GEORGES SIMENON
O CÃO AMARELO
UM CASO DO COMISSÁRIO MAIGRET
Tradução de RAUL DE SÁ BARBOSA
2ª Edição
Título original: LE CHIEN JAUNE
© 1931 by Georges Simenon Reservados todos os direitos.
Direitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Maria Angélica, 168 — Lagoa — CEP 22461 — Tel.: 266-7474
Endereço Telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro — RJ
1ª edição: agosto de 1979 - 2ª edição: abril de 1980
Diagramação GUSTAVO MEYER
Revisão JORGE URANGA
FICHA CATALOGRÁFICA
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Simenon, Georges.
S599v O Cão amarelo / Georges Simenon; tradução de Raul
de Sá Barbosa. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
Tradução de: Le chien jaune
1. Ficção policial e de mistério (Literatura francesa)
I. Título
CDD - 843.0872
79-0423 CDU - 840-312.4
Da capa do livro
MAIGRET, JULES
COMISSÁRIO DA POLICIA JUDICIÁRIA
Não tem nada do policial querido dos caricaturistas. Não tem bigode caricato, de pontas enceradas, como Poirot. Não calça botinas pesadas. Seus ternos são bem cortados e de boa fazenda. Maigret faz a barba toda manhã, tem mãos e unhas bem tratadas — que lava antes de sair do escritório, numa pia esmaltada que tem escondida num armário embutido.
Fuma cachimbo, leva uma bolsa de tabaco, abre o paletó dos colegas e subordinados ou entra em desvãos de porta para acendê-lo.
Anda de um lado para outro, peripateticamente, com as mãos gordas atrás das costas.
Entra em cena maciço, de cachimbo apertado firmemente nos dentes. Daquele momento em diante, tudo deverá chocar-se contra o rochedo da sua forma, quer ele se mova, quer esteja parado, sempre com os pés bem plantados no chão e ligeiramente separados.
Talvez essa maneira, um tanto vulgar, seja proposital.
Não tem nada de intelectual como Sherlock, ou de pedante, como Poirot. Para ele a atmosfera do caso é mais importante que tudo.
Suspira.
Maigret não é só corpulento: é alto.
É paciente e magnânimo.
Das abas do livro
O Cão Amarelo (1931) é uma das primeiras aventuras do Comissário Maigret — e uma das mais justamente famosas. Nessa obra, que a Nova Fronteira escolheu como segundo volume da sua Coleção Simenon, Otto Maria Carpeaux, insaciável devorador de livros policiais, louvava, sobretudo, a atmosfera e a verdade psicológica e moral.
Maigret, ainda moço, mas já de reputação estabelecida, foi destacado para servir temporariamente junto à Brigada Móvel de Rennes, na Bretanha. É ali que vai buscá-lo o prefeito de Concarneau, a fim de elucidar os misteriosos crimes em série, que ameaçam os notáveis da pequena cidade portuária, terrorizam a população e têm como personagem central, fantasmagórico, um cão amarelo.
Maigret, assistido por um jovem inspetor, de nome Leroy, com quem não havia trabalhado antes, instala-se no Hotel de 1'Amiral. E o café do estabelecimento, de elegância antiquada, com serragem no chão, mesas de tampo de mármore, translúcidos vitrais verde-mar, transforma-se, de ponto de encontro dos ditos notáveis, em centro nervoso de toda a ação.
Tanto o clima chuvoso do burgo quanto o clima espiritual da sociedade, provinciana e corrupta, são construídos com maestria. E a celebrada 'maneira' de Maigret revela-se a cada página.
Dizia Santo Agostinho que o conhecimento de Deus é feito mais de negações. Coisa semelhante diz Marcel Aymé na apresentação que escreveu para a edição francesa de bolso de O Cão Amarelo (A. Fayard et Cie, 1936). Maigret escapa a descrições e, mais ainda, a definições. Há que penetrar-lhe o segredo pelos lados negativos da sua personalidade: as reservas com relação às modernas técnicas de investigação, às deduções aparentemente brilhantes, aos espíritos excessivamente metódicos e, até, à própria psicologia. Maigret se integra no ambiente, mete-se na pele dos suspeitos, descobre, de dentro, as suas molas secretas.
No próximo volume, Morte na Alta Sociedade, novos traços se ajuntarão ao retrato-falado do comissário. Mas aqui, embora diferente do que vai ser mais tarde, em vinte ou trinta anos, eleja tem algumas das características que Simenon lhe deu e que se tornariam clássicas: a atitude, o porte, o humor, a generosidade — e também o casacão de gola de veludo, o cachimbo, o chapéu-melão.
Sobre o autor. Escritor belga de expressão francesa, Georges Simenon é um dos autores mais fecundos, mais lidos e mais importantes do seu tempo. Nascido em Liège em 1903, viveu em Paris e está hoje radicado na Suíça. Sua obra já foi publicada em mais de trinta países e encontra-se traduzida em cerca de cinqüenta línguas.
SUMÁRIO
Capítulo I - O Cão sem Dono 6
Capítulo II - O Doutor em Chinelas 15
Capítulo III - "O Medo Reina em Concarneau" 24
Capítulo IV - P. C. de Companhia 33
Capítulo V - O Homem do Cabélou 42
Capítulo VI - Um Covarde 51
Capítulo VII - O Casal da Vela 58
Capítulo VIII - Mais Um! 68
Capítulo IX - A Caixa de Conchas 77
Capítulo X - "A Bela-Emma" 86
Capítulo XI - O Medo 93
Capítulo I - O Cão sem Dono
Sexta-feira, 7 de novembro. Concarneau está deserta. O relógio iluminado da cidade velha, que se pode ver por cima das muralhas, marca cinco minutos para as onze horas.
Ê o auge da preamar, e uma tempestade do sudoeste faz que as barcas surtas no porto se entrechoquem. O vento se enfurna pelas ruas, levantando papéis que passam velozmente à flor do chão.
No Quai de 1'Aiguillon, não há uma só luz. Tudo está fechado. Todo mundo dorme. Só as três janelas do Hotel de I'Amiral, no ângulo direito da praça e do cais, estão ainda acesas.
Elas não têm postigos, mas através dos vitrais esverdeados mal se podem perceber as silhuetas. Esses retardatários do café, quanto os inveja o empregado da alfândega, metido na sua guarita, de guarda, a menos de cem metros!
Em frente dele, na bacia do porto, está um navio de cabotagem que, à tarde, procurou abrigo. Ninguém na ponte. As polias rangem, e uma vela de cutelo, mal forrada, bate ao vento. E há também o fragor contínuo da ressaca, e um clique no relógio, que vai bater onze horas.
A porta do Hotel de 1'Amiral se abre. Um homem aparece, continua a falar, por um instante, pela fresta, com as pessoas que ficaram. A tempestade o apanha, agita-lhe as abas do capote, levanta seu chapéu-melão, que ele consegue segurar a tempo e sustenta com a mão na cabeça, enquanto anda.
Mesmo de longe, sente-se que ele vai todo alegre, um tanto incerto das pernas, a cantarolar. O aduaneiro acompanha-o com os olhos, e sorri quando o homem inventa de acender um charuto. Porque é toda uma luta cômica que começa, entre o bêbado, seu sobretudo que o vento quer arrancar, e o chapéu, que foge ao longo da sarjeta. Dez fósforos se apagam.
E o homem do chapéu-melão descobre um umbral com dois degraus, abriga-se ali, se curva. Um pequeno clarão tremula, fugaz. O fumante vacila, segura-se à maçaneta da porta.
Não teria o homem da alfândega percebido um ruído estranho à tempestade? Não tem certeza. Ri, de começo, vendo o noctâmbulo perder o equilíbrio e recuar vários passos, de tal maneira dobrado em dois que sua postura é inacreditável.
Acaba por esparramar-se no chão, junto do meio-fio, com a cabeça na lama da enxurrada. O homem da aduana bate com as mãos nos flancos para aquecê-las, observa com impaciência a vela do barco, cujos estalos o irritam.
Um, dois minutos se passam. Novo olhar em direção ao ébrio, que não se mexeu. Em compensação, um cão, saído não se sabe de onde, juntou-se a ele e fareja-o.
"Só nesse momento" — dirá o funcionário no curso da inquirição — "dei-me conta de que alguma coisa acontecera."
As idas e vindas que se sucederam a essa cena são mais difíceis de reconstituir, numa ordem cronológica rigorosa. O empregado da alfândega adianta-se para o homem caído. A presença do cão o tranqüiliza um pouco. É um animal avantajado, amarelo e de mau gênio. Há um bico de gás a oito metros. Inicialmente, o funcionário nada vê de anormal. Depois, verifica que há um buraco no sobretudo do bêbado e que desse buraco escorre um líquido espesso.
Corre, então, ao Hotel de 1'Amiral. O café está quase vazio. Encostada à caixa, uma empregada. Junto a uma mesa de mármore, dois homens terminam seus charutos, recostados, de pernas estendidas.
— Depressa!... Um crime... Eu não sei...
O empregado da alfândega se volta. O cão amarelo entrou, rente aos seus calcanhares, e deitou-se aos pés da garçonete.
Há excitação, e um vago temor no ar.
— O seu amigo, o que acabou de sair...
Alguns instantes mais tarde, são três a debruçar-se sobre o corpo, que não mudou de lugar. A prefeitura, onde se encontra o posto de polícia, fica a dois passos. O funcionário da alfândega prefere agitar-se. Corre, ofegante, e vai pendurar-se à campainha de um médico.
E repete, como se não pudesse livrar-se daquela visão:
— Ele vacilou como um bêbado, e fez pelo menos três passos assim, de marcha à ré.
Cinco homens... seis... sete... E janelas que se abrem um pouco por toda parte, cochichos...
O médico, ajoelhado na lama, informa:
— Uma bala atirada à queima-roupa, em pleno ventre. Há que operar de urgência. Que alguém telefone ao hospital.
Todo mundo reconheceu o ferido, o Sr. Mostaguen, o principal negociante de vinhos de Concarneau, homem gordo e excelente, que só tem amigos.
Os dois policiais uniformizados — um deles não teve tempo de achar seu quepe — não sabem por onde começar a investigação.
Alguém diz algo. É o Sr. Le Pommeret, que, pela voz e pela atitude, só pode ser pessoa eminente.
— Jogamos juntos uma partida de cartas no Café de 1'Amiral, com Servières e o Dr. Michoux... O doutor foi-se embora primeiro, há cerca de meia hora... Mostaguen, que tem medo da mulher, nos deixou às onze em ponto...
Incidente tragicômico. Todos escutam o Sr. Le Pommeret. Esqueceram o ferido. E ei-lo que abre os olhos, tenta erguer-se, murmura, com voz de espanto, tão doce, tão aflautada, que a mulher rebenta num riso.
— O que foi que houve?
Um espasmo, porém, o sacode. Seus lábios se agitam. Os músculos do rosto se contraem enquanto o médico prepara a seringa para uma injeção.
O cão amarelo circula entre as pernas. Alguém se admira:
— Quem conhece esse animal?
— Jamais o vi.
— Será, sem dúvida, um cão de navio...
Na atmosfera do drama, o cão tem qualquer coisa de inquietante. Talvez a cor, um amarelo sujo? É alto, muito magro, e a cabeça enorme lembra ao mesmo tempo o mastim e o dogue de Ulm.
A cinco metros do grupo, os policiais fazem perguntas ao aduaneiro, única testemunha do fato.
Examina-se o umbral dos dois degraus. É o sólio de uma grande mansão burguesa, cujos postigos estão cerrados. À direita da porta, um aviso de cartório anuncia a venda do imóvel em hasta pública para 18 de novembro.
"À venda. Preço: 80.000 francos."
Um agente de polícia tenta forçar a fechadura, mas é em vão que se empenha. É o chefe da garagem vizinha que consegue rebentá-la com a ajuda de uma chave de fenda.
A ambulância chega. O Sr. Mostaguen é içado para uma padiola. Os curiosos não têm outro recurso agora senão a contemplação da casa vazia.
Está desabitada há um ano. No corredor, reina pesado odor de pólvora e fumo. Uma lanterna elétrica de bolso mostra, nas lajes do piso, cinzas de cigarro e traços de lama que provam que alguém ali esteve por longo tempo a espreitar atrás da porta.
Um homem, de capote por cima do pijama, diz a sua mulher:
— Vamos! Não há mais nada a ver. Saberemos o resto amanhã, pelos jornais. Aí está o Sr. Servières...
Servières é o pequeno personagem gordote de paletó mastique, que se achava em companhia do Sr. Le Pommeret no Hotel de l'Amiral. É redator do Phare de Brest, onde publica, entre outras coisas, uma crônica humorística aos domingos.
Toma notas e dá opiniões, senão instruções, aos policiais.
As portas que abrem para o corredor estão trancadas a chave. A dos fundos, que dá acesso para um jardim, está aberta. O jardim é cercado de um muro de menos de metro e meio de altura. Do outro lado há uma ruela, que desemboca no Quai de 1'Aiguillon.
— O assassino escapou por ali! — anuncia Jean Servières.
Foi no dia seguinte que Maigret reconstituiu, tão bem quanto pôde, esse resumo dos acontecimentos. Há um mês que o haviam destacado para servir junto à brigada de Rennes, onde havia que reorganizar certos serviços. Recebera um telefonema alarmado do prefeito de Concarneau.
E chegara na cidade em companhia de Leroy, um inspetor com quem não trabalhara ainda.
A tempestade não cedera. Ventos borrascosos faziam romper-se sobre a cidade grandes nuvens, que caíam em chuva glacial. Nenhum barco podia deixar o porto, e falava-se de um vapor em dificuldades ao largo das Ilhas Glénan.
Maigret instalou-se, naturalmente, no Hotel de 1'Amiral, que é o melhor da cidade. Eram cinco horas da tarde e a noite começava a cair quando entrou no café, uma sala comprida e um tanto taciturna, de soalho cinzento coberto de serragem, mesas de tampos de mármore, que os vitrais verdes das janelas faziam parecer ainda mais melancólicos.
Muitas estavam desocupadas. Mas, ao primeiro olhar, era possível distinguir a dos fregueses habituais, os clientes sérios, cuja conversa as outras mesas procuravam ouvir.
Alguém se levantou, aliás, dessa mesa, um homem de face rosada e fresca, de boneca, olho redondo, boca sorridente.
— Comissário Maigret?... Meu bom amigo prefeito comunicou-me sua chegada... Tenho ouvido falar do senhor. Permita que me apresente... Jean Servières... hum! O senhor é de Paris, pois não? Eu também. Fui por muito tempo diretor de La Vache Rousse, em Montmartre. Colaborei no Petit Parisien, no Excelsior, em La Depèche... Conheci intimamente um dos seus chefes, esse magnífico Bertrand, que se aposentou ano passado para ir plantar suas couves em Nièvre... E foi o que fiz! Estou por assim dizer aposentado da vida pública. Colaboro, para divertir-me, no Phare de Brest...
Ele saltitava, gesticulava.
— Venha, para que o apresente à nossa mesa. A última quadra de valetes, alegres valetes, de Concarneau... Eis aqui Le Pommeret, femeeiro impenitente, proprietário e vice-cônsul honorário da Dinamarca...
O homem que se levantou e estendeu a mão vestia-se como um senhor rural: culotes de pano quadriculado, polainas justas, sem um respingo de barro, gravata plastron de fustão branco. Tinha belos bigodes prateados, cabelos muito lisos, tez clara e as faces marcadas com a vermelhidão capilar a que os romanos chamavam rosa de cobre.
— Encantado, comissário...
— O Dr. Michoux... Filho do antigo deputado... Aliás só é médico de canudo, pois jamais exerceu a profissão... O senhor verá que ele acaba por vender-lhe um terreno... É proprietário do mais belo loteamento de Concarneau e, talvez, de toda a Bretanha.
Mão fria. Face em lâmina de faca, nariz atravessado. Cabelos ruços, já rareando, se bem que o médico não tivesse ainda trinta e cinco anos.
— O que vai tomar?
Durante esse tempo, o Inspetor Leroy fora estabelecer contacto com a prefeitura e com a gendarmeria.
Havia na atmosfera do café qualquer coisa de cinzento, de turvo, sem que se pudesse precisar bem o quê. Por uma porta aberta, percebia-se o salão de jantar, onde empregadas em traje típico bretão punham as mesas para a refeição.
O olhar de Maigret pousou sobre um cão amarelo, deitado ao sopé da caixa. Levantou os olhos, percebeu uma saia preta, um avental branco, uma fisionomia sem graça e, apesar disso, tão cativante, que, durante a conversa que se seguiu, não deixou de observá-la.
Cada vez que voltava a cabeça, aliás, era a garçonete que firmava nele um olhar febril.
— Se esse pobre Mostaguen, que é o sujeito mais inofensivo do mundo, a ponto de morrer de medo da própria mulher, não tivesse quase deixado a pele nessa história, eu juraria que se tratava de uma pilhéria de mau gosto.
Era Jean Servière que falava. Le Pommeret chamou, com familiaridade:
— Emma!
A garçonete acorreu.
— Sim? O que desejam tomar?
Havia copos de chope vazios na mesa.
— É hora do aperitivo — disse o jornalista. — Ou por outra, é hora do Pernod. Pernods, Emma! Não é, comissário?
O Dr. Michoux contemplava sua abotoadura com ar absorto.
— Quem poderia antecipar que Mostaguen se deteria naquele exato umbral para acender o charuto? — prosseguia a voz sonora de Servières. — Ninguém, não é mesmo? Ora, Le Pommeret e eu moramos do outro lado da cidade! Nós não passamos diante da casa desabitada! E àquela hora, não havia ninguém circulando na rua além de nós três... Mostaguen não é pessoa que tenha inimigos... É o que se chama uma boa praça... Um sujeito cuja única ambição é receber" um dia a Legião de Honra...
— A operação teve êxito?
— Ele deve escapar... O mais divertido é que a mulher lhe fez uma cena no hospital. Está persuadida de que se trata de uma história de amor!... Podem imaginar uma coisa dessas? O pobre diabo não teria tomado sequer liberdades com sua datilografa por temer as complicações!
— Dose dupla! — disse Le Pommeret à empregada que servia o absinto de imitação. — Traz gelo, Emma!
Saíram alguns fregueses, era a hora do jantar. A ventania entrou pela porta aberta, sacudiu as toalhas da mesa da sala de jantar.
— Vocês lerão no jornal o que escrevi sobre o caso. Imagino haver estudado todas as hipóteses. Uma só é plausível: é que nos encontramos em presença de um louco... Mas que diabo, conhecemos toda a cidade e não vemos absolutamente quem poderia ter perdido a razão... Estamos aqui toda tarde... Às vezes, o prefeito nos faz companhia... Ou Mostaguen... Ou, ainda, a gente vai em busca do relojoeiro que mora algumas casas mais adiante, para jogar bridge...
— E o cão?
O jornalista esboçou um gesto de ignorância.
— Ninguém sabe de onde saiu... Acreditou-se, por um momento, que pertencia ao barco de cabotagem que chegou ontem... O Sainte Marte... Mas parece que não... Têm, de fato, um cão a bordo, mas é um terra-nova, e desafio alguém à descobrir a raça desse animal horrendo...
Enquanto falava, apanhara uma garrafa d'água e vertia um pouco no copo de Maigret.
— Há muito tempo que está aqui essa garçonete? — perguntou o comissário, a meia voz.
— Anos...
— Ela não saiu, ontem à noite?
— Não se moveu do lugar... Esperava que nos fôssemos para se ir deitar... Le Pommeret e eu evocávamos velhas lembranças, lembranças do tempo em que éramos ainda bastante belos para podermos ter mulheres de graça... Não é verdade, Le Pommeret?... Ele não diz nada!... Quando o senhor o conhecer melhor compreenderá que, se o assunto é mulher, ele se dispõe a passar a noite... Sabe como apelidamos a casa em que mora, em frente ao mercado de peixes? A casa das torpezas... Hum!...
— À sua saúde, comissário — fez, não sem algum constrangimento, aquele de quem falavam.
Maigret observou fio mesmo momento que o Dr. Michoux, que mal abrira a boca, debruçava-se para observar o próprio copo, contra a luz. Tinha a testa franzida. Seu rosto, naturalmente sem cor, assumira uma impressionante expressão de inquietude.
— Um momento! — lançou, de súbito, depois de hesitar por muito tempo.
Chegou o copo às narinas, meteu-lhe dentro um dedo que levou à ponta da língua. Servières rebentou de riso:
— Bom! Ei-lo que se deixa aterrorizar pelo caso Mostaguen...
— Então? — perguntou Maigret.
— Acho que será melhor não beberem... Emma... Vá dizer ao farmacêutico aí do lado que venha cá depressa. Mesmo que esteja jantando...
Foi o que bastou para gelar os circunstantes. A sala pareceu mais vazia, mais melancólica ainda. Le Pommeret puxou os bigodes com nervosismo. O próprio jornalista mexeu-se na cadeira.
— De que suspeita?...
O médico tinha o ar sombrio. Olhava fixamente seu copo. Levantou-se, depois, e foi buscar pessoalmente na prateleira a garrafa de Pernod, examinando-a também. E Maigret pôde ver dois ou três grãos brancos que flutuavam no líquido.
A garçonete voltava, seguida do farmacêutico, ainda de boca cheia.
— Escuta, Kervidon... Há que analisar imediatamente o conteúdo dessa garrafa e dos copos.
— Hoje ainda?
— Agora mesmo!
— Que reação devo usar?... De que desconfia?
Jamais Maigret vira surgir tão depressa a pálida sombra do medo. Alguns instantes haviam bastado. Todo calor desaparecera dos olhares, e a vermelhidão capilar parecia agora artificial nas faces de Le Pommeret.
A garçonete encostara-se à caixa e molhava na língua a ponta de um lápis para alinhar cifras num caderno preto de capa encerada.
— Está louco! — tentou dizer Servières.
Soou falso. O farmacêutico tinha a garrafa em uma das mãos e um copo na outra.
— Estricnina! — soprou o médico.
Empurrou o outro para a rua e voltou, cabisbaixo e amarelo.
— O que foi que o fez pensar?... — começou Maigret.
— Não sei... Um acaso... Vi um grão branco no meu copo. O odor me pareceu bizarro...
— Auto-sugestão coletiva!... —afirmou o jornalista.—Se eu contar isso no meu pasquim amanhã, será a ruína de todos os bistrôs do Finistère...
— Tomam sempre Pernod?
— Invariavelmente, antes do jantar. Emma já está de tal modo condicionada que traz a garrafa tão logo constata que nossos chopes acabaram. Temos os nossos pequenos hábitos... À noite, é o calvados...
Maigret foi postar-se em frente ao armário das bebidas, viu uma garrafa de calvados.
— Não esse! A garrafa barriguda...
O comissário apanhou-a, olhando-a contra a luz, e percebeu alguns grãos de pó branco. Mas não disse nada. Não era necessário. Os outros haviam compreendido.
O Inspetor Leroy entrou, anunciando com voz indiferente:
— A gendarmeria não observou nada de suspeito. Não se viram vagabundos na redondeza. Não se pode entender...
Surpreendeu-se com o silêncio que reinava, com a angústia compacta que sufocava todas as gargantas. Fumaça de tabaco estirava-se em torno das lâmpadas elétricas. O bilhar mostrava seu pano verde como um gramado calvo. Havia pontas de cigarro pelo chão, e também alguns escarros na serragem.
— ... sete e vai um... — dizia Emma, calculando em voz alta, e molhando o lápis.
Depois, levantando a cabeça, gritou para dentro:
— Já vou, madame!...
Maigret encheu o cachimbo. O Dr. Michoux olhava fixamente para o soalho, e seu nariz parecia mais de través do que antes. Os sapatos de Le Pommeret brilhavam como se jamais tivessem sido usados. Jean Servières alçava periodicamente os ombros como se falasse com os seus botões.
Todos os olhos se voltaram para o farmacêutico, quando ele reapareceu com a garrafa e um copo vazio.
Tinha corrido. Estava sem fôlego. À porta, deu um chute no ar, para livrar-se de alguma coisa, e resmungou:
— Diabo de cão!
E, mal entrou no café:
— É uma brincadeira, não? Ninguém bebeu?
— E então?
— É estricnina, sim! Deve ter sido posta na garrafa há uma meia hora, apenas...
Olhou com pavor os copos ainda cheios, os cinco homens silenciosos.
— O que quer dizer isso? É inaudito!... Tenho certamente o direito de saber!... A noite passada, matam um homem ao lado da minha casa... E agora...
Maigret tomou-lhe a garrafa das mãos. Emma voltava, indiferente, mostrava por cima da caixa seu rosto comprido, de fundas olheiras, lábios finos e cabelos mal penteados, sobre os quais a touca bretã deslizava sempre para a esquerda, .se bem que ela a endireitasse a cada instante.
Le Pommeret ia e vinha com grandes passadas, contemplando os reflexos dos próprios sapatos. Jean Servières, imóvel, mirava fixamente os copos e explodia, de súbito, numa voz a que um soluço de medo punha uma nota surda:
— Raios o partam!
O médico murchou os ombros.
Capítulo II - O Doutor em Chinelas
O Inspetor Leroy, que tinha vinte e cinco anos, parecia mais um rapaz bem educado, como se diz, que um inspetor de polícia.
Acabava de sair da escola. Esse era o seu primeiro caso, e havia algum tempo que observava Maigret com ar desolado, procurando chamar-lhe a atenção. Acabou por sugerir-lhe, corando:
— Desculpe, meu comissário... Mas... as impressões digitais... Devia pensar que seu chefe era da velha escola e ignorava o valor das investigações científicas. Porque Maigret, tirando uma baforada do cachimbo, limitou-se a dizer:
— Como quiser...
Não se viu mais o Inspetor Leroy, que levou, com todas as precauções, garrafa e copos para seu quarto e passou a noite a confeccionar uma embalagem-modelo, cujo esquema tinha no bolso, planejada para que os objetos pudessem viajar sem que as impressões se apagassem.
Maigret sentara-se a um canto do café. O proprietário, de blusa branca e boné de cozinheiro, olhava o seu estabelecimento com o mesmo olho que lhe botaria se tivesse sido devastado por um ciclone.
O farmacêutico dera com a língua nos dentes. Havia gente a cochichar lá fora. Jean Servières foi o primeiro a pôr o chapéu na cabeça.
— Isso não é tudo, afinal de contas. Sou um homem casado, e a Sra. Servières está à minha espera... Até logo, comissário...
Le Pommeret interrompeu seu passeio:
— Espera por mim! Vou jantar também... Você fica Michoux?...
O médico respondeu apenas com um alçar de ombros. O farmacêutico tinha a intenção de representar um papel central. Maigret ouviu-o dizer ao dono:
— ... e, naturalmente, será necessário analisar o conteúdo de todas as garrafas!... Uma vez que temos aqui alguém da polícia, basta que me dê ordens.
Havia mais de sessenta garrafas de aperitivos diversos e licores nas prateleiras.
— O que pensa o senhor, comissário?
— É uma idéia. Sim, talvez seja prudente.
O farmacêutico era mirrado, magro e nervoso. Agitava-se três vezes mais do que o necessário. Foi preciso encontrar para ele uma cesta de levar garrafas. Depois, telefonou a um café da cidade velha a fim de dizer ao caixeiro que precisava dele.
De cabeça descoberta, fez cinco ou seis viagens entre o Hotel de 1'Amiral e sua botica, atarefado, mal tendo tempo de lançar algumas palavras, de passagem, aos curiosos agrupados na calçada.
— O que será de mim se me levam todo o sortimento? — gemia o proprietário. — E ninguém pensa em comer! O senhor não costuma jantar, comissário? E o senhor, doutor? O senhor não vai para casa?
— Não. Minha mãe está em Paris, e a empregada de férias.
— Dorme aqui, então?
Chovia. As ruas estavam cheias de lama negra. O vento fazia bater as persianas do primeiro andar. Maigret comera na sala de jantar, não longe da mesa em que se instalara o médico, com ar fúnebre.
Através dos pequenos vidros verdes, adivinhavam-se as cabeças dos curiosos que, por vezes, vinham colar-se à vidraça. A garçonete esteve ausente por meia hora, tempo de comer, por sua vez. Depois, retomou seu lugar habitual, à direita da caixa, com o cotovelo em cima da máquina registradora, guardanapo na mão.
— Gostaria que me desse uma garrafa de cerveja — disse Maigret.
Percebia que o médico o observava enquanto ele bebia, como que para adivinhar os sintomas de envenenamento.
Jean Servières não voltou, como anunciara. Le Pommeret também não. Assim, o café ficou deserto, pois as pessoas preferiam não entrar e, sobretudo, não beber. Dizia-se, na rua, que todas as garrafas estavam envenenadas.
— Há o bastante para matar a cidade inteira!
O prefeito, de sua casa de campo de Sables Blancs, telefonou para saber exatamente o que havia. Depois, foi o silêncio, enfadonho. O Sr. Michoux, a um canto, folheava jornais sem ler. A garçonete não se mexia. Maigret fumava placidamente e de tempos em tempos o patrão vinha certificar-se, com uma olhadela, se não sobreviera novo drama.
Ouvia-se o relógio da cidade velha bater as horas e as meias-horas. O surdo rumor de pés e de conciliábulos cessou paulatinamente na rua, e restaram apenas o queixume monótono do vento e a chuva que açoitava as vidraças.
— O senhor dorme aqui? — perguntou Maigret ao médico. O silêncio era tal que só o fato de falar em voz alta pareceu perturbador.
— Sim. Faço isso às vezes. Vivo com minha mãe, a três quilômetros da cidade. Uma casa enorme. Minha mãe foi passar uns dias em Paris, e a empregada me pediu dispensa, para assistir ao casamento de um irmão.
Ele se levantou, hesitou, e disse um tanto apressado:
— Boa noite.
E desapareceu nas escadas. Ouviu-se quando tirou os sapatos no primeiro andar, exatamente por cima da cabeça de Maigret. E só ficaram no café a garçonete e o comissário.
— Venha cá! — disse-lhe este, voltando-se na sua cadeira.
E ajuntou, ao ver que ela permanecia de pé, em atitude discreta:
— Sente-se. Que idade você tem?
— Vinte e quatro anos.
Havia nela uma humildade exagerada. Seus olhos pisados, sua maneira de esgueirar-se sem ruído, sem tocar em nada, de estremecer de susto à menor palavra, casava-se muito bem à idéia que se faz de uma criatura acostumada a todas as durezas. E, no entanto, eram perceptíveis, debaixo dessas aparências, pontas de orgulho prestes a varar, e que ela se esforçava por conter.
Era anêmica. Seu busto achatado não fora feito para despertar a sensualidade. E, no entanto, atraía, pelo que havia nela de equívoco, descoroçoado e doentio.
— Que fazia você antes de trabalhar aqui?
— Sou órfã. Meu pai e meu irmão pereceram no mar, no Trois Mages. Minha mãe já era morta, de há muito. Fui primeiro vendedora, na papelaria da praça do correio.
Que estava a procurar seu olhar inquieto?
— Você tem amante?
Ela virou a cabeça sem responder, e Maigret, de olhos fixos nela, fumou mais devagar, tomou um trago de cerveja.
— Os fregueses devem fazer-lhe a corte! Os que estavam aqui há pouco, por exemplo, são freqüentadores habituais. Vêm toda noite. Gostarão de mulheres bonitas. Vamos! Qual deles?
Mais pálida, articulou com um muxoxo de lassidão:
— Sobretudo o doutor...
Olhou-o, depois, com veleidades de confiança:
— Ele tem outras... às vezes eu, quando lhe apetece. Dorme aqui... Diz que vá encontrá-lo no quarto...
Raramente Maigret recolhera confissão tão chã.
— Ele lhe dá alguma coisa?
— Sim... Mas não sempre... Duas ou três vezes, quando era meu dia de folga, ele me fez ir a sua casa. Anteontem ainda. Aproveita que a mãe está viajando. Mas tem outras moças...
— E o Sr. Le Pommeret?
— A mesma coisa... Salvo que só fui uma vez em casa dele, há muito tempo. Estava lá uma operária da companhia de sardinhas e... e eu não quis. Eles têm garotas novas, toda semana.
— O Sr. Servières também?
— É diferente. Esse é casado. Parece que faz suas farras em Brest. Aqui, contenta-se em brincar, em dar um beliscão de passagem...
Continuava a chover. Muito longe, ululava a sirene de nevoeiro de um barco que devia estar à procura da entrada do porto.
— E é o ano inteiro assim?
— Não o ano inteiro. É que no inverno eles ficam solitários. Às vezes tomam uma garrafa com um caixeiro-viajante. Mas no verão há gente. O hotel fica cheio. À noite, são sempre dez ou quinze a beber champanhe ou a fazer pândega nas casas de campo. Há muitos automóveis, mulheres bonitas. Para nós, é trabalho. No verão não sou eu que sirvo e sim garçons, de modo que fico embaixo, lavando louça.
Que procurava em volta? Estava mal sentada, na borda da cadeira, prestes a saltar como uma mola.
Uma campainha soou fracamente. Ela olhou Maigret, depois o painel elétrico colocado por trás da caixa.
— O senhor dá licença?
Subiu. O comissário ouviu passos, um murmúrio confuso de vozes no primeiro andar, no quarto do médico. O farmacêutico entrou, um pouco bêbado.
— Pronto, comissário. Quarenta e oito garrafas analisadas! E com toda a seriedade, eu lhe asseguro. Nenhum traço de veneno, a não ser no Pernod e no calvados. O dono pode mandar buscar seu material. Dê-me, aqui entre nós, sua opinião. Estamos a braços com anarquistas, não é verdade?
Emma voltava, ia até a rua para colocar os postigos, esperava para poder fechar a porta.
— E então? — perguntou Maigret, quando ficaram de novo a sós.
Ela virou a cabeça sem responder, com um pudor inesperado, e o comissário teve a impressão de que, se a pressionasse um pouco, ela se desmancharia em lágrimas.
— Boa noite, minha pequena — disse.
Quando desceu, na manhã seguinte, julgou ter sido o primeiro a levantar-se, de tal modo estava escuro o céu, completamente nublado. Da sua janela, vira o porto deserto, onde apenas um guindaste solitário descarregava um barco de areia. Na rua, uns raros guarda-chuvas, capas impermeáveis passando, rápidas, cosendo-se às casas.
No meio da escadaria, cruzou com um caixeiro-viajante que chegava e cuja mala um homem levava para cima com dificuldade.
Emma varria a sala de baixo. Numa mesa de mármore havia uma xícara com um resto de café.
— É do meu inspetor? — perguntou Maigret.
— Há muito tempo ele me perguntou o caminho da estação para levar até lá um grande embrulho.
— E o doutor?
— Levei-lhe café na cama. Está doente e não quer sair.
E a vassoura continuava a levantar poeira de mistura com a serragem.
— O que vai tomar?
— Café preto.
Ela teve de passar bem junto dele para ir à cozinha. Nesse instante, Maigret segurou-lhe as espáduas nas suas manoplas, olhando-a nos olhos de um modo ao mesmo tempo desabrido e cordial:
— Fale, Emma. Vamos.
Ela tentou apenas um movimento tímido para desvencilhar-se, depois ficou imóvel, trêmula, procurando fazer-se tão pequena quanto possível.
— Entre nós: o que é que você sabe? Não, cale-se. Vai mentir. Você é uma pobre moça, e não desejo causar-lhe complicações. Mas olhe-me! A garrafa... Hein? Fale, agora.
— Eu juro...
— Não adianta jurar...
— Não fui eu!
— Eu sei muito bem, que diabo, que não foi você. Mas quem foi?
As pálpebras incharam de repente. As lágrimas jorraram. O lábio inferior levantou-se espasmodicamente, e a garçonete se fez tão comovente que Maigret soltou-a.
— O doutor... esta noite?
— Não! Não foi para isso que o senhor está pensando...
— O que ele queria?
— Perguntou-me a mesma coisa que o senhor. Ameaçou-me. Queria que eu lhe dissesse quem tocou na garrafa. Ele quase me bateu. Pela alma de minha mãe, juro...
— Traz meu café.
Eram oito horas da manhã. Maigret foi comprar fumo e deu uma volta pela cidade. Quando voltou, perto de dez horas, encontrou o médico no café, de chinelas, um foulard em volta do pescoço, à guisa de colarinho postiço. Suas feições ainda estavam descompostas, os cabelos arruaçados em desordem.
— O senhor não me parece em grande forma.
— Estou adoentado. Devia esperar isso. São os rins... Basta que me aconteça qualquer coisa, uma contrariedade, uma emoção... A reação é essa. Não dormi a noite inteira.
Não tirava os olhos da porta.
— Vai voltar para casa?
— Não há ninguém lá. Serei mais bem cuidado aqui. Ele mandara buscar os jornais, que estavam na mesa.
— O senhor não viu meus amigos? Servières? Le Pommeret? É curioso que não tenham vindo saber das novidades.
— Ora! Sem dúvida estão dormindo — suspirou Maigret. — É verdade: ainda não vi hoje esse horrível cão amarelo. Emma! Os senhores viram o cão de novo? Não? Aí está Leroy, que talvez o tenha encontrado na rua. O que há de novo, Leroy?
— A garrafa e os copos foram despachados para o laboratório. Passei na gendarmeria e na prefeitura. Falavam do cão, se não me engano? Parece que um camponês o avistou, esta manhã, no jardim do Sr. Michoux.
— No meu jardim?
O médico se levantara. Suas mãos pálidas tremiam.
— Que fazia no meu jardim?
— Acho que me disseram, estava deitado à entrada da casa, e quando o camponês se aproximou rosnou de tal modo que o homem preferiu pôr-se ao largo.
Maigret observava os rostos com o rabo do olho.
— Que me diz, doutor, de irmos juntos até sua casa? Um sorriso constrangido:
— Numa chuva dessas? Com a minha crise? Isso me custaria pelo menos oito dias de cama. Que importa o cão? Um cão vulgar, errante, com certeza.
Maigret pôs o chapéu, o sobretudo.
— Onde vai o senhor?
— Não sei. Espairecer um pouco. Vem também, Leroy?
De fora podiam ver ainda a cara comprida do médico, que os vitrais deformavam, fazendo-a mais comprida ainda e dando-lhe uma cor esverdeada.
— Aonde vamos? — perguntou o inspetor.
Maigret deu de ombros, e andou sem destino por um quarto de hora em torno das bacias do porto, como um homem interessado em barcos. Ao chegar ao molhe, virou à direita e tomou o caminho que uma tabuleta designava como a estrada de Sables Blancs.
— Se tivéssemos analisado as cinzas de cigarro encontradas no corredor da casa desocupada — começou Leroy, depois de puxar um pigarro.
— O que acha de Emma? — interrompeu Maigret.
— Eu... eu acho... A dificuldade, a meu ver, sobretudo num lugar desses, em que todo mundo se conhece, deve ser a obtenção de uma tal quantidade de estricnina...
— Não é isso o que pergunto. Você se tornaria com prazer seu amante?
O pobre inspetor não achou nada para dizer. E Maigret ainda o obrigou a deter-se e abrir seu capote para que ele pudesse acender o cachimbo ao abrigo do vento.
A praia de Sables Blancs, debruada de algumas casas, entre as quais uma suntuosa residência que merecia o nome de castelo e pertencia ao prefeito da cidade, estende-se entre duas pontas rochosas, a três quilômetros de Concarneau.
Maigret e seu companheiro patinharam na areia coberta de sargaços, dando pouca atenção às casas desabitadas, de venezianas cerradas.
Para além da praia, o terreno se eleva. Rochas coroadas de abetos mergulham a pique no mar.
Um grande cartaz: "Loteamento de Sables Blancs". Uma planta, com as parcelas já vendidas e por vender em cores diferentes. Um quiosque de madeira: "Escritório de venda dos terrenos."
Por fim, a menção: "Em caso de ausência, dirigir-se ao Sr. Ernest Michoux, administrador."
No verão, tudo aquilo ficaria risonho, pintado de novo. Na chuva e na lama, no fragor da ressaca, parecia sinistro.
No centro, uma grande casa nova, de pedra cinzenta, com terraço, espelho d'água e canteiros ainda por florir. Mais adiante, o esboço de outras casas: troços de paredes surgindo do solo e desenhando, já, as salas e quartos futuros.
Havia falhas de vidros no quiosque. Montes de areia aguardavam a hora de serem espalhados sobre a nova estrada que um rolo compressor impedia pela metade. No alto do penhasco, um hotel ainda inacabado, as paredes de um branco cegante, as janelas fechadas com tábuas e papelão.
Maigret avançou tranqüilamente, empurrou a barreira que dava acesso à casa do Dr. Michoux. Quando já estava quase à soleira da porta e estendia a mão para a maçaneta, o Inspetor Leroy murmurou:
— Não temos mandato. Não crê o senhor que...
Uma vez mais, seu chefe deu de ombros. Nas aléias, viam-se as marcas profundas deixadas pelas patas do cão amarelo. Havia outras impressões: de pés enormes, calçados com sapatos ferrados. Número 46, pelo menos!
A maçaneta girou. A porta se abriu como que por encanto e revelou no tapete os mesmos sinais: do cão e dos inacreditáveis sapatões.
A vila, de arquitetura complicada, fora mobiliada pretensiosamente. Tinha uma infinidade de recantos, com divas, estantes baixas, camas fechadas da Bretanha transformadas em vitrines, mesinhas de centro turcas ou chinesas. Um excesso de tapetes, cortinas.
A vontade manifesta de realizar, com velhas coisas, um conjunto rústico-moderno.
Algumas paisagens bretãs. Nus autografados: "Ao bom amigo Michoux" ou "Ao amigo das artistas..." O comissário contemplava o brique-a-braque com ar resmungão, mas o Inspetor Leroy não deixou de impressionar-se com aquela distinção falsa.
E Maigret abria portas, lançava um olhar nos quartos. Alguns não tinham mobília. A pintura das paredes era ainda fresca.
Acabou empurrando uma porta com o pé e teve um murmúrio de satisfação ao ver a cozinha. Em cima da mesa de madeira branca havia duas garrafas vazias de bordeaux.
Uma dúzia de latas de conserva tinham sido abertas grosseiramente, a ponta de faca. A mesa estava suja, gordurenta. Alguém comera ali, servindo-se diretamente das latas, arenques ao vinho branco, cassoulet frio, cogumelos, damascos.
O piso fora maculado. Jaziam nele restos de carne. Uma garrafa quebrada de conhaque fine champagne misturava o odor da bebida ao dos alimentos.
Maigret olhou seu companheiro com um sorriso singular:
— Você acredita, Leroy, que foi o doutor quem fez esse repasto de porco?
E como o outro, siderado, não respondia:
— Sua mamãe também não, espero! Nem mesmo a empregada! Observe, você que gosta de pegadas. São a rigor crostas de barro que desenham uma sola de sapato. Número 40 ou 46. E as pegadas do cão!
Maigret encheu de novo o cachimbo, apanhando fósforos em cima de uma étagère.
— Anote tudo que há para anotar aqui dentro. Terá trabalho de sobra. Até logo.
E se foi, de mãos nos bolsos, gola do sobretudo levantada, ao longo da praia de Sables Blancs.
Quando entrou no Hotel de 1'Amiral, a primeira pessoa que viu, no seu canto, foi o Dr. Michoux, ainda de chinelos e de foulard em volta do pescoço.
Le Pommeret, tão corretamente vestido quanto na véspera, estava sentado ao lado dele, e os dois homens esperaram calados que o comissário se aproximasse.
Foi o médico quem articulou por fim, numa voz de timbre incerto:
— O senhor sabe o que me vieram dizer? Servières desapareceu. A mulher dele é um pouco louca... Ele nos deixou ontem à noite. Desde então, ninguém o viu.
Maigret teve um sobressalto, não pelo que acabara de ouvir, mas por ver o cão amarelo, deitado aos pés de Emma.
Capítulo III - "O Medo Reina em Concarneau"
Le Pommeret tinha necessidade de repetir, ao menos pelo prazer de se ouvir falar:
— Ela veio à minha casa há pouco, suplicando-me que fizesse indagações. Afinal, Servières, cujo nome verdadeiro é Goyard, é um velho amigo...
Do cão amarelo, o olhar de Maigret passou à porta, que se abria, ao vendedor de jornais que entrava como um pé de vento e, finalmente, à manchete em gordos caracteres, que se podia ler de longe:
O MEDO REINA EM CONCARNEAU
Subtítulos diziam:
Um drama por dia.
Desaparição de nosso colaborador
Jean Servières.
Manchas de sangue encontradas
no seu automóvel.
Quem será a próxima vítima?
Maigret segurou pela manga o pequeno jornaleiro.
— Vendeu muito, hoje?
— Dez vezes mais que nos outros dias. Somos três a correr, desde a estação.
Descontraído, o menino retomou seu caminho, ao longo do cais, gritando:
— Le Phare de Brest... Edição sensacional...
O comissário não tivera ainda tempo de começar a ler o artigo e já Emma anunciava:
— Chamam-no ao telefone.
Era uma voz furiosa a do prefeito:
— Alô? Foi o senhor comissário quem inspirou esse artigo idiota? E eu não estou sequer a par? Saiba o senhor que desejo ser informado em primeira mão daquilo que se passa na cidade da qual sou prefeito. Que história é essa de automóvel? E esse homem de pés grandes? Na última meia hora recebi mais de vinte telefonemas de pessoas aflitas que me perguntam se essas notícias são exatas. Repito-lhe que desejo doravante...
Maigret, sem hesitar, desligou, entrou de novo no café, sentou-se e pôs-se a ler. Michoux e Le Pommeret corriam os olhos por um único jornal, aberto sobre ò mármore da mesa.
"Nosso excelente colaborador Jean Servières relata aqui os acontecimentos dos quais Concarneau foi recentemente teatro. Sexta-feira, um honrado comerciante da cidade, o Sr. Mostaguen, ao sair do Hotel de 1'Amiral, deteve-se no vão de uma porta para acender um charuto e recebeu no ventre um bala atirada através da fenda da caixa de correio da casa, uma casa desabitada. Sábado, o Comissário Maigret, recentemente destacado de Paris e posto à testa da Brigada Móvel de Rennes, chegava ao local do crime, o que não impediu um segundo drama. Com efeito, a noite, um telefonema nos anunciava que, ao tomarem o aperitivo, três notáveis da cidade, os Srs. Le Pommeret, Jean Servières e Dr. Michoux, a quem se tinham juntado os investigadores, deram-se conta de que o Pernod que lhes fora servido continha uma forte dose de estricnina. Ora, na manhã de domingo, o carro de Jean Servières foi descoberto junto do Rio Saint-Jacques, sem o seu proprietário, o qual, desde a noite de sábado, não é visto. O assento estava manchado de sangue. Um vidro foi quebrado, e tudo faz supor que tenha havido luta.
"Três dias, três dramas! É natural que o terror comece a reinar em Concarneau, cujos habitantes se indagam, com angústia, quem será a próxima vítima. A agitação do povo é produzida sobretudo pela misteriosa presença de um cão amarelo, que ninguém conhece, que parece não ter dono, e que surge a cada nova desgraça.
"Não é exato que esse cão já orientou a polícia para uma pista séria? Já não se procura um indivíduo que não foi identificado mas que deixou, em mais de um lugar, traços curiosos — os de pés muito mais avantajados que a média?
"Um louco? Um vagabundo? E será ele o autor de todos esses delitos? A quem atacará esta noite?
"Sem dúvida achará com quem se haver, porque os habitantes, aterrorizados, tomarão a precaução de armar-se e de atirar nele ao menor alerta.
"Entrementes, este domingo a cidade parece morta, e a atmosfera lembra a das cidades do norte quando, durante a guerra, anunciava-se um bombardeio aéreo."
Maigret olhou pela vidraça. Já não chovia, mas as ruas estavam ainda cheias de lama escura, e o vento continuava a soprar com violência. O céu era de um cinza-lívido.
As pessoas voltavam da missa. Quase todas tinham na mão Le Phare de Brest. E todas viravam-se para olhar o Hotel de 1'Amiral, embora muitas apertassem o passo ao passar por ele.
Havia algo de morto na cidade. Mas não seria assim todo domingo de manhã? A campainha do telefone soou de novo. Foi possível ouvir a resposta de Emma:
— Não sei, senhor. Não estou informada. Deseja que eu chame o comissário? Alô? Alô? Cortaram...
— Quem era? — resmungou Maigret.
— Um jornal de Paris, creio. Perguntam se há outras vítimas. Reservaram um quarto.
— Quero falar com Le Phare de Brest.
Enquanto espera, o comissário anda em todos os sentidos, sem olhar o médico, arriado na sua cadeira, ou Le Pommeret, que contempla os próprios dedos, pesados de anéis.
— Alô... Le Phare de Brest? Comissário Maigret. O diretor, por obséquio. Alô. É ele? Bom. Poderia dizer-me a que horas a sua folha saiu das máquinas esta manhã? Hein? Nove e meia? E quem redigiu o artigo sobre os dramas de Concarneau? Ah, não. Não me venha com histórias. Quer dizer que recebeu esse artigo num envelope? Sem a assinatura? E o senhor publica assim qualquer informação anônima que lhe vai ter às mãos? Meus cumprimentos. Quis sair, então, pela porta que abria diretamente para o cais mas encontrou-a fechada a chave.
— Que significa isso? — perguntou a Emma, olhando-a nos olhos.
— Foi o doutor...
Maigret encarou Michoux, que tinha um ar ainda mais oblíquo que de costume, deu de ombros, e usou a outra porta, a do hotel. As lojas, em maioria, estavam fechadas. As pessoas, endomingadas, passavam depressa.
Para além das bacias do ancoradouro, onde alguns barcos retesavam as correntes das suas âncoras, Maigret achou a boca do Rio Saint-Jacques, na ponta da cidade, onde as casas já rareavam para ceder lugar aos estaleiros navais. Viam-se barcos inacabados no cais. Outros, velhos, apodreciam encalhados no lodo.
No local onde uma ponte de pedra passa por cima do rio que vem despejar suas águas no porto, alguns curiosos se grupavam em redor de um pequeno automóvel.
Era preciso dar uma volta para chegar até lá, com o cais impedido por trabalhos em curso. Maigret se deu conta, pelos olhares que lhe lançavam, que todo mundo já o conhecia. E à porta das lojas fechadas, viu gente inquieta, que falava em voz baixa.
Atingiu, por fim, o carro abandonado à beira da estrada, abriu a porta com um gesto brusco, fazendo chover estilhaços de vidro; e não precisou procurar para ver as manchas escuras no forro do assento.
Em torno dele se comprimiam crianças e jovens presumidos.
— A casa do Sr. Servières?
Foram dez a mostrar-lhe o caminho. Ficava a cem metros, um pouco à parte. Uma casa burguesa, cercada de um jardim. A escolta ficou de fora, na cerca, enquanto Maigret tocava a campainha c era recebido por uma empregadinha de expressão transtornada.
— A Sr.a Servières está?
Ela já abria a porta da sala de jantar:
— Diga-me, comissário. O senhor acredita que o tenham assassinado? Eu fico louca... Eu...
Uma senhora de seus quarenta anos, animosa, com ares de boa dona-de-casa, o que o asseio e elegância do seu ambiente confirmavam.
— A senhora não reviu seu marido?
— Ele veio jantar, ontem. Pareceu-me preocupado, mas nada me quis dizer. Deixara o carro à porta, o que significava que pretendia sair mais tarde. Eu sabia que era para a sua partida de baralho, no Café de 1'Amiral. Perguntei-lhe se pretendia voltar muito tarde. Às dez horas, deitei-me. Fiquei muito tempo acordada. Ouvi baterem as onze, as onze e meia. Depois, devo ter dormido. Acordei no meio da noite. Fiquei admirada de não senti-lo ao meu lado. Pensei, então, que alguém talvez o tivesse levado a Brest. Aqui não é tão alegre. Assim, às vezes... Mas não consegui dormir de novo. Às cinco da manhã já estava de pé, à espreita, por detrás da janela. Ele não gosta que eu o espere e muito menos que o procure. Às nove horas, corri, assim mesmo, à casa de Le Pommeret. E foi só ao voltar, por um outro caminho, que vi pessoas em torno do carro. Diga-me: por que o teriam matado? É o melhor homem do mundo! Estou certa de que não tem inimigos.
Um grupo montava guarda, diante da cerca.
— Parece que há manchas de sangue. Algumas pessoas liam um jornal, que eu vi, mas ninguém me quis mostrar.
— Seu marido levava muito dinheiro consigo?
— Não creio. O de sempre, trezentos ou quatrocentos francos...
Maigret prometeu mantê-la informada, deu-se, mesmo, o trabalho de tranqüilizá-la com frases vagas. Da cozinha, vinha um cheiro de pernil de carneiro. A empregada de avental branco acompanhou-o até a porta.
O comissário não fizera ainda cem metros na rua quando um popular se aproximou vivamente dele.
— Perdão, comissário, eu me apresento. Sr. Dujardin, professor. Há uma hora que várias pessoas, pais de alunos, principalmente, me vêm perguntar se há alguma verdade no que diz o jornal. Alguns desejam mesmo saber se têm o direito de atirar se virem o homem dos pés grandes.
Maigret não era um anjo de paciência. E rosnou, entre dentes, enfiando as duas mãos nos bolsos:
— Vão todos para o diabo! Depois, dirigiu-se ao centro da cidade.
Não fazia sentido. Jamais vira coisa igual. A situação lembrava-lhe as tempestades tais como são representadas, às vezes, no cinema. Mostra-se uma rua cheia de vida, um céu dos mais serenos. Depois, uma nuvem, superposta, desliza, veloz, e esconde o sol. Um vento violento varre a rua. A iluminação é glauca. Há janelas batendo. Turbilhões de poeira. Gotas grossas de chuva, bátegas.
E em cinco minutos, eis a rua debaixo de chuva cerrada, sob um céu dramático!
Concarneau mudava a olhos vistos. O artigo do Phare de Brest fora apenas um ponto de partida. De há muito os comentários verbais suplantavam largamente a versão escrita.
E era domingo, além de tudo! Os moradores não tinham nada para fazer! Via-se quando escolhiam, como alvo de seu passeio, o carro de Jean Servières, junto do qual foi preciso postar dois policiais. Os imbecis ficavam por lá uma hora, a ouvir as histórias dos que sabiam mais.
Quando Maigret voltou ao Hotel de 1'Amiral, o proprietário, de gorro branco de cozinheiro, vítima de um nervosismo inusitado, segurou-o pela manga:
— É preciso que eu lhe fale, comissário. Isso está ficando insuportável...
— Antes de mais nada, o senhor me deve servir o almoço.
— Mas...
Maigret foi sentar-se a um canto. E, furioso, pediu:
— Um chope! O senhor não viu o meu inspetor?
— Ele saiu. Creio que o chamaram da prefeitura. Acabam também de telefonar de Paris. Um jornal reservou dois quartos, para um repórter e um fotógrafo.
— Onde está o doutor?
— Em cima. Pediu que não deixasse ninguém subir.
— E o Sr. Le Pommeret?
— Acaba de sair.
O cão amarelo não estava mais lá. Alguns rapazes, de flor à botoeira, cabelos duros de brilhantina, se tinham abancado às mesas, mas não bebiam as limonadas que haviam encomendado. Tinham vindo para ver. E estavam todos orgulhosos da própria coragem.
— Venha cá, Emma.
Havia uma espécie de simpatia nata entre a garçonete e o comissário. Ela veio ter com ele com abandono, deixou que a levasse para um canto.
— Está segura de que o doutor não saiu esta noite?
— Juro que não dormi no quarto dele...
— Ele terá saído?
— Não creio. Me parece apavorado. Esta manhã, foi ele quem me fez trancar a porta que dá para o cais.
— Como é que o cão amarelo conhece você?
— Não sei. Jamais o vi antes. Ele vem, ele vai. Fico a pensar quem lhe dará comida...
— Há muito tempo que se foi?
— Não prestei atenção.
O Inspetor Leroy voltava, aflito:
— O senhor sabe, comissário? O prefeito está furioso. E é pessoa de muita influência. Disse-me ser primo do Ministro da Justiça. Acha que fazemos cera, que apenas servimos para disseminar o pânico em Concarneau. Quer que prendamos qualquer um, não importa quem, para tranqüilizar a população. Prometi-lhe que falaria com o senhor. Insistiu que a nossa carreira, a sua e a minha, nunca esteve tão comprometida...
Maigret raspou gravemente o interior do seu cachimbo.
— O que vai fazer, comissário?
— Nada.
— E, no entanto...
— Você é jovem, Leroy! Conseguiu impressões interessantes na vila do doutor?
— Mandei tudo para o laboratório. Copos, faca, latas de conserva. Fiz até um molde em gesso das pegadas do homem e do cão. O que foi difícil, porque o gesso daqui é ruim. O senhor tem alguma idéia?
Por única resposta, Maigret sacou do bolso um caderninho de notas, e o Inspetor pôde ler, cada vez mais desorientado:
"Ernest Michoux (dito: o doutor). Filho de um pequeno industrial de Seine-et-Oise, que foi deputado durante uma legislatura e não se reelegeu. O pai é morto. A mãe, intrigante. Tentou, com o filho, explorar um loteamento em Juan-les-Pins. Fracasso total. Recomeçou em Concarneau. Montou uma sociedade anônima graças ao prestígio do falecido. Não investiu qualquer capital. Tenta, agora, fazer que comuna e departamento assegurem o mínimo necessário à viabilidade do projeto. Ernest Michoux foi casado, depois divorciado. Sua ex-mulher desposou um tabelião de Lille. Tipo degenerado. Finanças complicadas."
O inspetor olhou para seu chefe com um ar que queria dizer:
— E daí?
Maigret mostrou-lhe as linhas seguintes:
"Yves Le Pommeret — Família Le Pommeret. O irmão, Arthur, dirige a maior fábrica de latas de conserva de Concarneau. Pequena nobreza. Yves Le Pommeret é o menino mimado da família. Jamais trabalhou. Devorou, há muito tempo, a maior parte da sua herança, em Paris. Veio instalar-se em Concarneau, quando já não tinha mais que vinte mil francos de renda. Consegue passar, assim mesmo, por um notável; e engraxa os próprios sapatos. Inúmeras aventuras com operariazinhas. Alguns escândalos tiveram de ser abafados. Caça em todos os castelos da redondeza. Faz boa figura. Conseguiu, graças às suas relações, fazer-se nomear Vice-Cônsul da Dinamarca. Cobiça a Legião de Honra. Sangra, às vezes, o irmão para pagar dívidas."
"Jean Servières (pseudônimo de Jean Goyard). Nascido no Morbihan. Muito tempo jornalista em Paris, secretário-geral de pequenos teatros, etc. Instalou-se em Concarneau graças a uma pequena herança. Desposou uma antiga operária, que era sua amante há quinze anos. Leva uma vida burguesa. Algumas escapadas a Brest e a Nantes. Vive mais de pequenas rendas que do jornalismo, do qual muito se orgulha. Palmas acadêmicas."
— Não compreendo! — balbuciou o inspetor.
— Com a breca! Dê-me as suas notas...
— Mas quem lhe disse que eu...
— Dê-mas.
O canhenho do comissário era um pequeno caderno de dez soldos, em papel quadriculado, com capa de lona encerada. O do Inspetor Leroy era uma agenda de páginas móveis, montada em aço.
Com ar paternal, Maigret leu:
"1. Caso Mostaguen: a bala que atingiu o comerciante destinava-se, certamente, a outro. Como não era previsível que alguém se detivesse naquele vão de porta, alguém deve ter marcado encontro ali com a verdadeira vítima, que não compareceu, ou que compareceu tarde demais.
"A menos que o objetivo seja aterrorizar a população. O assassino conhece Concarneau admiravelmente. (Não se analisaram as cinzas de cigarro encontradas no corredor.)
"2. Caso do Pernod envenenado: no inverno, o Café de 1' Amiral fica deserto quase o dia inteiro. Um homem ao corrente disso poderia entrar e pôr o veneno nas garrafas. Em duas garrafas. Visava, então, especialmente, aos consumidores de Pernod e de calvados (a notar, no entanto, que o médico percebeu a tempo e sem qualquer dificuldade os grãos de pó branco no líquido).
"3. Caso do cão amarelo. Ele conhece o Café de 1'Amiral. E não é um cão sem dono. Mas a quem pertencerá? Parece ter, de idade, pelo menos cinco anos.
"4. Caso Servières: descobrir, graças à perícia grafológica, quem enviou o artigo ao Phare de Brest.''
Maigret sorriu, devolveu a agenda ao companheiro, deixou cair:
— Muito bem, meu rapaz.
Depois acrescentou, com um olhar enfadado às silhuetas de curiosos que se podiam ver, todo o tempo, por detrás dos vitrais verdes:
— Vamos comer.
Emma devia anunciar-lhe, um pouco mais tarde, que estariam sós na sala de jantar com o caixeiro-viajante que chegara naquela manhã; que o Dr. Michoux, cujo estado piorara, pedira que lhe servissem uma refeição ligeira no quarto.
Depois do almoço, o Café de 1'Amiral, com seus pequeninos vidros glaucos, ficou como um jaula de jardim zoológico, diante da qual os curiosos desfilavam, endomingados. Via-se quando se dirigiam, depois, para o fundo do porto, onde o carro de Servières era uma segunda atração, guardada por policiais.
O prefeito telefonou três vezes, da sua suntuosa vila de Sables Blancs.
— O senhor efetuou alguma prisão?
Maigret mal se dava ao trabalho de responder. Os moços de dezoito a vinte anos invadiram o café. Grupos ruidosos, que tomavam posse de uma mesa, e pediam bebidas que, em seguida, ninguém tomava.
Estavam há apenas cinco minutos no café e já o diálogo se espaçava, os risos morriam, o embaraço sucedia ao blefe. E eles se iam, uns depois dos outros.
A diferença foi ainda mais sensível quando chegou a hora de acender as lâmpadas. Eram as quatro. De hábito, a multidão continuava a circular, depois disso. Essa noite, porém, foi o deserto, e um silêncio de morte. Dir-se-ia que todos haviam recebido um aviso. Em menos de um quarto de hora, as ruas se esvaziaram. E quando ressoavam passos, eram os passos precipitados de algum retardatário, ansioso por abrigar-se em casa.
Emma apoiava os cotovelos na caixa. O patrão ia da cozinha ao café, onde Maigret se obstinava em fazer ouvidos surdos às suas queixas.
Por volta de quatro e meia, desceu Ernest Michoux, sempre de chinelas. Sua barba crescera. Seu foulard de seda creme estava agora maculado de suor.
— O senhor está aí, comissário? Isso parecia tranqüilizá-lo.
— E seu inspetor?
— Mandei-o à cidade, para uma providência.
— O cão?
— Não foi visto desde a manhã.
O soalho era cinzento, o mármore das mesas de um branco agressivo, com veios azuis. Através dos vitrais, era possível adivinhar o relógio luminoso da cidade velha, que marcava dez para as cinco.
— Ainda não se sabe quem escreveu o malfadado artigo?
O jornal estava em cima da mesa. E já ninguém atentava senão para quatro palavras:
— Quem será o próximo?
A campainha do telefone tocou. Emma atendeu:
— Não, nada. Não sei de nada.
— Quem é? — perguntou Maigret.
— De um novo jornal de Paris. Parece que os redatores devem chegar, de automóvel...
Não acabara a frase, e já a campainha tocava outra vez.
— É para o senhor, comissário.
O médico, muito pálido, seguiu Maigret com os olhos.
— Alô! Quem fala?
— Leroy. Estou na cidade velha, peno do canal... Alguém deu um tiro. Um sapateiro, que viu da janela o cão amarelo.
— Morto?
— Ferido! Os rins quebrados. O animal mal pode andar. As pessoas não ousam aproximar-se dele. Estou telefonando de um café. O animal está caído no meio da rua. Eu o vejo pela vidraça. Uiva como um desalmado. O que devo fazer?
E a voz que o inspetor desejara calma estava ansiosa, como se esse cão ferido, esse cão amarelo, fora um ser sobrenatural.
— Há gente pendurada em todas as janelas... Diga, comissário, não seria melhor acabar com ele?
O médico, a tez plúmbea, de pé atrás de Maigret, indagava timidamente:
— O que é? O que diz ele?
E o comissário podia ver Emma, encostada ao balcão, de olhar perdido.
Capítulo IV - P. C. de Companhia
Maigret atravessou a ponte levadiça, meteu-se por uma rua irregular, mal iluminada. O que os nativos chamam "a cidade fechada" é apenas o velho distrito, ainda encerrado nas suas muralhas, um dos bairros mais populosos da cidade.
E, no entanto, à medida que avançava, o comissário penetrava numa zona de silêncio cada vez mais suspeito. O silêncio da multidão que um espetáculo hipnotiza, e que freme, e que tem medo, e que se impacienta.
Algumas vozes isoladas de adolescentes, decididos à arrogância.
Uma volta mais e o comissário teve uma visão da cena: a rua estreita, com gente em todas as janelas; quartos iluminados a querosene; camas vislumbradas; um grupo a barrar a passagem; e, para além desse grupo, um grande vazio de onde subia um estertor.
Maigret afastou os espectadores, rapazes na maior parte, surpresos com a sua chegada. Dois dentre eles estavam ainda ocupados a lançar pedras em direção ao cão. Seus companheiros quiseram deter-lhes o gesto. Ouviu-se, ou melhor, adivinhou-se:
— Cuidado!
Um dos apedrejadores corou até as orelhas quando Maigret o empurrou para a esquerda e adiantou-se para o animal ferido. O silêncio tinha agora outra qualidade. Era evidente que, havia alguns instantes, uma embriaguez malsã animava os espectadores, exceto uma velha, que gritava da sua janela:
— É uma vergonha! O senhor devia processá-los, Comissário! Estão todos encarniçados contra esse pobre animal! E eu bem sei por quê. Porque têm medo.
Envergonhado, o sapateiro que dera o tiro recolheu-se à sua loja. Maigret abaixou-se para acariciar a cabeça do cão, que lhe lançou um olhar de pasmo, não ainda de gratidão. O Inspetor Leroy saía do café de onde telefonara. Algumas pessoas se afastaram, a contragosto.
— Que tragam um carro de mão.
As janelas se fechavam, umas depois das outras, mas adivinhavam-se sombras curiosas por detrás das cortinas. O cão estava sujo; seus pêlos duros estavam manchados de sangue. Tinha o ventre enlameado, o nariz seco e ardente. Agora, que alguém se ocupava dele, recobrava a confiança, não mais procurava arrastar-se pelo chão, onde vinte pedras grandes o enquadravam.
— Aonde devemos conduzi-lo, comissário?
— Ao hotel... Suavemente. Ponham palha no fundo do carrinho.
O cortejo poderia ter sido ridículo. Foi impressionante, pela magia da angústia que, desde cedo, não cessara de crescer. O carro, empurrado por um velho, progrediu aos saltos pela rua mal calçada, cheia de viradas, atravessou a ponte levadiça e ninguém ousou segui-lo. O cão amarelo respirava com força, e estirava as quatro patas ao mesmo tempo, num espasmo.
Maigret notou um automóvel que não vira antes em frente ao Hotel de 1'Amiral. Quando empurrou a porta do café, sentiu que a atmosfera mudara.
Um homem chocou-se contra ele, viu o cão que tiravam do carro, assentou uma máquina fotográfica e produziu um clarão de magnésio. O outro, em calças de golfe, cardigan vermelho, caderneta em punho, levou a mão à pala do barrete.
— Comissário Maigret? Vasco, do Journal. Acabei de chegar e tive a sorte de conhecer o senhor...
Mostrava Michoux, sentado a um canto, as costas apoiadas no encosto de molesquine.
— O carro do Petit Parisien nos segue. Mas teve uma pane a dez quilômetros daqui.
Emma indagava do comissário:
— Onde quer o senhor que o botemos?
— Não há lugar para ele na casa?
— Há, perto do pátio. Um recanto onde se guardam as garrafas vazias.
— Leroy! Telefone a um veterinário.
Uma hora antes, era o vácuo, o silêncio pejado de reticências. Agora, o fotógrafo, a capa-de-chuva quase branca, desarranjava mesas e cadeiras gritando:
— Um momento! Não se mexam, por favor! Virem a cabeça do cão para mim.
E o magnésio estourava.
— Le Pommeret? — perguntou Maigret, dirigindo-se ao médico.
— Saiu pouco depois do senhor. Acho que vai voltar.
Às nove horas da noite, o café era uma espécie de quartel-general. Dois novos repórteres tinham chegado. Um redigia seu artigo numa das mesas do fundo. De tempos em tempos, descia um fotógrafo do quarto.
— Não haverá álcool de noventa graus? É-me absolutamente indispensável para secar as películas. É um cão prodigioso. O senhor diz que há uma farmácia ao lado? Está fechada? Pouco importa.
No corredor em que ficava o aparelho telefônico, um jornalista ditava seu artigo com voz neutra:
— Maigret, sim. M. de Maurício, A de Arthur... Sim, I de Isidoro. Copiei todos os nomes de uma vez... Michoux... M... I... choux. Está certo? Não? Espere, eu lhe dou primeiro as manchetes... Isso consegue pegar a edição de uma hora? Sim? Diga ao chefe que é preciso que apareça na primeira página.
Desconcertado, o Inspetor Leroy acompanhava Maigret com os olhos, como que para apoiar-se nele. Num canto, o único caixeiro-viajante preparava seu programa do dia seguinte ajudado pelo Bottin des Départements. De quando em vez chamava Emma:
— Chauffier? É um armarinho importante? Obrigado.
O veterinário extraíra a bala e envolvera os quartos traseiros do cão numa atadura rija.
— Animais, eles têm uma vida tão dura!
Tinham estendido uma coberta velha por cima de alguma palha, no reduto calçado de granito azul que abria ao mesmo tempo para o pátio e para a escada da adega. O cão estava deitado, ali, sozinho, a um palmo apenas de um pedaço de carne em que não tocava.
O prefeito viera, de carro. Era um velhote de muito trato, barbicha branca, gestos secos. Levantara as sobrancelhas ao entrar nessa atmosfera de corpo da guarda, ou, mais exatamente, de P. C. de companhia.
— Quem são todos esses senhores?
— Jornalistas de Paris.
O prefeito estava exasperado.
— Muito bonito! Quer dizer que amanhã toda a França só falará dessa história idiota! O senhor continua sem descobrir nada?
— O inquérito prossegue — resmungou Maigret, no mesmo tom com que teria dito:
"O senhor não tem nada com isso."
Pois havia irritação no ar. Todo mundo tinha os nervos à flor da pele.
— E o senhor, Michoux, não volta para sua casa?
O olhar do prefeito era de desprezo, acusava o médico de covardia.
— Se as coisas continuam como vão, será o pânico generalizado dentro de vinte e quatro horas. Já tenho dito que precisamos deter alguém, não importa quem seja.
E sublinhou essas últimas palavras com um olhar para Emma.
— Sei que não me cabe dar-lhe ordens. Quanto à polícia local, o senhor lhe deixou apenas um papel derrisório. Mas eu lhe digo: mais um drama, um só, e será a catástrofe. As pessoas contam com alguma providência. Lojas que, nos outros domingos, ficam abertas até nove horas fecharam suas portas. Esse estúpido artigo do Phare de Brest alarmou a população.
O prefeito não tirara o chapéu-coco, e enterrou-o até as orelhas ao despedir-se, depois de recomendar:
— Ficar-lhe-ia grato se me mantivesse informado, comissário. Lembro que tudo o que se faz aqui neste momento se faz sob sua responsabilidade...
— Um chope, Emma! — pediu Maigret. Não era possível impedir que os jornalistas invadissem o Hotel de l'Amiral, que se instalassem no café, que telefonassem e enchessem a casa de agitação e bulha. Reclamavam da tinta, do papel, faziam perguntas a Emma, que exibia no seu pobre rosto uma expressão de estupor.
Lá fora, a noite escura, onde um raio de lua apenas sublinhava o romantismo do céu carregado, ao invés de clareá-lo. E como Concarneau ainda não era pavimentada, havia a lama, que se colava a todos os sapatos.
— Le Pommeret disse-lhe expressamente que voltaria? — perguntou Maigret a Michoux.
— Sim. Ele foi jantar em casa.
— Endereço? — perguntou um jornalista, que não tinha mais o que fazer.
O médico lhe deu o endereço, enquanto o comissário alçava os ombros. Depois, puxou Leroy para um canto.
— Você tem o original do artigo desta manhã?
— Acabo de recebê-lo. Está no meu quarto. O texto é escrito com a mão esquerda por alguém que temia ver reconhecida sua letra.
— Selo?
— Não. A carta foi lançada na própria caixa de correspondência do jornal. No envelope figura: "extrema urgência".
— Tanto assim que, às oito horas da manhã, no máximo, todo mundo já sabia da desaparição de Jean Servières, sabia que o carro fora abandonado perto do Rio Saint-Jacques e que haviam sido encontradas manchas de sangue no assento. Além disso, todo mundo ficou ciente de que haviam sido descobertas em algum lugar as pegadas de um homem de pés desmesurados...
— É inacreditável! — suspirou o inspetor. — Quanto a essas pegadas, mandei-as ao Quai des Orfèvres por belinograma.* Já consultaram os arquivos. Tenho em mãos a resposta: não correspondem a nenhuma ficha de malfeitor.
* Edouard Belin, engenheiro e físico francês, nascido em 1876, inventou a fototelegrafia. Seus aparelhos, os téléstéréographes, eram conhecidos popularmente como bélmographes. (N. do T.)
Não havia engano possível: Leroy deixava-se contagiar pelo medo ambiente. O mais intoxicado, porém, por esse vírus era Ernest Michoux, cuja figura ficava ainda mais grotesca em contraste com a roupa esportiva, os gestos desenvoltos e a atitude afoita dos jornalistas.
Não sabia onde meter-se. Maigret lhe perguntou:
— Por que não vai deitar-se?
— Ainda não. Não me deito antes de uma da manhã. Esforçava-se por esboçar um sorriso, mas o sorriso gorou, embora tivesse deixado ver dois dentes de ouro.
— Francamente, o que pensa de uma coisa dessas?
O relógio iluminado da cidade velha bateu dez golpes. Chamaram o comissário ao telefone. Era o prefeito.
— Nada ainda?
Esperaria, ele também, um drama?
Mas, a rigor, Maigret também não estava à espera disso? De testa franzida, foi visitar o cão amarelo, que estava deitado e que, sem medo, abriu um olho e fitou-o, enquanto ele se acercava. O comissário acariciou-lhe a cabeça, e empurrou um pouco mais de palha debaixo das patas.
Percebeu que o patrão estava atrás dele.
— O comissário acredita que esses senhores da imprensa vão ficar por muito tempo ainda? Seria preciso que eu pensasse em aumentar as provisões. O mercado é amanhã, às seis horas.
Para alguém não habituado a Maigret eram sempre de desorientar os grandes olhos fixos na testa do interlocutor, como se não o estivesse vendo, depois o fato de resmungar algo ininteligível antes de ir-se embora, com o ar de que o outro não passava de uma cifra desprezível.
O repórter do Petit Parisien, que entrava, sacudia sua capa impermeável, lavada de chuva.
— Como chove! O que há de novo, Groslin?
Uma chama brilhava nas pupilas do rapaz, que disse algumas palavras em voz baixa ao fotógrafo que o acompanhava, e depois tirou o fone do gancho.
— Petit Parisien, senhorita, serviço de imprensa. Prioridade. O quê? Tem linha direta para Paris? Então, vamos lá, depressa. Alô! Alô! Petit Parisien? Srta. Germaine? Quero a taquígrafa de plantão. Aqui, Groslin.
Sua voz era impaciente. E o olhar parecia desafiar os colegas que o ouviam. Maigret, que passava por trás dele, deteve-se para escutar.
— Alô? É a Srta. Jeanne? Depressa, hein! Ainda podemos pegar algumas edições de província. Os outros só terão isso na edição de Paris. A senhora pedirá ao secretário que redija o artigo. Eu mesmo não tenho tempo. Caso de Concarneau. Nossas previsões eram corretas. Um novo crime. Alô! Sim, crime. Um homem assassinado, se prefere assim.
Todos se haviam calado. O médico, fascinado, aproximava-se do jornalista, que prosseguia febril, triunfante, tripudiando sobre os confrades.
— Depois do Sr. Mostaguen, depois do jornalista Jean Servières, o Sr. Le Pommeret! Sim... Soletro o nome para a senhora num minuto. Acaba de ser achado morto em seu quarto. Sim, em casa. Nenhum ferimento. Os músculos estão duros, tudo faz crer num envenenamento. Espere... Termine com dois pontos, aspas, o Terror Reina, aspas. Sim. Corra ao secretário. Eu lhe ditarei em seguida um texto para a edição de Paris, mas é preciso que a notícia saia nas edições do interior.
Desligou, enxugou-se, correu em torno um olhar de júbilo. O telefone já tocava.
— Alô? Comissário? Há um quarto de hora que tentamos falar-lhe. Aqui é da casa do Sr. Le Pommeret. Depressa! Há um morto.
E a voz repetiu, numa espécie de uivo:
— Morto!...
Maigret olhou em volta. Em quase todas as mesas havia copos vazios. Emma, lívida, acompanhava o policial com os olhos.
— Que ninguém toque num só copo ou garrafa — ordenou. — Você me ouviu bem, Leroy? Não saia daqui.
Michoux, com a fronte coberta de suor, arrancara o foulart e exibia o pescoço magro, a camisa presa por um botão de colarinho desses de mola. .
Quando Maigret chegou ao apartamento de Le Pommeret, um médico vizinho já fizera as primeiras constatações.
Havia também uma mulher de seus cinqüenta anos, a proprietária do imóvel, a mesma que telefonara.
Uma bela mansão de pedra cinzenta, de frente para o mar. A cada vinte segundos, o pincel luminoso do farol incendiava as vidraças.
Balcão. Mastro de bandeira e escudo com as armas da Dinamarca.
O corpo estava estendido no tapete avermelhado de um estúdio atravancado de bibelôs baratos. Na rua, cinco pessoas viram passar o comissário sem dizer uma palavra.
Nas paredes havia retratos de atrizes, desenhos recortados de revistas galantes e emoldurados, algumas dedicatórias de mulheres nas fotografias.
Le Pommeret tivera a camisa arrancada. Seus sapatos estavam ainda pesados de lama.
— Estricnina — disse o médico. — Pelo menos, eu seria capaz de jurar. Repare nos olhos. E, sobretudo, atente para a rigidez do corpo. A agonia durou mais de meia hora. Talvez bastante mais.
— Onde estava a senhora? — perguntou Maigret à proprietária.
— Embaixo. Eu sublocava todo o primeiro andar ao Sr. Le Pommeret, que tomava suas refeições em minha casa. Ele veio jantar, por volta das oito horas. Comeu muito pouco. Lembro-me de tê-lo ouvido dizer que a luz estava ruim, embora as lâmpadas clareassem a sala normalmente. Disse-me que ia sair de novo, mas que tomaria primeiro uma aspirina, porque sentia a cabeça pesada.
O comissário olhou para o médico, numa pergunta muda.
— É exatamente isso. São os primeiros sintomas.
— Que se declaram quanto tempo depois da absorção do veneno?
— Isso depende da dose e da constituição do homem. Talvez uma meia hora. Por vezes, duas horas.
— E a morte?
— Só sobrevém depois da paralisia geral. Mas há paralisias locais antes. Assim, é provável que tenha tentado pedir socorro. Estava deitado neste diva.
O mesmo diva que valera ao apartamento de Le Pommeret o apelido de "casa das torpezas"! As gravuras galantes eram, aliás, mais numerosas em torno do móvel do que alhures.
— Ele se debateu, com uma crise de delirium tremem. A morte o surpreendeu por terra...
Maigret avançou até a porta, que um fotógrafo estava em vias de franquear, e fechou-a no nariz dele.
Calculava, a meia voz:
— Le Pommeret deixou o Café de 1'Amiral um pouco depois das sete horas... Bebera um conhaque com água. Aqui, um quarto de hora mais tarde, bebeu e comeu. Depois do que o senhor me disse dos efeitos da estricnina, tanto podia ter engolido o veneno lá como aqui.
Foi ter, rapidamente, ao andar térreo, onde a proprietária chorava, cercada por quatro vizinhas.
— Onde estão os pratos, os copos do jantar?
Ela precisou de alguns instantes para compreender. E, quando quis responder, ele já vira, na cozinha, uma bacia de água ainda quente, pratos limpos à direita, sujos à esquerda, e copos.
— Eu estava justamente ocupada em lavar a louça quando... Um agente de polícia se apresentava.
— Guarde a casa. Ponha todo mundo para fora, exceto a proprietária. E nada de jornalistas ou fotógrafos. Que ninguém toque num copo ou num prato.
Havia quinhentos metros a percorrer na borrasca para voltar ao hotel. A cidade estava às escuras. Restavam quando muito duas ou três janelas acesas, a grande distância umas das outras.
Na praça, ao contrário, no ângulo do cais, os três janelões esverdeados do Hôtel de 1'Amiral estavam iluminados, mas, por causa dos vitrais, davam a impressão de um monstruoso aquário.
De perto, percebiam-se vozes, uma campainha de telefone, o ronrom de um carro que se punha em marcha.
— Aonde vai? — perguntou Maigret. Dirigia-se a um jornalista.
— A linha está ocupada! Vou telefonar de outro lugar. Em dez minutos será tarde demais para a minha edição de Paris.
O Inspetor Leroy, de pé no meio da sala, tinha o ar de um bedel a vigiar o estudo da noite. Alguém escrevia sem trégua. O viajante parecia ainda apavorado, mas fascinado também, nessa atmosfera, nova para ele.
— Quando limparam as mesas? Emma procurou lembrar-se:
— Não saberia dizer. Levei uns tantos copos, aos poucos. Outros estão aí, desde a hora do almoço.
— E o copo de Le Pommeret?
— O que foi que ele bebeu, Dr. Michoux? — perguntou Emma.
Foi Maigret quem respondeu:
— Um conhaque com água. Ela verificou os pires, um a um.
— Seis francos... Mas servi um uísque a um desses senhores, e é o mesmo preço... Talvez seja este copo aqui... Talvez, não.
O fotógrafo, que não se deixava confundir, batia chapas de toda aquela massa de copos glaucos em exposição sobre as mesas de mármore.
— Vá buscar o farmacêutico! — ordenou Maigret a Leroy.
E aquela foi verdadeiramente a noite dos copos e da louça. Trouxeram ainda outros vários da casa do Vice-Cônsul da Dinamarca. Os repórteres penetravam no laboratório do farmacêutico como se estivessem em casa, e um deles, antigo estudante de medicina, participou, até, das análises.
O prefeito, ao telefone, contentara-se em dizer, com voz cortante:
— ...todas as suas responsabilidades...
Não se encontrava nada. De repente surgiu o patrão perguntando:
— O que foi feito do cão?
O reduto onde o tinham posto deitado na palha estava vazio. O cão amarelo, incapaz de andar por si mesmo e, até, de arrastar-se, por causa da atadura que imobilizava seus quartos traseiros, desaparecera.
Os copos nada revelaram.
— O do Sr. Le Pommeret talvez tenha sido lavado antes... Não sei mais... Também, nessa confusão... — dizia Emma.
Em casa da senhoria, metade da louça fora igualmente passada em água quente.
Ernest Michoux, cuja tez se fizera terrosa, preocupava-se sobretudo com a desaparição do cão.
— Foi pelo pátio que vieram buscá-lo. Há uma entrada que dá para o cais. Uma espécie de beco. Haveria que condenar essa porta, comissário. Senão... Pensar que alguém pôde penetrar aqui sem que ninguém percebesse! E retornar, com esse animal nos braços...
Dir-se-ia que ele não ousava deixar o fundo da sala e que se mantinha tão longe das portas quanto possível.
Capítulo V - O Homem do Cabélou
Eram oito horas da manhã. Maigret, que não se deitara, acabava de tomar um banho e barbeava-se em frente a um espelho suspenso ao fecho da janela.
Fazia mais frio do que nos dias precedentes. A chuva incerta parecia neve derretida. Um repórter, embaixo, espreitava a chegada dos jornais de Paris. Ouvira-se o apito do trem de sete e meia. Dentro de alguns instantes, chegariam os portadores das edições sensacionais.
Debaixo dos olhos do comissário, a praça estava ocupada pela feira semanal. Mas adivinhava-se que não tinha a animação habitual. As pessoas falavam em voz baixa. E os camponeses pareciam inquietos com o que ouviam.
No terrapleno, havia, já, umas cinqüenta barracas, com montes de manteiga, ovos, legumes, suspensórios e meias de seda. À direita, estacionavam caleças de todos os modelos possíveis; e o conjunto era dominado pela passagem fugidia das grandes coifas brancas e aladas, de renda aberta.
Maigret só percebeu que alguma coisa de insólito se passava quando viu toda uma grande secção do mercado mudar bruscamente de aspecto, com as pessoas a se aglutinarem olhando na mesma direção. Não podia ouvir os sons, ou melhor, o que ouvia era apenas um rumor confuso.
Procurou mais longe. No porto, alguns pescadores carregavam os barcos com cestos vazios e redes. Mas também eles se imobilizaram de chofre, abrindo caminho a dois policiais da cidade que conduziam um prisioneiro à prefeitura.
Um dos policiais era jovem e imberbe. Sua fisionomia respirava inocência. O outro ostentava grandes bigodes cor de acaju e sobrancelhas tão espessas que lhe conferiam, quase, um ar terrível.
Na feira-livre, as discussões tinham cessado. Todos olhavam os três homens que se aproximavam. As pessoas apontavam umas às outras as algemas que prendiam os pulsos do malfeitor.
Era um colosso! Caminhava curvado para a frente, o que fazia com que suas espáduas parecessem ainda mais largas. Arrastava os pés na lama, e era ele quem parecia puxar os agentes a reboque.
Vestia uma jaqueta comprida, indefinida. A cabeça descoberta tinha cabelos duros, muito curtos e castanhos.
Um jornalista subia a escada às carreiras, batia uma porta, gritava ao seu fotógrafo, ainda na cama:
— Benoît! Benoît! Depressa! Levanta! Um flagrante incrível!
Não sabia que dizia tão bem. Pois, enquanto Maigret enxugava os últimos traços de sabão no rosto e procurava o paletó, sem tirar os olhos da praça, passou-se alguma coisa de verdadeiramente extraordinário.
A multidão não havia demorado a cerrar-se em torno dos policiais e do prisioneiro. Bruscamente, este, que devia, de há muito, esperar por uma ocasião propícia, deu uma violenta sacudidela nos seus dois punhos.
De longe, o comissário viu os lamentáveis troços de corrente pendentes dos pulsos dos policiais. Quanto ao homem, metera-se pela multidão. Uma mulher rolou por terra. Algumas pessoas fugiram. Ninguém se recobrara ainda do estupor, e já o prisioneiro se enfiara num beco sem saída, a vinte metros do Hotel de l'Amiral, bem ao lado da casa desabitada cuja fenda de cartas cuspira uma bala de revólver na semana anterior.
Um dos agentes, o mais jovem, quis atirar, hesitou, pôs-se a correr também, levando a arma de tal maneira que Maigret pressentiu o acidente. Uma das bancas de madeira cedeu à passagem dos dois homens em disparada e seu teto de lona desabou sobre a pirâmide de manteiga.
O jovem policial teve a coragem de precipitar-se sozinho no beco. Maigret, que conhecia o lugar, acabou de vestir-se sem pressa.
Só por milagre se apanharia, agora, o brutamontes. A ruela, da largura de dois metros, fazia dois cotovelos, em ângulo reto. Vinte casas, que davam para o cais ou para a praça, tinham portas para o beco. E havia, além disso, telheiros, o depósito de um vendedor de cordas e artigos para barcos, o armazém de conservas em lata, toda uma confusão de construções irregulares, cheias de recantos e escaninhos, que tornavam qualquer perseguição quase impraticável.
A multidão, agora, mantinha-se a distância. A mulher que fora derrubada, rubra de indignação, sacudia o punho fechado em todas as direções, vertendo lágrimas que lhe vinham tremeluzir no queixo.
O fotógrafo saiu descalço do hotel, com a capa de chuva por cima do pijama.
Meia hora mais tarde, aproximadamente, chegava o prefeito, pouco depois do tenente de polícia, cujos homens acharam de seu dever revistar as casas da vizinhança.
Dando com Maigret abancado no café em companhia do jovem agente e ocupado em devorar torradas, o primeiro magistrado da cidade pôs-se a tremer de indignação:
— Eu o tinha prevenido, comissário, que o responsabilizaria por... por... Mas isso não pareceu impressioná-lo. Pois vou passar agora mesmo um telegrama ao Ministro do Interior, para pô-lo ao corrente de... da... O senhor pelo menos viu o que se passou aí fora? Pessoas abandonando as próprias casas! Um inválido a ganir de pavor porque foi deixado num segundo andar, e é paralítico... Viam o bandido por toda parte!
Maigret voltou-se, e avistou Ernest Michoux que, como um menino assustado, mantinha-se o mais próximo dele que podia e isso sem mais ruído do que um fantasma.
— O senhor não ignora que foi a polícia local, quero dizer, simples agentes de polícia, que o detiveram; enquanto que...
— O prefeito deseja mesmo que eu proceda a uma prisão?
— O que quer dizer com isso? Pretenderá apanhar o fugitivo?
— O senhor me pediu ontem que eu detivesse alguém, qualquer pessoa...
Os jornalistas estavam na rua, ajudando os gendarmes na busca. O café estava quase vazio e em desordem. Não houvera tempo ainda para limpá-lo. O cheiro acre de tabaco dormido pegava-se à garganta. E os sapatos pisavam em pontas de cigarro, escarros, serragem, copos quebrados.
O comissário, entrementes, sacara do bolso uma ordem de prisão em branco.
— Diga uma palavra, senhor prefeito, e eu...
— Intriga-me quem o senhor prenderia.
— Emma, pena e tinta, por favor.
Fumava em pequenas baforadas. Ouviu quando o prefeito resmungou, justamente para ser ouvido:
— Um blefe!
Mas não se deu por achado. Escreveu com uma caligrafia habitual, de hastes um tanto esborrachadas:
".. .Ernest Michoux, administrador da Sociedade Imobiliária de Sables Blancs..."
Foi mais cômico do que trágico. O prefeito leu o texto invertido.
Maigret disse:
— Aí está! Uma vez que é de seu desejo, prendo o doutor. Este olhou para um e para outro, esboçou um sorriso amarelo, como um homem que não sabe como comportar-se em face de uma brincadeira de mau gosto. Mas era Emma que o comissário observava. Emma, que se encaminhava para a caixa, e que se virou, de súbito, menos pálida do que de ordinário, e incapaz de disfarçar um estremeção de júbilo.
— Suponho, comissário, que o senhor se dá conta da gravidade do...
— É meu ofício, senhor prefeito.
— E tudo o que o senhor acha de fazer, depois do que se passou, é deter um dos meus amigos... dos meu camaradas, mais exatamente... enfim, um dos notáveis de Concarneau, um homem que...
— O senhor tem uma prisão confortável?
Michoux, nesse meio tempo, parecia preocupado apenas em engolir a própria saliva.
— Além do posto de polícia, na prefeitura, não há mais que a gendarmeria, na cidade velha.
O Inspetor Leroy acabava de entrar. Perdeu a respiração quando Maigret lhe disse, com toda a naturalidade:
— Vamos, meu velho. Tenha a bondade de acompanhar o doutor, preso, até a gendarmeria. Discretamente. Inútil botar-lhe algemas. O senhor o trancafiará, cuidando para que nada lhe falte...
— É pura sandice! — balbuciou q médico. — Não entendo nada. Eu... É inaudito! É uma infâmia!
— Com os diabos! — resmungou Maigret.
E voltando-se para o prefeito:
— Não me oponho a que continuem caçando o seu vagabundo. Isso distrai a população. Talvez até seja útil. Mas não dê muita importância à sua eventual captura. Tranqüilize as pessoas.
— Sabe que quando lhe deitaram a mão, hoje cedo, tinha em seu poder uma arma branca de porte proibido?
— Não é de todo impossível...
Maigret começava a perder a paciência. De pé, vestiu seu pesado sobretudo de gola de veludo, alisou com a manga o chapéu-coco.
— Até logo, senhor prefeito. Procurarei mantê-lo informado. Ainda um conselho: que não fale demais com os jornalistas. No fundo, espremendo toda essa história, não haverá caldo nenhum. Vem comigo?
Essas, últimas palavras eram dirigidas ao jovem agente de polícia, que olhou para o prefeito como se lhe dissesse: "Perdão, mas o senhor bem vê que sou obrigado a segui-lo.
O Inspetor Leroy rondava o médico com ar perplexo.
Viu-se Maigret dar um tapinha afetuoso no rosto de Emma, ao passar por ela, indiferente à bisbilhotice das pessoas.
— É por aqui?
— É. Cumpre contornar o ancoradouro. Levará uma boa meia hora.
Os pescadores estavam menos alterados pela tragédia, que tinha por fulcro o Café de 1'Amiral, que o resto da população. E uma dúzia de barcos, aproveitando a calmaria relativa, dirigia-se, na ginga, para a barra, onde desfraldariam as velas.
O agente de polícia lançava a Maigret olhares de aluno que deseja agradar ao professor.
— O comissário sabe... O senhor prefeito e o doutor jogavam cartas juntos pelo menos duas vezes por semana. Isso deve ter sido um golpe para ele.
— E o que dizem os moradores da cidade?
— Isso varia. Os pobres, operários, pescadores, não se importam grande coisa. Parecem, inclusive, contentes, até certo ponto, com o que acontece... Porque o doutor, o Sr. Le Pommeret e o Sr. Servières não tinham reputação muito boa. Eram importantes, evidentemente. Ninguém ousava fazer-lhes restrições. O que não quer dizer que não abusassem um pouco. Punham no deboche todas as mocinhas da fábrica. No verão, com seus amigos de Paris, a coisa era ainda pior. Estavam sempre bebendo e fazendo baderna nas ruas às duas horas da manhã, como se a cidade lhes pertencesse. Muitas vezes recebemos queixas. Sobretudo no que concerne ao Sr. Le Pommeret, que não podia ver um rabo-de-saia sem sair embalado atrás. É triste dizer isso... Mas as fábricas já não trabalham tanto quanto antigamente... Há desemprego. Então, fazem por dinheiro... Todas essas moças...
— Se é assim, quem se comove com os crimes?
— Os outros! Os burgueses! E os comerciantes, que andam de braços dados com o grupo do Café de 1'Amiral. Aquilo era como que o centro da cidade, não é mesmo? Até o prefeito ia lá...
O agente estava lisonjeado com a atenção que Maigret lhe prestava.
— Onde estamos?
— Acabamos de sair da cidade. Daqui para a frente, a costa é mais ou menos deserta. Não há mais que rochedos, bosques de abetos, algumas casas de campo habitadas apenas no verão, por gente de Paris. É o que nós chamamos Ponta do Cabélou.
— Quem lhe deu a idéia de farejar por esses lados?
— Quando o senhor nos disse, a mim e ao meu colega, que procurássemos um vagabundo que poderia ser o dono do cão amarelo, esquadrinhamos primeiro os velhos barcos do fundo do porto. De tempos em tempos, desentoca-se um andarilho por lá. No ano passado ardeu um veleiro, porque um vadio se esqueceu de apagar o foguinho que acendera para aquecer-se.
— E encontraram algo?
— Nada. Foi meu colega quem se lembrou do antigo posto de guarda do Cabélou. Estamos chegando. O senhor vê aquela construção pesada, em pedra de cantaria, na parte mais avançada da rocha? Pois data da mesma época das fortificações da cidade velha. Venha por aqui. E cuidado com a sujeira. Em outros tempos, morava um vigia aqui, um guarda, por assim dizer, cuja missão era anunciar as passagens de barcos. Desse ponto vê-se bem longe. Domina-se a passagem das Glénan, único acesso à enseada. Mas há quase uns cinqüenta anos que o posto foi abandonado.
Maigret franqueou uma passagem, cuja porta de há muito desaparecera, penetrando numa peça cujo chão era de terra batida. Pequenas seteiras abriam para o mar. Do outro lado, uma só janela, sem vidros nem alisares.
E, nas paredes, inscrições feitas a ponta de faca. Por terra, papéis sujos, detritos inumeráveis.
— Aí está. Durante quinze anos, um homem viveu aqui sozinho. Um pobre de espírito. Uma espécie de selvagem. Dormia naquele canto ali, indiferente ao frio, à umidade, às tempestades que lançavam água do mar pelas seteiras. Era uma curiosidade. Os parisienses vinham vê-lo no verão, davam-lhe moedas. Um vendedor de cartões-postais teve a idéia de fotografá-lo e vender esses retratos de porta em porta. O homem acabou por morrer durante a guerra. Ninguém jamais pensou em limpar o local. Imaginei, ontem, que se alguém quisesse esconder-se nesta área, aqui seria um bom lugar.
Maigret meteu-se por uma escada estreita, de pedra, escavada na espessura da parede, e chegou a uma guarita, ou melhor, a uma torre de granito, aberta dos quatro lados, que permitia contemplar toda a região.
— Era o posto de vigilância. Antes da invenção dos faróis, acendia-se uma fogueira no terraço. Assim, hoje cedo, meu colega e eu estivemos aqui. Avançamos na ponta dos pés. Embaixo, no lugar exato em que dormia outrora o louco, vimos um homem que ressonava. Um colosso! Ouvia-se a sua respiração a quinze metros. E chegamos a passar-lhe as algemas antes que acordasse.
Tinham descido para o quarto quadrado, que as correntes de ar faziam glacial.
— Ele se debateu?
— Nem isso. Meu colega pediu-lhe documentos, e ele não respondeu. O senhor não o viu. Pois sozinho é mais forte que nós dois juntos. A tal ponto que não deixei um momento o revólver. Que mãos! As suas são grandes, não é? Pois bem, imagine mãos duas vezes maiores, e com tatuagens!
— Você viu o que representavam?
— Vi apenas uma âncora, na mão esquerda, e as letras "S.S." dos dois lados. Mas havia outros desenhos, mais complicados... Talvez. uma serpente? Não tocamos em nada do que estava por terra. Veja!
Havia de tudo: garrafas de vinho fino, de destilados de luxo, latas de conservas vazias, e uma vintena de outras garrafas intactas.
Havia mais: as cinzas de um fogo que fora aceso no meio da sala e, perto dele, um osso de pernil, já depenado. Côdeas de pão. Espinhas de peixe. Um coquille saint-jacques, pinças de lagosta.
— Sensacional! — extasiava-se o agente, que, provavelmente, jamais tomara parte num festim igual. — Isso explica tudo, as queixas que temos recebido nos últimos tempos... Não lhes tínhamos dado grande atenção, porque não se tratava de furtos importantes. Um pão de seis libras subtraído ao padeiro, um cesto de pescadinhas, de um barco pesqueiro. O gerente do depósito, Prunier, jurava que lhe tiravam lagostas de noite.
Maigret fazia um estranho cálculo mental, tentava estabelecer em quantos dias um homem de apetite poderoso poderia ter devorado o que fora consumido ali.
— Uma semana — murmurou. — Sim. Inclusive o pernil. De súbito perguntou:
— E o cão?
— Justamente! Nós não o achamos. Há, sem dúvida, marcas de patas no chão, mas não vimos o animal. O senhor sabe, o prefeito deve estar subindo pelas paredes por causa do doutor. Não me admiraria se telegrafasse mesmo a Paris, como disse.
— Seu homem estava armado?
— Não. Eu mesmo vasculhei os bolsos dele, enquanto meu colega Piedboeuf, que estava com as algemas, o subjugava com a outra mão. Num bolso das calças tinha castanhas assadas. Quatro ou cinco. Ora, isso deve provir da carrocinha que estaciona aos sábados e domingos defronte do cinema. Depois, algumas moedas soltas. Não chegavam a dez francos. Uma faca... Mas não uma faca terrível. Uma faca' como essas de que se servem os marujos para cortar pão.
— Ele não disse palavra?
— Nada. A tal ponto mudo que eu e meu colega pensamos que era simples de espírito como o antigo locatário. Olhava-nos como um urso. Tinha uma barba de uma semana na cara e dois dentes quebrados bem no meio da boca...
— E as roupas?
— Como dizer-lhe? Um terno velho. Nem sei mais se, por baixo, tinha camisa ou alguma espécie de malha. Ele nos seguiu documente. Estávamos orgulhosos de nossa presa. Teria podido fugir dez vezes antes de chegarmos à cidade. Tão confiante estávamos, que, com um só arranco, rebentou as correntes das algemas. Pensei por um momento que meu punho tivesse sido arrancado. Tenho ainda a marca. Agora: a propósito do Dr. Michoux...
— Sim?
— O senhor sabe que a mãe dele deve voltar hoje ou amanhã. É viúva de um deputado. Diz-se que tem ainda muita influência. E é unha e carne com a mulher do prefeito.
Maigret olhava o oceano através das seteiras. Pequenos barcos a vela se insinuavam entre a Ponta do Cabélou e um escolho que a ressaca deixava perceber, viravam de bordo e iam lançar as redes a menos de uma milha.
— O senhor acredita mesmo que foi o doutor que...
— Vamos embora! — disse o comissário.
A maré subia. Quando saíram, a água começava a lamber a plataforma. A cem metros deles, um garoto saltava de rocha em rocha, apanhando cestas de pesca que pusera nos ocos para pegar lagostas. O jovem agente não se resignava ao silêncio.
— O mais extraordinário é que tenham atacado o Sr. Mostaguen, que é o melhor homem de Concarneau. Até quiseram fazê-lo conselheiro-geral. Parece que está fora de perigo, mas a bala não pôde ser extraída. Por toda a vida guardará um pedaço de chumbo no ventre! Quando se pensa que se não fosse a idéia de acender um charuto...
Não contornaram as bacias, mas atravessaram uma parte do porto, na balsa que faz o transporte entre a passagem e a cidade velha.
A pequena distância do local onde, na véspera, meninos lançavam pedras ao cão amarelo, Maigret divisou um muro, uma porta monumental coroada por uma bandeira e as palavras: Gendarmeria Nacional.
Atravessou o pátio de um edifício, que datava, sem dúvida, de Colbert. Numa sala, o Inspetor Leroy discutia com um subalterno.
— O doutor? — perguntou Maigret.
— Justamente! O sargento aqui não quer saber de refeições vindas de fora...
— Ou será sob sua responsabilidade! — disse o sargento a Maigret. — E nesse caso eu lhe pediria um documento qualquer que resguarde a minha responsabilidade...
O pátio era calmo como o de um claustro. Até uma fonte cantava, com amável gorgolejo.
— Onde está ele?
— Lá no fundo, à direita. O senhor pode empurrar a porta. É depois da segunda porta do corredor. Gostaria que eu vá abri-la? O prefeito telefonou para recomendar que tratássemos o prisioneiro com toda a consideração.
Maigret cocou o queixo. O Inspetor Leroy e o policial, que eram quase da mesma idade, olhavam-no timidamente mas com idêntica curiosidade.
Alguns instantes mais tarde, o comissário entrava sozinho numa cela de paredes caiadas de branco, não mais triste que um quarto de caserna.
Michoux, sentado a uma pequena mesa de madeira branca, levantou-se à sua chegada, hesitou um momento, e começou, olhando para outro lado:
— Suponho, comissário, que o senhor representa essa comédia apenas para evitar um novo drama, para pôr-me ao abrigo de... dos golpes...
Maigret notou que não lhe haviam retirado nem o foulard nem os suspensórios, nem os cordões dos sapatos, como seria de rigor. Puxou, com a ponta do pé, uma cadeira, sentou-se, encheu um cachimbo e resmungou, de bom humor:
— Com mil diabos! Mas sente-se também, doutor!
Capítulo VI - Um Covarde
— O senhor é supersticioso, comissário?
Maigret, a cavalo na madeira, os cotovelos apoiados ao encosto, esboçou um muxoxo que podia significar tudo o que se quisesse. O doutor não se sentara.
— Penso que, no fundo, em determinado momento, todos nós o somos ou, se prefere, no momento em que nos sentimos visados.
Tossiu num lenço, que olhou com preocupação, e prosseguiu:
— Há oito dias, eu lhe teria respondido que não acreditava em oráculos... E, no entanto... Faz talvez cinco anos. Éramos uns poucos amigos, a jantar, em casa de uma atriz em Paris. Ao café, alguém propôs que tirássemos a sorte no baralho. Pois bem, sabe o que me anunciaram? Pode imaginar como ri! Ri, sobretudo, porque a coisa escapava ao padrão habitual: dama loura, senhor de idade que só lhe deseja o bem, carta que vem de longe, etc. A mim disseram: "O senhor terá morte atroz, morte violenta. Cuidado com os cães amarelos..."
Ernest Michoux ainda não olhara o comissário, mas a essa altura pôs nele os olhos por um breve instante. Maigret tinha um ar plácido. Era, até, enorme na sua pequena cadeira, a imagem da placidez.
— Isso não lhe causa espanto? Anos a fio, jamais ouvi falar de cão amarelo. Sexta-feira, rebenta o drama. Um dos meus amigos é a vítima. Poderia ter sido eu que me refugiasse naquele portal e fosse atingido pela bala. E eis que surge um cão amarelo! Outro amigo desaparece em circunstâncias inacreditáveis. E o cão amarelo continua a rondar por perto... Ontem, foi a vez de Le Pommeret... De novo o cão amarelo! E o senhor não quer que eu esteja impressionado?
Jamais dissera tanta coisa de um fôlego sô e, à medida que falava, caía em si. Como único encorajamento, o comissário suspirou:
— Evidentemente... Evidentemente...
— Não é para deixar alguém perturbado? Dou-me conta de que devo parecer covarde aos seus olhos. Pois bem. Sim, tenho medo. Um medo vago, que me aperta a garganta desde a primeira tragédia e, principalmente, desde que entrou em cena o cão amarelo.
Ele media a cela em passos miúdos, olhando para o chão. Seu rosto se animava:
— Quis pedir-lhe proteção, mas temia fazê-lo rir. Tenho mais medo ainda do seu desprezo. Os homens fortes desprezam os covardes.
Sua voz se fazia aguda:
— Confesso-o, comissário, sou um covarde. Há quatro dias que tenho medo, há quatro dias que sofro de medo. Não é culpa minha! Sou médico há tempo suficiente para me dar conta exatamente do meu caso. Quando nasci, por pouco não me puseram numa incubadora. Menino, colecionei, por assim dizer, todas as doenças infantis. E quando veio a guerra, médicos que examinavam quinhentos homens por dia julgaram-me apto para o serviço e me enviaram ao front. Ora, não só eu tinha fraqueza pulmonar com cicatrizes de antigas lesões, mas havia extraído dois anos antes um rim. Tive medo. Medo de ficar louco. Uma vez," quando a deflagração de um obus me enterrou num buraco, fui retirado por enfermeiros... Por fim, perceberam que eu não era, afinal, tão assim apto para o serviço... Isso que lhe conto talvez não seja bonito. Mas eu o venho observando, comissário. Tenho a impressão de que é capaz de compreender. É fácil o desprezo dos fortes pelos covardes. Cumpriria apenas pesquisar as causas profundas da covardia. .. Veja só. Percebi que olhava sem simpatia o nosso grupo do Café de 1'Amiral. Disseram-lhe que eu me ocupava da venda de terrenos. Filho de um antigo deputado. Formado em medicina. E essas noitadas em torno de uma mesa de café, com outros fracassados. Mas que podia fazer? Meus pais gastavam muito, embora não fossem ricos. Isso não é raro em Paris. Fui criado no luxo. As grande estações de águas... Depois, morre meu pai, e minha mãe começa a fazer pequenas operações na Bolsa, a negociar... sempre tão grande senhora quanto antes, sempre tão orgulhosa, mas perseguida sem trégua pelos credores... Eu a ajudei. Esse loteamento foi tudo o que pude fazer. Nada de prestigioso. E esta vida aqui! Os notáveis! Mas com alguma coisa de precário... Há três dias que o senhor me observa e que tenho vontade de falar-lhe de coração aberto. Fui casado. Minha mulher pediu divórcio, queria um homem animado de ambições mais altas. Um rim de menos .. Três ou quatro dias por semana a me arrastar, doente, fatigado, da cama para uma poltrona.
O médico sentou-se, lasso:
— Emma lhe terá contado que fui seu amante. Estupidamente, é verdade, mas às vezes se tem necessidade de uma mulher. Não é possível explicar essas coisas a toda gente. No Café de 1'Amiral, eu talvez acabasse louco, um dia... O cão amarelo... Servières desaparecido... As manchas de sangue no seu automóvel... E, sobretudo, essa morte ignóbil de Le Pommeret... Por que ele? Por que não eu? Estávamos juntos duas horas antes, à mesma mesa, em face dos mesmos copos... E eu que tinha o pressentimento de que, se saísse de casa, seria a minha vez... Depois, senti que o cerco se apertava, que, mesmo no hotel, no meu quarto, o perigo me perseguia. Estremeci de alegria quando vi que assinava minha ordem de prisão. E, no entanto...
Olhou as paredes em torno, a janela com as três barras de ferro, que dava para o pátio.
— Será preciso que eu mude meu catre de lugar, que o ponha neste canto. Como podiam ter falado de um cão amarelo cinco anos antes, quando esse cão, sem dúvida, nem nascido era? Tenho medo, comissário! Eu lhe confesso, eu grito que tenho medo. Pouco me importa o que pensarão as pessoas quando souberem que estou preso. O que não quero é morrer. E há alguém que me espreita, alguém que eu não conheço, e que já matou Le Pommeret, que sem dúvida matou Goyard, que atirou em Mostaguen... Por quê? Diga. Por quê? Um louco, provavelmente. E não foi possível ainda abatê-lo. Está livre! Ronda, talvez, agora mesmo, em volta de nós. Sabe que estou aqui. E virá, com seu medonho cão, um cão que tem olhar humano.
Maigret levantou-se, bateu o cachimbo contra o salto do sapato. E o médico repetiu, numa voz lamentável:
— Sei que dou ao senhor a impressão de um covarde... Aí está! Estou certo de que esta noite vou sofrer como um condenado por causa do meu rim.
Maigret, de pé, era a antítese do prisioneiro, da agitação, da febre, da doença, a antítese desse pavor malsão, repugnante.
— O senhor quer que lhe mande um médico?
— Não. Se eu soubesse que viria alguém, teria ainda mais medo. Pensaria que seria ele, o homem do cão, o louco, o assassino.
Um pouco mais, e ele bateria os dentes.
— O senhor pensa que vai prendê-lo, abatê-lo como a um animal enlouquecido? Porque ele está enlouquecido! Ninguém mata assim, sem razão!
Três minutos mais, e a crise nervosa se declararia. Maigret preferiu sair, enquanto o detido o seguia com o olhar, pescoço enfiado nos ombros, pálpebras vermelhas.
— O senhor me compreendeu, sargento? Que ninguém entre na cela dele, salvo o senhor, que lhe levará pessoalmente a comida e tudo mais que pedir. Por outro lado, não deixe nada à mão, de que ele se possa servir como arma para matar-se. Retire-lhe a gravata, os cordões dos sapatos... Que o pátio seja vigiado, noite e dia. E muita consideração, toda a consideração...
— Um homem tão fino! — suspirou o sargento. — O senhor acredita que ele...
— ...possa ser a próxima vítima? Sim! O senhor fica responsável pela vida dele.
E Maigret se foi, pela rua estreita, patinhando nas poças d'água. Toda a cidade já o conhecia. As cortinas buliam à sua passagem. As crianças paravam de brincar para olhá-lo, com um respeito mesclado de temor.
O comissário atravessava a ponte levadiça que liga a cidade velha à cidade nova quando encontrou o Inspetor Leroy, que andava à sua procura.
— Alguma novidade? Não apanharam o meu urso, pelo menos?
— Que urso?
— O homem dos pés grandes.
— Não. O prefeito deu ordem de abandonar as buscas, que alarmavam a população. Postou, no entanto, alguns gendarmes em pontos estratégicos. Mas não era disso que eu lhe queria falar. Era a propósito do jornalista Goyard, dito Jean Servières. Um caixeiro-viajante que o conhece, e que acaba de chegar, assegura havê-lo encontrado ontem, em Brest. Goyard fingiu que não o viu e virou a cara.
O inspetor ficou impressionado com a tranqüilidade com que Maigret recebeu a notícia.
— O prefeito está persuadido de que o viajante se enganou. E quer saber o que eu ouvi-o dizer ao seu adjunto, a meia voz sem dúvida, mas talvez na esperança de que eu escutasse? Textualmente: "Vocês verão o comissário lançar-se nessa pista falsa, partir para Brest e deixar-nos a braços com o verdadeiro assassino!"
Maigret fez uns vinte passos em silêncio. Na praça, desmontavam-se as barracas da feira.
— Por pouco eu não lhe respondia que...
— Que o quê?
Leroy corou, desviou o olhar.
— Justamente, não sei bem. Tive a impressão, eu mesmo, de que o senhor não atribuía grande importância à captura do vagabundo...
— Como vai Mostaguen?
— Melhor. Ele não tem explicação para o ataque de que foi vítima. Pediu perdão à mulher. Perdão por haver ficado até tão tarde no café! Perdão por se ter embriagado. Jurou, chorando, que nunca mais botará uma gota de álcool na boca.
Maigret se detivera de frente para o porto, a cinqüenta metros do Hotel de 1'Amiral. Havia barcos entrando, que baixavam a vela castanha ao contornar o molhe, e avançavam lentamente, só com a ginga.
A jusante, eram visíveis, ao pé das muralhas da cidade velha, bancos de lodo entupidos de caçarolas velhas e detritos.
Adivinhava-se o sol, por trás da abóbada uniforme de nuvens.
— Sua impressão, Leroy?
O inspetor se perturbou ainda mais.
— Não sei... Note que o cão amarelo desapareceu de novo... Que poderia estar fazendo em casa do doutor? Haverá venenos por lá seguramente... Deduzo...
— Estou curioso. Apesar de tudo, gostaria de ver o vagabundo de perto. As pegadas mostram que se trata de um colosso.
— Justamente!
— O que quer dizer com isso?
— Nada.
Maigret estava imóvel, parecia deslumbrado com o panorama do pequeno porto, a Ponta do Cabélou, à esquerda, com seu bosque de abetos e seus acessos rochosos, a baliza vermelha e negra, as bóias escarlates que marcavam a passagem até as Ilhas Glénan, que a cerração não permitia perceber muito bem.
O inspetor parecia ter ainda muita coisa a dizer.
— Telefonei a Paris, a fim de me informar sobre Goyard, que viveu muito tempo...
Maigret olhou-o com afetuosa ironia, e Leroy, melindrado, recitou depressa:
— As informações são muito boas ou muito más... Tinha na outra ponta do fio um antigo policial da Delegacia de Costumes, que conheceu Goyard pessoalmente. Parece que ele se moveu muito tempo nas fímbrias, por assim dizer, do jornalismo. Primeiro foi cronista social, depois secretário-geral de um pequeno teatro... Depois, diretor de um cabaré em Montmartre... Teve duas falências... Foi redator-chefe, durante dois anos, de uma folha de província, em Nevers, acho. Por fim, esteve à frente de uma boate. "É alguém que sabe manter-se à tona..." São as próprias palavras do policial. É verdade que acrescentou: "Um sujeito decente; quando percebeu que acabaria por devorar o pouco que tinha e por meter-se em confusões, preferiu voltar para a província."
— E então?
— Então, eu me pergunto: por que teria simulado essa agressão? Porque eu vi o automóvel de novo. Há manchas de sangue nele, das boas. E se houve agressão, por que não dar sinal de vida, se pode passear em Brest?
— Muito bem.
O inspetor olhou rápido para Maigret, a fim de verificar se não estaria brincando. Mas não. O comissário tinha o ar grave, o olhar fixo numa mancha de sol que nascia ao longe, sobre o mar.
— Quanto a Le Pommeret?
— Você tem alguma informação confidencial?
— O irmão dele veio ao hotel para falar com o senhor. Não podia esperar. Disse-me as piores coisas do falecido. Pelo menos a seu ver o que me contou é grave: um vagabundo. Duas paixões: as mulheres e a caça. E mais: a mania de fazer dívidas e de bancar o grão-senhor. Um pormenor entre uma centena. O irmão, que é mais ou menos o maior industrial do lugar, declarou-me: "Eu me contento de fazer minhas roupas em Brest. Não são de luxo, mas são duráveis e cômodas. Yves ia a Paris encomendar as suas. E fazia questão de calçados sob medida, feitos num grande sapateiro. Minha mulher, que é minha mulher, não usa sapatos sob medida!
— Impagável — fez Maigret, para espanto senão indignação do seu companheiro.
— E por quê?
— Ou magnífico, se assim prefere. Segundo sua expressão de há pouco, é um verdadeiro mergulho na vida da província isso que fazemos os dois. E parece-me deveras fascinante. Saber se Pommeret usava sapatos comprados na loja ou feitos expressamente para ele! À primeira vista, não tem grande significação. Pois bem — e creia-me se o quiser — está aí o nó do drama todo. Vamos tomar o aperitivo, Leroy! Onde esses ilustres personagens tomavam-no diariamente, no Café de 1'Amiral.
O inspetor olhou de novo seu chefe, perguntando-se mais uma vez se não estaria a caçoar dele. Esperara felicitações por sua atividade matinal, pelas suas iniciativas.
E Maigret tinha o ar de levar tudo na brincadeira.
Ao entrarem, houve a mesma comoção de uma sala de aula à chegada do professor. Todas ás conversas cessaram. Os jornalistas se precipitaram para o comissário.
— Podemos anunciar a prisão do doutor? Ele confessou?
— Absolutamente.
Maigret afastava-os com um gesto, dizia a Emma:
— Dois Pernods, minha filha.
— Mas, enfim, se o senhor prendeu o Dr. Michoux...
— Querem saber a verdade?
Eles já tinham seus blocos à mão e esperavam, de caneta em riste:
— Pois bem, não se conhece ainda a verdade. Talvez venhamos a conhecê-la um dia. Talvez não.
— Pretende-se que Jean Goyard...
— ...está vivo? Tanto melhor para ele.
— O que não impede que seja um homem procurado, perseguido, até o momento, em vão...
— O que prova a inferioridade do caçador diante da caça.
E Maigret, retendo Emma pela manga, disse-lhe docemente:
— Mande servir meu almoço no quarto.
Depois, engoliu seu aperitivo de um trago e levantou-se.
— Um bom conselho, senhores. Nada de conclusões prematuras. E, sobretudo, nada de deduções.
— Mas, e o culpado?
O comissário alçou suas largas espáduas, e disse num sopro:
— Quem sabe?
Já estava ao pé da escada. O Inspetor Leroy lançava-lhe um olhar interrogativo.
— Não, meu velho. Coma na mesa comum. Preciso descansar...
Ouviram seus passos, que galgavam os degraus um tanto pesadamente. Emma subiu, por sua vez, com uma bandeja cheia de hors-d'oeuvres.
Depois, viram-na levar uma coquille saint-jacques e um assado de vitela com espinafres.
Na sala de jantar, a conversa esmorecia. Um dos jornalistas foi chamado ao telefone, e declarou:
— Por volta das quatro horas, sim! Espero mandar um artigo sensacional. Mas não ainda. Há que esperar.
Só, à sua mesa, Leroy comia com maneiras de um menino bem-educado, enxugando a cada instante os lábios no canto do guardanapo.
Os feirantes observavam a fachada do Café de 1'Amiral, esperando difusamente que alguma coisa se passasse.
Havia um gendarme na esquina da ruela por onde o vagabundo sumira.
— O senhor prefeito chama o Comissário Maigret ao telefone! Leroy se agitou, ordenou a Emma:
— Vá preveni-lo lá em cima! Mas a moça voltou e disse:
— Ele não está mais lá.
O inspetor subiu os degraus de quatro em quatro, voltou muito pálido, apanhou o fone:
— Alô! Senhor prefeito? Sim, senhor prefeito. Não sei... Eu... estou muito preocupado... O comissário não está mais aqui. Alô? Não, não sei dizer-lhe mais que isso. Ele comeu no quarto. Não o vi descer. Eu... Éu lhe telefonarei daqui a pouco.
E Leroy, que ainda tinha na mão o guardanapo, serviu-se dele para enxugar a testa.
Capítulo VII - O Casal da Vela
O inspetor subiu ao quarto meia hora mais tarde. Encontrou sobre a mesa um bilhete em caracteres Morse, que dizia:
"Venha encontrar-me esta noite no telhado por volta de onze horas. Sem ruído. Armado. Diga que parti para Brest, donde lhe teria telefonado. Não saia do hotel. Maigret."
Um pouco antes das onze, Leroy tirou os sapatos, calçou os chinelos de feltro que comprara depois do almoço expressamente para a tal expedição, que o deixara impressionado.
Depois do segundo andar não havia mais escadas, só uma de mão fixa, que desaparecia num alçapão, no teto. Lá em cima, eram águas furtadas varridas de correntes de ar, onde o inspetor arriscou-se a acender um fósforo.
Poucos instantes depois, franqueava a lucarna. Mas não ousou descer imediatamente para a cornija. Tudo era frio. Ao contacto das placas de zinco, seus dedos ficavam duros. E Leroy não tinha querido levar o trambolho de um sobretudo.
Quando seus olhos se acostumaram à obscuridade, pensou ver uma massa escura e atarracada, como um enorme animal à espreita. Suas narinas reconheceram as baforadas do cachimbo. Assobiou de leve.
Mais um momento e estava estirado de bruços na cornija, ao lado de Maigret. Não se via nem o mar nem a cidade. Encontravam-se na vertente do teto que dava para o cais, à beira de uma espécie de trincheira negra que não era outra coisa que o famoso beco por onde escapara o vagabundo dos pés grandes.
Todos os planos eram irregulares. Havia tetos muito baixos e outros da altura de dois homens. Aqui e ali, janelas acesas. Algumas tinham persianas contra as quais se projetavam silhuetas, como um teatro javanês de sombras. Num quarto ao longe uma mulher lavava um bebê numa bacia esmaltada.
A massa bruta do comissário mexeu-se, ou melhor, rastejou, até que sua boca colou-se à orelha do companheiro.
— Cuidado! Nada de movimentos bruscos. A cornija não é sólida, e há, logo abaixo de nós, uma calha pronta a degringolar com estrépito. Os jornalistas?
— Estão embaixo, exceto um, que procura o senhor em Brest, persuadido de que segue a pista de Goyard.
— E Emma?
— Não sei. Não prestei atenção nela. Serviu-me café depois do jantar.
Era de desorientar ficar assim, sem que ninguém suspeitasse, no alto de uma casa cheia de vida, de gente que circulava, no calor, na luz, sem precisar falar baixo.
— Bom. Vire-se devagar para o imóvel à venda. Devagar... Era a segunda casa à direita, uma das poucas que se igualavam ao hotel em altura. Achava-se num poço de escuridão completa e, no entanto, o inspetor teve a impressão de que uma luz se refletia numa vidraça sem cortina do segundo andar.
Pouco a pouco percebeu que não se tratava de um reflexo vindo de fora mas de uma fraca luz interior. A medida que fixava o mesmo ponto do espaço, coisas tomavam forma.
Um soalho encerado... Uma vela meio consumida, cuja chama subia, vertical, no centro de um halo...
— Ele está lá — disse de repente, elevando sem querer o tom de voz.
— Psiu! Sim...
Alguém estava deitado no chão, metade na parte iluminada pela vela, metade na penumbra. Via-se um sapato enorme, um grande torso moldado por uma camisa de malha de marinheiro.
Leroy sabia da existência de um gendarme na esquina do beco, de um segundo na praça, de mais outro que fazia a sentinela móvel ao longo do cais.
— O senhor vai prendê-lo?
— Não sei. Há três horas que dorme.
— Está armado?
— Não estava, esta manhã.
Adivinhavam-se apenas as sílabas proferidas. Era um murmúrio indistinto, misturado ao sopro das respirações.
— O que esperamos?
— Não sei... Quisera saber por que, estando cercado e tendo a intenção de dormir, ele acendeu uma vela. Atenção.
Um quadrado amarelo acabava de nascer numa parede.
— Alguém acendeu uma luz no quarto de Emma, logo abaixo de nós. Aquilo é o reflexo.
— O senhor jantou, comissário?
— Eu tinha pão e salame. Você está com frio?
Estavam gelados, todos dois. No céu, viam passar, a intervalos regulares, o raio luminoso do farol.
— Ela apagou a luz...
— Sim. Silêncio!
Houve cinco minutos de silêncio, de espera enfadonha. Depois, a mão de Leroy procurou a de Maigret, apertou-a de maneira significativa.
— Lá embaixo...
— Eu vi...
Uma sombra, contra o muro caiado que separava o jardim da casa desabitada e da viela.
— Ela vai ao encontro dele — sussurrou Leroy, que não podia resignar-se ao silêncio.
Em cima, o homem continuava a dormir, junto da sua vela. Alguém roçou uma groselheira no jardim. Um gato fugiu ao longo de uma calha.
— Você não terá um isqueiro de mecha e isca?
Maigret não ousava ,acender de novo seu cachimbo. Hesitou por muito tempo. Acabou por improvisar proteção com o paletó do companheiro, e riscou com força um fósforo enquanto o inspetor respirava outra vez o cheiro quente do tabaco.
— Olhe!
Não se disseram mais nada. O homem se levantou com um movimento tão brusco que quase derrubou a vela. Recuou para a sombra, enquanto a porta se abria e Emma aparecia no círculo da luz, hesitante e tão lamentável que dava impressão de culpa.
Levava algo sob o braço: uma garrafa e um embrulho, que depositou no chão. O papel se desfez em parte e deixou ver um frango assado.
Ela falava. Seus lábios se moviam. Disse apenas algumas palavras, humilde, tristemente. Mas seu companheiro não era visível para os policiais.
Será que ela chorava? Vestia o uniforme preto de garçonete, a touca bretã. Tirara apenas o avental branco, e isso lhe dava uma aparência ainda mais abatida do que de hábito.
Sim, talvez estivesse a chorar, enquanto falava. Ou pronunciava palavras soltas. A prova era que se apoiou, de súbito, à moldura da porta, e escondeu o rosto no braço dobrado. Seus ombros se elevavam numa cadência irregular.
O homem, surgindo à vista, escureceu quase completamente o retângulo da janela. Depois, desembaraçou de novo a perspectiva, indo para o fundo da sala. Sua mão enorme abateu-se sobre a espádua da moça, imprimindo-lhe tal sacudida que Emma rodopiou numa volta completa, esteve a pique de cair. Seu rosto, agora visível, estava macilento, os lábios inchados pelos soluços.
Mas tudo era impreciso e fora de foco, como quando se passa um filme e se acendem de novo as luzes da sala. E faltava uma outra coisa: os ruídos, as vozes...
Era como no cinema: mas cinema mudo.
O homem falava agora. Devia falar com veemência. Era um urso. A cabeça enfiada nos ombros, o torso apertado na camisa de malha, que fazia ressaltar os peitorais, os cabelos cortados rente como os de um forçado, os punhos nos quadris, cuspia recriminações, insultos ou, talvez, ameaças.
Devia estar prestes a bater-lhe. A tal ponto que Leroy procurou tocar Maigret, como que para tranqüilizá-lo.
Emma chorava. Sua touca estava, agora, de través. Seu coque, a ponto de desfazer-se e cair. Uma janela bateu em algum lugar.
— Comissário... Nós não...
O cheiro do tabaco envolvia os dois homens, dando-lhes uma ilusão de calor.
Por que Emma estaria, agora, de mãos postas? Falava de novo. Seu rosto parecia deformado por uma expressão de medo, de súplica, de dor. E o Inspetor Leroy sentiu que Maigret armava o revólver.
Não havia mais de quinze ou vinte metros entre os dois grupos. Um estalido seco, um vidro que voaria em pedaços, e o colosso seria posto fora de combate, já não poderia fazer mal.
Caminhava, agora, de um lado para o outro, as mãos encontraram o frango. Ele quase escorregou, e chutou-o com raiva para longe. O frango rolou, perdeu-se no escuro.
Emma acompanhou-o com os olhos.
Que poderiam estar a dizer, os dois? Qual seria a motivação daquele diálogo patético?
Porque o homem parecia repetir sempre as mesmas palavras. Mas não estaria a repeti-las cada vez com menos convicção?
Ela caiu de joelhos, atirou-se, na verdade, aos seus pés, estendendo-lhe os braços. Ele ignorou-a, evitou-a, e ela já não estava de joelhos, mas quase de bruços, um braço no ar, implorando.
Ora se via o homem, ora a sombra o engolia. Quando voltava, detinha-se junto da moça suplicante, e olhava-a de cima para baixo.
Pôs-se depois a caminhar, como antes, de um lado para outro. Aproximava-se, afastava-se de novo, e ela já não tinha forças ou coragem para estender o braço súplice na sua direção. Deixou-se cair de todo no soalho. A garrafa de vinho estava a menos de vinte centímetros de sua mão.
Foi imprevisto. O vagabundo inclinou-se, ou melhor, baixou uma de suas manoplas, apanhou o vestido pelo ombro e, de um golpe, pôs Emma de pé. Tudo isso tão brutalmente que ela vacilou quando não teve mais apoio.
Seu rosto desfeito pareceu trair agora uma esperança. O coque se desmanchara. A touca branca estava por terra.
O homem continuava a andar. Por duas vezes evitou a companheira desamparada.
Da terceira vez, porém, tomou-a nos braços. Ela se apertou contra ele, empurrou-lhe a cabeça para trás. E, gulosamente, colou os lábios aos dele.
Não se via mais, agora, que o dorso dele, um dorso inumano, com uma pequenina mão de mulher crispada à espádua.
Com seus dedos grossos, o brutamontes sentia necessidade, sem, todavia, descolar os lábios, de acariciar os cabelos desnastrados, mas acariciá-los como se desejasse destruir sua companheira, esmagá-la, incorporá-la.
— Ora essa! — exclamou o inspetor, com voz transtornada.
Ficara tão impressionado que agora, como reação, por pouco não rebentava de riso.
Emma estaria lá há um quarto de hora? Já se tinham soltado um do outro. E a vela, quase extinta, não duraria mais que cinco minutos. Havia no ar uma distensão quase visível.
Não era riso aquilo no rosto da garçonete? Achara em algum canto um caco de espelho. Em plena luz, enrolava agora os longos cabelos, prendia-os com um grampo, procurava por terra um outro, que devera ter perdido, prendia-o por um instante nos dentes, enquanto compunha a touca.
Estava quase bonita. Estava bonita. Tudo, nela, era comovente, mesmo o busto achatado, a saia negra, as pálpebras vermelhas. O homem havia recuperado o frango. E sem perder a mulher de vista, comia com apetite, fazendo estalar os ossos, arrancando grandes lanhos de carne.
Procurou a faca no bolso, não a encontrou, e quebrou o gargalo da garrafa batendo-o contra o talão. Bebeu, quis que Emma também bebesse, ela tentou recusar, rindo-se. Talvez o vidro quebrado a assustasse. Mas ele obrigou-a a abrir a boca e verteu dentro o líquido, cuidadosamente.
Ela engasgou, tossiu. Ele a tomou, então, mais uma vez nos braços, e beijou-a, mas não nos lábios. Beijava-a de brincadeira, alegremente, dando-lhe bicotas nas faces, nos olhos, na fronte e, até, na touca de renda.
Ela estava pronta. O homem colou o rosto à vidraça e, uma vez mais, encheu quase todo o retângulo da janela. Quando se voltou, foi para apagar a vela.
O Inspetor Leroy estava tenso.
— Eles se vão, juntos.
— Sim.
— Serão apanhados...
A groselheira do jardim sacudiu. Depois uma forma foi içada ao topo do muro. Emma estava agora na viela, e esperava o amante.
— Você vai segui-los a distância. Que não percebam você, isso é o principal. Dê-me notícias, quando for possível.
E tal como tinha feito o vagabundo com sua companheira, Maigret ajudou o inspetor a alçar-se ao longo das ardósias até a lucarna. Depois, debruçou-se para olhar o beco, onde os dois personagens estavam agora reduzidos a cabeças.
Hesitavam. Cochichavam. Foi a garçonete quem dirigiu o homem para uma espécie de telheiro, onde desapareceram. A porta não se trancava a chave, tinha só um trinco.
Era o depósito do cordoeiro. Comunicava com a loja, deserta àquela hora. Bastava-lhes forçar uma fechadura e encontrar-se-iam no cais.
Mas Leroy chegaria lá antes deles.
Desde que desceu da mansarda, o comissário compreendeu que se passava alguma coisa de anormal. Havia um surdo rumor no hotel. Embaixo, o telefone funcionava em meio a grande vozerio.
Ouvia-se, inclusive, a voz de Leroy, que devia estar ao aparelho, porque falava em altos brados.
Maigret desceu precipitadamente e chocou-se com um jornalista ao atingir o rés do chão.
— O que foi?
— Um novo crime. Há um quarto de hora. Na cidade. O ferido foi transportado para a farmácia.
O comissário foi primeiro ao cais, onde um gendarme corria, brandindo o seu revólver. Raras vezes estivera o céu assim tão negro. Maigret alcançou o homem.
— O que houve?
— Um casal acaba de sair da loja. Eu estava cem passos mais à frente. O homem quase me caiu nos braços. Não vale mais a pena correr. Devem estar longe a essa hora.
— Explique-se.
— Ouvi barulho no depósito, onde não havia luz. Esperei, de arma na mão. A porta se abriu. Saiu um sujeito. Mas não tive tempo de apontar. Ele me deu tal murro na cara, que rolei por terra. Deixei, até, cair o revólver. Tive só um receio: que o malfeitor se apoderasse dele. Mas não. Foi buscar a mulher, que o esperava na soleira. Ela parecia incapaz de correr. Ele a tomou nos braços. Foi o tempo de me levantar, comissário: um murro daqueles! Veja! Ainda sangra... E os dois se foram, ao longo do cais. Devem ter feito a volta da bacia. Por lá, há uma infinidade de ruelas, depois é o campo...
O gendarme enxugava o nariz com o lenço.
— Ele poderia ter me matado. Tem um punho de martelo. Ouviam-se vozes, agora, vindas do hotel, cujas janelas estavam acesas. Maigret deixou o gendarme, virou a esquina, viu a farmácia, cujos estores estavam baixados mas cuja porta aberta deixava escapar ondas de luz.
Duas dezenas de pessoas estavam grupadas diante dela. O comissário teve de abrir caminho com os cotovelos.
Lá dentro, um homem estendido no chão soltava gemidos rítmicos olhando fixamente para o teto.
A mulher do boticário, de camisola, fazia mais bulha sozinha que todo mundo junto.
Quanto ao próprio farmacêutico, que metera um jaquetão por cima do pijama, azafamava-se, remexia nos seus frascos, dilacerava grandes pacotes de algodão hidrófilo.
— O que foi? — perguntou Maigret.
Não esperou a resposta, porque já reconhecera o uniforme do guarda aduaneiro, a quem alguém rasgara uma perna das calças. E agora, reconhecia também o rosto.
Era o mesmo empregado da alfândega que, na sexta-feira precedente, estivera de guarda no porto, e de longe assistira ao drama de que Mostaguen fora vítima.
Um médico chegou, apressado, olhou o ferido, depois Maigret, e exclamou:
— Que é que se passa ainda?
Um pouco de sangue escorria no chão. O farmacêutico lavara a perna do ferido com água oxigenada, que formava regatos de espuma rosada.
Lá fora, um homem contava, talvez pela décima vez, com a mesma voz excitada do começo:
— Eu dormia com minha mulher, quando ouvi o que me pareceu um tiro. Depois um grito. Depois mais nada, talvez durante uns cinco minutos. Não ousava dormir de novo. Minha mulher queria que eu fosse ver. Aí, percebemos gemidos, que vinham provavelmente da calçada, defronte mesmo de nossa casa. Abri. Estava armado: Vi uma sombra. Reconheci o uniforme e pus-me a gritar, para despertar os vizinhos. O vendedor de frutas, que tem um carro, ajudou-me a transportar o ferido até aqui.
— A que horas foi o tiro?
— Há meia hora exatamente.
No momento mais emocionante da cena entre Emma e o homem das pegadas.
— Onde mora o senhor?
— Eu faço velas para barcos. O senhor já passou dez vezes diante de minha loja. À direita do porto. Um pouco além da peixaria. Minha casa é na esquina do cais com uma viela sem saída. Depois, as construções ficam mais espaçadas, e já não há senão vilas.
Quatro homens carregavam o ferido para uma peça dos fundos, onde foi posto num canapé. O médico dava as ordens. Ouvia-se na rua a voz do prefeito, que perguntava:
— O comissário está aí?
Maigret foi ao encontro dele, de mãos nos bolsos.
— O senhor deve reconhecer, comissário...
Mas o olhar do interlocutor era tão frio que o prefeito pareceu, por um momento, desnorteado.
— Foi o nosso homem que deu o tiro, pois não?
— Não.
— Como sabe?
— No momento do crime eu o via quase tão bem como vejo o senhor agora.
— E não o prendeu?
— Não.
— Fala-se também que um gendarme foi atacado.
— É exato.
— O senhor se dá conta das repercussões que tais dramas podem ter? Afinal de contas, foi depois de sua chegada que...
Maigret tirou o fone do gancho:
— Queira ligar-me com a gendarmeria, senhorita. Sim... Obrigado. Alô? Gendarmeria? É o próprio sargento? Aqui o Comissário Maigret. O doutor Michoux continua aí, bem entendido? O que diz? Sim, vá assegurar-se disso pessoalmente, apesar de tudo. Como? Há um homem de guarda no pátio? Muito bem. Eu espero...
— O senhor acredita que o doutor tenha sido o...
— Absolutamente. Não acredito jamais em coisa nenhuma, senhor prefeito. Alô? Sim! Não saiu daí? Obrigado! Dorme? Muito bem. Alô? Não, nada de especial.
Ouviam-se gemidos, provindos da peça ao fundo, donde uma voz chamou a seguir:
— Comissário...
Era o médico, que enxugava as mãos, ainda sujas de sabão, numa toalha.
— O senhor pode interrogá-lo. A bala apenas raspou a pantur-rilha. Ele teve mais medo do que qualquer outra coisa. Há que dizer, também, que a hemorragia foi bastante forte.
O guarda da alfândega tinha lágrimas nos olhos. Corou, quando o médico continuou:
— Todo esse pavor tinha por motivo a idéia de que eu lhe cortaria a perna. Ora, dentro de oito dias, não se verá mais nada...
O prefeito apareceu na moldura da porta.
— Conte-me como isso se passou — disse tranqüilamente Maigret, assentando-se à beira do diva. — Sem medo... O senhor ouviu o que disse o médico.
— Não sei...
— Mas então...
— Hoje, eu terminava minha guarda às dez horas. Moro um pouco adiante do lugar onde fui ferido...
— O senhor não voltou, então, diretamente, para casa?
— Não. Vi que ainda havia luz no Café de 1'Amiral. Quis saber como andavam as coisas. Eu lhe juro que minha perna arde como fogo!
— Não pode ser, não pode ser! — afirmou o médico.
— Pois se eu lhe digo que arde! Enfim... se não é nada de grave... Bebi um chope no café. Havia só os jornalistas, e não ousei fazer-lhes perguntas.
— Quem o serviu?
— Uma empregada de quarto, creio. Não vi Emma...
— Então...
— Então quis ir dormir. Passei pelo corpo da guarda, onde acendi meu cigarro no cachimbo de um colega. Segui ao longo do cais, virei à direita. Não havia ninguém. O mar estava particularmente belo. De súbito, acabava eu de passar por uma esquina, senti uma dor na perna antes mesmo de ouvir o estampido da detonação. Foi como se tivesse recebido uma pedrada na barriga da perna. Caí. Quis levantar-me. Alguém corria. Minha mão encontrou um líquido quente e, não sei como se passou, mas perdi os sentidos. Achei que estava morto. Quando recobrei consciência, o fruteiro abria a porta e não tinha coragem de sair... É tudo o que sei.
— Não viu a pessoa que atirou?
— Não vi nada. Essas coisas não se passam como a gente pensa. Foi o tempo de cair... principalmente, quando retirei a mão cheia de sangue...
— O senhor não tem inimigos?
— Nenhum inimigo! Há só dois anos que estou aqui! Sou oriundo do interior. Jamais tive ocasião de lidar com contrabandistas.
— O senhor volta sempre para casa por esse caminho?
— Não. É o mais longo. Mas eu não tinha fósforos e fui até o corpo da guarda expressamente para acender o cigarro. Então, ao invés de seguir pela cidade, fui pelo cais.
— Pela cidade é mais curto?
— Um pouco.
— Assim, alguém que o tenha visto sair do café e alcançar o cais, teria tempo de ir pôr-se de emboscada?
— Certamente. Mas por que alguém faria isso? Não levo dinheiro... Ademais, ninguém tentou furtar-me.
— O senhor está seguro, comissário, de que não perdeu de vista o seu vagabundo durante toda a noite?
Havia algo de contundente na voz do prefeito. Leroy entrou, com um papel na mão.
— Um telegrama, que acaba de ser transmitido por telefone para o hotel. É de Paris.
Maigret leu:
"Chefatura de Polícia ao Comissário Maigret, Concarneau.
Jean Goyard, dito Servières, cuja descrição enviou, preso esta segunda-feira oito horas Hotel Bellevu, Rua Lepic, Paris, no momento em que se instalava quarto nº. 15. Confessou haver chegado de Brest pelo trem das seis horas. Protesta inocência e exige interrogatório em presença advogado. Aguardamos instruções."
Capítulo VIII - Mais Um!
— O senhor concordará, comissário, que é tempo de termos uma entrevista séria.
O prefeito proferiu essas palavras com uma deferência glacial, e o Inspetor Leroy ainda não conhecia Maigret suficientemente bem para fazer um juízo das suas emoções segundo o modo como soltava a fumaça do cachimbo. Dos lábios entreabertos do comissário saiu lentamente um fio delgado de fumo enquanto suas pálpebras bateram duas ou três vezes. Depois, Maigret tirou seu canhenho do bolso e olhou em torno o farmacêutico, o médico, os curiosos.
— Às suas ordens, senhor prefeito. Aí está!
— Se quisesse tomar uma xícara de chá em minha casa... — apressou-se em interromper o prefeito. — Tenho o automóvel à porta. Esperarei até que tenha dado as instruções necessárias...
— Que instruções?
— Mas, o assassino... o vagabundo... essa moça....
— Ah, sim. Pois bem, se a gendarmeria não tem nada de melhor para fazer, que vigie as estações de estrada de ferro da vizinhança.
Mostrava sua expressão a mais inocente.
— Quanto a você, Leroy, telegrafe a Paris que nos despachem Goyard. Depois, pode ir dormir. '
Tomou seu lugar no carro do prefeito, conduzido por um chofer em libré negra. Um pouco antes de Sables Blancs, avistaram a vila, construída mesmo na escarpa, o que lhe dava um certo ar de castelo feudal. Tinha janelas acesas.
Durante o trajeto, os dois homens mal trocaram duas palavras.
— Permita que lhe mostre o caminho...
O prefeito entregou sua peliça a um mordomo.
— A senhora já se acomodou?
— Ela espera o senhor prefeito na biblioteca. Encontraram-na ali, com efeito. Embora já devesse ter seus quarenta anos, parecia muito jovem ao lado do marido, que contava sessenta e cinco. Dirigiu um cumprimento de cabeça ao comissário.
— Então?
Muito homem de sociedade, o prefeito beijou-lhe a mão, que conservou na sua enquanto dizia:
— Tranqüilize-se. Um funcionário da alfândega ligeiramente ferido. Espero que depois da conversação que vamos ter, o Comissário Maigret e eu, esse inadmissível pesadelo possa ser dado por encerrado.
Ela os deixou, num frufru de sedas. Um reposteiro de veludo azul caiu sobre a porta. A biblioteca era vasta, as paredes cobertas de belo apainelado, o teto de barrotes aparentes, como nas mansões senhoriais inglesas.
Era possível distinguir algumas ricas encadernações, mas as mais preciosas deviam encontrar-se na secção fechada da biblioteca, que ocupava todo um lado da parede.
O conjunto era de real suntuosidade e, até, de bom gosto. Conforto completo. Embora a casa tivesse aquecimento, havia achas ardendo numa lareira monumental.
Nenhuma relação com o falso luxo da vila de Michoux. O prefeito escolheu entre as caixas de charutos, estendeu uma a Maigret:
— Obrigado. Se me permite, fumarei meu cachimbo.
— Sente-se, por favor. O senhor toma um uísque?
Apertou uma campainha, acendeu um charuto. O mordomo veio servi-los. E Maigret, talvez de propósito, mostrava o ar contra-feito do pequeno-burguês recebido numa residência aristocrática. Sua expressão parecia mais séria que de costume, o olhar um tanto perdido.
Seu anfitrião esperou que o empregado saísse.
— O senhor deve compreender, comissário, que não é possível que essa série de crimes continue. Já se passaram, vejamos, cinco dias da sua chegada. E há cinco dias...
Maigret tirou do bolso o caderninho de capa encerada.
— O senhor me permite? — interrompeu. — Fala de crimes em série. Ora, observo que todas as vítimas estão vivas, à exceção de uma. Houve uma única morte: a do Sr. Le Pommeret. Quanto ao guarda de alfândega, o senhor prefeito reconhecerá que, se alguém desejasse realmente atentar contra a vida dele, não teria atirado na perna. O senhor conhece tão bem quanto eu o lugar onde o disparo foi feito. O agressor era praticamente invisível. Tinha todo o tempo de que precisasse. A menos que jamais tenha tido antes um revólver nas mãos.
O prefeito encarava-o com espanto. Apanhou seu copo e disse:
— O senhor pretende, então, que...
— Que houve a intenção expressa de feri-lo na perna. Pelo menos, até prova em contrário.
— E houve igualmente o desejo de atingir o Sr. Mostaguen na perna?
A ironia era transparente. As narinas do velho fremiam. Queria ser polido, permanecer calmo, pois estava debaixo do seu próprio teto. Mas tinha um sibilar desagradável na voz.
Maigret, com ar de bom funcionário que presta contas a um superior, prosseguiu:
— Se assim desejar, vamos acompanhar minhas notas uma a uma. Leio com data de sexta-feira, 7 de novembro: Uma bala é atirada através da caixa de correio de uma casa desabitada na direção do Sr. Mostaguen. O senhor notará, inicialmente, que ninguém, nem mesmo a vítima, podia saber que, num dado momento, Mostaguen teria a idéia de abrigar-se num umbral para acender seu charuto. Um pouco de vento a mais ou a menos e o crime não teria ocorrido! Ou se tratava de um louco, ou de alguém que esperava uma pessoa que devia vir. Agora: lembre-se da hora. Onze da noite. Toda a cidade dorme, exceto o pequeno grupo do Café de 1'Amiral...
"Não tiro conclusões. Vejamos os possíveis culpados. Os Srs. Le Pommeret e Jean Servières, assim como Emma, estão fora de qualquer suspeita, uma vez que se encontravam no café.
"Restam o Dr. Michoux, que saíra um quarto de hora antes, e o vagabundo, de pegadas formidáveis. Mais um eventual desconhecido, a quem proponho chamarmos X. Estamos de acordo?
"Ajuntemos, de passagem, que o Sr. Mostaguen não morreu, e que dentro de quinze dias estará de pé.
"Passemos ao segundo drama. No dia seguinte, sábado, vou ao café com o Inspetor Leroy. Tomamos o aperitivo com os Srs. Michoux, Le Pommeret e Jean Servières. O médico suspeita de alguma coisa ao olhar seu copo. A análise prova que a garrafa de Pernod está envenenada.
"Culpados possíveis: Michoux, Le Pommeret, Servières, a empregada do café, Emma, o vagabundo — que teria conseguido, no curso do dia, penetrar no café sem ser visto. E, por fim, nosso desconhecido, a quem chamamos AT.
"Continuemos. Domingo de manhã, Jean Servières desapareceu. Seu automóvel foi encontrado, manchado de sangue, não longe da casa dele. Antes mesmo dessa descoberta, o Phare de Brest recebeu um relato dos acontecimentos, redigido de maneira a semear pânico em Concarneau.
"Ora, Servières foi visto, primeiro em Brest, depois em Paris, onde parece esconder-se e onde se encontra, ao que tudo indica, espontaneamente.
"Um só culpado possível: o próprio Servières.
"No mesmo domingo, Le Pommeret toma o aperitivo com o Michoux, volta para casa e morre em conseqüência de envenenamento por estricnina.
"Culpados possíveis: no café, se é que foi lá que o envenenaram, o médico, Emma e, por fim, nosso X.
"Aqui, com efeito o vagabundo tem de ser deixado de parte, porque a sala não esteve vazia um só minuto e o veneno não estava na garrafa mas num único copo.
"Se o crime foi cometido na casa de Le Pommeret, culpados possíveis: sua senhoria, o vagabundo e nosso X sempiterno.
"Não se impaciente, senhor prefeito. Chegaremos ao nosso objetivo. Nesta noite, um guarda de alfândega recebe uma bala na perna ao passar por uma rua deserta. O médico não saiu da prisão, onde é vigiado de perto. Le Pommeret está morto. Servières encontra-se em Paris, nas mãos da Chefatura de Polícia. Emma e o vagabundo, na mesma hora, estão ocupados, debaixo dos meus olhos, a fazer amor, e depois a devorar um frango.
"Então, só há um culpado possível: X...
"Quer dizer: um indivíduo que não encontramos ainda no curso dos acontecimentos. Um indivíduo que pode ter feito tudo, como pode não ter feito mais que o último crime.
"Este, nós não conhecemos. Não dispomos de seus sinais particulares. Uma só indicação: tinha interesse, nessa noite, em provocar um drama. Um interesse poderoso... Porque esse disparo não foi feito por um vadio qualquer.
"Então, não me peça que o prenda. O senhor deve convir, prefeito, que todo mundo nesta cidade, todos os que conhecem os principais personagens da história e, particularmente, os que freqüentam o Café de 1'Amiral, são susceptíveis de ser esse X...
"O senhor mesmo..."
Essas últimas palavras foram ditas num tom ligeiro, ao mesmo tempo que Maigret se recostava na sua poltrona e estirava as pernas para as achas acesas.
O prefeito teve apenas um sobressalto.
— Espero que essa observação não passe de uma pequena vingança...
Então Maigret se levantou, de chofre, sacudiu o cachimbo na lareira, e disse, medindo a biblioteca em largas passadas:
— Nem isso... O senhor quer conclusões? Procurei simplesmente mostrar-lhe que um caso como este não é uma simples operação de polícia, que se possa comandar de uma cadeira de braços, por telefone... Acrescentarei, senhor prefeito, com todo o respeito que lhe devo, que quando assumo a responsabilidade de uma investigação, desejo antes de mais nada que me deixem trabalhar em paz.
A coisa lhe escapara, de imprevisto. Há dias estava incubada. Talvez para acalmar-se, Maigret bebeu um gole de uísque, olhou para a porta como um homem que disse o que tinha a dizer e apenas espera licença para ir-se embora.
Seu interlocutor ficou por algum tempo silencioso, a contemplar fixamente a cinza branca do charuto. Acabou por deixá-la cair numa tigela de porcelana azul. Levantou-se depois, devagar, e procurou com os olhos o olhar de Maigret.
— Ouça, comissário...
Devia pesar as palavras, porque saíam espaçadas por pequenas pausas.
— Talvez eu tenha errado, no decorrer das nossas relações, tão breves, manifestando alguma impaciência...
Era inesperado. Sobretudo nessa moldura, em que o ancião tinha, mais do que nunca, seu ar de velha cepa, com os cabelos brancos, o colete debruado de seda, as calças cinza, de friso impecável.
— Começo a dar-lhe, comissário, o devido valor. Em uns poucos minutos, graças a um singelo resumo dos fatos, o senhor me fez pôr o dedo nesse mistério agoniante, de complexidade insuspeitada por mim, que se encontra na base desse negócio. Confesso que sua inércia no que concerne ao vagabundo me havia indisposto contra o senhor...
Ele se aproximara do comissário, tocava-lhe a espádua.
— Peço-lhe que não me leve a mal. Tenho as minhas pesadas responsabilidades, eu também...
Teria sido impossível adivinhar os sentimentos de Maigret, que se ocupava em encher o cachimbo com seus grossos dedos. Sua bolsa de tabaco era velha, gasta. Seu olhar perdia-se, pela janela, no vasto horizonte do mar.
— Que luz é aquela? — perguntou, de súbito.
— É o farol.
— Não... Falo da luz pequena, à direita...
— A casa do Dr. Michoux.
— A empregada está de volta, então?
— Não. Será a Sra. Michoux, a mãe dele, que voltou essa tarde.
— O senhor a viu?
Maigret julgou perceber um certo embaraço em seu anfitrião.
— Quer dizer, ela se surpreendeu por não encontrar o filho... Veio informar-se aqui comigo. Eu lhe contei a prisão dele, explicando que era, antes de tudo, uma medida de proteção. Por que é isso, pois, não? Ela me pediu licença para visitá-lo. No hotel, ninguém sabia do senhor. Assim tomei a liberdade de autorizar a visita... A Sra. Michoux voltou pouco antes do jantar, com as últimas notícias. Foi minha mulher quem a recebeu e convidou-a para jantar também...
— São amigas?
— Se assim quiser! Trata-se, mais exatamente, de relações de boa vizinhança. No inverno, há muito pouca gente em Concarneau...
Maigret recomeçou sua caminhada através da biblioteca.
— Jantaram, então, a três?
— Sim. Isso já aconteceu muitas vezes. Tranqüilizei a Sra. Michoux o melhor que pude. Ela ficara impressionada com sua ida à gendarmeria. Teve muitas dificuldades para criar o filho, cuja saúde não é das melhores.
— Falaram de Le Pommeret e de Jean Servières?
— Ela jamais gostou de Le Pommeret. Acusava-o de arrastar seu filho à bebida. O fato é que...
— E Servières?
— Ela o conhecia menos. Não pertenciam ao mesmo mundo. Um pequeno jornalista, uma relação assim de café, um rapaz divertido. O que não se poderia era receber a mulher dele, cujo passado está longe de ser irrepreensível... Estamos numa cidade pequena, comissário. A gente tem de resignar-se a essas distinções. Elas explicam, em parte, o meu mau humor. O senhor não sabe o que significa administrar uma população de pescadores, tendo de levar em conta as susceptibilidades dos patrões e, enfim, uma certa burguesia que...
— A que horas a Sra. Michoux foi embora?
— Por volta das dez. Minha mulher levou-a de carro.
— Essa luz prova que a Sra. Michoux ainda não está dormindo.
— É um velho hábito. Que tenho também! Depois de certa idade, não se precisa de muito sono. Tarde da noite, estou ainda a ler ou a folhear processos...
— Os negócios dos Michoux são prósperos?
Novo embaraço, apenas perceptível.
— Ainda não, digamos... Cumpre esperar até que o loteamento de Sables Blancs esteja valorizado. Muitos lotes já foram vendidos. Na primavera, começarão as construções. No curso da viagem que acaba de fazer, a Sra. Michoux convenceu um banqueiro, cujo nome não posso dizer, a construir uma vila magnífica no alto da encosta.
— Mais uma pergunta, senhor prefeito. A quem pertenciam antes os terrenos que foram objeto de loteamento?
Seu interlocutor não hesitou:
— A mim. Eram um bem de família, como esta vila. Não havia mais que urzes por lá, e giestas, quando os Michoux tiveram a idéia...
Nesse momento, a luz ao longe se extinguiu.
— Um copo mais de uísque, comissário? Eu o farei conduzir de volta pelo meu chofer, naturalmente.
— O senhor é muito amável, mas gosto muito de andar a pé, sobretudo quando tenho de pensar...
— O que acha dessa história do cão amarelo? Confesso que de tudo é o que mais me intriga. Isso e o Pernod envenenado. Porque, afinal...
Mas Maigret já procurava com o olhar seu chapéu e sobretudo. O prefeito pôde apenas apertar a campainha.
— O capote do comissário, Delphin!
O silêncio se fizera de tal modo absoluto que era possível ouvir o rumor surdo e ritmado da ressaca, contra as rochas que serviam de alicerce à vila.
— O senhor não quer mesmo usar o meu automóvel?
— Sinceramente, não...
Eram visíveis, no ar, uns restos de embaraço, como os restos de fumaça, que se enrolavam ainda em torno das lâmpadas.
— Pergunto-me qual será, amanhã, o estado de espírito da população. Se o mar estiver bonito, pelo menos haverá poucos pescadores na rua. Aproveitarão para ir colocar suas armadilhas...
Maigret apanhou o sobretudo das mãos do mordomo, estendeu a sua ao prefeito. Este tinha ainda perguntas a fazer, mas hesitava, constrangido pela presença do mordomo.
— Quanto tempo acredita que precisaremos ainda para... O relógio marcava uma hora da manhã.
— Espero que esta noite tudo esteja resolvido...
— Tão depressa? Apesar de tudo o que me disse há pouco? Nesse caso, o senhor conta com Goyard? A menos que...
Era tarde demais. Maigret já se metera na escada. O prefeito procurava uma última frase, um fecho. Não encontrou nada que pudesse traduzir os seus sentimentos.
— Fico um tanto aflito deixando que se vá, assim, a pé, por esses caminhos...
A porta se fechou. Maigret achou-se na estrada, com um belo céu por cima da cabeça, com nuvens pesadas que brincavam de passar, cada qual mais depressa, pela frente da lua.
Havia um friozinho no ar. O vento vinha do largo, do mar alto, e cheirava aos sargaços cujas grossas touceiras negras se destacavam contra a areia branca da praia.
O comissário foi andando devagar, de mãos nos bolsos e cachimbo na boca. Viu de longe, olhando por cima do ombro, as luzes que se apagavam na biblioteca do prefeito; depois, outras que se acendiam no segundo andar, onde as cortinas as abafavam.
Não tomou o caminho que atravessava a cidade, mas costeou o molhe, como o homem da alfândega fizera. Parou, por um instante, no ângulo onde ele fora ferido. Tudo estava calmo. Um revérbero, de longe em longe. Concarneau dormia.
Quando chegou à praça, viu os vitrais ainda iluminados do café que turbavam a paz da noite com seu halo venenoso.
Empurrou a porta. Um jornalista ditava ao telefone:
"Não se sabe mais o que imaginar. As pessoas se olham na rua com angústia. Será este o assassino? Jamais foi tão espessa a atmosfera de mistério e temor."
O patrão, lúgubre, estava ele próprio na caixa. Quando viu o comissário, quis falar-lhe. Era possível adivinhar que recriminações teria.
O café estava em desordem. Havia jornais por cima de todas as mesas, copos vazios. Um fotógrafo ocupava-se em secar suas provas em cima do radiador.
O Inspetor Leroy adiantou-se ao encontro do seu chefe.
— É a Sra. Goyard... — disse a meia voz, mostrando uma senhora gordota, arriada numa banqueta.
Ela se levantou, enxugando os olhos.
— Diga, comissário! É verdade? Não sei mais em quem acreditar. Parece que Jean está vivo? Mas não é possível, não é verdade? Que ele tenha representado tal comédia? Ele não teria feito isso. Não me teria deixado nessa inquietação mortal! Tenho a impressão de que vou enlouquecer. Que teria ido fazer em Paris? Diga. E sem mim!
Chorava. Chorava como certas mulheres sabem chorar, debulhando-se em ondas de lágrimas fluidas que lhe rolavam pelas faces e escorriam até o queixo, enquanto com a mão apertava um seio carnudo.
E fungava. Procurava o lenço. Queria a todo custo falar.
— Eu lhe juro que nada disso é possível. Sei bem que ele era um tanto mulherengo. Mas não teria feito uma coisa dessas. Quando voltar, vai pedir-me perdão. Compreende o senhor? Dizem-me...
E designava os jornalistas.
— ...dizem-me que foi ele mesmo quem fez as manchas de sangue no automóvel, para levar a acreditar num crime. Mas, então, é que não tinha intenção de voltar! E eu sei, eu, o senhor me entende, eu sei que ele teria voltado. Jamais teria feito as farras que fez se não o tivessem posto a perder. O Sr. Le Pommeret... o doutor... e o prefeito. Todos eles, que nem me cumprimentavam na rua, que faziam pouco de mim. Dizem-me que ele foi detido. Recuso-me a crê-lo. O que poderia ter feito de mal? Ganhava o suficiente para o trem de vida que levávamos. Éramos felizes, apesar das orgias que ele se permitia, de vez em quando.
Maigret olhou-a, suspirou, pegou o copo da mesa, e tomou o conteúdo de um só trago. Depois murmurou:
— A senhora me perdoará. É preciso que eu vá dormir.
— O senhor também crê que ele seja culpado de alguma coisa?
— Não creio, nunca, em coisa alguma. Faça como eu, minha senhora. Amanhã será outro dia...
E subiu as escadas pesadamente, enquanto o jornalista, que não largara o aparelho telefônico, tirava partido dessa última frase:
— Segundo as últimas notícias, é amanhã que o Comissário Maigret conta elucidar definitivamente o mistério...
E ajuntou, com outra voz:
— É tudo, senhorita. Sobretudo, diga ao chefe que não mude uma linha no meu artigo. Ele não compreende. É preciso estar no local.
E, tendo desligado, pediu, enfiando o bloco de anotações no bolso:
— Um grogue, patrão. Com bastante rum e pouca água quente.
Entrementes, a Sra. Goyard aceitava o oferecimento que um repórter fazia de levá-la para casa. E recomeçava suas confidencias:
— Embora fosse um pouco dado a mulheres. Mas o senhor compreende, todos os homens são!...
Capítulo IX - A Caixa de Conchas
Maigret estava de tão bom humor, na manhã do dia seguinte, que o Inspetor Leroy ousou tagarelar enquanto o acompanhava e, mesmo, fazer-lhe perguntas.
Aliás, e sem que se pudesse dizer por que, a sensação de alívio era geral. Isso talvez tivesse alguma coisa a ver com o tempo que, de súbito, consertara. O céu dava a impressão de haver sido lavado há pouco. Era azul, de um azul um pouco pálido mas vibrante, em que cintilavam umas poucas nuvens ligeiras. O horizonte parecia. até, mais vasto, como se houvessem aberto a calota celeste. O mar, muito liso, resplendia, pontilhado de pequenas velas, que pareciam bandeiras espetadas num -mapa de estado-maior.
Ora, basta um raio de sol para transformar Concarneau. Então, as muralhas da cidade velha, lúgubres debaixo de chuva, tornam-se de um branco alegre, brilhante.
Embaixo, os jornalistas, fatigados pelas idas e vindas dos três últimos dias, trocavam impressões, enquanto tomavam café. Um deles descera de robe de chambre, com os pés nus metidos em chinelos.
Quanto a Maigret, fora ao quarto de Emma, que era mais uma mansarda, cuja janela, inclinada como o teto, que não permitia ficar de pé no meio do aposento, dava para a viela.
Essa janela estava aberta. O ar era fresco, mas sentiam-se nele as carícias do sol. Uma mulher se aproveitara disso para pôr sua roupa branca a secar, do outro lado da ruazinha. De um terreiro de escola, em algum lugar, vinha um rumor de recreio.
E Leroy, sentado na beirada do pequeno leito de ferro, observava:
— Não compreendo ainda inteiramente os seus métodos, comissário, mas creio que começo a adivinhá-los.
Maigret viu seus olhos risonhos e soltou em direção ao sol uma espessa baforada de fumo.
— Pois tem sorte, meu velho. Sobretudo no que concerne a este caso, no qual o meu método consistiu justamente em não ter nenhum... Se quer um bom conselho, se deseja fazer progresso na profissão, não me tome por modelo, nem procure extrair teorias daquilo que me vê fazer.
— E, todavia, constato que agora o senhor chega aos indícios materiais, mas só depois de...
— Justamente, depois. Depois de tudo. Fiz a investigação, por assim dizer, às avessas, do fim para o princípio, o que não impede que faça a próxima do princípio para o fim. É uma questão de atmosfera. Uma questão de pessoas. Quando cheguei, dei de cara com uma pessoa, que me interessou sobremaneira e que não larguei mais...
Mas não disse de quem se tratava. Levantava uma cortina, feita de uma velha coberta de cama, que escondia um roupeiro. Continha um costume bretão em veludo negro, que Emma reservava, provavelmente, para os dias de festa.
Sobre o tampo do toalete havia um pente, com inúmeros dentes quebrados, grampos de cabelo e uma caixa de pó de arroz por demais cor-de-rosa. Foi numa gaveta que encontrou o que parecia procurar: uma caixinha ornada de conchas, dessas que se vendem em todas as butiques do litoral. Esta datava, talvez, de dez anos, e havia percorrido Deus sabe que caminhos. Trazia as palavras: "Lembrança de Ostende".
Havia no ar um cheiro de papelão velho, poeira, perfume e papel amarelecido. Maigret, que se sentara à borda da cama, ao lado do inspetor, fazia com seus grossos dedos o inventário da quinquilharia: um rosário de contas de vidro azul, talhadas em facetas, numa frágil corrente de prata; uma medalha de primeira comunhão; um vidro de perfume vazio, que Emma devia ter guardado pela forma sedutora, e que talvez tivesse achado no quarto de alguma freguesa...
Uma flor de papel, lembrança de algum baile ou festa, contribuía com sua nota de vermelho-vivo.
Ao lado, uma pequena cruz de ouro era o único objeto de algum valor.
Grande quantidade de cartões-postais. Um representava um grande hotel de Cannes. No verso, em letra de mulher, estava:
"Você faria melhor vindo para cá ao invés de ficar nesse buraco, onde chove todo o tempo. E ganha-se bem. E come-se tanto quanto se queira. Abraços. Louise."
Maigret passou o cartão ao inspetor, e olhou atentamente uma dessas fotografias de feira, que se obtêm acertando um projétil na mosca de um alvo.
Como o homem empunhava a carabina, via-se pouco do seu rosto. Tinha um olho fechado, naturalmente. Era espadaúdo e usava na cabeça um gorro de marinheiro. Emma, sorrindo para a objetiva, dava-lhe ostensivamente o braço. No pé do cartão, a menção: Quimper.
Uma carta, em papel amarfanhado, à força de ser relida, dizia:
"Querida,
Está dito e assinado: tenho meu barco. Chamar-se-á A Bela-Emma. O cura de Quimper prometeu batizá-lo na próxima semana, com água benta, grãos de trigo, sal e tudo, e haverá champanhe do bom, pois quero que seja uma festa de que se fale por muito tempo na região.
Será um pouco duro, de começo, para pagar. Tenho de dar ao banco dez mil francos por ano. Mas veja: traz cem braças quadradas de vela e fará dez nós. Há muito a ganhar no transporte de cebolas para a Inglaterra. O que quer dizer que não vai demorar muito para que a gente se case. Já consegui frete para a primeira viagem mas procuram embrulhar-me, por ser novo no negócio.
Sua patroa bem poderia dar a você dois dias de folga para o batismo, pois todo mundo estará bêbado, e você não terá condições de voltar para Concarneau. Já foi preciso pagar rodadas de bebidas nos bares por causa do barco, que já está no porto e que tem uma bandeira nova em folha.
Vou tirar um retrato nele e enviarei a foto. Beijo você como lhe amo, à espera de que seja a mulher do seu
Léon.''
Maigret pôs a carta no bolso, olhando, com ar sonhador, a roupa que secava do outro lado do beco. Não havia mais nada na caixa de conchas a não ser uma caneta de osso, trabalhada, em que se via, numa lentícula de vidro, a cripta de Nossa Senhora de Lourdes.
— Há alguém no apartamento que o Dr. Michoux ocupava? — perguntou.
— Acho que não. Os jornalistas estão instalados no segundo andar.
O comissário vasculhou ainda o quarto, por desencargo de consciência, mas não achou nada de interesse. Um pouco mais tarde, no primeiro piso, empurrava a porta do quarto n? 3, cujo balcão domina porto e enseada.
A cama estava feita, o soalho encerado. Havia toalhas limpas com a jarra d'água.
O inspetor acompanhava seu chefe com os olhos, com uma curiosidade mesclada de ceticismo. Maigret, por sua parte, assobiava, olhando em torno. Viu uma pequena mesa de carvalho posta diante da janela e ornada de uma pasta para papéis de reclame, e um cinzeiro.
Na pasta havia papel com o timbre do hotel e um envelope azul com as mesmas indicações. Mas havia também duas grandes folhas de papel mata-borrão, uma quase negra já, de tinta, outra apenas manchada aqui e ali, com caracteres incompletos.
— Vá buscar-me um espelho, meu velho.
— Grande?
— Pouco importa. Um espelho que eu possa apoiar em cima da mesa.
Quando o inspetor voltou, encontrou Maigret instalado no balcão, com os dedos enfiados nas cavas do colete, fumando seu cachimbo com evidente satisfação.
— Este aqui servirá?
A janela foi de novo fechada. Maigret pôs o espelho de pé em cima da mesa e, com a ajuda de dois castiçais que foi buscar na prateleira da lareira, tentou decifrar a folha do mata-borrão.
Os caracteres refletidos no espelho estavam longe de ser de leitura fácil. Faltavam letras, palavras inteiras. Havia que adivinhar outras, por demais deformadas.
— Entendi! — disse Leroy, com ar de esperteza.
— Bom. Então peça ao patrão uma caderneta de compras de Emma, ou não importa o que seja, escrito por ela.
Transcreveu palavras, a lápis, numa folha de papel: "ver-te... horas... desabitada... absolutamente..." Quando o inspetor voltou, o comissário preencheu tentativamente os vazios do texto e reconstituiu o seguinte bilhete:
"Preciso ver-te. Vem amanhã às onze horas à casa desabitada da praça, um pouco adiante do hotel. Conto absolutamente contigo. Terás apenas que bater, e a porta te será aberta.''
— Aqui está o caderno da lavadeira, que Emma se encarregava de manter em dia — anunciou Leroy.
— Já não preciso dele. A carta é assinada. Veja aqui este "mma." Quer dizer: "Emma". E a carta foi escrita neste quarto.
— Onde a garçonete encontrava o doutor?
Maigret compreendeu sua relutância em admitir essa hipótese sobretudo depois da cena a que, de bruços sobre a cornija, haviam assistido na véspera.
Nesse caso, foi ela quem...
— Devagar! Devagar, meu rapaz. Nada de conclusões precoces. Principalmente, nada de deduções! A que horas chega o trem que nos deve trazer Jean Goyard?
— Onze horas e trinta e dois minutos.
— Pois aí está o que vamos fazer, meu velho. Você dirá, em primeiro lugar, aos dois colegas que o acompanham que levem o homem à gendarmeria. Ele estará lá, então, por volta do meio-dia. Você telefona ao prefeito e diz-lhe que eu gostaria de vê-lo à mesma hora e no mesmo lugar. Espere. Mesmo recado para à Sra. Michoux, com quem poderá comunicar-se telefonando para a sua vila. Enfim é provável que, de um momento para outro, os polícias e os gendarmes nos tragam Emma e seu amante. Mesmo destino, mesma hora. Será que não me esqueço de alguém? Bom. Uma recomendação: que Emma não seja interrogada na minha ausência. Ela deve ser até impedida de falar.
— O guarda da alfândega?
— Não preciso dele.
— Sr. Mostaguen?
— Hein? Não. É tudo.
No café, Maigret pediu um marc da região, que degustou com prazer, lançando aos jornalistas:
— A coisa se resolve, senhores. Esta noite poderão voltar para Paris.
Seu passeio pelas ruas tortuosas da cidade velha acentuou-lhe a boa disposição. E, ao chegar diante da porta da gendarmeria, dominada pelo claro pavilhão francês, notou que a atmosfera, pela magia do sol, pelas três cores da bandeira, pela parede lavada de luz, tinha uma alegria de 14 de julho.
Um velho gendarme, sentado numa cadeira, do outro lado da poterna, lia uma história em quadrinhos.
O pátio, com todas as pedras separadas por traços de grama verde, lembrou-lhe de novo a serenidade de um pátio de convento.
— O sargento?
— Estão todos na rua, o tenente, o sargento, e a maior parte dos homens, à procura do vagabundo que o senhor sabe...
— O doutor não se mexeu?
O homem sorriu, olhando a janela gradeada da cela, à direita.
— Não há perigo.
— Abra-me a porta, por favor.
E logo que os ferrolhos foram puxados, lançou-lhe numa voz cordial e festiva:
— Bom dia, doutor. Dormiu bem, pelo menos?
Mas o que viu foi um rosto pálido, magro como uma lâmina de faca, que emergia do cobertor cinzento. Havia uma luz de febre nas pupilas do médico, e os olhos eram fundos, enfiados nas órbitas.
— Então, o que há? O senhor vai mal?
— Muito mal... — articulou Michoux com um suspiro, soerguendo-se na tarimba. — São os meus rins.
— Dão-lhe tudo o que pede, espero?
— Sim. O senhor é muito amável.
Deitara-se completamente vestido. Tirou as pernas para fora das cobertas, sentou-se, passou a mão pela fronte. Maigret, no mesmo momento, cavalgava uma cadeira, apoiava os braços no encosto, vendendo saúde, animação.
— Vamos! Vejo que pediu um borgonha ontem.
— Foi minha mãe que o trouxe. Eu teria preferido evitar essa visita. Ela deve ter ouvido alguma coisa em Paris. Voltou...
As olheiras devoravam metade das bochechas, que pareciam mais cavadas no rosto não barbeado. A falta de gravata, assim como o terno amassado, aumentavam a impressão de penúria que se desprendia de todo o personagem.
O médico fez uma pausa para tossir. Escarrou, mesmo, ostensivamente, no lenço, que olhou como homem que teme a tuberculose e que se observa com ansiedade.
— O senhor me traz novidades?
— Os gendarmes devem ter falado no drama desta noite?
— Não. O que... o que foi?
Colara-se à parede, como se tivesse medo de ser agredido.
— Bah! Um transeunte que recebeu uma bala na perna...
— E apanharam... o assassino? Não posso mais, comissário... Convenha que a coisa é de enlouquecer. Mais um dos fregueses de 1'Amiral, não é verdade? É a nós que visam. E eu fico a dar tratos à bola para adivinhar por quê. Sim, por quê? Mostaguen! Le Pommeret! Goyard! E o veneno que nos era destinado a todos... O senhor verá que acabarão por atingir-me apesar de tudo, mesmo aqui. Mas por que, diga-me?
Já não estava pálido, mas lívido. E fazia mal vê-lo, de tal modo ilustrava a idéia de pânico no que tem de mais lamentável, de mais horrendo.
— Não ouso mais dormir. Essa janela, veja! Há barras, sem dúvida. Mas é possível atirar delas, de noite. Os gendarmes sempre dormem ou pensam em outra coisa. Não nasci para uma vida destas. Ontem, bebi toda essa garrafa, na esperança de dormir. E não preguei olho! Passei mal. Se pelo menos tivessem conseguido abater esse vagabundo, com seu cão amarelo... Foi visto de novo o animal? Ou ronda ainda, em torno do café? Não compreendo que alguém não lhe tenha metido uma bala. A ele e a seu dono.
— O dono saiu de Concarneau esta noite. • — Ah!
O médico parecia ter dificuldade em acreditar.
— Assim, imediatamente após seu último crime?
— Antes.
— Mas como, então? Não é possível. Temos de crer...
— É isso, exatamente. Eu dizia a mesma coisa ao prefeito, esta noite. Um tipo singular, o prefeito, permita que lhe diga, entre nós. O que pensa dele o senhor?
— Eu? Mas não sei. Eu...
— Afinal, ele lhe vendeu os terrenos do loteamento. O senhor tem negócios com ele. Eram o que se costuma chamar de amigos...
— Tínhamos principalmente relações de negócios e de boa vizinhança. No campo...
Maigret notou que a voz se firmava, que o olhar também ficava menos vago.
Tirou o caderninho do bolso.
— Eu lhe dizia que a série de crimes, ou, se o senhor prefere, de tentativas de assassinato, não foi cometida por nenhuma das pessoas conhecidas. Não vou retomar os dramas, um por um. Resumo. Note que falo objetivamente, como técnico. Pois bem. É certo que o senhor não teria podido, materialmente, atirar esta noite contra o guarda da alfândega, coisa que poderia bastar para botá-lo acima de suspeitas. Le Pommeret também não podia atirar, uma vez que será enterrado amanhã de manhã. Nem Goyard, que acaba de ser encontrado em Paris. E eles não teriam podido, nem um nem outro, encontrar-se de tocaia sexta-feira à noite por detrás da caixa de correio da casa desabitada, Emma também não...
— Mas e o vagabundo do cão amarelo?
— Já pensei nisso. Não só não foi ele quem envenenou Le Pommeret como também estava longe, esta noite, do local do tiro quando este se produziu. Foi por isso que falei ao prefeito de uma pessoa desconhecida, um misterioso X que, esse sim, poderia ter cometido todos os crimes. A menos que...
— A menos...
— A menos que não se trate, verdadeiramente, de uma série. Em lugar de uma espécie de ofensiva unilateral, suponha um combate real, entre dois grupos, ou entre dois indivíduos...
— Mas então, comissário, qual a minha situação? Se há inimigos desconhecidos que rondam... eu...
Seu rosto sombreou-se outra vez. E pondo as mãos na cabeça, continuou.
— Quando penso que estou doente, que os médicos me recomendam tranqüilidade, a tranqüilidade mais absoluta! Oh! Não será necessária uma bala nem será preciso veneno para dar cabo de mim. O senhor verá que meu rim se encarrega do necessário...
— O que pensa o senhor do prefeito?
— Não sei. Não sei nada. É de família abastada. Quando moço, levou grande vida em Paris. Teve seus cavalos de corrida. Depois, acomodou-se. Salvou uma parte da sua fortuna e veio instalar-se aqui, na casa de seu avô, que foi, ele também, prefeito de Concarneau. Vendeu-me terras que não lhe serviam. Creio que desejaria ser nomeado conselheiro-geral, para acabar no Senado.
O médico se levantara, e dir-se-ia que, em poucos dias, emagrecera dez quilos. Não seria de admirar se, de repente, se pusesse a chorar numa crise de nervos.
— O que quer o senhor? E esse Goyard que está em Paris quando todo mundo o julgava... Que poderá estar fazendo por lá? E por quê?
— Não tardaremos a sabê-lo, pois é esperado em Concarneau. Deve mesmo ter chegado, a esta hora.
— Preso?
— Pediram-lhe que acompanhasse dois cavalheiros até aqui. Não é bem a mesma coisa.
— O que tinha ele a dizer?
— Nada. É verdade que ninguém lhe perguntou coisa alguma.
Então, de chofre, o médico encarou o comissário. O sangue subiu-lhe de um só golpe ao rosto:
— O que significa isso? Quero crer que alguém está louco! O senhor vem falar-me do prefeito, de Goyard. E sinto, entende, sinto que, de um momento para outro, serei eu o morto. Apesar dessas barras de ferro que não impedirão nada. Apesar desse grande imbecil de gendarme que está de guarda no pátio! E não quero morrer! Não quero! Que me dêem um revólver para que me defenda. Ou, então, que botem atrás das grades os que me querem tirar a vida, os que assassinaram Le Pommeret, os que envenenaram aquela garrafa...
Ele tremia, da cabeça aos pés.
— Eu não sou nenhum herói. Minha profissão não consiste nisso, em desafiar a morte! Sou um homem! Um doente! E para continuar a viver basta-me a luta contra a enfermidade. O senhor fala. E fala. Mas que diabo faz?
Furioso, bateu a testa contra a parede.
— Tudo isso me cheira a conspiração. A menos que desejem pôr-me louco. Sim! Querem internar-me! Quem sabe? Pode ser que minha mãe esteja farta. E sabe por quê? Porque guardei sempre, zelosamente, a minha parte da herança que recebi de meu pai! Mas não me deixarei embrulhar...
Maigret não se movera. Continuava ali, de pé, no centro da cela toda branca. Uma das paredes estava agora inundada de sol. Apoiava os cotovelos no encosto da cadeira, o cachimbo apertado entre os dentes.
O médico ia e vinha, presa de uma agitação próxima ao delírio.
De súbito, ouviu-se na peça uma voz alegre, levemente irônica, que modulava, à moda das crianças:
— Cuco!...
Ernest Michoux teve um sobressalto, olhou os quatro cantos da cela antes de encarar Maigret. E só então percebeu a expressão do comissário, que tirara o cachimbo da boca e ria-se lançando-lhe um olhar significativo.
O efeito foi de desligamento. Michoux imobilizou-se, mole, grotesco, pareceu desmanchar-se até virar uma silhueta irreal, toda inconsistente.
— Foi o senhor que...
Teria sido possível crer, efetivamente, que a voz proviera do exterior, como a de um ventríloquo que faz que as palavras saiam do teto ou de um vaso de porcelana.
Os olhos de Maigret continuavam trocistas enquanto ele se erguia e proferia, com uma gravidade encorajadora, que contrastava com a expressão da fisionomia:
— Controle-se, doutor. Ouço passos. Dentro de alguns instantes, o assassino estará certamente entre estas quatro paredes.
Foi o prefeito que o gendarme fez entrar primeiro. Mas do pátio vinha o som de outros passos.
Capítulo X - "A Bela-Emma"
— O senhor solicitou a minha presença, comissário? Maigret não tivera ainda tempo de responder e já entravam no pátio dois inspetores de polícia enquadrando Jean Goyard. Na rua, era possível adivinhar, dos dois lados da poterna, uma pequena multidão agitada.
O jornalista parecia mais baixo, mais gordote, entre os seus guardas. Rebatera a aba do chapéu mole por cima do olho e, provavelmente com medo dos fotógrafos, mantinha um lenço contra o nariz, que lhe escondia a parte inferior do rosto.
— Por aqui — disse Maigret aos policiais. — E vão buscar algumas cadeiras, pois escuto uma voz de mulher.
Era uma voz aguda, que dizia:
— Onde esta ele? Quero vê-lo imediatamente! Hei de destituí-lo, inspetor. Entendeu bem? Hei de destituí-lo!
Era a Sra. Michoux, de vestido lilás, carregada de jóias, pó-de-arroz e rouge, que bufava de indignação.
— Ah! O senhor está aí, caro amigo... — disse afetadamente ao prefeito. — Poder-se-ia imaginar uma coisa dessas? Esse homenzinho se apresentou em minha casa antes mesmo que eu estivesse vestida. Minha empregada está de férias. Eu lhe disse através da porta que não poderia recebê-lo, e ele ficou a insistir, a exigir, enquanto eu fazia a minha toalete, pretendendo que tinha ordem de me trazer aqui. É inaudito! Quando penso que meu marido era deputado, que quase chegou a ser presidente do conselho e que esse... esse grosseirão... sim, grosseirão!
Estava indignada demais para dar-se conta da situação. Mas de súbito viu Goyard, que lhe virava o rosto, seu filho sentado na borda do catre, com a cabeça entre as mãos. Um automóvel penetrava no pátio ensolarado. Uniforme de gendarmes reluziam. E da multidão partia, agora, um clamor.
Foi preciso fechar o largo portão por onde entravam os carros, a fim de impedir que o público invadisse o pátio. Porque a primeira pessoa arrancada literalmente da viatura foi o vagabundo. Não tinha só algemas nos pulsos. Haviam-lhe entravado os passos com uma corda das mais robustas. E de tal forma, que era preciso transportá-lo como a um volume.
A Sra. Michoux soltou um grito de terror, recuou até quase a parede, como se à vista de alguma coisa repugnante, ao passo que o homem se deixava entregar sem dizer palavra e levantava a cabeça, olhando devagar, muito devagar, em torno dele.
— Calma, Léon! — rosnou Maigret.
O prisioneiro estremeceu, procurou descobrir quem falara.
— Que alguém lhe dê uma cadeira e um lenço...
O comissário observou que Goyard recuara, sorrateiro, para o fundo da cela, escondendo-se por detrás da Sra. Michoux, e que o médico tiritava, sem querer olhar para ninguém. O tenente da gendarmeria, embaraçado com essa reunião insólita, perguntava-se que papel lhe caberia.
— Fechem a porta! Tenham a bondade de sentar-se, todos. O seu sargento será capaz de servir-nos de escrivão, tenente? Muito bem. Que se instale, então, nessa mesinha. Eu lhe peço que tome assento, também, senhor prefeito.
O povo, lá fora, já não gritava e, no entanto, sentia-se que não arredara pé, que havia na rua uma vida compacta, uma espera apaixonada.
Maigret encheu seu cachimbo, andando de um lado para o outro. Depois, voltou-se para o Inspetor Leroy.
— Você deve telefonar antes de mais nada ao síndico dos marujos, em Quimper, para perguntar-lhe o que se passou, há quatro ou cinco anos, talvez seis, com um barco chamado A Bela-Emma.
Como o inspetor se dirigia para a porta, o prefeito tossiu e fez sinal de que queria falar.
— Eu mesmo posso contar-lhe isso, comissário. É uma história que todo mundo conhece por aqui.
— Pois então fale.
O vagabundo mexeu-se no seu canto como um cão rabugento. Emma não tirava os olhos dele, sentada na beirada mais extrema da sua cadeira. O acaso a pusera ao lado da Sra. Michoux, cujo perfume — um odor adocicado de violetas — começava a invadir a atmosfera.
— Não conheci o barco — dizia o prefeito, com desembaraço, talvez com uma ponta de pose. — Pertencia a um certo Le Glen ou Le Glerec, que passava por excelente marinheiro, mas também por homem estourado. Como todos os navios de cabotagem dessas partes A Bella-Emma transportava principalmente frutas e legumes para a Inglaterra. Primícias. Um belo dia, falou-se de uma viagem mais longa... E durante dois meses, não houve notícia dele. Soube-se, afinal, que A Bella-Emma havia sido retida ao chegar num pequeno porto americano das imediações de Nova York; a equipagem, presa; e o carregamento, de cocaína, apreendido. O barco também, naturalmente. Era numa época em que os barcos de comércio, sobretudo os que levavam sal para a Terra Nova, entregavam-se ao contrabando de bebidas.
— Eu lhe agradeço. Não se mova, Léon. Responda-me daí, do seu lugar. E, principalmente, responda só o que lhe for perguntado, sem mais. Entendeu? Primeiro: onde foi preso há pouco?
O vagabundo enxugou o sangue que ainda lhe maculava o queixo e disse, com voz rouca:
— Em Rosporden... num entreposto da estrada de ferro, onde esperávamos que fosse noite para nos metermos em qualquer trem...
— Quanto dinheiro tinha nos bolsos? Foi o tenente quem respondeu:
— Onze francos, afora os trocados.
Maigret olhou para Emma, que tinha lágrimas a escorrer-lhe pelas faces, depois para o brutamontes, fechado em si mesmo. Sentiu que o médico, se bem que imóvel, estava presa de uma agitação intensa e fez sinal a um dos policiais para que se fosse postar junto dele, pronto para qualquer eventualidade.
O sargento escrevia. A pena arranhava o papel com um som metálico.
— Conte-nos exatamente em que condições foi feito esse carregamento de cocaína, Le Glerec...
O homem levantou os olhos. Seu olhar, posto no médico, endureceu. E com a boca torcida num esgar de cólera, os punhos cerrados, rosnou.
— O banco me emprestara dinheiro para mandar construir meu barco...
— Eu sei. Adiante...
— Foi um ano difícil. O franco subia... A Inglaterra comprava menos fruta. E eu me perguntava como iria pagar os juros. Esperava reembolsar o grosso, antes de casar com Emma. Foi então que um jornalista que eu conhecia, porque estava sempre a bisbilhotar no porto, me procurou.
Para estupefação geral, Ernest Michoux descobriu o rosto, que estava pálido, mas infinitamente mais calmo do que se supunha. Sacou do bolso caderninho e lápis, e escreveu algumas palavras.
— Foi Jean Servières quem lhe propôs um carregamento de cocaína?
— Não imediatamente. Falou-me de um negócio em vista. Marcou encontro comigo num café de Brest, onde me apareceu com dois outros.
— O Dr. Michoux e o Sr. Le Pommeret?
— Isso mesmo.
Michoux continuava a tomar notas, e sua fisionomia tinha uma expressão desdenhosa. Chegou mesmo, em certo momento, a esboçar um sorriso irônico.
— Qual dos três o incumbiu do negócio? O doutor esperava, de lápis no ar.
— Os três. Ou melhor, falaram-me da grande quantia a ganhar, num mês ou dois. Um americano chegou, uma hora mais tarde. Nunca fiquei sabendo seu nome. Só o vi duas vezes. Era, certamente, homem familiarizado com o mar, pois perguntou-me as características do meu barco, o número de homens que eu precisaria ter a bordo como tripulação, e o tempo que levaria para instalar um motor auxiliar. Eu a imaginar, todo o tempo, que se tratava de um contrabando de bebida. Todo mundo se ocupava disso, à época, mesmo os oficiais dos vapores. Uma semana depois apresentaram-se os operários para instalar um motor semidiesel no A Bella-Emma.
Falava devagar, de olhar fixo, e era impressionante vê-lo mexer com os grossos dedos, mais eloqüentes, nos seus gestos lentos como espasmos, do que o seu rosto.
— Deram-me um mapa inglês, com todos os ventos do Atlântico e a rota dos veleiros, porque eu jamais tinha feito a travessia. Levei só dois homens comigo, por precaução, e não falei do assunto a ninguém, exceto a Emma, que estava no molhe, na noite da partida. Os três homens estavam lá também, perto de um automóvel de faróis apagados. E, naquele momento, entendi a coisa. Não fariam tudo isso para um simples contrabando rotineiro. Nunca estive na escola. Tudo o que sei fazer é servir-me da bússola e da sonda. Um velho capitão ensinou-me a manejar o sextante, para calcular a posição do barco. Eu tinha comprado uma tábua de logaritmos e tudo o mais que era necessário. Mas estava convencido de que me embrulharia todo nos cálculos. Mas, se tivesse sucesso, meu barco estava pago e me restaria ainda alguma coisa como vinte mil francos no bolso. Ventava furiosamente naquela noite. Perdemos de vista o automóvel e os três homens. Depois Emma, cuja silhueta se recortava em negro na extremidade do molhe. Dois meses no mar...
Michoux tomava notas, mas evitava olhar o homem que falava.
— Eu recebera instruções para o desembarque. Chegamos, por fim, Deus sabe como, ao pequeno porto que me tinham designado. Antes mesmo de lançarmos as amarras, fomos cercados por três lanchas da polícia, com metralhadoras, e homens armados de fuzis saltaram para a coberta, apontando-nos as armas, gritando qualquer coisa em inglês, e dando-nos coronhadas até botarmos as mãos para o alto.
"Tudo se passou num abrir e fechar de olhos. Não sei até hoje quem levou meu barco para o cais nem como fomos metidos num camburão. Uma hora mais tarde estávamos trancafiados numa gaiola de ferro, na prisão de Sing-Sing.
"Estávamos acabrunhados. Ninguém falava francês. Os outros prisioneiros nos lançavam injúrias, faziam pilhéria.
"Mas lá as coisas andam depressa. Já na manhã seguinte éramos apresentados a um tribunal, e o advogado que, ao que parece, nos defendeu, nem sequer nos dirigiu a palavra.
"Só depois me anunciaram que eu fora condenado a dois anos de trabalhos forçados e a cem mil dólares de multa, que meu barco estava confiscado, e tudo mais... Eu não compreendia. Cem mil dólares! Jurei que não tinha esse dinheiro. Nesse caso, não sei quantos anos mais de prisão.
"Fiquei lá, em Sing-Sing. Meus marinheiros foram conduzidos para outra prisão, e jamais botei os olhos neles depois disso. Rasparam-me a cabeça. E puseram-me na estrada, a quebrar pedras. Um capelão quis me ensinar a Bíblia.
"O senhor não pode nem imaginar. Havia presos ricos, que iam passear na cidade toda noite. E outros que lhes serviam de empregados.
"Pouco importa. Um ano depois, encontrei um dia, por acaso, o americano, que tinha ido visitar um detento. Eu o reconheci, e chamei. Ele levou algum tempo para lembrar-se, depois deu grandes risadas e me fez conduzir ao parlatório.
"Foi muito cordial comigo. Tratou-me como a um camarada. Disse-me que fora sempre agente do governo, a serviço da repressão ao tráfico de drogas. Trabalhava, sobretudo no exterior, Inglaterra, França, Alemanha, de onde enviava informações à polícia americana sobre carregamentos de partida...
"Mas, ao mesmo tempo, fazia o seu pequeno tráfico por conta própria. Fora o caso com o carregamento de cocaína. Devia render milhões, pois havia dez toneladas a bordo a não sei quantos francos a grama. Ele se entendera, então, com franceses, que deviam fornecer o barco e uma parte dos fundos. Eram os meus três homens. E, naturalmente, os lucros seriam divididos entre os quatro.
"Mas espere. Porque melhor está ainda por contar. No dia exato do carregamento, em Quimper, o americano recebeu um aviso do seu país. Mudara o chefe da repressão. A vigilância fora reforçada. Os compradores dos Estados Unidos hesitavam, a mercadoria poderia muito bem encalhar.
"Em contrapartida, uma nova portaria prometia a todo aquele que apreendesse mercadoria proibida um prêmio correspondente a um terço do seu valor.
"Foi na prisão que me contaram isso. Fiquei sabendo que, enquanto eu largava minhas amarras, ansioso, a perguntar-me se chegaríamos vivos do outro lado do Atlântico, meus três homens discutiam com o americano no próprio cais.
"Arriscar tudo ou não? Foi o doutor, eu sei, quem insistiu em favor da denúncia. Pelo menos assim recuperavam um terço do capital, sem risco de maiores complicações.
"Além disso, o americano se arranjaria com um colega para pôr de lado uma parte da cocaína apreendida. Fazem as combinações mais incríveis!
"A Bella-Emma deslizava sobre as águas negras do porto. Eu olhava, uma última vez, a minha noiva, certo de desposá-la alguns meses mais tarde.
"E eles quatro sabiam, eles que nos viam partir, que seríamos apanhados à chegada. Contavam, até, que nos defendêssemos, que fôssemos talvez mortos na luta, como acontecia diariamente àquele tempo em águas americanas.
"Sabiam que meu barco seria confiscado, que não estava ainda inteiramente pago, e que eu não tinha outra coisa no mundo.
"Sabiam que eu só pensava em casar-me. E nos viam partir.
"Isso me contaram em Sing-Sing, onde me tornei um bruto entre outros brutos. Deram-me provas. Meu interlocutor se ria, dando palmadas na coxas:
— Que marotos, aqueles três!' "
Houve um silêncio repentino, absoluto. E no silêncio, a surpresa de ouvir o lápis de Michoux correr sobre uma nova página em branco, que acabava de virar.
Maigret viu — e entendeu — as iniciais S-S tatuadas na mão do colosso: Sing-Sing.
— Acho que tinha ainda uns dez anos de pena pela frente. Naquele país, nunca se sabe... A menor falta contra o regulamento faz com que a pena se alongue, ao mesmo tempo em que chovem os golpes de cassetete. Recebi centenas. E a pancada dos companheiros também. Foi meu americano que se interessou por mim. Acho que se sentia enjoado com a covardia daqueles a quem chamava meus amigos. Meu único companheiro era um cão. Um animal que criei a bordo, que me salvou uma vez de afogamento e que, lá, malgrado toda a disciplina deles, haviam deixado viver na prisão. Porque não têm as mesmas idéias que a gente sobre essa espécie de coisa. Um inferno. O que não impede que haja música aos domingos. Embora em seguida batam na gente até tirar sangue. Por fim, já não sabia se era ainda um homem. Chorei cem vezes, mil vezes.
"E quando, um belo dia, abriram-me a porta, dando-me uma última coronhada nos rins antes de me devolverem à vida civilizada, eu desmaiei burramente, ali mesmo, na calçada. Não sabia mais viver. Não tinha mais nada.
"Sim, tinha uma coisa."
Seu lábio partido sangrou. A Sra. Michoux escondia o rosto no lenço de renda, cujo odor embrulhava o estômago. E Maigret fumava tranqüilamente, sem tirar os olhos do doutor, que escrevia sem parar.
— O desejo de fazer sofrer a mesma sorte aos que eram a causa de todo esse desastre. Não de matá-los. Não. Morrer não é nada. Em Sing-Sing em vão tentei morrer umas vinte vezes. Deixei de comer, e me alimentaram artificialmente. O que eu queria era fazê-los conhecer a prisão. Teria gostado que fosse na América. Mas isso é impossível.
"Deixei-me ficar por algum tempo em Brooklyn, onde fiz toda espécie de trabalho, até poder pagar minha passagem de navio. Paguei também para trazer meu cão.
"Jamais tive notícias de Emma. Não pus os pés em Quimper, onde poderia ser reconhecido, apesar da minha nova aparência de bandido.
"Aqui, fiquei sabendo que ela era garçonete e, no momento, amante de Michoux... Talvez dos outros também? Uma garçonete, que diabo?
"Não era fácil despachar meus três patifes para a cadeia. E eu queria isso. Não tinha senão esse desejo. Vivi com meu cão a bordo de uma barca encalhada, depois no antigo posto de vigia, na Ponta do Cabélou.
"Comecei por mostrar-me a Michoux. Só isso: deixar que me visse. Mostrar minha triste figura, minha catadura de bruto. Compreende? Queria fazer-lhe medo. Provocar nele um terror que o fizesse atirar em mim. Talvez me matasse. Mas e depois? As galés! Os pontapés, as coronhadas. Os companheiros repugnantes, mais fortes que a gente, que nos obrigam a servi-los. Rondei em torno da vila dele. Metia-me. sempre no seu caminho. Três dias, quatro dias. Ele me reconhecera. Saía menos. E, no entanto, aqui, durante todo esse tempo, a vida não mudara. Tomavam regularmente o aperitivo, os três patifes. As pessoas os cumprimentavam. Quanto a mim, tinha de furtar para comer. Queria fazer depressa o que tinha por fazer.''
Uma voz, clara, se fez ouvir:
— Perdão, comissário. Este interrogatório, sem a presença de um juiz de instrução, é legal?
Fora Michoux! Michoux, branco como um papel, tenso, de narinas apertadas, lábios descorados. Mas um Michoux que falava com uma segurança quase ameaçadora.
Com um olhar, Maigret fez que um policial se postasse entre o médico e o vagabundo. Era tempo. Léon Le Glerec se levantara lentamente, como que atraído por aquela voz, de punhos cerrados, fortes como clavas.
— Sentado! Sentado, Léon!
E enquanto o brutamontes obedecia, de respiração rouca, o comissário dizia, sacudindo a cinza do cachimbo.
— Agora falo eu.
Capítulo XI - O Medo
Sua voz baixa, sua elocução rápida contrastavam com o discurso apaixonado do marujo, que o olhava de través.
— Uma palavra, primeiro, a respeito de Emma, senhores. Ela fica sabendo que seu noivo foi preso. Não tem mais notícias dele. Um dia, por motivo fútil, perde o emprego e se faz garçonete no Hotel de 1'Amiral. Trata-se de uma pobre moça, sem qualquer apoio. Homens fazem-lhe a corte como clientes ricos fazem a corte a uma empregada. Passam-se dois anos, três. Ela ignora a culpa de Michoux. Vai ao seu encontro, uma noite, no quarto do hotel. O tempo passa, a vida continua. Michoux tem outras amantes. De tempos em tempos vem-lhe o capricho de dormir no hotel. Quando sua mãe se ausenta, faz que Emma venha a sua casa. Amores mornos, sem amor. E a vida de Emma é morna também. Não se trata de uma heroína. Guarda numa caixa de conchas uma carta, uma fotografia, mas é um velho sonho que empalidece a cada dia que corre.
"Ela não sabe que Léon voltou.
"Não reconheceu o cão, que ronda em torno dela, e que tinha quatro meses quando o barco partiu.
"Uma noite, Michoux lhe dita uma carta, sem dizer-lhe a quem se destina. Marca um encontro numa casa desabitada, às onze horas da noite.
"Ela escreve. Uma garçonete. Compreendem? Léon Le Glerec não se enganara. Michoux tem medo. Sente a vida em perigo. Quer eliminar o inimigo que ronda...
"Mas é um covarde. Sentiu necessidade de gritar-me isso mesmo. Esconder-se-á atrás da porta, num corredor, depois de fazer chegar a carta à vítima, amarrando-a com um barbante ao pescoço do cão.
"Suspeitará Léon de alguma coisa? Não quererá rever, apesar de tudo, sua antiga noiva? Quando ele bater à porta, bastará disparar pela fenda da caixa do correio, depois escapar pela viela. Como ninguém reconhecerá a vítima, o mistério será ainda maior.
"Mas Léon hesita. Pode ser que tenham feito um reconhecimento do local. Talvez esteja decidido a ir, de qualquer maneira, ao encontro marcado. O acaso faz com que o Sr. Mostaguen saia nesse momento do café, um tanto alterado pela bebida, e que se detenha justamente naquela soleira para acender o charuto. Seu equilíbrio é instável. Ele dá de encontro à porta. É o sinal. Uma bala o atinge em pleno ventre.
"Aí está o primeiro caso. Michoux errou o golpe. Volta para casa. Goyard e Le Pommeret, que estão ao corrente, e que têm o mesmo interesse que o médico na eliminação daquele que os ameaça aos três, ficam assustados.
"Emma compreendeu o jogo que lhe fizeram jogar. Terá vislumbrado Léon? Terá posto a cabeça para trabalhar e identificado, finalmente, o cão amarelo?
"No dia seguinte, chego eu ao local. Vejo os três homens. Sinto o seu terror. Esperam um drama! E quero descobrir de onde pensam que partirá o golpe. Preciso também assegurar-me de que não me engano.
"Sou eu que enveneno uma garrafa de aperitivo, canhestra-mente. Estou pronto a intervir se alguém fizer menção de beber. Mas não. Michoux está atento. Michoux desconfia de tudo, das pessoas que passam, daquilo que bebe. Não ousa sequer deixar o hotel."
Emma petrificou-se em tal imobilidade que não se poderia encontrar imagem mais impressionante do estupor. Michoux levantara os olhos um instante para encarar Maigret. Depois, recomeçou a escrever, nervosamente.
— Eis o segundo drama, senhor prefeito. E nosso trio, que continua vivo, continua a ter medo... Goyard é o mais impressionável dos três. Será também, sem dúvida, o menos mau. Essa história de envenenamento o pôs fora de si. Pensa que mais dia menos dia passar-se-á alguma coisa. Adivinha que estou na pista. E toma a resolução de fugir. Fugir sem deixar traços. Fugir sem que possa ser acusado de ter fugido. Simulará uma agressão, fará crer que está morto, que seu corpo foi lançado ao mar.
"Antes, porém, a curiosidade leva-o a vasculhar a casa de Michoux, talvez em busca de Léon, talvez para propor-lhe a paz. Encontra os vestígios da passagem do bruto. Percebe que esses vestígios eu também os descobrirei, sem tardança.
"Porque Goyard é um jornalista. Sabe, por isso mesmo, o quanto são impressionáveis as multidões. Sabe que enquanto Léon viver, não haverá segurança para ele em nenhum lugar. E encontra algo verdadeiramente genial: o artigo, escrito com a mão esquerda, ao Phare de Brest.
"Fala, aí, do cão amarelo, do vagabundo... Cada sentença é calculada para semear o terror em Concarneau, para criar a possibilidade de que o homem dos pés grandes receba no peito uma carga de chumbo. Basta que alguém o veja.
"E isso por pouco não ocorreu. Começaram por atirar no cão. Teriam atirado, da mesma forma, no homem. Uma população presa de pânico é capaz de tudo.
"No domingo, com efeito, o terror reina na cidade. Michoux não sai mais do hotel. Está doente de medo. Mas decidido a defender-se até o fim, por todos os meios.
"Deixo-o a sós com Le Pommeret. Ignoro o que se passou entre eles. Goyard fugiu... Le Pommeret, que pertence a uma honrada família da região, deve estar tentado a procurar a polícia, a fim de tudo revelar. Prefere isso a ter de viver indefinidamente nesse pesadelo. Que arriscaria? Uma multa. Um termo de prisão, curto sem dúvida. Só isso. O delito principal foi cometido nos Estados Unidos.
"E Michoux, que o vê fraquejar, que tem o tiro em Mostaguen a pesar-lhe na consciência, que quer sair da enrascada a todo custo, e por seus próprios meios, não hesita em envenená-lo.
"Emma está presente. Suspeitarão dela, possivelmente.
"Gostaria de falar-lhes mais longamente do medo, porque o medo está na raiz de todo esse drama. Michoux tem medo. Michoux quer vencer o medo mais ainda do que ao inimigo.
"Ele conhece Léon Le Glerec. Sabe que o marinheiro não se deixará prender sem resistência. Conta com uma bala atirada por um gendarme ou por um popular para acabar com ele.
"Não arreda pé do hotel. Eu trago o cão, ferido, à morte. Quero saber se o vagabundo virá buscá-lo, e ele vem, efetivamente.
"Não se viu mais o animal, depois disso, o que prova que está morto."
— Sim.
Foi um simples som, na garganta de Léon.
— Você o enterrou?
— No Cabélou. Pus uma pequena cruz, feita com dois galhos de pinheiro.
— A polícia encontra Léon Le Glerec. Ele foge, porque sua única idéia é forçar Michoux a atacá-lo. Ele mesmo disse: quero vê-lo preso. Meu dever é impedir um novo drama, e foi por isso que prendi Michoux, dizendo-lhe que era para que ficasse em segurança. Não lhe menti. Mas, fazendo-o, impedia ao mesmo tempo Michoux de cometer novos crimes. Ele está no limite. Sente-se acuado por todos os lados. É capaz de tudo.
"O que não impede que seja capaz, também, de representar uma comédia, de falar-me da fraqueza da sua constituição, de pôr o próprio medo à conta do misticismo e de uma velha predição, fabricada de ponta a ponta.
"O que lhe convém é que a população se decida a abater por ele o seu inimigo.
"Sabe que podem suspeitar logicamente dele como responsável por tudo o que se passou até então. Só, nesta cela, fica a repisar se não haverá um meio de desviar definitivamente as suspeitas. Se um novo crime for cometido, estando ele preso, não teria, então, o mais incontestável de todos os álibis?
"Sua mãe vem visitá-lo. Ela sabe de tudo. É preciso que ela não fique sob suspeita, que não seja perseguida. É preciso que ela o salve!
"A Sra. Michoux vai jantar em casa do prefeito. Ela se fará levar em casa, onde as luzes não serão apagadas à noite. Mas ela volta para a cidade, a pé. Todo mundo dorme? Salvo no Hotel de l'Amiral. Basta esperar que alguém deixe o café, qualquer pessoa, e tocaiá-lo num canto de rua.
' 'Para que não possa correr, é na perna que se fará a mira.
Esse crime, totalmente gratuito, é a pior das acusações contra Michoux se não tivéssemos outras. De manhã, quando chego aqui, encontro-o febril. Não sabe que Goyard foi preso em Paris. Ignora, sobretudo, que, no momento em que o disparo foi feito contra o guarda da alfândega, eu tinha o vagabundo debaixo do meu nariz.
"Porque Léon, perseguido pela polícia e pela gendarmeria, ficou por ali mesmo, perdido na confusão de casas. Está decidido a acabar com a história. Não quer ficar longe de Michoux.
"Dorme num quarto do imóvel desabitado. De sua janela, Emma o vê... E ei-la que se reúne a Léon. Diz-lhe, aos gritos, que não tem culpa. Lança-se aos seus pés, arrasta-se de joelhos...
' 'É a primeira vez que ele a vê cara a cara, que ouve de novo o som de sua voz. E ela pertenceu a outro, a outros...
"Mas ele mesmo, por que coisas não passou, também? Seu coração amolece. Ele a apanha com mão brutal, como se fora esmagá-la. Mas são os lábios que esmaga, nos dela.
"Ele já não é o homem solitário, o homem com um só objetivo, com uma idéia fixa. Em lágrimas, ela lhe fala da felicidade possível, da vida a recomeçar...
"E partem juntos, os dois, sem um centavo, na noite. Vão não importa aonde. Deixam Michoux entregue a seus terrores.
"Vão tentar ser felizes em alguma outra parte."
Maigret encheu o cachimbo, lentamente, olhando em volta, uma a uma, as pessoas presentes.
— Espero que me releve, senhor prefeito, não tê-lo mantido informado por miúdo dos rumos que tomava a investigação. Mas quando aqui cheguei, senti que o drama mal começava. Para conhecer os seus cordões secretos, era preciso permitir-lhe que se desenvolvesse, evitando, tanto quanto possível, os danos. Le Pommeret morreu, assassinado pelo seu cúmplice. Mas tal como eu o vi, ter-se-ia matado no dia em que fosse preso. Pelo menos, estou persuadido disso. Um guarda da alfândega recebeu uma bala na perna... Em oito dias não haverá nem sinal do tiro. Em contrapartida, posso firmar agora mesmo uma ordem de prisão contra o Dr. Ernest Michoux por tentativa de assassinato e ferimentos na pessoa do Sr. Mostaguen e por envenenamento voluntário de seu amigo Le Pommeret. Tenho aqui também uma segunda ordem, contra a Sra. Michoux, por agressão noturna. Quanto a Jean Goyard, dito Servières, creio que pode ser processado apenas por desacato à magistratura, em virtude da comédia que representou.
Foi o único incidente cômico. Um suspiro. Um suspiro de alívio, aéreo, emitido pelo gordo jornalista. Que teve a audácia de balbuciar:
— Nesse caso, suponho que posso ser posto em liberdade desde que pague fiança. Estou pronto a depositar cinqüenta mil francos.
— O Ministério público apreciará, Sr. Goyard...
A Sra. Michoux desabara na sua cadeira. Seu filho tinha mais reservas de ânimo que ela.
— O senhor não tem nada a acrescentar? — perguntou-lhe Maigret.
— Perdão. Responderei em presença do meu advogado. Enquanto isso, faço todas as ressalvas sobre a legalidade desta confrontação...
E estendia o pescoço magro de galo garnisé, onde avultava um pomo-de-adão amarelento. Seu nariz parecia mais oblíquo que de costume. E não largara o caderno onde tinha tomado notas.
— Esses dois... — perguntou o prefeito.
— Não tenho acusação nenhuma contra eles. Léon Le Glerec confessou que seu único objetivo era obrigar Michoux a atirar nele. Para isso, ele se limitou a mostrar-se. Ora, não há texto de lei que...
— A menos que seja por vagabundagem — interveio o tenente da gendarmeria.
Mas o comissário deu de ombros de tal modo que ele corou da sugestão.
Se bem que a hora do almoço tivesse passado de há muito, havia ainda uma grande multidão do lado de fora, e o prefeito concordou em emprestar seu carro, cujas cortinas fechavam-se quase que hermeticamente.
Emma subiu primeiro, depois Léon Le Glerec, depois Maigret, que ocupou um dos lugares do banco traseiro, ao lado da mulher, enquanto o marinheiro tomava, canhestramente, um dos banquinhos sobressalentes, desmontáveis.
Passaram rapidamente através do povaréu. Alguns minutos mais tarde, rodava em direção a Quimperlé, e León, contrafeito, de olhar vago, perguntava:
— Por que o senhor disse aquilo?
— O quê?
— Que foi o senhor que pôs o veneno na garrafa?
Emma estava extremamente pálida. Não ousava encostar-se às almofadas. Era sem dúvida a primeira vez na sua vida que andava de limusine.
— Foi uma idéia — resmungou Maigret, apertando os dentes contra o canudo do cachimbo.
E a moça, aflita, exclamou:
— Eu lhe juro, comissário, que já não sabia o que fazia. Michoux me levara a escrever aquela carta. Eu tinha acabado por reconhecer o cão. Domingo de manhã, vi Léon, que rondava. Então, compreendi. Tentei falar com ele, mas ele se afastou sem um olhar sequer, depois de cuspir ostensivamente no chão. Quis vingar-me. Quis... Nem sei... Estava como louca... Sabia que desejavam matá-lo. E eu o amava como sempre. Passei o dia a remoer idéias na cabeça. E foi à meia-noite que corri à vila de Michoux para apanhar o veneno. Não sabia que espécie devia escolher. Ele me mostrara uma vez os frascos, dizendo-me que havia ali o bastante para matar todo mundo em Concarneau. Mas eu lhe juro que não os teria deixado beber. Pelo menos, creio que não...
A moça soluçava. Léon, desajeitadamente, dava-lhe tapinhas no joelho, para acalmá-la.
— Não poderei jamais agradecer-lhe, comissário — dizia ela, entre soluços. — O que o senhor fez foi... foi... não tenho palavras... foi de tal modo maravilhoso!
Maigret contemplava um e outro, ele com o lábio fendido, os cabelos tosados rente, ela com sua pobre figura que o Café de 1'Amiral — aquele aquário — havia desbotado.
— O que vão fazer vocês?
— A gente ainda não sabe. Sair daqui? Ir para o Havre, talvez? Afinal, consegui ganhar a vida no cais de New York.
— Devolveram os seus doze francos? Léon corou e não respondeu.
— Quanto custa o trem para o Havre?
— Não, não faça isso, comissário. Por que, então, nós não saberíamos como... Entende?
Maigret bateu com os nós dos dedos no vidro do automóvel, pois passavam diante de uma pequena estação. Tirou do bolso duas notas de cem francos.
— Tomem. Eu os debitarei na minha conta...
E quase teve de empurrá-los para fora do carro. Fechou a porta enquanto os dois procuravam ainda agradecer.
— Para Concarneau. E depressa!
Sozinho no veiculo, ele alçou pelo menos três vezes os ombros, como um homem que tem uma vontade louca de zombar de si mesmo.
O processo durou um ano. Durante um ano, o Dr. Michoux apresentou-se até cinco vezes por semana perante o magistrado com uma pasta de marroquim estufada de documentos.
E a cada interrogatório encontrava novos motivos para tergiversações.
Assim, cada peça do dossiê deu lugar a controvérsia, a inquéritos e contra-inquéritos.
Michoux ficava cada dia mais magro, mais amarelo, mais cheio de achaques — mas não desistia.
— Permitam a um homem que não tem mais de três meses de vida...
Era a sua frase favorita. Defendeu seu terreno palmo a palmo, com manobras manhosas, com reações inesperadas. Havia encontrado um advogado mais habilidoso ainda do que ele e que com ele se revezava nessa empresa.
Condenado a vinte anos de trabalhos forçados pelo tribunal criminal do Finistère, esperou durante seis meses que seu caso subisse à corte de cassação.
Mas uma fotografia velha de um mês apenas, estampada em todos os jornais, mostra-o mais magro e amarelo do que nunca, nariz de través, paletó no ombro, chapéu na cabeça, embarcando na Ilha de Ré a bordo do La-Martinière, que levou 180 forçados para Caiena.
Em Paris, a Sra. Michoux, que purgou uma pena de três meses de prisão, mexe seus pauzinhos nos meios políticos. Pretende conseguir a revisão do processo.
Tem já dois jornais do seu lado.
Léon Le Glerec pesca arenques no Mar do Norte, a bordo do La Francette, e sua mulher espera um bebê.
Georges Simenon - O Cão Amarelo
http://www.4shared.com/document/Bg7-SZn1/Georges_Simenon_-_O_Co_Amarelo.html
Tempestades são freqüentes na pacata cidade portuária de Concarneau. O ruído da chuva abafa o som de um tiro disparado contra um homem. Junto a seu corpo, um enorme cão amarelo, em cujo olhar parece haver algo de inquietante e sinistro. Configura-se assim mais um enigma que a mente astuta do comissário Maigret tentará desvendar. Para ele, impressões digitais ou objetos deixados na cena do crime valem bem menos do que gestos, olhares, silêncios ou mesmo a presença de um cão sem dono.
Boa leitura
Abraços
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M. Loureiro
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