulher que sofre poderia ser você mesma.
"De todas as formas, estive pensando na idéia ocidental da curiosidade humana, representada pelo Adão e Eva, e a encontro interessante. Ao melhor a curiosidade humana que levou a divisão do átomo é o pecado original. A mesma curiosidade nos pode ensinar coisas boas ou más. Mas Adão é como o átomo, não lhe parece? O trágico resultado da divisão do átomo afetará à humanidade a partir de agora até o final dos tempos.
»Senhorita Jefferson, ouvi seu emocionado discurso no funeral do Nakamoto sensei e compreendi que era sincera. Conheceu você o drama dos hibakusha melhor do que poderia havê-lo conhecido na América. Um dia lhe contarei mais coisas, e se quiser lhe ensinarei Hiroshima. Nossa cidade, que em outro tempo foi o paraíso, agora é uma lembrança oculta depois dos edifícios modernos.
»Já conhece minha idéia do pecado original. Espero que lhe pareça bem.
Uma saudação,
"Rie Yokohagi."
Durante um momento, Barbara foi incapaz de mover-se. Correu ao jardim de Michi, agarrou umas peônias que acabavam de florescer, pô-las em um vaso e as levou a enfermaria, mas Rie já não estava. Uma jovem convalescente de bronquite lhe comunicou que tinha voltado para sua habitação na residência e que assistiria a aula. Barbara correu a procurá-la.
— Sensei! — A própria Rie abriu a porta. Lavou-se o cabelo e vestia uma blusa branca e uma saia escura. Já não tinha a mão enfaixada e o contusão de sua frente quase se desvaneceu.
Barbara lhe tendeu as flores.
— Emocionou-me muito que tem escrito.
— Obrigado, sensei. — Rie aceitou o vaso com uma reverência.
— Em uma ocasião me caí da bicicleta e me fiz mal — disse Barbara, — e meu pai me obrigou a voltar a montar em seguida. Espero que você faça o mesmo.
— Tenho que fazê-lo para ir trabalhar, NE? — E acrescentou: — Ao melhor, um dia quererá me acompanhar.
— Eu gostaria, mas não tenho bicicleta.
— Posso-lhe conseguir uma.
Ao dia seguinte pela tarde, Rie bateu na porta de seu apartamento.
— Gosta de dever passear comigo, sensei? Consegui uma bicicleta para você.
Era uma bicicleta negra, de rodas bem infladas e rádios ferrugentos. Barbara subiu nela e provou a buzina, que emitia um som apagado.
— É de sua medida?
— É perfeita, obrigado.
Ao subir a costa, os joelhos quase lhe tocavam ao guidão. Como a bicicleta não tinha marchas, terei que pedalar com força. Seguindo ao Rie, Barbara cruzou a estrada e tomou o caminho junto ao canal da Tamagawa, aliviada de ver-se livre dos exames. A tarde era agradável e ensolarada e notava na cara a cálida brisa. Era a primeira vez que via as flores silvestres junto ao canal: tudo estava infestado de pálidas flores azuis e diminutas íris. O canal ia crescido e Barbara se disse que Rie devia ser uma boa nadadora. Imaginou lutando por sair da forte corrente.
— Como conseguiu sair da água?
— Tive muita sorte. Pude me agarrar a uma raiz grosa.
Deixaram atrás o altar das raposas, internaram-se entre os campos de trigo e começaram a subir a costa que levava ao Takanodai. Rie se inclinava para frente para pedalar, mas Barbara teve que levantar do assento; a bicicleta se balançava de um lado a outro. Quando já não pôde mais, desceu da bicicleta e continuou a pé. Ao chegar ao alto da colina, subiu de novo à bicicleta e se deslizou pela costa que levava a rua maior do Takanodai. Rie voltava para ela a cabeça de vez em quando e sorria. Por um momento, Barbara temeu que a conduzisse até a casa do Seiji, mas a jovem tomou um desvio à esquerda e saíram do povo. Passaram ante uma granja com coberto de palha. O caminho serpenteava entre campos semeados de batata-doces, alforfón, rabanete picante... Rie ia assinalando. Ao longe se ouviu um avião que decolava: a base aérea da Tachikawa.
— É o caminho que toma para ir ao trabalho?
— Normalmente atravesso Takanodai; também se pode ir por aqui, mas é mais largo. Paramos a descansar?
Deixaram as bicicletas a um lado da estrada e se sentaram na erva. A base aérea da Tachikawa ficava a suas costas. Na granja da colina de em frente, uma mulher com um quimono vermelho tendia a roupa a secar. Rie arrancou uma erva e a estudou com atenção.
— Quero lhe dizer algo mais sobre meu trabalho, sensei. Pode que tenha ouvido falar de uma casta de intocáveis no Japão: os ETA. E são intocáveis porque trabalham com cadáveres. Esta é a idéia de pecado para os japoneses, um contato com a sujeira. — Olhou abertamente a Barbara. — Não conte às outras em que trabalho.
— Entendo. Não o direi a ninguém. — Ao ver a cabeça inclinada do Rie, seu espesso cabelo negro reluzindo ao sol, sentiu uma pontada de afeto. — Seu trabalho tem que ser muito duro.
— Sim, mas devo fazê-lo. Um monge budista diria que isto se deve a um mau carma de uma vida anterior, mas estou contente com o trabalho. Meu pai não se encontra bem, e ao melhor assim posso lhe ajudar; os americanos me pagam um bom salário. Às vezes, enquanto estou trabalhando penso em quão irônico resulta este novo significado de «pôr boa cara», pôr uma boa cara ao soldado americano. Em realidade, não sempre estou tão zangada como lhe disse em meu escrito. Às vezes penso na mãe do soldado falecido. É uma experiência humana, não é? Não americana ou japonesa.
Barbara assentiu muito emocionada para falar.
— Quer que lhe descreva meu trabalho? Pode-o resistir?
— Sim.
— O cadáver do soldado está em uma habitação onde faz frio. — Moveu as mãos para indicar a forma de uma mesa. — O soldado está preparado para o ataúde. Só lhe vê a cara. Às vezes lhe falta uma orelha, ou a boca — se tocou a orelha, logo a boca. — Eu tenho que fazer a parte que lhe falte...; faço-a de cera, como um escultor.
Barbara recordou ao Jim e ao Coleman, quão soldados tinha conhecido no trem; talvez já tinham morrido.
— Arrumo-lhe a cara, embora falte uma parte. Com uma agulha curva, primeiro arena as partes que ficam — fez o gesto de costurar no ar. — Serve-me de base, entende?
— Sim. — Barbara se esfregou os braços. Estava tremendo. — Conhece seus nomes?
— Não, não me dizem seu nome. Quando terminei a base, cheio os ocos com cera fundida ou gesso e aplico cosméticos para imitar a cor da pele, negra ou branca. Para que pareça pele de verdade, com poros, utilizo uma broxa muito fina. Os americanos dizem que sou uma artista reparando rostos. — Fez uma pausa. — Não adivinha sensei, onde aprendi esta arte?
— Em uma escola especial?
— Sim, mas primeiro com a Okada sensei, meu professor de cerâmica.
— Quer dizer... Okada Seiji?
— Hai. Okada Seiji.
— Mas ele não trabalha... Com cadáveres, não?
— Não, faz terrinas, pratos, haniwa, e de vez em quando uma escultura. Mas trabalhar com argila ou com cera não é tão distinto. Está surpreendida, NE? Parece-me que conhece bastante a Okada sensei.
— Eu também estudei com ele — disse Barbara.
— Sério?
— Sim. Ensinava-me a fazer terrinas e pratos... — ardia-lhe a cara, — mas me parece que não sou muito boa nisso.
Rie apartou a vista. Olhou-se as mãos, logo fixou os olhos na distância.
— Ao melhor todos temos nossa vida secreta — disse Barbara.
Rie voltou o olhar para ela.
— Não tema, sensei. As duas guardaremos silêncio, desho?
CAPÍTULO 24
A princípios de junho começaram as chuvas. Todos os dias caía uma água tranqüila e persistente que o empapava tudo. Barbara despertava com o som das gotas repicando no telhado e aspirava o aroma de terra molhada e a folhas úmidas que entrava pela janela aberta. Recordou que a mãe do Michi as chamava «chuvas das ameixas», e foi várias vezes a comprovar como cresciam os dourados frutos do horta.
Em um extremo do jardim do Michi e em outros rincões do campus cresciam hortênsias de delicadas flores azuis. Barbara agarrou pesadas braçadas e enterrou a cara nelas, desfrutando de do prazer das úmidas pétalas contra sua pele. Colocou vasos de hortênsias em todas as habitações; a beleza das flores recordava dolorosamente ao Seiji. Depois da viagem ao Bozo se viram poucas vezes, e quando estavam juntos ele parecia sempre ausente e nervoso. A tia de Seiji havia tornado a aparecer pela casa de chá e só podiam ver-se às escondidas no quarto junto à oficina. Seiji comentou um dia que estava procurando outro lugar para seus encontros, «um sítio onde pudessem estar a sós e continuar com a tradução».
— Espero que o encontre logo. — Barbara o abraçou com força.
— Muito em breve — prometeu ele.
A primeira quinzena de junho Seiji esteve muito ocupado trabalhando em novas peças de cerâmica para enviar a Mashiko. A Barbara não importou, porque ela também tinha muito que fazer: avaliar trabalhos e preparar os exames semestrais. Disse-se que já estariam juntos durante as férias do verão, e talvez inclusive depois. Enquanto isso seguia com suas classes de japonês. Estava bastante orgulhosa de seus progressos. O senhor Wada lhe insistia em que devia esforçar-se mais com os caracteres escritos e a felicitava em troca por sua melhora na conversação. Entretanto, quando durante os trajetos em trem Barbara tentava falar com os passageiros, desanimava-se muito: não entendia virtualmente nada do que lhe diziam.
Uma noite telefonou a sua mãe do edifício central.
— Bobbie? — Pela voz, parecia meio dormida.
— Sinto muito, despertei-te.
— Já sabe que normalmente me acordado logo, mas hoje estou exausta. Ultimamente tive muito trabalho.
Continuou falando de seus artigos e lhe contou que se teve que ficar até altas horas da madrugada recortando as cascas dos sanduíches de agriões para um almoço no clube de bridge. Barbara escutava com as costas apoiada na parede.
— Estou apaixonada — a interrompeu.
— O que diz? Isto sim que é uma boa notícia. E quem é? É do consulado ou se trata do homem da beca Fulbright do que me falou?
— Refere-te ao senhor McCann? — Soltou uma gargalhada. — Não, é japonês. Chama-se Seiji Okada.
— Japonês?
— Sim, por que não?
— Bom, não me imaginava, não sei. Os homens japoneses são tão... Baixinhos — acrescentou rendo.
— Da guerra cresceram.
— Sério?
— Alimentam-se melhor.
— Bem, pois estupendo.
Às dois lhes escapou a risada.
— OH, Meu deus.
Barbara imaginou a sua mãe secando uma lágrima.
— A que se dedica?
— É ceramista, um artista com muito talento. E é estupendo… muito sensível e divertido.
Tome cuidado, Bobby, não te veja metida em um problema.
— A que te refere?
— Já me entende. Não te precipite como fiz eu, e te veja em uma situação que logo tenha que lamentar.
Fez-se um comprido silencio.
— Tenho que ir, mamãe — disse Barbara. — fiquei em casa da senhorita Ota para jantar.
— Senhorita o que?
— Ota.
— Bom, não faz falta que ponha assim.
— Sinto muito, mamãe. Adeus.
Antes de ir a casa da senhorita Ota, passou por seu apartamento para lavá-los dentes e pentear-se um pouco. O grande tema de sua mãe sempre era o arrependimento. Barbara tinha ouvido a história centenas de vezes: casou-se com seu pai muito jovem, tinha perdido a cabeça por ele e se ficou em seguida grávida. Quando se deu conta do engano, já era muito tarde; e nunca lhe ocorria acrescentar que não se arrependia de havê-la tido a ela. Aproximou o rosto ao espelho, recordando o koan zen que propõe "descrever a cara que tinha antes de nascer". Apoiou as mãos no bordo do lavabo e se olhou fixamente aos olhos até que deixou de ver os contornos de seu próprio rosto.
O jantar da senhorita Ota era uma mescla do Oriente e Ocidente. Consistia em bife, couve da China, arroz e de sobremesa, um bolo que lhe tinham enviado da Inglaterra.
— Desejava que se sentisse como em sua casa, mas me temo que careço da habilidade que tinha Nakamoto para fazer que seus convidados americanos estivessem cômodos.
— Asseguro-lhe que me sinto muito cômoda, sobre tudo com você. O agradeço muito, senhorita Ota.
— Não tem nada que me agradecer, querida.
Por uns momentos se concentraram na comida.
— Em seu discurso comentou que Nakamoto estava levando a cabo um trabalho de investigação em Califórnia — disse finalmente Barbara. — Do que tratava?
— Tratava sobre o capitão Perry, que abriu o Japão ao mundo no século XIX. Investigava a visão que se tinha dele nos Estados Unidos.
— Perguntava-me se não estaria procurando também a algum familiar.
A senhorita Ota arqueou as sobrancelhas.
— Como sabe você isso?
— Mencionava-se algo no escrito do que lhe falei.
— Entendo. — A senhorita Ota deixou a faca e o garfo sobre a mesa. — É certo que procurava uns familiares. Eu a acompanhei a um arquivo onde esperávamos encontrar informação sobre cidadãos de origem japonesa que viviam nos Estados Unidos durante a guerra. Naqueles tempos muita gente teve que trocar de cidade e de estado.
— Encontrou a seus familiares?
— O ano que eu estive com ela, não. Reconheço que quando voltou para o Japão não lhe perguntei se tinha tido êxito com suas pesquisas. Falávamos somente do que mais lhe preocupava, sobre tudo do Ume.
Quando voltou para casa do senhor Wada para sua classe de japonês, Barbara esteve a ponto de levar consigo o texto seguinte de Califórnia para que lhe jogasse uma olhada embora não o pusesse por escrito. Finalmente decidiu que se sentiria muito culpado.
Ao retornar a casa, telefonou ao Seiji.
— Quero que voltemos a traduzir, quero que alguém me explique o que põe nestes papéis.
Seiji não respondeu.
— Não me sente falta? — perguntou Barbara.
— Jogo muito de menos. No verão teremos um lugar para nos ver a sós.
— Mas já é verão!
— Enquanto isso está o problema de onde nos ver.
Logo Seiji telefonou e lhe anunciou que sua tia estaria fora na sábado. Barbara podia ir vê-lo.
Viram-se na casa de chá e voltaram para os textos do Michi pela primeira vez da viagem à península Bozo. Seiji leu o texto de 1950 com voz vacilante, e Barbara se perguntou se temia chegar a um parágrafo que preferisse calar-se, como fez com as últimas linhas dos papéis de 1949. Não resultava um texto especialmente interessante: o tempo em Nova Iorque, a má saúde do pai do Michi, o lento crescimento do Ume.
— Surpreende-me que não diga nada de ti — comentou Barbara quando Seiji acabou de ler. — Não era a época em que estava contigo em Fukuyama?
— Acredito que sim.
— Está seguro de que não aconteceste algo por alto?
Seiji lhe dirigiu um olhar cortante.
— Não, não me saltei nada.
Entraram no quarto da oficina e se tenderam na cama.
— Pensa em mim quando está no Mashiko? — perguntou Barbara.
— Penso muito em ti — murmurou Seiji, — sobre tudo quando estou no Mashiko.
— Poderíamos procurar um lugar para estar juntos de momento, enquanto procuramos algo mais definitivo — disse Barbara enquanto se vestiam. — Que tal uma habitação de hotel?
— Seria muito cara.
— Bom, não há pressa. — calçou os sapatos. — Agora tenho muito trabalho na universidade e com as classes de japonês. Tenho um professor muito interessante — acrescentou enquanto Seiji a acompanhava até a porta. — traduziu peças de teatro Não.
— Ah, sim? — Seiji franziu o sobrecenho. — Como se chama?
Barbara sentiu uma pontada de temor.
— Chama-se Wada... Ou Ueda, acredito.
As estudantes preparavam os exames semestrais e os trabalhos para a avaliação final, de modo que no campus reinava um ambiente de estudo e concentração muito acorde com a chuva. Barbara se passava horas tendida no futón, lendo. A chuva dos últimos dias tinha intensificado o aroma de madeira dentro do edifício. O tansu, em especial, exalava um aroma tão penetrante a cânfora que, quando fechava os olhos, Barbara se sentia arrebatada por um desejo quase insuportável de ver Seiji.
Os trabalhos que as estudantes apresentaram a final de mês mostravam importantes progressos: tinham aprendido; as classes da Barbara lhes tinham servido. Os melhores resultados se deram em alguns relatos da classe de redação. Junko leu em voz alta seu relato, a história de dois apaixonados obrigados a casar-se com outras pessoas. Ambos prometeram que se veriam uma vez ao ano, no festival de Tanabata, que se celebra em 7 de julho, quando a donzela bicho-tesoura e o pastor de gado se encontram no céu. Durante o resto do ano, a heroína de Junko, igual à legendária donzela bicho-tesoura, vivia entre a felicidade e o sofrimento, porque sofria e amava há um tempo, e isso era melhor que seu anterior estado, em que "nem amava nem sofria".
Quando Junko acabou de ler, fez-se um profundo silêncio no sala de aula. Barbara não sabia o que dizer. Tinha a sensação de que se tratava de uma história profundamente autobiográfica. Finalmente, Sumi salvou a situação dizendo: «Estamos tão comovidas que não podemos dizer nada.» Continuando, Barbara leu em voz alta o relato do Rie. Titulava-se «O inimigo» e transcorria no Vietnam. O narrador era Smith, um soldado norte-americano que não sabia quem era o inimigo. Todos os vietnamitas, fossem do norte ou do sul, pareciam-lhe iguais, e qualquer deles, inclusive um menino de aspecto inocente ou uma mulher, podia ser um espião ou levar uma bomba em cima. Sua unidade destruiu um povoado suspeito de apoiar aos comunistas; mataram a todos os habitantes, incluídos mulheres e meninos. Smith ficou paralisado quando viu que seu amigo Jones lhe cortava a orelha a um vietnamita que tentava defender seu povoado; logo o viu arrancar a roupa a uma bonita jovem e fazer «um comentário grosseiro». Smith se enfureceu e deu um murro em Jones, que levantou a arma e disparou a queima roupa. O capitão informou que Smith tinha «morrido à mãos do inimigo».
Quando Barbara acabou de ler, fez-se no sala de aula um incômodo silêncio. Ninguém se atrevia a olhá-la.
— É uma história importante — disse Barbara. — Demonstra imaginação e capacidade de empatia.
Rie sacudiu a cabeça.
— É real, sensei. Contou-me isso um enfermeiro norte-americano que conheci em Tóquio.
Um par de dias mais tarde, a mãe da Barbara telefonou.
— Tenho uma idéia. O que te parece se for verte este verão? Assim conheceria seu noivo e voltaria a ver o Japão. O que te parece? — gorjeou.
— Seria estupendo, mas não pode ser. Estarei muito ocupada.
— Mas tem férias, não? Disse-me que tinha dois meses de férias.
— Não são dois meses, parece-me. Além disso, tenho muito que fazer, estou convidada a vários lugares e prometi colaborar em um projeto.
— Já entendo.
— E, além disso, comecei a ver a guerra de outra maneira — acrescentou Barbara.
— A que te refere?
— Acredito que nos entremetemos em um assunto que não nos corresponde... Que não deveríamos estar ali.
— Além das novelas, teria que ler um pouco de história — interrompeu sua mãe em tom cortante. — Hitler esteve a ponto de conquistar o mundo, e os japoneses quase fizeram outro tanto.
— Mas o que há no Vietnam é uma guerra civil.
— Se Vietnam do Sul perder, os comunistas se estenderão por toda a Ásia e mais à frente.
Fez-se um silêncio carregado de tensão.
— Como era a vida aqui antes da guerra?
— Os japoneses eram muito educados, certamente, embora até certo ponto. Um dia fotografei uma inocente cena cotidiana em um restaurante e me confiscaram a câmara. Quando vi centenas de navios de guerra no mar interior perto da Hiroshima entendi o que se morava. Mas claro, não podia escrever sobre isso. Todas as noites inspecionavam a habitação.
— Nunca me contou como conseguiu entrar na Hiroshima. Pensava que não deixavam entrar nos americanos.
Fez-se outro comprido silencio.
— Conheci a alguns sobreviventes da bomba de Hiroshima — disse Barbara. — O que descrevem é aterrador.
— Não ponha muito sentimental com a Hiroshima. A bomba atômica salvou a vida a milhares de americanos. Os japoneses foram lutar até o final, todos estavam dispostos a fazer o hari-kari.
— O hara-kiri, quererá dizer. Inclusive assim, a bomba atômica o trocou tudo e nos converteu em culpados. A gente morreu de uma forma horrível...
Sua mãe soltou um bufado.
— Não ouviste falar da marcha da morte de Bataan e da violação de Nanking? Os que perderam a vida ali não tiveram precisamente uma morte gloriosa.
— Não o entende. Nunca quiseste me compreender...
— Não diga tolices.
Barbara tremia de indignação.
— Não me respondeste. Como conseguiu entrar na Hiroshima?
Sua mãe não respondeu imediatamente.
— Olá? Segue aí? — perguntou Barbara.
— Tinha um amigo.
— Um amigo japonês?
— Não, era um jornalista belga, ou pelo menos isso assegurava.
— Ele conseguiu te introduzir na Hiroshima?
— Sim.
Barbara ouviu que sua mãe acendia um cigarro ao outro lado da linha.
— Como o conheceu?
— No bar do Imperial Hotel. Sabia como me chamava e me disse que gostava de muito meus artigos.
— E então?
Ouviu-se um suspiro.
— Ofereceu-se a me apresentar gente, a me levar a sítios... Viajei com ele a vários lugares, entre eles Hiroshima.
— Viajou com ele?
— Era muito atrativo — acrescentou com uma risada nervosa —; uma espécie do Clark Gable com acento europeu. E era encantador! Dava-me de presente flores, me fazia presentes... Eu estava louca por ele.
— Não o diz a sério — disse Barbara. Estava aniquilada. Sua mãe tinha tido um amante, apesar de todos seus discursos sobre reservar-se para o matrimônio. — E como acabou?
— Um dia partiu. Disse-me que ia a Bélgica e que voltaria. Eu estive muito tempo perguntando por ele, lhe buscando... Até que uma jornalista do Tribuna me disse que era alemão.
— Alemão?
— Estou segura de que era um espião. Neste sentido suponho que lhe decepcionei, porque eu não tinha informação privilegiada.
— E tornaste, ou seja, dele?
— Não. Quando atacaram Pear Harbour, pensei: ele sabia o que ia ocorrer.
Barbara recordou o dia em que se conheceu o ataque ao Pearl Harbour: sua mãe ficou olhando pela janela, certamente pensando nele, no espião.
— Como se chamava?
— Se fazia chamar Jules André. Suponho que era seu nome de guerra.
— E quando esteve com ele na Hiroshima, escreveu algo?
— Um artigo muito inocente sobre um lugar chamado Café Brasil que estava de moda. Mas Hiroshima era o centro nevrálgico da atividade militar. Já sabe que então estavam em guerra com a China. Nunca esquecerei as caixas brancas que vi tirar de um navio: continham as cinzas dos soldados falecidos na Manchuria. Suponho que tentei mencionar isto no artigo, mas não chegou nunca aos Estados Unidos. Imagino que foi obra de meu suposto amigo.
Quando voltou para apartamento, Barbara ficou olhando o desenho da mulher raposa. Sempre pensou que sua mãe o tinha recebido como obséquio de um japonês aristocrático e tímido, «por ser bela como uma mulher raposa», mas ao melhor o tinha agradável Jules. A mulher raposa a olhava coquete do pôster pendurado, e seu olhar tinha um brilho mais misterioso e tentador que nunca. Pinçou entre os papéis do escritório da habitação ocidental até encontrar a foto de sua mãe frente ao Buda de Kamakura. Tinha aproximadamente a mesma idade que ela agora, embora parecia major com aquele apertado coque que seu pai descrevia como «feito com uma regra de cálculo». Ainda não era sua mãe então, só Janet Girard. Barbara imaginou apartando-se da câmara e aproximando-se com expressão mimosa a um homem moreno e com bigode que Luzia um sorriso como o de Clark Gable. Logo subiria com ele à habitação do hotel, desfar-se-ia o coque e se desabotoaria a blusa.
Ao final do trimestre tinham cessado as chuvas, e o último dia de classe foi brilhante e ensolarado. O campus estava repleto de pais que tinham ido recolher a suas filhas antes das férias do verão.
Rie recebeu seu diploma de médio curso em uma cerimônia privada no despacho da senhorita Fujizawa, a que assistiram seu pai e a própria Barbara. Logo os três passearam pelo campus. O pai de Rie lhes fez fotos às dois: junto à Vênus de Milo, frente ao lago de lótus, em uma sala de aula. Barbara estava muito triste.
— O que vou fazer sem o Rie? — perguntou.
A jovem intercambiou um olhar com seu pai.
— Queremos convidá-la a nossa casa de Hiroshima em agosto, para a festa Ou-Bon. Gostaria de vir?
— Claro, é obvio. Assim não temos que nos dizer adeus.
— Não, nunca nos diremos adeus — disse Rie.
No Sango-kan, Barbara se despediu do Junko e do Sumi, que voltariam para a universidade em outono, e também de Hiroko, que ia a Chicago para fazer um curso superior.
— Enviarei-lhe minhas impressões sobre a América e o capitalismo — disse Hiroko. — Quero estudar muito e ser professora como você.
Pela tarde, todas as estudantes se partiram e o campus estava tão formoso e tranqüilo como um quadro de que tivessem eliminado as figuras humanas.
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO 25
No fim de junho, Seiji se apresentou no Sango-kan. A senhorita Yamaguchi se apressou a avisar a Barbara.
— Veio a vê-la um cavalheiro — lhe disse, e baixou correndo as escadas.
Seiji esperava no vestíbulo contemplando a mansa chuva.
— Konnichi wa — saudou Barbara.
Seiji lhe respondeu com voz apagada.
— Damos um passeio? Tenho algo que te dizer.
Saíram a caminhar por um atalho entre as árvores. Barbara se resguardava sob o guarda-chuva do Seiji, que parecia nervoso e quase se queimou os dedos ao acender um cigarro.
— Vamos ver as ameixeiras? — sugeriu Barbara.
Passaram ante o lago de lótus e se aproximaram dos frutíferos através da empapada erva. A branca estátua da Vênus de Melo reluzia sob a chuva. Sob o céu cinza, as folhas molhadas brilhavam com luz própria. Os pequenos frutos dourados já tinham cansado e estavam pulverizados pelo chão. Barbara recolheu uma ameixa e recordou que Michi tinha comparado a sensação com a de ter um ovo fresco na mão.
— É o primeiro ano que Michi-san não está aqui para preparar licor — disse.
— Sim. — Seiji apartava o olhar. Só se ouvia o repico das gotas sobre o guarda-chuva.
— O que tem que me contar? — perguntou Barbara.
— Encontrei um lugar para nós em Asakusa, na casa de um amigo. Tem uma floricultura que antes era também sua moradia, mas desde que se casou já não vive ali. Deixa-me o apartamento de acima quando queira.
— Então podemos nos ver ali sempre que quisermos?
— Sim. Os fins de semana terão toda a casa para nós. Já levei ali o futón.
— OH, que bem.
— Poderíamos levar o tansu.
— Refere-te ao de Michi-san?
— Sim. Acredito que seria mais prático.
— Não me importa seguir conduzindo os papéis.
— Se levarmos ali o tansu não terá que te incomodar. Poderemos estar todo o tempo que queiramos e traduzir quando for bem. Kojima-san se irá uns dias de férias em agosto, e disporemos do apartamento. Você não gosta da idéia?
Barbara lhe acariciou a cara.
— Eu adoro. — E a ti também, pensou. Foi um pensamento tão intenso que lhe pareceu que Seiji devia havê-lo ouvido. — Assim chegaremos a nos conhecer muito melhor.
Seiji olhou a seu redor para comprovar que ninguém os olhava e a beijou longamente.
— Quando poderemos ir? — perguntou Barbara.
— Em julho, suponho, quando as estudantes e os professores se foram de férias.
Retornaram em silencio ao Sango-kan e se despediram na entrada. Barbara o olhou afastar-se pelo atalho de cascalho e se aproximou a ameixa à cara para aspirar seu quente perfume. Logo subiu a seu apartamento, tirou-se a roupa molhada e se tombou no futón. Por fim poderiam estar juntos e a sós. Imaginava o apartamento com o chão coberto de esteiras e um tokonoma onde penduraria o desenho enrolado e as peças de cerâmica de Seiji. Poria o tansu junto ao tokonoma.
Quando despertou à manhã seguinte, entretanto, olhou o tansu e sentiu o muito que lhe doeria desprender-se dele.
A finais da primeira semana de julho, a maioria das professoras que viviam na Universidade da Kodaira tinham abandonado o campus. No Sango-kan só ficavam Barbara e a senhora Ueda, quem tinha comentado que partia umas semanas a sua casa de montanha em Nagano. Barbara e Seiji esperavam a que se fora para transladar o tansu, mas passavam os dias e a senhora Ueda não mostrava sintomas de ir-se. Um dia que se cruzou com ela no vestíbulo, Barbara se decidiu a lhe perguntar quando partia.
— Infelizmente terei que postergar a viagem — disse a senhora Ueda. — Tenho muitas coisas que fazer no Kokubunji.
Ao dia seguinte, Barbara comprovou que o carro da senhora Ueda não estava. Certamente tinha ido fazer recados, e com um pouco de sorte estaria fora umas horas. Telefonou ao Seiji para lhe dizer que não havia mouros na costa e preparou a bagagem para passar a noite fora.
Seiji chegou ao meio dia acompanhado de um jovem que apresentou como Hiko-chan. Parecia mal-humorado, mas ao melhor só era tímido ou se sentia incômodo. Barbara o tinha visto na cozinha do restaurante e também circulando a toda velocidade em uma ruidosa moto pelo Takanodai; ignorava que explicação lhe teria dado Seiji.
Quando os dois homens estavam baixando o tansu pelas escadas, apareceu a senhora Ueda no vestíbulo com uma bolsa de comestíveis em cada mão. Seiji e Hiko a saudaram com uma inclinação de cabeça, mas ela ficou olhando.
— Aonde levam o tansu de Nakamoto-san? — perguntou.
— Levamo-lo A... Reparar.
— Está quebrado?
Barbara fez ver que não a ouvia e se dirigiu rapidamente para a saída, mas a senhora Ueda foi atrás dela.
— Não permita que o levem — disse.
— Não o danificarão. Deixá-lo-ão como novo. — ficou os sapatos na plataforma da entrada.
— Leva você uma mala. Passará a noite fora?
— Sim, fico dormindo no International House... Se me faz tarde — mentiu.
Seiji e Hiko envolveram o arca em um tecido grosa e o subiram à parte traseira da caminhonete. Hiko subiu de um salto e se sentou atrás junto ao tansu. Barbara ocupou o assento dianteiro. Quando saíram do campus e tomaram a estrada que levava a Tóquio, sentiu-se tão aliviada que começou a tremer.
— A senhora Ueda é uma mexeriqueira. — Seiji a olhou sem entender. — Quero dizer que é uma fofoqueira, uma mexeriqueira.
— Não gosta de nada verte comigo.
— Não, não gosta.
Com o sobrecenho franzido, Seiji fixava o olhar no tráfico. Barbara apoiou a cabeça no respaldo do assento e fechou os olhos. Ao parar em um semáforo, a caminhonete deu um inclinação brusca. Barbara gritou:
— Tome cuidado! — Jogou uma olhada à parte de atrás do veículo. Hiko olhava tranqüilamente pelo guichê e apoiava o braço no arca, como se lhe pertencesse. — Nem sequer o sujeita — protestou.
— É um bom menino — disse Seiji, — não se preocupe.
O apartamento estava no bairro Asakusa de Tóquio, na Rua Kappabashi, repleta de pequenas lojas.
— Esta zona é famosa por seus utensílios de cozinha — explicou Seiji. — Aqui compramos os artigos para o restaurante. Assim conheci kojima-san.
— E o que lhe contaste a respeito de nós?
— Hei-lhe dito que necessitávamos um lugar tranqüilo para fazer uma tradução importante; e também para escrever um artigo sobre minhas taças de chá.
— Pensará que o tansu contém cerâmica.
Barbara sorriu ao recordar que a senhorita Fujizawa tinha pensado o mesmo.
— Kojima-san não fará perguntas.
Seiji estacionou a caminhonete em um beco. Com a ajuda de Hiko, colocou a arca na floricultura e saudou kojima-san, um homem com óculos de arreios grosso que estava atrás do mostrador ajudando a uma cliente a decidir-se entre dois vasos. A loja era menor do que Barbara tinha imaginado e o ambiente, úmido e fechado, misturado com um espesso aroma a flores, recordava ao de uma funerária.
Seiji e Hiko subiram com o tansu ao piso de acima. Barbara se sentiu decepcionada ao comprovar que o apartamento não tinha uma entrada independente. Era muito pequeno: uma só habitação com um tatami no chão, uma cozinha diminuta e um banho. Depois de ajudar a depositar o arca junto à única janela, Hiko jogou um olhar curioso ao redor e partiu.
Saíram a comprar comestíveis para o jantar e a sua volta a loja estava fechada. Seiji tinha a chave da porta. Barbara pensou por um momento que teria o romântico detalhe de subir umas flores ao apartamento, mas subiu diretamente pela escada.
Decidiu preparar salmão com tirabeques tal como lhe tinha ensinado Michi. Na cozinha encontrou uma frigideira e uma panela pequena para preparar o arroz. O fogão da cozinha era difícil de regular e ela estava um pouco nervosa, de maneira que o arroz pegou na panela.
— Está horrível — se desculpou.
— Não, está muito bom — protestou Seiji.
Mas ficaram a rir quando começaram a comer, porque os grãos tinham ficado duros e rangentes.
— Terei que te enviar à escola de cozinha — propôs ele.
— E você que tal o faz? A próxima vez cozinha você.
— OH, isso seria desastroso. Quero te felicitar por sua maneira de cozinhar.
Olharam-se sorridentes e estenderam o futón. Como ao dia seguinte era domingo e a floricultura estava fechada, dormiram até tarde e se passaram quase toda a manhã na cama. Não começaram a trabalhar até depois de comer. Abriram a segunda gaveta e tiraram a garrafa de 1951, que era a que lhes tocava abrir. Era o ano em que Michi-san tinha ido a Califórnia, um dos textos traduzidos pelo senhor Wada. Seiji olhou a Barbara com expressão de assombro.
— O lacre está quebrado.
— Não só este — explicou ela, ficando vermelha. — A verdade é que tenho quebrado os selos de lacre. Procurava o desenho da raposa do que me tinha falado Michi-san.
— Tem aberto todos os pacotes?
— Sim, procurando o desenho. Encontrei algumas fotos.
— Que fotos?
— Uma de Ume e de Michi-san, e outra em que sai você. E há outra onde estão os três: Ume, Michi e você.
— Por que não me havia isso dito?
— Não pensei... Nunca parecia o momento adequado.
Seiji estava muito sério.
— Onde estão as fotos?
— Não faz falta que te zangue..., estão entre os papéis. Há uma aqui — tocou a garrafa de 1951 — e outra na de 1958, parece-me. — Desenrolou o papel de 1951, tirou a foto onde apareciam Michi e Ume e a pôs na palma aberta. — Isto é Califórnia, São Francisco — explicou. — detrás delas se vê o Golden Gate.
Seiji olhou atentamente a fotografia.
— Como pode estar tão segura?
— É uma ponte muito famosa, vi-o em centenas de fotografias.
Seiji abriu a segunda gaveta e extraiu a garrafa de 1958. Dentro do cilindro de papel encontrou sua foto em uma exposição de cerâmica. Olhou-a um momento e desembrulhou o papel.
— O que põe? Suponho que fala da exposição.
— Sim. — Seiji voltou a pôr a fotografia em seu sítio, dentro do cilindro de papel. — Não entendo por que não me havia dito nada.
— Já te hei dito que não o pensei. — Para demonstrar que não estava zangada, abraçou-o. — Por favor, não briguemos, não vamos danificar este dia tão bonito.
Seiji a beijou. Permaneceram um momento abraçados e se sentaram de novo à mesa. Ele traduzia e ela copiava a tradução com tanta atenção como se fora a primeira vez que a ouvia: Michi decide ir a Berkeley, atraída pela carta que Ko tinha enviado de Califórnia dez anos atrás. Os meninos do Ko e os poemas; a tristeza do Ume. Desejava não ter lido o jornal; quando o liam juntos resultava muito mais emotivo. Assim que Seiji acabou de ler, ficou de pé e foi procurar a garrafa de 1952 à arca. Estendeu o papel e o leu em silêncio.
— Encontra-a por fim? — perguntou Barbara.
— Agora o verá. Diz assim:
«2 de janeiro de 1952. Em Califórnia luz o sol incluso nos primeiros dias do ano novo. É muito alegre e luminoso, e a exuberância vegetal me resulta estranhamente cansativo. No jardim do edifício de apartamentos há um jardim de roseiras trepadoras e glicínias, e uma imensa árvore de abacate que dá frutos tão grandes que não parecem naturais. No jardim do lado há uma ameixeira, mas não é como as ameixeiras japonesas. No verão, em lugar dos frutos pequenos e dourados que conhecemos dá umas ameixas moradas. Jogo muito de menos o Japão e desejo incluso ver o céu cinza, mais em consonância com meu estado de ânimo atual. — Seiji fez uma pausa antes de seguir. — "Em alguns momentos, sinto tanta tristeza que não posso suportá-lo.»
— Michi se deprimia também aqui ou somente nos Estados Unidos?
— Por que o pergunta?
— Me ocorreu que talvez... Quando morreu...
Seiji sacudiu a cabeça energicamente.
— Fala de um estado de tristeza passageiro. É duro estar fora de seu país.
Barbara ficou olhando-o: estava sentado muito erguido na cadeira.
— Mas dá muita pena ler o triste que se sentia, não?
Seiji não respondeu, mas pareceu estar de acordo. Inclinou-se sobre o papel e seguiu lendo.
— Continuando, Nakamoto explica que ao Ume não gosta do sol e entorna os olhos para não deslumbrar-se. «Um dia Fomos pontuem Park, um lugar muito bonito, com um lago e uma erva tão verde que me parecia estar passeando por uma postal. "Ume e eu subimos a um...»
Abriu o dicionário em busca de uma palavra e a mostrou.
— Um carrossel — disse Barbara, — cavalinhos de madeira para que os meninos subam e dêem voltas.
— Entendo. Diz: «Montamo-nos em um cavalinho pintado que se movia acima e abaixo, mas Ume pôs-se a chorar e tive que baixá-la dali. Quando obtive que se tranqüilizasse, percorremos o bordo do parque procurando um lugar que chamam Ponto de Inspiração. "De ali desfrutamos de uma preciosa vista de São Francisco.»
— A fotografia! — exclamou Barbara.
Tomou a foto onde se via o Michi e ao Ume frente à baía de São Francisco. Michi dirigia o olhar do Ume para a câmara.
— Ponto de Inspiração — murmurou Barbara. Seiji se aproximou mais a ela para contemplar a foto. Seus ombros se tocaram. — Perguntou-me quem tomou a fotografia.
— Alguém que passava por ali, suponho.
Continuou lendo:
«Expliquei ao Ume que lá abaixo vivia sua avó Ko, mas é obvio não me entendeu. Preocupa-me muito a menina, não se desenvolve com normalidade. Só aprendeu palavras muito singelas, e embora já tem cinco anos não sabe avisar para ir ao banho. Em São Francisco, um médico muito respeitado me disse que a menina tem atraso mental, uma palavra que eu não gosto de nada. Perguntou-me pelas circunstâncias de seu nascimento, mas eu não podia falar com um médico americano... "Fez uma pausa — da bomba que lhe fez tanto dano.»
Barbara lhe tocou o braço.
— Não se preocupe. Pode me ler o que queira.
— Isto que escreve Nakamoto te interessará. Diz: «O verão passado me armei de valor e fui em busca da avó Ko. — Barbara deixou a caneta sobre a mesa e escutou. — Ume e eu tomamos um ônibus até um bairro de São Francisco chamado Pequena Osaka e estivemos horas procurando a Rua Pene que constava no sobre do Ko. Tivemos que caminhar muito até encontrar a direção, a certa distância de Pequena Osaka. Tivemos que parar várias vezes a descansar, mas Ume se comportou muito bem. Era uma casa de tijolo, habitada por uma família chamada Smith. "Ao princípio pensei que era um engano.» Nakamoto explica que o bairro japonês «ficou grandemente reduzido depois da guerra, quando os japoneses retornaram dos campos de internamento e descobriram que lhes tinham tirado suas propriedades».
Barbara lhe pediu que lhe lesse de novo a parte que falava do Ko e, enquanto a transcrevia, lembrou-se de sua excursão a Kamakura, quando Michi a levou a ver os lugares onde tinha estado sua mãe. Ao Michi não a tinha ajudado ninguém, nenhum americano a tinha guiado.
— vamos ler o seguinte texto — propôs Barbara. — Eu gostaria de saber se chegou a encontrar a sua avó.
Seiji se estirou.
— Estou um pouco cansado.
— Pois lhe jogue uma olhada. — Tirou do arca a garrafa de 1953, ajoelhou-se junto ao Seiji, desdobrou o papel e o aproximou. — Diga-Me só uma coisa, ainda está na Califórnia?
Seiji leu um pouco por cima.
— Sim, está em Califórnia — disse rendo.
— Por que te ri?
— É muito impaciente.
— Não possuo a virtude da paciência.
— E qual é sua virtude? — Seiji sorria.
— A paixão — respondeu ela, e o beijou.
— Kirekitsu.
Seiji deixou o papel e lhe desabotoou o vestido. Tenderam-se no chão junto ao tansu, iluminados pela luz dourada da tarde.
CAPÍTULO 26
A seguinte semana fez muito calor em Tóquio, e no apartamento da Asakusa a temperatura era asfixiante. Barbara e Seiji compraram um ventilador elétrico, mas só serve para mover um pouco o ar sufocante e agitar levemente os borde dos papéis que havia sobre a mesa.
Barbara tirou o vestido e se sentou a trabalhar sem mais roupa que as calcinhas, mas custou convencer Seiji, que parecia desconcertado e até um pouco escandalizado, de que tirasse a camisa. Levou ao salão umas toalhas úmidas e as utilizaram para enxugar o suor do rosto e dos braços enquanto liam.
O texto de 1953 começava assim:
«Este ano aconteceram muitas coisas. Em novembro nos alegrou receber a visita da Ota sensei. Tivemos largos bate-papos e desfrutamos cozinhando juntas pratos japoneses. "Quer muito ao Ume, que a considera sua avó.»
Querida senhorita Ota. Barbara imaginou em uma cozinha americana, um pouco desconjurado com seu quimono, preparando um cremoso chaman mushi para Ume.
— Quando Nakamoto lhe explicou que estava procurando a Ko, Ota sensei lhe sugeriu que telefonasse a todos os Yokogawa da listas telefônica. — Seguiu lendo em silêncio, percorrendo os caracteres com o dedo. — Mas já o tinha feito, sem êxito. Entre as duas procuraram dados nos arquivos, mas não encontraram nada.
— Explica que dados, que arquivos?
Seiji estava absorto na leitura e demorou para responder.
— Diz que as três fizeram uma excursão a Pequena Osaka (Nakamoto, Ume e Ota), e que comeram macarrão sova. Antes de ir-se, Ota perguntou ao dono do restaurante se lhe soava o nome de Ko Yokogawa, uma mulher que antes da guerra era conhecida por seus haiku e seus poemas tanka. Mas o homem não a conhecia. «Os clientes nos olhavam com curiosidade», diz Nakamoto, «e me senti envergonhada pelo acento britânico da Ota sensei, embora ela só queria me ajudar. Propôs que continuássemos investigando pelo bairro, mas Ume tinha começado a protestar e foi a desculpa para partir. Umas semanas depois de que Ota sensei se fora, retornei a Pequena Osaka por minha conta e, com muita discrição, perguntei às pessoas maiores que encontrava. "Finalmente...»
— O que aconteceu?
— «... Encontrei informação em uma loja, Mantimentos Secos Watanabe. "A mãe do proprietário estava ali casualmente e disse que conhecia o Ko Yokogawa, autora de poemas.»
Barbara abriu a boca, assombrada.
— Encontrou-a!
— Não te precipite. Nakamoto se emocionou muito, igual a você. — Seiji olhou sorridente a Barbara. — Mas aparentou muita calma e perguntou: «Está segura?» «OH, sim», respondeu-lhe a anciã, «era uma mulher muito formosa, pálida e de sobrancelhas espessas. "Trabalhava com sua filha em uma pensão».
— Disse-lhe como se chamava a pensão?
Seiji meneou a cabeça.
— Disse-lhe que Ko era famosa por suas predições além de por seus haiku e seus tanka.
— Suponho que Michi herdou o talento para a poesia de sua avó.
— Leu-te seus poemas?
Barbara se dispunha a responder, mas se deteve o recordar que o único conhecimento que tinha dos poemas era a partir dos textos que tinha feito traduzir.
— Acredito recordar que sim — disse por fim. — Falamos muitas vezes da literatura japonesa, e também dos haiku.
Pelo menos, não havia dito nenhuma mentira. Seiji a olhava muito sério, como se queria lhe ler o pensamento.
— Não resulta fascinante que Ko pudesse predizer o futuro embora não estivesse presente? A própria Chie acreditava.
— Como?
— Refiro a quando Ko predisse o bombardeio e aconselhou ao Chie que protegesse ao Michi e ao Ume.
Seiji soltou uma gargalhada.
— Você lhe crie isso?
— Sim, em certo modo.
Seiji sacudiu a cabeça sorrindo para si e voltou para a leitura do texto.
— Na América, conforme contou a anciã ao Nakamoto, as predições do Ko não eram bem recebidas porque falavam de possíveis traia.
— Provavelmente, Ko havia se sentido traída pela família Takasu e por isso via sempre ameaças de traição.
Seiji riu.
— Às vezes me parece que é você a que traduz.
— Não interpreta você o sentido do que está escrito? Nós o chamamos ler entre linhas.
Seiji se encolheu de ombros.
— Eu só leio.
— Bom, pois segue — disse Barbara com um sorriso. — Que mais diz?
— Wanatabe contou a Nakamoto que depois do incidente de Pearl Harbor, Ko e os dois filhos foram levados a um campo de internamento no Oeste, em Idaho ou Wyoming. O filho maior se alistou no exército.
— Em que exército?
— O dos Estados Unidos. Acabou trabalhando como intérprete dos soldados americanos no Pacífico. Que voltas dão as coisas, não?
— Resulta irônico que um parente do Michi lutasse contra seu marido.
Seiji assentiu.
— Nakamoto diz que lhe impressionou muito quando se inteirou. Tivesse-lhe gostado de fazer comprovações, mas acrescenta: «É inútil, tal como disse meu pai. Acredito que nunca a encontrarei. "Ko e seus filhos estão muito longe, perdidos neste imenso continente.»
— Acaba assim?
— Sim.
— Poderia me haver avisado de que se acabava assim. — Sacudiu a cabeça com pesar. — Perdoa, sinto-me muito frustrada.
Enquanto Seiji devolvia a garrafa à arca, Barbara ficou a rabiscar em seu caderno. Começou a desenhar uma mulher raposa, imaginando o que teria passado se Michi tivesse encontrado a sua avó. Ko se teria ficado de pedra, porque nem sequer conhecia a existência do Michi. Teria permanecido muito digna, sem mostrar nenhuma surpresa, e logo teria abraçado ao Michi. Então caía o pano de fundo. Como Seiji não voltava, levantou o olhar e o viu imóvel junto à arca.
— Passa algo?
— Há um papel que não tínhamos visto — disse, voltando-se para ela. — o de 1945.
— OH, é muito triste. Queria-lhe ensinar isso, mas...
Mas Seiji não a escutava absorto como estava em depositar a garrafa sobre o tatami, desatar a corda e abrir os dois pacotes, o de papel e o de tecido. Barbara se sentou a contemplar a operação, e a garrafa ficou nua entre os dois, balançando-se de um lado a outro com um ligeiro estalo. Fez-se um silêncio tão profundo que só se ouvia o ventilador.
— Tampouco me disse nada disto.
— Nunca encontrava o momento. Não é que lhe queria ocultar isso
Seiji apartou a garrafa e fechou o arca.
— Vamos tomar o ar — disse.
Na rua fazia tanto calor que o ar tremia sobre o asfalto e formava miragens na distância. Felizmente, encontraram uma casa de chá com ar condicionado perto da Rua Kappabashi. Sentaram-se frente a uma mesa e tomaram chá e biscoitos. Seus joelhos se tocavam sob a mesa. Seiji acendeu um cigarro e se reclinou no assento. Parecia mais depravado, como se tivesse recuperado o equilíbrio emocional.
— Passaremos um verão estupendo, não crie? — comentou Barbara.
Seiji sorriu.
— Sim, acredito que sim.
— Quando acabarmos de traduzir os textos do Nakamoto podemos trabalhar em outra coisa. Talvez poderia escrever algo sobre suas peças de cerâmica. Eu gostaria de tentá-lo.
Claro que o apartamento era diminuto, disse-se, mas podiam encontrar um maior. Não todos os professores estrangeiros residiam no campus. O senhor McCann tinha seu próprio apartamento, ninguém tinha sabor de ciência certa onde. Tóquio era uma cidade tão grande que resultava fácil passar despercebido.
De volta ao apartamento, viram um adivinho junto ao templo Asakusa. Barbara quis deter-se para que lhes dissesse a sorte. Tinham que escolher um pau com um número e o adivinho lhes entregava um papel escrito. O do Seiji dizia que era poderoso e chegaria a fazer-se famoso. No da Barbara não punha nada sobre o amor, só a tradicional predição japonesa de que encontraria um objeto que tinha perdido. Arrojou o papel e comprou outro onde punha que logo floresceria o amor.
— Não pode fazer isto — disse Seiji. — Só vale o primeiro.
— Não, que me deram estava equivocado. Sente saudades que seja tão supersticioso.
— Mas você também é supersticiosa ou não teria atirado uma predição que você não gostava.
Passaram por uma rua especializada em butsudan, santuários dedicados aos antepassados, como o que Barbara tinha visto em casa do Seiji. Havia barracas com santuários na cristaleira e a Barbara veio à mente a fotografia de Michi na estante de seu butsudan, tão juvenil com seu vestido do verão.
— A Michi-san gostaria de nos ver juntos, não crie?
Seiji soltou uma breve gargalhada e se deu meia volta para acender um cigarro.
— Sempre está imaginando coisas — disse.
Entraram em uma sala de cinema e viram um filme de samurais. Barbara não entendia uma palavra, mas era agradável estar sentada com o Seiji na sala climatizada. Agarrou-lhe a mão.
— É um costume americana — lhe disse.
Durante tudo o filme permaneceram muito juntos, com os dedos entrelaçados. De volta ao apartamento pararam para comprar frango assado em um posto guia de ruas. Subiram as escadas ainda da mão.
— Eu gosto deste costume americana — disse Seiji.
— Que tranqüilidade, não? Aqui não temos que nos preocupar de sua tia nem da senhora Ueda.
Quando fizeram o amor já anoitecia. Barbara se disse que Seiji parecia ausente. Apoiou a cabeça em seu ombro e se dispôs a dormir.
— Deveríamos ir. É tarde — disse Seiji.
— por que não ficamos esta noite? Pela manhã temos que traduzir o texto de 1954.
— Tem que ser discreta.
— Direi que me fui que viagem; no verão todo mundo viaja.
— Eu tenho responsabilidades em casa. — Seiji se levantou e começou a vestir-se.
Barbara abriu o tansu e tirou a garrafa de 1954.
— Façamo-lo agora. Tenho que saber se encontrou ao Ko.
— Acredito que Nakamoto voltou para o Japão ao ano seguinte, de maneira que certamente não a encontrou. Não há pressa, leremo-lo a próxima vez.
Barbara se zangou.
— Sempre é você o que decide o que e quando leremos. — Desenrolou o papel da garrafa e o jogou no Seiji. — Toma. Se não poder traduzi-lo, encontrarei a alguém que o fará.
Olharam-se em silêncio, cheios de fúria.
— Não faria algo assim — disse Seiji.
— Eu não gostaria, mas preciso saber o que põe.
Seiji agarrou o papel e o desenrolou com raiva.
— Tome cuidado.
Barbara quis agarrar o papel, mas Seiji o separou dela e leu rapidamente.
— Tal como te disse, não encontra ao Ko.
— Mas fala dela?
— Sim.
— E o que diz?
— Diz que os últimos meses na América foram muito duros. — Fez um gesto como tirando importância ao que lia. — Está triste e não pode ir a classe. — Outro gesto de impaciência. — E teve que partir sem o título, ainda obcecada por sua infrutífera busca. Tal como eu te havia dito.
— Já sei que o havia dito. Há algo mais?
— Segue algo sobre a volta ao Japão... Podemo-lo ler outro dia. Nós dois você e Seiji. Watakushi. Eu.
— Sim, você e eu. Não faça caso do que hei dito. Às vezes me irrita que sempre ditas você o que temos que ler o que temos que fazer.
— O que passa é que tenho que trabalhar. E quando leio algo que você não gosta, zanga-te. Boom! — levantou as mãos com gesto expressivo —; diz que procurará a outra pessoa.
— Não queria dizer isso, sério. Não estou zangada, só frustrada, mas não por sua culpa. — Abraçou-o, mas Seiji permaneceu rígido. — O sinto. Estive um pouco estranha. Não quero que nos despeçamos assim, por favor. Perdoa-me?
Seiji a olhou com severidade.
— Sim, perdôo-te.
Fizeram o trajeto de volta a casa em silêncio. Seiji deteve o veículo ante a universidade. Barbara tivesse querido lhe pedir que ficasse, mas teria sido pior. Tinha que lhe dar tempo para que lhe acontecesse o aborrecimento; agora precisava estar sozinho.
Dois dias mais tarde, uma sexta-feira, viram-se no apartamento. Barbara levava a comida favorita do Seiji: arroz e enguia assada. Aquela mesma manhã, o alfaiate a telefonou para lhe dizer que já tinha o vestido; o provou de caminho ao apartamento. Era de um tecido floreado de algodão, com uma saia de uma cor chamativa. Sentava-lhe muito bem. Guardou-o na mala que tinha preparado para o fim de semana; "Porei-me isso freqüentemente", disse-se.
Seiji já estava no apartamento, olhando os papéis, e se sobressaltou quando a ouviu chegar.
— Chegaste cedo — disse.
— Você também. — Jogou uma olhada aos papéis. — trouxe a comida.
— Ah, que bem — Seiji o agradeceu com uma pequena reverência. — Muito obrigado. Estava lendo para traduzir melhor. Queria te dar uma surpresa.
— E esta é minha surpresa para ti.
Barbara falou em japonês da comida que havia trazido e do calor que fazia. Quando colocou as caixas sobre a mesa, Seiji aplaudiu. Preparou o chá na cozinha enquanto ele apartava os papéis e limpava a mesa. A seguir serve o chá e levantou a taça para fazer um brinde.
— Brindo por um dia muito feliz — disse em japonês.
— Kanpai — Seiji bebeu um sorvo de chá e acrescentou em japonês: — Está muito bonita.
Barbara mencionou o novo vestido, ficou em pé e girou sobre si mesmo. Seiji riu.
— Uma formosa mulher. Kirei.
Ajoelhou-se junto a ele. Seiji a beijou e lhe acariciou os quadris, murmurando algo que lhe resultou incompreensível.
— Terá que me traduzir isso
— Ainda mais bonita sem o vestido.
— Acredito que ainda não me tirarei — riu isso Barbara. — Hoje faz mais fresco, não?
Quando tiveram jantado e recolhido a mesa, Seiji tirou o texto de 1954.
— Há uma coisa que te interessará — disse.
— A respeito do Ko?
— Indiretamente. É um texto muito sincero sobre o Nakamoto. — Leu a parte que tinha resumido para que Barbara pudesse copiá-la. — Aqui está o que te dizia. Nakamoto ainda está em Califórnia, e diz o seguinte: «Um dia em que estava muito triste Ume se sentou em meu regaço. Enquanto lhe acariciava a cabeça, disse-me que encontrei uma mãe em meu interior... ("é difícil traduzir isto) no momento em que fui mãe.»
— Encontrei uma mãe em meu interior no momento em que fui mãe?
— Exatamente.
Barbara recordou a noite de sua chegada ao Sango-kan. Michi lhe deu a mão e logo esteve todo o momento de um apartamento a outro para lhe proporcionar quanto pudesse necessitar.
— Entretanto, Nakamoto se faz recriminações. Diz que foi egoísta, que se ocupou mais de ir em busca do Ko que de cuidar do Ume. E assim que retorna ao Japão, leva a menina ao hospital de Cruz Vermelha na Hiroshima. Escreve: «O doutor me explicou que muitos bebês que estavam no ventre de sua mãe, com três meses ou assim, quando caiu a bomba, sofrem este atraso denominado microcefalia. E não se pode fazer nada mais que cuidar deles com muita paciência. Na Hiroshima há uma associação de pais destes meninos, o Clube do Cogumelo, e o doutor me apresentou isso. Receberam-me com carinho. Eu gostaria de ficar na Hiroshima, mas Ota sensei teve a amabilidade de me dar um posto na Universidade Kodaira, embora em realidade não tenho o título. "Além disso, meus amigos da Fukuyama se transladaram a Tóquio...»
— Refere-se a ti? — interrompeu Barbara.
— Sim, a mim, a minha tia e a minha mãe. Como não havia uma habitação livre no apartamento da Ota sensei, minha mãe convidou ao Nakamoto a casa. Disse que era como uma colônia de hibakusha, e que se encontraria como em sua casa. E aqui se acaba o relato — disse, olhando a Barbara.
Os dois riram. Seiji a agarrou da mão.
— Basta de trabalhar. Vamos passar o bem.
— Kojima está aqui ainda.
— Não faremos ruído. — Sossegou suas risadas com um beijo. — Conseguirei que não te ouça.
Ficaram toda a tarde no apartamento, até que Kojima se foi. Deram-se juntos um banho, saíram de passeio e jantaram em um restaurante próximo. De volta, quando subiam as escadas, Seiji lhe baixou a cremalheira do vestido.
— Um vestido muito bonito.
Depois de fazer o amor, ficaram abraçados sobre o futón.
— Sinto-me tão a gosto aqui contigo — disse Barbara. — Me sinto como em casa.
— Me ocorre o mesmo. Mas tenho que fazer cerâmica para manter a minha família; não posso abandonar totalmente meu trabalho. Entende-o, verdade?
— Entendo-o.
A relação com o Seiji foi adquirindo uma cadência: viam-se no apartamento um par de dias por semana, e se tendiam no futón assim que Kojima fechava a floricultura. Não estavam acostumados a ficar a dormir, mas Seiji lhe assegurou que passariam uma semana juntos, de férias «onde Kirekitsu quisesse». Quando retornava ao Sango-kan, Barbara se acomodava na fenda que tinha deixado o tansu do Michi no tatami e relia o que tinham traduzido pela tarde.
Em 1955, Michi levou de novo ao Ume ao médico do hospital de Cruz Vermelha na Hiroshima.
«Resulta estranho ver surgir edifícios modernos das cinzas enquanto o rio vai deixando na borda os ossos dos falecidos.» Sobre a viagem de Ano Novo, escreveu: «Esta noite, como outras muitas, medito sobre minha responsabilidade sobre o estado do Ume. Se em lugar de ficar tantos dias na cidade envenenada procurando a minha família tivesse partido a Kaitachi com meu pai, talvez Ume não estaria assim, talvez não seria uma menina de dez anos com mentalidade de quatro ou cinco. "Parece que é um engano que cometi várias vezes na vida, o de procurar sem resultado, mas neste caso as conseqüências foram mais graves.»
— Mas tinha que procurar a sua família — interrompeu Barbara.
— Sim, é certo — disse Seiji. — Mas para os estrangeiros é difícil entender o sentimento de culpa dos hibakusha, sobre tudo dos que sobreviveram sem seqüelas físicas.
Entre os papéis encontraram uma foto do Seiji sentado à mesa com o Ume e com o Michi. A menina comia macarrão e a mãe a observava.
— Era em sua casa? — perguntou Barbara.
— Acredito que era um restaurante. — Seiji deixou a foto a um lado.
Aquele texto não mencionava ao Seiji, nem tampouco o seguinte. Michi escrevia sobre suas classes e seus esforços para acabar o trabalho do capitão Perry. Também mencionava as visitas com o Ume a Hiroshima, embora de forma cada vez mais breve. Encontraram uma foto do Seiji, posando muito sério ante suas cerâmicas. Michi-san descrevia a exposição, contava que era um dia formoso e que tinha vindo muita gente. «Muitos compraram taças de chá, e se publicaram dois artigos em revistas de arte elogiando sua técnica e seu bom gosto.»
— Michi-san devia estar orgulhosa de ti — disse Barbara. — Eram artigos em japonês? — Seiji assentiu. — Me traduzirá isso?
— Talvez, algum dia. — Enrolou o papel e guardou a fotografia dentro.
— Não diz nada mais Michi da exposição? Parece-me que é muito modesto.
Seiji negou com a cabeça e sorriu sem dizer nada.
No fim de julho tocava ler o texto de 1960 que o senhor Wada já tinha traduzido. Quando Seiji desenrolou o papel, Barbara se sentiu incômoda; fez o possível por aparentar assombro e emoção ante o episódio do Ume e os poemas tanka. Sem levantar a vista, voltou a transcrever o que dizia Michi sobre os bolos mochi de Ano Novo. «Fui a meu quarto e me tendi no futón. Ume se tornou a meu lado e apoiou sua bochecha em minha cara. Em momentos assim, não me parece uma menina atrasada. "Entre nós se estabelece uma capitalista corrente de entendimento.»
— É muito tenro — murmurou Barbara.
— Sim. — Seiji suspirou e se dispôs a enrolar de novo o papel na garrafa.
— Tem-no lido tudo? — Havia relido a tradução do senhor Wada aquela mesma manhã, no trem. Faltava o poema.
— Sim.
— Está seguro?
— Claro. Por que o pergunta?
— Não sei, pareceu-me muito curto.
Seiji se encolheu de ombros e se voltou para guardar a garrafa no arca; sob a fina camiseta de algodão se marcavam seus músculos. Barbara recordou o texto de 1949 no que Michi explicava sua felicidade quando nasceu Ume e o importante papel do Seiji. «Nesse momento se converteu em um homem», tinha escrito. Mas talvez no processo tinha deixado fora outras partes de si mesmo.
— Estou cansada. Acredito que vou a casa — disse.
— Agora mesmo? — Seiji parecia assombrado.
— Sim, tenho que parar no Shinjuku...; encarreguei outro vestido.
— Entendo. — Franziu o cenho.
— Para ti também será melhor. Assim pode começar antes com suas responsabilidades.
Seiji não respondeu. Desceram em silêncio as escadas e se despediram na porta.
— Adeus. Tomarei o metro até o Shinjuku, será melhor.
Afastou-se consciente de que ele a seguia com o olhar. Quando chegou ao final da rua, ouviu o chiado da caminhonete girando em direção contrária. No trem que a levava ao Shinjuku abriu seu caderno de notas e releu o poema: «Uma branca nuvem de plumas / apanhada entre as árvores. / "De repente, dois pássaros escapam e voam livres.»
Comparou as duas traduções. Diziam o mesmo, salvo que a versão do senhor Wada incluía duas frases que não estavam na do Seiji: «Disse-lhe que se meus mochi não tinham ficado bem, podíamos comprar outros na loja, e se zangou.» E quando Michi se tombava no futón, Seiji tinha omitido que Michi chorou. Talvez não tinha emprestado atenção ao texto, ou lhe resultava violento dizer algo negativo de sua família; mas Barbara não entendia por que tinha deixado sem traduzir o poema.
Desceu do trem no Shinjuku e voltou para a Asakusa em metro. Kojima-san, que estava na loja junto a um cubo de crisântemos, olhou-a boquiaberto.
— Esqueci uma coisa — disse Barbara.
Subiu correndo as escadas, abriu a segunda gaveta do tansu e tirou o texto de 1960. Parecia-lhe mais curto do que recordava. Talvez Seiji tivesse apagado algo, mas não se via nenhuma marca, nem sequer contra a luz. Decidiu que o levaria de novo ao senhor Wada, e também os outros papéis que Seiji pudesse ter censurado.
Ouviu vozes e conteve a respiração. Eram um homem e uma mulher; ouviu que Kojima-san lhes dava a bem-vinda. Clientes, sem dúvida. Mais tranqüila, tirou o papel de 1962 e outros — o de 1949, os das décadas dos cinqüenta e sessenta — e os enrolou. Antes de partir, deteve-se olhar o tansu. E se Seiji editava também os escritos do Chie? Voltou e tirou todos os papéis que ficavam. Era sua arca e eram seus papéis. Meteu-se o grosso cilindro sob a roupa, de maneira que Kojima não o visse, saiu correndo para a parada de metro e tomou o seguinte trem em direção a Higashi Koganei.
CAPÍTULO 27
Encontrou aos senhores Wada comendo em sua casa. A senhora Wada insistiu em que se unisse a eles.
— Só são macarrão sova — disse. — Sintam bem quando faz calor.
— Obrigado, mas poucos, não tenho muita fome.
Assim que a senhora Wada entrou na cozinha, Barbara pôs sobre o tatami os papéis do Michi.
— Faria-me o favor de revisar comigo estes papéis depois de comer?
O senhor Wada assentiu com uma expressão de alarme.
— Suponho que sim.
— Sinto me haver apresentado sem avisar, mas se trata de uma emergência.
— Né? — O senhor Wada voltou a olhar os papéis. Quando sua esposa voltou da cozinha com os macarrão sova e o molho para a Barbara, falou-lhe em japonês e assinalou várias vezes os papéis.
Barbara comeu um pouco para agradar a seus anfitriões, mas em seguida deixou a um lado os palitos. A senhora Wada tentou que seu marido se desse pressa; falava-lhe zangada em japonês e o fazia gestos para que comesse mais rápido, mas ele continuou saboreando os macarrão sem alterar-se. Finalmente, levantou-se da mesa e lhe indicou com um gesto a Barbara que o acompanhasse ao estudo com o maço de papéis.
— Espero que se você encontre bem — lhe disse o senhor Wada, lhe aplaudindo o braço.
— Sim, estou bem. Lamento muito lhe incomodar.
O senhor Wada tomou assento e aguardou com as mãos enlaçadas. Barbara se sentou frente a ele e procurou no maço de papéis os textos correspondentes a 1960 e 1962.
— Me pode traduzir isso? — tendeu-lhe o texto de 1960.
O senhor Wada ficou os óculos, alisou o papel e olhou a Barbara por cima dos lentes.
— Diz você que é uma emergência.
— Sim. É difícil de explicar, mas lhe agradeceria muito que me ajudasse. Me diga, por favor, se houver um haiku no texto.
— Refere-se ao poema?
— Sim, ao poema.
— Uma emergência com um haiku. Que interessante.
Começou a repassar a caligrafia com o índice. A Barbara pareceu que lia mais lentamente que nunca. Estava a ponto de explorar quando o senhor Wada chegou ao último caráter e a olhou.
— Não há nenhum haiku.
— Você me tinha traduzido este texto. Lembra-se?
— Sim.
— Então havia um haiku.
— Sim, é estranho. — O senhor Wada sacudiu a cabeça. — Mas agora não há nenhum.
— É possível que o tenham apagado?
— Isso não é possível.
— Pode ler o texto?
— Acabo-o de ler, e não há nenhum poema.
— Quero dizer se pode lê-lo em voz alta, por favor. Eu gostaria de saber o que põe.
O senhor Wada lia em voz alta e Barbara seguia a versão que ela havia transcrito na caderneta. Faltavam as referências ao aborrecimento da senhora Kondo e ao pranto de Ume.
— Não pode ser — disse.
O senhor Wada se inclinou para ler a transcrição.
— Acredito que estamos ante um mistério.
Barbara lhe deu o papel de 1962. Descobriram que também faltava o haiku, assim como o comentário do Michi de que se sentia como uma mãe demônio por fazer sofrer a sua filha. A ponto de chorar, Barbara procurou entre os papéis até encontrar o texto de 1949.
— Por favor, me leia as últimas linhas.
Encontrou em seu caderno de notas a tradução das vivencias do Michi na Hiroshima.
— Diz: «Comia com os vizinhos e ajudava à senhora Okada, que se tinha ficado cega. Tanto o pai como a pequena Itsuko estavam desaparecidos. "Às vezes me acompanhava Seiji, o filho dos Okada, e juntos percorríamos a cidade em busca de nossos familiares.» Aqui acaba o texto.
— Não diz nada do nascimento do Ume, ou sobre como Sei-sejam se converte em um homem?
— Não. — O senhor Wada a olhou com expressão interrogativa. — Pode que tenha havido alguma confusão. Ou o têm feito a propósito? Talvez é obra de uma raposa.
— Uma raposa? Por que o diz?
— Uma superstição japonesa. Temos muitos ditos e contos tradicionais sobre animais maliciosos como a raposa, o texugo e a serpente. Eu adaptei ao teatro algumas velhas histórias de raposas. Conhece a história do pequeno ferreiro de espadas?
— Não. Senhor Wada, rogo-lhe que responda a uma pergunta: É possível distinguir em japonês uma escritura de outra? Sabe-se se os textos tiverem sido escritos por distintas pessoas?
— É obvio, sobre tudo nesta caligrafia com pincéis…
— Então tenho que lhe pedir um favor. Poderia olhar todos os textos, comparar as caligrafias e me dizer quantas pessoas têm escrito?
— Quer que examine todos os textos? Isso me levaria muito tempo...
— Não poderia simplesmente jogar uma olhada a cada texto? Não faz falta lê-los, só comparar as caligrafias. O rogo é um assunto de vital importância.
O senhor Wada a olhou muito sério.
— Quer que o faça agora mesmo?
— Sim, por favor, se for possível.
Seu interlocutor exalou um fundo suspiro.
— Está bem. Tentarei-o.
O senhor Wada desenrolou os papéis com cuidado e olhou a primeira folha. Quando ficou em pé e chamou a sua mulher, os papéis voltaram a enrolar-se sozinhos. Pediu-lhe à senhora Wada "Ou-sake, kudasai" — sake, por favor, — e tirou da estante um livro de teatro.
— Encontrará minha tradução do conto da raposa, O pequeno ferreiro de espadas. Assim se distrairá enquanto eu trabalho. — Moveu a cabeça com resignação e começou a folhear os papéis.
A senhora Wada trouxe uma bandeja com sake quente em uma garrafa de cerâmica, duas pequenas terrinas e, sobre um prato em forma de leque, bolachas sembe envoltas em alga. Serve-lhes o sake e colocou frente a Barbara o prato de bolachas.
— Dozo, vírgula, por favor — disse antes de partir.
O senhor Wada bebeu duas taças de sake antes de pôr mãos à obra. Incapaz de ler, Barbara sustentava o livro e olhava trabalhar ao senhor Wada, procurando que tivesse sempre sake na taça, embora ela logo que pôde prová-lo; recordava ao Seiji e o restaurante de Kamiya. Mas se acabou todas as bolachas, uma detrás de outra, e quando já não ficavam pediu mais. O senhor Wada seguiu bebendo sake até que finalmente começou a ordenar os papéis; colocava sobre cada um a palma da mão aberta, como fazendo um diagnóstico ao tato. Fez dois montões e ficou a rabiscar notas em um caderninho. Por fim elevou o olhar e dirigiu a Barbara um sorriso triunfal.
— cheguei a uma conclusão; acredito que é a explicação do mistério. — Passou as notas em limpo em uma nova folha e a entregou. Barbara leu:
«Anos 1930-1943. Primeira mão: Takasu Chie.
»Ano 1949, páginas um e dois. Segunda mão: Nakamoto Michiko.
»Ano 1949, página três, e anos 1950-1965. "Terceira mão: nossa raposa.»
— Há três escrituras distintas, três pessoas. A primeira diz algumas coisas sem sentido nas últimas páginas, mas é a mesma. A segunda mão só tem escrita duas páginas, as duas primeiras de 1949. O estilo é muito diferente do da terceira mão.
Barbara ficou olhando os caracteres de traços finos e inseguros, tentando entender.
— Quer dizer que...
— Nossa raposa cometeu um engano. Não copiou as duas primeiras páginas do ano 1949, só a última, onde queria omitir algum parágrafo.
— Significa...
O senhor Wada apoiou a mão sobre uma das pilhas.
— Anos 1930-1943. A caligrafia é antiquada, inconfundível. As duas primeiras páginas de 1949 — as aproximou para que as visse — também resultam inconfundíveis. É outra pessoa. — Deixou as duas folhas sobre a mesa e assinalou a pilha restante. — Todo o resto está escrito por uma terceira pessoa.
— Está você seguro? — Barbara folheou rapidamente o montão de papéis. — São os textos de Michi-san.
— Estou completamente seguro, sinto muito.
— Então, alguém copiou todos os papéis exceto esses dois.
— Isso parece — disse o senhor Wada.
Sentiu-se enjoada. Tudo dava voltas a seu redor.
— Lamento que minhas conclusões lhe resultem dolorosas.
— Não passa nada. Perdoe, mas tenho que partir.
Quando Barbara começou a recolher os papéis, ele se levantou do assento, dirigiu-se a um arca no extremo do estudo e voltou com umas tesouras e dois novelos de linho de seda, um branco e outro negro. Barbara tinha deixado em cima da mesa um sobre com o dinheiro.
O senhor Wada se sentou e depositou sobre a mesa os novelos e as tesouras.
— Um momento, agora o arrumo. — Enrolou os papéis classificados como copiados e atou um fio branco. Logo fez um cilindro com os papéis de Chie e as duas folhas de Michi e atou um fio negro. — Agora pode distinguir os autênticos dos falsos. O negro é autêntico e o branco é falso.
Barbara se pôs-se a chorar. O senhor Wada saiu correndo do despacho e voltou com sua esposa, que se aproximou dela com cara de preocupação.
— Não está você bem. Ficará para dormir.
— Tenho que voltar para casa.
— Ficará. Estou preocupada com você. — Voltando-se para seu marido lhe falou em tom de aborrecimento.
— Ah, ah. — O senhor Wada inclinou a cabeça. — Lamento muito se lhe causei um desgosto. Ao melhor equivoquei em minha conclusão.
— Não acredito. Não passa nada, senhor Wada, não é culpa dela. — Barbara deixou de chorar. — Estou bem, não se preocupem, mas tenho que ir.
Os Wada voltaram a intercambiar rápidas frases em japonês. A senhora Wada se dirigiu à cozinha.
— Tem que tomar um táxi — disse o senhor Wada. — Minha esposa foi a telefonar a um. Por favor, sente-se a esperar. Será um momento.
Cavou um almofadão e lhe indicou que tomasse assento. Parecia tão compungido que Barbara fez conta. A senhora Wada voltou da cozinha e se sentou no tatami junto a ela.
— Táxi virá logo.
Esperaram os três em silêncio. Os Wada a contemplavam preocupados.
— Agradeço-lhes sua ajuda, mas estou bem, sério.
Os Wada voltaram a parlamentar entre eles; a mulher entrou na cozinha e saiu ao momento com um maço de furoshiki.
— Pus-lhe umas bolachas e também um pedaço de bolo de feijões recém feito — disse.
Soou o interfone.
Chegou o táxi — anunciou com alívio o senhor Wada.
Desceram as escadas com ela e o senhor Wada lhe abriu a porta do táxi e deu instruções detalhadas ao taxista. Por isso Barbara pôde entender, explicou-lhe que ela era professora na Universidade Kodaira e que não se encontrava bem.
— Hai, hai. — O taxista assentiu.
Assim que o veículo arrancou, Barbara se despediu com a mão dos senhores Wada.
No Sango-kan só estava acesa a luz exterior; dentro do edifício todo estava às escuras. Barbara teve que medir em busca do interruptor para acender a pálida luz do vestíbulo. Desprendeu o telefone e o voltou a pendurar antes de subir a seu apartamento.
Que estúpida tinha sido! Ficou de pé contemplando o espaço vazio onde tinha estado o tansu. As raposas desde seu rincão e a mulher raposa do desenho que pendurava na parede lhe devolveram o olhar. Como a tinha enganado Seiji! Totalmente e a consciência. Mas por quê? Ajoelhou-se sobre o tatami e desenrolou as páginas falsas. O papel parecia o mesmo, com a mesma textura rugosa, mas teria que ter copiado os selos de lacre. Olhou atentamente os borde dos selos dos anos 1950 e 1960. Não havia dúvida: a cera parecia nova, tinha a cor vermelha brilhante do sangue fresca.
À manhã seguinte, colocou todos os papéis em sua bolsa negra e tomou o metro. Queria chegar a Asakusa antes que ele e desdobrar as provas. Mas quando chegou Seiji já estava ali, ajoelhado frente à mesa; tinha aberto as gavetas do arca e tinha descoberto que estavam vazios.
— Onde puseste os papéis? — perguntou com voz irada.
Barbara depositou a bolsa sobre a mesa, tirou o cilindro de papéis falsos e os jogou ante ele.
— Estes textos não são do Michi; tem-nos escrito você.
Seiji elevou o queixo para responder.
— Os textos são obra do Nakamoto sensei.
— É possível. Mas você os copiaste e omitiste algumas coisas.
Seiji não respondeu.
— Ontem os levei a um bom tradutor para que os examinasse. — Tirou da bolsa os papéis originais e os colocou junto aos falsos. — Curiosamente, faltam algumas frases que estavam nos textos originais. Por exemplo — cantarolou: — "Naquele momento Seiji se converteu em um homem."
Ficaram olhando-se. Seiji respirava com força e abria os guichês do nariz, o que quase o afetava. Barbara continuou falando.
— E também tem descoberto que há três tipos de escritura — se tirou do bolso a nota do senhor Wada. — Cometeste um pequeno engano, porque se esqueceu de copiar as duas primeiras páginas de 1949.
Seiji enrugou a nota e a jogou no chão.
— Isto o tem feito a minhas costas.
— O que queria que fizesse? Não podia fingir que tudo ia bem quando estava me ocultando uma parte dos escritos de Michi-san.
— E isso como sabia?
Barbara apartou o olhar dele e contemplou o tansu.
— Fiz traduzir um par de textos. Os de 1960 e 1961, com uns haiku que já não estão.
— Me imaginava. Por isso não podia confiar em ti. — ficou de pé.
— Mas não tem direito... Onde estão os papéis de Michi? Quero que me entregue isso. — Seiji a olhava sem dizer nada. — São meus papéis. Como pudeste me fazer isto?
— Nakamoto se referia para mim pessoalmente.
— E o que?
— Certamente se esqueceu de que tinha escrito esses textos.
— Como sabe que se esqueceu? Pode ler em sua mente... Embora tenha morrido?
Seiji não respondeu.
— Então admite que copiou os textos, que os falsificou.
Silêncio.
— Nem sequer tem o valor de admiti-lo. Vale, pois me devolva os papéis originais.
— Isso não é possível.
— O que quer dizer?
— Não lhe posso dar isso.
— E por que não? Deixou-me isso. São tudo o que tenho dela.
— Não grite, por favor. Kojima-san está abaixo.
— OH, Kojima-san pode me ouvir. Isso é o único que te importa: guardar as aparências, que a gente não pense mau. É o que se chama tatemae, não?
Seiji rodeou a mesa e começou a percorrer a habitação.
— Aonde vai? Primeiro me devolva os papéis.
Agarrou-o do braço, mas ele escapou e saiu.
— Seiji, espera...
Ouviu-o baixar rapidamente pelas escadas. Quando apareceu à janela, viu-o subir à caminhonete e arrancar.
CAPÍTULO 28
Barbara recordava ter visto um cilindro grande de papel de embalar na loja do senhor Kojima; combinando umas quantas palavras em japonês com um pouco de pantomima, conseguiu lhe pedir trinta folhas. O lojista acessou e cortou as folhas enquanto as contava em voz baixa, mas não quis de maneira nenhuma aceitar dinheiro em troca.
— Ie, ie — disse, negando com a cabeça.
Estava claro que a queria ver fora da loja quanto antes.
Barbara subiu ao piso de acima e envolveu as garrafas no papel de embalar para que não se rompessem durante o traslado. No táxi ao Sango-kan, elaborou um plano: iria diretamente a casa do Seiji e lhe pediria os papéis originais diante de sua mãe e de sua tia. Quando chegou ao Sango-kan, pediu-lhe ajuda ao taxista — um homem maior, de cabelo grisalho — para subir o tansu ao apartamento. Ao taxista lhe assombrou a força da Barbara, e ela se sentia realmente invencível.
Uma vez no apartamento, tirou as garrafas do arca e lhes tirou o pacote. Com umas tesouras cortou folhas de seu caderno de notas, fabricou etiquetas para as garrafas de 1950 a 1965 e as pegou sobre o vidro. Envolveu com o papel que ficava as garrafas do Chie e a do ano 1949. As outras as dispôs em ordem cronológica. Voltou a colocar sobre o tansu a fotografia do Michi e as raposas.
Uma das raposas, com a boca aberta e em forma de triângulo, parecia um passarinho pedindo comida; o outro o olhava com cara de recriminação.
Barbara sentiu que lhe abandonavam as forças. Era uma tarde úmida e calorosa tão cansativo como aquelas terríveis tardes de estio na Carolina do Norte. Recordou as sestas no Stone Street, com as cortinas jogadas e o ventilador da janela em marcha junto à cama, e decidiu que precisava descansar; tirou o futón e o travesseiro do armário e se tombou a dormir. Quando despertou, aturdida e empapada em suor, já tinha amanhecido. Fez o esforço de se levantar e preparar um chá na cozinha enquanto meditava como confrontar a situação com Seiji. Talvez era preferível falar com ele em privado, perto de sua mãe e sua tia; ele não quereria que os ouvissem. Vestiu-se e baixou ao vestíbulo. Antes de sair lhe ocorreu telefonar para comprovar que Seiji estava em casa. Respondeu-lhe a senhora Kondo. Não, seu sobrinho não estava e não sabia quando ia voltar. Era possível que se encontrasse fora da cidade, embora não saberia dizer onde exatamente.
Barbara ficou a passear acima e abaixo pelo caminho de entrada. O campus parecia deserto; nem sequer se via o carro da senhora Fujizawa. Só se ouvia o monótono canto das cigarras, um som quase sinistro. Voltou para apartamento e se desabou sobre o futón. Ao passar pelo vestíbulo ainda conservava a esperança de ver os papéis originais do Michi junto com umas flores ou um telegrama. Seiji tinha que dar-se conta do que lhe tinha feito; não quereria romper assim com ela. Serve-se um copo de vinho e outro, até que ficou dormida. Quando despertou olhou o relógio: as três, noite fechada. Apagou a luz, dirigiu-se a provas à habitação ocidental e se sentou frente à janela. Recortado contra o céu noturno, o apartamento vazio de Michi-san tinha a forma de um féretro. Recordou a foto de Michi sobre o altar funerário, com a cara ligeiramente inclinada, e se prometeu recuperar os papéis. Acendeu o abajur do escritório e tirou papel e uma caneta.
"Querido Seiji — escreveu. — Sinto muito me haver zangado. Espero que compreenda quanto queria a Michi e quão importantes são seus escritos para mim. Rogo-te que me devolva quanto antes os textos originais. Mancha as partes que não quer que leia se for preciso; algo será preferível a ficar sem esses textos. De todas as formas, eu gostaria de entender por que há coisas que não quer que leia. Se me explicar isso, talvez compreenderei seus atos. É preciso que nos vejamos quanto antes e falemos. Uma saudação, Barbara."
Ao dia seguinte levou a carta a Takanodai e chamou o timbre de fora. Como ninguém abriu, entrou no restaurante, viu o Hiko e lhe perguntou pelo Seiji. O homem sacudiu a cabeça e seguiu varrendo sem olhá-la.
Kimi saiu da cozinha e Barbara lhe fez uma pergunta.
— Okada Seiji-san?
A jovem sacudiu a cabeça e voltou correndo à cozinha tampando-a boca para afogar um acesso de risada ou de pranto, era difícil sabê-lo.
Barbara saiu do restaurante, dirigiu-se à zona de trabalho de Seiji e jogou uma olhada ao interior da oficina e do abrigo. No volto de olaria havia uma bolota de argila que Seiji tinha deixado pela metade; Barbara a tocou e a notou endurecida. Sobre as taças de louça em cima das mesas se depositou uma fina capa de pó. A porta do quarto onde estavam acostumados a fazer amor estava entreaberta e se via uma esquina da cama. Barbara se encaminhou para a moradia, disposta a atravessar o horta. As portas trilhos estavam totalmente abertos e da cozinha saía aroma de comida. Barbara gritou uma saudação:
— Konichi wa!
A senhora Okada se dirigiu para ela com uma mão estendida e murmurando com voz tremente. Barbara saudou e se apresentou em japonês, e lhe entregou a carta.
— Por favor, é para Seiji-san — disse.
A senhora Okada assentiu e agitou levemente o sobre.
— Seiji-san. Hai, hai.
De repente apareceu a senhora Kondo com os cabelos de ponta como se acabasse de levantar-se da cama.
— Lamento as incomodar — disse Barbara. — Lhe entreguei uma carta à senhora Okada para o Seiji. Ele não está em casa, não?
— Não, não está aqui.
— Sabe se esta em Mashiko?
— É possível. — A senhora Kondo se mostrava menos amável que de costume.
— Bom, agradecer-lhes-ei que lhe entreguem a carta quando voltar.
Dito isto, partiu. Durante seu caminho de volta através do bosque, prometeu-se que assim que chegasse ao apartamento telefonaria a Rie e prepararia sua viagem para na próxima semana. A porta do Sango-kan estava aberta, mas o edifício estava vazio e desolado. Barbara nunca se havia sentido tão sozinha. Desejou que a senhorita Ota estivesse ali e chamasse a sua porta para convidá-la a uma taça de chá; recordava seu olhar inteligente e cálida. Procurou seu número de telefone em Yonago e baixou ao vestíbulo a telefoná-la.
Uma jovem respondeu ao telefone. OH, sim, sua tia estava em casa. Agora mesmo a avisava.
— Querida menina! É estupendo que tenha telefonado. Suponho que virá a nos ver; esperamo-la.
— Muito obrigado, senhorita Ota — disse Barbara, sorrindo. — Lhe parece bem que vá a semana próxima, em 7 de agosto? Poderia ir depois da festa Ou-Bon em Hiroshima.
— Parece-me muito bem. Aconselho-lhe que tome o trem que vai pela costa. Desfrutará de uma esplêndida paisagem.
Barbara prometeu que voltaria a chamar desde Hiroshima e telefonou a Rie, quem lhe pediu que chegasse em 4 ou em 5 de agosto; nos dia 6 era a festa Ou-Bon, vigésimo aniversário do bombardeio, e haveria muita gente.
— A meu pai preocupa que não se encontre cômoda em casa. É um apartamento muito singelo.
Rie se referia a uma estadia curta. Ficaram de que chegar-nos-ia dia 5. Continuando, Barbara telefonou aos Wada "para saudá-los" e se sentiu agradecida quando a convidaram para jantar ao dia seguinte. Dois dias mais tarde, foi a Tóquio a comprar os bilhetes. À volta, desceu-se do trem no Kokubunji e viu um homem urinando na sarjeta. Em uma rua de pequenos comércios jogou uma olhada a um salão de jogos pachinko e lhe surpreendeu ver Seiji jogando em uma máquina junto à janela.
Ficou um bom momento olhando-o; parecia pego à máquina, só movia a mão para tocar os botões e para colocar mais moedas. Barbara tamborilou com os dedos na janela. Assim que a viu, Seiji saiu a seu encontro. Tinha os olhos vermelhos e emprestava a cerveja.
— Recebeu minha carta?
— Hai.
— Por que não me telefonou?
Seiji sacudiu a cabeça, olhando ao chão.
— Estou muito envergonhado. Não poderá me perdoar nunca. — Fez uma careta de dor e se arranhou a nuca.
— Tenho que falar contigo — disse Barbara.
Ele se balançou sobre os pés e elevou o olhar.
— Barbara-san.
— Está bêbado.
— Estou muito envergonhado.
— Acompanho a casa.
Tirou-o do braço e o conduziu rua acima. Caminharam em silêncio. Se o levava a sua casa não poderia negar-se a lhe dar os papéis. Teve que sujeitá-lo um par de vezes para que não caísse. No bosque tomaram o caminho, estreito e sombrio, ao Takanodai.
— Seiji — disse Barbara, — já sabe que Nakamoto sensei me importava muito.
Seiji se deteve para acender um cigarro e lhe indicou com um movimento de cabeça que queria sentar-se junto ao canal.
Sentaram-se junto à água sobre um promontório de erva. A corrente fluía tão lenta que logo que parecia mover-se.
— Falava-te de Nakamoto...
— Nakamoto...
— Tinha-me muito carinho. Era como uma mãe para mim. Por isso me entregou o tansu e os papéis de sua família.
— Estava zangada comigo. Se não, me teria dado o tansu, Okada Seiji — disse, destacando-se com o dedo.
— Não voltaremos a discutir sobre isso. Já te disse que se quer tachar alguns parágrafos, igual a fizeram com seus livros de história... Posso aceitá-lo, mas tem que me devolver os papéis.
Seiji sacudiu a cabeça.
— Vamos buscá-los — disse Barbara.
Seiji jogou no canal o cigarro, que se apagou com um assobio.
— Não os tenho.
— O que quer dizer? Não os terá destruído, não?
— Era inevitável — respondeu com voz apagada.
— Por quê?
Seiji murmurou algo em japonês.
— Fala em inglês! — Tocou-lhe o ombro. — Me Olhe.
Ele elevou a cabeça, mas seguiu sem olhá-la.
— Havia referências pessoais. Nakamoto e eu... — sua voz se perdeu.
— Nakamoto e você, o que?
Seiji recitou com os olhos fechados: "Uma branca nuvem de plumas apanhada entre as árvores. De repente, dois pássaros escapam e voam livres." Fala de mim e do Nakamoto.
— Não, refere-se ao Ume, quando visitaram ao aviário.
Seiji meneou a cabeça.
— Não, fala de nós. Nakamoto e eu estivemos juntos... Em um sentido íntimo.
— Íntimo? — Caía a noite e Barbara quase não distinguia ao Seiji, como se seus rasgos se tornaram imprecisos. — Não te entendo — sussurrou.
— Quero dizer, como marido e mulher... Um tempo. — Escondeu o rosto entre as mãos.
Barbara ficou olhando-o e soltou uma gargalhada seca.
— Não te acredito.
Seiji não se moveu.
— Era muito mais velha que você.
— Só tinha nove anos mais.
— Michi-san e você? — Por um momento lhe nublou, mas de repente o entendeu e ficou em pé de um salto. — Me utilizaste. Só estava comigo para conseguir os papéis.
— Não. — Seiji lhe tocou a perna. — Teríamos estado juntos de todas as maneiras, Barbara-san.
Barbara lhe apartou a mão bruscamente e ficou em pé. Ao longe se ouvia como um rumor o tráfico da estrada; correu para lá e tomou um táxi. Sentia tanta raiva que durante o trajeto imaginou que rompia todas as taças e os pratos de louça do Seiji as jogando contra a parede, inclusive as figuras haniwa; ouviu o ruído que faziam ao quebrar-se. Deixaria para o final a preciosa terrina Hamada. Quando chegou ao apartamento, tirou da geladeira os restos de comida dos Wada — pepinos japoneses, os biscoitos de feijões e um folhado cheio de nata comprado na confeitaria — e os comeu de pé na cozinha. Descobriu o pote de manteiga de amendoim e começou a comer o usando o dedo a modo de colher; tirou uma cerveja da geladeira, mas não encontrou abridor, procurou freneticamente na gaveta, e ao não encontrar nada esvaziou todo o conteúdo na pia. Uma moeda ficou entupida no deságüe. Lhe escapou um soluço, e a seguir um grito de raiva.
Mais tranqüila, foi ao salão, agarrou do tokonoma as terrinas de Seiji, pô-los um em cima de outro sem nenhum cuidado e saiu à parte traseira do edifício. Era de noite, mas à luz da lua se distinguiam claramente os cubos de lixo, o poste elétrico e os cedros. Barbara apontou e jogou contra o poste uma das terrinas, que estalou em mil pedaços. A segunda terrina aterrissou com um ruído surdo em cima do lixo. Ouviu um ruído a suas costas e se voltou: aparecida na janela da cozinha, a senhora Ueda a olhava em silêncio.
De retorno ao apartamento, Barbara agarrou a foto de Michi que estava sobre o tansu e a meteu em uma gaveta, entre umas mantas. Guardou também o maço de papéis que Seiji tinha querido fazer acontecer como obra de Michi. Deteve-se o ouvir que batiam na porta.
— Barbara-san?
Esperou a que a senhora Ueda se afastasse, levou-se o futón ao salão, longe do tansu, e se pôs-se a dormir. Despertou para ouvir uns buzinadas e apareceu à janela do dormitório. A caminhonete de Seiji estava estacionada no caminho de entrada e ele a chamava gritos desde fora:
— Barbara-san; Jefferson-san.
A buzina não parava de sonar. Por um momento, Barbara pensou que estava entupida, e logo viu que havia alguém dentro do veículo. Baixou correndo e encontrou à senhora Ueda no vestíbulo.
— Estão Armando muita animação — disse a senhora Ueda.
— Não se preocupe já me encarrego disto.
Assim que saiu, cessaram os buzinadas. Hiko estava dentro da caminhonete. Seiji se aproximou dela.
— Barbara-san...
— O que faz aqui?
— Vêem comigo a Hiroshima. Ali lhe explicarei isso tudo e o entenderá.
— Não vou contigo a nenhuma parte, entende?
— A semana próxima é a festa Ou-Bon... Pensava levar as cinzas do Nakamoto sensei, como tínhamos falado.
— Isso foi faz muito tempo. E já estou convidada a Hiroshima para a festa Ou-Bon.
— Encontrar-te-ei ali.
— É muito tarde. Me deixe em paz.
Seiji olhou à senhora Ueda, de pé ante a porta de entrada.
— Parte, por favor.
Barbara entrou correndo no edifício com a senhora Ueda. Fecharam a porta com chave enquanto viam afastá-la caminhonete.
— Você já me tinha prevenido — disse Barbara.
A senhora Ueda suspirou.
— Lamento muito que lhe tenha feito mal.
— Nakamoto-san falava dele? Estavam de verdade apaixonados?
— Lhe fez muito dano — disse a senhora Ueda, olhando-a aos olhos.
CAPÍTULO 29
Apesar de que tivesse bebido várias taças de vinho, Barbara não pegou olho. Pela manhã encontrou a geladeira quase vazia: só ficava um bolo de feijões envolto em um guardanapo de papel e um ovo com a casca rota; a gema tinha manchado o ralo, mas não teve ânimos para limpá-la. Sentou-se à mesa com uma taça de chá e o bolo de feijões. Não podia apartar o olhar do tokonoma onde tinham estado as terrinas de Seiji; só ficavam duas marcas na superfície poeirenta. Os papéis de Michi-san tinham desaparecido, não existiam.
Decidiu que tinha que sair dali quanto antes e recordou que durante as férias da primavera tinha pernoitado em um templo budista em Kioto. Ao sacerdote e a sua esposa gostava de falar com os estrangeiros e a tinham convidado a voltar. Os dois falavam um inglês impecável.
Telefonou e falou com a esposa, quem lhe assegurou que ficava uma habitação livre e que não havia problema em que se apresentasse essa mesma noite. Barbara não o pensou duas vezes; fez a bagagem para passar duas semanas fora, em Hiroshima e em Yonago, e agarrou um táxi à estação. Em Tóquio teve sorte e pôde trocar os bilhetes; encontrou um lugar no trem de alta velocidade para Kioto que saía ao fim de meia hora.
Depois de deixar atrás as refinarias, as fábricas e os feios edifícios de concreto dos subúrbios de Tóquio, o trem atravessou verdes campos. Ao fundo se divisavam as montanhas médio esconde entre as nuvens. De repente, as nuvens se abriram e apareceu o monte Fuji recortado contra o céu azul. Barbara recordou sua viagem a Hakone, a intimidade com Seiji, a ascensão no sala de TV... Abandonou a sua companheira de assento — uma moça que tecia uma palha de chapéu de agulha de crochê para bebê — e se dirigiu ao vagão restaurante, onde permaneceu o resto do trajeto contemplando pelo guichê a imprecisa paisagem. No templo lhe deram a mesma habitação pequena e coberta com tatami que já conhecia. Embora só fosse meio dia, tirou o futón e se tombou a reler um livro: Luz de agosto, do William Faulkner.
Antes do alvorada despertou o gongo que chamava à meditação zazen. Amanhã, prometeu-se, e seguiu dormindo. Na hora de tomar o café da manhã, no quarto destinado ao estudo do zen, conheceu os hóspedes: dois jovens que viviam em uma comuna em Califórnia. Tinham queimado suas cartilhas de recrutamento e estavam procurando o satori. Um deles, com óculos e a cara destroçada pelo acne, as arrumava para ler retalhos de seu livro do Schopenhauer em cada pausa da conversação. O outro, de cabelo comprido e com um brilho paranóico no olhar, assegurava estar desfrutando daquele lugar, vivendo realmente o momento.
Barbara tinha planejado sair de passeio ao dia seguinte, mas voltou a ficar dormida quando chamaram à meditação e ficou no templo lendo e bebendo café. De vez em quando lhe assaltava a insuportável visão de Michi e Seiji em momentos de intimidade, na casa de chá ou no quarto da oficina de olaria. Pela tarde foi passear pelos jardins do templo. A esposa do sacerdote lhe havia dito que estava acostumado a haver rouxinóis no bosque de bambu, e às vezes inclusive raposas, mas não ouviu uns nem a outros, só o zumbido estridente e monótono das cigarras; disse-se que não havia outro som mais adequado para expressar o vazio e a solidão. De repente, deu-se conta de que se perdeu; a seu redor só via altos caules de bambu, juncos verdes com pinceladas azuis e alaranjadas. Começou a correr entre a espessura e não parou até divisar o telhado do templo, meteu-se em sua habitação e voltou a inundar-se nas paisagens familiares do livro do Faulkner: a argila vermelha, os pinheiros.
À manhã seguinte, o sacerdote, um homem com óculos e de rosto agradável, apresentou-se no centro de estudo para falar com os americanos. Fazendo ornamento de uma infinita paciência, dirigiu-se aos jovens, que lhe tinham expressado o desejo de converter-se em seus discípulos.
— Por que o desejam? — perguntou em voz baixa.
— Para alcançar a iluminação — disse o que lia ao Schopenhauer.
— E o que é a iluminação? — perguntou o sacerdote.
— Vá, se conhecêssemos a resposta, suponho que não estaríamos aqui — disse o outro jovem.
— Talvez sim que estariam — disse o sacerdote com um leve sorriso.
— O que é a iluminação, sensei? — perguntou o leitor do Schopenhauer.
— O professor zen Dogen disse que a iluminação é como o reflexo da lua na água. A lua não se molha, nem a água se rompe. Toda a lua e todo o céu se refletem nas gotas de rocio, em cada gota de água.
Fez-se o silêncio. Os jovens aguardavam espectadores, mas o sacerdote não disse nada mais, de maneira que finalmente saudaram com uma inclinação de cabeça e partiram.
O sacerdote se voltou então para a Barbara.
— E você que busca?
— Eu só quero esquecer.
— Para esquecer temos que recordar.
— Recordo-o todo muito bem.
O homem a olhou com atenção.
— Sente muita dor.
Barbara assentiu.
— A meditação zen pode ajudá-la. Inspire, pense no que lhe causa dor e deixe ir o pensamento ao expulsar o ar. — Inspirou profundamente com os olhos fechados e logo exalou lentamente pelo nariz. — É uma idéia simples, mas muito difícil na prática — acrescentou. — Tenha paciência. Inclusive um instante de paz resulta de grande ajuda para começar a desprender da dor.
Ao dia seguinte, antes que amanhecesse Barbara se sentou junto a uma fileira de monges em uma habitação fria e escura. Quando só levava uns minutos na posição do lótus, começaram a lhe doer as pernas e as costas. Esperava-lhe uma comprida viajem a Hiroshima e tinha que ter dormido em lugar de meditar; uma só vez não lhe ia servir de nada.
Quando soou o sino, tomou uma profunda inspiração e reviveu a cena com o Seiji no campo de esportes, quando lhe ofereceu a terrina raku e lhe disse: "Para ti, dozo." Que feliz se havia sentido, com que emoção tinha percorrido o caminho junto ao canal aquele fragrante dia da primavera. Recordou quando se sentaram junto ao canal; Seiji falou sem olhá-la, e o cigarro que jogou na água se extinguiu com um assobio. Voltou a ouvir a senhora Ueda explicando que Seiji tinha causada dor a Michi. Pensou em Ume, com sua cabeça pequena e seu corpo grande, um espinho cravado no coração de Michi. Levou-se uma mão à cara e a notou úmida. Tinha estado chorando em silêncio, sem dar-se conta.
De caminho à estação, ficou olhando pelo guichê do táxi. A todas aquelas pessoas tão reais — a mulher com um quimono branco e um furoshiki laranja, o executivo que consultava o relógio — não as veria mais. No trem, dobrou o casaco para utilizá-lo como travesseiro e o apoiou contra o cristal da janela. Pediu- perdão ao Michi mentalmente; sinto muito, disse-lhe, deveria ter imaginado o do Seiji, e agora seus papéis desapareceram. "me perdoe, me perdoe, por favor...", repetiu uma e outra vez seguindo o ritmo do estalo continuado do trem até que ficou dormida.
Rie e seu pai a esperavam na estação. O senhor Yokohagi a saudou com várias inclinações de cabeça.
— Encantado. Minha filha a esperava.
— Alegra-me que tenha vindo sensei — disse Rie.
Para ir ao apartamento, no centro da cidade, tomaram um bonde que ia abarrotado. Barbara observou que o senhor Yokohagi tinha na cabeça um proeminente quisto e se perguntou se seria canceroso, causado pela radiação. Rie lhe tinha comentado que seu pai não gozava de boa saúde. Enquanto contemplava os edifícios de concreto, os ônibus e as ruas cheias de gente imaginava a cidade que tinha conhecido sua mãe; recordou a fotografia em que a via em Hiroshima, frente ao desaparecido teatro Kabuki. Seiji o tinha conhecido, e também Michi. Certamente Michi tinha estado ali mais de uma vez. Começou a lhe doer a cabeça.
O bonde cruzou um rio de águas chapeadas, e logo outro com imensos arbustos de adelfas nas margens. Atravessaram uma terceira ponte.
— Quantos rios! — exclamou Barbara.
— Há sete rios em Hiroshima — disse Rie, — todos afluentes do Ota, que nasce nas montanhas. — Enumerou-os contando-os com os dedos. — Deste ao oeste: Enko, Kyobashi, Motoyasu, Honkawa, Temmagawa, Kawazoegawa e Koi.
O senhor Yokohagi se inclinou para a Barbara e lhe fez uma pergunta em japonês.
— Meu pai quer saber se gosta da cidade.
— É bonita, mas estranha — disse Barbara.
Rie lhe traduziu a resposta a seu pai e acrescentou em voz baixa:
— Entenderá-o melhor se pensar na cidade irreal da que fala Eliot na terra baldia.
Rie e seu pai viviam no último piso de um edifício feio e cinza. Não havia elevador e tiveram que subir as seis novelo a pé; o senhor Yokohagi carregava com as malas da Barbara. Ao chegar acima, abriram uma porta e passaram a um balcão com uma corda de estender roupas em que se secavam ao vento camisas e roupa interior. O apartamento dos Yokohagi estava ao final do balcão.
— Bem-vinda a nosso modesto lar — disse o senhor Yokohagi.
O apartamento consistia em um vestíbulo com um banho à esquerda e um inodoro à direita e uma sala que incluía a zona de cozinha. Em um extremo havia dois pequenos dormitórios com tatami. Rie depositou as malas da Barbara no dormitório que compartilhariam e saiu para deixar que colocasse suas coisas no armário e em uma gaveta vazia do tansu.
Quando Barbara abriu o armário para pendurar um vestido se levou um susto ao ver uma cara de olhos saltados que a olhavam: era uma cabeça de argila, uma escultura. Salvo pelos olhos, muito saltados, parecia-se com Rie. Disse-se que era um objeto um tanto curioso para guardar no armário; parecia feito a propósito para assustar. Enquanto isso, Rie tinha preparado chá e a esperava na cozinha. Barbara pediu uma aspirina e a jovem lhe deu uns comprimidos dissolvidos em um copo de água. O senhor Yokohagi se sentou com elas e falou com sua filha sobre o que foram preparar para comer. Logo disse algo em japonês.
— Hai. Okada-san telefonou — traduziu Rie.
— Okada Seiji?
Rie assentiu.
— Como sabia que eu estava aqui?
— Sabe que nos conhecemos e pensou que estaria aqui de visita ou que eu saberia onde se encontrava.
Barbara sentiu que lhe encolhia o estômago.
— E o que há dito? Vai vir?
— Isso acredito. — Rie intercambiou um olhar com seu pai. — Espero que não lhe tenhamos causado nenhum problema.
Barbara forçou um sorriso.
— Não, nenhum problema. Não se preocupe, não passa nada, de verdade.
— Gosta de visitar o Museu da Paz? Amanhã, 6 de agosto, é o dia da comemoração e estará muito cheio.
— Bem, vamos hoje mesmo. — Era um sítio que ao Seiji não lhe ocorreria visitar.
Tomaram o bonde. Rie assinalava a Barbara os lugares significativos por onde passavam: o bairro comercial do Hondori, com suas luzes em forma de lírio, as lojas de departamentos Fukuya, que ficaram semi destruídos e tinham sido totalmente reabilitados, a enorme cúpula ereta em memória da bomba atômica que dominava a cidade. Desceram do bonde e se internaram no frondoso Parque da Paz, atravessado por atalhos e talher de grama. A maioria dos passeantes eram japoneses, mas Barbara — que procurava o Seiji com o olhar — observou que também havia estrangeiros.
Entraram no museu com uma larga fila de visitantes e percorreram as salas em silêncio. As fotografias recordaram ao Seiji: as costas de um homem, tão destroçada e sulcada de cicatrizes que parecia um mapa; uma marmita escolar com o conteúdo convertido em uma massa negra irreconhecível; um relógio sem ponteiros de relógio, mas com uma sombra que indicava o preciso instante em que o tempo se deteve, as 8.15. Barbara saiu do museu exausta. A luz do sol lhe fez piscar os olhos os olhos. A seguir passearam pela borda do rio Motoyasu.
— Esta é a zona zero. — Rie lhe indicou com a cabeça uma tabela de madeira.
Barbara se inclinou para tocá-la e uma descarga elétrica lhe percorreu o braço. A seu redor havia gente caminhando ou descansando nos bancos do parque. Um menino com um sorvete na mão corria açoitado por sua mãe. Era um caloroso dia de agosto, igual ao de vinte anos atrás; uma abafadiça e poeirenta manhã do verão. Seiji se encontrava em cama com dor de dente e um lenço pacote no alto da cabeça. Michi estava cozinhando e pensando no muito que gostava de uma rodela de limão.
— O que fazia esse dia? — perguntou ao Rie.
— Eu não recordo nada; mas meu pai me contou o que ocorreu a minha mãe — diminuíram o passo. — Estava no jardim carpindo a plantação de batata-doces e me levava às costas. Houve um enorme brilho e uma explosão tão forte que caiu ao chão. Quando se levantou e começou a correr rua abaixo procurando a meu pai, pensou que tinha chegado o fim do mundo. Não podia acreditar o que via; todo mundo estava morto ou gemendo. Viu uma menina que sustentava um olho na mão. Sobre a cidade se abatia uma aterrorizante nuvem de cor púrpura. Minha mãe queria encontrar a seu marido para que os três pudéssemos morrer juntos, mas então começou a cair uma chuva pesada, assim que me envolveu em seu quimono e me levou a casa. Talvez assim evitou que eu adoecesse e morrera como ela por causa das radiações.
O rosto do Rie conservava uma expressão de estoicismo.
— Resultará-te difícil não odiar aos americanos.
A jovem negou com a cabeça.
— Entendo que o Japão foi agressor na guerra. E o exército não está livre de culpa. Quando caiu a bomba em Hiroshima, por exemplo, milhares de coreanos viviam quase como escravos aqui; nem sequer se encontraram seus nomes. Mas como curar o germe da bomba atômica? Só há esperança se a gente conhecer as conseqüências. Por isso escrevo a história de meu pai.
— Disse-me que se salvou por um milagre pouco honorável.
— Assim é. Encontrava-se perto, a menos de noventa metros da zona zero. Era um soldado e estava em zona militar. Perguntei-lhe se não lhe importava que lhe contasse a história e quer que você a conheça. Esta noite a podemos contar.
Barbara ajudou Rie a preparar tempura enquanto o senhor Yokohagi lia o periódico e bebia sake na cozinha. Durante o jantar tentaram conversar, o senhor Yokohagi em seu inglês rudimentar e Barbara com as poucas frases em japonês que conhecia. Depois de jantar, Rie foi em busca de seu manuscrito e o entregou a Barbara.
— É o livro que estou escrevendo, onde conto a vida de meu pai.
Barbara folheou as páginas escritas a emano com uma formosa letra.
— Trabalhaste muito — lhe disse. — Espero que tenha feito uma cópia disto.
— Não me preocupa, conheço a história de cor. Quer ouvi-la?
— Sim, obrigado.
Sentaram-se os três sobre o tatami.
— "Meu pai, Yokohagi Soichi — saudou seu pai com uma inclinação de cabeça, — era de origem humilde, como já hei dito. Entretanto, tinha as simpatias do oficial ao mando. O dia em que arrojaram a bomba estava com seus companheiros no campo de treinamento. um pouco mais tarde que as 8, pediu permissão para ir ao banheiro."
Barbara olhou ao senhor Yokohagi, que não apartava a vista de sua filha.
— O oficial lhe deu permissão para ausentar-se, e aquele modesto abrigo lhe salvou a vida. A bomba caiu com um estalo de luz e um rugido que parecia provir do centro da terra. O abrigo se veio abaixo e uma árvore próxima se derrubou sobre ele, mas meu pai conseguiu sair. Quase todos outros soldados estavam mortos ou agonizavam; alguns tinham ficado completamente carbonizados. Meu pai não pode ver nada no meio da fumaça espessa que lhe queima os olhos, e se pergunta se estiver realmente vivo. Talvez está em meio de um pesadelo, ou é um fantasma. O que vá a seu redor é tão terrível que se imagina que é o inferno budista. Mas então ouça um companheiro que lhe pede água, por favor: "Ou-mizu, kudasai." Meu pai o carrega à costas e corre para o rio. Pelo caminho, ouça os gemidos de outros companheiros que chamam a sua mãe ou pedem água; supunha-se que as últimas palavras de um soldado tinham que ser de louvor ao imperador, mas só os ouça pedir água ou chamar a sua mãe. Embora faça todo o possível por ajudar aos moribundos, quase todos morrem.
"Logo corre a casa para ver sua esposa e a sua filha. Até mais tarde não se dá conta de que tem um prego nas costas e queimaduras por todo o corpo. Volta para centro da cidade e trabalha sem descanso durante dias. Ajuda aos médicos, cura às vítimas, queima os cadáveres, o que seja... Aqui demonstrou seu autêntico valor, o mais importante de todos. Inclusive depois da morte de minha mãe conservou seu ânimo e me ensinou a viver."
Dirigindo-se a seu pai, falou-lhe em japonês e saudou com uma inclinação de cabeça. O homem murmurou umas palavras e respondeu à saudação.
— Deve estar muito orgulhosa de seu pai — disse Barbara.
— Assim é.
Barbara e o senhor Yokohagi se olharam em silêncio. Estou olhando aos olhos a um soldado japonês, disse-se Barbara; ao inimigo.
O pai do Rie foi a seu quarto e voltou com uma enorme espada. De pé, em meio da sala, a brandiu várias vezes.
— Quer lhe ensinar sua espada de samurai — disse Rie. — Um oficial a entregou depois da guerra em reconhecimento a seu valor. Ele não provém de uma família de samurai.
Acabada sua demonstração com a espada, o senhor Yokohagi foi a seu quarto, voltou com uma caixa forrada de seda bordada com fios dourados e a depositou ante a Barbara.
— Para você. Agulhas.
— São da loja de meu pai — disse Rie.
Barbara abriu a caixa. Dentro havia várias fileiras de agulhas, ordenadas por tamanho.
— OH, muito obrigado. É precioso, e muito prático. — O senhor Yokohagi e sua filha a olhavam sorridentes. Barbara teve que conter-se para não abraçá-los. — E sobre tudo, muito obrigado por me contar suas histórias.
— Graças a você por escutar, sensei — disse Rie.
— Sou eu a que deveria te chamar sensei.
— As duas somos sensei, sim? — disse Rie com um sorriso.
Entre as duas, colocaram os futones no chão do dormitório. Quando apagaram a luz, Barbara recordou a escultura do armário.
— Rie, por que tem essa escultura em seu armário?
— É meu auto-retrato, um trabalho que tínhamos que fazer na escola funerária. Assustou-a?
— um pouco.
— Às vezes penso em me desfazer dela, mas onde ia deixar a? Sob a argila estão os ossos de uma pessoa.
— Está modelada sobre uma caveira?
— Sim, tínhamos que reproduzir nosso rosto a partir da caveira para aprender a arrumar os rostos de pessoas mortas.
— Tem muito valor.
— Para a gente de Hiroshima, o valor é algo normal.
— E o amor? É difícil sentir amor para um hibakusha... Depois de ter vivido tudo isto?
— Não todos os hibakusha são iguais — disse Rie. — Lhe faz ilusão que Okada-san venha amanhã?
— Não sei. Fez algo muito cruel.
— Fez?
— Tem que ver com uns papéis muito importantes para mim.
Rie guardou silêncio e ao cabo de um momento murmurou:
— Sinto muito, Barbara-san.
CAPÍTULO 30
À manhã seguinte, Rie pintou pôsteres para a marcha pela paz e seu pai os cravou no alto de uns paus. Diziam: "Não mais Hiroshima", em inglês e em japonês.
— Vem comigo ou espera a Okada-san? — perguntou Rie.
Aparecida na janela, Barbara olhava às pessoas que passava pela rua. Estou procurando o Seiji, disse-se.
— Irei contigo. Seu pai não nos acompanha?
— Não gosta das aglomerações, sobre tudo nesta época do ano.
Quando chegaram ao último lance de escadas se encontraram com o Seiji, que ia as buscar. Barbara se deteve em seco, arranca-rabo ao corrimão.
— Íamos à marcha pela paz — disse Rie.
— Entendo.
Desceram em silêncio os últimos degraus. Seiji levava algo dentro de um furoshiki de cor branca.
Quando chegaram à rua, detiveram-se dúbios.
— Tenho que falar contigo sem falta — disse Seiji.
— Se for tão urgente, por que não veio ontem?
— Acabava de chegar de viagem e não queria te cansar.
Barbara se voltou para o Rie.
— Vá com ele, parece importante — sussurrou Rie. — Nos vemos esta noite — e se encaminhou para a parada do bonde.
Barbara não queria olhar Seiji, de maneira que fixou a vista em uma alta cerca que tinham levantado em frente para proteger umas obras.
— Tenho quebrado suas terrinas — disse.
— Ah, entendo. — Seiji a olhou fixamente. — vou procurar um lugar de descanso para as cinzas de Nakamoto. — Elevou o lenço furoshiki, que continha a caixa com os restos de Michi-san. — Me acompanha? Também eu gostaria de te explicar minhas razões.
— De acordo.
Subiram à caminhonete. Seiji deixou o furoshiki sobre o assento, entre os dois. Barbara não podia apartar os olhos do lenço que envolvia a caixa quadrada. Dirigiram-se ao oeste da cidade e tomaram uma rua estreita que conduzia ao alto da colina.
— Isto é Koi, onde crescemos Nakamoto-san e eu — disse Seiji. Assinalou um muro de pedra. — De pequeno, corria por aqui.
Barbara apareceu pelo guichê.
— A bomba não destruiu o muro?
— Não, no Koi ficaram muitas construções em pé. Minha casa e a de Nakamoto-san estão perto. Quer que vamos?
Subiram lentamente rua acima e se detiveram frente a uma ampla casa de madeira com telhado de telhas, cercada por um muro.
— Aqui estava a casa onde Nakamoto-san passou sua infância.
— Aqui mesmo? Nesta casa?
— A casa ficou destruída e edificaram esta em cima. Um pouco mais à frente — disse, indicando com a cabeça o edifício continuo — estava minha casa. Era o mesmo edifício.
Barbara contemplou a casa de telhado de telhas, com uma janela redonda. As portas trilhos abertos deixavam entrever o chão coberto de tatami. Sobre o muro penduravam floridas trepadeiras.
— Tornaste a entrar na casa?
— Não, mas não me importaria.
Barbara olhou a ambos os lados da rua. Uma anciã empurrava um carro rua acima. Ao vê-los, inclinou a cabeça e sorriu, deixando ver uma boca desdentada.
— Michi e você viviam porta com porta. Os dois nasceram aqui.
— Conheci-a toda minha vida — explicou Seiji. — Quando fomos pequenos e nos banhávamos no rio, ela nos vigiava. — Assinalou colina abaixo. — daqui não se vê, mas o rio fica perto.
— O rio Koi?
— Sim. Eu gostava de saltar da ponte fazendo muito ruído.
A Barbara não custou imaginar-lhe como um pirralho magricela que se lançava à água com os braços estendidos e gritando "Banzai!".
— A casa de chá ficou enterrada sob a moradia de Nakamoto-san, mas acredito que as ameixeiras ainda estão.
Chamaram o timbre e pediram permissão para ver o jardim. Havia três ameixeiras de troncos retorcidos, mas perfeitamente sãs. Barbara tocou a casca do maior; era de uma cor rosada e semeada de pequenos nós. Jogou uma olhada ao jardim: um chão musgoso, um pequeno lago com um farol de pedra um pouco torcido em um extremo e um vaso com um bonsai. Ali tinha nascido Ume.
— Onde estava a casa de chá?
— Por aqui. — Seiji a conduziu até o extremo do jardim, junto ao muro.
— Pergunto-me onde enterraria os papéis Chie.
— Suponho que junto à casa de chá.
— Por que a derrubaram?
— Estava quase ruída. O dono atual não está muito interessado na cerimônia do chá, além disso. — Parecia a ponto de chorar.
— Passou-o mal quando ajudou a nascer ao Ume?
— Depois da bomba, nada podia me assustar.
Quando partiam, Barbara se agachou para recolher uma folha de ameixeira e a guardou entre as páginas de sua caderneta.
— Aonde vamos agora? — perguntou quando subiram à caminhonete.
— Ao templo Mitaki para depositar as cinzas de Nakamoto.
Subiram pela estrada cheia de curvas. A caixa com as cinzas se deslizava sobre o assento e Barbara a pôs no regaço. Fazia pouco mais de um ano que tinha chegado ao Sango-kan. Recordava perfeitamente o momento em que Michi a recebeu, estreitou-lhe a mão com firmeza e lhe disse: "Estará você muito cansada." Agora não era mais que um montão de cinzas.
O templo se encontrava rodeado de verdor e de árvores frondosas. Passearam por entre as tumbas e Seiji se deteve frente a duas estátuas de Jizo, protetor dos meninos.
— Estes Jizo estão aqui em memória dos meninos desaparecidos. Este — disse assinalando uma estátua similar a um Buda — é para minha irmã Okada Itsuko. Aqui está escrito seu nome; que há ao lado é para Haru, a irmã de Nakamoto-san.
— Um ao lado do outro — disse Barbara.
— Sim, como o estiveram em vida.
No templo conheceram sacerdote, um homem calvo e de aspecto solene, vestido com uma túnica branca e amarela. Seiji apresentou a Barbara em inglês.
— Nakamoto Michiko sensei era sua mãe japonesa.
O sacerdote saudou com uma inclinação de cabeça.
— Lamento sua dor.
Conduziu-os a uma sala coberta de tatami com um altar. Seiji desenredou o furoshiki e tirou a caixa forrada de seda branca. O sacerdote a colocou sobre o altar inclinou-se e recitou um sutra. Tomou a caixa com gestos cerimoniosos, sentou-se frente a eles sobre o tatami, abriu-a e tirou outra caixa de madeira branca. Dentro havia uma urna de barro. Barbara se inclinou para vê-la: era marrom escuro com bolinhas negras e douradas. Não cabia dúvida de que era um trabalho de Seiji, que contemplava a urna com expressão grave. O sacerdote depositou ante ele uns palitos. Seiji desdobrou sobre o tatami um pano branco e, com mão tremente, levantou a tampa da urna. Barbara reprimiu um grito. Entre as cinzas se viam lascas de osso. Com delicadeza, Seiji colheu com os palitos um ossinho e o colocou sobre o tecido branco. O sacerdote murmurou outra prece e envolveu o osso no tecido. Continuando, os três ficaram em pé.
O sacerdote os conduziu fora do templo em direção ao cemitério, levando o osso envolto no lenço.
— E a urna? — sussurrou Barbara.
— Deixa-se no templo, em uma sala. Só se enterra a garganta de Buda — respondeu Seiji assinalando sua noz.
As lápides consistiam em obeliscos sobre plataformas de mármore. Os restos da família de Michi repousavam sob uma árvore de cânfora. Com voz fraca, Seiji lhe explicou que ali tinham sido enterrados os pais do Michi, seu irmão Shoichi e também Ume. Na base do obelisco havia um espaço reservado para Michi-san. O sacerdote disse uma frase em japonês e Seiji a repetiu.
— Agora — disse a Barbara, — lhe explique que Barbara Jefferson e eu estamos aqui.
Ela anunciou sua presença. O sacerdote colocou o osso envolto em tecido na ranhura do obelisco. Seiji se adiantou, tirou-se do bolso da jaqueta um sobre e o colocou dentro do obelisco. Barbara supôs que se tratava de uma fotografia ou de uma carta de despedida. Despediram-se com uma inclinação de cabeça e subiram à caminhonete.
Seiji escondeu o rosto entre as mãos. Barbara lhe aconteceu um braço pelos ombros e lhe deu a mão; a seguir arrancou a caminhonete e continuaram por uma estrada de fechadas curva. Barbara não perguntou aonde foram.
— O que é a garganta da Buda?
Seiji se destacou a noz do Adão.
— É o lugar da fala, o osso que protege as cordas vocais.
A Barbara lhe encheram os olhos de lágrimas.
Seiji estacionou a caminhonete.
— Estamos no monte Mitaki. Recordará que Nakamoto falava deste lugar em seus escritos. Estava acostumado a vir com sua família a agarrar castanhas.
Passearam pelo bosque. Barbara contemplou as árvores, o chão coberto de folhas secas, um tronco cansado e talher de samambaias; por ali tinha brincado de correr Michi com seus irmãos, jogando esconderijo. Sua mãe dizia que era ágil e saltitante como um esquilo. Chegaram a um claro junto à escarpada ladeira da montanha e se sentaram em uma rocha. Dali viam a cidade, no vale. Michi dizia em seus textos que Hiroshima significava "ilha larga", mas consistia, mas bem em penínsulas alargadas e separadas por rios que desembocavam no mar interior, uma extensão de água a sua direita que reluzia ao sol. Nas estreitas franjas de terra se acumulavam as moradias e na parte central se levantavam edifícios mais altos. No centro se distinguia uma área verde, certamente o parque da Paz, a zona zero.
— Depois da bomba — disse Seiji, — tudo o que vê aqui embaixo estava deserto, salvo a zona do Koi. Só ficavam mais ou menos em pé cinco ou seis edifícios, o resto eram cinza e escombros. Aquela colina, Hijiyama — disse, assinalando uma montanha do outro lado da cidade, — parou um pouco o estalo da bomba, de maneira que as casas do outro lado (Dombara Cho) não ficaram tão afetadas. As únicas áreas da cidade que se salvaram em parte foram Dombara Cho e Koi, assim como algumas casa perto do porto de Ujina.
— Alegra-me que Koi se salvou pelo menos uma parte.
— E por que temos que conservar nossa casa quando outros a perderam? Por que estamos vivos quando tantos morreram? É como se tivéssemos roubado a vida aos outros. Este era o vínculo que unia ao Nakamoto e a mim. Quando eu me perguntava por que minha irmã tinha morrido e eu não, ela entendia perfeitamente o que sentia. Ela também tinha sobrevivido milagrosamente, graças à intervenção de sua mãe, quando sua irmã e seu irmão tinham morrido. Isto a fazia sofrer. Não fomos amantes normais. O destino de nossa experiência comum nos tinha unido. Estávamos unidos como duas partes de cristal que ficam soldados pela explosão. — Juntou com força as Palmas das mãos. — Me entende?
Barbara recordou a garrafa disforme do tansu.
— Acredito que sim, até onde me é possível.
— Prometi te contar toda a verdade, embora me envergonhe. — Acendeu um cigarro e fechou os olhos para evitar que lhe entrasse a fumaça. Logo inspirou profundamente e se sentou mais erguido. — Te contei que minha mãe e minha tia se instalaram em Tóquio e que Nakamoto-san vivia conosco quando começou a trabalhar na Kodaira. Nossa relação se fez mais estreita e profunda. Convertemo-nos em uma família, em certo modo. A todos preocupava Ume. Quando minha tia se deu conta de quão unido estava a Nakamoto-san se sentiu ciumenta. Queria que me casasse com uma mulher mais jovem que não soubesse nada de nosso passado e que pudesse ter filhos, mas eu não queria poluir a ninguém com as radiações de Hiroshima, temia que meus filhos sofressem má formações. Além disso, sentia-me comprometido com Michiko-san, e podia me ocupar de Ume como se fosse minha filha.
Era a primeira vez que Barbara lhe ouvia chamar o Michi por seu nome.
— Por que não te casou com ela?
— Devo confessar que em realidade não a amava como devia. Era um homem débil, um covarde. Sentia-me apanhado entre a desaprovação de minha mãe e minha tia e os desejos de Michiko-san. Ficamos um tempo em Takanodai. Em certo modo, Michiko e minha tia eram nora e sogra, uma relação habitualmente difícil no Japão. Neste caso era pior, porque não estávamos casados e também porque Michiko tinha muito caráter. Além disso, a minha tia não parecia bem que Michiko trabalhasse e deixasse à menina aos cuidados de outros. Um dia tiveram uma forte disputa e eu não apoiei ao Michiko tudo o que tivesse devido. Foi um assunto desgraçado.
— O que aconteceu?
— Era verão e Michiko estava preparando o licor de ameixa com a ajuda do Ume. Tinham passado muito momento cozendo a fruta e pondo-a em grandes potes para que envelhecesse. Ume insistiu em levar ela mesma os potes ao lugar onde tinham que guardar-se, mas no caminho tropeçou e manchou o tatami de suco de ameixa. Eu estava lendo em minha habitação e ouvi que minha tia lhe gritava «Menina estúpida!». Michiko lhe respondeu também a gritos que não tratasse a sua filha dessa maneira. Ume saiu chorando, mas minha tia continuou arreganhando ao Michiko. Disse-lhe que ela e a menina só nos davam problemas, e que se não fora por ela, «meu sobrinho já estaria casado com uma mulher mais jovem». Michiko entrou em minha habitação. «ouviste o que diz sua tia?», perguntou-me, com um olhar que jogava fogo. Eu disse que sim, mas fui incapaz de me mover nem de dizer nada. Michiko saiu correndo. Deveria ter ido atrás dela, mas em lugar disso me meti na oficina e fiquei ali toda a noite — escondeu o rosto entre as mãos. — Ao dia seguinte já não estavam.
— Partiram-se?
— Sim. Tentei as encontrar, mas durante muito tempo não averigüei seu paradeiro. Em realidade, ao princípio não o tentei muito a sério, estava muito cheio de egoísmo e de orgulho. Convenci-me mesmo de que Michiko não sabia valorar minha avaliação por ela nem entendia minha delicada posição na família. Eu tenho uma grande dívida para com minha tia, que durante anos cuidou de minha mãe e de mim, sobre tudo na Fukuyama, quando fomos dois inválidos. E de não ser por ela, não teria a oficina de olaria. Mais tarde me inteirei de que Michiko o tinha passado muito mal. Primeiro viveu em uma espécie de pensão, até que encontrou um centro para o Ume e se instalou no campus da Kodaira. Mas a menina caiu doente e esteve mal vários anos. Tentei as ajudar. Roguei ao Michiko que me perdoasse e voltasse, mas não quis. Carregou sozinha com toda sua pena, teve que suportar sozinha a enfermidade e a morte da menina.
Barbara... Perguntaste-me em alguma ocasião se acreditava que Nakamoto-sejam se tirou a vida. Assim acredito, e acredito que em parte foi por minha covardia e porque a tratei mau. — Olhou-a aos olhos. — É minha maior vergonha.
Barbara lhe acariciou o braço.
— Quando foi essa briga com sua tia?
— No verão de 1961.
— Isso foi faz tempo; quatro anos antes de sua morte.
Seiji negou com a cabeça. Barbara se aproximou dele e lhe aconteceu o braço pelos ombros.
— Sinto que tenha sofrido tanto, mas no final não se suicidou... E se decidiu tirá-la vida, pôde ser por uma mescla de sentimentos. Você mesmo disse que é impossível conhecer a alma de outra pessoa.
— Ela revelou sua alma em seus escritos. Pergunta-se para que seguir vivendo quando Ume morreu. Diz que sofre de leucemia espiritual, e se pergunta se também padece a enfermidade física. Mas seu pior sofrimento é o que te contei o de suportar sua pena em solidão.
— Fala disso em seus escritos?
— Indiretamente, sim. Por isso destruí os papéis, porque estava envergonhado — confessou.
Subiram à caminhonete para retornar ao centro da cidade. Barbara não apartava a vista do guichê enquanto atravessavam o bairro do Koi e passavam por uma ponte.
— Se não queria que lesse os papéis, por que não te limitou a destrocá-los? Por que tomou o trabalho de fazer cópias?
— Não queria te perder.
— Por que não?
Seiji não respondeu. Ao chegar a outra ponte, comentou:
— Este é o rio Motoyasu, onde Chie trouxe Michi depois da bomba.
O rio que lançava brilhos chapeados. Barbara imaginou ao Chie entrando na corrente lotada de cadáveres, com o Michi carregada à costas.
— Na Hiroshima celebramos a festa Ou-Bon dos mortos o dia do aniversário da bomba. Acredita-se que esse dia os espíritos dos falecidos voltam para lar. Quando obscurece, pomos faróis acesos junto ao rio para guiar aos espíritos em seu caminho a casa. Esta noite trarei faróis para Michiko-san e outros. Quererá vir?
— Sim, irei — prometeu Barbara.
Durante o jantar, Rie anunciou que ela e seu pai celebrariam Ou-Bon no rio Enko, no bairro de Donbara-cho, onde viviam quando caiu a bomba.
— Eu irei com o Seiji ao rio Motoyasu — disse Barbara.
— Reconciliaram-se? Me alegro por você.
Barbara lhe agarrou a mão.
— Nós também melhoramos nossa relação, NE? — disse Rie.
Antes que obscurecesse, Seiji passou a recolhê-la e foram até a borda do rio Motoyasu, abarrotada de gente. Barbara lhe ajudou a tirar da parte de atrás da caminhonete os dezesseis barquinhos de palha com seus faróis de papel e uma vela. Seiji tinha escrito em cada um o nome da pessoa a que ia destinado: Michi, Ume, Chie, Ko e outros familiares. Acendeu todas e cada uma das velas, colocou os barquinhos no rio e os empurrou para que os levasse a corrente; outros também entravam na água ou empurravam com um pau até que as embarcações navegavam corrente abaixo.
Correram até a ponte mais próxima para olhar de ali os barquinhos iluminados. Já era de noite, e sobre o rio de águas escuras flutuavam centenas de faróis amarelos e alaranjados que guiavam os espíritos para seu lugar de descanso.
— Pode ver o barquinho de Michiko-san? Brilha mais que as outras — disse Seiji.
Barbara o olhou.
— São seus papéis — adivinhou.
— Um deles, sim.
— O de 1961?
Seiji assentiu.
— Os outros já os tinha queimado. Suas cinzas estão enterradas com ela.
— No sobre!
— Sim, e as de outros papéis na urna.
Ligeiramente inclinadas, os barquinhos passaram sob a ponte e apareceram ao outro lado, levados pela corrente.
— Não me havia dito nada.
Caminharam junto ao rio contemplando os faróis iluminados que se dirigiam por volta do mar. Ao outro lado do rio viram uns dançarinos que sustentavam um bonito dragão de cores sobre os ombros.
— Tenho que te confessar outra coisa — disse Seiji. — Em alguns momentos tive ciúmes de ti. Acredito que Nakamoto te legou o tansu para me castigar. Vingou-se de mim entregando as histórias de nossa experiência na Hiroshima e de nossa vida em comum a uma estrangeira. Me perdoe por dizer isto, mas embora ela te tivesse muita simpatia, acredito que essas foram suas razões.
Barbara não respondeu. Olhou-o em silêncio e logo dirigiu o olhar para o rio e as luzes que se refletiam na água.
— Chegaste a lamentar que nos conhecêssemos?
Seiji moveu a cabeça com energia.
— Não. Recorda o dia do festival, quando deveste viu a demonstração de raku?
— Recordo-o perfeitamente.
— Aquele dia soube que...
Bárbara esperou a que terminasse a frase, mas Seiji a deixou pela metade.
Entraram em um bar e se sentaram frente a uma mesa. Seiji pediu cerveja. Barbara bebeu uma e ele se tomou três, uma detrás de outra. Depois seguiram passeando junto ao rio. Seiji se deteve frente a um hotel com um letreiro luminoso onde punha «Hotel Alto».
— Aqui é onde me alojo.
Tiveram que estirar o pescoço para ver o telhado.
— Certamente é alto. É bonita sua habitação?
— Não tanto como a do ryokan. Quer vê-la? Tenho uma bonita vista sobre o rio.
— De acordo. — A cerveja a tinha deixado um pouco enjoada.
A habitação do Seiji era de estilo ocidental e muito sóbria: uma cama, uma mesa e uma cadeira.
— Não é tão bonita como a do ryokan — repetiu Seiji.
Barbara não queria olhar a cama e se dirigiu à janela, de onde se via o rio iluminado com milhares de luzes. Seiji se aproximou dela.
— Parece-me que nunca me perdoará — disse.
Barbara apoiou a frente no cristal. Pensou em Ume quando corria torpemente junto ao rio com a saia cheia de flores de íris, e em Michi, que se sentiu culpado por havê-la arreganhado. Agora eram espíritos que foram por volta do mar aberto, e também Chie e Ko. Pensou em seu irmão, que tinha morrido antes de ter um nome, e em sua mãe, que perdeu aquele dia a metade de sua vida.
— Perdôo-te, Seiji. Perdôo-te de coração.
— Mas poderemos nos ver como antes?
Barbara o abraçou.
— Claro que poderemos nos ver.
— Barbara-san — pronunciou seu nome com cuidado, — um dia disse que não posso amar. Mas se fosse capaz de amar a alguém, seria você.
— Se tivesse tido a má sorte de nascer aqui e de viver a experiência da bomba, não aceitaria meu destino. Lutaria contra o sentimento de estar marcada e entregaria meu amor a quem quisesse.
— Certo, se fosse Barbara — disse Seiji. E acrescentou: — Mas então não seria Barbara.
CAPÍTULO 31
Ao dia seguinte, cedo, Seiji recolheu a Barbara em casa dos Yokohagi para levá-la à estação, onde devia tomar o trem para Yonago. Logo que falaram durante o trajeto, mas o sentimento de intimidade era quase evidente. Na estação, tiveram que ficar na cauda para comprar o bilhete.
— Não quero ir — sussurrou Barbara.
— Pensei que posso te levar em carro.
— Até o Yonago?
— Se não te importa postergar um par de dias sua visita ao Yonago, podemos ir ao Hagi, um povo precioso junto ao mar do Japão que é famoso por sua cerâmica. Você gostará de muito.
— Não me importa postergar minha visita.
— Olhe, ensino-lhe isso. — aproximou-se de um mapa que havia na parede e riscou com o dedo a rota da Hiroshima ao Hagi. — Depois pode tomar o trem ao Yonago — assinalou a costa norte. — É uma viagem muito bonita, de umas poucas horas.
Olharam-se sorridentes.
— Quanto demoraríamos para chegar ao Hagi?
— Podemos estar ali esta tarde.
— E ficaremos esta noite...
— Muitas noites — respondeu Seiji.
— Dois dias, talvez... A senhorita Ota me espera.
Um pouco nervosa Barbara telefonou à senhorita Ota e não lhe ocorreu nenhuma desculpa convincente.
— Sinto muito, atrasei-me em meus planos.
— Não passa nada, querida — disse a senhorita Ota. — Pode chegar quando quiser, só tem que nos avisar. Suponho que a estadia na Hiroshima te deixou esgotada.
Seiji telefonou a um hotel do Hagi para reservar habitação e voltaram para a caminhonete. Ao pôr a mala no bagageiro, Barbara observou que a bolsa de viagem do Seiji já estava ali.
— Que planos tinha? — perguntou-lhe.
— Meus planos eram ir ao Hagi.
— Está muito seguro de ti mesmo.
— Não, mas tinha muitas esperanças.
Atravessaram a cidade e chegaram ao campo. Depois dos últimos dias vividos, a Barbara todo parecia milagroso: os laranjais, o ar perfumado com os aromas da terra e os frutos, a mão do Seiji sobre sua mão. O ar que entrava pelo guichê a despenteava. Recolheu-se o cabelo com a mão e tirou da bolsa um lenço para fazer uma cauda, mas Seiji o impediu com um gesto.
— Não. — Agarrou-lhe uma mecha de cabelo e o pôs na cara.
A estrada subia por escarpadas montanhas entre as que se abriam profundos e frondosos vales. No Tsuwano — um povo com um famoso castelo — pararam para estirar as pernas e percorreram ruelas onde havia casas e lojas com telhados de palha. Entraram em um pequeno museu dedicado à obra de Hokusai; estava em marcha a exposição "Trinta e seis vistas do monte Fuji". Seiji assinalou uma das gravuras:
— O desfiladeiro de Tokkaido, muito perto de Hakone.
— Por que te partiu tão subitamente do Hakone? — perguntou-lhe Barbara quando subiram à caminhonete.
— Assustava-me um intenso sentimento que nunca tinha experiente.
— Esteve apaixonado por jovem?
— Namoricos escolares, nada mais. Logo chegou a guerra, minha enfermidade, minha relação com o Nakamoto sensei.
Barbara olhou pelo guichê e se perguntou o que pensaria Michi de sua história com o Seiji. Imaginava sua cara de assombro. Oxalá pudesse lhe dizer que não sabia nada, que não tinha nem idéia de que tivessem sido casal. Contemplou o perfil do Seiji e se disse que se Michi tivesse visto com que amoroso cuidado se encarregou de suas cinzas o teria perdoado tudo, inclusive a destruição dos papéis.
— Agradeço-te muito que me levasse ontem ao templo Mitaki e que me ensinasse o lugar onde lhes criaram você e Michi-san. Nunca o esquecerei.
— Eu gostaria de poder esquecê-lo.
Pararam para comer e continuaram a viagem. Barbara dormiu apoiada no ombro do Seiji e não despertou até que lhe tocou o ombro.
— Chegamos.
O hotel era elegante e tranqüilo, e sua habitação, ampla e de portas trilhos, dava a um jardim privado. O dono, um senhor tímido com óculos, anunciou que o jantar estava quase a ponto; desejavam tomar um banho antes de jantar? Ao precaver-se de que não a olhava, Barbara se perguntou o que lhe havia dito Seiji; seguro que não lhe havia dito que estavam casados. O banho de mulheres estava vazio. Barbara se lavou rapidamente, ficou o quimono do hotel e foi reunir se com o Seiji. Em um salão separado do dormitório lhes serviram pratos que ela não reconheceu quase todos consistiam de pescado e algas, conforme lhe explicou Seiji. Havia dois ouriços de mar que Barbara não teria sabido comer, mas Seiji apartou com delicadeza a pele Espinosa e se comeu a carne com os palitos.
— Eu gostaria de sabê-lo tudo de ti. Como foi de menino?
— Não me lembro — disse ele rendo.
— O que é o primeiro que recorda?
— Uns caramelos de raias vermelhas em Ano Novo. E quando era um pirralho tive problemas por lhe roubar a comida a um menino no colégio. — Soltou uma gargalhada, mas em seguida ficou sério. — Estava sempre faminto. Aqueles anos nunca havia suficiente comida, ao parecer. E sua primeira lembrança?
— Lembrança o desenho enrolado da mulher raposa na parede do salão. Sentava-me no regaço de meu pai e o olhava. Sempre me pareceu misterioso, inclusive quando ignorava que viesse do Japão. É como se sempre me tivesse atraído este país.
— E encontraste o que esperava?
— Não, absolutamente.
No dormitório já estava preparado o futón, e as portas que davam ao jardim estavam abertas. Sentaram-se sobre o tatami e contemplaram o lago que brilhava à luz da lua; de vez em quando, o vibrante coaxar de uma rã reverberava no ar.
— No Japão se acredita que quando uma rã coaxa te está pedindo que volte.
— Voltaremos — disse Barbara.
Despiram-se à luz da lua e se tombaram sobre o tatami. Seiji lhe apartou o arbusto de cabelo e a beijou no pescoço.
— Kirekitsu.
— Kirekitsu não, Barbara.
— Barbara-san — Rodeou-lhe o rosto com as mãos e a olhou fixamente.
— Seiji, quero-te — disse Barbara. O apertou a cara contra seu peito. — Você também me quer verdade?
— Sim — respondeu com voz afogada.
Ao dia seguinte foram à praia, descalçaram-se e caminharam pela borda. Havia poucas ondas graças às ilhotas mastreadas que protegiam a costa. Seiji havia trazido uma manta da caminhonete. Estenderam-na no chão e se sentaram a contemplar o mar. Barbara se apoiou contra ele com os olhos fechados e escutou o som das ondas. Uma onda lhe lambeu os pés.
— Queria que pudéssemos ficar assim para sempre — disse.
— Também eu gostaria, mas é impossível.
— Por quê?
— Sempre faz a mesma pergunta — riu Seiji.
Aquela noite, muito depois de que Seiji dormisse, Barbara seguia escutando o estridente coaxar da rã. Em metade da noite, despertou e descobriu que não havia ninguém a seu lado. Seiji fumava sentado frente ao jardim, escuro e silencioso. Barbara se aproximou dele.
— No que pensa?
— Amanhã irá. — Beijou-lhe a mão e a colocou contra seu peito, dentro do yukata.
À manhã seguinte, levou-a na caminhonete até o povo de Iwami Masuda. O trem estava na estação e na plataforma havia bastante gente, de maneira que tiveram que despedir-se rapidamente.
— Sempre recordarei Hagi — murmurou Seiji.
— Voltaremos algum dia.
Barbara subiu ao trem e ele ficou na plataforma com expressão solene. Quando o trem começou a mover-se, elevou a mão. Seguiu olhando ao Seiji até que o perdeu totalmente de vista.
O trem deixou a população e circulou em paralelo a um oceano verde jade. As ondas rompiam com força contra escarpadas rochas. Ao outro lado, os arrozais de um verde brilhante se agitavam brandamente na brisa. Que formoso planeta, quanta beleza. Em um campo junto à via do trem divisou uma porta torii. Provavelmente era o templo de uma granja familiar, e teria também estátuas de raposas. Barbara pensou no desenho da mulher raposa de seu apartamento e no comprido viaje que tinha feito atrás dela. Tinha chegado ao mais profundo do Japão, muito mais longe que sua mãe. Voltou-se para o guichê que dava ao oceano e ficou dormida com o balanço do trem. Despertou o revisor anunciando "Izumo, Izumo", com uma ênfase no "ou" que outorgava à palavra um tom lúgubre e misterioso. Barbara recordou que Ko provinha da antiga província do Izumo, mas ignorava que também houvesse um povo com esse nome.
O trem já não circulava paralelo ao oceano, mas de repente apareceu à esquerda uma grande extensão de água. O que era? Perguntou ao escolar que se sentava frente a ela. Era o lago Shinji, o lago de que falava Chie, a mãe de Michi. Ko tinha vivido em suas bordas. Era o país do Ko, do Chie e do Michi, e a luz parecia diferente, mais brilhante e mais etérea.
Matsue, onde tinha nascido Ko, ficava ao outro lado do lago. Quando o trem passou lentamente entre as velhas casas do povo e sobre o canal rodeado de pinheiros centenários, Barbara sentiu uma pontada de emoção. Salvo pelos carros e os postes de telefone, o povo tinha o mesmo aspecto que um século atrás.
Yonago estava a meia hora do Matsue. A senhorita Ota e sua sobrinha Keiko recolheram a Barbara na estação e a levaram a uma casa escondida depois de um muro de pedra. Na entrada havia uma habitação de estilo ocidental que parecia uma imagem vitoriana: sofá de crina, poltronas de veludo, antiquados abajures de cristal com telas de franjas e um piano. Logo havia uma série de habitações estofadas com tatami e um pequeno salão de chá no outro extremo da casa, que seria o dormitório da Barbara.
— É precioso. — Havia um tatami de cor mel no chão e um buquê de flores frescas sobre o tokonoma. As portas de papel estavam abertas e davam a um sombrio jardim.
— Hoje temos um jantar especial — disse Keiko. — Minha tia acabou seu trabalho. Estávamos esperando-a para celebrá-lo.
— Trata-se da figura sobre o tatami?
— Sim — disse a senhorita Ota. — Por fim acabei com o senhor James.
Barbara tomou um banho e se reuniu com outros para o jantar de celebração. O manuscrito da senhorita Ota estava em meio da mesa, junto a uma garrafa de licor de ameixa que tinha preparado Keiko. O marido da jovem, Akihiro, um homem alto e de rosto sério que se transformava totalmente quando sorria, brindou pela senhorita Ota e sua obra, pelo senhor James e por Barbara, a que desejou sorte em suas viagens. Os meninos, Eiji, de onze anos, e Yuko, de seis, não apartaram o olhar de Barbara em todo o jantar. Quando acabaram de jantar, Yuko lhe deixou sua boneca no regaço.
— Parece-me que já é da família — riu sua mãe.
Quando Keiko foi deitar aos meninos e Akihiro desapareceu para fazer uma chamada de telefone, Barbara e a senhorita Ota ficaram com sua taça de licor, contemplando o jardim. Tinha escurecido e as vaga-lumes brilhavam aqui e lá, seguindo um ritmo secreto.
— Senhorita Ota, eu gostaria de lhe fazer umas perguntas sobre os papéis que Nakamoto me legou.
— É obvio.
— Menciona com muito prazer sua visita a Califórnia...
— Me alegro — disse a senhorita Ota com uma ligeira inclinação de cabeça.
— Estive pensando no que me contou, em como tentou encontrar a seus familiares.
A senhorita Ota assentiu.
— Importaria-lhe me dizer em que arquivos procurou? Nos dos campos de concentração? Falou-me de deslocamentos durante a guerra de muitos americanos de origem japonesa.
A senhorita Ota pigarreou.
— É certo, mas não nos deixaram olhar esses arquivos.
— Acredita que já se poderão consultar?
— Não estou segura, e de todas as maneiras já é tarde para o Nakamoto. Oxalá pudesse lhe haver sido de mais ajuda — acrescentou com um suspiro.
— Seguro que o fazia muito feliz que ficasse com ela e com o Ume em Califórnia.
— Fiz o que pude que não era muito. Foi uma época difícil.
— Veio aqui alguma vez? Perguntava-me se tinha estado no Matsue, se tinha vindo em busca da casa do Ko.
A senhorita Ota negou com a cabeça.
— Por desgraça nunca se deu a ocasião adequada. Parece-me que conhece você muito bem a história do Nakamoto. Está tudo nesses papéis dos que me falou?
— Sim.
A senhorita Ota aguardava espectador.
— Recorda o tansu que me deixou Michi-san em herança? Tinha garrafas de licor de ameixa...
— Sim, lembrança que a senhorita Fujizawa estava preocupada — disse com um sorriso.
— As garrafas estavam envoltas em papéis escritos. Eram textos de Ano Novo, escritos pelo Michi e por sua mãe.
A senhorita Ota a olhou, perplexa.
— Uma curiosa herança para você.
— É o mais importante que me aconteceu — lhe fez um nó na garganta. — Bom, uma das coisas mais importantes — retificou, pensando no Seiji.
A senhorita Ota levantou sua taça.
— Por certo. Este licor está preparado segundo a receita do Nakamoto. Os anos que esteve em Califórnia, Michiko-san pediu a minha sobrinha Keiko que lhe preparasse o licor. Não queria deixá-lo nenhum ano.
Barbara olhou sua taça de licor.
— Sabia que a receita original era do Ko? Ao Michi a deu sua mãe, mas Ko havia a trazido do Matsue quando veio a casar-se. E aqui estamos bebendo-o.
— Parece muito apropriado — disse a senhorita Ota.
Brindaram pelo Ko.
— Amanhã poderíamos ir visita o Matsue — disse. — Assim você cumprirá os desejos do Nakamoto.
Ao dia seguinte as três se dirigiram ao Matsue no carro do Keiko. A senhorita Ota propôs que no caminho visitassem um antigo santuário de Inari.
— Acredito que gostará especialmente, Barbara-san, dado seu interesse nas raposas japonesas — disse.
Enquanto se dirigiam ao santuário por um caminho rodeado de pinheiros que passava junto a um canal, Barbara imaginou a Ko por esse mesmo atalho. Era o lugar onde começava a história do Michi. Deteve-se e contemplou seu reflexo na superfície da água. Michi estaria contente de vê-la ali; era seu legado. Agora entendia plenamente o significado da palavra. À entrada do santuário havia vários casais de estátuas de raposas e uma larga escada que subia pela colina. Os degraus estavam flanqueados por pequenas raposas de pedra escura, um casal em cada degrau.
— Faz anos, este santuário era muito conhecido — explicou a senhorita Ota. — Cada uma das raposas foi doada por um mecenas com uma petição pessoal.
— Recorda aquele casal de raposas que lhe mostrei? — perguntou Barbara.
A senhorita Ota assentiu.
— Estavam dentro do tansu. Acredito que podem ser daqui.
— Ah, sou desuka?
A senhorita Ota se dirigiu em japonês ao Keiko enquanto subiam os degraus. Barbara nunca a tinha visto mostrar-se tão genuinamente japonesa.
Parecia haver milhares de raposas, milhares de petições e desejos naqueles degraus. Durante a lenta ascensão, Barbara teve ocasião de estudar as raposas de pedra, quase todos sujos e gastos. Alguns tinham uma expressão cômica ou fera, e outros estavam danificados, com as orelhas rotas ou sem focinho. Qualquer deles podia ser o do Ko. Barbara imaginou como uma jovem com um quimono de flores vermelhas e comprido corto negro que brilhava ao sol. Como podia imaginar o que lhe aconteceria na Hiroshima? Como podia saber que acabaria vivendo tão longe de ali, na América?
Pensou na esforçada busca do Michi para encontrar a seus familiares; nas guias de telefone que tinha consultado, nos arquivos que não tinha podido ver e que talvez já eram acessíveis ao público. Um filho do Ko tinha estado no exército dos Estados Unidos, e então não havia muitos soldados japoneses, sobre tudo com o sobrenome Yokogawa. Seguro que havia artigos nas revistas e os jornais da época sobre as dificuldades desses soldados japoneses e o irônico de sua situação. E também haveria arquivos do exército em Washington, a só cinco horas de carro desde a Carolina do Norte. Perguntaria aos jornalistas de investigação do jornal de Raleigh; talvez sua mãe pudesse lhe dar alguma pista.
A senhorita Ota e Keiko a esperavam no alto das escadas. Keiko lhe mostrou uma cova atrás do templo, onde se acreditava que os espíritos das raposas tinham sua guarida. Barbara colocou a cabeça para olhar o interior do buraco e Keiko lhe advertiu: «Cuidado, que não lhe remoam o nariz!» Baixaram a escada lentamente. Barbara se detinha contemplar as raposas e lhe surpreendeu que ante muitos deles houvesse pratos de tofu frito, já que o templo parecia bastante abandonado. Quando se deteve para pôr em seu sítio uma raposa que se cansado em um atoleiro e estava sujo de barro, ouviu que algo se movia entre as folhas; um bichinho de pelagem avermelhada lhe roçou a perna e desapareceu entre a mata. Barbara apartou os matagais, espionando entre os ramos. Tinha sido uma raposa, estava segura. Seiji a teria acusado de ser supersticiosa, mas lhe pareceu que era um sinal, uma saudação.
Depois de comer em um pequeno restaurante perto do templo saíram do Matsue pela estrada da costa em direção a um hotel balneário onde passariam a noite. Barbara baixou o cristal do guichê e aspirou o ar salgado, que lhe recordou sua estadia com o Seiji na península do Bozo, quando ele ficou a máscara, e no Hagi, quando se sentaram na praia. Quanto se teria perdido sem ele! Inclusive esse mesmo momento. Tudo.
No ryokan lhes mostraram a ampla habitação coberta com tatami que foram compartilhar. As três ficaram olhando encantadas as vistas do oceano e desfrutaram de do ar fresco que entrava pela janela. Uma garçonete lhes levou os quimonos e baixaram a banhar-se. Era um banho ao ar livre, rodeado de rochas e novelo de bambu. Junto à porta do ryokan havia sabão, grifos e cubos de água para lavar-se. Alternaram-se para ensaboá-la costas umas a outras. Barbara nunca tinha tomado um banho com sua mãe ou com sua tia, mas a senhorita Ota e Keiko atuavam com total naturalidade. A senhorita Ota tinha uma pele enrugada e enormes veias azuladas. Depois de ensaboar-se meteram na banheira com a água quente até o queixo. Podia-se ouvir o rumor das ondas. Entardecia, e umas nuvens de cor salmão sulcavam o céu. A lua já pendurava no alto como um disco de pálida cor branca.
— Isto me parece o paraíso — disse a senhorita Ota.
Barbara fechou os olhos e não pensou em nada. Desfrutava da sensação de seu corpo na água quente, o som do oceano e da serena presença do Keiko e da senhorita Ota.
CAPÍTULO 32
Na sua volta a Tóquio esperava um postal de Seiji onde dizia que se encontrava em Mashiko e que não sabia quando retornaria, já que tinha muito trabalho na Hamada. Era um texto sem sentimento, que não aludia ao tempo que tinham passado juntos. Barbara disse-se que ele atuava assim, era sua natureza. Ao passar de uma semana, telefonou-o, mas não encontrou a ninguém. Esperou uns dias e foi andando até Takanodai, onde encontrou a oficina fechada. A caminhonete não estava à vista. Tocou a campainha da porta principal e ninguém respondeu. Então começou a preocupar-se.
Passaram duas semanas sem notícias de Seiji. Barbara logo que saía do apartamento esperava vê-lo aparecer a qualquer momento. Finalmente, na metade de setembro, pouco depois de que começaram as aulas, recebeu uma chamada muito rápida, perguntando como estava.
— Estou bem. Quanto tempo faz que retornaste?
— Alguns dias. — Fez uma pausa. — Minha mãe esteve doente.
— Eu teria gostado de saber de ti. Estava preocupada.
— Por favor, vêem a Kamiya amanhã de noite e lhe explicarei — sussurrou Seiji.
Quando ela chegou, Seiji parecia estar a algum no restaurante. Estava sentado sob o desenho de Sharaku e bebia sake. Pediram a comida, mas ele não comeu muito.
— O que aconteceu? — perguntou Barbara.
— Não posso continuar contigo. Minha sorte está lançada. — Disse-o em um tom tão melodramático que quase dava risada.
— O que quer dizer com que sua sorte está lançada?
— Comportei-me muito mal nesta vida.
— Mas tudo o que aconteceu era compreensível se tivermos em conta as circunstâncias: a guerra, sua tia. E não podia evitá-lo se não estava apaixonado por Michi-san. Os sentimentos não podem forçar-se.
— Tinha que ter seguido a seu lado.
— Talvez, se te referir ao dia em que Ume atirou o licor ao chão, mas de todas as formas teria acabado por partir, não te parece?
Seiji se serve outra taça de sake e a apurou.
— No texto de 1961, depois de nossa ruptura, escreveu um haiku: «Noite detrás noite, este corpo solitário cava uma sarjeta no futón.» Prova que eu provoquei sua morte.
— Não me parece nenhuma prova. Estava muito amargurada, mas sobreviveu quatro anos.
— Foi pela Ume, e depois não pôde seguir vivendo.
— Tem que superar seu sentimento de culpa. — Tocou-lhe a mão. — Por favor, me deixe te ajudar.
Seiji sacudiu a cabeça.
— Não pode ser nunca o entenderá.
— Quero estar contigo.
Ele cravou o olhar na mesa e não respondeu.
— Nem sequer me olha.
Doída, Barbara se levantou e abandonou o restaurante. Caía um forte toró e a rua estava deserta e triste, com seus feios edifícios de concreto e a água que arrastava toda a sujeira. Correu para a parada do ônibus e a chuva a empapou em um instante. Viu a luz de um táxi e agitou os braços freneticamente para detê-lo.
Trocou-se de roupa em seu apartamento e baixou ao piso de abaixo para bater na porta da senhora Ueda.
— Posso entrar um momento? Eu gostaria de falar com você.
A senhora Ueda a deixou acontecer e se sentaram no salão.
— Queria que me respondesse com franqueza a uma pergunta. Acredita que Nakamoto sensei se tirou a vida? Sumi disse que se encontrou um frasco de pastilhas...
A senhora Ueda fixou a vista na janela. Era de noite e tinha parado de chover, mas caíam gotas dos ramos das árvores.
— Eu o chamaria uma aceleração do inevitável. Ao parecer, tinha leucemia.
— Tinham-lhe feito prova?
— Acredito que sim. Disse-me que tinha os mesmos sintomas que sua filha Ume, um grande cansaço, e comentou que muitos hibakusha tinham morrido dessa enfermidade. Por isso não me surpreendeu a notícia de sua morte. Temia converter-se em uma carga, porque não tinha familiares. Claro que — voltou à cara e se cobriu a boca com a mão para tossir — as mulheres do Sango-kan teríamos cuidado dela.
— Então, perdoe que seja tão direta, mas acredita que isto teve algo que ver com o Seiji Okada?
— Pode que ele o cria assim, mas eu penso que sua morte se deveu em realidade a uma enfermidade causada pela radiação.
O fim de semana seguinte, Barbara foi ver o Seiji com a desculpa de lhe devolver um livro sobre porcelana a China que lhe tinha emprestado. Tinha refrescado e era o primeiro dia outonal da temporada. O céu era de um azul intenso e as árvores mostravam tons dourados e escarlate. Pelo caminho se cruzou com uma mãe e um menino pequeno; a mãe o agarrava pela jaqueta enquanto ele retirava gravetos e punhados de erva do canal Tamagawa. Barbara se deteve olhar como a corrente arrastava os barquinhos do menino, cruzou a estrada de Kokubungi e se internou na parte sombra do bosque. Ao chegar ao Takanodai diminuiu o passo: no restaurante não havia ninguém.
Ao princípio Seiji não advertiu sua chegada. Estava empurrando o torno com um pé e dando forma com as mãos a uma bolota de argila. Quando elevou os olhos e a viu, tirou bruscamente o pé do torno, que seguiu girando até que o parou com a mão. A bolota de argila se torceu a um lado.
— Sinto muito. Danifiquei-te o trabalho — disse Barbara.
— Não importa. — ficou de pé. — Estou surpreso de verte, mas muito contente.
— Trouxe-te o livro.
— Obrigado. Quer um chá?
Dirigiram-se à casa de chá pelo caminho de atrás, como antes.
— Peço-te desculpas porque a habitação não está arejada. — Tirou as almofadas para lhes sacudir o pó e os devolveu a seu sítio. A mesa que estavam acostumados a usar para traduzir havia desaparecido e Seiji não tinha acendido ao braseiro porque não esperava a ninguém. — Prepararei o chá na cozinha.
Fazia frio sem o calor do braseiro e Barbara só levava uma jaqueta fina. Enquanto ouvia o Seiji transportar na cozinha, recordou o dia em que lhe emprestou uma jaqueta cálida e suave. Seiji voltou com uma taça de chá para cada um, não com uma terrina para compartilhar, como em outros tempos.
— Lamento não ter bolo ou algo para comer — disse antes de sentar-se.
Barbara foi girando a taça entre as mãos e apreciando-a tal como lhe tinha ensinado. Beberam em silêncio. Fixou-se em que Seiji ainda tinha argila sob as unhas, embora se tinha lavado as mãos.
— Seiji — disse, deixando a taça sobre a mesa. — Sei algo importante a respeito da morte de Michi-san: estava doente de leucemia. Há-me isso dito a senhora Ueda. Foi à razão de que se tirasse a vida.
Seiji percorria o bordo da taça com o dedo e tinha uma expressão estranha, metade sorriso, metade careta de dor.
— O que quero dizer é que não morreu por causa de outra pena.
Ele não respondeu.
— Não foi tua culpa — acrescentou Barbara.
— Não teria acelerado o final se eu tivesse estado com ela.
Barbara olhou ao redor — o tokonoma com o desenho enrolado e o cenário de pedras, a pequena porta com o tronco de pinheiro — e outra vez Seiji: imóvel, com a cabeça encurvada e as mandíbulas apertadas. Estava claro que preferia sua versão da história e que nunca aceitaria outra. Ficou de pé.
— Será melhor que vá.
Saíram da casa de chá e se calçaram na plataforma de madeira.
— Adeus, Seiji — lhe deu a mão, quase incapaz de pronunciar palavra. — Isto me entristece muito.
— Seguiremos nos vendo de vez em quando?
— Eu gostaria, mas não acredito que seja conveniente nos ver assim. — partiu rapidamente sem dar-se ocasião de trocar de opinião.
Os seguintes dias logo que pôde concentrar-se nas classes. Estavam outra vez com o Hawthorne e o pecado original, mas a guerra do Vietnam se intensificou e as estudantes só falavam desse tema. Para estar a sua altura, Barbara se obrigava a ir diariamente à biblioteca e lia tudo o que encontrava sobre a guerra. De noite bebia licor de ameixa até que a vencia o sonho.
Rie lhe enviou um relato que lhe tinham publicado em uma revista literária japonesa, junto com a tradução ao inglês. Estava apoiado na vida de seu pai, era o que lhe tinha contado o passado verão em versão literária. Barbara a telefonou para felicitá-la e para convidá-la a sua casa.
— Ocorre algo, sensei? Não parece estar muito bem.
— Tenho quebrado com o Seiji — murmurou Barbara.
Ao dia seguinte, Rie foi ver a e ficou uma semana. Pela manhã a acompanhava a classe e pela tarde saíam em bicicleta, liam e compravam comida. Foram a Kamakura, passearam pelas ruas levantadas e visitaram templos que Barbara nunca tinha visto. Estiveram frente ao imenso Buda de bronze e Barbara mostrou ao Rie o lugar que gostava ao Michi, de onde se via as costas do Buda «carregando humildemente com nossos problemas». Durante a viagem em trem a Tóquio, Rie lhe fez um comentário.
— Talvez resolve seus problemas com Okada-san e tudo volta a ser como antes.
Barbara negou com a cabeça.
— Ele está apanhado no passado.
— Mas para você não é o caso, sensei.
Sua aluna lhe tinha apresentado ao sacerdote de um templo zen na Kamakura, e Barbara voltou ali quando ficou sozinha. Aceitou o convite do sacerdote e se uniu à meditação zazen nos fins de semana. Levantava-se antes do alvorada para meditar e se sentava na escuridão, em silêncio, com outras pessoas. Isto lhe dava momentos de paz.
Em novembro acompanhou ao Junko e ao Sumi a uma manifestação contra a guerra em um templo do centro de Tóquio. Houve discursos e cânticos, e todos dançaram formando uma fila larga como uma serpente. Pelo megafone anunciaram que «um soldado americano veio para mostrar sua solidariedade». Acabada a cerimônia, Barbara se aproximou de falar com ele. Resultou que não era um soldado, a não ser um impedimento de consciência que trabalhava no Vietnam com órfãos e meninos feridos. Barbara lhe perguntou pela guerra, e ao princípio não obteve resposta.
— Entendo que não queira falar disso, mas de verdade me interessa saber.
O homem cravou nela seus olhos negros e penetrantes.
— Conhece os efeitos do napalm na carne humana? Pouco antes de vir estive com um menino que tinha o queixo pego ao peito a causa do napalm. Morreu em meus braços.
Durante dias, Barbara foi incapaz de pensar em outra coisa. Ao acabar as classes se sentava no quarto ocidental para avaliar exames. Enquanto caía a tarde, imaginava ao Seiji agarrando em braços ao menino destroçado pelo napalm e punha-se a chorar.
No Dia de Ação de Graças, Junko a convidou para comer com sua família em Kioto. A casa do Junko, ampla e antiquada, recordou-lhe sua feliz temporada com a senhorita Ota. Dormia em uma habitação que dava ao jardim e pelas manhãs, sentada sobre o tatami, tentava meditar enquanto contemplava as arvores de folhas cor veio.
Jogaram no jardim à bola com Chiyo, a irmã pequena de Junko. Sentada no regaço da Barbara, a menina leu em voz alta seu primeiro livro em inglês. Era um consolo estreitar à pequena, sentir sua calidez e cheirar em seu cabelo e em sua pele o fresco e aroma a ar livre. Ao saber que ao dia seguinte partiam, Chiyo chorou e se agarrou contra Barbara, que lhe prometeu que lhe escreveria e que seguiriam sendo amigas embora vivessem em países distintos. Ao dia seguinte, Barbara escreveu em seu jornal: «Querida Michi: sonhei que estávamos no mar, em uma balsa que eu tinha fabricado com algas. Era um colchão grosso como um tatami, mas também era comestível. "Tinha provado com ele todas as receitas que me deu, mas não te importava.»
Depois das férias, o tempo pareceu acelerar-se. Em dezembro, Barbara preparou os exames finais, fez gestões para sua viagem e comprou os presentes. Passou-se dias inteiros procurando presentes para os seus. Em uma loja viu uma exposição de cerâmica. Na lista de artistas não estava o nome do Seiji, mas sua obra era tão formosa como a da exposição. Tinha vontades de lhe telefonar, mas resistiu à tentação.
Três dias antes da marcha da Barbara, o senhor Doi organizou uma festa de despedida. Toda a faculdade assistiu e os convidados surpresa foram Rie e o senhor Yokohagi.
— Viemos desde a Hiroshima para lhe dizer adeus — disse o senhor Yokohagi em seu ensaiado brinde, — mas teríamos atravessado meio mundo para vê-la.
A senhorita Yamaguchi tinha escrito um cartão e a leu em voz alta: «Ao princípio pensamos que era só faiscante — no cartão tinha desenhada uma estrelinha, — mas temos descoberto que reluz como um astro no firmamento.» No interior do cartão se via uma brilhante estrela no céu. Todo mundo estalou em gargalhadas, sobre tudo a própria senhorita Yamaguchi.
O senhor Doi ofereceu uma interpretação dos versos finais do sonho de uma noite do verão, que na representação do passado mês de fevereiro se eliminaram: «Se esta ilusão ofendeu, pensem, para corrigi-lo, que dormiam enquanto saíam todas estas fantasias. "E a este pobre e vão empenho, que não deu mais que um sonho, boa senhorita Jefferson, não lhe ponham objeção.»
Ruborizado, respondeu aos aplausos com uma reverência. Barbara olhou a sala cheia de gente e pensou no doloroso que lhe resultaria deixar aos amigos, sobre tudo ao Rie e à senhorita Ota, e à senhora Ueda, e também ao Junko e ao Sumi... A todo mundo, incluído o senhor Doi. Quando retornaram ao Sango-kan, Junko acompanhou a Barbara ao apartamento.
— Tenho que lhe falar em privado — disse. — Primeiro tenho que lhe contar uma pena, sensei. Meus pais insistem em que devo me casar assim que acabe os estudos, mas ontem passei a noite com meu noivo. Prometemo-nos que nos encontraremos uma vez ao ano, em 7 de julho, no Festival da Tanabata, como a donzela bicho-tesoura e o pastor de gado.
— Como o relato que escreveu...
— Sim, e recordei que você me disse que fizesse o que me ditava o coração. Trouxe-lhe um presente, uma caligrafia que tenho feito esta manhã. É minha interpretação de um haiku de Issa que diz: "Que consolo, ver o rio do céu através de uma fresta na porta de papel."
— Não há possibilidade de que seus pais troquem de opinião?
— Sempre soube que escolheriam por mim, mas uma noite ao ano poderei ser feliz. Pense em mim como uma mulher feliz, sensei, porque amei e sofri.
À tarde antes da partida da Barbara, os operários Sato e Murai foram ao apartamento para empacotar suas coisas. O baú e o arca se enviariam diretamente a Carolina do Norte, mas Barbara passaria primeiro por São Francisco para voltar sobre os passos do Michi. Talvez lhe tinha passado por cima uma pista nas guias de telefone ou no bairro de Pequena Osaka. Assim que se levava na bagagem de mão umas quantas garrafas de licor de ameixa se por acaso encontrava aos familiares do Michi, assim como os textos do Chie e do Michi com suas traduções ao inglês. Ko ou seus filhos quereriam sabê-lo tudo.
A senhora Ueda bateu na porta do apartamento.
— Veio Okada.
Barbara não lhe tinha comprado nenhum presente, mas acabava de encontrar um haiku que tinha composto o passado verão para ele. Estava escrito em papel de arroz, enrolado e pacote com uma cinta. Agarrou-o e baixou correndo as escadas. Seiji a esperava no caminho de entrada, com uma caixa de madeira na mão.
— Quer dar um passeio? — perguntou-lhe. Estava pálido e fugia seu olhar.
Foram ver as ameixeiras, a ponto de florescer. A Barbara causar pena pensar que não os veria em plena floração, e também era a última vez que via o Seiji. Sentaram-se na erva, junto ao campo de atletismo, e lhe entregou uma das caixas, atada com uma cinta. Dentro havia uma taça de chá negra com pintas marrons e douradas. Barbara a sustentou nas mãos e foi girando, maravilhando-se de seu brilho.
— É preciosa. Eu adoro.
— Não a romperá? — perguntou Seiji sorrindo.
— Nunca.
No interior da segunda caixa havia uma taça de chá do Hagi, de um rosa delicado como o interior de uma concha. Barbara a contemplou em silêncio.
— Para que não esqueça nossos dias no Hagi.
— OH, Seiji, eu gostaria de poder ficar...
— Em um mundo distinto.
— Não entendo por que este mundo não pode ser distinto.
— Não é possível evitá-lo — disse, torcendo o gesto.
Barbara entregou o cilindro de papel pacote com uma cinta.
— É para ti — disse.
Seiji desfez o laço, desenrolou o papel e o leu atentamente.
— Tentei escrever um haiku. Pode lê-lo?
— Não de tudo — respondeu ele com uma risada.
— Eu lhe traduzirei isso.
Barbara leu o escrito em voz alta:
— "De seus lábios aprendi a linguagem do licor de ameixa."
Devolveu-lhe o papel e Seiji tomou com mão tremente.
— Para mim será um tesouro — disse. Com muito cuidado, voltou a enrolar o papel e a atar a cinta.
Percorreram juntos os limites do campus.
— Acredito que encontrará a felicidade — disse Seiji. — E espero que assim seja.
Tocou-lhe o braço.
— E você?
— Tenho minha cerâmica; sempre fica isso.
— Acredito que terá êxito. Invejo-te; eu teria querido ter dotes artísticas.
— Você tem paixão pela vida, um dom muito pouco habitual.
— Você também tem paixão...
Seiji fixou o olhar na distância.
— Um dia, quando tiver conseguido superar as lembranças, encontrará a alguém...
— Refere a uma mulher?
— Sim.
— É possível que encontre a alguém, de vez em quando.
— Ah.
— Mas não a alguém como você, nunca. — Deu meia volta e atravessou o campo correndo, com a cabeça encurvada.
Fim.
AGRADECIMENTOS
Quero expressar meu agradecimento a todos os que têm lido diversas versões desta novela, em especial a Louro Goldman e demais membros de meu fantástico grupo de escritura: Linda Orr, Peggy Payne, Peter Filete, Dorothy Casey, Pete Hendricks, Christina Askounis e Joe Burgo. Mikako Hocino e Chizuko Kojima levaram a cabo uma minuciosa revisão de um ponto de vista histórico e cultural, mas não são responsáveis pelos possíveis enganos desta novela. Meus colegas e amigos Barbara Baines, Jon Thompson, John Baliam, Nell Joslin, Lou Rosser, Alexander Blackburn e Mickey Pearlman também lhe dedicaram um tempo precioso a minha novela.
Graças a uma beca do Japan Foundation pude completar minha investigação de campo para este libero no verão de 1996. Keiko Suzuki apresentou a gente e me deu conselhos que resultaram muito úteis. No Japão, a hospitalidade e a sabedoria de meus antigos amigos e colegas na Universidade da Tsuda — os professores Kumiko Fujita, Mikako Hoshino, Ineko Kondo, Fumi Takano, Michi Nakamura e Keiko Minemura — foram uma ajuda inestimável, assim como os escritos do Mikako Hoshino sobre armas nucleares.
Entre as muitas pessoas que me ajudaram em minha investigação no Japão, quero dar as obrigado muito especialmente ao professor Yoshiko Kuroda, da Universidade da Nagoya; ao Tadatoshi Akiba, ex-prefeito da Hiroshima; ao Minoru Ohmuta, presidente da Peace Culture Foundation da Hiroshima, onde também contei com a ajuda do Ikuno Sako, Mika Harland, Hidemi Hayashi e Shinji Ohara. Dou as obrigado também ao pintor Shikoku Goro, que esteve toda uma tarde me mostrando suas pinturas da Hiroshima antes da guerra; a meu anfitrião Tomoe Yokohagi e sua a filha Aia, que conseguiram milagres; aos intérpretes Michiko Haja-se e Firo Kamada, que além de traduzir conversações e documentos se mostraram entusiasmados com meu projeto; ao Seiji Fukazawa, professor da Universidade da Hiroshima, meu guia na cidade; agradeço a extraordinária generosidade do Katsuko Nishi, os pais do Mayumi Takaso e Rie Cigano. Na zona do Kansai não posso deixar de mencionar ao Shinobu Hiramaya, Itsuko Fujita, Tomohisa Sato, Masao Tanaka, Kimie Sotobayashi, Sigenobu Sugito e Kazuko Watanabe. No Hagi, o artista Hamanaka Gesson me ensinou sua oficina de cerâmica e seu imenso boneco Daruma de papel maché para a boa sorte. No Matsue meus guias foram Kenji Tatano, Yuko Seii e Hiromi Imamoto. Em Tóquio tive a fortuna de contar com o apoio e a ajuda do novelista Minako Oba e dos professores Shigeo Hamano, Hideko Kitagaki e Eiji Suzuki. Obrigado também ao eficiente pessoal de Internacional House, Yuko Hoshino e sua mãe, e a meus ajudantes Yuko Itatsu e Towako Shibuya.
A volta ao Japão permitiu retomar amizades com antigos alunos que foram cruciais em minha vida, como Kyoto Aburano (cujo relato A cruz me permitiu entender o significado da intervenção americana no Vietnam), Shigeko Kobayashi e Yoko Soalho, assim como com meus colegas Teruko Kachi e sua família, Tamurasan e Taki Fujita.
Agradeço a generosidade da Karen Smyersme, quem me permitiu ler o rascunho da tese sobre a que se apóia seu livro A raposa e a jóia: significados públicos e privados do culto ao Inari no Japão contemporâneo (University of Hawai Press, 1999). Suas investigações sobre a religião Inari e, em especial sobre as mitologias sagradas e seculares em torno das raposas no Japão, foram-me que grande ajuda para escrever este livro.
Toni Moyer, diretor do Centro Japonês do Estado da Carolina do Norte, respondeu a meus intermináveis pergunta, emprestou-me um sem-fim de livros e me aconselhou na hora de preparar a viagem de volta ao Japão. John Mertz, professor de japonês na Universidade da Carolina do Norte, iluminou-me em muitas questões durante minha investigação, ao igual aos professores Nelly Schmid, Richard Jaffe e Kay Troost. Obrigado também ao Chris Troost, Frayda Bluestein e Harold Hill por sua assistência, e a meus amigos Kim Church, Anthony Ulinski e Betty e Dom Adcock por seu apoio.
Rápido meu agradecimento ao Centro Virginia para as Artes Criativas, que me concedeu tempo e um espaço silencioso para trabalhar, assim como à Faculdade de Humanidades e Ciências Sociais da Universidade Estatal da Carolina do Norte, que me outorgou diversas becas de investigação.
Para escrever esta novela consultei diversos livros sobre o Japão. Foram-me de especial ajuda: Folk Legends of Japan [Lendas populares do Japão], do Richard Dorson; Glimpses of unfamiliar Japan [Esboço de um Japão desconhecido], do Lafcadio Hearn; Death in Life: Survivors of Hiroshima [Morte em vida: os superviventes da Hiroshima], do Robert Já Lifton; A Agrada called Hiroshima [Um lugar chamado Hiroshima], da Betty Lifton; A call of Hibakusha from Hiroshima and Nagasaki: International Symposium on the Damage and After-Effects of the Atomic Bombing of Hiroshima and Nagasaki [Os Hibakusha da Hiroshima e Nagasaki fazem ouvir sua voz: Simpósio Internacional sobre os danos e as conseqüências da bomba atômica na Hiroshima e Nagasaki], editado pelo Japan National Preparatory Committee; e Unforgettable Fire, Pictures Drawn by Atomic Bomb Survivors [Fogo inesquecível: os desenhos dos superviventes da bomba atômica], editado pela Japanese Broadcasting Corporation.
E quero expressar meu profundo agradecimento a minha mãe, Evangeline Davis, e a meu pai, Burke Davis, assim como ao Terry Vance, que me animaram e apoiou em todo momento. Não teria podido escrever este libero sem o Ineko Kondo, que me convidou a visitar o Japão pela primeira vez, e Fukimo Fujita, que me emprestou toda a ajuda necessária para visitá-lo de novo.
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Barbara, uma jovem professora norte-americana que leva uns meses dando aulas em uma universidade japonesa, recebe uma terrível noticia: Michiko, sua anfitriã e única amiga, acaba de falecer. Como legado, deixa-lhe uma linda, mas misteriosa lembrança: o diário das mulheres de sua família. Com a ajuda de um tradutor tão enigmático como atraente Barbara começará a decifrar os escritos de Michiko e suas antepassadas, e irá descobrindo o difícil destino de uma saga de mulheres que, como as flores de inverno, tiveram que lutar contra muitas coisas para sobreviver e dar seu fruto.
Boa leitura
Abraços
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M. Loureiro
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Antoine de Saint-Exupéry
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