sexta-feira, 15 de outubro de 2010 By: Fred

[livros-loureiro] [Ebook] Brian Lumley - Cronicas Necromânticas - Livro 1 - Que falas com mortos

PDL Apresenta: Brian Lumley - Cronicas Necromânticas - Livro 1 - Que falas com mortos








Crônicas Necromânticas 1


Brian Lumley





Tradução, formatação, pesquisa Jo Slavic
Revisão: Ana Caldeirão
Título: CRÔNICAS NECROMÂNTICAS 1
QUE FALA COM OS MORTOS

Autor: (1986) Brian Lumley

Título Original: Necroscope
Tradução: (2000) Ana Caldeirão
Edição Eletrônica: (2002) Ponta aguda

Prólogo
O hotel, a poucos minutos de Whitehall, era grande e bastante conhecido; também ostentoso, para não dizer de um luxo extravagante, e... não era exatamente o que parecia ser. O último andar estava ocupada em sua totalidade por uma sociedade internacional de empresários, e isto era tudo o que a direção do hotel sabia da tal sociedade. Os ocupantes dessa área desconhecida tinham seu próprio elevador e sua escada particular na parte posterior do edifício, isolada do hotel propriamente dito; inclusive tinham sua própria escada de incêndios. Com efeito, eles —«eles» é a única identidade que, dadas as circunstâncias, podemos lhes outorgar— eram os proprietários do piso superior, e, por conseguinte, estavam excluídos da área de influência e de operações do estabelecimento. Claro que se olhassem o edifício do exterior, muito poucos suspeitariam que não fosse em sua totalidade o que pretendia ser. E esta era precisamente a impressão que eles queriam transmitir.
Quanto aos «empresários internacionais» —fossem o que fossem essas criaturas— eles não pertenciam a essa espécie. De fato, eram funcionários do Estado. Ou, para dizê-lo com mais propriedade, eram uma dependência governamental. O governo os mantinha da mesma maneira que uma árvore alimenta uma planta parasita, mas suas raízes eram independentes. E posto que eram um parasita muito pequeno, sua presença passava inadvertida para a grande árvore. Como acontece com muitos projetos experimentais, de futuro incerto, seu financiamento não era prioritário, resolvia-se com o «dinheiro de bolso». A manutenção de seus escritórios, portanto, estava muito longe de ocupar um lugar prioritário nas partidas de gastos dos orçamentos do Estado, embora, de qualquer modo, era inevitável.
A diferença do que acontece com outros projetos, a natureza deste exigia que passasse inadvertido. Seu descobrimento não traria mais que problemas; seria considerado com desconfiança e provocaria brincadeiras, e até é provável que fosse recebido com uma total incredulidade, inclusive hostilidade. Diria-se que tinha sido um gasto de tudo desnecessário, que se tinham esbanjado as contribuições dos cidadãos, que aquilo era esbanjar o dinheiro público. E não se poderia exibir nada que o justificasse, posto que os benefícios ou frutos do projeto eram ainda hipotéticos, e a menor «geada» podia acabar com eles para sempre. Os mesmos princípios se aplicam a todas as organizações ou serviços deste tipo: têm que ser consideradas eficazes sem perder, embora resulte paradoxal, seu anonimato, seu manto de invisibilidade. Portanto, pôr ao descoberto uma organização desta classe significa acabar com ela...
Outra maneira de matar um híbrido semelhante seria arrancar sua raiz e negar que tenha existido. Ou esperar a que alguma agência exterior o desarraigasse, e então não voltar a plantá-lo.
Algo assim tinha ocorrido fazia três dias. Tinham quebrado um dos elos mais importantes, cuja função principal tinha sido unir a planta trepadeira à árvore que a alojava, lhe procurando assim estabilidade. Para dizer o de um modo breve: o diretor da divisão tinha sofrido um ataque cardíaco e tinha morrido quando se dirigia a sua casa. Fazia anos que sofria do coração, de modo que isto não era nada estranho, mas logo aconteceu algo que arrojou uma luz diferente sobre o fato, algo no que Alec Kyle não desejava pensar neste momento.
Porque agora, nesta manhã de domingo de um mês de janeiro especialmente frio, Kyle, o segundo da corporação, tinha que estimar os danos e a possibilidade de repará-los. No caso de que estas reparações fossem factíveis, deveria fazer seu primeiro —e vacilante— intento para que tudo voltasse a funcionar como antes. As bases do projeto nunca foram muito firmes, mas agora, sem uma direção enérgica, sem uma chefia, todo o assunto poderia vir abaixo em muito pouco tempo. Como um castelo de areia quando sobe a maré.
Estes eram os pensamentos que davam voltas na cabeça do Kyle quando abandonou a lamacenta calçada e entrou pelas portas giratórias de vidro em um pequeno vestíbulo, sacudiu a neve e baixou a gola do casaco. Ele, pessoalmente, não tinha dúvidas sobre a validez do projeto —Kyle pensava, pelo contrário, que a seção era muito importante—, mas como defender sua posição frente ao ceticismo dos de acima? Sim, ceticismo. O velho Gormley tinha conseguido levar o projeto adiante graças a seus amigos que ocupavam altos cargos, a sua imagem de aristocrata, a sua autoridade, seu entusiasmo e sua energia indomável, mas não havia muitos homens como Gormley. E na atualidade eram ainda mais escassos.
E essa tarde às quatro, Kyle seria convidado a defender sua posição, a vigência de sua seção, sua mesma existência. Oh, eles tinham atuado muito rápido, e Kyle acreditava saber por que. Era a crise. Não havia nada que mostrar após cinco anos de trabalho, e poderiam acabar com o projeto. O poderiam fazer calar, fossem quais fossem seus argumentos. O velho Gormley tinha sido capaz de gritar mais que todos eles juntos: ele tinha as ligações, o respaldo necessário. Mas, quem era Alec Kyle? Alec podia imaginar neste mesmo instante a inquisição da tarde.
—Sim, senhor ministro. Sou Alec Kyle. Meu cargo na seção? Bom, além de ser o segundo da corporalçao, depois de sir Keenan, eu era... quero dizer dizer sou... eu... eu prognostico... Como diz? Ah, significa que posso prever o futuro, senhor. Né?... Oh, tenho que reconhecer que é provável que não possa lhe dizer que cavalo ganhará amanhã no Goodwood. Minhas predições não são tão específicas. Mas...
Mas tudo ia ser inútil! Cem anos atrás eles não teriam acreditado no hipnotismo. Faz apenas quinze anos ainda riam da acupuntura. Como podia esperar Kyle convencê-los com respeito à seção e a seu trabalho? E entretanto, junto a seu abatimento e a sua sensação de perda, havia outra coisa. Kyle sabia o que era: era seu «dom», que lhe dizia que nem tudo estava perdido, que de algum jeito conseguiria convencê-los, que a seção ia continuar. Esta era a razão de que estivesse aqui: inspecionar as coisas de Gormley, preparar a defesa da seção, seguir lutando por sua causa. Uma vez mais, Kyle refletiu sobre seu estranho talento, essa habilidade para prever o futuro.
Porque o certo era que, a noite anterior, tinha sonhado que a resposta estava precisamente aqui, neste edifício, entre os papéis do Gormley. Embora que «sonhado» não seja a palavra correta: as revelações do Kyle —aquilo logo que entrevisto que ainda não tinha acontecido; acontecimentos futuros— lhe sobrevinham sempre nesses nebulosos instantes entre o sonho profundo e o despertar, imediatamente antes da total recuperação da consciência. O alarme do despertador podia pôr em marcha o processo, ou também o primeiro raio de sol que entrava pela janela de seu dormitório. Assim tinha acontecido essa manhã: a luz opaca de outro dia cinza que invadiu sua habitação, filtrou-se por entre suas pálpebras e imprimiu, em sua mente à deriva, o fato de que um novo dia estava por nascer.
E com o novo dia tinha nascido uma visão; embora «vislumbre» era possivelmente uma palavra mais apropriada, porque isso era tudo o que o talento do Kyle lhe tinha permitido. Sabia que sempre era assim, e também que só acontecia durante um instante e logo desaparecia para sempre. Por isso se tinha concentrado naquela imagem fugaz e a tinha absorvido. Não podia arriscar-se a perder nada. Tudo o que tinha «visto» desta maneira, mais tarde tinha resultado ser de vital importância.
Nesta ocasião se viu sentado à mesa do Keenan Gormley, inspecionando seus papéis um por um. A gaveta superiora da direita estava aberto; os papéis e as pastas que havia sobre a mesa provinham dali. O grande arquivo do Gormley continuava fechado; suas três chaves estavam na mesa, onde as tinha deixado Kyle. Cada uma das chaves abria uma pequena gaveta no arquivo, e cada um das gavetas tinha sua própria fechadura de combinação. Kyle conhecia as combinações, mas não se incomodou em abrir o arquivo. Não, o que ele procurava estava ali mesmo, nos documentos que tinham estado guardados na gaveta da mesa. Kyle tinha visto então a sua imagem, como galvanizada ao dar-se conta disso, que se detinha bruscamente quando chegava a determinada pasta. Era uma pasta amarela, e isto significava que pertencia a um membro futuro da organização. Alguém que já estava «nos livros». Alguém em quem Gormley tinha posto seus olhos atentos. Um indivíduo que talvez possuísse verdadeiro talento.
No instante em que lhe tinha ocorrido isto, Kyle se adiantou para si mesmo, para sua imagem sentada. E então, como sempre de uma maneira inesperada, seu alter ego no escritório tinha levantado a cabeça, tinha-o olhado, e tinha mostrado a pasta para que ele pudesse ver o nome escrito na capa: Harry Keogh».
Isso era tudo. Nesse instante, Kyle tinha despertado. Quanto ao significado daquilo, quem sabe qual era. Kyle tinha renunciado fazia tempo a tentar predizer o significado daquelas visões; só sabia que a tinha. Em todo caso, podia se dizer que algo o havia trazido hoje a este lugar, esse algo era o breve e ainda inexplicável «sonho» que tinha tido antes de despertar.
Ainda era muito cedo, e Kyle tinha conseguido adiantar-se por uns minutos ao intenso tráfego das horas de maior movimento em Londres. Durante a próxima hora —ou talvez durante mais tempo— as ruas seriam um caos, mas aqui reinava a proverbial calma tumular. Outros empregados administrativos (três, incluída a datilógrafa) tinham dois dias de folga, em honra ao morto, de modo que os escritórios de cima estariam desertos.
Kyle tinha apertado o botão para chamar o elevador, que agora abria suas portas. Entrou, e, quando as porta se fecharam, tirou seu passe e o introduziu na ranhura do sensor. O elevador deu um salto, mas não subiu. As portas se abriram e se fecharam novamente depois de um comprido momento de espera. Kyle franziu o sobrecenho, olhou o carteira e amaldiçoou-se entre dentes. Tinha caducado no dia anterior! Normalmente, Gormley a teria renovado no computador da seção; agora teria que fazê-lo ele mesmo. Por sorte levava consigo o cartão de Gormley, junto com outros efeitos que utilizava no escritório. Conseguiu que o elevador subisse até o último piso com o passe do falecido diretor da seção, e, mediante o mesmo procedimento, pôde entrar no escritório principal.
Dentro, o silêncio era quase ensurdecedor. O lugar, situado muito alto por cima do nível da rua, com abafadores de som no piso para não deixar acontecer os ruídos do hotel, e com janelas de escuros cristais dobre, parecia estar construído em uma espécie de vazio. Dava a sensação de que se a gente escutasse esse silencio durante muito tempo, ser-lhe-ia difícil respirar. Esta sensação era particularmente intensa no escritório de Gormley, onde alguém se preocupou de baixar as persianas. Mas estas se travaram na metade da janela, e agora as bandas de luz que penetravam pelos cristais pintados de verde faziam que todo o escritório parecesse decorado com linhas líquidas, submarinas. Isto convertia ao recinto, antes tão familiar, em um lugar estranho, alheio, e de repente foi muito estranho e irreal que o Velho não estivesse ali...
Antes de entrar, Kyle permaneceu durante uns momentos no vão da porta, contemplando o escritório. Depois a fechou a suas costas e se dirigiu ao centro da sala. Vários scanners ocultos o tinham estudado e identificado, tanto nos escritórios exteriores como aqui, mas um monitor de controle situado na parede vizinha à mesa do Gormley não se deu por satisfeito. Começou a emitir um som curto e agudo, e sobre sua tela apareceu impresso a seguinte mensagem:

SIR KEENAN GORMLEY NÃO PODE ATENDÊ-LO NESTE MOMENTO. ESTA É UMA ZONA DE SEGURANÇA. POR FAVOR, IDENTIFIQUE-SE COM SEU TOM DE VOZ HABITUAL OU ABANDONE IMEDIATAMENTE O LUGAR. SE NÃO SE IDENTIFICAR OU PARTIR, AS PORTAS E JANELAS SE FECHARÃO AUTOMATICAMENTE DEPOIS DE UM ÚLTIMO PRAZO DE DEZ SEGUNDOS... REPITO: ESTA É UMA ZONA DE SEGURANÇA.

Kyle experimentou um irracional sentimento de hostilidade para a fria e irrefletida máquina, e, em um gesto malévolo, não lhe respondeu e se limitou a esperar. depois de três segundos, a mensagem anterior se apagou da tela e a máquina imprimiu:

COMEÇA O PRAZO DE DEZ SEGUNDOS: DEZ... NOVE... OITO... SETE... SEIS...

—Alec Kyle —disse Kyle a contra gosto, pois não queria ficar encerrado na habitação.
A máquina reconheceu sua voz, interrompeu a conta e começou uma nova rotina:

BOM DIA, SENHOR KYLE... SIR GORMLEY NÃO PODE...

—Já sei —disse Kyle—. Gormley está morto.
Adiantou-se até o teclado do monitor e introduziu a contra-senha que anulava o mecanismo de segurança. A réplica da máquina foi:

NÃO ESQUEÇA RESTABELECER O ALARME ANTES DE PARTIR,

Depois do qual se desconectou.
Kyle se sentou à mesa.
«Que mundo mais estranho —pensou—. E que organização tão peculiar, robôs e românticos. A super ciência e o sobrenatural. Telemetria e telepatia. Cálculos de probabilidade informatizados e precognição. Aparelhos científicos e fantasmas!»
Colocou a mão no bolso para procurar os cigarros e o acendedor, e tirou também as chaves do arquivo de Gormley. Sem pensá-lo, deixou-as em uma ponta da mesa. Logo as ficou contemplando durante um momento. Reproduziam uma estrutura, a estrutura da visão do futuro que tinha tido esta manhã.
«Muito bem, partamos daqui.»
Provou a abrir as gavetas da mesa. Estavam fechados. Agarrou a agenda do Gormley que guardava no bolso interior de seu casaco e procurou a contra-senha. Era ABRA-TE SÉSAMO.
Kyle, sem poder conter um sorriso, escreveu te ABRA-TE SÉSAMO no teclado da mesa e tentou outra vez abrir as gavetas. A primeira gaveta da direita se abriu imediatamente; dentro havia pastas, documentos, papéis escritos...
«Agora vem o divertido», pensou Kyle.
Tirou os papéis e os pôs sobre a mesa. Deixou a gaveta aberta (outra vez sua «visão») e começou a estudar os documentos. Uma vez inspecionados os deixou de novo na gaveta. Kyle sabia que seu talento já não deveria surpreendê-lo, mas ainda o fazia, e deu um involuntário pulo quando chegou à pasta amarela: o nome que havia na coberta era, claro está, Harry Keogh.
Harry Keogh. Esse nome, sem contar o sonho, só tinha aparecido antes em uma ocasião: em um jogo de PES (Percepção extra-sensorial) que ele estava acostumado a jogar com o Keenan Gormley. Quanto à pasta, não a tinha visto em sua vida (em sua vida consciente, em todo caso), mas ficou olhando-a fixamente, tal como o tinha feito no sonho.
No sonho tinha aberto a pasta só para si mesmo. Agora essa lembrança o conduziu a realizar um ato distinto: sustentou a pasta em direção à sala vazia —embora se sentisse um pouco tolo; não compreendia por que fazia aquilo, mas ao mesmo tempo sentia que uma estranha energia penetrava por sua pele— como se a desse a ler a um fantasma de seu próprio e recente passado.
E assim como a lembrança tinha desencadeado uma ação, esta provocou agora outra coisa, algo que era alheio a todas as experiências anteriores do Alec Kyle, a todos seus conhecimentos.
«Meu Deus! Aparelhos científicos e fantasmas!»
Até fazia apenas um instante, a sala tinha estado agradavelmente temperada. O edifício tinha calefação central, e nos escritórios nunca fazia frio. Ou não teria que havê-lo feito, porque agora, em questão de segundos, a temperatura tinha descido bruscamente. Kyle o sentia, podia percebê-lo, mas ao mesmo tempo conservava o sentido comum e a lógica suficientes para perguntar-se se não seria sua temperatura corporal a que tinha baixado. Se assim era, tinha uma explicação. As pessoas que sofriam uma comoção deviam sentir-se desta maneira. E não era estranho que se estremecessem em circunstâncias semelhantes!
—Jesus! —sussurrou, e seu fôlego se desdobrou como uma nuvem de vapor no ar repentinamente gelado. Seus dedos trementes soltaram a pasta, que golpeou contra a mesa. O ruído que produziu esta queda, e o que via, fizeram que Kyle ficasse em movimento como sacudido por uma descarga elétrica. Deu um salto para trás na cadeira, seus pés se arrastaram pela grosso carpete, a cadeira se inclinou até dar contra o batente da janela, e o impulso a fez voltar para frente.
A coisa —aparição?— estava a meio caminho entre a porta e a mesa, e não se moveu. Ao princípio, Kyle pensou —e a ideia o atemorizou— que o que via só podia ser ele mesmo de pé, projetado para fora desde seu sonho. Agora, entretanto, via que aquilo era outra pessoa, ou outra coisa. Não pôs em duvida em nenhum momento a realidade do que via, nem pensou que poderia não ser algo sobrenatural. Era impossível que não o fora. Os dispositivos de segurança que exploravam continuamente a habitação, e todo o conjunto de escritórios, não tinham descoberto nada. Eram por completo independentes, e se houvesse algo estranho, os alarmes já estariam soando e se fariam cada vez mais estridentes até que alguém o advertisse. Mas estavam silenciosas. Por conseguinte, aqui não havia nada que pudessem detectar..., mas Kyle o via.
Isso, ele, um homem —um jovem— nu como um menino recém-nascido, estava frente a Kyle e o olhava. Seus pés, entretanto, não tocavam o chão, e os raios de luz verde que entravam pelas janelas penetravam sua carne como se esta carecesse de substância. Maldito seja, se era imaterial! Mas a coisa o olhava, e Kyle se deu conta de que o via. Perguntou-se para si mesmo, se ele se mostraria amistoso com ele ou se...
Tornou -se de novo para trás e seus olhos viram algo no fundo da gaveta aberta. Uma automática Browning de 9 mm. Sabia que Gormley andava armado, mas não conhecia a existência dessa pistola. Estaria carregada? E se estavesse, servir-lhe-ia de algo contra «isso»?
—Não —disse a aparição com um leve, quase imperceptível gesto de negação—. Não serviria de nada.
E o mais surpreendente era que seus lábios não se moveram nem um milímetro!
—Por Deus! —exclamou Kyle em voz alta.
Em um ato involuntário, apartou-se de novo da mesa. Depois se dominou e disse:
—Você... você lê meus pensamentos.
A aparição sorriu apenas.
—Todos temos nossas habilidades, Alec. Você tem as suas, e eu as minhas.
Kyle, que tinha a boca entre aberta, abriu-a ainda mais. Perguntou-se o que seria mais fácil, pensar para a coisa, ou lhe falar.
—Me fale —disse o outro—. Acredito que será mais fácil para ambos.
Kyle tragou saliva, tentou falar, tragou saliva de novo, e, por último, conseguiu dizer:
—Mas quem..., o que..., que demônios é você?
—Não tem importância quem sou. Se a tem é o que fui, e o que serei. Agora, me escute. Tenho muito que lhe contar e tudo é bastante importante. Levará tempo, horas talvez. Necessita algo antes de que comece?
Kyle olhou direto a..., ao que queira que fosse. Olhou-o fixo, apartou logo a vista e o olhou de esguelha. Seguia ali. Por fim se rendeu a seu instinto, respaldado esta vez por ao menos dois de seus cinco sentidos, a vista e o ouvido. A coisa parecia racional, existia, queria falar com ele. Por que com ele, e por que agora? Sem dúvida, descobri-lo-ia muito em breve. Mas, Deus bendito, se também ele queria falar! Se tinha aqui a um verdadeiro fantasma vivo, ou a um verdadeiro fantasma morto!
—Se eu necessito algo? —Kyle repetiu tremente a pergunta do outro.
—Você ia acender um cigarro —assinalou a aparição—. Possivelmente deseje tirar o casaco, pegar um café. —encolheu-se de ombros—. Se fizer primeiro essas coisas, logo poderemos nos dedicar prontamente ao nosso assunto.
A calefação central funcionava de novo; o mecanismo tinha subido automaticamente a temperatura para compensar a repentina descida experimentada na sala. Kyle ficou de pé, tirou o casaco e o deixou dobrado sobre o respaldo da cadeira.
—Sim, um café —disse—. Só me levará um momento.
Deu a volta à mesa e passou junto ao visitante. Este, uma sombra tênue que flutuava, magra e insubstancial como um floco de neve, voltou-se para olhá-lo enquanto Kyle deixava a habitação. Sim, uma sombra tênue, mas com um poder nela... Kyle se alegrou de que não o tivesse seguido.
Pôs duas moedas de cinco centavos na máquina de café do escritório central e, enquanto a máquina servia o café, dirigiu-se ao lavabo. Fez depressa suas necessidades e, de caminho para o despacho do Gormley, recolheu o copo de plástico cheio de fumegante café. A coisa ainda estava ali, esperando-o. Kyle a rodeou com cautela e se sentou outra vez frente à mesa.
Enquanto acendia um cigarro, olhou com mais atenção a seu visitante; estudou-o até em seus menores detalhes. Era algo que tinha que deixar gravado em sua mente.
Se se tinha em conta que seus pés não estavam firmemente apoiados no chão, devia medir um metro setenta e oito centímetros, e se sua carne fosse real e não uma névoa leitosa, isso —ou ele— pesaria uns cinquenta e sete quilogramas. Tudo nele era vagamente luminoso, como se brilhasse com uma tênue luz interior, de modo que Kyle não podia estar seguro com respeito a suas cores. O cabelo, espesso e despenteado, parecia loiro. Umas marcas leves e irregulares que tinha nos maçãs do rosto e na frente podiam ser sardas. Devia ter perto de vinte e cinco anos; sim, ao princípio lhe tinha parecido mais jovem, mas agora essa impressão se ia desvanecendo.
Seus olhos eram interessantes. Olhavam ao Kyle, mas também olhavam através dele, como se Kyle fora o fantasma, e não ao contrário. Eram azuis, desse azul quase incolor que sempre parece artificial e faz que alguém pense que quem os possui leva lentes de contato. Mas mais que isso, havia algo naqueles olhos que dizia que conheciam mais coisas que as normais em um jovem de vinte e cinco anos. Pareciam encerrar uma sabedoria que só outorgam os anos; debaixo do magro filme azul que os cobria havia um conhecimento de séculos.
O resto das feições eram delicadas como a porcelana, ao menos com uma aparência de fragilidade semelhante. Tinha mãos largas e magras; os ombros, um pouco cansados; e a tez, além das sardas, pálida e sem marcas nem rugas. Se não tivesse sido pelos olhos, é provável que na rua ninguém o teria olhado duas vezes. Não era mais que um homem jovem, do montão... Ou um jovem fantasma. Ou possivelmente um muito velho.
—Não —disse o objeto do escrutínio do Kyle, sem mover os lábios—. Não sou um fantasma. Ao menos, não no sentido clássico da palavra. Mas agora, já que evidentemente você me aceita, podemos começar?
—Começar? Claro!
De repente, Kyle sentiu vontades de rir, como se fosse uma mocinha histérica. Teve que fazer um esforço para dominar-se.
—Está seguro de que está preparado?
—Sim, sim. Adiante. Mas... posso gravar isto? Para a posteridade... ou o que seja. Aqui há um gravador e eu...
—A máquina não me ouvirá —disse o outro, ao tempo que negou com a cabeça—. O sinto, mas estou falando só com você. Falo-lhe diretamente. Pensei que o tinha compreendido. Mas... pode tomar notas, se quiser.
—Sim, notas... —Kyle procurou nas gavetas da mesa e encontrou papel e um lápis—. Muito bem, já estou preparado.
O outro fez um gesto de assentimento.
—A história que vou contar lhe é... é estranha, mas a você, que trabalha em um lugar como este, não deveria lhe parecer incrível. Se me crê, depois terá que fazer muitas coisas; a verdade do que vou relatar lhe será então evidente. Quanto às dúvidas que possa ter com respeito ao futuro de sua seção, esqueça-se. Continuará com seu trabalho, e este será dia a dia mais importante. Gormley era o diretor, mas está morto. E agora você será o chefe..., ao menos por um tempo. E lhe asseguro que o fará muito bem. Por outro lado, não se perdeu nada do que Gormley sabia; de fato, ganhou-se muito. Quanto à oposição, sofreram perdas —ou ao menos estão por sofrer das que por acaso nunca poderão recuperar-se.
Kyle escutava à aparição com os olhos cada vez mais abertos, muito tenso em sua cadeira. «Isso» (ele, maldita seja) estava informado da existência da seção. Conhecia o Gormley, sabia da oposição», que era o nome que davam na seção a uma organização similar dos russos. E o que era o que dizia sobre as severas perdas sofridas por estes? Kyle não estava informado de nada. De onde obtinha este ser sua informação? E quanto sabia em realidade?
—Sei mais do que você possa imaginar-se —disse o outro com um sorriso—. E o que não sei, posso averiguar...; posso averiguar virtualmente tudo.
—Olhe —disse Kyle à defensiva—, não duvido do que me diz. Nem sequer duvido de minha prudência, para falar a verdade; é só que estou tratando de me adaptar a esta situação ...
—Compreendo —o interrompeu o outro—, mas lhe suplico que, se puder, adapte-se enquanto falamos. Pode ser que no que vou contar-lhe as zonas temporárias se sobreponham ligeiramente, de maneira que também terá necessidade de adaptar-se a isso. Mas tratarei de manter a cronologia do modo tão linear como me é possível. O importante é a informação. E suas consequências.
—Não sei se entendo bem...
—Sei. Sei. Mas sente-se ali e escute, e logo possivelmente o entenderá.




Capítulo um

Moscou, maio de 1971

No centro mais denso do bosque, em uma zona não muito longínqua à cidade, ali onde o caminho ao Serpukhov passa por uma colina entre as colinas e por um instante, entre as folhagens dos altos pinheiros, olhe para o Podolsk, que parece uma mancha no horizonte do sul, fendida aqui e lá pelas primeiras luzes da noite, elevava-se uma mansão que parecia ter conhecido melhores tempos e em cuja construção se mesclaram diversos estilos arquitetônicos. Vários de seus pavilhões eram de tijolo moderno sobre antigos alicerces de pedra, em tanto que outros eram de blocos de cimento barato, pintados de verde e cinza para fazer menos visível a discordante construção. Fixas sobre o telhado a duas águas de pronunciada inclinação, erguiam-se, como vigias, duas torres gêmeas ou minaretes ruinosos qual presas cariadas e solitárias. Deteriorados contrafortes e parapeitos e a pintura descascada contribuíam à sensação geral de decadência. Estavam coroados por cúpulas arredondadas que se elevavam por cima das árvores mais altas, e tinham janelas cobertas por pranchas, semelhantes sem pensar por pesadas pálpebras.
A disposição dos edifícios —alguns dos quais tinham sido recobertos recentemente com modernas telhas vermelhas— poderia ter indicado uma fazenda, ou uma pequena comunidade dedicada à agricultura, embora não se vissem cultivos, instrumentos de lavoura ou animais por nenhum lado. O muro que rodeava todo o perímetro, que com sua sólida estrutura, seus contrafortes fortificados e seus parapeitos muito bem podia ser uma relíquia dos tempos feudais, também mostrava sinais de recentes reparações, onde pesados blocos de cimento tinham substituído às pedras rachadas e aos velhos tijolos. Para o este e o oeste, onde os arroios corriam fazendo curvas arredondadas, entre escarpadas ribeiras que os convertiam em fossos naturais, velhas pontes de pedra com coberturas chumbadas, verdes pelo musgo e a idade, penetravam nos muros, suas negras bocas embuçadas com portas gradeadas.
Um conjunto sombrio e intimidante. E se por acaso a mera visão do lugar do caminho não fosse aviso suficiente, um pôster no cruzamento do qual saía um caminho pedregoso que se internava no bosque, advertia que toda a zona era «Propriedade do Estado», vigiada e protegida, e que a entrada estava proibida. Os motoristas não deviam parar sob nenhuma circunstância; estava proibido caminhar pelo bosque, caçar ou pescar. As penas eram severas sem exceção.
Todo aquilo fazia que o lugar parecesse deserto e perdido nos miasmas da desolação. Mas quando a tarde se convertia em noite e dos arroios subia uma neblina que envolvia a terra em uma brancura leitosa, acendiam-se as luzes depois dos cortinados das janelas da planta baixa e contavam uma história diferente. No bosque, nos caminhos que levavam às pontes talheres, também os grandes carros negros que bloqueavam os acessos podiam parecer abandonados, se não fosse pelo opaco resplendor laranja dos cigarros que se fumavam no interior, e a fumaça que saía pelas janelas parcialmente abertas. O mesmo acontecia dentro dos limites da muralha: formas robustas e silenciosas que podiam representar homens, de pé nos lugares mais escuros, com casacos cinzas semelhantes a uniformize, os rostos ocultos sob as asas dos chapéus, os ombros retos e erguidos como se fossem robôs...
Em um pátio interior do edifício principal uma ambulância —ou talvez um carro fúnebre— se achava estacionada com as portas traseiras abertas. Os assistentes de uniforme branco estavam em atitude de espera e o condutor sentado ao volante. Um dos assistentes jogava com uma espécie de carrinho de mão metálico utilizado para carregar o carro; a fazia deslizar sobre suas bem lubrificados almofadinhas, na parte traseira do comprido e um tanto sinistro veículo. Perto dali, em um abrigo cuja estrutura era similar a um celeiro, aberto por um de seus extremos, vislumbrava-se entre as sombras a silhueta escura e as janelas quadrados de um helicóptero. O aparelho mostrava na fuselagem a insígnia do Soviet Supremo. Em uma das torres, apoiado contra o parapeito, uma figura provida com óculos preparados para a visão noturna vigiava os terrenos circundantes, em especial a zona limpa entre o muro periférico e o grupo de edifícios do centro. O feio focinho metálico de um fuzil Kalashnikov adaptado especialmente se projetava por cima de seu ombro, recortado contra um horizonte cada vez mais escuro.
No interior do edifício principal, modernos tabiques de um material a prova de som dividiam em salas bastante grandes o que em outra época tinha sido um amplo vestíbulo. As estadias se comunicavam por um corredor central iluminado por uma fileira de luminárias fluorescentes fixas no elevado teto. Cada uma das salas tinha uma porta com cadeado e todas as portas tinham janelas gradeadas com uma persiana deslizante do lado de dentro, e pequenas luzes vermelhas que quando se acendiam e se apagavam queriam dizer «Não entre. Pede-se não incomodar». Uma dessas luzes, à esquerda na metade do corredor, piscava neste instante. Apoiado contra a parede, a um lado da porta onde brilhava a luz, um membro da KGB, alto e de rosto impenetrável, montava guarda com uma metralhadora nas mãos. Aguardando no momento, estava preparado entretanto para entrar em ação imediatamente. A mera insinuação de que uma porta se abriria, ou a repentina suspensão do brilho da luz vermelha, e o homem se ergueria rígido como um poste de sistema de iluminação. Embora nenhum dos homens naquela habitação fosse em rigor seu chefe, um deles era tão importante como qualquer das altas filas da KGB e um dos dez homens com mais poder na Rússia.
Havia outros homens na sala, depois da porta fechada. Em realidade, não se tratava de uma sala mas sim de duas, com uma porta que as comunicava. No quarto menor haviam três homens; sentados em poltronas, fumavam com os olhos cravados no tabique que separava as salas, cuja parte central, do chão ao teto, estava ocupada por um grande vidro que permitia ver sem ser visto. Sobre o carpete; em uma pequena mesa com rodas, ao alcance de todos, havia um cinzeiro, copos e uma garrafa de slivovitz. Tudo estava em silêncio, e só se ouvia a respiração dos homens e o leve zumbido do ar condicionado. A luz era indireta e não feria os olhos.
O homem do centro rondava os sessenta e cinco anos; os da direita e a esquerda teriam uns quinze anos menos. Eram seus protegidos, e cada um deles sabia que o outro era seu rival. O homem do centro também sabia, era ele quem o tinha planejado assim. Aquilo se conhecia como «a sobrevivência do mais apto»: só um deles, quando por fim chegasse o dia, sobreviveria para ocupar seu lugar. Para então, o outro teria sido eliminado, possivelmente da vida política, mas mais provavelmente de outra maneira mais tortuosa. Os anos que faltavam para esse dia seriam o campo de prova. Sim, sobrevivência do mais apto...
O mais velho deles, com as têmporas completamente grisalhas mas com uma franja de cabelo muito negro penteado para trás da fronte, ampla e com rugas, bebeu um gole de seu brandy e fez um gesto com o cigarro. O homem a sua direita alcançou o cinzeiro. Parte da cinza deu no cinzeiro, o resto caiu ao chão. Ao cabo de um instante o carpete começou a arder e uma coluna de fumaça subiu lentamente. Os dois homens dos flancos permaneceram imóveis e ignoraram deliberadamente o fogo. Sabiam que o homem mais velho detestava às pessoas inquieta e nervosa. Mas seu chefe acabou por farejar o que acontecia, olhou para o chão e franzindo as fartas sobrancelhas negras e esfregou o tapete com a sola de seu sapato até que extinguiu o fogo.
Atrás da tela se realizavam preparativos. No mundo ocidental possivelmente houvessem dito que um homem tinha provocado em si mesmo um estado de alteração mental. Seu método tinha sido simples..., notavelmente simples à luz do que estava por acontecer; limpou-se. Despiu-se e banhou-se; tinha ensaboado prolixa e minuciosamente cada centímetro de seu corpo. Barbeou-se e depilou todo o pelo do corpo, respeitando só seus cabelos, cortados ao corte de barba. Tinha defecado antes e depois do banho, e na segunda ocasião tinha assegurado sua higiene mediante uma nova lavagem com água quente de suas partes íntimas, que secou logo com uma toalha. Depois, sempre nu, tinha descansado.
Seu método para descansar lhe teria parecido extremamente macabro a qualquer que ignorasse o que fosse aquilo, mas era parte dos preparativos. O homem se sentou junto ao segundo ocupante da sala, que jazia em uma espécie de mesinha de rodas, levemente inclinada e de um alumínio acanalado, e se tinha recostado sobre o abdômen do outro com a cabeça entre os braços. Logo tinha fechado os olhos e ao parecer tinha dormido uns quinze minutos. Não havia nada erótico nem remotamente homossexual nisto. O homem da mesinha de rodas também estava nu; era muito maior que o primeiro, de carnes flácidas, enrugado e calvo, com exceção de uma franja de cabelo cinza nas têmporas. Além disso, estava morto. Mas até depois de morto seu rosto inchado e pálido, sua boca de lábios finos e suas sobrancelhas muito arqueadas eram cruéis.
Os três homens que estavam ao outro lado da tela tinham contemplado estas operações; tudo tinha sido realizado com uma sorte de imparcialidade clínica e sem o menor sinal de que o ator soubesse que o estavam contemplando. Ele simplesmente tinha «esquecido» a presença dos espectadores; seu trabalho o absorvia por inteiro, era muito importante para permitir intervenções ou interferências do exterior.
Mas agora se moveu, levantou a cabeça, piscou duas vezes e se ergueu com lentidão. Tudo estava em ordem, e a indagação podia começar.
Os três espectadores se inclinaram para frente em seus assentos e contiveram a respiração, toda sua atenção concentrada no homem nu. Parecia como se temessem interromper algo, embora seu «observatório» estivesse completamente isolado e sem som.
O homem nu fez girar a mesinha de rodas onde jazia o cadáver até que o extremo mais baixo, onde sobressaíam os pés gelados e abertos em forma de uma «V», ficou sobre o bordo da banheira. Retrocedeu até uma segunda mesa de rodas, esta já de formas mais convencionais, e abriu uma maleta de couro que se achava sobre a mesma e exibia uma variada gama de afiadíssimos instrumentos cirúrgicos: escalpelos, tesouras, serras...
Do posto de observação, o homem do centro se permitiu um sorriso turvo que escapou à atenção de seus subordinados. Estes se tinham reclinado em suas poltronas, satisfeitos de que não fossem ver nada mais espetacular que uma estranha autópsia. Seu chefe mal podia conter a risada que pugnava por brotar de sua garganta. Um estremecimento de mórbida alegria sacudia seu corpo enquanto antecipava a surpresa que iriam ter seus subordinados. Ele tinha visto tudo isto antes, mas para eles era a primeira vez. E, de algum modo, era uma prova que deviam passar.
O homem nu agarrou uma larga varinha chapeada, fina como uma agulha em um de seus extremos e com uma manga de madeira no outro e sem vacilar se inclinou sobre o cadáver, apoiou o extremo mais agudo da varinha no umbigo do inflamado ventre e a afundou com força. A vara penetrou na carne morta e do ventre escaparam os gases acumulados nos quatro dias que tinham transcorrido do falecimento, que subiram com um assobio até a cara do homem nu.
—Som! —pediu com brutalidade o observador do centro, e fez sobressaltar aos dois que o escoltavam. Sua voz bronca era tão grave que quando continuou parecia pouco menos que uma série de gorjeios guturais —. Rápido, quero ouvir! —exclamou, e agitou um dedo curto e grosso para assinalar um alto-falante que havia na parede.
O homem a sua direita tragou saliva de maneira perceptível e ficou de pé, foi até o alto-falante e apertou um botão marcado com a palavra «receptor». Houve um momentâneo ruído residual, e depois se ouviu com claridade um zumbido que se desvaneceu quando o ventre do cadáver na sala vizinha se assentou lentamente nas dobras de pele. Mas enquanto o gás escapava, o homem nu, em lugar de retroceder, baixou o rosto, fechou os olhos e aspirou profundamente até encher seus pulmões.
Com os olhos grudados à tela, o oficial foi até sua cadeira com movimentos torpes e se sentou pesadamente. Tinha a boca aberta, igual ao outro protegido, seu competidor. Os dois homens estavam sentados agora na beirada de seus assentos, com as costas rígidas como estacas, e se aferravam com força aos braços da poltrona. Um cigarro esquecido escorregou até o centro do cinzeiro soltando nuvens de fumaça perfumada. O único que não parecia comovido era o observador do centro, e estava tão interessado nas expressões do rosto de seus subordinados como no misterioso ritual que tinha lugar detrás da tela.
O homem nu se ergueu, e permaneceu sobre o desinflado cadáver. Tinha uma mão apoiada sobre a coxa do morto e a outra sobre o peito, as palmas para baixo. Seus olhos estavam novamente abertos, mas a cor de sua tez tinha trocado de maneira visível. A cor rosada, normal em um corpo jovem e saudável recém esfregado, tinha desaparecido. Todo ele tinha adquirido o mesmo tom cinzento da carne morta que tocava. Estava literalmente pálido como a morte. Conteve o fôlego e pareceu saborear o gosto da morte; suas bochechas se afundaram. Então...
O homem nu retirou as mãos do cadáver, soltou um gás fedorento com um ffff, e andou para trás fazendo descansar todo o peso sobre os calcanhares. Por um instante deu a impressão de que ia cair de costas, mas logo retornou de novo para frente. E uma vez mais pôs suas mãos com muito cuidado sobre o cadáver. Gasto e pálido como um lençol, acariciou a carne do cadáver. Seus dedos tremiam enquanto foram, leves como mariposas, da cabeça aos pés e de volta à cabeça. Tampouco agora havia no gesto nenhum erotismo, mas o homem da esquerda do trio de espectadores murmurou:
—É um necrófilo? O que é isto, camarada general?
—Cale-se e aprenda —grunhiu o homem do meio—. Sabe onde se encontra, não é verdade? Nada do que aconteça neste lugar deveria lhe surpreender. E quanto a isto..., ao que esse homem é..., dentro de muito pouco tempo saberá. Mas lhe direi algo: que eu saiba, em toda a URSS só há três homens como ele. O primeiro é um mongol da zona de Altai, o bruxo de uma tribo, gravemente doente de sífilis, por isso não nos serve de nada. O outro está louco e muito em breve lhe praticarão uma lobotomia, depois da qual ele também estará fora de nosso alcance. Só fica este homem, então, e sua habilidade é instintiva, difícil de ensinar. O que faz dele alguém sui generis. Esta é uma expressão em latim, uma língua morta. Muito apropriada. E agora, cale-se! Estão contemplando um talento único!
Enquanto isso, o «talento único», atrás do cristal que permitia aos observadores ver sem ser vistos, parecia galvanizado. Seus movimentos, bruscos e inesperados, eram tão irregulares que parecia espasmódico, como se pendurasse dos fios de um titereiro louco. O braço e a mão direitos foram para a maleta, e estiveram a ponto de fazê-la cair da mesa. A mão, contraída por um espasmo até parecer uma garra cinza, descreveu um amplo movimento, como se estivesse dirigindo um esotérico concerto, mas não sustentava uma batuta a não ser um brilhante escalpelo em forma de meia lua.
Os três observadores estiravam agora o pescoço para olhar com os olhos como pratos e boquiabertos. Os rostos dos dois dos flancos estavam contraídos em uma espécie de rictus de negação —preparados para retroceder, e inclusive lançar uma exclamação ante o que suspeitavam ia acontecer—, em tanto que a expressão de seu superior não demonstrava mais que conhecimento e uma insalubre espera.
Com uma precisão que desmentia a raridade —ou pelo menos a incerteza— dos movimentos de suas outras extremidades, que se retorciam como as patas de uma rã morta, nas que se provocou uma ficção de vida mediante uma corrente elétrica, o braço e a mão do homem nu abriram em canal o cadáver desde abaixo da caixa torácica até a massa cinza de pelos púbicos. Outros dois cortes, ao parecer feitos ao azar mas absolutamente precisos, seguiram ao primeiro movimento, e o ventre do cadáver ficou marcado com um grande «I» de largas barras horizontais.
O autômato que realizava esta horrível cirurgia jogou em seguida o escalpelo ao outro lado da sala, afundou suas mãos até os pulsos na incisão central e abriu as dobras do ventre do morto como se fossem as portas de um armário. As vísceras assim expostas, frias, não fumegaram. Não correu sangue, mas quando o homem nu retirou as mãos, estas brilhavam com uma opaca cor vermelha, como recém pintadas.
Para realizar esta abertura no cadáver tinha sido necessário um esforço quase hercúleo —visível no repentino abrutamento dos músculos dos braços, os ombros e os flancos do homem nu—, pois todas as malhas exteriores do estômago deviam ser cortados de uma só vez. A operação tinha sido realizada, além disso, com um grunhido claramente audível na outra sala, e uma feia careta que tinha contraído os lábios sobre os apertados dentes, e tinha posto em relevo os rígidos tendões do pescoço.
Mas agora, com as vísceras do cadáver inteiramente expostas, uma estranha calma descendeu sobre o homem nu. Mais pálido que antes, se isso era possível, ergueu-se uma vez mais e se balançou para trás apoiado sobre os calcanhares, deixando que as mãos tintas de vermelho arriassem em seus flancos. Logo se balançou para frente, baixou os olhos azuis de olhar neutro e começou um lento e minucioso exame das vísceras do cadáver.
Na outra habitação o homem da esquerda estava sentado e tragava saliva sem parar, as mãos aferradas aos braços da poltrona e o rosto brilhante com uma fina capa de suor. o da direita se pôs lívido e tremia da cabeça aos pés, aspirando rápidas baforadas de ar em um intento de controlar os batimentos do coração agitados de seu coração. Mas sentado entre eles, o ex-general do exército, Gregor Borowitz, agora diretor da Seção secreta para o Desenvolvimento da Espionagem Paranormal, estava absorto por completo, com sua leonina cabeça jogada para frente e uma expressão de assombro e admiração em seu rosto de mandíbula quadrada, enquanto absorvia todos e cada um dos detalhes e matizes da atuação. Borowitz ignorava o melhor que podia o desconforto de seus golfinhos, mas no bordo mesmo de sua consciência se formou um pensamento: perguntava-se se os outros se adoeceriam, e quem seria o primeiro em vomitar. E onde vomitaria.
No chão, debaixo da mesa, havia um cesto de papéis de metal que continha uns poucos papéis enrugados e bitucas de cigarros. Borowitz, sem tirar os olhos da tela, tendeu a mão, levantou o cesto de papéis passando-a por entre seus joelhos e a pôs na mesa, diante dele. «Que a disputem», pensou. Em todo caso, qualquer que fosse o que cedesse primeiro ao impulso de vomitar, sua ação sem dúvida provocaria uma resposta no outro.
O homem da direita, como se lesse seus pensamentos, disse com voz entrecortada:
—Camarada general, não acredito que eu...
—Calado! —exclamou Borowitz, e deu um chute que alcançou ao outro no tornozelo—. Se puder, olhe. E se não poder, cale-se e deixe que eu o faça.
As costas do homem nu estava arqueada agora, e seu rosto a poucos centímetros das vísceras do cadáver. Os olhos, rápidos como flechas, moviam-se de esquerda a direita e de abaixo acima como se procurassem algo que estivesse escondido ali. Suas fossas nasais estavam abertas, e farejava com desconfiança. Sua frente Lisa estava agora extremamente franzida. Sua atitude fazia pensar mais que nada em um enorme sabujo nu concentrado em seguir o rastro de uma presa.
de repente um sorriso ardiloso curvou seus lábios pálidos, o brilho de uma revelação —de um segredo descoberto, ou a ponto de sê-lo— brilhou em seus olhos. Foi como se houvesse dito:
—Sim, aqui há algo! Algo que tenta ocultar-se!
E logo jogou para trás a cabeça e riu —uma gargalhada sonora, embora breve— antes de voltar para um frenético escrutínio. Mas não, não era suficiente, o que estava escondido não aparecia, encolhia-se até desaparecer da vista. A alegria do descobrimento se converteu logo em ira.
Ofegando furioso, com o rosto lívido estremecido por emoções inimagináveis, o homem nu agarrou um fino instrumento cujo aguçado fio brilhava como um espelho. Ao princípio começou a cortar os diversos órgãos, tubos e vesículas de maneira mais ou menos metódica, mas à medida que seu trabalho progredia se voltou mais violento e indiscriminado, até que as vísceras, parcial ou totalmente separadas do resto do corpo, penduraram do bordo da mesa de metal acanalado em grotescos fragmentos. Mas ainda não era suficiente; a coisa que perseguia ainda o evitava.
O homem nu lançou um chiado que se ouviu pelo alto-falante na outra habitação como o ruído de um giz na piçarra, como uma pá que remove cinzas, e com uma horrível careta começou a arrancar partes de víscera e a jogá-los em seu redor, Esfregou-se com eles o corpo, aproximou-os de seu ouvido e «escutou». Os esparramou pela estadia, arrojou-os por cima do ombro, atirou-os à banheira, ao lavabo. Havia sangue em todas as partes, e o grito de frustração, de estranha angústia rasgou o ar através do alto-falante.
—Aqui não! Aqui não!
No quarto ao lado os arquejos do homem da direita se transformaram em espasmos convulsivos. De repente agarrou o cesto de papéis de acima da mesa, ficou em pé com estupidez e caminhou cambaleando-se para um rincão da habitação. Borowitz, embora a contra gosto, teve que reconhecer que tinha feito muito pouco ruído.
—Meu deus! Meu deus! —tinha começado a exclamar o homem da esquerda, e em cada repetição elevava um pouco mais o tom de voz. E também—: Horrível! Horrível! É um depravado, um demente, um desalmado!
—É brilhante! —grunhiu Borowitz—. O vê? Agora vai direito à essência do assunto!
Detrás da tela o homem nu tinha pego um bisturi de bordo denteado. Seu braço, sua mão e o instrumento mesmo pareciam uma mancha imprecisa vermelha, cinza e chapeada enquanto serrava de abaixo acima no centro do esterno. O suor sulcava sua pele salpicada de sangue e caía de seu corpo como uma chuva quente enquanto lutava com o peito do cadáver. Não cedia; a lâmina da serra se quebrou e o homem nu a jogou no chão, Gemendo como um animal, com movimentos frenéticos, elevou a cabeça e olhou a seu redor, procurando algo. Seus olhos se posaram um instante em uma cadeira de metal, e se abriram, como se algo o tivesse inspirado. Agarrou em seguida a cadeira e utilizou duas de suas patas como alavancas no recém aberto canal.
O lado esquerdo do peito do cadáver se elevou com um rangido de ossos e de carne rasgada, empurrou-o para baixo, uma escotilha no tórax. As mãos do homem nu penetraram pela abertura... um terrível rasgão... e saíram. Sustentavam em alto o troféu..., mas só um momento. Logo... com os braços estendidos para frente e o coração que acabava de extrair nas mãos, dançou pela habitação, dando voltas como em uma valsa. Depois o abraçou, aproximou-o de seus olhos e a seus ouvidos. Apertou-o contra o peito, acariciou-o, enquanto gemia como um menino de peito. Chorava de alívio; por seus lívidas bochechas caíam lágrimas ardentes. E um momento depois pareceu como se as forças o tivessem abandonado por completo.
Suas pernas trementes se voltaram brandas como a geleia. Ainda abraçado ao coração caiu ao chão, encolhido em uma posição quase fetal com o coração abrigado na curva de seus braços, e ficou ali deitado, imóvel.
—Já está tudo feito! —disse Borowitz—. Acredito...
Ficou de pé, foi até o alto-falante e apertou o segundo botão, marcado com a palavra «Interfone». Mas antes de falar olhou com os olhos entrecerrados a seus subordinados. Um deles não se moveu do rincão, onde estava sentado com a cabeça encurvada e o cesto de papéis entre as pernas. Em outro ângulo da habitação o outro homem, com as mãos nos quadris, fazia flexões de cintura, acima abaixo, acima abaixo, e inalava quando se erguia e exalava o ar quando se agachava. Os rostos dos dois homens brilhavam a causa do suor.
—Já! —grunhiu Borowitz, e logo falou em direção ao alto-falante—: Boris? Boris Dragosani? Ouça-me? Tudo está bem?
No outro quarto o homem deitado no chão se sacudiu, estirou-se, levantou a cabeça e olhou a seu redor. Logo, depois de um estremecimento, ficou rapidamente em pé. Agora parecia muito mais humano, e não o autômato desenquadrado de fazia uns momentos, embora ainda estava lívido. Seus pés nus escorregavam no chão viscoso e se cambaleou um pouco, mas imediatamente recuperou o equilíbrio. Então viu o coração que ainda sustentava nas mãos, estremeceu-se uma vez mais e o jogou longe de si e se esfregou as mãos contra as coxas para as limpar.
Borowitz pensou que parecia alguém que acabasse de despertar de um pesadelo... mas não deixaria que despertasse muito rápido. Havia algo que Borowitz devia saber. E devia inteirar-se agora, que ainda estava afresco na mente do outro.
—Dragosani —disse de novo, com o tom de voz mais suave que pôde—. Me ouve?
Os companheiros do Borowitz conseguiram por fim dominar-se e se reuniram com ele junto à grande tela. O homem nu olhou para eles. Boris Dragosani deu pela primeira vez assinale de conhecer a existência da tela, que de seu lado não era mais que uma janela composta por muitos e pequenos cristais chumbados. Olhou-os fixamente, quase como se de verdade os visse, da maneira que olham às vezes os cegos, e respondeu:
—Sim, ouço-o, camarada general. Você tinha razão: ele tinha planejado assassiná-lo.
—Ah! Bem! —Borowitz se golpeou com o punho a palma da mão esquerda—. E quantos participavam do complô?
Dragosani parecia esgotado. A cor voltava para sua tez, e as mãos, as pernas e a parte inferior do corpo já tinham um matiz mais parecido ao habitual na carne humana. depois de tudo, não era mais que um homem, e agora parecia a ponto de desabar-se. Pôr direita a cadeira de metal que tinha atirado e sentar-se não requeria mais que um pequeno esforço, mas ao isto parecer consumiu o último resto de energia que ficava. sentou-se com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça entre as mãos, olhando ao chão.
—Bem? —disse Borowitz em direção ao alto-falante.
—Só havia outro mais —respondeu por fim Dragosani sem elevar os olhos—. Alguém muito próximo a você. Não pude ler seu nome.
Borowitz estava decepcionado.
—Isso é tudo?
—Sim, camarada general. —Dragosani elevou os olhos, olhou para a tela, e em seus olhos de um pálido azul havia um pouco parecido a um rogo. dirigiu-se logo ao Borowitz com uma familiaridade que resultava surpreendente para os subordinados do general—: Gregor, por favor, não me peça isso.
Borowitz permaneceu em silêncio.
—Gregor —disse outra vez Dragosani—, prometeu-me que...
—Prometi-lhe muitas coisas —o interrompeu imediatamente Borowitz—. Sim, e as terá. Muitas coisas! Nós lhe pagaremos com acréscimo. A URSS reconhecerá com entristecedora gratidão os mais pequenos serviços que você lhe empreste... embora o reconhecimento se atrase. Boris Dragosani, você chegou a profundidades equivalentes a nossa conquista do espaço, e eu sei que seu valor é maior ao de qualquer astronauta. Apesar das novelas de ficção científica, onde eles vão não há monstros. Mas as fronteiras que você cruza são verdadeiras guaridas do terror. Eu conheço essas coisas...
O homem nu se ergueu na cadeira. Um insistente estremecimento percorreu seu corpo, e a lividez invadiu de novo seus membros, toda sua figura.
—Sim, Gregor —disse.
Apesar de que Dragosani não podia vê-lo, Borowitz fez um gesto de assentimento, antes de dizer:
—Então me compreende?
O homem nu suspirou, deixou cair outra vez a cabeça e perguntou:
—O que quer saber?
Borowitz se passou a língua pelos lábios, inclinou-se até ficar mais perto da tela e disse:
—Duas coisas: o nome do homem que conspirava com o porco que está estripado, e alguma prova que possa apresentar ante o Presidium. Se não averiguar isto, não só eu estarei em perigo: também o estará você. Sim, e toda a organização. Boris Dragosani, recorde que na KGB há gente que nos estriparia... se lhe déssemos ocasião de fazê-lo.
O outro não disse nada mas retornou junto à mesa de rodas onde estavam as partes do cadáver. ficou de pé junto aos restos ultrajados, e em seu rosto tinha escrito seu propósito: o ultraje definitivo. Respirou fundo, dilatando seus pulmões e logo deixou sair pouco a pouco o ar. Repetiu logo o procedimento várias vezes, e com cada repetição seu peito parecia fazer-se um pouco maior enquanto sua tez voltava rápida e visivelmente a sua profunda palidez de antes. depois de vários minutos assim, Dragosani dirigiu por fim o olhar para a bandeja de instrumentos cirúrgicos.
Borowitz estava agora agitado, perturbado, tenso. sentou-se em meio de seus homens, e pareceu encolher-se dentro de si mesmo.
—Né, vocês dois —grunhiu a seus subordinados—. Estão bem? Ficou algo por vomitar, Mikhail? Se for assim, mantenha-se longe. —Isto o disse para o homem a sua esquerda, em cuja cara branca como o giz destacavam como fossas negras os orifícios do nariz—. E você, Andrei, terminou com suas flexões e seus exercícios respiratórios?
O homem da direita abriu a boca mas não disse nada; não afastou os olhos da tela enquanto seu pomo-de-adão subia e descia. O outro disse:
—Me deixe ver ao menos o começo. Mas preferiria não vomitar. Além disso, quando tudo estiver terminado, agradecer-lhe-ei que me dê uma explicação. Por muito bem que você fale desse homem, camarada general, eu acredito que deveriam acabar com ele.
Borowitz assentiu.
—Quando chegar o momento receberá uma explicação. Enquanto isso, estou de acordo com você. Eu também preferiria não vomitar!
Dragosani tinha pego em uma mão algo que parecia um escolpo de metal oco, e na outra um pequeno martelo de cobre. Apoiou o escolpo no meio da fronte do cadáver e o afundou com um só golpe de martelo. Depois do golpe o martelo ricocheteou, e pelo tubo oco do escolpo saiu um pouco de líquido do cérebro. Isto para Mikhail foi suficiente; tragou saliva uma vez mais e retornou a seu rincão com o rosto voltado para o outro lado, e ali ficou tremendo. O homem chamado Andrei permaneceu em seu lugar, paralisado; mas Borowitz advertiu que abria e fechava os punhos que penduravam aos lados de seu corpo.
Dragosani se afastou um pouco do cadáver, agachou-se e olhou fixamente o escolpo que emergia do crânio perfurado. Fez um lento gesto de assentimento, e depois se levantou e foi para a mesa onde estavam os instrumentos. Atirou o martelo ao piso ladrilhado, agarrou um magro tubo de aço e, quase sem olhar, deixou-o cair com grande precisão no oco do escolpo. O magro tubo se afundou lentamente até atravessar toda a extensão do escolpo, então só se sobressaiu sua boquilha.
—Boquilha! —grasnou de repente Andrei, e se levantou e caminhou cambaleando-se pela habitação—. Meu Deus, Meu Deus, a boquilha!
Borowitz fechou os olhos. Embora ele fosse um homem duro, não podia olhar aquilo. Já o tinha visto antes, e o recordava muito bem.
Passaram uns instantes: Mikhail em seu canto, tremendo; Andrei ao outro lado do quarto, de costas para a tela, e seu superior com os olhos fortemente fechados, encolhido em seu assento. E então...
O grito que chegou pelo alto-falante era dos que destroçam os nervos mais resistentes; dos que, a não duvidá-lo, podem levantar os mortos. Estava cheio de horror, de uma monstruosa sabedoria, cheio de... indignação. Sim, indignação..., o grito de uma fera ferida que clamava vingança. E em seguida, o caos.
Borowitz abriu os olhos quando o grito se fez menos violento, e suas espessas sobrancelhas pareciam formar uma barraca de campanha sobre eles. Durante um instante ficou sentado, como um mocho surpreso, tenso, com os dedos como ganchos de ferro sobre os braços da poltrona. Depois lançou um gemido rouco, cobriu a cara com o braço e jogou seu pesado corpo para trás. A poltrona se virou e isto lhe permitiu rodar e ficar a frente da cadeira da esquerda quando a tela estalou em uma chuva de cristais e pequenas tiras de chumbo retorcido, e apareceu nela um grande buraco pelo que se sobressaíam os pés da cadeira metálica que tinha estado na outra sala. Logo retiraram a cadeira e voltaram a lançá-la, destroçando os painéis de cristal que ficavam sãs e regando-o tudo com partes de cristal.
—Porco! —O grito do Dragosani se ouviu através do alto-falante e da tela rota—. Você é um porco, Gregor Borowitz! Você o envenenou, deu-lhe algo que apodreceu seu cérebro e agora eu provei esse veneno!
E depois da voz indignada e cheia de ódio veio Dragosani mesmo, que permaneceu um instante emoldurado nos quebrados cristais da tela antes de lançar-se por entre a mesa e as cadeiras tombadas ao lugar onde se encolhia Borowitz. Algo brilhava em sua mão, prata contra a cor cinzenta de sua pele.
—Não! —uivou Borowitz, e sua voz de rã gigantesca retumbou cheia de terror na pequena sala—. Não, Boris, equivoca-se. Você não está envenenado, homem!
—Mentiroso! Li-o em seu cérebro morto! Senti a dor de sua morte. E agora a substância que o matou está em mim.
Lançou-se então sobre o Borowitz, que lutava por ficar em pé, e o arrojou de novo ao chão. O homem nu elevou o instrumento prateado em forma de foice que sustentava na mão.
O homem chamado Mikhail, que até esse instante se agitou detrás como um espantalho movido pelo vento, foi para os opositores com a mão no interior da jaqueta. Agarrou a mão do Dragosani justo quando começava a baixar. Perito no uso da clava, Mikhail o golpeou no ponto preciso, justo para aturdi-lo. A brilhante lâmina de aço caiu dos insensíveis dedos do Dragosani, e o homem se desabou de barriga para baixo sobre o Borowitz, que conseguiu rodar e livrar do outro. Logo Mikhail o ajudou a levantar-se, enquanto Borowitz amaldiçoava furioso, e dava um ou dois chutes ao homem nu, que jazia gemendo. Uma vez em pé, o general fez a um lado a seu subordinado e começou a tirar o pó da roupa. Mas um segundo depois viu a clava na mão do Mikhail e compreendeu o que tinha passado. Abriu muito grandes os olhos, repentinamente ansioso e comovido.
—O que? —disse, e abriu a boca em um gesto de incredulidade—. O golpeou? Utilizou essa clava com ele? Idiota!
—Mas camarada Borowitz, meu general, ele...
Borowitz o interrompeu com um grunhido, pôs suas mãos sobre o peito do Mikhail e lhe deu um empurrão que o fez cambalear.
—Imbecil! Estúpido! Rogue que não lhe tenha acontecido nada. Se acreditar em algum Deus, lhe negue que este homem não tenha sofrido nenhum dano permanente. Não lhe disse que é único?
Agachou-se e, apoiado sobre um joelho, deu-lhe a volta ao homem que estava no chão até deixá-lo de costas. As cores voltavam pouco a pouco para rosto do Dragosani, as cores de um homem normal, mas no lugar onde seu crânio se unia ao pescoço crescia um volumoso galo. Enquanto Borowitz o olhava com ansiedade à cara, as pálpebras do Dragosani se moveram ligeiramente.
—Luz! —pediu com brutalidade o velho general—. Acendam todas as luzes. Andrei, não fique ali como um... —Borowitz se interrompeu e olhou a seu redor quando Mikhail acendeu as luzes. Não se via o Andrei em nenhuma parte, e a porta da sala estava entre aberta—. Cão covarde! —grunhiu.
—Pode ser que tenha ido pedir ajuda —gaguejou Mikhail. E continuou—: Camarada general, se eu não tivesse golpeado ao Dragosani, ele haveria...
—Sei, sei —protestou impaciente Borowitz—. Isso agora não tem importância. me ajude a sentá-lo em uma poltrona.
Quando o levantaram e o sentaram, Dragosani sacudiu a cabeça, gemeu ruidosamente e abriu os olhos. Seu olhar se fixou na cara do Borowitz com expressão acusadora.
—Você! —disse entre dentes e tratou de incorporar-se, mas não o conseguiu.
—Acalme-se —disse Borowitz—. E não seja tolo. Você não está envenenado. Homem, acredita que me desprenderia com tanta facilidade da pessoa mais valiosa de que disponho?
—Mas o envenenaram! —ofegou Dragosani—. Faz só quatro dias. O veneno lhe queimou o cérebro e morreu entre terríveis dores, com a sensação de que lhe derretia a cabeça. E agora a mesma substância está em meu interior! Tenho que vomitar em seguida! Tenho que vomitar! —disse, e lutou freneticamente para ficar em pé.
Borowitz assentiu, reteve-o com força em seu lugar e se sorriu como um lobo siberiano. alisou-se a franja de cabelo da parte superior da cabeça, onde sua negra cabeleira não tinha uma só cã, e lhe respondeu:
—Sim, assim morreu ele, mas a você não acontecerá o mesmo, Boris. Você não morrerá. O veneno era muito especial, uma variedade búlgara. Atua muito depressa e se dispersa com a mesma rapidez. Em umas poucas horas se desvanece, não deixa rastros, volta-se impossível de detectar. É como uma adaga de gelo: fere e logo se derrete.
Mikhail o contemplava com os olhos muito abertos, como quem ouve algo incrível.
—O que significa isto? —perguntou—. Como pode saber ele que envenenamos ao segundo da bordo de...
—Cale-se! —Uma vez mais Borowitz se voltou contra seu subordinado—. Mikhail Gerkhov, você tem a língua tão solta que um dia a engolirá!
—Mas...
—É você cego, homem? Não aprendeu nada?
O outro se encolheu de ombros e não disse nada. Aquilo era muito para ele, ultrapassava-o. Desde que o tinham enviado a aquela seção, fazia já três anos, havia visto muitas coisas estranhas —tinha visto e ouvido coisas que jamais tivesse imaginado que fossem possíveis—, mas isto se afastava tanto de tudo o que tinha experiente que escapava à lógica.
Borowitz havia tornado a dedicar sua atenção ao Dragosani, e tinha a mão apoiada em seu pescoço, onde começava o ombro. O homem nu estava pálido; sua cor não era o lívido cinza de antes nem o rosado habitual da tez dos homens, a não ser um tom pálido. Tremeu quando Borowitz lhe perguntou:
—Boris, conseguiu averiguar seu nome? É muito importante.
—Seu nome? —Dragosani levantou a vista e o olhou. Parecia doente.
—Você disse que o homem que planejou meu assassinato junto com o cão que está esquartejado ali era alguém muito próximo a mim. Quem é, Boris? Quem?
Dragosani assentiu, e, com os olhos entrecerrados, disse:
—Sim, muito próximo a você. Seu nome é... Ustinov.
—O que? —Borowitz ficou de pé, atônito.
—Ustinov? —repetiu incrédulo Mikhail Gerkhov—. Andrei Ustinov? Impossível!
—Sim que é possível —disse da soleira da porta uma voz muito conhecida.
Ustinov entrou na habitação, o rosto tenso e uma metralhadora nos braços. Dirigiu o canhão da arma para frente e apontou aos três homens.
—Sim, decididamente é possível.
—Mas por que?
—Não é evidente, «camarada general»? Qualquer homem que tivesse estado o tempo que estive eu com você, desejaria matá-lo. Por muitos anos, Gregor. Sofri seus desmandos e seus aborrecimentos, todas essas mesquinhas intrigas e esse despotismo estúpido. Sim, e lhe servi lealmente... até agora. Mas você nunca me estimou, nunca me permitiu participar de nada. Não fui para você mais que um zero à esquerda, um apêndice desprezível. Bem, agora poderá apreciar que, depois de tudo, sou um bom aluno. Mas seu substituto? Não, nunca fui. E deveria me fazer a um lado para lhe deixar o passo livre a esse arrivista? —disse enquanto assinalava ao Gerkhov com um gesto zombador.
A expressão do Borowitz mostrava claramente seu desgosto.
—E pensar que você teria sido o eleito! —exclamou—. Já! Não há ninguém mais parvo que um velho tolo...
Dragosani gemeu e se levou a mão à cabeça. Fez um gesto como se fora a levantar-se e caiu da cadeira. apoiou-se um instante sobre os joelhos e logo caiu de barriga para baixo no piso semeado de fragmentos de cristal. Borowitz fez gesto de ajoelhar-se a seu lado.
—Não se mova! —ordenou-lhe Ustinov—. Já não pode ajudá-lo. É um homem morto. Todos vocês o são.
—Não se sairá com a sua —disse Borowitz; mas seu rosto estava cada vez mais pálido e sua voz era pouco mais que um tênue estalo.
—Claro que o farei —se burlou Ustinov—. Quem se daria conta, em meio deste caos infernal, desta loucura? Pode estar seguro de que minha história será muito boa... sobre você, um louco furioso, e sobre a gente que emprega, piores que o pior dos dementes. E quem poderá me desmentir?
Deu um passo para frente, e a metralhadora fez um ruído metálico quando a martelou.
Boris Dragosani, atirado no chão a seus pés, não estava inconsciente. Seu desmaio tinha sido uma estratagema para ficar fora do alcance da arma. Os dedos do Dragosani se fecharam sobre a manga de osso do pequeno bisturi com forma de cimitarra que estava no chão. Ustinov, sorridente, aproximou-se um pouco mais, deu volta a arma e lhe deu uma coronhada na cara ao Borowitz, que não o esperava. Quando o chefe da Seção de PS retrocedeu, de sua boca esmagada emanava sangue. Ustinov lhe apontou novamente e apertou o gatilho.
A primeira rajada alcançou ao Borowitz no ombro direito; o general girou como um pião antes de desabar. A mesma rajada de metralhadora jogou Gerkhov do outro lado da sala até esmagá-lo contra a parede. Permaneceu ali durante um instante como um homem crucificado, deu logo um só passo para frente, cuspiu um jorro de sangue e caiu de barriga para baixo. No lugar onde suas costas havia atingido a parede, esta se tingiu de vermelho.
Borowitz se arrastou para trás com o braço direito roçando o chão, até que seus ombros ficaram apoiados contra a parede. Já não podia afastar-se mais, e ficou ali esperando o que parecia inevitável. Ustinov fez uma careta que deixou seus dentes ao descoberto, como os de um tubarão antes de atacar a sua presa. Apontou ao ventre do Borowitz e aproximou seu dedo ao gatilho. Ao mesmo tempo Dragosani lhe lançou uma estocada, ferindo-o com sua faca detrás do joelho esquerda. Ustinov gritou, e também o fez Borowitz quando as balas penetraram na parede, justo por cima de sua cabeça.
Dragosani se pendurou do casaco do Ustinov e conseguiu ficar de joelhos. Voltou a atacar com o bisturi e a folha penetrou através do casaco, a jaqueta, a camisa e a carne do braço direito até perto do osso. Os dedos do Ustinov, paralisados, deixaram cair a metralhadora, mas, em um movimento quase contínuo, atingiu-o uma joelhada na cara.
Andrei Ustinov, o traidor, gemeu de dor e de medo. Sabia que estava ferido gravemente e saiu da sala, fechando a porta de um golpe. Cruzou uma pequena sala de espera e saiu ao corredor. Ali fechou com mais cuidado a porta a prova de som, passou por cima do cadáver do homem da KGB, que estava no chão com a língua fora e o crânio esmagado. Tinha sido uma desgraça que tivesse que matá-lo, mas não tinha tido outra saída.
Entre maldições e gemidos de dor, avançou cambaleando pelo corredor. Deixava atrás de si um rastro de sangue. Já estava muito perto da porta que dava ao pátio quando ouviu um ruído a suas costas que o fez deter-se. Voltou-se, agarrou uma granada de fragmentação que levava em um bolso interior e lhe tirou a espoleta. Viu Dragosani que saía ao corredor, tropeçava com o cadáver e caía de joelhos. Logo, enquanto seus olhares se cruzavam, jogou a granada. Só lhe restava partir dali. Com o ruído do ricochetear da granada lhe zumbindo nos ouvidos — e também o ofego do Dragosani—, abriu a porta blindada que dava ao pátio, cruzou a soleira e a fechou com força detrás de si.
Em meio da escuridão da noite, Ustinov contava mentalmente os segundos que passavam enquanto se dirigia coxeando para os assistentes de uniforme branco que se achavam junto à porta traseira da ambulância.
—Socorro! —grasnou—. Estou ferido gravemente! foi Dragosani, um de nossos agentes especiais. tornou-se louco, matou ao Borowitz, ao Gerkhov e a um agente da KGB!
Para lhe dar mais convicção a suas palavras, ouviu-se o ruído de uma apagada detonação no interior do edifício. A porta de aço soou como se alguém a tivesse golpeado com uma marreta; curvou-se para fora e uma de suas dobradiças se rompeu. Logo se desprendeu e golpeou com violência contra a parede do corredor. A fumaça e as línguas de fogo ondearam ao vento, e pôde perceber o forte aroma dos explosivos de grande potencia.
—Rápido! —gritou Ustinov por cima das perguntas dos assistentes e os gritos dos guardas, que se aproximavam com grande alvoroço pelo pátio de paralelepípedos.
—Chofer, nos tire daqui depressa, antes de que voe tudo!
Não havia nenhuma possibilidade de que isto acontecesse, mas assim se assegurava de que ficariam em marcha. E Ustinov estaria fora de perigo, ao menos no momento. O mau do assunto era que não podia estar seguro de que todos os de dentro estivessem mortos. Se o estivessem, teria tempo de sobra para inventar uma história; se não, estava acabado. O tempo o diria.
Quando o motor ficou em marcha, Ustinov subiu trabalhosamente à parte traseira da ambulância, seguido pelos enfermeiros, quem em seguida começou a lhe tirar a roupa. O veículo cruzou o pátio, passou sob um alto arco de pedra e agarrou um atalho que levava até a muralha exterior.
—Rápido, rápido! —gritou Ustinov—. nos Tire daqui!
O condutor se inclinou sobre o volante e apertou o acelerador.
No pátio, os homens de segurança e o piloto do helicóptero foram e vinham pelo chão de paralelepípedos. A ácida fumaça que saía pela desvencilhada porta os fazia tossir. O pouco fogo que houve finalmente tinha acabado em fumaça. Daquele denso e fedorento muro de fumaça saiu, cambaleando-se, uma figura de pesadelo: Dragosani, ainda nu, sua pele cinza manchada de negro e de sangue, que levava nos ombros a um vociferante Gregor Borowitz.
—Onde está esse cão traidor? —bramou o general entre tosses e lhes balbucie—. Onde está Ustinov? Deixaram-no escapar? Onde está a ambulância? O que estão fazendo vocês, malditos imbecis?
Quando os guardas tiraram ao Borowitz dos curvados ombros do Dragosani, um deles lhe disse:
—O camarada Ustinov estava ferido, senhor. partiu na ambulância.
—Camarada? Camarada? —uivou Borowitz—. Esse não é camarada de ninguém! Ferido, diz você? Ferido, pedaço de idiotas? Quero-o morto!
Voltou seu rosto lupino para a torre e uivou:
—Você, ali! Vê a ambulância?
—Sim, camarada geral! está-se aproximando da muralha!
—Detenha-a! —gritou Borowitz, enquanto se agarrava o ombro ferido.
—Mas...
—Faça-a voar! —uivou furioso o general.
O atirador da torre introduziu os óculos por uma ranhura na culatra de seu Kalashnikov e carregou a arma com uma mescla de balas idealizadoras e explosivas. agachou-se, e quando teve ao veículo na mira do fuzil apontou à cabine e ao capô. A ambulância, que se aproximava de uma das arcadas na muralha periférica, tinha diminuído a velocidade, mas o atirador sabia que nunca chegaria à saída. Afirmou a arma entre seu ombro e o parapeito do muro, apertou o gatilho e o manteve apertado. O petardo de fogo que brotou da torre, não alcançou ao veículo por uns poucos metros, mas logo o próximo atingiu o alvo.
A parte dianteira da ambulância explodiu em uma branca labareda e lançou combustível ardente em todas direções. O veículo saiu do caminho, derrapou violentamente e por fim se deteve, com as rodas afundadas como uma grade de arado na erva. Alguém vestido de branco fugiu do carro em chamas engatinhando. Outro indivíduo, vestido com uma camisa aberta e com um casaco escuro no braço, afastou-se das chamas e foi coxeando em direção à saída.
Borowitz, que não podia ver mais à frente do pátio onde se achava com os guardas que o sustentavam para que não se desabasse, gritou-lhe ao homem da torre:
—Deteve a ambulância?
—Sim, senhor. Há ao menos dois homens vivos. A gente é um enfermeiro, e o outro...
—Já sei quem é o outro! —uivou Borowitz—. É um traidor! Traiu-me, traiu à seção e a Rússia. Mate-o!
O atirador tragou saliva, apontou e disparou. As balas morderam a terra aos pés do Ustinov, alcançaram-no e o destroçaram com sua mescla mortífera de fósforo ardente e partes de aço.
Era a primeira vez que o homem da torre disparava a matar. Baixou a arma e se apoiou tremente contra o muro da terraço. De ali olhou para baixo e disse:
—Já está, senhor.
Em meio da repentina calma, sua voz soava muito débil.
—Muito bem —lhe respondeu Borowitz—. Fique onde está e mantenha os olhos abertos.
O general gemeu e se levou outra vez a mão ao ombro, que gotejava sangue por cima da grosa tecido de seu casaco.
Um dos guardas disse:
—Senhor, está ferido.
—Claro que estou ferido, idiota! Mas isto pode esperar. Agora quero que chamem a todos; desejo lhes falar. E no momento, nada disto deve ser comentado fora dessa muralha. Quantos homens da maldita KGB há aqui?
—Dois, senhor —lhe respondeu o guarda que tinha falado antes—. Um dentro...
—Esse está morto —grunhiu Borowitz, sem piedade.
—Então só fica um, senhor. Está fora, no bosque. Todos outros pertencem à seção.
—Muito bem! Mas... tem rádio o homem que está no bosque?
—Não, senhor.
—Melhor ainda. Tragam-no e prendam-no. Eu ordeno.
—Assim se fará, senhor.
—E que ninguém se inquiete —continuou Borowitz—. Levarei o peso de todo este assunto sobre meus ombros... que são muito fortes, como todos sabem. Não tento ocultar nada, mas quero comunicá-lo no momento apropriado. Esta pode ser nossa oportunidade para nos liberar de uma vez para sempre da KGB. Muito bem, agora movam-se. Você —se voltou para o piloto do helicóptero—, prepare-se para partir. Necessito um médico, o da organização. Vá buscá-lo em seguida.
—Sim, camarada general. Agora mesmo.
O piloto correu para seu aparelho, e os encarregados da segurança se dirigiram a seu carro, que estava estacionado fora do pátio. Borowitz os olhou afastarem-se, apoiou-se no braço do Dragosani e lhe disse:
—Boris, me servirá para algo mais?
—Não estou ferido, se for isso o que quer saber —respondeu o outro—. Consegui me proteger na sala de espera antes que explodisse a granada.
Borowitz sorriu ferozmente a pesar da terrível dor no ombro.
—Bem! —exclamou—. Então retorne dentro e veja se pode encontrar um extintor. Se ainda arder algo, apague o fogo. Depois pode reunir-se comigo na sala de conferências. —O general se desprendeu do braço do homem nu, cambaleou-se durante um instante mas depois ficou quieto, firme como uma rocha—.Pois bem. Que está esperando? —insistiu.
Quando Dragosani entrou pela destroçada porta ao corredor, no qual já não havia virtualmente fumaça, Borowitz lhe disse de fora:
—E procure um pouco de roupa, camarada, ou ao menos uma manta! Por hoje seu trabalho já terminou. E não me parece bem que Boris Dragosani, necromante do Kremlin —estou seguro de que o será algum dia— ande por aí tal como veio ao mundo.
Uma semana mas tarde, Gregor Borowitz defendeu, em um encontro realizado a portas fechadas, sua atuação no château Bronnitsy na noite de fatídica. A reunião tinha dois objetivos. O primeiro: teria que demonstrar que Borowitz tinha sido chamado à ordem devida ao defeituoso funcionamento da «seção experimental» que ele dirigia. O segundo: teria que dar ao Borowitz a oportunidade de expor as razões que faziam necessária a independência de sua organização do resto dos serviços secretos da URSS, especialmente da KGB. Em resumo, o general ia utilizar a reunião como tribuna para tentar conseguir completa autonomia.
Os cinco juizes que compunham o jurado —na verdade, interrogadores ou investigadores antes que juizes— eram George Krisich, do Comitê Central da Partida; Oliver Bellekhoyza e Karl Djannov, subsecretários do gabinete; Yuri Andropov, diretor da Komissia Gosudatsvennoy Bezopasnosti, a KGB, e outro homem que não só era um «observador independente», mas também o representante pessoal do Leônidas Brezhnev. Posto que o líder da Partida era quem, em qualquer caso, tinha a última palavra, Borowitz devia convencer a este indivíduo «sem nome», mas extremamente importante. E era também, em virtude de seu anonimato, quem menos coisas tinha a dizer...
A reunião se celebrou em uma grande sala do segundo piso de um edifício situado na Kurtsuzov Prospeckt. Isto era muito cômodo para o homem do Brezhnev e para o Andropov, que tinham seus escritórios no mesmo local. Nenhum dos jurados se mostrou especialmente difícil. Em todos os projetos experimentais se aceita que existe certo risco embora, como assinalou com calma Andropov, seria conveniente que este elemento de risco, além de ser aceito pudesse ocasionalmente ser «previsto». Para ouvir isto, Borowitz tinha sorrido e feito um cortês gesto de assentimento enquanto se prometia para seus botões que um dia o bastardo pagaria por esta fria e zombadora alusão a sua ineficácia, além de seu presumido e de tudo inoportuno ar de irônica superioridade.
No curso da audiência tinha sido revelado como um dos jovens diretores da organização, Andrei Ustinov, tinha enlouquecido devido às pressões e tensões de seu trabalho. Ustinov tinha matado ao agente da KGB Hadj Gartezcov, tinha tentado destruir o château com explosivos, e inclusive tinha ferido ao Borowitz antes de que pudessem detê-lo. Por desgraça, no processo de sua «detenção» tinham morrido outros dois homens e um terceiro tinha resultado ferido. Terei que agradecer, entretanto, que nenhum destes homens fora um cidadão de grande importância. O Estado faria tudo o que pudesse por suas famílias.
depois daquele «funcionamento defeituoso» na organização, e até que todos os fatos pudessem ser devidamente estabelecidos, tinha sido necessário deter no château a um segundo membro da KGB do Andropov. Isto tinha sido inevitável; Borowitz não tinha permitido que ninguém —com a só exceção do piloto do helicóptero— abandonasse o lugar até que tudo fora esclarecido. E inclusive teriam retido o piloto se não tivessem necessitado urgentemente um médico. Com respeito a detenção do agente em uma cela: tinha sido por sua própria segurança. Até que se demonstrasse que a KGB não era o principal objetivo do Ustinov —até que tirou o chapéu que não existia nenhum objetivo, mas sim o homem se tornou louco e começado a matar gente— Borowitz considerava que era seu dever garantir a segurança do agente. depois de tudo, já terei que lamentar a morte de um homem da KGB, e Andropov sem dúvida compartilhava este sentimento.
Para dizê-lo em poucas palavras: toda a reunião não foi mais que uma repetição do relatório original do Borowitz. Não se mencionou a exumação, o posterior destripamento e o exame necromântico de certo antigo oficial funcionário da MVD. Por certo que se Andropov se inteirou, teria havido um problema, mas o diretor da KGB não soube de nada. Tampouco teria melhorado as coisas o fato de que apenas oito dias antes ele mesmo tinha depositado uma coroa na tumba recém aberta do pobre desventurado, ou o fato de que nesse mesmo instante o cadáver jazia em uma segunda tumba, anônima, em algum lugar dos jardins do château Bronnitsy...
Pelo resto, o ministro Djannov fazia uma ou duas perguntas indiscretas sobre o trabalho ou o objeto da organização do Borowitz; Borowitz o tinha cuidadoso com uma expressão de assombro, por não dizer de indignação; o representante do Brezhnev, depois de tossir, tinha intervindo para conduzir a pesquisa por outro rumo. depois de tudo, do que servia uma organização secreta se a obrigava a divulgar seus segredos? De fato, Leônidas Brezhnev tinha proibido as perguntas diretas sobre a Seção PES e suas atividades. Borowitz era um veterano, um homem do Partido de toda a vida, e além disso um incondicional e poderoso defensor do chefe do Partido.
Tinha sido evidente desde o começo que Andropov estava aborrecido. Ficaria encantado em fazer acusações, ou ao menos insistir em uma exaustiva investigação por parte da KGB, mas lhe tinham proibido —ou melhor«convencido— de que não seguisse esse caminho. Mas quando tudo foi dito e feito e outros partiram, o chefe da KGB pediu ao Borowitz que ficasse para falar um momento.
—Gregor —lhe disse quando estiveram sozinhos—, você, claro está, sabe que não há nada importante, absolutamente nada, pelo que eu não consiga me inteirar. «Desconhecido» ou «por investigar» não é o mesmo que«secreto». E mais tarde ou mais cedo eu me inteiro de tudo. Você não o ignora, verdade?
—Ah, a onisciência! —disse Borowitz com seu sorriso lupino—. É um peso muito grande para que o leve um só homem, camarada. Compreendo-o.
Yuri Andropov sorriu apenas, seus olhos enganosamente vazios e lacrimosos depois dos cristais dos óculos. Mas não fez nenhum esforço para dissimular o tom de ameaça que havia em sua voz quando disse:
—Gregor, todos temos que pensar em nosso futuro. E você, mais que ninguém, deveria ter isto em conta. Já não é jovem, se sua querida organização fracassar, o que será de você? Está preparado para uma aposentadoria antecipada, para a perda de todos seus pequenos privilégios?
—Embora pareça estranho —respondeu Borowitz—, há algo na natureza de meu trabalho que assegurou meu futuro; até onde se pode ver, em todo caso. Ah!, e de passagem, também o seu.
Andropov arqueou as sobrancelhas.
—Sim? —disse, outra vez com seu tênue sorriso—. E o que têm lido seus astrólogos em minhas estrelas, Gregor?
«Bom, isso sabe», pensou Borowitz, embora na verdade não lhe surpreendia. Qualquer chefe da polícia secreta minimamente eficaz poderia averiguá-lo. De modo que não tinha sentido negá-lo.
—Ascensão ao Politburo em dois anos —disse sem que lhe movesse um só músculo da cara—. E detrás oito ou nove anos mais, possivelmente a direção da Partida.
—De verdade? —O sorriso do Andropov era a meias curiosa, a meias irônica.
—De verdade —respondeu Borowitz, cuja expressão seguia sem trocar—. E o isto conto sem medo de que vá contar se o ao Leônidas.
—Sim? —respondeu aquele muito perigoso homem—. E há alguma razão especial que fará que não o conte?
—Sim. Suponho que poderíamos chamá-la regra do Herodes. Claro está que nós, fiéis membros da Partida, não lemos o livro que chamam «sagrado», mas como sei que você é um homem muito inteligente, também sei que compreenderá o que quero dizer. Herodes, como você sabe, preferiu cometer uma matança antes que correr o risco de que alguém lhe tirasse o trono, embora esse alguém ainda fora um menino de peito. Você de maneira nenhuma é inocente como um menino, Yuri. Claro que Leônidas tampouco é um pequeno Herodes. Mas não acredito que você lhe conte o que hei predito...
Depois de um instante de reflexão, Andropov se encolheu de ombros.
—Pode ser que não o faça —disse, e já não sorria.
—Por outra parte —disse Borowitz por cima do ombro quando se dispunha a sair da habitação—, poderia contar-lhe eu... se não fora por um pequeno detalhe.
—Um pequeno detalhe? Qual?
—Porque todos temos que pensar em nosso futuro. E também porque me considero muito mais sábio que aqueles tolos reis magos...
E enquanto ia às pernadas pelo corredor rumo à escada, Borowitz recordou outra coisa que seus videntes lhe haviam dito com respeito ao Andropov, algo que fez reaparecer seu sorriso lupino: adoeceria e morreria pouco tempo depois de ser renomado primeiro-ministro. Sim, ao cabo de dois ou três anos como máximo. Borowitz confiava em que a predição se cumprisse... ou talvez pudesse fazer algo mais que confiar.
Possivelmente pudesse fazer seus próprios preparativos, começar agora mesmo. Talvez deveria falar com um químico amigo na Bulgária. Um veneno lento..., impossível de descobrir..., indolor..., que produzira uma veloz deterioração dos órgãos vitais...
Certamente valia a pena pensar a respeito deste assunto.
Na quarta-feira seguinte Boris Dragosani, ao volante de seu espartano carro russo, percorreu os quarenta e tantos quilômetros que separavam a cidade da ampla mas rústica dacha do Gregor Borowitz na Zhukovka. além de estar situada em uma agradável convocação, em um altozano com vistas ao rio Moscou, o lugar estava «livre» de olhos e ouvidos indiscretos —em especial os de tipo elétrico—. Boris não tinha nada metálico no lugar, à exceção de seu detector de metais. Na aparência o utilizava para procurar moedas antigas ao longo da ribeira, especialmente nos vaus, mas o artefato lhe servia em realidade para garantir sua segurança e tranquilidade de espírito. Borowitz conhecia a localização de cada um dos pregos que uniam as vigas da dacha. Não havia a menor possibilidade de que alguém pudesse introduzir um microfone sem que ele se desse conta.
Apesar de todas as precauções, o general levou Dragosani a passear para que pudessem falar. Preferia o ar livre a sempre duvidosa intimidade do interior da casa, por bem que a tivesse inspecionado. Porque inclusive na Zhukovka se percebia a presença da KGB, e por certo que era uma presença muito forte. Muitos importantes oficiais da citada organização —alguns generais entre eles—, tinham seus dachas no lugar, sem contar um batalhão de antigos agentes, já aposentados, a quem o estado tinha recompensado por seus serviços. Nenhum desses homens era amigo do Borowitz; todos estariam encantados de proporcionar ao Yuri Andropov qualquer informação que pudessem descobrir.
—Mas ao menos nos livramos deles na seção —disse Borowitz enquanto guiava ao Dragosani por um atalho à borda do rio.
O general o conduziu a um lugar onde havia umas pedras achatadas sobre onde podiam sentar-se e contemplar o pôr-do-sol enquanto a tarde se refletia no escuro espelho verde do rio.
Ambos constituíam um estranho casal: o velho combatente, atarracado e nodoso, tipicamente russo, todo ele corno, marfim e couro envelhecido, e o bonito jovem, quase decadente por comparação, de traços delicados —quando não os transformava o rigor de seu trabalho—, de mãos largas e finas como as de um concertista de piano, magro mas vigoroso, largos ombros e sorriso discreto. Não, além de um mútuo respeito, tinham muito pouco em comum.
Borowitz respeitava ao Dragosani por seu talento, não duvidava de que serviria para que a Rússia fosse de novo verdadeiramente forte. Não com a fortaleza de uma «superpotência», a não ser invulnerável a qualquer invasor, indestrutível ante qualquer arma, invencível em seu afã expansionista, cautelosa mas que não pode ser contido, que abrangeria ao mundo inteiro. Oh, o último já estava em marcha, mas Dragosani podia acelerar imensamente o processo. Isso, se as esperanças do Borowitz com respeito à seção tivessem base sólida. O que faziam era também espionagem, mas em relação à polícia secreta do Andropov era como a outra cara da moeda. Ou, melhor dizendo, o canto. Espionagem, mas com a ênfase em percepção extra-sensorial. Por isso Borowitz simpatizava com o antipático Dragosani: ele nunca ia ficar bem vestido com traje azul e chapéu, mas nenhum homem da KGB poderia nunca desentranhar os abismais segredos que conhecia Dragosani. E, claro está, Borowitz tinha «descoberto» ao necromante e o tinha acolhido no seio da organização. Esta era outra razão pela que lhe caía bem: Dragosani era sua maior descoberta.
Quanto ao pálido jovem, também ele tinha objetivos, ambições, mas os reservava, mantinha-os guardados em sua mente macabra. Por certo que não eram as visões do Borowitz de uma Rússia convertida em império universal e senhora do mundo, uma mãe a Rússia cujos filhos não pudessem ser nunca mais ameaçados por nenhuma nação —ou aliança de nações— por importantes que estas fossem.
Em primeiro lugar, Dragosani não se considerava verdadeiramente russo. Sua herança era muito mas antiga que a opressão do comunismo e das bárbaras tribos que utilizavam a foice e o martelo não só como ferramentas mas também como estandarte e ameaça. E talvez essa era uma das razões pelas que «simpatizava» com o igualmente antipático Borowitz, cuja política era tão pouco ortodoxa. Quanto ao respeito... sim, Dragosani respeitava ao velho combatente, mas não por suas antigas façanhas no campo de batalha, ou pela fartamente demonstrada habilidade do Borowitz para vencer a seus adversários com suas próprias armas. Dragosani respeitava a seu chefe da mesma maneira que um escalador respeita os degraus superiores de sua escada. E, ao igual a um escalador, sabia que não podia permitir-se dar uns passos atrás e deter-se admirar sua obra. Mas por que teria que fazê-lo, se algum dia construiriam a chaminé, e ele estaria na ponta e desde esse lugar inexpugnável gozaria de seu triunfo? Enquanto isso Borowitz podia treiná-lo, conduzi-lo escada acima, e Dragosani ia subir... tão rápido e tão alto como o permitisse a escada. Ou possivelmente o respeitava como o equilibrista respeita sua corda. Quando devia vigiar seus passos, então?
As desavenças que havia entre ambos, quando as havia, surgiam principalmente das diferentes classes sociais de que procediam, de seus distintos modos de vida, educação e lealdades. Borowitz era um moscovita puro-sangue, que se tinha ficado órfão aos quatro anos, aos sete cortava lenha para ganhar a vida e dos dezesseis em diante tinha sido soldado. Dragosani tinha sido chamado assim pelo lugar de seu nascimento, onde o rio OH descia dos Cárpatos para o Danúbio e a fronteira búlgara. Nisso antiguidade tinha sido a região da Valáquia, com a Hungria ao norte e Servia e Bósnia ao oeste.
E assim se via Dragosani a si mesmo: como um cidadão da Valáquia, ou ao menos como um romeno. E como historiador e patriota (embora seu patriotismo se dedicasse a um país que fazia tempo se apagou dos mapas) sabia que a história de sua mãe pátria tinha sido grande e sangrenta. Se estudar a história da Valáquia, que se encontrará? Que foi saqueada, anexada, roubada, reconquistada e novamente roubada, devastada e arruinada, mas que sempre se levantou de suas cinzas. O país era uma fênix! Acostumada a estar viva, manchada pelo sangue, fertilizada por ele. Sim, o vigor do povo estava na terra, e o da terra em seu povo. Era uma terra pela que eles podiam lutar e que, dada sua natureza, quase podia lutar por ela mesma. Qualquer mapa antigo mostrava por que isto era assim: nos velhos tempos, antes de que se inventassem o avião e o tanque, a região, rodeada por montanhas e pântanos, com o mar Negro neste lado, terras pantanosas ao oeste e o Danúbio no sul, tinha estado isolada quase por completo, segura como uma fortaleza.
Orgulhoso de sua herança, pois, Dragosani era acima de tudo um cidadão da Valáquia (possivelmente o único que ficava em todo mundo); em segundo lugar, um romeno; mas de maneira nenhuma um russo. O que eram os russos, depois de tudo, Gregor Borowitz incluído, a não ser a espuma produzida por quebra de onda após onda de invasores? Filhos de hunos e de godos, eslavos e francos, mongóis e turcos. Não Boris Dragosani, claro está, também havia algo do sangue desses cães, mas ele era em sua major parte um valaco. Só podia sentir-se unido ao Borowitz em uma coisa: ambos eram órfãos. Mas até nisso eram diferentes. Borowitz ao menos tinha tido pais, tinha-os conhecido de pequeno, embora logo os tivesse esquecido. Mas Dragosani tinha sido um enjeitado. Tinham-no encontrado em uma soleira em um povoado romeno, quando tinha pouco mais de um dia de vida. Tinha-o criado e educado um rico granjeiro latifundiário. Essa tinha sido sua sorte. Podia dizer-se que, em geral, não tinha sido má.
—Bem, Boris —disse Borowitz, arrancando a seu protegido de suas reflexões—, o que pensa você?
—Do que?
—Arre! —exclamou o homem mais velho—. Olhe, sei que este lugar é muito tranquilo e que eu sou um velho aborrecido, mas, por favor, não durma enquanto lhe falo. O que pensa sobre a seção por fim livre da KGB?
—De verdade é assim?
—É claro que sim! —Borowitz se esfregou as mãos satisfeito—. Podem dizer que nos purgamos. Vimo-nos obrigados a suportá-los porque Andropov gosta de colocar a mão em todos os bolos. Bom, o sabor do nosso já não lhe parece bom. Finalmente tudo nos saiu bem.
—Como o fez? —perguntou Dragosani, que sabia que o outro morria de vontades de contar-lhe
Borowitz se encolheu de ombros, quase como se queria lhe tirar importância a seu papel no assunto... e Dragosani soube que na verdade desejava exatamente o contrário.
—Oh, um pouco disto, um pouco daquilo! Possivelmente deveria lhe dizer que arrisquei meu posto, que arrisquei à própria organização. Fiz uma aposta... mas sabia que não podia perder.
—Não foi uma aposta, então —disse Dragosani—. O que fez, em concreto?
Borowitz riu.
—Boris, você sabe que eu não gosto de nada ser concreto. Mas o direi. fui ver o Brezhnev antes da reunião, e lhe contei como foram as coisas.
—Arre! —agora a risada irônica foi do Dragosani—. Você o contou a ele? Você contou ao Leônidas Brezhnev, o chefe da Partida, como foram ser as coisas? Que coisas?
Borowitz deixou reluzir seu sorriso lupino.
—As coisas futuras —disse—. O que ainda não aconteceu. Disse-lhe que suas beijocas políticos com o Nixon o levariam a conquistar posições, mas que devia preparar-se para a queda do Nixon dentro de três anos, quando o mundo descubra sua corrupção. Disse-lhe que quando ele terminar estará em uma posição vantajosa, e terá que tratar com o inepto que ocupará a Casa Branca. Disse-lhe que a fim de preparar-se para os americanos partidários da linha dura que virão logo, no próximo ano assinará um acordo autorizando que os sputnik fotografem as convocações de mísseis nos Estados Unidos, e vice versa. Deve fazê-lo enquanto tem a possibilidade, e enquanto a América vai adiante na corrida ao espaço. Outra vez distensão, já vê. Ele está interessado, e também o está em que os americanos não vão muito adiantados nessa carreira, de modo que lhe prometi uma empresa espacial conjunta no ano de mil novecentos e setenta e cinco. Quanto ao montão de judeus e dissidentes que estiveram lhe causando problemas, disse-lhe que se verá livre de muitos deles, possivelmente uns cento e vinte e cinco mil, nos próximos três ou quatro anos.
»Não faça essa cara de desgosto, ou de escândalo, ou o que queira que signifique sua expressão, Boris! Jovem amigo, não somos bárbaros. Não estou sugerindo um extermínio em massa na Sibéria ou uma lobotomia pré frontal, a não ser expulsão, imigração, que lhes demos um chute no rabo, ou que lhes permitamos que se vão com suas queixa a outra parte, longe da Rússia.
»Disse-lhe todas estas coisas e mais. E as garanti, estritamente entre o Leônidas e eu, já me entende, se tão somente me deixava levar a cabo meu projeto e me tirava de cima a KGB. depois de tudo, o que eram esses policiais de cara de pedra a não ser espiões ao serviço de seu patrão? E por que me espiar a mim, que sou mais leal que a maioria? Mas, o que é realmente importante como manter o segredo, tão necessário em uma organização como a nossa, com membros de outra organização que espiam por cima de nossos ombros e comunicam a seu patrão tudo o que eu faço?
Um patrão que, por outra parte não pode entender nada do que faço. Não fariam mais que rir, desprezar o que não podem compreender, e nossos segredos seriam públicos até no último rincão. E nossos adversários conseguiriam passar a nossa frente também nesta corrida. Porque não nos enganemos, Boris, os americanos e os ingleses —sim, e os franceses e os chineses— também têm seus espiões "mentais".
»Mas me dê quatro anos, Leônidas, disse-lhe, quatro anos livre dos gorilas do Yuri Andropov, e lhe darei o germe de uma organização de espionagem mediante percepção extra-sensorial cujo extraordinário potencial você não pode sequer imaginar.
—Que inacreditável! —exclamou Dragosani, devidamente impressionado—. E o que lhe respondeu?
—Disse-me: «Gregor, velho amigo, velho combatente e camarada... de acordo. Terá seus quatro anos. Eu me sentarei a esperar, cuidarei de que se paguem todas suas contas e de que você e sua organização tenham recursos suficientes para pôr gasolina em seus Volgas e tomar uns vodcas, e logo contemplarei como acontecem todas essas coisas que há predito, ou que me prometeu, e sentirei um enorme agradecimento para você. Mas se não acontecerem dentro de quatro anos, cortar-lhe-ei os culhões.
—Assim que você pôs suas esperanças nas predições do Vlady —observou Dragosani—. Tão seguro está de que nosso vidente é infalível?
—Claro que sim! —respondeu Borowitz—. É quase tão bom predizendo o futuro como você quando fareja os segredos dos mortos.
—Mmmmm —Dragosani não estava convencido—. Então por que não predisse o que aconteceu no château! Teria que ter previsto um desastre de tal magnitude.
—Predisse-o —respondeu Borowitz—, embora de um modo indireto. Faz duas semanas me disse que muito em breve perderia a meus dois homens de confiança. E assim foi. Também me disse que os substituiria com outros, mas esta vez os escolheria de entre os soldados rasos.
Dragosani não pôde dissimular seu interesse.
—Já pensou em alguém?
Borowitz assentiu.
—Em você —disse—, e possivelmente Igor Vlady.
—Não quero um competidor —disse em seguida Dragosani.
—Não haverá competição entre vocês. Seus talentos são diferentes. Ele não pretende ser um necromante, e você não pode ler o futuro. Tem que haver duas pessoas para assegurar a continuidade do projeto se algo acontecer a uma delas. Essa é a única razão.
—Sim, e nós tivemos dois predecessores —grunhiu Dragosani—. Quais eram seus dons? Começaram também eles sem rivalidade alguma?
Borowitz suspirou.
—No início—se dispôs a explicar pacientemente—, quando decidi organizar a seção, não tinha colaboradores muito valiosos; o primeiro grupo de agentes ainda não tinha provado sua capacidade. As pessoas de verdadeiro talento: como Vlady, que está comigo desde o começo e melhora dia a dia, e como você, que se uniu a nós depois, eram muito valiosas para lhes encarregar trabalhos administrativos. Ustinov, que também estava conosco desde o começo, mas só como administrador, e mais tarde Gerkhov, cumpriam esse papel à perfeição. Não tinham nenhum talento paranormal, mas ambos pareciam ser de espírito amplo, algo difícil de encontrar hoje na Rússia, sobre tudo se se pretende que sejam politicamente irrepreensíveis, e eu confiava em que ao menos um deles acabaria tão interessado em nossa organização, e tão disposto a trabalhar por ela como estou eu. Quando começaram o ciúmes e a rivalidade, decidi que dirimissem o assunto entre eles, sem minha intervenção. Chamemo-lo seleção natural. Mas você e Vlady são algo muito diferente. Eu não deixarei que haja competição entre vocês, pode estar seguro.
—Contudo —insistiu Dragosani—, um de nós terá que agarrar as rédeas quando você se for.
—Não penso ir a nenhuma parte —disse Borowitz—. Pelo contrário, me terão por longo tempo aqui. Depois..., o que deva ser, será.
O general ficou em silêncio, contemplando o lento discorrer do rio.
—Por que se voltou Ustinov contra você? —perguntou por fim o homem mais jovem—. por que não desembaraçar-se do Gerkhov? Isso certamente teria sido mais fácil, menos arriscado.
—Havia duas razões para que não se livrasse de seu rival —explicou Borowitz—. A primeira, que tinha sido subornado por um antigo inimigo meu: o homem que você «examinou», do que eu suspeitava que planejava desde fazia tempo minha eliminação. Esse velho torturante da MVD e eu nos odiávamos. Não havia outra saída: ou me matava ele, ou o matava eu. Por isso fiz que Vlady o vigiasse, concentrasse-se nele, tratasse de predizer tudo o que lhe concernia. Vlady leu traição e morte em seu futuro imediato. A traição era contra mim; a morte seria a sua ou a minha. É uma pena que Igor não seja mais concreto. De todos os modos, arrumei as coisas para que morresse ele.
»A segunda razão: matar ao Gerkhov. Por muito bem que o fizesse, por muito cuidado que tivesse em evitar que ligassem seu nome a uma «morte acidental;», não acabava com o problema. Era como arrancar uma má erva; com o tempo outra voltaria a crescer. Eu, sem dúvida, poria a outra pessoa no posto vacante, provavelmente a alguém dotado de percepção extra-sensorial. E então, que esperança ficaria ao pobre Ustinov? Seu único problema verdadeiro era esse, a ambição.
»Mas, como pode ver, eu sou um sobrevivente. Utilizei ao Vlady para prever o que esse velho porco bolchevique planejava contra mim, e o agarrei antes de que pudesse me fazer nada. Utilizei a você para ler suas vísceras e ver quem mais estava comprometido na conspiração. Por desgraça, era Andrei Ustinov. Eu tinha pensado que talvez Andropov e seu KGB estivessem metidos no assunto. Têm-me tanta simpatia como eu a eles. Mas eles não estavam comprometidos. Me alegro, porque essa gente não se dá por vencida com tanta facilidade. Que mundo este, de guerras intestinas e vinganças! Verdade , Boris? Se fizer tão somente dois anos lhe dispararam ao mesmo Leônidas Brezhnev às portas do Kremlin!
Dragosani o tinha escutado com expressão pensativa.
—Me diga algo —disse por fim—. Aquela noite no château, quando tudo terminou, foi por isso que me perguntou se podia ler no cadáver do Ustinov, ou no pouco que ficava dele? Porque você pensou que podia estar em conivência com o novo homem que tinha enviado a KGB, e não somente com o velho líder retirado da MVD?
—Sim, algo assim —disse Borowitz com um encolhimento de ombros—. Mas isso já não tem importância. Não, porque se eles estivessem comprometidos, teria se notado no transcurso da reunião; nosso amigo Yuri Andropov não teria estado tão cômodo. Eu me teria dado conta. E o único que pude observar é que estava um pouco molesto de que Leônidas tivesse considerado oportuno lhe cortar um pouco as rédeas.
—O que significa que agora tentará conseguir sua cabeça.
—Não, não acredito. Ao menos, não durante quatro anos. E quando ficar demonstrado que eu estou no certo, quer dizer, quando se cumprirem as predições do Vlady com respeito ao Brezhnev, e este tenha provas da eficácia da organização, já não poderá fazer nada. De modo que, com um pouco de sorte, teremo-nos liberado dessa banda para sempre.
—Hmmmmm! Bem, esperemos que assim seja. De modo que foi muito preparado, general. Claro que isso eu já sabia. E agora me diga o que outros motivos tinha para me fazer vir hoje a este lugar.
—Tenho que lhe falar de outras coisas..., de outros projetos. Mas podemos falar enquanto jantamos. Natasha está preparando um pescado fresco de rio. Truta. Sua pesca está estritamente proibida... e isso faz que saboreie muito melhor. —Borowitz ficou de pé e iniciou a volta pela borda do rio. Logo voltou a cabeça e disse ao Dragosani por cima do ombro—: Aconselho que abandone essa gaveta com rodas que tem e compre um carro decente. Um Volga de segunda mão, possivelmente. Mas que não seja mais novo que o meu, em qualquer caso. O carro é um prêmio por sua ascensão. Poderá prová-lo quando se for de férias.
—Férias?
Tudo parecia chegar de repente.
—Sim, não o havia dito? Três semanas como mínimo, e pagas pelo Estado. Estou fortificando o château, e enquanto durarem as obras será impossível trabalhar...
—Ouvi bem? Há dito que...?
—Sim, estou fortificando o lugar —continuou Borowitz com tom fleumático—. Convocações para metralhadoras, uma grade elétrica, coisas desse tipo. Têm-nas no centro espacial do Baikonur, no Cazaquistão. Acaso nosso trabalho é menos importante? As reformas já foram passadas, e os trabalhos começam na sexta-feira. Agora somos nossos próprios amos, embora dentro de certos limites..., ao menos o somos no interior do château. Quando terminarem os trabalhos, todos teremos salvo-condutos para entrar, e ninguém poderá acessar ao castelo sem eles. Mas deixemos isso para mais tarde. Enquanto isso terá que fazer muitas reformas, algumas das quais fiscalizarei eu pessoalmente. Quero ampliar o lugar, fazer novas construções tanto na superfície como subterrâneas. Necessito espaço para celas experimentais. Tenho quatro anos, é verdade; mas o tempo passa muito rápido. A primeira etapa das reformas levará quase todo o mês, de modo que...
—Enquanto todo isso tem lugar, eu terei férias?
Agora Dragosani estava entusiasmado; sua voz soava ofegante.
—Assim é; você e um ou dois dos outros. Para você é um prêmio. Esteve muito bem essa noite. Tudo saiu muito bem, com a só exceção da ferida de meu ombro..., ah, e da morte do pobre Gerkhov, claro. Certamente lamento ter tido que pedir a você que fosse até o final. Já sei quão horrível isso deve ser para você...
—Importa-lhe se não falarmos desse assunto? —Dragosani encontrava excessiva a repentina preocupação do Borowitz por sua sensibilidade, e além lhe parecia que desafinava com o estilo do general.
—Está bem, não falaremos disso —disse o outro, mas se voltou, e com um sorriso monstruoso, acrescentou—: Além disso, o pescado tem melhor sabor.
Isso sim estava mais em consonância.
—Você é um sádico bastardo!
Borowitz lançou uma gargalhada.
—Isso é o que eu gosto de você, Boris. parece-se comigo, é muito pouco respeitoso com seus superiores.
O general trocou de tema.
—E onde passará suas férias?
—Em minha terra.
—Romênia?
—Claro. Retornarei a Dragosani, onde nasci.
—Alguma vez vai a outra parte?
—E para que? Conheço o lugar, e amo a seus habitantes... tudo o que sou capaz de amar, em todo caso. Dragosani é agora uma cidade, mas encontrarei alojamento nos arredores, em alguma das aldeias das colinas.
—Deve ser muito agradável —assentiu Borowitz—. O espera ali uma garota?
—Não.
—E o que o leva sempre para ali?
Dragosani grunhiu, encolheu-se de ombros, e seus olhos se entrecerraram até parecer fendas. Seu chefe caminhava diante e não viu seu rosto quando lhe respondeu.
—Não sei. Algo na terra, possivelmente.

Capítulo dois


Harry Keogh sentiu o calor do sol que entrava pela janela da sala de aula e lhe batia na face. Percebeu a solidez do banco escolar no que estava sentado, gentil por centenas de nádegas que o tinham utilizado antes dele. Sentia também o agressivo zumbido de uma pequena vespa em sua excursão de inspeção pelo tinteiro, a régua , os lápis e as dálias no floreiro que estava sobre o batente da janela. Mas todas estas coisas estavam na periferia de sua consciência, eram pouco mais que um ruído de fundo. Era consciente delas da mesma maneira que o era dos batimentos de seu coração, muito rápidos e sonoros para uma aula de aritmética em uma ensolarada terça-feira do mês de agosto. O mundo real estava ali, seguro, tão real como a brisa que de vez em quando entrava pela janela aberta; e entretanto, Harry necessitava ar com o mesmo desespero que um homem afogando-se. Ou uma mulher.
E o sol não podia esquentá-lo ali, onde lutava sob o gelo, e o zumbido da vespa era encoberto quase por completo pelo ruído da água gelada e o fervo das borbulhas que escapavam de seu nariz e de suas mandíbulas, crispadas em um grito inaudível. Abaixo, escuridão, algas e lodo congelado; e acima...
Uma lâmina de gelo, de vários centímetros de espessura, e um buraco em algum lugar —o buraco pelo que ele (ela?) arfava cansado—, mas onde? Luta contra a corrente do rio! Nada contra ela, nada, nada! Pensa no Harry, o pequeno Harry. Tem que viver por ele. Harry te necessita...
Ali! Ali! Graças a Deus, ali está o buraco!
Segure-se a borda, as arestas de gelo cortantes como cristal. E mãos como enviadas pelo céu se aproximam da água, parecem mover-se com tanta, tanta lentidão: quase em câmara lenta com uma frouxidão horrível, monstruosa. Mãos fortes, peludas. Um anel no dedo anelar da mão direita. Uma ágata olho-de-gato engastada em um grosso aro de ouro. Um anel de homem.
Ao olhar para cima, uma cara imprecisa, vista através da água revolta. E a transparência do gelo permite ver sua silhueta, ajoelhado junto ao bordo do buraco. Agarra suas mãos, essas mãos vigorosas, e ele te levantará como se fosse um menino de peito. E logo te sacudirá até que esteja seca, como castigo por havê-lo assustado.
Luta contra a corrente — agarra suas mãos—, dá chutes contra a água. Luta, luta pelo Harry!
Já está! Já agarrei suas mãos! Agarre com força! Resiste! Trate de levantar a cabeça, tire-a pelo buraco e respire, respire!
Mas... as mãos lhe empurram para baixo!
Vista através da água a cara ondula, muda. Os trêmulos lábios de gelatina se curvam nas comissuras. Sorriem... ou fazem uma careta. Gritas, e a água entra e substitui ao ar que escapa.
Segure-se ao gelo. Esqueça as mãos, as cruéis mãos que seguem te empurrando para baixo. Te agarres a beirada e levante a cabeça. Mas as mãos estão ali, soltam-lhe os dedos. Empurrando-lhe para longe, sob o gelo. Assassinando-lhe!
Não pode lutar contra o rio, o frio e as mãos. A escuridão rugindo sobre ti. Penetra em seus pulmões, em sua cabeça, em seus olhos. Crava suas longas unhas nas mãos, as arranha, rasga a pele. O anel de ouro se solta e descende em espiral para a escuridão e o lodo. O sangue avermelha a água —vermelha contra o definitivo negro de sua morte—; sangue das mãos tão, tão cruéis.
Já não tem forças para lutar. Cheia de água, afunda-te. Arrasta-te a corrente. Mas já não te importa. O único que te importa... é Harry. Pobrezinho! Quem o cuidará? Quem cuidará do Harry... Há...
—Harry? Harry Keogh? Por Deus, cara! Está você aqui?
Harry sentiu o cotovelo de seu companheiro Jimmy Collins que lhe cravava nas costelas, e isto fez que expulsasse o ar com certa violência; ouviu a voz áspera do senhor Hannant retumbar em seus tímpanos por cima do tumulto da água. ficou direito de um salto no banco, respirou ansioso uma baforada de ar e sem dar-se conta elevou o braço, como se respondesse a uma pergunta. Era uma reação automática: se um se apressava a levantar o braço o professor supunha que alguém sabia a resposta, e interrogava a outro aluno. Salvo que às vezes a estratégia fracassava, e os professores não caíam na armadilha. E a Hannant, o professor de matemática, ninguém tirava sarro.
A sensação de sufocação tinha desaparecido, também o terrível frio da água, a implacável tortura das desumanas e brutais mãos; tudo o pesadelo se desvaneceu. O pesadelo, ou melhor dizendo, o sonho. A nova situação, comparada com aquilo, era uma ninharia. Era-o realmente?
De repente, Harry teve consciência de uma classe cheia de olhos que o olhavam; foi também consciente do rosto avermelhado e furioso do senhor Hannant, que o olhava fixo do fronte da classe. Do que teriam estado falando?
Jogou uma olhada ao quadro. Ah, sim! Fórmulas —superfície e propriedades do círculo, o fator constante (?); diâmetro, rádio e Pi. Pi? Isso parecia uma brincadeira! Mas, qual terá sido a pergunta do Hannant? E terá feito uma pergunta, depois de tudo?
Harry, com o rosto pálido, olhou a seu redor. A sua era a única mão levantada. Baixou-a lentamente. Jimmy Collins, a seu lado, soltou um risinho zombeteiro, e imediatamente tossiu e pigarreou para dissimulá-lo. Normalmente isso tivesse sido suficiente para que Harry também pusesse-se a rir, mas a lembrança do pesadelo —ou sonho— ainda ocupava sua mente.
—E bem? —perguntou Hannant.
—Sim, senhor? —replicou Harry—. Por favor, poderia repetir a pergunta?
Hannant suspirou, fechou os olhos, apoiou seus grandes nódulos na mesa e deixou cair todo o peso de seu robusto corpo sobre seus braços. Contou em voz muito baixa —mas que toda a classe pôde ouvir—, até dez. Depois, sem abrir os olhos, disse:
—Pergunta-a era, está você aqui?
—Eu, senhor?
—Por Deus, Harry Keogh. Sim, você!
—Pois claro que estou, senhor. —Harry tentou atuar como se não fora do todo inocente. Pode que conseguisse escapar ao castigo—. Mas então essa vespa, senhor, ...
—A outra pergunta —o interrompeu Hannant—, a primeira que fiz, e que me fez suspeitar que talvez você não estivesse conosco, era a seguinte: Qual é a relação entre o diâmetro de uma circunferência e Pi? Presumo que essa é a que você queria responder, e elevou a mão. Ou estava espantando moscas?
Harry sentiu que se ruborizava. Pi? Diâmetro? Circunferência?
A classe começou a mover-se inquieta nos bancos e alguém fez um ruído depreciativo com os narizes. Provavelmente era Stanley Green, o valentão, o tirânico, teimoso e arrogante do Stanley. O problema com ele é que era inteligente e enorme. Mas qual era a pergunta? E de que valia recordá-la, se não sabia a resposta?
Jimmy Collins olhou para baixo, pretendendo interessar-se em um livro que tinha sobre a mesa, e lhe sussurrou com um flanco da boca:
—Três vezes!
Três vezes? O que significava isso?
—E bem? —Hannant sabia que o tinha pego.
—Ehh... três vezes —soltou Harry com ímpeto, e rogou que Jimmy não tivesse brincado—, senhor.
O professor de matemática respirou fundo e se ergueu. Depois bufou e franziu o sobrecenho. Parecia um tanto intrigado. Mas imediatamente disse:
—Não! Mas quase acertou. Não é três vezes, a não ser 3,14159 Mas ainda não respondeu a minha pergunta.
—O diâmetro —sussurrou Jimmy— é igual à circunferência. ..
—D... diâmetro! —gaguejou Harry—. É igual à circunferência. ..
George Hannant o olhou fixamente. Via um menino de treze anos, sardento, de cabelo loiro, vestido com um enrugado uniforme escolar; a camisa fora da calça, a gravata semelhante a uma parte de corda roída, torcida, a ponta desfiada, e um par de óculos sustentados apenas por um pequeno nariz, detrás de cujos cristais uns olhos azuis e sonhadores olhavam com uma expressão de permanente receio. Comovedor? Não, isso não. Harry Keogh sabia defender-se muito bem e, se o propunha, era capaz de tirar qualquer de suas casinhas. Mas... era um menino difícil. Hannant suspeitava que detrás dessa expressão obcecada se escondia um cérebro brilhante. Se tão somente o utilizasse mais frequentemente!
Terei que obrigá-lo a sair de si mesmo, talvez? Uma forte sacudida? Algo que o obrigasse a pensar neste mundo, e não no lugar ao que escapava continuamente? Possivelmente.
—Harry Keogh! Não estou seguro de que não lhe tenham soprado essa resposta. Collins se senta muito perto de você, e parece muito inocente para meu gosto. Assim ao final deste capítulo de seu livro encontrará dez perguntas. Três delas se referem às superfícies de circunferências e cilindros. Amanhã, a primeira hora, quero encontrar sobre minha mesa a resposta a essas três perguntas. De acordo?
Harry baixou a cabeça e se mordeu os lábios.
—E me olhe para mim quando falo! Me olhe, moço!
Harry elevou a vista. Agora sim que seu aspecto era lastimoso. Mas não tinha sentido arrepender-se.
—Harry —suspirou Hannant—, você é um desastre! falei com os outros professores, e não só tem problemas em matemática, mas também em todas as outras matérias. Filho, se não acordar logo, partirá do instituto sem uma só qualificação. Ainda tem tempo suponho que é isso o que está pensando, um par de anos, mas só se ficar e estudar agora mesmo. O trabalho para fazer em sua casa não é um castigo, Harry, a não ser minha maneira de lhe indicar qual é o caminho que deve tomar.
Olhou para o fundo da classe, onde Stanley Green ainda fazia ruídos zombadores enquanto se tampava a cara com a mão, com o pretexto de arranhá-la frente.
—Para você, Green, inseto repugnante, sim que é um castigo. Você fará as outras sete.
O resto da classe tentou não demonstrar sua aprovação —se o fizessem, Stanley Green os faria pagar caro— mas Hannant, de todos os modos, percebeu. Já estava bem. Não lhe importava que pensassem que era um bode, mas preferia que o considerassem um bode justo.
—Mas, senhor! —Green ficou de pé, e elevou a voz em tom de protesto.
—Cale-se! —respondeu com brutalidade Hannant—. E sente-se!
Logo, depois que o valentão da turma se sentou ruidosamente, o professor deu uma olhada ao horário que tinha sob o vidro da mesa.
—O que temos agora? Ah, sim, coleta de pedras na praia! Isso está muito bem, um pouco de ar fresco lhes fará bem. Muito bem, preparem suas coisas e logo podem sair... mas em ordem. (Como se fossem fazer lhe caso!)
Mas Hannant, antes de que se transformassem em uma horda dedicada a bater as mesas, agitar lápis e fazer retumbar o chão com seus passos, disse-lhes:
—Um momento! Podem deixar suas coisas na sala. O monitor levará as chaves e lhes abrirá quando voltarem a deixar as pedras recolhidas na praia. Quando tiverem pego suas coisas, ele voltará a fechar. Quem é o monitor esta semana?
—Eu, senhor! —disse Jimmy Collins enquanto levantava a mão.
—Ora! —disse Hannant com um fingido gesto de surpresa—, Que progresso, Collins!
—Marquei o gol da vitória na partida do sábado contra Blackhills, senhor —respondeu Jimmy orgulhoso.
Hannant sorriu com seus botões. Claro, isso o explicava tudo. Jamieson, o diretor, era um grande aficionado ao futebol. A todos os esportes, em realidade. Mente sã em corpo são... Mesmo assim, era um bom diretor.
Os meninos se retiravam da sala de aula, Green abria passo a cotoveladas, mais mal-humorado que nunca. Keogh e Collins fechavam a fila atrás, inseparáveis como siameses, apesar de todas suas diferenças. E, tal como supôs que o fariam, ficaram esperando-o na porta.
—Sim? —perguntou Hannant.
—Espero que saia, senhor —respondeu Collins—, para fechar a porta com chave.
—Que bom! —disse Hannant, imitando o tom despreocupado do menino—. E deixará todas as janelas abertas?
O professor sorriu quando os dois meninos entraram a toda pressa ao salão, logo colocou suas coisas na carteira, abotoou o primeiro botão da camisa e endireitou a gravata, e contudo, saiu antes de que eles terminassem com as janelas. Collins fechou depois a porta com chave, e os dois meninos saíram em disparada, passaram junto ao professor cuidando-se de não roçá-lo, como se tivesse uma enfermidade incurável, e partiram atrás de seus companheiros, com um estrondo de passos velozes.
«Matemática? —pensou Hannant, enquanto os olhava afastar-se pelo corredor, entre os retângulos de luz poeirenta do sol que entrava pelas janelas—. Que importância têm a matemática? Com o Star Trek na televisão, e centenas de novidades nas lojas, e eu pretendo que fiquem a estudar matemática! Por Deus! E espera um ano mas, quando começarem a observar essas curiosas protuberâncias que têm as garotas... se é que já não começaram. Matemática? Impossível!»
Sorriu, embora com certa tristeza. Senhor, como os invejava!

Harden Modern'Boys era um moderno instituto na costa nordeste da Inglaterra, que atendia às necessidades educativas dos filhos dos mineiros. A maioria dos meninos acabariam trabalhando nas minas ou nos escritórios de HUNOS A, como seus pais e seus irmãos maiores. Mas alguns, uma percentagem muito pequena, passariam nos exames de ingresso para as universidades e politécnicos situados nas cidades vizinhas.
A escola, que ao princípio era um conjunto de edifícios de dois pisos ocupados por escritórios de HUNOS A, tinha recebido uma reforma fazia trinta anos, quando a população da aldeia tinha aumentado repentinamente devido à grande expansão da indústria mineira. Na atualidade, situada atrás de grades baixas, a dois quilômetros da praia pelo este, e na metade dessa distância da mina pelo norte, a antiga construção de tijolos e janelas quadradas tinha um ar de carrancuda austeridade em desacordo com a magnificência de seus jardins, uma fria severidade que não se refletia absolutamente em seus professores. Não, porque estes eram um grupo de gente boa e trabalhadora. E Howard Jamieson, o diretor, um firme partidário da velha escola», cuidava-se de que seguissem sendo-o.
A excursão semanal para recolher pedras tinha três propósitos: o primeiro, os meninos tomavam um pouco de ar fresco, enquanto os professores aficionados aos passeios pelo campo podiam dedicar-se à contemplação das maravilhas da natureza. Segundo: proporcionava material gratuito para renovar as grades e muretas do jardim, um projeto que contava com a aprovação do diretor. Terceiro: significava que uma vez ao mês a maioria dos professores podiam sair cedo da escola, e deixar seus tutelados a cargo dos aficionados às excursões campestres.
A ideia era que todos os alunos empregassem a tarde da terça-feira em percorrer dois quilômetros por trilhas rurais até chegar à praia. Uma vez ali, recolhiam umas pedras grandes, chatas e arredondadas que abundavam no lugar, e logo cada aluno levava uma pedra à escola. E durante a caminhada, um professor ( geralmente o de ginástica, que tinha sido treinador no exército) e duas das professoras solteiras mais jovens, cantavam canções que falavam das flores silvestres e da paisagem em geral. Nada disto interessava realmente a Harry Keogh, mas gostava da praia, e isso era melhor que estar sentado na sala de aula em uma tarde quente de verão.
—Olhe — disse Jimmy Collins enquanto caminhavam na metade da fila que, da dois em fundo, avançava pelos coleantes atalhos rumo ao mar—, acredito que deveria prestar atenção ao velho Hannant. Quero dizer, não ao papo sobre as qualificações para o futuro, isso é assunto teu, exceto durante as aulas. Hannant não é mau, mas poderia sê-lo se lhe ocorrer que está zombando dele.
Harry, abatido, encolheu os ombros.
—Estava sonhando acordado —disse—. Na verdade, é algo bastante estranho. Quando isto me acontece, é como se já não pudesse parar. Somente o grito do velho Hannant —e sua cotovelada— me fizeram reagir, tiraram-me dali.
Tiraram-me... as fortes mãos que descem para a água... para me tirar ou para me afundar?
Jimmy fez um gesto de assentimento.
—Sim, vi-te assim antes, em muitas outras ocasiões. Sua cara fica um pouco estranha... —Jimmy olhou seriamente ao Harry durante um instante, logo riu e lhe deu um tapinha no ombro—: Claro que isso não tem importância. Sua cara é sempre estranha.
Harry bufou.
—Olhe quem fala! Eu, estranho? Isso sim que é ver a palha no olho alheio e não a viga no próprio! Mas o que quer dizer? Que aspecto tenho quando te pareço estranho?
—Bom, senta-se muito quieto, com os olhos muito abertos, como se estivesse olhando algo que te dá medo. Mas não sempre é assim. Às vezes parece distraído. De todos os modos, é como diz o velho George: parece como se não estivesse aqui. De verdade, és um cara muito estranho. Quantos amigos tem?
—Tenho a ti —protestou Harry, embora sem convicção.
O menino compreendia o que queria dizer seu amigo: era muito introvertido, muito calado. Mas não era estudioso, não era um sabichão. Se tivesse sido um bom aluno, a ninguém teria chamado a atenção sua maneira de ser, mas não era. Mas era inteligente, claro está (ou ao menos ele pensava que podia sê-lo) e se se tivesse concentrado... Mas isto lhe resultava muito difícil. Era como se em ocasiões seus pensamentos não fossem realmente deles. Pensamentos complicados, sonhos, quimeras e fantasmas. Sua mente construía histórias —tanto se ele queria como se não—, mas histórias tão detalhadas que pareciam lembranças. As lembranças de outras pessoas. Gente que já não estava aqui. Como se sua cabeça fosse uma câmara de ressonância para mentes que falavam..., que se tinham partido a outra parte?
—Sim, eu sou seu amigo —Jimmy interrompeu seus pensamentos—. E quem mais?
Harry se encolheu de ombros, à defensiva.
—Também a Brenda —respondeu—, e além disso... quem necessita um montão de amigos? Eu, por certo, não. Se as pessoas querem se mostrar amistosas, que o façam. Se não, é coisa delas.
Jimmy ignorou a menção a Brenda Cowell, o «grande amor» do Harry, que vivia na mesma rua. A Jimmy interessavam os esportes, não as garotas. Antes de que o descobrissem abraçando a uma garota no cinema com as luzes apagadas preferia pendurar-se na portaria de um estádio de futebol.
—Sim, tem-me —repetiu—. E porque é assim... na verdade não sei.
—Porque não competimos entre nós —disse Harry, com uma perspicácia incomum para sua idade—. Eu não sei nada de esportes, e você se diverte explicando isso porque sabe que não vou discutir contigo. E você não entende por que eu sou tão, bom, tão tranquilo...
—E estranho —o interrompeu Jimmy.
—E por isso nos damos bem.
—Mas, você não gostaria de ter mais amigos?
Harry suspirou.
—É como se os tivesse, Jimmy. Tenho-os em minha cabeça.
—Amigos imaginários! — brincou amavelmente Jimmy.
—São mais que isso —respondeu Harry—. E também eles são bons amigos. Claro que são, e não precisam ser mais que isto.
—Arre! —bufou Jimmy—.É mais do que estranho!
Na parte dianteira da coluna, Sargento Graham Lane tinha saído do sol, e se deteve para dar pressa a dupla fila de crianças que o seguia. achavam-se na estreita desembocadura do vale boscoso, que também era a desembocadura da corrente que tinha perfurado uma profunda garganta nos escarpados. Estes se elevavam ao norte e ao sul, compostos de arenito com nervuras de xistos e granito, e ao pé dos quais estava a praia, coberta por pedras polidas de formas arredondadas. Sobre o rio havia uma velha e desvencilhada ponte de madeira, e mais à frente um pântano ou lago de água salobre, encoberto por canos e novelo aquáticos, e alimentado pelas marés e as tormentas. Um atalho rodeava as terras pantanosas e conduzia à praia, e mais à frente se estendia a cinza superfície do mar do Norte, cada dia mais sujo por causa dos refugos das minas. Mas hoje sua cor era azul, pintalgado aqui e lá de branco pelas gaivotas que sobrevoavam em busca de peixes.
—Muito bem! —gritou Lane, de pé no lado esquerdo da ponte e com os braços abertos, uma espécie de arquétipo da masculinidade, com suas calças de ginástica e sua camiseta—. Sigam adiante, cruzem a ponte, rodeiem o lago, e à praia. Procurem as pedras e as tragam aqui para classificar. Não a mim, e sim à senhorita Gower. Temos meia hora inteira, assim que os que queiram podem dar um mergulho. Sempre que houver recolhido sua pedra, claro está, e que tenha seu traje de banho. Nada de banhar-se nus, por favor. Recordem que há outras pessoas na praia. E permaneçam nas poças deixadas pela maré. Já sabem quão perigosa é a corrente neste lugar, jovens chatos.
Todos sabiam muito bem; a corrente era muito traiçoeira, sobre tudo com a maré minguante. Todos os anos se afogava gente ao longo destas praias, e alguns eram muito bons nadadores.
A senhorita Gower —professora de religião e de geografia— ouviu de onde estava, na metade da fila, as instruções que dava Lane com voz áspera e tom militar, e fez uma careta. dava-se conta muito bem do por que tocava a ela classificar as pedras: assim Lane e Dorothy Hartley desfrutariam de um pouco de liberdade, poderiam dar um passeio pelas rochas e encontrar um rincão solitário para uma fodida rápida. Um pouco puramente físico, claro está, já que suas mentes eram absolutamente incompatíveis.
A senhorita Gower elevou o nariz e farejou ruidosamente; logo, quando os meninos apertaram o passo rumo à praia, disse-lhes em voz alta:
—Muito bem, meninos, depressa. E recordem que necessitamos conchas de navalhas para a classe de história natural. Conchas inteiras, e se for possível, que as valvas estejam unidas. Mas, por favor, vazias! Não levemos moluscos podres ao colégio, por favor.
Na parte de atrás da fila, no atalho sob as árvores, onde a senhorita Hartley e os monitores de suas classes de inglês e história se encarregavam de manter a ordem, Stanley Green caminhava penosamente, as mãos nos bolsos e seu inteligente mas cruel espírito perturbado por pensamentos cheios de violência. Tinha ouvido o pedido da senhorita Gower aos meninos: nada de crustáceos mortos. Não, o que lhe gostaria de seria levar morto a esse idiota do Keogh. Bom, morto talvez não, mas sim ferido gravemente. Por culpa desse menino estúpido teria que fazer esta noite todos esses problemas de matemática. Esse chato, sentado como um zumbi, dormido com os olhos abertos. Big Stanley se encarregaria de lhe abrir bem os olhos, seguro, ou possivelmente de fecha-los
—As mãos fora dos bolsos, Stanley —disse a bonita senhorita Hartley detrás dele—. Faltam cinco meses para Natal, e ainda não faz bastante frio como para que neve. E por que encurva os ombros? Tem algum problema?
—Não, senhorita —murmurou Stanley, a cabeça encurvada.
— Então, fique bem, Stanley —lhe disse com tom um pouco zombador—. Você é ainda muito jovem, mas se continua descarregando seu ódio contra o mundo, ficará velho logo, logo. —E acrescentou para si—: Como Gertrude Gower, essa bruxa reprimida...

Harry Keogh não era um voyeur, mas sim um menino curioso. A última terça-feira que vieram à praia tinha visto algo por acaso, e hoje esperava vê-lo de novo. Por essa razão, depois de entregar sua pedra à senhorita Gower, e após assegurar-se de que ninguém o via, tomou um atalho entre as dunas e se dirigiu ao outro lado da restinga. Não tinha que percorrer mais de cem metros, mas na metade dessa distância já encontrou rastros recentes na areia. Eram de um homem e uma mulher; Harry já tinha visto o sargento e à senhorita Hartley se agarrarem nessa direção, tal como tinha suspeitado que fariam.
Harry, com grande sentido da oportunidade, esqueceu-se» o traje de banho, e isto lhe permitia fazer o que queria sem companhia, pois Jimmy ficou a nadar com o resto da turma. Harry procurava algo muito simples: indicações sobre uma atividade que para ele era ainda bastante misteriosa. Quando se sentava junto à Brenda no cinema e apertava sua perna contra a dela, ou quando a garota lhe aproximava, e ele colocava o braço ao redor dos ombros dela de modo que os nódulos de seus dedos roçavam os pequenos peitos da garota por cima do casaco e o pulôver, se sentia bastante emocionado, aquilo inclusive era muito bom, mas não era nada comparado com os jogos aos que se dedicavam os professores Lane e Hartley.
Por fim, depois de subir engatinhando em uma duna, descobriu-os sentados na areia, dentro de um semicírculo de canas, no mesmo lugar onde os tinha visto na semana anterior. Harry retrocedeu e procurou em seguida um lugar no topo de outra duna do qual podia espiá-los, jogado de barriga para baixo atrás de um tufo de ervas. Na semana anterior, ela (a senhorita Hartley) tinha estado brincando com a coisa do Sargento, e Harry tinha achado extraordinário seu tamanho. A senhorita Hartley tinha o pulôver levantado, e Sargento tinha colocado uma das mãos sob a saia dela enquanto lhe acariciava com a outra os seios firmes de grandes mamilos. Quando ele gozou ela tinha pego um lenço e com movimentos lentos e deliberados tinha limpo o brilhante sêmen do peito e o ventre do homem. Logo ela tinha beijado a ponta de sua coisa —de verdade, tinha-o beijado ali— e tinha começado a arrumar-lhe a roupa enquanto ele jazia imóvel como um morto. Harry se tinha esforçado por imaginar-se a Brenda fazendo o mesmo com ele, mas a imagem não desenrolava em sua mente. Era muito estranho.
Esta vez era muito diferente. Esta vez foram fazer o que Harry realmente queria ver. Quando terminou de acomodar-se em seu posto de observação, Sargento tinha baixado as calças de moletom de ginástica e a senhorita Hartley tinha sua curta e branca saia de tênis levantada até a cintura. Ele estava tratando de lhe baixar as calcinhas, e sua coisa —ainda maior que a vez anterior, se isto era possível— se sacudia com movimentos autônomos, como uma marionete movida mediante um fio invisível.
De onde estava, Harry escutava aos outros meninos gritar e rir ao longe, na praia, onde nadavam e se mergulhavam nos charcos que tinha deixado a maré. O sol lhe queimava as orelhas e a nuca enquanto ele permanecia completamente imóvel com o queixo apoiado na palma das mãos. As pulgas de água saltavam a poucos centímetros de sua cara, mas Harry não deixava que nada o distraíra; seus olhos estavam cravados na atividade sexual dos amantes, refugiados na ramagem de canas.
Ao princípio pareceu que ela resistia, que tentava apartar as mãos de Sargento, mas ao mesmo tempo se desabotoava a blusa e seus peitos se sobressaíram à luz do sol, suas pontas agudas de um marrom muito escuro. Harry supôs nela algo similar ao pânico, e seu próprio coração, como fazendo-se eco desse sentimento, começou a lhe golpear no peito. Era como se a senhorita Hartley estivesse hipnotizada pelo pênis do Sargento, uma serpente que ondulava sobre seu ventre e a incitava a levantar o traseiro para que seu amante pudesse lhe tirar as calcinhas, a dobrar os joelhos e a abrir as pernas. Nesse lugar ela era escura como a noite, como se tivesse posto umas pequenas calcinhas negras debaixo das brancas. Negra, sim, e logo rosada quando pôs suas mãos sob as nádegas e se abriu para o Sargento.
Harry a vislumbrou apenas, rosa, branca, curvada, escura, marrom, mas isso foi tudo. Sargento, subido em cima dela, com seu incrível pênis que desapareceu no interior da mulher em um instante, não lhe deixou ver nada mais. Agora não ficavam mais que pés e pernas e as escuras nádegas do professor de ginástica que arremetiam e lhe tampavam a visão. O menino tragou saliva, sentiu que o pênis lhe endurecia dentro das calças e se girou sobre um lado para aliviar o palpitar de seus genitais. E nesse instante viu o Stanley Green que vinha pelas dunas, com o rosto carrancudo e um olhar malévolo em seus olhinhos porcinos.
Quando seguia aos amantes, Harry tinha encontrado uma concha de navalha perfeita, as duas valvas intactas e ainda unidas. Agora removeu um pouco a areia e fingiu encontrar a concha e desceu a duna com ela na mão. Consciente de que seu rosto estava ruborizado, afastou o olhar de Green e simulou não vê-lo até que o teve virtualmente em cima. Logo já não houve maneira de evitá-lo. Nem tampouco de impedir um enfrentamento.
—Olá, quatro - olhos —grunhiu o valentão, e se aproximou disposto para a briga, com os braços abertos como desafiando ao Harry a que tratasse de escapar—. Que estranho te encontrar aqui, e não fodendo por aí com seu amigo, o jogador de futebol. O que estava fazendo, quatro-olhos? encontraste, talvez, uma bonita concha para a senhorita Gower?
—O que te importa? —murmurou Harry, e tentou esquivar ao outro para escapar.
Green se aproximou um pouco mais e lhe arrancou a concha da mão. Esta era de cor verde oliva, e muito frágil, e quando Green a espremeu deliberadamente em seu punho, estalou em mil pedaços.
—Já está —disse o valentão, com tom de profunda satisfação—. Vai me dedurar, quatro-olhos?
—Não —respondeu ofegante Harry, e tentou uma vez mais escapar; em sua mente via o traseiro de Sargento que subia e baixava, subia e baixava dentro do semicírculo de canas, ao outro lado da duna e a menos de dez metros de onde eles estavam—. Eu não delato a ninguém. E tampouco me faço de valentão.
—Valentão? Você? —burlou-se Green—. Se não poderia assustar a um camundongo! Só serve para ficar dormido na aula, fazer papel de tolo e para colocar às pessoas em confusões.
—Você sozinho se colocou em confusões —protestou Harry—. Ao soltar aquela risadinha.
—Risadinha? —disse o forte Stanley, e agarrou Harry pelo braço—. Só as garotas soltam risadinhas, quatro-olhos. Está-me dizendo que sou uma neném?
Harry se soltou de um puxão e levantou os punhos. Depois, tremente, disse:
— vá embora daqui! - Green ficou boquiaberto.
— Você é grosseiro, não é? —disse; depois meio que se voltou, como se fosse partir, e quando Harry baixou o guarda, voltou-se e lhe deu um murro na boca.
—Ai! —queixou-se Harry, e cuspiu sangue de um corte no lábio.
Perdido o equilíbrio, deu um tropeção e caiu ao chão; Green se preparava a lhe dar um chute quando apareceu o Sargento Lane, metendo a camiseta nas calças, com o rosto púrpura de ira e frustração.
—Que diabos está acontecendo? —rugiu.
Lane agarrou ao atônito Green pela nuca, o fez girar, apoiou o joelho no traseiro do valentão e o lançou de barriga para baixo sobre a areia.
—Outra vez fazendo uma das suas, Stanley? —gritou Sargento—. E quem é sua vítima agora? O que? O fracote do Harry Keogh? Por Deus, já vejo que logo se dedicará a estrangular meninos de peito!
Quando Green, cuspindo areia, conseguiu ficar trabalhosamente em pé, o professor lhe deu um empurrão que o tombou outra vez.
—Já vê, Stanley, não é nada agradável quando um se enfrenta com alguém maior e mais forte. E é assim como se sente Harry, não é verdade, Keogh?
Harry, que ainda se cobria a boca com a mão, respondeu:
—Sei me cuidar sozinho.
O grandalhão Stanley, embora tinha um ano mais que Harry, e parecia ainda maior, estava a ponto de tornar-se a chorar.
—O direi a meu pai —disse enquanto se ia.
—O que? —riu Sargento, os braços abertos, enquanto o valentão se retirava—. O seu pai? Aquele gorducho que joga queda de braço para ganhar canecas de cerveja? Bem, quando o contar lhe pergunte quem ganhou ontem à noite, e esteve a ponto de lhe quebrar o braço.
Mas Stanley já partia correndo.
— Você está bem, Keogh? —perguntou Lane enquanto o ajudava a levantar-se.
—Bem, senhor. Sangra-me um pouco a boca, mas não tem importância.
—Filho, mantenha-se longe desse valentão —aconselhou o professor—. É uma má pessoa, e muito grande para você. Quando o chamei fracote, não quis dizer que você o fosse; só estava assinalando a grande diferença que há entre vocês. O grandalhão Stanley não vai se esquecer disto, de modo que cuide-se.
—Sim, senhor —respondeu Harry.
—Muito bem, então. E agora, volte com outros.
Lane fez gesto de retornar a seu refúgio atrás da duna, mas nesse preciso instante apareceu a senhorita Hartley, muito arrumada e composta.
Harry ouviu sargento murmurar um «Merda!» baixo e sentiu vontades de rir, mas temeu que o lábio lhe partisse ainda mais. Dirigiu-se ao lugar onde outros meninos se reuniam ao redor da senhorita Gower, já preparados para retornar.

Era uma terça-feira à tarde, na segunda semana de agosto, e fazia calor. George Hannant, enquanto se secava a testa com um lenço, pensou que era curioso quão quente podia ser uma tarde como esta. A gente pensava que à medida que se aproximasse a noite iria refrescando, mas o calor parecia mais sufocante. Durante a manhã houve uma brisa; muito débil, mas brisa enfim. Agora, o ar estava imóvel como o de um quadro. Todo o calor do dia, que a terra tinha absorvido, emanava agora dela e envolvia os corpos. Hannant voltou a secar a testa e o pescoço, bebeu a sorvos uma limonada gelada, e pensou que muito em breve começaria a transpirar o líquido que estava ingerindo. Fazia um calor infernal.
Hannant vivia bastante perto da escola, mas do lado oposto à mina. O outro era muito opressivo, muito deprimente. Esta noite tinha trabalhos para corrigir, e lições que preparar. Não tinha vontades de fazer nenhuma das duas coisas; em realidade, não tinha vontades de fazer nada. Não lhe viria mal uma bebida, mas os pubs a esta hora estariam cheios de mineiros em mangas de camisa e boina, que falariam com voz áspera e gutural. Passava um bom filme no Ritz, mas nas primeiras filas o sistema de som era ensurdecedor, e nas filas posteriores estariam os casais de sempre fazendo amor, que o perturbavam e distraíam sua atenção da tela com suas suarentas manobras. E de todos os modos, tinha trabalhos para corrigir.
Hannant vivia em uma pequena casa encostada, em uma urbanização com vistas a um bosque próximo, que se fazia mais estreito em direção ao mar, e estava separada da escola por um cemitério com uma igreja antiga, tumbas bem cuidadas e altos muros. Hannant habitualmente o atravessava rumo à escola cada manhã, e voltava a cruzar na volta a sua casa, de tarde. Havia grandes castanheiras das Índias com bancos circulares construídos ao redor de seus troncos. Hannant sempre tinha a possibilidade de vir com seus papéis e seus livros e sentar-se à sombra das castanheiras.
Em realidade não era uma má ideia. Certamente haveria algum outro aposentado, sobrevivente da mina, que viria a sentar-se com seu cão e seu jornal, e mascaria tabaco ou fumaria um velho cachimbo... e cuspiria, é obvio. Os pulmões doentes eram um legado das minas, pulmões doentes e colunas vertebrais frágeis como cascas de ovo. Mas além dos velhotes, o lugar era habitualmente muito tranquilo, afastado do centro do povoado, dos pubs e do cinema. Ah, e quando começassem a cair as castanhas haveria um montão de pirralhos, claro. depois de tudo, para que servem as castanhas de Índias mas sim para que os pirralhos façam brinquedos com elas? Hannant sorriu. Alguém havia dito uma vez que do ponto de vista de um cão, um ser humano era uma coisa que jogava paus. E qual seria o ponto de vista de uma castanha da Índias? Possivelmente que os meninos eram coisas que as atavam com cordas e as partiam em duas. Havia algo que parecia indubitavelmente certo: os meninos não eram feitos para estudar matemática!
Hannant tomou banho e se secou lenta e metodicamente ( ter pressa só fazia que alguém suasse ainda mais), colocou umas largas calças de flanela de algodão e uma camisa sem gravata, agarrou sua maleta e saiu de casa. Cruzou o casario em direção ao cemitério e se percorreu o comprido atalho de cascalho que o atravessava. Nos ramos mais altos das árvores brincavam os esquilos, e de vez em quando faziam que alguma folha se soltasse. Os raios do sol chegavam oblíquos das baixas colinas do oeste, onde a grande bola ardente parecia suspensa para sempre, como se nunca fosse permitir passar do dia para a noite. O dia tinha sido formoso; a tarde, a pesar do calor, também era estupenda, e ambos tinham sido desperdiçados, ou se não desperdiçados, perdidos lastimosamente... se é que havia alguma diferença entre ambas as expressões. Hannant sorriu ironicamente ao imaginar o jovem Johnnie Miller dentro de alguns anos, calculando a superfície de distintas circunferências para distrair seu aborrecimento enquanto extraía carvão da mina. Para que servia lhes ensinar matemática?
E quanto aos meninos como Harry Keogh —pobre desgraçado!—, não tinham músculos para trabalhar nas minas, nem cérebro para fazer outra coisa. Bom, cérebro possivelmente sim, mas até agora era como um iceberg do que só se via uma ponta. E quem podia saber quanto se escondia sob a superfície? Hannant desejava encontrar a maneira de expor, agora que ainda estava a tempo, a escondida inteligência do menino. O professor tinha um pressentimento com respeito ao Keogh: aquilo que o menino ia fazer —ou a ser— seja o que fora, tinha que começar a evidenciar-se agora. Era como contemplar o começo da germinação de uma estranha semente, e esperar ver como seria a flor.
E falando da batata... não era Keogh esse menino sentado sobre uma velha tumba, à sombra de uma árvore, a cabeça apoiada sobre a musgosa lápide? Sim, era Keogh; agora via seus óculos, que o sol fazia brilhar. O menino tinha um livro aberto sobre os joelhos e mordiscava um lápis; com a cabeça arremesso para trás, parecia completamente absorto em seus pensamentos. Ao Jimmy Collins não o via por nenhum lado; sem dúvida estava jogando futebol com o resto da equipe no ginásio do colégio. Mas Keogh... não pertencia a nenhuma equipe.
De repente, Hannant sentiu compaixão pelo menino. Compaixão... ou culpabilidade? Por Deus, não! Keogh se tinha liberado de uma boa muitas vezes. Um destes dias ficaria a sonhar acordado... e nunca mais poderia voltar para a realidade. Contudo...
Hannant suspirou, e deixou que seus pés o conduzissem pelos atalhos que havia entre as fileiras de tumbas até onde estava sentado o moço. E quando esteve mais perto pôde ver que, uma vez mais, Harry estava perdido em um de seus sonhos, refugiado na fresca sombra da árvore. Hannant se sentiu furioso, até que viu que o livro que Keogh tinha em seus joelhos era o de deveres de matemática. Ao parecer, o menino tentava cumprir com sua penitência.
—Como vai isso, Keogh? —perguntou Hannant, e se sentou sobre a mesma pedra.
Este rincão do cemitério não lhe era desconhecido ao professor de matemática; em muitas, muitas ocasiões tinha vindo a sentar-se aqui. Em realidade, o intruso não era ele, a não ser Keogh. Mas não acreditava que o menino soubesse, e nem sequer que pudesse entendê-lo.
Harry se tirou o lápis da boca, olhou ao professor e, inesperadamente, sorriu.
—Bom dia, senhor. Perdão, mas o que me dizia?
Hannant tinha razão; o menino tinha estado ausente. O rei dos sonhadores. A vida secreta do Harry Keogh!
—Perguntei-lhe como ia isso —disse Hannant, tentando falar sem grunhir.
—Oh, muito bem, senhor!
—Menos formalidade, Harry. Deixe o «senhor» para a classe, e falemos com franqueza. O que quero é saber como vai com os problemas que lhe dei.
—Os deveres? Já os resolvi.
—Aqui?
Hannant estava surpreso, mas se pensava melhor a coisa, o lugar parecia muito apropriado.
—Este é um lugar muito tranquilo —respondeu Harry.
—Me quereria mostrar isso por favor?
—Se você quiser... —Harry se encolheu de ombros e lhe estendeu o livro de problemas.
Hannant os revisou e ficou duplamente surpreso. O trabalho estava muito limpo, quase imaculado. Havia duas respostas, e se a memória não o enganava, ambas eram corretas. Claro está que o procedimento para chegar à solução era igualmente importante, mas no momento não o comprovou.
—Onde está a terceira pergunta?
Harry franziu o sobrecenho.
—refere-se a da pistola de engordurar, onde...? —começou a dizer.
Mas Hannant, impaciente, interrompeu-o.
—Não dê voltas ao assunto, Harry Keogh. Das dez perguntas, só tinha que resolver três. As demais se referem a caixas, não têm nada que ver com circunferências ou cilindros. Ou possivelmente me equivoco? Este livro é também novo para mim. dê-me isso por favor.
Harry baixou a cabeça, mordeu-se o lábio e lhe deu o livro. Hannant passou depressa as páginas.
—A pistola de engordurar —disse—. Sim, este é o problema —e golpeou com o dedo indicador a página.
Havia um diagrama, com as medidas em centímetros.

As medidas eram internas; o tambor e o canhão eram cilíndricos, e estavam cheios de graxa. Que longitude teria o jorro de graxa emitido ao esvaziar a pistola?
Harry o olhou.
—Não pensei que tinha que resolver este problema —disse por fim.
Hannant se sentiu furioso. Dois problemas resolvidos sobre um total de três não estava nada bem. Tivesse preferido três respostas equivocadas antes que isto.
—Por que não diz que era muito difícil? —disse, tratando de manter a calma—. Já tive muitos mentiras por hoje. por que não aceita que não sabe como resolvê-lo?
De repente, o menino pareceu não encontrar-se bem. A cara lhe brilhava, suarenta, e tinha os olhos levemente frágeis.
—Posso fazê-lo —disse Harry com voz calma, e logo, mais rapidamente e com certa aspereza—: Até um idiota poderia resolvê-lo! Eu não pensei que era parte dos deveres, isso é tudo.
Hannant não podia acreditar o que tinha ouvido; durante um segundo pensou que não tinha entendido a resposta do menino.
—E a fórmula?
—Não é necessária —respondeu Harry Keogh.
—Merda, Harry! É Pi pelo rádio ao quadrado pela longitude igual ao conteúdo. Isso é tudo o que precisa saber. Olhe —disse Hannant, e riscou rapidamente no livro:

Contido do tambor Contido do canhão
3,14159x0,75x0,75x4,5 + 3,14159 x 0,25 x 0,25
3,14159x0,25x0,25x1,5 3,14159 x 0,25 x 0,25

Devolveu ao Harry o lápis e disse:
—Assim. depois disso, quase todo se anula a si mesmo. O divisor, claro está, é a superfície do corte transversal do jorro de graxa.
—Isso é uma perda de tempo —disse Harry de tal modo que Hannant se deu conta de que aquilo não era mera rebeldia; de fato, aquela não parecia a voz do Harry Keogh.
Essa voz tinha autoridade. Por um instante, Hannant se sentiu quase intimidado. O que estava passando na cabeça do menino? O que significava esse olhar de não-estar-de-tudo-ali que se percebia depois dos cristais dos óculos?
—Explique-se! —exigiu Hannant—. E com claridade!
Harry olhou o diagrama, não a solução que tinha sugerido o professor.
—A resposta é 106,68 centímetros —respondeu, com o mesmo tom de autoridade de antes.
Tal como Hannant tinha afirmado antes, esse livro era novo para ele e ainda não o conhecia bem, mas tivesse apostado que o menino estava no certo. E isso só podia significar que...
—Depois da praia voltou com o Collins à classe —lhe disse com voz acusadora—. Eu lhe disse que fechasse com chave, mas antes você abriu a gaveta de minha mesa e olhou as respostas no livro que tenho ali. Nunca o tivesse acreditado capaz de algo assim, Keogh, mas...
—equivoca-se. —Harry o interrompeu com a mesma voz inexpressiva, calma e pedante que tinha utilizado antes; logo, tamborilou com seu dedo indicador o diagrama—: você Comprove-o mesmo. Para resolver os dois primeiros problemas faziam falta fórmulas, mas não para este. Se tivermos um diâmetro de quatro decimais e queremos achar a superfície da correspondente circunferência, necessitamos uma fórmula. Se tivermos a superfície e queremos achar o rádio, necessitamos virtualmente a mesma fórmula, mas à inversa. Mas isto? Escute:
»O diâmetro do tambor é três vezes maior que o do canhão. A superfície da circunferência é por conseguinte nove vezes maior. A longitude do canhão é três vezes maior. Nove vezes três é vinte e sete. O tambor contém vinte e sete vezes mais graxa que o canhão. O tambor e o canhão juntos conterão, por conseguinte, vinte e oito vezes o volume do canhão. O canhão tem 3,81 centímetros. E isso por 28 é igual a 106,68 centímetros, senhor.
Hannant olhou ao moço com um rosto sem expressão. Contemplou logo o diagrama do livro. A cabeça lhe dava voltas, e teve a sensação de que um vento gelado soprava sobre sua coluna vertebral e o fazia estremecer. Que diabos passava...? Por Deus, o professor de matemática era ele! Mas o raciocínio do Keogh era impecável. Para resolver aquele problema não faziam falta fórmulas, nem sequer eram necessárias as matemática. Era questão de cálculos mentais... e de compreender a natureza da circunferência... e não deixar que as árvores impedissem de ver o bosque. Seguro que a resposta do Harry era correta! Tinha que sê-lo! Se Hannant se esqueceu de suas fórmulas e tivesse pensado um pouco, ele também teria podido chegar a ela. Mas Keogh havia resolvido em um instante. E sua mofa tinha sido sincera!
Hannant se deu conta de que se não dirigia bem a situação, provavelmente perderia ao menino ali mesmo. E também se deu conta de que se isto acontecia, a perda não seria só dele. Aqui havia uma mente potencialmente brilhante. Apesar de que sua confusão era grande, tinha que arrumar-lhe para conservar sua autoridade.
obrigou-se a sorrir, e disse:
—Muito bem! Mas eu não pretendia avaliar seu quociente intelectual, Harry Keogh. Só queria saber se você sabia as fórmulas. Mas você realmente me intriga. por que, sendo tão inteligente, são tão pobres seus trabalhos em aula?
Harry ficou de pé. Seus movimentos eram rígidos, quase automáticos.
—Posso ir, senhor?
Hannant também ficou de pé, e atrás encolheu os ombros e afastou-se para o lado.
—Seu tempo livre lhe pertence —disse—. Mas quando tiver cinco minutos, talvez lhe convenha repassar as fórmulas.
Harry se afastou, muito erguido e com movimentos duros. Depois de dar uns quantos passos, deu a volta e olhou para trás. Um raio de sol que se filtrava entre a folhagem se refletiu nos cristais de seus óculos, e seus olhos pareceram estrelas.
—Fórmulas? —perguntou com sua nova e estranha voz—. Poderia lhe dar fórmulas que você nem sequer se imaginou.
E Hannant, sacudido por um estremecimento, teve a certeza de que Keogh não estava fanfarroneando.
O professor de matemática tinha querido gritar o menino, ir correndo para onde se achava, golpeá-lo possivelmente. Mas seus pés pareciam ter enraizado no lugar. As forças pareciam lhe haver abandonado. Este assalto tinha perdido por W.O. sentou-se outra vez, trêmulo, no bloco de pedra, e apoiou a cabeça contra a lápide enquanto Harry Keogh se afastava. Permaneceu ali um instante, e logo ficou em pé de um salto, com um movimento convulsivo, e se separou da tumba. Tropeçou e caiu de barriga para baixo sobre a grama. Keogh já tinha desaparecido, perdido entre as fileiras de tumbas.
A tarde era cálida —não, era horrivelmente quente—, mas George Hannant se sentiu frio como um morto. Havia algo no ar, em seu coração, que o gelava. Aqui, exatamente neste lugar. E então recordou onde e quando tinha ouvido alguém falar como Harry Keogh, com sua autoridade, sua precisão e sua lógica. Fazia já quase trinta anos, e Hannant tinha tido pouco mais ou menos a idade de seu aluno. E o homem tinha sido seu herói, quase seu deus.
ficou em pé, ainda estremecido, recolheu os livros do Keogh e os guardou em sua carteira. Depois, com cautela, retrocedeu afastando-se da tumba.
Gravada na lápide, com letras parcialmente cobertas por líquenes, havia uma singela inscrição que George conhecia de cor:

James GORDON HANNANT
13 de junho de 1875 - 11 de setembro de 1944
Professor no Colégio Harden durante trinta anos,
diretor do mesmo durante dez anos, é agora um a mais
entre os habitantes do paraíso.

O epitáfio tinha sido uma brincadeira —ou o que ele acreditava uma brincadeira— de seu pai. Seu principal interesse, igual a seu filho, tinham sido a matemática. Mas George nunca seria tão bom como ele.

Capítulo três

No dia seguinte, a primeira hora da manhã, George Hannant tinha uma breve aula de matemática, mas antes de começar o professor tinha feito uma pausa para refletir, para tentar dar uma explicação lógica ao acontecido no dia anterior, de modo que quando os moços já estavam trabalhando, e só se ouvia o ruído das canetas sobre as folhas do papel, Hannant tinha a convicção de ter uma resposta racional para o que a noite antes lhe tinha parecido um incidente muito estranho. Keogh era, evidentemente, uma dessas pessoas especiais que podiam ir direito à raiz das coisas, um pensador e não um fazedor. E um pensador cujos processos mentais, embora opostos aos da maioria, eram corretos.
Se conseguia que se interessasse profundamente em um tema, para sentir-se impulsionado a fazer algo, o resultado seria sem dúvida extraordinário. Claro está que seguiria cometendo enganos em uma simples soma ou em uma subtração —dois mais dois em algumas ocasiões somariam cinco— mas soluções que para os outros eram invisíveis, ao Harry resultariam evidentes imediatamente. Por isso, Hannant o tinha achado parecido ao James G. Hannant, seu próprio pai. Também ele havia possuído uma extraordinária intuição, era um matemático nato. E tampouco se preocupou pelas fórmulas.
Para Hannant também era evidente que ele tinha convertido uma faísca em uma verdadeira fogueira no cérebro do Keogh, porque o menino parecia estar trabalhando duro —ou ao menos o tinha estado durante os primeiros quinze minutos da aula—. Depois... bom, pôs-se a sonhar acordado, como em tantas outras ocasiões. Mas quando Hannant ficou a suas costas e revisou o trabalho, todos os problemas que tinha dado estavam corretamente resolvidos, apesar de que Keogh não lhes dedicasse muito tempo. ia ser interessante, quando essa semana começassem com trigonometria, ver do que era capaz Keogh. Agora que a circunferência não tinha mistérios para ele, talvez se interessasse pelo triângulo.
Mas ainda havia algo que intrigava ao George Hannant, e para encontrar a resposta devia ver o Jamieson, o diretor do colégio. Deixou aos moços trabalhando sozinhos por uns minutos —com a habitual advertência sobre o comportamento desejado durante sua ausência— e se dirigiu ao escritório de seu superior.
—Harry Keogh? —Jamieson parecia um tanto surpreso—. Como foi no exame da Escola de Artes e Ofícios? —O diretor agarrou uma magra pasta de uma gaveta de sua mesa, folheou-a e logo disse—: temo que Keogh não se apresentou ao exame. Parece que estava doente, com febre do feno, ou algo semelhante. Sim, aqui está: febre do feno, faz três semanas. Faltou dois dias ao colégio. Desgraçadamente os exames tiveram lugar no Hartlepool, o segundo dia que Keogh esteve ausente. Mas por que me pergunta isso, George? Você acredita que o menino tivesse tido alguma possibilidade?
—Acredito que teria sido aprovado sem nenhum esforço —respondeu Hannant, franco até o ponto de parecer grosseiro.
Jamieson o olhou desconcertado.
—Não acredita que já é um pouco tarde?
—Para preocupar-se por isso? Sim, suponho que sim.
—Não, referia a seu interesse pelo Harry Keogh. Não sabia que você tivesse uma boa opinião dele. —Jamieson agarrou de um arquivo uma pasta, esta vez bastante mais Estes grosa são os informe do último ano —disse enquanto passava as folhas; nesta ocasião não estava surpreso—: Tal como eu pensava! Por isso aqui vejo, nenhum de seus colegas pensava que Keogh tivesse a menor possibilidade em nada... e isto o inclui também a você, George.
—Tem razão —respondeu Hannant, e seu pescoço ficou vermelho—, mas isso era o ano passado. Além disso, os exames da Escola de Artes e Ofícios têm mais em conta a inteligência que os conhecimentos acadêmicos. Se você fizesse ao Harry Keogh um teste de inteligência que medisse seu quociente intelectual, acredito que se teria uma surpresa. Ao menos, quanto a seus dotes para as matemática. Faz tudo por instinto, por intuição, mas de maneira brilhante, o asseguro.
Jamieson fez um gesto de assentimento.
—Bom, deve ser notável para que um professor se interesse de verdade por um menino do Harden —disse o diretor—. E que conste que não quero menosprezar a ninguém, e menos aos meninos, mas os pobres provêm de um meio que não os favorece nada. De passagem, sabe quantos de nossos moços aprovaram esse exame? Três! E isso significa que a proporção é de um aprovado entre sessenta e cinco.
—Teriam sido quatro se Harry Keogh tivesse se apresentado.
Jamieson não parecia convencido, mas sim impressionado.
—Está bem. Suponhamos que você está certo com respeito a suas condições para a matemática. E na verdade, você tem razão quando diz que esse exame aponta mais a avaliar a inteligência natural que os conhecimentos memorizados. Mas, e o que me diz das outras matérias? Segundo estes informe, Keogh foi um fracasso em quase todas. O último da turma na maioria.
Hannant assentiu com um suspiro, e logo disse:
—Olhe, sinto lhe haver feito perder tempo com este menino. De todos os modos, já não se pode fazer nada, posto que não se apresentou ao exame. Mas penso que é uma pena; o menino é realmente capaz.
—Direi-lhe o que vamos fazer —disse Jamieson, enquanto acompanhava ao Hannant para a porta, sua mão no ombro do professor de matemática—: lhe Diga que venha ver-me à tarde. Falarei com ele, e verei o que me parece. Não, espere; possivelmente possa fazer algo um pouco mais construtivo. De modo que é um matemático intuitivo? Muito bem...
Jamieson retornou a sua mesa, agarrou a pluma e riscou algo em uma folha em branco com cabeçalho do colégio.
—Tome —disse—. Veja como resolve isto. Que o faça à hora do almoço. Se obtiver uma resposta, falarei com ele e veremos o que se pode fazer pelo menino.
Hannant pegou a folha e saiu ao corredor. Olhou o que o diretor tinha escrito e fez um gesto de decepção. Dobrou a folha, guardou-a, e logo voltou a tirá-la, abriu-a e ficou olhando-a. Bom, talvez era precisamente o tipo de problema que Keogh podia resolver. Hannant estava seguro de que ele podia fazê-lo —pensando um pouco, e provando umas quantas vezes—, mas se Keogh podia resolvê-lo, então estavam frente a algo grande. Seu alegação por escrito a favor do moço estaria mais que fundamentado. Em caso de que Keogh fracassasse, Hannant simplesmente deixaria de preocupar-se com o menino. Havia outros alunos igualmente merecedores de sua atenção; disso estava seguro...

Hannant bateu na porta do Jamieson à uma e meia em ponto, e entrou rapidamente ao escritório logo que o diretor lhe disse que entrasse. Jamieson acabava de entrar, depois de ter ido comer, e apenas se se tinha acomodado. ficou em pé quando Hannant foi em direção a sua mesa, e agarrou a folha que lhe tendia o professor de matemática.
—Fiz o que você me sugeriu —disse Hannant, emocionado—, e esta é a solução que encontrou Keogh.
O diretor do colégio leu depressa o enunciado do problema que tinha dado ao moço.

Quadrado mágico
Um quadrado está dividido em 16 quadrados iguais, menores. Cada quadrado pequeno contém um número, de 1 a 16 inclusive. Ordene-os de maneira que a soma das linhas horizontais, das verticais e das diagonais dê sempre o mesmo número.
A resposta, em lápis —junto a algo que parecia um começo errôneo que o menino tinha descartado— estava escrita sob o enunciado, e levava a assinatura «Harry Keogh».
16 2 3 13
5 11 10 8
9 7 6 12
4 14 15 1


Jamieson contemplou a folha, abriu a boca para falar, não disse nada e seguiu olhando-a. Hannant viu que somava rapidamente as colunas, as linhas horizontais e as verticais; quase podia ouvir o ruído de seu cérebro em marcha.
—Isto está muito, muito bem —disse por fim o diretor.
—Mais que bem! —respondeu Hannant—. É perfeito!
O diretor o olhou sorridente.
—Perfeito, George? Todos os quadrados mágicos o são; essa é precisamente sua magia, sua atração.
—Sim —esteve de acordo Hannant—, mas a perfeição tem graus. Você lhe pediu que as verticais, as horizontais e as diagonais somassem o mesmo. Lhe deu isso, e mais. Os quadrados dos ângulos somam o mesmo. Os quatro do centro também. Se considerarmos o quadrado dividido em quatro blocos de quadrados menores, os quatro blocos também somam o mesmo. Se até os números dos quadrados dos borde, somados de dois em dois, somam o mesmo que seus opostos! E se o estuda com mais cuidado, isso não é tudo. É perfeito!
Jamieson inspecionou de novo o quadrado, franziu o sobrecenho durante um momento, e logo sorriu agradado.
—Onde está Keogh? —perguntou por fim o diretor do colégio.
—Está esperando fora. Pensei que você talvez quisesse vê-lo...
Jamieson se sentou a sua mesa e suspirou.
—Está bem, George; faça entrar seu menino prodígio.
Hannant abriu a porta e fez passar ao Keogh. O menino entrou e ficou de pé frente à mesa do Jamieson; parecia inquieto.
—Keogh —disse o diretor do colégio—, o senhor Hannant me há dito que você tem talento para os números.
Harry não respondeu.
—Por exemplo, este quadrado mágico. Eu dediquei a coisas como essa, por puro entretenimento, sabe?, desde que tinha sua idade, pouco mais ou menos. E me parece que nunca encontrei uma solução tão boa como a sua. É notável. Ajudou-lhe alguém?
Harry elevou a cabeça e olhou ao Jamieson aos olhos. Por um instante teve uma expressão... temerosa? Talvez, mas imediatamente seguinte já estava à defensiva.
— Não, senhor. Ninguém me ajudou.
Jamieson fez um gesto de assentimento.
—Já vejo. E onde estão seus rascunhos, o que fez antes de resolvê-lo? Porque um não adivinha sem mais uma solução tão inteligente como esta, não é verdade?
—Não, senhor —respondeu Harry—. O rascunho está junto à solução, riscado.
Jamieson olhou a folha, coçou a cabeça, dirigiu um rápido olhar em direção ao Hannant e voltou a fixar seus olhos no Harry.
—Mas seu rascunho não é mais que um quadrado com os números escritos segundo sua ordem natural. Não vejo como...
—Senhor —interrompeu Harry—, pareceu-me que essa era a maneira lógica de começar. Quando terminei de ordenar os números me dava conta do que tinha que fazer.
O diretor e o professor de matemática voltaram a intercambiar olhadas significativas.
—Continue, Harry —pediu Jamieson.
—Olhe, senhor. Se você escrever os números, tal como o fiz eu, todos os grandes vão à direita e abaixo. De modo que me perguntei: como posso passar a metade dos da direita à esquerda, e a metade dos de abaixo para acima? E como posso fazer as duas operações simultaneamente?
—Sim..., parece lógico. —Jamieson coçou outra vez a cabeça—. E o que fez, então?
—Como diz?
—Perguntei-lhe como o fez, moço.
Jamieson odiava repetir suas palavras aos alunos; estes tinham a obrigação de escutá-lo à primeira vez.
Harry empalideceu de repente. Disse algo, mas sua voz soou como um grasnido. Tossiu, e sua voz se fez uma oitava ou dois mais grave. Quando voltou a falar, já não parecia um menininho.
— Está ali, ante seus olhos. Não pode vê-lo você sozinho?
Jamieson abriu muito os olhos e a boca, mas antes de que estalasse, Harry prosseguiu:
—Investi as diagonais, isso é tudo. Era a resposta evidente, a única solução lógica. Qualquer outra teria sido como em um jogo de azar, jogar a acertar. E acertar por azar não é suficiente; não para mim.
Jamieson ficou de pé, sentou-se de novo, e apontou enfurecido em direção à porta.
—Hannant, leve daqui este menino! E logo volte e falaremos.
Hannant agarrou ao Keogh de um braço e o arrastou ao corredor. Teve a sensação de que se não tivesse pego ao menino, este teria desmaiado. Deixou-o apoiado contra uma parede, depois de sussurrar um peremptório «Espere aqui!». Harry parecia enjoado e doente.
Hannant retornou ao escritório do Jamieson, e encontrou o diretor secando o suor da testa com uma folha de mata-borrão.
O homem olhava fixamente o problema que havia resolvido Harry e murmurava:
—De maneira que investiu as diagonais! Sim que as investiu!
Mas quando Hannant fechou a porta depois de entrar, Jamieson lhe olhou e esboçou um pálido sorriso. Era evidente que tinha recuperado o domínio de si mesmo, e continuou secando o suor da cara e do pescoço.
—Este maldito calor! —disse, e fez sinal ao Hannant de que se sentasse.
Hannant, que debaixo da jaqueta tinha a camisa colada às costas, disse:
—É terrível, verdade? O colégio é um forno. Também os meninos passam mal.
O professor de matemática permaneceu de pé.
Jamieson se deu conta de aonde queria chegar Hannant, e assentiu.
—Sim, mas isso não desculpa a insolência, ou a arrogância.
Hannant sabia que seria melhor calar, mas não pôde.
—Não acredito que Harry se propor ser insolente —disse—. Penso que se limitava a expor um fato. Aconteceu o mesmo ontem, quando o interpelei. Parece-me que logo que se alguém o pressiona, o menino se defende. É um moço brilhante, mas tenta fingir que não o é. Faz tudo o que pode para ocultar sua inteligência.
—Mas por que? Isso não é normal. A maioria dos meninos de sua idade estão ansiosos por exibir-se. Ele o faz por acanhamento, ou talvez há algo mais profundo?
—Não sei —disse Hannant com um gesto de negação—. Me Deixe que lhe conte o acontecido ontem.
Quando terminou, o diretor disse:
—Uma situação similar a que vimos faz uns minutos.
—Assim é.
Jamieson ficou pensativo.
—Se realmente for tão inteligente como você crê, e certamente que parece ter intuições brilhantes, lamentaria muitíssimo havê-lo privado da possibilidade de ir adiante na vida. —Jamieson se inclinou para trás na cadeira—. Muito bem. Já está decidido. Keogh não pôde apresentar-se aos exames por causas alheias a sua vontade, assim falarei com o Jack Harmon, na Escola de Artes e Ofícios, e tentarei arrumar um exame especial para o moço. Claro está que não posso lhe prometer nada, mas...
—Isso é melhor que nada —Hannant terminou a frase por ele—. Obrigado, Howard.
—Está bem, está bem. Já lhe avisarei se consigo algo. Hannant saiu ao corredor onde o estava esperando Keogh.

Nos dois dias que seguiram Hannant tratou de esquecer ao Keogh, mas não foi possível. No meio de suas aulas, ou em sua casa durante as longas tardes do verão, e inclusive de noite, o rosto jovem e as vezes velho do moço estava sempre presente, flutuando na periferia da consciência do Hannant. A noite da sexta-feira surpreendeu ao professor acordado às três da madrugada, com todas as janelas abertas para que entrasse um pouco de ar fresco, se é que o havia, e passeando-se de pijama pela casa. despertou-se com uma imagem do Harry Keogh na mente: o menino, com a folha do quadrado mágico que lhe tinha dado Jamieson na mão, enquanto cruzava o pátio do colégio em direção à porta de trás, sob a arcada de pedra; e logo, do menino ao cruzar a poeirenta rua para entrar pelas portas de ferro do cemitério. E Hannant tinha pensado que sabia aonde se dirigia Harry.
E de repente, embora a noite não estava mais fresca, Hannant se havia sentido gelado, com um frio ao que começava a acostumar-se. Podia ser somente um frio psicológico, suspeitou, uma advertência de que algo estava horrivelmente mal. Certamente que havia algo sinistro no Keogh, mas era algo que desafiava toda conjetura. Uma coisa era certa: George Hannant esperava que o menino pudesse passar nos exames que lhe preparassem Howard Jamieson e Jack Harmon, da Escola de Artes e Ofícios do Hartlepool. E não era simplesmente que desejava que o moço desenvolvesse toda sua capacidade. Não, seu sentimento era mais primitivo. Com sinceridade, queria que Keogh se fosse, que partisse da escola, que se afastasse dos outros meninos. De todos esses ordinários, perfeitamente normais meninos da escola secundária do Harden.
Era Harry Keogh uma má influência? De maneira nenhuma! Em quem poderia influir, se outros meninos o consideravam pouco menos que um idiota? Algo corruptor, então, como uma mancha que pode fazer-se maior, como a proverbial maçã podre no fundo do tonel? Possivelmente, mas aquele exemplo não era inteiramente apropriado. Ou talvez o fosse. Porque, depois de tudo, não muda nada que uma maçã não tenha consciência de seu apodrecimento; a corrupção se estende de todos os modos. Era esta uma comparação muito forte? Como podia ser que houvesse algo mau em Harry Keogh, algo do que o menino não se desse conta, ou não compreendesse? Na verdade, todo este assunto começava a lhe parecer definitivamente ridículo. Contudo... o que havia em Harry Keogh que tanto preocupava ao Hannant? O que havia em seu interior que procurava sair à luz? E por que Hannant tinha a sensação de que quando isso finalmente surgisse seria terrível? Hannant decidiu investigar os antecedentes do Keogh, ver o que podia descobrir no passado do menino. Possivelmente a causa das dificuldades estivesse ali. Claro está que também podia acontecer que no menino não houvesse nada anormal, e que todo o assunto fosse produto da imaginação hiperativa do professor de matemática. Podia ser conseqüência do calor, de que ultimamente dormia muito mal, do trabalho monótono, repetitivo e pouco compensador do colégio; podia dever-se a um destes fatores, ou a todos. Sim, possivelmente era assim, mas por que uma voz em seu interior insistia que Keogh era diferente? E por que em algumas ocasiões surpreendia Keogh olhando-o fixo, com uns olhos que muito bem podiam ser os de seu próprio pai, morto e enterrado?

Dez dias e duas terça-feira mais tarde, desencadeou-se a tragédia. Aconteceu quando os moços, acompanhados pelo professor de educação física Graham Lane e as professoras Dorothy Hartley e Gertrude Gower, fizeram a acostumada excursão à praia para recolher pedras. O sargento Lane, com a intenção aparente de recolher umas flores silvestres muito estranhas, mas mais provavelmente para impressionar a sua amante, subiu pelo escarpado. Quando estava pela metade do traiçoeiro penhasco, desprenderam-se umas pedras sob seus pés e o professor caiu sobre a pedregosa praia, muitos metros mais abaixo. O sargento tinha tentado agarrar-se à acidentada ladeira, mas uma estreita saliente se desprendeu e o homem caiu dando voltas no ar. Aterrissou de barriga para baixo, e morreu no ato.
O acidente parecia mais horrível ainda se se considerasse que na noite anterior o sargento e Dorothy Hartley tinham anunciado seu compromisso. Pensavam casar-se na primavera. E à sexta-feira seguinte, o sargento já estava enterrado. Hannant recordou mais tarde que, enquanto olhava descer o féretro do Lane ao túmulo recém aberto no velho cemitério, tinha pensado que teria sido muito melhor para ele se tivesse ficado no exército.
Mais tarde tinham servido sanduíches, bolos e café —e uma bebida um pouco mais forte para os que o desejassem— na sala de professores do colégio. E, é obvio, também teriam que tentar consolar ao Dorothy Hartley. De modo que nenhum dos professores ficou para ver o coveiro jogar as últimas pazadas de terra, e ninguém tinha presenciado como o último e solitário assistente ao enterro estava sentado em uma tumba próxima, o queixo nas mãos e os opacos olhos vermelhos, depois dos cristais dos óculos, no montículo de terra recém removida, com uma expressão que podia ser enfermo, mas também de curiosidade, ou espera.

Enquanto isso, Howard Jamieson não se mostrou negligente em sua tentativa de conseguir um lugar na Escola de Artes e Ofícios do Hartlepool, e se não uma vaga, ao menos a possibilidade de que o menino a conseguisse. O exame —fundamentalmente um teste de inteligência que pretendia medir as aptidões verbais e numéricas, e a percepção espacial— teria lugar na escola do Hartlepool sob a supervisão do John —também chamado Jack— Harmon, o diretor. Isto se tinha sabido nos bastidores da Escola Harden e Harry se converteu no alvo de diversas maledicências.
Já não era só quatro-olhos, mas sim tinha adquirido outros apelidos, entre eles o de «Favorito», o que indicava que o grandalhão Stanley tinha divulgado que Harry era o protegido de algum professor, ou do diretor. E com a retorcida lógica que Stanley sabia usar tão bem —e a velada ameaça de seus punhos, gordinhos mas muito contundentes—, não lhe havia custado muito convencer até aos mais tolerantes de que algo cheirava mal na tardia revelação do Keogh como alguém incomum.
Por que tinham de lhe chamar quatro-olhos ou de Favorito? — devido a vantagem de um exame especial. Outros moços tinham estado doentes esse dia, verdade? E acaso lhes davam outra oportunidade? Nada disso! Aquilo acontecia porque esse sonâmbulo estúpido era um puxa-saco dos professores, essa era a razão. Quem se preocupava de procurar na areia conchas fedorentos para a velha bruxa da Gower? Quatro-olhos Keogh, é obvio. E não o tinha defendido sempre o sargento? claro que sim. E agora, só porque se mostrava um pouco mais preparado em matemática, o presunçoso do Hannant ficava do seu lado. Claro, o idiota de quatro-olhos era o favorito de todos. Mas não do grandalhão Stanley, isso era certo.
Tudo isto soava muito lógico, e quando lhe acrescentaram as ofendidas vozes dos que, sem querer , perderam o exame, o valentão da classe teve logo um grande grupo de meninos que o apoiavam. Até o Jimmy Collins parecia pensar que havia algo que cheirava mal.
E logo chegou na terça-feira, exatamente uma semana depois da morte do professor de ginástica, e uma vez mais toda a escola se dirigiu à praia a recolher pedras na excursão que todos esperavam que fosse a última da temporada. Ao princípio tinha sido uma novidade, mas agora todos, professores e alunos por igual, estavam fartos das saídas. E a morte do Lane não tinha feito mais que arruinar definitivamente o passeio. A senhorita Gower estava presente, e Jean Tasker, a professora de ciências —um pouco mais velha que a Gower, mas menos dissimulada— substituía ao Dorothy Hartley, que tinha uns dias de licença. Também estava George Hannant, que substituía ao Graham Lane.
Como de costume, os meninos tiveram uma hora livre depois de recolher as pedras, e antes de retornar com elas à escola. G G Gower, como a chamavam seus alunos por seus iniciais e por sua risada irônica, dava instruções a um grupo de meninos que não sabiam nadar, e estavam junto a um dos charcos formados pela maré; George Hannant e Jean Tasker caminhavam junto ao mar; conversavam, juntavam conchas e passavam o tempo o melhor que podiam. Foi então quando o grandalhão Stanley, que não podia resistir ao desejo de vingar-se, pensou que tinha chegado a ocasião de «dar uma lição ao Keogh».
Harry tinha partido sozinho, com a cabeça baixa e as mãos às costas, a procurar conchinhas pela praia, e quando voltou junto à pilha de pedras viu que Green e uns quantos mais o estavam esperando.
—Olhe quem vem! — zombou o valentão, se aproximando até a primeira fila do grupo—. O mimada dos professores, quatro-olhos Keogh, e traz um monte de bonitas conchinhas para o velho G G! Como vão as coisas, quatro-olhos? Crê que passará nesse exame tão especial, que prepararam só para você? : —Você sabe que passará, verdade, quatro-olhos? Ou melhor dizendo, que lhe aprovarão façam o que faça —disse com voz rancorosa outro do grupo.
—Claro, se for Favorito! —interveio um terceiro—. Não pode falhar, se for o mimada dos professores!
Jimmy Collins, que se aproximava secando-se com uma toalha, percebeu o estado de ânimo da multidão, mas não disse nada. dirigiu-se aonde estava sua roupa, ficou uma toalha ao redor da cintura e começou a vestir-se.
—E bem? —disse Stanley empurrando ao Harry—, o que diz, quatro-olhos? Aprovarão você esses professores tão bonitos, para que possa ir com as bichas da escola do Hartlepool, e se afastar de nós, que somos uns meninos tão brutos?
O empurrão fez que Harry retrocedesse cambaleando, e deixasse cair as conchas que tinha recolhido. Stanley lançou um grito de guerra, saltou para frente e as esmagou com os sapatos na areia. Harry cambaleou, com aspecto doentio, e virou o rosto. Sob os óculos seus olhos estavam úmidos e seu rosto, que habitualmente não tinha a cor morena de seus companheiros, ficou ainda mais pálido.
—É a merda preferida dos professores, inútil! —grasnou rancoroso Green—. O favorito do velho Jamieson! E por isso chora? O que, já está se mijando? Quatro-olhos, idiota...!
—Te cale, imbecil! —grunhiu Harry enquanto se voltava e se enfrentava com o valentão—. Já é bastante feio; não faça que te arruíne a cara.
—O que? —Green não podia acreditar o que ouvia. O que havia dito Keogh? Não, não podia ser. Se nem sequer parecia sua voz! Devia ter uma rã na garganta, ou possivelmente se estava afogando de medo.
—Por que não o deixa em paz? —disse Jimmy Collins, colocando-se entre os do grupo, mas o agarraram entre dois ou três e não o deixaram avançar mais.
—Não se meta nisto —disse Harry com sua nova e áspera voz—. Não houve nada.
—Que não houve nada? — gritou o grandalhão Stanley—. Pois eu diria que lhe acontecerão umas quantas coisas, cara. Você está encrencado!
E com a última palavra lançou seu punho contra a cabeça do Harry. O moço se esquivou facilmente, adiantou-se e golpeou Stanley na barriga com os dedos estendidos e rígidos. O outro se dobrou de dor, e Harry lhe deu um joelhada na cara. O golpe soou como um tiro. Green se endireitou e caiu para trás, com os braços abertos. E aterrissou com grande estrépito na areia.
Harry se aproximou. Passaram uns segundos, mas Green seguia atirado na areia. Logo se sentou e sacudiu a cabeça, aturdido. Seu nariz estava deformado e sangrava em abundância. Tinha os olhos cheios de lágrimas, e com uma expressão confusa.
—Você... você... você —balbuciou, e cuspiu sangue.
Harry se agachou, e lhe mostrou um punho fechado.
—Você o quê? —grunhiu com um flanco da boca—. Continue, valentão, diga algo. Me dê uma razão para te socar outra vez.
Green não disse nada; levantou uma mão tremente e tocou o nariz quebrado, o lábio partido. Logo começou a chorar ostensivamente.
Mas Harry ainda não tinha terminado com ele.
—Escuta, idiota —disse—. Se alguma vez, embora seja uma única vez, voltar a me chamar quatro-olhos, ou Favorito, ou qualquer outro apelido que te ocorra, se alguma vez me dirigir a palavra, te darei tantos cascudos que estará cuspindo dentes durante um mês. Entendeu, idiota?
O grandalhão Stanley voltou a cara e chorou com mais força ainda.
Harry elevou a vista, olhou ao resto do grupo, tirou-se os óculos, guardou-as em um bolso e fez um gesto de brincadeira. Não pestanejava nem dava a sensação de que precisasse usar óculos. Seus olhos brilhavam como bolinhas de gude, cheios de vida.
—E o que disse para este merda, também vale para vocês. Claro que se alguém quiser que briguemos agora...
Jimmy Collins ficou a seu lado.
—Ou se houver dois que queiram brigar... —disse.
O grupo permaneceu em silêncio. Todos estavam boquiabertos. Lentamente deram a volta e começaram a falar, entre risadas nervosas, disfarçando como se nada tivesse acontecido. O incidente tinha acabado e, curiosamente, todos se alegravam disso.
—Harry —disse Jimmy em voz baixa—, nunca vi nada igual! Nunca. Brigaste como um homem..., quero dizer, como um adulto. Igual ao sargento quando treinava no ginásio. Combate sem armas, chamava-o ele. —Deu-lhe uma cotovelada nas costelas, mas com cautela—. Sabe uma coisa?
—O que? —perguntou Harry, tremendo de pés a cabeça e com sua voz de sempre.
—É muito estranho, Harry Keogh. É verdadeiramente estranho!
Harry Keogh se apresentou ao exame quinze dias depois.
O tempo tinha mudado na primeira semana de setembro, e logo foi piorando de maneira progressiva até que pareceu que o céu estava permanentemente cheio de chuva. Também choveu no dia do exame, um aguaceiro que lavava as janelas do escritório do diretor, onde Harry estava sentado depois de uma grande mesa com seus papéis e suas canetas.
Jack Harmon o vigiava, sentado atrás de sua própria mesa, enquanto lia —e acrescentava seus comentários e recomendações— as atas da última reunião de professores. Mas de vez em quando interrompia seu trabalho, levantava a cabeça para olhar ao menino, e se perguntava como terminaria aquilo.
Em realidade, Harmon não tinha muitas vontades de ter ao Harry Keogh na Escola de Artes e Ofícios. Não havia nisso nada pessoal, apesar de que sentia de que o tinham forçado a aceitar esta situação insólita: tomar um exame especial a um menino que, pura e simplesmente, não se tinha apresentado à convocatória oficial. Harmon pensava que isto podia sentar um mal precedente. O tempo já era muito curto sem trabalhos extras deste tipo. Os exames eram assim: aconteciam uma vez ao ano, e os filhos de mineiros que fossem aprovados tinham a oportunidade de completar sua educação na escola, e talvez conseguir assim um destino melhor que o de seus pais. Este procedimento tinha sido estabelecido fazia muito tempo, e funcionava bem. Mas o amparo e ajuda que Jamieson dava ao jovem Harry Keogh era algo novo...
Por outro lado, o diretor da Escola Harden para meninos era um velho amigo, e era certo que Harmon lhe devia alguns favores. Mesmo assim, quando Jamieson lhe tinha exposto pela primeira vez o assunto, Harmon não se mostrou muito receptivo, mas o outro insistiu. Por último, a curiosidade do Harmon despertou: queria ver com seus próprios olhos a esse «jovenzinho prodígio». Ao mesmo tempo, e o tinha deixado bem claro, não queria iniciar um precedente. Tinha procurado uma saída honrosa, e acreditava havê-la encontrado. Tinha preparado pessoalmente o exame; tinha escolhido os problemas mais difíceis tomados nos exames dos últimos seis anos. Era impensável que um menino com a educação do Keogh pudesse resolvê-los todos corretamente, e embora o exame fosse uma farsa, Harmon teria a oportunidade de ver Keogh trabalhando, e satisfazer assim sua curiosidade. Também Jamieson ficaria satisfeito, ao menos com respeito a seu pedido de exame para o menino. O fracasso do Keogh destruiria a credibilidade de futuras petições dessa classe. Por todas estas razões, Jack Harmon, enquanto trabalhava em suas atas, mantinha um olho atento sobre o menino.
Fixou-se uma hora para cada tema; entre um e outro haveria descansos de dez minutos durante os quais se serviriam chá e bolachas no mesmo lugar do exame, o escritório do diretor. Havia um lavabo, utilizado pelos professores, na porta ao lado. O primeiro exercício tinha sido o exame de inglês, depois do qual Keogh tinha bebido em silêncio seu chá enquanto olhava pela janela, com rosto inexpressivo, a chuva que caía. Agora estava na metade do exame de matemática, ou ao menos, deveria estar. Aqui a questão se apresentava duvidosa.
Harmon o tinha observado. A caneta do menino apenas tinha encostado no papel, e se o tinha feito, foi durante os minutos em que o diretor estava abstraído em seu próprio trabalho. O moço tinha trabalhado duro com o primeiro exame: o exercício de inglês ao parecer lhe tinha interessado, e tinha escrito e voltado a escrever com cara de concentração enquanto mordia a ponta da caneta. De fato, ainda estava trabalhando quando Harmon declarou terminado o prazo. Era evidente, entretanto, que o exame de matemática o deixara perplexo. Fizera uma ou duas tentativas, Harmon o reconhecia, e neste momento se pôs a trabalhar uma vez mais, mas ao cabo de um ou dois minutos se endireitou na cadeira e voltou a olhar pela janela, pálido e silencioso como se estivesse esgotado.
Depois pareceu recuperar-se, leu a seguinte pergunta e ficou a escrever com ritmo frenético, como se estivesse inspirado, e de novo fez uma pausa, esgotado. E assim uma e outra vez. Harmon compreenderia muito bem que estivesse tenso, ou ansioso, ou o que fosse que o fazia atuar desse modo: as perguntas eram muito difíceis. Havia seis, e seriam necessários ao menos quinze minutos para responder a cada uma delas. E isso se a capacidade e os conhecimentos do menino fossem muito superiores aos de seus colegas do Colégio Mordem.
Harmon não podia entender, entretanto, por que Keogh continuava tentando, por que atacava furioso uma e outra vez o exame para abandonar quase imediatamente, frustrado e cansado. Não se dava conta de que não podia ganhar? O que pensava enquanto olhava pela janela? Onde estava o menino quando seu rosto ficava em branco, como vazio de toda expressão?
Talvez Harmon deveria dar por terminado o exame, acabar com aquilo. Era evidente que o menino não iria a nenhuma parte.
O diretor olhou seu relógio. Já se tinham passado trinta e cinco minutos do tempo acordado para o exame de matemática. O menino continuava sentado, os braços cansados encolhidos e os olhos entrecerrados sob as lentes dos óculos. Harmon ficou de pé e se aproximou em silêncio, por trás do assento de Harry Keogh. Lá fora a chuva golpeava os vidros da janela; no interior do escritório, o tic-tac de um antigo relógio de parede parecia seguir o ritmo da respiração do diretor. Harmon olhou por cima do ombro do Keogh; na verdade, não sabia o que esperava ver.
Não podia tirar os olhos do papel. Fechou-os duas ou três vezes, e logo os abriu, muito arregalados. Franziu o sobrecenho enquanto estirava o pescoço para ver melhor. Keogh não deu sinais de ter ouvido sua exclamação de assombro e continuou sentado, olhando com olhos sonolentos a chuva que golpeava as janelas.
Harmon retrocedeu um passo, deu a volta e retornou a sua mesa. sentou-se, abriu uma gaveta, conteve o fôlego e agarrou as respostas ao exame de matemática. Keogh não só tinha respondido a todas as perguntas, mas também o tinha feito bem. Tinha respondido corretamente a todas! O último instante frenético de trabalho tinha sido para responder à sexta pergunta, a última. E mais, virtualmente não tinha feito nenhum rascunho, e não tinha utilizado as fórmulas habituais e aceitas.
O diretor se permitiu por fim respirar muito, muito fundo, olhou outra vez as folhas impressas que tinha na mão —montões de complicadas operações e problemas previamente resolvidos—, voltou a guardá-las e fechou a gaveta. Era inacreditável. Se não tivesse estado sentado no escritório durante todo o exame, teria jurado que o menino havia trapaceado. Mas era evidente que não tinha sido assim. Então, o que tinha Harmon aqui?
Howard Jamieson havia dito que o moço era um «intuitivo», um «matemático intuitivo». Muito bem, Harmon ia comprovar se a intuição do Keogh servia de algo no próximo exame. Enquanto isso...
O diretor se esfregou o queixo e olhou pensativo a nuca do Keogh. Tinha que conversar longamente com o Jamieson e com o jovem Hannant, que ao parecer era quem tinha informado ao Jamieson sobre o menino. Claro está, que ainda era muito cedo, mas... intuição? Harmon pensou que talvez havia outra palavra mais justa para definir ao Keogh, e que os professores do Harden não tinham querido utilizar. Harmon podia compreender esta atitude, já que tampouco ele a pronunciaria de boa vontade.
A palavra que estava na mente do Harmon era «gênio», e se realmente podia aplicar-se ao Keogh, então seguro que havia um lugar para ele na Escola de Artes e Ofícios. Harmon descobriria muito em breve se estava certo.
Claro que estava; só se equivocara com respeito à natureza do gênio do Keogh.

Jack era baixo, gordo, hirsuto e seu aspecto, em conjunto, era mas para simiesco. Tinha uma aparência muito feia, mas passava uma cordialidade e um ar de bem-estar que fazia com que as pessoas esquecessem seu exterior, e vissem o verdadeiro Jack Harmon: um cavalheiro dos pés a cabeça. Além disso, era um homem muito inteligente.
Quando era jovem, Harmon tinha conhecido ao pai do George Hannant. J. G. Hannant era então diretor do Harden, e Harmon ensinava matemática e ciências em uma escolinha de Morton, outro povoado mineiro. Nos anos que seguiram se encontrou de vez em quando com o jovem Hannant, e o tinha visto crescer. Harmon não se surpreendeu quando se inteirou de que também George Hannant se dedicou ao mesmo «negócio» que seu pai; como o velho Hannant, George também levava o ensino no sangue.
Harmon tinha pensado nele sempre como o «jovem Hannant». Ridículo, porque George já levava quase vinte anos como professor!
Harmon tinha chamado ao professor de matemática para que fosse vê-lo em Hartlepool para falar com ele sobre Harry Keogh. Isto aconteceu na terça-feira seguinte ao exame do menino, e os dois homens se encontraram na Escola de Artes e Ofícios. Harmon morava muito perto, e logo tinha levado Hannant para comer em sua casa, um almoço de carnes frias e saladas. A esposa do diretor, que sabia que se tratava de uma reunião de trabalho, serviu a comida e foi às compras, deixando aos dois homens a sós para que comessem e falassem em paz. Harmon começou o bate-papo com uma desculpa.
—Espero que minha chamada para que viesse me ver não lhe tenha causado muitos inconvenientes, George. Já sei que Howard os faz trabalhar muitíssimo na escola.
—Não me incomodou absolutamente. Jamieson me substituirá esta tarde. De vez em quando gosta de voltar a dar aulas; diz que sente falta das salas de aula. Estou seguro de que trocaria de boa vontade seu cargo de diretor, e todo o trabalho administrativo que suporta, por uma turma cheia de meninos.
— Certo que o faria! Seguro! E todos nós que estamos em uma posição similar! —sorriu Harmon—. Mas o dinheiro, George, é o dinheiro! E suponho que também o prestígio tem algo que ver. Saberá a que me refiro quando for diretor. E agora, me fale do Keogh. Foi você quem o descobriu, não é verdade?
—Terei que dizer que foi ele quem tirou o chapéu a si mesmo —respondeu Hannant—. É como se a inteligência do menino tivesse despertado muito recentemente, como se ele começasse a dar-se conta de suas potencialidades. É um desses corredores que arrancam tarde, para dizê-lo de outro modo.
—Mas logo se adiantam a todos os outros em um instante, não?
—Então, aprovou? —Como Harmon não havia dito nada sobre o resultado dos exames, Hannant temeu que o menino tivesse fracassado. Quando o chamaram o Hartlepool sentiu renascer algo de sua antiga confiança, e agora, depois das últimas palavras do diretor, esteve seguro de que tudo tinha saído bem para o Keogh.
—Não —respondeu Harmon com um gesto de negação—. Fracassou estrepitosamente! O exame de inglês foi um desastre. O menino o tentou, mas...
O sorriso do Hannant se desvaneceu e seus ombros se afundaram um pouco.
—Mas de todos os modos, o admitirei na escola —seguiu Harmon, e sorriu quando seu olhar se encontrou outra vez com os olhos muito abertos do Hannant—, confiando no que fez nos outros exames.
—E o que fez?
—Reconheço que lhe expus as perguntas mais difíceis que pude encontrar. E as respondeu como se nada! Quão único talvez lhe poderia reprovar é seu procedimento pouco ortodoxo... se é que isso é uma falta. Esse menino prescinde de todas as fórmulas que se usam habitualmente.
Hannant assentiu, sem fazer nenhum comentário, embora pensou que sabia exatamente o que queria dizer Harmon. E quando viu que Harmon esperava uma resposta, disse:
—Claro, sempre faz o mesmo.
—Pensei que possivelmente só a fazia em matemática, mas foi igual no outro exame. Chame-o quociente intelectual, espacial, ou como quero, mas se trata de uma prova criada para medir a capacidade potencial do intelecto. A resposta do Keogh a uma das perguntas me parece especialmente interessante; não a resposta em si mesmo, embora de todos os modos é correta, a não ser a maneira como chegou a ela. É sobre um triângulo.
—Ah, sim!
«Trigonometria —pensou Hannant enquanto se levava uma parte de frango à boca—. Perguntava o que faria Harry com problemas desse tipo.»
—Claro está que o poderia ter resolvido com umas simples noções de trigonometria —Harmon parecia lhe haver lido o pensamento— ou inclusive visualmente. O problema era muito singelo. De fato, era a única pergunta fácil de todo o exame. Verá.
Harmon apartou seu prato, agarrou uma caneta e desenhou sobre um guardanapo de papel.



—Se AD medir a metade que AC, e AE é equivalente a metade de AB, quantas vezes maior é o triângulo maior?
Hannant riscou duas linhas de pontos sobre o diagrama, que ficou assim:




Logo disse:
—O maior é quatro vezes maior. Pode resolver de maneira visual, como disse você.
—Muito bem. Mas Keogh simplesmente escreveu a resposta. Não riscou nenhuma linha de pontos, só a resposta. Eu lhe perguntei: «Como resolveu?». O moço deu de ombros e disse: «A metade de uma metade é um quarto; o triângulo pequeno é um quarto do maior».
Hannant sorriu e disse:
—Isso é típico do Keogh. Foi o que inicialmente me chamou a atenção nele. Ignora as fórmulas, salta passos no processo de raciocínio, salta de uma conclusão a outra.
A expressão do Harmon não tinha mudado; estava muito sério.
—Que fórmulas? —perguntou—. Já estudou trigonometria?
Hannant perdeu seu sorriso.
—Não, logo que começamos.
—Então, quando fez o exame não conhecia esta fórmula.
—Tem razão —assentiu Hannant, com o rosto carrancudo.
—Mas sabe agora, e também nós.
—O que quer dizer? —perguntou Hannant, que não compreendia aonde queria chegar o diretor.
—Eu lhe disse: «Keogh, tem feito muito bem, mas o que teria passado se não fosse um triângulo retângulo? Se tivesse sido... assim?».
E desenhou outra vez no guardanapo de papel.


—E disse o Keogh —continuou Harmon—, «esta vez AD é a metade do AB, mas B só mede um quarto do BC». Bom, Keogh apenas lhe deu uma olhada e disse: «Um oitavo. Um quarto da metade». E logo desenhou isto:



—O que quer demonstrar? —perguntou Hannant, a quem fascinava mais a tensa expressão do diretor que o tema. O que se propunha Harmon?
—Mas não é evidente? Isto é uma fórmula, e ele a descobriu por si mesmo. E o fez durante um exame!
—Possivelmente não seja uma demonstração de inteligência tão grande, ou tão inexplicável como você crê —respondeu Hannant com um gesto de negação—. Como lhe disse antes, quando Keogh fez seu exame estávamos por começar com trigonometria e ele sabia. Pode ser que tenha lido algo adiantado, isso é tudo.
—Sim? —disse Harmon, que agora estava muito sorridente, e lhe deu um tapinha no ombro de Hannant—. Então me faça um favor, George. Me envie um exemplar do livro que esteve lendo o menino. Eu gostaria de vê-lo. Venho ensinando há muitos anos, e nunca vi esta fórmula. Possivelmente a conhecessem Arquimedes, Euclides ou Pitágoras, mas lhe asseguro que é nova para mim.
Hannant agarrou de novo o diagrama e o estudou. Logo disse:
—Pois eu o acho familiar. Quero dizer, entendo o princípio sobre o que Keogh construiu seu raciocínio. Tenho que havê-lo visto antes. Eu devo... Por Deus, tenho ensinado trigonometria durante vinte anos!
—Eu também ensinei essa matéria, meu amigo, e mais de vinte anos —disse Harmon—. Sei tudo sobre senos, co-senos e tangentes; as fórmulas comuns matemática me são tão familiares como a você. Provavelmente mais familiares ainda. Mas nunca vi um princípio exposto com tal claridade, de maneira tão lógica, tão brilhante. Exposto, sim, porque não se pode dizer que Keogh o inventasse, porque não o fez, do mesmo modo que Newton não «inventou» ou «descobriu» a gravidade. Não, porque é tão constante como Pi: esteve sempre aqui. Mas foi Keogh quem nos mostrou isso! —Harmon se encolheu de ombros, como vencido—. Não sei como explicar o que quero dizer.
—Compreendo-o, não tem que me dar mais explicações —respondeu Hannant—. É o que eu disse ao Jamieson: esse menino tem a capacidade de ver diretamente o bosque, sem que as árvores lhe obstruam a visão. Mas uma fórmula...?
De repente, em sua mente ressonaram umas palavras: Fórmulas? Eu poderia lhe dar fórmulas que você nem sequer pode imaginar...
—Mas o é! —insistiu Harmon, interrompendo as divagações do Hannant—. É uma fórmula para responder a uma pergunta muito específica, sei, mas fórmula de todos os modos. E me pergunto, até onde chegará Keogh? Há nele mais «princípios básicos», com os que até agora alguma vez demos, esperando o estímulo adequado para sair à luz? Por isso o quero na Escola de Artes e Ofícios; para poder averiguá-lo.
—Na verdade, me alegro de que você o aceite como aluno —disse Hannant ao cabo de um momento. Estava a ponto de mencionar a inquietação que lhe causava Keogh, mas mudou de ideia, e mentiu deliberadamente—: Não acredito que possa desenvolver toda sua capacidade potencial no Harden.
—Sim, já o vejo —respondeu Harmon, franzindo o sobrecenho; e logo, com certa impaciência—: Mas já falamos antes disso. Pode ter a segurança de que farei tudo o que possa nesse sentido. É claro que sim que o farei! E agora, me fale do menino. O que sabe dele, de suas origens?

Quando retornava ao Harden ao volante de sua Ford Cortina do ano 1967, Hannant refletiu sobre o que tinha contado ao Harmon a respeito da família e a educação de Keogh. Quase toda a informação provinha dos tios com os que o menino vivia no Harden. O tio tinha uma loja de comestíveis na rua principal; a tia se dedicava sobre tudo a seus trabalhos, mas também ajudava na loja duas ou três vezes por semana.
O avô do Keogh era irlandês; transladou-se de Dublin para a Escócia em 1918, quando terminou a Primeira guerra mundial, e tinha trabalhado em Glasgow como construtor. Sua avó era uma dama russa de classe alta, que tinha fugido da revolução em 1920 e se estabeleceu em Edimburgo, em uma casa perto do mar. Ali a conheceu Sejam Keogh, e se casaram em 1926. Três anos mais tarde nasceu Michael, o tio do Harry Keogh, e em 1931 Mary, sua mãe. Ao que parece, Sejam Keogh era muito severo com seu filho, e o fez trabalhar no negócio da construção —que o menino odiava— na idade de quatorze anos. Ao contrário, tinha mimado a sua filha, para a qual nada lhe parecia nunca o bastante bom. Isto tinha causado problemas entre os irmãos, ocasionados pelo ciúmes de Michael, que acabaram quando o jovem, aos dezenove anos, saiu de casa e se estabeleceu no sul com seu próprio negócio. Michael era o tio com o que vivia Harry na atualidade.
Mas quando Mary tinha vinte e um anos, a adoração de seu pai se converteu em um forte sentimento de posse que a isolou de qualquer classe de vida social. A jovem passava os dias em casa, ajudando nas tarefas do lar, ou como criada de sua aristocrática mãe no pequeno círculo espírita que esta tinha congregado a seu redor. Mary estava presente nas sessões que tinham feito famosa a Natasha na pequena comunidade, e participava das cerimônias.
No verão de 1953 Sejam Keogh estava trabalhando em uma parede pouco estável e morreu quando esta lhe caiu em cima. Sua esposa, que apesar de não ter completo ainda os cinquenta anos sofria diversos achaques, vendeu o negócio e a partir de então levou uma vida retirada, com alguma ou outra sessão de espiritismo que lhe ajudava a arredondar seus ganhos, os quais provinham em sua maior parte dos rendimentos do dinheiro que tinha no banco. Para a Mary, por outra lado, a morte de seu pai foi o começo de uma liberdade que nem sequer tinha sonhado, o início de uma nova vida.
Durante os dois anos que seguiram a jovem desfrutou de uma vida social limitada só pelo escasso dinheiro de que dispunha, até que no inverno de 1955 conheceu um banqueiro de Edimburgo vinte e cinco anos mais velho que ela, e se casou com ele. Chamava-se Gerald Snaith, e apesar da diferença de idades, ele e Mary foram muito felizes em sua mansão próxima ao Bonnyrigg. Infelizmente, então a saúde da mãe da jovem se deteriorou rapidamente, e os médicos diagnosticaram um câncer, de modo que Mary passava a metade de seu tempo no Bonnyrigg, e o resto cuidando de sua mãe, Natasha, na casa junto ao mar em Edimburgo.
Harry «Keogh», portanto, tinha nascido exatamente nove meses depois da morte de sua avó, em 1957, e seu sobrenome era então Snaith, o de seu pai, que morreu de um ataque do coração em seu escritório um ano depois do nascimento de seu filho.
Mary Keogh era uma mulher vigorosa e ainda muito jovem. Já tinha vendido a velha casa junto ao mar da família, e depois da morte de seu marido foi a única herdeira da fortuna deste, bastante substanciosa. Mary decidiu partir por um tempo de Edimburgo, e na primavera de 1959 se dirigiu à Harden e alugou uma casa até fins de julho. Passou o tempo dedicando-se a fazer as pazes com seu irmão e a solidificar a relação com a esposa deste. Deu-se conta de que os negócios de seu irmão não iam bem, e lhe emprestou o dinheiro necessário para ir adiante.
Foi também por esta época que Michael percebeu em sua irmã um ar de tristeza, de desesperança. Quando lhe perguntou o que a preocupava —à parte, claro está, da recente morte de seu marido, que ainda lhe pesava— lhe recordou o «sexto sentido» de sua mãe, seus poderes psíquicos. Mary pensava que tinha herdado algo desses poderes, e estes lhe «diziam» que não viveria muito tempo. Isto não a preocupava muito, o que teria que passar, passaria, mas sim a inquietava a sorte do pequeno Harry. O que seria dele se sua mãe morresse quando ainda era um menino?
Era improvável que Michael Keogh e sua esposa, Jenny, pudessem ter filhos. Souberam antes de casar-se, e estiveram de acordo em que isto não tinha muita importância, e que o fundamental eram os sentimentos que os uniam. Mais tarde, quando seu pequeno negócio estivesse bem situado, teriam tempo para pensar em uma possível adoção. Nessas circunstâncias, se algo acontecesse a Mary —uma predição a que Michael não deu muita importância, mas que Mary parecia acreditar com absoluta convicção—, não tinha por que preocupar-se. Seu irmão e sua esposa ficariam a cargo do menino, e o educariam como se fosse seu próprio filho. Fizeram a «promessa» mais para tranquilizá-la, pois não acreditavam que chegaria o momento de cumpri-la.
Quando Harry tinha dois anos sua mãe conheceu, e foi subjugada, por um homem só dois ou três anos mais velho que ela, um tal Viktor Shukshin, um suposto dissidente que tinha fugido ao Ocidente em busca de um paraíso político, ou ao menos de liberdade, tal como o tinha feito a mãe da Mary Keogh em 1920. Pode ser que a fascinação da Mary pelo Shukshin se devesse a esta «conexão russa»; de todos os modos, casou-se com ele a fins de 1960 e viveram na casa próxima ao Bonnyrigg. O novo padrasto do Harry era linguista, e tinha ensinado russo e alemão em Edimburgo nos dois últimos anos; mas agora, com os problemas financeiros resolvidos, ele e sua nova esposa levavam uma vida dada de presente, entregues a suas afeições e interesses pessoais. Shukshin também estava interessado nos fenômenos paranormais, e sugeriu a sua mulher que prosseguissem suas buscas parapsicológicas.
Michael Keogh tinha conhecido ao Shukshin nas bodas de sua irmã, e o havia tornado a ver uma vez mais, por pouco tempo, durante umas férias na Escócia. Depois, só no inquérito judicial. Porque Mary Keogh tinha morrido, tal como o havia predito, no inverno de 1963, aos trinta e dois anos de idade. Hannant só tinha descoberto do Shukshin que não gostava dos Keogh. Havia algo nele que lhes resultava antipático; provavelmente o mesmo que o tinha feito atrativo para a irmã do Michael.
Com respeito à morte da Mary: a jovem patinava, e gostava muito do gelo. Um rio próximo a sua casa tirou sua vida quando Mary caiu na água após romper a fina superfície do gelo fino enquanto patinava. Viktor estava com ela mas não pôde fazer nada. Desesperado —quase enlouquecido de horror— foi procurar ajuda, mas...
Havia uma forte corrente debaixo do gelo na época do acidente. Rio abaixo havia uma série de braços de rio aonde poderia ter ficado preso o corpo da Mary, para permanecer ali até o degelo. As águas arrastavam além disso uma grande quantidade de lama, que sem dúvida a tinha coberto. De todas formas, nunca encontraram seu cadáver.
Michael cumpriu sua promessa antes de que transcorressem seis meses: Harry Keogh foi viver com seus tios no Harden. Isto era muito conveniente para o Shukshin; Harry não era seu filho, não gostava de crianças e não estava disposto a cria-lo sozinho. Mary tinha assegurado em seu testamento o futuro do menino; a casa e o resto de suas propriedades foram para o russo. Por isso sabia Michael Keogh, Shukshin ainda vivia ali, não havia se tornado a casar e se dedicou outra vez ao ensino particular do russo e do alemão. Ainda dava suas aulas na casa próxima ao Bonnyrigg onde, ao que parece, vivia sozinho. Em todos aqueles anos, o russo não tinha solicitado ver Harry; nem tinha perguntado por ele. Apesar da tragédia que parecia ser a história de sua família, os primeiros anos de Harry Keogh não tinham sido muito singulares. Apenas tinha chamado realmente a atenção do Hannant a afeição da avó e da mãe do moço pelo paranormal, mas tampouco isto era em si mesmo muito extraordinário. Embora, pensando-se melhor, possivelmente o fosse. Mary Shukshin parecia convencida de que Natasha lhe tinha transmitido seus «poderes». E se ela, por sua vez, os tivesse passado a seu filho? Essa sim que era uma ideia! Ou poderia havê-lo sido, se Hannant tivesse acreditado em semelhantes possibilidade. Mas o professor de matemática não acreditava.

E três semanas mais tarde, quatro ou cinco dias depois de Keogh deixar o colégio do Harden para ir à Escola de Artes e Ofícios, Hannant descobriu algo muito estranho e que tinha que ver com o Harry Keogh.
O professor de matemática tinha guardado no sótão um velho baú de seu pai, que continha cadernos de notas, quinquilharias e lembranças que seu pai tinha ido acumulando ao longo de sua carreira. Hannant tinha subido ao sótão para arrumar uma telha que se soltou em uma tormenta, viu o baú e lhe pareceu muito bonito. Construído para durar séculos, sua escura madeira e seus ferragens de bronze tinham o encanto das coisas antigas. Podia pô-lo junto à estante, no salão, e ficaria muito bem.
Hannant arrastou o baú escada abaixo e começou a esvaziá-lo; uma vez mais olhou velhas fotografias que não tinha visto durante anos, e pôs a um lado algumas coisas que podiam lhe ser de utilidade no colégio (vários livros de texto, por exemplo) até que deu com uma grande caderneta encadernada em couro, e cheia de notas e gráficos escritos pela mão de seu pai. Ao repassar as páginas algo lhe chamou a atenção e reteve seu olhar por um instante... até que percebeu do que se tratava.
Imediatamente um calafrio inexplicável voltou a percorrer as costas do Hannant e fez que se sentasse, tremendo, com o livro aberto sobre os joelhos. Logo..., logo fechou o livro de um golpe e foi até o salão da frente, onde um fogo de hulha ardia na chaminé. Uma vez ali jogou o livro às chamas, sem voltar a olhá-lo, e deixou que ardesse.
Esse mesmo dia Hannant tinha recolhido os velhos cadernos de matemática do Keogh para enviar-lhe ao Harmon à Escola de Artes e Ofícios. Agora agarrou o mais recente, abriu suas páginas para lhes jogar uma última olhada, depois o fechou com um estremecimento, e o jogou nas chamas para que se reunisse com a caderneta de seu pai.
Antes do «despertar» do Keogh, seu trabalho era desalinhado, sem ordem, e de maneira nenhuma exato. Depois, durante as seis ou sete semanas seguintes...
Bom, agora os cadernos já não existiam; tinham desaparecido entre as chamas da chaminé, não eram mais que fumaça perdida na noite.
Já não havia maneira de compará-los, e isto era provavelmente o melhor que podia acontecer. Era grotesco, absurdo pensar que tivesse sido possível estabelecer alguma comparação entre eles. Agora Hannant podia esquecer do assunto para sempre. Em primeiro lugar, porque essa classe de pensamentos estavam proibidos em uma mente em seu são julgamento.

Capítulo quatro

No verão de 1972 Dragosani estava de volta a Romênia. Ia à última moda, com uma camisa de um azul desbotado e aberta no pescoço, calças cinzas pata de elefante, de um estilo muito ocidental, sapatos negros, reluzentes e bicudos (muito diferentes dos quadrados sapatões russos que se viam nas lojas locais) e uma jaqueta de quadros bege com grandes bolsos exteriores. No quente meio-dia romeno, sobre tudo nessa granja nos subúrbios de um vilarejo próximo à auto-estrada Corabia-Calinesti, não podia dizer-se que passasse inadvertido. Apoiado em seu carro, contemplando os telhados bicudos e as cúpulas arredondadas da povoação, que se elevavam pouco antes dos ondulados campos que se estendiam para o sul, Dragosani só podia ser uma destas três coisas: um rico turista do Ocidente, da Turquia ou da Grécia.
Por outra parte, seu carro era um Volga negro como seus sapatos, e isto sugeria outra possibilidade. Além disso, Dragosani não tinha a expressão de inocente assombro dos turistas a não ser um plácido ar de familiaridade, de pertencer ao lugar. Hzak Kinkovsi, o «proprietário» da granja, que se aproximou da Volga do pátio, onde tinha dado de comer aos frangos, não sabia o que pensar. Esperava turistas para o fim de semana, mas este homem o desconcertava. Olhou-o com expressão de suspeita. Seria um funcionário do Ministério de Terras e Propriedades? Ou um delator desses industriais bolcheviques de cara de pedra do outro lado da fronteira? Era evidente que teria que andar com cuidado, ao menos até que soubesse quem —ou o que— era o recém-chegado.
—Kinkovsi? —perguntou o jovem enquanto o olhava de cima abaixo—. Hzak Kinkovsi? Em Lonestasi me disseram que aluga quartos. Suponho que essa é sua estalagem —disse assinalando com um gesto uma antiga casa de pedra de três andares que dava ao caminho de cascalho que levava a povoado.
Kinkovsi o olhou com um rosto deliberadamente inexpressivo, e logo franziu o sobrecenho. O hospedeiro nem sempre declarava os ganhos que obtinha dos turistas; ou ao menos, não declarava tudo. Por fim disse:
—Sou Kinkovsi, sim, e alugo quartos, mas...
—Me diga se pode ou não me dar alojamento —perguntou Dragosani, que agora parecia cansado e impaciente.
Kinkovsi observou que suas roupas, a primeira vista elegantes e modernas, estavam muito enrugadas, como se levasse viajando muitas horas.
—Já sei que cheguei um mês antes, mas não acredito que você tenha tantos hóspedes.
Um mês antes! Isto fez que Kinkovsi se lembrasse.
—Ah, você deve ser o senhor de Moscou, que em abril reservou habitações mas não enviou nenhum dinheiro adiantado. É você o senhor Dragosani, que se chama igual ao povoado? Você chegou muito adiantado, mas seja bem-vindo de todos os modos. Terei que lhe preparar um quarto. Embora talvez possa lhe dar por uma noite ou duas o quarto inglês. Quanto tempo ficará?
—Pelo menos dez dias —respondeu Dragosani—, se os lençóis estiverem limpos e a comida for suportável... e sua cerveja romena não for muito amarga.
A expressão do Dragosani era desnecessariamente severa; havia algo em sua atitude que irritava ao Kinkovsi.
—Mein Herr —grunhiu—, meus quartos estão tão limpos que se poderia comer no chão. Minha esposa é uma cozinheira excelente. Minha cerveja, a melhor dos Cárpatos meridionais. E há algo mais; nestes lugares temos muito boas maneiras, algo que não sempre se pode dizer de vocês, os moscovitas. Quer o quarto , ou vai partir?
Dragosani sorriu e lhe estendeu a mão.
—Estava brincando —disse—. Eu gosto de saber como é o caráter das pessoas. E eu gosto dos espíritos lutadores! Você é típico desta região, Hzak Kinkovsi: veste-se com roupas de camponês, mas tem o coração de um guerreiro. Mas me chama moscovita? Com um nome como o meu? Alguns diriam que aqui o estrangeiro é você, Hzak Kinkovsi. nota-se em seu nome, em seu acento, em sua maneira de dizer Mein Herr. É você húngaro?
Kinkovsi estudou um instante o rosto de seu interlocutor, olhou-o de cima abaixo, e finalmente decidiu que gostava daquele homem. Tinha senso de humor, algo pouco frequente e muito de seu agrado.
—O avô de meu avô era da Hungria —disse enquanto agarrava a mão que lhe estendia Dragosani e lhe dava um firme apertão—, mas a avó de minha avó era da Valáquia. Quanto ao acento, é o da região. Recebemos a muitos húngaros no curso dos anos, e muitos se estabeleceram aqui. Sou tão romeno como você, embora não tão rico. —riu, mostrando uma dentadura amarela e deteriorada em um rosto de couro curtido—. Você dirá que sou um camponês. Pois bem, sou o que sou. Prefere que lhe chame «camarada» antes que Mein Herr?
—Por Deus, não! Isso não! —respondeu imediatamente Dragosani—. Mein Herr» está bem, obrigado. —Ele também riu—. E agora, me mostre esse quarto inglês que mencionou antes...
Kinkovsi o conduziu para a casa de hóspedes, muito alta e de teto bicudo.
— Quartos? —resmungou—. Tenho muitíssimos quartos! Quatro em cada andar. Pode alugar uma suíte, se o desejar.
— Um quarto está bem —respondeu Dragosani—, se tiver banheiro.
—Ah, um quarto tipo suíte! Bem, há uma no último andar. Um quarto com banheiro completo. É muito moderno.
—Melhor assim —respondeu Dragosani, sem muita ironia.
Dragosani observou que as paredes do primeiro andar tinham o reboco manchado, provavelmente devido à umidade, mas nos pisos superiores podia ver-se a primitiva construção de pedra. A casa devia ter pelo menos trezentos anos. Muito adequada; o fazia retroceder no tempo, voltar para seus origens... e ainda mais longe.
—Quanto tempo esteve fora? —perguntou Kinkovsi enquanto o fazia passar e lhe mostrava um quarto no primeiro andar—. Terá que permanecer aqui um momento —disse—, até que lhe preparem o quarto de acima. Estará pronto em uma hora ou duas.
Dragosani tirou os sapatos, pendurou a jaqueta do respaldo de uma cadeira de madeira e se deixou cair sobre a cama, iluminada pelo sol que entrava por uma janela oval.
—Estive fora a metade de minha vida —disse—, mas sempre é agradável a volta. Vim de visita nos três últimos verões, e virei nos próximos quatro.
—Parece que tem seu futuro programado, não? Quatro verões mais? por que o decidiu assim?
Dragosani se recostou com as mãos detrás da cabeça e olhou ao outro com os olhos entrecerrados para proteger-se da luz do sol.
—Investigo a história do lugar —respondeu por fim—. E como só posso estar aqui duas semanas por ano, levarei outros quatro.
—História? Este país está saturado de história! Mas, não é este seu trabalho, então. Quero dizer, que você não o faz para ganhar a vida.
— Não — O homem na cama fez um gesto negativo com a cabeça—. Em Moscou trabalho em... em uma empresa de pompas fúnebres.
Aquilo estava bastante perto da verdade.
—Uf! —bufou Kinkovsi—. Bom, depois de tudo, alguém tem que fazer esses trabalhos. De acordo, pois. Irei preparar seu quarto. E disporei as coisas para a comida. Se quiser utilizar o lavabo, está no corredor. E agora, descanse um momento...
Como não recebeu resposta, Kinkovsi olhou ao Dragosani e viu que tinha os olhos fechados. O dono da casa recolheu as chaves do carro, que seu hóspede tinha deixado cair ao pé da cama, e abandonou em silêncio o quarto, fechando a porta ao sair. Um último olhar da soleira, e o ritmo compassado da respiração do Dragosani lhe indicou que este estava dormido. Kinkovsi sorriu, satisfeito. Isso era bom; evidentemente, o recém-chegado se sentia como em sua casa.
Cada vez que vinha ao lugar, Dragosani procurava um alojamento novo. Sempre na vizinhança da cidade que chamava «lar» —a um tiro de pedra—, mas não tão perto da casa onde se alojou antes como para que o recordassem. Tinha pensado em usar um nome falso, um pseudônimo, mas tinha deixado a ideia de lado. Estava orgulhoso de seu nome, provavelmente como desafio a sua origem. Não ao Dragosani, a população, sua origem geográfica, mas sim pelo fato de que ele tinha sido encontrado ali. Quanto a seus progenitores, seu pai era a quase inexpugnável cordilheira que se elevava ao norte, os Alpes transilvanos, e sua mãe, a fértil e negra terra.
Dragosani tinha suas próprias teorias a respeito de seus pais verdadeiros; o que eles tinham feito provavelmente tinha sido por seu bem. Ele imaginava que tinham sido ciganos, romanies, ciganos, jovens amantes de tribos inimigas cujo amor não tinha sido suficiente para fazer esquecer antigas questões e desprezos. Mas eles se amaram, Dragosani nasceu, e o abandonaram. Três anos atrás Dragosani tinha pensado procurar a seus pais e por isso tinha vindo a este lugar. Mas... aquilo era absolutamente impossível. Uma empresa irrealizável. Na atualidade havia tantos ciganos na Romênia como na antiguidade. Apesar de ser «satélites», Valáquia, Transilvânia, Moldávia e todas as terras dos arredores tinham conservado um certo grau de autonomia, de auto-determinação. Os ciganos tinham tanto direito a permanecer aqui como as mesmas montanhas.
Estes pensamentos ocupavam a mente do Dragosani enquanto adormecia, mas logo não sonhou com seus pais, a não ser com cenas de sua infância, antes que o enviassem para fora da Romênia para completar sua educação. Já então tinha sido um solitário, sempre reservado, e em ocasiões se aventurou ali onde os outros tinham medo. Ou onde lhes tinham proibido ir...
Os bosques das ladeiras das montanhas eram escuros e espessos e seus atalhos intrincados e abruptos como a montanha russa de um parque de diversões, Boris, em toda sua vida, só tinha visto uma montanha russa. Tinha sido três dias antes, o de seu sétimo aniversário (quando celebravam o sétimo aniversário do dia em que o «encontraram», tal como lhe explicou seu pai adotivo) e como presente o levaram Dragosani, a visitar o pequeno cinema do povoado. Tinham passado um curta-metragem russo rodado inteiramente em parques de diversões, e a montanha russa era tão real que Boris tinha sofrida vertigem e tinha estado a ponto de cair do assento. Tinha sido uma experiência aterrorizante mas emocionante; tão emocionante que tinha inventado um jogo para reproduzir as sensações da montanha russa. Não era tão bom e sim bastante difícil, mas era melhor que nada. E se podia fazer aqui mesmo, nas frondosas ladeiras das montanhas, a menos de dois quilômetros de casa.
Ninguém vinha nunca a este lugar, era um rincão absolutamente solitário, e essa era a razão de que Boris gostasse tanto. Nada tinha destruído os bosques durante quase cinco séculos; nenhum guarda-florestal tinha penetrado no interior, onde raramente se filtrava um raio de sol; só os arrulhos das pombas e o bater de suas asas perturbavam ocasionalmente o profundo silêncio, as pombas e os barulhos que produziam os pequenos animais. Este era um lugar de grãos de poeira que dançavam na luz, de umidade, agulhas de pinheiro, de cogumelos e alguns poucos, ágeis e estranhamente silenciosos esquilos.
As colinas se elevavam na antiga planície da Valáquia, que se estende uns cem quilômetros dos contrafortes dos Alpes. Tinham forma de crucifixo, com uma coluna central de uns três quilômetros e meio do norte ao sul, e uma travessa de quase dois quilômetros deste ao oeste. As terras circundantes eram campos de lavoura, divididos por muros, sebes e cercas, e às vezes um estreito caminho arborizado, mas os terrenos imediatamente próximos às colinas que formavam a cruz estavam sem cultivar, e neles cresciam em abundância as ervas e os cardos. Em algumas ocasiões, Boris e seu pai adotivo deixavam que o gado pastasse nestas terras, mas isto não acontecia frequentemente. Inclusive os animais evitavam o lugar sem razão aparente, e às vezes rompiam cercas e saltavam sebes para afastar-se desses campos selvagens e muito silenciosos.
Para o pequeno Boris Dragosani, entretanto, o lugar era muito bom. Ali podia brincar que era um grande caçador, penetrar no interior da selva do Amazonas, procurar as cidades perdidas dos Incas. Podia fazer todas essas coisas e mais, desde que não falasse de seus jogos com sua família adotiva. Na verdade, não eram os jogos o que devia ocultar, a não ser onde os realizava. Mas os bosques, apesar de que eram um lugar proibido, fascinavam-no. Havia algo neles que o atraía.
E isso estava agora presente, enquanto ele subia pela ladeira próxima ao centro da cruz, ascendendo trabalhosamente de árvore em árvore, ofegando ao arrastar a grande caixa de papelão que era seu veículo, seu carro sem rodas para brincar de montanha russa. Uma escalada difícil, sim, mas valia a pena. Antes de voltar para casa se lançaria uma vez mais, desta vez do topo. O sol já se estava pondo, e certamente teria problemas em casa por voltar tarde, mas uma volta mais em seu «carro» não pioraria as coisas mais do que já estavam.
No topo se deteve um momento para recuperar o fôlego, e se sentou a contemplar os grãos de pó que flutuavam nos pálidos raios de sol que penetravam entre os altos e escuros pinheiros. Depois arrastou a caixa até um lugar no topo do qual se via um rastro que descia sem interrupções até o pé da colina. Fazia já muito tempo tinham aberto aqui um corta fogo, antes de que os lenhadores recordassem, ou lhes contassem coisas sobre a natureza do lugar: após ervas e arbustos tinham brotado outra vez no rastro, mas não tinham conseguido apagá-la por completo. E agora a «cicatriz» do corta fogo ia ser a pista para o temerário jogo do Boris.
O menino equilibrou seu «.carro» na beirada, saltou a bordo e se agarrou aos flancos, jogando todo seu peso para frente até que a caixa começou a deslizar.
Ao princípio a caixa desceu brandamente, deslizando com facilidade sobre um colchão de erva e agulhas de pinheiro, entre os matagais e os arbustos, seguindo o antigo rastro do corta fogo. Mas... Boris era um menino. Não tinha visto perigo algum naquele jogo, não tinha calculado a aceleração que sofreria seu veículo» em uma ladeira tão abrupta.
A caixa aumentou de velocidade e o jogo se pareceu muito mais à aterrorizante, montanha russa. Boris chocou-se contra um montinho de erva e a caixa saltou no ar. Aterrissou logo, bateu de lado contra um arbusto e saiu disparada para o outro lado, onde os pinheiros eram mais densos, e ali seguiu a uma velocidade vertiginosa ladeira abaixo, em uma linha paralela a do corta fogo.
Boris não tinha freios nem volante, não podia controlar a velocidade de seu «carro». Só o que podia fazer era deixar-se levar pela caixa.
Entre choques e escorregões, mais sacudido e chutado que uma bola de futebol, Boris começou a deslizar em meio a uma penumbra mais intensa a cada instante. O menino baixou a cabeça para proteger-se dos ramos que já não alcançava ver e continuou sua descida de pesadelo. Mas as árvores cresciam agora uns mais perto das outras, e a viagem não podia seguir muito mais tempo.
E por fim a queda parou, em um lugar onde as raízes das árvores saíam à superfície nodosas como enormes serpentes, e o chão era de xistos com bordas arredondadas. O fundo da caixa se desprendeu estrepitosamente sob os pés do Boris, e os flancos se desintegraram sob seus dedos. O menino foi lançado contra o tronco de uma árvore, embora não de cabeça, e o impulso o fez continuar rolando. Dando cambalhotas, os braços ao redor da cabeça, Boris sentia os frágeis ramos que esmagava em sua queda; apenas era consciente do céu que girava, além da copa dos pinheiros, em um descida que parecia não terminar nunca, e de um tropeção final contra um bordo rochoso, do qual se despencou em um vazio escuro e poeirento.
Logo o impacto, e depois disso, nada. Nada por um tempo, ao menos...
Boris possivelmente perdeu a consciência durante um minuto, embora possa que fossem cinco minutos, ou cinquenta. Ou pode ser também que não perdesse o sentido em nenhum momento. Mas tinha sofrido uma comoção, e muito forte. Se não tivesse sido assim, o que aconteceu logo poderia havê-lo matado. Boris poderia haver morrido de medo.
—Quem é? —perguntou uma voz dentro de sua aturdida cabeça—. Por que vieste aqui? Está se oferecendo a mim?
A voz era maligna, absolutamente maligna. Havia nela elementos de tudo o que pode produzir horror. Boris não era mais que um menino; não conhecia o significado de palavras como «bestial», «sádico», «diabólico»; não sabia o que queria dizer a frase «poder das trevas», e ignorava os atos mediante os quais se pode invocar a esses poderes. Para ele, o medo era um degrau da escada que rangia na escuridão, o bater de um ramo contra a janela de seu quarto quando todos dormiam; havia horror no repentino salto de um sapo, ou na súbita imobilidade de uma barata quando se acendia a luz, e especialmente em sua rápida carreira quando o inseto se dava conta de que o tinham descoberto.
Em uma ocasião, Boris tinha ouvido o cri-cri dos grilos no porão mais profundo da granja, onde seu pai guardava em prateleiras os vinhos e os queijos. À luz de uma pequena lanterna tinha visto um inseto, de um cinza leproso por causa da quase permanente escuridão de seu habitáculo. Quando se aproximou para esmagá-lo com o sapato, o grilo deu um salto e desapareceu. Boris encontrou outro, e aconteceu o mesmo. E outro. E outro. Viu uma dúzia e não pôde matar nenhum. Todos tinham desaparecido. Quando subia a escada, e começava a filtrar-se um pouco de luz diurna, um grilo saltou das calças do Boris. Estavam em cima dele! Tinham saltado para ele, por isso não tinha podido esmagá-los! E que saltos deu Boris nesse instante!
Essa era sua ideia de um pesadelo: advertir uma ardilosa inteligência onde não deveria havê-la. Do mesmo modo que não deveria havê-la aqui...
—Ah! —exclamou a voz, agora mais vigorosa—. Assim é um dos meus, por isso vieste. Sabias onde me encontrar...
Boris se deu conta então de que estava consciente e de que a voz que ouvia em sua cabeça era real. E sua malignidade era como o tato viscoso de um sapo, o salto dos grilos na escuridão, o odioso «tic-tac» de um relógio, que parece falar contigo no meio da noite, zombando de seus medos e sua insônia. Embora fosse muito pior que isso, estava certo, mas não tinha as palavras, ou o conhecimento, ou a experiência para descrevê-la.
Mas podia imaginar a boca que emitia essa voz gutural e lhe sussurrava, essas palavras matreiras e insinuantes, em sua cabeça. A representava vividamente: uma boca monstruosa que jorrava sangue como rubis líquidos, e cujos reluzentes incisivos eram afiados como os de um grande cão de caça.
—Como..., como te chamas, menino?
—Dragosani —respondeu Boris, ou melhor dizendo, pensou a resposta, porque sua garganta estava muito seca para falar. De todos os modos, foi suficiente.
—Aaahhh! Dragosani! —Agora a voz era um rouco suspiro, como folhas de outono roçando os paralelepípedos. Era o suspiro de alguém que percebe algo, que compreende, que se sente satisfeito—. Sim que é um dos meus! Mas muito, muito pequeno. Não tem vigor, menino. É um menino, nada mais que um menino. O que pode fazer por mim? Nada! Seu sangue é como água nas veias, não tem ferro...
Boris se sentou e olhou aterrorizado por volta de um e outro lado na escuridão. A cabeça ainda lhe dava voltas. Tinha descido algo mais da metade da ladeira, e agora estava em uma espécie de saliência de rocha, entre as árvores. Boris não tinha estado nunca aqui, não tinha suspeitado que o lugar existisse. Logo, quando seus olhos se acostumaram à penumbra e recuperou por completo os sentidos, viu que em realidade estava sentado sobre umas lajes de pedra cobertas de musgo, e diante de algo que só podia ser... um mausoléu!
Boris tinha visto antes algo semelhante: seu tio (o irmão de seu pai adotivo) tinha morrido fazia um mês e o tinham enterrado em um lugar muito parecido; mas a tumba de seu tio estava em terreno consagrado, no cemitério de Slatina. Este lugar, em troca... não era um lugar sagrado. Não, nem sequer na imaginação mais delirante podia supor algo assim...
Presenças invisíveis se moviam, agitavam o ar poeirento sem alterar as teias de aranha nem os ramos mortos que pendiam sobre sua cabeça. Aqui fazia frio, um frio úmido, e o sol não tinha penetrado em quinhentos anos.
Detrás de Boris, a tumba, lavrada na rocha, fazia tempo que tinha começado a desmoronar, o teto de grandes lajes prensado entre restos de alvenaria. Boris, em sua desenfreada carreira, certamente tinha pulado por cima das ruínas, pois se não fosse assim, teria quebrado a cabeça. Embora, depois de tudo, possivelmente tinha machucado a cabeça, posto que percebia e ouvia coisas onde não havia nada que perceber ou escutar, ou não deveria haver nada.
Boris aguçou os ouvidos e entrecerrou os olhos na penumbra do recinto mas... não havia nada.
Tentou ficar em pé e o conseguiu na terceira tentativa. Apoiou todo seu peso em uma laje que em outra época tinha sido a moldura da porta do mausoléu. Logo escutou e olhou outra vez, forçando olhos e ouvidos na escuridão, mas não escutou voz alguma nem percebeu nenhuma boca que jorrasse sangue no espelho de sua mente. Deixou escapar um entrecortado suspiro de alívio.
Uma crosta de sujeira, musgo e agulhas de pinheiro se desprendeu da laje, entre suas mãos, e deixou ver parte de um brasão. Boris tirou um pouco mais daquela imundície de séculos ...
Retirou bruscamente as mãos, recuou para trás, tropeçou e se sentou outra vez, quase sem fôlego. No brasão se via um dragão esculpido em baixo-relevo, uma das patas dianteiras elevadas em um gesto de ameaça; montado nas costas do dragão cavalgava um morcego com olhos triangulares de turmalina, e por cima das duas figuras, via-se a cabeça com chifres do mesmo demônio, com a larga língua fendida fora da boca, e jorrando gotas de sangue de turmalina.
Os três símbolos —dragão, morcego e demônio— se uniram na mente do Boris. amalgamaram-se como o emissor da voz que ressonava em sua cabeça. A voz que escolheu esse preciso instante para lhe falar uma vez mais:
—Corre, homenzinho, corre. Vai-te daqui. És muito pequeno, muito jovem e inocente, e eu estou muito fraco e sou tão, tão velho...
Boris ficou de pé, com as pernas tão trêmulas que teve a certeza de que ia cair. Logo se voltou e escapou dali tão depressa como pôde, longe das lajes cobertas por agulhas de pinheiro, e que as retorcidas e centenárias raízes começavam a rachar, longe da tumba em ruínas e dos segredos que guardava, longe da penumbra do lugar, tão ameaçadora que parecia ter vida própria.
E enquanto descia o despenhadeiro, açoitado pelos ramos das árvores e cheio de machucados pelas múltiplas quedas, a voz ressoava em sua mente como o chiado de uma unha sobre um cristal, ou do giz no quadro, com uma sabedoria antiga e obscena.
—Corre, corre! Mas nunca me esqueça, Dragosani. E pode estar seguro de que eu não te esquecerei. Não, esperarei até que cresça e se faça forte. E quando seu sangue tenha ferro e saiba o que fazer, porque terá que ser por sua própria vontade, Dragosani, então, veremos. E agora tenho que dormir...
Boris saiu correndo por entre as árvores ao pé da colina, saltou por cima de uma cerca cuja travessa superiora estava quebrada e saiu à pradaria de erva e cardos e luz, de bendita luz. Mas nem sequer então se deteve, e seguiu correndo em direção a sua casa. Mas teve que fazer uma pausa no meio do campo, exausto e sem fôlego. Deixou -se cair ao chão e voltou a cabeça para olhar para as ameaçadoras colinas. Para o oeste o sol ficava, e os últimos raios de fogo douravam os pinheiros mais altos; Boris, não obstante, sabia que no lugar secreto, no mausoléu amortalhado pelas árvores, tudo era viscoso, rastejante e negro como o medo. E só então lhe ocorreu perguntar.
—O que... quem... quem é?
E como se chegasse desde um milhão de quilômetros de distância, gasta pela brisa que soprava sobre os campos e colinas da Transilvânia do primeiro dia da história, a resposta ressonou em sua mente:
—Você sabe, Dragosani! Você sabe! Não pergunte «quem é» a não ser «quem sou». Mas o que importa isso? A resposta é a mesma. Sou seu passado, Dragosani. E você... é... meu... futuuuuuuroooo!

—Herr Dragosani?
—O que... quem... quem é? —Dragosani despertou repetindo a pergunta do sonho.
Na inesperada penumbra da habitação o olhavam uns olhos quase triangulares, fixos, penetrantes, e durante um instante, muito breve, Boris sentiu que tinha retornado ao claro do bosque onde se achava a tumba. Mas estes olhos eram verdes, como os de um gato. Dragosani os olhou fixamente e eles lhe devolveram o olhar, imperturbáveis. Pertenciam a um rosto branco e ovalado, emoldurado por cabelos muito negros. Um rosto de mulher.
Dragosani se sentou na cama, estirou-se e pôs os pés no chão. A proprietária dos olhos lhe fez uma reverência ao estilo camponês, e Dragosani pensou que era muito pouco elegante. Olhou-a com expressão irônica. Sempre despertava de mau humor, e se um intruso o despertava de maneira inesperada, como agora, seu humor era ainda pior.
—Está surda? Perguntei-lhe quem é —disse apontando-a com o dedo indicador—. E queria saber por que me deixaram dormir até tão tarde.
Dragosani também podia empenhar-se em ser desagradável.
Ela não pareceu impressionada pelo dedo indicador que a apontava. Sorriu, levantando uma sobrancelha em um gesto quase insolente.
—Sou Ilse, Herr Dragosani. Ilse Kinkovsi. dormiu três horas. Parecia tão cansado que meu pai disse que o deixasse dormir, e enquanto isso lhe preparasse o quarto na água-furtada. Já está preparada.
—Ah, sim? E por que me incomoda agora?
Dragosani se negou a mostrar-se amável. E este não era o mesmo jogo que tinha jogado com o pai da jovem; não, porque havia algo nela que o irritava realmente. Ilse era muito segura de si mesmo, muito pedante, além disso, era bonita. Devia ter uns... uns vinte anos. Era estranho que não estivesse casada, mas não se via nenhum anel em seus dedos.
Dragosani se estremeceu, seu metabolismo estava adaptando-se, ainda não se achava completamente acordado. Ela o advertiu, e disse:
— Lá em cima está mais quente. O sol ainda está sobre o último piso. E seu sangue circulará melhor depois de subir as escadas.
Dragosani olhou a seu redor e tirou com as pontas de seus delicados dedos as remelas que o sonho tinha deixado nos cantos de seus olhos. ficou de pé, apalpou o bolso da jaqueta que estava pendurada do respaldo da cadeira e perguntou:
—Onde estão minhas chaves? E minhas malas?
A jovem sorriu outra vez.
—Meu pai subiu as malas —respondeu—. E aqui tem suas chaves. —Sua mão, quando tocou a do Dragosani, parecia muito fresca em contraste com a pele quente dele. E quando ele estremeceu, ela se pôs-se a rir—. Ah, um jovem virgem!
—O que? —enfureceu-se Dragosani—. O que disse?
Ela foi para a porta, saiu ao vestíbulo e se dirigiu à escada. Dragosani, furioso, agarrou a jaqueta e a seguiu. A jovem se voltou quando estava ao pé da escada de madeira.
—É um dito do lugar; nada mais que um dito.
—E como é? —inquiriu ele com brutalidade, e a seguiu pela escada.
—Se um menino tremer quando está quente, é porque é virgem. Virgem a pesar dele!
—Que refrão mais estúpido! —replicou Dragosani com o rosto carrancudo.
A moça o olhou e sorriu.
—Não posso aplicá-lo a você, Herr Dragosani. Não é um menino, e não me parece nada tímido ou virginal. De todos os modos, não é mais que um dito.
—E você toma muitas confianças com seus hóspedes! —grunhiu ele, que se sentia como se lhe tivesse permitido soltar do anzol por pura compaixão.
A moça o esperou no primeiro descanso, sorriu e disse:
—Só queria ser amável. As boas-vindas são muito frias se a gente não se falar. Meu pai me pediu que lhe perguntasse se deseja jantar conosco, posto que você é o único hóspede, ou se prefere fazê-lo em seu quarto.
—Jantarei em meu quarto—grunhiu ele em seguida—, se é que consigo chegar.
Ela se encolheu de ombros e começou a subir o segundo lance da escada, que aqui se fazia mais íngreme.
Ilse Kinkovsi vestia roupas que já estavam fora de moda nas cidades, mas que ainda se usavam nos povoados pequenos e nas comunidades camponesas. Vestia um vestido vincado de algodão, comprido até um pouco mais abaixo do joelho, muito ajustado na cintura, com o sutiã abotoado na frente e as mangas bufantes. Usava botas de borracha de meia cano, que Dragosani achou ridículas, mas que sem dúvida eram muito cômodas em uma granja. No inverno certamente colocaria meias compridas, até a parte superior das coxas, mas agora não estavam no inverno...
Dragosani tentou tirar os olhos, mas não havia nada mais que olhar. E, maldita seja, ela rebolava com exagero! Um estreito V negro separava os globos brancos das nádegas.
No segundo descanso a jovem se deteve e se voltou para esperá-lo ao final da escada. Dragosani ficou imóvel onde estava e conteve o fôlego. Ela o olhou com uma expressão tão imperturbável como antes, apoiou todo seu peso sobre um só pé, esfregou-se a parte interior da coxa com o joelho e, com os verdes olhos relampagueantes, disse-lhe:
—Estou segura de que gostará muito... do quarto—e rebolou lentamente para descarregar seu peso sobre o outro pé.
Dragosani afastou os olhos.
—Sim... sim... estou seguro de que eu... eu.
Ilse percebeu que o suor molhava sua testa. Voltou o rosto e fez uma careta. Possivelmente tinha acertado com o refrão. Uma verdadeira pena...

Capítulo cinco

Ilse Kinkovsi levou ao Dragosani sem mais demora à água-furtada, mostrou-lhe o quarto de banho que, de maneira surpreendente, era na verdade muito moderno, e se dispôs a partir. Os cômodos eram muito bonitos: paredes caiadas, vigas antigas de carvalho, armários e prateleiras de madeira envernizada. Dragosani começou a sentir-se mais contente. E agora que a moça se mostrava mais distante, ele começou a sentir certa simpatia por ela, ou melhor dizendo, por toda a família Kinkovsi. Depois da hospitalidade com que o tinham recebido pai e filha, seria uma estupidez que jantasse sozinho no quarto.
—Ilse —a chamou em um impulso—, quero dizer, senhorita Kinkovsi, mudei de ideia. Eu gostaria de jantar na granja. Na verdade, eu passei minha infância em uma granja, e não será algo novo para mim. E tratarei de não incomodá-los. Assim... a que hora jantamos?
Ela se voltou enquanto baixava a escada e lhe disse:
—Assim que você se lavar e descer. Estaremos lhe esperando. —Em seu rosto não havia agora nenhum sorriso.
—Ah, então desço em dois minutos! Obrigado!
Enquanto os passos da jovem na escada se afastavam até desaparecer no silêncio, Dragosani tirou rapidamente a camisa, abriu uma das malas e encontrou todo o necessário para barbear-se, toalha, calças limpas e engomadas e meias três quartos também limpas. Dez minutos mais tarde desceu depressa as escadas, saiu da casa de hóspedes e encontrou Kinkovsi esperando-o na porta da casa.
—Perdão, perdão! vim tão depressa como pude!
—Não tem importância —disse o outro e lhe agarrou a mão—. Bem-vindo a minha casa. Entre, por favor. Jantaremos em seguida.
Dentro um se sentiu um pouco claustrofóbico. As salas eram amplas mas de tetos baixos, estavam pintadas em tons escuros e a decoração era de estilo «romeno antigo». Uma vez na sala de jantar, Dragosani se encontrou sentado frente a uma janela, em um dos lados de uma enorme mesa quadrada que poderia ter acomodado a uma dúzia de comensais. A iluminação era tão escassa que o rosto do Ilse —que depois de ajudar a servir a sua mãe se sentou no lado oposto— era apenas uma vaga silhueta na penumbra. À direita de Dragosani se sentaram Hzak Kinkovsi e sua esposa —esta última quando acabou com suas tarefas—, e à esquerda os dois filhos varões do granjeiro, dois meninos de uns doze e dezesseis anos de idade, mais ou menos. Uma família camponesa como tantas.
A comida era simples, abundante e merecedora de que lhe fizessem todas as honras. Dragosani expressou sua aprovação e Ilse sorriu enquanto Maura, sua mãe, muito satisfeita pelos elogios, dizia:
—Pensei que viria faminto. É uma viagem tão longa! Quantas horas demorou de Moscou?
—Muitas, mas parei para comer! —respondeu sorridente Dragosani. E logo, recordando a viagem, continuou falando com uma expressão de desagrado no rosto—: Fiz duas refeições, e as duas foram ruins e muito caras. Depois dormi um par de horas no carro, à saída do Kiev. E vim pela rota do Galatz, Bucarest e Pitesti, para evitar os portos de montanha.
—É um caminho muito comprido —observou Hzak Kinkovsi—, mil e seiscentos quilômetros.
—Isso, se eu fosse um pássaro e voasse em linha reta —respondeu Dragosani—. Mas não o sou! Segundo o velocímetro de meu carro, são mais de dois mil quilômetros.
—E só para estudar a história local! —exclamou o granjeiro, meneando a cabeça.
Já tinham terminado o jantar. O velho camponês (não era velho em realidade; sua pele não estava murcha pelos anos a não ser curtida pelo trabalho ao ar livre), inclinou-se para trás em sua cadeira a fumar um cachimbo de cerâmica cheio de perfumado tabaco. Dragosani acendeu um cigarro Rothmans; Borowitz lhe tinha comprado um pacote de duzentos em uma loja de Moscou que só podia frequentar a elite da sociedade. Os dois meninos foram terminar com os trabalhos do dia e as mulheres se retiraram para lavar os pratos.
A observação do Kinkovsi sobre a «história local» tinha surpreendido em princípio ao Dragosani, mas logo recordou que essa era a razão que tinha dado para justificar sua presença no lugar. Aspirou a fumaça de seu cigarro, e se perguntou quão longe podia chegar com suas explicações. Por um lado, supunha-se que era um empresário de pompas fúnebres, e talvez não chamasse a atenção que suas inclinações fossem um tanto mórbidas.
—Sim, podemos dizer que se trata da história local, mas nesse caso também poderia ter ido a Hungria, ou haver ficado na Moldávia, ou cruzado os Alpes até a Gradea. Ou ter ido a Iugoslávia, ou inclusive ter chegado pelo este a um lugar tão longínquo como Mongólia. Todas estas regiões têm algo em comum que me interessa, mas esta me atrai mais que nenhuma, porque aqui está o lugar onde nasci.
—E o que é o que têm em comum que lhe interessa? As montanhas? Ou possivelmente as batalhas? Deus sabe a quantidade de guerras que conheceu meu país!
Kinkovsi não tinha iniciado esta conversa por cortesia, mas sim porque estava realmente interessado. Serviu um pouco mais do vinho da fazenda —feito com as uvas do lugar, e de uma excelente qualidade— na taça do Dragosani e voltou a encher a sua.
—Acredito que as montanhas são parte disso —disse o homem mais jovem—. E neste lugar do mundo, também as batalhas. Mas a lenda em sua totalidade é muito mais antiga que qualquer história que possamos recordar. É possível que seja tão velha como as mesmas montanhas. É algo muito misterioso... e muito horrível.
Dragosani se inclinou para frente e olhou fixamente os lacrimosos olhos do Kinkovsi.
—Bom, não me mantenha em suspense! Qual é sua misteriosa paixão, essa busca tão antiga?
O vinho era muito forte, e dissipou quase por completo a habitual cautela do Dragosani. Fora o sol se pôs e a penumbra parecia envolvê-lo tudo em uma capa de fumaça azul. Da cozinha chegava o tilintar dos pratos e um apagado rumor de vozes. Em outra habitação se ouvia o grave tic-tac de um relógio. Era o cenário perfeito. E esses camponeses, tão supersticiosos...
Dragosani não pôde resisti-lo.
—A lenda da que falo —disse lentamente, pronunciando com claridade as palavras— é a do vampiro.
Kinkovsi, atônito, não disse nada durante um instante. E logo se tornou atrás na cadeira e pôs-se a rir estrepitosamente, batendo nas coxas.
— Sim, o vampiro! Tinha que havê-lo adivinhado. Cada ano são mais as pessoas como você, e todos procuram Drácula.
Dragosani ficou pasmado. Por certo que não era esta a reação que tinha esperado encontrar.
—As pessoas como eu? Cada ano? Parece-me que não entendo...
—Agora que se levantaram um pouco as restrições, que têm aberta um pouco sua preciosa cortina de aço, vêm da América, da Inglaterra e da França, e até há uns poucos da Alemanha. A maioria são turistas curiosos, mas também há professores e acadêmicos. E todos vêm em busca dessa «lenda», dessa mentirosa lenda. Tirei sarro a tantos, nesta mesma sala, fingindo que tenho medo disso... desse Drácula! São tolos! Todos, até os «camponeses ignorantes» como eu, sabem que essa criatura é um personagem de uma novela que escreveu um inglês muito preparado a princípios de século. Sim, e não faz mais de um mês puseram um filme com esse título no cinema do povoado. Você não pode me enganar, Dragosani. Não me surpreenderia nada descobrir que você é o guia do grupo de ingleses que estou esperando. Chegarão na sexta-feira. E também eles estão procurando a esse vampiro tão mau.
—Acadêmicos, diz você? —Dragosani fez o possível para dissimular sua confusão—. Sábios?
Kinkovsi ficou de pé e acendeu o abajur elétrico que pendurava do teto, no centro da habitação. Chupou com força o cachimbo, que reacendeu-se.
—Acadêmicos, sim. Professores de Colônia, Bucarest ou Paris. vieram nos últimos três anos, todos armados com cadernetas, fotocópias de mapas antigos e de documentos, câmaras fotográficas, livros de notas ... e toda classe de coisas!
Dragosani já se recuperou.
—E também com talões de cheques, não é verdade? —disse Dragosani com um sorriso forçado.
Kinkovsi deu outra gargalhada.
—Claro que sim! Também com dinheiro. Ouvi dizer que nas montanhas as lojas dos povoados vendem pequenos frascos cheios de terra do castelo da Drácula. Por Deus! Não é incrível? Logo será a vez do Frankenstein. Vi-o em um filme e é realmente aterrorizante.
Dragosani começou a encolerizar-se. De maneira ilógica, sentia que também ele era o alvo das brincadeiras do Kinkovsi. Assim que o panaca não acreditava em vampiros; faziam-lhe morrer de rir, eram como o Yeti, ou o monstro do lago Ness: atrações para turistas, restos de antigos mitos e de contos de velhas...
E então e ali mesmo, Dragosani jurou que...
—Por que tanta conversa sobre monstros? —Maura Kinkovsi veio da cozinha secando-as mãos no avental—. Tome cuidado, Hzak, e não tente ao demônio! Também você, Herr Dragosani. Há coisas nos lugares remotos que a gente não compreende.
—Que lugares remotos, mulher? —perguntou rindo seu marido—. Aqui tem a um homem que veio de Moscou em pouco mais de um dia, uma viagem que antes tivesse levado uma semana, e ainda mais, e você fala de lugares remotos, isolados. Os lugares remotos e solitários já não existem!
«Sim, existem —pensou Dragosani—. Sua tumba é um lugar terrivelmente solitário. Percebi-o nele; tem sentido uma solidão que ele mesmo ignora... até que o contato comigo o despertou...»
—Sabe o que quero dizer —replicou com brutalidade a mulher do Kinkovsi—. Se diz que nas montanhas ainda há povos nos que cravam uma estaca no coração da gente que morre muito jovem, ou sem causa aparente, para estar seguros de que não voltarão. E a ninguém parece mal —Isto último o disse olhando ao Dragosani—. É só um costume, como tirar o chapéu quando passa um cortejo fúnebre.
Também Ilse fez sua aparição, e interveio no bate-papo.
—Você também é um caçador de vampiros, Herr Dragosani? São gente tão doentia e tenebrosa! Você não pode ser um deles!
—Não, claro que não. —O sorriso forçado do Dragosani parecia agora congelada em seu rosto—. Estava brincando com seu pai, isso é tudo. Mas me parece que ao final foi ele quem se divertiu.
Dragosani ficou de pé.
—Já vai se dormir? —perguntou Kinkovsi, evidentemente decepcionado—. Claro, ainda deve estar cansado. É uma lástima, pensava que seguiríamos conversando. Bom, não importa, tenho ainda muitas coisas que fazer. Possivelmente possamos falar amanhã.
—claro que sim! Já teremos tempo de conversar —disse Dragosani enquanto o dono de casa o acompanhava até a porta.
—Ilse —disse Kinkovsi—, pegue uma lanterna e acompanhe ao senhor até a casa de hóspedes. Esta meia luz, quando a gente não conhece o caminho, é pior que a noite fechada.
A jovem fez o que lhe tinha pedido seu pai e guiou Dragosani através do pátio da fazenda até a porta da casa de hóspedes. Ali acendeu as luzes das escada, e antes de lhe dar boa noite, disse-lhe:
—Herr Dragosani, há uma sineta junto a sua cama. Chame se necessitar algo durante a noite. A pena é que certamente despertará também a meus pais. Possivelmente seria melhor que abrisse pela metade as cortinas de sua janela. Eu posso as ver da janela de meu quarto...
—Como? —disse Dragosani, que fingiu ser lento de entendimento—. No meio da noite?
Mas Ilse Kinkovsi deixou bastante claro o que queria significar.
—Não durmo muito bem —respondeu—. Meu quarto está no andar de baixo. Eu gosto de abrir a janela para que entre o ar da noite. Às vezes saio por ali e caminho à luz da lua; habitualmente por volta da uma da manhã.
Dragosani fez um gesto de assentimento mas não disse nada. A jovem estava muito perto dele. Antes de que ela pudesse esclarecer ainda mais a situação, Dragosani se voltou e correu escada acima. Sentiu os olhos zombadores de Ilse em suas costas até que girou pela curva do primeiro patamar.
Quando chegou em seu quarto, Dragosani fechou rapidamente as cortinas da janela, desfez as malas e encheu a banheira. Havia um aquecedor a gás, e a água fumegava lhe convidando. Dragosani jogou sais de banho e se despiu.
Ficou um momento na banheira, desfrutando do calor da água e dos pequenos redemoinhos que se faziam quando movia os braços. Ao cabo de pouco tempo começou a sentir-se sonolento, e a água esfriou. Dragosani terminou de banhar-se e se preparou para deitar-se.
Não eram mais que as dez da noite quando se meteu entre os lençóis, mas um ou dois minutos mais tarde já estava profundamente adormecido.
Antes da meia-noite despertou, viu uma nesga vertical de luz de lua que penetrava no quarto por um pequeno espaço entre as cortinas, que não estavam completamente corridas. Dragosani recordou as palavras do Ilse Kinkovsi, levantou-se, agarrou um alfinete de segurança, fechou as cortinas e as segurou firmemente. Durante um instante —e possivelmente mais de um instante— desejou que aquilo pudesse ser de outra maneira mas... mas era impossível.
Não odiava às mulheres, nem lhe inspiravam temor, era simplesmente que não as compreendia, e com tantas coisas que fazer —tantas outras coisas que conhecer, e tentar compreender— não podia perder o tempo em desconhecidos e duvidosos prazeres. Ao menos, isto é o que se disse. E, de todos os modos, suas necessidades eram distintas das dos outros homens, e suas emoções menos fugazes. Exceto quando necessitava que fossem. Mas o que tinha perdido em vulgar sensualidade, tinha-o ganho em uma estranha sensibilidade. Embora isto pareceria uma paradoxo a qualquer um que conhecesse seu trabalho.
Quanto a essas outras coisas que desejava conhecer, ou ao menos tentar compreender, eram muitas. Borowitz estava contente com ele tal como era, mas Dragosani não estava satisfeito consigo mesmo. Sentia que seu talento era ainda unidimensional, que carecia de verdadeira profundidade. Muito bem, lhe daria uma autêntica profundidade, umas profundidades não exploradas em quinhentos anos. Ali fora, na escuridão da noite, havia alguém que possuía segredos únicos, que em vida tinha conjurado feitiços monstruosos e que inclusive agora, morto, era imortal. Para Dragosani, ali estava a fonte de todo conhecimento. Só quando tivesse bebido dessas águas até as esgotar poderia lhe dedicar tempo a outros aspectos de sua «educação».
Já era meia-noite, a hora da bruxa. Dragosani se perguntou que alcance teriam os sonhos do adormecido, se chegariam além dos limites do claro, se poderiam encontrar-se a metade do caminho. A lua cheia estava muito alta no céu e brilhavam as estrelas; no alto das montanhas uivavam os lobos enquanto espreitavam a suas presas, tal como o tinham feito fazia quinhentos anos. Todos os auspícios lhe eram favoráveis.
Deitou -se novamente, e imóvel no leito imaginou a tumba em ruínas onde as raízes se estendiam como tentáculos fósseis e as árvores se inclinavam para proteger seu segredo. Imaginou, e disse mentalmente:
—Antigo ser, retornei. Trago-te esperança em troca de conhecimento. É o terceiro ano, e só ficam quatro. Como vão as coisas para ti?
Fora, na noite, um vento soprou das montanhas. As árvores sussurraram enquanto seus ramos se inclinavam e Dragosani ouviu um suspiro detrás das vigas do teto, sobre sua cabeça. Mas o vento se acalmou tão repentinamente como tinha começado, e em seu lugar:
Ahhh, Dragosani! É você, meu filho? tornaste a me buscar em minha solidão, Dragosaaaani?
—E quem outro poderia ser, velho demônio? Sim, sou Dragosani. Tornei-me mais forte, converti-me em um pequeno poder no mundo. Mas quero mais! Você tem os segredos definitivos do poder, por isso retornei e por isso seguirei vindo até que... até que...
Quatro anos mais, Dragosani. E então..., então sentirá a minha direita e eu te ensinarei muitas coisas. Quatro anos, Dragosani. Quatro anos. Aaahhh!
—Quatro anos que serão muito compridos para mim, velho dragão, porque devo despertar cada manhã e dormir cada noite e contar as horas que passam. E o tempo está lento. Embora possivelmente não o seja para ti... Como foi para ti este último ano, antigo ser?
Teria sido um instante muito breve, fugaz, já passado, se você não me tivesse incomodado, Dragosani. Mas despertaste minhas ânsias. Eu jazia em minha tumba, e durante cinquenta anos odiei e desejei me vingar dos que me puseram aqui, E durante cinquenta anos mais só desejei estar levantado e entregue a minhas ocupações, que são vencer a meus inimigos. E logo..,, logo pensei: meus assassinos já não existem. Não são mais que ossos em suas tumbas, ou pó que flutua no vento. E em outros cem anos... não terá acontecido o mesmo com os filhos de meus inimigos? Ah, bem posso me fazer essa pergunta! O que foi das legiões que no passado lutaram nestas montanhas e se encontraram com os pais de meus pais que as esperavam? O que foi do Lombardo, e do Búlgaro, do Avaro e do Turco? Ah, que valente lutador foi em sua época o Turco! Era meu inimigo, mas já não o é mais, E assim passaram quinhentos anos, como um sopro, porque eu estava esquecendo minhas glórias do mesmo modo que um ancião esquece sua infância. E já quase tinha esquecido. E já quase tinha sido esquecido. E o que teria sido de mim então, quando não tivesse ficado mais que uma palavra em um livro, e logo o livro mesmo se feito pó? Então certamente não teria tido nenhuma razão de ser. E possivelmente me tivesse alegrado de que assim fosse. E então chegou você, nada mais que um menino, mas um menino cujo... nome... era... Draaagosaaaaniiii...
Quando a voz se debilitou o vento soprou outra vez, e ambos pareceram fundir-se e desaparecer juntos. Dragosani pensou no que devia fazer, e se estremeceu em sua cama. Mas ele tinha eleito esta maldição, este destino, Sentiu temor de ter perdido ao outro, e o chamou, premente:
—Antigo ser, você, o do estandarte do dragão; do morcego, o dragão e o demônio, onde está?
E onde poderia estar, Dragosani? —respondeu-lhe a voz em são de brincadeira—. Sim, estou aqui. Começo a me agitar em minha abandonada tumba. Acreditei que me tinham esquecido, mas semearam uma semente e floresceu, e você recordou, e soube de minha existência. E por seu nome, eu soube quem foi, Dragosani...
—Conta-me o outra vez! —pediu ansioso Dragosani—. me Conte como aconteceu. me fale de meu pai e de minha mãe, de como se conheceram. Conta-me o que sabes.
Já o ouviste duas vezes —disse suspirando a voz na cabeça do Dragosani—, e quer ouvi-lo de novo? Crê que poderá buscá-los? Se for assim, não posso te ajudar. Para mim, seus nomes careciam de importância; não os conhecia, não sabia nada deles, salvo que seu sangue era quente. E desse sangue só provei uma muito pequeno gota, uma diminuta gotinha rosa! Mas mais tarde tive em mim uma parte deles, por pequena que fosse, e eles tiveram minha parte... que lhe transmitiram, Dragosani. Não me pergunte por seus pais. Eu sou seu pai...
—Andaria outra vez sobre a terra, e respiraria, e voltaria a saciar sua sede, antigo ser? Mataria a seus inimigos, e os expulsaria de sua terra como antigamente —como o fizeram seus antepassados antes que você—, e seria esta vez seu próprio senhor, e não a espada mercenária dos ingratos príncipes Dracul? Se desejas tudo isto, façamos um trato. Me fale de meus pais.
Em ocasiões um trato soa como uma ameaça, Dragosani. Ameaçaria-me você? —A voz assobiou em sua cabeça como gelo sobre as cordas de um violino desafinado—. Te atreve a me falar dos Vlads, os Draculs, os Radus e os Meneia? Atreve-te a me recordar isso Já me chamar «mercenário»? Moço, ao final, aqueles que chamas meus «amos» me temiam mais que ao mesmo turco. E essa é a razão de que me murassem em ferro e prata e me enterrassem neste lugar secreto, nas mesmas colinas cruciformes que eu defendi com meu sangue. Lutei por eles, por sua «Santa cruz» e sua «cristandade», mas agora luto para ver-me livre disso. Sua traição é minha dor; sua cruz, a adaga cravada em meu coração!
—Uma adaga que eu posso tirar. Seus inimigos retornaram, e não há ninguém que os tire daqui; só você poderia fazê-lo, velho demônio. Mas jaz impotente. A meia lua do turco se transformou na foice de outro povo, uma foice que esmaga o que não pode segar. Eu sou valaco, igual a você, e seu sangue é mais antigo que a mesma Valáquia. Tampouco eu suportarei ao invasor. Mas agora há um invasor novo, e nossos chefes são seus bonecos uma vez mais. O que acontecerá? Está satisfeito com esse estado de coisas, ou lutará outra vez? O morcego, o dragão e o demônio contra a foice e o martelo.
(Um suspiro, simultâneo ao sussurro do vento nas vigas.) Muito bem, contarei-te como aconteceu, e como você... começou a existir.
Era primavera. Eu o sentia na terra..., era o tempo em que tudo cresce. O ano... mas o que são os anos para mim? De todas formas, foi faz um quarto de século.
—Então foi em mil novecentos e quarenta e cinco —observou Dragosani—. A guerra estava por terminar. Os ciganos estavam aqui; tinham procurado refúgio nas montanhas, como tantas outras vezes ao longo dos séculos. Fugiam da maquinaria de guerra germânica e chegaram aqui a milhares. E a planície transilvana os protegeu, como sempre. Os alemães os tinham açoitado por toda a Europa —aos ciganos, romanies, ou como quer chamá-los— para matá-los junto aos judeus em seus campos de extermínio. Stalin tinha deportado a numerosos membros das minorias étnicas do Cáucaso e da Crimeia com o pretexto de que eram «colaboracionistas». Foi então quando aconteceu, e então quando acabou. A primavera de mil novecentos e quarenta e cinco, mas nos tínhamos rendido mais de seis meses antes. De todos os modos, já se via o final, e os alemães se batiam em retirada. Hitler se suicidou a fins de abril...
Eu só sei dessa época o que você me contou. Rendemo-nos, diz? Não me surpreende!, mil novecentos e quarenta e cinco? Sim, mais de quatrocentos e cinquenta anos e nos seguem invadindo! E eu não estava ali para beber o vinho da guerra! Sim, é verdade, você desperta em mim velhos desejos, Dragosani.
De todas formas, era primavera quando chegaram esses dois. Suspeito que fugiam. Possivelmente da guerra, mas quem pode dizê-lo! Eram muito jovens e pertenciam à antiga raça. Ciganos? Sim. Em meus tempos, quando era um grande boyardo, centenas deles me tinham adorado, e me tinham jurado fidelidade, mais que esses Esárabes, e Vlads e Vladislavs. Perguntava-me se ainda me adorariam. E teria ainda influência sobre eles?
Minha tumba estava meio em ruínas, tal como o está hoje em dia. Ninguém a tinha visitado depois dos primeiros cinquenta anos, em que vinham sacerdotes amaldiçoar o chão onde eu jazia. Eles chegaram uma noite quando a lua se elevava sobre as montanhas. Eram jovens ciganos romenos, um menino e uma garota. A primavera estava morna, mas as noites eram frias. Traziam mantas e um lampião. Tinham medo. E paixão. Foi isso, acredito, o que me despertou. Ou talvez eu já estava meio acordado. Depois de tudo, rugiam os motores da guerra, e se ouviam seus trovões sobre a terra. Talvez foi isso ou que fez que estes velhos ossos se movessem...?
Percebi o que eles estavam fazendo. Em mais de quatro séculos e meio tinha aprendido a distinguir a queda de uma folha, o tímido roçar da pluma de uma ave. Puseram uma manta sobre duas lajes inclinadas e procuraram assim um refúgio. Acenderam o lampião para ver-se, e também para esquentar-se. Ah, os ciganos! Não necessitavam do lampião para se esquentarem!
Interessei-me por eles. Eu tinha chamado durante séculos, e não veio ninguém, ninguém respondeu. Talvez os padres os mantinham longe, ou as advertências, ou os mitos que com o correr dos anos se converteram em lendas. Ou talvez meus excessos em vida tinham sido ...
Contaste-me, Dragosani, que muitas de minhas grandes façanhas são hoje em dia atribuídas aos Vlads, e eu fiquei reduzido a um fantasma para assustar as crianças. Ainda mais, meu verdadeiro nome foi apagado dos registros, porque essa era a maneira em que procediam naqueles tempos. Se temiam algo, destruíam-no e fingiam que nunca tinha existido. Mas acaso pensaram que eu era o único de minha espécie? Não o era! Não o era! Eu fui um dos poucos que ficaram de uns seres que antigamente foram muitos, E não chegou aos ouvidos dos outros rumor algum sobre minha inquietante situação? Durante centenas de anos me enfureceu que ninguém tivesse vindo me libertar, ou ao menos me vingar. E quando por fim veio alguém... eram ciganos!
A garota estava atemorizada e ele não conseguia tranquilizá-la. Eu o fiz. Penetrei em sua mente, dei-lhe forças para enfrentar seus temores e para reunir-se com seu amante na ardente colisão da carne. Ah!
Sim, ela era virgem! Sua virgindade estava intacta, e o desejo que despertou em mim teria podido me matar outra vez em minha tumba! Uma virgindade intacta! Para citar um antigo livro de mentiras: Como caem os importantes! E eu, que tinha esmigalhado duas mil virgindades em meus tempos, de uma maneira ou de outra! Sim, sim, sim! E pensar que chamavam «o Empalador» ao jovem Vlad!
Assim... os jovens eram amantes, mas não em toda a extensão da palavra. Ele era um menino, um cachorrinho, e nunca tinha desflorado a uma fêmea... e ela era virgem. E eu me introduzi na mente dele. Ah, e eu lhes leguei a noite! Eles tiraram forças de mim e eu deles. Só me deram uma noite, só uma, porque antes do alvorada se foram. E depois... depois já não soube mais nada deles...
—Exceto que ela deu a luz —disse Dragosani—, e me deixou na soleira de uma casa para que me encontrassem.
A resposta demorou um pouco em chegar, suspirando no vento que agora era pouco mais que uma brisa. O antigo ser enterrado estava exausto; já quase não tinha forças, nem sequer para pensar; a terra o retinha em seu apertado útero e girava sobre seu inexorável eixo e o embalava. Mas ao fim respondeu com um suspiro:
Siiiim. Sim, mas ao menos soube onde te levar. Era uma cigana, recorda? Uma vagabunda. Entretanto, quando nasceu te trouxe aqui. Trouxe-te para seu lar! Ela o fez porque sabia quem era seu verdadeiro pai, Dragosani. Muito bem pode dizer que em toda minha vida, que foi sanguinária além de toda medida, aquela foi minha única noite de amor. Sim, e meu único tributo uma solitária gota de sangue. Uma insignificante gota, Dragosaaaaniiii...
—O sangue de minha mãe.
A de sua mãe, que caiu na terra onde eu durmo. Que gota tão preciosa! Porque era também seu sangue, e corre agora por suas veias. E logo, quando ainda eras um menino, trouxe-te para mim.
Dragosani ficou calado, sua mente cheia de pensamentos, visões, falsas lembranças suscitadas pelas palavras do outro. Por último disse:
—Amanhã virei de novo para ti, e seguiremos falando.
Como quiser, meu filho.
—Dorme agora..., pai.
Uma última rajada de vento moveu uma telha solta, e Dragosani percebeu um prolongado suspiro final.
Que durma bem, Dragosaaaaniii.
Uns minutos mais tarde, na casa da família Kinkovsi, Ilse saltou da cama, foi até sua janela e olhou para fora. Pensou que a tinha despertado o vento, mas não soprava nem sequer uma brisa. Não tinha importância, porque de todos os modos tinha planejado despertar antes da uma da manhã. A luz da lua banhava tudo com uma luz chapeada, mas na casa de hóspedes as cortinas da habitação do Boris Dragosani estavam hermeticamente fechadas. E sua luz estava apagada.

Ao dia seguinte era quarta-feira.
Dragosani tomou o café da manhã depressa e partiu em seu carro antes das oito e meia. Pegou o caminho que o levava até muito perto das colinas em forma de cruz. Abaixo, a oeste das colinas, e em uma ampla depressão, encontrava-se a granja em que Boris tinha passado a infância. A fazenda tinha outros donos fazia uns oito ou nove anos. Dragosani encontrou um posto de observação em um caminho pouco utilizado e contemplou a casa durante um momento. Não sentia nada agora, nada mais que um tênue nó na garganta, que muito bem poderia ter sido provocado pelo pó ou o pólen do seco ar do verão.
Depois deu as costas à granja e contemplou as colinas. Sabia exatamente onde olhar. Seus olhos, como se fossem as lentes de um prisma, pareceram enfocar o lugar com incrível clareza e detalhes. Quase podia ver sob o verde toldo das árvores as lajes caídas de pedra da tumba, e a terra debaixo. E se se esforçasse, possivelmente poderia penetrar mais profundamente.
Dragosani afastou os olhos. Era inútil ir ali antes da noite. No máximo, podia ir a última hora da tarde.
E então recordou outro entardecer, quando era um menino.
Depois daquela primeira vez, quando tinha sete anos, tinham passado seis meses antes de que voltasse para lugar. Tinha saído com o trenó e um cão dava saltos a seu lado. Bubba em realidade era um dos cães da granja, mas em qualquer lugar que Boris fosse, ele o seguia. Havia uma inclinação no terreno do outro lado da granja que descia em direção ao povoado, e ali brincavam as crianças no inverno, jogavam bolas de neve e deslizavam em trenós. Boris teria que ter ido ali, mas ele conhecia uma ladeira melhor: o corta fogo, é claro. Também sabia —o tinha sabido sempre que essas colinas eram um lugar proibido, e o último verão lhe tinham explicado a razão. Em tempos passados as pessoas sonhavam coisas estranhas ali, coisas que permaneciam em suas mentes e logo as perturbavam pelas noites. Mas saber isto não o deteve, mas bem fez que apertasse o passo, ansioso por chegar.
As colinas, cobertas de neve, não pareciam tão lúgubres, e o corta fogo era uma pista perfeita para o trenó. Boris era muito bom. O inverno anterior também tinha vindo, e o anterior aquele, quando era muito pequeno. Sempre tinha vindo sozinho. Mas hoje utilizou a pista uma só vez, e quando baixava olhou para a direita, para ver se podia localizar o lugar sob as árvores. Depois deixou o trenó ao pé da colina, e subiu com Bubba por entre os pinheiros, que pareciam muito escuros contra a neve. Disse a si mesmo que ia outra vez à tumba para convencer-se de que não era mais que o lugar onde estava enterrado um antigo latifundiário, esquecido fazia tempo. Isso, e nada mais. A primeira vez só tinha sido um mau sonho, depois de bater a cabeça ao cair com seu carro de papelão. Além disso, agora tinha Bubba para que o acompanhasse e protegesse.
Ou o tivesse tido, porque quando se aproximavam do lugar secreto o cão lançou um gemido e fugiu. Depois disso, Boris viu por uma fenda entre as árvores que estava ao pé da ladeira, perto do trenó; movia nervoso a cauda e ladrava de vez em quando.
Boris por fim chegou aonde estava a tumba; o lugar era tal como o recordava. Mais escuro, possivelmente, porque a neve acumulada nos ramos mais altas impedia a penetração da luz, habitualmente escassa, e o chão parecia negro aos olhos acostumados ao branco brilho da neve. Era um sítio muito pouco ventilado, e o escasso ar que havia parecia agitado por presenças e formas invisíveis. Realmente, era um lugar para maus sonhos. Em especial ao entardecer. E pôr-do-sol já estava muito próximo...
Ouvia ao longe —mas só com parte de sua consciência, porque estava absorto no lugar, em seu subconsciente —, os latidos da Bubba que ressoavam como disparos no ar gelado. Boris desejou que o cão se calasse, e subiu engatinhando para onde as lajes se inclinavam, e o velho túmulo exibia o antigo brasão. Agora que seus olhos se habituaram à escuridão, e enquanto seus dedos repassavam as imagens do morcego, o dragão e o demônio gravados na pedra, Boris recordou a voz extremamente maligna que lhe tinha parecido ouvir da última vez que esteve no lugar. Um sonho? Possivelmente, mas um sonho terrivelmente real, que o tinha mantido longe da ladeira durante o meio ano.
Mas do que tinha medo? De uma velha tumba meio desmoronada? Pelo que sussurravam camponeses ignorantes? De uma voz estranha em sua mente, semelhante ao sabor de algo podre? Podre, sim, mas tão insistente! E quantas vezes havia retornado aquela voz a sua mente, quando estava dormido, seguro em sua cama, e tinha sussurrado: «Nunca me esqueça, Dragosaaniiii...!».
Movido por um impulso repentino, Boris gritou:
—Já vê, não esqueci. Tornei. Retornei a seu lugar. Não, a meu lugar. Meu lugar secreto.
Seu fôlego formava pequenas nuvens brancas que ascendiam e se dispersavam. E Boris escutou com todo seu ser. De uma laje inclinada pendiam pedaços de gelo azuis que reluziam como dentes; as agulhas dos pinheiros formavam uma crosta gelada sob a sola de suas botas de pele de porco; seu último fôlego caiu a terra convertido em diminutos cristais antes de que ele voltasse a respirar. E ainda escutava. Mas... nada.
O sol já ficava. Boris tinha que partir. Deu-lhe as costas à tumba. Suas palavras, aprisionadas nos cristais gelados de seu fôlego, enviaram sua mensagem à terra.
Ahhh!
Possivelmente era o sussurro do vento nos ramos, mas Boris ficou imóvel no lugar como se tivessem atravessado seus pés com pregos.
—Você! —ouviu-se dizer, dirigindo-se a ninguém, a nada, à escuridão—. É você?
Ahhh! Dragosaaniii! E já há ferro em seu sangue, moço? Por isso voltaste?
Boris tinha ensaiado este instante cem vezes; tinha imaginado sua resposta, a reação do outro, se a voz voltava a lhe falar no lugar secreto. Não tinham sido mais que fanfarronadas, e agora não lhe ocorria nenhuma resposta.
E bem? O frio te congelou a língua'? Se nem pode falar, moço, diga-o com a mente. Acaso estás tonto? Os lobos uivam nas montanhas, o vento ruge sobre mares e montanhas, e até a neve parece suspirar, E você, tão cheio de palavras e de perguntas, tão ávido de conhecimentos, ficas mudo.
Boris se tinha proposto lhe dizer: «Estas colinas são minhas. Este lugar me pertence, você só está enterrado nele. De modo que te cale!». E tinha pretendido dizê-lo energicamente, tal como o tinha ensaiado. Mas tudo o que disse, e gaguejando, foi:
—É... é real? Quem... o que... como é? Como é possível que exista?
Como podem existir as montanhas? E a lua cheia? As montanhas crescem e sofrem a erosão. A lua cresce e míngua. Elas existem e também existo eu...
Boris não conseguia entendê-lo, mas se tornou mais corajoso. Agora ao menos sabia onde estava esse ser. Estava no chão, e como poderia ferir alguém lá debaixo?
—Se for verdadeiro, me deixe que te veja.
Quer brincar comigo? Sabe que isso não pode ser. Gostaria que te possuísse? Não posso. Ainda não. Além disso, já vejo que seu sangue é ainda água, e se me visse, congelaria-se como o gelo de minha tumba, Dragosani.
—É... algo morto?
Sou um não-morto
—Já sei quem é! —exclamou de repente Boris, e deu uma palmada com suas geadas mãos—. Você é o que meu padrasto chama «imaginação». Você é minha imaginação. Ele diz que eu tenho uma grande imaginação.
E a tem, certamente, mas minha natureza é... é diferente. Não, não sou uma criação de sua mente; não tente te convencer disso.
Boris fez um esforço para compreender. Por último perguntou:
—E o que faz você?
Espero.
—Que esperas?
Espero a ti, meu filho.
—Mas eu estou aqui!
Obscureceu em um instante, como se as árvores se houvessem em peso, impedindo a entrada da luz. O roce das presenças invisíveis, ligeiro como o de uma pluma, de repente se tornou também cortante como a geada. Boris quase tinha esquecido seu medo, mas agora voltou a invadi-lo. E porque o refrão que diz que a familiaridade engendra o desprezo encerra uma profunda verdade, Boris virtualmente tinha esquecido a maldade que continha a voz que ressonava em sua cabeça. Mas agora teve que recordá-lo, porque ouviu:
Menino, não me tente! Seria rápido, delicioso e inútil. Não é bastante para mim, Dragosani, e seu sangue carece de substância. Tenho fome, e me daria de presente com um festim, mas você não é mais que uma pequena porção.
—Agora..., agora irei.
Sim, vai-te. Volta quando for um homem, e não uma chateação.
E Boris, enquanto se afastava tremendo do lugar, rumo à trilha de neve do corta fogo, disse por cima do ombro:
—Não é mais que uma criatura morta. Não sabe nada. Do que poderia me falar?
Sou um não-morto. Sei tudo o que terá que saber, e poderia te falar sobre todas as coisas.
—Sobre que coisas?
Sobre a vida, sobre a morte, sobre a não-morte.
—Não quero saber nada dessas coisas!
Mas quererá, algum dia o quererá.
—E quando me falará de todo isso?
Quando puder compreender, Dragosani.
—Há-me dito que eu era seu futuro, e que você foi meu passado. Isso é uma mentira. Eu não tenho passado, só sou um menino.
Sim? Sim, sim, sim! Claro que é. Mas em seu débil sangue corre a história de uma raça. Eu estou em ti e você está em mim, Dragosani. E nossa linhagem é... antiga. Eu sei tudo o que você quer conhecer, tudo o que você quererá conhecer. Sim, e este conhecimento será teu, e você será membro de uma estirpe escolhida, muito antiga.
Boris estava a meio caminho do corta fogo. Até este ponto, e do momento em que fugiu, suas palavras tinham sido em parte fanfarronadas e em parte terror, como um homem que assobia na escuridão. Mas agora se sentiu mas seguro e a curiosidade voltou a surgir nele. Agarrado ao tronco de uma árvore, olhou para trás e perguntou:
—Por que me oferece todo isso? O que quer de mim?
Não quero nada que não me dê por sua própria vontade. Só aquilo que me ofereça livremente. Quero algo de sua juventude, seu sangue, sua vida, Dragosani. Que você viva em mim. E em troca... sua vida será tão longa como a minha, ou talvez mais longa ainda.
Boris conseguiu perceber o desejo, a avidez, o anseio eterno e insaciável. Entendeu —ou achou que entendeu—, e a escuridão detrás dele pareceu inchar-se, expandir-se, correr para ele como uma nuvem negra e venenosa. Voltou -se, fugiu, e viu adiante, entre as árvores, o deslumbrante branco do corta fogo.
—Quer me matar! —gemeu—. Quer que eu esteja morto, como você!
Não, quero que seja um não-morto. Há uma diferença. Eu sou essa diferença. E também o é você. Está em seu sangue, em seu verdadeiro nome, Dragosaaniii...
Quando a voz se apagou e só houve silêncio, Boris saiu ao espaço aberto do corta fogo. Na tênue luz do entardecer sentiu que o medo o abandonava como um peso que lhe tivessem tirado de cima, sentiu-se estranhamente leve, e desceu com o corpo muito erguido e a cabeça levantada até o pé da colina, onde estava seu trenó.
Bubba o tinha esperado pacientemente, mas quando Boris quis lhe acariciar a cabeça o cão grunhiu e chegou para trás, com os pelos do lombo arrepiados.
E depois disso, Bubba já não quis saber mais nada com o Boris...
Sob o olhar de Dragosani, as neves da lembrança se desvaneceram e os campos e ladeiras voltaram a ser outra vez verdes. A antiga cicatriz do corta fogo ainda estava ali, mas agora se confundia com os contornos da colina, atenuada por quase vinte anos de vegetação. Os brotos de antes eram agora árvores de espessa folhagem, e dentro de outros vinte anos seria muito difícil dizer que ali houvera um corta fogo.
Dragosani supunha que ainda havia alguma cláusula nas leis que regiam a zona onde ainda se proibia cultivar a terra, cortar árvores ou caçar na verde cruz das colinas. Sim, porque apesar de que o velho Kinkovsi não era supersticioso como estavam acostumados a ser os camponeses (e isto sem dúvida era produto do pequeno «boom» do turismo na região), os antigos temores ainda estavam vivos. Ainda existiam os tabus, embora se tivessem esquecido suas origens. E também existia a criatura enterrada naquele chão. As leis pensadas em outra época para isolá-lo, agora o protegiam, conservavam-no.
A criatura no chão. Assim era como pensava nela. Não era «ele», a não ser «isso». O velho demônio, o dragão, o vampiro. O verdadeiro vampiro, e não um personagem de novelas sensacionalistas e de filmes. Ainda estava ali, enterrado, à espera.
Dragosani deixou que sua mente voltasse uma vez mais ao passado...
Quando tinha nove anos a escola do lugar, em Lonesti, tinha fechado, e seu padrasto o tinha enviado como interno a um colégio do Ploiesti. Ali tinham descoberto em muito pouco tempo que tinha uma inteligência de primeira categoria, e então o Estado tinha intervindo, e o tinham enviado a um colégio no Bucarest. Os funcionários soviéticos do Ministério de Educação, sempre à busca de jovens talentos provenientes das repúblicas satélites, deram por fim com ele, e «recomendaram» que fosse enviado a receber educação superior em Moscou. «Educação superior» significava neste caso doutrinação, depois do qual seria algum dia enviado de volta a Romênia como dócil funcionário de um governo boneco.
Mas antes disso, quando Boris se inteirou de que teria que viver no Ploiesti e só poderia voltar para sua casa uma ou duas vezes ao ano, tinha retornado ao escuro e recôndito lugar sob as árvores para solicitar o conselho da coisa no chão. Agora retornava uma vez mais ali, nas asas da memória, e se viu tal como tinha sido: um menino que tampava a cara com as mãos enquanto soluçava, ajoelhado junto a uma laje rota, enquanto suas lágrimas caíam sobre o baixo-relevo do morcego-dragão-demônio.
Como é isso? Sabe que quero ferro e carne, e me oferece papa e água salgada? É você o mesmo Dragosani que tem em si a semente da grandeza? Cometi então um engano e estou condenado a jazer aqui para sempre?
—Parto a um colégio no Ploiesti. Terei que viver ali, e só virei de vez em quando.
E essa é a razão de seu sofrimento?
—Sim.
Então é uma menina! Como pode pensar que aprenderá os segredos do mundo aqui, à sombra das montanhas! Vá, se até os pássaros que voam viram mais e mais longe que você! O mundo é muito grande, Dragosani, e para conhecê-lo deve andar por ele. E Ploiesti? Eu conheço essa cidade; está só a um dia de marcha, ou no máximo dois. E essa te parece uma razão para chorar?
—Mas não quero ir...
Eu não queria que me enterrassem, mas o fizeram. Dragosani, vi a uma de minhas irmãs com a cabeça aberta, os olhos pendurados sobre as bochechas e uma estaca que lhe atravessava o peito, e não chorei. Não, mas persegui a seus assassinos, esfolei-os e os obriguei a comer sua própria pele. E os violei com ferros quentes, e antes de que morressem, os empapei em petróleo, ateei-lhes fogo e os joguei dos escarpados do Brasov. Só então chorei... e minhas lágrimas eram de pura alegria. E pensar que lhe tenho chamado meu filho!
—Eu não sou seu filho —replicou Boris, entre lágrimas—. Não sou filho de ninguém. E tenho que ir ao Ploiesti. E não fica a dois dias de viagem; em carro não são mais de três ou quatro horas. Você pretende sabê-lo tudo, mas nunca viu um carro, não é verdade?
Não, nunca, até agora. Agora o vejo em sua mente, Dragosani. Vi muitas coisas em sua mente. Algumas me surpreenderam, mas nenhuma me maravilhou. Assim, o carro de seu padrasto fará mais fácil a viagem ao Ploiesti? Muito bem! E também fará que te seja mais fácil retornar aqui quando chegar o momento. ..
—Mas...
Agora, me escute: vá ao colégio em Ploiesti, volte tão preparado como seus professores, ou ainda mais, e retorna convertido em um sábio. E em um homem. Eu vivi durante quinhentos anos e era um grande sábio. Era necessário, Dragosani. Minha erudição foi muito útil então, e voltará a sê-lo. Um ano depois de me haver levantado da tumba, serei o mais importante do mundo. Oh, sim! Antigamente me teria dado por satisfeito com a Valáquia, Transilvânia, Romênia, ou como quer chamá-la, e antes disso me bastaria que só as montanhas fossem minhas, mas na atualidade o mundo é pequeno, e eu serei maior. Quando participei das guerras dos homens descobri a alegria do conquistador, de modo que a próxima vez o conquistarei todo. E você, Dragosani, também será grande..., mas tudo ao seu devido tempo.
Boris se precaveu por fim da importância que tinha o que dizia a voz. Percebeu, detrás das palavras, o brutal poder da criatura que as pronunciava.
—Quer..., quer que seja um sábio?
Sim. Quando caminhar de novo por este mundo, quero falar com homens capazes, e não com os idiotas do povo. Claro que eu te ensinarei, Dragosani, e muito mais que qualquer professor do Ploiesti. Você receberá muitos conhecimentos de mim, e eu a minha vez, aprenderei muito de ti. E se for um ignorante, não poderá me ensinar nada.
—Todo isso já me há isso ditos antes —respondeu Boris—, mas o que pode me ensinar? Sabe tão pouco das coisas atuais! Estiveste morto, quero dizer, não-morto, bom, enterrado, de todos os modos, durante quinhentos anos. Você mesmo me disse.
Na cabeça de Boris ressoou uma risada profunda.
Não é tolo, Dragosani. Pode ser que tenha razão. Mas há outras maneiras de conhecer, outros tipos de sabedoria. Muito bem, tenho um obséquio para ti. Um obséquio... e um sinal de que posso te ensinar coisas, coisas que nem sequer pode imaginar.
—Um obséquio?
Sim. Vê e me consiga algo que esteja morto.
—Algo morto? Que tipo de criatura?
Qualquer. Um escaravelho, um pássaro, um camundongo. Tanto faz. Encontra algo morto, ou mata-o para mim, e me traga o cadáver. Me darás isso como se fosse um presente, e terá o teu.
—Vi um pássaro morto ao pé da ladeira. Acredito que era um filhote de pomba. Deve ter caído do ninho. Servirá?
Sim! Que terríveis segredos pode esconder um filhote de pomba? Diga -me isso, rogo-lhe! Mas... bom, sim, me servirá. Ao menos provarei o que te hei dito. Traga-o.
Boris retornou vinte minutos mais tarde, e depositou o corpo inerte do animal na terra negra, perto das lajes quebradas.
E outra vez ouviu a risada zombadora em sua cabeça.
Sim! Que tributo insignificante! Mas não importa. Agora alterne, Dragosani, aprenderia a maneira de ser desta pequena coisa morta?
—Já não tem maneira de ser. Está morta.
—Antes que morresse. Gostaria de conhecer as coisas que ela sabia?
—Não sabia nada. Era um passarinho, o que podia saber?
—Sabia muitas coisas! E agora, preste atenção: abra as asas, arranque as plumas pequenas e a penugem e toca-os, cheira-os, esfrega-os entre seus dedos e escuta o que lhe dizem. Faça-o...
Boris seguiu as instruções mas com estupidez, sem nenhum sentimento, sem esperar nada. Do pequeno cadáver escaparam pulgas, carrapatos e um pequeno escaravelho.
Não, não, assim não! Fecha os olhos, deixa que penetre por completo em sua mente. Agora, assim... Já está!
Boris se encontrou em um lugar muito alto; sentiu uma sacudida e escutou o sussurro dos ramos. No alto a sedutora abóbada azul do céu parecia abrir-se para o infinito. Boris sentiu que podia cair para cima, no céu, e não deter-se jamais. A vertigem o sobressaltou; retrocedeu a sua própria mente, deixou cair o pássaro morto e se agarrou à terra.
Ahhh! —disse o demônio no chão. E logo outra vez: Ahhhh! O que? Você não gostou do ninho, Dragosani? Mas não te detenha, há mais. Agarra o pássaro, aperta seu corpo, sente-o flexível em suas mãos, sente os pequenos ossos sob a pele, o diminuto crânio. leve-lhe isso à cara, cheira-o, respira-o, deixa-o que te instrua. Assim, me permita que te ajude...
Boris não estava sozinho —era uma coisa dupla—, e não era Boris. A sensação era estranha, aterradora. Aferrou -se à lembrança de Boris, e rechaçou ao outro.
—Não! Não! Deixe ir! Entra na coisa, te faça um com ela. Conheça o que ela conhece, como isto:
Tudo era morno... uma plataforma dura e firme abaixo... suave e morno pulmão acima... o céu deixou de ser brilhante e azul e foi em ficou negro... muitos pontos de luz, que eram estrelas... a noite era silenciosa... um peso morno que esmagava brandamente, asas protetoras... a coisa geme encolhendo se... algo se aproximou, um ruído, um uivo!... o corpo morno de cima (o corpo materno) apertou-se protetor, as asas se esforçaram em cobri-lo, trêmulos... um lento e pesado bater de asas no ar... ouviu-se mais próximo, passou, desvaneceu-se, mais fraco a cada instante... outra vez o ulular ao longe... o mocho saiu a caçar pequenos animais esta noite... o corpo materno se distende um pouco, os rápidos batimentos do coração de seu coração se voltam algo mais lentos... pontos brilhantes de luz enchem o céu... suave penugem... tibieza.
Agora destroça o cadáver, Dragosani! Rasga-o! Esmaga o crânio entre os dedos e disponha atenção aos vapores do cérebro. Contempla-o em suas mãos; olhe as vísceras, as vísceras e as plumas, o sangue e os ossos. Prova uma parte, Dragosani! Utiliza todos seus sentidos: toque, prove, olhe, ouça, cheire. Usa os cinco sentidos, e descobrirá um sexto.
Boris, convertido em uma parte do pombinho, lançou-se com ele da débil plataforma de raminhos que era o ninho. Durante um breve momento conheceu o triunfo do voo..., e imediatamente a seguir soube do fracasso. O dia era ventoso, com rajadas repentinas, e o vento o surpreendeu despreparado, deu-lhe um impacto forte. Depois disso, a confusão se tornou rapidamente um pesadelo. Girando, aos tombos —uma asa inexperiente agarrada na bifurcação de um ramo, retorcida e quebrada logo—, a agonia de encolher a asa quebrada, e logo a agonia da queda. E o estalo final do pequeno crânio contra uma pedra...
Boris voltou de repente para si mesmo, rompeu o feitiço, viu o pássaro destroçado que tinha nas mãos.
Já o vê!, disse o velho demônio do chão. Ainda pensa que não posso te ensinar nada, Dragosani? O que te parece sua nova ciência? Houve alguma vez dom mais estranho? Em toda minha vida só conheci a uns poucos que possuíssem semelhante talento. E você o exerceste como... como um pombinho exercita suas asas. Bem-vindo a uma pequena, antiga e muito seleta fraternidade, Dragosani.
O cadáver despedaçado se deslizou das mãos do Boris, manchou a terra, deixou sobre a palma de suas mãos e sobre seus dedos uma substância viscosa.
—Como? —disse o menino, boquiaberto; de repente, um suor gelado começou a brotar de sua frente—. Como...?
Boris Dragosani, o necromante!, Respondeu o demônio do chão.
Depois, sobressaltado pelo horror de todo aquilo, Boris tinha gritado e tinha fugido uma vez mais. Seu pânico era tal que mais tarde apenas se podia recordar algo mais que o pulsar de seu coração e o ruído de seus pés golpeando o chão.
Mas não podia fugir do «dom», que desde esse momento tinha sido dele.
Ou talvez não era o horror do que ele tinha feito (ou daquilo no que se converteu) o que tinha feito que sua mente esquecesse o momento da fuga terrível; possivelmente fora outra coisa, algo que aconteceu entre seu grito e a fuga propriamente dita. Em todo caso, em sua mente tinham permanecido após vagas imagens disso, e saíam à superfície quando ele menos o esperava. Como agora.
O sombrio claro do bosque onde se achava a tumba, e o cadáver destroçado, uma confusão de plumas, vísceras e membros arrancados de suas articulações. E um tentáculo magro e leproso que saía da terra, que se abria passo entre o negro húmus, as folhas dos pinheiros, líquenes e partes de rocha. Leproso, sim, e feito de uma matéria que não era carne, embora pulsavam nele veias vermelhas.
E logo... e logo... na ponta do tentáculo se formou um olho carmesim que procurava com avidez algo no chão. Depois o olho se dissolveu e uma boca de réptil e mandíbulas ocuparam seu lugar, de tal modo que o tentáculo parecia agora uma suave e manchada serpente cega. Uma serpente que fofocava com sua língua fendida e púrpura os restos ensanguentados, cujas presas, afiados como agulhas, reluziam branquíssimos, e cujas mandíbulas não cessaram de trabalhar até dar conta do último bocado.
E logo, a rápida retirada, e o feitiço que se rompeu enquanto o pulsátil e repugnante tentáculo era absorvido dentro da terra, e desaparecia da vista.
A criatura enterrada havia dito que o cadáver do pombinho era um «pequeno tributo...».

Quando Dragosani terminou com suas lembranças e sonhos, dirigiu-se para a cidade cujo nome levava. Encontrou o antigo mercado que se instalava todas as quartas-feiras, desde época imemorial, quando o povo não era mais que um conjunto de choças, entre os currais de gado junto à ferrovia e o rio. A população do Dragosani possivelmente se originou precisamente neste lugar de reunião, neste lugar de negócios e permute. Embora tinha sido algo mais, era também o vau por onde podia cruzar o rio. Agora havia várias pontes, mas nos velhos tempos, só se podia cruzar o rio por aquele vau.
Era aqui onde, fazia já largos séculos, os invasores turcos que chegavam desde o Oriente deixando em seu rastro terras saqueadas e incendiadas, seguiam o rio que descia dos Cárpatos meridionais até a confluência com o Danúbio. Também aqui o Hunyadi, e depois dele os príncipes da Valáquia, tinham vindo de seus castelos para convocar a seus exércitos, e designar logo aos voivodas, senhores feudais que defenderiam suas terras contra as incursões dos turcos. A bandeira desses senhores da guerra era a do Dragão —desde tempo imemorial emblema dos defensores da cristandade frente aos turcos—, e Dragosani se perguntou agora se não seria este a origem do nome da população. Em todo caso, dali procedia o dragão gravado no brasão da esquecida tumba.
Comprou no mercado um leitão vivo e o levou em uma bolsa com buracos para que não se asfixiasse. Dragosani retornou ao carro e deixou o leitão no porta-malas; logo saiu da cidade e se internou em um caminho solitário que se separava da estrada.
Ali abriu apenas o saco, rompeu uma cápsula de clorofórmio no porta-malas, fechou-o e contou até cinquenta. Logo abriu o porta-malas, utilizou a aspiradora do carro, fazendo-a funcionar em sentido inverso para dispersar as emanações de clorofórmio, e voltou a fechá-lo, com o desafortunado leitão dentro. Dragosani não queria que o animal morresse. Ou ao menos, não queria que morresse no porta-malas do carro.
A primeira hora da tarde já tinha deixado o vale do rio e se achava na zona das colinas, onde uma vez mais estacionou o carro a duzentos ou trezentos metros dos proibidas colinas em forma de cruz. O sol ainda brilhava com intensidade, e Dragosani, com a cabeça encurvada e pego a um sebe, começou a subir. Enquanto subia trabalhosamente rumo ao lugar secreto, e protegido pela espessa copa dos pinheiros, começou a sentir-se mais cômodo. O leitão, metido no saco que Dragosani tinha pendurado do ombro, estava absolutamente inconsciente aos estímulos de um mundo que muito em breve abandonaria.
Quando chegou ao lugar onde se achava a tumba, Dragosani depositou o narcotizado animal em um oco entre duas raízes, atou-o ao tronco de uma árvore e o cobriu com o saco para protegê-lo do frio. Aquelas colinas estavam cheias de javalis; se o leitão recuperava a consciência durante sua ausência e começava a chiar, qualquer que o ouvisse pensaria que se tratava de um animal selvagem. Embora fosse improvável que alguém o ouvisse; tal como tinha acontecido quando Dragosani era um menino, os campos ao redor das colinas estavam desertos e sem cultivo.
De todas formas, Dragosani deixou ali o leitão e retornou no meio da tarde a seu alojamento, onde solicitou que lhe servissem o jantar cedo, e foi se dormir. Ainda era de dia quando Ilse Kinkovsi o despertou com uma bandeja cheia por uma abundante janta acompanhada de uma jarra da cerveja do lugar, e se foi deixando que ele desfrutasse a sós de sua comida. A jovem apenas se lhe dirigiu a palavra, e o olhava de esguelha com uma expressão zombadora. Aquilo não tinha importância; na verdade, era melhor assim, disse-se Dragosani.
Mas quando a moça abandonou o quarto ele não pôde deixar de olhar o balanço de seus quadris. Era muito atraente, para ser uma camponesa, e Dragosani se perguntou uma vez mais por que não se teria casado. Era muito jovem para ser viúva... Além disso, se o fosse, levaria uma aliança, não é verdade? Era curioso. ..

Dragosani voltou ao lugar secreto vinte minutos antes do anoitecer. O leitão tinha recuperado a consciência mas não tinha forças para ficar de pé. Dragosani, sem perder um minuto, deixou ao animal sem sentido com um só golpe de clava, a mesma que utilizavam os homens da KGB. Depois se sentou a esperar, fumou um cigarro e viu como a luz se fazia mais e mas escassa à medida que o sol se afundava no horizonte. Neste lugar, onde os pinheiros cresciam retos como lanças e formavam um círculo ao redor da tumba, não havia mais luz que chegasse diretamente de cima, amortecida por um toldo de ramos entrelaçados. Mas a noite se aproximava, começaram a aparecer as primeiras estrelas, que Dragosani via mais claramente, como o faria um homem no fundo de um profundo poço. Dragosani apagou finalmente seu cigarro e a escuridão que o rodeava se fez mais impenetrável.

Capítulo seis

Ahhh! Dragosaaniiii!
As presenças invisíveis estavam ali, como sempre, surgindo de todas partes, fantasmas cujos dedos roçavam a cara do Dragosani como se quisessem comprovar quem era, assegurar-se de sua identidade. Dragosani se estremeceu e disse:
—Sim, sou eu. E te trouxe um obséquio.
Seriamente? E o que me pedirá em troca?
Dragosani estava impaciente, e não fez nenhum esforço por dissimulá-lo.
—O obséquio é... um pequeno tributo. Darei-lhe isso mais tarde, antes de ir. Mas agora..., falei contigo muitas vezes neste lugar, velho dragão, e em realidade nunca me há dito nada. Não quero dizer que me tenha decepcionado, ou enganado, mas sim aprendi muito pouco de ti. Possivelmente por minha culpa; pode ser que não te fizesse as perguntas apropriadas, e se assim foi, quero corrigir isso. Sabe coisas que eu quero conhecer. Faz tempo teve... poderes. E suspeito que conservaste muitos desses poderes, dos que eu não sei nada.
Poderes? Claro, sim... muitos poderes. Grandes poderes...
—Quero o segredo desses poderes, dessas faculdades. Quero possuir as faculdades. Quero saber tudo o que você sabia, e tudo o que sabe agora.
Resumindo, quer ser... Vampiro!
Dragosani não pôde evitar estremecer-se ante a palavra, e ante a maneira em que foi pronunciada em sua mente. Inclusive ele, Dragosani, o necromante, que examinava aos mortos, percebeu o temor reverencial que inspirava, como se a palavra mesma pudesse comunicar a horrível natureza do ser —ou os seres— que nomeava.
—Vampiro... —repetiu Dragosani, e logo seguiu falando—: Na Romênia sempre houve lendas, e nos últimos cem anos se estenderam ao estrangeiro. Velho demônio, sei há anos o que é. Aqui lhe chamam vampir, e no mundo ocidental, vampiro. Ali, é um personagem dos contos que se contam de noite ao amor da luz, para atemorizar aos meninos e que se vão à cama, e comover às imaginações doentias. Mas agora quero saber o que é realmente. Quero separar os fatos da ficção, quero conhecer a origem da lenda sem as mentiras.
Percebeu em sua mente um encolhimento de ombros.
Então, repito, quer ser vampiro. Não há outra maneira de conhecer todo isso.
—Mas você tem uma história —insistiu Dragosani—. Já sei que estiveste enterrado aqui quinhentos anos, mas o que me diz dos quinhentos anos antes de que morrera?
De que morrera? Eu não morri. Poderiam me haver assassinado, pois estava dentro de suas possibilidades, mas decidiram não fazê-lo. Escolheram para mim um castigo muito maior. Simplesmente me enterraram aqui, não-morto. Mas deixemos isso de lado... Quer conhecer minha história?
—Sim.
É longa, e sangrenta. Levará tempo.
—Temos muito, muito tempo —respondeu Dragosani, mas percebeu certa inquietação, frustração nas presenças invisíveis. Era como se algo lhe advertisse que não forçasse sua sorte. A criatura não-morta não suportava que a apressassem.
Mas por último pronunciou em sua mente:
Posso te contar parte de minha história, sim. Posso te dizer o que fiz, mas não como o fiz. Não com palavras. O conhecer minhas origens, minhas raízes, não te ajudará a ser um vampiro, nem a compreendê-los. Eu não posso te explicar como chegar a ser um vampiro, assim como um peixe não pode explicar a maneira de ser peixe, ou um pássaro a de ser pássaro. Se tentasse ser um peixe, afogaria-te. Te lances de um escarpado, como um pássaro, e te estrelará contra o chão. E se for impossível aprender a ser uma criatura tão simples como estas, como poderia ser possível aprender a ser vampiro?
—Não posso aprender nada de ti, então? —Dragosani começava a ficar furioso—. Não posso conhecer suas faculdades? Não te acredito. Ensinou-me a falar com os mortos. por que, então, não pode me ensinar todo o resto?
Ah, não! Está equivocado, Dragosani. Ensinei-te a ser um necromante, que é um talento próprio dos homens. É uma arte que os homens esqueceram, mas a necromancia é tão antiga como a raça humana. Quanto a «falar com os mortos, isso já é outra coisa. Muito poucos homens aprenderam a fazê-lo.
—Mas eu falo contigo!
Não, meu filho. Eu falo contigo. Porque é um dos meus. E recorda que eu não estou morto. Sou um não-morto. Nem sequer eu poderia falar com os mortos. Examina-los, sim, mas não falar com eles. A diferença está na maneira de abordá-los, em que nos aceitem, e em seu desejo de falar. Quanto a necromancia, o cadáver não deseja revelar seus segredos, o necromante extrai a informação como se fosse um torturador, como um dentista que arranca um dente são.
De repente, Dragosani sentiu que a conversação dava voltas e mais voltas.
—Basta! —exclamou—. Me está confundindo deliberadamente!
Estou respondendo a suas perguntas como melhor sei.
—Muito bem. Então não me diga como ser um vampiro, mas me diga o que é um vampiro. Me conte sua história. me diga o que tem feito quando vivia, embora não me diga como o tem feito. Me fale de suas origens...
Depois de um instante:
Como quiser. Mas antes..., antes me diga o que sabe, ou o que crê que sabe, dos vampiros. Me conte esses «mitos», essas «histórias de velhas» que ouviste, posto que parece ser uma autoridade na matéria. E logo separaremos as mentiras das lendas, como diz você.
Dragosani suspirou, recostou-se contra um bloco de pedra e acendeu outro cigarro. Ainda tinha a sensação de que tentavam confundi-lo, mas ao parecer não podia fazer nada a respeito. Agora estava escuro, mas seus olhos se acostumaram à penumbra. Podia perceber cada uma das retorcidas raízes, e das gretas nas lajes e blocos de pedra. O leitão, que estava a seus pés, lançou um bufido e voltou a ficar imóvel.
—Avançaremos muito lentamente —grunhiu.
Um encolhimento de ombros mental.
—Muito bem, comecemos com isto: um vampiro é um ser das trevas, fiel súdito de Satã.
— Sim, sim, sim! Em nossas lendas, Shaitan foi o primeiro dos vampiros. Seres das trevas, pois sim, em tanto a escuridão é nosso elemento. Somos... diferentes. Mas há um dito: de noite, todos os gatos são pardos. De noite, nossas diferenças não são tão grandes, ou não parecem sê-lo, ao menos. E antes de que me pergunte isso, me deixe te dizer algo: por causa de nossa inclinação pela escuridão, o sol nos é prejudicial.
—Prejudicial? Poderia lhes destruir, lhes converter em pó!
—Como? Isso é um mito! Não, não pode nos fazer nada tão terrível, mas a luz do sol, até a mais débil, danifica-nos da mesma maneira que o sol ardente machuca aos homens.
—Temem a cruz, o símbolo do cristianismo.
—Ódio a cruz. Para mim, é o símbolo de todas as mentiras, de todas as traições, Mas temê-la? Não...
—Está-me dizendo que se empunharem uma cruz contra ti, uma cruz consagrada, sua carne não arderá?
—Possivelmente de ódio, um instante antes de que eu mate ao que sustenta a cruz.
Dragosani suspirou fundo.
— Está falando sério?
—Suas dúvidas me ofendem, e põem a prova minha paciência, Dragosani.
Dragosani amaldiçoou entre dentes, e seguiu:
—Não tem sombra. Não se reflete nos espelhos nem na água.
—Ah!, um conceito errôneo, embora o engano tenha sua razão de ser! O reflexo que produzo não é sempre o mesmo, e minha sombra não sempre coincide com minha forma.
Dragosani franziu o sobrecenho. (Recordava o tentáculo leproso, vinte anos atrás.)
—Quer dizer que é fluido, não sólido? O que pode trocar de forma?
—Não hei dito isso.
—Então, me explique o que há dito.
Agora lhe tocou suspirar ao velho ser no chão.
—Não respeitará nenhum mistério, Dragosani'? Não, estou seguro de que não...
Mas agora Dragosani estava pensando por si mesmo.
—Acredito que isto pode responder a duas perguntas —disse, enquanto o outro refletia—. Sua habilidade para te converter em um morcego ou em um lobo, por exemplo. Isso também é parte da lenda. É capaz de trocar de forma?
Dragosani percebeu o regozijo do outro.
—Não, mas posso parecer uma criatura com semelhante faculdade. De fato, não há ninguém que possa trocar de forma, que eu tenha visto, ao menos.
E então... pareceu como se o velho ser tivesse tomado uma decisão.
—Muito bem, direi-lhe isso. O que sabe do poder do hipnotismo?
—Hipnotismo? —repetiu Dragosani, que ainda não compreendia. Mas um instante depois ficou boquiaberto quando, em um relâmpago de compreensão, a verdade apareceu ante seus olhos—. Hipnotismo coletivo! Esse era seu truque!
—Assim é. Mas o hipnotismo pode enganar à mente, não aos espelhos. E embora eu pareça ser um morcego batendo as asas, ou um ágil lobo, minha sombra continua sendo a de um homem. Ah, a mística se desvanece, Dragosani! Não crê assim?
Dragosani recordou uma vez mais o leproso tentáculo, mas não disse nada. Dragosani estava convencido desde fazia tempo que as criaturas mortas (ou não-mortas) que falavam na mente dos homens podiam além de ser professoras na arte do engano. De todas formas, ele tinha mais perguntas:
—Não pode cruzar uma correnteza, pois te afoga.
— Certamente! Acredito que também tenho uma explicação para essa crença. Quando vivia, eu era um mercenário voivoda. E por certo que não cruzava nunca uma correnteza! Essa era minha estratégia. Quando o invasor se aproximava, eu esperava a que ele cruzasse a água, e o massacrava em minha ribeira. Pode que ali se originou a lenda, nas bordas do Dunarea, do Motrul e do Siretul. E eu vi a esses rios correr vermelhos de sangue, Dragosani...
Enquanto o outro oferecia esta explicação, Dragosani se preparava para a grande questão. E agora, sem fazer uma pausa, falou:
—Você bebe o sangue dos vivos! É um desejo que te possui e te domina. Sem sangue morre. Sua natureza má exige que te alimente das vidas de outros. O sangue é a vida.
—Ridículo! A maldade, ou o mal, não é mais que uma disposição da mente. Se aceitar o mal, deve aceitar o bem. Possivelmente eu não esteja muito à par do que acontece em seu mundo, Dragosani, mas no meu o bem brilhava por sua ausência. E com respeito a beber sangue, você não come carne? E bebe vinho? Claro que o faz! Devora a carne dos animais e bebe o sangue das uvas. É isso mau? Me mostre uma criatura viva que não devore a outras criaturas inferiores a ela, mas igualmente viva. Esta lenda se origina nas crueldades que cometi, que não nego, e no sangue que derramei no curso de minha vida. por que fui cruel? Pensava que se meus inimigos me acreditassem um monstro, se mostrariam menos dispostos a me atacar. E assim foi como me converti em um monstro. E quem pode dizer que me equivoquei, se minha lenda se tornou ainda mais terrível com o passar do tempo, e durou tanto?
—Isso não responde a minha pergunta. Eu...
—E eu... estou muito cansado. Sabe quanto me custa esta espécie de inquisição? Crê que eu sou um de seus cadáveres, Dragosani? Um sujeito suscetível de ser examinado por um necromante?
Quando ouviu estas palavras, Dragosani teve uma ocorrência que apartou imediatamente de sua mente.
—Uma última pergunta —disse com tom sombrio.
—De acordo, se não poder evitá-la...
—A lenda diz que a mordida de um vampiro torna vampiros aos homens. Se você bebesse meu sangue, eu me converteria no que você é, em um não-morto?
Houve um comprido silencio, no que Dragosani percebeu certa confusão, a busca de uma resposta. E finalmente:
—Faz muito, muito tempo, quando o mundo era jovem, os bosques estavam povoados por diversas espécies de criaturas, e também por grandes morcegos. A enfermidade os destruiu —uma horrível enfermidade que só os atacava a eles—, mas alguns aprenderam a viver com sua doença. Em meus dias existia uma espécie que chupava o sangue de outros animais, e também a dos homens. Como os morcegos eram portadores da enfermidade, transmitiam-na a aqueles a quem mordia, e se viu que suas vítimas manifestavam certos sintomas que...
—Basta! —exclamou Dragosani—. Você refere aos morcegos vampiros, uma espécie que ainda existe na América do Sul e América Central. A enfermidade é a raiva. Mas... não vejo a relação.
A criatura no estou acostumado a decidiu ignorar o cepticismo de seu interlocutor.
—América?, perguntou.
—Um continente novo —explicou Dragosani—. Em seus tempos ainda não o tinham descoberto. É muito grande, muito rico e muito, muito poderoso.
—De verdade? Deverá me descrever este novo mundo com mais detalhe, mas em outra ocasião. Agora... agora estou fatigado ...
—Não tão rápido! —exclamou Dragosani, que se dava conta de que a conversação havia tornado a perder o rumo—. Está dizendo que se me morder não me converterei em um vampiro? Tenta me convencer de que a lenda carece de fundamento, com exceção dessa suposta relação com os morcegos vampiros? Não te acredito, velho demônio! Não, porque os morcegos foram chamados «vampiros» por ti, e não ao reverso.
Outra pausa, embora não o bastante larga como para que o outro tivesse tempo de meditar sua resposta, e Dragosani continuou:
—Perguntaste-me se eu desejava pertencer aos vampiros. E do que outra maneira poderias me fazer vampiro? Acaso poderiam «me conceder» a condição de tal, como a ti em uma ocasião te outorgou a Ordem do Dragão? Não! Basta de mentiras, velho demônio! Quero saber a verdade. E se realmente é meu «pai», por que não me diz isso? Do que tem medo?
Dragosani sentiu a desaprovação das presenças invisíveis; percebeu que se afastavam dele. A voz que ressonava em sua mente parecia agora extremamente fatigada e acusadora.
—Prometeste-me um obséquio, um pequeno tributo, e só me trouxeste fatiga e tortura. Sou uma faísca que se debilita, meu filho, um rescaldo que se extingue. Mantiveste viva a chama tremente, por que teria que apagá-la agora? Deixe-me dormir se não queres.... que... me... esgote... por completo..., Dragosaaniiii...
Dragosani apertou os lábios, tragando a frustração que sentia, e agarrou ao leitão pelas patas traseiras. ficou em pé de um salto, agarrou uma navalha e a abriu. A folha reluziu, afiada como uma lâmina de barbear.
—Seu obséquio! —exclamou com brutalidade.
O leitão lançou um chiado e lutou para soltar-se. Dragosani lhe abriu de um só talho a garganta, e deixou cair o jorro de sangue sobre a escura terra. Imediatamente se levantou um vento que suspirou entre os pinheiros com uma voz semelhante a da criatura que jazia enterrada: Ahhhh!
Dragosani arrojou o cadáver do leitão entre umas nodosas raízes, deu uns passos para trás, tirou um lenço e limpou as mãos. As presenças invisíveis deslizaram para frente.
— Recuem! —repreendeu-as Dragosani, e se girou para ir-se—. Recuem, fantasmas de homens! É para ele, não para vós!
Dragosani desceu entre os pinheiros em meio da mais completa escuridão, mas seus passos eram tão seguros como os de um gato. A sua maneira, também ele era uma criatura noturna. Mas estava vivo. E enquanto pensava na vida, na morte e a não-morte, um gelada sorriso apareceu em seu rosto. E sorrindo na escuridão, recordou uma pergunta que não tinha formulado: Como se pode matar a um vampiro? Como matá-lo bem morto?
Não, não lhe tinha feito essa pergunta à criatura que jazia enterrada; não era algo que se pudesse perguntar em um lugar como este, e nas horas escuras. Porque, quem podia prever a reação daquela coisa? Perguntar-lhe podia ser muito perigoso.
Além disso, Dragosani acreditava conhecer a resposta.

O dia seguinte era quinta-feira. Dragosani tinha passado uma má noite e despertou cedo. Olhou pela janela e viu Ilse Kinkovsi que dava de comer às galinhas. Ela viu seus movimentos na janela pela extremidade do olho, e elevou o rosto.
Dragosani tinha aberto as janelas de par em par e enchia seus pulmões com o ar da manhã. Apoiado no batente, inclinado para a luz, sua tez era branca como a neve. Ilse lhe olhou o peito nu. Quando respirava profundamente, como agora, os músculos sob seus braços, que se estendiam em forma de V para as costas, pareciam inchar-se como globos. Este tipo não era o que parecia. Ilse suspeitou que Dragosani podia ser muito forte.
—Bom dia! —saudou-o.
Lhe respondeu com uma leve inclinação de cabeça, e quando a olhou soube por que tinha dormido tão mal. Ilse era a razão...
—Sente-se bem? —perguntou-lhe ela, depois de passar a língua pelos lábios para deixá-los brilhantes.
—Como diz? —perguntou ele de novo à defensiva, e imediatamente se amaldiçoou por dentro por comportar-se como um menino. Sim, ele, Dragosani!
— Perguntei-lhe se lhe faz bem o ar na pele. Agrada-lhe? Mas que pálido está você, Herr Dragosani! Viria-lhe bem um pouco de sol!
—Pode... pode ser que tenha razão —gaguejou ele e se retirou da janela para vestir-se.
Enquanto se vestia, dando furiosos puxões às roupas, pensou:
«Mulheres, fêmeas, sexo... Que horrível! Mas o é, de verdade? Tão pouco natural, em todo caso! E tão... tão necessário! Será isso o que me falta?»
Bom, havia uma maneira de averiguá-lo. Esta noite. Teria que ser esta noite, porque amanhã chegavam os ingleses. Dragosani se decidiu e foi para a janela.
Ilse continuava alimentando às galinhas. Quando ouviu pigarrear ao Dragosani olhou para cima e viu que se estava abotoando a camisa e que a olhava. Seus olhos se encontraram durante um instante; logo, com voz insegura, ele disse:
—Ilse, ainda faz muito frio? Quero dizer, pelas noites...
Ela franziu o sobrecenho e se perguntou o que quereria dizer ele realmente.
—Frio? Não, se já estivermos no verão.
—Se for assim, acredito que esta noite deixarei a janela aberta. E também as cortinas.
A frente do Ilse se distendeu. A jovem jogou para trás a cabeça e riu.
—Isso é muito saudável —respondeu ao cabo de um instante—. Estou segura de que lhe fará muito bem.
Dragosani, de repente muito envergonhado, voltou a afastar-se da janela, fechou-a e terminou de vestir-se. Por um momento lamentou o que tinha feito —essa entrevista tão fácil, que na verdade parecia preparada especialmente para ele—, mas logo decidiu não preocupar-se mais pelo assunto. Já não podia voltar-se atrás. O que tivesse que ser, seria. E, de todos os modos, já era tempo e que perdesse a virgindade.
Perder a virgindade! Essa frase o fazia parecer uma mocinha. Mas tinha algo comovedoramente ingênuo, muito distinto da grosseira franqueza das palavras utilizadas por seu professor não-morto. O que havia dito o velho demônio enterrado aquela vez? «Um cachorrinho que nunca desvirginou a uma fêmea...»
Sim, essa era a frase... e se tinha referido ao pai do Dragosani. A seu verdadeiro pai. E então ele se introduziu na mente dele... e lhe ofereceu a noite dos jovens amantes.
Introduziu-se na mente dele para lhe mostrar como fazê-lo.
Dragosani se sobressaltou quando uma pedrinha golpeou sua janela. Tinha estado sentado na cama, completamente abstraído em seus pensamentos. ficou de pé e abriu uma vez mais a janela. Era Ilse.
—Tomará o café da manhã em seu quarto, Herr Dragosani —perguntou a jovem—, ou descerá para comer conosco?
A ênfase que Ilse pôs «em seu quarto» era inconfundível, mas Dragosani decidiu ignorar a insinuação. Não, antes tinha que falar com o velho dragão.
— Descerei para tomar o café da manhã —respondeu, e entrecerrou pensativo os olhos quando viu a expressão de desilusão que apareceu imediatamente no rosto de Ilse.
Sim, claro que sim. Com esta mulher necessitaria ajuda. Ao menos esta vez, a primeira para ele. Ela sabia perfeitamente o que fazia, e ele não sabia nada de nada. Mas... o vampiro sabia tudo. E Dragosani suspeitava que havia certos segredos que inclusive a aquele ser velho e malvado não lhe importaria divulgar. Não, não...

O problema sexual do Dragosani ou, melhor dizendo, a inibição psíquica que até o momento tinha impedido seu desenvolvimento nesta área, tinha sido implantada na puberdade, na época da vida em que outros meninos roubam os primeiros beijos e exploram pela primeira vez os suaves corpos com dedos quentes, trêmulos, inexperientes. Tinha acontecido durante seu terceiro ano em Bucarest, quando Boris estudava em um internato.
O menino tinha então treze anos e esperava ansioso as férias do verão. Mas chegou uma carta de seu pai em que lhe dizia que não fosse para casa. Havia uma peste na granja; estavam sacrificando aos animais, não permitiam as visitas e nem sequer Boris seria autorizado a entrar na propriedade. A febre era muito contagiosa e as pessoas podiam levar o agente nos pés, nos sapatos; toda a zona em quarenta quilômetros ao redor estava em quarentena.
Isto era um verdadeiro desastre mas não tinha por que arruinar as férias do Boris. O menino tinha uma «tia» em Bucarest, a irmã menor de seu pai adotivo, e podia ficar em sua casa. Isto era melhor que nada; ao menos teria um lugar aonde ir e não ficaria encerrado sozinho no velho edifício do colégio, tendo que fazer comida em uma pequena cozinha.
A tia Hildegard era uma jovem viúva que tinha duas filhas, Anna e Katrina, algo maiores que Boris —um ano, pouco mais ou menos—, e viviam em uma casa de madeira grande e desvencilhada da rua Budesti. Embora pareça estranho, nunca tinham falado muito delas na casa de Boris, e ele só as tinha visto nas pouco frequentes visitas que faziam à campina romena. A tia sempre lhe tinha parecido muito carinhosa, muito possivelmente, e suas primas eram como todas as mocinhas, afetadas e cheias de pequenos segredos, embora talvez se insinuasse nelas uma peculiar sensualidade, imprópria de sua idade. Contudo, não havia nelas nada suspeito, ou especialmente estranho. Mesmo assim, Boris tinha a impressão, pela atitude de seu pai para com elas, de que sua tia era algo assim como a ovelha negra da família, ou ao menos uma dama com um terrível segredo.
Nas três semanas que Boris passou com sua tia e suas precoces filhas, durante as férias do verão, o moço descobriu mais coisas do que tinha desejado sobre a «raridade» de seus parentes, e sobre o sexo e a perversidade das mulheres em geral. Esta experiência tinha feito que rechaçasse, até a data, toda relação com o sexo oposto. Sua tia, para dizê-lo sem rodeios, era pura e simplesmente uma ninfomaníaca. A recente morte de seu marido a tinha liberado de toda atadura, e a mulher tinha deixado que sua obsessão sexual a dominasse por completo. Suas filhas, ao parecer, seguiam fielmente seus passos. Inclusive quando seu marido estava vivo, a tia do Boris tinha sido famosa por seus amantes. Os rumores sobre suas aventuras tinham chegado até seu irmão, que vivia no campo, e daí a frieza e a desaprovação com que a tratava o pai do Boris. O homem não era um santarrão, mas pensava que sua irmã era pouco menos que uma puta.
Contudo, seu irmão não podia conhecer o ponto ao que tinham chegado seus excessos, posto que virtualmente não tinha relação com ela. Se o tivesse sabido teria organizado de outra maneira as férias do moço. Claro que seu filho adotivo era pouco mais que um menino, e ele pensou que se veria livre dos viciosos costumes da mulher.
Boris ignorava tudo isto, mas muito em breve se inteiraria de tudo.
Para começar, não havia fechaduras em nenhuma das portas interiores da casa de sua tia. Não as havia nos dormitórios, nem no quarto de banho, nem tão sequer nos asseios. A tia Hildegard lhe explicou que em sua casa não havia lugares privados —onde pudessem realizar as necessidades mais íntimas—, e que não tolerava os segredos de nenhum tipo. Isto fez que ao Boris resultasse ainda mais difícil compreender as coisas que se diziam ao ouvido, ou as olhadas cúmplices que frequentemente se dirigiam mãe e filhas quando ele estava presente.
Quanto à intimidade, ou a solidão, não eram absolutamente necessárias em um lugar onde nada estava proibido, e tudo era aceito. Quando perguntou sobre as ideias filosóficas de sua tia, disseram-lhe que essa era uma «casa natural», onde o corpo humano e suas funções eram coisas naturais que nos tinham sido dadas para «as explorar, as descobrir, as compreender e as desfrutar plenamente, sem restrições convencionais». A condição de que respeitasse a casa e a propriedade de sua anfitriã, era bem-vindo e todo lhe estava permitido, mas da mesma maneira devia respeitar o comportamento «natural» das residentes na casa, cujos costumes eram muito livres e carentes de restrições. Quanto à filosofia como tal: havia muito pouco amor no mundo e muito ódio; se se pudesse saciar os desejos do corpo e os rogos do espírito, se fosse possível satisfazê-los na prazenteira violência dos abraços e não na guerra, o mundo seria um lugar muito melhor. Talvez Boris não compreendesse imediatamente estas crenças, mas sua tia estava segura de que o faria dentro de muito pouco tempo...
A primeira noite, depois de jantar cedo, Boris se tinha retirado para ler a seu quarto. Trouxera alguns livros do colégio, mas ao pé das escadas que levavam a seu dormitório havia um pequena quarto onde sua tia tinha organizado sua «biblioteca». Boris entrou, e encontrou as prateleiras cheias de livros eróticos, e sobre perversões e aberrações sexuais. Alguns destes livros lhe pareceram tão fascinantes que levou vários dos exemplares ilustrados a seu quarto. Nunca tinha visto nada igual, embora a biblioteca de seu colégio fosse bastante completa.
Uma vez em seu dormitório, Boris se tinha dedicado por inteiro a um dos livros (que pretendia ser «objetivo», mas ao Boris pareceu completamente irreal, e supôs que era uma obra de ficção, ou uma paródia; era-lhe impossível imaginar, além disso, como as tinham arrumado para fazer algumas das fotografias que o ilustravam) e, como aconteceria a qualquer menino de sua idade, excitou-se logo. A masturbação não lhe era desconhecida —como a maioria dos jovens, recorria a ela de vez em quando—, mas na casa de sua tia não se sentia o bastante seguro, ou isolado, para fazê-lo. Para evitar sentir-se ainda mais frustrado decidiu devolver os livros à biblioteca.
Um pouco antes, enquanto lia, tinha ouvido que um carro chegava à porta, e um visitante era recebido na casa, evidentemente uma pessoa amiga de sua tia, e não lhe tinha prestado atenção. Mas quando desceu para deixar os livros na biblioteca ouviu risadas, os sons de uma atividade física, e uma alegre gritaria que vinham do salão principal —quando lhe tinham feito conhecer esta habitação, Boris tinha admirado os espelhos que cobriam todas as paredes, e inclusive o teto, algo que lhe tinha parecido muito curioso—, e foi ver o que acontecia. A porta estava entre aberta, e quando se aproximou Boris ouviu uma gutural voz masculina, cujo dono ao parecer estava fazendo algo que lhe exigia um grande esforço, e as vozes enrouquecidas e prementes de sua tia e suas primas. Foi nesse instante que Boris começou a suspeitar que no salão acontecia algo realmente fora do comum. Boris se deteve junto à porta para olhar pela fenda, e o que viu o deixou paralisado. O livro que tinha estado lendo, longe de ser algo «fantástico», como ele tinha suposto, não era nada comparado com isto. O homem, um desconhecido para o Boris, tinha a cara marcada de varíolas e com uma espessa barba, era barrigudo e peludo; tinha um rosto repulsivo e um corpo quase disforme. E estava nu. Boris, entretanto, não podia saber que era um sátiro, e que para as mulheres daquilo casa compensava com acréscimo sua fealdade e a má formação de seu corpo.
Boris via o interior do salão refletido em um espelho que revestia a porta, de modo que não via a cena diretamente, nem por completo, mas o que via era mais que suficiente. As três mulheres se alternavam com seu companheiro de jogos, incitavam-no a que se superasse a si mesmo, e o estimulavam com suas mãos, bocas e corpos em um frenesi de excesso sexual.
O homem estava jogado de costas em um divã enquanto Anna, a mais jovem das irmãs, montada sobre seu corpo, cavalgava com vigorosos movimentos. Quando subia, deixava ver o comprido e grosso membro masculino, reluzente com os líquidos dos palpitantes corpos femininos. Em cada breve aparição dessa escorregadia vara de carne, Boris podia ver a pequena e quase frágil nádega da Katrina, rodeando o membro ali onde os dois corpos chocavam, e ocupada nele com não menos intensidade que o saltitante corpo de sua irmã. Quanto à mãe das moças, «tia» Hildegard, uma mulher de uns trinta e quatro anos, estava ajoelhada na cabeceira do divã e agitava seus grandes peitos sobre a ansiosa cara do homem, de maneira que seus mamilos se introduziam na aberta boca dele. De tanto em tanto, e ao parecer arrastada pelo vigor de seu êxtase, Hildegard se estirava e empurrava o púbis contra a língua e os lábios trêmulos do homem.
As mulheres não estavam completamente nuas mas as roupas que vestiam, tecidos brancos e soltos com aberturas que permitiam acariciar seus peitos e nádegas, eram mais obscenas que a nudez total.
Mas o que deixou ao Boris pasmado, preso ao chão sem poder mover-se, foi que os quatro partícipes parecessem tão comprometidos, tão absortos; e que não só desfrutassem dos benefícios de sua parte na cena, mas por mais doido que parecesse interpretar, também das cambalhotas dos outros.
Mas Boris começou a compreender aquilo enquanto os quatro trocavam de lugar e de posição ante seus olhos, e iniciavam uma nova série de esforçados exercícios —nesta ocasião o homem montava a sua tia como se fosse um horrível cão, e suas primas interpretavam papéis menos importantes—. Aqui não se descuidava a ninguém; todos tinham a oportunidade de ser o agressor, e todos se satisfaziam plenamente. Embora, para os incrédulos olhos do Boris, tudo o que se fazia era igualmente horrível.
Em qualquer caso, embora Boris acreditasse que agora compreendia algo do que via, o que não podia acreditar era que estivesse realmente vendo-o. E o mais incrível de tudo era o personagem central, o homem, aquela horrível máquina de ejacular.
Boris recordava o esgotado que se sentia sempre depois de masturbar-se. Como se sentiria, então, o peludo animal da sala dos espelhos? Parecia regar sêmen quase sem interrupção, e gemia de satisfação com cada nova emissão, mas isto não parecia fatigá-lo, mas sim aumentava seu frenesi. Certamente desabaria a qualquer momento!
Finalmente Boris conseguiu recuperar o uso de suas pernas, e retrocedeu em silêncio quando ouviu que sua tia, como se lhe tivesse lido o pensamento, dizia:
—Vocês duas, já basta! Não acabemos tão rápido com o Dmitri! Por que não vão jogar com o Boris? Mas com suavidade, ou lhe darão medo. Pobre cordeirinho, parece ser dos que se assustam facilmente. É tão libidinoso como uma alface!
Isso tinha bastado para que Boris fugisse desesperado a seu quarto, tirasse suas roupas rapidamente e se metesse na cama. Permaneceu deitado, encolhido de medo —sabia que a porta não estava fechada, que não tinha chave—, esperando..., esperando algo que nem sequer se atrevia a imaginar. Se tivesse estado só com uma prima, com uma garota normal, pode ser que as coisas tivessem sido diferentes. Possivelmente se teria produzido uma tímida, gradual iniciação ao sexo —ao sexo normal— em que o próprio Boris teria tomado a iniciativa.
Os sonhos e as fantasias de Boris a respeito tinham sido até o momento completamente normais. Até tinha fantasiado que se achava só com sua tia, e que lhe estreitava contra seus suaves peitos, contra seu branco corpo. Estes sonhos não lhe tinham parecido ao menino especialmente repugnantes e vergonhosos. Não, antes não o eram.
Mas agora tinha visto! A inocência de suas fantasias se perdeu para sempre. Como podia ser agora o sexo normal e saudável? É que acaso existia semelhante coisa? O tinha visto, sim.
Tinha visto no salão desta casa três mulheres (não podia pensar agora em suas primas como moças) copulando com uma besta ao parecer incansável. Tinha visto a estaca de carne luxuriosa da besta. E como podia ele comparar-se com isso? Depois disso, como podia existir como macho? Um raminho comparado com um tronco? E teria que participar desse tipo de orgias, como uma pequena lebre entre uma matilha de cães? Se só a ideia de ter algum contato com a besta o adoecia!
Estes eram seus pensamentos quando suas primas vieram a buscá-lo. Boris estava envolto nos lençóis e mantas da cama, absolutamente imóvel, sem respirar quase. Ouviu que entravam, e fez um esforço para conter seus nervos quando Anna, com uma risadinha , perguntou-lhe:
—Boris, está acordado?
—Está acordado? Sim? —Katrina também parecia ansiosa por sabê-lo.
—Não, acredito que não —disse Anna, com tom de decepção.
—Mas... se a luz está acesa!
—Boris? (O peso da Anna sobre a cama, junto a ele.) Está seguro de que dorme?
Boris, fingindo dormir, virou-se, fingiu que resmungava em sonhos, e disse:
—O que acontece? Vá embora, estou cansado.
Isso foi um engano. As moças riram, suas vozes ainda enrouquecidas e cheias de luxúria.
—Não quer brincar conosco, Boris? —perguntou Katrina—. Descubra sua cabeça, ao menos. Temos algo... (mais risinhos), temos que te mostrar algo!
Boris não podia respirar. Envolto -se tão apertadamente nas mantas que não tinha ar. Tinha que descobrir-se, quisesse-o ou não.
—Por favor, vá embora e me deixem dormir.
—Boris —disse Anna, e ele teve a visão de suas delicadas mãos no ventre da besta, sacudindo para cima e abaixo a rosada estaca—. Se apagarmos a luz, sairá de debaixo das mantas?
Por um momento, apenas por um muito breve momento, precisava respirar, só o tempo suficiente para encher os pulmões de ar.
—Sim —disse Boris meio sufocado.
Logo ouviu o «clique» do interruptor e sentiu que Anna ficava de pé, e retirava o peso de seu corpo da cama.
—Olhe, já está apagada!
Um instante depois, Boris descobriu que estava, quando tirou a cabeça na escuridão, respirou avidamente... e esteve a ponto de vomitar!
E a luz, entre risinhos que vinham do outro lado da habitação, acendeu-se outra vez. Boris não podia dizer qual de suas primas tinha sido, mas uma delas estava de pé junto à cama, com sua solta túnica sobre a cabeça do Boris, como uma loja de campanha. O rançoso aroma de seu corpo tinha golpeado a cara do Boris, e o menino viu o escuro V do púbis de sua prima orvalhada com uma fileira de pequenas gotas de sêmen. Não havia muita luz debaixo da túnica, mas era suficiente para que Boris visse, quando ela deliberadamente abriu as pernas, a fenda em forma de V, que ao menino lhe pareceu um ávido sorriso vertical.
—Aí tem! —recordava Boris que disse uma voz rouca, entre gargalhadas—. Não lhe dissemos que tínhamos algo para te mostrar?
E essas foram as últimas palavras que se pronunciaram porque de repente, Boris, fora de si de pânico e ódio, começou a golpear a suas primas. Mais tarde recordou muito pouco do acontecido —só que as risadinhas se tornaram gritos, e que lhe doíam os punhos e os esfolados nódulos dos dedos—, mas sim recordava muito bem que no dia seguinte seus torturadores se mantiveram a uma prudente distancia. As duas moças tinham hematomas azuis: além disso, Anna, o lábio partido, e Katrina um olho arroxeado. Possivelmente sua tia tivesse em parte razão ao compará-lo com uma alface, mas Boris não andava escasso de ferocidade e obstinação.
Esse dia tinha sido um pesadelo. Boris, esgotado depois de uma noite de vigília, depois de fazer-se forte em seu quarto e não fazer caso às súplicas para que saísse, teve que suportar a ira de sua tia e as acusações que lhe dirigiam suas primas; a prudente distancia, isso sim.
A tia Hildegard não lhe deu de comer, fazendo-o passar fome como castigo, e jurou que se queixaria ao pai de Boris se o menino não recuperava o juízo imediatamente. Hildegard queria dizer com isto que Boris devia sair do quarto, falar com ela, pedir desculpas a suas primas e fazer como se nada tinha acontecido. Mas Boris não atendeu as razões e permaneceu em seu quarto, salvo ocasionais visita ao lavabo. O menino tinha decidido que antes do anoitecer fugiria da casa e retornaria a Bucarest.
Este plano só tinha um inconveniente: seu pai, cedo ou tarde, inteiraria-se, e quereria saber por que se foi de casa de sua tia. A Boris seria impossível contar-lhe. Seu pai não era um homem com quem fosse fácil falar, e o acontecido era simplesmente incrível. E até caso que seu pai adotivo lhe acreditasse, não surgiriam dúvidas sobre a participação do Boris no assunto? Sobre sua participação ativa, e possivelmente voluntária...
Havia também outras dificuldades. Boris não tinha dinheiro, e tudo tinha sido arrumado para que ficasse no colégio. E foi por estas razões que quando chegou a tarde e as ameaças de sua tia se converteram em súplicas, o moço retirou a cama e a cômoda de detrás da porta e permitiu que Hildegard o conduzisse ao andar de baixo.
A mulher disse que sentia muito que suas filhas o tivessem incomodado a noite anterior, e ele se assustou tanto. Não compreendia o que tinham feito elas para que ele reagisse com semelhante violência. De todos os modos, aquilo já tinha passado e Boris tinha que esforçar-se por esquecê-lo. Se seu irmão se inteirasse do acontecido —isto fosse o que fosse— haveria problemas entre eles. Sempre lhe tinham jogado a culpa de tudo a ela.
Boris, sem dizer uma palavra, tinha estado de acordo com sua tia. Claro que haveria problemas, sobre tudo se mencionasse à besta. Mas sua tia ignorava que ele os tinha visto, e era melhor que seguisse em sua ignorância. De outra maneira, toda a comédia fracassaria. Por outra parte, o sátiro já não estava na casa, e Boris esperava que não voltasse. A tia Hildegard deu-lhe de comer e mais tarde o moço ouviu que a mulher dizia a suas filhas que o deixassem em paz, que ele não era para elas e que terei que levar aquele assunto com muito cuidado. Aquilo parecia o fim do episódio, e Boris se havia sentido agradecido.
Até que aquela noite...
Boris, esgotado, dormia em sua cama, que tinha atravessado contra a porta. Não tinha posto também a cômoda, pois pensou que bastaria a cama e o peso de seu próprio corpo. Mas não tinha sido suficiente. Por volta das três da manhã o despertou um movimento irregular, intermitente, e ouviu a voz de sua tia que o incitava a continuar dormindo. A mulher falava de maneira confusa e respirava pesadamente; tinha bebido e estava nua, coisa que Boris descobriu quando estendeu a mão na escuridão. Isto fez que despertasse por completo, consciente de que a insaciável mulher pretendia meter-se na cama com ele. E imediatamente, como uma mão fria que se posasse em sua testa quente, tinha-o invadido uma serena cólera que substituiu por completo ao medo que havia sentido antes.
—Tia Hildegard —disse Boris enquanto se sentava às escuras na cama, e girava a cabeça para não perceber o fôlego alcoólico da mulher—, acenda a luz, por favor.
—Ah, querido menino! Está acordado e quer brigar. Mas... Boris estava deitado, e não tinha nada em cima do corpo. Fazia tanto calor estas noites do verão! —Levantei-me para beber um pouco de água e devo ter entrado por engano em seu quarto —e enquanto dizia isto, seus peitos roçaram o rosto de Boris.
O moço apertou os lábios e voltou a girar o rosto. Depois repetiu:
—Acenda a luz.
—É um menininho, Boris! —protestou ela corno se fosse uma mocinha, e ao mesmo tempo apertou o interruptor.
A mulher estava completamente nua, de pé no lugar onde tinha afastado a cama para entrar na habitação. E sorria, embriagada, o que lhe dava um ar depravado e estúpido de uma vez. dirigiu-se para o Boris e lhe tendeu os braços.
E então viu que ele estava completamente vestido, e com uma estranha expressão no rosto. Hildegard se cobriu a boca com a mão e murmurou:
—Boris, eu...
—Tia —Boris, sentado no bordo da cama, pôs-se os sapatos—, sairá deste quarto agora mesmo, e não voltará a entrar. Se não sair, irei eu, e se a porta de rua estiver fechada, quebrarei uma janela. Depois contarei para meu pai tudo o que fazem nesta casa ...
—O que fazemos? —disse ela enquanto tentava lhe agarrar a mão com uma expressão preocupada no rosto.
—Sim, contarei-lhe que vêm homens a foder contigo e com minhas primas..., como esses touros que meu pai traz para a granja para cobrir às vacas.
—Mas... mas você... estiveste nos olhando! —A mulher retrocedeu cambaleando, os olhos muito abertos no rosto repentinamente pálido.
—Fora! —tinha-lhe ordenado então Boris, com desprezo, em seus olhos o olhar fulminante que desde esse dia utilizaria em seus entendimentos com as mulheres, e tinha tentado empurrá-la.
A mulher, enfurecida, cuspiu-lhe.
—De modo que é desses? Já lhe hão fodido os meninos maiores em seu colégio? Você gosta mais deles que das mulheres, verdade?
Boris, que se tinha situado junto à janela, agarrou uma cadeira.
—Fora, rápido! —espetou-lhe—. Ou vou agora mesmo. E não só o contarei a meu pai; o direi também a todos os policiais que encontre caminho ao Bucarest. E também lhes falarei da biblioteca que tem, cheia de livros verdes: com isso já haveria bastante como para que passasse uma temporada no cárcere, e de suas filhas, que são pouco mais que umas meninas, e pior que putas...
—Putas, minhas filhas? —interrompeu-o ela com tal fúria que Boris pensou que lhe jogaria em cima.
—Mas que por muito que se esforcem, nunca serão tão pervertidas e corruptas como você —terminou o moço.
Ela então pôs-se a chorar, e permitiu que ele a tirasse do quarto sem oferecer resistência.
Depois, Boris dormiu profundamente durante o resto da noite, sem que ninguém o incomodasse.
E isso foi realmente o final. No dia seguinte, a meio-dia, quando Boris estava almoçando sozinho, seu pai adotivo chegou e o levou para casa. O problema com os animais já tinha passado; graças a Deus, não tinha sido tão sério como acreditaram em princípio. Boris nunca se alegrou tanto de ver alguém, e teve que fazer um esforço para dissimulá-lo. Enquanto o moço fazia a mala, tia Hildegard passou meia hora, a parecer cordial, com seu irmão, que perguntou por suas sobrinhas, que não estavam presentes. Depois se despediram, e Boris e seu pai adotivo partiram rumo ao campo.
Quando estavam por subir ao carro, a tia Hildegard tinha conseguido que seus olhos se encontrassem com os do Boris. Seu olhar, durante um segundo, foi implorante. Os olhos do Hildegard lhe rogaram que calasse. Boris, em resposta, tinha-lhe dirigido um olhar mais terrível que qualquer brincadeira ou ameaça, um olhar que expressava o que pensava dela melhor que mil palavras.
Boris, de todos os modos, nunca falou com ninguém da horrível visita. E nunca o faria; nem sequer com a criatura que jazia enterrada.
A criatura enterrada..., o velho demônio..., o vampiro. Quando Dragosani chegou a clareira onde se achava a tumba, com outro leitão em um saco, pouco antes do entardecer, o vampiro o estava esperando. O que outra coisa podia fazer, a não ser esperar? Estava acordado e furioso. E quando o sol se pôs, e o longínquo horizonte tomou a cor do sangue, a criatura foi primeira em falar:
—Dragosani? Sinto seu cheiro, Dragosani! Vieste me atormentar? Mais perguntas, mais pedidos? Quer roubar meus segredos, Dragosani? Irei diminuir, até que não fique nada de mim e então, o que? Com o que me recompensará? Com o sangue de um porco? Ah, já vejo que sim! Outro porquinho para alguém que se banhou em sangue de homens, de virgens, de exércitos!
—O sangue é sempre sangue, velho dragão —respondeu Dragosani—. E já vejo que o que bebeu ontem à noite te caiu bem, e hoje está mais ágil.
—Que eu bebi? (O desprezo que se advertia era autêntico, ou fingido?) Bebeu-a a terra, Dragosani; não estes velhos ossos.
—Não te acredito.
—Não me importa. Vá embora, me deixe em paz, você me desonra. Não tenho nada para ti, e não quero nada de ti. Não quero falar. Vá embora !
Dragosani sorriu.
—Sim, trouxe-te outro porco. Para ti ou para a terra, como quiser. Mas há algo mais, um pouco menos comum. Embora...
A velha criatura estava interessada, intrigada.
—Embora... ?
Dragosani se encolheu de ombros.
—Possivelmente aconteceu muito tempo. Possivelmente não possa fazê-lo. Pode ser que seja impossível inclusive para ti. Depois de tudo, você não é mais que uma criatura morta. —E antes de que o outro pudesse protestar, acrescentou—: Ou, se insistir, não-morta.
—Insisto... Está brincando comigo, Dragosani? O que me traz esta noite? O que me dará? O que... o que me propõe?
—Possivelmente mais do que podemos nos dar um ao outro.
— Continue.
Dragosani lhe disse o que pensava, o que era o que desejava compartilhar.
— E farás um trato comigo? O que me pedirá por... compartilhar isso comigo?
Dragosani quase podia perceber como o outro se lambia.
—Conhecimento —respondeu imediatamente—. Só sou um homem, e o conhecimento que tenho das mulheres é o de um homem —mentiu... —interrompeu-se, confuso, porque a velha criatura estava rindo; tinha sido um engano lhe mentir.
—Ah, sim? Conhece as mulheres como um homem, Dragosani? Um conhecimento «completo»?
—Não..., não tive tempo —balbuciou Dragosani—. O trabalho..., os estudos..., não se apresentou a ocasião.
—Tempo? Estudos? Ocasião? Dragosani, não é um menino. Eu tinha onze anos quando rasguei meu primeiro hímen, faz uns mil anos. Depois disso, o que me importava que fossem virgens ou putas? Possuí-as de todas as maneiras, e sempre queria mais. E você? Não as provaste? Não te empapaste no suor, os líquidos e o quente sangue de uma mulher? Nem sequer uma? E diz que eu sou uma criatura morta!
O velho riu de maneira estrondosa, ofensiva, obscena. Aquilo eram tão incrivelmente ridículo! A risada seguiu e seguiu, converteu-se em um dilúvio, em uma maré, em um rugiente oceano de risada na cabeça do Dragosani; um oceano que ameaçava afogando-o.
—Maldito seja! —Dragosani ficou de pé, pisoteou a terra, cuspiu-a—. Maldito seja! —repetiu, e ameaçou às rotas lajes da tumba com o punho apertado—. Maldito, maldito, maldito seja!
A velha criatura ficou um instante calada, ocupando a mente de Dragosani como uma lesma de pesadelo.
—Eu já estou maldito, meu filho. Maldito e condenado —disse ao cabo de um momento—. E também o está você...
Dragosani tirou a faca e agarrou ao aturdido leitão.
Espera!Não seja tão impaciente, Dragosani! Não me neguei. Mas me diga, se tiver permanecido casto como um monge durante todos estes anos, por que agora?
Dragosani refletiu um instante, e decidiu que seria melhor que dissesse a verdade. De todos os modos, era provável que o velho demônio tivesse lido seus pensamentos.
—É essa mulher. Tira-me do sério, provoca-me, exibe seu corpo.
—Ah, sim, já conheço as de sua classe!
—Além disso, acredito que pensa que eu estive com homens... ou ao menos se pergunta se não será assim.
—Como os turcos? —A resposta mental da antiga criatura foi cortante, com um toque de ódio - é um insulto!
—É o que eu penso —assentiu Dragosani—. O fará, então?
—Se não me equivoco, está me convidando a que entre em sua mente esta noite, quando essa mulher vá visitar-te.
—Sim —respondeu Dragosani.
—E faz esse convite por vontade própria?
Dragosani sentiu receio.
—Só por esta vez —respondeu—. Não será algo definitivo.
—Não seja presumido, Dragosani —riu o outro—. Tenho, ou terei, meu próprio corpo, e não será adoentado como o teu.
—E pode fazê-lo? E eu aprenderei de ti?
—Claro que posso, meu filho! Esqueceste-te do pombinho? E acaso não aprendeu algo naquela ocasião? Quem fez de ti um necromante, Dragosani? Sim, e desta vez aprenderá muito.
—Se for assim, não quero nada mais de ti... ao menos por agora.
Dragosani começou a afastar-se da tumba, colina abaixo, longe daquele lugar de horror secular.
—E o leitão? —perguntou a espessa e pegajosa voz em sua mente—. É para a terra, Dragosani, para a terra.
Dragosani entrecerrou os olhos na profunda e agitada escuridão.
—É verdade, tinha-o esquecido —disse com tom não desprovido de sarcasmo—. O leitão. Para a terra, claro que é...
Retornou depressa, cortou a garganta do animal e jogou no chão o rosado cadáver. E logo, sem olhar para trás, afastou-se em silêncio.
Quando descia a ladeira viu algo estranho preso por entre as raízes de uma árvore, que lhe tinham impedido de seguir rodando, e se inclinou para recolhê-lo. Eram os restos da oferenda da noite anterior, uma bola de pele rosada e ossos destroçados, ressecada e enrugada como se fora de papelão. Um escaravelho procurava em vão algum resto comestível. Dragosani a deixou cair, e a bola rodou pela ladeira até desaparecer da vista.
—Ah, sim —pensou Dragosani, mas imediatamente, cauteloso, manteve a distância seus pensamentos—. Sim. Para a terra. Somente para a terra...

Dragosani retornou à propriedade dos Kinkovsi a tempo para jantar com a família. Pela última vez, embora ele não pudesse adivinhá-lo. Durante a comida Ilse pareceu muito pouco interessada nele. Melhor, porque Dragosani se sentia tenso, com os nervos a flor da pele. Não estava seguro de ter feito o que devia; o velho demônio enterrado não era nenhum tolo, e tinha deixado bem claro que Dragosani o convidava voluntariamente. À medida que se aproximava a hora, seu antigo rechaço pelo sexo se fazia mais patente, mas ao mesmo tempo seu corpo estava ansioso de que o liberassem, depois de tantos anos de repressão sexual. Pela primeira vez desde que chegasse, a comida lhe parecia insípida, e a cerveja aguada e desanimada.
Mais tarde, em seu quarto, fantasiou e passeou como uma fera enjaulada, mas furioso consigo mesmo e impaciente à medida que passavam as horas. Pela quarta ou quinta vez após o jantar, agarrou a meia dúzia de livros sobre vampirismo que havia trazido, leu as partes mas pertinentes, e voltou a guardá-los em uma mala, onde ninguém podia vê-los. Segundo a lenda, nunca se deve aceitar o convite de um vampiro, nem tampouco convidá-lo a fazer nada. Nestes convites é extremamente importante a vontade consciente da vítima. Significa, em efeito, que foi sua decisão converter-se em vítima. A vontade era como uma barreira na mente da vítima que o vampiro não desejava, e inclusive não podia vencer sem a ajuda da própria vítima. Ou talvez fosse uma barreira psicológica que devia superar a vítima: para poder converter-se em vítima, primeiro devia acreditar...
No caso do Dragosani, o que estava em questão era a profundidade de sua fé. Ele sabia que a criatura enterrada estava ali, de modo que acreditava nela. Mas não conhecia a magnitude do poder que podia exercer no exterior. E possivelmente mais importante, posto que a havia convidado: não conhecia os limites de sua própria resistência, nem sequer se poderia oferecer alguma. Ou se quereria resistir... De todos os modos, muito em breve o averiguaria. A hora entre a meia-noite e a uma da manhã passou com uma lentidão incrível, e à medida que se aproximava o momento da verdade, Dragosani começou a desejar que Ilse pensasse melhor e não fosse à entrevista. Possivelmente já estava profundamente adormecida, e não pensava ir reunir-se com ele. Talvez não fosse mais que um jogo que jogava com todos os hóspedes de seu pai... para fazer que se sentissem uns idiotas. Na verdade, a jovem possivelmente sentia pelos homens, o que Dragosani, até hoje, tinha sentido pelas mulheres.
Dragosani pensou meia dúzia de vezes que a moça lhe estava pregando uma peça, e em cada ocasião se dirigiu à janela para fechá-la e correr as cortinas. Mas no último momento sempre houve algo que lhe deteve, e Dragosani, depois de reprovar-se por sua estupidez nestes assuntos, havia tornado a sentar-se na cama, no quarto às escuras.
Agora, quando faltavam dois minutos para a hora, Dragosani se disse uma vez mais que era um palhaço, correu de novo para a janela e estava a ponto de fechá-la de um golpe quando... Uma figura se deslizou silenciosa, como uma sombra entre sombras, pelo curral da granja, iluminado pela lua. E a janela do dormitório de Ilse Kinkovsi estava aberta, e parecia sorrir a Dragosani como se fosse o mesmo rosto da moça. Ilse vinha!
Deus, como necessitava Dragosani ao antigo ser, agora mesmo! Necessitava-o, mas não o queria! Mas o necessitaria, realmente? Atreveria -se a arrumar-se por sua conta, sem a criatura?
O júbilo e o terror lutavam em Dragosani, e o primeiro foi vencido virtualmente ao primeiro assalto. Um terror produzido não só pela entrevista —ou o propósito desta— mas sim pela dúvida sobre sua própria habilidade para levar a cabo esse propósito. Dragosani já era um homem, mas nesta classe de assuntos continuava sendo um menino. A única carne que tinha conhecido, e em cujos segredos tinha afundado, estava morta, fria, e carecia de desejos. Mas esta estava viva, e quente, e muito ofegante!
O asco invadiu seu corpo como uma corrente. Naquela ocasião ele era um menino, só um menino... as imagens encheram sua mente em um desfile bestial, imagens que acreditava esquecidas... a visita a casa de sua tia... suas primas... a besta, que agora sabia não tinha sido mais que um homem em zelo. Deus, aquilo tinha sido um pesadelo!
Voltaria a repetir-se tudo? E ele teria que ser a besta luxuriosa e escravizada?
Impossível! Ele nunca poderia!
Ouviu ranger uma escada no interior da casa de hóspedes, foi para a janela e olhou com olhos se desesperados a noite. Outro rangido, mais próximo, fez que fosse a toda pressa para o interruptor da luz. Ela estava lá fora, no descanso, e vinha para sua porta!
Uma rajada de vento entrou gemendo no quarto, agitou as cortinas, penetrou no coração do Dragosani. E em um instante desapareceram todos os temores, todas as dúvidas. Dragosani se afastou da zona iluminada pela lua e esperou com ânsia na escuridão.
A porta se abriu em silêncio e a moça entrou. A luz da lua fazia que a fina camisola cinza que vestia parecesse quase transparente. Ela entrou, fechou a porta e foi até sua cama.
—Herr Dragosani? —disse, com voz apenas tremente.
—Estou aqui —respondeu ele da escuridão.
Ela o ouviu mas não olhou em sua direção.
—De modo que eu... estava equivocada com respeito a você —disse ela, e levantou os braços e se tirou a fina camisola.
Seus peitos e suas nádegas pareciam de mármore sob a carícia da lua.
—Sim —sussurrou ele, e se adiantou.
—Pois bem —agora foi ela quem se voltou para ele—, aqui me tem.
A jovem permaneceu de pé como uma estátua de leite, olhando-o sem nenhuma inocência. Ele foi para ela, uma silhueta escura, e a abraçou. À luz do dia ela tinha pensado que seus olhos eram um pouco descoloridos, de um azul muito suave, quase feminino, mas agora...
A noite assentava a Dragosani. Na escuridão seus olhos eram selvagens como os de um grande lobo. Quando ele a arrastou para a cama, começou a sentir-se insegura. Aquele homem tinha uma força terrível!
—Eu estava completamente equivocada com respeito a ti —disse ela.
Ahhh!, respondeu Dragosani.

À manhã seguinte Dragosani pediu o café da manhã cedo. Tomou em seu quarto. Kinkovsi pensou que o jovem parecia mais ativo e enérgico que nunca. O ar do campo devia lhe fazer muito bem. Ilse, por outra parte, não era tão afortunada.
Dragosani não precisou perguntar por ela: o pai da moça estava ansioso por falar, e contou tudo enquanto lhe servia o café da manhã.
—Minha Ilse é uma garota muito forte. Ou teria que sê-lo, mas desde sua operação... —e concluiu a frase com um encolhimento de ombros.
—Que operação? —Dragosani tratou de não parecer muito interessado.
—Só há seis anos. Câncer. Muito mau para uma garota jovem. Estava no início, de modo que o retiraram. A operação foi bem e ela está viva. Mas nosso país é de camponeses. Os homens querem mulheres que lhe deem filhos, sabe? De modo que Ilse será uma solteirona. Embora possivelmente partirá e conseguirá um trabalho na cidade. Ali não é tão importante ter filhos fortes...
Isso explicava tudo.
—Já vejo —assentiu Dragosani. E logo, com cautela—: Mas esta manhã...
—Alguns dias não se encontra de tudo bem. Não lhe acontece frequentemente, mas hoje realmente não tem forças para nada. Quando está assim, fica em seu quarto por um dia ou dois. Com as cortinas baixas, o quarto às escuras, bem abrigada na cama e tremendo. Igual a quando era uma garotinha e estava doente. Diz que não quer que chame um médico mas... mas me preocupa.
—Não o faça —disse Dragosani—. Quero dizer, não tem por que preocupar-se.
—O que diz? —Kinkovsi parecia surpreso.
—Ilse já é uma mulher feita, e sabe o que lhe convém. Descanso, tranquilidade, uma agradável habitação em penumbra. Isso é tudo o que eu necessito quando não estou bem.
—Hmmmm... bom, talvez tenha razão. Mas me preocupa. Além disso, temos muitíssimo trabalho. Hoje chegam os ingleses.
—Sim? —Dragosani se alegrou de que o outro tivesse trocado o tema da conversação—. Então, talvez os conhecerei esta noite.
Kinkovsi assentiu, mas sua expressão era triste. Agarrou a bandeja vazia.
—É muito difícil; eu sei muito pouco inglês. E o que sei, aprendi-o com os turistas.
—Eu falo inglês —disse Dragosani—. Me acerto bastante bem.
—Sim? Que bem, ao menos poderão falar com alguém. De todos os modos, trazem dinheiro... e o dinheiro fala, não crê? —disse Kinkovsi com uma risinho—. bom proveito, Herr Dragosani.
—Obrigado.
Kinkovsi se afastou grunhindo entre dentes, e baixou as escadas. Mas tarde, quando Dragosani saiu, Hzak e Maura estavam preparando os quartos do primeiro andar para os turistas ingleses.

Dragosani chegou a Pitesti antes de meio-dia. Não sabia muito bem por que se dirigiu à cidade, embora recordava que ali havia uma biblioteca pequena, mas muito completa. Nunca saberemos se teria ido à biblioteca, nem que livros teria consultado ali se o tivesse feito. A pergunta sequer foi feita. A polícia local o encontrou antes.
A princípio, Dragosani se assustou e imaginou todo tipo de coisas (a pior de todas, que o tinham vigiado e seguido, e que tinham descoberto seu segredo, tudo o que concernia ao velho demônio enterrado), mas se tranquilizou quando descobriu o que acontecia. Gregor Borowitz tinha tentado localizá-lo desde dia em que ele abandonou Moscou, e por fim o tinha conseguido. O estranho era que não tivessem detido a Dragosani na fronteira, quando entrou na Romênia pelo Reni. A polícia local tinha seguido seus passos até Lonestasi; dali a casa dos Kinkovsi, e ao final o tinham encontrado em Pitesti. Na verdade, tinham seguido a seu carro Volga: não havia muitos na Romênia, e menos com matrícula de Moscou.
O policial a cargo do patrulheiro que o tinha detido se desculpou pelos inconvenientes , e lhe deu um «recado», o número de telefone do Borowitz em Moscou, uma linha privada que muito poucos conheciam. Dragosani foi em seguida à delegacia de polícia, e de ali chamou o Borowitz.
Ao outro lado da linha, Borowitz não fez rodeios.
—Dragosani, retorne logo que possa.
—O que acontece?
—Um funcionário da embaixada americana sofreu um acidente enquanto visitava o país. O carro está destroçado, e o homem morreu. Ainda não o identificamos, oficialmente, ao menos, mas teremos que fazê-lo muito em breve. E os americanos reclamarão o cadáver. Quero que você o examine antes de que o entreguemos... e que utilize todo seu talento.
—Por que? Tão importante é esse homem?
—Faz tempo que suspeitamos que, junto com dois ou três mais, é um espião da CIA Temos que saber se pertencia a uma organização de espionagem. Virá você o mais rápido possível?
—Sim, porei-me em caminho imediatamente.
Dragosani retornou à propriedade dos Kinkovsi, colocou suas coisas no carro, pagou ao hospedeiro e lhe deu uma generosa gorjeta; agradeceu ao Hzak e a Maura sua hospitalidade, e aceitou sanduíches, um recipiente térmico com café e uma garrafa do vinho do lugar. Mas apesar dos presentes de despedida, era evidente que Hzak ainda desconfiava do Dragosani.
—Você me disse que trabalhava em uma empresa de pompas fúnebres —protestou—, mas a polícia riu de mim quando o mencionei. Disseram que você é um homem muito importante em Moscou. Parece-me uma vergonha que um homem importante tire o sarro a um compatriota, a um humilde camponês.
—Sinto muito, amigo —lhe disse Dragosani—. É verdade, sou um homem importante e meu trabalho é algo muito especial... e muito fatigante. Quando volto para minha terra quero esquecê-lo; por isso digo que sou um empregado de pompas fúnebres. Por favor, me perdoe.
Com aquilo bastou; Hzak Kinkovsi sorriu e se deram a mão. Depois Dragosani subiu ao carro.
Ilse, oculta atrás das cortinas de sua janela, olhou-o afastar-se e suspirou com alívio. Não era provável que fora a conhecer outro homem como ele, e era melhor assim, mas...
Seus hematomas eram muito visíveis, mas logo se apagariam, de todos os modos sempre poderia dizer que tinha sofrido um enjoo, e tinha tropeçado e caído. Sim, as marcas iriam desaparecer, mas nunca se apagaria a lembrança da ocasião em que as tinha feito.
Ilse voltou a suspirar... e estremeceu de prazer.

Intervalo um

No último piso de um famoso hotel londrino, em umas salas destinadas a escritórios, Alec Kyle se sentou à mesa de seu antigo chefe e, com muita urgência, tomou notas em taquigrafia. O «fantasma» (não podia deixar de lhe dar esse nome) que o olhava do outro lado da mesa tinha falado depressa, com uma voz suave e bem articulada, durante mais de duas horas e meia. Kyle sentia os dedos da mão rígidos; doía-lhe a cabeça, transbordante de imagens. Não duvidava de que o fantasma dizia a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade.
Quanto a como conhecia os assuntos dos que falava com tal eloquência, ou por que falava deles, quem pode dizer o que sabe ou não sabe uma criatura tão estranha, e de que devia ou não deve falar? De algo estava seguro Kyle: a informação que agora tinha era enormemente importante, e devia considerar-se afortunado de ser o médium através do qual a informação era dada a conhecer.
Uma dor repentina atendeu seu braço, do cotovelo à mão, e Kyle teve que soltar um instante o lápis para segurar a mão, que sofreu um breve espasmo. Seu visitante fez então uma pausa. Um momento tão bom como qualquer outro para tomar um descanso, pensou Kyle, e se sentiu agradecido. Massageou a mão e o pulso durante um minuto, logo agarrou um apontador e fez de novo ponta do lápis; era a nona ou décima vez que o fazia.
—Por que não usa uma caneta —perguntou o fantasma, com um tom tão natural e sensato que Kyle lhe respondeu sem pensar que falava com algo que tinha menos substância que a fumaça.
—Prefiro os lápis. Sempre os preferi. Um capricho, suponho. De todos os modos, não lhes gasta a ponta. Sinto haver interrompido, mas tenho o pulso muito dolorido.
—Ainda nos falta muito.
— Está tudo bem.
—Por que não vai e toma outro café? Fume um cigarro. Dou-me conta de que tudo isto deve ser muito estranho para você. Também o é para mim, mas se eu fosse você estaria muito nervoso. Você age muito bem. E nos entendemos perfeitamente. Antes de vir aqui eu estava preparado para fazer várias visitas, de modo que você se fosse adaptando a mim. Mas não foi necessário, e ganhamos muito tempo.
—Assim é; embora seja o tempo o que me preocupa —respondeu Kyle enquanto acendia seu cigarro e exalava com grande prazer a primeira baforada de fumaça—. Tenho que assistir a uma reunião às quatro. E uma vez ali, tentarei convencer a algumas pessoas muito importantes de que a organização deve seguir funcionando, e de que têm que me deixar ocupar o posto de Sir Keenan, e dirigi-la. Como pode ver, eu gostaria de terminar antes das quatro.
—Não deixe que isso o preocupe —disse o outro com seu tênue sorriso—. Pense que já os convenceu.
Kyle se levantou, foi até o escritório central,pôs umas moedas na máquina de café. Nesta ocasião o fantasma o seguiu, e permaneceu erguido detrás dele. Quando Kyle se voltou, ali estava, e os móveis do escritório se viam através de seu corpo. Era menos que um holograma, menos que uma bolha, um ectoplasma. Kyle se surpreendeu, e derrubou um pouco de café; logo esquivou ao espectro e retornou ao escritório de Gormley.
—Sim —continuou o espectro, retomando a conversação onde a tinham deixado—. Acredito que nós podemos influir sobre seus superiores para que tudo saia como você deseja.
—Nós? —suspirou Kyle.
O outro se limitou a encolher-se de ombros.
—Já veremos. Mas agora, antes de voltar para o Dragosani, quero lhe falar um pouco mais do Harry Keogh. Sinto pular de um ao outro desta maneira, mas é melhor se você tiver uma visão completa.
—O que você quiser.
—Está preparado?
—Sim —respondeu Kyle e agarrou o lápis—. Embora haja algo que queria saber...
—Sim?
—Perguntava-me que relação tem você com tudo isto...
—Eu? —O fantasma elevou as sobrancelhas—. Acredito que ficaria decepcionado se não me tivesse perguntado isso. Mas já que o tem feito, o direi: se tudo sair tal como espero, eu serei seu futuro chefe.
—Um fantasma... meu futuro chefe? —disse Kyle com um sorriso um tanto forçada.
—Acreditei que já tínhamos esclarecido isso —respondeu o outro—. Não sou um fantasma e nunca o fui, embora reconheça que estive muito perto. Mas não se impaciente, já chegaremos a esse ponto.
Kyle assentiu.
—Agora podemos seguir?
Kyle voltou a fazer um gesto afirmativo.

Capítulo sete

Harry Keogh estava a quilômetros de distância, seus pensamentos perdidos nas nuvens que flutuavam como flocos de algodão no líquido azul do céu do verão. Harry, as mãos atrás da cabeça e uma folha de capim entre os dentes,não havia dito uma palavra desde que fizeram amor. As gaivotas gritavam e mergulhavam em busca de peixes entre as ondas, e sua chorosa algazarra chegava até os jovens batidos pela brisa que soprava do mar e acariciava as esparsas folhagens nas dunas.
Também os suaves movimentos da mão da Brenda eram como uma carícia, embora a moça não atraía neste instante toda a atenção de sua carne. Dentro de pouco momento pode que a desejasse de novo, mas se isto não acontecia, não teria importância. De fato, gostava dele quando estava como agora: silencioso, ao bordo do sonho, quando sua habitual raridade parecia havê-lo abandonado. Harry era realmente estranho, mas isso era parte de seu atrativo. Era uma das razões que faziam que o amasse. E Brenda às vezes imaginava que ele também a queria. Com Harry, era muito difícil sabê-lo. Nada era fácil com ele.
—Harry —disse, enquanto o fazia cócegas no peito—. Há alguém em casa?
—Mmmmm —foi a resposta, e o matinho que tinha entre os dentes se moveu.
Brenda sabia que ele não a ignorava, simplesmente estava em outro lugar. Ao menos uma parte do Harry se achava longe dali, em um lugar completamente distinto. Brenda tinha tentado uma e outra vez averiguar algo a respeito desse lugar, mas até o momento Harry não lhe havia dito nada.
A moça se sentou, fechou a blusa e arrumou a saia, sacudindo a areia que se colocou entre as dobras.
—Harry, te arrume. Há gente na praia, e se vierem aqui nos verão.
—Mmmmm —repetiu ele.
Brenda lhe arrumou ela mesma a roupa, logo se encolheu junto a ele e lhe beijou a testa. Logo lhe deu um puxão de orelha e lhe perguntou:
—O que pensa, Harry? Aonde foste?
—Você não gostaria de sabê-lo —respondeu ele—. Esse lugar nem sempre é agradável. Eu já acostumei a ele, mas você não gostaria.
—Eu gostarei se você estiver ali.
Ele voltou o rosto para olhá-la, e sua expressão se fez muito séria. Brenda pensou que Harry às vezes tinha um aspecto muito sério; na verdade, não só às vezes, mas também quase todo o tempo. Ele fez um gesto negativo com a cabeça.
—Não, você não gostaria embora eu estivesse contigo; odiaria esse lugar.
—Não se estivéssemos juntos.
—Nesse lugar não se pode estar com ninguém —lhe disse Harry, e isso era o mais perto da verdade que tinha estado nunca falando desse tema—. Ali terá que estar completamente sozinho.
Ela queria saber mais.
—Harry, eu...
—De todos os modos, agora estamos aqui —a interrompeu ele—. Estamos aqui e fizemos amor.
Brenda sabia que se insistisse, só conseguiria que ele se retraísse ainda mais, e mudou de assunto.
—Tem-me feito amor —disse— oitocentas e onze vezes.
—Eu antes fazia isso —disse ele.
Brenda ficou atalho. Ao cabo de um instante disse:
—O que é o que fazia?
—Contar as coisas. Contava tudo, os azulejos em um lavabo, por exemplo, enquanto estava sentado no privada.
A moça suspirou, irritada.
—Harry, eu falava de fazer amor! Às vezes acredito que é o menino menos romântico do mundo.
—Neste momento não sou nada romântico, dei isso tudo a você
Aquilo estava melhor, ao menos Harry tinha saído de seu «estado mórbido». Assim qualificava Brenda o estado de ânimo do Harry quando o via distraído e estranho: presa do «estado mórbido». A jovem sorriu divertida; sentia-se feliz de que ele estivesse de bom humor.
—Oitocentos e onze vezes em só três anos! É muitíssimo. Sabe quanto tempo faz que saímos?
—Desde que éramos crianças – respondeu Harry
Os olhos do jovem estavam de novo fixos no céu, e Brenda se deu conta de que só entendia a metade do que ela dizia. Havia algo mais em sua mente, suspenso no limite de sua consciência. Conhecendo Harry tão bem como o conhecia, ela percebeu que aquilo estava ali. Possivelmente algum dia saberia do que se tratava. Por agora só sabia que era algo que ia e vinha, e que nesta ocasião parecia demorar mais em partir.
—Sim, mas quanto tempo? —insistiu Brenda.
Ele a olhou com um rosto sem expressão.
—Quanto tempo? Não sei, quatro ou cinco anos, acredito.
—Seis —disse ela—. Desde que você tinha doze anos e eu onze. Aos doze anos levou a cinema e me agarrou a mão.
—Aí tem —disse ele, e detrás fazer um esforço retornou à terra—. E você que me acusava de não ser romântico!
—Já —disse ela—. Mas estou segura de que não recorda o filme que vimos. Era Psicose, e não sei qual dos dois tinha mais medo.
—Eu —sorriu ele.
—E depois, quando tinha treze anos, fizemos um lanche à borda do rio. Depois de comer fizemos uma pausa, e você me tocou a perna por debaixo da saia. Eu me zanguei, e você fingiu que tinha sido sem querer. Mas na semana seguinte fez outra vez, e eu não te falei durante quinze dias.
—Vá, se agora tivesse essa sorte! —suspirou Harry—. De qualquer modo, retornou logo a me pedir mais.
—E logo você começou a ir ao instituto no Hartlepool, e já não nos vimos muito. O inverno foi muito comprido. Mas o verão seguinte foi muito bom para nós. Conseguimos um barraco na praia do Crimdon e fomos nadar. E depois, no barraco, quando me secava as costas, tocou-me.
—E você me tocou —lhe recordou ele.
—E você queria que me deitasse contigo.
—E você se negou.
—Até o ano seguinte. Harry, nem sequer tinha completo os quinze anos! Isso foi terrível!
—Não foi tão mal. Não, tal como eu o recordo —disse com um sorriso—. Te lembra da primeira vez?
—Claro que me lembro!
—Que confusão! Era como abrir uma fechadura com um mata-borrão molhado.
Brenda riu.
—Mas melhorou muito rápido, entretanto —disse—. Sempre me perguntei onde tinha aprendido todo isso. Acredito que o que em realidade queria saber é se alguém lhe tinha ensinado isso.
Harry a tinha escutado com um sorriso, mas de repente ficou muito sério.
—O que quer dizer com isso? —perguntou com brutalidade.
—Se o tinha aprendido com outra garota, só isso. —Brenda se surpreendeu ante a brusca mudança de humor—. O que pensaste que queria dizer?
—Outra garota? —Harry ainda tinha o rosto carrancudo, mas sua expressão trocou: primeiro a um sorriso triste, logo divertida, e finalmente uma gargalhada—. Outra garota! —repetiu com uma risada estrepitosa—. Quando, aos onze anos?
Brenda, aliviada, riu com ele.
—É divertido —disse.
—Sabe que tenho a sensação de que as pessoas me disseram toda a vida, que sou divertido? E em realidade não o sou. Deus sabe que às vezes queria aprender a sê-lo, saber me divertir e fazer brincadeiras. Mas é como se não tivesse tempo, como se não o tivesse tido alguma vez. Não tiveste em algumas ocasione a sensação de que se não te rir logo estalará? Me acontece, lhe posso jurar isso.
Ela fez um gesto de desalento.
—Às vezes penso que nunca te compreenderei. E outras acredito que você não quer que o faça. —Brenda suspirou—. Eu gostaria que me quisesse tanto como eu a você.
Ele ficou de pé, ajudou-a a levantar-se e a beijou na testa; era sua maneira de trocar de tema.
—Vem, vamos caminhando pela praia até o Hartlepool. Pode tomar o ônibus a Harden ali.
—Mas nos levará todo o dia!
— Pararemos para tomar um café na praia do Crimdon —disse Harry—. Logo poderemos nadar um pouco na praia que fica um pouco mais à frente. E depois iremos a minha casa. Pode ficar até a noite se quiser... a menos que tenha outros planos.
—Não, não os tenho. Você sabe... mas...
—Mas o que?
De repente, Brenda se sentiu angustiada, ansiosa.
—Harry, o que vai ser de nós?
—O que quer dizer?
—Quer-me?
—Acredito que sim.
—Mas não está seguro disso? Quero dizer, eu sei que te quero.
Começaram a caminhar pelas dunas, aproximando-se da zona de areias úmidas, onde o mar se retirava. Na água havia alguns nadadores, mas não muitos; a praia estava suja com os detritos das minas de carvão do norte, um problema que tinha começado fazia um quarto de século e se agravou com o tempo. Uns caminhões negros se arrastavam com dificuldade junto ao bordo do mar, enquanto várias equipes de homens recolhiam com pás as partes de carvão que tinha deixado a maré como se fora ouro negro. Poucos quilômetros mais ao sul, a praia estava algo mais limpa; mas até o Seaton Carew o carvão e os depósitos de escória arruinavam as areias brancas. E ainda mais ao sul a contaminação era mais escassa, mas como as minas estavam pouco menos que esgotadas, muito em breve a natureza se encarregaria de que as coisas voltassem para ao normal. Mesmo assim, passaria bastante tempo até que as praias recuperassem sua anterior beleza, e talvez não o conseguissem nunca.
—Sim —respondeu por fim Harry—. Acredito que te quero. Melhor dizendo, sei que te quero. Só que tenho muitas coisas na cabeça. Você pensa que não te demonstro meu afeto? Não sei o que quereria que te dissesse, e não tenho tempo para pensar coisas bonitas e lhe dizer isso Ela o agarrou muito forte do braço, e se apertou mais contra ele enquanto caminhavam.
Ela o agarrou muito forte do braço, e se apertou mais contra ele enquanto caminhavam.
—Não tem que me dizer nada. Mas me entristeceria tanto que o nosso relacionamento terminasse...
—E por que teria que terminar?
—Não sei, mas me preocupa. Parece-me que o nosso não vai a nenhuma parte. Meus pais também estão preocupados...
—Sim —assentiu ele, taciturno—. Te refere a matrimônio, verdade?
—Não, não exatamente —suspirou Brenda—. Já sei o que pensa disso, que é muito cedo, e somos muito jovens. Estou de acordo contigo. E acredito que meu pai e minha mãe pensam como nós. Sei que você gosta de estar sozinho; e é verdade que somos muito jovens.
—Sempre diz isso, mas acabamos lhe dando voltas ao mesmo tema.
Brenda parecia abatida.
—É... é por sua forma de ser; nunca sei o que pensa. Se tão somente me dissesse o que é o que se preocupa tanto. Sei que há algo, mas você não me diz nada.
Pareceu como se Harry fosse falar, mas logo mudou de ideia. Brenda conteve o fôlego, e logo deixou escapar o ar quando foi evidente que ele se arrependeu. A jovem tentou outra tática.
—Sei que não é por causa da escrita, porque foi assim muito antes de que começasse a escrever. Em realidade, é assim desde que te conheço. Se tão somente...
—Brenda! —interrompeu-a ele, e logo a abraçou e a obrigou a deter a marcha.
Harry estava sem fôlego, parecia incapaz de falar, de dizer o que queria expressar. Brenda se assustou.
—O que acontece, Harry?
Ele tragou saliva, respirou fundo e começou a caminhar de novo. Ela o alcançou e o agarrou da mão.
—Harry?
O se dirigiu a ela sem olhá-la.
—Brenda..., quero... quero falar contigo.
—Mas se eu também quero que o faça!
Harry voltou a deter-se, abraçou à garota, e olhou por volta do mar por cima de seu ombro.
—Trata-se de um assunto estranho...
Ela tomou a iniciativa; soltou-se do braço, e agarrando-o outra vez da mão, conduziu-o pela praia.
—Muito bem. Caminhemos, você fala e eu escuto. Que é um assunto estranho? Pois não me importa. E eu já hei dito tudo o que tinha que dizer. Agora é com você.
Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça, a olhou de esguelha, tossiu para esclarecê-la garganta e disse:
—Brenda, perguntaste-te alguma vez o que pensam as pessoas quando estão mortas? Quais são seus pensamentos, enquanto jazem em suas tumbas?
A jovem sentiu arrepiar a pele. A pesar do calor do sol, sentiu-se gelada até a medula ante a voz completamente desprovida de emoção do Harry, e o que acabava de dizer.
—Que se alguma vez me perguntei...?
—Já lhe disse que era um assunto estranho —lhe recordou ele.
Brenda não soube o que lhe dizer, o que lhe responder. estremeceu-se involuntariamente. Não era possível que Harry falasse a sério! Ou isto acaso era algo que pensava escrever. Seguro que era isso, um conto que estava escrevendo.
Brenda se sentiu decepcionada. Nada mais que um conto! Por outro lado, possivelmente se tinha equivocado ao não pensar que a literatura era a origem de sua melancolia. Pode que Harry fora assim porque não tinha a ninguém com quem falar. Todo mundo sabia que era um moço precoce; escrevia com brilhantismo, e sua obra era própria de um escritor amadurecido. Era por isso, pois? Simplesmente porque o menino tinha muitas coisas dentro de si, e não encontrava a maneira de desafogar-se?
—Harry —falou Brenda—, deveria me haver dito que suas mudanças de humor obedeciam a seu trabalho literário.
—A meu trabalho literário? —perguntou com expressão de desconcerto.
—Isso que me contaste é um conto que está escrevendo —disse ela—. Não é assim?
Ele começou a fazer um gesto negativo com a cabeça, mas o trocou em seguida por um de afirmação. E logo, com um sorriso, disse:
—Sim, adivinhaste-o. É um conto muito estranho, e não consigo terminar de escrevê-lo. Se pudesse falar dele...
—Pode falar comigo.
—Muito bem, falemos então. Pode que isso me dê novas ideias, ou me permita ver o menos que não funciona nas que tenho.
Seguiram caminhando agarrados da mão.
—Bom —disse ela, e detrás pensar com a frente carrancuda durante uns instantes, prosseguiu—: Pensamentos felizes.
—Como?
—Acredito que os mortos em suas tumbas têm pensamentos felizes. Isso seria o equivalente do paraíso.
—A gente que em vida foi desventurada não pensa nada —disse ele como se falasse de um fato cotidiano—. Em geral, alegram-se de haver-se liberado de tudo o que os atormentava.
—Ah! Quer dizer que vais estabelecer diferentes categorias de defuntos; não todos vão ser iguais, ou a ter os mesmos pensamentos.
Harry assentiu.
—Exato. Por que teriam que pensar o mesmo? Não o faziam quando estavam vivos, não? Alguns são felizes, e não têm nada do que queixar-se, mas há outros que jazem doentes de ódio, porque sabem que os que os mataram seguem vivendo, e não foram castigados.
—Harry, que ideia mais horrível! Que classe de conto está escrevendo, uma história de fantasmas?
Ele se umedeceu os lábios e voltou a afirmar com a cabeça.
—Sim, algo no estilo. É sobre um homem( que da tumba pode falar com as pessoas. Pode ouvi-los em sua cabeça, e sabe o que pensam. Sim, e pode falar com eles.
—Sigo pensando que é horrível —disse Brenda—. Mas é uma boa ideia. E os mortos realmente falam com ele? E por que?
—Porque estão muito sozinhos. Olhe, não há ninguém como este homem. Ao parecer, e pelo que ele pôde averiguar, é o único que pode fazer isso. Eles não têm a ninguém mais com quem falar.
—E ele não se torna louco? Quero dizer, com todas essas vozes martelando em sua cabeça ao mesmo tempo, tentando chamar a atenção.
Harry sorriu com ironia.
—Não, não acontece dessa maneira —disse—. Normalmente eles estão em sua tumba, e pensam. O corpo se apodrece, já sabe, e com o tempo se converte em pó. Mas a mente permanece. Não me pergunte como; é algo que não tentarei explicar. Acontece simplesmente que a mente é o centro consciente e subconsciente de uma pessoa, e quando esta morre a mente continua, mas só no nível subconsciente. É como se a pessoa estivesse dormindo, e em certo sentido o está. Só que nunca voltará a despertar. De modo que o necroscópio só fala com aquela com quem deseja fazê-lo.
—O necroscópio?
—É o nome que lhe dei; é um homem que vê na mente dos mortos...
—Já vejo —disse Brenda, com uma expressão muito séria—. Sim, parece-me que agora o entendo. As pessoas que foram felizes jazem na tumba recordando os bons tempos, e seus pensamentos são felizes. E a pessoa desventurada, simplesmente se apaga.
—Sim, algo do tipo. A pessoa maliciosa pensa coisas más, e os assassinos tem pensamentos criminosos, e assim acontece com todos: cada um tem seu próprio inferno particular, se quer dizê-lo assim. Mas isto acontece com a pessoa comum, com pensamentos comuns. Seus pensamentos têm um nível baixo. Digamos que em vida eram muito mundanos. Não o digo depreciativamente; não eram muito inteligentes, isso é tudo. Mas também há pessoas extraordinárias: pessoas criativas, grandes pensadores, arquitetos, matemáticos, escritores, verdadeiros intelectuais. E o que supõe que fazem?
Brenda o olhou, tentando adivinhar seus pensamentos. Logo parou para recolher um calhau flutuante no mar. E depois disse:
—Suponho que continuam com o que faziam. Se eram grandes pensadores quando estavam vivos, pois devem seguir com suas ideias.
— Certamente! —disse Harry com ênfase. Isso é precisamente o que fazem. Os engenheiros continuam construindo suas pontes... em suas cabeças. Formosas, aéreas construções que cruzam o oceano. Os músicos compõem belas canções e melodias. Os matemáticos desenvolvem teorias abstratas e as aperfeiçoam até que são tão claras que um menino poderia as compreender, mas tão surpreendentes que contêm os segredos do universo. Eles melhoram o que faziam quando estavam vivos. Levam suas ideias aos limites da perfeição, completam todas as teorias e obras inconclusas que não conseguiram pensar em vida. E não há nada que os distraia, não há interferências do exterior, nada que os incomode, confunda-os ou os preocupe.
—Tal como conta, sonha muito bem. Mas crê realmente que as coisas acontecem assim?
—Claro que sim —respondeu ele muito seguro, e em seguida tentou retificar o que havia dito—: Bom, ao menos em meu conto. Eu nunca poderia sabê-lo se na realidade também fossem dessa maneira.
—É verdade, sou uma tola —disse ela—. A realidade não é assim, claro. Mas não entendo por que esses mortos vão querer falar com você... com esse necroscópio. Não crê que ele representa uma distração, que os aborrece, que interrompe seus grandes pensamentos e teorias?
—Não —disse Harry com um gesto negativo—. Ao contrário. É por causa da natureza humana, sabe? Do que serve fazer algo maravilhoso se não poder contar a ninguém, ou mostrar o que tem feito? Por isso os mortos desfrutam falando com o necroscópio. Ele pode apreciar seu gênio. É o único que pode fazê-lo! Além disso, simpatiza com eles, quer saber a respeito de seus maravilhosos descobrimentos; de seus fantásticos inventos, que não serão inventados no mundo real até dentro de centenas de anos.
Brenda, de repente, viu algo no que Harry havia dito.
—Mas é uma ideia maravilhosa, Harry! E não é nada retorcida, ou mórbida, como acreditei no princípio. O necroscópio poderia inventar na realidade o que pensaram os mortos em suas tumbas. Poderia construir suas pontes, compor sua música, escrever suas obras literárias. E acontecerá assim? Em seu conto, quero dizer...
Ele virou o rosto na direção do mar. Depois disse:
—Sim, acredito que sim. Ainda não tenho bem pensado...
Caminharam um momento em silêncio, e pouco depois chegaram a Crimdon, onde se detiveram tomando um café em uma pequena cafeteria junto à praia.

Harry dormia em sua cama, nu por completo, os lençóis de lado. A tarde era muito quente e o sol, ainda derramava seu fogo dourado através das janelas do pequeno apartamento. Quando Brenda percebeu a camada de suor que umedecia a frente do Harry, correu as cortinas para que não entrasse sol. Quando sua cara ficou na sombra, ele murmurou algo em sonhos, mas Brenda não conseguiu a entendê-lo. Enquanto se vestia em silêncio, a jovem rememorou os acontecimentos do dia, e recordou também outras épocas de sua vida. Sua memória, deslocada, percorreu os anos que tinham transcorrido desde que conhecera Harry...
Hoje tinha sido um bom dia; Harry ao menos tinha falado com ela sobre... bom, sobre coisas que lhe concerniam. Abriu-se um pouco, desafogou-se. E depois do longo bate-papo sobre o conto deu a impressão de sentir-se mais cômodo consigo mesmo, quase feliz. A Brenda resultava impossível imaginar o que poderia fazê-lo feliz de tudo. Ele dizia que era porque «tinha muitas coisas na cabeça». Que coisas? Seu ofício de escritor? Possivelmente. Mas ela nunca o tinha visto realmente feliz. Ou se foi, nunca o tinha demonstrado...
Mas se estava desviando do assunto principal. Brenda voltou para os acontecimentos do dia.
Depois do Crimdon caminharam um quilômetro e meio até uma parte da praia muito menos concorrida, e se banharam em suas roupas íntimas. De longe não se notava, e parecia que usavam traje de banho. Brincaram um momento na água, e depois chegou um vagabundo dos que percorrem as praias em busca de objetos perdidos. Já era hora de ir-se. Vestiram-se antes de que o velho estivesse muito perto e empreenderam o último lance da caminhada. No Hartlepool pegaram um ônibus que os levou do capelo até a parte nova da cidade, e que os deixou virtualmente na porta da casa vitoriana de três andares onde Harry tinha um apartamento. Brenda preparou sanduíches, e depois tomaram banho e fizeram amor. Tinha sido um momento delicioso, com seus corpos quentes pelo sol da praia e um leve gosto de sal. Brenda gostava mais de Harry no verão, quando não estava tão branco e seu magro corpo parecia mais musculoso.
Não é que fosse fraco ou mirrado; Harry era perfeitamente capaz de cuidar de si mesmo, e não aceitava que ninguém o humilhasse. Brenda o tinha visto enfrentar a valentões duas vezes, e em ambas as ocasiões tinham sido estes quem se tinham retirado a com os rabos entre as pernas. A moça se orgulhava em segredo de que as duas vezes brigou por ela. Harry não fazia caso dos sarcasmos que lhe dirigiam; ignorava-os, ou os atribuía a incultura dos vândalos. Mas não tolerava insultos ou insinuações dirigidos a Brenda, ou a ele quando estavam juntos. Nessas ocasiões parecia transformar-se em outra pessoa, alguém muito mais duro, rápido e hábil. Brenda, contudo, estava desconcertada por este domínio da defesa pessoal; era uma das muitas coisas nas que Harry era um perito sem que ninguém soubesse como tinha adquirido os conhecimentos necessários.
Pois o mesmo acontecia com sua experiência no amor, ou sua perícia como escritor.
Harry tinha dezesseis anos quando fizeram amor pela primeira vez, mas tinha desejado fazê-lo desde muito tempo antes. E tal como ela, tinha conhecido na praia, ele se tinha convertido muito em breve em um perito. Brenda, que ignorava tudo sobre o tema, tinha acreditado que o amor se podia fazer de uma só maneira, mas descobriu que o repertório sexual de Harry parecia inesgotável. Era certo que a moça se perguntava frequentemente se alguém teria instruído Harry. Por último tinha decidido que tudo se devia à precocidade do rapaz. Por alguma razão inexplicável, Harry sobressaía em determinadas atividades, para as que sem dúvida tinha um talento natural, e não necessitava ensino prévio.
Sua literatura, por exemplo.
Harry percebeu em uma ocasião que seu inglês estava muito ruim. Tinha estado a ponto de não poder prosseguir seus estudos na Escola de Artes e Ofícios porque fracassou no exame de inglês. Não podia dizer-se, entretanto, que agora acontecesse o mesmo. Talvez Harry se dedicasse de maneira especial a estudar língua, mas quando o tinha feito? Brenda nunca o tinha visto fazê-lo; na verdade, dava a impressão de que o moço nunca estudava nada. Não obstante, aos dezoito anos era um escritor tão prolífico que publicava sob quatro pseudônimos. No momento só tinha publicado contos —embora três por semana, no mínimo—, mas Brenda sabia que estava trabalhando em uma novela.
Sua velha máquina de escrever estava em uma mesinha perto da janela. Em uma ocasião Brenda tinha chegado sem prévio aviso e Harry estava trabalhando. Esta foi uma das estranhas ocasiões em que Brenda o viu escrever. Enquanto subia as escadas, a moça ouviu o ruído intermitente das teclas da máquina de escrever, e após cruzar em silêncio o pequeno vestíbulo, apareceu na porta. Harry estava abstraído em seus pensamentos, sorria —e inclusive parecia falar consigo mesmo, segundo Brenda—, a cabeça apoiada no queixo. Logo se ergueu, escreveu umas poucas linhas mais com dois dedos, fez uma pausa para fazer um gesto de assentimento com a cabeça e se sorriu outra vez, e olhou logo pela janela para a rua.
Brenda chamou então à porta, Harry se sobressaltou e ela entrou no quarto. Ele a saudou e colocou de lado os papéis, mas a jovem conseguiu ver, antes de que ele guardasse as folhas, o título de seu trabalho: Diário de um libertino do século XVII.
Mais tarde, Brenda se perguntou o que podia saber Harry do século XVII; ele, que sabia pouquíssimo de história, e sempre tinha sido um péssimo aluno nesta matéria. E também se perguntou pela origem de seu conhecimento sobre libertinos...
A moça já tinha terminado de vestir-se e foi na ponta dos pés até o espelho da parede retocar a maquiagem. Isto fez que passasse pela mesa de Harry, e voltou a olhar a máquina de escrever, e a folha de papel que havia nela. Era evidente que ele trabalhava ainda em sua novela. A folha estava numerada P. 213 e na margem superiora, à esquerda, dizia Diário de um libertino... etc.
Brenda endireitou um pouco a folha e leu o que tinha escrito nela... ou mas bem, começou a lê-lo. Depois, ruborizada, desviou o olhar para a janela. Aquilo era algo sério: muito bem escrito, muito elegante, e notavelmente brincalhão. Novamente, voltou a olhar a página. A Brenda adorava as novelas de aventuras do século XVII e o estilo de Harry era perfeito... mas isto não era uma novela de aventuras, a não ser francamente pornográfica.
Nesse instante, Brenda percebeu pela primeira vez o que se via pela janela: era o velho cemitério ao outro lado da rua. Tinha mais de quatrocentos anos de antiguidade, com atalhos de calhaus, frondosos castanhas da Índias e canteiros de flores. As inscrições nas lápides das tumbas estavam pouco menos que apagadas pela ação do tempo. Brenda não compreendia o motivo de Harry ter escolhido esse apartamento; havia outros melhores para alugar em diversos bairros da cidade, mas lhe havia dito que «gostava da vista». E agora Brenda se dava conta de qual era a vista a que ele se referiu. Muito bonita no verão, por certo, mas de todos os modos não deixava de ser um cemitério!
Harry voltou a murmurar algo em sonhos e se virou na cama. Brenda foi até onde estava deitado o jovem e o cobriu até a cintura com o lençol. Agora que não lhe batia o sol, ele começou a tremer ligeiramente. De todos os modos, Brenda pensou que teria que despertá-lo logo, já era hora de que ela partisse. Seus pais, quando não sabiam onde se encontrava, preferiam que retornasse antes do anoitecer. Mas antes iria preparar um pouco de café. Quando já estava indo para a cozinha, Harry falou de novo, e nesta ocasião suas palavras foram muito claras:
—Não se preocupe, mamãe. Agora sou maior e posso me cuidar. Pode descansar em paz... —Harry fez uma pausa, e pareceu como se, ainda dormido, estivesse escutando; logo continuou—: Não, mamãe, já lhe hei isso dito. Ele não me fez mal, não tinha nenhuma razão para isso. De todos os modos, me fui viver com os tios. Eles me cuidaram. Agora já sou maior e muito em breve, talvez quando souber que estou bem, poderá descansar em paz.
Outra pausa, logo um breve período de escuta, e seguiu:
—Mas, por que não pode, mamãe?
Depois, um murmúrio incoerente, e:
—Não posso! Muito longe. Sei que trata de me dizer algo mas... só um sussurro, mamãe. Ouço algo do que diz... mas não tudo, e não consigo entender. Possivelmente se fosse te ver, se fosse onde você está...
Harry parecia inquieto e suava em abundância, apesar dos tremores. Brenda começou a preocupar-se. Não teria febre? Na covinha da metade do lábio superior se acumulava o suor; caía em grosas gotas por sua frente e lhe umedecia o cabelo; as mãos do menino se sacudiam e retorciam debaixo do lençol.
A moça estendeu a mão e o tocou.
—Harry?
—O que! —disse ele, despertando de repente com os olhos muito abertos, o olhar fixo, e todo o corpo rígido como uma barra de ferro—. Quem...?
—Harry, Harry, sou eu! Tinha um pesadelo —disse Brenda e o rodeou com seus braços. Ele a deixou fazer, se acurrucó junto a ela e logo a abraçou—. Sonhava com sua mãe, Harry. Já passou tudo. Me solte, e te farei um café.
Brenda o abraçou com força durante um instante mais, e logo se soltou brandamente e ficou de pé. Harry, com os olhos ainda muito abertos, seguiu-a com o olhar enquanto ela se dirigia à precária cozinha.
—Sonhava com minha mãe? —perguntou.
Brenda assentiu enquanto jogava café solúvel nas xícaras. Depois encheu de água o fervedor elétrico e o conectou.
—Sim, chamava-a mamãe e falava com ela.
Ele se sentou na cama e se alisou o cabelo com os dedos com ar distraído.
—E que mais hei dito?
—Muito pouco mais. Explicava-lhe que agora está maior e que podia descansar em paz. Não era mais que um pesadelo, Harry.
Quando Brenda terminou de preparar o café, Harry já se tinha vestido. Não voltaram a mencionar o pesadelo enquanto bebiam, e mais tarde ele a acompanhou até a parada de ônibus de Harden, onde esperaram em silêncio até que chegou o veículo. Antes que Brenda subisse, Harry a beijou na face e se despediu.
—Até logo.
— Nos veremos amanhã? —perguntou ela.
—Não, durante a semana. Irei a sua casa. Adeus, querida.
Brenda se sentou na última fila de assentos e olhou Harry pelo vidro traseiro do ônibus. Quando o veículo começou a andar, Harry partiu em direção oposta a seu apartamento. Brenda se perguntou aonde iria, e o seguiu com o olhar todo o tempo que pôde. Por último viu quando entrava pelas portas do cemitério, com os últimos raios do sol lhe iluminando o cabelo.
Depois o ônibus girou em outra direção, e Harry desapareceu da vista.

Harry não foi ver Brenda a semana toda, e o trabalho da moça no salão de cabeleireiro de Harden começou a diminuir. Quando chegou na quinta-feira Brenda estava realmente preocupada; na sexta-feira de noite chorou e seu pai disse que aquele menino lhe estava brincando com ela.
—Esse tipo é verdadeiramente estranho —declarou o pai da Brenda—, e nossa filha se deve ter se tornado tola.
Depois daquelas palavras, não quis saber nada de que ela fosse ao Hartlepool essa noite.
—Jamais em uma noite de sexta-feira, querida, quando todos os homens receberam e gastam o pagamento em cerveja. Pode ir ver o idiota desse Harry amanhã.
Amanhã parecia não chegar nunca, e Brenda apenas dormiu essa noite, mas no sábado, muito cedo, pegou um ônibus que ia à cidade e se dirigiu ao apartamento de Harry. Tinha sua própria chave e entrou sem chamar, mas ele não estava. Na máquina de escrever havia uma folha com data do dia anterior e uma mensagem:

«Brenda:
»Fui passar o fim de semana em Edimburgo. Tenho que ver algumas pessoas ali. Estarei de volta na segunda-feira a mais tardar, e te verei nesse mesmo dia. Prometo-lhe isso. Me perdoe por não haver ido te ver durante a semana, mas tinha muitas coisas na cabeça, e te teria aborrecido muito.
»Quero-te,
»Harry.

As duas últimas palavras significavam muito para a Brenda, de modo que se sentiu com forças para lhe perdoar o resto da carta. Além disso, não faltava muito da segunda-feira. Mas, por que teria ido Harry a Edimburgo? Ali vivia seu padrasto, mas não o tinha visto desde que era um menino. Teria possivelmente outros parentes dos quais Brenda não sabia nada? Talvez. Acaso parentes de sua mãe, embora ela tivesse se afogado quando Harry era pouco mais que um menino de peito.
Tinha morrido afogada, sim, mas Harry tinha falado com ela em seu pesadelo...
Brenda se repreendeu a si mesmo. Algumas de suas ideias eram quase tão mórbidas como as de Harry. Cemitérios, e morte, e vermes! Não, ele certamente não ia visitar a tumba de sua mãe, porque nunca tinham encontrado seu cadáver. Não havia nenhuma tumba para visitar.
Esta ideia não melhorou o estado de ânimo da Brenda. Pelo contrário, moveu-a a fazer algo que em outras circunstâncias nem sequer lhe teria ocorrido. Revisou com minúcia os manuscritos de Harry e inspecionou cada um dos contos, completo ou ao semi-escritos. Na verdade, não sabia o que era o que procurava, mas quando terminou sabia o que era o que não tinha encontrado.
Nenhum dos contos tratava de um necroscópio.
Pode que Harry ainda não tivesse começado a escrevê-lo.
Ou era um mentiroso... O...
Ou que o que a preocupava era algo completamente diferente.

Enquanto Brenda Cowell, de pé e iluminada por um raio de sol matinal, meditava sobre as excentricidades do homem que amava, a duzentos quilômetros de distância Harry Keogh estava sob o mesmo sol, à beira de um lento rio escocês, contemplando a grande casa que se elevava na outra margem, a beira de um descuidado jardim. Houve uma época em que esse jardim parecia esplêndido, mas isso aconteceu fazia já muitos anos, e Harry não podia recordá-lo. Ele era então um menino pequeno, e havia muitas coisas que não podia recordar. Mas se lembrava de sua mãe. No profundo de seu subconsciente nunca a tinha esquecido... e ela não tinha esquecido dele. Sua mãe ainda estava preocupada com ele.
Harry contemplou a casa durante longo tempo, e logo olhou o rio. Suas águas corriam lentas, frescas, e incitavam a dar um mergulho de cabeça. A borda estava coberta de vegetação, com alguns juncos; as águas eram verdes e profundas, e de vez em quando, o fundo, cheio de pedrinhas, mais perto da superfície e se fazia visível. E naquele lugar, escondido entre duas pedras musgosas, havia... um anel.
Um anel de homem. Uma ágata engastada em um grosso aro de ouro. Harry se viu dentro do rio. Deixava -se cair deliberadamente na água. Brilhava o sol mas ele tinha frio. O céu azul ondulou, converteu-se em uma cinza e líquida superfície de água meia congelada.
Estava sob a água, e tentava sair à superfície através de um buraco no gelo.
Depois viu um rosto através do gelo, seus lábios arqueados nas comissuras em uma careta... ou um sorriso. As mãos se afundaram na água, sustentaram-no debaixo, e uma delas levava o anel. O anel de ágata, no anular da mão direita! E Harry arranhava essas mãos, rasgava essa pele e a carne em seu frenesi. O anel se soltou, descendeu em espiral às geladas profundidades. O sangue das mãos rasgadas tingiu de vermelho a água..., vermelho contra o negro da agonia de Harry.
Não, não era sua agonia, era a de sua mãe!
Ele / ela se afundou; a corrente os arrastou por debaixo do gelo, aos trambolhões. E quem cuidará agora do Harry, do pobre pequeno Harry?
O pesadelo se afastou, o borbulhar da água gelada se desvaneceu de sua mente, e Harry lutou por respirar enquanto seus dedos se afundavam crispados na vegetação da beira do rio. Depois adotou uma posição fetal, e vomitou. Era aqui. Tinha acontecido aqui. Este era o lugar onde tinha morrido sua mãe. Onde tinha sido assassinada. Aqui!
Mas... onde estava ela agora?
Harry se deixou levar por seus pés, e caminhou pela beira do rio abaixo. Em um lugar onde o curso se estreitava cruzou uma pontezinha de madeira e continuou pela outra margem. As cercas dos jardins chegavam aqui quase até o beira do rio, de modo que caminhou por um estreito atalho entre as cercas, os juncos e a água. Logo depois chegou a um lugar onde a água do rio tinha transbordado e a cerca ficava pendurava sobre a água. Aqui acabava o atalho, mas Harry soube que não precisava ir mais longe. Ela jazia nesse lugar.
Se alguém o tivesse observado da margem oposta, teria visto o começo de algo muito estranho. Harry se sentou com os pés pendurando sobre o rio, apoiou o queixo nas mãos e olhou fixamente a água. E uns minutos mais tarde, se alguém tivesse estado o bastante perto, teria visto algo ainda mais estranho: dos olhos do jovem, que não pestanejavam, caía incessante uma corrente de lágrimas que aumentava com seu caudal o do rio.
E pela primeira vez em sua vida de adulto, Harry Keogh se reuniu com sua mãe, falou com ela «cara a cara» e pôde verificar a suspeita que seus pesadelos e as mensagens dela tinham alimentado durante longos anos. E enquanto falavam ele chorava; lágrimas de tristeza, e algumas de alegria a princípio; depois de remorso e frustração, porque tinha tido que esperar tanto tempo por este dia; e depois, de gelada cólera, quando entendeu tudo o que tinha acontecido. Por último, Harry disse a sua mãe o que pensava fazer.
E nesse instante, se o observador, tivesse existido, teria visto o mais estranho de tudo. Porque quando Mary Keogh se inteirou dos planos de seu filho, assustou-se ainda mais por ele, comunicou-lhe seus temores e lhe fez prometer que não faria nada precipitado. Ele não podia negar-se a suas súplicas, e lhe respondeu com um gesto afirmativo. Não lhe acreditou, e o chamou quando ele ficou de pé e se afastou. E por um instante —uma fração de segundo— pareceu como se o fundo do rio se sacudisse, fizesse tremer a água e provocasse ondas concêntricas. Depois, as águas se serenaram outra vez.
Harry não viu isto porque já se afastava rumo ao pequena ponte, de volta ao lugar onde o crime tinha tido lugar anos antes, onde sua amável mãe tinha sido assassinada.
Encontrou um rincão onde os juncos cresciam em abundância e eram muito altos, assegurou-se de que estava sozinho, tirou-se a roupa até ficar de cueca e entrou no rio. Depois, mergulhando, foi para o meio, onde a corrente era mais forte. Mas inclusive ali as águas eram muito tranquilas e lentas, e depois de mergulhar uns vinte minutos encontrou o que procurava entre as pedras do fundo. Estava a poucos centímetros do lugar no que tinha pensado desde o começo que o encontraria, enegrecido e viscoso, mas indubitavelmente era um anel. O ouro brilhou nada mais ao esfregá-lo, e a ágata «olho de gato» ainda tinha o mesmo olhar gelado de sempre. Em realidade, Harry nunca tinha visto o anel —ao menos, não de maneira consciente— mas o reconheceu em seguida. Era-lhe familiar. E tampouco lhe pareceu estranho que tivesse sabido onde procurar. O estranho teria sido não encontrá-lo.
Terminou de limpá-lo na borda e o pôs no indicador da mão direita. Ficava um pouco folgado, mas não tanto para que pudesse perdê-lo. Deu voltas pensativo, tratando de decifrar o que lhe transmitia. Inclusive sob o sol estava gelado, gelado como o dia em que seu dono o perdera.
Logo Harry se vestiu e se dirigiu ao Bonnyrigg. Dali pegou um ônibus até Edimburgo, onde tomaria o primeiro trem que saísse para o Hartlepool. No momento, não tinha mais nada que fazer ali.
Agora que tinha encontrado sua mãe, podia voltar a falar com ela, embora estivesse muito longe, e também poderia acalmar seus temores e lhe dar um pouco da paz que ela tinha procurado durante tanto tempo. Dentro de pouco já não teria que preocupar-se com o pequeno Harry.
Mas antes de abandonar o lugar se deteve olhar uma vez mais a grande casa que se elevava na outra margem do rio; contemplou seus antigos telhados de duas águas e o descuidado jardim durante uns instantes que lhe pareceram muito, muito compridos. Harry sabia que seu padrasto ainda vivia e trabalhava ali. Sim, e muito em breve iria visitá- lo.
Mas antes tinha muitas coisas que fazer. Viktor Shukshin era um assassino, um homem perigoso, e Harry devia ser muito prudente. Pretendia que seu padrasto pagasse pelo assassinato de sua mãe, que recebesse o castigo merecido. Não tinha sentido denunciar ao homem sem ter provas. Não, Harry tinha que lhe fazer uma armadilha, com uma isca irresistível. Mas não havia pressa, o tempo estava de seu lado. O tempo lhe permitiria aprender muitas coisas. Porque, do que lhe servia ser um necroscópio se não utilizava seu dom? Ainda não sabia o que faria com seu talento depois de que tivesse vingado a morte de sua mãe. Mas já chegaria o momento de pensar nisso, seria o que devesse ser.
Seus professores o estavam esperando, e eram os melhores do mundo. Sim, e agora sabiam muitas mais coisas do que quando estavam vivos.


Capítulo oito

Verão de 1975

Tinham passado três anos da última visita do Dragosani a sua terra natal, e faltava um para que se cumprisse a promessa ao velho ser enterrado. Dentro de um ano revelaria seus segredos a Dragosani, os segredos do vampiro; Dragosani, em troca, devolveria-o à vida ou, melhor dizendo, a uma renovada não-morte, permitiria-lhe que voltasse uma vez mais a andar sobre a terra.
Nesses três anos o necromante se fez mais e mais forte na organização, e agora sua posição como mão direita do Gregor Borowitz era virtualmente inexpugnável. Quando o ancião se fosse, Dragosani o substituiria. E depois, com toda a organização da Percepção Extrasensorial Soviética a suas ordens, e todo o conhecimento do vampiro em suas mãos e em sua mente, as possibilidades que lhe abriam eram infinitas.
Possivelmente poderia realizar o que antigamente parecera um sonho impossível, e a antiga Valáquia voltaria a ser uma grande nação, a maior de todas. Por que não, se Dragosani mostrava o caminho? Um simples homem pode fazer poucas coisas no breve período da vida humana, mas um imortal pode fazer tudo, pode conseguir tudo. E com esta ideia em mente, voltou a formular uma pergunta que já havia feito em outras ocasiões: se era verdade que a longevidade significava poder, e a imortalidade o poder absoluto, por que tinham fracassado os vampiros? por que não eram os vampiros os soberanos deste mundo?
A Dragosani tinha ocorrido fazia tempo uma resposta, mas não podia dizer se era correta.
Os homens odeiam a simples ideia do vampiro. Na atualidade, se os homens acreditassem neles —e fossem dadas provas irrefutáveis de contaminação vampírica—, procurariam as criaturas e as destruiriam. Isto acontecia assim desde que o mundo é mundo, dos tempos em que os homens realmente acreditavam na existência dos vampiros, e isto limitou as possibilidades destes seres. Um vampiro não se atreve a revelar sua condição, não deve ser visto como diferente, como estranho. Deve dominar suas paixões, seus desejos, sua natural avidez pelo poder que ele sabe que poderia alcançar com seus dons malignos. Porque ter poder, já seja político, financeiro, ou de qualquer classe, significa ser examinado de perto por outros, e isto é o que o vampiro teme mais que todas as coisas. Se fosse examinado prolongadamente e cuidadosamente, poderia ser descoberto e destruído.
Mas se um homem tivesse as habilidades de um vampiro —um homem vivo, não uma criatura não-morta—, não teria estas limitações. Não teria nada que esconder, exceto sua sinistra sabedoria, e poderia consegui-lo virtualmente.
Esta era a razão pela Dragosani tinha viajado uma vez mais a Romênia. Era consciente de que suas obrigações o tinham mantido longe durante muito tempo e queria falar com o velho demônio, lhe oferecer pequenos favores e aprender tudo o que tivesse que aprender antes do próximo verão, a data assinalada.
A data assinalada, sim, quando todos os segredos do vampiro estariam expostos ante ele, tão reveladores como um cadáver estripado.
Tinham passado três anos da última vez que esteve aqui, e tinham sido anos muito ativos. Durante aquele período Gregor Borowitz tinha exigido o máximo de todos os membros da PES, incluído o necromante. O general tinha que assegurar-se, no prazo de quatro anos que lhe tinha dado Leônidas Brezhnev, que sua organização era indispensável. E agora o primeiro-ministro tinha comprovado que realmente o era. Além disso, era o mais secreto dos serviços secretos, e o mais independente. E isso era precisamente o que queria Gregor Borowitz.
Graças às advertências do Borowitz, Brezhnev tinha estado preparado para a queda de Richard Nixon, o presidente norte-americano com o que tão bem se entendia. Watergate teria podido pôr em perigo o cargo de outro primeiro-ministro russo, mas Brezhnev não só tinha saído ileso, mas também até tinha conseguido beneficiar-se com a crise do governo americano. E isto, graças às predições do Borowitz ou, melhor dizendo, do Igor Vlady.
—É uma pena que Nixon não tivesse a alguém como você —havia dito Brezhnev ao Borowitz.
O primeiro-ministro soviético ocupava agora uma posição vantajosa —coisa que também tinha sido predita— em suas negociações com o substituto do Nixon. Brezhnev, além disso, sabendo de antemão que os políticos com os que teriam que enfrentar-se no futuro seriam da linha dura, assinou antes da queda do Nixon um acordo com os EE UU sobre satélites. Por outra parte, tendo em conta que a América do Norte estava muito mais adiantada em matéria de tecnologia espacial, o primeiro-ministro soviético também se apressou a pôr sua assinatura no projeto de cooperação mais importante com vistas à distensão: uma empresa espacial conjunta, Skylab, em que ainda continuavam trabalhando.
O primeiro-ministro soviético tinha tomado estas decisões e muitas outras —entre elas a expulsão de numerosos dissidentes e a «repatriação» dos judeus— tendo em conta as sugestões ou as predições feitas pela seção PES dos serviços secretos. Até o momento, estas decisões não tinham feito a não ser afirmar sua posição como líder indiscutível do governo e da partida. E toda graças ao Borowitz e sua seção, de modo que Brezhnev tinha completado de boa vontade o combinado em 1971 com o general.
Assim, na medida em que Brezhnev e seu regime prosperaram, prosperou também Gregor Borowitz e com ele Boris Dragosani, cuja lealdade à seção parecia indisputável. E de fato o era... no momento.
Gregor Borowitz assegurou a permanência de sua seção e subiu na estima do Leônidas Brezhnev, mas suas relações com o Yuri Andropov se deterioraram na mesma proporção. Não era uma guerra aberta, mas entre corporações Andropov estava tão ciumento como sempre, e continuava com suas intrigas. Dragosani sabia que Borowitz vigiava muito de perto a Andrópov, mas o necromante ignorava que o general também vigiava a ele. Claro está que Dragosani não era vigiado por outros funcionários da seção nem nada pelo estilo, mas havia algo em sua atitude que inquietava a seu superior. Dragosani sempre tinha sido arrogante, desobediente inclusive, e Borowitz tinha aceito isto, e até se divertiu em ocasiões. Mas o que o inquietava era outra coisa. Borowitz suspeitava que podia ser ambição; isso estava bem, sempre que o necromante não se tornasse ambicioso em excesso.
Dragosani também tinha observado uma mudança em si mesmo. Apesar de que uma de suas inibições mais antigas, sua maior obsessão, tinha desaparecido, tornou-se ainda mais frio, se isto era possível, com os membros do sexo oposto. Quando possuía a uma mulher sempre o fazia brutalmente, com muito pouco ou nenhum amor no ato, que não era mais que uma descarga de suas necessidades físicas. Com respeito à ambição, às vezes controlava com muita dificuldade sua frustração, e lhe resultava difícil esperar o dia em que pudesse desfazer-se do Borowitz. O general era um velho inútil, estava caduco e era um estorvo. Não era assim, claro está, mas a energia do Dragosani era tanta, e tão grandes seu impulso e a fortaleza de seu caráter que via deste modo ao Borowitz. E havia outra razão pela que tinha voltado para a Romênia: para pedir conselho à criatura enterrada. Porque Dragosani finalmente tinha aceito ao vampiro como uma espécie de figura paterna. Com quem mais poderia falar, no mais absoluto segredo, de suas ambições e suas frustrações? Com quem, a não ser com o velho dragão? Com ninguém. Em algum sentido o vampiro era como um oráculo... embora de outro não o fosse. Dragosani, diferente do que acontece com um oráculo, nunca podia estar seguro da validez de suas afirmações. E isto significava que, apesar de se sentir impulsionado a voltar para a Romênia, tinha que ser prudente em seus entendimentos com a criatura enterrada.
Estes eram alguns dos pensamentos que cruzaram por sua mente enquanto conduzia desde Bucarest para Pitesti; e quando seu Volga passou junto a um poste que assinalava que a cidade se encontrava a dezesseis quilômetros, Dragosani recordou que três anos antes viajava rumo a Pitesti quando Borowitz o chamou a Moscou. Era estranho, mas desde esse dia não havia tornado a pensar na biblioteca do Pitesti, mas agora sentiu desejos de visitá-la. Ainda sabia muito poucas coisas sobre o vampirismo e os não-mortos, e este conhecimento, vindo do mesmo vampiro, era duvidoso. E a biblioteca do Pitesti era famosa por seu abundante material sobre as lendas e tradições do lugar.
Dragosani a recordava de seus anos de instituto em Bucarest. No colégio frequentemente tinham solicitado em empréstimo antigos documentos e crônicas relacionados com a Valáquia e Romênia, porque durante a Segunda guerra mundial haviam posto a salvo em Pitesti abundante material histórico que antes se achava em Bucarest e no Ploiesti. No caso de Ploiesti tinha sido um acerto, porque esta cidade tinha sofrido alguns dos piores bombardeios da guerra. Em todo caso, grande parte do material não tinha sido devolvido a seus museus e bibliotecas de origem, e permanecia em Pitesti. Dragosani recordava que dezoito ou dezenove anos antes ainda estavam ali.
Assim, a velha criatura enterrada teria que esperar um pouco mais a volta do Dragosani. Primeiro iria à biblioteca em Pitesti, mais tarde comeria na cidade e só então se dirigiria à terra que o viu nascer.
Dragosani chegou às onze da manhã à biblioteca, apresentou-se ao bibliotecário de volta e lhe pediu para ver todos os documentos relacionados com as famílias boyardas, terras, batalhas, monumentos, ruínas e cemitérios, e as crônicas e anais das regiões da Valáquia e Moldávia por volta do século XV. O bibliotecário parecia amável e desejoso de ajudar a Dragosani, em que pese que sorriu ante o pedido deste, como se o divertisse. Quando o homem o conduziu à sala onde se guardavam os antigos documentos, o mesmo Dragosani pôde perceber o aspecto divertido do assunto.
O salão era enorme, e nas estantes havia livros e documentos suficientes para encher vários caminhões do exército... e todos estavam relacionados com a investigação que queria levar a cabo.
—Mas... não estão catalogados? —perguntou.
—claro que sim, senhor —respondeu o bibliotecário, e entregou um montão de catálogos cuja leitura, se Dragosani tivesse estado disposto a empreender esta tarefa, lhe teria levado vários dias.
—Mas me levaria um ano ou mais examinar tudo isto! —queixou-se por último Dragosani.
—Outros o têm feito, fundamentalmente para catalogá-los, e lhes levou vinte anos. Mas essa não é a única dificuldade. Até se você tivesse todo esse tempo, não poderia examiná-los. As autoridades decidiram dividir o material: uma parte volta para o Bucarest, outra irá ao Budapest, e Moscou solicitou também alguns documentos. Os envios se efetuarão dentro dos próximos três meses.
— Você tem razão —disse Dragosani—. Não tenho mais que uns poucos dias para dedicar a isto, não anos nem meses. Pergunto-me se haverá alguma maneira de limitar o campo de minha investigação.
—Também está a questão da língua —disse o bibliotecário—. Quer ver você os documentos escritos em turco? Em húngaro? Ou em alemão? Seu interesse concerne à área de cultura eslava, turca, ou cristã? Tem algum ponto específico de referência? O material que há aqui tem, como mínimo, trezentos anos de antiguidade, mas há documentos do século sete, ou inclusive anteriores. Estou seguro de que você sabe que, no lapso que pretende investigar, estas regiões tiveram épocas de mudanças quase constantes. Temos aqui documentos sobre os conquistadores estrangeiros, sim, mas também sobre aqueles que os expulsaram. você pode compreender os textos destas obras? depois de tudo, têm mais de cinco séculos de antiguidade. Se você pode decifrá-los, é realmente um erudito. Eu não tenho a certeza de compreendê-los, ao menos com um razoável grau de exatidão, e ainda estudei para poder lê-los.
E logo, ao ver a expressão de impotência do Dragosani, o homem tinha acrescentado:
—Talvez se pudesse ser mais concreto, senhor...
Dragosani não viu razão para responder com uma evasiva.
—Estou interessado no mito do vampiro, que parece ter sua origem aqui: na Transilvânia, Moldávia, Valáquia, e, por isso se sabe, data do século XV.
O bibliotecário retrocedeu um passo e deixou de sorrir. De repente, parecia desconfiar.
—Não será você um turista?
—Não, sou romeno, embora viva e trabalhe em Moscou. Mas o que tem que ver isso com minha solicitação?
O bibliotecário, três ou quatro anos mais novo que Dragosani e evidentemente impressionado por seu aspecto cosmopolita, ficou pensativo. Mordeu os lábios, franziu o sobrecenho e não abriu a boca durante um momento. Mas então disse:
—Se der uma olhada nesses catálogos, verá que quase todos estão escritos à mão, e com a mesma letra. Já lhe hei dito que levaram vinte anos de trabalho. Bom, o homem que o realizou ainda vive, e mora em Titu, não muito longe daqui. Fica a uns trinta quilômetros, indo para o Bucarest.
—Conheço o lugar —respondeu Dragosani—. Passei por ali faz meia hora. Acredita que esse homem pode me ajudar?
—Se quer fazê-lo, sim.
As palavras do bibliotecário soavam um tanto enigmáticas.
—Por que diz isso?
O homem pareceu inseguro e desviou a vista um instante.
—Faz dois ou três anos cometi um engano. Enviei-lhe um casal de «investigadores» americanos. Não quis saber nada deles e os expulsou. É um tanto excêntrico, sabe? Após isto me tornei mais prudente. Você compreenda, temos muitos pedidos desta classe. Ao parecer, no Ocidente há toda uma indústria ao redor do Drácula. O senhor Giresci quer evitar qualquer relação com esta exploração mercantil. De passagem, esse é seu nome: Ladislau Giresci.
—Está-me dizendo que esse homem é um perito em vampirismo? —perguntou Dragosani, com renovado interesse—. Quer dizer que estudou as lendas, que investigou sua história nestes documentos durante vinte anos?
—Bom, sim, isso é o que queria lhe dizer. Para ele é uma afeição, ou talvez uma obsessão. Mas no que corresponde à biblioteca, uma obsessão muito útil.
—Então tenho que ir vê-lo! Economizará muitíssimo tempo e trabalho.
O bibliotecário encolheu os ombros.
—Bom, eu posso lhe dar sua direção, e lhe indicar como chegar a sua casa mas... ele decidirá se quer recebê-lo. Pode ser que uma garrafa de uísque lhe facilite as coisas. É um grande bebedor de uísque, quando pode pagá-lo. Mas escocês, não essa beberagem infame que fazem na Bulgária.
—Me dê sua direção —disse Dragosani—. Me receberá. O garanto.
Dragosani encontrou o lugar tal como lhe havia dito o bibliotecário, no caminho a Bucarest, a um quilômetro e meio de Titu. A casa do Ladislau Giresci, situada em uma conjunto de casas de madeira de dois andares, em uma área campestre, destacada por seu relativo isolamento. Todas as casas tinham jardins, ou uns metros de terreno que a separavam de seus vizinhos, mas a moradia do Giresci estava bastante longe das outras, no limite do casario, perdida entre os pinheiros e o matagal.
Descuidadas sebes invadiam o caminho pavimentado que levava a casa, e as ervas cresciam entre os paralelepípedos. Os jardins estavam descuidados e a terra parecia retornar pouco a pouco a seu original estado selvagem; a casa estava corroída pela caruncho e tinha um aspecto de abandono quase absoluto. As outras casas do conjunto pareciam, em comparação, em bom estado e seus jardins bem cuidados. Algum pequeno esforço, não obstante, tinha sido feito para manter e reparar a propriedade, porque na frente tinham substituído algumas das tábuas em pior estado por outras novas, mas até a reparação mais recente devia ter ao menos cinco anos de antiguidade. O caminho do portão passando pelo jardim até a porta do frente também estava invadido pelo mato, mas Dragosani não se desanimou e golpeou com os nódulos na madeira descascada.
Levava na mão uma bolsa de rede que continha uma garrafa de uísque que tinha comprado em Pitesti, uma barra de pão, uma parte de queijo e algumas frutas. A comida era para ele (seu almoço, se não houvesse outra coisa) e a garrafa, tal como lhe tinham aconselhado, para o Giresci. Se é que estava em casa. Dragosani esperou, e começou a pensar que isto era improvável, mas após chamar outra vez, com mas força, ouviu que algo se movia no interior da casa.
A pessoa que por fim abriu a porta era um homem de uns sessenta anos de idade e tão frágil como uma flor posta a secar entre as páginas de um livro. Tinha os cabelos brancos —não cinzas a não ser brancos, como uma coroa de neve sobre a colina da frente— e sua tez era ainda mais pálida que a de Dragosani, e resplandecia como se lhe tivessem tirado brilho. Tinha a perna direita de madeira, não uma moderna prótese, mas parecia bastante ágil apesar de sua deficiência. Tinha as costas um pouco encurvada e tocava ao ombro como se lhe doesse quando se movia, mas seus olhos pardos tinham um brilho penetrante e seguro, e quando perguntou a Dragosani o que lhe oferecia, seu fôlego era limpo e saudável.
—Você não me conhece, senhor Giresci —disse Dragosani—, mas eu ouvi falar de você, e o que diziam me fascinou. Eu sou, em certo modo, um historiador, e me interessa especialmente a antiga Valáquia. E me hão dito que ninguém conhece a história dessa região melhor que você.
Giresci olhou a seu visitante de cima abaixo.
—Bom, alguns professores da universidade do Bucarest questionariam essa afirmação, mas eu não tenho que fazê-lo.
O homem permaneceu na entrada, bloqueando o passo ao interior da casa, mas Dragosani observou que seus olhos voltavam a olhar a bolsa de rede e a garrafa.
—Uísque —disse Dragosani—. Eu gosto de muito, e é muito difícil de encontrar em Moscou. Não quererá beber uma copo comigo... enquanto falamos?
—E quem lhe há dito que vamos falar? —espetou-lhe com voz que parecia um latido, embora seus olhos retornaram à garrafa, e logo perguntou com um tom menos áspero—: Há dito que é escocês?
—Claro. É o único uísque que merece esse nome...
—Como disse que se chamava, jovem? —interrompeu-o Giresci; ainda bloqueava a entrada, mas em seu olhar havia uma expressão de interesse.
—Dragosani. Boris Dragosani. nasci nesta comarca.
—E por essa razão lhe interessa sua história? Não estou de todo convencido. —Seus olhos, depois de havê-lo estudado sem reparos, adquiriram uma expressão de desconfiança—. Não representará você a alguns estrangeiros? Americanos, por exemplo?
Dragosani sorriu.
—Nada disso. Por isso sei, você teve problemas com os estrangeiros. Não quero lhe mentir, Ladislau Giresci, mas me interessa o mesmo que a eles. O bibliotecário do Pitesti me deu sua direção.
—Sim? Esse homem sabe muito bem aos quais recebo e aos quais não, de modo que você deve ter boas referências. Mas agora me diga você mesmo, e sem me ocultar nada, o que é o que lhe interessa.
—De acordo —respondeu Dragosani, que não via razão alguma para andar-se com rodeios—. Quero informação a respeito dos vampiros.
O outro o olhou fixo, mas não pareceu surpreender-se.
—Quer dizer sobre a Drácula?
—Não, sobre os verdadeiros vampiros. O vampir da lenda transilvana, o culto do vampiro.
Quando ouviu isto, Giresci deu um pulo, fez uma careta de dor quando moveu o ombro doente, inclinou-se logo um pouco para frente e agarrou a Dragosani pelo braço.
—De modo que o vampiro? Sim, pode ser que fale com você. Sim, e eu gostaria muito de beber um copo de uísque. Mas primeiro me diga algo. Você disse que queria informação sobre o vampiro verdadeiro, sobre sua lenda. Está seguro de que não se refere ao mito? Dragosani, você acredita nos vampiros?
Dragosani o olhou. Giresci esperava ansioso sua resposta. E algo disse ao Dragosani que o tinha convencido.
—Sim —respondeu ao cabo de um instante—. Acredito neles.
O outro fez um gesto afirmativo com a cabeça, e se fez a um lado para deixá-lo entrar.
—Nesse caso, será melhor que entre, senhor Dragosani. Passe, passe, e falaremos.
A pesar do aspecto de abandono que tinha a casa no exterior, por dentro estava muito limpa e ordenada, sobre tudo considerando que era a moradia de um ancião deficiente que vivia sozinho. Dragosani se sentiu agradavelmente surpreso pelo sentido de ordem que percebeu enquanto seguia a seu anfitrião por salas de paredes recobertas por painéis de carvalho e pisos de pinheiro polido e recobertos por tapetes tecidos segundo a antiga tradição eslava. A casa, embora rústica, era em certo sentido morna e acolhedora. Mas só em certo sentido, porque a debilidade de Giresci, sua afeição ou obsessão, estava presente em cada uma das salas. Impregnava a atmosfera da casa da mesma maneira que as múmias egípcias de um museu nos fazem imaginar em seguida as dunas do deserto e nos sugerem antigos mistérios. Mas aqui a imagem que os objetos evocavam era de ásperas povoações de montanha e feroz orgulho, de planícies geladas e dolorosa solidão, de uma série interminável de guerras e sangue e incríveis crueldades. As salas da casa eram a antiga Romênia. Isto era Valáquia.
Nas paredes de uma das salas estavam penduradas antigas armas, espadas, fragmentos de armadura. Aqui havia um arcabuz de começos do século XVI, ali uma lança com puas de aspecto temível. A negra bala de um pequeno canhão turco mantinha aberta uma porta (Giresci a tinha encontrado em um antigo campo de batalha próximo às ruínas de uma antiga fortaleza nos subúrbios de Tirgoviste) e um par de vistosas cimitarras turcas decoravam a parede em cima da chaminé. Havia tremendas tochas, maças e malhos, e uma maltratada couraça com o peitilho aberto de uma machadada de cima abaixo. Na parede do corredor que separava o salão da cozinha e os dormitórios estavam pendurados retratos dos infames príncipes Vlad e árvores genealógicas das famílias boyardas. Havia também blasone e brasões, planos de intrincadas batalhas, desenhos feitos pelo mesmo Giresci de fortificações, túmulos, aterros, castelos em ruínas e torreões.
E livros! Prateleiras e prateleiras cheias de livros, muitos deles deteriorados —e alguns muito valiosos—, mas todos resgatados por Giresci ao longo dos anos: comprados em feiras, livrarias de velho e lojas de antiguidades, ou a famílias da antigamente poderosa aristocracia, arruinadas na atualidade. A casa era um pequeno museu, e Giresci seu único encarregado e diretor.
—O arcabuz deve valer uma pequena fortuna —observou Dragosani.
—É possível que um colecionador ou um museu pagassem muito por ele —respondeu seu anfitrião—, mas nunca me interessou averiguar o preço das coisas. O que lhe parece isto como arma? —e lhe estendeu uma balestra.
Dragosani a agarrou, sopesou-a e franziu o sobrecenho. A arma era bastante moderna, pesada, possivelmente tão certeira como um rifle, e igualmente mortífera. Chamava a atenção que seu dardo fosse de madeira, com uma ponta de aço. Além disso, estava carregada.
—Por certo, não tem muito que ver com o resto de seu material.
Giresci sorriu, mostrando uns dentes grandes e potentes.
—Sim o tem. Meu outro «material», como você o chama, fala-nos do que foi, e que ainda pode voltar a ser. A balestra é a resposta a isso. Um dissuasivo. A arma contra o que pode ser.
Dragosani assentiu.
—Uma estaca de madeira cravada no coração, não? E realmente caçaria a um vampiro com esta balestra?
Giresci sorriu de novo e fez um gesto negativo.
—Não faria semelhante tolice —disse—. Só um louco trataria de apanhar a um vampiro. Eu não estou louco, não sou mais que um excêntrico. Caçar a um vampiro? Jamais! Mas, e se um vampiro decide me perseguir? Se quiser, chame-o amparo. De todos os modos, sinto-me mais tranquilo com a balestra em minha casa.
—Mas por que teme algo assim? Quero dizer... estou de acordo com você em que estas criaturas existiram, e é possível que ainda existam, mas por que se dariam ao trabalho de perseguir a você?
—Se você fosse um agente secreto —disse Giresci, e Dragosani sorriu para seus botões—, gostaria que alguém que não pertence a sua organização conhecesse todos seus assuntos, seus segredos? Sentiria -se seguro? Claro que não. E como acredita que se sentiriam os vampiros? Na atualidade, penso que o risco é provavelmente muito pequeno, mas faz vinte anos, quando comprei a balestra, não estava tão seguro de que assim fosse. Tinha descoberto coisas que nunca esqueceria. Essas criaturas eram reais, e eu sabia muito a respeito delas. E quanto mais investigava sua lenda, sua história, mais monstruosas me pareciam. Naquela época os pesadelos não me deixavam dormir. Suponho que comprar a balestra foi como assobiar na escuridão: não afastaria às forças escuras, mas ao menos lhes faria saber que não lhes tinha medo.
—Embora o tivesse?
O agudo olhar do Giresci se tornou introspectivo.
—Claro que tinha medo —respondeu por fim—. Como não teria que ter? Estava na Romênia, à sombra dessas montanhas, nesta casa onde tinha acumulado e estudado as provas. Sim, tinha medo, mas agora...
—Agora, o que?
O outro pôs cara de decepção.
—Bom, ainda estou vivo, e passaram muitos anos. Não me aconteceu nada, não vê? assim... na atualidade acredito que, depois de tudo, é provável que se extinguiram. Existiram, claro que sim, e eu sei melhor que ninguém, mas é possível que os últimos deles se foram para sempre. Assim o espero, de todos os modos. E você, Dragosani? O que opina você?
Dragosani lhe devolveu a balestra.
—Opino que deve conservar sua balestra, Ladislau Giresci. E mantê-la pronta para disparar. E também opino que tem que tomar cuidado com as pessoas que convida a sua casa.
Dragosani colocou a mão no bolso para procurar um pacote de cigarros e ficou imóvel quando Giresci lhe apontou com a balestra ao coração de uma distância de dois metros, e tirou o dispositivo de segurança.
—Sou muito cuidadoso —respondeu o outro, olhando-o aos olhos—. Ao parecer, você e eu sabemos muitas coisas. Eu sei por que acredito, mas e você?
—Eu? —Dragosani agarrou, dentro de sua jaqueta, a pistola regulamentar, e a tirou lentamente do coldre axilar.
—Diz ser um estrangeiro que investiga uma lenda, mas sabe tantas coisas!
Dragosani se encolheu de ombros e começou a girar a pistola para apontar ao Giresci enquanto se voltava ligeiramente para a direita. Talvez Giresci estava louco. Era uma pena. E também o era ter que fazer um buraco na malha de sua jaqueta, e a pólvora deixaria marcas no forro mas...
Giresci jogou o seguro à mola de suspensão e a depositou com cuidado sobre uma mesinha.
—Enfrenta você com muita tranquilidade à estaca de madeira para ser um vampiro —riu Giresci—. Além disso, sabe você que a balestra tem força suficiente para que a estaca penetre em um homem, mas sem transpassá-lo? Não serviria de nada se não ficasse alojada no corpo. Só quando a criatura fica assim imobilizada ... —Os olhos do homem se abriram como pratos, e ficou mudo, embora com a boca aberta.
Dragosani, pálido como a morte, tirou a pistola, colocou-a no coldre e a deixou na mesa, junto à balestra.
—Esta pistola tem força suficiente para lhe tirar o coração pelas costas. Além disso, vi os espelhos no corredor, e vi como os olhava quando eu passava frente a eles. Pensei que eram muitos espelhos. E o crucifixo na porta, e sem dúvida leva outro pendurado no pescoço. Embora não lhe serviriam de nada, claro está. Bom, sou um vampiro, pois?
—Não sei o que é você —respondeu o outro—, mas não é um vampiro, não. Depois de tudo, chegou à luz do sol. Mas pense-o: vem um homem para me buscar porque deseja informação sobre os vampiros; um homem que conhece esse nome, vampiros, algo que acontece com muito poucas pessoas no mundo. Não atuaria você com cautela em uma situação semelhante?
Dragosani respirou fundo e se relaxou um pouco.
—Sua cautela esteve a ponto de lhe custar a vida! — falou por entre os dentes—. antes de que sigamos falando, tem algum outro truque guardado na manga?
A risada de Giresci foi trêmula.
—Não, não, acredito que agora nos entendemos —disse logo—. Mas vejamos o que outras coisas tem você na bolsa. —Giresci agarrou a bolsa de rede e conduziu ao Dragosani até uma mesa que havia junto a uma janela—. Aqui está mais fresco, há mais sombra —explicou.
—O uísque é para você —disse Dragosani—. O resto é meu almoço, embora agora não sei se terei vontades de comer. Essa balestra me tirou o apetite!
—Não se preocupe, comerá! O que? Queijo para o almoço? Não, nada disso. Tenho umas perdizes no forno, e já devem estar ao ponto. Utilizei uma receita culinária grega. Uísque como aperitivo; pão para acompanhar o molho das perdizes, e o queijo como sobremesa. Será um almoço excelente. E enquanto comemos, contarei-lhe minha história, Dragosani.
O homem mais jovem permitiu que o outro o apaziguasse, aceitou um copo que Giresci tirou de um antigo armário de carvalho, e deixou que lhe servisse uma generosa dose de uísque. Giresci foi logo um momento à cozinha, e Dragosani começou a sentir o aroma da carne assada. Giresci havia dito a verdade, aquilo tinha um cheiro delicioso. O dono da casa retornou uns minutos depois com uma travessa fumegante, e apontou a Dragosani a gaveta onde estavam os pratos. Depois serviu um par de perdizes no prato de seu convidado, e uma só no seu. Havia também batatas assadas, e também aqui Dragosani obteve a parte do leão.
Impressionado pela generosidade do Giresci, disse:
—Isto não me parece justo.
—Eu bebo seu uísque —replicou o outro—, de modo que você pode comer minhas perdizes. Além disso, desde janela posso caçar todas as que queira. É muito fácil conseguir perdizes, e muito mais difícil conseguir um pouco de uísque. Me acredite, saio ganhando com nosso intercâmbio.
Começaram a comer, e Giresci começou a contar sua história entre bocado e bocado.
—Foi durante a guerra —começou—. Quando era menino sofri uma ferida nas costas e no ombro que acabou com minhas possibilidades de me alistar no exército. Mas eu queria servir a minha pátria, e me engajei na Defesa Civil. Defesa Civil, sim, sim! Ploiesti ardeu noite após noite. Simplesmente ardeu. Como se defender quando chovem bombas do céu?
»Assim, eu ia de um lado para outro com centenas de pessoas mais, tirando corpos dos edifícios em chamas, ou derrubados. Alguns estavam vivos, mas a maioria eram cadáveres, e outros teria sido melhor que fossem. Mas é surpreendente quão rápido a gente se acostuma a tudo. Eu era muito jovem e acostumei aquilo ainda mais rapidamente. Quando se é jovem, tem-se uma grande capacidade de adaptação. Ao final, o sangue, a dor e a morte não pareciam ter muita importância, nem para mim, nem para os outros que faziam o mesmo trabalho. Terei que fazê-lo porque estava ali, do mesmo modo que alguém sobe a uma montanha. Claro que aquela era um montanha da que nunca veríamos o topo. De maneira que seguíamos com nosso trabalho, indo daqui para lá. Eu, daqui para lá! Pode imaginar-lhe claro que então tinha as duas pernas.
»Mas houve uma noite pior que as outras. Quero dizer, todas as noites eram más, mas aquela foi... —Giresci fez um gesto com a cabeça, incapaz de encontrar as palavras para descrevê-lo.
—Nos subúrbios do Ploiesti, em direção ao Bucarest, havia muitas casas antigas. Tinham sido as moradias da aristocracia quando realmente havia muita aristocracia. A maioria delas estavam em mal estado, pois a pessoa não tinha dinheiro para as manter. Claro está que seus donos ainda contavam com um pouco de dinheiro e algumas terras, mas não somavam grandes fortunas. Apenas para sobreviver, para manter-se, decaindo gradualmente, como suas velhas casas. E aquela noite, as bombas caíram justo ali.
»Eu conduzia uma ambulância, em realidade, um caminhão de três toneladas convencionado em ambulância, entre a cidade e os subúrbios, onde tinham instalado um par de hospitais em duas das casas maiores. Até então os bombardeios tinham ocorrido no centro da cidade. De todos os modos, quando caíram as bombas me fizeram saltar do caminho. Pensei que me tinha chegado a hora. Aconteceu assim:
»Um minuto antes eu conduzia minha ambulância, as velhas casas dos ricos a minha direita, o céu ao este e ao sul, avermelhado pelos incêndios... e ao minuto seguinte estalou o inferno, como se a explosão viesse do mesmo centro da terra. Graças a Deus a ambulância estava vazia; tínhamos deixado meia dúzia de feridos graves em um dos hospitais improvisados e voltávamos para o Ploiesti meu acompanhante e eu. O caminhão sacolejava sobre as velhas ruas pavimentadas, com escombros amontoados nas esquinas. E então caíram as bombas.
«Chegaram do lado das casas dos ricos, estalaram como demônios enlouquecidos, e tudo voou pelos ares entre explosões de luz cegadora e jorros de fogo vermelho e amarelo. Teria sido um espetáculo muito formoso se não tivesse aparelhado morte e destruição. E avançavam, sim, incontroláveis, como soldados gigantescos. A primeira estalou a pouco menos de trezentos metros, detrás das mansões: um ruído surdo e um resplendor repentino, uma erupção de fogo e lodo, e a terra tremeu sob as rodas do caminhão. A segunda explodiu a uns duzentos metros, e lançou terra e árvores em chamas por cima dos telhados. A cento e cinquenta metros da outra, e a bola de fogo foi mais alta que os velhos muros de pedra, mais alta que as mesmas casas. E a terra se sacudia com mais força a cada explosão, e estes eram mais e mais próximos. Depois, a casa que tinha à direita, um pouco retirada do caminho, pareceu saltar sobre seus alicerces. E soube onde cairia a próxima bomba. Cairia sobre a casa! E a bomba seguinte a essa?
»Minha hipótese era quase acertada. Durante segundo meio a casa foi iluminada por detrás por uma luz tão brilhante que pareceu penetrar nas pedras e fez que o antigo edifício parecesse um grande esqueleto. No andar de baixo, junto às grandes janelas, viu-se uma silhueta que sacudia os braços, vítima de uma terrível ira. Depois, quando se desvaneceu o resplendor dessa bomba e choveram pó e escombros sobre a terra, a bomba seguinte caiu sobre a casa.
»E ali começou o inferno. O teto voou por causa da explosão, desmoronaram-se as paredes no meio da fumaça e das labaredas, o caminho por onde ia meu caminhão pareceu enroscar-se sobre si mesmo como uma serpente ferida enquanto choviam os paralelepípedos sobre meu para-brisa. E depois disso... tudo dava voltas, e estava ardendo!
»A ambulância foi como um brinquedo nas mãos de um menino enfurecido, que a tivesse pego para fazê-la girar e logo a tivesse jogado a um lado do caminho. Só estive inconsciente por alguns segundos, talvez menos, possivelmente só foi comoção e náusea, mas quando recuperei o sentido me arrastei fora do veículo em chamas. Salvei-me por uns segundos, e logo... BOOM!
»Quanto a meu companheiro, o homem que ia comigo no caminhão, nem sequer sabia seu nome. E se sabia, nunca pude recordá-lo. Tinha-o conhecido aquela mesma noite, e ao pouco momento lhe dizia adeus em meio a um holocausto. Só o que me lembro é que tinha o nariz aquilino. Quando saí do caminhão não o tinha visto; se ainda estava no veículo, aquele foi seu final. De todas formas, nunca voltei a vê-lo...
»Mas o bombardeio seguia, e eu tremia, espantado, aturdido e vulnerável. Você sabe que vulneráveis ficamos quando perdemos a alguém, embora fosse um desconhecido.
»Então olhei para a casa que tinha sofrido o impacto antes de que a bomba explodisse no caminho, frente a mim. Embora pareça mentira, não se tinha desmoronado de tudo. O primeiro andar, de janelas salientes, ainda estava em pé. Já sem janelas, claro está, só as paredes. E tudo estava em chamas.
»E nesse instante recordei a figura, com os braços elevados em um gesto de fúria, que tinha visto contraluz junto à janela. Posto que a casa não se desmoronou, não estaria também ali aquela pessoa? Foi algo instintivo, meu trabalho, a montanha interminável que terei que subir e subir... Corri para a casa. Talvez era também instinto de conservação, porque se já tinha caído uma bomba sobre a casa era improvável que caísse outra. Estaria mais seguro ali até que terminasse o ataque aéreo. Em meu atordoamento não tive em conta que a casa estava ardendo, e que o incêndio seria como um farol para o seguinte grupo de aviões.
»Cheguei à casa sem sofrer nenhum dano, entrei pelas destroçadas janelas ao que tinha sido uma biblioteca, e encontrei ao homem enfurecido... ou o que sobrara dele. Deveria ter encontrado um cadáver, mas aquilo era outra coisa. Quero dizer, com as feridas que tinha sofrido deveria ter estado morto. Mas não estava, era um não-morto.
»Dragosani, eu não sei quanto sabe você a respeito dos vampiros. Se souber muito, não se surpreenderá ante o que vou contar lhe. Mas eu então o ignorava tudo a respeito deles, e o que vi, o que ouvi, a experiência toda, foi para mim terrível. Claro está que você não é o primeiro que ouve esta história; contei-a depois —ou melhor, a gaguejei— e a tornei a contar em várias ocasiões. Entretanto, cada vez o faço com menos empenho porque sei que só encontrarei cepticismo, a mais completa incredulidade. De todos os modos, como aquela foi a sacudida que iniciou minha busca, minha obsessão, poderíamos dizer, continua sendo a lembrança mais vivida, mais importante de toda minha vida, e devo falar dele. Apesar de que reduzi drasticamente minha audiência nos últimos anos, sigo tendo a necessidade de falar daquilo. Dragosani, você será o primeiro que a escuta em sete anos. O último foi um americano que depois queria reescrevê-la e publicá-la em uma revista sensacionalista como «uma história verdadeira». Tive que lhe fazer abandonar a ideia com uma pistola na mão . Por razões óbvias não quero atrair a atenção sobre minha pessoa, que é precisamente o que ele teria conseguido de seguisse adiante com seu plano.
»Mas vejo que você se impacienta, de modo que seguirei com o acontecido aquela noite:
»Inicialmente, quando entrei na habitação só vi escombros e coisas destroçadas. Não esperava encontrar nada; nada vivo, em todo caso. O teto se estava afundando em um dos flancos; uma das paredes também estava gretada e a ponto de desmoronar-se; as estantes de livros caindo e os livros estavam dispersos por toda a sala; alguns ardiam e contribuíam à fumaça e ao caos geral. O áspero, sufocante cheiro da bomba impregnava o ar. E então ouvi o gemido.
»Gemeu e gemeram, Dragosani. Estão os gemidos dos homens exaustos e a ponto de cair, os gemidos das mulheres quando dão a luz, os dos seres vivos quando estão por morrer. E estão os gemidos dos não-mortos. Eu então não os conhecia; esses eram para mim gemidos de agonia. Mas que agonia, que eternidade de dor!
»Vinham desde detrás de uma velha mesa tombada perto das janelas por onde eu tinha entrado. Abri-me passo entre os escombros e atirei da mesa até que consegui retirar a da parede e endireitá-la sobre suas curtas patas. E ali, junto ao pesado rodapé e oculto antes pela mesa, jazia um homem. Bom, o que eu acreditava que era um homem, posto que então não tinha razão alguma para pensar que pudesse ser outra coisa. Você julgará por si mesmo, mas por agora lhe chamemos «homem».
»Seus rasgos eram majestosos; teria sido belo se a agonia não tivesse desfigurado seu rosto. Era alto, um homem grande e muito forte. Meu deus, tem que ter sido tão forte! Isso foi o que pensei quando vi suas feridas. Nenhum homem podia sofrer feridas como aquelas e seguir vivo. Se assim ocorria, é que não era um homem.
»O teto era de vigas enegrecidas pelo tempo, um pouco muito comum nesse tipo de casas. No lugar onde tinha começado a afundar se quebrado uma viga e ao descender, a ponta —uma afiada lasca de pinheiro— tinha atravessado o peito do homem e o tinha prendido às pranchas do chão. O homem jazia empalado como uma mariposa atravessada por um alfinete. Isto já tivesse sido mais que suficiente para lhe causar a morte, mas ainda havia mais.
»A explosão —tem que ter sido isso, as bombas às vezes fazem coisas muito estranhas— lhe tinha cortado as roupas na metade do corpo como com uma grande navalha. Estava nu da virilha até as costelas, mas não só as roupas tinham sido cortadas. Seu ventre, tremente, uma massa de nervos destruídos e cortados, estava aberto em dois grandes pedaços de carne, com todas as vísceras ao descoberto. Dragosani, tinha ante meus horrorizados olhos suas tripas, palpitantes, mas não eram o que eu tinha esperado, não eram as vísceras de um homem corrente.
»Já vejo as perguntas escritas em seu rosto. O que está dizendo este homem?, pergunta-se você. As vísceras são vísceras e as tripas, tripas. Tubérculos viscosos, canos retorcidos e condutos fumegantes; partes de carne vermelha, amarela e púrpura com formas estranhas; salsichas com circunvoluções e bexigas. Sim, havia todas essas coisas dentro do abdômen esmigalhado, mas havia algo mais.
Dragosani escutava, absorto, quase sem respirar, mas embora toda sua atenção estava concentrada na história do Giresci, seu rosto não mostrava verdadeira emoção nem horror. E Giresci o advertiu.
—Meu jovem amigo —disse—, vejo que também você é um homem muito forte, porque muitos ficariam pálidos, ou teriam vomitado ao escutar o que acabo de lhe contar. E ainda há muito mais para contar. Vejamos como suporta o resto...
»Hei-lhe dito que havia algo mais na cavidade abdominal daquele corpo. Vislumbrei-o quando o vi ali parecido, mas pensei que meus olhos me enganavam. De todas formas, vimo-nos o mesmo tempo, e depois de que nossos olhos se encontrassem pela primeira vez, a coisa que havia dentro dele pareceu surgir e desaparecer atrás das vísceras. Embora... podia ser que aquilo só fosse algo que eu tinha imaginado, não? Bom, e como era aquilo que eu tinha acreditado ver? Imagine um polvo ou uma lesma. Mas grande, com tentáculos ao redor de todos os órgãos habituais e o centro na região do coração, ou detrás dele. Sim, imagine um grande tumor, mas móvel, sensível.
»Estava ali, não estava. Eu o tinha imaginado. Mas não havia nada imaginário na agonia desse homem, em suas horríveis feridas, no fato de que só um milagre —ou muitos— o tinha mantido vivo. Embora só tinha ante si uns poucos minutos de vida, ou possivelmente só segundos. Sem dúvida, estava acabado.
»Mas estava consciente! Consciente, trate de imaginar-lhe E se puder, trate de imaginar também sua tortura. Eu podia, e quando me falou, estive a ponto de me deprimir. Era inconcebível que esse homem pudesse pensar. Não obstante, não tinha perdido o domínio de si mesmo. Seu pomo-de-adão se sacudiu, e ele sussurrou:
»—Tire-a. Tire a viga. Retire-a de meu corpo.
»Eu voltei em mim, tirei-me a jaqueta e cobri com ela seu abdômen arrebentado. Fiz-o mais por mim que por ele, entende-me? Não poderia ter feito nada com essas vísceras ao descoberto. Depois agarrei a viga.
»—Não lhe servirá de nada —lhe disse, muito nervoso—. Isto o matará! Embora pudesse tirá-la, e não é seguro que possa, você morreria imediatamente. É minha obrigação dizer-lhe »—Tente-o, de todas formas — retrucou.
»Ele as arrumou para fazer um gesto afirmativo.
»—Tente-o, de todas formas — insistiu.
»E o tentei. Era impossível! Três homens não poderiam havê-la movido. Depois de lhe transpassar, cravou-se profundamente no chão. Movi-a um pouco, e quando o fiz se desprenderam partes de teto e a parede rangeu. E o que é pior, na depressão de seu peito, onde se tinha parecido a viga, acumulou-se um atoleiro de sangue.
»O homem começou a gemer, revirou os olhos, e seu corpo se sacudiu sob minha jaqueta como se alguém lhe tivesse enviado uma descarga elétrica. E seus pés golpeavam o chão em convulsões de dor. Mas pode você acreditar que enquanto tudo isto acontecia suas mãos trementes se agarraram ao poste estilhaçado, e ele tentou me ajudar com todas suas forças?
«Aquilo era inútil, e os dois sabíamos. Disse-lhe:
»—Se pudesse tirar a viga, a casa se desmoronaria em cima de você. Olhe, aqui tenho clorofórmio. Posso adormecê-lo de maneira que não sinta dor. Mas tenho que lhe dizer a verdade. Não voltará a despertar.
»—Não, drogas não! — respondeu imediatamente—. Não..., o clorofórmio não me faz efeito. De todas formas, tenho que estar acordado, dominar a situação. Vá procurar ajuda; mais homens. Rápido!
»—Se houver alguém! —protestei—. E se tiver ficado alguém, estará muito ocupado salvando sua própria vida, sua família, sua propriedade. Bombardearam intensamente toda a zona! —E enquanto falava, voltou a ouvir o zumbir dos aviões e, à distância, o estrondo de outras explosões.
»—Você pode fazê-lo! —insistiu—. Sei que pode. Encontrará ajuda e voltará. Pagarei-lhe bem, me acredite. E eu não morrerei. Resistirei até que volte. Você..., você é minha última possibilidade. Não pode negar-se.
»Estava desesperado, e era compreensível.
»Mas agora era meu turno de conhecer a agonia, a agonia da frustração, da mais completa impotência. Esse homem valente e forte, condenado a morrer nesse lugar. Olhei a meu redor e soube que não teria tempo de procurar a ninguém, soube que não havia nada que fazer.
»Seus olhos seguiram a meus e o homem viu as chamas que apareciam pelas janelas destroçadas. A fumaça se fazia mais espesso a cada instante à medida que os livros começavam a arder. Depois o fogo se estendeu às prateleiras cansadas e aos móveis. A fumaça subia em volutas até o teto médio fundo, que voltou a ranger enquanto choviam pó e partes de estuque.
»—Vou... vou queimar-me! —disse com voz entrecortada. Durante um instante olhou as chamas com olhos cheios de medo, mas logo apareceu neles um estranho olhar de tranquila resignação—. Tudo... tudo terminou.
»Tentei lhe agarrar a mão, mas se desprendeu, e murmurou uma vez mais:
»—Terminado. Depois de tantos séculos...
»—Já tinha terminado antes —lhe disse—. Suas feridas..., não poderia ter sobrevivido. —Eu estava ansioso por fazer mais fáceis seus últimos minutos—. Sua dor foi tão grande que aconteceu que limite do suportável, e agora não sente nada. Isso é algo que deve agradecer.
»Olhava-me, e me dava conta de que o fazia com desprezo.
»—Minhas feridas? A dor? —repetiu—. Sim! —riu, e sua gargalhada foi amarga como um limão verde, cheia de acidez e desprezo—. Dor foi o que senti quando penetrou pelo visor de meu elmo, rompeu-me a ponte do nariz, e seguiu até golpear a parte de atrás de meu crânio! Isso foi dor! —resmungou—. Dor, sim, porque parte de meu ser, de meu ser real, tinha sido ferido. Isso foi na Silistria, onde esmagamos aos turcos. Amigo, conheço a dor, vá se o conheço! A dor e eu nos conhecemos a muito tempo, muito tempo. Em mil duzentos e quatro, em Constantinopla, foi o fogo grego. Eu me tinha unido à Quarta Cruzada na Zara, como mercenário, e fui queimado quando alcançávamos a vitória. Ah, mas o fizemos pagar. Durante três dias saqueamos, violamos, assassinamos. E eu, em minha agonia, meio consumido pelo fogo, queimado quase até o coração, fui o assassino mais desumano. A carne humana se consumiu, mas o vampiros seguia vivendo. E agora isto, parecido ao chão e paralisado, esperando às chamas que me encontrarão e acabarão contudo. O fogo grego ao final se extinguiu, mas este não o fará. Não sei nada da dor e a agonia dos humanos, não a conheço. Mas a dor do vampiros? Empalado, ardendo, consumindo-se no fogo, desvanecendo-se pedaço a pedaço. Não, não pode ser!
»Essas foram suas palavras, as lembro muita bem. Pensei que destrambelhava, meio delirante. Seria talvez um historiador? Era um homem culto, sem dúvida. Mas as chamas se aproximavam e o calor era intolerável. Não podia ficar com ele, mas tampouco podia abandoná-lo, ao menos enquanto estivesse consciente. Agarrei uma parte de algodão e um pequeno frasco de clorofórmio ...
»Adivinhou meu propósito, e de um golpe fez cair o frasco de minha mão. Seu conteúdo se esparramou e em um instante ardeu em chamas azuis.
»—Imbecil! —sussurrou—. Só conseguiria adormecer a parte humana.
»O calor se fazia insuportável e pequenas línguas de fogo lambiam o zócalo da parede, Eu logo que podia respirar.
»—Por que não morre? —gritei, incapaz de me separar dele—. Pelo amor de Deus, morra de uma vez!
»—Deus? —disse burlando-se abertamente de mim—. Embora acreditasse nele não haveria paz para mim. Meu amigo, em seu paraíso não há lugar para mim.
»No chão, entre os escombros e outros objetos cansados da mesa, havia um abridor de cartas. Um lado da folha era especialmente afiado. Agarrei-o e me aproximei do homem. Meu objetivo era sua garganta; de brinca a orelha. Foi como se ele me tivesse lido o pensamento.
»—Não bastará —me disse—. Tem que cortar toda a cabeça.
»—Como? —perguntei-lhe—. O que está dizendo?
»Olhou-me fixamente.
»—Aproxime-se —me ordenou.
»Não podia lhe desobedecer. Inclinei-me sobre ele, olhei-o, esgrimi o abrecartas. Ele me tirou isso e o arrojou longe.
»—Fará as coisas a minha maneira —disse—. É a única segura.
»Não podia apartar meus olhos dos seus. Eram magnéticos! Se ele não houvesse dito nada e se limitou a me reter com o olhar, eu teria permanecido a seu lado e me teria queimado com ele. Soube nesse instante, e sei agora. Estava paralisado, ferido, aberto em dois como um peixe estripado, mas ainda tinha o poder.
»—Vá à cozinha —ordenou que—. Procure uma cutelo de cortar carne, a maior. Vá agora mesmo.
»Suas palavras me tiraram da imobilidade, mas seus olhos seguiram cravados em minha mente. Não, não eram seus olhos, era seu espírito. Fui à cozinha, entre a fumaça e as chamas, e retornei. Mostrei-lhe a cutelo e ele fez um gesto de satisfação. A casa era um forno, e minhas roupas começavam a fumegar. As pontas de meus cabelos estavam chamuscadas.
»—Sua recompensa —disse.
»—Não quero nenhuma recompensa.
»—Mas eu quero lhe oferecer uma. Quero que você saiba a quem destruiu esta noite. Minha camisa..., abra o pescoço de minha camisa.
»Fiz o que me pedia, e quando estava inclinado sobre ele tive a impressão, durante um instante, de que na entre aberta caverna de sua boca se movia mais de uma língua. Seu fôlego era fedido! Tivesse dado volta a cara, mas seus olhos me retinham. E quando terminei, encontrei um pesado medalhão de ouro que pendurava de um cordão ao redor de seu pescoço. Abri o fecho, agarrei a joia e a guardei em meu bolso.
»—Já está —suspirou—. Minha dívida está saldada. Acabe agora.
»Elevei a cutelo com mão tremente, mas...
»—Aguarde! —disse-me—. Escute, tenho a tentação de matá-lo. É o que você chamaria instinto de conservação, que nos vampiros é muito poderoso. Mas sei que não é mais que uma ilusão. A morte que você me oferece será rápida e misericordiosa; as chamas, pelo contrário, seriam lentas e insuportáveis. Mas mesmo assim, pode ser que tente atacá-lo antes que me mate, ou no instante mesmo em que me dê a morte. E então, ambos sofreríamos uma morte horrível. Por conseguinte... demore o ataque até que eu feche os olhos, e então faça-o tão rápido e vigorosamente como possa, e fuja. Golpeie... e ponha distância entre nós. Entendeu ?
»Assenti. Ele fechou os olhos. Eu ataquei.
»No instante em que a reta e afiada folha da cutelo cortou seu pescoço —antes de que o tivesse talhado de lado a lado, e a cabeça se separou do tronco—, abriu os olhos. Mas ele me tinha advertido, e eu tinha tomado nota. Quando sua cabeça caiu, solta, e o sangue brotou de seu pescoço, eu saltei para trás. A cabeça ricocheteou, rodou e caiu entre os livros em chamas. Mas, Deus me ajude, juro que enquanto rodava, esses olhos horríveis me olhavam, desde todos os ângulos, com um olhar acusador! E a boca, ai, essa boca, e o que havia dentro, essa língua afundada, que se retorcia e estremecia sobre lábios que em um instante passaram do escarlate ao branco da morte!
»E algo mais acontecia, tão mau ou pior que o anterior: a cabeça mesma tinha trocado. A pele parecia haver-se estirado sobre o crânio, que por sua vez se alargou, como o de um mastim ou o de um lobo. Os ferozes olhos, antes escuros, tornaram-se cor de sangue. Os dentes da mandíbula superior se cravaram no lábio inferior, e tinham apanhado ali à língua bífida, e os grandes incisivos eram curvados e agudos como agulhas.
»É a verdade. Eu o vi. Vi-o! Mas só nesse momento, antes de que toda a cabeça começasse a decompor-se rapidamente. Era o calor; devia ser que a pele se empolava, e a carne e a graxa se derretiam, mas o imenso horror daquilo fez que me afastasse aos tombos. Aos tombos, sim, e logo a grandes pernadas, longe dessa cabeça estranha e em decomposição, mas também longe do cadáver decapitado... no qual tinha começado agora o mais horrível tumulto. Um tumulto... e um colapso. meu deus, sim! OH, sim...!
» Recorda que eu havia talher suas vísceras com minha jaqueta? Uma força invisível sacudia agora a jaqueta de abaixo, rasgou-a e arrojou as duas partes para o teto. Imediatamente, e dando chicotadas no ar, um tentáculo de carne leprosa saiu do estômago, retorcendo-se em um horrível paroxismo. O tentáculo açoitou o ar da habitação como se fora um látego demoníaco, e serpenteou entre a fumaça e as chamas como se procurasse algo.
»Quando o tentáculo caiu ao chão e começou um exame espasmódico mas sistemático da casa, retrocedendo só ante as chamas, eu subi a uma poltrona e me encolhi ali, paralisado de terror. E daquele lugar de observação, ligeiramente elevado, vi o que ficara do cadáver se desmoronando e convertendo-se primeiro em matéria putrefata, logo em ossos quando a carne se desprendeu, e finalmente em pó ante meus olhos. E enquanto isto acontecia o tentáculo adquiriu uma cor plúmbea, encolheu-se, se recolheu para o lugar onde tinha estado o corpo que o albergara, para o pó e os últimos fragmentos de ossos centenários...
»E todo isso, você compreenda-o, aconteceu em uns segundos, em muito menos tempo do necessário para contá-lo. De modo que até o dia de hoje não posso jurar que o vi. Só posso afirmar que acredito havê-lo visto.
»De todas formas, nesse instante o teto desabou e me jogou da cadeira; toda a área da casa onde tinha acontecido aquele horror estalou em chamas e não deixou ver o que ficava dele. Mas enquanto me arrastava para longe dali —e não me pergunte como saí dali ao ar da noite, porque isso desapareceu para sempre de minha memória—, ressoou naquele inferno um prolongado grito de agonia, o lamento mais terrível, mais lastimoso, mais selvagemente colérico que ouvi nunca, e que espero não ouvir nunca mais.
»E depois... os céus choveram bombas uma vez mais, e não me inteirei de nada mais até que recuperei o conhecimento em um hospital de campanha. Tinha perdido uma perna e, conforme me disseram depois, a razão, ou parte dela. Neurose de guerra, claro está, e quando adverti que era inútil tentar convencê-los de que não era assim, decidi deixar as coisas como estavam. O corpo e a mente só eram vítimas do bombardeio...
»Mas quando me deram o alta, entre meus pertences encontrei algo que conta a verdadeira história, e que ainda conservo.


Capítulo nove

Giresci levava uma corrente de ouro que lhe cruzava o colete. Agora tirou do bolso da esquerda um relógio de prata que não fazia jogo com a antiga corrente, logo repetiu a operação com o bolso da direita, onde guardava o medalhão de que tinha falado antes, e sustentou no alto as joias para que Dragosani as examinasse.
Este conteve o fôlego, e sem fazer caso do relógio nem da corrente, agarrou o medalhão e o olhou com toda atenção. Em uma face do disco viu uma estilizada cruz heráldica que só podia ser a dos Cavalheiros de San Juan de Jerusalém, mas que tinha sido raiada uma e outra vez com um instrumento cortante que a tinha mutilado por completo; na outra face...
Dragosani, de algum jeito, o tinha esperado. Gravado de maneira primitiva, em baixo-relevo, um triplo motivo: o demônio, o morcego e o dragão. Dragosani conhecia muito bem aquele emblema, e a pergunta que provocou em lhe surpreendeu inclusive mais que ao Giresci:
—Localizou isto?
—Quer dizer se tiver averiguado o significado heráldico da gravura? Tentei-o. Evidentemente, tem um significado, mas até agora não pude descobrir a origem deste escudo. Posso lhe dizer algo sobre o simbolismo, na história local, do dragão e do morcego; quanto à figura do demônio... é algo bastante sinistro. Claro está que lhe posso dizer o que eu penso sobre o baixo-relevo do medalhão, mas são conjeturas pessoais, sem nada que as seus...
—Não —o interrompeu Dragosani—. Não era isso o que eu queria dizer. Conheço muito bem essa imagem. Eu lhe perguntava pelo homem, ou a criatura, que lhe deu o medalhão. Pôde reconstruir sua história?
Dragosani olhou ao Giresci, esperando ansioso a resposta, embora sem saber por que tinha feito aquela pergunta. Tinha sido um ato quase involuntário, as palavras lhe tinham saído da boca, como se tivessem estado esperando que algo as disparasse.
Giresci indicou com um gesto que tinha compreendido a pergunta; logo agarrou o medalhão, a cadeia e o relógio.
—É estranho, sei —disse—, mas depois de uma experiência como a minha, o normal seria manter-me afastado de algo que estivesse relacionada com ela, não lhe parece? A gente não esperaria que algo assim o impulsionasse a empreender um trabalho de anos e anos de investigação e busca. Mas isso é precisamente o que fiz, e o melhor ponto para começar essa investigação, e você também parece haver-se dado conta, era o nome, a família e a história da criatura que eu tinha destruído aquela noite. Acima de tudo, seu nome: chamava-se Faethor Ferenczy.
—Ferenczy? —repetiu Dragosani, saboreando quase a palavra.
Inclinou-se para frente; suas mãos apertavam com força a mesa. Estava seguro de que aquele nome significava algo para ele. Mas o que?
—E sua família? —perguntou.
—Como diz? —Giresci parecia surpreso—. Não encontra estranho o nome? O sobrenome é bastante vulgar, isso já sei; é de origem húngara. Mas Faethor?
—Por que lhe parece estranho?
—Só o encontrei em outra ocasião: um principezinho do século IX de nome Khorvaty. E seu sobrenome também era muito parecido, Ferrenzig.
«Ferenczy. Ferrenzig —pensou Dragosani—. Um é o mesmo.»
Mas imediatamente se conteve. Por que teria que tirar uma conclusão tão precipitada? Entretanto, ao mesmo tempo sabia que não se precipitou a tirar uma conclusão, que tinha sabido sempre que o vampiros tinha uma dupla identidade. Identidade dupla? Possivelmente aquilo também era uma ideia fruto da pressa. Ele só tinha querido dizer que os nomes eram os mesmos, não os homens —ou o homem— que os tinham levado. Ou acaso teria querido dizer mais que isso? Se era assim, tinha chegado a uma conclusão demente: que os dois Faethors, o príncipe Khorvacio do século IX e o moderno fazendeiro romeno, deviam ser o mesmo homem. Esta conclusão deveria ser considerada insana, mas Dragosani sabia, porque o havia dito a antiga criatura enterrada, que o conceito da longevidade vampírica dos não-mortos não era insensato.
—E que mais averiguou? —perguntou Dragosani, rompendo por fim o silêncio—. O que sabe de sua família? Quero dizer, houve algum membro sobrevivente? E de sua história, além dessa improvável vinculação com o príncipe Khorvacio?
Giresci franziu o sobrecenho e coçou a cabeça.
—É muito frustrante falar com você —grunhiu—. Todo o tempo tenho a impressão de que você conhece quase todas as respostas, de que talvez sabe inclusive mais que eu. É como se só me usasse para confirmar suas próprias opiniões... —Giresci fez uma pausa, e como Dragosani não disse nada, continuou—: De todas formas, por isso pude averiguar, Faethor Ferenczy foi o último de sua linhagem. Não lhe sobreviveu nenhum membro de sua família.
—Então está equivocado! —replicou Dragosani, mas imediatamente se mordeu o lábio e, baixando a voz, retratou-se—: Quero dizer... que você não pode estar seguro disso.
Giresci ficou desconcertado.
—Outra vez sabe mais que eu, não? —O homem tinha bebido sem parar o uísque de Dragosani, mas não parecia lhe haver afetado. Voltou a encher os copos antes de seguir falando—. Agora, me permita que lhe diga exatamente o que descobri a respeito deste Ferenczy.
»Quando comecei minhas investigações, a guerra já tinha terminado. Com respeito a minha manutenção, não podia me queixar. Tinha minha própria casa, esta mesma, e me «indenizaram» pela perna que perdi. Isso, mais uma pequena pensão de invalidez, permitia-me viver sem problemas. Não tinha para luxos, mas não ia morrer de fome, nem a carecer de teto. Minha esposa, bom, tinha sido outra vítima da guerra. Não tínhamos tido filhos e eu não voltei a me casar.
»Suponho que me dediquei por inteiro a investigar a lenda do vampiro porque não tinha outra coisa qpara fazer, ou ao menos nada que desejasse fazer. E isto me atraiu como um ímã monstruoso...
»Está bem, não quero aborrecê-lo; expliquei-lhe isto para lhe dar uma visão completa do assunto. Como você sabe, minhas investigações começaram com o Faethor Ferenczy. Retornei ao lugar onde tinham acontecido as coisas, falei com as pessoas que o tinham conhecido. Quase toda a vizinhança estava em ruínas, mas havia umas poucas casas que ainda permaneciam em pé. A casa do Ferenczy era como uma concha vazia, enegrecida por dentro e por fora, sem nada que me pudesse dar uma pista sobre a natureza do homem ou do ser que a tinha habitado.
»De todas formas, várias instituições me tinham dado seu nome: o correio, o registro da propriedade, a lista de pessoas mortas ou desaparecidas, o registro de baixas de guerra, etc. Mas além destas instituições oficiais, ninguém parecia havê-lo conhecido pessoalmente. Mais tarde encontrei a uma anciã que vivia ainda na área, a viúva Luorni. A mulher tinha trabalhado como criada em casa do Ferenczy quinze anos antes da guerra. Ia limpar e arrumar a casa duas vezes por semana. Este acerto durou dez anos ou mais, até que a mulher decidiu abandonar o trabalho. Não me disse a razão, mas era evidente que o problema tinha sido o mesmo Ferenczy, algo nele que ela tinha percebido no curso do tempo, e que por último já não pôde suportar. Nunca mencionou seu nome sem benzer-se. Mesmo assim, consegui que me contasse algumas coisas bastante interessantes sobre o Ferenczy. Resumindo:
»Em sua casa não havia espelhos. Sei que não tenho que lhe explicar o significado disto...
»A viúva Luorni nunca viu seu patrão fora da casa durante o dia; na verdade, não o viu nunca fora, com exceção de duas ocasiões, e ambas de noite, em que saiu ao jardim.
»Ela nunca cozinhou para ele, nem o viu comer. Nunca. Ele tinha uma cozinha, mas a anciã nunca o viu utilizá-la, e se alguma vez o fez, ele mesmo fez a limpeza.
»Não tinha esposa, nem família nem amigos. Recebia muito poucas cartas, e frequentemente passava várias semanas fora de casa. Não tinha nenhum trabalho, e ao parecer, tampouco trabalhava em sua casa, mas sempre tinha dinheiro, e em abundância. Quando investiguei não pude encontrar nenhuma conta de banco em seu nome. Em resumo: Ferenczy era um homem muito estranho, muito reservado e muito solitário.
»Mas isso não é tudo, e o resto é ainda mais estranho. Uma manhã, quando foi à casa para limpar, a mulher se encontrou ali com a polícia. Três irmãos, um conhecido bando de ladrões que operava na zona de Moreni —uns delinquentes que a polícia levava anos tentando apanhar— tinham sido detidos na casa. Ao parecer, tinham entrado durante a madrugada, pensando que a casa estava vazia. Um equívoco que lhes custaria muito caro!
»Segundo as declarações que fizeram depois à polícia, Ferenczy arrastara a um deles ao porão, e obrigava aos outros dois a acompanhá-lo quando distraiu sua atenção a chegada de um grupo de cavaleiros. Recorde, naqueles dias a polícia local ainda utilizava cavalos nas regiões mais isoladas. Em efeito, tratava-se das forças da ordem, postas sobre aviso de que havia saqueadores na região. Eram os irmãos, é claro . E nunca houve delinquentes mais satisfeitos de que os pusessem em mãos da lei!
»Eram três desalmados, sem dúvida; mas Faethor Ferenczy os tinha vencido facilmente. Todos tinham o braço direito e a perna esquerda quebrados, e o responsável era o dono da casa. Dragosani, pense que força deve ter tido! A polícia lhe estava muito agradecida para aprofundar no acontecido, disse a viúva Luorni; depois de tudo, Ferenczy tinha defendido sua vida e sua propriedade. Mas para a viúva, que estava presente quando se levaram aos irmãos, era evidente que seu patrão os tinha aterrorizado.
»Por outra lado, já lhe hei dito que Ferenczy se levava aos cativos ao porão. Para que? Para que não escapassem até que chegasse a polícia? Possivelmente...
—Ou talvez para guardá-los, como em uma despensa, até que... utilizasse-os? —disse Dragosani.
Giresci fez um gesto afirmativo.
—Exatamente! De qualquer formas, depois daquele episódio a viúva deixou de trabalhar para o Ferenczy.
—Surpreende-me que a deixasse partir. Quero dizer, ela deve ter suspeitado algo. Você disse que estava decepcionada com seu trabalho, que com o passado do tempo se deu conta de que havia algo em seu patrão que não podia suportar. Não lhe preocupou o que ela pudesse dizer?
—Ah! —respondeu Giresci—. Esqueceu algo, Dragosani. Recorda como ele me dominou, com os olhos e com a mente, a noite do bombardeio, quando morreu?
—Hipnotismo —disse imediatamente Dragosani.
—Sim —assentiu Giresci com um sorriso inexorável—. É uma das muitas artes do vampiro. Ferenczy se limitou a lhe ordenar que, enquanto ele vivesse, ela mantivera a boca fechada. Enquanto ele vivesse, ela esqueceria tudo o que sabia dele, esqueceria inclusive que tinha visto nele algo sinistro.
—Já o vejo —disse Dragosani.
—E seu poder era tão grande —continuou Giresci—, que ela realmente esqueceu até o momento em que eu comecei a lhe fazer perguntas sobre seu antigo patrão, muitos anos mais tarde. E então Ferenczy já estava morto.
A maneira de ser do Giresci começava a irritar ao Dragosani. O ar de satisfação consigo mesmo do homem, sua suficiência e o bom conceito que parecia ter sobre seus dotes de detetive.
—Mas tudo isto, claro está, não são mais que hipóteses —disse ao fim o necromante—. Não sabe nada com certeza.
—Claro que sim! —respondeu o outro em seguida—. Sei pela viúva. Não quero que me entenda mau: não estou dizendo que ela me dissesse tudo isto, não. Não nos sentamos a fofocar, nem nada do tipo. Em realidade, tive que passar muito tempo com ela e lhe perguntar repetidas vezes sobre o Ferenczy até conseguir esta informação. Ele já estava morto e seu poder tinha desaparecido, é verdade, mas uma pequena parte ainda permanecia ativa, vê-o?
Dragosani ficou pensativo; seus olhos se entrecerraram. De repente se sentiu ameaçado pelo homem que tinha frente a ele. Este Ladislau Giresci era muito preparado. Dragosani se sentia ofendido por ele, e se perguntou por que. Resultava-lhe difícil compreender seus próprios sentimentos, essa repentina emoção. Esse lugar era muito fechado, produzia-lhe claustrofobia; tinha que ser isso. Sacudiu a cabeça, ergueu-se na cadeira, e tentou concentrar-se.
—Suponho que a viúva já morreu...
—Sim, faz anos.
—Nesse caso, nós somos quão únicos sabemos um pouco do Faethor Ferenczy?
Giresci olhou ao Dragosani. A voz de este tinha baixado tanto que era pouco mais que um grunhido bastante sinistro. Algo lhe passava. Apesar do olhar de interrogação do Giresci, voltou a sacudir-se, pestanejando rapidamente.
—Sim, assim é —respondeu Giresci e franziu o sobrecenho—. Não falei com ninguém disto em... em não sei quantos anos. Não tivesse servido de nada, pois ninguém me teria acreditado. Mas se encontra bem, amigo? Há algo que lhe preocupa?
—A mim? —perguntou Dragosani se inclinou para frente, como se algo o empurrasse para o Giresci; obrigou-se a sentar-se muito direito na cadeira—. Não, claro que não. Só tenho um pouco de sono. Deve ser a comida, a excelente comida que você me deu. Além disso, percorri um comprido caminho nos últimos dias. Sim, é isso; estou fatigado.
—Está seguro?
—Sim, completamente seguro. Mas siga, Giresci, não se detenha agora. Por favor, me conte mais costure sobre o Ferenczy e seus antepassados. Sobre os Ferrenzig e os vampiros em geral. Me conte tudo o que sabe, ou que suspeita. Conte -me isso tudo.
—Tudo? Isso nos levaria uma semana, ou mais.
—Posso dispor de uma semana —respondeu Dragosani.
—Vá, acredito que fala a sério!
—Efetivamente.
—Dragosani, sem dúvida você é um jovem muito agradável, e é um prazer poder falar com alguém interessado no tema, e que o conhece. O que lhe faz pensar, entretanto, que tenho vontades de me passar uma semana inteira falando? Na minha idade, o tempo é algo muito valioso. Ou acaso pensa que possuo a mesma classe de longevidade que Ferenczy?
Dragosani sorriu, mas apenas. conteve-se quando estava a ponto de dizer «pode falar comigo aqui, ou em Moscou». Não era necessário, ainda não. Além disso, se se levava a homem a Moscou, Borowitz se inteiraria de seu grande secreto, como tinha chegado a ser necromante.
—Bom, ao menos me conceda uma ou duas horas mais —cedeu Dragosani—. E posto que a mencionou, podemos começar pela longevidade do Ferenczy.
Giresci riu.
—De acordo. Além disso, ainda fica uísque. —serviu-se de outro copo e se acomodou em seu assento, e depois de pensar um instante, continuou—: Sim, a longevidade do Ferenczy, a quase imortalidade do vampiro. Contarei-lhe algo mais do que me disse a viúva Luorni. Quando ela era uma menina, sua avó recordava a um Ferenczy que vivia na mesma casa. E à avó da viúva, sua própria avó também lhe tinha falado de um Ferenczy. Entretanto, isso não tem nada de estranho. O filho sucede ao pai, e assim por gerações. Aqui há muitas famílias boyardas cujos sobrenomes são muito antigos. O estranho é que, segundo a viúva, nunca houve mulheres Ferenczy. E como transmite um homem seu sobrenome a seus descendentes, se não se casar?
—E, é obvio, você investigou ao assunto —disse Dragosani.
— Eu o fiz. Foi difícil consultar os registros, pois quase todos tinham sido destruídos durante a guerra. Mas não havia dúvida de que a casa tinha pertencido desde muito tempo aos Ferenczy, e nunca houve uma mulher entre eles. Uma família de celibatários, ao que parece.
Dragosani se sentiu de repente insultado, embora não entendia por que se sentia ofendido. Ou talvez fosse só sua inteligência a que se sentia insultada.
—Celibatários? —disse com mau humor—. Não, não acredito.
Giresci fez um gesto de assentimento. Na verdade, ele também estava informado da voraz natureza dos vampiros.
—Não, claro que não —disse, de acordo com o Dragosani—. Um vampiro celibatário? Ridículo! A cobiça é a força que move ao vampiro. Cobiça de poder, de carne, de sangue. Mas escute isto:
»Em mil oitocentos e quarenta um tal Bela Ferenczy viajou, através dos Cárpatos meridionais, para ir visitar um primo que vivia nas montanhas da fronteira norte austro-húngara. Isto está bem documentado; na verdade, o velho Bela parece que se ocupou de maneira especial de que as pessoas se inteirassem de que partia a visitar seu parente. Instalou a um homem em sua casa para que a cuidasse enquanto ele estava fora, por certo, não um homem do lugar, provavelmente um cigano; alugou um carro com chofer incluído para a primeira parte da viagem, fez as reservas para os correspondentes despesas nas paradas mais distantes, e completou todos os preparativos que naqueles tempos eram necessários para viajar por essas regiões. Além disso, fez correr a notícia de que aquela era uma viagem de despedida. No último ano Bela tinha envelhecido muito, de modo que todos aceitaram que viajava para despedir-se de seus parentes longínquos.
»Lembre-se, naquela época éramos ainda Moldávia-Valáquia. Na Europa a revolução industrial estava em seu apogeu; em todas partes o estava, menos aqui. Nós, isolados como sempre, estávamos atrasados. Ainda faltava mais de uma década para que se construísse a linha férrea Lemberg-Galatz. As notícias viajavam com mais lentidão, e era muito difícil manter arquivos e registros. Digo-lhe isto para destacar que, neste caso, houve boas comunicações e ficaram documentos.
—De que caso me fala? —perguntou Dragosani.
—O caso da repentina morte da Bela Ferenczy quando seu carro caiu a um precipício por causa de uma avalanche em um dos povoados mais distantes. A notícia do acidente chegou muito rápido aqui; o cigano que cuidava da casa do ancião levou o testamento selado do Ferenczy ao secretário do registro civil; fez-se público sem demora, e se soube que a casa Ferenczy e as terras eram para um «primo», um tal Giorg, que ao que parece já estava informado da situação e de sua qualidade de herdeiro.
—E, claro está, tempo depois chegou Giorg Ferenczy e tomou posse de suas propriedades. Era, ou o parecia, muito mais jovem que Bela, mas a semelhança familiar era evidente —aventurou Dragosani.
—Exatamente! —exclamou Giresci—. Seguiu meu raciocínio. Depois de viver aqui cinquenta anos, período no que um homem normalmente envelheceria, Bela tinha decidido que já era hora de que «morresse» e deixasse o lugar a seu «herdeiro».
—E depois do Giorg?
—Faethor, claro está. —Giresci coçou o queixo, pensativo—. Frequentemente me perguntei o que teria acontecido se eu não o tivesse matado a noite do bombardeio, se tivesse sobrevivido. Teria reaparecido depois da guerra com a identidade de outro Ferenczy, para reconstruir a casa e continuar como antes? Penso que a resposta é sim, provavelmente sim. Os vampiros raramente abandonam seu território.
—Assim, você está convencido de que Bela, Giorg e Faethor eram um e o mesmo?
—É obvio. Acreditava que isso já tinha ficado claro. Acaso não me disse isso ele mesmo, quando se gabou de sua intervenção nas batalhas da Silistria e Constantinopla? E antes da Bela foram Grigor, Karl, Peter e Stefan, e o Senhor sabe quantos outros, até chegar ao Faethor Ferrenzig, o príncipe, e provavelmente houve outros antes dele. Este era seu território, não se dá conta? Seu domínio. E nos velhos tempos, quando os vampiros eram príncipes ou boyardos, defendiam o que era seu com verdadeira ferocidade. Por isso se uniu à quarta cruzada, para manter a seus antigos e a seus futuros inimigos fora de suas terras. Suas terras, compreende-o? Não importa que rei, ou governo, ou sistema esteja no poder, o vampiro considera que o lugar onde está seu lar lhe pertence. Lutou para proteger-se e para proteger sua monstruosa herança; não por um bando de canalhas estrangeiros vindos do Ocidente. Você viu a cruz dos cruzados mutilada no reverso de meu medalhão. Quando eles o desonraram, ele se aborreceu com os cruzados, cuspiu-lhes à cara.
—E conseguiu você investigar seu nome até tempos tão remotos? Quero dizer, até o ano mil duzentos e quatro, em Constantinopla? —disse Dragosani com uma voz em que se percebia seu respeito e temor, e acaso inveja, pelo vampiro.
Giresci o olhou com a cabeça um pouco inclinada.
—E sua história, Dragosani, como é?
—Muito pouco brilhante. Vulgar, acredito.
—Mmmm! Bom, há muitos sobrenomes que provêm da quarta cruzada, mas lhe custaria encontrar um Ferenczy ou um Ferrenzig entre eles. Entretanto, ele esteve ali, pode estar seguro. Que como sei? Bem, você está falando com quem é, provavelmente, a máxima autoridade nesse particular banho de sangue, e tenho descoberto coisas que estou seguro passaram inadvertidas a outros historiadores. Claro está que eu tinha uma vantagem: sabia o que procurava: meus objetivos eram específicos, mas no processo de seguir a pista do vampiro encontrei um terreno muito propício. Homem, poderia escrever um livro sobre a quarta cruzada, ao menos da Hungria a Constantinopla. Senhor, aquilo tem que ter sido um inferno! Que batalha! E tenha a segurança que ali onde a luta era mais encarniçada, estava este homem e a horda de energúmenos que comandava. O também esteve quando caiu a cidade, quando ele e seu bando de mercenários enlouquecidos se entregaram ao saque e à pilhagem, sem que ninguém pudesse controlá-los. Sim, e seus excessos se estenderam como um câncer; todo o exército se uniu a eles. Violaram, roubaram e assassinaram durante três longos dias...
»O Papa Inocêncio III, que tinha organizado a cruzada, horrorizado ante a direção que tinha tomado, não pôde recuperar o comando. Os cruzados se comprometeram a resgatar os Santos Lugares, mas Inocêncio e seu núncio foram obrigados a eximi-los desse voto. O Papa lavou as mãos ante o assunto, mas mediante comunicados secretos exerceu o escasso poder que ainda possuia, ordenando que aqueles diretamente responsáveis por "graves atos de excessiva e perversa crueldade" não deviam receber "glória nem ricas recompensas" devido a sua barbárie, e que não se "mencionassem seus nomes, nem lhes oferecesse respeito ou consideração".
»Bom, não foi necessário procurar muito longe para encontrar um bode expiatório; certo "valaco recrutado na Zara" cumpria com todos os requisitos. E não era um inocente. No início os cruzados o tinham honrado e ascendido; pode ser que, secretamente, o invejassem ou lhe temessem, mas então o despojaram de todas suas condecorações e o degradaram, e seu nome foi apagado de todos os documentos. Ele irritou-se com eles por sua hipocrisia, e como vingança danificou o emblema da campanha, a cruz de seu medalhão, retornou com seus homens a sua terra, orgulhoso e feroz sob o estandarte do demônio, o morcego e o dragão.
Dragosani mordeu o lábio um instante antes de dizer:
—Suponhamos que tudo isto é verdade, ou que ao menos se apoia na verdade. Mesmo assim, há várias perguntas importantes que ainda não têm resposta.
—Por exemplo?
—Ferenczy era um vampiro, e não há vampiro sem vítimas. Quando tem fome mata com a mesma indiferença que uma raposa mata galinhas, e é igualmente implacável. Não obstante, seu histórico está limpo. Como pôde viver séculos na região sem despertar a mínima suspeita? Recorde, Ladislau Giresci, que o sangue é vida. Não houve nenhum caso de vampirismo?
—Perto do Ploiesti? Não, que eu saiba, não. Eu não descobri nenhum nos documentos que estudei. —Giresci sorriu com severidade, e se inclinou para frente—. Se você fosse um vampiro, Dragosani, procuraria a suas vítimas na porta de sua casa?
—Não, suponho que não —respondeu Dragosani com a frente carrancuda—. E onde, então?
—Ao norte, meu amigo, nos Cárpatos meridionais. Onde a não ser nos Alpes da Transilvânia, nos que ao parecer têm sua origem todas as histórias de vampiros? Slanic e Sinaia nos contrafortes, Brasov e lhe Tire depois de passar o porto. E todas estas populações estão a menos de oitenta quilômetros da casa do Ferenczy, e as pessoas as evitam por causa de sua terrível reputação.
—Inclusive em nossos dias? —Dragosani fingiu surpresa, mas recordava o que lhe havia dito Maura Kinkovsi a respeito fazia três anos.
—As histórias resistem o passado do tempo, Dragosani, sobre tudo se forem de terror. Os montanheses não querem correr nenhum risco. Se alguém morrer jovem, e não há uma razão clara e evidente, o cadáver não se livrará da estaca. Quanto a histórias de vampirismo modernas, a última menina que morreu por causa da mordida de um vampiro era de Slanic, e isto ocorreu no inverno de mil novecentos e quarenta e três. E a enterraram com uma estaca no coração, como tinham feito antes com muitos outros inocentes. Só esse ano houve nos povos dos arredores onze casos.
—Diz que foi em mil novecentos e quarenta e três?
Giresci assentiu com a cabeça.
—Sim, e já vejo que você estabeleceu a relação. Tem razão, isso aconteceu poucos meses antes da morte do Ferenczi. Ela foi sua última vítima, ou ao menos a última da que temos notícia. Claro que, por causa da guerra, ele deve haver-se cuidado muito menos; era muito mais fácil desfazer-se das vítimas. Pode ser que matasse a muitas pessoas das quais não sabemos nada, gente que simplesmente desapareceu durante os ataques aéreos que houve pelos arredores, e acredito que foram muitos. —Giresci fez uma pausa—. Alguma outra pergunta?
—Você disse que todas essas populações estavam nas montanhas, a uns oitenta quilômetros do Ploiesti. É uma região muito acidentada, com colinas de mais de setecentos metros. Como fazia Ferenczy? convertia-se em um morcego e voava para suas reservas de caça?
—A tradição diz que os vampiros têm esse poder. Podem converter-se em morcegos, lobos, fantasmas, e inclusive em pulgas, mosquitos e aranhas. Mas eu penso que não é verdade. Não encontrei nenhuma prova de que assim seja. Mas você quer saber como chegava até suas vítimas. Não sei com segurança. Tenho uma hipótese, mas não posso prová-la.
—Qual é sua hipótese? —perguntou Dragosani, e esperou com certa ansiedade a resposta do Giresci. Ele sabia a resposta, ou acreditava sabê-la, mas agora lhe interessava descobrir o alcance da inteligência do Giresci. E o perigo que esta inteligência representava. O que? Dragosani se obrigou uma vez mais a sentar-se direito na cadeira. O que lhe acontecia? Que diabos andava mal em seus processos mentais?
—Um vampiro —respondeu o outro com lentidão, formulando com cuidado seus pensamentos— não é humano. O que vi a noite da morte do Ferenczy me convenceu disto. O que é, então? É uma criatura estranha, um hospedeiro do corpo e da mente humana. É, no melhor dos casos, simbiótico, uma criatura gestalt, e no pior, um parasita, uma horrível lamprea.
«Correto!», pensou Dragosani imediatamente, mas não disse nada em voz alta. Sentia -se enjoado e confuso. De forma científica Giresci estava certo em seu julgamento sobre o vampiro, mas como o tinha sabido? E enquanto se perguntava o que lhe estava passando, Dragosani se ouviu perguntar:
—Mas não é uma criatura sobrenatural? Tem que sê-lo, para fazer o que faz e obter que não o descubram em tanto tempo.
—Não é sobrenatural, não —disse Giresci—. Sobre-humano! Hipnótico, magnético! Uma criatura de ilusões, não um mago mas sim um grande ilusionista. Não um morcego, mas sim silencioso como um morcego! Não um lobo, só rápido como um lobo! Não é uma pulga, a não ser um monstro com o apetite de sangue de uma pulga... a uma escala sem precedentes. Essa é minha ideia do vampiro, Dragosani. E o que são oitenta quilômetros para uma criatura semelhante? O saudável passeio de uma tarde. Ele seria capaz de impulsionar seu invólucro humano a esforços inimagináveis...
«É certo, tudo é certo», esteve de acordo Dragosani, mas só mentalmente; em voz alta disse:
—Você disse que esse sobrenome, Ferenczy, é muito comum. Por que, sendo tão inteligente, e tendo em conta os resultados obtidos com sua investigação, não seguiu o rastro de outros Ferenczy? Você disse que os vampiros são territoriais, e que esta região pertenceu ao Faethor. Têm que ter existido outros territórios... e senhores que exerciam seu domínio sobre eles... ou o exercem.
Sua voz era áspera como uma lima. E uma vez mas, Giresci pareceu desconcertado.
—Outra vez me adiantou! —respondeu finalmente o ancião—. É você muito agudo, Dragosani, muito ardiloso. Se Faethor Ferenczy, sem ajuda alguma, teve sob sua férula durante setecentos anos a Moldávia e à a Transilvânia oriental, o que aconteceu com o resto da Romênia? É isso o que quer dizer?
—Romênia, Hungria, Grécia... e todos os lugares onde vivem os vampiros.
—Onde vivem? Deus não o queira, Dragosani!
—Bom, como você queira —replicou Dragosani—. Onde viviam, pois.
Giresci se afastou um pouco de Dragosani.
—Ao final da década de mil novecentos e vinte, nos Alpes, foi destruído um castelo Ferenczy por uma explosão. Foi atribuída a uma acumulação de gás metano nas adegas e masmorras. Era um lugar de má fama e ninguém sentiu falta dele. O dono, segundo os indícios, desapareceu junto com o castelo. Era um barão, ou conde, ou algo no estilo. chamava-se Janos Ferenczy. Mas documentação sobre o acontecido, registros, história? Esqueça-se! Essa página na história foi apagada com mais cuidado que a intervenção do Faethor na quarta cruzada. O que para mim, claro está, o faz ainda mais suspeito.
—E você tem razão —concedeu Dragosani—. De modo que uma explosão levou ao velho Janos ao inferno? Muito bem! E investigou outros vampiros, Ladislau Giresci? Vamos, conte-me isso não houve nenhum Ferenczy que pagasse por seus crimes e fosse justiçado quando estava em seu apogeu? O que me pode contar dos Cárpatos ocidentais, digamos mais à frente do Oltul?
—Como? Mas essa zona deveria lhe ser familiar, Dragosani —respondeu Giresci—. Você nasceu ali, depois de tudo. E com tudo o que você sabe, e sua inteligência, e também o forte interesse que sente pelos vampiros, sem dúvida tem feito já suas próprias investigações e buscas.
—Claro que sim! Claro que sim! —afirmou Dragosani—. Faz quinhentos anos, houve no oeste uma destas criaturas. Matou a milhares de turcos, e foi justiçado por seu entusiasmo «perverso».
—Muito bem! —Giresci golpeou a mesa com o punho; o ancião não parecia notar a mudança experimentada por seu hóspede—. Sim, está certo. Chamava -se Thibor, e era um poderoso boyardo, que foi finalmente destruído pelos Vlad. Tinha grandes poderes sobre seus seguidores ciganos —muito poder— e os príncipes lhe temiam e estavam ciumentos dele. Além disso, é provável que suspeitassem que fosse um vampiro. Somente nós, os homens modernos e sofisticados, não acreditam nessas coisas. Os primitivos e os bárbaros são, a sua maneira, mais sábios.
—E que mais sabe desse vampiro? —grunhiu Dragosani.
—Não muito. —Giresci bebeu mais uísque; seu olhar era algo turva, e seu fôlego emprestava a álcool—. Ou ao menos, ainda não sei muito. Ele é meu próximo projeto de investigação. Sei que foi executado...
—Assassinado —o interrompeu Dragosani.
—Assassinado, pois, ao oeste do rio, mais abaixo de Lonesti, e que lhe cravaram uma estaca e o enterraram em um lugar secreto, mas...
—Thibor foi decapitado, também?
—Não encontrei nenhum documento que o prove. Eu...
—Não foi! —sussurrou Dragosani com os dentes apertados—. O prenderam com correntes de ferro e de prata, atravessaram-lhe o coração com uma estaca e o enterraram. Mas não lhe cortaram a cabeça e você, melhor que ninguém, deveria saber o que isso significa. Não estava morto. Estava não-morto. Ainda o está!
Giresci se esforçou por manter-se erguido na cadeira. Por fim tinha percebido que algo não estava bem. Seus olhos tinham tido um brilho um pouco vítreo, mas agora voltavam a ver com normalidade. Viu o esgar no rosto de Dragosani e começou a tremer.
—Este lugar está muito escuro —balbuciou—. Muito fechado. —E estendeu uma mão tremente para abrir uma das venezianas.
O sol entrou imediatamente na sala.
Dragosani, que se tinha levantado, estava inclinado para frente, como à espreita. Sua mão agarrou o pulso de Giresci com dedos que pareciam tenazes de aço. Seu apertão era feroz.
— É este então o seu próximo projeto, velho tolo? Se o tivesse encontrado, se tivesse descoberto a tumba do vampiro, o que teria feito? O velho Faethor o ensinou, não é verdade? E você o teria feito outra vez, Ladislau Giresci?
—O que diz? Está louco? —Giresci se tornou para trás, e sem propor o arrastou a mão e o braço do homem mais jovem sob os raios do sol; Dragosani o soltou imediatamente e retrocedeu à zona mais sombria da sala. Havia sentido a luz do sol sobre seu braço como se fora um ácido, e nesse momento tinha compreendido.
—Thibor! —disse, cuspindo a palavra como se tivesse sabor a bílis—. Você!
—Mas homem, você está doente! —Giresci tentava ficar de pé.
—Você, velho bastardo, demônio, criatura enterrada! Queria me usar! —Dragosani parecia delirar, falar consigo mesmo, mas no profundo de sua mente, na soleira da consciência, algo riu com malevolência e retrucou.
—Você necessita um médico! —exclamou Giresci—. Tem que ver um psiquiatra!
Dragosani não fez conta. Agora compreendia tudo. Foi até a mesinha onde tinha deixado sua pistola e a meteu no coldre que levava sob a axila. Já saía da casa quando se deteve e retornou junto ao Giresci. Este se encolheu de medo.
—Você sabe muito! —balbuciou o velho—. Muito! Não sei quem é, mas...
—Me escute —ordenou Dragosani.
—Nem sequer sei o que é você, Dragosani. Eu...
Dragosani o golpeou com o dorso da mão e o feriu na boca. A cabeça do velho se sacudiu em seu descarnado pescoço.
—Me escute, digo-lhe!
Quando Giresci voltou a olhar ao Dragosani, seus olhos, muito abertos por causa da impressão, estavam cheios de lágrimas.
—O... escuto.
—Duas coisas —particularizou Dragosani—. A primeira: não falará com ninguém sobre o Faethor Ferenczy, nem sobre o que tem descoberto a respeito dele. A segunda: não voltará a mencionar o nome do Thibor Ferenczy, nem tentará saber mais coisa alguma a respeito dele. Entendido?
Giresci assentiu, e nos segundos que seguiram abriu ainda maiores os olhos.
—É... é você?
Dragosani soltou uma risada estridente.
—Eu? Homem, se eu fosse Thibor, você já estaria morto! Não, mas o conheço, e agora ele conhece você. —dirigiu-se para a porta, e ali se deteve e olhou ao Giresci por cima do ombro—. É possível que volte a ter notícias minhas. Até então, Giresci, recorde muito bem o que lhe disse.
Quando saiu da casa à luz do dia, Dragosani deu um pulo e apertou os dentes, mas o sol não lhe fez mal. Mesmo assim, pensou que nunca mais voltaria a sentir-se cômodo sob seus raios. Não era Dragosani e sim Thibor o que havia sentido a dor produzida pela luz em casa do Giresci. Thibor, o velho demônio enterrado, que nesse momento tinha tido uma influência maior nele; tinha-o dominado. Mas Dragosani, não obstante saber que as coisas tinham acontecido dessa maneira, sentiu-se muito melhor quando subiu ao carro, onde o sol já não dava diretamente sobre ele. O interior do Volga estava quente como um forno, mas aquele calor não tinha nada de sobrenatural. Dragosani abriu as janelas, pôs o carro em marcha, e se dirigiu à estrada principal; a temperatura baixou e pôde respirar com mais facilidade.
Só então Dragosani penetrou em sua própria mente para desenterrar aquela espécie de sanguessuga que se escondia ali. Sabia que se Thibor podia chegar até ele, um movimento inverso também era possível.
—Sim, velho demônio, agora conheço seu nome —disse—. Foi você, Thibor, quem em casa do Giresci guiava minha língua, e me fazia formular as perguntas. Verdade que foi você?
Durante um momento não houve resposta. Depois:
—Não vou negar, Dragosani. Mas sejamos sensatos: não fiz nada para esconder minha presença. E ninguém resultou prejudicado. Eu simplesmente...
—Estava provando seu poder! —replicou Dragosani—. Tentou usurpar minha mente. Tentaste-o durante os últimos três anos, e teria tido êxito se eu não tivesse estado tão longe. Agora vejo tudo claro.
—O que? Acusa-me? Dragosani, recorda que foi você quem veio para mim a última vez. Convidou-me livre, voluntariamente, a penetrar em sua mente. Pediu-me ajuda com essa mulher, e eu lhe dei o que me pediu.
—Estava muito desejoso de me ajudar! —disse Dragosani com amargura—. Fiz mal a essa garota. Ou o fez você mediante meu corpo. Sua luxúria em meu corpo... apenas me pude dominá-lo. Poderia havê-la matado!
—Gozou. (Um sussurro malicioso.)
—Não, gozou você! Eu simplesmente me deixei levar. Bom, possivelmente ela o merecia, mas eu não mereço que te introduza em minha mente como um ladrão para roubar meus pensamentos. E sua luxúria permanece em meu corpo. Você sem dúvida sabia que ia ser assim. Meu convite não era permanente, velho dragão. De todas formas, aprendi a lição. Não me posso confiar em ti. Jamais. É um traidor.
—O que? A voz na cabeça do Dragosani soou zombadora. Eu, um traidor? Dragosani, sou seu pai...
—Pai de mentiras! —respondeu Dragosani.
—Como te menti?
—Mentiste-me que muitas maneiras. Faz três anos estava débil e eu te levei comida. Devolvi-te um pouco de sua força. Zombou do sangue de porco e disse que só era bom para fortalecer a terra. Mentira! Deu vigor a ti, deu-te a força suficiente para que agora, três anos mais tarde e a plena luz, sua mente pudesse alcançar a minha. Bom, já não voltarei a te alimentar. Além disso, disse-me que a luz do sol somente te irritava. Outra mentira, percebi como te queimava. E quantas mentiras mais me contaste? Não, Thibor, tudo o que você faz é para sua própria conveniência. Tinha-o suspeitado, mas agora sei com certeza.
—E o que fará a respeito? (Advertiu Dragosani um tremor de medo na voz mental? Estava inquieta a criatura enterrada?)
—Nada —respondeu.
—Nada? (Alívio.)
—Nada absolutamente. Possivelmente cometi um engano ao querer ser como você, ao desejar ser um vampiro. Pode ser que agora parta daqui, e desta vez não retornarei, e deixarei que os anos se encarreguem de ti. Talvez dei a seus velhos ossos um pouco de carne, um pouco de vida, mas os séculos se encarregarão de lhe tirar isso estou certo.
—Não, Dragosani! (Agora havia medo verdadeiro, pânico.) Escuta: eu não estava provando meu poder, não estava provando nada. Recorda que te contei que eu não era único, que inclusive agora existiam outros membros da espécie dos vampiros? Disse-te que tinha esperado durante séculos que viessem a me liberar, ou a vingar o que me tinham feito, e que nunca chegaram. Recorda-o?
—Sim, e o que tem isso que ver?
—Não o vê? Se nossos papéis se invertessem, poderia resistir você? Deu-me a oportunidade de averiguar o que tinha acontecido com os outros, de saber o que tinha sido deles. O velho Faethor, meu pai, morto por fim. E Janos, um irmão que sempre me odiou, voou com os gases do que guardava em suas masmorras. Ai, mortos os dois, e me alegro! por que? Acaso não deixaram durante quinhentos anos que me apodrecesse na terra? Claro que me ouviram chamá-los durante todas essas terríveis noites, pode estar certo. Mas não vieram me liberar, não. De modo que Ladislau Giresci se acredita um grande investigador de vampiros? Já lhe teria ensinado eu a encontrá-los, a seguir a pista desses dois que me deixaram pelos séculos dos séculos entre a sujeira e os vermes! Mas agora já se foram, e com eles também se foi minha vingança...
Dragosani sorriu com amargura.
—Não posso menos que me perguntar, Thibor, por que o abandonaram a seu destino? Seu próprio pai, por exemplo, Faethor Ferenczy. Quem poderia te conhecer melhor que ele? E por que te odiava tanto seu irmão Janos? A gente alguma vez termina de te conhecer, Thibor? O que foi, uma ovelha negra entre os vampiros? Parece impossível, mas por que não? Você mesmo mencionou mais de uma vez seus excessos. E eu os pude experimentar pessoalmente. Remói-te alguma vez a consciência pelas coisas que tem feito? Ou os vampiros não têm consciência?
—Dá muita importância a coisas que não têm, Dragosani.
—Sim? Eu não penso o mesmo. Estou começando a te conhecer, Thibor. Quando não lembrarr, trata de obscurecer a verdade. É sua maneira de ser, não sabe ser de outro modo.
O vampiro estava furioso.
—Agrada-te me insultando porque sabe que não posso te atacar. Me explique, como obscureci a verdade?
—Não há dito que eu te «dava» a oportunidade de descobrir o que tinha sido de seus parentes? De fato, a oportunidade você fabricou. Quando saí de Moscou não pensava ir à biblioteca do Pitesti, Thibor, mas você pôs esse pensamento em minha cabeça, não? E quando se inteirou da existência do Ladislau Giresci, impulsionou-me a ir vê-lo. Ou não foi assim?
—Escuta, Dragosani...
—Não, escuta você. Utilizaste-me. Usaste-me que a maneira em que os vampiros das novelas populares usam a seus vassalos humanos, igual a usou a seus servos ciganos faz quinhentos anos. Mas eu não sou seu servo, Thibor Ferenczy, e esse foi seu grande engano. Um engano do qual se arrependerá.
—Dragosani!
—Não quero ouvir nenhuma palavra mais, velho dragão, de sua língua viperina. Só pode fazer uma coisa por mim: Saia de minha mente!
A mente do Dragosani estava já plenamente desenvolvida, treinada e aguda como um de seus escalpelos. Insensibilizada pela necromancia que o vampiro lhe tinha ensinado, seu fio era rápido e mortal. Quando estava em ação, a diferença em acuidade que havia entre ela e a mente de um homem normal era a mesma que entre a mente desse homem e a de um fraco mental.
Mas, quão forte era? Dragosani a pôs agora a prova. Fechou sua mente, expulsando dela o monstro, empurrando-o para que se fosse.
—Ingrato!, acusou-o Thibor enquanto retrocedia. Mas não creia que isto acaba aqui. Um dia me necessitará, e então voltará. Mas não espere muito tempo, Dragosani. No máximo um ano; se esperas mais, será melhor que abandone toda esperança de adquirir os conhecimentos do vampiros, porque será muito tarde. Um ano, meu filho, não mais que um ano. Estarei te esperando, e possivelmente para então... lhe... haverei... perdoado... Dragosaaniiii....
Já se tinha partido.
Dragosani se distendeu, respirou profundamente, e de repente se sentiu exausto. Não tinha sido fácil exorcizar a Thibor. O vampiro tinha resistido, mas Dragosani fora mais forte. Embora o verdadeiro problema não tinha sido jogá-lo; o realmente difícil seria mantê-lo fora de sua mente. Claro que, pensando bem, possivelmente não fora assim. Agora que sabia que Thibor era capaz de introduzir-se sigilosamente em seu ser, estaria alerta, esperando ao velho demônio.
Quanto a suas férias romenas, tinham terminado antes de começar. Dragosani soltou um palavrão, apertou furioso os freios, deu a meia volta com o carro e empreendeu a volta pelo mesmo caminho pelo que tinha vindo. Estava cansado, mas dormiria mais tarde. Agora, tudo o que queria era pôr distância entre sua pessoa e a velha criatura enterrada.
Dragosani parou fora de Bucarest e pôs gasolina. Tentou despertar a Thibor. Ainda era de dia, mas obteve uma débil resposta, um tremor na mente que ressonava como um féretro e se retorcia como os vermes de uma tumba. Em Braida, ao entardecer, tentou de novo. A presença se fez mais vigorosa à medida que caía a noite. Thibor estava ali, e possivelmente teria respondido se Dragosani lhe tivesse dado ocasião. Não o fez; fechou sua mente e seguiu conduzindo. Em Briguei, depois de passar a alfândega, baixou suas defesas e literalmente convidou ao Thibor a que entrasse. Era noite fechada, mas o sussurro na mente do Dragosani foi muito débil, como se chegasse de milhões de quilômetros de distância.
—Dragosaaaniiii! Covarde! fugiste que mim, de uma velha criatura presa na terra.
—Não sou um covarde. E não fujo, mas sim vou aonde não possa me alcançar. E se de todos os modos consegue fazê-lo, a próxima vez me darei conta. Já vê, Thibor, você me necessita mais que eu a ti. Agora, volta para sua tumba, e medita. Pode que algum dia volte, ou pode que não. Mas se voltar, terá que aceitar minhas condições.
—Dragosani (o sussurro era tênue, mas premente), eu...
—Adeus, Thibor.
E o sussurro mental do Thibor Ferenczy ficou atrás, devorado por quilômetros e quilômetros de distância, e pouco depois Dragosani se sentiu o bastante seguro para fazer uma parada e dormir.
E sonhar seus próprios sonhos.

Capítulo dez

Primavera de 1976

Viktor Shukshin estava próximo à bancarrota. Tinha esbanjado a herança da Mary Keogh-Snaith em diversos negócios fracassados; as contribuições municipais que devia pagar pela grande casa perto do Bonnyrigg eram altas, e o dinheiro que ganhava com suas aulas particulares não eram suficiente para viver. Poderia ter vendido a casa, mas estava em tal estado de abandono que não teria obtido muito por ela. Além disso, a casa lhe permitia viver retirado do mundo, algo que lhe era necessário. Se alugasse alguns dos quartos, se ressentiria em sua intimidade. Por outro lado, não tinha o dinheiro necessário para pôr os quartos em condições de serem alugados.
Possuía outras habilidades, além de seu talento linguístico, e nos últimos meses tinha feita várias viagens a Londres para verificar e ampliar certa informação que tinha adquirido nos anos que passara nas Ilhas Britânicas, informação que valeria uma boa quantidade de dinheiro para certos partidos estrangeiros muito interessados.
Em resumo: Viktor Shukshin era um espião; ao menos, isto era o que tinha pretendido Gregor Borowitz quando o fez sair da URSS em 1957. Naquela época se produziu um endurecimento das relações Este-oeste, e também da política da Rússia com respeito a seus dissidentes. Assim, Shukshin não teve dificuldades para entrar em Grã-Bretanha «camuflado» de refugiado político.
Posteriormente, depois de conhecer a Mary Keogh e casar-se com ela, Shukshin se encontrou em tão boa posição econômica que não cumpriu as promessas feitas a seu chefe soviético, e obteve a cidadania britânica. Mas não tinha esquecido a razão de sua vinda a Grã-Bretanha, e com vistas a assegurar seu futuro, preocupou-se em copiar informações que um dia pudessem ser úteis a sua mãe pátria. Não fazia muito tempo, entretanto, que tinha começado a dar-se conta de que estava em uma excelente posição. Se os soviéticos não lhe pagassem o preço que ele solicitava pela informação, podia ameaçá-los contando aos britânicos tudo o que sabia sobre certa organização russa.
Esta era a razão pela que Shukshin tinha escrito, nessa brilhante manhã de maio, uma carta em código a um correspondente em Berlim —que não tinha tido notícias dele em quinze anos, e já não esperava ter—, que a sua vez enviaria a carta a Gregor Borowitz em Moscou. A carta já estava no correio, e Shukshin acabava de retornar em seu desconjuntado Ford da agência de correios em Bonnyrigg.
Mas quando cruzava a ponte de pedra que dava ao caminho de entrada Shukshin se sentiu possuído por uma estranha agitação que em seguida reconheceu como produzida por uma antiga e peculiar energia que fez correr um calafrio por suas costas e arrepiou seus cabelos como a eletricidade estática. Um jovem magro, de casaco e cachecol, estava de pé na ponte, apoiado sobre o parapeito, contemplando o lento passar da água. O jovem elevou a cabeça quando passou o carro do Shukshin, e seus olhos pareceram perfurar a carroceria do carro e tocaram ao Shukshin com seu frio olhar. O russo soube imediatamente que o forasteiro era dotado com poderes de percepção que excediam os de um homem normal. Soube com absoluta certeza, porque também ele possuía faculdades extraordinárias. Shukshin era um «observador»; seu talento consistia no imediato reconhecimento das pessoas dotadas com poderes de percepção extra-sensorial.
Por isso se interessou pela identidade do jovem, e o significado de sua presença ali naquele instante, havia várias possibilidades. Podia tratar-se de uma coincidência, de um encontro acidental; não seria a primeira nem a última vez que Shukshin tropeçava com uma pessoa destas características. Mas a percepção extra-sensorial abrangia uma ampla gama de cores e intensidades, e esta era muito intensa, de cor escarlate: uma nuvem vermelha na mente do Shukshin. A presença do jovem também podia ser intencionada: podia ser que o tivessem enviado. A organização britânica também devia contar com «observadores», e talvez tinham descoberto ao Shukshin, e o vigiassem. Esta ideia, levando em conta suas recentes viagens a Londres e o que tinha descoberto a respeito da organização britânica de espionagem sobre percepção extra-sensorial, não era nada descabelada, e de repente sentiu pânico. Pânico, e algo mais, algo que devia dominar. Algo que fez que seus olhos brilhassem quando pensou em quão fácil teria sido manobrar com o carro e esmagar ao desconhecido contra o parapeito. A emoção que sentia era ódio, o mesmo ódio profundo e abismal que sempre tinha sentido contra todos aqueles dotados de poderes paranormais.
Pouco a pouco a ira que sentia se foi desvanecendo e Shukshin olhou as mãos. Agarrando-se com tal força na borda da mesa até que as pontas dos dedos ficassem pálidas. Soltou a mesa e se reclinou no assento, respirando profundamente. Sempre acontecia o mesmo, mas tinha aprendido a controlar quase por inteiro suas emoções. Quase. Se tão somente não tivesse enviado a carta a Borowitz! Possivelmente tinha cometido um grave equívoco. Talvez devesse ter devotado seus serviços aos britânicos. Pode ser que ainda estivesse a tempo de fazê-lo, se atuasse sem demora. Antes que pudessem investigá-lo em profundidade...
Este era seu estado de ânimo e seus pensamentos quando bateram a porta. Como se sentia culpado, sofreu um forte sobressalto.
O estúdio do Shukshin estava no primeiro andar, e tinha grandes janelas que davam a um pequeno pátio. Ficou de pé e se dirigiu, por salões e corredores, para a frente da casa. Quando estava na metade de caminho, o toque da campainha novamente, sacudiu seus tensos nervos.
—Já vou! Já vou! —gritou.
Mas diminuiu o passo e fez uma parada no interior do pórtico envidraçado. Distinguiu através dos vidros opacos uma figura que reconheceu imediatamente: era o jovem da ponte.
Shukshin soube que era ele de duas maneiras: uma era a da simples observação, e podia ser errônea. A outra era mais segura, tanto como uma impressão digital: sentiu outra vez a comoção provocada por um peculiar campo energético e o calor do ódio instintivo que sentia pelos homens dotados de percepção extra-sensorial. Um baque de emoção e de pânico despertou outra vez nele, e fez um esforço para dominar-se antes de abrir a porta. Bem, perguntou-se quem era o estrangeiro, não é verdade? Pois agora parecia que a incógnita se desvendaria rapidamente. De uma maneira ou de outra descobriria o que era e o que acontecia.
Shukshin abriu a porta...
—Como está você? —disse Harry Keogh com um sorriso, e lhe tendeu a mão—. Você deve ser Viktor Shukshin, e me hão dito que é professor de alemão e de russo.
Shukshin não agarrou a mão do Keogh e ficou olhando-o fixo. Harry lhe devolveu o olhar. Ainda sorria, mas estava todo arrepiado; sabia que o homem que tinha diante era o assassino de sua mãe. Afastou esse pensamento; no momento só queria olhar ao estrangeiro a quem pretendia destruir, e aprender tudo o que pudesse a respeito dele.
O russo tinha ao redor de quarenta e cinco anos, mas parecia pelo menos dez anos mais velho. Tinha barriga e abundantes cãs em seu cabelo escuro; as costeletas lhe prolongavam em uma barba bicuda que emoldurava uma boca de lábios carnudos; tinha os olhos avermelhados e muito fundos. Seu rosto era pálido e sulcado por rugas. Não parecia gozar de boa saúde, mas Keogh suspeitava que era perigosamente forte. Além disso, suas mãos eram muito grandes e suas costas largas, apesar de que estava levemente curvado. Erguido, devia ter um pouco mais de um metro oitenta de estatura. Em conjunto, a sua era uma figura imponente, embora grotesca. E —como recordou uma vez mais Keogh— era um assassino cujo sangue era frio como o gelo.
—Você ensina idiomas, não é verdade?
Um pouco parecido a um sorriso apareceu no rosto do Shukshin e um tique nervoso fez estremecer um dos ângulos de sua boca.
— Com efeito —respondeu; sua voz era suave e profunda, e retinha um leve acento estrangeiro—. Suponho que alguém lhe deu meu nome. Quem me recomendou?
—Não, não foi precisamente assim —respondeu Keogh—. Vi seu anúncio nos periódicos. Ninguém me enviou.
—Ah! —Shukshin era prudente—. E quer que eu lhe dê aulas? Perdoe se me mostro algo lento, mas na atualidade ninguém parece muito interessado em estudar idiomas. Eu só tenho um ou dois alunos fixos. Claro que tampouco tenho tempo para tomar a alguém mais. Além disso, cobro bastante. Mas não aprendeu o suficiente na escola?
—Escola, não. Instituto —o corrigiu Keogh—. É a história de sempre. Quando me ensinavam isso grátis, não tinha tempo, e agora devo pagar para aprender. Proponho-me viajar muito sabe?, e pensei que...
—E quer melhorar seu alemão?
—E meu russo.
Na mente do Shukshin soou um alarme. Tudo era falso, e ele sabia. Além disso, havia algo mais nesse jovem, além de seu talento paranormal. Shukshin teve a estranha sensação de que o conhecia.
—Você é um caso único —disse por fim—. Na atualidade não há muitos ingleses que queiram ir a Rússia, e menos que desejem aprender a língua desse país. Irá por negócios O...?
—Só por prazer —o interrompeu Keogh—. Posso passar?
Shukshin não queria que entrasse na casa e teria preferido lhe fechar a porta no nariz. Mas tinha que averiguar quem era e o que queria o jovem na realidade, de modo que se fez ao lado e Keogh entrou. A porta, que se fechou a suas costas, pareceu-lhe a tampa de um caixão. Quase podia perceber a hostilidade do russo, seu ódio. Mas, por que o odiava Shukshin, se nem sequer o conhecia?
—Não recordo se me há dito seu nome —disse o russo, enquanto se dirigiam a seu estudo.
Keogh estava preparado para isto. Esperou um instante, e seguiu ao outro em silêncio até que chegaram ao estudo, uma habitação onde a luz entrava em torrentes pelas grandes janelas. E então disse:
—Meu nome é Harry, Harry Keogh..., padrasto.
Shukshin, que estava a ponto de sentar-se a sua mesa, ficou imóvel durante um instante, como se houvesse tornado de pedra, e depois se voltou para olhar a seu visitante. Keogh tinha esperado uma reação, mas não tão espetacular. O rosto do homem estava branco como uma máscara de estuque, emoldurada pelas negras costeletas e a barba. Os lábios do Shukshin tremiam em uma mescla de medo, impressão Y... raiva?
—O que? —disse Shukshin com voz de repente rouca—. O que diz? Harry Keogh? O que é isto, uma brincadeira de mau gosto?
Mas o olhou com mais atenção, e se deu conta por que tinha pensado que o conhecia de antes. Então só era um menino, mas suas feições eram as mesmas. Sim, e eram também as de sua mãe.
Na verdade, agora que sabia quem era, a semelhança era notável.
E o jovem, além disso, parecia possuir algo do selvagem dom de sua mãe.
O dom de sua mãe! O jovem tinha dotes paranormais, era médium, tinha-o herdado de sua mãe. Era isso! Shukshin podia perceber nele os ecos do dom de sua mãe.
— Encontra-se bem, padrasto? —perguntou Keogh, fingindo preocupação.
Ofereceu-lhe a mão, mas o outro a rechaçou; foi cambaleando-se até a cadeira que havia junto a sua mesa de trabalho e se deixou cair nela.
—Foi uma impressão muito forte —disse—. Quero dizer, verte aqui, depois de tanto tempo... —Shukshin conseguiu recuperar o domínio de si mesmo, suspirou aliviado e pouco a pouco se foi tranquilizando—. Uma impressão muito forte —repetiu.
—Não queria te assustar —mentiu Keogh—. Pensei que você gostaria de saber que cresci e fui adiante na vida. Além disso, pareceu-me que tinha chegado o momento de que te conhecesse. depois de tudo, é o único vínculo que tenho com o passado, com minha infância, com... com minha mãe.
—Sua mãe?
Shukshin ficou imediatamente na defensiva. Sua cara tinha recuperado a cor à medida que se ia tranquilizando. Resultava evidente que não tinha sido descoberto pela organização britânica de espionagem PS, e seus temores eram infundados. Keogh simplesmente tinha ido visitá-lo, em uma volta a suas origens. O jovem estava interessado em seu passado. Mas se de verdade era assim...
—O que era todo isso de aprender alemão e russo? —perguntou com tom brusco—. Era necessário, em realidade, montar esse número só para ver-me?
Keogh se encolheu de ombros.
—Sim, reconheço que tudo era uma estratagema para conseguir verte —explicou—, mas o fiz sem má intenção. Só queria ver se me reconheceria antes de que eu te dissesse quem era. —Harry continuou sorrindo. Shukshin tinha recuperado o domínio de si mesmo, mas a ira distorcia-lhe o rosto. Parecia um bom momento para deixar cair a segunda bomba—. De todas formas, falo alemão e russo melhor que você, padrasto. Para falar a verdade, poderia te dar aulas.
Shukshin se orgulhava de seu domínio de ambas as línguas. Não podia acreditar o que ouvia. O que dizia este menino, que podia lhe dar aulas? Estava louco? Shukshin tinha ensinado idiomas antes de que Harry Keogh nascesse! O orgulho do russo sobressaiu sobre suas confusas emoções e sobre o ódio que provocava nele toda pessoa dotada de percepção extrasensorial.
—Ja! Isso é ridículo! Eu sou russo. Aos dezessete anos graduei com honras em minha língua materna, e obtive meu diploma de alemão antes de completar os vinte. Não sei de onde tira essas ideias tão estranhas, Harry Keogh, mas não me parecem muito sensatas. De verdade acredita que um par de cursos de bacharelado podem comparar-se com o trabalho de toda uma vida? Ou o diz de propósito para me chatear?
Keogh continuou sorrindo, mas agora era um sorriso com arestas duras. Sentou -se frente a Shukshin, que o olhava com desdém, e chegou com sua mente até um de seus velhos amigos, Klaus Grunbaum, um antigo prisioneiro de guerra que se casou com uma jovem inglesa e depois da guerra se estabeleceu no Hartlepool. Grunbaum tinha morrido de um enfarte em 1955 e estava enterrado no cemitério do Grayfields Estate. Não tinha a menor importância que estivesse a uns duzentos e cinquenta quilômetros de onde se achava Harry. Grunbaum lhe respondeu, falou com ele —e por meio dele— em um alemão rápido e perfeito. dirigiu-se ao Shukshin, sem deixar de olhá-lo aos olhos.
—O que te parece meu alemão, padrasto? Sem dúvida reconhecerá que este é o acento do Hamburgo. —Harry fez uma pausa, e trocou seu acento (o do Grunbaum)—. Ou possivelmente prefira o Hoch Deutsch, o acento das élites refinadas que as massas tratam de imitar. Ou prefere que fale de maneira ainda mais inteligente, como um filósofo possivelmente? Isso te convenceria?
—Muito preparado —reconheceu Shukshin com um sorriso sarcástico; tinha aberto muito os olhos enquanto Harry falava, mas agora voltou para entrecerrá-los—. Uma demonstração muito hábil de alemão dialectal, sim, e muito bem falado. Mas qualquer pode memorizar em meia hora uma quantas frases! O russo já é outra coisa.
A expressão do Keogh se endureceu ainda mais. Deu- as graças ao Klaus Grunbaum e dirigiu sua mente para outra parte, para um cemitério no Edimburgo. Não fazia muito o tinha visitado para passar um momento com sua avó russa, morta antes de que ele nascesse. Agora voltou a encontrar-se com ela, utilizou-a para falar com seu padrasto na língua materna deste. Harry começou a falar servindo do perfeito domínio do russo de sua avó, e inclusive da mente da mulher; pronunciou uma diatribe sobre «o fracasso do sistema repressivo comunista», e só se calou quando vários minutos mais tarde Shukshin exclamou:
—O que é isto, Harry? Mais tolices aprendidas de cor? O que te propõe com todos estes truques? —Apesar desta bravata, o coração do Shukshin pulsava um pouco mais acelerado do normal. O moço falava como... como alguém que ele tinha conhecido. Como alguém que tinha odiado.
Quando Keogh lhe respondeu, fez-o utilizando ainda o russo de sua avó, mas agora falava de sua própria mente:
—E isto, poderia aprendê-lo de cor? É tão cego que não pode ver a verdade embora a tenha frente a ti? Sou um homem de talento, pai. Muito mais do que você poderia imaginar. Tenho ainda mais talento de que possuía minha pobre mãe...
Shukshin ficou de pé e se apoiou na mesa; o ódio brotou dele, e pareceu chegar até o Keogh de maneira quase física, como uma onda.
—Muito bem —respondeu em russo—. De modo que estás bastante preparado. E o que? Mencionaste duas vezes a sua mãe, Keogh. O que quer dizer com isso? Parece como se quisesse me ameaçar.
Harry continuou falando no idioma do Shukshin.
—Te ameaçar? Mas, por que, padrasto? Eu só vim lhe ver, e te pedir um favor.
—O que? Primeiro age como um tolo e logo tem o descaramento de pedir favores? O que quer de mim?
Já era hora de que deixasse cair a terceira bomba. Keogh também ficou de pé.
—Contaram-me que a minha mãe adorava patinar —disse, em perfeito russo—. O rio passa muito perto do jardim. Eu gostaria de voltar a te visitar no inverno. Possivelmente então estará menos nervoso, e poderemos falar com mais tranquilidade. Pode ser que traga meus patins e vá ao rio gelado, como o fazia minha mãe; ali abaixo, onde termina o jardim.
Shukshin, outra vez pálido como um morto, cambaleou e se sustentou agarrando-se a borda da mesa. Depois seus olhos relampejaram de ódio, e mostrou os dentes em uma careta de fúria. Já não podia conter sua ira, seu ódio. Devia golpear a este cachorrinho arrogante, tinha que tombá-lo. Tinha que... tinha que...
Quando Shukshin começou a avançar para ele, Harry advertiu o perigo e retrocedeu para a porta do estudo. Mas ainda não tinha terminado. Colocou a mão no bolso do casaco e tirou algo.
—Trouxe-te um presente —disse, esta vez em inglês—. Uma lembrança dos velhos tempos, de quando eu era pequeno. Algo que te pertence.
—Fora! —rugiu Shukshin—. Vá embora antes que te faça pedaços. Você e suas malditas insinuações! De modo que quer voltar a me visitar no inverno? Eu o proíbo! Não quero saber nada de ti, impertinente! Vá incomodar a outro! Vá, antes que...!
—Não se preocupe —respondeu Harry—. Já vou..., mas antes, pegue isto —e lhe jogou algo; depois deu a volta, saiu pela porta e desapareceu da vista do Shukshin.
Shukshin agarrou instintivamente o que Harry lhe tinha jogado, e o olhou durante um segundo. Depois, a cabeça deu voltas e caiu de joelhos. ficou olhando durante muito tempo o objeto que tinha na mão, e nem sequer deixou de fazê-lo quando ouviu que se fechava a porta principal.
O ouro do anel brilhava como se fosse novo e a ágata «olho de gato» lhe dirigia um olhar frio e especulador, como se tivesse vida própria...

Visto de cima, o château Bronnitsy não parecia diferente dos velhos tempos. Ninguém suporia, ao vê-lo, que ali tinha sua sede a melhor organização de espionagem mediante percepção extrasensorial (PES), a Organização E dirigida por Gregor Borowitz. E ninguém suporia tampouco que o château era algo mais que um antigo edifício meio em ruínas. Mas era isso precisamente o que Borowitz queria, e o general felicitou a si mesmo enquanto seu helicóptero sobrevoava as torres e telhados rumo ao minúsculo heliporto, que consistia em uma pracinha de cimento adornada com um círculo verde, situada entre uns abrigos e o edifício principal.
«Abrigos», sim, pois isso era o que pareciam do ar, antigas quadras e celeiros abandonados, que com o tempo tinham ido deteriorando-se até parecer montículos de alvenaria pulverizados ao redor do château. E assim era como o tinha disposto Borowitz. Em realidade, eram fortificações, ninhos de metralhadoras absolutamente funcionais e eficientes, capazes de cobrir com seus disparos todo o descampado situado entre o château e a muralha exterior. Nesta mesma muralha tinham sido construídos outros fortins, e com apenas apertar um interruptor a parte exterior ficava instantaneamente convertida em uma barreira eletrizada.
A Organização E, a mais importante depois da base espacial do Baikonur, ocupava uma das instalações melhor fortificadas da URSS. Competia com vantagem com a estação atômica e de investigação do plasma da Gargetya, perdida nos Urais, e cujo principal mérito era seu isolamento, mas havia um aspecto no que superava tanto ao Baikonur como a Gargetya: a organização do Borowitz era realmente secreta. Além de seus subordinados, só um punhado de homens suspeitava da existência do château em sua forma atual, e destes, somente três ou quatro sabiam que era a sede da Organização E. Um destes homens era o primeiro-ministro, que tinha visitado o Borowitz no château em várias ocasiões. Outro, e muito menos de acordo com o fato, era Yuri Andropov, que não o tinha visitado nunca e nunca o faria, ao menos convidado por Borowitz.
O helicóptero aterrissou e o rotor girou mais lentamente; Borowitz abriu a porta e estendeu as pernas. Um dos homens encarregados da vigilância se meteu sob as pás , que ainda giravam, e se dispôs a lhe ajudar a baixar. Borowitz, segurando o chapéu com a mão, permitiu que o ajudassem a descer do helicóptero e o conduzissem até a parte do château onde em outra época ficava o pátio. Na atualidade estava coberto e dividido em amplos laboratórios e estufas onde os empregados da organização podiam estudar e pôr em prática seus peculiares talentos com comodidade e nas condições e meio ambiente mais convenientes para seu trabalho.
Borowitz tinha despertado tarde, e por isso tinha chamado o helicóptero da organização para que o fosse buscar em seu dacha. Mesmo assim, chegava com uma hora de atraso à reunião com Dragosani. Enquanto cruzava os pátios, entrava em château e subia os dois lances de escadas de pedra que levavam a seu escritório na torre, sorriu com expressão lupina ao pensar que Dragosani o estava esperando. O necromante era um fanático da pontualidade e certamente estava furioso. Melhor: sua mente e sua língua seriam mais agudas que nunca, e preparariam o terreno para que Borowitz lhe baixasse a bola. Isso vinha muito a calhar, de vez em quando, e Borowitz era um professor fazendo-o.
Borowitz, que tinha tirado o chapéu e a jaqueta pelo caminho, chegou finalmente ao patamar do segundo piso e à pequena sala de espera que servia de escritório para seu secretário. E ali estava Dragosani, com o rosto carrancudo e agitando-se de um lado para o outro. O necromante não alterou sua expressão quando seu chefe passou em direção a seu escritório e o saudou com um alegre «bom dia!». Borowitz fechou a porta com o pé depois de passar, pendurou o chapéu e a jaqueta, e coçou o queixo enquanto pensava na melhor maneira de dar as más notícias. Porque na verdade eram muito más, e o humor de Borowitz era muito pior do que sua expressão permitia suspeitar. Mas qualquer que o conhecesse bem sabia que quando o diretor da Organização E chegava de bom humor, o perigo era mortal.
O escritório do Borowitz era muito amplo, com grandes janelas que permitiam ver inclusive os bosques longínquos. Os vidros, é claro, eram a prova de balas. O chão de pedra estava coberto por um grosso tapete, queimado aqui e ali pelos charutos de Borowitz, e seu escritório, uma sólida construção de carvalho, estava em um ângulo onde gozava do amparo das grossas paredes e da luz que entrava pelas janelas.
Borowitz se sentou ante sua mesa, suspirou e acendeu um cigarro antes de apertar um botão em seu interfone e dizer:
—Já pode entrar, Boris. Mas antes de entrar, seja um bom menino e deixe sua cara de mau humor aí fora.
Dragosani entrou, fechou a porta com mais força da necessária e se dirigiu com passos felinos à mesa do Borowitz. Tinha deixado lá fora a «cara de mau humor», mas em seu lugar havia uma expressão fria e insolente.
—Bom —disse—, já estou aqui.
—Já o vejo, Boris, e acredito que antes lhe disse «bom dia» —disse Borowitz, que agora não sorria.
—Posso me sentar? —perguntou Dragosani.
—Não, não pode —grunhiu Borowitz—. E tampouco pode passear pelo escritório, porque me incomoda. Só pode ficar de pé onde está... e me escutar.
Nunca tinham falado a Dragosani dessa maneira. Ficou atônito. Parecia como se o tivessem esbofeteado.
—Gregor, eu... —começou a dizer.
—De maneira que Gregor? —rugiu Borowitz—. Agente Dragosani, esta é uma reunião de trabalho, não uma visita de cortesia. Reserve as familiaridades para seus amigos, se é que com seu mau gênio sobrou algum; não para seus superiores. Ainda a falta muito para você estar à frente da organização, e se não se esclarecer com respeito a alguns pormenores básicos, pode que nunca esteja à frente dela.
Dragosani, que sempre estava pálido, agora ficou lívido.
—Eu... não entendo. Acaso fiz algo?
— E se tiver feito algo? —Agora era Borowitz quem franzia o sobrecenho—. Segundo sua folha de serviços, muito pouca coisa... ao menos nos últimos seis meses. Mas isso é algo que vamos corrigir. De todas formas, acredito que é melhor que se sente. Tenho muito do que falar, e tudo é importante. Traga uma cadeira.
Dragosani mordeu o lábio e fez o que lhe ordenavam.
Borowitz o olhou fixo, jogou com um lápis, e por fim falou.
—Acredito que já não somos únicos.
Dragosani esperou sem dizer nada.
—Não, não o somos —continuou Borowitz—. Claro está que sei faz tempo que os americanos estiveram namorando com a ideia de utilizar a percepção extra-sensorial como uma arma mais para a espionagem, mas isso é tudo, um namoro. Parece-lhes uma ideia «ardilosa». Para os americanos, tudo é «ardiloso». Porém neste campo, não têm direção nem propósito definidos. Não levam realmente a sério, não têm agentes que trabalhem neste terreno; jogam com isto da mesma maneira que jogavam com o radar antes de que estalasse a Segunda guerra mundial... e olhe do que lhes serviu! Em resumo, ainda não acreditam de todo na percepção extra-sensorial, o que nos permite lhes levar uma grande vantagem. E isso não está nada mal.
—Tudo isto não é novo para mim —disse Dragosani, desconcertado—. Mas sei que estamos a frente dos americanos.
Borowitz o ignorou.
—O mesmo pode dizer-se dos chineses. Têm algumas mentes muito acordadas em Pequim, mas não as utilizam bem. Dá-se conta? O povo que inventou a acupuntura tem dúvidas sobre a eficácia da percepção extra-sensorial. Estão travados pelo mesmo tipo de bloqueio mental que nós tínhamos faz quarenta anos: se não for um trator, não funcionará.
Dragosani não disse nada. Tinha advertido que Borowitz chegaria à medula da questão a seu próprio passo.
—E logo estão os franceses e os alemães ocidentais. Embora pareça estranho, estão progredindo muito. Em Moscou temos alguns de seus «arrecadadores extra sensoriais», agentes de campo que trabalham fora das embaixadas. Vão a festas e a atos para ver se podem recolher alguma informação. E de vez em quando lhes proporcionamos alguma coisa, material que de todas maneiras tivesse sido obtido por seus serviços de inteligência ortodoxos. Nós o fazemos para mantê-los ativos. Mas quando se trata de assuntos sérios, então lhes entregamos lixo, o que faz rachar sua credibilidade e nos ajuda, por conseguinte, a manter nossa vantagem.
Borowitz já estava aborrecido de brincar com o lápis; deixou-o, levantou a cabeça e olhou a Dragosani nos olhos. Os olhos do general tinham um brilho sombrio.
—Claro está —continuou por fim—, que temos uma vantagem enorme. Estou eu, Gregor Borowitz! Quero dizer que a Organização E só tem que me prestar contas . Não há políticos que olhem por cima de meu ombro, nem policiais autômatos que espiem a meus espiões, nem oficiais intrometidos que inspecionem meus gastos. A diferença dos americanos, eu sei que a percepção extra-sensorial é o futuro dos serviços de inteligência. E aperfeiçoei nossa organização até convertê-la em uma arma efetiva e admiravelmente certeira, algo que não têm feito os chefes das organizações de espionagem do resto do mundo. E como resultado de nossos triunfos neste campo, eu tinha começado a acreditar que estávamos tão adiantados que ninguém poderia nos alcançar. Pensava que éramos únicos. E o seríamos, Dragosani, seríamo-lo, se não fosse pelos britânicos. Esqueça-se dos americanos e dos chineses, dos alemães e dos franceses; com eles, esta ciência está ainda em fraldas. Mas os britânicos são outra coisa, são completamente diferentes...
Salvo a última informação, todo o restante era sabido por Dragosani. Era evidente que Borowitz tinha recebido de alguma de suas fontes, informação concernente aos ingleses que lhe tinha parecido muito inquietante. O necromante raramente tinha notícias do resto do aparelho de Borowitz, e se sentiu muito interessado. Inclinou -se para frente e disse:
—O que acontece com os ingleses? Por que está tão preocupado? Acreditava que estavam a quilômetros de distância, como todos os outros.
—Também eu acreditava —assentiu Borowitz, com expressão sombria—, mas não é assim. E isso significa que sei muito menos deles do que pensava. Mas dessa vez, significa que possivelmente estejam realmente mais adiantados. E se de verdade são tão bons, quanto sabem de nós? Inclusive uma pequena quantidade de informação sobre nós lhes daria vantagem. Se houvesse uma Terceira Guerra Mundial, Dragosani, e você fosse um membro dos serviços de inteligência britânicos que conhecesse a existência do château Bronnitsy, onde aconselharia a suas forças aéreas que deixassem cair as primeiras bombas? Para onde dirigiria seu primeiro míssil?
Dragosani achou isto bastante exagerado, e se sentiu obrigado a responder.
—É impossível que conheçam muito a respeito de nós. Eu trabalho para você, e sei muito pouco. E se supõe que lhe sucederei como diretor da organização...
Borowitz parecia ter recuperado algo de seu bom humor. Sorriu, embora com certa ironia, e ficou de pé.
—Venha —disse—. Podemos falar enquanto caminhamos. Você e eu iremos ver o que temos aqui, neste velho lugar. Vamos olhar de perto este núcleo, este cérebro menino que temos. Porque ainda é um menino, pode estar seguro disso. Um menino, sim, mas também o futuro cérebro que guiará os músculos da mãe Rússia.
E o robusto diretor da Organização E, com as mangas da camisa esvoaçando, saiu a toda pressa do escritório. Dragosani, o seguia de perto, tinha que ir quase correndo para não ficar para trás.
Dirigiram -se à parte mais antiga do château, o que Borowitz chamava as «oficinas». Era uma zona de segurança total, e cada um dos operários era vigiado e assistido em seu trabalho por um homem da mesmo ramo dentro da organização. Podia parecer similar ao que no mundo ocidental se chama sistema de «equipe», mas no château se utilizava para assegurar que nenhum agente pudesse ser o único receptor de uma informação. E era o modo que tinha Borowitz de assegurar-se de que ele, pessoalmente, receberia toda a informação considerada importante...
Tinham desaparecido os cadeados, os guardas e os homens da KGB. Não havia ninguém do bando do Andropov, e mesmos os agentes do Borowitz se alternavam nos trabalhos de segurança interna. As portas das celas PES se fechavam e abriam com um sistema eletrônico ativado mediante códigos contidos em cartões de plástico. E só havia um cartão mestre, que claro está, achava-se em poder de Borowitz.
Em um corredor iluminado por abajures azuis fluorescentes, Borowitz introduziu o cartão na ranhura e Dragosani o seguiu ao interior de uma sala onde se viam monitores de computadores e mapas murais, e havia prateleiras e prateleiras cheias de mapas e atlas, cartas de navegação, detalhados planos das cidades e portos mais importantes do mundo, e uma tela em que continuamente aparecia informação meteorológica atualizada de todo o mundo. O lugar muito bem tivesse podido ser a sala de espera de um observatório, ou a sala de controle de um pequeno aeroporto, mas não era nenhuma das duas coisas. Dragosani já tinha estado ali, e sabia exatamente o que havia na sala, mas mesmo assim continuava fascinando-o.
Na habitação se encontravam dois agentes que ficaram de pé quando entrou Borowitz; este lhes fez um gesto para que continuassem com seu trabalho e ficou olhando-os enquanto eles ocupavam seus lugares na mesa principal. Os homens tinham desdobrado ante eles uma complexa carta de navegação do Mediterrâneo, sobre a qual tinham colocado quatro pequenos discos de cores, dois verdes e dois azuis. Os verdes estavam no mar Tirreno, muito perto um do outro, a meio caminho entre Nápoles e Palermo. Um dos discos azuis estava em águas profundas, a uns quinhentos quilômetros ao leste de Malte; o outro no mar Jônico, à altura do golfo do Tarente. Os dois agentes, sob o atento olhar do Borowitz e de Dragosani, continuaram com seu «trabalho», sentados à mesa; com o queixo apoiado nas mãos, olhavam os discos situados sobre a carta de navegação.
—Conhece o código de cores? —perguntou Borowitz em voz muito baixa.
Dragosani fez um gesto negativo.
—Verde para os franceses, azul para os americanos. Sabe o que estão fazendo?
—Situam na carta aos submarinos, e riscam seu roteiro —respondeu Dragosani baixando a voz.
—Aos submarinos atômicos —o corrigiu Borowitz—. Uma parte das chamadas «armas nucleares dissuasivas» do Ocidente. E sabe como o fazem?
Dragosani fez outra vez um gesto de negação e aventurou uma hipótese.
—Telepatia, suponho.
Borowitz elevou suas povoadas sobrancelhas.
—Assim tão simples? Você é um perito em telepatia, Dragosani? É uma de suas muitas habilidades?
«Sim, velho bode —tivesse querido lhe dizer Dragosani—. Sim, e se quisesse agora mesmo me comunicaria com um telepata que te faria cair de costas. E não necessito "seguir seu roteiro", porque sei que não vai a nenhuma parte.» Mas em voz alta só disse:
—Sei tanto de telepatia como eles de necromancia. Não poderia me sentar como eles, contemplar as cartas de navegação, e lhe dizer a você onde estão ou aonde se dirigem os submarinos assassinos. Mas eles tampouco podem abrir o cadáver de um agente inimigo e chupar seus segredos de entre suas tripas. Cada um tem suas habilidades e seus méritos, camarada general.
Enquanto Dragosani falava, um dos agentes deu um pulo, ficou de pé e foi até uma tela onde se via uma perspectiva aérea do Mediterrâneo obtida mediante um dos satélites soviéticos. Itália estava coberta de nuvens e o Egeu estava brumoso, mas o resto da fotografia apresentava céus limpos. O agente manipulou um teclado que havia na base da tela, e um círculo luminoso verde que indicava a situação do submarino ao leste de Malte começou a piscar. O agente apertou outras teclas, e Borowitz disse:
—Esse submarino possivelmente mudou de rota. Nosso agente está introduzindo as coordenadas do novo rumo no computador. O homem não é muito exato, mas de todos os modos teremos a confirmação de nossos satélites em uma hora, aproximadamente. O caso é que tivemos a primeira informação. Estes homens são dois de nossos melhores agentes.
—Mas só um deles advertiu a mudança de rumo —comentou Dragosani—. O que aconteceu com o outro?
—Vê como não sabe tudo, Dragosani? Aquele que percebeu a mudança não é telepata. Só é um «sensitivo»... sensível à atividade nuclear. Conhece a situação de todas as centrais nucleares e depósitos de resíduos radiativos, de todas as bombas atômicas, mísseis e depósitos de projéteis, e de todos os submarinos atômicos do mundo... com uma só e importante exceção. E já falarei disso dentro de um minuto. Mas na mente desse homem há um mapa «nuclear» do mundo, que ele pode ler com tanta precisão como o das ruas de Moscou. E se algo se move em seu mapa, é um submarino, ou os americanos que trocam seus mísseis de lugar. E se algo começasse a mover-se muito rapidamente para nós... —Borowitz fez uma pausa de efeito, e continuou depois de um instante—: o telepata é o outro. Agora ele se concentrará só nesse submarino, verá se pode introduzir-se na mente de suas navegantes, e se houver algum engano no roteiro que seu companheiro riscou na tela, tentará corrigi-lo. Esses dois agentes vão melhorando dia a dia. A prática os tornará infalíveis.
Se Dragosani estava impressionado, sua expressão não o deixou transparecer. Borowitz soltou um bufido e se dirigiu para a porta.
—Continuemos —disse—. Vamos ver algo mais.
Dragosani o seguiu ao corredor.
—O que acontece, camarada general? —perguntou—. Por que me instrui com tanto detalhe?
Borowitz se voltou para olhá-lo.
—Se você conhecer plenamente o que temos aqui, Dragosani, estará em melhores condições para avaliar a organização que eles possivelmente tenham na Inglaterra. E sublinho o «possivelmente». Ou o sublinhava até hoje...
De repente, o general agarrou ao Dragosani pelos braços, lhe impedindo de mover-se, enquanto dizia:
—Dragosani, nos últimos dezoito meses não vimos nenhum submarino britânico Polaris nessas telas. Não sabemos aonde vão nem o que fazem. Têm uma boa barreira protetora, e por isso nossos satélites não podem detectá-los. Mas por que tampouco pode nosso sensitivo, ou nossos telépatas?
Dragosani se encolheu de ombros, mas não de uma maneira que pudesse ser ofensiva. Também ele estava verdadeiramente perplexo, como seu superior.
—Diga-me isso você —replicou.
Borowitz o soltou.
—E se os britânicos têm em sua Organização E agentes PES que podem anular a nossos moços da mesma maneira que se pode interferir um telefone?
—Você pensa que possivelmente acontece algo assim?
—Pois sim, acredito. Isso explicaria muitas coisas. Quanto a por que de repente comecei a me preocupar com tudo isto, devo lhe dizer que recebi uma carta de um velho amigo que está na Inglaterra. Quando voltarmos acima lhe contarei com todos os detalhes, mas agora me deixe que o apresente a um novo membro de nossa pequena equipe. Acredito que o achará muito interessante.
Dragosani suspirou com seus botões. Seu chefe chegaria por fim à medula do assunto, o necromante sabia, mas também sabia que Borowitz era extremamente retorcido em tudo o que fazia... assim, o melhor era tranquilizar-se, sofrer em silêncio, e deixar que as coisas acontecessem ao ritmo que lhes marcava Borowitz.
Dragosani seguiu o general a uma cela bastante maior que as últimas que tinham visitado. Fazia pouco mais de uma semana aquele local ainda era uma despensa, mas na atualidade tinham mudado umas quantas coisas. Para começar, a sala era muito mais ventilada e clara que antes; no parede mais distante tinham construído janelas que davam ao exterior do château. Também tinham instalado um bom sistema de ar condicionado. Em um flanco, em uma espécie de hall, tinha instalado uma espécie de sala de operações, similar às utilizadas pelos veterinários. Nos muros de ambas as habitações havia estantes de metal com fileiras de pequenas agulhas que alojavam ratos brancos e pássaros, e até um par de furões.
Um homem de pouco mais de um metro e sessenta, vestido com uma blusa branca, ia de jaula em jaula, rindo e falando com os animais, e tocando-os através dos barrotes com seus curtos dedos. Quando Dragosani e Borowitz entraram na habitação, voltou-se para olhá-los. O homem tinha os olhos rasgados, e a tez de um moreno levemente amarelado. Tinha uma forte mandíbula, mas mesmo assim as arrumava para parecer jovial; quando sorriu, toda a cara lhe encheu de rugas e seus olhos verdes faiscaram como iluminados por uma luz interior. Inclinou -se em uma reverência, primeiro ante o Borowitz e logo ante o Dragosani, e quando o fez, o anel de cabelo castanho e esvoaçante que rodeava a tonsura da parte superior de sua cabeça pareceu um halo que se deslizou levemente da posição correta. Dragosani pensou que aquele indivíduo tinha algo monástico; teria-lhe assentado muito bem uma sandálias e uma batina.
—Dragosani —disse Borowitz—, apresento ao Max Batu, que diz descender dos grandes Cãs.
Dragosani lhe estendeu a mão.
—Um mongol —disse—. Suponho que todos descendem dos Cãs.
—Em meu caso posso demonstrá-lo, camarada Dragosani —disse Batu com voz suave como a seda—. Os Cãs tiveram muitos filhos bastardos. Para evitar as disputas pelo poder, concederam a esses filhos ilegítimos riqueza, mas não posição, poder ou linhagem. E sem linhagem não podiam aspirar ao trono. Tampouco lhes permitia casar-se. E se de todas maneiras conseguissem ter descendentes, estes sofriam as mesmas limitações. E estas normas foram obedecidas de geração em geração. Quando eu nasci, os mongóis ainda obedeciam as antigas leis. Meu avô era bastardo, também meu pai, e eu. Quando tiver um filho, ele também será um bastardo. Sim, mas há mais coisas em minha linhagem. Entre os bastardos dos Cãs houve grandes xamãs. Esses velhos magos eram muito sábios, e podiam fazer muitas coisas —Batu se encolheu de ombros—. Eu não sou muito sábio, embora me hão dito que sou mais inteligente que outros de minha raça, mas há certas coisas que posso fazer...
—Max tem um quociente intelectual muito alto —disse Borowitz com seu sorriso lupino—. Foi educado em Omsk, logo decidiu abandonar a civilização e voltou para a Mongólia para apascentar cabras. Mas teve uma discussão com um vizinho ciumento, e o matou.
—Acusou-me de enfeitiçar a suas cabras —explicou Batu— para que morressem. É certo que poderia havê-lo feito, mas não o fiz. O disse, mas me acusou de ser um mentiroso. Em minha terra, isso é um insulto muito sério, de modo que o matei.
Dragosani se conteve para não sorrir. Não podia imaginar esse tipinho matando a ninguém.
—Sim —disse Borowitz—. Eu tenho lido sobre o assunto e me interessaram as características do assassinato; o método utilizado pelo Max.
—Seu método? —Dragosani estava divertindo-se muito—, Ameaçou a seu vizinho, e este morreu de rir? Foi assim como aconteceu?
—Não, camarada Dragosani —respondeu Batu, com um sorriso que permitia ver seus dentes amarelos como o marfim—, não aconteceu dessa maneira. Mas sua sugestão é muito, muito divertida.
—Max pode fazer mau-olhado, Boris —disse Borowitz. O uso do nome próprio habitualmente era uma advertência para Dragosani de que algo desagradável estava por acontecer. Na mente do Dragosani soou um timbre de alarme, mas não foi o bastante forte.
—Mau-olhado? —perguntou Dragosani, fazendo um esforço por parecer sério, e até enrugou o sobrecenho olhando ao pequeno mongol.
— Com efeito —disse Borowitz—. Pode fazê-lo com esses olhos verdes que tem. Viu alguma vez um verde assim, Boris? São puro veneno, acredite. Eu intervim no julgamento, é claro. Max não foi sentenciado, e em troca veio conosco. A sua maneira, é tão único como você. —Borowitz se dirigiu ao mongol—: Pode lhe fazer uma demonstração ao camarada Dragosani?
—Com muito gosto —respondeu Batu.
O mongol olhou ao Dragosani; Borowitz tinha razão, seus olhos eram absolutamente peculiares, profundos, como se fossem feitos de uma matéria sólida. Como se não houvesse neles nada humano, e fossem feitos de puro jade. E agora o timbre de alarme soou um pouco mais forte.
—Camarada Dragosani, por favor, observe os ratos brancos —pediu Batu, e assinalou com seu cone dedo uma jaula que continha um casal de ratos—. São felizes, e têm motivos para isso. Esta, à esquerda, é feliz porque está bem alimentada e tem um companheiro. Ele o é pelas mesmas razões, e porque acaba de copular com a fêmea. Vê como está brincando, um pouco cansado?
Dragosani olhou primeiro a jaula e logo ao Borowitz, elevando as sobrancelhas em um gesto de interrogação.
—Olhe! —rugiu Borowitz, atento ao que estava por acontecer.
—Primeiro atraímos sua atenção —disse Batu, e imediatamente assumiu uma posição grotesca, semelhante a uma gigantesca rã. O rato macho ficou imediatamente de pé, os olhos rosados muito abertos pelo medo. Saltou para os barrotes da jaula, e ficou preso a eles, olhando a Batu—. E agora —disse o mongol—, agora é só matar.
Batu estava mais encolhido, quase como um lutador japonês antes do ataque. Dragosani, que se achava de lado, viu que sua expressão mudava. Seu olho direito se arregalou até quase sair da órbita; os lábios se crisparam em um grunhido animal, de pura bestialidade; as fossas nasais se abriram como negras cavernas e os tendões do pescoço se sobressaíram, tensos. E o rato chiou!
Foi um chiado quase humano de terror e agonia, e o animal vibrou contra os barrotes como sacudido por uma corrente elétrica. Logo se soltou, tremeu, e caiu de costas no chão da jaula. Ali ficou completamente imóvel; o sangue brotou dos ângulos de seus olhos, rosados e frágeis. O rato estava morto. Dragosani soube sem necessidade de examiná-lo mais atentamente. A fêmea correu para o cadáver de seu companheiro e o farejou, depois olhou indecisa aos três seres humanos.
Dragosani não sabia como ou por que tinha morrido o rato macho. As palavras que saíram de seus lábios foram mais uma pergunta que uma afirmação, ou uma acusação.
—Tem... tem que haver algum truque.
Borowitz tinha esperado algo assim; era típico do Dragosani saltar antes de olhar, e dirigir-se a outros com a mesma sutileza de um elefante em uma vidraçaria. O chefe da Organização E retrocedeu uns passos quando Batu, ainda escondido, girou para olhar ao necromante. O mongol sorria quando perguntou:
—Um truque, diz?
—Quero dizer... —começou Dragosani.
—Isso é quase o mesmo que me chamar mentiroso —disse Batu, e seu rosto sofreu outra vez uma monstruosa transformação.
Dragosani tinha agora frente a sim o que Borowitz tinha chamado «mal olhado». E, sem a menor duvida, era malvado. Foi como se o sangue do Dragosani lhe congelasse nas veias. Sentiu que seus músculos ficavam rígidos, como se os invadisse o rigor mortis. O coração lhe deu um forte salto no peito, e a dor que isto lhe provocou o fez gemer e cambalear. Mas os reflexos do necromante eram velozes como o relâmpago.
Enquanto retrocedia dando tombos até apoiar-se contra a parede, Dragosani colocou a mão no interior da jaqueta e tirou sua pistola. Agora sabia —ou ao menos acreditava—, que este homem podia matá-lo. E a sobrevivência ocupava o primeiro lugar na mente do Dragosani. Era muito simples, tinha que matar ao mongol antes de que este o matasse a ele.
Borowitz se interpôs entre os dois homens.
—Já é suficiente! —exclamou—. Dragosani, guarde essa pistola!
—Esse bastardo esteve a ponto de me matar! —ofegou Dragosani, e seu corpo se estremeceu em uma reação nervosa.
Dragosani tentou afastar Borowitz da linha de fogo, mas o general parecia de pedra.
—Hei dito que já é suficiente —repetiu—. Vai matar a seu companheiro?
—Meu o que? —Dragosani não podia acreditar no que ouvia—. Companheiro? Eu não necessito um companheiro. Que classe de companheiro? É uma brincadeira?
Borowitz estendeu a mão e, com cautela, agarrou a pistola do Dragosani.
—Dê-me isso – disse Borowitz —. E agora podemos voltar para meu escritório. —Quando saíam, com o aturdido Dragosani adiante, Borowitz se voltou para o mongol e lhe disse—: Obrigado, Max.
—Não há de que —respondeu o outro com a cara outra vez risonha. Batu voltou a inclinar-se em uma reverência enquanto Borowitz fechava a porta.
Quando saíram ao corredor, Dragosani estava furioso. Apoderou -se de sua pistola e a colocou na capa.
—Você e seu maldito senso de humor! —grunhiu—. Homem, estive a ponto de morrer!
—Não, não o esteve. —Borowitz estava tão imperturbável como sempre—. Não esteve nem sequer perto de morrer. Se tivesse o coração débil, isso o teria matado, como matou ao vizinho. Ou se você fosse velho e doente. Mas é jovem e muito forte. Não, eu sabia que não podia matá-lo. Ele mesmo me disse que não podia matar a um homem vigoroso. Ao mongol lhe custaria muito fazer isto; tanto, que se tentasse matar a você, morreria. De modo que já vê, eu tinha confiança em sua fortaleza.
—Você tinha fé em minha fortaleza? Louco sádico! O que teria acontecido se se tivesse equivocado?
—Mas não me equivoquei —disse Borowitz, e retornou por onde tinham vindo.
Dragosani não queria que o apaziguassem. Ainda se sentia afetado, e lhe tremiam os joelhos. Enquanto seguia ao Borowitz com passos inseguros, disse:
—O que ocorreu ali estava preparado, e você me levou deliberadamente!
O diretor da organização se voltou e assinalou com seu dedo diretamente ao peito do Dragosani; seu sorriso era tão feroz que mais parecia uma careta.
—Mas agora você acredita, não é verdade? Agora você viu e sentiu. Agora conhece o que ele pode fazer! Já não pensa que se trate de um truque. Trata -se de uma habilidade nova, Dragosani, algo nunca visto. E quem sabe que outras habilidades paranormais há no resto do mundo?
—Mas por que permitiu, melhor dizendo, por que fez que enfrentasse a uma coisa semelhante? Não tem sentido.
Borowitz lhe deu as costas e apertou o passo.
—Tem muito, muitíssimo sentido. É prática, Dragosani, e como lhe digo sempre...
—Já sei, a prática nos permite alcançar a perfeição. Mas neste caso, prática para que?
—Oxalá soubesse! —respondeu Borowitz olhando-o por cima do ombro—. Quem sabe com o que terá que enfrentar... na Inglaterra?
—O que diz? —perguntou Dragosani estupefato—. Na Inglaterra? O que acontece na Inglaterra? E ainda não me esclareceu o que queria dizer com isso de que Batu é meu companheiro. Gregor, não entendo nada.
Tinham chegado aos escritórios do Borowitz. O diretor da organização cruzou a sala de espera e se voltou justo quando estava por passar a soleira de seu escritório privado. Ficaram frente a frente, e Dragosani lhe dirigiu um olhar acusador.
—O que guarda na manga, camarada?
—De modo que segue acusando às pessoas de fazer truques, Boris? Quando aprenderá a primeira lição? Eu não preciso utilizar estratagemas, amigo. Eu dou ordens, e você as obedece. E minha próxima ordem é que irá à escola por uns meses para melhorar seu inglês. Não só a língua, mas também seu conhecimento de todo o sistema. Desse modo, estará em condições de ocupar um posto na embaixada naquele país. Também Max irá à escola com você, e suspeito que é dos que aprendem rápido. E depois, depois de alguns preparativos, uma pequena viagem...
—A Inglaterra?
—Exato. Irá com seu companheiro. Na Inglaterra se encontra um homem chamado Keenan Gormley. É um antigo membro do MI5. Sir Keen Gormley. Na atualidade é o diretor da Organização E inglesa. Quero que morra. É um trabalho para o Max, já que Gormley tem um coração débil. Depois disso...
Agora Dragosani o via tudo muito claro.
—Quer que eu o «interrogue» —disse—. Quer que descubra todos os seus segredos, que me inteire de tudo o que concerne à Organização E britânica, até o último detalhe.
—Desta vez o entendeu de primeira —aprovou Borowitz—. E esse é seu trabalho, Boris. Você é o necromante, o inquisidor dos mortos. Para isso é pago...
E antes de que Dragosani pudesse lhe responder, Borowitz lhe fechou a porta no nariz.

Uma noite de sábado, a começos do verão de 1976, sir Keenan Gormley lia no escritório de sua casa do South Kensington, com um copo ao alcance da mão, quando soou o telefone. Sir Gormley o ouviu, e um momento mais tarde ouviu a voz de sua esposa que lhe dizia: «Querido, é para você!».
«Já vou!», respondeu ele, colocou de lado o livro com um suspiro, e foi atender a chamada. Quando agarrou o telefone da mão de sua esposa, esta lhe sorriu e voltou para sua própria leitura. Gormley levou o telefone até uma poltrona de vime e se sentou de frente para as portas de vidro abertas que davam a um grande jardim interior.
—Aqui Gormley —disse.
—Sir Keenan? Sou Harmon, Jack Harmon, do Hartlepool. Como o tratou o mundo durante todos estes anos?
—Jack! Como vai? meu deus, passou tanto tempo! Deve fazer doze anos que não nos vemos.
—Treze —foi a resposta—. A última vez que falamos foi no jantar que lhe deram quando você se foi de... bom, já sabe de onde, e isso foi no ano mil novecentos e sessenta e três.
—Treze anos! —repetiu Gormley, assombrado—. Como passa o tempo!
—É claro que sim! Mas vejo que a aposentadoria não acabou com você.
Gormley riu com ironia.
—Bom, só estou aposentado pela metade, e acredito que você sabe. Ainda faço algumas coisas na cidade. E você, tão valente como sempre? Se mal me recordo, tinham-no designado diretor da Escola de Artes e Ofícios do Hartlepool.
—Assim é. E ainda estou ali. Como diretor, e lhe asseguro que Birmania era mais fácil!
Gormley riu.
—Me alegro muito de ter notícias delas, Jack, e de que siga bem. O que posso fazer por você?
Harmon fez uma pausa antes de responder.
—Na verdade, sinto-me um pouco tolo chamando-o. Na última semana estive várias vezes a ponto de fazê-lo, mas no último momento me detinha. É um assunto tão estranho!
Gormley se sentiu interessado imediatamente. Fazia uns anos se ocupava de «assuntos estranhos». Seu próprio dom lhe dizia que algo novo estava por aparecer em cena, e que provavelmente era algo importante.
—Siga, Jack. E não se preocupe; jamais tomarei por um tolo. Sei que é uma pessoa muito sensata.
—Sim, mas... é muito difícil falar disto. Quero dizer, é algo que vi com meus próprios olhos, e entretanto...
—Jack —disse Gormley, com paciência—, recorda a noite do jantar, que depois estivemos falando longamente? Eu tinha bebido o bastante, muito possivelmente, e lembro que falei mais do que devia. Mas você parecia estar situado em um lugar privilegiado, quero dizer, como diretor de uma escola...
—Mas se foi precisamente como resultado daquela conversação que o chamei! Como pôde adivinhá-lo?
—Lhe chame intuição —respondeu Gormley com um risinho—. Vá adiante.
—Bom, você disse que muitos meninos passariam por minhas turmas, e que devia manter os olhos bem abertos para descobrir se algum era... muito especial.
Gormley se passou a língua pelos lábios e disse:
—Seja bom e espere um momento, Jack. —Logo chamou a sua esposa e lhe pediu—: Jackie, por favor, me sirva uma bebida. —Gormley se dirigiu de novo ao telefone—: O sinto, Jack, mas necessito uma bebida. Voltando para o nosso, encontrou um menino que é um pouco diferente, não?
—Só um pouco? Harry Keogh é inteiramente diferente, dou-lhe minha palavra. Francamente, não sei o que pensar dele.
—Bem, conte-me isso tudo, e vejamos o que penso eu.
—Harry Keogh é um tipo muito estranho —começou Harmon—. Quem primeiro me chamou a atenção sobre ele foi um professor da escola primária do Harden, na costa. Segundo ele, Harry Keogh era um «matemático instintivo». De fato, era virtualmente um gênio. Lhe fez um exame e o passou. O fez rapidamente! Ingressou então na Escola de Artes e Ofícios, mas seu inglês era terrível. Eu estava acostumado a repreendê-lo por causa disso...
»De todas formas, quando falei com o professor de Harden, um tipo jovem, chamado George Hannant, tive a sensação de que Keogh não lhe era simpático. Possivelmente isto é um pouco forte, e só era que Keogh o fazia sentir incômodo. Bom, recentemente tornei a falar com o Hannant, e todo o assunto veio à luz. E com isto quero dizer que o que observou Hannant faz cinco anos concorda perfeitamente com o visto por mim. Também Hannant, naquela época, acreditava que Harry Keogh... que ele...
—Qual é o talento do menino? —urgiu-o Gormley.
—Talento? meu deus, eu não lhe daria esse nome!
—O que, então?
—Me deixe que o explique . Não é que não esteja seguro de minhas conclusões, mas antes devo lhe falar das provas. Contei-lhe que o inglês do Keogh era muito deficiente, e que eu estava acostumado a repreendê-lo para que estudasse. Bom, melhorou com rapidez. Faz dois anos, antes de graduar-se na escola, vendeu seu primeiro conto. Após publicou dois livros. Venderam -se em todos os países de língua inglesa! É um pouco desalentador, por assim dizê-lo. Eu tentei publicar meus contos durante trinta anos. E Keogh, que ainda não tem dezenove...
—É isso o que lhe preocupa? —interrompeu-o Gormley—. Que seja um escritor famoso sendo tão jovem?
—Como? Não, Por Deus! Me alegro muito por ele. Ou ao menos, alegrava-me. Não me preocuparia se... se não escrevesse seus contos do modo que o faz...
—De que modo?
—Keogh tem..., bom, tem colaboradores.
Houve algo no tom do Harmon ao pronunciar a última palavra que fez que ao Gormley lhe arrepiassem os cabelos.
—Mas muitos escritores os têm. Suponho que aos dezoito anos necessita que alguém corrija o que escreve, e coisas pelo estilo...
—Não, não —disse seu interlocutor, e em sua voz se percebia uma aspereza que indicava que queria dizer algo francamente, mas não sabia como fazê-lo—. Não é isso o que queria dizer. Em realidade, não necessita que ninguém corrija seus contos, são verdadeiras joias. Eu mesmo datilografei os primeiros, porque ele não tinha máquina de escrever. E inclusive lhe aconteceu alguns quando já tinha a máquina, para que aprendesse como devia apresentar um original. Após o tem feito todo ele... até muito recentemente. Sua última obra, que acaba de terminar, é uma novela. Titulou-a Diário de um libertino do século XVII.
Gormley não pôde evitar rir.
—Assim também é sexualmente precoce, não?
—Em efeito, acredito que o é. De todas formas, trabalhei com ele na novela; quer dizer, ordenei-a em capítulos, e a corrigi um pouco. A história, e a utilização que faz Keogh da linguagem do século XVII, estão muito bem, mas sua ortografia segue sendo muito má e neste livro sua escritura é repetitiva e desconexa. Embora, posso lhe assegurar, ganhará muitíssimo dinheiro com ele.
Agora foi Gormley quem franziu o sobrecenho.
—Como pode ser que escreva contos como «joias», e que sua novela seja repetitiva e desconexa? Não parece lógico.
—No caso Keogh, nada é lógico. A novela é diferente dos contos por uma razão muito simples: o colaborador que o ajudava com os contos era um escritor que sabia o que fazia, mas o da novela só é um libertino do século XVII.
—Como diz? —Gormley estava atônito—. Não lhe compreendo.
—Não, acredito que não. E oxalá eu tampouco o entendesse! Escute: faz uns trinta anos viveu, e morreu, no Hartlepool um famoso escritor de contos. Seu verdadeiro nome não tem importância, porque publicava sob três ou quatro pseudônimos. Keogh usa pseudônimos muito parecidos com os originais.
—Que «originais»? Ainda não compreendo...
—Quanto ao libertino do século XVII, era o filho de um conde. Foi muito famoso nestas terras entre o ano mil seiscentos e sessenta e o mil seiscentos e setenta e dois. Finalmente, um marido ofendido o matou. Não era escritor, mas tinha uma colorida imaginação. Esses dois homens... são os colaboradores do Keogh.
Gormley estava agora todo arrepiado.
—Siga —disse.
—falei com a noiva do Keogh —continuou Harmon—. É uma boa garota, e o adora. E não quer ouvir nenhuma palavra contra seu noivo. Mas em uma conversação lhe escapou que ele tem uma ideia sobre alguém chamado necroscópio. Falou-lhe disso como se fosse ficção, uma criação de sua imaginação. Um necroscópio, disse-lhe, é alguém que...
—Pode ler os pensamentos dos mortos, verdade? —interrompeu Gormley.
—Sim —respondeu seu interlocutor com um suspiro de alívio—. Exato.
—Uma espécie de médium dos espíritos.
—Como? Ah, sim, suponho que se poderia dizer isso. Mas um médium verdadeiro, Keenan, um homem que realmente fala com os mortos. Algo monstruoso! Vi-o com meus próprios olhos, sentado no cemitério e escrevendo.
—falou que isto com alguém mais? —A voz do Gormley se fez severa—. Conhece Keogh suas suspeitas?
—Não.
—Então, não diga nenhuma palavra disto a ninguém. Entende-me?
—Sim, mas...
—Sem mas, Jack. Seu descobrimento pode ser muito importante, e me alegro de que tenha chamado. Mas isto não pode ser divulgado. Há gente que poderia utilizá-lo com maus fins.
—Crê-me, então? —O alívio do outro era perceptível, inclusive por telefone—. Quero dizer, é possível uma coisa tão horrível?
—Jack, cada dia que passa estou menos seguro de que coisas são possíveis, e quais impossíveis. De todos os modos, compreendo sua inquietação. Quanto a que seja uma coisa horrível, por agora prefiro não opinar. Se você estiver na lama, esse Harry Keogh possui um talento incrível. Pense em quão útil poderia nos ser!
—Estremeço-me de só pensá-lo.
—Como? E é você um diretor de escola? Que vergonha!
—Sinto muito, mas não estou seguro de que...
—Mas não gostaria de ter a ocasião de falar com os grandes professores, teóricos e cientistas de todos os tempos? Com o Einstein, Newton, Dá Vinci ou Aristóteles?
—Meu Deus! —A voz ao outro lado da linha parecia sufocada pela emoção—. Mas isso é absolutamente impossível!
—De acordo, Jack, você siga pensando assim, e esqueça-se por completo de nossa conversação.
—Mas você...
—De acordo, Jack?
—Muito bem. E o que tenta você...?
—Jack, eu trabalho para uma organização muito peculiar, com um grupo de gente muito estranha. E já falei muito outra vez. Mas me ocuparei deste caso, dou-lhe minha palavra. E você tem que me prometer que não falará do assunto com ninguém.
—De acordo, se for o que deseja.
—E obrigado por me chamar.
—Não há de que! Eu...
—Adeus, Jack. Já nos chamaremos.
—Adeus.
Gormley, pensativo, pendurou o telefone.

Capítulo onze

Dragosani tinha «voltado para a escola» durante três meses para polir seu inglês. Agora, a fins de julho, tinha retornado a Romênia, ou melhor dizendo a Valáquia, que era para ele sua terra natal. O motivo pelo qual estava ali era muito simples: apesar das ameaças que fizesse a última vez que veio, era consciente de que tinha passado um ano, e de que a antiga criatura enterrada lhe tinha advertido de que não tinha mais de um ano de prazo. Dragosani não compreendia o que tinha querido dizer com isso, mas de algo estava seguro: não ia deixar que Thibor expirasse por um descuido de sua parte. Embora se tal extinção era iminente, o vampiro estaria mais desejoso de compartilhar seus segredos com Dragosani em troca da prolongação de sua vida de não-morto.
Como já era tarde quando chegou ao Bucarest, Dragosani se deteve comprar um par de frangos vivos em uma cesta de vime. Deixou-os no chão da parte traseira do Volga, cobertos com uma manta liviana. Hospedou -se em uma granja à beira do Olt, e após deixar as malas em seu quarto, saiu imediatamente e se dirigiu em seu carro para as frondosas colinas em forma de cruz.
Chegou com as últimas luzes do entardecer ao limite do círculo de terra ímpia sob os escuros pinheiros, e contemplou uma vez mais a tumba em ruínas e a negra terra onde as retorcidas raízes pareciam nós de serpentes petrificadas.
Depois de passar Bucarest, Dragosani tinha tentado sem sucesso comunicar-se com Thibor; apesar de que se concentrou em despertar a mente do velho demônio de seu sonho de séculos, não tinha obtido resposta. Talvez, depois de tudo, tinha demorado muito. Quanto tempo pode permanecer um vampiro, não morto e enterrado, sem receber atenção alguma? Dragosani, apesar de suas conversações com a criatura, e da informação que tinha recebido do Ladislau Giresci, sabia muito pouco a respeito dos vampiros. Thibor lhe havia dito que esse era um conhecimento proibido aos mortais, e que devia esperar a pertencer à fraternidade. De maneira que proibido? O necromante já se encarregaria de averiguá-lo !
—Thibor, está aí? —sussurrou Dragosani na penumbra. Seus olhos, acostumados à escuridão, penetraram no negro miasma do lugar—. Thibor, retornei, e te trago presentes.
A seus pés estavam os frangos, com as patas atadas e encolhidos na cesta; mas nenhuma presença invisível agitou as sombras, não houve dedos de teia de aranha que roçassem seu cabelo, nem ávidos focinhos invisíveis que farejassem sua essência. O lugar estava seco, árido, morto. Os ramos se quebravam de só as tocar e ali onde Dragosani posava seus pés se levantava uma nuvem de pó.
—Thibor —Dragosani o tentou outra vez—. Me disse um ano; o ano já passou e eu retornei. É muito tarde? Trouxe-te sangue, velho dragão, para esquentar suas veias e te devolver as forças.
Nada.
Dragosani começou a alarmar-se. Algo estava errado. A velha criatura enterrada tinha estado sempre aqui. Era patrimônio local. Sem ele, o lugar não era nada, as colinas cruciformes estavam vazias. E os sonhos do Dragosani? Tinham desaparecido para sempre os conhecimentos que pensava adquirir do vampiro?
Durante um instante o invadiram o desespero, a ira, a frustração, mas logo...
Os frangos se agitaram na cesta, e um deles cacarejou, inquieto. Uma brisa sinistra agitou os ramos por cima da cabeça do Dragosani. O sol ficou detrás das distantes colinas. E algo vigiou ao necromante entre a penumbra, o pó e os quebradiços ramos. Não havia nada, mas Dragosani se sentia cuidadoso. Nada tinha mudado, mas parecia como se o lugar respirasse.
Respirava, sim, mas com um fôlego corrompido que ao Dragosani não gostou nada. Sentia -se ameaçado, como se o perigo fora maior que nunca. Agarrou a cesta e retrocedeu uns passos, fora do círculo ímpio, até que sentiu junto a suas costas a rugosa casca de uma grande árvore quase tão antiga como o claro. sentiu-se mais seguro, menos indefeso, com o grosso tronco lhe cobrindo as costas. A repentina secura de sua garganta desapareceu, e tragou saliva antes de voltar a falar.
—Thibor, sei que está aí. Se decide me ignorar, você lhe perde isso, velho demônio.
O vento sacudiu outra vez os ramos, e um sussurro penetrou na mente do necromante.
Dragosaaaniiii? É você? Ahhhh!
—Sim, sou eu —respondeu em seguida—. Vim a te trazer vida, velho demônio... ou a renovar sua não-morte.
Muito tarde, Dragosani, muito tarde. Chegou minha hora e devo responder ao chamado da escura terra. Inclusive eu, Thibor Ferenczy, da estirpe dos vampiros. Minhas privações foram muitas e minha chama se fez muito débil, e agora é apenas um brilho. O que pode fazer você agora por mim, filho? Temo-me que nada. Tudo terminou...
—Não, não posso acreditá-lo! Trouxe-te vida, sangue fresco. E amanhã trarei mais. Em poucos dias estará outra vez vigoroso. Por que não me disse que as coisas tinham chegado ao limite? Eu estava seguro de que me enganava! Como podia te acreditar, se sempre me tinha mentido?
Talvez esse foi meu engano —respondeu depois de um instante a criatura enterrada—, mas se meu próprio pai e meu irmão me odiavam, por que teria que confiar em meu filho? E de um filho por procuração, por dizê-lo assim. Não é carne de minha carne, Dragosani. Claro está que nos fizemos promessas, mas eram muitas para acreditar que pudessem cumprir-se. Mas você prosperou algo, graças a seu conhecimento da necromancia, e eu ao menos provei uma vez mais o sangue, por vil que este fosse. assim, que haja paz entre nós. Estou muito fraco para que algo me inquiete...
Dragosani se adiantou um passo.
—Não! —disse outra vez—. Ainda tem que me ensinar coisas, os segredos dos vampiros...
Não se tinha estremecido o chão sob seus pés? Estavam as presenças invisíveis um pouco mais perto? Dragosani retrocedeu contra a árvore.
A voz em sua mente suspirou. Era o suspiro de alguém fatigado das coisas terrenas, de alguém impaciente por sumir-se no esquecimento. E Dragosani esqueceu que se tratava do mentiroso suspiro de um vampiro.
Ah, Dragosani, Dragosani! Não aprendeste nada. Não te disse que a sabedoria dos vampiros lhe está vedada aos mortais? Não te disse que para conhecer terá que converter-se em um deles, e que não há outro caminho? Vá embora, meu filho, e me deixe liberado a meu destino. Por que teria que te dar o poder de reger o mundo enquanto eu, enterrado aqui, converto-me em pó? É isso justo?
Dragosani estava desesperado.
—Aceita então o sangue que te trouxe, a tenra carne. Recupera suas forças. Eu aceitarei suas condições. Se tiver que me converter em um vampiros para aprender todos seus segredos, que assim seja —mentiu Dragosani—. Mas sem ti não posso fazê-lo.
A criatura enterrada permaneceu um instante em silêncio enquanto Dragosani, ansioso, esperava. Teve a sensação de que a terra havia tornado a tremer, embora quase imperceptivelmente, sob seus pés. Mas sem dúvida só era sua imaginação, o saber que um ser antigo e malvado, corrompido e não-morto jazia ali, enterrado. A suas costas a árvore parecia sólido como uma rocha, e Dragosani não suspeitou que seu tronco estava cavado pela caruncho. Mas o estava, e algo começou a filtrar-se da terra ao carcomido tronco.
Em outras circunstâncias, Dragosani possivelmente teria percebido o movimento, mas nesse preciso instante Thibor voltou a lhe falar e distraiu sua atenção.
Há dito que tinha um presente para mim?
A imaterial voz do vampiro soava interessada, e Dragosani vislumbrou um raio de esperança.
—Sim, sim. Aqui, a meus pés. Carne fresca, sangue.
Agarrou uma das aves e lhe apertou a garganta de tal modo que seus chiados cessaram imediatamente. E um segundo depois agarrou uma navalha de brilhante aço que levava no bolso e lhe cortou o cangote. Saltou um jorro de sangue, e umas plumas revoaram e caíram lentamente a terra quando Dragosani arrojou o cadáver do frango para frente.
O húmus de folhas que cobria o estou acostumado a absorveu o sangue como uma esponja absorve a água, mas detrás do Dragosani um pseudópodo de putrefação deslizou rapidamente pelo interior da árvore oca e seu extremo, de um branco leproso, encontrou o buraco que tinha deixado um ramo seca e queda, e apareceu em exterior por cima da cabeça do Dragosani, a menos de quarenta centímetros. A ponta do tentáculo pulsava, brilhava com uma estranha vida própria, com a urgência fetal de uma espécie estrangeira.
Dragosani agarrou o segundo frango pelo cangote, e se adiantou dois passos, até o mesmo limite da zona «segura».
—E há mais, Thibor. Aqui, em minha mão. Me demonstre um pouco de confiança, um pouco de fé, e me fale dos poderes que terei quando me converter em alguém como você.
Eu... eu sinto o vermelho sangue que empapa o chão, filho, e é bom. Mas sigo acreditando que vieste muito tarde. Não te jogarei a culpa. Brigamos, e eu tenho a culpa tanto como você, de modo que esqueçamos o passado. Sim, e não terminarei sem te dar antes uma pequena amostra do que cheguei a sentir por ti, sem compartilhar um pequeno segredo.
—Estou esperando —disse, impaciente, Dragosani—. Fale.
No começo —disse a criatura enterrada—, todas as criaturas eram iguais. Os vampiros originais eram seres naturais, como os primeiros homens, e assim como o homem vivia das criaturas inferiores que o rodeavam, também o fazia o vampiro. Ambos, como vê, fomos de algum jeito parasitas. Todos os seres vivos o são. Mas enquanto o homem matava às criaturas das que se alimentava, o vampiro era mais bondoso: ele simplesmente fazia deles suas hóspedes. Não morriam, mas sim se convertiam em não-mortos. Desta maneira um vampiro não é menos natural que a lamprea, a sanguessuga ou inclusive o humilde mosquito; exceto que seu hóspede vive, torna-se quase imortal, e não é consumido como acontece habitualmente na posse parasitária. Mas à medida que o homem evoluiu até converter-se no hóspede perfeito, também evoluiu o vampiro, e quando o homem se converteu na criatura que dominava a todas as demais, o vampiro compartilhou esse poder.
—Simbiose —disse Dragosani.
Posso ler o significado dessa palavra em sua mente —disse Thibor—, e o que há dito é correto, salvo que o vampiro aprendeu muito em breve a não delatar sua presença. Porque, junto com a evolução, produziu-se uma mudança singular: antes o vampiro podia viver separado de seu hóspede; agora, dependia dele por completo. Da mesma maneira que a lamprea pegajosa morre sem um peixe hóspede, o vampiro necessita a seu hóspede para existir. Mas os homens, quando descobriam a um vampiro dentro de um dos de sua espécie, matavam-no. E o que é pior, aprenderam a matar ao ser superior que se alojava no ser humano.
Mas não era este o único problema dos vampiros. Quando se trata de corrigir seus enganos, a natureza é muito estranha, e absolutamente desumana. Ela não tinha planejado a imortalidade para nenhuma de suas criaturas. Nada do que a natureza cria pode viver eternamente. Contudo, havia uma criatura que parecia desafiar esta lei inflexível, uma criatura que, salvo acidente, podia sobreviver de modo indefinido. E, furiosa, a natureza descarregou sua ira nos vampiros. E à medida que passaram os séculos, e a terra viveu todas suas idades até chegar à presente, meus ancestrais vampiros foram presa de uma debilidade. Desenvolveu -se neles de geração em geração, com o passado do tempo. Em uma restrição da natureza, e era esta: posto que os vampiros raramente morrem», ela lhes permitiria nascer com igual —e muito escassa— frequência.
—E essa é a razão de que sejam uma raça que se extingue.
Só podemos nos reproduzir uma vez na vida, por longa que essa vida seja.
—Mas se são tão potentes! Posso ver que o problema não radica em seus machos. São estéreis suas fêmeas? Quero dizer, têm só uma oportunidade de procriar?
Nossos «machos», Dragosani? —ressonou a voz na mente do Dragosani, com um matiz irônico que não tinha aparecido até esse momento—. Nossas «fêmeas»?...
E o necromante retrocedeu uma vez mais até apoiar-se na árvore.
—O que diz?
Machos e fêmeas! Não, Dragosani! Se a natureza nos tivesse afligido com esse problema, faz tempo que já nos teríamos extinto.
—Mas você é um macho! Sei que o é.
—Era-o meu hóspede humano.
Dragosani tinha os olhos muito abertos na escuridão. Algo em seu interior lhe dizia que fugisse. Mas... do que? Sabia que a criatura enterrada não poderia, ou não se atreveria, a lhe fazer dano.
—Então... é uma fêmea?
Acreditei me haver explicado claramente. Não sou nenhuma nem outra coisa.
Dragosani não estava seguro da palavra adequada para descrever aquilo.
—É um hermafrodita?
Não.
—Assexuado, então! Agâmico!
Uma gota perlada começou a formar-se no pálido e pulsátil extremo do leproso tentáculo, que aparecia pelo buraco da árvore, acima da cabeça do Dragosani. À medida que crescia tomava a forma de uma pera, pendurava, começou a tremer. Acima da gota se formou um olho carmesim, sem pálpebra, de olhar fixo e obsessivo.
—Então, como se explica sua luxúria, a noite que possuímos à garota?
A luxúria não era minha, Dragosani; era tua.
—E todas as mulheres que há possuído em sua vida?
A energia era minha; a luxúria, de meu hóspede.
—Mas...
Ahhhh!—a voz na mente do Dragosani deixou passo a um comprido gemido—. meu Filho, meu filho, já estou perto do fim! tudo... está... por terminar.
O necromante, assustado, avançou uma vez mais para o limite do círculo. A voz era tão débil, tão cheia de dor e desespero!
—O que acontece? Olhe, aqui há mais comida! Toma-a!
Dragosani cortou o pescoço do segundo frango e arrojou seu cadáver estremecido ao chão. O sangue vermelho foi absorvida pela terra. A criatura enterrada bebeu a grandes goles.
Dragosani esperou, e ao pouco, ouviu um «Ahhh!»
Mas agora, ao necromante lhe arrepiaram os cabelos. De repente, percebia um grande vigor no vampiro, e uma astúcia ainda maior. Retrocedeu rapidamente... e nesse mesmo instante, a gotícula pendurada acima de sua cabeça se tornou vermelha e caiu.
Foi parar na parte de trás do pescoço de Dragosani, justo debaixo do colarinho da camisa. Ele a sentiu. Poderia ter sido uma gota de sereno caída da árvore, exceto ali tudo estar muito seco, ou o excremento de um pássaro, se alguma vez tivesse visto um pássaro naquele lugar. A mão de Dragosani foi imediatamente ao pescoço para limpar o que fosse... e não encontrou nada. O ovo do vampiro não necessitava repouso. Rápido como o mercúrio tinha penetrado diretamente através da pele, e agora explorava a coluna vertebral de Dragosani.
Um instante depois Dragosani sentiu a dor e com passo inseguro se separou da árvore. deu-se conta de que tinha penetrado no que ele considerava a zona de perigo, mas seguiu para frente, impulsionado pela dor, cada vez mais intenso. Desta vez foi incapaz de dominar-se; fugiu do círculo, chocando às cegas com os troncos das árvores que se interpunham em seu caminho; tropeçou e caiu. E a dor não o abandonava, a dor no crânio, a pressão na coluna, o fogo que lhe corroía as veias como um ácido.
Invadiu-o o pânico, o maior pânico de toda sua vida. Sentiu-se morrer; sentiu que esse ataque, qualquer fora sua causa, certamente o estava matando. Era como se lhe estalassem todos os órgãos internos, como se seu cérebro ardesse.
Em seu interior, a semente do vampiro tinha achado um lugar de repouso na cavidade do peito. Acabou com a exploração e se dispôs a dormir. Suas idas e vindas iniciais tinham sido como os espasmódicos chutes de um recém-nascido, mas agora que estava abrigado e a salvo, só desejava descansar.
A agônica dor abandonou Dragosani em um instante, e foi tão grande seu alívio que seu organismo perdeu o equilibro. Desvaneceu -se, afligido pelo intenso prazer da ausência de dor.

Harry Keogh dormia esparramado na cama; o suor lhe colava o cabelo à testa e seus braços e pernas se sacudiam em movimentos espasmódicos, em resposta a um sonho que de algum modo era algo mais que um sonho. Sua mãe tinha sido uma pessoa dotada de poderes paranormais, uma médium bastante conhecida, e a morte não só não a tinha mudado, mas também tinha melhorado seu talento. Frequentemente, no curso dos anos, tinha visitado Harry enquanto este dormia, tal como o visitava agora.
Harry sonhava que era verão e estavam juntos em um jardim, o de sua casa do Bonnyrigg. O rio corria próximo, entre bordas cobertas de um verde profundo. Era um sonho de agudos contrastes e vivas cores. Sua mãe era outra vez jovem, uma garota apenas, e ele poderia ter sido seu jovem amante, antes que seu filho. Mas no sonho a relação entre eles era muito clara e ela, como sempre, estava preocupada com ele.
—Harry, seu plano é perigoso e não resultará —disse ela—. Além disso, não te dá conta do que está fazendo? Se sair bem, será um assassinato, Harry. E você não será... não será melhor que ele!
Ela voltou a cabeça de dourados cabelos e seus olhos azuis olharam, temerosos, para a casa.
A casa era uma mancha escura contra um céu tão azul que feria os olhos. elevava-se como um bloco de tinta congelada contra um fundo verde e azul, como recém derrubada em um livro ilustrado para crianças. Não brilhava nenhuma luz nela, e nada escapava a seu doloroso, insondável vazio, como nos buracos negros interestelares. Era negra por causa de quem a habitava, tão negra como o homem que vivia ali.
Harry fez um gesto negativo com a cabeça e com um grande esforço de vontade apartou seus olhos da casa.
—Não será um assassinato —respondeu—. Será justiça! Conseguiu escapar durante quinze anos. Eu era um menino, pouco mas que um pirralho de peito quando ele te arrancou de meu lado. Seu crime ficou impune até o presente. Agora sou um homem, mas seguirei sendo-o deixando as coisas como estão?
—Harry, não vê que a vingança não mudará nada? Não se desculpa um engano cometendo outro.
Sentaram -se na erva e ela o abraçou e lhe acariciou o cabelo. Quando Harry era menino adorava isso. Harry olhou outra vez a casa escura como a tinta e estremeceu; depois apartou rapidamente o olhar.
—Não se trata só de que queira te vingar, mãe —disse—. Quero saber por que o fez! Por que te assassinou? Foi jovem e formosa, uma mulher rica e talentosa. Teria que te haver adorado, e entretanto te matou. Afundou-te e te reteve sob o gelo, e quando estava muito esgotada para lutar, deixou que a corrente te arrastasse. Matou-te com a mesma frieza que se fosse um gatinho não desejado, ou disforme isca de peixe. Arrancou-te a vida como quem arranca ervas daninhas no jardim, mas ele era a má erva, e você uma rosa. O que o moveu a fazê-lo? Por que?
Ela franziu a frente e fez um gesto negativo com a dourada cabeça.
—Não sei, Harry. Nunca o soube.
—Tenho que descobri-lo. E não posso averiguá-lo enquanto ele esteja vivo, porque nunca confessará seu crime. De modo que terei que fazê-lo depois de que morra. Os mortos nunca me negam nada. E isso significa... que tenho que matá-lo. E o farei a minha maneira.
—É uma maneira muito terrível, Harry —agora tocou a ela estremecer—. Sei.
Ele assentiu com um olhar geada em seus olhos.
—Sim, sei que sabe... e por isso devo fazê-lo dessa maneira.
Ela sentiu outra vez medo, e se abraçou a Harry.
—E se algo sair errado? Se souber que você está bem, posso descansar em paz, Harry. Mas se te acontecesse algo...
—Não me acontecerá nada. Tudo sairá tal como o planejei. —Harry beijou a frente de sua mãe, mas ela se aferrou a ele.
—É um homem inteligente, Harry. Esse Viktor Shukshin é muito preparado, e malvado. Eu às vezes o percebia, e me fascinava. O que era eu, depois de tudo, a não ser uma mocinha? E ele... ele era magnético. A alma russa, que eu também sentia em mim; a obsessiva escuridão de sua mente, o magnetismo e a maldade. Fomos polos opostos, e nos atraíamos. Eu sei que ao princípio o amava, apesar de que percebia a negrume de seu coração. Quanto a por que me assassinou...
—Sim?
Ela fez de novo um gesto negativo com a cabeça, os olhos azuis empanados pela lembrança.
—Havia algo nele. uma espécie de loucura, algo inominável que ele não podia dominar. Isso sei, mas o que era exatamente... —e uma vez mais fez um gesto negativo.
—Isso é o que tenho que averiguar —repetiu Harry—, porque eu tampouco poderei descansar até que não o tenha descoberto.
—Shhh —o fez calar ela de repente, apertando-o com mais força—. Olhe...
Harry olhou. Uma pequena mancha de tinta se desprendeu da grande massa da casa. Tinha forma humana, e avançou pelo atalho do jardim; olhava aqui e lá e se retorcia as mãos em um gesto de preocupação. Na parte da mancha negra correspondente à cabeça brilhavam dois ovalóides chapeados, olhos que conduziram a seu dono até a cerca do fundo do jardim. Harry e sua mãe se abaixaram juntos, mas no momento o fantasma do Shukshin não lhes emprestou atenção. Chegou até onde estavam eles, farejou como se suspeitasse algo, igual a um cão, e seguiu adiante. Deteve -se junto à cerca, apoiou-se nela, e durante uns instantes contemplou a preguiçosa corrente.
—Sei o que pensa —sussurrou Harry.
—Shhh! —voltou a lhe fazer calar sua mãe—. Viktor Shukshin pode perceber coisas. Sempre pôde...
A mancha de tinta empreendeu a volta, detendo-se de vez em quando para farejar daquela maneira tão estranha. Quando esteve perto do casal, a coisa-shukshin pareceu olhar através deles com seus olhos de prata. Depois piscou e continuou para a casa, retorcendo as mãos como antes. Quando se fundiu com a casa, ressonou o golpe de uma porta, e logo o eco.
O som se repetiu na cabeça do Harry, retumbou metamorfoseando da portada original a uma série de golpes: Rat-tat-tat! Rat-tat-tat!
—Tem que ir —disse sua mãe—. Tome cuidado, Harry. Meu pobre Harry!
Harry despertou em seu apartamento. Pela inclinação dos raios do sol que entravam pela janela soube que eram as últimas horas da tarde. Tinha dormido perto de três horas, mais do que desejava. sobressaltou-se quando ouviu que seguiam os golpes na porta. Rat-tat-tat!
Quem podia ser? Brenda? Não, não a esperava. Embora era sábado, a jovem trabalhava horas extra, arrumando o cabelo das damas elegantes do Harden. Quem, pois, batia na porta?
Rat-tat-tat! Com insistência.
Harry desceu da cama com movimentos lentos e foi para a porta. Tinha o cabelo revolto e os olhos cheios de sonho. Raramente chamavam a sua porta, e gostava que assim fosse. Isto era uma intrusão, algo com o que teria que lidar rapidamente e com decisão. Subiu as calças, colocou uma camisa, ... e voltaram a chamar.
Lá fora, sir Keenan Gormley esperava; sabia que Harry Keogh estava em casa. Soube quando se aproximava pela rua, tinha-o percebido enquanto subia as escadas. Os poderes de percepção extra-sensoriales de Keogh estavam impressos no ar do lugar como uma impressão digital sobre um cristal. Porque Gormley era dotado da mesma faculdade que Shukshin e Borowitz: também ele era um «observador». Gormley sabia instintivamente quando estava em presença de um PES, e a aura PES do Keogh era a mais forte que já tinha encontrado, de modo que enquanto esperava ante a porta sentia como se estivesse perto de um grande gerador.
Harry Keogh abriu a porta.
Gormley o tinha visto antes, mas nunca de tão perto. Durante as últimas três semanas, em que se alojou em casa do Jack Harmon, ambos tinham seguido a Keogh de vez em quando; tinham vigiado atentamente ao jovem, embora com discrição. Em duas ocasiões os tinha acompanhado George Hannant, e Gormley não tinha necessitado muito tempo para convencer-se, como os outros dois, de que Keogh era realmente muito especial. Era evidente que Hannant e Harmon tinham razão: era um necroscópio. Tinha o poder de relacionar-se de maneira inteligente com os mortos. Durante as passadas três semanas, Gormley tinha pensado muito no estranho talento do Keogh, e tinha decidido que gostaria enormemente o ter sob seu controle. Agora devia encontrar a maneira de que Keogh aceitasse a ideia.
Harry Keogh, piscando para apagar de seus olhos os últimos restos de sonho, olhou de cima abaixo a seu visitante. Tinha a intenção de mostrar-se brusco com o que batia na porta, fora quem fosse, ver o que queria e acabar com aquilo o antes possível, mas um sozinho olhar foi suficiente para dar-se conta de que Gormley não partiria. O homem tinha um ar modesto e despretensioso, mas também deixava perceber uma enorme inteligência, e isto, unido a um sorriso encantador e a sua mão tendida, formavam uma combinação irresistível.
—Harry Keogh? —perguntou Gormley, sabendo, é claro , que era ele, e logo estendeu um pouco mais a mão para forçar a Harry a que a estreitasse—. Sou sir Keenan Gormley. Você não me conhece, mas eu ouvi falar de você. Em realidade, devo dizer que sei virtualmente tudo a respeito de você.
O vestíbulo estava insuficientemente iluminado e Harry não distinguia muito bem as feições de seu interlocutor. Por último estreitou brevemente a mão do homem, e afastou-se para o lado para que ele entrasse no apartamento. O contato com o Gormley, embora fugaz, disse-lhe muitas coisas. A mão de sir Keenan era firme mas flexível, seu aperto de mãos, frio mas honesto; não prometia nada, mas tampouco ameaçava. Era a mão de alguém que podia chegar a ser seu amigo. Salvo que...
—Sabe tudo sobre mim? —Harry não estava seguro de que gostasse daquela frase —. Bom, não acredito que seja muito. Não sou uma pessoa interessante.
—Não estou de acordo —disse Gormley—. Você é excessivamente modesto.
Keogh inspecionou a seu visitante à luz das janelas. Podia ter qualquer idade entre cinquenta e sessenta anos, mas provavelmente estava mais perto da segunda cifra. Seus olhos verdes eram levemente opacos e a pele de seu rosto estava coberta por pequenas rugas. Tinha uma cabeça grande, de fronte limpa, e cabelos cinzas e bem penteados. Media pouco mais de um metro setenta e cinco centímetros, e sua bem talhada jaqueta não podia dissimular de todo, uns ombros levemente cansados. Sir Keenan Gormley não estava na flor da juventude, mas Harry Keogh pensou que ainda tinha alguns anos por diante.
—Como devo me dirigir a você? —perguntou; era a primeira vez que falava com um «sir».
—Me chame Keenan, posto que vamos ser amigos.
—Está certo? Quero dizer, de que vamos ser amigos. Devo lhe advertir que não tenho muitos.
—Acredito que é algo inevitável —disse Gormley com um sorriso—. Temos muitas coisas em comum. De todas formas, ouvi dizer que você tem muitíssimos amigos.
—Pois ouviu mal —respondeu Harry, com o gesto carrancudo—. Posso contar a meus verdadeiros amigos com os dedos de uma mão.
Gormley pensou que era melhor ir diretamente ao grão. Além disso, queria ver a reação de Keogh ante algo que não esperava. Aquilo podia constituir a prova definitiva.
—Esses são os amigos que estão vivos —disse com calma, e o sorriso se apagou gradualmente de seu rosto—. Mas acredito que os outros são muito numerosos.
Foi como se lhe tivesse atingido a Harry com uma granada. O jovem se perguntou muitas vezes como se sentiria se alguém lhe falava desta maneira, e agora soube. Sentia-se doente.
Harry cambaleou, encontrou uma desvencilhada cadeira de vime e se deixou cair nela. estremeceu, pálido como um morto, tragou saliva e olhou ao Gormley com a expressão de um animal acossado.
—Não sei de que fala... —começou por fim a dizer com voz que parecia um granizo, mas Gormley lhe interrompeu.
— Claro que sabe, Harry! Sabe muito bem do que estou falando. Você é um necroscópio. E provavelmente seja o único necroscópio verdadeiro em todo mundo!
—Você está louco! —exclamou desesperado Harry—. Vem a minha casa e me acusa de... de coisas estranhas. Um necroscópio? Isso não existe! Todo mundo sabe que não se pode... que não se pode...
Sentiu-se apanhado, e não pôde acabar a frase.
—O que é o que não se pode, Harry? Falar com os mortos? Mas você o faz, verdade?
Um suor frio molhou a testa de Harry. Lutou por respirar. Estava apanhado e sabia. Apanhado como um demônio necrófago com um coração jorrando sangue nas mãos, apanhado como o violador iluminado pela lanterna de um policial, ofegante entre as pernas de sua vítima. Nunca tinha pensado que cometia um delito —jamais tinha feito mal a ninguém—, mas agora...
Gormley se adiantou, agarrou-o pelos ombros e o sacudiu.
—Basta, homem! Parece um menino que surpreenderam masturbando-se. Você não está doente, Harry. O que faz não é uma enfermidade nem um delito. Você tem um dom!
—É algo secreto —protestou fracamente Harry—. Eu... eu não lhes faço mal. Isso é algo que não faria jamais. Sem mim, eles não teriam com quem falar. Estão tão sozinhos!
Harry falava atropeladamente, convencido de que estava em apuros, e tentando escapar do assunto com seu bate-papo. Mas Gormley não queria de maneira nenhuma ganhar sua antipatia.
—Está bem, filho, está bem. Fique calmo, ninguém o acusa de nada.
—Mas é um segredo! —insistiu Harry, agora zangado—. Ou era. Mas agora, se as pessoas souberem...
—Não saberão.
—Mas sabe você!
—Meu trabalho consiste em me inteirar destas coisas. Volto a dizer-lhe filho; você não está em dificuldades, ao menos no que me diz respeito.
Gormley era tão convincente, tão tranquilo... Era um amigo, um verdadeiro amigo, ou era outra coisa? Harry não podia dominar seu pânico, a comoção de saber que alguém mais estava informado. A cabeça lhe dava voltas. Podia confiar neste homem? atreveria-se a confiar em alguém? E se Gormley pretendesse acabar com suas atividades como necroscópio? O que aconteceria então com seus planos para vingar-se do Viktor Shukshin? Nada devia impedir a vingança!
Projetou sua mente com desespero, e estabeleceu contato com um estelionatário que estava enterrado no cemitério do Kesington.
Gormley percebeu o poder que nesse instante emanava do Harry, uma energia pura que não se parecia com nada que ele tivesse experiente antes, e que lhe pôs os cabelos de ponta e acelerou de modo alarmante os batimentos do coração de seu coração. Aqui estava! Isto era o talento do necroscópio em ação. Gormley estava tão seguro disso como de sua própria existência.
Harry, sentado em sua cadeira, havia se transformado em uma massa compacta, encolhido. Antes tinha estado pálido como a neve e suando em bicas, mas agora...
Ergueu-se na cadeira e mostrou os dentes em um sorriso feroz, jogou a cabeça para trás e as gotas de suor voaram a seu redor. Desenroscou-se como uma serpente, e o pânico o abandonou em um segundo. Sua mão não tremia quando se apartou o cabelo úmido da frente. A cor voltou rapidamente para seu rosto.
—Bem, isso é tudo —disse sorrindo—. A entrevista terminou.
—Como? —Gormley estava assombrado ante a transformação.
—Disso que se tratava, não? De uma entrevista. Você veio para averiguar coisas sobre o Harry Keogh, o escritor. Alguém lhe falou do argumento do relato que estou escrevendo, embora ninguém devesse conhecê-lo, dito seja de passagem, e você me soltou isso de improviso para ver minha reação. É um relato de terror, e você ouviu dizer que eu sempre vivo na realidade as fantasias que escrevo. De modo que quando «vivo» o personagem do necroscópio —este é um neologismo que eu mesmo inventei— o faço com grande poder de convicção. Sou um bom ator, não é verdade? Bom, você teve um espetáculo grátis e eu me diverti, e agora damos a entrevista por terminada. —O sorriso se apagou bruscamente de sua cara, e em seu lugar apareceu uma expressão de amargo sarcasmo—. Já sabe onde está a porta, Keenan...
Gormley sacudiu lentamente a cabeça em um gesto de negação. Ao princípio ficou atônito, mas logo seu instinto recuperou o domínio da situação. E seu instinto lhe disse o que estava acontecendo.
—Isso esteve muito bem —disse—, mas não o bastante para me enganar. Com quem está falando, Harry? Ou, melhor dizendo, quem fala por meio de você?
Durante um instante os olhos do Harry mantiveram seu olhar desafiante, mas logo Gormley percebeu outra vez o fluir da estranha energia quando o jovem rompeu o contato com seu astuto, morto e desconhecido amigo. O rosto de Harry trocou visivelmente; desapareceu a ironia e o jovem foi outra vez o de sempre. Mas reteve algo da tranquilidade dos instantes prévios; o pânico tinha passado.
—O que quer saber? —perguntou com voz fria e inexpressiva.
—Tudo —respondeu imediatamente Gormley.
—Mas você disse que já sabia.
—Mas quero que você me conte. Sei que não pode me explicar como o faz, e certamente não quero saber por que o faz. Digamos que você descobriu que tinha uma habilidade que podia utilizar para melhorar sua vida. É compreensível. Não, eu quero os fatos. O alcance de seu talento, por exemplo, e suas limitações. Até alguns minutos ignorava que pudesse exercê-lo a distância. Quero saber de que fala, e que coisas lhes interessam . Consideram-no um intruso, ou se alegram de falar com você? Como já lhe hei dito, quero sabê-lo tudo.
—Se não falo, estarei em... em dificuldades?
—Não se trata disso! Não, ao menos no momento.
Harry sorriu com amargura.
—Vamos ser «amigos», então?
Gormley agarrou uma cadeira e se sentou frente ao jovem.
—Harry, ninguém saberá nada de você, eu prometo. Sim, vamos ser amigos, porque nos necessitamos mutuamente e porque outros necessitam a ambos. Já sei, você provavelmente pensa que não me necessita, que eu sou o que menos necessita na vida! Mas isto é só por agora. No futuro terá necessidade de mim, posso assegurar.
—E por que me necessita você? —perguntou Harry, não de tudo convencido—. Além disso, antes de que lhe conte algo, antes que sequer admita que o que você diz é certo, será melhor que me diga uma ou duas coisas.
Gormley esperava algo no estilo. Fez um gesto de assentimento, olhou Harry nos olhos, e respirou fundo.
—Muito bem. Eu o farei. Você já sabe quem sou, de modo que agora lhe direi o que faço, e no que consiste meu trabalho. E algo que é ainda mais importante, falarei-lhe da gente que trabalha comigo.
Gormley lhe falou com o Harry da Organização E britânica, e também lhe contou tudo o que sabia —que não era muito— das organizações equivalentes dos americanos, os franceses, os russos e os chineses. Contou-lhe o dos telepatas que podiam falar uns com outros de um extremo ao outro do mundo, sem telefone, só com a mente. Falou também da precognição, da habilidade de penetrar no futuro e falar de acontecimentos que ainda não aconteceram; sobre a telequinese e a psicoquinese, e dos homens que podem mover objetos sólidos com a força de sua vontade, e sem recorrer à força física. Falou-lhe da «vidência» e de um homem que conhecia, e que podia dizer o que estava acontecendo em qualquer lugar do mundo nesse preciso instante; sobre o padre que usava a imposição de mãos, e de um «médico» que tinha o supremo poder da vida em suas mãos e fazia desaparecer qualquer enfermidade. Gormley lhe deu detalhes sobre todas as pessoas dotadas de percepção extra-sensorial que tinha sob seu mando, e lhe disse que na organização havia também um lugar para Harry. E lhe falou com tanta compreensão, claridade e convicção que Harry se deu conta de que lhe dizia a verdade.
—De modo que já vê, Harry, você não é monstro. Pode que seu talento seja único, mas há outras pessoas que também têm poderes especiais. Sua avó os tinha, e os transmitiu a sua mãe. Ela, que por sua vez, os passou a você, e só Deus sabe do que serão capazes seus próprios filhos, Harry Keogh.
Depois de um longo momento, e quando tinha sido capaz de assimilar a informação recebida, Harry disse:
—Então, quer que trabalhe para você?
—Para dizê-lo em poucas palavras, sim.
—E se me negar?
—Harry, eu o encontrei. Sou um «observador»; não tenho talento extra-sensorial, mas posso ver alguém que o tem a dois quilômetros de distância. Essa é a única habilidade fora do normal que possuo. Mas há outros como eu, sei com segurança. E um deles é o diretor da organização russa. Eu vim a vê-lo e pus minhas cartas sobre a mesa. Falei-lhe de coisas sobre as quais prefiro guardar silêncio; tenho-o feito porque quero que confie em mim, e porque penso que posso confiar em você. De mim, não tem nada que temer, Harry, mas não posso dizer o mesmo dos do outro lado.
—Quer dizer... que talvez eles também me encontrem?
—Essa gente progride dia a dia, Harry, igual a nós. Têm ao menos um agente na Inglaterra. Não o conheço, mas o tenho sentido perto de mim. Sei que me olhava, vigiava-me. É provável que seja também um «observador». O que quero lhe dizer é o seguinte: eu o encontrei, de modo que eles também podem fazê-lo. E a diferença é que com eles não poderá escolher.
—E com você posso fazê-lo?
—claro que sim. Uma-se a nós, ou não se una. A decisão a deve tomar você, Harry. Pense por algum tempo. Mas que não seja muito tempo. Como lhe disse, necessitamos de você. Quanto antes melhor.
Harry pensou em Viktor Shukshin. Ele não podia sabê-lo, mas Shukshin era o homem que Gormley havia «sentido» que o vigiava.
—Antes de tomar uma decisão tenho que fazer algumas coisas —disse Harry.
—Claro. Compreendo-o.
—Pode ser que leve algum tempo, uns cinco meses, possivelmente...
—Se não houver mais remédio... —assentiu Gormley.
—Não, não há. —Harry sorriu pela primeira vez sincera, timidamente—. Preciso tomar algo! Quer um café?
—Sim, muito obrigado. —Gormley lhe devolveu o sorriso—. E enquanto o bebemos, por que não me fala de você mesmo?
Harry sentiu como se lhe tirassem um grande peso de cima.
—Sim —assentiu—. Acredito que o farei.

Harry Keogh terminou sua novela quinze dias depois e começou a «preparar-se» para o Viktor Shukshin. Uma antecipação sobre o livro lhe proporcionou o dinheiro necessário para viver os próximos cinco ou seis meses, até que levasse a cabo seu encargo.
O primeiro passo foi ingressar em um grupo de fanáticos da natação, que se banhavam no mar do Norte um mínimo de duas vezes por semana durante todo o ano, incluindo os dias de Natal e Ano Novo. Eram conhecidos porque em ocasiões rompiam o gelo na foz do Harden e mergulhavam, em um espetáculo a favor da Fundação Britânica contra as Enfermidades do Coração. Brenda, que era uma jovem muito sensata, exceto no que concernia ao Harry, pensou que estava louco.
—Está muito bem no verão, Harry —lhe havia dito uma noite, quando estavam deitados e nus no apartamento do jovem—, mas o que fará quando começar a fazer frio? Não posso imaginar rompendo o gelo para nadar. E a que vem esta repentina loucura pela natação?
—É simplesmente uma maneira de me manter em forma —lhe havia dito ele enquanto a beijava nos peitos—. Não quer que esteja forte e são?
—Às vezes, acredito que estas muito são —respondeu Brenda, enquanto a ereção dele se fazia mais pronunciada sob suas carícias.
De fato, Brenda era então mais feliz que nos três anos anteriores. Harry se mostrava muito mais aberto, menos melancólico, mais ativo e divertido. Seu repentino interesse pelos esportes não se limitava só à natação. Também ia a classes de defesa pessoal e praticava judô em um pequeno clube do Hardepool. Depois de uma semana, o treinador havia dito que tinha um talento «natural» para este esporte, e que esperava vê-lo chegar muito longe. O homem não sabia, claro está, que Harry tinha outro treinador, um antigo campeão de judô do exército, que agora tinha transferido todas suas habilidades a Harry.
Quanto à natação, Harry se tinha considerado sempre um bom nadador, mas a princípio todos outros do grupo o ultrapassavam. Isto foi assim até que o jovem conseguiu um nadador olímpico que tinha morrido em um acidente de carro em 1960, feito que constava na lápide do cemitério do St. Mary, no Stockton. Harry foi recebido com entusiasmo pelo falecido esportista —embora seu plano foi aceito com reservas—, e o novo amigo do jovem se uniu com grande interesse à diversão e aos jogos.
Mas inclusive com esta ajuda, teria que superar o aspecto físico do assunto. A mente do nadador profissional podia resolver os problemas técnicos de Harry, mas não podia fazer nada com respeito a sua escassa musculatura; só a prática lhe permitiria solucionar este problema. Apesar de tudo isto, entretanto, Harry progredia rapidamente.
Em setembro se dedicou por inteiro a nadar por debaixo da superfície da água; controlava constantemente quanto tempo podia nadar sem sair a respirar. A primeira vez que fez dois minutos completos sem sair para respirar foi um dia muito especial para Harry; na piscina todos tinham deixado de nadar para observá-lo. Isto aconteceu na piscina pública do Seaton Carew, e quando terminou, um dos monitores se aproximou de lhe perguntar qual era seu segredo. Harry deu de ombros e respondeu:
—É uma questão mental. Força de vontade, acredito.
Isto era verdade, mas Harry não disse que, embora a vontade fosse dele, a mente não o era por inteiro...
Quando terminou outubro, Harry diminuiu a frequência e a intensidade de seu treinamento de judô. Seus progressos tinham sido muito rápidos, e os professores do clube estavam um pouco receosos. Contudo, sabia que agora podia defender-se sozinho perfeitamente, inclusive sem a ajuda do sargento Graham Lane. Nessa mesma época começou a patinar sobre gelo, a última disciplina que lhe faltava dominar.
Brenda, que era boa patinadora, estava atônita. Tinha tentado muitas vezes convencer Harry para que a acompanhasse à pista de patinação de Durham, mas ele se negara. Isso não era estranho; a moça conhecia em parte como tinha morrido sua mãe. Brenda, entretanto, pensava que ele devia enfrentar seus temores. Ela não sabia que o temor não era somente de Harry, mas também de sua mãe. Ao final, não obstante, Mary Keogh acabou por se conformar e inclusive ajudou a seu filho.
A princípio estava aterrorizada —o gelo, a memória, o horror de sua morte, sempre presente—, mas ao pouco momento já desfrutava patinando tanto como quando estava viva. Desfrutava por intermédio do Harry, e ele, a sua vez, beneficiava-se de sua mestria neste esporte. Muito em breve pôde dançar e executar complicadas piruetas com Brenda, ao longo da pista, com grande assombro por parte da moça.
—Há algo de que estou segura, Harry Keogh —disse Brenda, ofegante, enquanto dançavam pela pista gelada e seu fôlego subia como nuvenzinhas no ar frio—. Contigo ninguém nunca se aborrece. Então, depois de tudo é um atleta!
E nesse instante Harry se deu conta de que realmente poderia sê-lo, se não fosse porque devia ocupar-se de coisas mais importantes.
E logo, na primeira semana de novembro, quando começava o inverno, sua mãe tinha deixado cair uma bomba...
Harry se sentia melhor que nunca, capaz de enfrentar-se com o mundo inteiro, quando uma noite ela o visitou em sonhos. Quando estava acordado e desejava falar com sua mãe, Harry sempre podia comunicar-se com ela. Mas quando dormia, era diferente. Ela tinha então acesso direto. Habitualmente, respeitava a intimidade de seu filho, mas nesta ocasião devia falar com ele imediatamente. O que tinha que lhe dizer não podia esperar.
—Harry? —disse ela metendo-se no sonho do jovem, e ele a viu em meio de um nebuloso cemitério de lápides altas como casas—. Podemos falar? Não te incomoda?
—Não, mamãe, claro que não —respondeu ele—. O que acontece?
Ela o agarrou do braço, e com a segurança de que estava comunicando-se com ele, expressou em uma verdadeira corrente de palavras toda sua ansiedade e seu medo.
—Harry, falei com os outros. Eles me disseram que você corre um terrível perigo. Há perigo no Shukshin, e se o destruir, há perigo inclusive além dele. Harry, Harry, estou terrivelmente inquieta por ti!
—Perigo em meu padrasto? —Harry abraçou a sua mãe, em um esforço por tranquilizar quão claro o há, isso o soubemos sempre. Mas além dele? E com o que «outros» estiveste falando, mamãe? Não te entendo.
Ela se separou dele, e começou a zangar-se.
—Sim que me entende! —acusou-o—. E se não me entender, é porque não quer. De quem crê que vem seu talento, Harry, se não ser de mim? Eu falava com os mortos muito antes de que você nascesse! Claro está que não o fazia tão bem como você, mas falava. Tudo o que conseguia eram impressões confusas, ecos, lembranças que ainda não se desvaneceram, enquanto que você te comunica realmente com eles, aprende deles, convida-os a entrar em ti. Mas agora as coisas são diferentes. Tive quinze anos para praticar minha arte, Harry, e o faço muito melhor que quando estava viva. Era absolutamente necessário que praticasse Harry, por seu próprio bem. Se não como podia te cuidar?
O voltou a abraçá-la, e a olhou aos olhos.
—Não te zangue comigo, mamãe, não é necessário. Mas me diga com os quais falaste.
—Com gente como eu, pessoas que quando viviam eram médiuns. Alguns estão mortos há pouco tempo na escala do tempo, como eu, mas outros jazem enterrados há muitos, muitíssimos anos. Antigamente eram chamados bruxas e feiticeiros... e às vezes coisas piores. Muitos morreram por essa razão. E foi com eles que falei...
Até estando dormido, Harry achou aquilo arrepiante: mortos que falavam com outros mortos, comunicando-se de tumba a tumba, julgando os acontecimentos do mundo dos vivos, que tinham abandonado para sempre. estremeceu-se, e confiou em que sua mãe não o tivesse advertido.
—E o que lhe hão dito?
—Conhecem-lhe, Harry, ou ao menos ouviram falar de ti. Você é o que oferece sua amizade aos mortos. Graças a ti, os mortos têm um futuro. Graças a ti, alguns de nós temos a oportunidade de terminar o que deixamos incompleto quando vivíamos. Consideram-lhe um herói, Harry, e eles também se preocupam contigo. Sem ti, não têm nenhuma esperança. Eles... eles lhe imploram que renuncie a sua obsessão, à vingança.
A expressão do Harry se fez mais dura.
—Não posso, mamãe. Shukshin te matou, para ter o que tem agora.
—Harry, não estou tão mal aqui. Não estou sozinha, sabe?
—Não conseguirá me convencer, mamãe. Só o diz por minha própria segurança, e só o que consegue é que te queira e sinta sua falta terrivelmente. A vida é um dom, e Shukshin lhe roubou isso. Sei que não é bom o que estou fazendo, mas tampouco é injusto. E depois, tudo será diferente. Tenho planos. Herdei meu talento de ti, e quando isto terminar o usarei para o bem. Prometo-lhe isso.
—Mas antes te vingará do Viktor?
—Devo fazê-lo.
—É sua última palavra?
—Sim.
Ela se desprendeu de seus braços, com um gesto de tristeza, e se afastou uns passos.
—Disse-lhes que essa seria sua resposta. Está bem, Harry, não discutirei mais contigo. Agora irei, e deixarei que faça o que tem que fazer. Mas há algo que deve saber: terá duas advertências, e não serão agradáveis. Uma provém dos outros, e a achará neste sonho. A outra te espera no mundo dos vivos. Duas advertências, Harry, e se não atender a elas, será sob sua própria responsabilidade.
A mãe do Harry começou a afastar-se entre as altas tumbas. A névoa que flutuava muito desce no chão lhe cobria os tornozelos. Ele tentou segui-la mas não pôde; a matéria invisível de que parecem os sonhos se interpôs entre ambos. Os pés do jovem pareciam soldados as pedrinhas que cobriam os caminhos do cemitério.
—Advertências? Que tipo de advertências?
—Segue aquele caminho —assinalou ela—, e encontrará a primeira. A outra virá de alguém em quem deverias confiar. Ambas são augúrios de seu futuro.
—O futuro é incerto, mãe —disse Harry ao fantasma envolto em névoa que se afastava—. Ninguém pode vê-lo com claridade! Ninguém o conhece com segurança!
—Chamam-no então seu futuro provável —respondeu ela—. O teu, e também o de outras duas pessoas. De alguém que amas, e de alguém que solicitou sua ajuda.
Harry não estava seguro de ter ouvido bem.
—O que diz? —gritou o mais forte que pôde—. Te Explique, mamãe!
Mas a voz de sua mãe, sua figura e sua mente já se fundiram com o brumoso redemoinho do sonho, e ela partiu.
Harry olhou para onde tinha apontado sua mãe.
As lápides partiam como peças de um dominó gigante. Eram sinistras, aterradoras, e também o era o caminho que tinha apontado a mãe de Harry. Quanto às «advertências», talvez fosse melhor que as ignorasse. Possivelmente não devia seguir esse atalho. Mas não era necessário que caminhasse; seu sonho o levava por ele.
Harry deslizou sem opor resistência pelo caminho de cascalho, entre fileiras de tumbas imponentes, levado por uma força onírica que não podia rechaçar.
Três lápides mais, mas estas eram mais sinistras que todas as outras juntas. Harry deslizou pelo espaço vazio até elas, e quando se aproximou do lugar onde se elevavam altas como torres, a força onírica o depositou no chão e lhe devolveu a vontade. Harry olhou as lápides, e a névoa que as velava se desvaneceu lentamente. E o jovem leu a advertência que os «outros» de que lhe falasse sua mãe lhe tinham deixado gravada na pedra.
A primeira lápide dizia:

Brenda COWELL
NASCEU EM 1958
MORRERÁ MUITO EM BREVE AO DAR A LUZ AMOU E FOI AMADA COM ARDOR

Na segunda se lia:

SIR KEENAN GORMLEY
NASCEU EM 1915
SOFRERÁ LOGO UMA MORTE DOLOROSA ESTEVE SEMPRE AO SERVIÇO DE SUA PÁTRIA

E na terceira, dizia:

HARRY KEOGH
NASCEU EM 1957 OS MORTOS O CHORARÃO

Harry abriu a boca e gritou seu rechaço: «Não!» Retrocedeu afastando-se das ominosas lápides, tropeçou, abriu os braços para amortecer o golpe da queda ... golpeou com a mão a mesinha de cabeceira. Durante um instante permaneceu imóvel, acordado, o coração lhe pulsava rapidamente e logo se sobressaltou pela segunda vez quando soou o telefone.
Era Keenan Gormley. Harry se deixou cair em uma cadeira, sem soltar o fone.
—Ah, é você! —disse.
—Esperava uma chamada de outra pessoa, Harry? —perguntou seu interlocutor, com tom muito sério.
—Não, mas estava dormindo. E o ruído do telefone me sobressaltou.
—Sinto muito, mas o tempo passa muito rápido ...
—Sim —respondeu impulsivamente Harry.
—Como? Há dito que sim? —surpreendeu-se Gormley.
—Quero dizer que sim, que aceito trabalhar em sua organização. Irei ver o e falaremos do assunto.
Harry levava já algum tempo pensando sobre a proposição do Gormley, tal como lhe tinha prometido, mas em realidade tinha sido o sonho —que era mais que um sonho— o que o fez decidir-se. Sua mãe lhe havia dito que havia alguém em quem devia confiar, alguém que tinha solicitado sua ajuda. Quem podia ser a não ser Gormley? Até este momento, tinha estado muito indeciso com respeito à possibilidade de formar parte do grupo de pessoas com poderes extra-sensoriais que dirigia Gormley. Mas, se havia alguma maneira de trocar o que Mary Keogh tinha chamado seu «provável» futuro, o seu, o da Brenda e o do Gormley, então...
—Isso é maravilhoso, Harry! —A emoção do Gormley era evidente—. Quando virá? Tenho que lhe mostrar tantas coisas... e há tanto que fazer! Além disso, há uma quantidade de pessoas que deve conhecer.
—Ainda não posso —Harry tentou pôr os freios—. Mas irei logo, assim que possa.
—E quando poderá? —Gormley parecia decepcionado.
—Logo —repetiu Harry—. Quando tiver terminado o que tenho que fazer.
—Muito bem —disse Gormley, um tanto abatido—, então teremos que esperá-lo. Mas... por favor, Harry, não se atrase muito.
—Não, prometo-lhe que não o farei.
Nada mais além de pendurar o fone, o telefone soou de novo. Harry o agarrou.
—Harry? —perguntou Brenda com voz tímida.
—Brenda? Escuta, carinho —disse Harry antes de que ela falasse—. Acredito... quero dizer, eu gostaria... estou tratando de te pedir que... Que diabos!, por que não nos casamos?
—OH, Harry! —suspirou ela, e ele advertiu que era um suspiro de alívio—. Me alegro tanto de que o dissesse antes... antes de que...!
—Nos casemos em seguida —a interrompeu ele, e fez um esforço para falar com calma, porque em sua mente estavam gravadas as palavras que tinha lido sobre a lápide da Brenda no transcurso do sonho.
—Precisamente por isso te chamava —disse a jovem—. E me alegro de que me tenha pedido isso, Harry. Porque me parece que não tem outra saída...
E Harry não se surpreendeu ante suas palavras.

Capítulo doze

Era meados de dezembro de 1976. Depois de um dos verões mais longos e quentes de que se tinha memória, a natureza estava tentando igualar o marcador, e o inverno prometia ser muito severo.
Boris Dragosani e Max Batu foram a Inglaterra de um lugar muito mais frio, mas o clima, para eles, não era um fator a ter em conta em seus planos. Por acaso, assentava-lhes bem: fazia jogo com a frieza de seus corações, com as geladas características de sua missão. Que não era nada mais nem nada menos que um assassinato.
Dragosani tinha tido maus pensamentos durante todo o voo, que os rígidos assentos do Aeroflat não faziam muito cômodo. Algumas das ideias que cruzaram pela mente de Dragosani estavam cheias de ira, outras de medo ou ao menos de temor, mas todas eram igualmente doentias, insalubres. Os pensamentos sombrios concerniam a Gregor Borowitz, em primeiro lugar por havê-lo enviado nesta missão; e o medo aparecia em sua mente quando recordava a Thibor Ferenczy, a criatura enterrada.
Dragosani, adormecido pelo envolvente ruído dos motores e o contínuo zumbido dos aparelhos de ar condicionado, reclinou-se em seu assento e repassou em sua mente os detalhes de sua última visita às colinas cruciformes...
Pensou na história de Thibor: na natureza simbiótica do verdadeiro vampiro, e recordou sua própria agonia, a fuga cheia de dor antes que um piedoso esquecimento baixasse sobre ele quando descia pela ladeira. Ali, precisamente tinha despertado ao recuperar o conhecimento ao amanhecer; jogado sob as árvores, dentro do corta fogo. E uma vez mais tinha abreviado a visita a sua terra natal e tinha retornado diretamente a Moscou, onde se tinha posto em mãos do melhor médico que pôde achar. Tinha sido uma completa perda de tempo, pois sua saúde, ao parecer, era excelente.
As radiografias não revelaram nada inquietante; as análise de sangue e de urina eram cem por cento normais; a pressão sanguínea, o pulso e a respiração eram perfeitos. Tinha sofrido alguma vez de enxaquecas ou de asma? Não. Então provavelmente tinha sido a altura. Tinha tido alguma moléstia nos seios frontais? Não. Possivelmente tinha estado trabalhando excessivamente? Não, absolutamente. Tinha alguma ideia sobre qual podia ser a causa do problema? Não, não lhe ocorria nada.
Sim, mas não podia suportar pensar nisso, e não podia falar do assunto sob nenhuma circunstância.
O médico lhe tinha receitado um analgésico, se por acaso os dores voltassem a aparecer, e isso tinha sido tudo. Dragosani deveria haver-se dado por satisfeito, mas não o estava. Nem muito menos...
Tinha tentado comunicar-se com o Thibor a distância. Talvez o velho demônio conhecesse a resposta; inclusive uma de suas mentiras poderia lhe dar uma pista, mas não obteve nada. Se Thibor o ouvia, tinha decidido não responder.
Dragosani esquadrinhou por enésima vez os acontecimentos anteriores a terrível dor, sua fuga, o desvanecimento. Algo tinha caído de acima sobre seu pescoço. Chuva? Não, a noite tinha sido muito seca. Uma folha, acaso um pedacinho de casca? Não, porque havia sentido algo úmido. O excremento de um pássaro, então? Não, porque quando passou a mão pelo pescoço a retirou seca.
Algo tinha caído sobre a parte superior de sua coluna vertebral, e uns instantes mais tarde havia sentido que lhe retorciam e espremiam a coluna e o cérebro. Um pouco desconhecido, mas... o que? Dragosani suspeitava que sabia, mas não ousava pensar nisso. Claro está que tinha invadido seus sonhos, e lhe tinha proporcionado largas noites de pesadelos, sonhos que se repetiam e que logo, durante o dia, não podia recordar, embora sabia que tinham sido terríveis.
O assunto se converteu em uma obsessão, e em algumas ocasiões não podia pensar em outra coisa. Sua obsessão não só se referia ao que tinha acontecido, mas também ao que o vampiro lhe estava dizendo quando aconteceu. E também a certas mudanças que tinha notado em si mesmo desde que ocorreu aquilo.
Mudanças fisiológicas inexplicáveis. E se havia uma explicação, Dragosani ainda não estava preparado para aceitá-la.
—Dragosani, meu filho —lhe havia dito Borowitz fazia menos de uma semana—, está envelhecendo antes de tempo. É que o faço trabalhar muito, ou talvez muito pouco? Sim, é provável que seja o segundo: não o mantenho o bastante ocupado. Quando ensanguentou por última vez seus delicados dedos? Faz um mês, verdade? Sim, com esse agente duplo francês. Mas olhe-se, homem! Está ficando calvo, e suas gengivas estão ficando como as de um velho! E essa palidez, e essas faces descarnadas. Parece anêmico... Pode ser que a excursão a Inglaterra lhe faça bem...
Borowitz tentava irritá-lo para que se revoltasse. Dragosani sabia, mas nesta ocasião não se atreveu a morder a isca. Só conseguiria chamar mais a atenção, e isso era o que menos desejava. Além disso, Borowitz estava no certo do que ele mesmo supunha.
Dava a impressão de que as entradas de seu cabelo se faziam mais amplas, mas não era assim. Dragosani tinha uma pequena mancha de nascimento no couro cabeludo, perto do início do cabelo, e que lhe servia para comprovar que não se estava ficando calvo. A posição da mancha com respeito à linha de nascimento do cabelo não tinha mudado em dez anos; por conseguinte, seu cabelo não estava caindo. A mudança se produziu no crânio, que parecia haver-se alargado para trás. E o mesmo acontecia com suas gengivas; não era que tivessem encolhido, como tinha sugerido Borowitz, mas sim seus dentes tinham crescido. Sobre tudo os incisivos, tanto da mandíbula superior como da inferior.
Quanto à anemia, isso era ridículo. Estava pálido, mas não débil; de fato, sentia-se mais forte, mais cheio de vitalidade que nunca. Ao menos fisicamente. Sua palidez era provável que fora consequência de sua crescente fotofobia, porque na atualidade não suportava a luz diurna, e inclusive ao entardecer saía com óculos escuros.
Fisicamente estava bem, sim, salvo por seus sonhos, seus medos inomináveis, suas obsessões..., por sua neurose, em soma.
Estava neurótico, isso era tudo!
A Dragosani desgostou reconhecê-lo, embora só fora ante si mesmo.
De uma coisa estava certo: qualquer que fosse o resultado de sua missão na Grã-Bretanha, quando terminasse retornaria a Romênia. Ali havia coisas que tinha que resolver. Thibor Ferenczy provavelmente tinha uma resposta.
Junto a Dragosani, ocupando dois assentos e com o apoio de braços intermediário levantado para que coubesse todo seu volume, Max Batu riu.
—Camarada Dragosani —sussurrou o gordinho mongol—. Se supõe que eu sou o que faz mau-olhado. Ou possivelmente esqueceu quais são nossos papéis?
—Por que diz isso? —perguntou Dragosani, que tinha dado um pulo no assento quando Batu começou a falar.
—Ignoro o que pensava, meu amigo, mas estou seguro de que não augura nada bom para alguém —explicou Batu—. Sua expressão era feroz!
—Sim —respondeu Dragosani, tranquilizando-se um pouco—. Bom, Max, meus pensamentos são particulares, e não lhe interessam absolutamente.
—Camarada, você é um tipo frio —disse Batu—. Os dois o somos, acredito, mas inclusive me faz estremecer. Seu frio me penetra enquanto estou sentado aqui. —O sorriso se desvaneceu lentamente de seu rosto—. O ofendi?
—Incomoda-me seu bate-papo —grunhiu Dragosani.
— Talvez seja aborrecido —respondeu o outro com um encolhimento de ombros—, mas devemos conversar. Supõe -se que você me informará, atará todos os cabos que deixou soltos Gregor Borowitz. Seria uma boa ideia que o fizesse agora. Aqui não nos ouvirá ninguém, nem sequer a KGB foi capaz de instalar microfones no Aeroflat. Dentro de uma hora chegaremos a Londres, e manter uma conversação como a nossa na embaixada pode ser difícil.
—Tem razão —reconheceu a contra gosto Dragosani—. Muito bem, deixe que lhe mostre todas as peças juntas, assim terá uma visão da totalidade.
»A Borowitz lhe ocorreu a ideia da Organização E faz vinte e cinco anos. Naquela época um grupo de cientistas "marginais" começou a interessar-se na parapsicologia, algo por então muito mal visto na URSS. Borowitz, apesar de sua formação militar e de suas aspirações mundanas, esteve sempre interessado na percepção extra-sensorial. As pessoas que possuíam talentos estranhos o atraíram sempre; de fato, ele mesmo era um "observador" , mas não se deu conta. Quando por fim percebeu que possuía este dom peculiar, apresentou sua candidatura para a direção de nossa escola de espionagem PES. Em seus começos não era mais que uma escola, sem aplicações práticas sobre o terreno. A KGB não estava interessada; a percepção extra-sensorial era algo muito esotérico para eles.
»De todas as formas, como seu período de serviço ativo no exército chegava ao fim, e tinha muito boas tomadas —e não falemos de seu nada desprezível talento—, Borowitz conseguiu o posto.
»Poucos anos mais tarde, e em circunstâncias muito peculiares, Borowitz encontrou outro observador. Aconteceu desta maneira: uma jovem telepata, uma das poucas mulheres da equipe do general, cujo talento começava a florescer, foi brutalmente assassinada. Acusaram de cometer o crime a seu noivo, um tal Viktor Shukshin. A defesa argumentou que Shukshin acreditava que a garota estava possuída pelo demônio. O podia percebê-lo nela. A Borowitz, claro está, isto lhe pareceu muito interessante. Realizou diversas provas com o Shukshin, e descobriu que era um observador. Mais que isso, o aura das pessoas dotadas de percepção extra-sensorial perturbava Shukshin, o fazia perder o controle de seus atos e o empurrava a cometer atos homicidas, geralmente dirigidos contra a pessoa dotada destes poderes. Por uma parte, Shukshin se sentia atraído pelos PES, mas por outra, via-se impelido a destruí-los.
»Borowitz salvou Shukshin das minas de sal, da mesma maneira que salvou a você, Max, e tomou sob seu amparo. O general pensou que poderia curar Shukshin de suas tendências homicidas mas preservando seu talento de observador. No caso do Shukshin, entretanto, as lavagens cerebrais não funcionaram. E inclusive pareceram agravar o problema. Mas Gregor Borowitz odeia o esbanjamento e procurou uma maneira de utilizar as tendências homicidas do Shukshin.
»Naquela época os americanos estavam muito interessados na percepção extra-sensorial como arma; muito recentemente tornaram a utilizá-la, embora em muito menor grau que nós. Na Inglaterra, entretanto, já existia um rudimentar grupo PES, e os britânicos estavam muito mais dispostos a estudar seriamente e utilizar os fenômenos paranormais. De modo que Shukshiu passou uma larga temporada na escola de espiões de Moscou e por último o enviaram a Grã-Bretanha. Ia como desertor, uma cobertura perfeita.
—Enviaram-no para matar aos ingleses dotados de percepção extra-sensorial?
—Essa era a ideia. Tinha que encontrá-los, comunicar suas atividades, e quando a tensão psíquica fora muito grande e já não pudesse suportá-la, matá-los. Mas depois de passar uns meses na Inglaterra, Viktor Shukshin desertou de verdade.
— Juntou-se com com os britânicos?
—Não. A Inglaterra em geral, a seu sistema político, à segurança que lhe oferecia. A Shukshin, sua pátria não lhe importava tanto, e agora tinha um novo país, e uma identidade pouco menos que nova também. Não ia cometer duas vezes o mesmo engano. Na Rússia tinha estado a ponto de ser condenado a prisão perpétua por assassinato. Deveria fazer o mesmo na Inglaterra? Aqui podia levar uma vida decente, começar de novo. Conhecia a perfeição a língua russa, a inglesa e a alemã, e falava bastante bem uma meia dúzia mais de idiomas. Não, não se juntou com ninguém, simplesmente desertou da URSS, escolheu a liberdade.
—Você fala como se aprovasse o sistema capitalista dos ingleses —sorriu o mongol.
—Não se preocupe com minha lealdade, Max —disse com voz áspera Dragosani—. Não encontrará um homem mais leal que eu. A Romênia! A Valáquia!
—É bom sabê-lo —disse o mongol—. Eu gostaria de poder afirmar o mesmo, mas sou mongol, e minhas lealdades são outras. Em realidade, só sou leal a Max Batu.
—Nesse caso, parece-se bastante ao Shukshin. Eu imagino que ele pensava o mesmo. De todas formas, com o passar do tempo, seus informe ficaram mais e mais escassos, e finalmente desapareceu da vista. Foi uma situação difícil para o Borowitz, mas não podia fazer nada para remediá-la. Posto que Shukshin era um desertor, lhe tinham concedido asilo político, e Borowitz não podia solicitar que o devolvessem a Rússia. Tudo o que podia fazer era vigiá-lo, e saber o que fazia.
—Temia que se unisse aos agentes PES britânicos?
—Não, na verdade, não. Shukshin era um psicótico, recorda? De todos os modos, Borowitz não pensava deixar nada ao azar, e por fim acabou por dar com ele. O projeto do Shukshin era muito simples: conseguiu um trabalho em Edimburgo, comprou uma pequena casinha de pescadores em um lugar chamado Dunbar, e solicitou a cidadania britânica. Via muito pouca gente e levava uma vida normal. Ou ao menos, é o que tentou.
—Não o conseguiu?
—Só por um tempo. Mas logo se casou com uma jovem descendente de russos. Era uma médium, autêntica, não uma impostora e, como é natural, seu talento foi para o Shukshin como um ímã. Possivelmente tentou resistir mas não conseguiu. Casou -se com ela, e a matou. Ao menos isso é o que pensa Gregor Borowitz. E depois disso... nada.
—E seu crime ficou impune?
—O veredicto foi morte por acidente. Morreu afogada. Borowitz sabe mais do assunto que eu. Mas os detalhes não importam. Shukshin herdou a fortuna de sua esposa, e sua casa. Ainda vive ali...
—E nós vamos matá-lo —disse Batu—. Me pode me dizer por que?
—Se tivesse continuado com sua vida tranquila, e nos tivesse deixado em paz, não teria tido problemas. No momento, ao menos, porque suponho que Borowitz ao final lhe teria dado seu castigo. Mas a sorte do Shukshin mudou, Max. Está em uma má situação econômica. E isso causou a perdição de muitos antes dele. E agora, depois de tanto tempo, decidiu chantagear-nos. E é uma ameaça para Borowitz, para toda a Organização E.
—Pode um indivíduo constituir uma ameaça para uma poderosa organização? —perguntou Batu, nada convencido.
—O equivalente britânico de nossa organização é uma força muito eficaz. Não sabemos o quanto, mas pode ser inclusive, que sejam melhores que nós. Sabemos muito pouco deles, o que já é um mau sinal. Poderia significar que são o bastante ardilosos para ter uma cobertura total, uma segurança de cento por cento. E se forem tão preparados...
—A incógnita é quanto sabem de nós, verdade?
—Com efeito. —Dragosani olhou com mais respeito— a seu companheiro. Pode ser que saibam inclusive que viajamos neste avião, e é possível inclusive que conheçam o objetivo de nossa missão. Não o permita Deus!
Batu sorriu com sua cara de lua cheia.
—Eu não acredito em nenhum deus —disse—. Só acredito no demônio. Então, o camarada general pensa que Shukshin, se não o fazemos calar antes, falará com os britânicos?
—Sim. Ameaçou fazê-lo. Quer dinheiro, ou lhe dirá à Organização E britânica tudo o que sabe de nós. Claro que, depois de tanto tempo passado fora da Rússia, não é muito, mas Gregor Borowitz pensa que até uma migalha de informação sobre nós já é muito.
Max Batu ficou pensativo uns instantes.
—Mas se Shukshin falar, estará denunciando-se a si mesmo. Terá que admitir que veio a Inglaterra como agente da URSS, não é verdade?
Dragosani fez um gesto negativo com a cabeça.
—Não, não tem por que delatar-se. Pode escrever uma carta anônima, Max. Ou chamar por telefone sem dizer quem é. E embora tenha passado vinte anos, Shukshin sabe coisas que Borowitz deseja que permaneçam em segredo. Há dois dados que podem ter um valor enorme para os agentes PES britânicos: o primeiro, a situação do château Bronnitsy; o segundo, que o camarada general Gregor Borowitz é o diretor da organização russa de espionagem PES. Essa é a ameaça do Shukshin, e por essa razão deve morrer.
—Contudo, sua morte não é nosso principal objetivo.
Dragosani ficou um instante em silêncio, e logo disse:
—Não, nosso objetivo principal é a morte de outra pessoa, de alguém muito mais importante. Trata -se de sir Keenan Gormley, o diretor da organização britânica de espionagem PES. Sua morte... e todos seus conhecimentos, esses são nossos objetivos principais. Borowitz quer que ambos morram, e que eu me inteire de todos os seus segredos. Você matará ao Gormley mediante seu especial poder, e eu o examinarei utilizando o meu. Mas antes, teremos matado ao Viktor Shukshin, a quem eu também examinarei. Na verdade, Shukshin não nos trará nenhum problema: vive em um lugar isolado e solitário, e ali realizaremos nosso trabalho.
—E você pode realmente apoderar-se de todos seus segredos? Quero dizer, depois de mortos? —Batu parecia ter certas dúvidas.
—Sim, de verdade posso fazê-lo, e com mais certeza que um torturador a quem os dessem vivos. Eu roubo seus segredos mais íntimos; extraio-os de seu sangue, de sua medula, de seus ossos solitários e gelados.
Uma aeromoça gordinha apareceu ao final do corredor central. «Por favor, coloquem seus cintos», entoou como um robô, e os passageiros, com gestos igualmente robóticos, obedeceram-na.
—E quais são suas limitações? —perguntou Batu—. O pergunto por curiosidade doentia, nada mais.
—Limitações? O que quer dizer?
—O que acontece se um homem está morto há uma semana, por exemplo?
—Não importa —respondeu Dragosani encolhendo-se de ombros.
—E se estiver morto há um século?
—E for uma múmia ressecada? Borowitz também se perguntou o mesmo, e fizemos a experiência. Para mim foi igual. Os mortos não podem ter segredos com um necromante.
—Sim, mas se se trata de um cadáver em estado de putrefação —insistiu Batu—, alguém que leva um mês ou dois morto, deve ser algo horrível...
—É-o, mas já estou habituado. Não me preocupa que me dê asco, a não ser a contaminação. Como você sabe, os mortos são portadores de todo tipo de enfermidades. Tenho que ser muito cuidadoso. Não é um trabalho saudável.
Batu fez um gesto de repulsão, e Dragosani percebeu que estremeceu levemente.
As luzes de Londres brilhavam no escuro horizonte noturno. A cidade era um resplendor brumoso além dos pequenos guichês circulares.
—E você? —perguntou Dragosani—. Seu talento tem limitações, Max?
O mongol se encolheu de ombros.
—O que eu faço também tem seus riscos. Necessita -se muita energia; deixa-me sem forças, debilita-me. E, como você sabe, só é efetivo com os doentes ou os fracos. Supõe -se que meu poder também tem outros inconvenientes, mas talvez não seja mais que uma lenda. Claro está que eu não tratarei de averiguar se for verdade ou mentira.
—Como é isso?
—Em meu país se conta uma história muito antiga, de faz mais de mil anos. Havia um homem que podia jogar mau-olhado; era um malvado e usava seu dom para aterrorizar a todo o país. Ia com seus bandidos aos povoados, saqueava e violava, e logo escapava sem sofrer dano algum, pois ninguém se atrevia a fazer nada contra ele. Mas em uma aldeia vivia um ancião que disse que sabia como enfrentar-se a este homem. Quando o bando de ladrões ia aproximando-se do povo, os aldeãos agarraram os cadáveres de seus parentes, puseram-nos de pé nas muralhas e os armaram com lanças. Chegaram os bandidos, e seu chefe viu, na penumbra, que a aldeia estava guardada. Pôs mau-olhado aos guardiães das muralhas, mas os mortos não podem voltar a morrer. O feitiço ricocheteou e golpeou ao que o tinha produzido. O homem se encolheu até ficar do tamanho de um leitão assado!
Ao Dragosani gostou do conto.
—E a moral? —perguntou.
—Não é evidente? Nunca se deve amaldiçoar aos mortos, porque eles não têm nada que perder. Em uma discussão, ao final eles sempre ganham...
Dragosani pensou no Thibor Ferenczy.
»E o que acontece com os não-mortos? —perguntou-se—. Eles também ganham? Se é assim, já é hora de que alguém troque as regras do jogo...»
Esperava-os um homem da embaixada, que os fez passar pela alfândega, e a bagagem dos viajantes foi levado como por arte de magia a um Mercedes negro com placa diplomática. Além do acompanhante de olhar glacial, havia também um chofer, silencioso e vestido de uniforme. A caminho da embaixada, o homem que os tinha ido procurar ia no assento dianteiro, junto ao condutor, com o braço sobre o assento deste e meio voltado para a parte de atrás, para falar com os recém chegados. Tentava parecer amável e interessado, mas não enganou a Dragosani nem por um segundo.
—É sua primeira viagem a Londres, camaradas? Parecerá-lhes uma cidade muito interessante, já verão. Decadente, claro está, e cheia de idiotas, mas mesmo assim, interessante. Eu... eu não tive tempo de averiguar o que os traz por aqui. Estarão muito tempo?
—Até que retornemos —respondeu Dragosani.
—Ah, muito bem! —respondeu o outro com um sorriso forçado—. Deve me desculpar, camarada, mas para alguns de nós a curiosidade é... é um modo de vida. Compreende-o?
—Sim, compreendo-o. Você é da KGB.
A expressão da magra cara do homem se congelou.
—Não usamos essa palavra fora da embaixada.
—E que palavra utilizam? —disse com ironia Max Batu—. Come merdas?
—Como? —O rosto do acompanhante estava lívido.
—Meus negócios e de meu amigo não são de sua incumbência —disse Dragosani com voz serena—. Temos autoridade total. Quero que entenda bem, autoridade absoluta. Qualquer interferência lhe reportará grandes problemas. Se necessitarmos sua ajuda, a pediremos. Enquanto isso, queremos que nos deixe em paz.
O acompanhante respirou fundo.
—Habitualmente a gente não me fala nesse tom —disse.
—Claro está que se você insistir em estorvar —continuou
Dragosani sem trocar o tom de voz—, sempre fica o recurso de lhe quebrar um braço. Isso o manterá longe de nós por duas ou três semanas.
—Está me ameaçando? —perguntou o outro, incrédulo.
—Não, estou-lhe fazendo uma promessa.
Mas Dragosani sabia que assim não ia a nenhuma parte. O homem era um típico autômato da KGB. O necromante suspirou e disse:
—Olhe, se lhe fomos atribuídos, sinto por você. Seu trabalho é impossível e perigoso, além disso. Não posso lhe dizer nada mais. Estamos na Inglaterra para provar uma arma secreta. E agora, basta de perguntas.
—Uma arma secreta? —repetiu o outro com os olhos como pratos—. Ah! E de que arma se trata?
O sorriso do Dragosani foi sombrio. Bom, depois de tudo, o tinha advertido a esse tolo.
—Max —disse—. O que lhe parece uma pequena demonstração?
Pouco tempo depois chegaram à embaixada. Dragosani e Batu desceram do carro e pegaram suas coisas do porta-malas. Eles mesmos se ocuparam de sua bagagem.
O condutor, por sua parte, dedicou toda sua atenção ao acompanhante. A última vez que o viram se afastava cambaleando-se, apoiado no braço do chofer. Deu a volta para olhá-los só uma vez —com os olhos muito abertos, e uma expressão de temor dedicada especialmente ao Max Batu— antes de desaparecer no interior do sombrio e imponente edifício. E nunca mais voltaram a vê-lo.
E, claro está, tampouco voltou a incomodá-los.
Era a segunda quarta-feira de janeiro de 1977. Fazia quinze dias Viktor Shukshin tinha a sensação de que algo terrível se aproximava, e sua depressão só se aliviou ligeiramente quando chegou a carta certificada do Gregor Borowitz com mil libras em notas grandes. Para falar a verdade, Shukshin se preocupava que Borowitz se rendesse tão facilmente, e não tentasse rebater as ameaças que lhe fizera com outras piores.
Hoje tinha sido um dia especialmente mau: o céu estava coberto e era provável que nevasse; o rio se congelara, e estava coberto por uma grossa capa de gelo cinza; a grande casa estava muito fria e sopravam correntes de ar que pareciam seguir Shukshin onde quer que fosse. E pela primeira vez —ou ao menos, esta era a primeira vez que o percebia— um detestável silêncio reinava em todas parte e os ruídos pareciam amortecidos pela neve, embora ainda fosse muito escassa. O «tic-tac» do grande relógio de pé ressoava pesado e surdo, e tudo contribuía a que Shukshin tivesse os nervos a flor da pele. Era como se a casa contivera o fôlego e esperasse que algo acontecesse.
E esse «algo» ocorreu às duas e meia da tarde, quando Shukshin acabava de se servir de um copo de vodca gelado e se sentou em seu escritório, em frente à estufa elétrica, a contemplar melancólico o jardim, que parecia de branco cristal. O estridente som do telefone estremeceu os nervos do Shukshin.
Com o coração lhe pulsando no peito, o homem deixou a bebida, agarrou o fone e disse:
—Aqui é Shukshin.
—Padrasto? —Harry Keogh parecia falar desde muito perto—. Fala Harry. Estou em Edimburgo, em casa de uns amigos. Como está?
Shukshin fez um esforço por conter a ira que o invadiu. De modo que era isso; o maldito feto, dotado de percepção extra-sensorial estava perto, e enviava sua aura psíquica a torturar o sensível espírito de Shukshin. Exibiu os dentes em uma careta feroz e olhou furioso o telefone que tinha na mão, lutando com o impulso de amaldiçoar e soltar palavrões.
—É você, Harry? E está em Edimburgo? Que amável é, se lembrando de mim! Maldito bastardo! Sua aura de mutante me está danificando!
—Mas te ouça muito bem! —Harry parecia surpreso—. A última vez que nos vimos não estava...
—Sim, é verdade —o interrompeu Shukshin—. Naquela época não estava muito bem, mas agora me sinto muito melhor. Posso te servir em algo? Poderia me comer seu coração, pequeno monstro!
—Bom, pensei que, se não te importar, poderia ir visitar te. Possivelmente poderíamos falar de minha mãe. Além disso, trouxe meus patins, e se o rio já se gelou poderia patinar um pouco. Só estarei uns poucos dias mais, sabe, ...
—Não! —replicou imediatamente Shukshin, e em seguida se conteve.
Por que não acabar de uma vez com aquilo? por que não livrar-se agora e para sempre dessa sombra do passado? Por muito que suspeitasse Keogh —ou que soubesse—, e embora tivesse encontrado o anel do Shukshin, que o russo acreditava ter perdido no rio, e qualquer fosse o laço psíquico que unia ao jovem com sua mãe morta, por que não acabar com tudo isso aqui e agora? O sentido comum não tinha a menor possibilidade de triunfar ante a sede de sangue que invadiu a Shukshin.
—Padrasto?
—Quero dizer... Harry, temo-me que ainda não estou muito bem dos nervos. Já sabe, vivo aqui, completamente sozinho, e não estou acostumado a ter companhia. Claro está que te receberei com muito prazer, e o rio está perfeito para patinar, mas não sei o que faria com uma casa cheia de jovens, Harry.
—Oh, não, padrasto, não se preocupe! Não penso ir com ninguém, nem me tinha ocorrido. Meus amigos nem sequer conhecem que tenho um parente nesta região. Não, só eu gostaria de voltar a visitar a casa, e ir ao rio. Quero patinar onde o fazia minha mãe, isso é tudo.
Outra vez com isso! O bastardo certamente sabia algo, ou ao menos o suspeitava. De modo que queria patinar? E no rio, onde tinha patinado sua mãe. O rosto do Shukshin se contorceu em uma careta malévola.
—Bem, nesse caso... quando virá?
—Parece-te bem dentro de duas horas?
—Muito bem —respondeu Shukshin—. Então, espero-te entre as quatro e meia e as cinco. Até então, Harry.
E Shukshin pendurou o telefone antes de que um grunhido de ódio bestial escapasse de sua garganta e traísse seus verdadeiros sentimentos.

Harry Keogh não estava em Edimburgo, e sim muito mais perto. Em realidade, estava no vestíbulo do hotel do Bonnyrigg onde se alojara nos últimos dias. Depois de falar com o Shukshin por telefone pegou o casaco e se dirigiu a seu carro, um velho Morris que tinha comprado especialmente para esta viagem. Tinha aprovado de primeira no exame para obter o carteira de motorista, ou possivelmente devamos dizer que o tinha aprovado por ele, um homem que jazia no cemitério do Seaton Carew, e que em vida tinha sido professor em uma auto-escola.
Harry se dirigiu pelas rotas geladas para o topo de uma colina da qual se via a casa de seu padrasto, situada a uns quatrocentos metros; o jovem estacionou ali o carro, e desembarcou do veículo. O lugar estava deserto; a paisagem era escura e melancólica. Harry, tremendo de frio, dirigiu-se com seus binóculos para um grupo de árvores que se destacavam contra o céu escuro. Ocultou -se atrás de um dos troncos, apontou os binóculos em volta da casa e esperou durante um ou dois minutos.
Shukshin saiu da casa pelas portas de seu escritório que davam ao pátio, cruzou depressa o jardim e saiu depois por uma porta situada no muro que dava ao rio. Levava na mão um picador de gelo...
Harry respirou fundo, e logo exalou o ar lentamente. Shukshin se abriu passo entre o capinzal e as sarças até a beira do rio. Agachou -se com cuidado no gelo. Provou -o, saltou uma e outra vez em diferentes lugares para comprovar sua espessura e resistência. Logo olhou a seu redor. O lugar estava completamente deserto.
Caminhou até o centro da gelada extensão, voltou a fazer suas comprovações, e uma vez mais pareceu satisfeito. Harry olhava fascinado a cena, essa pintura monocromática que tinha a sensação de ter visto antes, e os atos de Shukshin, que estava absolutamente seguro tinha realizado já outra vez.
A figura que enfocavam os binóculos se agachou, agarrou o picador e marcou com ele um amplo círculo sobre a superfície de gelo. E logo, com a paixão e a força de um louco, foi abrindo pequenos buracos no perímetro do círculo, de maneira que em poucos minutos um grande disco de uns três metros de diâmetro flutuava solto, rodeado pela compacta massa de gelo do rio. E logo, o toque final:
Shukshin, depois de deter-se uma vez mais a olhar a seu redor, limpou os borde do círculo das partes de gelo resultantes de seu trabalho com o picador. A água voltaria a congelar-se, claro está, mas durante várias horas —ao menos até a manhã seguinte— seria perigoso patinar naquele lugar. Shukshin tinha feito sua armadilha, mas não sabia que sua vítima o tinha visto.
Harry mal podia controlar agora o tremor que agitava todo seu corpo, e que tinha muito pouco a ver com a temperatura reinante. Não, sua causa era a condição mental da figura agachada no gelo. Os binóculos não eram bastante fortes para que Harry a visse com todos os detalhes, mas o jovem estava seguro de que tinha visto a horrível expressão que desfigurava a cara de seu padrasto enquanto picava o gelo. Era o rosto de um lunático, que por alguma razão desejava desesperadamente matar a Harry, da mesma maneira que tinha desejado com desespero —e o tinha conseguido— tirar a vida da mãe do jovem.
Harry queria saber por que, e não descansaria até conseguir uma resposta. E só havia uma maneira de obtê-la.

Viktor Shukshin se sentia física e mentalmente fatigado, mas sabia que seu trabalho ainda não tinha terminado, e retornou à casa. Uma vez no pátio, arrastou o picador pelas lajes geladas e logo o deixou cair antes de entrar em seu estúdio. Com a cabeça baixa e os braços pendurando nos flancos, Shukshin avançou dois passos... e ficou completamente imóvel.
O que acontecia? Keogh já tinha chegado? Toda a casa parecia cheia de forças estranhas, impregnada de um aura PES; a atmosfera vibrava com uma energia peculiar.
Shukshin, instantaneamente alerta, percebeu um movimento: as portas que ligavam o pátio e o estúdio se fecharam atrás dele. Deu a volta, observou, e completamente desconcertado, perguntou, afogando-se com as palavras:
—Quais são? O que querem?
Em seu estúdio havia dois homens; tinham-no estado esperando, e um deles lhe apontava com um revólver. Shukshin reconheceu a arma; era russa, e a utilizavam os serviços secretos daquele país; também reconheceu os olhares gelados e inexpressivos dos homens, e sentiu que o destino começava a fechar seu punho sobre ele. Mas em algum sentido isto não era algo totalmente inesperado. Tinha pensado que um dia possivelmente receberia uma visita desta classe. Mas precisamente hoje!
—Sinta-se à vontade, camarada —disse o homem mais alto, com uma voz que soou áspera como uma lima sobre os tensos nervos do Shukshin.
Max Batu lhe estendeu uma cadeira e Shukshin desabou nela. Batu se situou a suas costas, e Dragosani a frente. O aura PES envolvia agora a Shukshin, como se sua mente nadasse em bílis. Claro que sim, estes dois vinham do château Bronnitsy!
O rosto do chantagista estava desfigurado, os olhos afundados profundamente em suas órbitas. Batu olhou a Dragosani por cima da cabeça do Shukshin, e disse com um sorriso:
—Camarada Dragosani, até hoje, eu pensava que você era a pessoa que tinha a pior cara!
—Agentes PES! —disse Shukshin como se cuspisse as palavras—. Homens do Borowitz. O que querem de mim?
—Tem motivos para ter má cara, Max —disse Dragosani com voz profunda—. É um traidor, um chantagista, e possivelmente um assassino...
Deu a impressão de que Shukshin ia se pôr em pé de um salto, e Batu apoiou suas pesadas mãos sobre seus ombros.
—Perguntei-lhes o que querem de mim —voltou a dizer Shukshin.
—Sua vida —respondeu Dragosani. Agarrou um silenciador do bolso, colocou no cano de seu revólver, deu um passo para frente e o apoiou contra a frente do Shukshin—. Somente sua vida —repetiu.
Shukshin se deu conta de que Max Batu, que estava detrás, afastou-se para o lado, e soube que o iam matar.
—Esperem! —grasnou—. Vão cometer um engano, e o Borowitz não gostará nada. Sei muitas coisas sobre os britânicos, e só dei uns poucos detalhes a Borowitz, mas é muito mais o que me reservei. Além disso, a minha maneira, ainda trabalho para vocês. Se agora mesmo estava em meio de um trabalho! Sim, precisamente agora.
—E de que trabalho se trata? —perguntou Dragosani.
Não tinha sido sua intenção matar a Shukshin; só queria atemorizá-lo. A reação de Max, ao afasrtar-se da linha de fogo, era algo natural. Por outro lado, não era conveniente para um necromante que o sujeito de suas investigações tivesse morrido por um disparo de arma de fogo. Dragosani tinha planejado para Shukshin uma morte muito mais interessante.
Quando lhe tivesse tirado tudo o que pudesse desta maneira, um simples interrogatório, levaria-o ao banheiro e o amarraria. Depois o poria na banheira, meio cheia de água fria, e com um de seus bisturis lhe faria dois profundos cortes nos pulsos para lhe abrir as veias. E enquanto Shukshin jazia na água, que estaria cada vez mais vermelha à medida que a vida lhe escapasse, Dragosani voltaria a interrogá-lo. Prometeria-lhe que se dissesse tudo, enfaixariam-lhe as feridas e o soltariam. Dragosani lhe mostraria ataduras e esparadrapo. Mas, claro está, Shukshin teria muito pouco tempo para responder; a água estaria cada vez mais vermelha e espessa, até que por fim o russo jazesse em uma sopa púrpura e gelada. Também lhe diriam que se Shukshin continuava tentando chantagear ao Borowitz, eles, Batu e Dragosani, voltariam para acabar definitivamente com ele. Mas a verdade era que não pensavam partir sem terminar aquele trabalho, ali e já.
Mas mesmo assim Shukshin possivelmente guardasse alguma informação. Algo que talvez não considerava importante, que tinha esquecido, ou muito condenatório para falar disso. Como, por exemplo, que fazia tempo trabalhava para os britânicos...
Mas, dissesse o que dissesse, seu destino não mudaria. Quando estivesse morto, lavariam seu cadáver, tirariam-no da banheira e Dragosani continuaria o interrogatório.
Dragosani afastou o revólver da testa de Shukshin, e se sentou frente ao homem.
—Estou esperando —disse—. Que trabalho?
Shukshin tragou saliva e se esforçou para que seu temor —e seu ódio pelos horríveis poderes de percepção extra-sensorial daqueles homens— retrocedesse a um remoto rincão de sua mente.
O medo continuava ali, não desapareceria, mas por agora tinha que tratar de ignorá-lo. Sua vida pendia de um fio e ele sabia. Devia pôr em ordem seus pensamentos, mentir como não tinha mentido nunca antes. Algo do que ia dizer, contudo, era verdade, e ao menos disso poderia falar com absoluta convicção.
—Sabe que sou um observador?
—Claro, por isso Borowitz o enviou a este país, para encontrar às pessoas dotada de PES e matá-las. Ao parecer, não teve muito êxito.
Dragosani falava com evidente sarcasmo. Mas Shukshin decidiu ignorá-lo.
—Quando entrei faz uns minutos, no instante mesmo em que penetrei na habitação, soube que estavam aqui. Era como se pudesse sentir o sabor de sua presença. Vocês são PES muito poderosos, ambos. Você, sobre tudo —disse Shukshin, olhando ao Dragosani—. Em você há um talento imenso, monstruoso. Me... faz mal!
—Sim, Borowitz também me falou disso —respondeu secamente Dragosani—. Mas sei tudo o que terá que saber sobre os observadores, Shukshin, de modo que deixe de rodeios e fale logo.
—Não estou fazendo rodeios. Tentava lhe falar do homem que vou matar hoje.
Dragosani e Batu se olharam, e logo Batu se dirigiu ao Shukshin, desde sua posição a costas do russo, e lhe perguntou:
—Estava por matar a um PES britânico? Por que? E quem é?
—Era minha maneira de me congraçar novamente com o Borowitz —mentiu Shukshin—. Se chama Harry Keogh e é meu enteado. Herdou seu talento de sua mãe, não sei especificamente do que é capaz. Faz dezesseis anos também matei a ela... —Shukshin continuava olhando ao Dragosani—. Ela me fascinava... e me tirava do sério! Você aludia a ela quando disse que eu possivelmente era um assassino? Admito-o «possivelmente», pois a matei. Essa mulher, como todos os PES, me fazia mal. Seu talento me prejudicava!
—A mulher não nos interessa —o interrompeu, brusco, Dragosani—. O que passa com esse Keogh?
—Disso tentava lhe falar. Com vocês dois, a pesar do poderoso talento que possuem, tive que entrar na casa para perceber que estavam aqui. Mas com o Harry Keogh...
—Sim?
—Ele é diferente. Seu talento... é imenso! Sei que o é. Quanto maior é o talento, mais dano me faz. De modo que não desejo matá-lo só por agradar ao Borowitz, mas sim por mim mesmo.
Dragosani estava interessado. Se Harry Keogh era tão poderoso, queria saber mais coisas dele. Além disso, se era membro da Organização E britânica, seria como matar dois pássaros com uma só pedra. Mas seu crescente interesse fez que esquecesse de perguntar a Shukshin o mais importante: pertencia Keogh à Organização E britânica?
—Acredito que, depois de tudo, poderemos agradá-lo —disse por fim Dragosani—. É muito bom poder entender-se com os velhos amigos. —Dragosani deixou de apontar com seu revólver a Shukshin—. Me Diga exatamente quando pensava matar a esse homem, e como.
Shukshin lhe contou tudo.

Quando Shukshin retornou à casa, Harry voltou para carro e recuou até o pé da colina, em direção ao Bonnyrigg. Estacionou fora da estrada, e logo seguiu a pé, através de um prado, até o rio. A área não lhe resultava familiar, e tudo lhe pareceu ainda mais desconhecido quando começaram a cair os primeiros flocos de neve. A paisagem adquiriu o velado aspecto de uma pintura impressionista.
Harry empreendeu o caminho rio acima. O lugar de descanso de sua mãe estava ali, embora não podesse assinalar o lugar com precisão. Essa era uma das razões por que tinha retornado, para averiguar exatamente onde estava ela, e poder assim encontrá-la sempre, em qualquer circunstância. Caminhando sobre as águas geladas, sua mente ficou em contato com a de sua mãe.
—Mamãe, ouve-me?
—É você, Harry? —respondeu-lhe ela em seguida—. Que perto está! —E imediatamente, o receio, o medo que sentia por seu filho—. Harry! O fará... o fará hoje?
—Sim, mãe. Será hoje. Mas não me crie mais problemas dos que já tenho. Necessito sua ajuda, não discutir contigo. Nada deve perturbar minha mente.
—Oh, Harry, Harry! O que posso te dizer? Sou sua mãe, como não me preocupar contigo?
—Então me ajude. Não diga nada, fica calada. Quero ver se posso te achar às cegas...
—Às cegas? Eu não...
—Mamãe, por favor!
Ela ficou em silêncio, mas Harry podia perceber sua inquietação, semelhante ao caminhar inquieto de alguém amado em uma pequena habitação. O jovem seguiu caminhando, fechou os olhos e foi para sua mãe. Cem metros, possivelmente algo mais, e soube que tinha chegado ao lugar que procurava. deteve-se e abriu os olhos. Estava na curva do rio, em um lugar onde a borda tinha sido escavada pelas águas. Sua mãe estava ali, sob o gelo grosso e branco que lhe servia de lápide. Agora sabia que sempre poderia encontrá-la.
—Estou aqui, mamãe —disse agachando-se no gelo; depois afastou uma capa de neve com os pés, e olhou o pesado martelo que levava na enluvada mão.
Quando começou a golpear o gelo, ela disse:
—Agora vejo claro, Harry. Vejo bem melhor —lhe reprovou—. Pensa que, depois de tudo, haverá problemas.
—Não, mamãe, não acredito. Agora sou muito mais vigoroso em todos os sentidos. Mas seria um tolo se não me cobrisse as costas ante qualquer problema que possa apresentar-se.
Aqui, perto da beira, o gelo era um pouco mais grosso. Harry começou a transpirar, mas logo conseguiu abrir um buraco de uns noventa centímetros de diâmetro. Tirou as partes de gelo soltos que flutuavam na zona que tinha espaçoso e ficou de pé. Ali abaixo a água se formava redemoinhos, escura. E debaixo da água, debaixo do frio lodo e dos sedimentos...
Agora que já estava tudo feito, Harry devia partir, e depressa. Estava suado, e não lhe convinha pegar friagem. Além disso, a nevasca começava a fazer-se mais espessa. E junto com a neve tinha chegado a prematura escuridão do entardecer invernal. Tinha tempo de tomar um conhaque no hotel, e depois, seria já a hora de sua confrontação com o Viktor Shukshin.
—Harry, quero-te muito, meu filho. Que tenha sorte! —disse-lhe sua mãe enquanto ele cruzava o prado e se dirigia ao carro.

Uma hora mais tarde, Dragosani e Batu estavam apostados detrás de um maciço de jovens coníferas, à beira do rio e a uns vinte ou vinte e cinco metros da casa do Shukshin. Ainda não fazia meia hora que estavam ali, mas o frio começava a transpassar seus casacos. Para combatê-lo, Batu tinha começado a balançar ritmicamente seus braços, e Dragosani acabava de acender um cigarro quando finalmente a luz amarela que havia em cima da porta do pátio do Shukshin se acendeu. Era o sinal que esperavam, e indicava que o cenário do crime já estava preparado. Dois homens saíram da casa.
Em realidade, e tendo em conta a hora, ainda não era de noite, mas a escuridão invernal fazia que o parecesse. Se não tivesse sido pela lua, que começava a sair, e pelas primeiras estrelas, a visibilidade teria sido má. As nuvens, que uma hora antes eram muito densas, afastaram-se, e não tinha caído mais neve, mas para o oeste o céu estava coberto, e o vento soprava dessa direção. Essa noite ia nevar, e muito. Mas no momento as estrelas iluminavam a cena com sua luz suave e fria, e a lua convertia o rio gelado em uma cinta de prata.
Quando os dois homens que tinham saído da casa se dirigiram para o rio, Dragosani deu uma última tragada ao cigarro, fazendo cobertura com as mãos para que não se visse o o brilho da brasa, e logo o jogou ao chão e o apagou com o salto do sapato. Batu deixou de flexionar os braços, e os dois, imóveis como estátuas, observaram a obra que se apresentava ante eles.
Quando chegaram à beira do rio, as duas figuras tiraram os casacos, deixaram-nos no chão e se agacharam para colocar os patins. Trocaram algumas palavras, mas falavam em voz baixa, e o vento não deixava ouvir o que diziam. Mas Dragosani advertiu que a voz do Shukshin soava agressiva e ameaçadora, e se perguntou por que Keogh não se assustava, ou ao menos mostrava sentir algum receio. Mas não, a voz do jovem soava serena e despreocupada, e ele e Shukshin começaram a deslizar-se sobre seus patins.
Ao princípio foram de um lado a outro juntos, quase ao mesmo tempo, mas logo a figura mais magra tomou a dianteira, e patinando com bastante habilidade cobrou velocidade e se dirigiu rio acima para o lugar onde estavam escondidos os observadores. Dragosani e Batu se agacharam um pouco mais, mas no último momento, e antes de chegar aonde estavam eles, Keogh descreveu uma ampla curva e trocou de direção, indo para o lado oposto.
Shukshin, que ia detrás do Harry, quase se tinha detido quando o jovem empreendeu sua rápida carreira. O russo se deslizava com menos segurança, e comparado com o Harry, parecia inclusive torpe, mas quando Keogh veio para ele, deu a volta para patinar na mesma direção. O fez para estorvar ao outro. Keogh se inclinou em um slalom, e seus patins levantaram uma nuvem de gelo e neve quando passou a pouquíssimos centímetros do Shukshin; depois se inclinou para o outro lado em um ângulo similar ao do slalom para não perder o equilíbrio e seguir a carreira. Seus patins arranharam o gelo a menos de trinta centímetros do círculo que Shukshin tinha cavado horas antes, e que o frágil gelo recém formado escondia.
Shukshin ia tão perto do Harry que ele também teve que desviar-se bruscamente para não cair em sua própria armadilha.
—Tome cuidado, padrasto! —gritou-lhe Harry por cima do ombro—. Quase choco contigo.
Dragosani e Batu o ouviram, e Batu disse:
—O rapaz tem sorte... no momento.
Dragosani, por sua parte, não estava tão seguro de que a sorte tivesse algo que ver com o desenvolvimento dos acontecimentos.
Shukshin não sabia qual era o talento específico do Keogh. Possivelmente era um telepata, e tinha o poder de ler os pensamentos de seu padrasto.
—Parece-me que as coisas lhe põem difíceis a nosso chantagista —observou Dragosani.
Shukshin tinha parado, e observava Keogh que continuava patinando. Os ombros do russo e seu peito se elevavam e caíam de maneira espasmódica, e seu corpo se estremecia como se sofresse uma dor intensa, ou uma grande perturbação emocional.
—Por aqui, Harry, por aqui! Acredito que é muito bom para mim, e não posso te seguir.
Keogh deu a volta e começou a descrever círculos ao redor do Shukshin. E com cada volta seus patins estavam mais perto da catástrofe. Shukshin estendeu os braços e Harry o agarrou das mãos e o fez girar sobre si mesmo.
—E agora, o coup de gráce! —disse muito sob o Max Batu ao Dragosani.
De repente, Shukshin deixou de dar voltas, e pareceu que tropeçava e caía contra Keogh. Este torceu o corpo para evitá-lo; ainda tinham as mãos entrelaçadas. Um dos patins do Keogh se afundou em uma capa de neve em pó e se deslizou na ranhura do disco mortal cavada pelo Shukshin. O jovem parou bruscamente, e só as mãos do Shukshin, que o agarravam pelos pulsos impediram que caísse sobre o frágil disco de gelo.
Shukshin soltou então uma gargalhada enlouquecida, e soltou ao Keogh lhe dando um empurrão... um empurrão para a morte!
Mas Keogh se aferrou às mangas da jaqueta do Shukshin, e o arrastou consigo. Shukshin perdeu o equilíbrio e caiu para frente; Keogh se dobrou para um flanco e o jogou sobre seu quadril... mas quando soltou ao Shukshin, o russo se agarrou a ele. Com um grito de fúria, Shukshin caiu dentro de seu próprio círculo e arrastou ao Keogh.
Os dois homens caíram juntos em um nó, e em seguida o gelo começou a rachar-se sob seus corpos. O bordo do círculo se acabou de quebrar com uma série de ruídos como disparos, e saltaram jorros negros de água quando o mesmo disco se rompeu em duas metades. Shukshin lançou um grito de horror —um uivo estranho e enlouquecido, como o de uma besta ferida— quando o semicírculo de gelo que os sustentava se deu a volta e os jogou nas geladas e revoltas águas.
—Depressa, Max! —urgiu Dragosani a seu companheiro—. Não podemos deixar que morram os dois —e saiu de seu esconderijo depois das coníferas, enquanto Batu o seguia.
—Já quem prefere salvar? —perguntou Batu quando saltaram sobre a gelada superfície do rio.
—A Keogh —respondeu Dragosani sem duvidar nem um segundo—, se for possível. Acredito que sabe mais sobre a organização britânica que Shukshin. E tem um talento especial, embora não saibamos ainda qual é.
Enquanto falava, Dragosani teve uma ideia fantástica, algo que nunca lhe tinha passado pela cabeça até esse momento. Se tinha sido capaz de «aprende» necromancia da criatura não-morta, e apoderar-se assim dos segredos dos mortos, não poderia também apoderar-se de seus talentos? No château Bronnitsy todos os agentes eram companheiros, que trabalhavam do mesmo lado e com um objetivo comum, mas na Inglaterra os PES eram inimigos. Por que não roubar o ainda desconhecido talento do Keogh e utilizá-lo para seus próprios fins?
Quando Batu e Dragosani se aproximaram do buraco no rio, ouviram gemidos e gritos sufocados, mas quando com cautela se aproximaram do bordo mesmo, só se ouvia o borbulhar da água que corria por debaixo do gelo. Durante um instante uma mão tentou aferrar-se a borda de gelo, mas antes de que pudessem agarrá-la a água já a tinha tragado.
—Por aqui! —gritou Dragosani—. Siga a corrente do rio!
—Acredita que temos alguma possibilidade de salvá-lo? —perguntou Batu, que, evidentemente, não pensava que fosse possível.
—Possivelmente —respondeu Dragosani.
E sob a lua silenciosa, os dois homens correram sobre o gelo tão rápido como puderam.
Debaixo do gelo, levado pela corrente, Harry Keogh conseguiu tirar a jaqueta. Levava sob a camisa um traje de borracha isotérmico, mas mesmo assim o frio era terrível. Seguro que acabaria com o Shukshin, que não tinha proteção alguma.
Harry começou a nadar; mantinha a cabeça de lado, com a cara contra o gelo, e encontrou alguns lugares onde havia pequenas bolsas de ar. Harry nadou para sua mãe, seguindo a corrente de angustiados pensamentos dela tal como o tinha feito duas horas antes com os olhos fechados. Com uma diferença: então não lhe tinha faltado o ar, nem tinha tido tanto frio.
O pânico se instalou nele durante um instante, mas o afastou de sua mente. Sua mãe estava perto... e ali ia! Começou a nadar com renovado vigor, e algo lhe agarrou os pés, agarrou-se a suas pernas. Shukshin! O rio os arrastava juntos, e a lei de gravidade os mantinha agarrados um ao outro.
Harry nadou ainda com maior desespero, com os braços, com uma só perna. Nadou como nunca o tinha feito antes, os pulmões a ponto de explodir, o coração como um grande sino que repicava em seu peito. E Shukshin obstinado em seu corpo, suas mãos como as pinças de um grande caranguejo que queria fazê-lo em pedaços.
Mas já não podia nadar mais; a água era o negro sangue de um monstruoso gigante em cujas veias tinham injetado a Harry, e Shukshin era um anticorpo empenhado em destruí-lo.
—Mamãe! Mamãe! me ajude! —gritou mentalmente Harry enquanto tentava respirar, mas só conseguia aspirar água geada que lhe encheu a boca e o nariz.
—Harry! —respondeu ela imediatamente, muito perto, e sua voz soou frenética na mente do jovem—. Harry, está aqui!
Harry deu chutes, golpeou furioso com seus pés a Shukshin e se lançou para cima; sua cabeça e suas costas se chocaram com a coberta de gelo que, graças a Deus, rompeu-se em pequenas partes e lhe permitiu sair a respirar.
E de repente a água se aquietou, e os pés do Harry tocaram o fundo lamacento do rio, que ali tinha um metro e meio de profundidade. Harry soube então que tinha conseguido. Reuniu suas últimas forças, agarrou-se às raízes que se sobressaíam do barranco e começou a subir a elevada ribeira.
A seu lado a água formou redemoinhos e borbulhou como agitada por uma perturbação interior. Harry se voltou e uma expressão de terror apareceu em seu rosto quando a enlouquecida cara do Shukshin saiu à superfície, tossindo e cuspindo água. O demente o viu e uivando de fúria lançou as mãos ao pescoço de Harry, umas mãos que pareciam ganchos de ferro, de aço.
Harry lhe deu um joelhada na virilha; quebraram-se alguns ossos, mas Shukshin não o soltou, seguiu arrastando-o inexoravelmente para baixo. Durante um instante Harry pensou que queria mordê-lo, destroçá-lo como se fosse um cão raivoso. O jovem lutou com o Shukshin, golpeou-lhe uma e outra vez a cara com os punhos, mas tudo era inútil. O demente ia ganhar. Harry já não podia resistir mais...
Tratou de agarrar-se outra vez às raízes da beira, mas as mãos do Shukshin em sua garganta lhe impediam de respirar, estavam-lhe tirando a vida.
—Mamãe —chamou Harry em silêncio—. Tinha razão, deveria te haver escutado. Sinto muito, mamãe.
—Não! —gritou ela, negando a derrota—. Não! —Shukshin a tinha assassinado, mas ela não ia permitir que fizesse o mesmo com seu filho.
E a água, mais turva que nunca, ferveu e se formou redemoinhos outra vez.
Dragosani se deteve menos de quatro metros da cena, agarrou ao Batu e fez que ele também parasse. E ambos, ofegando, contemplaram boquiabertos a cena. Dois homens tinham caído por um buraco, tinham sido arrastados pela corrente sob o gelo, tinham saído à superfície metros mais abaixo, e até alguns instantes lutavam junto à borda. Mas agora havia três figuras na água, e a terceira era mais terrível que algo que Dragosani pudesse ter imaginado ou visto em seus mais horríveis pesadelos.
Não era um ser vivente, mas tinha a autoridade, a mobilidade da vida. E tinha um propósito. Agarrou -se ao Shukshin, envolveu-o com seus braços de lodo e ossos, aproximou sua caveira à cara do russo. Não tinha olhos, mas um resplendor pútrido iluminava as órbitas vazias em um arremedo de visão. E Shukshin, que antes tinha uivado e rido como um demente, agora se voltou total e completamente louco.
Uivava sem cessar enquanto lutava com a horrível criatura, e eram os uivos mais dementes que Dragosani e Batu tinham ouvido jamais. Ao final, justamente quando aquele horror o arrastou para baixo, os petrificados espectadores puderam compreender o que Shukshin dizia.
—Você não! —balbuciava—. Por Deus, não, você não!
E logo desapareceu, e com ele desapareceu também a criatura de lodo, ossos, algas e morte.
E Harry Keogh pôde subir em paz a beira do rio.
Batu possivelmente teria ido a seu encontro sem se deter para pensar, mas Dragosani ainda o tinha seguro pelo braço. Batu começou a adotar sua característica postura de ataque, meio agachado, mas Dragosani o conteve.
—Não, Max —murmurou Dragosani—, é melhor que sejamos prudentes. Vimos uma amostra do que é capaz de fazer, mas não sabemos se possui outros talentos.
Batu compreendeu, tranquilizou-se e adotou uma postura normal. Harry Keogh, na borda, percebeu a presença dos dois homens. Deu a volta e os olhou; durante um instante pareceu que ia falar lhes, mas não disse nada. Os três se olharam, e logo Keogh voltou a vista para o poço de águas negras. «Obrigado, mamãe», foi o único que disse.
Dragosani e Batu o viram dar a volta, dar uns passos inseguros e logo sair correndo para a casa do Shukshin. Olharam-no partir e não tentaram segui-lo. Não, ainda não. Quando o jovem teve desaparecido da vista, Batu sussurrou:
—Isso que saiu da água, camarada Dragosani, não era humano; é impossível que o fora. O que era, pois?
—Não sei com segurança —respondeu Dragosani, que acreditava saber o que era aquela criatura, mas não desejava comprometer-se—. Mas antes foi um ser humano. O que é certo é que quando Keogh necessitou ajuda, esse ser a emprestou. Esse é seu talento, Max: os mortos respondem a sua chamada.
Dragosani se voltou para olhar a Batu, os olhos muito escuros fundos em suas órbitas.
—Eles respondem a sua chamada, Max. E os mortos são muito mais numerosos que os vivos.

Capítulo treze

Na quinta-feira pela manhã Harry voltou para rio, ao lugar onde sua mãe jazia outra vez entre o lodo e as algas. Mas agora eram dois mortos que descansavam ali, e ele não queria falar com sua mãe, apenas com o Viktor Shukshin. Harry agarrou uma almofada do carro e o levou até a borda do rio; ali a pôs sobre a neve e logo se sentou. Um pouco mais abaixo, onde tinha aberto o buraco para escapar, a água havia tornado a congelar-se e logo a neve se acumulou sobre o gelo, de modo que só se percebia uma marca muito tênue.
Depois de permanecer um momento sentado em silêncio, Harry disse:
—Padrasto, ouve-me?
—Sim —lhe responderam depois de uns instantes—. Sim, ouço-te, Harry Keogh. Ouço-te, e percebo sua presença! por que não parte e me deixa em paz?
—Tome cuidado, padrasto! Pode que a minha seja a única voz que ouça em toda a eternidade. Se partir e te deixar em paz, com quem falará?
—De modo que esse é seu talento, Harry? Fala com os mortos. Não é mais que um agitador de cadáveres! Bom, quero que saiba que isso me faz mal, do mesmo modo que me fere todo tipo de poder extra-sensorial. Mas ontem à noite, pela primeira vez em muitos anos, deitei em minha gelada cama e dormi profundamente, sem sofrimento. Diz que se não falar contigo, ninguém me falará. Melhor, não quero que ninguém me fale. Só quero paz.
—O que significa que te faço mal? Como pode ser que minha mera presença faça mal a alguém?
Shukshin o explicou.
—E por isso matou a minha mãe?
—Sim, e pela mesma razão tentei matar a ti. Mas em seu caso, além disso, tivesse contribuído para salvar minha vida.
E Shukshin lhe falou com o Harry do Batu e Dragosani, os homens que Borowitz tinha enviado para que o matassem. Mas o jovem não se deu por satisfeito. Queria saber tudo, do começo até o presente.
—Diga-me isso tudo —disse—. Se me conta isso todo, prometo que te deixarei em paz.
E Shukshin lhe contou tudo.
Falou-lhe do Borowitz e do château Bronnitsy; dos PES russos, que trabalhavam para conquistar o mundo mediante a percepção extra-sensorial, em seu refúgio secreto no coração da Rússia. Shukshin contou a Harry que Borowitz o tinha enviado a Inglaterra para localizar e matar aos PES britânicos, e como ele tinha desertado e se converteu em cidadão britânico. E também lhe falou da maldição que o perseguia: a gente dotada de poderes extra-sensoriais lhe atacava os nervos e fazia que se tornasse louco. E Harry por último compreendeu, e possivelmente teria sentida compaixão pelo Shukshin de não ter sido pela morte de sua mãe.
O relato do Shukshin fez que Harry pensasse em sir Keenan Gormley e na Organização E britânica. O jovem recordou que tinha prometido ir ver o Gormley e considerar a possibilidade de unir-se a seu grupo uma vez tivesse terminado com o que tinha nas mãos. Bem, agora tudo tinha acabado, e Harry soube com certeza que tinha que ir ver o Gormley. Porque Viktor Shukshin não era o único culpado, havia outros muito piores que ele. Por exemplo, quem o tinha enviado em sua mortífera missão. Se Shukshin não tivesse vindo a Inglaterra, a mãe do Harry estaria viva.
Harry estava satisfeito por fim. Até agora sua vida não parecia cheia, não tinha um objetivo claro —sua única ambição tinha sido matar ao Shukshin— mas agora sabia que sua missão era muito mais importante, e de repente se sentiu insignificante ante a magnitude da tarefa que o aguardava.
—Está bem, padrasto —disse por fim—. Agora irei e descansará em paz. Mas é uma paz que não merece. Não posso te perdoar, e nunca o farei.
—Não quero seu perdão, Harry Keogh, só desejo que me prometa que não me incomodará mais —lhe respondeu Shukshin—. E já me prometeste isso. De modo que vá cuidar de sua vida e me deixe tranquilo...
Harry, intumescido pela posição, ficou de pé com movimentos torpes. Doíam-lhe todos os ossos do corpo e também a cabeça, e sentia que todas suas forças o tinham abandonado. Era algo em parte físico, mas sobre emocional. Era a calma que segue à tormenta, e embora ainda não sabia, era também o adormecimento que precedia à tormenta ainda maior.
Mas agora ficou em pé, deixou a almofada onde estava e se dirigiu ao carro. Atrás dele mas também em seu interior, uma voz lhe disse:
—Adeus, Harry —e não era a voz do Shukshin.
—Adeus, mamãe —respondeu Harry—. Obrigado, muito obrigado. Sempre te amarei.
—E eu sempre amarei você, meu filho.
—O que é isto? Keogh, o que é isto? —a voz mental do Shukshin soava horrorizada—. Eu vi que você a fazia levantar, mas...
Harry não respondeu; deixou que Mary Keogh o fizesse por ele.
—Olá, Viktor. Não, está equivocado. Não foi Harry quem me fez levantar. Eu o fiz sozinha, por amor, que é algo que você não pode compreender. Mas agora tudo terminou, e não voltarei a fazê-lo. Agora meu Harry tem outras pessoas que se preocupam com ele. Eu jazerei aqui, solitária na lama. Embora talvez agora já não estarei tão sozinha...
—Keogh! —chamou-o Shukshin, desesperado—. Me prometeu... disse-me que você era o único que podia falar comigo. Mas ela está me falando... E me faz mais dano que ninguém!
Harry seguiu caminhando.
—Vamos, vamos, Viktor —ouviu a resposta de sua mãe, como se ela se dirigisse a um menino pequeno—. Isso não servirá de nada. Diz que quer paz e silêncio? Mas a paz e o silêncio lhe aborrecerão muito em breve, Viktor!
—Keogh! —a voz do Shukshin era agora um tênue uivo mental—. Keogh, tem que me tirar daqui. Diga -lhes onde podem encontrar meu corpo..., lhes diga o que queira, mas não me deixe aqui com ela!
—Na verdade, Viktor —continuou implacável Mary Keogh—, acredito que desfrutarei de muito conversando contigo. Estás tão perto meu querido, não me custa nenhum esforço!
—Keogh, maldito bastardo! Volta! Por favor..., volta!
Mas Harry seguiu seu caminho.

Harry chegou aproximadamente às treze e trinta a Hartlepool. Os caminhos eram um pesadelo, em sua maioria completamente cobertos de gelo, e dirigir lhe produziu uma grande tensão nervosa. Isto fez que se sentisse ainda mais fatigado, e quando chegou em casa apenas teve forças para subir as escadas.
Brenda, com quem estava há oito semanas casado, esperava-o no apartamento, que tinha sofrido uma fantástica e inexplicável metamorfose desde que a jovem passara a viver com ele, depois da cerimônia no registro civil. Brenda estava grávida de três meses, mas já lhe notava; a via florescente. Também Harry tinha estado em muito bom estado físico a última vez que ela o viu, mas agora...
Harry com muita dificuldade conseguiu saudá-la com um beijo no rosto, e logo adormeceu antes de que sua cabeça tocasse o travesseiro.
O jovem tinha estado três dias fora, realizando algumas investigações para um novo livro que estava planejando escrever; isto era o que sabia Brenda, embora nunca lhe havia dito do que trataria a obra. Bom, Harry era assim e ela já deveria haver-se acostumada. Mas nunca poderia habituar-se a que aparecesse como se tivesse passado três dias em um campo de concentração!
Harry dormiu toda a tarde, e como parecia febril, Brenda chamou o médico, que veio às oito. Harry não se levantou e o recebeu na cama; o médico pensou que talvez fosse pneumonia, embora os sintomas não coincidissem exatamente com os dessa enfermidade. Deixou umas pílulas, e seu número de telefone, e disse a Brenda que se Harry piorasse durante a noite, se respirasse com dificuldade ou começasse a tossir, ou a temperatura subisse muito, devia chamá-lo em seguida.
Mas Harry não piorou durante a noite, e pela manhã tomou seu café da manhã, depois do qual teve com a Brenda uma de suas peculiares conversações, que ela achou mais deprimente e doentia que qualquer das que tinha tido antes, inclusive em suas piores épocas. Depois de escutá-lo um momento, e quando ele começou a falar de fazer testamento deixando-lhe tudo a ela, ou ao futuro filho de ambos em caso de que ela estivesse incapacitada para fazer uso da herança, Brenda decidiu que aquilo era muito, e riu a gargalhadas.
—Harry —lhe disse lhe agarrando as mãos—. O que é tudo isto? Sei que estiveste doente, que ainda não se sente de todo bem, e quando você está assim te parece que chegou o fim do mundo, mas faz menos de dois meses que nos casamos, e falas como se pensasse que estará morto antes da primavera. Sim, e que eu morrerei muito pouco tempo depois. Nunca ouvi tantas tolices juntas! Faz apenas uma semana nadava, lutava, patinava, e estava cheio de vida. O que te acontece agora?
Harry decidiu então que não podia responder com evasivas. depois de tudo, ela era sua esposa, e tinha direito de saber tudo. A fez sentar então a seu lado e contou tudo, excetuando o sonho das tumbas e, é claro , a morte do Viktor Shukshin. Explicou todo seu treinamento esportivo e ginástico dos meses passados como um meio para assegurar sua boa forma, necessária em seu futuro trabalho, que por certo podia ser perigoso. Isto o levou a falar da organização PES britânica, embora não o fez em profundidade. Era suficiente com que ela soubesse que ele não era a única pessoa dotada de talentos estranhos; que em efeito havia muitos mais, e que havia também potências estrangeiras enfrentando ao mundo livre, e dispostas a utilizar estes talentos de percepção extra-sensorial nessa luta. Parte do trabalho do Harry dentro da organização era assegurar que estas potências estrangeiras fracassassem; seu talento como necroscópio seria utilizado como arma contra elas. O futuro, por conseguinte, era no melhor dos casos incerto. Seu bate-papo sobre testamentos e coisas semelhantes tinha sido simplesmente uma manifestação desta insegurança: ele acreditava que era melhor estar preparado para qualquer eventualidade.
Harry, enquanto dizia todas estas coisas a Brenda, perguntava-se se não estaria cometendo um engano, se não tivesse sido melhor que ela continuasse sem saber nada. E se perguntou também sobre seus próprios motivos. O contava porque desejava prepará-la para... para o que pudesse passar? Ou ela tinha razão, e era simplesmente porque se sentia deprimido e queria compartilhar o peso de tudo aquilo com alguém?
Ou era que se sentia culpado? Ele tinha agora um caminho a seguir, e devia continuar. A caça não tinha terminado; Shukshin não tinha sido mais que um passo na direção correta. Acaso sentia que Brenda estava em perigo porque ele tinha escolhido esse caminho? O epitáfio do sonho —e a advertência de sua mãe— não haviam dito que Brenda fora morrer como consequência de algo que Harry estivesse fazendo. Ele a tinha engravidado, sim, e nasceria uma criança, mas que influência podia ter o que Harry decidisse fazer agora no fato físico do parto? Contudo, uma persistente voz no mais recôndito de sua mente lhe dizia que sim, que podia influir.
Assim, parecia que o motivo de que o contasse tudo era fundamentalmente que se sentia culpado, e também que precisava dizer a alguém, confiar em um amigo. O problema era que estava confiando à pessoa a quem punha em perigo, o que aumentava o sentimento de culpa além de toda proporção.
Tudo era muito confuso e absurdo, e tentar compreendê-lo o fatigava enormemente, de modo que quando terminou de falar Harry se recostou na cama e deixou que Brenda meditasse sobre o dito.
Brenda, entretanto, aceitou tudo como se não se tratasse de algo especial, e inclusive parecia aliviada.
—Harry —lhe explicou imediatamente depois—, sei que não sou tão inteligente como você, mas tampouco sou estúpida. Sabia que algo acontecia desde que me contou aquela historia sobre o necroscópio. Dava-me conta de que isso não era tudo, de que queria seguir falando mas tinha medo. Além disso, o senhor Hannant me perguntou em Harden por ti em várias ocasiões. E por seu modo de falar, eu percebi que ele também pensava que havia algo estranho contigo...
—Hannant? O que te disse? —perguntou receoso Harry.
—Oh, nada que possa te inquietar! Na verdade, acredito que te tem um pouco de medo, Harry. Escutei-te falar com sua falecida mãe em sonhos, e me dava conta de que era uma conversação verdadeira. E havia tantas outras coisas! O que escrevia, por exemplo. Como chegou a ser tão repentinamente um brilhante escritor? Tenho lido seus contos, Harry, e não têm nada que ver contigo. São maravilhosos, claro, mas você não o é! Quero dizer que é uma pessoa como todas, Harry. Eu te quero, mas não sou uma tola. E a prática de natação, de patinação, de judô? pensaste que eu acreditava que era um super-homem? Asseguro-te que não me custa nada acreditar que é um necroscópio. Alegra-me que finalmente me tenha dito a verdade, Harry. É um alívio...
Harry não podia acreditar o que ouvia. E pensar que alguns duvidavam do sentido comum das mulheres! Por último disse:
—Mas não lhe contei tudo, querida.
—Isso já sei —respondeu Brenda—. Claro que não me há isso dito! Se for trabalhar para sua pátria, haverá muitas coisas que deverá manter em segredo, inclusive de mim. Compreendo-o, Harry.
Harry se sentiu como se lhe tivessem tirado um enorme peso de cima. Respirou muito fundo, voltou a recostar-se na cama, a cabeça afundada no travesseiro.
—Brenda, ainda estou muito cansado —bocejou—. Agora deixe dormir, querida. Amanhã tenho que ir a Londres.
—De acordo, meu amor —disse inclinando-se para beijá-lo na frente—. E não se preocupe, não te pedirei que me conte nada.
Harry dormiu sem interrupção até a tarde; logo se levantou e comeu. Por volta das oito saíram a dar um passeio, e retornaram quando Brenda começou a ter frio. Correram a casa, tomaram uma ducha quente, fizeram o amor e depois dormiram profundamente toda a noite.
Aquele foi o dia em que Harry fez menos coisas em toda sua vida. Mais tarde, recordaria-o como a ocasião em que mais tinha esbanjado tempo.
Sir Keenan Gormley ia pensativo quando deixou a sede da Organização PES, desceu no elevador até o pequeno vestíbulo e saiu ao frio da noite londrina. Nos últimos tempos tinha vários motivos de preocupação, e um deles era Harry Keogh. O jovem ainda não se comunicara com ele, e este, com cada dia que passava, sentia que o tempo lhe pesava como pedaços de chumbo. Eram as nove da noite quando Gormley se dirigiu à estação do metrô Westminster; nesse instante Harry Keogh, a trezentos e sessenta quilômetros de distância, fazia amor com sua esposa antes de ir dormir.
Gormley tinha outros dois motivos de preocupação: seu sub-chefe, Alec Kyle, que perguntava continuamente pelo seu estado de saúde. Isto não teria sido inquietante, se Alec Kyle não fosse um vidente de grande talento, um homem cuja especialidade era predizer o futuro. A preocupação do Kyle pela saúde do Gormley tinha sido muito evidente nos últimos dez dias, apesar de que o sub-chefe tinha tentado dissimulá-la. Por esta razão Gormley não lhe tinha perguntado nada, mas de todos os modos aquilo o inquietava.
E também havia o outro assunto, o importante. Nas últimas seis ou sete semanas, Gormley tinha percebido em ao menos doze ocasiões que havia PES perto dele. Nunca se tinha encontrado com nenhum cara a cara, nem tinha sido capaz de individualizar a ninguém, mas sabia que estavam ali. Havia dois, no mínimo.
A sensação era tão forte que podia reconhecê-los como reconhecia a seus próprios homens, mas estes não eram dos seus. Suas auras eram estranhas. E sempre o tinham vigiado da segurança que lhes proporcionava uma multidão, em lugares muito transitados, nunca em um sítio onde Gormley pudesse associar um rosto a suas sensações. O diretor da organização britânica se perguntava durante quanto tempo seguiriam vigiando-o, e se isso era tudo o que fariam. Quando Gormley chegou à estação de metrô e desceu as escadas, tateou seu Browning de 9 mm com satisfação. Isto o reconfortava. Não havia no mundo nenhum PES invulnerável às balas; Gormley, ao menos, não conhecia nenhum.
Havia poucas pessoas na plataforma e ainda menos no vagão do metrô. Gormley pegou um exemplar do Daily Ato que alguém tinha deixado. Comprovou, um tanto alarmado, que as manchetes lhe pareciam estranhas. Afastou -se tanto da realidade? Sim, possivelmente sim. Seu trabalho lhe exigia um grande esforço, e quase todo seu tempo; esta era a terceira noite seguida que trabalhava até tarde. Já nem sequer recordava quando tinha sido a última vez que se sentou a ler um livro de uma vez só, ou que tinha recebido amigos em sua casa. Possivelmente Kyle tinha razão ao preocupar-se com ele, embora só no aspecto pessoal, não trabalhista. Talvez devesse sair de férias, e deixar a seu sub-chefe à frente da organização. Deus sabia que, cedo ou tarde, teria que fazê-lo. E ele prometeu a si mesmo que descansaria logo que tivesse introduzido o jovem Harry Keogh no grupo.
Keogh... Gormley tinha pensado muito nele, e nas múltiplos maneiras em que podia ser aproveitado seu talento. Claro que por agora isso não era mais que um projeto, mas de todos os modos fascinante. No momento em que Gormley começava a dar voltas em sua cabeça com tudo aquilo, o trem chegou a St. James e sir Keenan só teve olhos para um par de pernas incríveis em minissaia que passaram diretamente em frente a seus olhos e desceram na estação do metro. Era um milagre que tão encantadora criatura não morresse de frio, pensou, e isso sim que seria uma perda!
Gormley riu de si mesmo e de seus pensamentos. Sua mulher, bendita seja, sempre se queixava disso, de que os olhos iam atrás das garotas. Bom, pode ser que seu coração não estivesse de todo bem, mas o resto de seu corpo funcionava perfeitamente. E se tivesse trinta anos menos, não se teria contentado só olhando a aquela mocinha!
Tossiu, voltou a concentrar-se no periódico e tentou ficar em dia com as notícias do mundo. Na metade da segunda coluna, entretanto, começou a perder todo interesse. Aquilo, comparado com seu trabalho, era realmente aborrecido. O seu, era um mundo de videntes, telepatas, e agora, um necroscópio. De novo estava pensando em Harry Keogh.
Gormley e Kyle estavam acostumados a praticar um jogo de associação de palavras. Às vezes, isto servia para que Kyle desenvolvesse suas vidências, abria-lhe uma janela para o futuro. O talento do sub-chefe, pelo general, operava com independência de seus pensamentos conscientes; habitualmente «sonhava» suas predições. Se tentasse fazê-las de forma consciente, não obtinha nenhum resultado. Mas se alguém o pegasse despreparado...
Tinham brincado poucos dias antes. Gormley estava pensando em Keogh e tinha entrado no escritório do Kyle. Quando viu que tipo de PES estava sentado ali, sorriu e disse:
—Jogamos?
—Adiante —disse Kyle, que o tinha entendido imediatamente.
—É um nome —lhe advertiu Gormley, e Kyle assentiu com a cabeça.
—Estou preparado —respondeu, e se ergueu em sua cadeira.
Gormley deu uns passos pelo despacho, logo se voltou, olhou ao outro e disse:
—Harry Keogh.
—Möbius —respondeu Kyle imediatamente.
—Matemática? —Gormley enrugou a frente.
—Espaço-tempo!
Kyle ficou muito pálido, em sua cara apareceu uma expressão de temor e Gormley se deu conta de que o vidente tinha encontrado algo. Disse-lhe uma última palavra:
—necroscópio!
—Necromante! —respondeu Kyle imediatamente.
—Como? Necromante? —repetiu Gormley, mas Kyle ainda não tinha terminado.
—Vampiro! —gritou logo, e começou a ficar de pé; depois, tremente, sacudindo a cabeça, disse—: Já... já é suficiente, senhor. O que vi, fosse o que fosse, desapareceu.
E isso tinha sido tudo.
Gormley voltou para o presente. Olhou a seu redor e viu que já tinham chegado a estação Vitória e que o trem estava quase vazio. Já se achavam a meio caminho do Sloane Square. E então sentiu que o invadia uma estranha depressão. Tinha a sensação de que algo estava errado, mas não conseguia dizer o que era. Talvez fosse simplesmente que o trem estava vazio, o que a essa hora era bastante estranho, e que sentia falta do bulício da vida, e o contato com outros seres humanos. Mas Gormley não acreditava que essa fosse a explicação. Mais tarde, quando o trem chegou à estação, soube que tudo se devia a seus poderes de percepção extra-sensorial, que se tinham posto em ação.
Comporta-as se abriram e um casal de meia idade desceu do trem, mas antes de que voltassem a fechar subiram dois homens, e sua aura de PES desceu sobre o Gormley como uma onda de água geada. Sim, e agora podia unir dois rostos a suas sensações dos dias passados.
Dragosani e Batu se sentaram frente a sua presa e a olharam friamente, sem expressão alguma em seus rostos. Gormley pensou que eram uma dupla muito estranha e, ao menos na aparência, escassamente compatíveis. O indivíduo mais alto se inclinou para frente, e ao Gormley seus olhos afundados recordaram ao Harry Keogh. Sim, em certo sentido eram como os olhos do Keogh; provavelmente se pareciam na cor da inteligência. E isso era algo especialmente estranho, porque se tinha a impressão de que os olhos de uma cara como a desse homem tinham que ser selvagens, e inclusive de cor vermelha, e que a inteligência que se advertia neles era mais própria de uma besta que de um ser humano.
—Sir Keenan, você sabe o que somos —disse o estrangeiro com uma voz tão profunda como escura, e sem tentar dissimular seu acento russo—, embora não conheça nossa identidade. E nós sabemos o que e quem é você. Por conseguinte, seria uma tolice que ficássemos aqui sentados, fingindo não saber nada os uns dos outros. Não está de acordo?
—Sua lógica é esmagadora —assentiu Gormley, e imaginou que o sangue começava a esfriar-se em suas veias.
—Então, continuemos sendo razoáveis —disse Dragosani—. Se o quiséssemos morto, já o estaria. Não nos faltaram as oportunidades, e você sabe. Assim , quando descermos do trem no South Kensington, não tente correr, não faça escândalo nem tente chamar a atenção. Se o fizer, seremos obrigados a matá-lo, e isso seria uma desgraça que não beneficiaria a ninguém. Compreendeu bem? Está de acordo?
Gormley, que se esforçou por permanecer em calma, elevou uma sobrancelha e disse:
—Você está muito seguro de si mesmo, senhor...
—Dragosani —respondeu o outro—. Boris Dragosani. Sim, estou muito seguro de mim mesmo. E o mesmo acontece a meu amigo aqui presente, Max Batu.
—Me deixe terminar. Ia dizer, considerando que é um estrangeiro —continuou Gormley—. Tenho a impressão de que me vão sequestrar. Mas está seguro de que conhece bem meus costumes, de que não passou nada por alto? Algo que sua lógica não levou em conta?
Gormley, nervoso, agarrou um acendedor do bolso da jaqueta, pôs sobre seus joelhos e apalpou os bolsos como se procurasse um pacote de cigarros, até que finalmente fez um gesto como se fora a colocar a mão no bolso interior do casaco.
—Não! —advertiu-lhe Dragosani, que com movimentos muito velozes tirou seu revólver, provido de silenciador, e apontou diretamente à cara do Gormley—. Não, não nos passou nada por alto. Pode ocupar-se disto, Max?
Batu se levantou e foi sentar se junto ao Gormley, agarrou a mão que este tinha colocada dentro do casaco, obrigou-lhe com suavidade a tirá-la e logo agarrou a Browning que sir Keenan sustentava com dedos trementes. A pistola tinha o seguro posto. Batu esvaziou o carregador, guardou-se os projéteis e devolveu a automática a Gormley.
—Nada, absolutamente nada —continuou Dragosani—. Mas quero lhe advertir que este foi o último engano que lhe permitiremos cometer.
Dragosani guardou o revólver e entrecruzou seus magros dedos sobre o regaço; sua postura era muito pouco natural. Gormley pensou que o homem tinha um aspecto retorcido, felino quase, e bastante efeminado. O inglês não sabia o que pensar dele.
—Um só gesto heróico mais —continuou Dragosani—, e sua morte será imediata.
Gormley sabia que não estava mentindo; guardou cuidadosamente a automática em sua cartucheira, e disse:
—O que querem de mim?
—Queremos falar com você —respondeu Dragosani—. Eu quero... quero lhe fazer algumas pergunta.
—Outros já me interrogaram antes —respondeu Gormley com um sorriso forçado—. Suponho que serão perguntas muito agudas.
Dragosani, então lhe sorriu e foi algo realmente horrível. Gormley sentiu repulsão física. A boca daquele homem se abria como a de um mastim, e seus dentes alargados brilhavam, brancos e afiados.
—Não, sir Keenan, não haverá luzes que o ceguem ante seus olhos, se for isso o que quer dizer —disse Dragosani—. Tampouco droga, tenazes para lhe arrancar as unhas ou uma mangueira para lhe encher o ventre de água. Não, nada disso. Mas você me dirá tudo o que eu quero saber, pode estar seguro.
O trem estava chegando à estação South Kensington, e começou a diminuir a marcha. O coração de Gormley deu um salto no peito. Tão perto de casa, e entretanto tão longe! Dragosani tinha um casaco leve dobrado sobre o braço. Deixou que a ponta de sua arma aparecesse por um instante entre as dobras, e recordou a seu prisioneiro:
—Nada de heroísmos.
Na plataforma havia um punhado de gente, jovens em sua maioria, e um casal de vagabundos com uma garrafa entre ambos. Embora Gormley procurasse ajuda, não lhe seria fácil encontrá-la ali.
—Saia da estação pelo caminho que toma todas as noites —lhe disse Dragosani, a seu lado.
O coração do Gormley pulsava rapidamente. Sir Keenan sabia que se fosse com esses homens, tudo terminaria para ele. Tinha mais experiência nesse campo que os dois agentes estrangeiros. Quando Dragosani lhe havia dito seu nome e o de seu companheiro, era o mesmo que dizer: «Mas não lhe servirá de nada sabê-los, porque não terá tempo de contar a ninguém». Tinha que fugir, mas como fazê-lo?
Saíram do metrô pelo Pelham Street e logo foram por Brompton Road até Queen's Gate.
—Eu atravesso aqui, no semáforo —disse Gormley, mas quando chegaram ao estacionamento, no centro, a mão do Dragosani apertou com mais força o braço de seu prisioneiro.
—Nosso carro está aqui —disse, e conduziu ao Gormley para a direita, e ao longo de uma fileira de carros estacionados até chegar a um Ford igual a muitos outros.
Dragosani tinha comprado o carro de segunda mão (embora suspeitasse que era de décima) e à vista, sem que lhe pedissem papéis nem lhe fizessem perguntas. Seria utilizado somente durante a estadia dele e de Batu na Inglaterra, e logo o encontrariam incendiado em algum caminho pouco transitado. Mas foi então, quando se aproximavam do carro, que Gormley pensou que tinha chegado sua oportunidade.
Um carro da polícia estacionou a menos de vinte metros, e um agente descendeu e começou a inspecionar as portas dos carros estacionados. Gormley supôs que era uma inspeção de rotina, embora no que lhe concernia, mais parecia um milagre.
Dragosani sentiu uma repentina tensão no Gormley, e adivinhou seus movimentos antes de que os fizesse. Batu, que tinha aberto as portas traseira e dianteira do lado onde estavam, começava a dá-la volta para olhá-los quando seu companheiro lhe sussurrou:
—Agora, Max!
Batu não estava preparado, mas se agachou imediatamente em sua posição de ataque e seu rosto de lua enche sofreu uma metamorfose monstruosa. Dragosani, que tinha agarrado ao Gormley, desviou a vista no último momento. Gormley tinha aberto a boca para pedir ajuda, mas só emitiu uma espécie de grasnido. Viu a cara do Batu recortada contra a escuridão, um olho semelhante a uma ranhura amarela, o outro redondo, verde e pulsando como se estivesse cheio de um pus movediço. Algo se deslizou do rosto do Batu para o Gormley, rápido como o golpe de uma faca mental, e seu fio localizou o espírito de sir Keenan, sua alma, e a partiu em dois. Não se ouvia mais ruído que o dos escassos carros que passavam pela rua, mas Gormley escutou o cacofônico tanger de um grande sino quebrado que ressoava em seu interior, e soube que se tratava de seu coração.
Este deveria ter sido o final de tudo, mas não foi assim. Gormley, arremessado para trás pela comoção provocada pelo terrível poder do Batu, bateu ruidosamente contra o flanco de um carro estacionado atrás do Ford. O agente de polícia se voltou para averiguar o que acontecia enquanto seu companheiro descia do patrulheiro. Outro veículo, um Porsche, freou com estrépito, e seus faróis iluminaram as três figuras, recortadas contra a escuridão. Um segundo depois um jovem desceu do Porsche, e com rosto preocupado sustentou a Gormley para que não caísse.
—Tio! —disse olhando aos olhos exagerados do Gormley, e sua tez azulada—. Meu Deus, tem que ser seu coração!
Os dois policiais se apressaram para ver o que acontecia.
Dragosani estava pouco menos que paralisado pela mudança na situação. Tudo começava a se complicar. Fez um esforço para recuperar o domínio de si mesmo e sussurrou ao Max Batu:
—Depressa! Ao carro! —E logo se voltou por volta do recém-chegado; os policiais já estavam junto a eles, e ofereciam sua ajuda.
—O que aconteceu? —perguntou um agente.
Dragosani reagiu rapidamente.
—Vi que este homem cambaleava —disse—, pensei que estava bêbado, mas de todos os modos me ofereci para ajudá-lo, e lhe perguntei se podia fazer algo por ele. Murmurou algo sobre seu coração... ia levá-lo a um hospital quando chegou este cavalheiro ...
—Sou Arthur Banks —interveio o aludido—. Este é sir Keenan Gormley, meu tio. Ia encontrar-me com ele na estação quando o vi com estes dois homens. Mas este não é o momento nem o lugar para explicações. Meu tio sofre do coração, e temos que levá-lo a um hospital. E imediatamente!
Os dois policiais ficaram em ação. Alguém disse a Dragosani:
— Nos chamará mais tarde, senhor? Assim podemos averiguar um ou dois detalhes mais. Obrigado. —Depois ajudou Banks a colocar seu tio no Porsche enquanto o condutor da patrulha corria ao carro e acendia a luz azul. Logo, quando Banks arrancou e deu a meia volta com o Porsche, o agente lhe gritou:
—Nos siga, senhor! Estaremos no hospital em um momento!
Um instante mais tarde se sentou na patrulha junto ao motorista, e a sirene começou a soar incessante. Dragosani, oscilando entre o estupor e a incredulidade, viu afastar-se os dois carros. Ficou olhando-os até que desapareceram de vista e logo, lentamente, subiu ao Ford e, tremendo de ira, sentou-se junto a Batu. Um momento depois Dragosani fechou a porta com tal força que por pouco fica com a maçaneta na mão.
—Maldito seja! —grunhiu—. Malditos sejam os britânicos, sir Keenan Gormley, seu sobrinho e esses policiais tão amáveis! Malditos sejam todos!
—As coisas não vão bem —esteve de acordo Batu.
—E maldito você seja também! —disse Dragosani—. Você e seu maldito mau-olhado! Não matou a sir Gormley!
—Sei muito bem o que faço —respondeu com tranquilidade Batu—. E o matei. Percebi-o, foi como esmagar uma barata.
Dragosani pôs o carro em marcha.
—Digo-lhe que me olhou! Eu o vi. E falará...
—Não —disse Batu meneando a cabeça—. Não terá forças para falar, camarada, Gormley é um homem morto, dou-lhe minha palavra. É um homem morto agora mesmo.
E no Porsche, Gormley balbuciou uma só palavra: «Dragosani», que não significava nada para seu horrorizado sobrinho, e desabou sobre o assento. Um fio de saliva lhe caía pela comissura da boca.
Max Batu tinha razão: chegou morto ao hospital.

No dia seguinte, Harry Keogh chegou à casa de Gormley, em South Kensington, aproximadamente às três da tarde. Arthur Banks, enquanto isso, tinha estado muito ocupado. Parecia que tudo tinha ocorrido faz um ano, mas em realidade tinha sido só no dia anterior que ele e sua esposa, a filha do Gormley, tinham vindo de Chichester para uma visita relâmpago. Depois do ataque cardíaco sofrido por seu tio, o mundo inteiro parecia haver-se tornado louco, espantosamente louco.
Primeiro tinha sido uma má ideia ter que chamar a sua tia Jacqueline Gormley do hospital, para lhe contar o acontecido; logo, ela tinha sofrido uma crise nervosa e sua filha tinha tido que consolá-la e cuidá-la durante toda a noite, que sua mãe tinha passado dando voltas pela casa e procurando a seu marido. Essa manhã Jacqueline ficou em casa até que trouxeram sir Keenan do necrotério do hospital. O funcionário da funerária tinha feito um bom trabalho, mas mesmo assim o rosto do Gormley continuava crispado em um rictus horrível. Os preparativos para o funeral foram rápidos, e atendendo à vontade expressa de Gormley: cremariam-no no dia seguinte, e até então, a capela ardente se montaria em sua casa. Jackie, entretanto, não podia ficar ali, com o aspecto que tinha seu marido. Não parecia sir Gormley! Assim , levaram-na a casa de seu irmão, no outro extremo de Londres. Também Banks teve que ocupar-se disto, e finalmente tinha levado a sua esposa até a estação do Waterloo, para que pudesse voltar para Chichester com os meninos. Ela estaria de volta para o funeral, e até esse momento ele estava sozinho em casa, ou melhor dizendo, em companhia de seu defunto tio. A tia Jackie lhe tinha feito prometer que não deixaria sozinho a sir Keenan e, claro está, ele não tinha podido negar-se.
Mas quando retornou à casa depois de deixar sua esposa no trem ao Chichester...
Aquilo tinha sido o pior de tudo. Tinha sido... algo insensato, vampírico, incrível. E embora já tivessem passados quinze minutos, Banks ainda se sentia doente, tremente, atordoado de horror, quando Harry Keogh bateu na porta. Banks, cambaleando, foi abrir- lhe.
—Sou Harry Keogh —disse o jovem que se achava na soleira—. Sir Keenan Gormley me pediu que viesse a vê-lo...
—Me ajude! —sussurrou Banks, como se logo que tivesse fôlego para falar—. Por Deus, me ajude!
Harry o olhou atônito e o sustentou para que não desabasse.
—O que acontece? Esta é a casa de sir Keenan Gormley, verdade?
O outro disse que sim com a cabeça. Banks se estava ficando verde, e a qualquer momento vomitaria de novo.
—Passe. Ele está no salão. Mas não vá ali. Tenho... tenho que chamar à polícia. Alguém tem que fazê-lo!
Os joelhos do Banks começaram a dobrar-se e Harry pensou que ia cair. antes de que isto acontecesse o empurrou para trás, até sentá-lo em uma cadeira no vestíbulo. Logo se ajoelhou junto a ele e o sacudiu.
—O que aconteceu a sir Keenan?
Harry soube antes de que Banks lhe respondesse.
Logo morrerá entre sofrimentos. Foi, por sobre todas as coisas, um patriota.
Banks olhou ao Harry.
—Você... Você trabalhava para ele?
—Ia começar muito em breve.
Banks estremeceu, levantou-se de um salto e foi cambaleando até uma pequena sala ao lado do vestíbulo.
—Morreu ontem à noite —conseguiu dizer Banks—. De um ataque ao coração. Iriam incinerá-lo amanhã, mas agora... —O homem abriu a porta da sala e um cheiro de vômito invadiu o vestíbulo; a estadia tinha um grande lavabo, e era evidente que Banks já o tinha utilizado antes.
Harry virou o rosto e respirou uma baforada de ar puro antes de fechar a porta de entrada, que ainda estava aberta. Logo deixou a Banks, que continuava sacudido pelos tremores, e se dirigiu ao salão. E ali viu com seus próprios olhos o que tanto tinha perturbado a Banks.
E o que tinha acontecido com sir Keenan Gormley.
Segundo Banks, tinha morrido de um ataque ao coração. Uma só olhada bastou a Harry para saber que sim, que tinha sido um ataque embora era melhor não pensar de que classe. Lutou contra as náuseas que o invadiram e retornou a Banks, que ainda estava inclinado sobre si mesmo.
—Quando puder, chame à polícia —disse Harry—. E também ao escritório de sir Keenan, se houver alguém de guarda. Estou seguro de que quererão saber... isto que aconteceu. Eu ficarei com você, e com ele, um pouco.
—Obrigado —balbuciou Banks sem levantar a cabeça—. Lamento que me veja neste estado, mas quando entrei e o achei assim...
—Compreendo-o —disse Harry.
— Ficarei bem em um minuto. Já estou um pouco melhor.
—De acordo.
Harry voltou para a outra sala. Olhou tudo, começou a catalogar o horror, e logo se deteve. O que fez que se detivesse foi isto: uma cadeira tipo Reinha Ana, com patas como garras de animal, estava tombada no chão. Uma das patas de madeira estava quebrada justo debaixo do assento. Encravado no pé de madeira se via um dente, e outro, arrancado, estava no chão. Tinham aberto a força a boca do cadáver, e agora parecia um buraco negro no rosto contorcido em uma careta imóvel.
Harry desabou nesta cadeira sem restos de ninguém— e fechou os olhos, imaginando o aspecto da sala antes do horror. Sir Keenan em seu caixão de carvalho, com uma mortalha negra; as velas aromáticas ardendo na cabeceira e os pés. E logo, enquanto jazia solitário, a... a invasão.
Mas por que?
—Por que, Keenan? —perguntou.
—Não! Vá embora! —foi a imediata resposta, e era tal a força do temor que expressava, que Harry virou para trás na cadeira—. Dragosani, você é um monstro! Tenha piedade, pelo amor de Deus!
—Dragosani? —Harry tentou acalmar ao Gormley com um toque de seus dedos mentais—. Eu não sou Dragosani, Keenan. Sou Harry Keogh.
—Harry? Harry Keogh? —e logo um suspiro de alívio—. Graças a Deus! Graças a Deus é você, Harry..., e não ele!
— Dragosani fez isto? —disse Harry, chiando os dentes—. Mas por que? Está louco? Somente alguém completamente louco poderia...
—Não —o interrompeu Gormley com uma categórica negação—. Claro que está louco, sim, mas é ardiloso como uma raposa! E seu talento é... é algo horrível!
E Keogh, de repente, acreditou saber a resposta a todo aquilo.
—Dragosani veio aqui depois de que você morreu! —disse atônito—. É um necroscópio, como eu!
—Não, não —negou outra vez Gormley—. Ele não é como você, Harry. Eu estou lhe falando porque quero. Todos nós falamos com você, porque nos proporciona paz, consolo. Você é nosso contato com o que sonhávamos em vida, e que agora se desvaneceu. Você é nossa oportunidade, nossa última oportunidade, de que algo nosso permaneça, e inclusive seja irradiado a outros. Você, Harry, é uma luz na escuridão. Dragosani, em troca...
—Qual é seu dom?
—A necromancia... um pouco muito diferente do que você possui!
Harry olhou uma vez mais a seu redor, mas o horror voltou a sobressaltá-lo e fechou os olhos.
—Mas isto é obra de um monstro necrófago!
—Sim, Dragosani é isso, e possivelmente algo pior. —Gormley se estremeceu, e Harry sentiu o estremecimento de terror absoluto que sacudiu o espírito de seu interlocutor—. Ele... ele não fala, Harry, nem sequer faz perguntas. Simplesmente estende as mãos e agarra, rouba. Não se pode ocultar nada; Dragosani encontra as respostas em nosso sangue, em nossas vísceras, na medula. Os mortos não sentem dor, Harry, ou ao menos assim deveria ser. Mas isso também é parte de seu talento. Quando Boris Dragosani trabalha, faz-nos sentir dor. Eu senti as facas, suas mãos, suas unhas que me rasgavam. Percebi cada coisa que ele me fez, e tudo foi terrível! Antes de que passasse um minuto lhe tinha contado tudo, mas ele não trabalha assim, não é essa sua arte. Como poderia estar seguro de que eu diria a verdade? Mas desta maneira ele sabe com certeza que é a verdade. Está escrita na pele e nos músculos, em ligamentos, tendões e glóbulos. Ele pode lê-la nos fluidos cerebrais, nas mucosidades dos olhos e do ouvido, na textura das células mortas.
Harry manteve os olhos fechados, e fez um gesto de negação com a cabeça. sentia-se doente, enjoado e totalmente desorientado, como se tudo isto lhe estivesse acontecendo a outra pessoa. Por fim disse:
—Isto não pode, não deve voltar a acontecer. Terá que impedir que Dragosani siga com isto. Terá que acabar com ele. Eu tenho que acabar com ele, mas não posso fazê-lo sozinho!
—Sim, Harry, terá que impedir que siga operando. E mais agora que sabe tudo. apoderou-se de meus segredos; conhece nossos pontos fortes e nossas debilidades. E todo isso é informação que ele pode utilizar. Ele e seu chefe, Gregor Borowitz. E é possível que você seja o único que possa impedir que siga atuando.
Harry ouviu o Banks no telefone do vestíbulo. Ficava pouco tempo e Gormley tinha que lhe dizer muitas coisas.
—Escute, Keenan. Temos que nos dar pressa. Ficarei um momento mais com você, e logo irei a um hotel. Mas se agora fico aqui, a polícia quererá falar comigo. De todos os modos, irei procurar um hotel e poderemos falar até... —deu-se conta do que tinha estado a ponto de dizer e se tragou as palavras não sortes, mas pensadas.
—Até que eu seja incinerado, sim —disse Gormley, e Harry imaginou fazendo um gesto de compreensão—. Teria que ter sido logo, mas agora provavelmente o adiarão.
—Comunicarei-me com você —disse Harry—. Ainda tenho que me inteirar de muitas coisas. Sobre nossa organização, sobre a deles, e sobre o que devo fazer para encontrá-los. Muitas coisas.
—Conhece Batu? —O medo do Gormley foi de novo evidente—. É o pequeno mongol, Harry, sabe algo dele?
—Sei que é um deles, mas...
—É um observador, pode matar com um olhar! Ele me produziu o ataque no coração. Max Batu me matou, Harry. Seu rosto e seu olho maligno geram um veneno mental. Seu poder corrói como o ácido, derrete o cérebro e o coração. Ele me assassinou...
—Então, também terei que ajustar contas com ele —respondeu Harry com o tom de voz de alguém que já tomou uma decisão.
—Mas seja prudente, Harry.
— Eu serei.
—Acredito que todas as resposta estão em você mesmo, moço, e Deus sabe quanto rezo para que as encontre. Mas quero lhe advertir algo: quando Dragosani estava... ocupando-se de mim, percebi algo mais nele, algo que não era sua necromancia. Harry, nesse homem há um demônio mais velho que o mundo, e enquanto ele esteja na terra, ninguém está a salvo. Nem sequer as pessoas que acreditam que podem dominá-lo.
—Estarei alerta —respondeu Harry—. E encontrarei as respostas, Keenan; com sua ajuda as encontrarei todas. Com a ajuda que você me dará enquanto siga nesta casa.
—Pensei nisso, Harry —disse o outro—. E, sabe você?, não acredito que a incineração seja o final. Quero dizer, isto não sou eu. O que você vê era eu, mas também era um menino nascido na África do Sul, e o jovem que se alistou no exército britânico quando tinha dezessete anos, e o diretor da Organização E britânica durante treze anos. Agora, todos eles se foram, e depois de minha pira funerária, também se terá ido esta minha parte. Mas eu ainda estarei aqui, em algum lugar.
—Assim o espero —disse Harry, e logo abriu os olhos e ficou de pé, mas evitou olhar a seu redor.
—Vá procurar um hotel, então —disse Gormley—, e volte a me visitar logo que possa. quanto antes comecemos, melhor. E depois... quero dizer, quando tudo isto chegar a seu fim, se é que alguma vez chegará...
—Sim?
—Bom, seria agradável que viesse de vez em quando para falar comigo. Se não me engano, é a única pessoa que pode fazê-lo. E você sabe que sempre será bem-vindo.

Uma hora mais tarde, Harry se fechou em seu quarto, em um hotel barato, e se comunicou outra vez com Gormley. E foi muito fácil fazê-lo, como acontecia sempre quando já tinha estado em contato com alguém. O antigo diretor da Organização E o estava esperando, e já tinha a informação organizada que devia lhe passar em uma ordem de prioridades. Começaram com a própria Organização E —uma detalhada descrição de seu funcionamento e das pessoas que trabalhavam nela— e seguiram pelas razões pelas quais era melhor que Harry não falasse ainda com o sub-diretor da organização, nem tentasse entrar nela.
—Seria uma desnecessária perda de tempo —explicou Gormley—. Oh, claro está que haveria alguns benefícios. Para começar, você teria dinheiro para cobrir todos os gastos necessários, mas ao mesmo tempo eles quereriam examiná-lo com minúcia. E, claro está, estarão ansiosos por provar seu talento. Sobre tudo agora que eu morri, e quando sair a luz o que fizeram com meu cadáver...
—Acredita que suspeitariam de mim?
—De um necroscópio? É obvio! Eu tenho um arquivo com seus dados, mas está incompleto, e na verdade eu sou o único que poderia ter respondido por você. Assim já vê, quando nossa organização finalmente o liberasse, os outros já lhe levariam uma grande vantagem. O tempo é fundamental, Harry, e não devemos perdê-lo. De modo que lhe proponho o seguinte: não tente, no momento, unir-se à Organização E, e trabalhe por conta própria. Depois de tudo, os únicos que sabem algo de você são Dragosani e Batu. O problema é que Dragosani sabe tudo sobre você porque obteve a informação de mim. O que devemos nos perguntar é: por que Borowitz enviou esses dois a Inglaterra? E por que precisamente agora? O que está preparando? Ou só está estirando um pouco seus tentáculos? Borowitz teve antes agentes neste país, mas não eram mais que buscadores de informação. Eram inimigos, e nos espiavam, mas não eram assassinos. assim, o que aconteceu para que Borowitz tenha decidido passar da guerra fria a quente?
Harry lhe falou do Shukshin, e lhe disse o que pensava de todo aquilo.
Quando Gormley respondeu, seus pensamentos eram grandemente irônicos.
—De modo que, desde o início trabalha para nós . Que pena que eu não soubesse de tudo isto quando fui te ver! Poderíamos ter feito o trabalho muito mais rápido. Harry, pode que ser Shukshin fosse muito importante para você, mas não era de maneira nenhuma um peixe gordo. E talvez até teríamos podido utilizá-lo.
—Eu o queria para mim —disse Harry, com violência contida—. O queria fora de circulação para sempre! De todas formas, não sabia que houvesse uma relação entre ele e os PES russos. Descobri depois de matá-lo. Mas o fato, já está feito, e agora devemos seguir adiante. De modo que você quer que trabalhe por minha conta. Mas há um problema: não sei nada sobre o trabalho de um agente. Só sei o que quero fazer: tenho que matar ao Dragosani, Batu e a Borowitz. Essas são minhas prioridades, mas nem sequer sei como começar.
Gormley parecia compreender o problema.
—Essa é a diferença entre a espionagem convencional, e o que se realiza mediante percepção extra-sensorial, PES. Todos conhecemos os truques e artefatos do primeiro, a necessidade de clandestinidade, as armadilhas que são necessárias. Mas nenhum de nós sabe muito sobre o segundo. A gente faz o que seu talento lhe sugere, e terá que encontrar a melhor maneira de utilizá-lo. Isso é tudo o que podemos fazer. Para alguns de nós é fácil; nosso talento é reduzido, e não podemos passar certos limites muito claros. Eu sou um de esses. Posso descobrir a um PES a um quilômetro de distância, mas aí acaba tudo. Em seu caso, entretanto...
Harry começava a sentir-se frustrado. O trabalho que devia realizar parecia imenso, impossível. Ele não era mais que um homem, com uma só mente, e um talento que ainda precisava amadurecer. O que poderia fazer?
Gormley percebeu imediatamente seu estado de ânimo.
—Harry, não me escutou. Disse que tem que descobrir a melhor maneira de utilizar seu talento. Até agora não o tem feito. Sejamos francos, quais são seus talentos?
—Falo com os mortos! —replicou bruscamente Harry. Isso é o que eu faço, sou um necroscópio.
Gormley era muito paciente.
—Harry, você não tem feito mais que arranhar a superfície. Tem escrito os contos que um morto não pôde terminar. Utilizou as fórmulas que um matemático não pôde desenvolver em vida. Os mortos lhe ensinaram a conduzir, a falar russo e alemão. Fizeram que nadasse melhor, que fora um lutador competente, e uma ou duas coisas mais. Mas você, pessoalmente, que valor retirou a tudo isso?
—Nenhum! —respondeu Harry detrás pensá-lo um instante.
—Muito bem, nenhum valor. Porque você se equivocou ao escolher a seus interlocutores. Deixou que seu talento o guiasse, em lugar de guiá-lo você. Sei que os exemplos que vou lhe dar não são muito bons, mas você é como um hipnotizador que só pode hipnotizar a si mesmo, ou um vidente que prediz sua própria morte para o dia seguinte. Você tem um talento absolutamente original, mas não tenta nada novo. O problema reside em que é um autodidata. Assim , em certo sentido você é um ignorante, como um selvagem em um banquete, fartando-se de comida mas sem saboreá-la. E que não pode reconhecer as coisas boas por causa de seus condimentos. Se não me engano, você teve a resposta ao alcance de suas mãos quando era um menino, mas sua mente não conseguiu ver todas as possibilidades. De todas formas, agora é um homem, e as possibilidades deveriam ser evidentes. Não para mim, mas para você! Trata-se de seu talento, e deve aprender a utilizá-lo plenamente. Isso é tudo...
Harry se deu conta de que o que Gormley dizia tinha sentido.
—Sim, mas por onde começo? —perguntou desesperado.
—Tenho algo que possivelmente lhe dê uma pista —disse Gormley, com cautela para não parecer muito otimista—. É o resultado de um jogo que estávamos acostumados a jogar com o Alec Kyle, o sub-diretor da organização. Não o mencionei antes porque talvez não sirva para nada, mas poderia ser um ponto de partida...
—Siga —o apressou Harry.
E Gormley desenhou mentalmente esta figura:

—Que diabos é isso? —Harry não parecia muito contente.
—É uma fita de Möbius —explicou Gormley—. Recebe o nome de seu inventor, um matemático alemão chamado August Ferdinand Möbius. Pegue uma tira estreita de papel, torça-a em uma meia volta e una os extremos. Uma superfície de duas dimensões se torna unidimensional. Me disseram que daqui se podem inferir muitas coisas, embora eu não sei, porque não sou matemático.
Harry ainda estava desconcertado, mas não pelo princípio mas sim por sua possível aplicação.
—E se supõe que isto tem algo que ver comigo?
—Com seu futuro, provavelmente com seu futuro imediato. —Gormley se mostrava impreciso deliberadamente—. Lhe disse que talvez não servisse de nada. De qualquer forma, lhe contarei o que aconteceu.
Gormley lhe explicou o jogo de associação de palavras que praticavam ele e Kyle.
—De modo que eu comecei com seu nome, «Harry Keogh», e Kyle respondeu «Möbius». Eu então disse: «Matemática?», e ele respondeu: «Espaço-tempo».
—Espaço-tempo? —Harry sentiu que seu interesse despertava—. Isso sim que tem muito que ver com a fita do Möbius. Parece-me que essa tira só é a representação de um espaço curvo, e espaço e tempo estão intrinsecamente unidos.
—Sim? —disse Gormley, e Harry pôde ver mentalmente sua expressão de surpresa—. Esse é um pensamento original, Harry, ou contou com ajuda... do exterior?
A pergunta deu a Harry uma ideia.
—Espere um pouco; não conheço seu Möbius, mas sim a outro matemático.
Harry ficou em contato com o James Gordon Hannant no cemitério do Harden e lhe mostrou a fita.
—Sinto muito, Harry, não posso lhe ajudar —disse Hannant—. Minhas investigações tomaram uma direção muito diferente. Nunca me interessaram as curvas. Isso quer dizer que minha matemática eram, são, muito práticas. Mas você já sabe, claro. Tudo o que possa ser resolvido sobre o papel, provavelmente eu posso fazê-lo. Sou mais visual, se você quiser, que Möbius. Grande parte de seu material estava na mente, era abstrato, teórico. Agora, que se ele e Einstein tivessem podido reunir-se, então sim que teria ocorrido algo grande!
—Mas tenho que descobrir o que é isto! —exclamou desesperado Harry—. Não pode me sugerir nada?
Hannant percebeu a urgência de Harry, e com seu estilo pouco emotivo, calculador, respondeu-lhe:
—Harry, a solução de seu problema é evidente. Por que não consulta ao próprio Möbius? Depois de tudo, você é o único que pode fazê-lo...
Harry, repentinamente entusiasmado, retornou a Gormley.
—Bem —lhe disse—. Ao menos, agora sei por onde começar. E o que outra coisa apareceu em seu jogo com Kyle?
—Depois que ele me respondeu «espaço-tempo» provei com «necroscópio», e ele imediatamente respondeu «necromante».
Harry permaneceu um instante em silêncio, e logo disse:
—Parece que estava lendo meu futuro junto com o seu, Keenan.
—Suponho que sim —respondeu Gormley—. Mas então disse algo que me tem intrigado desde esse momento. Quero dizer, se supusermos que todo o dito está relacionado de algum modo, que diabos tem que ver com tudo isso a palavra «vampiro»?
Harry sentiu um calafrio, e depois de uns segundos, disse:
—Keenan, podemos deixá-lo aqui? Voltarei para você tão logo possa, mas agora tenho que fazer uma ou duas coisas. Quero chamar a minha esposa e procurar uma biblioteca para consultar algumas coisas. E quero ir ver Möbius, de modo que provavelmente comprarei uma passagem de avião para a Alemanha E estou faminto! Além disso, quero refletir um pouco... sozinho, quero dizer.
—Compreendo-o, Harry, e estarei esperando-o quando queira começar de novo. Mas atenda primeiro a suas necessidades que, claro está, são muito maiores que as minhas. Vá pois com os vivos, filho, que os mortos têm muito tempo.
—Além disso, quero falar com outra pessoa, mas por agora esse será meu segredo.
Gormley se sentiu de repente inquieto por Harry.
—Não cometa nenhuma imprudência, Harry. Quero dizer que...
—Você há dito que eu devia fazer as coisas sozinho, a minha maneira —recordou Harry.
O jovem sentiu o gesto de assentimento do Gormley.
—Tem razão, filho. Confiemos em que fará as coisas bem, isso é tudo.
E Harry só podia estar de acordo com esta expressão de desejos.

A última hora da tarde, na embaixada russa, Dragosani e Batu tinham terminado de fazer as malas e se alegravam de antemão pensando que na manhã seguinte voariam a Rússia. Dragosani ainda não tinha começado a escrever seu relatório; este não era o lugar mais adequado para esse tipo de tarefa. Teria sido como escrever uma carta diretamente a Yuri Andropov!
Os dois agentes russos tinham quartos intercomunicáveis, e um só telefone para ambos, que estava onde ocupava Batu. O necromante acabava de estender-se na cama, e estava absorto em seus estranhos, sombrios pensamentos quando ouviu o telefone no quarto de Batu. Um instante depois o pequeno mongol bateu na porta que comunicava ambos os quartos.
—É para você —disse—. O posto telefônico. Dizem que é uma chamada do exterior.
Dragosani ficou de pé e se dirigiu ao quarto de Batu. Este, sentado em sua cama, sorriu.
—Vá, camarada! De modo que tem amigos em Londres? Parece que alguém o conhece.
Dragosani o olhou, carrancudodo, e lhe arrancou o telefone das mãos.
—Posto telefônico? Fala Dragosani. O que acontece?
—Camarada, há uma chamada para você —foi a resposta, dita por uma voz de mulher nasal e inexpressiva.
—Não pode ser. Você deve haver-se equivocado. Ninguém me conhece nesta cidade.
—Diz que você quererá falar com ele —disse a telefonista—. Se chama Harry Keogh.
—Keogh? Ah, sim! Sim, conheço-o, me deixe falar com ele.
—Muito bem. Lembre-se, camarada, que os telefones não são seguros. Ouviu -se um «clique», depois um zumbido, e por fim uma voz jovem, mas estranhamente dura.
—Dragosani, é você? —Aquela voz não correspondia ao rosto exausto e inexpressivo que o tinha fitado da borda do rio gelado na Escócia.
—Sim, sou Dragosani. O que quer, Harry Keogh?
—Quero a você, necromante —respondeu a fria e dura voz—. Quero a você, e o terei.
Os lábios do Dragosani deixaram ao descoberto seus dentes em um silencioso rugido. Seu interlocutor era astuto, atrevido, impetuoso..., perigoso, em soma.
—Não sei quem é você —resmungou Dragosani—, mas evidentemente está louco. Fale claro, ou pendure o telefone e me deixe em paz.
—A explicação é muito simples, «camarada». —A voz se endureceu ainda mais—. Sei o que fez a sir Keenan. Era meu amigo. E será olho por olho, Dragosani, e dente por dente. Eu faço assim as coisas, e você viu. De modo que pode considerar-se um homem morto.
—Sim? —riu Dragosani, sarcástico—. Um homem morto. E você considera muito simpáticos os mortos, verdade, Harry?
—O que você viu em casa do Shukshin não era nada, «camarada» —disse a voz gelada—. Não sabe da missa a metade. Nem sequer Gormley sabia tudo.
— Tolices, Harry! —respondeu Dragosani—. Vi o que pode fazer, e não me dá medo. A morte é minha amiga. Ela me diz tudo.
—Me alegro —disse a voz—, porque muito em breve estará falando com ela, mas frente a frente. De modo que você sabe o que eu posso fazer, não? Bem, pois entretenha-se pensando que a próxima vez o farei a você.
—Desafia-me, Harry? —A voz do Dragosani era perigosamente baixa, carregada de ameaça.
—Sim, é um desafio, e o ganhador leva tudo.
O sangue valaco do Dragosani se acendeu.
—Mas onde? Eu estou fora de seu alcance. E amanhã haverá meio mundo entre nós.
—Sim, já sei que escapa —disse Harry com desprezo—. Mas o encontrarei, e logo. A você, ao Batu e ao Borowitz.
Os lábios do Dragosani voltaram a contrair-se em uma careta feroz.
—Possivelmente deveríamos nos ver, Harry. Mas onde? E quando?
—Saberá quando chegar a hora —disse a voz—. E devo lhe advertir algo mais: para você será ainda pior que para o Gormley.
De repente, o gelo da voz do Keogh pareceu encher as veias do Dragosani. estremeceu-se, fez um esforço por dominar-se, e disse:
—Muito bem, Keogh. Estarei esperando-o, onde queira e quando queira.
—E o ganhador o leva tudo —voltou a dizer a voz.
Ouviu-se depois um débil «clique», e logo o som da linha muda. Dragosani ficou olhando o telefone durante um momento, e logo pendurou de um golpe.
—Farei-o! —disse com tom áspero—. Pode estar seguro, Harry Keogh, de que levarei tudo!

Capítulo quatorze

Dragosani retornou ao château Bronnitsy no dia seguinte pela tarde, e descobriu que Borowitz estava ausente. Seu secretário lhe disse que Natasha Borowitz tinha morrido fazia dois dias. Gregor Borowitz a estava velando em seu dacha, e não queria que o incomodassem. Dragosani, não obstante, telefonou-lhe.
—Ah, Boris! —disse o ancião, sua voz era suave pela primeira vez em muito tempo—. De modo que retornou.
—Gregor, compartilho seu sentimento —disse Dragosani, com uma fórmula de cortesia que lhe resultava incompreensível—. Mas pensei que gostaria de saber que consegui o que você queria. Mais do que você queria, em realidade. Shukshin e Gormley estão mortos, e eu averiguei tudo.
—Muito bem —disse seu interlocutor, com voz desprovida de emoção—. Mas agora não me fale de mortes, Dragosani. Ficarei na dacha uma semana mais. E depois... passará um tempo antes de que possa ser o mesmo de sempre. Eu amava esta mulher, embora fosse uma mal-humorada e uma faladeira. Dizem que tinha um tumor na cabeça. Cresceu de repente. Mas teve uma morte muito doce. Sentirei sua falta terrivelmente. Esta mulher nunca soube guardar um segredo! E eu achava isto muito agradável.
—Sinto muito —disse Dragosani.
Borowitz pareceu esquecer por um momento seu duelo.
—Tome um descanso —disse—. E me ponha isso tudo por escrito. Quero o relatório em uma semana, ou dez dias. E bem feito.
A mão de Dragosani se crisparam sobre o telefone.
—Um descanso me virá de maravilhas —respondeu—. Possivelmente vá visitar um velho amigo. Gregor, posso levar comigo Max Batu? Ele também realizou muito bem sua tarefa.
—Sim, claro que sim. E não me incomodem mais, por agora. Adeus, Dragosani.
E isso foi tudo.

Dragosani não simpatizava com o Batu, mas tinha seus projetos com respeito ao mongol. Além disso, o homem era um impassável companheiro de viagem: falava pouco, não se metia nos assuntos de outros, e suas necessidades eram escassas. Sentia um desmedido amor pelo slivovitz, mas isso não era um problema. O mongol podia beber até que o licor lhe saísse pelas orelhas, mas parecia sóbrio. E as aparências eram tudo o que importava.
Estavam na metade do inverno e por essa razão viajaram de trem. Foi uma viagem com numerosas escalas, e demoraram um dia e meio para chegar ao Galatz. Dragosani alugou ali um carro com correntes para neve, o que lhe devolveu parte da autonomia que tanto lhe agradava. Finalmente, quando tinham passados dois dias da partida e se achavam nos quartos que Dragosani tinha alugado em uma pequena aldeia, perto de Valeni, o necromante se cansou do silêncio de Batu e lhe perguntou:
—Max, não quer saber o que viemos fazer neste lugar? Não lhe interessa averiguar por que o trouxe?
—Na verdade, não —respondeu o mongol de cara de lua cheia—. Suponho que já o descobrirei quando você estiver preparado. Mas, dá-me igual. Acredito que eu gosto de viajar; talvez o camarada general me envie a realizar outros trabalhos ao estrangeiro.
Dragosani pensou: «Não, Max, você não fará mais trabalhos senão os que eu lhe ordene». Mas em voz alta só disse:
—Pode ser que sim.
Quando terminaram de jantar já era de noite, e então Dragosani deu a Batu o primeiro indício do que pretendia.
—Está uma noite esplêndida, Max. Brilham as estrelas e não há uma só nuvem, Vamos dar um passeio; há alguém com quem quero falar.
De caminho às colinas cruciformes passaram junto a um prado onde as ovelhas se agruparam em um ângulo acondicionado especialmente para elas com palha. Havia uma magra capa de neve, mas a temperatura não era muito baixa. Dragosani parou o carro.
—Meu amigo estará sedento —disse—, mas não gosta do slivoritz. O correto, entretanto, é lhe levar algo para beber.
Desceram do carro e Dragosani se meteu no prado, dispersando às ovelhas.
—Essa, Max —indicou Dragosani quando um dos animais se aproximou da cerca onde estava apoiado o mongol—. Não a mate; atordoe-a somente, se puder.
E Max podia. Agachou -se, e seu rosto se contorceu quando olhou à ovelha através dos barras da cerca. Dragosani olhou para outro lado quando o animal, uma formosa fêmea, lançou um agudo chiado de terror. Voltou a olhar a tempo para ver cair ao animal convertido em um tremente monte de lã.
Juntos colocaram o animal no porta-malas e seguiram viagem. depois de um momento, Batu disse:
—Camarada, estava pensando que seu amigo deve ter apetites muito estranhos.
—Assim é, Max.
E logo Dragosani explicou ao Batu o que ia encontrar quando chegassem ao destino.
Batu esteve pensativo uns minutos antes de voltar a falar.
—Camarada Dragosani, sei que você é um homem estranho, somos os dois, na verdade, mas agora me sinto inclinado a pensar que além disso está louco.
Dragosani riu com uma risada que mais parecia o uivo de um cão.
—Quer dizer que não acredita em vampiros, Max?
—Sim, acredito —respondeu o outro—. E acredito no que você me contou. Não quis dizer que você está louco por acreditar neles, mas sim por querer desenterrar a essa criatura.
—Já veremos o que acontece —disse Dragosani com mais seriedade—. Uma coisa mais, Max: veja o que veja, e ouça o que ouça, não se meta. Não quero que ele saiba que você está comigo. Ao menos por agora. Entende o que lhe digo? Você tem que permanecer à margem. Estará-se tão calado e tão quieto que até eu esquecerei que está ali.
—Como quiser —respondeu Batu—. Mas você diz que ele lê em sua mente. Talvez já saiba que estou com você.
—Não, porque quando tenta meter-se dentro de mim posso percebê-lo, e sei como deixá-lo de fora. De qualquer modo, estará muito débil e não poderá lutar comigo, nem sequer mentalmente. Não, Thibor Ferenczy não tem ideia de que estou aqui, Max, e se alegrará tanto quando eu lhe falar que não pensará em me fazer mal.
—Se você diz... —respondeu Batu, com um encolhimento de ombros.
—Agora bem, você disse que eu devia estar louco. Nada disso, Max. Mas este vampiro sabe coisas que só estão ao alcance dos não-mortos, segredos que eu quero conhecer. E o conseguirei, seja como for. Sobretudo agora, que tenho que lutar com esse tal Harry Keogh. Até o momento Thibor me frustrou, mas hoje não poderá. E se tiver que ressuscitá-lo para obter esses segredos... o farei.
—E sabe como? Quero dizer, como ressuscitá-lo.
—Ainda não. Mas ele mesmo me dirá isso, Max. Disso pode estar seguro.
Já tinham chegado. Dragosani estacionou a um lado do caminho, sob as árvores, e juntos caminharam penosamente à fria luz das estrelas, pelo atalho que marcava o rastro do antigo corta fogo, compartilhando entre ambos o peso da inquieta ovelha.
Quando se aproximavam da clareira, Dragosani jogou o animal ao ombro e sussurrou:
—Você fica aqui, Max. Pode aproximar-se um pouco mais, se quiser, e olhar, mas recorde, mantenha-se afastado.
O mongol assentiu, aproximou-se uns poucos passos mais e logo se escondeu, encolhido em seu casaco. E Dragosani foi sozinho até o lugar onde se achava a tumba da criatura enterrada.
Deteve -se na beira do círculo, mas um pouco mais longe que da última vez.
—E agora o que, velho dragão? —murmurou, enquanto deixava cair a assustada e meio morta ovelha a seus pés—. O que fará agora que me converteste em um vampiro? —Dragosani falou em voz muito baixa, para que Max Batu não pudesse ouvi-lo; quando falava com o vampiro lhe resultava mais cômodo pronunciar as palavras que limitar-se às pensar.
Ahhh!, chegou o sussurro mental, fraco como o fôlego de alguém a quem despertam de um sonho muito profundo. É você, Dragosani? Ah, de modo que o adivinhaste!
—Não tive que me esforçar muito, Thibor. Em poucos meses me transformei em um homem diferente. E nem tudo em mim é humano.
E não há cólera? Não está furioso, Dragosani? Parece que desta vez te aproxima quase com humildade! Pergunto-me por que.
—Você sabe por que, velho dragão. Quero que me libere disto.
Ah, não (a monstruosa cabeça fez um gesto de negação na mente do Dragosani), desgraçadamente, não. É impossível. Agora, você e ele são um, Dragosani. Acaso não te chamei «filho» do começo? Parece-me muito apropriado que meu verdadeiro filho cresça agora dentro de ti.
Dragosani não podia se permitir o luxo de enfurecer-se. Ainda não.
—Seu filho? Esta coisa que colocou dentro de mim? Filho, diz? Outra mentira, velho demônio? Quem foi o que me disse que sua espécie não tem sexo?
Dragosani, parece-me que você nunca escuta, suspirou o vampiro. É você, seu hóspede, quem determinou seu sexo. À medida que ele cresce e se converte em tua parte, você se torna como ele. Ao final é uma só criatura, um só ser.
—Mas com sua mente?
Com a sua... mas sutilmente alterada. Sua mente e também seu corpo, mas ambos terão trocado algo. Seus apetites serão... como dizê-lo?, mais urgentes. Suas necessidades... diferentes. Escuta: como homem, seus desejos, suas paixões e suas cóleras tinham os limites próprios da natureza humana. Mas como um vampiros... do que serviria esse grande motor em uma carroceria de carne débil e ossos frágeis? Seria... como um tigre com coração de camundongo.
Isto era, aproximadamente, o que Dragosani tinha esperado do vampiro. Mas antes de tomar uma decisão definitiva, irrevogável talvez, fez um último intento, proferiu uma última ameaça.
—Então, terei que ir e me pôr em mãos dos médicos. Na atualidade são muito diferentes dos que você conheceu, Thibor. Direi-lhes que levo em mim um vampiro. Me examinarão, descobrirão à criatura e me amputarão isso. Têm instrumentos que você nem sequer pode imaginar. E quando o tiverem separado de mim, o abrirão, o estudarão, descobrirão sua natureza. E quererão saber como e por que chegou até mim. O direi. Falarei-lhes dos vampiros. Rirão de mim, claro, tacharão-me de louco, mas não serão capazes de achar outra explicação. E então eu os conduzirei até aqui e lhes indicarei onde está. Esse será o fim. De ti, de seu filho e de toda a lenda. E em qualquer lugar que estejam os vampiros, os homens os buscarão e os destruirão.
Muito bem dito, Dragosani! Thibor se mostrou sarcástico. Bravo!
Dragosani esperou, e depois de um momento:
—Isso é tudo o que tem que dizer?
Sim. Eu não falo com tolos.
—Te explique!
A voz em sua mente soou agora extremamente fria e carrancuda, uma ira controlada, mas real e aterradora.
Boris Dragosani, é um homem vaidoso, egoísta e estúpido, disse Thibor Ferenczy. Não faz outra coisa que exigir sempre «me diga isto», «me mostre aquilo» ou «te explique». Eu era um verdadeiro poder na terra séculos antes de que você nascesse, e inclusive isso não teria acontecido de não ser por mim. E tenho que jazer aqui, e deixar que me utilize! Bem, todo isso está por terminar. Explicarei-me, como exige, mas será a última vez. Porque depois... depois será o momento para discutir e negociar como é devido. Estou cansado de jazer aqui, inerte, como bem sabe, Dragosani, e você tem o poder de me tirar deste lugar. Essa é a única razão pela que fui paciente contigo! Mas agora minha paciência se acabou. Vejamos primeiro a avaliação que faz de sua situação.
Diz que te porá em mãos dos médicos. Bem, já deve ser possível distinguir ao vampiro que há em ti. Está ali, é um organismo físico e tangível que existe em uma espécie de simbiose contigo. E simbiose é uma palavra que me ensinaste, Dragosani. Mas amputá-lo? Exorcizá-lo? Por hábeis que sejam seus médicos, não poderão fazê-lo. Podem tirá-lo das redondezas de seu cérebro? Do líquido de sua medula espinhal? De suas vísceras, de seu coração inclusive? Embora você fosse o bastante tolo para deixar que o tentassem, o vampiro te mataria antes. Corroeria-te a medula, envenenaria-te o cérebro. Sem dúvida te terá dado conta já de que somos tenazes. Ou acaso pensaste que o instinto de sobrevivência só era humano? Sobrevivência, sim, você não conhece o significado da palavra!
Dragosani ficou calado.
Você e eu nos temos feito promessas —continuou por fim a criatura enterrada—. Eu cumpri com minha parte do trato. Não acredita que chegou o momento de que você cumpra também!
—Trato? Que trato? —Dragosani estava desconcertado—. Está de brincadeira? Que trato?
Esqueceste-o? Você queria os segredos dos vampiros. Muito bem, são teus. Agora é um vampiros. E à medida que ele cresça dentro de ti, terá sua sabedoria. Ele tem habilidades que aprenderão juntos.
—O que? —Dragosani estava indignado—. De modo que minha fecundação por um vampiro, com um vampiro, era sua parte do trato? Que trato mais desvantajoso é esse! Eu queria conhecimento e o queria imediatamente, Thibor, para mim mesmo. Não desejava a sabedoria em tal fruto putrefato e venenoso de uma aliança anti-natural com uma maldita criatura parasita.
Atreve-te a desdenhar meu ovo? O vampiros não tem mais que uma desova, uma nova vida que transmitir através dos séculos, e eu te dei a minha...
—Não te comporte comigo como um pai orgulhoso, Thibor Ferenczy! —enfureceu-se Dragosani—. Não trate sequer de insinuar que te ofendi. Quero me desfazer desta coisa bastarda que há em mim. Diz-me que você se preocupa por ela, que te importa? Eu sei que os vampiros se odeiam uns aos outros ainda mais do que odeiam aos homens.
A criatura enterrada soube que Dragosani o tinha pego.
É hora de discutir e negociar como é devido —disse com frieza.
—Ao diabo com as negociações, quero me livrar disso! —rugiu Dragosani—. Me Diga como... e te ressuscitarei.
Fez-se o silêncio durante uns minutos. Logo...
Não pode fazer nada; tampouco podem seus médicos. Só eu posso abortar o que pus em ti.
—Faça-o, então.
O que diz? Que o faça aqui, enterrado? Impossível! Me ressuscite... e eu o farei.
Agora era Dragosani quem devia meditar sobre a proposição do vampiro... ou ao menos devia fazer como que meditava. E por fim disse:
—De acordo. O que devo fazer?
Acima de tudo, o fará por sua própria vontade?
—Sabe muito bem que não! —respondeu com desprezo Dragosani—. O faço para me liberar deste monstro que há em mim.
Mas por sua própria vontade? —insistiu Thibor.
—Sim, maldito seja!
Bem. Primeiro, aqui na terra há correntes. Utilizaram-nas para me atar, mas agora desapareceram como os tecidos elas sujeitavam. Deve saber, Dragosani, que há compostos químicos que os vampiros não toleram. Prata e ferro na proporção correta nos paralisam. Embora grande parte do ferro desapareceu por causa da ferrugem, sua essência permanece no chão. E também há prata. Em primeiro lugar, deve cavar e me tirar as cadeias de prata.
—Mas não tenho ferramentas!
Tem suas mãos.
—Quer que cave com minhas mãos? Há que profundidade?
A nenhuma, só na superfície. Ao longo dos séculos consegui levar essas cadeias à superfície, com a esperança de que alguém as encontraria e as levaria, tentado por seu valor. A prata é ainda um metal precioso, Dragosani?
—Mais que nunca.
Então, as pegue com minha bênção. Vamos, cave.
—Mas... —Dragosani não queria que o outro pensasse que tentava mudar de assunto, mas ainda terei que arrumar certas coisas—, quanto tempo levará? Todo o processo, quero dizer. E que mais terei que fazer?
Começamos esta noite —disse o vampiro— e terminaremos amanhã.
—E não poderei te desenterrado até manhã? —perguntou Dragosani, tentando que seu alívio não fosse evidente.
Não, não poderá até manhã. Estou muito fraco, Dragosani. Mas observo que me trouxeste um presente. Isso está muito bem. Restaurará um tanto minhas forças... e depois de que me tire as correntes...
—Muito bem —disse o necromante—. Por onde começo a cavar?
Te aproxime, meu filho. Venha ao centro mesmo do lugar. Aqui, aqui! Agora já pode cavar...
Dragosani se arrepiou quando se ajoelhou e começou a remover a terra e o cascalho com os dedos. Um suor gelado lhe molhou a fronte, embora não por causa do esforço, mas sim porque recordou a última vez que tinha estado no claro, e o que tinha acontecido então. O vampiro percebeu seu receio e sua risada sombria ressonou na mente do Dragosani.
De modo que me teme, Dragosani? Depois de todas suas jactâncias e bravatas? Não é possível! O que um homem de sangue jovem e valente, como você, teme ao velho Thibor Ferenczy, que não é mais que uma pobre criatura não-morta e enterrada! Que vergonha, meu filho!
Dragosani tinha removido quase toda a terra da superfície e a tinha amontoado a um lado, e agora estava escavando a uma profundidade de quinze ou dezesseis centímetros. Já tinha chegado à terra mais dura da tumba propriamente dita. Mas quando colocou outra vez os dedos naquele terreno estranhamente fértil, tocou algo duro, algo que tilintou surdamente. Redobrou seus esforços e descobriu os primeiros elos de prata maciça... e muito grandes. As barras tinham pelo menos cinco centímetros de comprimento e estavam forjados em elos de prata de pelo menos dois centímetros e meio de espessura.
—Quanto... quanto mais tem além disto? —perguntou atônito.
O bastante para me manter enterrado até o dia de hoje, Dragosani —foi a resposta.
As palavras do vampiro, apesar de ser simples e espontâneas, continham todas as formas e matizes de ameaça que punham os cabelos de Dragosani em pé. A voz mental de Thibor borbulhava como cauda fervente, cheia com toda a maldade da tumba. Dragosani era um necromante —e se considerava a si mesmo um monstro—, mas comparado com o velho demônio enterrado se sentia inocente como uma criança.
Agarrou uma grande corda de elos de prata, ficou de pé e com uma força que assombrou inclusive a ele, arrancou as cadeias da terra. Saíram destroçando o chão, que se abriu em pequenas erupções de torrões e pó e estremeceram inclusive as raízes das árvores que tinham crescido naqueles largos séculos até ocultar o lugar e esconder seu segredo. Dragosani fez três viagens arrastando as cadeias fora do círculo de raízes, lajes quebradas e terra removida. Calculou que ali havia ao menos duzentos e cinquenta ou trezentos quilogramas de prata. No mundo ocidental seria um homem rico, mas em Moscou..., em Moscou seriam dez anos nas minas de sal da Sibéria. Na URSS não havia tesouros encontrados, só roubados.
Por outro lado, do que lhe serviria um tesouro? De nada, não era mais que o meio para conseguir um fim. Não poderia gozar do fruto de seus esforços como outros homens, mas um dia, muito em breve, desfrutaria quando outros homens se arrastassem a seus pés, e os governantes de todo o mundo viessem a lhe render homenagem na corte do Grande Hiper estado da Valáquia. Nisso pensava Dragosani quando arrastava a última das correntes, deixava-a com as outras, e contemplava, ofegante, a terra fendida e revolta do lugar secreto.
E lançou um bufido zombando de si mesmo quando recordou a época em que não poderia ver nada na escuridão do lugar, inclusive com seus olhos de gato. Mas agora lhe parecia tão claro como o meio-dia! Essa era outra prova de que havia um vampiro dentro dele, vivendo a custa de seu corpo do mesmo modo que mais adiante tentaria aproveitar-se de sua mente. E quanto à promessa do Thibor de abortar a criatura, Dragosani sabia que não valia um punhado de pó da tumba. Bom, se devia viver com aquela sanguessuga, faria-o, mas ele seria o amo e não a besta que levava dentro. Já encontraria a maneira de dominá-la.
E estes pensamentos os guardou para si.
Por fim tinha terminado e as cadeias de prata formavam um grande círculo ao redor da superfície escavada.
—Já está —lhe disse à criatura enterrada—. terminei; já não há nada que te retenha aí abaixo, Thibor Ferenczy.
Fez muito bem, Dragosani, e estou satisfeito. Mas agora devo me alimentar e descansar. Não é coisa fácil retornar da tumba. Me dê sua oferenda, por favor, e confio em que me deixará desfrutá-la a sós. Necessitarei outra igual manhã de noite, para poder me pôr de pé junto a ti sob as estrelas. Então, e só então, serei livre...
Dragosani lhe deu um chute na ovelha, que começou imediatamente a mover-se. Ele a apanhou entre suas pernas no instante em que o animal ficava em pé, e jogou a cabeça para atrás. A navalha que Dragosani empunhava abriu limpamente o pescoço do animal, e uma fração de segundo mais tarde um jorro de sangue penetrou no escuro e ímpio chão. Dragosani agarrou logo ao animal, tal como se agarram os gatos, pela pele do pescoço e o lombo, e o jogou no centro do círculo. Caiu com um ruído surdo, voltou a ficar de pé, e nesse instante pareceu dar-se conta pela primeira vez de que estava ferida, de que isso era o final. A ovelha ensanguentada caiu de lado; esperneava espasmodicamente enquanto o último sopro de vida a abandonava.
Dragosani retrocedeu, e quando já se afastou uns passos ouviu em sua mente o profundo suspiro de prazer do vampiro, de ânsia monstruosa.
Ahhh! Não posso dizer que seja um prato digno de um gourmet, Dragosani, mas sem dúvida é nutritivo. Demonstrarei-te meu agradecimento, filho, mas isso pode esperar até amanhã. Vá agora, porque estou cansado e faminto, e a solidão é uma droga cujo vício ainda não consegui vencer...
Dragosani não necessitava que o pedisse duas vezes. Afastou-se da tumba aberta, da forma escondida e retorcida no centro do círculo. Mas quando se retirava seus olhos estavam atentos ao menor signo da nova liberdade do vampiro, de sua recuperada mobilidade. Sim, agora Thibor Ferenczy podia mover-se; o necromante o sentia sob seus pés, podia percebê-lo estirando-se; quase podia ouvir o estalo dos músculos flexíveis e o rangido dos velhos ossos enquanto se empapavam em sangue e perdiam algo de sua fragilidade.
Logo...
O cadáver da ovelha começou a afundar-se, a desmoronar-se sobre si mesmo. Era como se uma espécie de sucção sísmica absorvesse ao animal, como se a terra fora uma boca que chupasse. Algo se moveu debaixo da besta morta, mas Dragosani não conseguiu ver o que era. Retrocedeu, retrocedeu até dar com uma árvore, e então o rodeou, pôs o grosso tronco entre sua pessoa e o que acontecia. Mas não podia tirar os olhos do cadáver da ovelha.
O animal era grande e com a lã comprida e espessa, mas enquanto Dragosani o olhava seu volume parecia diminuir. O necromante tentou comunicar-se com a criatura enterrada, mas se encontrou com um ânsia tão bestial que em seguida retirou sua mente. E a ovelha se encolhia, se enrolava sobre si mesma, minguando cada vez mais.
E enquanto o animal era devorado, o frio chão que o rodeava começou a fumegar, elevou-se uma névoa fedorento, que se tornou mais e mais densa e estendeu um denso véu sobre o resto do que acontecia. Era como se a terra suasse, ou como se algo que estava ali abaixo, e que não tinha respirado em muito, muitíssimo tempo, fizesse-o por fim.
Já era suficiente. Dragosani se voltou e se dirigiu depressa a reunir-se com o Max Batu. ficou um dedo nos lábios para lhe indicar que não falasse, e lhe fez gestos para que o seguisse. Descenderam rapidamente pelo rastro do corta fogo e retornaram ao carro.

Uma hora mais cedo nesse mesmo dia, e a mais de mil quilômetros dali, Harry Keogh, de pé junto à tumba do August Ferdinand Möbius (nascido em 1790, morto em 26 de setembro de 1868), decidiu que esse dia tinha sido muito mau para as ciências matemática, um dia realmente mau. Ou, mais especificamente, um mau dia para a topologia e a astronomia. O dia em questão era o da morte de Möbius, é claro.
Mais cedo houve outros visitantes, uns estudantes da Alemanha Oriental, de cabelos compridos e insuficientemente vestidos, mas respeitosos. E estava bem que fossem, pensou Harry. Ele também sentia respeito, reverência inclusive, ante semelhante homem. De todas as formas Harry, que não queria parecer muito estranho, esperou até encontrar-se sozinho. Além disso, tinha que pensar qual era a melhor maneira de dirigir-se a Möbius. Quem jazia ali não era uma pessoa como todas, e sim um pensador que tinha iluminado novos caminhos para a ciência.
Harry tinha decidido abordá-lo sem rodeios; sentou-se e deixou que seus pensamentos ficassem em contato com os do morto. A calma desceu sobre Harry, e em seus olhos apareceu um estranho olhar vítreo. A pesar do frio, uma fina capa de suor brilhava sobre sua fronte. E pouco a pouco foi tomando consciência de que Möbius —ou o que ficara dele— estava ali. E ativo!
Fórmulas, pranchas de figuras, distâncias astronômicas e não euclidianas, configurações do Riemann golpearam contra a consciência do Harry como pulsados de enormes computadores vivos. Mas... todo isso em uma só mente? Uma mente que tratava todos esses pensamentos de maneira virtualmente simultânea? E então Harry compreendeu que Möbius estava trabalhando em um tema determinado, passando uma atrás de outras as páginas da memória e o conhecimento enquanto tentava relacionar os elementos de um quebra-cabeças muito complexo para a compreensão de Harry... ou para qualquer outro ser humano vivo. Todo isso estava muito bem, mas podia continuar durante muitos dias. E Harry não tinha tanto tempo.
—Senhor? Posso interrompê-lo? Meu nome é Harry Keogh, e vim desde muito longe para vê-lo.
O fantasmagórico fluxo de figuras e de fórmulas cessou de repente, como se tivessem desligado um computador.
—Né? Como? Quem?
—Harry Keogh, senhor. Sou inglês.
Houve uma breve pausa antes de que o outro respondesse.
—Inglês? Para mim é como se fosse árabe! Direi-lhe o que é você: uma chateação. E o que significa isto? Não estou acostumado a este tipo de coisas!
—Sou um necroscópio. —Harry tentou explicá-lo-o melhor possível—. Posso falar com os mortos.
—Com os mortos? Sim, eu pensei nos mortos, e faz tempo cheguei à conclusão de que eu era um deles. Você, obviamente, pode falar comigo. Bom, isso acontece a todos. Quero dizer a morte. E inclusive tem suas vantagens. A intimidade, por um lado... ou ao menos assim o pensava até hoje. Um necroscópio, diz? Uma nova ciência?
Harry sorriu.
—Bom, suponho que poderia dizer-se que sim. Só que, ao parecer, sou eu o único que a pratica. Os espíritas não fazem exatamente o mesmo.
—É claro que sim que não! Uma turma de impostores. Bem, no que posso lhe servir, Harry Keogh? Suponho que tem uma razão para me incomodar. E espero que seja boa.
—A melhor do mundo —respondeu Harry—. Estou em perseguição de um malfeitor, de um assassino. Sei quem é, mas não sei como levá-lo ante a justiça. Tudo o que tenho é uma pista que me assinala o que talvez deveria fazer, e aqui é onde entra você em cena.
—De modo que persegue um assassino? Desperdiça um talento como o seu nisso? Moço, você deveria estar falando com o Euclides, com o Aristóteles ou com o Pitágoras. Não, ao último deixe-o fora, não conseguiria lhe tirar nada, com sua maldita irmandade pitagórica secreta. Assombra-me que nos tenha irradiado seu teorema. De todas formas, qual é a pista essa que mencionou?
Harry lhe mostrou uma projeção mental da fita de Möbius.
—É isto —lhe explicou—, é o que une o futuro de minha presa e o meu.
Möbius pareceu interessado.
—Topologia em uma dimensão temporária? Isso nos expõe uma série de questões interessantes. Está falando de seus futuros prováveis ou dos reais? Falou com o Gauss? Ele é o especialista em probabilidade. Também em topologia, claro está. Gauss era um professor quando eu ainda era um estudante. Claro que um estudante brilhante!
—Real —disse Harry—. Nossos futuros reais.
—Mas isso significa, em primeiro lugar, pressupor que você conhece algo de seu futuro. A precognição é outro de seus talentos, Harry? —perguntou com ironia Möbius.
—Não, mas tenho amigos que de vez em quando entrevem o futuro com tanta certeza como eu...
—Bobagens! —interrompeu-o Möbius—. São todos uns zollneristas.
—... falo com os mortos —terminou Harry.
Seu interlocutor permaneceu um instante em silêncio. Logo:
—É provável que seja um insensatez... mas lhe acredito. Ao menos acredito que você crê sinceramente em tudo isto, e penso que o enganaram. Mas não sei como minha confiança em você pode ajudá-lo em sua busca.
—Tampouco sei eu —respondeu desalentado Harry—. Salvo que... E a fita de Möbius? Quero dizer, é o único indício que tenho. Não pode ao menos me explicar isso depois de tudo, você é seu inventor, e quem poderia saber mais a respeito dela?
—Não, eles lhe deram meu nome. Inventá-la? Isso é ridículo! Eu simplesmente reparei nela, isso é tudo. Quanto a poder explicar-lhe em outra isso época tivesse sido a coisa mais singela; agora, entretanto...
Harry esperou.
—Em que ano estamos?
A repentina mudança de tema surpreendeu ao Harry.
—Mil novecentos e setenta e sete —respondeu.
—De verdade? —Möbius estava assombrado—. Passou -se tanto tempo? Vá, vá. Como pode ver, Harry, estive morto durante mais de cem anos. Mas você acredita que permaneci ocioso? Nada disso! Números, moço, números; são a solução a todos os grandes enigmas do universo. O espaço e sua curvatura e categorias e propriedades; propriedades que, figuro-me, ainda não foram sequer imaginadas no mundo dos vivos. Mas eu não tenho que imaginar, ou fazer hipótese, porque eu sei. Mas explicá-lo... isso já é outra coisa. Você é matemático, Harry?
—Sei um pouco de matemática.
—E de astronomia?
Harry, a contra gosto, fez um gesto negativo.
—E qual é sua capacidade para compreender a ciência... Quer dizer, a CIÊNCIA com maiúsculas? Para compreender o universo físico, material e conjetural?
Harry disse outra vez que não com um gesto.
—Pode entender algo disto? —e uma corrente de símbolos, equações e cálculos relampejaram na tela da mente do Harry, cada um deles mais complexo que o precedente.
Alguns deles resultavam familiares ao Harry de suas conversações com o James George Hannant, e outros os conhecia por pura intuição, mas a maioria lhe eram estranhos por completo.
—Tudo é... é bastante difícil —disse por fim.
— Com efeito. Mas você tem intuição... sim, penso que é fortemente intuitivo. Acredito que eu poderia instrui-lo, Harry.
—Me ensinar matemática, diz? Me transmitir seus trabalhos de toda uma vida, e de cem anos mais depois da morte? Quem bobagens diz agora? Isso me levaria tanto tempo como a você! De passagem, o que é um zollnerista?
—J. K. F. Zollner foi um matemático e astrônomo, Deus nos ajude! Que viveu uns anos mais que eu. Era também espírita e estava louco. Para ele os números eram «mágicos». Eu disse que você era um zollnerista? Um engano imperdoável! Deve me desculpar. Em realidade, ele não estava tão equivocado. Só sua topologia era errônea. Zollner tentou dar primazia ao universo não físico, ou mental, sobre o físico. E isso não funciona. O espaço-tempo é uma constante tão fixa e imutável como Pi.
—Isso não deixa muito lugar para a metafísica —disse Harry, com a certeza de que tinha cometido um engano ao consultar a Möbius.
—Nenhum lugar, absolutamente nenhum —acordou Möbius.
—E a telepatia?
—Bobagens.
—O que é, então, o que estou fazendo neste instante?
Möbius ficou desconcertado.
—Necrópsia —disse por fim—, ou ao menos isso é o que me há dito.
—Isso é escapar pela tangente! E o que me diz da vidência, da capacidade para ver por meio da mente acontecimentos que ocorrem inclusive a grande distancia?
—No mundo físico é impossível. Você perpetuaria os enganos do Zollner.
—Mas eu sei que essas coisas são possíveis —o contradisse Harry—. E sei onde há gente que as faz. Não o fazem continuamente, nem lhes resulta muito fácil, e com frequência não são muito precisos, embora em ocasiões sim. É uma nova ciência, e requer intuição.
Depois de outra pausa, Möbius disse:
—De novo me sinto inclinado a lhe acreditar. Que necessidade teria de me mentir? O conhecimento do homem se incrementa de modo constante. E, depois de tudo, eu posso fazer o que você diz. Claro que eu já não pertenço ao mundo físico...
Harry pensou um pouco.
—Você pode fazê-lo? Está-me dizendo que pode «ver» acontecimentos distantes?
—Vejo-os, sim, mas não em uma bola de cristal. E, em sentido estrito, não estão distantes. A distância é relativa. Eu vou ali. Vou ali onde está previsto que ocorrerão aqueles acontecimentos que desejo contemplar.
—Mas... aonde vai? E como?
—O «como» é o mais difícil —disse Möbius—. Onde é muito mais fácil. Harry, quando vivia, eu não era só matemático, além disso era astrônomo. Depois de minha morte, me limitei à matemática. Mas a astronomia estava em mim, era parte de mim, e não me deixava em paz. E tudo chega para aqueles que sabem esperar. À medida que passava o tempo, comecei a perceber que as estrelas brilhavam para mim tanto de dia como de noite. Tive consciência de seu peso, ou de sua massa, se você quiser, da grande distância a que se encontravam, e das distâncias entre elas. Muito em breve soube mais sobre elas do que tinha sabido em toda minha vida, e então decidi vê-las por mim mesmo. Quando você veio, estava calculando a magnitude de uma nova que muito em breve acontecerá em Andrômeda, e ali estarei para ver como acontece. Por que não? Sou imaterial. As leis da física universal não me afetam.
—Mas você acaba de negar a metafísica —protestou Harry—. E agora me diz que pode teletransportar-se às estrelas!
—E quem fala de teletransporte? Não, nada físico me move. Tal como lhe disse, Harry, eu não sou um ente físico. Pode ser que exista o que chamam «universo metafísico», mas o real não se impõe sobre o irreal, nem o irreal sobre o real.
—Ou ao menos isso era o que você acreditava até que me conheceu —disse Harry, seus estranhos olhos mais abertos que de costume, sua voz cheia de assombro e reverência, porque de repente uma nova estrela brilhava em sua mente, mas com um brilho superior ao de qualquer nova na mente do Möbius.
—O que é isso?
—Você diz que não há ponto de contato entre o físico e o metafísico? É esse seu argumento?
—Exatamente!
—Mas eu sou um ser físico, e você puramente mental, e nos encontramos.
Harry percebeu o assombro do outro.
—Incrível! Parece-me que passei por cima algo evidente.
Harry se aproveitou de sua vantagem.
—Você usa a tira para ir às estrelas, não é verdade?
—A tira? Bom, sim, uso uma variante, mas...
—E você me chamou zollnerista?
Möbius não soube o que dizer, mas um momento depois:
—Parece-me que meus argumentos já não são válidos.
—Você se teletransporta! —disse Harry—. Você teletransporta sua mente. Você é um vidente, senhor! Esse é seu talento. Inclusive quando estava vivo podia ver coisas que para outros estavam inacessíveis. A tira é um exemplo perfeito. Bem, a vidência seria uma arma maravilhosa, mas quero levar as coisas um passo mais à frente. Quero forçar, e o digo em sentido estrito, meu ser físico no universo metafísico.
—Por favor, Harry, não tão depressas! —protestou Möbius—. Eu necessito...
—Senhor, você se ofereceu a me instruir. Bem, aceito-o, mas me ensine só o absolutamente necessário. Deixe que meu instinto, minha intuição, faça o resto. Minha mente é um quadro, e você tem o giz na mão. Me ensine, pois... me ensine como viajar por sua fita de Möbius!

Já era outra vez de noite e Dragosani tinha retornado às colinas cruciformes. Levava às costas uma segunda ovelha que tinha atordoado com uma pedrada. Tinha tido um dia muito ativo, mas sem dúvida recolheria o fruto de seus esforços. Max Batu tinha tido oportunidade de mostrar uma vez mais o poder de seu olho maligno, nesta ocasião com um tal Ladislau Giresci; alguém encontraria ao velho em seu domicílio, onde vivia sozinho, morto de um «ataque ao coração», claro.
Mas esse não tinha sido o único trabalho do Max, porque fazia mais ou menos uma hora Dragosani tinha enviado o mongol em uma missão de fundamental importância. Isto queria dizer que o necromante estava sozinho quando se aproximou da tumba do vampiro e enviou seus pensamentos adiante para penetrar a gelada escuridão.
—Está dormindo, Thibor? Retornei , tal como tínhamos combinado. Brilham as estrelas, a noite está muito fria e a lua começa a subir depois das colinas. Chegou a hora, Thibor... para os dois.
E depois de um instante:
Ahhh..., Dragosaaaniiii! Sim, suponho que dormia. Mas com um sonho magnífico, Dragosani. O sonho dos não-mortos. E tive sonhos grandiosos, Dragosani... de impérios e conquistas. Por uma vez minha dura cama foi suave como os peitos de uma amante, e estes velhos ossos não eram pesados a não ser ágeis como os de um menino quando vai ao encontro de sua noiva. Foi um sonho grandioso, sim, mas nada mais que um sonho.
Dragosani percebeu algo que muito bem podia ser abatimento. Alarmado pelo desenvolvimento de seu plano, perguntou:
—Acontece algo mau?
Ao contrário. Tudo vai bem, meu filho, só que me temo que possa levar mais tempo do que eu tinha pensado. Fortifiquei-me com sua oferenda de ontem, e inclusive engordei um pouco. Mas ainda assim estes meus velhos tendões acostumados a ficar sob o chão se tornaram rígidos...
E logo, com voz um pouco mais vivaz:
E te lembraste de me trazer outro pequeno tributo, Dragosani? Espero que não muito pequeno. Possivelmente um pouco parecido a minha última refeição...
O necromante lhe respondeu aproximando-se do limite do círculo e jogando no chão a ovelha que levava a ombro.
—Não o esqueci —disse logo—. Mas me diga o que quer realmente, velho dragão. Por que levará mais tempo de que tinha pensado?
Dragosani estava decepcionado. Seu plano dependia de que conseguisse ressuscitar ao vampiro essa mesma noite.
Não tem compreensão, Dragosani? Entre os homens que me seguiam quando era um guerreiro, alguns sofriam feridas tão severas que deviam permanecer na cama. Alguns se recuperavam. Mas depois de ter ficado meses deitados, frequentemente estavam muito débeis e cheios de dores e em mau estado. Imagine o que acontece comigo, depois de ter jazido durante mais de quinhentos anos. Mas já veremos... Enquanto falo, cresce meu desejo de ressuscitar... e talvez possa fazê-lo, depois de outro lanche.,.
Dragosani fez um gesto que indicava que tinha compreendido, agarrou uma pequena e afiada foice que levava no bolso, tirou-lhe a capa e se inclinou para a ovelha.
Espera'. —disse o vampiro—. Como supõe, esta pode ser uma ocasião decisiva para ambos. Uma ocasião de enorme transcendência! De minha parte, acredito que devemos tratá-la com o respeito que merece.
O necromante enrugou a testa.
—O que quer dizer?
Estará de acordo comigo, meu filho, em que até agora não tive cerimônias. Não me queixei quando me jogaste a comida, como se fosse um porco. Mas deve saber, Dragosani, que eu também comi em mesas. E até jantei com príncipes! Sim, e voltarei a fazê-lo, e você possivelmente estará sentado a minha direita. Não me deve, então, um trato mais cortês? Ou deverei te recordar sempre como o homem que me jogava comida como se jogam bolotas aos porcos em uma pocilga?
—É um pouco tarde para esse tipo de detalhes, não crê, Thibor? —Dragosani se perguntou o que tramava o vampiro—. O que quer, na verdade?
Thibor percebeu imediatamente seu receio.
O que? Ainda desconfia de mim? Bom, suponho que tem suas razões. A minha foi a sobrevivência. Mas não combinamos que quando eu ressuscitar tirarei minha semente de seu corpo? E nesse momento, não estará por inteiro em minhas mãos? Parece-me uma insensatez, Dragosani, que confie em mim quando estiver vivo, e não quando ainda permaneço na tumba. Se quisesse, seria capaz de te fazer mais dano de pé que enterrado. Além disso, se estivesse em meus planos te causar dano, quem me serviria de guia nesse novo mundo no que vou viver? Você será meu mentor, Dragosani, e eu, o teu.
—Ainda não me disse o que quer.
O vampiro suspirou.
Dragosani, vejo-me obrigado a reconhecer uma pequena debilidade pessoal. No passado te acusei de ser um tanto vaidoso, e agora devo te confessar que também eu o sou. Sim, e eu gostaria de celebrar meu renascimento de uma maneira mais digna. Traz a ovelha, filho, e deposita-a ante mim. Mas que esta última vez seja como um autêntico tributo: como um sacrifício ritual ante alguém muito poderoso, e não bolotas e palha para engordar aos porcos. me deixe beber de uma fonte, Dragosani, e não de um poça.
«Velho bastardo», pensou Dragosani, embora cuidando-se de não lhe revelar seus pensamentos. Assim que ele ia ser o servo do vampiro, não? Outro idiota, encadeado e seguindo-o como se fora um cão? «Ah, mas eu também tenho algo que te dizer, meu velho, muito velho amigo!», pensou Dragosani para si mesmo. «Desfruta disto, Thibor Ferenczy, porque esta será a última vez que um homem empreste um serviço a um ser como você.»
—Quer que te traga a ovelha como se fosse uma oferenda?
É pedir muito?
O necromante encolheu os ombros. Nesse momento, nada era muito. dentro de pouco, seria ele quem pediria. Deixou a faca e agarrou a ovelha. Levou-a até o centro do círculo e a depositou onde tinha jazido a oferenda da noite passada. Logo voltou a agarrar sua pequena foice.
A clareira tinha permanecido até esse instante em calma, como a tumba que era, mas Dragosani percebeu agora uma turbulência. Era como se de repente se esticassem uns músculos, o silencioso passos de um gato sobre um camundongo, a formação de saliva sobre a língua de um camaleão antes do ataque. Com pressa, estremecido de horror ante o desconhecido, Dragosani jogou para trás a cabeça do animal para degolá-la. E então...
Isso não é necessário, meu filho —disse Thibor Ferenczy.
Dragosani tivesse saltado fora do círculo, porque nesse instante soube que a criatura enterrada estava farta de porcos e ovelhas. Mas soube muito tarde. Fazia um mínimo movimento para endireitar-se quando um tentáculo fálico brotou do chão, rasgou suas roupas como uma faca e penetrou em seu corpo. E como teria desejado então poder saltar para livrar-se dele, embora a ferida o matasse! Teria saltado, mas não podia. O pseudópodo se ramificou dentro dele e penetrou em todos os condutos inferiores de seu corpo, encheu-o e logo o atraiu como a um peixe miserável mediante um anzol.
Dragosani foi esmagado contra a escura e fria terra, e depois disso já nem sequer pôde pensar em fugir. Porque então começou a dor, a tortura, a agonia final...
Seus intestinos se derretiam, suas vísceras estavam ardendo, estava sentado sobre um manancial de ácido. E enquanto isso Thibor Ferenczy uivava seu triunfo e ria de Dragosani com a resposta —a verdadeira resposta— à pergunta que se feito o necromante durante todos esses anos.
Por que me odiavam, meu filho? por que me odiavam meus próprios parentes e amigos? Por que todos os vampiros odeiam aos de sua espécie? A resposta é muito simples, Dragosani. O sangue é vida. O sangue de um porco nos satisfaz se não há nada melhor para nos alimentar, e também a das aves e as ovelhas, o sangue do homem é muito melhor, como descobrirá muito em breve por ti mesmo. Mas por cima de tudo está o verdadeiro néctar da vida, que só pode ser bebido nas veias de outro vampiro.
Dragosani ardia em um duplo inferno; sentia-se esmigalhado por dentro; o parasita que levava em seu interior se aderia a ele em sua agonia, enquanto o apêndice de Thibor absorvia sua essência. Esse terrível tentáculo, entretanto, não lhe causava um dano real. Era protoplásmico, amoldava-se aos órgãos sem feri-los, penetrava sem abrir orifícios. Inclusive suas espinhosas ramificações não abriam feridas, porque estavam feitas para reter sem rasgar. A agonia radicava em seu ser estava ali, no contato com os nervos, os músculos e os órgãos, em seu avanço por todos os condutos do violado corpo do Dragosani. Se um médico demente tivesse injetado uma solução de ácido em suas veias não lhe teria doído tanto... Mas isto, não obstante, não o mataria. Podia matar, certamente, mas não nesta ocasião.
Dragosani, em sua tortura, não podia sabê-lo. E gritava:
—Acaba... comigo... de uma vez! Maldito seja seu negro coração, mentiroso e mais que mentiroso! Me mate..., Thibor! Por favor..., termina com este suplício..., rogo-lhe isso!
Permaneceu na escuridão, sob as árvores, entre as lajes rotas e as ruínas da antiga tumba, e o horror lhe carcomeu a mente como um rato que devorasse seu cérebro. Alguém tinha posto em marcha um triturador de carne dentro de seu corpo e estava convertendo suas vísceras em vermes vermelhos que se retorciam. Sacudiu-se espasmodicamente e caiu de lado. A agonia fez que se levantasse outra vez, só para cair de novo. E assim seguiu; caía, levantava-se, retorcia-se e gritava enquanto Thibor Ferenczy se alimentava.
Deste-me forças, Dragosani. O sangue dos animais me devolveu o vigor, mas a verdadeira vida está no sangue de um semelhante, embora só seja o sangue imaturo e fraco desse filho que agora balbucia dentro de ti. Ele se debilita por sua perda, e você por causa da dor. Mas matá-lo, e matar a ti? Nada disso! Por que me privar de mil banquetes futuros? Sairemos juntos ao mundo, Dragosani, e você será meu escravo até o momento em que possa me abandonar. E para então já não precisará perguntar por que os vampiros só estão unidos pelo ódio.
O vampiro estava satisfeito. O tentáculo saiu do Dragosani e desapareceu dentro da terra. Sua retirada foi, se isto for possível, ainda pior que a penetração: como uma espada ao vermelho vivo que alguém arrancasse brutalmente de seu corpo.
Dragosani gritou, um uivo que reverberou como o grito de uma criatura selvagem nas frias e cruéis colinas cruciformes. Mas acaso não lhe havia dito Thibor que ao Vlad o Empalador tinham posto esse nome por causa dele? Dragosani agora compreendia perfeitamente por que.
O necromante tentou ficar de pé mas não pôde. Suas pernas eram de gelatina, seu cérebro uma sopa de ácido na panela de seu crânio. Rolou sobre si mesmo, saiu do manchado círculo, e tratou outra vez de levantar-se. Impossível. Não era suficiente querer fazê-lo. Jazeu ali imóvel, recuperando suas forças e seu ânimo. O vampiro tinha falado de ódio, e tinha razão. Era ódio o que mantinha a Dragosani consciente. Ódio e nada mais que ódio. O seu, e o da criatura que levava em seu interior. Ambos tinham sido destroçados.
Por fim conseguiu ficar de lado e olhou com ódio a negra terra que agora fumegava como se dela se elevassem os vapores do inferno. Apareceram gretas sobre a superfície onde Dragosani tinha estado. A terra se inchou primeiro, e logo começou a abrir-se. Algo empurrava de baixo. E então...
Um ser incrível fez sua aparição.
Dragosani abriu a boca em uma involuntária careta de terror e de ódio. Esta era a criatura enterrada. Com ela tinha falado, discutido e a tinha amaldiçoado uma e outra vez. Isto era Thibor Ferenczy, a não-morta encarnação de seu próprio estandarte do morcego-demônio-dragão. Pior ainda, Dragosani estava condenado a ser igual, uma condenação que ele mesmo havia procurado!
As grossas orelhas da criatura estavam agarradas a sua cabeça, mas eram bicudas e ligeiramente mais largas que o crânio, e pareciam chifres. Seu nariz era chato, enrugado e com circunvoluções, como a de um grande morcego. A pele era escamosa e os olhos vermelhos como os de um dragão. E era muito grande! As mãos, que apareciam agora e rasgavam o chão eram enormes, com unhas que se sobressaíam uns três centímetros além da ponta dos dedos.
Dragosani conseguiu vencer seu terror e ficou de pé, justo no momento em que o vampiro voltava sua lupina cabeça e lhe dirigia um monstruoso olhar. Seus olhos se abriram muito grandes e sua luz escarlate iluminou a Dragosani quando Thibor disse:
—Eu... posso...te ver... —com uma voz tão perversa e estranha como as mensagens mentais que tinha enviado da tumba.
Mas esta afirmação não parecia de maneira nenhuma ameaçadora; era mas bem como se o fato de poder ver —e em particular de ver Dragosani— lhe produzira uma mescla de alívio e incredulidade. Mas fora o que fosse, o necromante se encolheu de medo. E nesse mesmo momento...
—Olá, criatura saída da terra! —disse Max Batu, que saiu de seu esconderijo.
Thibor Ferenczy voltou a cabeça em direção à voz do mongol. Quando viu Batu suas grandes mandíbulas se abriram e emitiu uma espécie de assobio por entre seus grandes dentes que jorravam baba. E Batu, sem demora, depois de olhar aquele rosto, apontou e disparou a balestra de Ladislau Giresci. O dardo de madeira tinha a grossura de dois centímetros e ponta de aço. Saiu disparado da balestra, penetrou quase a queima roupa no peito do vampiro e o transpassou.
Thibor lançou um uivo e tentou meter-se de novo na terra fumegante, mas o dardo se travou na borda do buraco e não lhe permitiu afundar-se, de uma vez pois rasgava sua carne cinzenta. Chiou então pela segunda vez, um grito cheio de desespero, e se sacudiu, atravessado pelo dardo, enquanto amaldiçoava e a baba caía de sua horrível boca.
Batu em seguida, foi até Dragosani, sustentou-o e lhe entregou uma foice cuja lâmina, recém afiada, resplandecia. O necromante a agarrou, desprendeu-se do Batu e avançou cambaleante para o monstro, que seguia revolvendo-se, apanhado com meio corpo dentro da tumba, e meio fora.
—A última vez que lhe enterraram —disse Dragosani—, cometeram um grave engano, Thibor Ferenczy. —Os músculos de seu pescoço e braço se esticaram quando elevou a foice—. Esqueceram cortar sua maldita cabeça!
O monstro tentou arrancar a seta que o atravessava, e dirigiu a Dragosani um olhar que este não pode compreender. Havia medo nele, sim, mas sobre tudo assombro, como se a besta não conseguisse acreditar neste súbito reverso da sorte.
—Espera! —grasnou quando Dragosani lhe aproximou, e o áspero som de sua voz parecia o eco de inumeráveis ramos batendo durante uma avalanche—. Não se dá conta? Sou eu!
Mas Dragosani não esperou. Ele sabia quem era o monstro, e o que era; sabia que a única maneira de herdar seus poderes e seus conhecimentos era esta: como necromante. Sim, e o irônico do assunto era que Thibor mesmo lhe tinha concedido esse dom.
—Morre, criatura bastarda! —gritou, e a foice pareceu um relâmpago de aço quando Dragosani cortou a cabeça do monstro.
A horrível cabeça caiu ao chão e rolou. Mas enquanto rolava começou a gritar «Tolo! Maldito tolo!» e logo ficou quieta. Os olhos de cor púrpura se fecharam. A boca se abriu por última vez, cuspiu uma borbulha de baba e sangue, e sussurrou com voz apenas audível: «Tolo»...
Dragosani, por sua vez, elevou outra vez a foice e partiu a cabeça em dois, como se tivesse sido um grande melão muito amadurecido. Dentro do crânio, o cérebro era uma massa espessa e branda com um núcleo que se agitava. Eram, em realidade, dois cérebros: um humano, já murcho, e outro estranho, o do vampiro. Dragosani, sem pausa e sem medo, sabendo do que fazia, afundou as mãos nas duas metades da cabeça e deixou que seus dedos trementes tocassem os fluidos fedorentos e a polpa. Todos os segredos e a sabedoria dos vampiros estavam ali, esperando a que ele os investigasse.
Sim! Sim!
Os cérebros se estavam apodrecendo, caindo na natural decadência e corrupção de séculos, mas o talento necromântico de Dragosani lhe permitiam rastrear os segredos do monstro não-morto (embora agora sim estava completamente morto) nos líquidos de seu corrompido cérebro. Pálido como a morte, com um brilho obsceno nos olhos, Dragosani demonstrou a confusão no rosto... mas já era muito tarde!
Ante seus olhos furiosos, o cérebro apodreceu por completo, desfez-se em fumaça, em pequenos redemoinhos de pó que se deslizaram entre seus dedos. Até o deformado crânio se fez pó nas mãos de Dragosani.
Com um grito de angústia, e balançando os braços como um moinho de vento enlouquecido, Dragosani deu a volta e se jogou de cabeça sobre o corpo sem cabeça do vampiro, que ainda estava em posição vertical, metade dentro da tumba. O pescoço talhado começava a desfazer-se em fumaça, afundando-se dentro do escamoso peito, que por sua vez começava a desmoronar-se dentro do tronco oculto pela terra. E quando o necromante afundou a mão e parte do braço naquele buraco, dentro da podridão e a fetidez, lançou uma grande nuvem de vapores tóxicos e se depositou sobre o cadáver, agora quase líquido.
Dragosani uivou como um possesso e tirou o braço daquele lamaçal, logo se arrastou para longe do buraco enquanto a terra pouco a pouco recuperava a calma. Deteve -se na borda do círculo com a cabeça baixa e os ombros encurvados em um gesto de abatimento, e descarregou sua frustração em compridos e estremecedores soluços.
Max Batu, estupefato, profundamente comovido por tudo o que tinha presenciado, contemplou durante uns minutos ao necromante e logo se adiantou lentamente. agachou-se junto a Dragosani e lhe pôs uma mão no ombro.
—Camarada Dragosani —disse em voz muito baixa, pouco mais que um sussurro—. Já terminou tudo?
Dragosani deixou de soluçar, e com a cabeça ainda baixa refletiu sobre o que lhe tinha perguntado Batu: Tinha terminado tudo? Tinha concluído para Thibor Ferenczy, sim, mas começava para o novo vampiro, a criatura ainda imatura simbioticamente alojada em seu corpo. Proveriam mutuamente a suas necessidades (embora fosse a contra gosto), aprenderiam um do outro, converteriam-se em um só ser. Havia ainda uma pergunta sem resposta: quem, no futuro, dominaria ao outro?
Em um enfrentamento com um homem ordinário o vencedor seria, não cabia dúvida, o vampiro. Sempre. Mas Dragosani não tinha nada de ordinário. Possuía o poder de acumular sabedoria, de incrementar seus talentos. E talvez, no curso desta aprendizagem, em seu contínuo acumular segredos e novos e estranhos poderes, encontraria a maneira de se livrar do parasita. Mas até então...
—Não, Max Batu —respondeu—, ainda não terminou.
—E o que devo fazer? —O pequeno mongol desejava ajudar—. No que posso te servir? O que necessita?
Dragosani continuou olhando fixamente a escura terra. Como podia ajudá-lo Batu? Quais eram as necessidades do necromante? Duas perguntas muito interessantes.
A dor e a frustração se extinguiram em Dragosani. Tinha muito que fazer, e estava perdendo tempo. Tinha ido a este lugar para adquirir novos poderes para enfrentar à ameaça que supunham Harry Keogh e a Organização E britânica.
Os segredos do Thibor estavam agora fora de seu alcance, mortos e desaparecidos para sempre como o vampiro, mas isso não era o final da questão. Embora se sentisse débil e maltratado, sabia que suas feridas curariam. Possivelmente a dor tinha marcado sua mente e sua alma (se é que ainda a tinha), mas eram marcas que com o tempo se desvaneceriam. Não, não tinha sofrido nenhum dano permanente. Não, só tinha sido... esvaziado.
Esvaziado, sim. A criatura que morava em seu interior estava necessitada e Dragosani sabia o que necessitava. Sentiu a mão do Batu em seu ombro e lhe pareceu perceber o fluir do sangue nas veias do mongol. E logo Dragosani viu a afiada e curva lâmina do instrumento cirúrgico que tinha levado para degolar à ovelha. Estava muito perto de sua mão, e reluzia contra a terra escura.
Bom, tinha pensado fazê-lo algum dia. Faria-o antes do planejado, isso era tudo.
—Necessito duas coisas de você, Max —disse Dragosani, e levantou os olhos.
Max Batu afogou uma exclamação e sua boca se abriu em um gesto de surpresa. Os olhos do necromante estavam vermelhos como os do demônio que Batu tinha matado. O mongol os viu, viu algo mais que brilhou prateado na noite, e depois... a escuridão definitiva.

Intervalo dois

Tenho que fazer uma pausa —lhe disse Alec Kyle a seu estranho visitante.
Deixou o lápis e massageou a mão dolorida. A mesa estava semeada de aparas de madeira dos cinco lápis que tinha gasto até o final. Este era o sexto, e Kyle tinha o braço destroçado de tanto escrever.
Frente a ele havia uma magra pilha de folhas cobertas de notas e apontamentos de cima abaixo, e de uma margem ao outro. Quando começou a escrever (quatro, cinco horas antes?) as notas tinham sido minuciosas, detalhadas. Ao cabo de uma hora se transformaram em meros apontamentos, rabiscados em uma letra quase ilegível. Tanto, que apenas Kyle podia decifrá-los, e se tinham reduzido a uma lista de datas junto a breves títulos.
Agora, enquanto descansavam sua mente e sua mão, Kyle olhou outra vez as datas e fez um gesto cético. Ele ainda acreditava que tudo isto era a pura verdade, mas havia aqui uma anomalia flagrante, uma ambiguidade que ele não podia passar por cima. Kyle, com o gesto carrancudo, olhou à aparição que flutuava muito erguida ao outro lado da mesa, e disse:
—Há algo que não consigo entender. —E após rir com certa histeria, continuou—: Em realidade, há muitíssimas coisas que não entendo, embora até agora ao menos podia acreditar nelas. Mas isto me custa muito mais.
—E do que se trata? —perguntou a aparição.
—Hoje é segunda-feira. Sir Keenan será incinerado amanhã. A polícia não pôde descobrir nada, e é quase blasfêmia manter seu cadáver na condição em que se encontra.
—É verdade —concordou seu interlocutor.
—Bem. A questão é que eu sei que grande parte do que você me contou é certo, e suspeito que também o é o resto. Disse -me coisas que só sir Keenan e eu sabíamos. Mas...
—Mas o que?
—Mas sua história vai mais à frente do presente! —estalou Kyle—. Verifiquei suas datas, e você me esteve falando sobre na próxima quarta-feira, para o que ainda faltam dois dias. Segundo seu relato, Thibor Ferenczy ainda não está morto, e não o estará até na quarta-feira de noite.
Depois de um instante, o outro respondeu:
—Dou-me conta de que isto lhe deve parecer muito estranho. O tempo, Alec, é relativo, como o espaço. Na verdade, estão estreitamente relacionados. Irei ainda mais longe: tudo é relativo. Há um grande projeto universal...
Algo escapava a Kyle; por um momento, só viu o que queria ver.
—Você também pode ver o futuro? —Seu rosto tinha uma expressão de intenso assombro—. E eu que pensava que esse era meu talento! Mas que possa ver o futuro com tal claridade é quase incrí... —Kyle se interrompeu bruscamente.
Como se as coisas não fossem já bastante fantásticas, algo ainda mais incrível lhe tinha passado pela cabeça.
Pode ver que o seu visitante o lia em seu rosto, mas o certo é que sorriu, um sorriso tão transparente que inclusive deixava passar a luz que penetrava pela janela.
—O que acontece, Alec?
—Onde... onde está você? —perguntou Kyle—. Quero dizer, seu eu verdadeiro, físico. Desde onde me está falando? Ou melhor dizendo, desde quando?
—O tempo é relativo —respondeu o outro, sem deixar de sorrir.
—Você me fala do futuro, verdade? —sussurrou Kyle. Era a única resposta possível. Só assim o espectro podia saber todas estas coisas, podia fazer o que fazia.
—Você me será muito útil —disse o fantasma, assentindo—. Além da vidência, parece possuir uma aguda intuição. Ou talvez é parte do mesmo talento. Mas agora, não acredita que deveríamos seguir?
Kyle, ainda atônito, pegou o lápis.
—Sim, será melhor que continuemos, será melhor que me conte isso tudo, até o final.

Capítulo quinze

Moscou, uma sexta-feira pela tarde, no apartamento de Dragosani na rua Pushkin.
Quando Dragosani entrou por fim em seu apartamento e se serviu de um copo de uísque já começava a escurecer. Os trens retornando da Romênia tinham sido horrivelmente lentos, e a ausência do Batu fez que a viagem lhe parecesse muito mais longa. A ausência do Batu, sim, e a crescente sensação de obrigação, de que estava sendo empurrado para um colossal enfrentamento. O tempo passava depressa e ainda tinha muitas coisas que fazer. Estava exausto, mas não podia descansar. Um instinto o incitava a seguir, advertia-lhe que não se detivesse em sua trajetória.
Depois de um segundo uísque, e quando já se sentiu um pouco melhor, Dragosani telefonou ao château Bronnitsy e se certificou de que Borowitz ainda estava de luto em seu dacha em Zhukovka. Depois pediu para falar com o Igor Vlady, mas este já fora para sua casa. Dragosani o chamou então ali, e lhe perguntou se podia ir vê-lo. O outro lhe disse em seguida que sim.
Vlady vivia em um pequeno apartamento de propriedade do Estado, não muito longe da casa de Dragosani, mas este de qualquer forma pegou o carro. Antes que transcorressem dez minutos estava sentado na sala de Vlady com um copo de vodca na mão.
—E bem, camarada? —perguntou Vlady quando terminaram com as sabidas saudações e demais preliminares—. Em que posso servi-lo?
Vlady contemplou com curiosidade, com um olhar especulativo, os grandes óculos escuros do Dragosani e suas feições cansadas.
Dragosani fez um gesto afirmativo com a cabeça, como se de maneira silenciosa confirmasse algo, e disse:
—Vejo que me estava esperando.
—Sim, me ocorreu que era provável que nos víssemos —respondeu com cautela Vlady.
Dragosani se decidiu a ir direto ao assunto. Se Vlady não desse as respostas apropriadas, o mataria. No futuro, era provável que o matasse de qualquer modo.
—Muito bem, aqui estou —disse—. E agora, me diga, o que vai acontecer?
Vlady era um homem pequeno e moreno e, em general, era como um livro aberto. Agora elevou uma sobrancelha, adotou uma expressão levemente surpresa e perguntou:
—O que vai passar com o que, ou com quem?
—Olhe, deixemos de rodeios. Você sabe perfeitamente por que vim. Por isso lhe pagam, por sua habilidade para ver as coisas por antecipação. Assim que lhe repito a pergunta: o que vai acontecer?
Vlady, carrancudo, perguntou:
—Quer dizer com o Borowitz?
—Para começar, sim.
O rosto do Vlady se voltou estranhamente imperturbável, quase frio.
—Morrerá —disse sem emoção alguma—. Amanhã , ao redor de meio-dia, de um ataque ao coração. Só que... —interrompeu-se, com cara de preocupação.
—O que?
—Um ataque do coração —repetiu Vlady, encolhendo os ombros.
Dragosani fez um gesto de assentimento, suspirou e se distendeu um pouco.
—Sim —disse—. Assim será. E o que acontecerá comigo... e com você?
— Nunca leio o meu futuro —disse Vlady—. Poderia fazê-lo, é claro , mas é muito frustrante conhecer o futuro e não poder mudá-lo. Dá medo, além disso. Quanto ao seu... é um pouco estranho.
Dragosani não gostou daquilo.
—O que tem de estranho? —perguntou; isso podia ser algo muito importante.
Vlady pegou os copos e serviu mais vodca.
—Acima de tudo, sejamos sinceros o um com o outro —disse—. Camarada, eu não sou seu rival. Não tenho nenhuma ambição com respeito à Organização E. Absolutamente nenhuma. Sei que Borowitz tinha pensado em mim, junto com você, como seu sucessor, mas não me interessa. Acredito que você deveria sabê-lo.
—E se colocará de lado para me fazer um favor?
—Não faço favor a ninguém —disse o outro—, simplesmente não quero o posto. Yuri Andropov não descansará até nos fazer pó, embora tenha que dedicar a isso toda sua vida. A verdade, é que eu gostaria não ter nada a ver com a organização. Sabia você que sou arquiteto, Dragosani? E eu gostaria mais estar lendo os planos de um edifício antes que o futuro.
—E por que me conta isto? —perguntou Dragosani, com curiosidade—. Não tenho nada ver com isto.
—Sim, tem que ver com minha vida. E eu quero viver, Dragosani. Como pode ver, sei que o ataque ao coração do Borowitz está relacionado com você. E se você pode atacar o general e vencê-lo, que possibilidade tenho eu? Não sou valente, Dragosani, e tampouco estúpido. A Organização E é toda dela...
Dragosani se inclinou para frente. Seus olhos eram aguilhões de luz vermelha que transpassavam os cristais escuros dos óculos.
—Mas seu trabalho consiste em informar a Borowitz desta classe de coisas, Igor —disse com voz rouca—. Sobre tudo se concernirem a ele. Está-me dizendo que não lhe disse nada? Ou acaso ele já sabe que eu... estou metido nisto?
Vlady fez um gesto negativo e se ergueu no assento. Durante um instante se sentiu quase hipnotizado por Dragosani. O olhar do homem era como a de uma serpente. Ou possivelmente como de um lobo? Em todo caso, não inteiramente humano.
—Não sei por que lhe contei tudo isto —disse por fim—. Pelo que sei, pode ter sido enviado por Borowitz.
—Se assim fosse, você não saberia? —perguntou Dragosani—. Acaso não o teria visto, graças a seu talento?
—Não posso ver tudo! —replicou Vlady.
—De acordo. Não, não me enviou Borowitz. E agora me diga a verdade. O general sabe que morrerá amanhã? E se sabe, suspeita que eu serei o causador de sua morte? Me responda, estou esperando.
Vlady se mordeu os lábios e fez um gesto negativo.
—Não, não sabe —murmurou.
—Por que não lhe disse?
—Por duas razões. A primeira, embora soubesse, não poderia mudar nada. E a segunda, odeio ao velho bastardo. Tenho uma noiva e quero me casar. Desejei-o durante dez anos, mas Borowitz dizia que não. Necessitava-me totalmente concentrado em meu trabalho, e segundo ele, muito sexo arruinaria meu talento. Maldito seja o bastardo, racionava-me as relações com minha noiva.
Dragosani recuou para trás no assento e riu. Vlady viu sua enorme boca aberta, e seus afiados dentes, e uma vez mais teve a sensação de que estava falando com um estranho animal e não com um homem.
—Típico do Borowitz! —disse Dragosani quando por fim deixou de rir—. Bem, Igor, acredito que já pode fazer planos para as bodas. Sim, poderá casar-se quando o desejar.
—Mas você quererá que siga na organização, verdade? —disse Igor, e não parecia entusiasmado ante a perspectiva.
—É obvio —respondeu Dragosani—. Você é muito valioso para trabalhar como arquiteto. Mas a organização? Isso não é mais que um começo; na vida há coisas mais importantes. Quando tudo isto termine, eu subirei como a espuma. E você comigo.
Vlady lhe respondeu com um olhar enigmático. E Dragosani, de repente, teve a certeza de que lhe ocultava algo.
—Você ia dizer me o que tinha visto em meu futuro —lhe recordou—. Não seria má ideia que o fizesse agora, posto que terminamos com o Borowitz. Parece-me que disse que tinha visto algo... estranho.
—Sim, estranho —esteve de acordo Vlady—. Claro que posso me equivocar. De todas formas, amanhã saberá —disse, e teve um nervoso estremecimento ao ver a expressão do Dragosani.
—O que significa que manhã saberei? —perguntou o necromante enquanto ficava lentamente de pé—. Me entreteve para me fazer perder tempo, para me confundir com trivialidades, sabendo que manhã me acontecerá alguma coisa? A que hora? E onde?
—Amanhã de noite, e no château —respondeu Vlady—. Será algo importante, mas não sei nada mais.
Dragosani começou a passear pela sala, e tentou encontrar pistas daquilo em sua própria mente.
—Será a KGB? É possível que encontrem tão rápido o cadáver do Borowitz? Não acredito. E embora o fizessem, por que teriam que suspeitar da organização? Ou de mim? depois de tudo só terá sido um ataque ao coração. Isso lhe pode acontecer a qualquer um. Ou é alguém que pertence à organização? Talvez você, Igor, que pensou melhor? —Vlady se apressou a fazer um gesto negativo—. Será uma sabotagem? —Dragosani continuou passeando-se—. E se o for, de que tipo? —Dragosani fez um furioso gesto de negação—. Não, não pode ser. Maldito seja, Igor, você sabe mais do que diz! O que é exatamente o que viu?
—Você não compreende! —gritou Vlady—. Homem, não sou sobre-humano, não posso ver com exatidão todo o tempo!
Era verdade, e Dragosani sabia. A voz do Vlady indicava que estava exasperado; ele também desejava ter uma resposta.
—Em ocasiões as coisas são muito confusas, como aquela vez que Andrei Ustinov recebeu seu castigo. Eu sabia que aquela noite haveria agitação e adverti a Borowitz, mas me era impossível saber quem estaria envolvido. Agora me ocorre o mesmo. Amanhã haverá dificuldades, e serão grandes. Você estará no meio do assunto. O problema virá de fora e será grande... realmente grande. Disso estou seguro, mas não sei nada mais.
—Isso não é tudo —disse Dragosani com tom sinistro—. Ainda não sei a que se referia quando disse que meu futuro era «estranho». por que evita essa questão? Estarei em perigo?
—Sim —disse Vlady—, mas não só você. Todos os do château estarão em perigo.
—Maldito seja, homem! —Dragosani golpeou a mesa com o punho—. Segundo suas palavras, diria-se que todos vamos morrer.
Vlady ficou pálido. Virou o rosto, mas Dragosani se inclinou, agarrou seu rosto com uma de suas grandes mãos e o obrigou a olhá-lo aos olhos.
—Está seguro de que me disse tudo? —perguntou mastigando as palavras—. Não pode tentar me explicar o que queria dizer quando utilizou a palavra «estranho»? Acaso viu que morrerei amanhã?
Vlady se soltou e empurrou para trás a cadeira para afastar-se de Dragosani. As brancas marcas deixadas pela pressão dos dedos começaram a desvanecer-se de suas bochechas, e em seu lugar apareceram outras de cor rosada. Era indubitável que Dragosani era capaz de matar. Vlady devia tentar responder suas perguntas.
—Me escute —disse— e tratarei de explicar-lhe como melhor possa. Depois... depois você deverá decidir o que fazer com esta informação.
Quando vejo uma pessoa, quando tento "ver" seu futuro, habitualmente percebo uma linha reta de cor azul que se estende para frente. É como uma linha riscada sobre uma folha de papel de cima abaixo. Se quiser, chame-a-a linha da vida. Sua longitude me permite calcular a duração da vida do homem. Das anormalidades e separações posso deduzir alguns dos acontecimentos futuros e como lhe afetarão. A linha do Borowitz termina amanhã. Ao final há um cacho que indica um problema físico: o ataque do coração. Sei que você estará comprometido porque sua linha da vida cruza a do Borowitz, e continua sozinha para frente!
—Sim, mas por quanto tempo? —perguntou Dragosani—. O que acontecerá amanhã de noite, Igor? É esse o final de minha linha?
Vlady se estremeceu.
—Sua linha é completamente diferente —respondeu por fim—. Não sei como interpretá-la. Faz seis meses Borowitz me pediu que a lesse semanalmente e lhe transmitisse a informação. Tentei-o, mas foi impossível. Você tinha tantas separações na linha de sua vida, Dragosani, que não pude lhe dizer nada. Havia cachos e voltas que jamais tinha visto. Além disso, à medida que passavam os meses, o que tinha começado como uma linha única começou a dividir-se e se abriu em duas linhas paralelas. A nova não era azul e sim vermelha, outra coisa que tampouco tinha visto. Quanto à linha original, a mais antiga, pouco a pouco também se tornou vermelha. Você é... como dois gêmeos unidos, Dragosani. Não encontro outra maneira de explicá-lo. E amanhã...
—Sim?
—Amanhã de noite uma de suas linhas termina.
«A metade de mim morrerá! —pensou Dragosani—. Mas que metade?
E em voz alta perguntou:
—A vermelha ou a azul?
—A vermelha.
Morrerá o vampiro! Dragosani sentiu que sua esperança renascia, mas sufocou a alegria que sentia no mais profundo de seu ser.
—E o que acontece com a outra linha?
Vlady fez um gesto de incerteza, como se não encontrasse a maneira de explicá-lo.
—Isso é o mais estranho de tudo. Trata-se de algo que simplesmente não posso explicar. A outra linha perde sua cor vermelha e forma um cacho, dobra-se para trás e se une com a primeira no ponto exato em que começaram a dividir-se.
Dragosani se reclinou no assento e agarrou sua vodca. O que Vlady lhe havia dito não era satisfatório mas era melhor que nada.
—Fui muito duro com você, Igor —disse—, e o sinto. Posso ver que se esforçou por mim, e lhe agradeço. Mas me há dito que o de manhã será algo grande, e posso deduzir que provavelmente tem lido o futuro das outras pessoas que estarão no château. De maneira que quero saber quão grande será o assunto.
Vlady mordeu o lábio.
—Camarada, a resposta não lhe agradará —lhe advertiu.
—Diga-me isso de qualquer modo.
—Será uma destruição quase total. Uma força, um poder, descerá sobre o château Bronnitsy, e trará a devastação.
Keogh! Só podia ser Harry Keogh. Não existia outra ameaça. ..
Dragosani ficou de pé, agarrou seu casaco e se dirigiu à porta.
—Agora tenho que ir, Igor —disse—, e lhe estou muito agradecido. Não esquecerei o que tem feito por mim, acredite. E se vir algo novo, agradeceria-lhe que...
—É obvio! —disse Vlady, e respirou aliviado; acompanhou-o até a porta e no momento em que Dragosani saía, perguntou-lhe—: O que aconteceu com Max Batu, camarada?
Era uma pergunta perigosa, mas tinha que fazê-la.
Dragosani deteve um passo mais à frente da soleira, e deu a volta.
—Max? Ah, já sabe, então. Bom, foi um acidente.
—Sim —disse Vlady, e fez que sim com a cabeça—. Era o que eu supunha...
Quando ficou sozinho, Vlady acabou a garrafa de vodca e ficou meditando até muito tarde. Mas quando um relógio deu a meia-noite o vidente ficou em pé e decidiu transgredir sua própria regra. Lançou depressa sua mente para o futuro, seguiu sua própria linha da vida até seu inevitável final. Seria dentro de três dias, e acabava com um violento, esmigalhado gancho de ferro.
Vlady começou logo a empacotar umas poucas coisas e a preparar-se para fugir. O que ocupava o primeiro lugar em sua mente era o pensamento de que uma vez morto Borowitz, Dragosani ia ser o diretor da Organização E, ou ao menos do que ficasse dela. Podiam dizer o que quisessem do Gregor Borowitz, mas ao menos era humano. Quanto ao Dragosani... Vlady sabia que nunca poderia trabalhar sob suas ordens. Muito bem poderia acontecer que Dragosani morresse amanhã de noite. Mas o que aconteceria se não ocorresse? A linha do necromante era tão confusa, tão estranha... Não, Vlady só podia fazer uma coisa: devia tentar evitar o inevitável.
E a quase mil e seiscentos quilômetros dali, em um sombrio vigia sobre o muro de Berlim, com uma metralhadora esperava Igor Vlady. Ele não sabia, mas seu futuro e o da arma já se dirigiam para um ponto comum. Encontrariam-se exatamente às dez horas e trinta e dois minutos da noite, dentro de três dias.

Dragosani se dirigiu a seu apartamento. Dali chamou o château Bronnitsy e pediu para falar com o oficial de guarda. Deu-lhe o nome e a descrição do Harry Keogh para que os transmitisse em seguida a todos os aeroportos e postos fronteiriços da URSS, junto com a informação de que Keogh era um espião do Ocidente e devia ser imediatamente detido, ou morto se opusesse resistência. A KGB se inteiraria disto, claro está, mas Dragosani não importava. Se eles pegassem Keogh vivo, não saberiam o que fazer com ele, e cedo ou tarde cairia em mãos de Dragosani. E se o matassem... esse seria o fim do assunto.
Quanto às predições do Vlady, Dragosani acreditava nelas, mas não de maneira absoluta. Vlady insistia em que não se podia mudar o futuro, mas Dragosani achava o contrário. Só um deles tinha razão, mas até manhã de noite não saberiam qual dos dois. Em todo caso, a agitação predita no château Bronnitsy possivelmente não teria nada a ver com Harry Keogh; assim, tudo devia continuar tal como tinha planejado.
Depois de transmitir a informação ao château, Dragosani bebeu outra dose —uma bem grande desta vez, o que era pouco habitual nele— e por último se deitou. Estava esgotado, e dormiu até bem tarde na manhã seguinte...
Às onze e quarenta estacionou seu Volga em um pequeno bosque junto à estrada principal, a uns oitocentos metros da dacha mais próxima, levantou a gola do casaco e se dirigiu a pé a Zhukovka. Justo antes de meio-dia se desviou por uma trilha coberta de neve e se internou em meio ao arvoredo numa área paralela ao curso do rio, até chegar a dacha do Borowitz. Com um sorriso implacável percorreu depressa o atalho pedregoso que levava a sua porta e chamou. Enquanto esperava, farejou o aroma de fumaça de lenha que se percebia no ar gelado. Os finos cabelos de seu nariz crepitaram, mas os pedaços de gelo meio derretidos que se penduravam do teto da dacha lhe indicaram que a temperatura já estava subindo. A neve se derreteria muito em breve e os rastros de Dragosani se apagariam; não haveria nada que o relacionasse com este lugar.
Ouviu -se um ruído de passos lentos que vinha do interior, e a porta se abriu apenas. Pálido, despenteado e com os olhos avermelhados, Borowitz apareceu piscando à luz do dia.
—Dragosani? —disse com o gesto carrancudo—. Não lhe disse que não me incomodassem? Eu...
—Camarada general —o interrompeu Dragosani—, é um assunto de verdadeira urgência...
Borowitz se fez a um lado e abriu a porta de par em par.
—Entre, entre —resmungou, mas sem sua acostumada ferocidade.
O general estava sozinho na dacha fazia uma semana; já não parecia um homem vigoroso. Sua dor era verdadeira, e o tinha convertido em um ancião fatigado. O que era muito conveniente para os fins de Dragosani.
Entrou na casa e seguiu Borowitz por um curto corredor e depois de atravessar uma arcada com cortinas entraram em uma salinha onde jazia amortalhada Natasha Borowitz. A mulher tinha sido uma camponesa de aspecto agradável, mas morta parecia feia e vulgar. Parecia uma vela grossa e mal feita, a cera do rosto enrugada e a mecha dos cabelos opaca e desgrenhada. Borowitz lhe acariciou o rosto rígido e inclinou a cabeça, mas não pôde ocultar uma lágrima que brilhou na comissura de seu olho.
Logo conduziu Dragosani a uma sala de jantar que este já conhecia e lhe ofereceu uma cadeira perto de uma janela, a única que estava aberta de todas as da dacha. Dragosani, com uma silenciosa inclinação de cabeça, recusou sentar-se e olhou Borowitz, que se deixou cair pesadamente em uma poltrona.
—Prefiro ficar de pé —disse o necromante—. Isto não nos levará muito tempo.
—Uma visita relâmpago? —grunhiu Borowitz sem demonstrar nenhum interesse—. Poderia ter esperado, Dragosani. Amanhã levarão para sempre a minha Natasha, e depois voltarei para Moscou e ao château Bronnitsy. O que é isso tão urgente que o traz por aqui? Disse-me que sua viagem a Inglaterra tinha sido um êxito.
—Foi, mas aconteceu algo após...
—Sim?
—Camarada general —disse Dragosani—, Gregor, não quero que me faça perguntas, só que me diga algo. Recorda uma conversação que tivemos faz tempo, sobre o futuro da Organização E? Você disse que algum dia ia decidir quem o aconteceria no cargo quando se retirasse. E disse que o decidiria entre o Igor Vlady e eu.
Borowitz o olhou com cara séria e expressão de incredulidade.
—De modo que por isso está aqui! —grunhiu—. De maneira que era um assunto da máxima urgência, não? pensa-se que já estou preparado para lhe deixar o caminho livre? Ou acaso acredita que já é hora de me aposentar? Agora que Natasha morreu, deveria desaparecer pelo ralo, verdade?
O general se ergueu em seu assento, e em seus olhos apareceu algo do fogo a que Dragosani estava acostumado. Mas nesta ocasião, Dragosani não se inclinou, respeitoso, ante seu chefe.
—Disse-lhe que não deveria me fazer perguntas —lhe recordou—. Agora sou eu quem exige respostas, Gregor. Me diga, já decidiu quem o substituirá? E se o tem feito, comunicou esta decisão a alguém?
Borowitz estava assombrado e ofendido.
—Como se atreve? —perguntou iracundo—. Dragosani, acredito que você esquece quem sou eu... e quem é você. E ao parecer, também esqueceu, ou decidiu ignorar o fato, de que estou de luto. Você é odioso, Dragosani! E em resposta a suas perguntas, direi-lhe que não, não comuniquei a ninguém nem deixei escrito nada, porque não há nada que comunicar nem que escrever. Eu continuarei dirigindo a Organização E por muito tempo, posso assegurar-lhe, além disso, se decidisse escolher um sucessor, você não tem neste momento a menor possibilidade de sê-lo. —O general ficou de pé, estremecido de fúria—. E agora mova seu maldito traseiro e vá embora daqui antes que...!
Dragosani se tirou os grandes óculos escuros que levava postos.
Borowitz olhou seu rosto e ficou consternado ante a metamorfose que tinha sofrido. Esse homem que estava ante ele não parecia Dragosani. E esses olhos, esses incríveis olhos escarlate!
—Vou aposentá-lo, Gregor —murmurou Dragosani—, mas depois de tantos anos de trabalho não se irá com de mãos vazias. —Dragosani se encolheu, e seus ombros e costas pareceram encurvar-se com grotesca vida própria.
—Que me vai aposentar, diz? —Borowitz tentou retroceder mas a poltrona o impediu—. Você me vai aposentar?
Dragosani assentiu, abriu suas grandes mandíbulas e sorriu, exibindo umas presas que pareciam foices.
—Temos um presente de despedida para você, Gregor.
—Temos? Você e quem mais? —grasnou Borowitz.
—Eu e Max Batu —respondeu Dragosani, e no instante seguinte Borowitz teve o inferno ante si.
Depois, foi como se tivesse sido escoiceado no peito. Voou para trás, os braços muito abertos, bateu contra a parede e caiu. Sobre ele caíram algumas pequenas prateleiras e retratos que tinha pendurados da parede. Borowitz levou as mãos ao peito, lutou para controlar suas pernas, que pareciam de borracha, e tentou levantar-se. Respirava com dificuldade e sentia o coração destroçado; dava-se conta do que Dragosani lhe tinha feito, embora não sabia como.
Por fim ficou de pé.
—Dragosani! —exclamou, e tendeu suas trementes mãos para o necromante—. Drago...
E Dragosani lançou contra ele sua seta psíquica, uma e outra vez.
O primeiro golpe lançou ao Borowitz contra o sofá, esmagado como uma mosca. Conseguiu levantar-se de novo, para terminar a última palavra que pronunciaria em vida, e a segunda seta lhe foi fatal.
—... sani!
Tudo tinha acabado. O antigo chefe da Organização E estava completamente morto, e seu cadáver mostrava todos os sintomas de um ataque ao coração.
—Perfeito! —aprovou Dragosani.
Olhou a seu redor. A porta de um armário estava aberta, e dentro se via uma velha máquina de escrever, papel, sobre e outros efeitos de escritório. Dragosani tirou a máquina e a colocou sobre uma mesa, pôs uma folha de papel em branco e escreveu trabalhosamente:
«Encontro-me mau. Acredito que é o coração. A morte da Natasha me afetou muito. Acredito que estou acabado. Como ainda não tinha designado a meu sucessor, faço-o agora. O único homem em quem se pode confiar para que continue minha obra é Boris Dragosani. É absolutamente leal à URSS e ao chefe do Partido.
Temo que meu final esteja muito perto, e quisesse também que meu cadáver fora entregue a Dragosani. Ele conhece meus desejos a respeito...»

Dragosani sorriu enquanto deslizava duas ou três linhas para cima na folha de papel. Releu a nota, pegou uma caneta e, imitando a letra do Borowitz, assinou «G. B.» ao final da última linha. Logo limpou com um lenço o teclado da máquina e a levou até o sofá. sentou-se junto ao morto, agarrou-lhe as mãos e apoiou brandamente seus dedos durante uns segundos sobre as teclas da máquina. E todo o tempo Borowitz parecia olhá-lo com seus saltados olhos sem vida.
—Já está tudo feito, Gregor —disse Dragosani enquanto levava a máquina de volta à mesa—. Agora vou, mas não me despedirei de ti. Encontraremo-nos de novo depois de que lhe descubram morto. A entrevista é no château Bronnitsy, e me entregará todos seus segredos, Gregor Borowitz.
Eram as doze e vinte e cinco da manhã quando Dragosani saiu da dacha e se dirigiu a seu carro.

Como era sábado, havia menos gente que o habitual no château Bronnitsy, mas os guardas apostados na muralha exterior inspecionaram cuidadosamente Dragosani e comunicaram sua chegada ao interior do château. O oficial de guarda o estava esperando no edifício principal. Vestido com um macacão cinza cruzado por uma banda amarela em diagonal, que constituía o uniforme do château, adiantou-se a saudar Dragosani.
—Boas notícias, camarada! —disse enquanto acompanhava ao Dragosani para o edifício, e lhe abria a porta para que passasse—. Temos notícias do agente britânico, desse tal Harry Keogh.
Dragosani em seguida o agarrou pelo ombro, com um apertão inesperadamente vigoroso. O outro se soltou e olhou com curiosidade a Dragosani.
—O que acontece, camarada? Algo errado?
—Se tivermos capturado ao Keogh, não —grunhiu Dragosani—. Mas não foi você com quem falei ontem à noite.
—Não, camarada. Meu companheiro terminou seu turno, mas tinha lido seu relatório. E eu estava aqui esta manhã quando chegaram as notícias do Keogh.
Dragosani olhou de perto a seu interlocutor. Era magro e de ombros encurvados, um tipinho insignificante, e entretanto convencido de sua importância. Não era um PES; o oficial de guarda era um simples empregado do château. Um administrativo eficiente, mas um pouco pomposo —muito presumido e cheio de si mesmo— para o gosto do Dragosani.
—Venha comigo —disse friamente—. Poderá me contar sobre Keogh pelo caminho.
Dragosani, seguido pelo oficial de guarda, percorreu os corredores do château e por último subiu as escadas que levavam aos escritórios privados do Borowitz. O oficial, que o seguia com muita dificuldade, pediu-lhe:
—Camarada, vá um pouco mais devagar, ou ficarei sem fôlego e não poderei lhe contar nada!
Dragosani continuou sem diminuir o passo.
—O que acontece com Keogh? —perguntou por cima do ombro—. Onde está? Quem o tem? Trarão-o para o château?
—Não o «tem» ninguém, camarada —ofegou o oficial—. Sabemos onde está, nada mais. encontra-se na Alemanha do Este, em Leipzig. Entrou pelo Checkpoint Charlie, em Berlim, com um visto de turista. Em nenhum momento tentou esconder sua identidade. É muito estranho. Está em Leipzig há três ou quatro dias. Parece que passou quase todo o tempo em um cemitério. É evidente que esperava um contato.
Dragosani se deteve e olhou ao outro com desprezo.
—Evidente, disse você? Camarada, me permita lhe dizer que com esse tipo nada é evidente. Agora venha a meu escritório, que lhe darei instruções.
Um instante depois o oficial de guarda seguiu ao Dragosani à sala de espera do despacho do Borowitz.
—Seu escritório? —assombrou-se o oficial.
O secretário do Borowitz, um jovem de grosas óculos e prematura calvície, estava sentado a sua mesa e elevou a vista, surpreso. Dragosani lhe assinalou com o polegar a porta aberta e lhe disse:
—Você, fora! Espere fora; chamarei quando precisar.
—Como? —O homem, estupefato, ficou de pé—. Camarada Dragosani, isto não pode ser. Eu...
Dragosani se inclinou, agarrou-o pela bochecha e o arrastou por cima da mesa, derrubando plumas, lápis e papéis. O secretário, entre gemidos, saiu despedido pela porta aberta e Dragosani, antes de soltá-lo, deu-lhe um chute no traseiro.
—Proteste ante o Gregor Borowitz quando o vir! —disse-lhe com tom cortante—. Até então, obedeça minhas ordens ou o farei fuzilar.
Dragosani prosseguiu ao escritório de Borowitz, com o assustado oficial de guarda logo atrás. Sem deter para pensar, Dragosani se sentou na cadeira do Borowitz, depois do escritório, e olhou fixamente ao oficial de guarda.
—Me diga, quem vigia Keogh?
O homem, completamente intimidado, começou a falar gaguejando:
—Eu...eu...nós....a GREPO —conseguiu dizer por fim—. O vigia a Grenzpolizei, a polícia alemã de fronteiras.
—Sim, sim, já sei quem é a GREPO —disse carrancudo Dragosani—. Está bem. Me disseram que são muito eficientes. Preste atenção, estas são minhas ordens, de parte do Borowitz. Devem capturar Keogh, se for possível vivo. Isso é o que ordenei ontem à noite, e odeio repetir as coisas.
—Mas não têm do que acusá-lo, camarada Dragosani —explicou o oficial de guarda—. Não está nas listas de pessoas procuradas, e até o momento não tem feito nada mau.
—O acuse... o acuse de assassinato —disse Dragosani—.
Matou a um de nossos agentes na Inglaterra. De todas formas, capturem-no. E se isto for muito difícil, ordeno que o matem. E também ordenei isto ontem à noite.
O oficial de guarda se sentiu acusado, e tentou desculpar-se.
—Mas esses policiais são alemães, camarada. E há alemães que ainda acreditam que se governam a si mesmos. Compreende o que quero dizer?
—Não —disse Dragosani—. Não o compreendo. Utilize o telefone da sala vizinha e chame o quartel geral da Grenzpolizei em Berlim. Eu falarei com eles.
O oficial de guarda ficou olhando-o com a boca aberta.
—Agora! —gritou Dragosani. E quando o homem saía lhe disse—: E diga a esse panaca de fora que entre.
Quando o secretário do Borowitz entrou, Dragosani disse:
—Sente-se e escute. Até que volte o camarada general, o chefe sou eu. O que sabe sobre o funcionamento deste lugar?
—Sei quase tudo, camarada Dragosani —respondeu o outro, ainda pálido e atemorizado, e cobrindo-a bochecha com uma mão—. O camarada general delegava muitas coisas em mim.
—Recursos humanos?
—O que quer saber, camarada Drag...?
—Termine com isso! —interrompeu-o Dragosani—. Basta de «camarada». me Chame Dragosani.
—Sim, Dragosani.
—Com que recursos humanos contamos neste momento?
—Aqui, no château? Agora mesmo? Um pequeno grupo de PES e talvez uma dúzia de guardas de segurança.
—Há algum sistema de chamadas?
—Claro, Dragosani!
—Muito bem! Quero que haja no château ao menos trinta homens. E os quero antes das cinco da tarde. Têm que estar aqui nossos melhores telépatas e clarividentes, incluído Igor Vlady. Pode encarregar-se disto? Podemos reunir a estes homens para as cinco da tarde?
O outro assentiu em seguida.
—Sim, Dragosani. Estou seguro de que sim. Faltam mais de três horas.
—Mãos à obra, pois.
Quando Dragosani ficou sozinho se sentou em sua cadeira e pôs os pés sobre a mesa. Pensou no que estava fazendo. Se os alemães orientais capturassem Keogh, especialmente se o matassem —em cujo caso Dragosani deveria assegurar-se de que o cadáver fosse entregue a ele, pessoalmente— ficava eliminada a possibilidade de que fosse a causa do anunciado distúrbio. Em todo caso, seria muito difícil que Keogh pudesse chegar ao château de Leipzig em tão poucas horas. Dragosani possivelmente deveria concentrar-se em alguma outra possibilidade. Mas qual? Sabotagem? Começava a acontecer finalmente a guerra fria entre as Organizações E? Teria o assassinato de sir Keenan Gormley acendido uma mecha de combustão lenta, preparada a longo tempo? Mas o que poderia danificar o château? O lugar era uma fortaleza impenetrável. Nem cinquenta Keoghs poderiam romper a muralha!
Dragosani, cada vez mais tenso e furioso consigo mesmo, impôs-se não pensar mais em Keogh. Não, sem dúvida a ameaça vinha de outra parte. Pensou um pouco mais nas fortificações do château.
Dragosani nunca tinha entendido do todo a necessidade de fortificar o château, mas agora se alegrava de que estivesse tão bem defendido. Claro está que o velho Borowitz tinha sido um soldado muito antes de criar a Organização E; era um perito estrategista e sem dúvida tinha suas razões para insistir neste grau de segurança. Mas aqui, a dois passos de Moscou? O que tinha temido Borowitz? Uma sublevação? Problemas com a KGB, possivelmente? Ou era simplesmente uma obsessão do velho guerreiro, um ressaibo de seus dias de combates políticos e militares?
Claro que esta não era a única praça fortificada da URSS. Os centros de investigação espacial, as estações de investigação nuclear e plasmática, e os laboratórios para a fabricação de armas químicas e biológicas eram todos lugares de máxima segurança, virtualmente inexpugnáveis.
Dragosani soltou um bufido. Como lhe teria gostado de ter Borowitz aqui, em sua sala de cirurgia no piso debaixo, estirado sobre uma mesa de aço com as tripas penduradas e todos seus segredos a descoberto! Mas logo chegaria esse momento... quando por fim encontrassem o cadáver do velho bastardo!
—Camarada Dragosani —a voz do oficial de guarda que o chamava da habitação vizinha o arrancou de seus pensamentos—. Tenho aqui aos quartéis gerais da GREPO. Comunico-lhe com eles.
—Muito bem —disse Dragosani—, e há algo mais que pode fazer enquanto eu falo por telefone. Quero que revisem o château de cima abaixo. Sobre tudo os porões. Tenho entendido que abaixo há salas nas quais ninguém entrou. Quero uma inspeção exaustiva de todo o château. Procurem bombas, artefatos incendiários, algo que pareça suspeita. E quero que o façam com tantos homens quanto possível, especialmente PES. Entendido?
—Sim, camarada.
—Muito bem, e agora me deixe falar com os malditos alemães.

Eram as três e quinze minutos da tarde em Leipzig, e no cemitério da cidade fazia um frio pouco menos que ártico.
Harry Keogh, com a gola do casaco levantada e um recipiente térmico de café sobre os joelhos (vazio fazia algum tempo), estava sentado junto à tumba do August Ferdinand Möbius e tinha perdido as esperanças. Tinha tentado aplicar seus dotes PES —seu talento «metafísico»— às igualmente hipotéticas propriedades do espaço-tempo modificado e da topologia quadridimensional, mas tinha fracassado. A intuição lhe dizia que era possível, que certamente podia conseguir que uma fita de Möbius deslizasse de forma oblíqua no tempo, mas a mecânica da coisa eram blocos grandes como montanhas que simplesmente não podia levantar. Seu conhecimento intuitivo de matemática e de geometria não euclidiana não eram suficientes. Sentia-se como um homem a quem deram a equação E = mc2 e logo lhe pedem que a prove mediante a produção de uma explosão atômica... mas só com a mente! Como converter números imateriais, matemática pura, em feitos físicos? Não basta saber que uma casa necessita dez mil tijolos; não se pode construir uma casa de números, necessitam-se dos tijolos. Para Möbius era muito fácil enviar sua mente imaterial além das estrelas mais longínquas, mas Harry Keogh era um homem físico tridimensional de carne e osso. Suponhamos, de qualquer modo, se tivesse êxito e descobrisse como teletransportar-se de um hipotético ponto A um hipotético ponto B sem cobrir fisicamente o espaço que separava ambos, o que faria então? Aonde iria, e como saberia que tinha chegado? Isso parecia tão perigoso como lançar-se de uma ladeira para demonstrar a lei da gravidade!
Fazia dias este problema tinha ocupado quase por inteiro seus pensamentos. Tinha comido e bebido e dormido, sim, e atendido a todas suas necessidades naturais, mas nada mais. E o problema continuava sem resolver; o espaço-tempo continuava sem torcer-se para ele, as equações seguiam sendo escuros pontos de interrogação insondáveis nas manuseadas páginas de sua mente. O projeto de colocar seu ser físico dentro de uma estrutura metafísica era digna de elogio, certamente, mas como realizá-lo?
—Você necessita um estímulo, Harry —disse Möbius, introduzindo-se nos pensamentos do jovem pela décima quinta vez nesse dia—. Pessoalmente, acredito que isso é tudo o que lhe falta. Do início ao fim, a necessidade é a mãe da invenção. Você sabe o que quer fazer, e eu acredito que tem o que precisa, a habilidade intuitiva necessária, embora ainda não tenha encontrado a solução... mas não tem uma boa razão que o motive! Isso é tudo o que necessita agora, o aguilhão adequado, o estímulo que o levará a dar o último passo.
Harry assentiu com sua mente.
—É possível que tenha razão —disse—. Sei que o farei; só que eu... É um pouco parecido a deixar de fumar; a gente pode e não pode. E às vezes a gente pode fazê-lo quando já é muito tarde, quando está morrendo de câncer. Mas eu não quero esperar tanto! Quero dizer, tenho todas as noções de matemática, toda a teoria, tenho a intuição, mas não tenho a necessidade. Ainda não a tenho. Ou o estímulo, se prefere lhe dar esse nome. Me permita que lhe conte como me sinto:
»Estou sentado em uma sala bem iluminada, que tem uma janela e uma porta. Miro pela janela e lá fora está escuro. Sempre está. Não a escuridão da noite, e sim uma escuridão mais profunda que nunca se acaba. É a escuridão dos espaços entre os espaços. Sei que em algum lugar há outras salas meu problema é que não sei para onde me dirigir. Se sair por essa porta a escuridão me rodeará, serei parte dela. Pode ser que não seja capaz de retornar, aqui ou a qualquer outro lugar da terra. Não se trata tanto de que não possa ir, mas sim que não quero pensar sobre o que encontrarei ali. Tenho a sensação de que a viagem será uma extensão das outras coisas que posso fazer, mas uma extensão que não provei nunca. Sou como um pintinho no ovo, e romperei a casca quando não tiver mais remédio!
—Com quem está falando, senhor Keogh? —perguntou uma voz que não era a do Möbius; uma voz fria e inexpressiva, embora cheia de curiosidade.
—O que diz? —Harry Keogh, sobressaltado, levantou os olhos.
Os homens eram dois, e era evidente o que eram. Harry os teria reconhecido a primeira olhada até sem saber nada de espionagem, ou dos conflitos políticos entre o Este e o Oeste. A presença dos dois indivíduos lhe deu mais frio que o vento gelado que varria o deserto cemitério e levantava folhas mortas e partes de papel por entre os túmulos.
Um agente era muito alto e o outro baixo, mas seus casacos cinza esverdeados, os chapéus de asa baixa e os óculos de fina aros eram tão iguais que lhes davam a aparência de gêmeos. Em todo caso, eram gêmeos em suas inclinações, seus pensamentos e suas mesquinhas ambições. Seu traje delatava o que eram sem possibilidade de engano: policiais, provavelmente dos serviços secretos.
—O que diz? —perguntou Harry de novo, e ficou de pé—. Acredito que estava falando outra vez comigo mesmo. Sinto muito, mas o faço sempre; é um hábito que tenho.
—De modo que falava consigo mesmo? —repetiu o homem mais alto, e fez um gesto negativo com a cabeça—. Não, não acredito. —Falava com um forte acento, e seus lábios muito finos se curvaram em um sorriso cruel—. Acredito que falava com outra pessoa, possivelmente um espião como você.
Harry deu um ou dois passos para afastar-se dos homens.
—Realmente não sei do que... —começou a dizer.
—Onde está seu rádio, senhor Keogh? —disse o homem baixo; logo se adiantou e chutou a terra da tumba onde tinha estado sentado Harry—. Está enterrada aqui? Assim que se passa os dias falando consigo mesmo? Deve pensar que somos tolos!
—Me escute —balbuciou Harry, ainda retrocedendo—, vocês mee confundiram com outra pessoa. Eu, um espião? Isso é uma loucura! Sou um turista, isso é tudo.
—Sim? Um turista, em pleno inverno? Um turista que se senta todos os dias na mesma tumba a falar consigo mesmo? Poderia inventar algo melhor, senhor Keogh. Sabemos de boa fonte que você é um agente britânico, e também um assassino. E agora, nos acompanhe, por favor.
Não vá com eles, Harry! —disse a voz do Keenan Gormley na mente do Harry—. Corra, homem, corra!
—O que? —assombrou-se Harry—. Keenan? Mas como...?
Harry! Querido Harry! —clamou sua mãe—. Por favor, seja prudente!
—O que? —repetiu Harry, que continuava retrocedendo para afastar-se dos homens.
O baixinho tirou umas algemas e disse:
—Aconselho que não resista, senhor Keogh. Somos oficiais do serviço de contra-espionagem da Grenzpolizei, ...
Pegue-os, Harry! —rugiu-lhe o Sargento Lane em seu ouvido interno—. Já examinaste a esses dois; sabes como vencê-los. Ataque antes de que o eles façam. Mas tome cuidado, estão armados. Quando o mais baixo se adiantou três passos com as algemas, Harry adotou uma postura defensiva. O alto gritou:
—O que é isto? Está-nos ameaçando? Harry Keogh, deveria saber que nos ordenaram que o levemos conosco vivo ou morto!
O homem baixo fez gesto de pôr as algemas nos pulsos de Harry; no último instante, o jovem deslizou para um lado violentamente, deu meia volta e atacou o outro lhe dando um chute no peito, que quebrou-lhe algumas costelas e o jogou contra seu companheiro. O agente, uivando de dor, caiu no chão.
Não pode ganhar, Harry —insistiu Gormley—. Não poderá desta maneira!
Tem razão —interveio James Gordon Hannant, esta é sua última oportunidade, Harry, e tem que aproveitá-la. Embora vença estes dois, haverá outros. Não pode fazê-lo assim, Harry. Tem que utilizar seu talento. É maior do que você crê. Eu não te ensinei nada de matemática; simplesmente te ensinei a utilizar o que você já sabia. Mas seu potencial continua sem ser explorado. Homem, você conhece fórmulas que eu nem sequer tinha sonhado. Em uma ocasião lhe disse algo parecido meu filho, recorda?
Harry se lembrava.
De repente, estranhas equações cintilaram na tela de sua mente. Abriram-se portas onde antes não havia. Sua mente metafísica se expandiu e se apoderou do mundo físico, ansiosa por dobrá-lo a seu desejo. Harry ouvia o agente caído gritar de fúria e dor, viu o homem alto quando tirava um feio revólver de cano recortado, mas as portas da dimensão espaço-tempo do Möbius estavam impressas por cima da imagem do mundo real, ao alcance de Harry, e suas escuras soleiras pareciam chamá-lo.
Isso, Harry! Qualquer um servirá! —gritou Möbius.
—Não sei aonde ir —respondeu Harry.
Boa sorte, Harry! —gritaram Gormley, Hannant e Lane, quase em uníssono.
O revólver que apontava o agente mais alto cuspiu fogo e chumbo. Harry se voltou quando sentiu uma respiração quente contra sua nuca e alguém o agarrou furioso pela gola do casaco. O jovem lutou, deu chutes e sentiu uma profunda satisfação quando seu pé acertou a cara e o ombro do agente mais alto. O homem caiu, e seu revólver bateu contra o chão. O policial, amaldiçoando e cuspindo sangue e dentes, arrastou-se, agarrou a arma com as duas mãos e se escondeu, preparando-se para atacar de novo.
Harry viu pela extremidade do olho uma porta na fita de Möbius. Estava tão perto que se estendesse a mão poderia tocá-la. O homem alto grunhiu algo incompreensível e apontou a arma em direção a Harry. Este, a derrubou com um golpe, depois agarrou o homem pelo braço, e o lançou... pela porta aberta.
O agente alemão já não estava ali! O eco de um horrível uivo que se desvanecia chegando de lugar nenhum. Era o grito dos condenados, a queixa de uma alma perdida para sempre na escuridão definitiva.
Harry ouviu o grito e estremeceu... mas só por um muito breve instante. E imediatamente, cobrindo os últimos ecos do uivo, ouviram-se vozes que davam ordens. Um grupo de homens se aproximava, escondendo-se de túmulo em túmulo, dispostos a cercá-lo. Harry soube que se ia utilizar as portas, tinha que ser agora mesmo. O agente ferido sustentava um revólver com mãos que tremiam como gelatina. Seus olhos estavam muito abertos em uma expressão de assombro ante o que tinha visto. O homem não sabia se se atreveria a apertar o gatilho para matar Harry.
Harry não lhe deu tempo para que pensasse. Tirou-lhe o revólver com um chute, parou por um décimo de segundo e deixou que as telas de sua mente exibissem uma vez mais a fantástica fórmula. Os atacantes se aproximavam; uma bala golpeou o mármore do túmulo e saltaram faíscas.
Sobre o mármore do túmulo de Möbius flutuava impressa uma porta. Harry pensou que era muito conveniente, e mergulhou nela de cabeça.
O agente germano oriental ferido o viu ir e desaparecer dentro da tumba.
Outros homens chegaram todos juntos, as armas preparadas para disparar. Os agentes se detiveram em seco, olharam a seus redor com olhos frios e experimentados. O agente ferido lhes assinalou a tumba. O homem jazia ali, com as costelas quebradas, o rosto muito pálido, e apontava em silêncio para túmulo de Möbius. Estupefato, não conseguia dizer uma só palavra.
O vento gelado continuava ululando.

Dragosani recebeu as más notícias às quatro e quarenta e cinco da tarde. Harry Keogh estava vivo; não tinham conseguido capturá-lo e havia escapado. Tinha empregado meios desconhecidos para fugir, ou, em todo caso, os relatos a respeito eram tão confusos que não se podia concluir nada. Mas um agente tinha desaparecido, outro estava ferido gravemente e os alemães do Este estavam furiosos e queriam saber com quem, ou com o que, tinham que enfrentar. Bom, que protestassem e fizessem perguntas. Também ele próprio gostaria de saber o que teria que enfrentar.
De qualquer modo, agora o problema era dele, e o tempo escasseava. Já não havia dúvida de que Keogh iria ali, essa mesma noite. Como? Quem podia dizê-lo? E quando, exatamente? Era impossível responder a estas perguntas. Só uma coisa era certa para Dragosani: a vinda do Keogh. Mas um só homem, lançando-se a lutar contra um pequeno exército! Uma tarefa impossível, é claro, mas Dragosani sabia da existência de muitas coisas que os homens comuns consideravam impossíveis...
Enquanto isso, o sistema de chamadas de emergência do château tinha funcionado bem. Dragosani tinha todos os homens que tinha solicitado, e inclusive meia dúzia mais. Tinham postado metralhadoras na muralha, nos abrigos e nos blocos fortificados construídos nos contrafortes do château. Os PES «trabalhavam» nos laboratórios, no ambiente que mais convinha a suas diversas habilidades e talentos, e Dragosani tinha instalado seu quartel geral e centro de operações nos escritórios de Borowitz.
O château estava sendo verificado de cima abaixo de acordo a suas ordens, mas quando Dragosani se inteirou que Keogh tinha escapado, ordenou que suspendessem a busca. Agora sabia qual seria a origem do conflito. Já não era necessário procurarem exaustivamente nas abóbadas e porões do château, levantando e quebrando pisos de madeira e lajes de pedra centenárias, e deixando seus alicerces virtualmente a descoberto. Três dúzias de homens podem causar grande estrago em três horas, especialmente se lhes houverem dito que suas vidas possivelmente dependam disso.
O que mais o enfurecia era pensar que tudo isto se fazia por um só homem, por Harry Keogh, e que haviam predito que ele séria a causa do caos e da destruição. Isso significava que Keogh possuía um imenso poder destrutivo. Mas no que consistia? Dragosani sabia que era um necroscópio, e também tinha visto uma morta levantar do leito de um rio e ir em sua ajuda. A morta, entretanto, era sua mãe e o episódio teve lugar na Escócia, a milhares de quilômetros de distância. Aqui não havia ninguém que pudesse lutar por ele.
Claro está que se Dragosani estava tão inquieto, sempre podia partir do lugar (haviam predito que o conflito seria no château Bronnitsy, e unicamente ali), mas isso não convinha a seus interesses. Não só ficaria como um covarde, mas também não se cumpriria a previsão de Vlady de que o vampiro que havia em seu interior morreria essa noite. E Boris Dragosani desejava além de todas as coisas que essa previsão se cumprisse.
Quanto a Vlady, os homens encarregados da chamada de emergência tinham encontrado uma nota em sua casa que explicava sua ausência. Estava dirigida a sua noiva, e lhe dizia que muito em breve a mandaria procurar do Ocidente. Dragosani, com grande satisfação, tinha enviado a descrição do traidor a todos os postos por onde podia tentar sair do país. Suas ordens eram não lhe dar quartel, e matá-lo ali onde o vissem, para proteger a segurança da URSS.
De modo que Vlady podia considerar-se acabado. Contudo... teria tido melhor sorte ficando no château? Dragosani se perguntava isto, e também se Vlady teria fugido aterrorizado por si mesmo, ou por alguma outra coisa.
Algo que sua clarividência lhe tinha permitido ver no futuro próximo, muito próximo.

Capítulo dezesseis

Era tal como Harry tinha suspeitado: além das portas de Möbius tinha descoberto a Escuridão Primária, a escuridão que existia antes de que começasse o universo.
Não era só ausência de luz, era a ausência de tudo. Poderia ter estado no centro de um buraco negro, se não fora porque os buracos negros tinham uma gravidade enorme, e neste lugar não a havia absolutamente. Em um sentido, tratava-se de uma esfera de existência metafísica, mas em outro não o era porque nada existia ali. Era simplesmente um «lugar», mas um lugar em que Deus ainda não tinha pronunciado suas maravilhosas palavras criadoras: «Faça-se a luz!».
Não estava em nenhuma parte e estava em todas; era de uma vez central e periférico. dali se podia ir a qualquer lugar, ou a nenhum lugar, e para sempre. E seria para sempre, porque neste ambiente atemporal nada mudava ou envelhecia nunca, a menos que desejasse. Harry Keogh era por conseguinte um corpo estranho, uma partícula não desejada no olho do contínuo de Möbius, e este tinha que tentar rechaçá-lo. Harry sentia inclusive agora, força imateriais que atuavam nele, empurravam-no e tentavam desalojá-lo do irreal para devolvê-lo ao real. Mas Harry não se deixava empurrar.
Podia conjurar portas diferentes, certamente, milhões e milhões de portas que conduziam a todos os lugares e a todas as épocas, mas Harry sabia que a maioria desses lugares seriam letais para ele. Não podia, como Möbius, sair em uma galáxia distante, no mais remoto do espaço. Harry não era somente uma criatura espiritual, também era material. Não desejava congelar-se, aquecer-se, derreter-se ou explodir.
O problema, então, era: que porta?
O mergulho na lápide de Möbius podia havê-lo levado a um metro ou a um ano luz; possivelmente tinha estado ali há um minuto ou um mês quando percebeu o primeiro puxão de uma força diferente às forças de rechaço desta dimensão hiper-espaçotemporal. Em realidade, nem sequer era um puxão; assemelhava-se mas bem a uma suave pressão que parecia querer guiá-lo. Harry havia sentido algo semelhante quando procurava sua mãe por debaixo do gelo e tinha chegado ao remanso junto à saliente da beirada, onde ela estava. Essa pressão, de qualquer modo, não parecia de maneira nenhuma ameaçadora.
Harry se abandonou a ela, seguiu-a e percebeu que se fazia mais intensa; ele foi então para ela como o cego para uma voz amiga. Ou como uma traça para a luz? Não, porque sua intuição lhe disse que essa pressão, fosse o que fosse, não era má. A força, ainda mais vigorosa, conduziu-o por este rio paralelo de espaço-tempo, e Harry, com uma sensação similar a que teria ao ver uma luz ao final de um túnel, sentiu que este era o caminho para frente e começou a impulsionar-se nessa direção mediante seu desejo.

—Bom! —disse uma voz distante em sua mente—. Muito bem! Venha para mim, Harry Keogh, venha para mim...
Era uma voz feminina mas havia muito pouco calor nela. Era fina e áspera como o vento na tumba em Leipzig, era, igual ao vento, antiquíssima.
—Quem é você? —perguntou Harry.
—Uma amiga —foi a resposta, com uma voz agora mais próxima.
Harry continuou desejando chegar junto à voz mental. Desejou... ir por esse caminho. E ante ele apareceu uma porta de Möbius. Estendeu a mão, mas se deteve.
—Como sei que é uma amiga? Como sei que posso confiar em você?
—Em uma ocasião fiz a mesma pergunta —disse a voz quase no ouvido de Harry—, porque eu tampouco podia sabê-lo. Arrisquei e confiei.
Harry desejou que a porta se abrisse e entrou por ela.
Com o corpo estirado como quando se mergulhou pela porta, encontrou-se de repente suspenso a dez centímetros do chão e caiu, de bruços sobre a terra. A voz em sua cabeça riu.
—Vê? Uma amiga... —disse logo.
Harry, tonto e com náuseas, levantou uns centímetros a cabeça e olhou a seu redor. A luz e a cor foram quase como um golpe físico. Luz e calor. Essa foi na realidade a primeira impressão que teve: que tudo era morno. A terra era morna sob seu corpo, e o sol lhe esquentava a nuca e o dorso das mãos. Onde estava? Achava-se na terra?
Sentou-se lentamente, ainda enjoado. E de forma gradual percebeu a gravidade que atuava sobre ele; as coisas deixaram de girar e Harry respirou aliviado.
Harry não tinha viajado muito, pois de outra maneira teria reconhecido que se achava em um lugar mediterrâneo. A terra era de um pardo amarelado e com nervuras de areia, as nuvens brancas e o calor do sol em janeiro lhe indicou que estavam próximos ao Equador. Estava a milhares de quilômetros mais perto dele que quando estava em Leipzig. À distância se viam os picos de uma cadeia dos Montes não muito altos; mais perto havia ruínas, paredes brancas meio desmoronadas e montes de escombros. Por cima de sua cabeça...
Um par de aviões de caça cruzaram como flechas de prata o limpo azul do céu, deixando para trás um rastro de fumaça branca. O estrondo dos aviões, atenuado pela distância, envolveu Harry.
O jovem, que já estava melhor, olhou para as ruínas. Estava no Meio Oriente? Provavelmente. Em algum antigo povoado abandonado, que pouco a pouco tinha sucumbido às reclamações da natureza. E Harry voltou a se perguntar onde estaria.
—En-Dor —respondeu a voz em sua cabeça—. Esse era seu nome, quando ainda possuía um. Era meu lar.
En-Dor? O nome lhe soava. O En-Dor da Bíblia? O lugar aonde foi Saúl a véspera de sua morte nas fogueiras de Gilboa? Onde foi consultar a uma pitonisa?
—Sim, assim me chamavam —riu ela em sua mente—. A pitonisa de En-Dor. Mas isso foi há muito, muito tempo, e depois desapareceram as pitonisas, as bruxas, os videntes. O meu era um grande talento, mas atualmente há no mundo um maior. Ouvi falar dele em meu longo sonho, ouvi falar desse mago prodigioso, e eram tão intensos os rumores que me despertaram. Os mortos dizem que é seu amigo e entre os vivos há quem o tema. E eu desejava falar com esse homem que já é uma lenda entre os habitantes dos túmulos. E chamei e ele veio a mim. E seu nome é Harry Keogh...
Harry olhou a terra onde estava sentado e apoiou suas mãos sobre o chão. Retirou-as secas e poeirentas.
—Você está... está aqui? —perguntou.
—Sou parte do pó deste mundo —respondeu ela—. Meu pó está aqui.
Harry fez um gesto de compreensão. Dois mil anos é muito tempo.
—Por que me ajudou? —perguntou o jovem.
—Quereria você que me amaldiçoassem todos os mortos deste mundo? —respondeu em seguida ela—. Por que o ajudei? Porque eles me pediram isso! Todos eles! Sua fama chegou a todos os rincões, Harry. « salve-o pediram—, porque nós o amamos !»
—Entendo; era minha mãe.
—Sua mãe não é mais que uma entre muitos —respondeu a bruxa—. Ela é seu melhor advogado, sem dúvida, mas os mortos são muitos. Ela me rogou por você, sim, e outros milhares a acompanhavam.
Harry estava atônito.
—Mas eu não conheço milhares de mortos —disse—. Conheço uma dúzia, ou no máximo a dois.
Outra risada irônica.
—Mas eles conhecem você! E como poderia eu ignorar a meus irmãos na terra?
—E quer me ajudar?
—Sim.
—Sabe o que tenho que fazer?
—Sim, outros me informaram.
—Me ajude, então, se é que pode. Sinceramente, e não quero parecer ingrato, não sei o que poderia fazer você por mim.
—Faz dois mil anos, tive alguns dos poderes que você tem agora, Harry Keogh. Um rei veio a me pedir ajuda.
—Saúl? Para o que lhe serviu? —disse Harry, embora amavelmente.
—Ele me pediu que lhe mostrasse seu futuro —se defendeu a pitonisa—, e eu o fiz.
—E pode me mostrar o meu?
—Seu futuro? —Ela permaneceu em silencio por um instante—. Já olhei em seu futuro, Harry, mas não deve me perguntar por ele.
—É tão mau?
—Deverá realizar certas façanhas e consertar alguns erros —respondeu a pitonisa—. Se eu lhe mostrasse o que o espera não aumentaria suas forças para realizá-lo. Talvez caísse desvanecido, como Saúl.
—Vou perder... — Harry sentiu frio na alma.
—Algo seu se perderá.
—Eu não gosto como isso soa. Não pode me dizer nada mais?
—Não direi nada mais.
—Então, possivelmente possa me ajudar na dimensão de Möbius. Quero dizer, a encontrar meu caminho nela. O que devo fazer? Não sei como me teria arrumado se você não me tivesse guiado até aqui.
—Mas eu não sei nada disso —respondeu ela, evidentemente desconcertada—. Eu o chamei, e você me ouviu. Por que não deixa que o guiem os que o amam?
Era possível? Harry decidiu que sim.
—Bom, ao menos é algo —disse—. Posso tentar. E de que outra maneira pode me ajudar?
—Eu chamei Samuel quando me pediu isso o rei Saúl. Há alguns que querem falar com você. Me permita que faça de médium de suas mensagens.
—Mas se eu posso falar com os mortos diretamente!
—Com estes três, não —respondeu ela—, porque não os conhece.
—Muito bem, me permita falar com eles.
—Harry Keogh —sussurrou uma voz em sua cabeça, uma voz suave que contrastava com a crueldade de seu dono—. Você me viu em uma ocasião, e eu vi você. Meu nome é Max Batu.
Harry não pôde evitar um gesto de desgosto.
—Max Batu? Você não é meu amigo! —protestou—. Você matou ao Keenan Gormley! Mas, você está morto? Não o entendo...
—Dragosani me matou —respondeu o outro—. O fez para roubar meu talento mediante sua necromancia. Degolou-me, abriu-me as vísceras, e abandonou meu corpo aos vermes. Agora ele possui o olho maligno. Não pretendo ser seu amigo, Harry Keogh, mas sou ainda menos amigo de Dragosani. Estou lhe contando isto porque possivelmente lhe servirá para que você o mate antes que ele mate você. É minha vingança!
E quando a voz do Max Batu se desvaneceu, outra ocupou seu lugar.
—Eu era Thibor Ferenczy —disse, cheio de tristeza— Poderia ter vivido para sempre. Eu era um vampiro, Harry Keogh, mas Dragosani me destruiu. Eu era um não-morto, e agora só sou um morto a mais.
Um vampiro! Uma criatura dessa espécie tinha aparecido no jogo de associação de palavras do Gormley e Kyle. Este último tinha visto um vampiro no futuro do Harry.
—Eu não posso condenar ao Dragosani por ter matado a um vampiro! —disse Harry.
—E eu não quero que o condene —A voz abandonou sua tristeza e se tornou áspera, abandonando sua pena como uma serpente se desprende de sua pele—. Quero que o mate! Quero morto a esse mentiroso, farsante e estelionatário! Morto como um cão, morto como eu! E sei que morrerá, sei que você o matará, mas só se eu o ajudar. Quer que... que façamos um trato?
—Não o faça, Harry! —aconselhou-lhe a pitonisa de En-Dor—. Mesmo Satã fica pequeno ao lado de um vampiro quanto a mentiras e enganos.
—Não faço acordos —respondeu Harry aceitando o conselho.
—Mas é tão pouco o que eu quero! —protestou Thibor com voz queixosa.
—O que é?
—Tão somente que me prometa que de vez em quando, quando tiver tempo, falará comigo. Porque não há ninguém tão solitário como eu agora, Harry Keogh.
—Muito bem, o prometo.
O ex-vampiro suspirou aliviado.
—Obrigado. Agora sei por que os mortos o amam. Tem que saber uma coisa, Harry: Dragosani leva em seu interior um vampiro. A criatura ainda é imatura, mas cresce depressa e aprende ainda mais rápido. Sabe você como matar a um vampiro?
—Uma estaca de madeira?
—Isso só serve para imobilizá-lo. Mas depois deve decapitá-lo.
— Me lembrarei —disse Harry, e passou nervoso a língua pelos lábios ressecados.
—E lembre também de sua promessa —disse Thibor, sua voz desvanecendo-se em um nada.
Durante um instante reinou o silêncio, e Harry meditou sobre a monstruosa natureza dessa criatura híbrida contra a qual deveria lutar. Logo ressoou no silêncio a voz do terceiro e último visitante.
—Harry Keogh —grunhiu o último visitante—, você não me conhece, mas possivelmente sir Keenan Gormley lhe falou de mim. Eu era Gregor Borowitz, mas já não existo. Dragosani me matou com o olho maligno do Max Batu. Morri a traição na flor da vida!
—Você também quer vingar-se —disse Harry—. Não tem amigos Dragosani? Nenhum único?
—Sim, tinha-me . Eu tinha feito projetos para Dragosani, grandes projetos. Mas o bastardo tinha feito seus próprios planos, e eu não era parte deles. Matou-me para me roubar todos os conhecimentos sobre a Organização E, assim ele pode controlar minha criação. Mas acredito que as coisas vão ainda mais longe. Penso que Dragosani quer tudo. E quero dizer, literalmente, tudo o que existe sob o sol. E se viver, com o tempo poderia consegui-lo.
—Com o tempo?
Harry percebeu em sua mente que Borowitz estremecia.
—Dragosani ainda não terminou comigo. Meu corpo jaz em minha dacha, onde ele o deixou, mas cedo ou tarde lhe entregarão meu cadáver, e então fará comigo o que fez com o Max Batu. Eu não quero isso, Harry; não quero que esse canalha coloque suas mãos em minhas vísceras em busca de meus segredos.
Borowitz transmitiu algo de seu horror a Harry, mas mesmo assim este não podia sentir piedade pelo general.
—Compreendo seus motivos —disse—, mas se ele não o tivesse matado, o teria feito eu. Por minha mãe, pelo Keenan Gormley, e por todos aqueles a quem fez mal.
—Sim, claro, se você tivesse podido me teria matado —observou Borowitz sem rancor—. Harry Keogh, antes de ser um agente fui um soldado. Eu compreendo a honra, não sou Dragosani. E é por tudo isto que desejo ajudá-lo.
—Aceito suas razões —respondeu Harry—. Como pode me ajudar?
—Posso lhe dizer tudo o que sei sobre o château Bronnitsy: a disposição dos escritórios e laboratórios, as pessoas que trabalham no lugar. Olhe, aqui está tudo —e o general rapidamente comunicou ao Harry tudo o que sabia do lugar e dos PES que trabalhavam ali—. E depois posso falar com você de outra coisa, de algo que você, com seu especial talento, saberá utilizar. Disse-lhe que antes fui soldado, e meu conhecimento da arte da guerra era enorme. Estudei a história das artes bélicas dos primórdios do homem; tinha analisado suas guerras em todo o planeta, e conhecia a perfeição todos os campos de batalha. Pergunta-me como posso lhe ajudar. Bem, escute e o direi.
Harry escutou, e seus estranhos olhos estavam cada vez mais abertos e um sorriso sombrio apareceu em seu rosto. Até agora se havia sentido aflito, mas agora lhe tiravam uma pesada carga de cima. Começava a vislumbrar que, depois de tudo, tinha uma possibilidade. Borowitz terminou por fim.
—Bom, nós fomos inimigos —disse Harry—, embora nunca nos tivéssemos conhecido pessoalmente. Mas lhe agradeço. Você, é claro , sabe que, além de destruir a Dragosani, também tentarei acabar com sua organização.
—Não a destruirá mais do que a tivesse destruído ele —grunhiu Borowitz—. E agora tenho que ir. Desejo encontrar a outra pessoa, se for possível... —E também a voz do general se desvaneceu no silêncio.
Harry olhou o áspero território que o rodeava e viu que o sol estava muito baixo no horizonte. As aves davam voltas no céu enquanto o dia deslizava com lentidão para a noite. E Harry ficou sentado ali um longo tempo, com as mãos no queixo, pensativo.
—Todos querem me ajudar —disse por fim.
—Porque você lhes traz esperança —lhe respondeu a pitonisa de En-Dor—. Os mortos permaneceram mudos em suas tumbas durante séculos, desde seus sepultamentos. Mas agora se revolvem, buscam-se os uns aos outros, falam entre si da maneira que você lhes ensinou. Encontraram um paladino. Peça-lhes o que quiser, Harry Keogh, e eles o farão...
Harry ficou de pé, olhou a seu redor e sentiu que o frio da tarde começava a penetrá-lo.
—Não vejo nenhuma razão para ficar aqui mais tempo —disse—. Quanto a você, velha senhora, não sei como lhe agradecer.
—Já me agradeceram, e muito —respondeu a pitonisa—. Me agradeceram isso milhões de mortos.
—Sim, e agora irei falar com alguns deles.
—Vá, pois —respondeu ela—. O futuro o espera, assim como espera a todos os homens.
Harry não disse nada mais; depois fez aparecer as portas do Möbius, escolheu uma e entrou por ela.

Antes de tudo foi falar com sua mãe, e encontrou sem dificuldade o caminho; depois com o «Sargento» Graham Lane, em Harden, e de passagem visitou a tumba de James Gordon Hannant. Mais tarde se dirigiu ao Jardim de Repouso, em Kensington, onde tinham dispersado as cinzas do Keenan Gormley —Gormley permanecia ali—, e por último a dacha do Gregor Borowitz, em Zhukovka. Passou de dez a quinze minutos em cada lugar, exceto no último. Uma coisa era falar com homens mortos e enterrados, e outra muito distinta fazê-lo com um cadáver cujos olhos frágeis jorravam pus.
Em todo caso, quando Harry terminou sabia muito bem o que tinha que fazer e como arrumar-se com as complexidades do contínuo de Möbius; agora ficava somente um lugar a que ir. Mas antes pegou uma escopeta da parede e encheu os bolsos com as balas que tirou de uma gaveta.
Eram exatamente as seis e meia da tarde, hora da Europa Oriental, quando Harry se dirigiu a fita de Möbius indo de Zhukovka ao château Bronnitsy. No caminho se deu conta de que alguém ia na fita com ele, soube que não estava sozinho no contínuo de Möbius.
—Quem é? —perguntou Harry, com seus pensamentos postos na escuridão final da jornada.
—Só um homem morto —disse uma voz irônica e sem nenhum humor—. Quando estava vivo lia o futuro, mas tive que morrer para compreender e perceber toda a magnitude de meu talento. Embora pareça estranho, em seu «agora» eu ainda estou vivo, mas estarei morto dentro de pouco tempo.
—Não compreendo —respondeu Harry.
—Não esperava que compreendesse rápido. Estou aqui para explicar-lhe. Chamava-me Igor Vlady e trabalhava para o Borowitz. Cometi o engano de ler meu próprio futuro, minha própria morte. Isso acontecerá dentro de dois dias, em seu tempo, é claro, e será Boris Dragosani quem ordenará que me matem. Mas depois de morrer continuarei explorando meu próprio potencial. O que fiz em vida, farei ainda melhor depois de morto. Se quisesse, poderia ver o passado desde o começo dos tempos, ou ir para frente até o final, se é que o tempo tem começo e final. Mas, é obvio, não o tem; tudo é parte do contínuo de Möbius, uma torção infinita que contém todo o espaço e o tempo. Me deixe mostrar-lhe.
E Igor Vlady mostrou a Harry as portas do futuro e do passado, e Harry permaneceu de pé em suas soleiras e contemplou o tempo que tinha sido e o tempo que viria. Entretanto, não podia entender o que via. Porque além da porta do tempo futuro tudo era um caos de milhões de linhas de luz azul, e uma dessas linhas partia do próprio Harry, passava a porta e se estendia para o futuro. Algo similar ocorria além da porta do tempo passado: a mesma luz azul saía dele e se desvanecia no passado —seu passado— junto com outros milhões de luzes. E era tal o brilho deslumbrante de todos esses «fios de vida», que Harry se sentiu pouco menos que cego.
—Mas de você não emana uma linha de luz —disse a Igor Vlady—, por que?
—Porque minha luz se extinguiu. Agora sou como Möbius, mente pura. E assim como o espaço não tem segredos para ele, o tempo não os tem para mim.
Harry pensou um instante no que havia dito Vlady, e logo disse:
—Queria ver outra vez o fio de minha vida.
E outra vez esteve na soleira da porta do futuro. Olhou o brilhante fundo azul do futuro e viu reluzir o fio de sua vida como uma fita de néon que se curvava para o tempo que viria. Mas enquanto a contemplava, o final do fio de sua vida esteve ante seus olhos e então lhe pareceu que a azul luz vital não emanava de seu corpo, mas sim fluía para ele. O fio era absorvido por Harry à medida que se aproximava de seu próprio fim! E agora esse fim era claramente visível, e se aproximava dele como um meteoro disparado do futuro.
Harry, aterrorizado pelo desconhecido, afastou-se da porta do futuro e se encontrou de novo na escuridão.
—Vou morrer? —perguntou logo—. É isso o que quer me dizer, o que me está mostrando?
—Sim e não —respondeu a mente do Igor Vlady, que podia viajar através do tempo.
E Harry Keogh, uma vez mais, não conseguiu entender o que lhe diziam.
—Estou para passar por uma porta de Möbius rumo ao château Bronnitsy —disse Harry—, e quero saber se for morrer ali. A pitonisa de En-Dor me disse que perderia «algo» de mim mesmo. Agora vi o final do fio de minha vida. —Harry teve um nervoso estremecimento mental—. Me parece que já não posso mais...
Percebeu um gesto de assentimento do outro.
—Mas se você utilizasse a porta do tempo futuro —disse Vlady—, poderia ir mais à frente do final de seu fio... Poderia ir aonde começa de novo!
—Está-me dizendo que vou viver outra vez? —perguntou Harry, perplexo.
—Há um segundo fio que também é você, Harry. Já está vivo, mas carece de mente.
E Vlady explicou o significado de suas palavras: tinha lido o futuro do Harry da mesma maneira que em uma ocasião consultou o do Boris Dragosani. Harry tinha um futuro, mas Dragosani só passado. E agora Harry tinha todas as respostas.
—Estou em dívida com você —disse a Vlady.
—Não, não me deve nada —respondeu Vlady.
—Mas você veio para mim no momento preciso —insistiu Harry, sem dar-se muito bem conta do que dizia.
—O tempo é relativo —respondeu o outro encolhendo-se de ombros e com um sorriso—. O que será, foi.
—Obrigado, de qualquer modo —disse Harry, e cruzou a porta para o château Bronnitsy.

Às seis e trinta e um minuto da tarde o telefone sobressaltou Dragosani.
Lá fora estava escuro, e a neve que caía fazia que a escuridão parecesse ainda mais profunda. Os refletores da muralha e das torres varriam o terreno entre os edifícios principais e a muralha que rodeava o château. As luzes tinham estado acesas toda a tarde, mas agora seus raios pareciam opacos e cinzas, como se não pudessem penetrar a densa escuridão.
A Dragosani irritava que a visibilidade fosse tão pobre, mas as defesas do château não dependiam só da visão humana. Os mais sofisticados artefatos de detecção tinham sido instalados em lugares estratégicos, e inclusive havia um cerco de minas ativadas pela presença humana além dos ninhos de metralhadoras dos abrigos.
Mas nada disto dava a Dragosani uma verdadeira sensação de segurança; as previsões de Igor Vlady não tinham feito caso das medidas de amparo. Em todo caso, a chamada telefônica não tinha sido feita dos postos de guarda ou da muralha: todos os homens que ocupavam estas posições estavam equipados com rádios. Assim , a chamada era externa, ou vinha de uma das dependências da mansão.
Dragosani agarrou o telefone e disse, cortante:
—Quem é?
—Sou Félix Krakovitch —respondeu uma voz tremente—, estou em meu laboratório. Camarada Dragosani... há... há algo!
Dragosani conhecia homem, um vidente com um talento reduzido, sem ponto de comparação com o de Igor Vlady, mas não podia ignorá-lo, e menos em uma noite como esta.
—Algo? — Tremeram as aletas do nariz de Dragosani; o homem tinha sublinhado de maneira estranha a palavra—. Explique-se, Krakovitch! O que acontece exatamente?
—Não sei, camarada. É algo que vem. Algo terrível. Está aqui. Agora está aqui!
—O que significa «aqui»? —rugiu Dragosani—. Onde?
—Na neve, lá fora. Belov também o sente.
—Belov? —Karl Belov era um telepata, e muito bom nas distâncias curtas. Borowitz o tinha utilizado frequentemente nas festas das embaixadas estrangeiras, para recolher informação das mentes dos convidados—. Está Belov com você? Lhe diga que fique.
Belov era asmático. Sua voz era sempre suave, e como tinha dificuldades de respirar, expressava-se com frases curtas. Que agora o eram ainda mais.
—Belov está certo —disse ofegante—. Há uma mente ali, uma mente poderosa.
Tinha que ser Keogh!
—Só uma? —Os lábios de Dragosani se abriram em uma careta que deixou a descoberto seus dentes brancos e pontudos. Seus olhos avermelhados pareceram iluminar-se de dentro. Não sabia dizer como tinha conseguido Keogh chegar até o château, mas se estava sozinho era um homem morto. E ao diabo com as previsões do traidor do Vlady!
Ao outro lado da linha, Belov respirava com dificuldade e se esforçava por recuperar a fala.
—E então? —impacientou-se Dragosani.
—Não... não estou seguro —respondeu Belov—. Pensei que só era uma, mas agora...
—Agora o que? —gritou Dragosani—. Maldito seja! Estou rodeado de idiotas? O que acontece, Belov? O que se passa ali?
—Ele... está chamando —ofegou Belov no telefone—. É... é uma espécie de telepata, e está chamando.
—A quem? A você?
—Não; não é para mim. Está chamando a... a outros. Meu Deus, começam a lhe responder!
—Quem lhe responde? —gritou Dragosani—. O que lhe acontece, Belov? Há traidores no château?
Ouviu -se um ruído do outro lado da linha —um gemido suave e um golpe— e logo falou Krakovitch.
—Camarada, Belov desmaiou.
Dragosani não podia acreditar no que ouvia.
—O que? Que diabos...?
As luzes começavam a piscar no painel que assinalava as chamadas de rádio, e que Dragosani havia trazido para seu escritório da cela de controle do oficial de guarda. Vários homens, equipados com auriculares, tentavam comunicar-se com ele de seus postos de defesa. Na sala vizinha Yul Galenski, o secretário do Borowitz, estava sentado detrás de sua mesa e se retorcia nervoso escutando os gritos furiosos de Dragosani. E agora o necromante chamava a ele.
—Galenski, está surdo? Venha, que necessito ajuda!
Nesse momento chegou o oficial de guarda. Trazia várias metralhadoras Kalashnikov. Quando viu que Galenski ficava de pé, disse-lhe:
—Sente-se. Irei eu.
Sem bater na porta entrou na sala vizinha, e se deteve em seco, atônito, quando viu Dragosani escondido junto ao painel de luzes piscantes. O necromante tirou os óculos escuros. Grunhia surdamente olhando o rádio, e parecia mais uma fera meio enlouquecida que um homem.
O oficial de guarda, que ainda olhava atônito o rosto do necromante e seus horríveis olhos, deixou cair as armas em uma cadeira. Dragosani lhe disse nesse instante:
—Deixe de me olhar com essa cara! —O necromante alargou uma de suas grandes mãos, agarrou ao oficial de guarda do ombro e o arrastou para a rádio—. Sabe utilizar este maldito aparelho?
—Sim, Dragosani —disse engulindo saliva o oficial de guarda—. Querem comunicar-se com você.
—Isso já sei, idiota! —respondeu Dragosani—. Fale com eles. Descubra o que querem.
O oficial de guarda se sentou diante do rádio. Pegou o auricular, apertou alguns botões e disse:
—Aqui Zero. Respondam tudo os sinais de chamada. Câmbio.
As respostas chegaram imediatamente, e em sucessão numérica.
—Aqui sinal Um. Recepção correta. Câmbio.
—Dois. Recepção correta. Câmbio.
—Três. Recepção correta. Câmbio. —E assim até o sinal de chamada número quinze.
As vozes se ouviam a distância, e havia alguns ruídos de fundo, mas além disso os homens pareciam excessivamente tensos, as vozes tinham um matiz de pânico logo que controlado.
—Zero a sinal de chamada Um. Envie sua mensagem —disse o oficial de guarda.
—Um: Há coisas na neve! —chegou imediatamente a mensagem, a voz do Um cheia de contida emoção—. Estão rodeando meu posto! Solicito permissão para abrir fogo. Câmbio.
—Zero a Um: Espere! —replicou o oficial de guarda, e olhou a Dragosani.
O necromante tinha os olhos avermelhados muito abertos, como coágulos de sangue em seu rosto desumano.
—Não! —rugiu—. Primeiro quero saber o que enfrentamos. Diga-lhe que não abra fogo e me faça um comentário breve do que acontece.
O oficial de guarda, muito pálido, assentiu. Transmitiu logo a ordem de Dragosani e para seus botões se alegrou de não estar em um ninho de metralhadoras na neve. Embora possivelmente isso não era pior que estar trancado com o demente do Dragosani.
—Zero, aqui Um! —A voz de Um soava agora ao bordo da histeria—. Saem da neve, e se aproximam formando um semicírculo! Dentro de um instante estarão na zona minada! Mas se movem muito, muito lentamente. Já está! Um deles pisou em uma mina! Destroçou-o, mas outros seguem aproximando-se. São muito magros, estão vestidos com farrapos, e não fazem nenhum ruído. Alguns... alguns levam espadas.
—Zero a Um: Você se refere a eles como se fossem algo estranho. Não são homens, por acaso?
—Homens? Não sei se são homens —respondeu Um com uma voz completamente histérica—. Talvez o sejam... ou o tenham sido antes. Acredito que me estou ficando louco! Isto é incrível! —O homem fez um esforço por dominar-se—. Zero... estou sozinho e são muitíssimos. Peço permissão para abrir fogo. O peço! Devo me proteger...
Enquanto Dragosani olhava o mapa mural para localizar a posição de Um, uma espuma branca começou a aparecer nas comissuras de sua boca. O homem estava em um ninho de metralhadoras situado diretamente debaixo da torre de comando, mas a uns cinquenta metros do château. Dragosani podia ver, entre os redemoinhos de neve, as escuras silhuetas dos abrigos, mas ainda não havia sinais dos desconhecidos invasores. Olhou outra vez pela janela de vidros blindados, e precisamente nesse instante uma labareda laranja iluminou brevemente os abrigos e se ouviu a surda explosão de outra mina.
O oficial de guarda olhou ao Dragosani, e esperou suas ordens.
—Diga-lhe que descreva essas... essas criaturas —disse Dragosani, com voz áspera.
Mas antes de que o oficial de guarda pudesse obedecer, houve outra chamada na rádio.
—Zero, fala Onze! Esses bastardos estão em todas partes. Se não abrir fogo agora nos esmagarão! Quer saber o que são? O direi: são mortos!
De modo que era isso. Dragosani o tinha temido. Keogh estava ali, e convocava aos mortos. Mas a que mortos?
—Diga-lhe que disparem. —Dragosani emitiu as palavras salpicando espuma a seu redor—. Que matem a esses bastardos, sejam lá o que forem!
O oficial de guarda transmitiu as ordens, mas já se ouviam surdas explosões em todas partes, acompanhadas pelo matraqueio das metralhadoras. Os defensores tinham decidido atuar por iniciativa própria, e começaram a disparar, quase a queima-roupa, contra um exército de zumbis que avançavam inexoravelmente em meio a neve.

Gregor Borowitz não tinha mentido. Conhecia muito bem a história das artes da guerra, sobre tudo de sua terra natal. Em 1579 Moscou foi saqueada pelos tártaros da Crimeia. Houve discussões sobre a partilha do botim; um herdeiro dos Khan desafiou a autoridade de seus superiores; ele e seu grupo de trezentos cavaleiros foram despojados de sua parte no botim e de quase todas suas armas, e expulsos da cidade. Desonrados, dirigiram-se para o sul, buscando o sustento como podiam. Chovia torrencialmente e ficaram presos sem poder sair em um pantanoso triângulo de bosque onde os rios haviam transbordado. Um regimento de quinhentos guerreiros russos que deviam socorrer à assediada cidade os encontrou em meio a chuva e os exterminou até o último tártaro. Seus cadáveres afundaram na lama, e nunca voltaram a ser vistos... até o dia de hoje.
Harry não teve que esforçar-se por convencê-los; pareciam estar esperando-o, preparados para levantar-se da dura terra em que tinham jazido durante quatro séculos. Osso a osso, farrapo a farrapo, tinham saído da tumba, alguns com as enferrujadas armas do passado, e sob às ordens de Harry tinham avançado sobre o château Bronnitsy.
Harry tinha saído do contínuo de Möbius dentro da muralha que cercava os terrenos do château; os defensores da muralha, que olhavam para fora, não o tinham visto, e tampouco tinham visto seu exército de mortos. Além disso, as metralhadoras dos postos de guarda da muralha apontavam na direção errada, e tudo isto, combinado com a noite e a neve, dava a Harry uma excelente cobertura.
Mas havia também cabos armadilha, e outros mecanismos de detecção, e faltava cruzar o campo de minas e logo o círculo interior de ninhos de metralhadora.
Para Harry estes obstáculos não representavam um problema; nem sequer eram obstáculos, posto que podia sair deste universo e voltar um minuto mais tarde dentro da sala do château que mais lhe conviesse. Mas antes queria ver como se sairia seu exército: queria que os defensores do château estivessem completamente ocupados em defender suas próprias vidas, e não a de Boris Dragosani.
No momento, estava deitado de barriga para baixo em um suave terreno baixo, escondido atrás de uma criatura de ossos e couro, sem cabeça, que há um momento atrás tinha tomado a frente na direção do ninho de metralhadoras do abrigo, onde Um e seu companheiro disparavam rajadas de metralhadora contra o muro de mortos que lentamente avançava para eles. Uma grande parte do exército do Harry —aproximadamente a metade dos trezentos que o compunham— tinha saído da terra neste setor, e as minas estavam causando uma grande quantidade de baixas. E agora as metralhadoras causavam ao exército de Harry golpes terríveis.
Harry decidiu tomar o ninho de metralhadoras. Abriu a escopeta do Borowitz e colocou os cartuchos pela dupla abertura.
—Me leve com você —suplicou o tártaro que o defendia—. Eu ajudei a saquear uma cidade, e isto não é mais que um château.
A metralha de uma mina lhe tinha arrancado parte do crânio do tártaro, mas parecia não lhe importar. Ainda sustentava ante si um enorme escudo de ferro e bronze, e com ele e com seus próprios ossos protegia a Harry.
—Não —disse Harry—. Ali não há muito espaço, e terei que entrar e fazer tudo muito rápido. Mas lhe agradeceria que me permitisse usar seu escudo.
— Pegue-o —disse o cadáver, e soltou a pesada placa que sustentava com descascados dedos de osso—. Espero que lhe seja útil.
Uma mina explodiu à direita; durante um instante sua luz tornou a neve de cor laranja, e o estrondo fez tremer a terra. Harry viu a luz da explosão um arco de figuras esqueléticas que estavam cada vez mais perto do ninho de metralhadoras; mas também o viram os homens que ocupavam o posto de defesa. As balas de metralhadora rasgavam o ar, dispersando os restos dos tártaros, e passavam perigosamente perto de Harry. O antigo escudo era pesado mas estava corroído pela ferrugem; Harry sabia que não deteria um impacto direto.
—Vá agora! —rurgiu-lhe a criatura morta e sem cabeça, enquanto ficava de pé e se preparava para seguir seu avanço—. Mate a alguns em meu nome!
Harry olhou o ninho de metralhadoras mas entre os flocos de neve, fixou sua posição em sua mente, e logo se introduziu de lado por uma porta de Möbius... e dali ao interior do ninho de metralhadoras.
Ali não havia tempo para refletir e muito pouco espaço para mover-se. O que por fora parecia um velho estábulo era na verdade um ninho de placas de aço e blocos de concreto, abarrotado de armas e brilhantes cinturões de munições. Pelas miras e os orifícios de saída das metralhadoras se filtrava uma luz cinzenta; o interior da pequena fortaleza cheirava a suor e a sujeira. Lá dentro, Um e seu companheiro tossiam e balbuciavam palavras pouco menos que incompreensíveis enquanto disparavam febrilmente suas armas.
Harry saiu no pequeno espaço detrás dos dois homens e deixou cair o pesado escudo ao chão enquanto levantava e mirava a escopeta neles. Quando ouviram o ruído do escudo ao golpear contra o chão, os dois russos deram meia volta em suas cadeiras giratórias de aço. Viram um jovem de rosto pálido que lhes apontava uma escopeta, os olhos muito brilhantes e os lábios apertados em um gesto de determinação.
—Quem é você? —perguntou atônito Um, que parecia um estranho ser de outro planeta com seu uniforme, os fones de ouvido que levava postos e seus olhos saltados.
—Como...? —começou a dizer seu companheiro, enquanto completava automaticamente a tarefa de recarregar a metralhadora.
O chamado Um tentou de sacar uma pistola enquanto seu companheiro, amaldiçoando, tratava de ficar de pé.
Harry não sentiu compaixão pelos homens. Era sua vida, ou a deles. E ali onde se dirigiam, havia muitos dispostos a lhes dar a boas-vindas... Apertou o gatilho: uma vez para Um, outra para seu companheiro, e os enviou aos braços da morte. O cheiro do sangue fresca se mesclou com o cheiro de sujeira, de suor e de medo que já impregnava o lugar, e fez lacrimejar Harry. Piscou furioso, voltou a carregar a escopeta e entrou em outra porta de Möbius.
No seguinte ninho de metralhadora aconteceu o mesmo, e também no que veio depois. Em total, foram seis. Harry acabou com todos em menos de dois minutos.
No último, quando já tinha terminado, encontrou a caótica mente de um dos defensores recém mortos e o tranquilizou.
— Tudo já terminou para você —disse— mas o causador de tudo isto segue vivo. Se não fosse por ele, você estaria esta noite em casa com sua família. E eu com a minha. Agora me diga, onde está Dragosani?
—No escritório de Borowitz, na torre —disse o outro—. Instalou ali a sala de comando. Haverá outros homens com ele.
—Já o supunha —respondeu Harry, olhando o rosto destroçado, irreconhecível do russo—. Obrigado.
Agora só faltava fazer uma coisa, e Harry gostaria que alguém o ajudasse na tarefa.
Abriu as braçadeiras de aço que prendiam a metralhadora à base giratória, pegou a arma e a jogou contra o duro chão; logo a recolheu e voltou a jogá-la. Depois de três ou quatro golpes contra o chão de concreto, a madeira da manga se estilhaçou ao longo, e Harry pôde pegar uma estaca com uma ponta aguçada e uma base plana.
Procurou em seus bolsos e encontrou um só cartucho; apertou os dentes e carregou a escopeta com o único projétil que ficava. Teria que arrumar-se com o que tinha. Abriu a porta do ninho de metralhadoras e saiu à intempérie. A pouca distância, e algo que velado pela neve que caía sem cessar, o château resplandecia com todas suas luzes acesas e os refletores fendiam a noite com seus raios móveis, procurando o inimigo. O exército de Harry —ou o que ficara dele— já estava junto aos muros do château, e se ouvia incessante o matraqueio das metralhadoras. Os defensores restantes tentavam matar a homens já mortos, e a tarefa se fazia a um alto custo.
Harry olhou seu redor e viu um grupo de recém chegados que avançavam pela neve, lenta mas inexoravelmente, para o assediado château. Eram figuras horripilantes, espantalhos que passavam a seu lado, com um ranger de ossos, e animados por uma monstruosa energia. Mas Harry não tinha medo da morte. Deteve dois dos combatentes, um par de cadáveres mumificados um pouco menos deteriorados que o resto, e ofereceu a um deles a estaca de madeira.
—Para Dragosani —disse.
O outro tártaro levava uma grande espada de folha curva e ferrugenta; Harry supôs que em seu dia a teria usado com efeitos devastadores. Pois bem, agora a usaria outra vez. O jovem assinalou a espada e disse:
—Também isso é para o Dragosani. Para o vampiro que há nele.
E depois abriu uma porta de Möbius e conduziu a seus dois murchos companheiros por ela.
No château Bronnitsy reinava o caos quase desde o começo. O edifício principal tinha sido construído fazia duzentos e trinta anos sobre um antigo campo de batalha; o palácio, por sua vez, era o mausoléu de uma dúzia dos mais valentes guerreiros tártaros. E, devido ao chão de turfa, os cadáveres eram verdadeiras múmias, e não esqueletos que a carne tinha desaparecido.
Dragosani, além disso, tinha ordenado que levantassem as grandes lajes de pedra e os chãos de madeira para procurar signos de sabotagem. assim, depois da chamada do Harry, os tártaros tinham encontrado poucos obstáculos para emergir de suas tumbas centenárias e rondavam pelos corredores, os laboratórios e as estufas do château. E em qualquer lugar que tinham encontrado PES ou defensores, tinham acabado com eles sem mais.
Tudo o que ficava agora eram os postos de defesa construídos nos muros do château, e devido a sua situação, os homens que os ocupavam não tinham nenhum meio de fuga, não podiam sair deles. Só se podia entrar nestes postos de defesa do interior do château porque não tinham portas exteriores. A voz de um destes homens apanhado em sua minúscula fortaleza informou a Dragosani do acontecido sem lhe economizar nenhum dos horríveis detalhes.
—Camarada, isto é uma loucura, uma absoluta loucura! —queixava-se a voz no rádio de Dragosani, bloqueando todas as outras chamadas... se é que ficava alguém que quisesse ou pudesse chamar—. São... são zumbis, homens mortos! E como matar a cadáveres? aproximam-se... e meu artilheiro dispara, e as destroça em pedaços... e os pedaços seguem avançando. Fora, uma pilha de ossos e restos se move e forma um muro contra o muro do château. Troncos, pernas, braços, mãos... até as partes mais pequenas se unem aos outros. Muito em breve penetrarão pelas frestas, o que faremos então?
Dragosani deixou escapar um grunhido mais animal que nunca, e sacudiu seu punho em direção da noite e da espessa neve que caía além das janelas da mansão.
—Keogh! —gritou furioso—. Sei que está aí, Keogh. Se for vir, faça-o, e terminemos de uma vez.
—Também estão dentro do château! —soluçou a voz no rádio—. Estamos cercados aqui. Meu artilheiro ficou louco. Ele alucina enquanto dispara a metralhadora. Fechei a porta blindada, mas algo segue golpeando-a e tenta entrar. Sei o que é, vi-o: conseguiu colocar uma mão antes de que eu fechasse a porta de um golpe... e agora essa mão me agarrou a perna e tenta subir. Afasto-a a golpes, mas sempre volta. Vê-o? Outra vez, outra vez! —e a voz se tornou uma risada enlouquecida que se desvaneceu em um estalo de ruídos de fundo.
E de repente, e quase simultaneamente com os ruídos do rádio, Yul Galenski gritou aterrorizado na sala de espera.
—As escadas! Sobem pelas escadas! —Sua voz era aguda como a de uma mocinha; Yul não tinha lutado nunca, ele era um secretário, um funcionário administrativo. Além disso, quem tinha experiente antes uma luta como esta?
O oficial de guarda, que até esse momento tinha permanecido de pé junto à janela, pegou um fuzil e correu para onde estava Galenski; dali retrocedeu até o patamar. No trajeto agarrou também da mesa de Dragosani várias balas. «Esse ao menos é um homem», pensou Dragosani.
Depois se ouviu o uivo de horror do oficial de guarda, suas maldições, o matraqueio do fuzil metralhando e logo as explosões que o derrubaram escada abaixo. E depois do estrondo dos explosivos, ouviu-se a última mensagem de um dos homens nos postos de defesa.
—Não! Não! Santa Mãe de Deus! Meu artilheiro levou um tiro, e agora eles entram pelas frestas! São mãos sem braços..., cabeças sem corpos! Acredito que terei que seguir a meu artilheiro, que agora já se livrou disto. E agora esses... esses restos... estão junto às granadas! Não, deixem isso!
Depois se ouviu o inconfundível ruído de uma granada ao ser armada, mais gritos e ruídos caóticos e por último uma grande explosão a que seguiu o silêncio.
Agora o rádio não deixava ouvir mais que os ruídos de estática. E de repente, o château Bronnitsy pareceu muito tranquilo...
Mas era uma tranquilidade que não podia durar. Quando o oficial de guarda voltava do patamar ao escritório de Galenski, Harry Keogh e seus companheiros tártaros saíram do contínuo de Möbius. Súbitamente apareceram ali, na sala de espera, como por arte de magia.
O oficial de guarda ouviu o gemido de terror do Galenski, voltou-se, e viu o que tinha visto o secretário: um jovem de expressão severo, sujo de fuligem pela fumaça e escoltado por duas múmias ameaçadoras, envoltas em farrapos de couro negro que deixavam ver seus brancos ossos. Só a visão desses dois seres esteve a ponto de paralisá-lo, mas se refez e decidiu defender sua vida.
Com os lábios contraídos em uma careta de medo e desespero, o oficial de guarda murmurou algo entre dentes e levantou seu fuzil... mas lhe deram um empurrão e o jogaram pela escada; seu rosto se converteu em uma massa sanguinolenta quando Harry disparou a queima-roupa o último cartucho que restava.
Imediatamente depois os companheiros do Harry se interessaram por Galenski, que gaguejava de modo rasteiro em um rincão detrás de sua mesa, e Harry penetrou no que antigamente fora o escritório privado do Borowitz. Dragosani, que estava jogando de sua mesa o rádio mudo, voltou-se e o viu. Suas grandes mandíbulas se abriram em um gesto de surpresa; assinalou-o com uma mão tremente e emitiu um som similar ao assobio de uma serpente, enquanto seus olhos avermelhados pareciam flamejar. E durante um instante os dois homens permaneceram imóveis, frente a frente.
Ambos tinham sofrida mudanças notáveis, mas as diferenças visíveis em Dragosani pareciam o resultado de uma completa metamorfose. Harry o reconheceu com muita dificuldade. Quanto a Harry, pouco ficava nele de sua antiga personalidade, de sua identidade anterior. O jovem tinha herdado grandes e múltiplos talentos, e agora era mais que um homo Sapiens. Na verdade, ambos os homens eram agora seres estranhos, e nesse fugaz momento, enquanto se olhavam, os dois o perceberam. E logo...
Dragosani viu a escopeta nas mãos do Harry e ardeu em ódio; o necromante não podia saber que estava descarregada e esperava ouvir um disparo em qualquer momento: lançou-se então para a mesa do Borowitz e procurou uma metralhadora. Harry agarrou a escopeta pelo cano, adiantou-se e golpeou com a culatra a cabeça do necromante enquanto este se inclinava sobre o escritório. Dragosani foi jogado para trás, e a metralhadora caiu no chão atapetado. O necromante se chocou contra uma parede e durante um instante ficou ali com os braços e as pernas estendidos, mas logo se colocou em uma posição defensiva. E então viu que a escopeta do Harry estava quebrada onde o carregador se unia aos canos, e que o jovem olhava com ansiedade a seu redor em busca de outra arma. Dragosani compreendeu em seguida que a vantagem era dela, pois ele não necessitava armas fabricadas pelos homens para acabar com Harry Keogh.
Os gritos do Galenski na sala de espera cessaram de repente. Harry retrocedeu para a porta, que estava médio aberta, mas Dragosani não pensava deixá-lo partir. Avançou de um salto, agarrou-o pelo ombro, e o reteve sem esforço.
Harry, hipnotizado pelo horror daquela cara, descobriu que lhe resultava impossível desviar os olhos. Ofegou em busca de ar, e se sentiu esmagado pelo horrível poder daquela criatura.
—Sim, ofegue! —grunhiu Dragosani—. Ofegue como um cão, Harry Keogh, e morra também como um cão! —e lançou uma gargalhada como jamais tinha ouvido o jovem.
O necromante, sem soltar a sua vítima, encolheu-se ainda mais sobre si mesmo e suas mandíbulas se abriram. Dos afiados dentes jorravam uma saliva espessa como limo e algo que não era uma língua se movia dentro daquela boca enorme. O nariz do Dragosani pareceu esmagar-se contra seu rosto, e sua forma era a cada instante mais parecida com a de um morcego. Um olho escarlate me sobressaía de forma monstruosa enquanto o outro se fechou até parecer uma estreita fenda. Harry se sentiu como se olhasse o interior do inferno, e não pôde afastar os olhos.
Dragosani, que se sabia triunfante, jogou finalmente seu horroroso raio mental... e nesse preciso instante a porta que havia detrás do Harry se abriu de par em par e o impulso fez com que Harry se soltasse das garras do necromante. O jovem caiu ao chão, e a criatura que entravam na sala receberam totalmente o raio de Dragosani. E o necromante, quando viu quem tinha entrado, recordou a advertência do Max Batu: nunca se deve amaldiçoar aos mortos, porque não podem morrer duas vezes.
O raio foi desviado, refletido, e arrojado sobre o próprio Dragosani. Na história que lhe tinha contado Batu, um homem secou depois de um ataque semelhante, mas o que aconteceu a Dragosani não foi tão horrível... ou talvez fosse pior.
Pareceu como se uma mão gigantesca o tivesse levantado e arrojado ao outro lado da sala. Quando bateu contra a mesa lhe quebraram os ossos das pernas e seguiu girando como um tromco levado por seu próprio impulso. Deteve-o a parede, e desta vez caiu ao chão. Conseguiu sentar-se trabalhosamente, e não deixava de uivar com uma voz que soava como um giz gigantesco que arranhando um quadro. Suas pernas quebradas estavam caídas no chão como se fossem de borracha, e agitava os braços de modo espasmódico no ar diante de sua cara, como se não pudesse vê-los.
Cego, sim, porque seu próprio raio o tinha golpeado precisamente nos olhos.
Harry saiu de detrás da porta, e não pôde conter um pulo quando viu o necromante. Parecia como se os olhos do Dragosani tivessem explodido no interior. Eram como crateras abertas no rosto do Dragosani, com fios de cartilagem vermelha que caíam por seu rosto cansado. Harry soube então que aquilo tinha terminado, e o horror do acontecido o sobressaltou. Deu a volta, e viu seu guarda-costas esperando.
—Acabem com isso —lhes disse, e eles avançaram para o monstro cansado.
Dragosani estava completamente cego, e por conseguinte, também o estava o vampiro, que via por seus olhos. Mas apesar de que a criatura era ainda imatura, seus estranhos sentidos estavam bastante desenvolvidos como para que percebesse a inexorável proximidade do esquecimento total e definitivo. Sentiu a estaca que sustentavam as mãos mumificadas, soube que alguém elevava uma espada enferrujada. Dragosani agora já não era mas que uma casca arruinada, e não lhe servia de nada o vampiro. E como se o tivessem exorcizado, saiu qual espírito maligno do corpo do necromante.
Dragosani deixou de gritar, afogou-se e cravou as unhas na garganta. Suas mandíbulas se abriram em toda sua extensão, e de sua boca saiu sangue e espuma, enquanto ele sacudia com frenesi sua monstruosa cabeça. Todo seu corpo se sacudiu em movimentos convulsivos, começou a vibrar como se o embargasse uma dor maior que o produzido pelos olhos arrebentados e os ossos quebrados. Qualquer outra pessoa teria morrido ali mesmo, mas Dragosani não era uma pessoa comum.
Seu pescoço se inchou e seu rosto cinza se tornou primeiro púrpura e logo azul. O vampiro se retirou do cérebro do Dragosani, desenroscou-se e abandonou seus órgãos internos, desprendeu-se dos nervos e da medula espinhal. E formou pontas, que utilizou para arrastar-se pelo interior da garganta do necromante e sair ao exterior. Dragosani, tossindo, expulsou entre sangue e muco à criatura, que parecia que nunca acabava de sair. Depois, ficou enroscada como uma lesma gigantesca sobre o peito do Dragosani, e sua cabeça plaina se movia como a de uma cobra, vermelha com o sangue de seu hóspede.
A estaca atravessou o corpo palpitante do vampiro e o de Dragosani, guiada por mãos que perdiam pequenas partes de osso enquanto cravavam ao monstro em seu lugar. E um só golpe da espada do segundo tártaro completou o trabalho, e separou a chata e horrível cabeça do corpo que se agitava como um látego enlouquecido.
Dragosani jazia vazio, torturado, e quase inconsciente, os braços cansados jogados ao lado do corpo. Mas quando Harry Keogh disse «E agora, acabem com ele», a mão do necromante encontrou a metralhadora que tinha caído antes sobre o tapete. Alguma pequena zona do cérebro ardente do Dragosani tinha reconhecido a voz de Keogh, e embora soubesse que estava morrendo, sua malvada e vingativa natureza atuou pela última vez. Sim, estava morrendo, mas não morreria sozinho. A metralhadora cuspiu uma rajada contínua de obscenas palavras mecânicas, até que seu vocabulário e seu carregador se esgotaram... o que aconteceu possivelmente segundo meio depois de que a antiga espada de um tártaro partisse em duas a monstruosa cabeça do Dragosani.
Dor! Uma dor aguda. E morte. Para os dois.
Harry, quase dividido em dois pelos disparos, encontrou uma porta de Möbius e caiu por ela. Mas não tinha sentido levar seu destroçado corpo com ele; isso já estava acabado. A mente era tudo. E Harry, no instante em que entrava no contínuo de Möbius, pegou —mentalmente— e arrastou consigo a mente do necromante. Agora a dor tinha terminado para ambos, e o primeiro pensamento do Dragosani foi:
—Onde estou?
—Onde eu quero que esteja —lhe respondeu Harry.
O jovem encontrou a porta do tempo passado e a abriu. Uma fina linha de luz vermelha emanava da mente de Dragosani e se afundava no brilho azul. Era o rastro de seu vampírico passado.
—Siga-a —ordenou Harry, e expulsou Dragosani pela porta.
O necromante caiu no passado, aferrou-se ao fio luminoso da vida que estava ali, e foi andando cada vez mais e mais para trás. E já não podia abandonar aquele fio escarlate até querendo-o, porque era ele mesmo.
Harry contemplou como o fio escarlate se enrolava sobre si mesmo e arrastava Dragosani e logo procurou e encontrou a porta do futuro. Em algum lugar do futuro o fio quebrado de sua vida continuava, começava de novo. Só tinha que encontrá-lo.
E Harry se jogou no azul infinito do manhã...

A entrevista final


Alec Kyle olhou seu relógio. Eram as dezesseis horas quinze minutos, e já levava quinze minutos de atraso para sua muito importante reunião com as autoridades do governo. Mas o tempo, apesar de ser relativo, tinha passado, e Kyle se sentia exausto; tinha uma grossa pilha de papéis frente a ele, sentia-se intumescido e lhe doíam a mão, o pulso e o braço direitos. Não podia escrever uma palavra mais.
—Perdi a reunião —disse, e logo que reconheceu sua própria voz.
As palavras ressonavam como um seco grasnido. Tentou rir, e o resultado foi mais parecido a uma tosse.
—Além disso, acredito que perdi um quilograma. Não me movi desta cadeira em sete horas, mas parece como se me tivesse passado o dia praticando algum esporte. O terno parece maior. E está sujo!
O espectro assentiu com a cabeça.
—Sei —disse—, e lhe peço desculpas. Submeti seu corpo e a sua mente a um duro esforço. Não crê, entretanto, que valeu a pena?
—E me pergunta isso? —esta vez Kyle conseguiu rir—. A Organização E soviética está destruída...
—Estará dentro de uma semana —o corrigiu seu interlocutor.
—...E você me pergunta se valeu a pena. Claro que sim! —disse Kyle, mas imediatamente uma expressão de abatimento obscureceu seu rosto—. Embora eu faltei à reunião, e era importante.
—Em realidade, não —lhe respondeu o espectro—. De qualquer modo, você não a perdeu. Ou melhor dizendo, você sim, mas eu não.
Kyle franziu o sobrecenho, desconcertado.
—Não compreendo.
—O tempo —começou a dizer o espectro, e Kyle terminou a frase por ele:
—É relativo! —exclamou, e abriu a boca assombrado.
O espectro sorriu.
—Na fita de Möbius há uma porta para todos os tempos. Eu estou aqui, mas também estou ali. Eles poderiam ter feito você passar um mau momento, mas não podem fazer o mesmo comigo. A obra do Gormley —e também a sua, e minha— continua. Você terá toda a ajuda que necessite, e não haverá problemas.
Kyle fechou lentamente a boca, e fez um esforço para acalmar-se.. A cabeça estava tonta, e se sentia mais cansado que nunca.
—Suponho que agora partirá —disse—, mas eu gostaria de lhe perguntar uma ou duas coisas. Sei quem é você, mas...
—Sim?
—Onde está você agora? Qual é sua base? Está-me falando do contínuo de Möbius, ou por meio dele? Harry, onde está você?
O espectro voltou a sorrir com paciência.
—Deveria perguntar «Quem é você»? E eu lhe responderia: ainda sou Harry Keogh. Harry Keogh filho.
Kyle voltou a abrir a boca. Estava nas notas, mas até agora não tinha cansado na conta. Agora todas as peças do quebra-cabeças coincidiam.
—Mas Brenda, quero dizer, sua esposa, devia morrer. Haviam predito sua morte. E ninguém pode evitar ou trocar o futuro; você mesmo me demonstrou que é impossível.
Harry fez um gesto afirmativo.
—Ela morrerá —disse—. Morrerá dando a luz, mas a morte não a aceitará.
—Como pode ser? —Kyle não compreendia nada.
—A morte é um lugar mais à frente do corpo —disse Harry—. Os mortos têm sua própria existência. Alguns deles sabiam, mas a maioria o ignorava. Agora sabem. Isso não mudará nada no mundo dos vivos, mas significa muito para os mortos. Eles, por outra parte, sabem que a vida é um dom precioso. Sabem porque a perderam. Se Brenda morrer, minha vida estará em perigo. E os mortos não podem permiti-lo. Têm uma grande dívida comigo.
—Eles não a aceitarão? Está-me dizendo que lhe devolverão a vida quando morra?
—Em resumo, sim. No outro mundo há talentos muito brilhantes, Alec, milhões e milhões. E podem fazer quase tudo o que se proponham. Quanto a meu próprio epitáfio, só era o produto do pessimismo de minha mãe, e de seu desejo de me proteger.
O contorno do espectro se fez mais brilhante, e parecia como se a luz que entrava pelas janelas o atravessasse com mais facilidade.
—E agora, acredito que chegou o momento de que...
—Espere! —disse Kyle, ficando de pé—. Por favor, espere. Uma só coisa mais.
—Eu pensava que já tinha explicado tudo —disse Harry, arqueando seus fantasmagóricos membros—. E se algo ficou pouco claro, você sem dúvida descobrirá por si mesmo.
Kyle concordou.
—Acredito que sim. Exceto o porquê. Por que se deu ao trabalho de retornar e me contar isso —Assim é —respondeu Harry Keogh e começou a desvanecer-se; agora brilhava com um estranho resplendor azul, como composto de milhões de partículas de néon.
—É muito simples —disse Harry—. Eu serei meu filho. Mas ele terá sua própria personalidade, será ele mesmo. Não sei quanto de meu ser real chegará até ele. Pode ser que em algumas ocasiões ele necessite que nós o lembremos . Uma coisa é certa: será um menino de talento!
E Kyle por fim entendeu.
—Você quer que eu, melhor dizendo, que nós, os da organização, cuidemos dele, verdade?
—Assim é —respondeu Harry Keogh e começou a desvanecer-se; agora brilhava com um estranho resplendor azul, como composto de milhões de partículas de néon.
—Você cuidará dele até que ele esteja preparado para cuidar de você, de todos vocês. Você o fará?
Kyle saiu a tropicões de atrás de sua mesa e estendeu os braços a espectral criatura, que se desvanecia rapidamente.
—Sim, faremos! claro que sim!
—Isso é tudo o que peço —disse Harry—, e também que cuide de sua mãe.
O resplendor azul se converteu em uma neblina, concentrou-se depois em uma só linha vertical, um tubo de luz azul que imediatamente se reduziu a um cegante ponto de fogo azul à altura dos olhos e desapareceu. E Kyle soube que Keogh partiu para nascer.
—Nós o faremos, Harry! —exclamou com voz rouca, e sentiu que as lágrimas lhe corriam pelo rosto. Não sabia por que chorava.
— Nós o faremos... Harry?




Epílogo
Dragosani, com o passar do fio da vida do vampiro, caiu em seu próprio passado, mas não foi muito longe. A jornada, entretanto, embora breve, deixou-o enjoado, assustou-o; mas ao final se encontrou uma vez mais metido em um corpo de carne. E de algo mais. Um corpo o rodeava, sim, mas também havia ali uma mente que não era a sua. Ele era parte de outra criatura, de alguém que também estava cego... ou enterrado!
Porque inclusive agora seu desconhecido hóspede lutava por sair da tumba, da escuridão de uma noite de séculos, da dura prisão da terra.
Não havia tempo para pensar nas consequências, nem sequer para declarar sua presença ante o outro. Dragosani se sentiu sufocado, asfixiado, e entretanto na soleira do esquecimento. Já tinha sofrido o bastante, e não desejava seguir padecendo. Adicionou sua própria vontade a de seu hóspede e lutou por sair à superfície. E de repente, a terra se abriu acima dele, e o hóspede e Dragosani se sentaram.
Quando voltaram a cabeça para olhar a seu redor se desprenderam crostas de terra. Era de noite; por entre os ramos das árvores se viam as estrelas. Dragosani podia ver!
Mas... o lugar lhe era conhecido.
Na escuridão havia alguém que o olhava fixamente. A visão de Dragosani clareou junto com a de seu hóspede... e então foi como se a sua mente ainda vacilante lhe tivessem dado uma forte martelada.
—EU... EU POSSO... VER-TE —retumbou sua voz.
Dragosani viu... e o terror reinou outra vez nas colinas cruciformes.
E depois apareceu uma segunda silhueta na escuridão, uma figura baixa e rechoncha que disse com voz suave:
—Né, criatura da terra!
E um instante mais tarde se ouviu o assobio do dardo de madeira que se cravou no corpo do hóspede e ficou pregado ali. E Dragosani uniu seus uivos aos de seu horrível hóspede e tentou voltar com ele à terra, mas não havia escapatória. Não podia acreditar. Não podia ser que acabasse assim!
—ESPERA! —gritou com a voz de seu hóspede quando a primeira figura se aproximou com algo na mão que brilhava à luz das estrelas—. NÃO ME VÊ? SOU EU!
Mas o outro Dragosani não sabia nada, não entendia nada, e não ia esperar. E a foice que levava pareceu um relâmpago de aço quando golpeou com uma força irresistível.
—TOLO! MALDITO TOLO! —uivou a cabeça decapitada do Ferenczy/Dragosani. E soube que esta era só uma das mil agonias, das mil mortes que lhe esperavam na infinita torção escarlate de sua existência de Möbius. Tinha acontecido antes, acontecia agora, aconteceria outra vez... e outra... e outra...
Tolo!, disseram por última vez seus lábios ensanguentados... Era sua última palavra, mas nesta ocasião a dizia a si mesmo.


Brian Lumley - Cronicas Necromânticas - Livro 1 - Que falas com mortosBrian Lumley - Cronicas Necromânticas - Livro 1 - Que falas com mortos
http://www.4shared.com/document/Zy2kMYGJ/Brian_Lumley_-_Cronicas_Necrom.html

Livro 01 - Que Fala com os Mortos.jpg

 

   A fantástica série de Brian Lumley começa com o volume 'NECROSCOPE'.

Boris Dragosani tenta reunir as forças malignas de todo o mundo, para ganhar a supremacia na ultra-secreta agência russa para a qual ele trabalha. Se trabalho oficial é como um NECROSCOPE - tentando extrair os segredos das almas dos traidores recentemente mortos...

 E a Inglaterra também tem o seu NECROSCOPE: Harry Keogh, que tentará levar a melhor sobre os poderes incalculáveis e o horror sem fim que existe além das fronteiras da morte...

 Saga impar do terror e da fantasia.


Boa leitura

Abraços

 



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M. Loureiro
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Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos.

Antoine de Saint-Exupéry




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