O PREFEITO MALDITO
Tradução de TATI DE MORAES
EDITORA
NOVA FRONTEIRA
Título original: LÊ BOURGMESTRE DE FURNES
© 1938 by Georges Simenon
Direitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A
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Rio de Janeiro - RJ
Revisão
NEIDE ROMANA MOREIRA UMBERTO FIGUEIREDO PINTO
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Simenon, Georges.
S599p O Prefeito maldito / Georges Simenon ; tradução
de Tati de Moraes. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira,
1984.
Tradução de: Lê Bourgmestre de Furnes
1. Romance francês I. Título
84-0200
CDD - 843 CDU - 840-31
Não conheço Furnes.
Não conheço seu prefeito nem seus habitantes. Furnes, para mim, é como uma espécie de tema musical. Portanto, espero que ninguém, apesar de tudo, se reconheça em qualquer dos personagens de minha história.
Georges Simenon.
PRIMEIRA PARTE
DOIS MINUTOS para as cinco da tarde. Joris Terlinck ergueu a cabeça para ver a hora em seu cronômetro, sempre colocado sobre a escrivaninha: tinha justo o tempo necessário.
O tempo de, primeiro, grifar com lápis vermelho uma última quantia e de fechar um dossiê, em cujo papel pardo se lia: "Projeto de orçamento para a instalação de água e de todos os trabalhos em geral de encanamentos para o novo Hospital Saint-Eloi."
Em seguida, o tempo de afastar um pouco sua poltrona, apanhar no bolso um charuto, fazê-lo estalar e cortar-lhe a ponta com a ajuda de um belo aparelho niquelado, que tirou do bolso do colete.
A noite caíra, pois já era fim de novembro. Por sobre a cabeça de Joris Terlinck, no gabinete do prefeito de Furnes, acendia-se todo um círculo de velas, mas eram velas elétricas, com falsas lágrimas amarelas.
O charuto puxava bem. Todos os charutos de Terlinck puxavam bem, pois era ele o fabricante e reservava para si mesmo os de uma qualidade especial. Uma vez aceso, a ponta umedecida e arredondada, restava tirar a piteira de âmbar de seu estojo que, ao fechar, fazia um
estalido seco característico. As pessoas, em furnes, reconheciam por aquele estalido a presença de Terlinck.
E isso não era tudo. Os dois minutos não haviam terminado. De sua poltrona, virando um pouco a cabeça, Terlinck avistava, entre as cortinas de veludo escuro das janelas, a praça principal de Furnes, suas casas de empena denteada, a igreja Sainte-Walburge e os doze bicos de gás ao longo das calçadas. Sabia quantos eram pois fora ele quem os mandara colocar. Por outro lado, ninguém podia se gabar de saber o número de pedras que calçavam a praça, milhares de pedrinhas desiguais e arredondadas, que pareciam ter sido conscienciosamente desenhadas, uma a uma, por um pintor primitivo.
Pairando sobre tudo isso, um tênue vapor esbranquiçado ao redor dos lampiões; no chão, embora não tivesse chovido, uma espécie de verniz de laça feito de lama bem negra, que conservava o relevo das marcas das rodas de charretes.
Ainda restava meio minuto. A nuvem de fumaça estendia-se em torno de Terlinck. Através dela, via acima da monumental lareira o famoso retrato de Van de Vliet com seu traje extraordinário, suas mangas estofadas, seus laços de fitas e plumas no chapéu.
Não estaria Joris Terlinck dando uma piscadela ao seu antepassado? Ou simplesmente batendo as pálpebras por causa da fumaça?
De onde se achava sentado em sua poltrona, ele podia predizer que estava se armando um mecanismo de relojoaria, que se punha a funcionar primeiro acima, na torre da prefeitura, em que um relógio de som grave faria vibrar seus cinco toques; depois, com o deslocamento de um décimo de segundo, no campanário, de onde se ouviria o estribilho do carrilhão.
Então ele olhava, na outra extremidade do vasto gabinete, uma porta que se confundia com os lambris
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entalhados. Esperava as pancadinhas e as tossidelas. Falou:
- Entre, Sr. Kempenaar!
Poderia dizer simplesmente Kempenaar, pois se tratava do secretário da prefeitura, portanto seu subordinado. Ora, Terlinck não tratava ninguém por 'senhor', a não ser Kempenaar, e o fazia de tal maneira que era como se quisesse arrasar o secretário.
- Boa-noite, Baas!
Todos o chamavam de Baas, isto é, patrão, não apenas em sua casa, não apenas em sua fábrica de charutos, mas na prefeitura, no café e até na rua.
Era a hora da correspondência. Tudo se passava sempre da mesma maneira. Kempenaar curvava-se sobre o prefeito, com o corpo recuado, e recebia no rosto toda a fumaça do charuto. Terlinck assinava as cartas datilografadas numa máquina antiga, que só o secretário fazia funcionar.
Na terceira folha ainda não houvera um erro. Na quarta, finalmente, Terlinck riscou com a unha um A, que fora batido em lugar de um O, depois rasgou a folha em pedacinhos e a jogou na cesta de papéis, sem nada dizer, segundo a tradição.
Quando isso terminou, Kempenaar apanhou avidamente o que restava do dossiê, quis disparar para a porta, e o Baas deu-lhe corda, deixou que ele chegasse até o meio do tapete, na esperança de libertação, depois o reteve subitamente, articulando:
- A propósito, Sr. Kempenaar...
E o 'senhor' era tão insistente que o secretário, quando se voltou, tinha gotas de suor na testa marcada pela varíola.
Do centro da praça principal podia-se vê-los muito bem, Terlinck envolto em fumaça, o outro de pé a pou-
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cos metros, com o dossiê na mão, e ninguém ignorava em Furnes que eram o prefeito e seu secretário, todos cientes também de que este último iria passar por maus momentos.
- O senhor esteve ontem no sarau da Associação Saint-Joseph, certo?
- Sim, estive, Baas!
E Kempenaar ainda ignorava de onde viria o golpe.
- Parece que o senhor cantou Lês noces de Jeannette e foi muito aplaudido...
De fato, possuía uma voz de barítono e se exibia em todos os concertos de amadores.
- Leonard Van Hamme, entre outros, o cumprimentou...
Dessa vez, Kempenaar enrubesceu, pois havia compreendido. Leonard Van Hamme, o fabricante de cerveja, era na prefeitura o inimigo pessoal do prefeito.
- ...Vocês estiveram conversando a meu respeito no botequim, e o senhor deu-lhe a entender que eu era secretamente filiado à maçonaria...
- Eu juro, Baas...
- Não só cheira mal, Sr. Kempenaar, realmente cheira mal, o que me obriga a fumar assim que o vejo entrar em meu gabinete, como ainda por cima trai pelo prazer de trair, para ficar bem com alguém que um dia lhe possa ser útil... Causa-me nojo, Sr. Kempenaar... Pode se retirar... Boa noite, Sr. Kempenaar...
Quando o pobre-diabo bexigoso, malcuidado e de um asseio sempre duvidoso desapareceu pela porta entreaberta, Joris Terlinck, apoiando as palmas das mãos na escrivaninha para se levantar, tornou a dar uma piscadela a Van de Vliet.
Vliet certamente o compreendia!
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Durante todo o inverno ele se vestia da mesma maneira: polainas de couro preto, um terno cinza de tecido durável e, por cima, uma espécie de paletó curto forrado de peles. Em vez de chapéu, um gorro de lontra, cujo pêlo negro acentuava o ruivo chamejante do bigode e o azul ardósia dos olhos.
Na rua do Mercado, ele parou diante da salsicharia Van Melle, que também vendia frutas e aves, expostas em guirlandas.
- O que vai querer hoje, Baas? - perguntou a gorducha Sra. Van Melle.
- As perdizes estão frescas?
- Chegaram esta manhã... Quer que eu lhe separe uma?
Pois ele nunca levava mais do que uma. Isso talvez provocasse comentários, mas era só da sua conta. Depois retornava à praça principal. Sua casa tinha empena trabalhada, tijolos escurecidos, uma escada de cinco degraus, com balaustrada de ferro forjado. Depois de limpar a lama das solas dos sapatos, entrava na sala de jantar, onde havia dois lugares postos sobre a mesa iluminada por um abajur rosa.
A Sra. Terlinck estava costurando junto a uma lareira de cobre muito brunido, e todas as noites ela estremecia de surpresa como se jamais conseguisse habituar-se à idéia de que ele chegava um pouco antes das seis horas. Ela nada dizia, pois naquela casa ninguém desejava bom-dia ou boa-noite, coisa inútil entre pessoas que constantemente se vêem. Amontoava apressadamente os pedacinhos de tecido, bobinas, tesouras, enfiava tudo de qualquer jeito na cesta de trabalho e entreabria a porta da cozinha.
- Pode servir, Maria!
Então se olhava no espelho que encimava a lareira, numa estranha atmosfera criada pelo abajur rosa. Mantinha-se impassível, enquanto se contemplava du-
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rante todo o tempo que levava para despir seu casaco, tirar o gorro de lontra e em seguida aquecer as mãos na lareira.
Maria surgia da cozinha, pegando imediatamente o pequeno embrulho que continha a perdiz; depois trazia a sopeira e ninguém dizia uma palavra.
Os batentes das janelas não estavam fechados e, pelo vão enfeitado com um pote de cobre contendo uma planta verde, era possível vê-los de fora, movimentando-se na luz rósea, graves e silenciosos, como peixes num aquário.
Uma vez ele sentado, a Sra. Terlinck sentava-se em seguida, cruzava as mãos, recitava o Benedicite, primeiro em voz baixa, mexendo os lábios; pouco a pouco o sussurro tornava-se mais distinto, e nas últimas sílabas voltava a ser um murmúrio.
Depois da sopa, foram servidas batatas ao leite. Terlinck gostava de batatas ao leite, realçadas por uma cebola roxa, cortada em rodelas finas; era o prato que durante trinta anos ele comia todas as noites.
A porta da cozinha estava aberta e ouvia-se fervilhar a perdiz, mas os dois sentados à mesa sabiam que não era para eles.
A Sra. Terlinck esperava as últimas garfadas do Baas para anunciar, com uma vozinha amedrontada:
- Trouxeram o carvão... Ou então:
- Vieram cobrar a conta do gás...
Qualquer coisa! Alguma notícia doméstica. Então ele a olhava sem responder, aparentemente sem pensar, afastava um pouco sua cadeira e acendia um charuto.
Nessa noite, ele ainda não havia encaixado o charuto na piteira de âmbar, quando a campainha tocou repetidamente no corredor.
Era uma campainha barulhenta. E no corredor espaçoso, ladrilhado, no vão da escada ampla, os sons
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ecoavam de um lado a outro das paredes, sobretudo à noite, sobretudo quando não se esperava.
Esperava-se tão pouco que Maria, a empregada, ficou um momento olhando o patrão sem saber o que devia fazer. E quando foi abrir a porta, ouviu-se alguém cochichando no corredor. Afinal voltou e anunciou, surpresa e inquieta:
- É o jovem Claes...
Essa visita imprevista bastou para dar à fisionomia da Sra. Terlinck uma expressão de catástrofe. Olhou de soslaio para o marido, depois para Maria, e seus olhos feitos para chorar exprimiam angústia.
- Onde está ele?
- Deixei-o no corredor...
Maria sequer acendera a lâmpada! Terlinck encontrou Jef Claes em pé na escuridão, junto à parede, com o chapéu na mão.
- O que você quer?
- Preciso lhe falar, Baas...
Tudo aquilo era totalmente irregular. Jef Claes, que trabalhava havia poucos meses na fábrica de charutos, não tinha nada que vir bater à porta de seu patrão. E se havia algo de importante a lhe dizer, devia ter lhe falado durante o dia, no escritório.
Portanto, Terlinck abriu a porta que ficava defronte à sala de jantar, apertou o interruptor, entrou em seu gabinete e voltou-se, impaciente:
- Então?... Entre...
A peça não era aquecida durante o dia todo, mas, ao entrar, Terlinck acendia um radiador a gás, colocado atrás de sua poltrona e que lhe queimava as costas.
Sentando-se, deixou o rapaz de pé, notou-lhe os olhos febris, as mãos que trituravam a aba do chapéu.
- O que você quer?
O outro estava tão emocionado que não conseguia falar e olhava ao seu redor, como se quisesse fugir.
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Em vez de encorajá-lo, o maciço Terlinck fitava-o através da fumaça de seu charuto, não como se olha seu semelhante, mas como quem olha qualquer coisa, não importa o que, um muro ou a chuva que cai.
- Bem, Baas...
Ele sabia que de nada adiantaria chorar. Ao contrário! Procurava conter-se. Abria a boca, tornava a fechála, puxava o colarinho, como se o estivessem esganando.
- Eu vim...
O rapaz era magro como o frango raquítico de uma ninhada que por motivos misteriosos a galinha enxota a bicadas. Estava vestido de preto, pois todos os empregados de Terlinck sentiam-se obrigados a vestir-se de preto, com colarinhos e punhos engomados, sapatos de bico de verniz.
- Preciso lhe pedir...
E, finalmente, como um abscesso perfurado:
- Preciso de mil francos... Não ousei falar-lhe no escritório... O senhor desconta o dinheiro do meu ordenado.
A fumaça subia suavemente do charuto, um charuto negro, de cinza extremamente branca, que Terlinck mantinha intacta o maior tempo possível e contemplava com satisfação.
- Quando foi que recebeu um adiantamento?
- Há dois meses... Minha mãe estava doente...
- E sua mãe está doente de novo?
- Não, Baas...
Ele sacudia negativamente a cabeça. Sentia-se mais perdido, no meio daquele gabinete invadido pelo calor do radiador a gás, do que numa cidade desconhecida ou num deserto.
- Se o senhor não me der os mil francos, vou me matar...
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- Ah, sim? - espantou-se moderadamente Terlinck, erguendo a cabeça. - Você faria mesmo uma coisa dessas?
- Será preciso... Eu lhe juro, Baas, que tenho necessidade absoluta desse dinheiro...
- E, pelo menos, tem um revólver?
O rapaz não pôde deixar de tocar no bolso, de proclamar com orgulho involuntário:
- Tenho, sim!
- Esqueci que seu pai foi ajudante-de-ordens... De novo o silêncio e, mais perceptível, o silvo do gás
nos pequenos furos do radiador, as labaredas azuis que dançavam.
- Escute, Baas... Se quiser, eu lhe direi tudo, só ao senhor, pedindo-lhe que guarde segredo...
A escrivaninha era de madeira clara, polida pelo tempo, com tampo de marroquim verde-escuro, sobre o qual se enfileiravam tinteiros, canetas e um peso de vidro representando Nossa Senhora de Lurdes; à direita de Terlinck, ao alcance de sua mão, um cofre chumbado na parede.
- Estou ouvindo...
- Pois bem!... Engravidei uma jovem... Vou me casar com ela... Juro que um dia a desposarei, mas no momento não é possível...
A fisionomia de Terlink continuou impassível, e seu olhar pousava sobre o rapaz, como se este fosse uma parede.
- Temos de fazer alguma coisa... Compreende o que quero dizer?... Encontrei, em Nieuport, uma mulher que aceita mediante dois mil francos, dos quais mil pagos adiantadamente...
O rapaz arfava, esperando por uma resposta, uma palavra, um reflexo; mas nada veio, a não ser uma pergunta banal, nem mesmo irônica:
- Qual a sua idade?
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Dezenove anos, Baas... Ainda tenho de fazer o
meu serviço militar... Depois, tenho certeza de me arranjar na vida e poderei...
Alguém passou na calçada, e Jef Claes voltou-se involuntariamente para a janela, constrangido que o pudessem ver de fora naquela postura. Mesmo de longe, não poderiam adivinhar tudo o que ele dizia?
- Se pudesse me casar agora com ela, eu casaria... Mas é impossível... O pai dela me expulsaria de casa... Há muito tempo, ele proibiu que nos encontrássemos...
- Quem é ela?
Nenhuma resposta. O jovem hesitava, o rosto esfogueado, as faces ardendo. Parecia que o silêncio de Terlinck era ainda mais autoritário do que suas palavras.
Por fim, Jef balbuciou, de cabeça baixa:
- Lina Van Hamme...
- A filha de Leonard?
- Eu lhe imploro, Baas!... Sei que o senhor é bom...
- Nunca fui bom...
- Sei que compreende que...
- Não compreendo nada de nada...
Seria possível? Não! Ele devia estar brincando! Jef erguia a cabeça, buscava uma explicação no rosto do patrão.
- Se eu sair daqui sem esse dinheiro, me mato... O senhor não acredita?... O revólver está carregado, no meu bolso... Não quero que Lina seja desonrada...
- O mais certo seria tê-la deixado em paz! Terlinck mostrava-se tão calmo como na prefeitura,
quando dizia suas verdades ao Sr. Kempenaar.
- Baas! Se me puser de joelhos...
- De nada adiantaria, e você iria parecer um imbecil...
- Não vai me recusar o que estou lhe pedindo, não é, Baas? O que são para o senhor mil francos?
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- São mil francos!
- Para mim isso representa toda a minha vida, a honra, a felicidade de Lina... Não posso acreditar que um homem...
- É preciso acreditar!
- Baas!
- O quê?
Terlinck discernia nos olhos do rapaz um desvario, um desvario de ódio, uma ameaça terrível.
- É para o cofre que você está olhando? Está pensando que poderia me matar e se apossar do que há dentro do cofre e dos milhares de francos para pagar todas as parteiras do mundo?
Suspirou, lamentando que a cinza do seu charuto tivesse desabado, e bateu na lapela do casaco para limpá-lo.
- Você é jovem, Jef! Isso vai passar... Ao mesmo tempo, ele se levantava.
- O senhor se recusa?
- Recuso-me.
- Por quê?
- Porque cada um deve assumir a responsabilidade dos seus atos. Não fui eu que tive prazer com a Srta. Van Hamme, não é mesmo?
Ele se adiantava e Jef recuava.
- Sempre proibi que viessem me incomodar na minha casa.
Seu interlocutor já atingira o ar fresco do corredor. Terlinck acendeu a luz, abriu a porta.
- Boa-noite!
E a porta se fechou sobre a praça deserta, onde iriam atravessar os passos sonoros de Jef Claes.
Sequer ocorreu a Joris a idéia de dizer à sua mulher o que Jef viera fazer e a ela ocorreu ainda menos a idéia de
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lhe perguntar. Curvada sobre sua costura, contentou-se em lançar olhadelas ao marido, com a sua eterna expressão inquieta e desolada.
Era uma mulher que passara a vida chorando e que choraria até o fim de seus dias. Maria, com um avental de xadrez amarrado na cintura, acabava de tirar a mesa.
- Está pronta? - perguntou Terlinck.
- Está pronta, Baas.
O patrão foi até a cozinha e apanhou um prato esmaltado, em que fora colocada a perdiz. Junto ao fogo, cortou a ave em pedacinhos, esfarelou pão no molho, como quem prepara a comida de um cão.
Em seguida, subiu ao segundo andar, percorreu o comprido corredor entre os cômodos da mansarda. à medida que se adiantava, fazia menos ruído, forçava-se a andar na ponta dos pés, até finalmente abrir o postigo de uma porta.
Imediatamente cessou um canto ou, antes, um estranho recitativo improvisado por uma voz feminina. Do outro lado do postigo a obscuridade era total. Mal se percebia um corpo curvado sobre uma cama.
- Sou eu, Emilia... - murmurou Terlinck, com doçura.
Silêncio. Mas ele via olhos fixos em sua direção, como se vêem pupilas na noite das florestas.
- Você está boazinha, não é mesmo? Muito boazinha? Esta noite eu lhe trouxe uma perdiz...
Esperava, como um domador espera que o animal se acalme totalmente, antes de entrar na jaula.
- Quietinha, Emilia... Quietinha... Lentamente, ele fazia girar a chave na fechadura.
Depois, com a porta entreaberta, só tinha que dar um passo, fazer um gesto para depositar o prato esmaltado sobre a cama.
- Quieta...
E o olhar... o corpo dobrado sobre si mesmo...
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- Quieta!...
Então fechou a porta, espiou ainda um instante pelo postigo, mas sabia que Emilia não se moveria, enquanto sentisse a sua presença ali.
Ao descer ao andar térreo, nada disse. Sua mulher costurava, erguia os olhos para ele, suspirava e baixava-os sobre o trabalho. Pela porta aberta, via-se Maria lavando a louça.
Depois ele enfiou o paletó forrado, como nas outras noites, o gorro de lontra e entrou no gabinete para apanhar charutos na caixa que ficava a um canto da lareira.
Fora, não chovia, mas a bruma cobria o chão e os objetos com uma camada líquida. Na prefeitura só estava aceso o disco ruço do relógio acima da torre, no comissariado de polícia, à esquerda da entrada principal, luzia uma lanterna vermelha.
No momento de entrar, como fazia todas as noites, no café da Velha Torre, umas poucas casas adiante da sua, ele leu maquinalmente na placa de marmorite, em letras douradas: Cervejas Van Hamme.
Terlinck não sorriu, sacudiu os sapatos, empurrou a porta de vidro fosco e penetrou no calor e no odor dos charutos, num burburinho em que se adivinhava a litania:
- Boa-noite, Baas...
Paredes e móveis eram escuros. No Velha Torre fora copiado o estilo pesado e severo da prefeitura, até na decoração de brasões e na lareira adornada de madeira entalhada.
Sem se apressar, e até com propositada lentidão, Terlinck ia despindo a peliça curta, olhando à esquerda e à direita, espiando as cartas dos jogadores de whist, a posição das peças sobre o tabuleiro de xadrez, até finalmente sentar-se no seu lugar de costume, entre o balcão e a lareira.
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Seu estojo estalou; já havia fumado a metade de um charuto e nesse momento apanhava uma segunda piteira, mais comprida do que a primeira, para que a fumaça tivesse sempre a mesma distância a percorrer e mantivesse uma temperatura uniforme.
Kees, o dono do Velha Torre, trouxe-lhe um copo de cerveja escura, coberta de uma espuma cremosa.
- Boa-noite, Baas...
- ...noite, Kees.
Na verdade, as sílabas eram mais pesadas, mais duras, porque eles falavam flamengo, acrescido do sotaque de Furnes.
O que Kees realmente dizia era:
- Goeden avond, Baas...
E o outro replicava mais ou menos:
- ...navond, Kees.
Um cartaz na parede representava um charuto com uma quarta parte consumida, colocado a um canto de uma mesa coberta por um pano de franjas; no outro, via-se um personagem roliço, que fumava seu charuto, sorrindo de beatitude.
Os dois cartazes, em tons de antigas pinturas flamengas, eram anúncios dos charutos Vlaamsche Vlag, que Terlinck fabricava.
Vlaamsche Vlag! Bandeira flamenga!
Alguns bebiam genebra, mas a maioria tomava cerveja. E, no entanto, era o odor penetrante da genebra que dominava, traspassando até mesmo, ao que parecia, o aroma espesso dos charutos e cachimbos.
As vezes o aquecedor de pesadas peças de cobre ardia, soprado por algum golpe de ar, num súbito frenesi. As pernas se estiravam. Os peões avançavam no tabuleiro. Os jogadores de cartas se esquentavam. Um clarim soava em algum longínquo pátio de caserna.
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- Está trapaceando, Poterman! - dizia Terlinck tranqüilamente, do seu canto, sempre o mesmo, no ângulo da lareira.
E Poterman corava, pois não se tratava de uma brincadeira. Terlinck jamais brincava. Proferia verdades assim, tranqüilamente, sem se dar ao trabalho de envolvê-las num sorriso ou em indignação.
- Eu trapaceio?
- Sim, você! Acaba de empurrar com o dedo mínimo o seu bispo para uma casa adiante...
- Se fiz isso, juro que não foi de propósito!
O ambiente era pesado, o ar, os gestos, a luz que mal penetrava na camada de fumaça, estendendo-se como um lençol; e, lá fora, aquele outro lençol de umidade fluida, milhares de gotinhas invisíveis suspensas acima da cidade e dos campos.
Pesados eram os peões do tabuleiro de xadrez, pesadas as cartas de desenhos ingênuos e os cartazes, pesado o calor, pesado também, ainda impresso em letras góticas, o título do jornal local, que Joris Terlinck estava abrindo.
Kees, o dono do Velha Torre, enxugava a bomba de cerveja cada vez que servia um copo e sua mulher, no fundo da sala, consertava uma calça, que devia pertencer a um garoto de dez anos.
Ainda pairava no ar um cheiro de guisado de coelho. O proprietário e sua mulher haviam jantado coelho. A criada fora se deitar no andar de cima, pois se levantava às cinco da manhã.
E eis que de repente se ouviram passos precipitados, cruzando a praça numa ruidosa linha diagonal. Um homem corria, atracava-se com a porta que, em sua ansiedade, não conseguia abrir imediatamente, sem dúvida girando o trinco em sentido inverso.
Todos o olharam. Era um dos dez policiais de Furnes, pai de família numerosa, nomeado havia dois anos.
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- Baas!... Baas!...
Apesar da gravidade da situação, ele sentia o quanto era incorreta a intrusão naquele café reservado às pessoas importantes da cidade, e quanto mais tentava esgueirar-se discretamente entre as mesas, mais esbarrava nos móveis.
Nem mesmo sabia se poderia falar diante de todos os presentes.
- Baas... - repetiu ele.
E Baas o olhava de cenho carregado.
- Houve tiros de revólver.
Será que ele devia ou não revelar?! Se pelo menos o houvessem encorajado com uma palavra ou um olhar.
- Há um morto...
Uma espessa espiral de fumaça subiu do charuto, e as pernas do chefe se mexeram ligeiramente.
- Foi Jef Claes... primeiro ele atirou na Srta. Van Hamme, pela janela...
Causou espanto porque Joris Terlinck não teve um só gesto e, durante um bom momento, manteve os olhos fechados.
- Aconteceu há poucos instantes... Meu colega Van Staeten ficou lá... Vim aqui para...
O policial gostaria, para se recompor, de beber um daqueles copos de genebra ou de cerveja, de preferência genebra, que se achavam sobre as mesas.
- Ela morreu? - perguntou finalmente Terlinck.
- Não creio. Ainda não estava morta, quando... O prefeito apanhou sua peliça e o gorro de lontra.
- Venha!
Não era longe, na primeira rua, a rua do Mercado, três casas além da Van Melle, onde Terlinck comprara a perdiz. Mas havia horas que a salsicharia fechara. Pessoas estavam paradas, todas a uma certa distância, nos cantos escuros.
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A residência dos Van Hamme era uma casa grande com três janelas em cada andar, de frente para a rua. Como na casa do prefeito, como por toda parte, os batentes não eram fechados à noite, talvez para exibir a riqueza do interior.
O comissário Kloop já estava lá. E mais três policiais.
Era fácil compreender, sobretudo à vista dos cacos de vidro na calçada, o que ocorrera.
Na sala da frente da casa dos Van Hamme, um ângulo era ocupado pelo piano. Lina devia estar tocando. Seu pai, o corpulento Van Hamme, que pesava 130 quilos, sem dúvida se colocara ao lado da filha, para virar as páginas da partitura.
Jef Claes atirara de fora, mirando Lina.
Depois enfiara na boca o cano ainda quente da arma e...
- Telefonei ao hospital, Baas... Eles me prometeram uma ambulância...
- Ela não morreu?
- O senhor não pode vê-la porque está estirada no chão, atrás do sofá... Está sangrando muito... o pai...
E subitamente no céu soaram as notas aladas do carrilhão, de uma serenidade desumana, ao mesmo tempo que as nove pancadas do relógio da prefeitura.
- Atenção, Baas... Coloquei uma coberta porque não é um espetáculo bonito...
Tratava-se do corpo ainda estirado na calçada: Jef Claes. Um policial descarregava o revólver, que acabara de apanhar junto à valeta.
Pingos d'água caíam; não formavam uma chuva de verdade, mas alagavam mais do que a chuva. Começou a surgir no fundo da rua, entre os telhados, uma lua cercada de uma grande auréola cinza.
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Quando entrou na casa, Terlinck quase esbarrou em Leonard Van Hamme que soluçava, apoiando os dois braços na parede do corredor.
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II
A COISA TRANSPARECEU lentamente, tão lentamente quanto as gotinhas impalpáveis através da fina peneira estendida sobre a cidade e os campos.
No entanto, desde o primeiro dia, desde a primeira hora, a Sra. Terlinck, que mais comumente chamavam de Theresa, havia percebido, talvez antes mesmo do próprio Joris.
Como ela soubera da notícia? A praça, com seu calçamento de pedrinhas molhadas, era tão sonora, sobretudo à noite! Na certa pessoas haviam parado, portas se abriram. Sem dúvida ela entreabrira a sua, sem se mostrar, encolhida no corredor, escutando por uma fresta.
Quando Terlinck voltou, ela estava deitada, mas imediatamente, mal acendera a luz, ele percebeu seus olhos abertos sobre o branco do travesseiro.
O casal dormia no mesmo quarto, mas não na mesma cama, pois Joris alegava que só conseguia repousar no colchão duro de uma cama de ferro. Sentara-se na sua cama; tirava as polainas, os sapatos e notava os olhos da mulher. Gostaria de escapar àquele olhar, ou tornar o seu rosto impassível, mas sabia que não estava impassível e que os olhos percebiam.
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Contudo, não era mais do que uma espécie de hesitação, de oscilação ou talvez ainda um espanto, a que não faltava certa dose de ingenuidade.
Através da janela, que desvendava a sala dos Van Hamme (uma mobília magnífica, recentemente chegada de Bruxelas), Jef Claes havia disparado o revólver, depois se suicidara.
E agora Terlinck poderia jurar que, se sua mulher ousasse lhe fazer pergunta, teria sido a mesma que fizera a si próprio, assim que soube da notícia:
Será que, depois de sair da casa de Terlinck, Jef tivera tempo de ver Lina, de lhe falar, de contar seu encontro com o Baas?
A resposta era não. E já se sabia que o rapaz não dirigira a palavra a ninguém. Entrara como um furacão no pequeno café que ficava na esquina da rua SaintJean. Dois ou três fregueses ouviam rádio. Viram-no ir diretamente ao balcão e beber três copos de genebra, um atrás do outro.
Terlinck suspirou, exasperado com aquele olhar fixo nele e teve a impressão de apagá-lo, apertando finalmente o comutador da luz.
Levantou-se às seis horas, como todas as manhãs, e deparou com o olhar na sala. Theresa, que já havia lido os jornais, abanava dolorosamente a cabeça, mais esmagada do que nunca por todas as misérias do mundo.
Era dia de mercado. O sol ainda não despontara, mas já se ouviam as patas dos cavalos na praça, o canto dos galos, às vezes um longo mugido; nesse dia, o ritmo da cidade não era o mesmo, tampouco o seu cheiro.
Por muito tempo, porque depois de suas abluções o frio lhe entorpecia a ponta dos dedos, Joris Terlink estendeu as mãos pálidas sobre o forno da cozinha, do qual erguera o tampo. Depois, foi apanhar três ovos sobre um aparador atrás da porta da adega, sem se preocupar com
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Maria, que punha a mesa para o desjejum e colocava fatias de toucinho no fogão.
Terlinck bateu os ovos numa tigela florida, sempre a mesma, botou sal, pimenta, misturou pequenos pedaços de pão macio e finalmente subiu as escadas.
A meio caminho, já estava de ouvido atento. Sabia, pelos ruídos, se Emilia estava calma ou se a cena seria penosa. E continuava escutando de pé atrás da porta, depois abria o postigo e por fim entrava no quarto, com a tigela na mão.
- Aqui está a papinha... - dizia então. - A boa papinha para Mimilia... Mimilia está boazinha?... Ela vai comer direitinho sua papinha?...
Não sorria. Sua fisionomia de feições duras permanecia a mesma com que, na prefeitura, assinava a correspondência apresentada por Kempenaar.
Em certas manhãs, Emilia soltava gritos estridentes, colada contra a parede, que ela sujara de todas as maneiras, tomada de um terror que nada conseguia acalmar.
Outras vezes ele a encontrava prostrada, dobrada sobre o ventre, sempre nua, pois ela não podia suportar o contato de roupa ou coberta, os dentes cerrados e as unhas enfiadas no tecido do colchão.
- Quietinha, Mimilia...
Nessa manhã, ela se olhava num pedaço de espelho e não notou a presença do pai. Ele pôde colocar a tigela a seu lado e retirar, com gestos prudentes, pois não devia assustá-la, o pedaço de oleado que sempre tentava colocar debaixo dela, pois Emilia nunca se lavava e era insensível à sujeira.
A única claridade do quarto vinha de uma clarabóia, na qual fora colocada uma grade. Para renovar o ar, era preciso aproveitar um momento de calma; e, nessa manhã, Terlinck julgou ser um bom resultado o fato de ter conseguido retirar o oleado sujo.
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- Coma, Mimilia...
Terlinck se afastava, recuando. Na torneira, que ficava no final do corredor, limpava sem nojo o oleado.
Depois, como de costume, ele desceu para comer seus ovos com toucinho. Pensou em Van Hamme e, por associação de idéias, olhou para Theresa, que o fitava. Era pouca coisa, mas bastou para deixá-lo de mau humor.
Atravessou o mercado. Os grupos discutiam o acontecimento, mas sem ardor, discretamente, sobretudo diante das crianças.
Das oito às nove horas, ele permanecia na prefeitura, cuja imensa escrivaninha era a mesma havia séculos, defronte de Van de Vliet, a. quem todas as manhãs seu olhar dava um estranho bom-dia. Então acendia o seu primeiro charuto, abrindo o estojo de estalido familiar.
O dia surgia, encoberto e indolente, atravessado por silhuetas escuras de movimentos lentos.
Kempenaar veio anunciar que a Sra. Claes, mãe de Jef, o esperava há meia hora.
- O que devo lhe dizer, Baas? Creio que é a respeito do enterro...
Joris recebeu-a. Sua figura negra estava molhada como o mundo naquele dia, com umidade espalhada no rosto, lágrimas e chuvisco, as narinas já vermelhas, arfando.
- Como podem me tratar dessa maneira, Baas? Sou uma mulher honesta, não há quem não saiba disso em Furnes. A vida inteira, trabalhei sem descanso para educar meu filho...
O Baas não estava nada comovido. Fitava-a sem curiosidade, soltando pequenas baforadas do seu charuto.
- Por que haveriam de tratá-la mal? Não foi a senhora quem atirou em Lina Van Hamme.
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- Eu nem sabia que era a ela que meu filho estava pretendendo! Senão o teria feito compreender que não era moça para ele...
As mulheres do campo, na praça, haviam aberto seus guarda-chuvas, embora não estivesse propriamente chovendo. Os patos, logo abaixo das janelas de Terlinck, faziam uma algazarra ensurdecedora.
- Afinal, o que a senhora está querendo?
- Não tenho dinheiro, Baas... Pensei que houvesse algum nos bolsos dele... Mas não encontrei nada... Então, para o enterro...
- A senhora tem um atestado de indigência?
Não, ela não tinha. Sempre trabalhara como faxineira, e até então o filho lhe entregava o que ganhava com Terlinck.
- Tenho a certeza de que as pessoas não vão mais me dar trabalho...
Isso pouco importava a Terlinck. Ele tocou a campainha, chamando Kempenaar.
- Prepare um atestado de indigência em nome da viúva Claes...
Depois, quando o secretário já ia saindo, ele tornou a chamá-lo.
- Ainda há alguns caixões?
Tratava-se de compridos caixões de madeira branca, mal aplainada, guardados de reserva para casos urgentes, na garagem da bomba de incêndio.
- Restam ainda três, Baas.
- Dê um à Sra. Claes.
Pronto. Estava resolvido! Ela podia se retirar, sempre fungando, encolhendo-se para chegar mais humildemente até a porta.
O comissário Klipp veio apresentar seu relatório, e Terlinck, depois de assiná-lo, saiu da prefeitura para ir à fábrica de charutos, situada no bairro novo.
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- Vai ser preciso substituir o jovem Claes - anunciou ele ao contador, instalando-se no seu escritório.
Ali, ao contrário da prefeitura e de sua própria casa, tudo era claro e moderno, cheirava a verniz e a linóleo.
- Já encontrei alguém, Baas.
Por espírito de contradição ou por princípio, ele exclamou:
- Não quero! Ponha um anúncio no jornal, e eu mesmo entrevistarei os candidatos.
Detestava o Sr. Guillaume, seu guarda-livros, que exercia também as funções de diretor. Talvez o detestasse ainda mais porque não tinha nada a lhe censurar. Era um homenzinho obeso, minucioso, de uma polidez perfeita, de um asseio meticuloso, a pele fresca, um alfinete de gravata ornamentado com uma granada em sua gravata lilás.
- Vou mandar colocar o anúncio, Baas. Os cartazes para as cigarrilhas chegaram. O azul está um pouco mais pálido do que o modelo, mas o impressor afirmou que era impossível obter a mesma tonalidade...
Ao voltar para casa ao meio-dia, Terlinck passouperto do velho hospital, que logo seria substituído por um novo, obra sua, mas ainda inacabado.
Era uma velha construção sombria, precedida de um pátio quadrado, por onde as toucas das freiras apressadas passavam como andorinhas.
Não era sua intenção entrar; no entanto entrou, de má vontade, dando-se ares de prefeito inspecionando um serviço público. Parou no meio do pátio e examinou os muros, penetrou no andar térreo, nas vastas cozinhas, que exalavam um cheiro insípido.
Assim, aparentemente indiferente, subiu ao primeiro andar e percorreu o longo corredor de tábuas enceradas, para o qual davam as salas.
- Bom-dia, senhor prefeito... Veio ver a nossa doente ferida?
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Era a irmã Adonie, a mais antiga freira do convento, que já passara da idade, mas continuava rosada como um bombom. Curioso ver seu rosto infantil turvarse de mistério, enquanto ela puxava seu interlocutor pela manga, para dentro de uma saleta vazia.
- Será que já o puseram a par, senhor prefeito? O Sr. Van Hamme veio esta manhã e, quando soube da notícia, recusou-se a entrar no quarto da filha...
Irmã Adonie sussurrava, como só as religiosas sabem sussurrar, enquanto as contas do rosário retiniam nas pregas profundas de sua saia.
- A mocinha, como o Dr. Dering constatou desde o primeiro exame, está grávida... Parece que de quatro meses, e se apertava até quase sufocar... O senhor quer vê-la?
Ele hesitou, decidiu que não.
- A bala apenas roçou o pulmão. Conseguiram extraí-la esta manhã, e a operação foi muito bem-sucedida. Agora, ela está dormindo...
Poderia vê-la, já que ela estava dormindo. Teve a tentação. Mas não!
- Eu lhe agradeço, irmã... Mandarei saber notícias da moça...
Na cidade, as pessoas já deviam saber, mas são coisas que se preferem não comentar. E Leonard Van Hamme, tão metido a importante!
Agora estava sozinho em sua vasta casa, pois o filho era oficial aviador em Bruxelas, e o pai costumava contar a quem quisesse ouvir que o rapaz transportara o rei várias vezes em seu avião!
Seria possível que alguém, ao ver Terlinck passar com sua peliça, seu gorro de lontra e seu charuto, percebesse que ele não era mais exatamente o mesmo homem da véspera?
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Notava tudo. Uma carroça de tijolos, na rua de Bruges, estacionara do lado proibido da rua, e ele foi reclamar com o guarda.
- O carroceiro me disse que era só por uns minutos...
E ele:
- Não existem minutos! Existe um regulamento! Tudo se passara tão rapidamente, a visita de Jef
Claes com ar enlouquecido, os disparos através da janela, que ele ainda não tivera tempo de encarar todas as conseqüências.
Leonard Van Hamme iria pedir demissão da presidência do Círculo Católico? Iria reaparecer, no Conselho Comunal, à frente dos conservadores?
Talvez mesmo seu filho, depois do escândalo, fosse obrigado a pedir demissão das Forças Armadas.
Terlinck observou que folhas de repolho, apesar da hora, ainda estavam espalhadas pela praça, e tomou nota mentalmente. Não se esqueceria...
Como teria de esperar cinco minutos pelo almoço, dirigiu-se maquinalmente para o seu gabinete; parou diante da porta, percebeu de repente que estacara involuntariamente, e isso o aborreceu.
Por que não entrara com naturalidade, como nos outros dias? E por que tivera, pelo espaço de um segundo, de bem menos que um segundo, a sensação de que havia alguém atrás dele no corredor, à esquerda, no lugar onde Jef Claes o esperara na véspera, na obscuridade?
Então abriu e fechou violentamente a porta, curvouse para aproximar o fósforo do radiador a gás, que acendeu com o seu ruído habitual. Aproveitou a folga de tempo para encher seu estojo de charutos, e assim, em pé diante da lareira, deu as costas ao aposento. Na véspera, o rapaz estiver a bem no centro...
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Não lamentava sua recusa. Não tinha motivo algum para dar mil francos, ou mesmo cem, a um empregado porque esse empregado engravidara uma moça.
Não gostava de Jef Claes nem de ninguém. Não lhe devia nada. Não devia nada a ninguém, a não ser a si mesmo, pois ninguém nunca o ajudara, nunca lhe dera o menor presente, sequer uma pequena alegria.
E quanto a cumprir o seu dever de cristão, certamente não seria ajudando o casal a cometer um pecado mortal, que constituía inclusive um crime.
Maria veio abrir a porta, sem nada dizer, o que significava que o almoço estava servido. A sopa já estava na mesa, pois se tomava sopa duas vezes por dia. Depois, haveria costeletas e couves-de-bruxelas.
Theresa comia da mesma forma como fazia tudo o mais, com gestos tímidos, furtivos, que podiam dar a impressão de que esperava ser espancada.
Ora, ele nunca a espancara; nunca erguera a voz, como faz a maioria dos maridos.
Em moça, tanto quanto ele se lembrava, ela era tão alegre como as outras, bastante bonita, roliça, com covinhas nas faces, o que não se poderia imaginar ao vê-la agora.
Era a filha de Justus de Baenst, o arquiteto que descendia de uma das famílias mais antigas da região, daquelas famílias que, no tempo de Van de Vliet, eram bastante ricas para construir barragens e drenar pântanos.
Contudo, Justus de Baenst, embora orgulhoso, não possuía dinheiro e era um tipo original, que nunca aceitava construir as casas que lhe encomendavam, pois não correspondiam ao seu gosto.
Na época do noivado de Terlinck, ele já bebia, e depois, morando sozinho em sua residência da rua Sainte-Walburge, fazia-o a tal ponto que, várias vezes por semana, tinha de ser levado para casa.
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Naquele tempo Joris Terlinck era pobre e morava com sua mulher em dois quartinhos.
Seria Theresa ainda alegre? Era extraordinário, mas ele não se lembrava. É verdade que saía de manhã e voltava à noite. E quando voltava trazia trabalho para uma parte da noite.
Era guarda-livros. Não trabalhava para um só patrão, mas duas horas aqui, três horas ali, pondo em dia os livros dos pequenos comerciantes, incapazes eles próprios de se encarregarem da tarefa.
Talvez fosse por isso que ele conhecia tão bem Furnes?
Entre outros encargos, passava duas horas por dia cuidando da contabilidade da Sra. de Groote, Bertha, viúva de 45 anos, dona da melhor tabacaria da cidade. E ele a aconselhara a montar uma pequena fábrica.
Realmente era-lhe difícil lembrar-se de como era Theresa naquela época. Ela estava grávida. Passava muito mal. Como a mãe já houvesse morrido, quem a ajudava a cuidar da casa era uma velha vizinha, que Terlinck detestava.
Se quisesse realmente se lembrar, poderia consultar as fotografias do álbum. Na verdade, o casal não se fazia fotografar com freqüência, pois esse luxo custava caro.
Recordando agora, o passado parecia ao mesmo tempo muito longo e muito curto. Theresa tivera um aborto e durante um bom período sua saúde fora precária.
Talvez um ano mais tarde, depois de a velha vizinha - que ele odiava sem razão - ter partido, Theresa perguntara:
- É verdade o que ela disse?
- O que foi que ela disse?
- A Sra. de Groote e você... que são...
Mas não ousara pronunciar a palavra.
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Suas covinhas haviam desaparecido; não era mais roliça; seu rosto encompridara; os olhos eram agora cercados de olheiras. Muito pálida, ela chorava; chorava como se suas lágrimas nunca devessem cessar.
- Em primeiro lugar, você bem sabe que o médico nos proibiu de ter relações durante um certo tempo. Com a Sra. de Groote tenho certeza de não apanhar doenças. E um dia você vai ver que isso serviu para alguma coisa...
Que idade ele tinha? Vinte e cinco anos? Vinte e seis? Já era um homem calmo e pensava cruamente, falava do mesmo jeito, com o seu duro bom senso.
Estava certo de ter razão; era do seu interesse e da sua mulher satisfazer a Sra. de Groote, que tinha apetites um tanto ridículos e ares voluptuosos de mulher jovem.
Fora ele quem lhe redigira o testamento: não haveria nada para o sobrinho e a sobrinha, que moravam em Bruxelas e vinham duas vezes por ano, com os filhos, paparicar a tia.
O mais curioso era que a Sra. de Groote morrera de uma pneumonia - ela, que sempre sentia tanto calor! - na ocasião em que Theresa tornara a engravidar.
O testamento fora aberto. O sobrinho e a sobrinha haviam ameaçado processá-lo; mas o advogado deles os dissuadira.
Theresa, em vez de se alegrar, suspirou:
- Isso ainda vai causar a nossa desgraça! Desde então era impossível tirar-lhe da cabeça a
convicção de que era um castigo do céu ela ter dado à luz uma criança anormal!
Ele podia passar a vida, já que sua mulher não queria compreender, explicando-lhe que uma coisa nada tinha a ver com a outra?
Precisara habituar-se a vê-la chorar por qualquer motivo, vagar pela casa de olhos eternamente apavorados.
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Ela pouco falava, e quando dizia algo, era a conclusão de um longo debate íntimo. Empurrando delicadamente a saladeira de flores azuis para Terlinck, disse apenas:
- A criança vai nascer sem pai...
Ele não a olhou. Servia-se de salada, enchendo o prato como era seu hábito. E sabendo o que ela havia pensado antes de chegar àquele pedaço de frase, respondeu:
- Houve outras nessas mesmas condições durante a guerra!
Depois voltou-se, sentindo a presença da criada atrás de sua cadeira:
- O que está esperando, Maria?
- Nada, Baas.
Havia momentos assim, em que uma coisa mínima o irritava, sobretudo aquelas duas mulheres, uma que chorava ou fixava os olhos tristes na toalha, a outra que se postava atrás dele, na verdade pronta para servi-lo, mas também sempre perguntando a si mesma o que o patrão estaria pensando.
Bem o sabia! Não podiam enganá-lo. Desde a manhã até a noite, era espionado, e adivinhava os olhares que elas trocavam mal virava as costas, as perguntas que faziam uma para a outra a seu respeito, quando finalmente saía de casa.
Pois elas só respiravam, aliviadas, quando ele estava ausente. Mesmo em seu gabinete, com a porta fechada, ele as constrangia a ponto de as duas se julgarem obrigadas a sussurrar como na igreja.
Afinal, que tinha ele de extraordinário? Filho de uma mulher ainda mais pobre do que a mãe de Jef Claes, uma vendedora de camarões de Coxyde, se tornara um dos homens mais ricos de Furnes, mais rico até do que Leonard Van Hamme, cujo avô já fabricava cervejas.
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Sua fábrica de charutos era próspera. Tinha suas próprias plantações de fumo nas margens do Lys, herdades nas melhores terras.
Era o prefeito, o Baas!
E ninguém ousaria insinuar, nem mesmo em voz baixa, que ele recebera de Bertha de Groote seu primeiro dinheiro.
Se sua filha era demente, se aos 28 anos ela vivia na cama e fazia suas necessidades como um bebê, não era culpa dele, que pagara os melhores médicos de Bruxelas. Além disso, não era ele quem três vezes por dia lhe levava a comida?
Por acaso, era para si mesmo que comprava, todas as tardes, na salsicharia Van Melle, ora um franguinho, ora um tordo ou uma porção de patê?
Quanto a Maria, sim, Maria fora sua amante durante anos, e ele nunca tentara mentir à sua mulher.
- Já que tinha mesmo de acontecer, é melhor que aconteça dentro de casa.
Maria tivera um filho. Terlinck não fizera de propósito. Tampouco procurara impedi-lo de viver, mas não o reconheceu. Mandara criá-lo no campo, o que era natural. Depois, sem jamais aparecer, sem que o garoto pudesse adivinhar que ele era o seu pai, o colocara como aprendiz em Nieuport.
Por que as duas, agora que estavam velhas, tinham de ficar se entreolhando e cochichando pelas costas dele?
Terlinck não reclamava. Mas isso o exasperava e ele teria sido capaz, só para humilhá-las, de atirar na mesa um milhão, dois, ou conseguir alguma condecoração difícil, ou ainda se tornar senador, qualquer coisa, para depois poder lançar-lhes no rosto:
- E agora?
Ambas sabiam da visita de Jef na véspera. Desconfiavam do que ele viera pedir. Teria Maria escutado atrás da porta?
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Assim, as duas aproveitavam para suspirar, para examiná-lo com temerosa censura e, sem dúvida, orar por ele!
Raramente ele lhes falava de suas idas e vindas. Contudo, ao se levantar da mesa, sentiu necessidade de declarar:
- Vou a Coxy de. O que significava:
- Vou ver minha mãe.
Não para desafiá-las, não para desafiar sua pobre mãe, mas para se desafiar, para afirmar a si mesmo que tinha razão contra as três mulheres e não temia as lamúrias delas.
Foi buscar o carro na garagem instalada atrás da casa e que dava para uma viela. Era um velho carro, alto e confortável, ainda decorado com enfeites de cobre brunido.
Estava em condições de comprar um carro novo, mais rápido, como Van Hamme e tantos outros. Poderia comprar o mais luxuoso carro de Furnes e mesmo de Flandres.
Mas seu carro antigo ele o comprara quando os outros ainda não sabiam guiar. Tinha mais nobreza, com suas lanternas de fiacre, do que os carros dos outros, fabricados em série. E pouco lhe importava ter de girar a manivela durante 15 minutos.
A casa ficava muito perto, a apenas 15 quilômetros. Na extremidade da aldeia, onde surgiam as dunas e a água verde do mar, alinhavam-se pequenas casas térreas, cada qual precedida de uma cerca. As cercas eram pintadas de azul, branco ou verde. A da mãe de Terlinck era verde-clara.
Ele sabia que os vizinhos o espiavam por trás de todas as cortinas, sabia o que diziam:
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- É o prefeito de Furnes.
E os vizinhos não ignoravam que seu pai, o velho Joris, até a véspera de sua morte pescara camarões na praia, com seu cavalo que arrastava a rede na maré vazante.
Alguém ignoraria, naquele bairro de casinhas baixas, que ele oferecera à mãe ir morar em Furnes, ou qualquer outro lugar que ela quisesse, e lhe dar uma pensão?
A velha era teimosa. Ele sempre tivera de lidar com mulheres teimosas! A mãe não se achava em casa, era fácil perceber imediatamente, pois as cortinas estavam cerradas e a porteira trancada.
De pé diante de seu carro, ele esperava que alguém viesse falar-lhe. De fato, uma porta se abriu e uma jovem pálida, com olhos de albina, uma criancinha ao colo, foi avisá-lo:
- A Sra. Joris está na casa dos Crams... Vou chamá-la...
A jovem andava depressa, um pouco curvada por causa da criança, ao longo da trilha de tijolos, que cortava em dois a lama da calçada. Bateu numa porta marrom. O céu estava baixo, mais baixo do que em Furnes. O ar fresco vinha do mar em grandes lufadas. Diante das casas, secavam as redes de camarões.
E surgiu uma mulher muito curvada, os tamancos barulhentos, uma touca branca na cabeça.
- É você! - disse ela, tirando uma chave da algibeira escondida nas pregas da saia.
Depois, sem alegria:
- O que você quer?
Foi abrindo a porteira e a porta. O rosto era enrugado, os olhos afogados em água. No interior da casa fazia calor, muito calor, como numa caixa, e flutuava um odor que Terlinck nunca sentira em nenhum outro lugar.
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- Entre!
Maquinalmente, ela colocava a cafeteira no fogo e ia apanhar xícaras no aparador.
- Fui visitar os Crams, que estão com um filho muito doente.
- O que tem ele?
- O médico não sabe.
E ele, sempre impelido pela mesma necessidade:
- Porque não quer dizer!
Ela lhe lançou um olhar maldoso.
- O médico não pode dizer o que não sabe...
- Escute, mamãe... Qual dos filhos está doente? O alto e magro que no verão passado andava sempre com uma bengala?
- Sim, é Fernand!
- Está tuberculoso, nas últimas... Estará morto antes do Natal...
- Parece até que isso causa prazer a você!
- Isso não me causa prazer, mas eu constato! Deveriam interná-lo no hospital, pois arrisca contaminar seus irmãos e irmãs...
- O hospital! O hospital! E se fosse você que tivesse de ser internado? Seria capaz de colocar sua mãe no hospital, não é? Ou sua mulher...
- Mas mamãe...
- Beba seu café enquanto está quente... Você é como todos os ricos... No momento em que os pobres ficam doentes, querem se livrar deles...
Ela detestava os ricos. Talvez detestasse o filho, desde que ele tinha dinheiro. Apressava-se em servir-lhe o café, mas era como se ele fosse uma visita. Cedeu-lhe a melhor poltrona, a sua, a poltrona de vime com uma almofada encarnada, presa no espaldar. Ela permanecia de pé. Ia e vinha.
Mãe e filho estavam frente a frente, como dois estranhos.
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Como vai Theresa?
- Bem.
- E Emilia? Aquela é uma que você faria melhor em mandar para um hospital! Mas não! O hospital serve apenas para os pobres.
No íntimo, alimentava velhos rancores, não assimilados, que vinham à tona assim que ela se via diante do filho. Só de ver o carro que as crianças cercavam ficava excitada.
- Por que você veio me ver? Não é o dia!
Pois havia um dia, uma quarta-feira de cada quinzena, porque nessa data se reunia um conselho de administração em La Panne, a menos de quatro quilômetros.
- Tive vontade de vê-la - disse ele.
- Por acaso está com fome? Quer levar uns camarões para a sua mulher? Desconfio que você os jogue na primeira vala que encontrar, mas...
Ela era seca, curvada. Dava a impressão, com suas roupas de velha, de um manequim que tivesse desabado. Atiçava o fogo, esfregava o tampo, que não estava bastante limpo para seu gosto. Um leito alto, coberto com um edredom purpurino, ocupava o fundo da peça, e fora ali que Joris Terlinck nascera. O buquê de flores de laranjeira feito de cera sob uma redoma, em cima da lareira, era do casamento de sua mãe: sob a ampliação fotográfica de seu pai, perduravam flores murchas, que se desfariam em pó ao mais leve toque.
- Você está feliz?
- Estou, mamãe.
- Sempre com os ricos?
- Não estou com os ricos!
- Para mim você é um homem rico, e não gosto dos ricos! Não preciso deles e eles não precisam de mim. Quando eu e seu pai compramos esta casa... Na época, ela não custava nem mil francos... O que eu ia dizendo?... Já fazia dez anos que estávamos casados, e seu
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pai pescava os camarões que eu ia vender de porta em porta, com minhas duas cestas... Ah! sim... Quando compramos a casa, ficamos felizes porque tínhamos certeza de não acabar nossos dias no asilo... Você ainda freqüentava a escola, e ninguém desconfiava que algum dia seria um homem rico, o prefeito de Furnes...
Não perdoava ao filho ser um 'homem rico', segundo sua expressão. Entretanto, vendo sua xícara vazia, ela lhe servia mais café e açúcar.
- Foi mesmo por acaso que você veio? Não tinha nada para me dizer?
Era de novo aquela desconfiança feminina, que ele tão bem conhecia em Theresa e Maria, uma desconfiança hostil, quase pérfida e, no entanto, tantas vezes divinatória.
- Eu estava com vontade de vê-la...
- Imagine só!
Ela ria, queria ser boa anfitriã.
- Não quer que eu vá buscar um bolo para você? É verdade que os meus não são tão bons quanto os de Furnes...
Lá fora, o céu parecia tão baixo quanto o nível das janelas e seus reflexos nos cobres do carro eram suaves. Em redor, os garotos esperavam, quietos.
A velha dizia, andando com o seu passinho miúdo:
- Ninguém me tira da cabeça que você veio hoje porque está preocupado com alguma coisa!
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Ill
NO MOMENTO em que o nevoeiro se transformava numa fina poeira de neve, ele empurrou - na mesma hora de todas as noites - a porta do café Velha Torre. Normalmente, deveria haver pelo menos seis pessoas ao redor da mesa grande, quatro jogando baralho, os outros peruando; além dessas, os jogadores de xadrez no seu canto, Kees, o proprietário, em pé, de costas para o fogo, talvez um ou dois fregueses por trás de um jornal.
À mesa dos jogadores de cartas, só havia dois homens, que manejavam sem entusiasmo os dados de um jogo de gamão. No lugar dos jogadores de xadrez, Klompen, um velhinho de rosto rosado e cabelos brancos como a neve, antigo tamanqueiro, olhava melancolicamente a porta, esperando pelo seu parceiro, que se recusava a aparecer.
Joris não fez nenhuma observação, evitou olhar com demasiada atenção os lugares vazios. Como nas outras noites, despiu sua peliça, tirou o gorro, espanou do bigode as partículas de neve, escolheu um charuto e o acendeu, enquanto Kees colocava na sua frente, sobre um disco de feltro, meia garrafa de cerveja preta.
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Era assim que as coisas deviam rigorosamente se passar. Joris Terlinck deixou crescer um bom centímetro de cinza, observando com os olhos semicerrados o tapeceiro-estofador. Este sabia muito bem que Terlinck acabaria lhe fazendo uma pergunta. Kees também o sabia - o que não impedia que cada um deles entreabrisse frouxamente os lábios para deixar escapar rolos de fumaça.
Por fim, Joris falou:
- Você agora joga gamão? - perguntou ao tapeceiro.
- Já que não há ninguém para fazer uma parceria...
Do seu lugar, o velho Klompen suspirou. Já fazia meia hora que ele preparara o tabuleiro de xadrez.
Terlinck franzia o cenho, forçado, já que ninguém o estimulava a fazer sua pergunta.
- Onde estão eles?
- No Círculo Católico - respondeu Kees. Nunca havia sessão durante a semana, exceto no
período de eleições, mas se acontecia algum fato imprevisto, aonde teriam ido todos senão ao Círculo Católico, para saber das notícias?
Terlinck teve a paciência de fumar seu charuto até a metade, antes de se levantar, suspirando. E Kess conteve a tempo a frase retida na ponta da língua:
- Vai também ao Círculo, Baas?
As pequenas partículas brancas já formavam uma camada quase uniforme no calçamento quando Terlinck, com as mãos enfiadas nos bolsos, chegou à porta com um só batente entreaberto. Imediatamente, na obscuridade, atrás do outro batente, vislumbrou a ponta vermelha de um charuto, ouviu uma voz que baixava bruscamente, depois se calava.
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Sentiu que ali havia dois homens, conversando na corrente de ar glacial do alpendre, e demorou-se limpando os sapatos na raspadeira e sacudindo a poeira de neve dos ombros.
Os dois tinham-se calado e o olhavam; Terlinck poderia jurar que reconhecia os olhos de Van Hamme.
- Boa-noite, senhores! - disse ele ao passar.
A resposta que recebeu foi um grunhido confuso. À direita havia uma entrada de vários degraus e uma porta que abria para um vestíbulo mal iluminado. O odor que pairava no imóvel lembrava o das escolas, acrescido de um bafo de cerveja morna, de mictório e de fogos-debengala.
Terlinck sentia-se um pouco em casa pois, como todo mundo em Furnes (à parte algumas exceções que não contavam), ele era integrante do Círculo Católico.
Todavia, era integrante à sua maneira. Mais exatamente, fazia parte do Grande Círculo, como diziam, mas não do Pequeno.
E essas nuanças tinham sua importância, embora não estivessem consagradas pelos estatutos.
O Grande Círculo ficava embaixo, na sala a cujo limiar ele chegara. Era uma sala de patronato, que tinha algo de teatro, de mercado de cereais e de saguão de espera de estação ferroviária, onde se viam velhas bandeiras, escudos e restos de guirlandas de papel ainda pendentes de paredes cheirando a mictório, cadeiras enfileiradas, um estrado, garrafas vazias, dispostas sobre um balcão.
Ao lado, havia outra sala mobilhada, com mesas de bilhar, e mais adiante um pátio de chão de terra preta com quatro árvores escuras, local onde os amadores se entretinham jogando croqué.
No domingo, vinham todos ao Grande Círculo, os homens sozinhos, quando não havia espetáculo, as mu-
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lheres e as crianças com bombons e doces, se havia alguma apresentação.
Nunca vinham durante a semana, inesperadamente, sem algum motivo! O prédio deveria estar mergulhado em escuridão. Parecia ainda mais estranho com apenas umas poucas lâmpadas acesas.
- Boa-noite, Baas.
O guarda-livros de Terlinck, Sr. Guillaume, pareceu contrafeito por ser surpreendido em conversa com um padeiro da rua Saint-Jean.
Joris Terlinck continuava fumando, examinando lentamente em seu redor a sala quase deserta, com apenas duas pessoas aqui, três ou quatro mais adiante, gente que devia estar conversando em voz alta um instante antes e que, subitamente, o constrangimento emudecia.
Como no Velha Torre, ele deixou escoar o tempo conveniente, fez meia-volta, parou ao pé da escada de corrimão de ferro, acima da qual brilhava uma lâmpada.
Lá em cima ficava o que chamavam de Pequeno Círculo. Teria sido mais exato dizer estado-maior, pois para alguém ser admitido nos dois salões, que pareciam salas de conselhos de administração, era preciso pertencer ao clã das poucas famílias que dirigiam a cidade e ter ingressado desde a juventude no partido conservador flamengo.
Embaixo, encontrava-se um Guillaume em companhia do padeiro. Era possível, desde que se fosse à missa, não atuar ativamente na política e até votar no democrata Terlinck.
Em cima, havia o clã inimigo do prefeito, e Joris acendeu meticulosamente um novo charuto, enquanto subia os degraus um a um, parando de vez em quando. Ouviu vozes por detrás da porta e reconheceu a de Coomans, o tabelião. Empurrou o batente.
- Boa-noite, senhores!
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Audácia incomparável! Nunca alguém, pelo menos até onde ia a memória, abrira assim a porta de madeira manchada e cumprimentara friamente os presentes. A surpresa imobilizou todos os presentes, enquanto Terlinck mostrava uma fisionomia mais calma do que nunca.
Começou por apertar a mão de Coomans, o tabelião de barbas brancas, presidente de honra do Círculo.
- Boa-noite, Coomans!
- Boa-noite, Joris.
Em seguida foi a vez de Kerkhove, o senador de olhos debruados de vermelho, e de Meulebeck, o magro advogado de óculos, que o interpelava em cada sessão do conselho municipal.
- Boa-noite, Meulebeck.
- Boa-noite, Terlinck.
Havia mais quatro pessoas, mas para essas Terlinck se limitou a fazer um gesto com a mão e sentou-se numa das velhas poltronas, cujo veludo vermelho era emoldurado de madeira preta e dourada.
Alguns copos de cerveja e garrafas no pano verde da mesa. Um lençol de fumaça acima das cabeças. Pessoas que tossiam, remexiam as pernas, fitavam seu charuto, depois lançavam olhares prudentes a Terlinck.
- Então, Terlinck? - perguntou finalmente Coomans, sujeito tão pequeno que, sentado, seus pés dificilmente tocavam o chão.
- Então, Coomans? - repetiu ele no mesmo tom. O tabelião decidiu-se a atacar.
- O que diz de tudo isso, Terlinck?
Terlinck demorou-se em tirar o charuto da boca, abanou a cabeça, depois desfiou sílaba por sílaba:
- Eu digo que, quando se coloca mercadoria à venda, é preciso ter certeza de que o preço marcado está certo. Pois os fregueses têm o direito de exigir que lhe vendam a mercadoria pelo preço justo.
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Todos refletiam. Todos pareciam satisfeitos com essa frase sentenciosa, e os olhares um pouco vagos faziam supor que cada um se esforçava por entender todas as sutilezas do que fora dito. Quanto a Joris, calara-se, como alguém que dissera tudo o que tinha a dizer.
Talvez alguns deles estivessem decorando a frase, para depois meditá-la com mais vagar?
- ...quando se coloca mercadoria à venda...
Ao ver Porter, o quinquilheiro, abrir a boca, a expressão nos rostos foi de preocupação. Todos tinham certeza de que ele iria dizer alguma bobagem, e foi exatamente o que aconteceu.
- Não compreendo muito bem. Em primeiro lugar, Leonard Van Hamme não tem uma loja de mercadorias nem mostruário...
- Tem uma loja de idéias políticas e de princípios! - replicou duramente Terlinck, sem se dar ao trabalho de olhar o seu interlocutor.
Isso não era mais possível aprovar. A culpa era de Porter, que hesitava em continuar, mas parecia impelido por um demônio a ir até o fundo de sua gafe.
- Talvez eu seja menos sutil que os outros, mas não vejo de que mercadoria se trata e o que...
Compreendeu que o tabelião Coomans lhe ordenava que se sentasse, e corou, como cada vez que cometia um deslize.
- Talvez eu seja menos sutil... - balbuciou ainda. Todos se calavam, pois era mais perigoso do que
nunca falar levianamente.
- Leonard saiu agora daqui - decidiu o tabelião confessar.
- Ainda não saiu de todo! - observou Terlinck. E como o olhavam, sem compreender:
- Está esperando no alpendre.
Frio e duro, Terlinck fixava os olhos na cinza do seu charuto ou no bico dos sapatos. Se todos ali eram mais
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ou menos seus adversários, se durante os vinte anos em que dirigira, ou melhor, organizara sozinho a política de oposição ele os havia perseguido - desde sempre seu inimigo pessoal fora Leonard Van Hamme, e ele, Joris Terlinck, acabara por forçá-lo a abandonar a cadeira de prefeito, instalando-se em seu lugar. Agora, podia anunciar cruamente:
- Van Hamme está esperando no alpendre!
O alpendre frio e úmido! Atrás da porta! Cochichando com um derradeiro partidário fiel, que Terlinck não havia reconhecido.
Estivera naquela sala. Comparecera. Sem dúvida, o ambiente já era o mesmo de agora: os charutos, os copos de cerveja, e as palavras raras, prudentes, acompanhadas de olhares que não queriam deixar transparecer os pensamentos.
- Escute, Joris...
O tom de Coomans era quase conciliatório.
- Creio ter compreendido o que você quis dizer há pouco sobre o mostruário de mercadorias e os preços marcados...
Ninguém pediu a Terlinck que fosse mais preciso, mas ele insistiu:
- Eu quis dizer que, quando alguém fundamentou sua situação na mercadoria de seus princípios, é indispensável que...
- Já compreendemos!
Coomans talvez! Ainda assim! Mas para os outros era necessário ser mais claro!
- Van Hamme - continuou Terlinck - processou, quando era prefeito, um agente de polícia que havia desviado cadernos e canetas para os filhos. Esse homem é agora guarda-noturno numa garagem de La Panne.
- Escute, Joris...
- Quando Josephine Aerts ficou grávida, ele...
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- Terlinck, peço-lhe licença para continuar... Você é sempre o mesmo... Fala... Fala... Leonard Van Hamme veio nos procurar... ofereceu-nos honestamente sua demissão...
E todos espreitavam Terlinck, pois na realidade só ele contava. Se podiam, em nome do Grande e do Pequeno Círculo, perdoar ou condenar, no final era Terlinck quem decidia.
E se ele viera, se sentara ali, entre eles, é porque já tinha uma idéia na cabeça.
Agora, eles receavam mostrar-se demasiado indulgentes, serem acusados, amanhã ou outro dia qualquer, em alguma sessão do conselho comunal, de ter ofendido Leonard Van Hamme.
- Não aceitamos essa demissão...
Todos os olhares continuavam concentrados em Terlinck, que se mantinha impassível.
- Não a aceitamos porque o nosso amigo Leonard nos pôs a par de sua decisão. Você é um cristão, Terlinck. O Senhor disse: "Se teu olho é motivo de escândalo, arranca-o e atira-o longe de ti..." Esta tarde, Leonard foi falar com o filho em Bruxelas.
Nas paredes, antigos lambris. Acima, um lustre rebuscado que derramava uma luz fraca. Emergindo das poltronas, homens de preto, charutos queimando lentamente, pernas cruzadas ou estiradas. A barba branca do tabelião Coomans. Sua mãozinha seca, que começava a gesticular.
- Leonard Van Hamme não quer mais saber da filha...
Nem um só músculo se mexeu no rosto de Terlinck. Voltou lentamente a cabeça para fitá-los um por um. Talvez, quando seu olhar se fixou de novo na brasa do seu charuto, estivesse evocando a figura de Van Hamme na friagem do alpendre.
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- O que Van Hamme vai fazer? - perguntou ele, secamente.
- Assim que ela puder ser transportada, vão mandá-la para uma clínica em Ostende. De qualquer maneira, ela tem direito à herança da mãe, que lhe permitirá sustentar-se e criar o filho...
- Em suma, Leonard, lá embaixo, espera a última palavra de vocês?
Não ousaram dizer que sim. Nem que não. Voltaram à sua imobilidade, como figuras num quadro.
Então Terlinck, no tom de um homem que chegou a uma conclusão, suspirou:
- Está bem!
Depois levantou-se lentamente, apanhou seu gorro de lontra, que colocara sobre a mesa.
- Boa-noite!...
Desceu as escadas tão devagar quanto subira, e no andar térreo parou à porta do salão. Só restavam três pessoas esperando, três, não tão importantes para serem admitidas lá em cima, mas que ainda assim queriam saber. Terlinck evitou demorar-se ali. No entanto, parou no alpendre, a apenas um metro de distância dos dois homens que continuavam abrigados na escuridão. Tornando a acender intencionalmente seu charuto, que na verdade não estava apagado, disse:
- Boa-noite, Leonard!... Até amanhã, Sr. Kempenaar...
Pois havia reconhecido o seu secretário.
Os flocos de neve, agora mais pesados, caíam lentamente. Na praça, o relógio da prefeitura marcava dez horas da noite. No Velha Torre todas as lâmpadas estavam apagadas, exceto uma, sinal de que os fregueses já tinham ido embora e que Kees fazia sua contabilidade ou empilhava as cadeiras sobre as mesas.
As pessoas, adormecidas em todas as casas da cidade e nas casas de campo das cercanias, não sabiam ain-
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da, mas ficariam sabendo no dia seguinte: Joris Terlinck acabava de obter a sua maior vitória.
Esse dia era mais importante do que o dia em que ele se sentara no lugar de Leonard Van Hamme, na poltrona de espaldar alto e esculpido do prefeito.
O que teria acontecido, se ele não tivesse ido ao Círculo, se não tivesse empurrado a porta do primeiro andar e se sentado juntamente com os membros do comitê?
Girou a chave na fechadura, bateu as solas dos sapatos na soleira, pendurou sua peliça no cabide. Ao entrar no quarto, percebeu que sua mulher o vira, que lhe espiava o rosto com um olho, pois o outro estava mergulhado no travesseiro. Ela suspirou.
E, mais uma vez, ele se despiu e deitou na cama, sem nada lhe dizer.
Depois, na escuridão do quarto, tentou lembrar-se de sua frase sobre mercadorias e preços, pois gostara do que havia dito.
O espantoso era que não conseguia reconstituir na memória o rosto de Lina Van Hamme, apesar de tê-la visto várias vezes.
- Diga-me, Sr. Kempenaar...
De manhã o secretário parecia inchado, e em sua pessoa havia sempre algo de incompleto. Devia dormir mal, levantar-se no último minuto, não se dar ao trabalho de lavar-se, e vestir-se às pressas, num quarto mal aquecido. Quando chegava à prefeitura, tinha os olhos inchados, placas avermelhadas no rosto lívido e a gravata torta.
- O senhor agiu muito bem dando apoio moral a Leonard Van Hamme. Era do que ele estava precisando, não é mesmo?
- Eu juro, Baas...
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- Jura o que, Sr. Kempenaar?
- Que não fiz de propósito. Eu tinha ido ao Círculo, como os outros. Quis voltar cedo porque minha mulher está de novo com cólicas. O Sr. Van Hamme estava no alpendre. Trabalhei com ele, quando era prefeito. E ele me disse: "Hubert, eu lhe agradeceria se me fizesse um pouco de companhia..."
Ao mesmo tempo que falava, Kempenaar notava que Joris Terlinck parecia mais cansado que de costume. O dia estava gélido. Torvelinhos de neve vinham bater displicentemente na janela. A praça estava totalmente branca, a não ser nos lugares por onde passavam as carroças, formando trilhas negras.
- Diga-me, Sr. Kempenaar, é amigo de Leonard Van Hamme...
- Eu não me permitiria dizer que sou amigo dele...
Terlinck, por cima do ombro de seu secretário, fitava Van de Vliet, imobilizado em sua imensa moldura dourada.
- O senhor é tesoureiro do orfeão dele, não é exato?
- Sou músico e...
- Aliás, isso pouco importa!... Foi ao senhor que ele apelou para lhe fazer companhia em um momento penoso... Além do mais, o senhor é um dos homens de Furnes mais a par de tudo o que acontece na cidade...
Era exatamente daquela maneira, com a mesma voz neutra, uma fisionomia impassível, que ele atacava seus adversários no conselho municipal, e suas intenções eram tão disfarçadas que as pessoas não conseguiam saber aonde ele queria chegar.
- É quase uma pergunta sobre serviço que quero lhe fazer, Sr. Kempenaar. Os hotéis de furnes não podem receber um viajante sem preencher uma ficha da polícia. Os guardas zelam pela moralidade das vias pú-
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blicas. Nessas condições, o senhor sabe onde Lina Van Hamme e Jef Claes se encontravam?
Sua voz tornara-se mais cortante, para espanto de Kempenaar. Era raro Terlinck manifestar qualquer sentimento, e difícil, naquela circunstância, discernir qual o seu sentimento exato.
O secretário baixou a cabeça.
- Estou esperando, Sr. Kempenaar!
- Eu nunca os vi juntos...
- Evidentemente. Mas sabe de tudo. Todos os dias, ao sair daqui, o senhor faz uma parada no pequeno café, onde vão se refugiar as notícias da cidade...
Até isso o prefeito sabia! Mas nunca aludira ao fato antes. Era verdade que toda noite, pelo menos durante todo o inverno, pois no verão ele não ousava, com medo de ser visto, abria a porta do pequeno café de Anna junto ao canal, onde diziam que certas pessoas tinham o direito de entrar na parte interna.
- Então, Sr. Kempenaar?
- As pessoas dizem... Mas são mexericos... Parece que o rapaz entrava à noite no pátio, pulando o tapume do depósito de lenha...
- Então ela o recebia em seu próprio quarto?
- Deve saber que o Sr. Van Hamme é muito ocupado... Não tem tempo para dar atenção aos filhos...
Não era de admirar! Ele queria ser o dono de toda a cidade, o presidente de todas as sociedades, a principal figura em tudo! De pai para filho, na família, todos eram 'homens ricos', segundo a expressão da velha Sra. Terlinck.
- O que ele lhe disse, Sr. Kempenaar?
E Terlinck olhava o outro nos olhos, com ar de quem está ameaçando: "Sei muito bem o que você quer com Van Hamme contra mim! Sei que me detesta. Sei que lhe conta tudo o que se passa na prefeitura. Mas
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como é um covarde, vai trair Van Hamme também, porque, por enquanto, eu sou mais importante."
- Ele estava muito abatido, sobretudo por causa do filho...
Se Kempenaar pudesse, de longe, pedir perdão a Van Hamme, certamente o teria feito. Mas havia apenas Terlinck na sua frente, e era forçado a falar.
- É verdade! Ele foi ver o filho esta tarde... O rapaz deve ter ficado aborrecido, não é mesmo?... Quando se quer fazer carreira nas Forças Armadas e, de preferência, na Corte, é muito desagradável saber que uma irmã cometeu tamanha tolice...
Terlinck odiava aquela família. Quase não podia disfarçar seu ódio. Estava pálido a despeito da sua fisionomia calma. Olhava para Van de Vliet e parecia dizerlhe: "Está vendo que é sempre a mesma batalha! Mas estou aqui e a mim eles não vão derrubar!"
Van de Vliet era bastante janota, tinha um bigodinho muito bem cuidado. Como doara à comuna todas as terras recuperadas ao mar, que lhe pertenciam, e por ter tentado suprimir a pobreza, fora eleito prefeito e por pouco não se tornara uma espécie de santo. Até o dia em que o povo se cansara do seu santo, sempre o mesmo, e seguira o dijkgraves, o chefe dos diques, os mesmos diques que Van de Vliet construíra com seu dinheiro para dá-los de presente à cidade.
O dijkgraves, que se fizera eleger prefeito, removera da parede o retrato do seu antigo patrão. Van de Vliet fora refugiar-se em Gand, onde morrera pobre; meio século decorreu antes que recolocassem seu retrato na parede e rendessem à sua memória uma solene homenagem.
- Diga-me, ainda, Sr. Kempenaar...
Mas Terlinck se calou. Badaladas de sino chegavam até os seus ouvidos, um característico som agudo, o sino
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do cemitério. Terlinck olhou a hora no cronômetro colocado à sua frente.
- É Jef? - perguntou.
O outro fez o sinal-da-cruz; Joris hesitou, levou também a mão à testa, ao peito, aos ombros.
- Não o aceitaram na igreja?
- Não, Baas, a mãe dele pediu que ao menos lhe fosse dada a bênção no túmulo...
- Eles recusaram?
- Sim, recusaram, Baas.
- Sabe quando Lina vai sair do hospital?
- Acredita-se que dentro de dois dias ela possa ser transportada.
Terlinck levantou-se, tornou a lançar um olhar a Van de Vliet e fez duas vezes a volta do gabinete, enquanto o infeliz secretário permanecia imóvel, de pé, no centro do tapete puído.
- O que está esperando, Sr. Kempenaar?
- Perdão... pensei...
- Inscreva a mãe de Jef Claes na lista de beneficência... Não, é melhor não... Não a inscreva.
- Sim, Baas... Quero dizer, não... Isto é, não vou inscrevê-la...
E ele saiu, recuando de costas, mole e inchado, mostrando os dentes estragados num sorriso falso. Lá fora, a neve caía cada vez com mais intensidade. Era demasiado fácil imaginar a cena no cemitério, com o carro funerário apressado, uma mulher acompanhando-o a pé.
Joris Terlinck estava de mau humor. Postado diante de uma das janelas, dominava a praça, onde o relevo de milhares e milhares de pedrinhas era perceptível sob a fina camada de neve.
Na outra extremidade, ele avistou o advogado Meulebeck sair de sua rua e dirigir-se à prefeitura, deixando atrás de si uma trilha de passos negros.
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Terlinck teria tempo de ir embora. E quase foi. Depois, como uma dona-de-casa que ouve a campainha da porta, relanceou o olhar pela escrivaninha, mudou uma cadeira de lugar, sentou-se na sua poltrona de espaldar reto.
- Entre, Sr. Kempenaar. Do que se trata?
- O Sr. Meulebeck desejaria...
- Diga-lhe que vou recebê-lo daqui a um instante. Tocarei a campainha...
Consultou o cronômetro, decidiu que faria o advogado esperar exatamente sete minutos. Para matar o tempo, passou sob as unhas a lâmina mais estreita de seu canivete. Depois achou que bastavam seis minutos e tocou a campainha.
- Faça entrar o Sr. Meulebeck.
Era o filho de um empregado da estrada de ferro. Por se destacar sempre como primeiro aluno na escola dos padres, tinham-no destinado ao sacerdócio e lhe concedido uma bolsa de estudos.
Era pálido, com uma testa muito alta e larga, um nariz comprido, olhos de míope sob óculos de aro de aço.
Mas acabaram por chegar à conclusão de que ele prestaria mais serviços como secular e fizeram-no advogado do arcebispado.
- Bom-dia, Meulebeck.
- Bom-dia, Terlinck. Depois da conversa de ontem à noite, pensei...
Carregava sempre sua pasta debaixo do braço, era uma mania. Não fumava, não bebia. Casado havia cinco anos, tinha quatro filhos.
- Depois de você ter se retirado, adotamos a decisão de agir de acordo com o interesse geral...
- Não duvido, Meulebeck.
Os dois não se suportavam. Para Terlinck, era o único adversário no conselho que tinha tanto sangue-frio quanto ele. Para Meulebeck, Joris era sobretudo o ho-
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mem que ele gostaria de ter sido; que, em todo caso, lhe barrava a ascensão, e o único que não se deixava atingir pela sua ironia.
- É uma gentileza da sua parte não duvidar, Terlinck, pois todos trabalhamos juntos, não é mesmo, você, como nós, no interesse geral. Ficamos comovidos ontem, sim, realmente comovidos, vendo que você se apressou em comparecer num momento tão difícil...
Terlinck reacendeu seu charuto.
- E compreendemos que, como nós, queria evitar um escândalo, que só poderia perturbar nossas consciências. Como pôde constatar, ninguém hesitou em cortar o mal pela raiz...
Joris ergueu a cabeça. A expressão fizera nele o mesmo efeito que a visão de uma faca cortando carne humana, e evocara involuntariamente o rosto e as covinhas de Lina Van Hamme, cujo desenho de repente lhe acudira à memória.
- Apenas acho que um evento tão deplorável, e após tal decisão, não deve ser explorado para fins eleitorais...
- Eles o encarregaram de me dizer isso?
- Ainda será o prefeito por mais três anos, pelo menos. Van Hamme não pretende mais ser candidato...
- Realmente?
- Só lhe pedimos, por caridade cristã, que não se sirva, nas campanhas políticas...
- Diga, Meulebeck! Um silêncio.
- Quando cheguei, ontem à noite, o que fora decidido?
- Não tínhamos...
- Não me venha com essa, Meulebeck. Não só vocês já haviam decidido, como o próprio Leonard também já havia decidido! E o filho de Leonard! O pai não
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queria por preço algum perder sua situação em furnes, o filho sua posição nas Forças Armadas. E como para isso era preciso sacrificar Lina...
- Terlinck!
- Terlinck, o quê? Ousa fingir que não é verdade? Aliás, vocês todos, que estavam comprometidos com Van Hamme, queriam também que ele sacrificasse Lina. Lembra-se da citação de Coomans... "Se teu olho é motivo de escândalo... " Leonard jogou fora o olho! O outro olho também!... E mais o resto do corpo...
- Isso significa que você se recusa? - perguntou friamente Meulebeck.
- Recuso-me a quê?
- A se comprometer.
- Comprometer-me com o quê?
- A não se servir dessa tragédia para os seus fins políticos...
De novo o sino, o do cemitério. Era outro enterro.
- Está com medo?
- Eu não disse isso!
- O que vocês me oferecem em contrapartida?
- O lugar de dijkgraves na próxima reunião.
- O lugar de Van Hamme?
- O dele ou de um outro. Alguém pediria demissão para lhe ceder o cargo...
- Eu prometo!
Meulebeck agitou-se na cadeira, colocou sua pasta sobre os joelhos.
- É que... fui encarregado...
- De me fazer assinar um compromisso?
- De lhe pedir... sim... Em suma... uma garantia de que...
Terlinck ergueu os olhos para Van de Vliet, como para lhe pedir conselho, depois apanhou uma caneta.
"...comprometo-me a jamais fazer alusão nos debates públicos ou privados a..."
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Ao mesmo tempo que assinava o documento, lançou sua interpelação predileta:
- Diga-me uma coisa, Meulebeck... O outro permaneceu impassível.
- Ainda não lhe ocorreu apresentar-se à deputação?
Silêncio. Mas Meulebeck empalidecera.
- Aqui tem o seu papel... Dê-me o meu.
E Terlinck pôde ler a promessa de que em menos de três meses seria nomeado dijkgraves, passando assim a pertencer ao corpo supremo, o qual, com o controle dos diques, dispunha das águas do céu e do mar.
- Se estiver com Leonard, diga-lhe...
Procurou uma fórmula no gênero das que se liam nos mostruários de mercadorias e etiquetas, mas não encontrou nenhuma.
- Não lhe diga nada... Adeus, Meulebeck!
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IV
FELIZ Ano Novo, Joris! Roçando duas vezes os lábios salientes nas faces ásperas do marido, ela pronunciava aquelas sílabas numa voz lastimosa, num tom tão melancólico, que mais parecia dizer:
"Mais um ano terrível que termina e outro terrível que começa, meu pobre Joris! Vou sofrer e você vai sofrer! Rogo a Deus para que nos poupe de piores catástrofes!"
Quanto a ele, tocara de leve com os lábios nos cabelos ainda enrolados em papelotes e murmurara:
- Feliz Ano Novo, Theresa.
Depois os dois vestiram-se, com a luz elétrica acesa, pois iam à missa das sete horas. Não tinham comido nem tomado café, pretendendo comungar. Ao pé da escada, estava Maria.
- Um bom e santo Ano Novo, Baas...
Lá fora, na escuridão, Theresa quase caía a cada passo, agarrava-se ao braço de Terlinck. O calçamento estava coberto por uma fina camada de gelo e viam-se outras mulheres também patinhando e escorregando numa dança grotesca, ao se dirigirem para a missa com
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seus maridos. Fazia frio. As respirações exalavam da boca uma nuvem de vapor, e o mesmo acontecia na igreja, que não se impregnara ainda com o calor dos fiéis.
Havia muita gente, os que queriam comungar no primeiro dia do ano e também os que desejavam ficar livres o resto do dia para irem fazer suas visitas.
Joris e Theresa tinham seu banco reservado. Theresa permanecia ajoelhada durante toda a missa, as mãos cobrindo o rosto e, quando devia se levantar na hora do evangelho, seus olhos pareciam perdidos, como se ela estivesse voltando de um outro mundo. Mas Terlinck se mantinha de pé, ereto, os braços cruzados, o olhar fixo nas labaredas dançantes das velas do altar.
Entretanto, em determinado momento seu olhar baixou para uma das lajes da nave, uma lage azul já muito desgastada, em que estavam escritas algumas palavras: "...o muito honrado Célius de Baenst... "
1610 ou 1618, não se podia ler muito claramente. Sob a pedra, jaziam os restos mortais de um antepassado dessa mesma Theresa, que ofegava orando, na ânsia de ser tão rápida e fervorosa que acabava por emitir um ruído de bomba mecânica.
Quando terminou a missa, o dia já despontara e eles tiveram a surpresa de ver um céu rosado acima dos telhados brancos de geada. Garotos vendiam hóstias, grandes hóstias como a do padre, e cada fiel comprava uma e, segundo a tradição, a carregava na mão para colá-la na porta de casa.
Terlinck ainda não estava devidamente vestido, isto é, ainda não trocara seu traje de todos os dias. Comeu primeiro os ovos com toucinho e uma das broas de mel que Maria fizera na véspera e que perfumavam a casa inteira. Depois apanhou os ovos batidos de Emilia, enfiou no bolso uma das broas. E Theresa, sempre com aquele ar aflito, viu-o subir as escadas.
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Mal era permitido a Theresa ver sua filha pelo postigo. Não que Joris a proibisse. Era Emilia que na presença da mãe se tornava incontrolável, tinha inexplicáveis acessos de fúria, dificilmente contidos.
Quando abriu a porta, lá em cima, Terlinck franziu o cenho, não deparando com a cena quotidiana. A coisa era mesmo um pouco assustadora, pois, no luscofusco, não compreendeu de imediato o que se passava.
Sobre a cama havia uma montanha de penas, sob a qual a demente se aconchegara, tão escondida que só se podia adivinhar-lhe os olhos.
- Feliz Ano Novo, Emilia - disse ele para si mesmo, numa voz um pouco perturbada.
Ela riu. Às vezes ria assim, um riso de criança anormal, e o seu riso era mais penoso do que suas cóleras, pelo que havia nele de maldoso, de perverso.
- Eu lhe trouxe uma broa...
Colocou a comida sobre a mesa-de-cabeceira. Sabia que Emilia não lhe permitiria tocar na sua obra, no colchão rasgado a unhadas e dentadas, do qual arrancara o estofo, como, certa vez, quando tinha oito anos, arrancara as entranhas de um gatinho ainda vivo, cujo ventre abrira com uma tesoura.
Terlinck desceu ao primeiro andar. Por muito tempo o ouviram ir e vir no banheiro. Quando reapareceu na sala, sua tez estava mais rosada do que de costume, a pele mais lisa, o cabelo muito fino; vestira-se de preto, a gola do sobretudo erguida, a cabeça coberta com um chapéu também preto de fôrma alta e quase quadrada.
Na praça, onde os raios oblíquos do sol passavam entre as casas, fazendo derreter trechos da camada de geada, outras pessoas, igualmente vestidas de preto, estavam paradas em pequenos grupos; quando ele passou, dirigindo-se para a prefeitura, todos tocaram na aba de seus chapéus, em silêncio.
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Cada coisa teria a sua hora. Bastaria observar os grupos para saber os que entrariam primeiro e os que podiam esperar ainda muito tempo na praça. Alguns, ainda que fosse muito cedo, entravam no Velha Torre e brindavam com copinhos de genebra, celebrando o Ano Novo.
Terlinck verificou pessoalmente se tudo estava em ordem. A lenha ardia na lareira monumental, o que só acontecia em ocasiões excepcionais, desde que fora instalado o aquecimento central na prefeitura. A porta estava aberta entre o gabinete do prefeito e o salão de recepção, cujas paredes eram decoradas com tapeçarias flamengas. Finalmente, por respeito à tradição, embora o dia fosse de sol, haviam acendido todos os lustres, o que difundia uma luz irreal.
- Feliz Ano Novo, Baas! - saudou Kempenaar num tom compenetrado.
Terlinck, o que só ocorria uma vez por ano, apertou-lhe a mão sempre úmida.
- Feliz Ano Novo, Sr. Kempenaar!
Estava tudo pronto? Sobre a escrivaninha, caixas de charutos se empilhavam em vez de dossiês. Numa bandeja, trinta ou quarenta cálices e garrafas de vinho do Porto. Na outra ponta da mesma escrivaninha, taças de champanhe.
- Posso mandar entrar, Baas?
Kempenaar estava também em ordem, enfatiotado com a sobrecasaca que usava para cantar, e calçava às pressas luvas de algodão branco.
Terlinck não precisava se examinar. Ele se via! De pé, de costas para a lareira, embora bem abaixo de Van de Vliet, parecia maior do que o retrato. Talvez fosse o efeito da sobrecasaca que usava nesse dia, como os outros? Seu colarinho era muito alto, sua gravata de crepes branco. Antes de dar o sinal definitivo e quando já
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se ouvia um ruído distante de vozes, cortou a ponta de um charuto e o acendeu vagarosamente.
- Pode mandar entrar, Sr. Kempenaar! Primeiro o pessoal miúdo, a começar por Hector, o
zelador da prefeitura, o único conviva autorizado a se fazer acompanhar de sua mulher, que trabalhava como faxineira para a municipalidade. Hector era vesgo, vestia um traje preto e camisa de brancura impecável. Kempenaar, à porta, só permitia a entrada de pequenos grupos de cada vez.
- Nossos melhores votos, Baas...
- Um bom e feliz Ano Novo, Baas...
Terlinck permanecia frio, imóvel, dir-se-ia mais frio e imóvel do que Van de Vliet em seu quadro. Fazia apenas dois gestos, sempre os mesmos: apertava a mão que lhe estendiam, depois enfiava os dedos numa das caixas para apanhar um charuto, que entregava ao recém-chegado.
- Obrigado, Baas...
Depois disso, o homem, seguindo a fila, contornava a mesa em que o bedel enchia os cálices de vinho do Porto.
- À saúde do prefeito de Furnes!
O acendedor de lampiões, os agentes de polícia de luvas brancas, os funcionários do serviço de águas, de gás, de eletricidade...
- Feliz Ano Novo, Baas...
- Feliz Ano Novo, Goeringen... Feliz Ano Novo, Thiessen... Feliz Ano Novo, Van de Noote...
Restavam nuvens no céu, nuvens invisíveis que filtravam o sol, deixando apenas aberturas inesperadas, de forma que na grande praça alternavam-se trechos de estranha claridade e sombras negras. Os grupos se aproximavam insensivelmente da prefeitura. Alguns, ao chegar à calçada, esvaziavam seus cachimbos, assoavam o
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nariz, relanceavam um olhar às janelas, de pequenos vidros retangulares, do primeiro andar.
Os sinos repicavam, anunciando as missas cantadas. E na cidade começavam a trafegar caleças transportando famílias inteiras de camponeses endomingados, todos de preto, algumas mulheres de touca, outras de casacos de peles e chapéus ridículos.
- Feliz Ano Novo, Baas...
A mulher de Hector, depois de ter ido se despir e vestir a roupa de trabalho, tornou a surgir; num pequeno lavatório, ela ia lavando os copos à medida que eram usados e mal os enxugava, pois o desfile se acelerava.
Um charuto, um cálice de vinho do Porto. Depois tinha-se o direito de atravessar o salão das tapeçarias, de aí se demorar um pouco, de esperar um amigo; mas andava-se na ponta dos pés, certos sapatos novos rinchavam, e falava-se em voz baixa.
- Feliz Ano Novo, Baas...
Os charutos eram maiores, mais grossos do que nos outros anos; e cada qual olhava com surpresa o anel do rótulo, que ainda não era conhecido, largo e dourado, reproduzindo a imagem muito nítida da prefeitura, na qual poderiam ser contadas as janelas, e as palavras 'Cidade de furnes'.
As mãos tornavam-se menos rudes, as roupas menos apertadas. Alguém - um funcionário do hospital - ousou brindar timidamente:
- À saúde do novo charuto...
Mas Terlinck não sorriu. Via-os chegar de longe. Conhecia-os. Sabia de quem era a vez. Embaixo, na calçada, os conselheiros começavam a afluir, alguns de carro, e suas vozes soavam mais alto porque se sentiam
em casa.
Terlinck fez um sinal ao funcionário que enchia os cálices. Isso significava: "Pare com o vinho do Porto!"
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Em seguida tornou a fechar uma caixa de charutos que mal fora tocada e apanhou outra, cujos charutos traziam os mesmos anéis, mas eram de melhor qualidade.
Já não o cumprimentavam mais chamando-o de Baas.
- Feliz Ano Novo, Terlinck! Para você e para a nossa cidade...
Não mudara de lugar desde o início da cerimônia. O pessoal, liberado da parte oficial do dia, se espalhava na praça, invadia os cafés. Outros se encontravam na porta com suas mulheres e filhos, que esperavam o chefe da família para ir visitar os parentes. Todos tinham o mesmo charuto na boca.
Terlinck chamou:
- Sr. Kempenaar!
O secretário acorreu, inquieto:
- Por que não serviram os biscoitos?
Apesar da movimentação, ele não deixava passar um esquecimento. Habitualmente, com o vinho do Porto e depois com o champanhe dos conselheiros, eram servidos biscoitos secos, que desde a véspera estavam guardados numa lata no armário.
- Eu me esqueci, Baas... Desculpe...
Era um pouco ridículo abrir diante de todo mundo a fita de metal da lata. Para cortar o papel, Kempenaar não tinha canivete e foi um inspetor que lhe emprestou o seu. Nem tinham sido preparados os pratos de cristal nos quais, nos outros anos, os biscoitos eram artisticamente arrumados.
- Feliz Ano Novo, Terlinck...
E agora Joris sabia que Leonard Van Hamme estava no patamar da escada. Sabia disso porque os que entravam eram os companheiros habituais de Leonard. E todo mundo sabia que ele sabia.
Depois dos últimos acontecimentos, os dois homens não se haviam encontrado. Ficara tacitamente decidido
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que se deixaria passar algum tempo assim, e por ocasião da última sessão do conselho comunal, Van Hamme, desculpando-se de sua ausência, aproveitara para ir a Anvers a negócios.
Estavam todos ali, o Dr. Thys, o tabelião Coomans, também de sobrecasaca, o senador de Kerkhove; Meulebeck, que se postara junto à porta, sem dúvida encarregado de dar o sinal a Van Hamme.
Tinham-se desarrolhado as primeiras garrafas de champanhe, e o murmúrio das conversas aumentava de tom, quando finalmente Leonard entrou, enorme em sua peliça.
Era mais alto e mais forte do que Terlinck, sobretudo mais sangüíneo, tão vigoroso quanto os cavalos de sua cervejaria. Seus grandes olhos relanceavam em todas as direções, mas não deviam distinguir bem as coisas ao redor, pois para ele tratava-se de passar por um mau momento.
De repente, todos se calaram. Alguns tossiam para romper o silêncio constrangedor. Leonard apertava a mão de Coomans com quem, sem dúvida, estivera há pouco no patamar, mas isso lhe servia para disfarçar o constrangimento.
- Um bom e feliz Ano Novo, meu caro presidente...
E a voz nítida de Terlinck:
- Sr. Kempenaar... traga-me uma taça, por favor...
Não se podia adivinhar a sua intenção, mas a algumas pessoas pareceu que ele se tornara mais pálido que de costume.
Quanto ao resto, tudo se passou com tal rapidez que os presentes nunca chegaram a entrar em acordo quanto aos detalhes. Em resumo, Leonard Van Hamme foi-se aproximando do prefeito, demorando-se de propósito para falar com os grupos de convidados, a fim de dar certa
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desenvoltura ao seu andar. Como todos os outros, deixara o chapéu no vestiário, de maneira que estava com as mãos livres.
Um pouco à esquerda, Kempenaar, atarantado, adiantava-se com a taça de champanhe.
Em que exato momento Terlinck apanhou a taça com a mão esquerda? Mas foi como se passou a cena: ao chegar diante dele, Leonard estendeu-lhe a mão direita e disse com voz bastante embaraçada:
- Terlinck, eu lhe desejo um feliz Ano Novo...
Ora, nesse instante, a mão direita de Terlinck segurava o charuto e a esquerda a taça de champanhe. Assim, foi um charuto que Van Hamme recebeu, para seu tão grande espanto, que ele se quedou olhando para a própria mão.
Van Hamme corou. Com esse detalhe todos concordaram. E, quando ele corava, era de uma só vez, como se tivesse recebido um jato de sangue no rosto. Ao mesmo tempo, sua respiração tornou-se audível.
Diante dele, Terlinck, impassível, porém pálido, oferecia a seu inimigo a taça de champanhe, como se vêem santos, num vitral, oferecerem o crucifixo aos pecadores.
Alguém tossiu, ao fundo, num acesso interminável. Leonard ergueu a mão. O olhar de Joris, duro e frio, se cravara nos olhos dele.
Então se viu Van Hamme, que sempre fora o homem mais importante da cidade, aceitar aquela taça das mãos do seu inimigo. A mão tremia-lhe. Recuou, integrou-se a um grupo próximo, manteve-se um momento apoiado à mesa e decerto maquinalmente, por estar com a garganta seca, bebeu um gole de champanhe.
Alguns segundos depois já se retirara, e logo se ouviu o motor de seu vasto carro americano se pôr em funcionamento.
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Alguns acreditam que Terlinck rosnou:
- Salafrário!
Mas se realmente ele murmurou alguma palavra, mascando seu charuto, ninguém poderia se gabar de terlhe distinguido as sílabas.
Quando voltou, após ter ido desejar um bom Ano Novo à sua mãe, era pouco antes do meio-dia. Na sala de jantar, que servia também de sala de estar, flutuava um aroma de vinho branco doce; a Sra. Terlinck oferecera um brinde às vizinhas, que haviam comparecido para lhe desejar boas festas. E ali também havia biscoitos secos em meia-lua, copos sujos.
Um rapaz de uniforme caqui saiu da cozinha e, contrafeito, achando ridículas aquelas efusões, recitou:
- Feliz Ano Novo, padrinho! E tudo o que possa desejar...
Ao mesmo tempo, oferecia-lhes as faces magras, depois plantava vagos beijos nas de Terlinck.
- Feliz Ano Novo, Albert... Então você conseguiu uma licença?
E o rapaz, com uma piscadela vulgar:
- Dei um jeito com o encarregado do alojamento... Theresa estava presente, vestida de seda preta, com
um imenso camafeu no peito.
- O que você andou fazendo, Albert? - perguntou ela, com aquela voz que bastava para salpicar de tristeza todos os instantes da sua vida.
- Quatro dias de detenção porque meus arreios não estavam no gosto do ajudante... Está certo que façam os calouros engraxarem os arreios... mas um veterano como eu!
A camada de gelo no solo derretera quase toda, exceto em algumas manchas de sombras, e a água na praça ziguezagueava em rastros negros. Sinos e mais sinos re-
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picavam. As pessoas saíam do café de Kees, endomingadas; todos tinham bebido um pouco mais que de costume e se apressavam em ir almoçar.
Maria preparara uma galinha ensopada. A porta da cozinha estava aberta. Os vários cheiros se misturavam de tal forma que acabavam formando um só odor, típico do Ano Novo.
Albert vestia o uniforme com uma desenvoltura que revelava, ao mesmo tempo, ser ele um veterano e um cabeça-dura... Talvez tivesse boa saúde, mas em fase de crescimento, não devia dormir muito. O rosto era pálido, de uma palidez feia, que revelava noitadas em pequenos cafés de Ostende. Os olhos, um tanto febris, deixavam transparecer uma ironia não muito simpática.
- Todo o bando desfilou? - perguntou a Terlinck, que acabava de despir a sobrecasaca, expondo a camisa de uma brancura imaculada.
Terlinck não respondeu. Albert era sem dúvida a única pessoa que ousava falar-lhe com tamanha desenvoltura. E sabia disso. Agia como se estivesse na sua própria casa. Parecia um garotinho, mexendo em tudo, abrindo caixas e gavetas.
Havia três lugares postos na mesa, um era para Albert. Era uma tradição de muito tempo, no Ano Novo, ele vir comer com seu padrinho e sua madrinha; uma tradição também Joris dar-lhe um presente, a princípio um objeto, um relógio de prata, depois de ouro, certa vez um sobretudo, de outra, uma caderneta da Caixa Econômica; e ultimamente, tratando-se já de um rapaz, uma nota de mil francos.
- Pode servir, Maria.
O sol filtrava-se através da musseline das cortinas e tornava o calor mais penetrante. Theresa recitava seu Benedicite. Albert sequer esboçava o sinal-da-cruz e se servia da sopa.
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Sabia ele ser filho de Terlinck e achava que por isso podia se permitir tudo?
Joris pensara várias vezes nessa possibilidade. Maria, que sempre adivinhava o que ele estava pensando, havia-lhe afirmado:
- Eu juro, Baas, que ele nunca disse nada e que, de minha parte...
Podia ser verdade. Albert era desrespeitoso por natureza. Não se mostrava ambicioso, como Joris o fora na sua idade.
Orgulho, sim! Ambos eram orgulhosos, tanto Joris como Albert. Mas o orgulho de Albert não consistia em fazer isso ou aquilo, ser melhor e mais rapidamente bemsucedido do que os outros.
Orgulhava-se de não ter medo de nada nem de ninguém e gabava-se do número de dias passados na prisão.
- Vocês têm boa alimentação no quartel?
- Eu tenho, graças a um arranjo que fiz com o encarregado do rancho dos suboficiais...
Terlinck parecia impassível. Observava o rapaz, mas nada deixava transparecer dos seus sentimentos. Aliás, teria ele sentimentos? Quando Maria lhe anunciara que estava grávida, ele dissera:
- Está bem.
E fez o necessário, no sentido de contratar uma outra empregada por três meses, depois procurar uma ama, pagando tudo o que tinha a pagar. E à sua mulher informara sem rodeios:
- Acho que o filho é meu. Vou ajudar Maria a educá-lo, mas não vou reconhecê-lo, é claro...
Theresa chorara. Ela sempre chorava quando lhe anunciavam alguma coisa e só lhe anunciavam desgraças. Naquela época, ainda não se sabia que Emilia não tinha cura. Dizia-se simplesmente que ela era atrasada para a sua idade. E quase todo domingo Albert vinha para a casa, muito esperto, travesso e astucioso. Theresa
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observava o marido e se espantava de ver que ele não se enternecia.
Jamais sentiria ternura por Albert. Contentava-se com observá-lo friamente. Era seu filho sem ser seu filho. O garoto chamava-o de padrinho. Tinham-lhe explicado que seu pai morrera.
Talvez Terlinck pensasse que se, um dia, Albert se mostrasse digno dele...
Mas não era provável. Fora mau aluno, depois mau aprendiz e, em desespero de causa, tinha se alistado no Exército por três anos. Seria também mau soldado. Em todos os ambientes em que vivia só assimilava o que era ruim.
- Foi o senhor quem forneceu os charutos que todos eles tinham no bico esta manhã? - perguntou Albert, servindo-se de galinha. - Fazendo sua propaganda, hein?
Paciência. Terlinck não o censurava por ser assim. Pensando bem, até ficava satisfeito, pois quem sabe o que aconteceria se Albert tivesse se tornado um rapaz do seu gosto?
Após três anos de serviço no Exército, Terlinck lhe arranjaria algum trabalho e, se também não fosse certo, poderia mandá-lo para o Congo.
Maria, sabendo que havia motivos para se preocupar com o filho, de vez em quando vinha até a porta para escutar a conversa.
- Parece que vocês tiveram um drama dos diabos aqui! Li a notícia no jornal. O engraçado é que quase todas as manhãs encontro a filha de Van Hamme.
Theresa baixou a cabeça, perdeu o apetite. Não ignorava que seu marido, ao contrário, iria erguer o queixo.
- Quase todas as manhãs?
- Quando sou encarregado de cuidar da forragem... Sabem onde fica o quartel?... Passo pelo cais com
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os meus cavalos e, quando volto da Intendência, lá pelas dez horas, quase sempre a vejo passeando por lá... Ela mora no bairro, no andar de cima de uma loja de cordames...
Os garfos continuavam atarefados, fazendo ruído contra a louça. Terlinck permanecia calado. Por um momento, o silêncio foi constrangedor, como de manhã, na prefeitura, quando Leonard Van Hamme havia entrado.
- Por que aquele sujeito se matou?
Theresa suspirou, prestes a chorar. Maria, junto à porta, tentava fazer sinal ao filho, mas ele não estava olhando para aquele lado.
- Não vejo necessidade de se matar por ter emprenhado uma moça... Ainda mais ela sendo rica, não é verdade?
Ele fazia de propósito. Não ignorava que estava chocando, que tal linguagem não era permitida naquela casa. Mas sentia como que uma necessidade de afrontar os sentimentos das pessoas.
- Se estivesse no lugar dele, posso garantir...
- Albert! - advertiu Maria da cozinha.
- Ora essa! Eu disse alguma coisa errada? Mamãe fala sempre como se os homens fossem uns santos...
Terlinck esperou o olhar do rapaz. A frase podia ser endereçada a ele. Nesse caso, Albert sabia. Mas o outro, sem o olhar, continuava a comer com apetite.
- Não tem mais batatas, mamãe?
Em dias como aquele, o ambiente da casa não era mais o mesmo. E o gabinete de Terlinck, de manhã, ficara diferente do que costumava ser o resto do ano. Afinal, não apertara a mão, como se fossem amigos, de funcionários que habitualmente só recebiam dele frias observações?
No dia seguinte, a vida voltaria ao normal. Enquanto isso, Albert falava de boca cheia, coisa que Terlinck não teria tolerado de um filho de verdade.
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- Ela tem um cãozinho branco, um lulu da Pomerânia, e pára na rua cada vez que ele quer fazer pipi...
Era de acreditar que Theresa tivesse realmente o pressentimento da desgraça. Ergueu a cabeça ao mesmo tempo que o marido. Sentia com absoluta certeza que ele ia fazer uma pergunta.
Seus olhares se cruzaram. Terlinck compreendeu que a mulher adivinhara, mas ainda assim perguntou:
- Onde ela mora?
- Sabe onde fica a estação marítima? Em frente, do outro lado da ponte, onde atracam os pequenos barcos de pesca, há uns cinco ou seis botequins, onde se vendem mexilhões e peixe frito... Depois do terceiro, onde a vendedora é uma bela espanhola, fica a loja de cordames... Uma casa branca de dois andares... Pois foi lá que eu a vi entrar...
Maria havia preparado uma torta.
- A massa não está bem cozida! - declarou Albert. - Mamãe nunca soube fazer torta, mas teima...
Era verdade. Theresa, porém, afirmou que a torta estava deliciosa e com um ótimo recheio.
Terlinck levantou-se, apanhou um charuto e ofereceu outro ao rapaz.
- Quando você deverá estar de volta a Ostende?
- Para a chamada das cinco horas, já que não consegui licença. Há um comboio às quatro...
- Quer que o leve?
- Isso seria formidável! O comboio custa oito francos.
Os olhares de Theresa e Maria se procuraram.
- Venha um instante ao meu gabinete...
Ao sair da sala de jantar, o rapaz não resistiu em lançar uma piscadela à sua mãe.
- Quanto eu costumava lhe dar das outras vezes?
- Cem francos.
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O cofre estava aberto. Era uma mania de Terlinck abrir o cofre quando havia outra pessoa no gabinete, talvez uma necessidade de desafio, deixando entrever nas prateleiras gordos pacotes de papéis, que só podiam ser títulos.
- Quando você fez vinte anos?
- Há um mês...
Terlinck remexeu uma velha carteira estufada e estendeu ao rapaz duas cédulas de cem francos.
- Para você!
- Obrigado, padrinho.
- Partiremos depois do café.
- Está bem, padrinho.
Theresa ajudava Maria a lavar a louça. As duas cochichavam na cozinha, junto à pia. Na garagem, Terlinck colocava óleo no carro. Enquanto isso, Albert examinava o velho automóvel com um olhar crítico.
A cidade estava deserta, e quando passava gente, eram famílias, quase enfileiradas, em trajes domingueiros, indo em grupo visitar alguma outra família.
Enquanto o motor esquentava, Terlinck foi vestir o seu traje de todos os dias, a peliça curta e o gorro de lontra.
Os dois homens partiram. Ao ver o filho se afastar, Maria parecia ansiosa. E Theresa suspirou, ao entrar em casa:
- Não vai sair nada de bom dessa história!
O que fez ela durante toda aquela tarde? Só vieram duas vizinhas. Recebeu-as com vinho adocicado e bolinhos. Suspirou um pouco e abanou a cabeça, ouvindo as infelicidades de outras pessoas, pois todo mundo tem suas tristezas e tanta gente morre durante o ano.
- E a pobre Theodora, com os seus cinco filhos, e um câncer no estômago...
O resto do tempo, ela entrava na cozinha, conversava com Maria ou se punha a arrumar algum armário.
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Às quatro da tarde já era noite. Os sinos tocaram para a bênção, mas ela não foi à igreja. As duas comeram uma fatia de bolo, em pé, na cozinha, com o resto do café do almoço.
Depois soaram cinco, seis horas, o momento de sentar-se à mesa, a hora de jantar, mas os pratos permaneciam glaucos e vazios sob o abajur rosa.
- Maria, estou pensando se com essa camada de gelo nas ruas ele não sofreu algum desastre...
- O gelo já derreteu...
- Derreteu quando fazia sol, mas tornou a se formar, e ele teima em não comprar pneus novos...
As oito horas, Terlinck ainda não voltara, coisa que nunca tinha acontecido antes. Não havia telefone na casa, somente na fábrica, que já estava fechada.
As oito e dez, uma meninazinha tímida, filha da funcionária do correio, veio anunciar, gaguejando:
- O Sr. Terlinck teve um problema com o carro... Só estará de volta daqui a uma hora... Manda dizer às senhoras que não se preocupem...
E a meninazinha, endomingada como todo mundo na cidade, recitou o recado como se fosse uma saudação e, depois de uma reverência que aprendera na escola, achou que devia acrescentar:
- Feliz Ano Novo!
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NESSE DIA, se alguém de uma janela avistava pessoas andando na rua, era difícil deixar de associá-las aos primeiros filmes de cinema, quando a cadência demasiado rápida das imagens fazia os personagens correrem e gesticularem como títeres desengonçados.
Nunca chovera tanto. As gotas de chuva pipocavam nas calçadas como bolas de celulóide, e a água afluía de todos os lados, dos beirais e esgotos, debaixo das portas, formando lençóis líquidos, pelos quais os carros passavam cautelosamente.
Nenhum céu, nenhum fundo na atmosfera, nenhuma cor. Nada a não ser água gelada. Mulheres erguiam as saias, mostrando suas meias presas com cordões; os guarda-chuvas tornavam-se flácidos e ressudavam por dentro; rostos como em conserva, embaciados, entediados, flutuavam por trás das cortinas nas casas.
No entanto, desde as oito da manhã, contavamse dez automóveis na praça; senhores desconhecidos saltavam dos carros, iam esquentar-se alguns instantes no Velha Torre, enveredavam pela prefeitura adentro.
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Logo o Sr. Coomans chegou com o seu primeiro escriturário. Depois Meulebeck, que era inspetor dos serviços públicos.
Correndo, atravessava-se de novo as calçadas, e os carros partiam em fila indiana, como nos dias de cortejo, formando asas de água e de lama. Os tijolos das fachadas, de tão encharcados, tornavam-se negros. Tudo impregnado de umidade, até as pessoas dentro dos carros, e os papéis na pasta do escriturário do tabelião.
Contudo, doze ou quinze homens, caminhando atrás de Terlinck, tiveram de chapinhar na lama em torno da usina de gás; vários deles comprimindo-se debaixo de cada guarda-chuva. Às vezes algum se destacava do grupo para ir medir alguma coisa ou se formavam conciliábulos à parte.
Tudo isso se passava numa oficina, que mais parecia um terreno baldio, a cem metros de uma fileira de casas lúgubres, construídas no tempo em que Leonard Van Hamme era prefeito, cópia do modelo das cidades operárias.
Também naquelas casas, rostos pálidos espiavam por detrás das vidraças.
Era preciso andar depressa. Chovia mais forte.
- Senhores, se estão de acordo comigo, e não resta mais nada para verem, vamos proceder à adjudicação na prefeitura.
Munido de suas polainas, sua peliça curta, seu gorro de lontra, Terlinck não se preocupava com a chuva. Mantinha um ar grave, compenetrado talvez com a importância daquele dia. Tornou a entrar no seu carro, com um adjudicatário de Anvers, um judeu que falava o tempo todo. Enfrentando de novo a calçada, eles se instalaram na sala dos casamentos. O tabelião Coomans despejou o conteúdo de sua pasta sobre o pano verde da mesa e acendeu solenemente uma vela.
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Foi assim que, às onze horas da manhã, os Srs. Duperron e Jostens, de Bruxelas, resgataram a usina de gás de Furnes e se comprometeram a demoli-la no prazo de três meses.
Apesar da chuva, da lama, dos rastros de água no assoalho e nas escadas, dos pés molhados, dos ombros encharcados, apesar do cheiro de lã molhada que as roupas exalavam e do aspecto desolador das ruas, Joris Terlinck estava vivendo um dia triunfal.
Ninguém, nem mesmo um Van de Vliet no auge de sua glória, teria ousado encarar a possibilidade de demolir a usina de gás, que havia custado tão caro, e vendê-la a negociantes de sucata de Bruxelas, para fazê-la em pedaços e carregá-la de Furnes.
Terlinck ousara. Nos quinze dias em que o gás estava sendo fornecido pela usina de Roulers, o seu preço de consumo já baixara quatro centavos.
Todos fumavam charutos, os charutos de Terlinck. Terminada a adjudicação, Kempenaar foi apanhar uma garrafa de vinho do Porto e copos. Os carros já estavam de partida. O pequeno tabelião Coomans chamava os Srs. Duperron e Jostens para pedir-lhes suas assinaturas.
A parte oficial estava encerrada. Os adjudicatários mostravam-se satisfeitos.
- Senhor prefeito, esperamos que aceite vir almoçar conosco... Disseram-me que há nesta cidade um restaurante muito bom... O senhor tabelião também está convidado.
Ao que Joris respondeu:
- Se querem que almocemos juntos, terão de ir almoçar em minha casa!
Já mandara avisar sua mulher por Kempenaar. E estendeu o convite ao tabelião e mesmo a Meulebeck, seu adversário mais acirrado no caso da usina de gás.
- Enquanto isso, vou fazer-lhes as honras da prefeitura. ..
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E assim se passaram os fatos, com certa desordem, sobretudo por causa da chuva, mas também porque os acontecimentos memoráveis nunca decorrem conforme se espera. Homens de negócios, que se levantaram muito cedo, que viajaram trinta ou cem quilômetros, que chafurdaram na lama para visitar oficinas, e que se reúnem em volta da mesa para discutir a transação, logo compreendem que Duperron e Jostens irão até o fim e que se despedirão mal disfarçando o seu mau humor!
O mais inesperado era Terlinck ter à sua mesa o tabelião Coomans, que nunca pusera os pés naquela casa, e Meulebeck, que até então nunca entrara senão no gabinete.
Entretanto, estavam ali, na sala de jantar onde o aquecedor soltava um pouco de fumaça, o ar era azul, a mesa cheia de coisas raramente servidas e que Theresa fora comprar na salsicharia Van Melle, onde se vendiam coisas finas, certas latarias que talvez estivessem nas prateleiras há uns cinco ou seis anos e cujo conteúdo se ignorava!
O Sr. Coomans, com as costas demasiadamente próximas do aquecedor, pois haviam sido colocadas tábuas extras para aumentar a mesa, estava muito rosado, quase vermelho em contraste com a brancura de sua barba. Também junto ao aquecedor, no chão, enfileiravam-se garrafas, velhas garrafas que Joris trouxera da adega para irem adquirindo a temperatura ambiente.
- Ã saúde do prefeito de Furnes! - exclamou logo no primeiro trago o bruxelense que devia ser Jostens.
Discursava como ninguém seria capaz de falar na Flandres, com uma facilidade desconcertante, abertamente, alegremente, manejando as palavras e, dir-se-ia, também a vida.
Então aconteceu um fato que Meulebeck logo notou: Terlinck, que nunca bebia senão cerveja, esvaziou
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várias vezes seu copo de vinho, permanecendo sempre muito grave, mas olhando ao redor com uma expressão que se tornava cada vez mais sonhadora.
Eram sempre os bruxelenses que falavam, e o calor se intensificava; Maria ia e vinha da sala de jantar para a cozinha, onde Theresa lhe dava uma ajuda, sem aparecer na sala.
Foi Coomans quem julgou entrevê-la pela porta entreaberta, e perguntou amavelmente:
- Não vamos ter o prazer de ver a Sra. Terlinck?
- Hoje não - replicou Joris. - Minha mulher manda pedir desculpas, mas não estava se sentindo muito bem e ficou no quarto.
Cinco minutos não se tinham passado quando o velho tabelião, à espreita com seu ar de garoto travesso, tornou a avistar Theresa na cozinha e voltou-se para o seu anfitrião:
- Ora, vamos, Terlinck, foi a sua mulher que acabei de ver!
Estava exultante por colocar o prefeito numa situação embaraçosa. Os olhos de Meulebeck brilhavam por detrás dos óculos. Os bruxelenses pareciam constrangidos.
E Joris, sem corar, replicou pesadamente:
- Tem razão, Sr. Coomans. É realmente minha mulher que está na cozinha, ajudando a criada.
Seria o efeito do vinho? Não restava dúvida de que ele permanecia calmo, mas não era a calma gélida que lhe conheciam. Olhava cada um à sua volta como alguém que vai fazer uma declaração importante.
- É exatamente a história da usina de gás, Sr. Coomans, essa história que o senhor ainda não compreendeu.
Estavam sendo servidos pombos, por não ter sido possível encontrar caça.
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- Habitualmente, Sr. Coomans, somos apenas dois nesta casa, ou melhor, nesta sala de jantar, e uma só criada é mais do que suficiente para nos servir. Digamos que três, quatro vezes por ano tenhamos convidados. Acha que só por causa desses convidados vou manter o ano inteiro uma empregada suplementar, sem nada que fazer?
Os garfos iam sendo manejados discretamente, pois pairava no ar um certo constrangimento.
- Se nesses dias contrato alguém de fora, o que faria essa pessoa o resto do tempo?... Responda-me, Sr. Coomans...
A Theresa não passaria despercebido que os olhos dele estavam mais brilhantes, mas ela se mantinha escondida atrás da porta e não podia ver a fisionomia do marido.
- Temos uma cidade de cinco mil habitantes, que vive dos campos de suas cercanias, isto é, do leite, da manteiga, dos ovos, das beterrabas ali produzidas. Se lhe déssemos ouvidos, Sr. Coomans, o senhor e todos aqueles que não vêem mais longe do que a ponta dos seus narizes, continuaríamos a fabricar nós mesmos o nosso gás, mais caro do que o vendido por uma cidade vizinha... E quando se tratou de construir um novo hospital, o senhor queria que fosse construído pelos empreiteiros da cidade... Assim para tudo...
Ele falava para os bruxelenses que, por questão de polidez, concordavam com gestos de cabeça.
- O que teria acontecido, Sr. Coomans?... Admita apenas que demolíssemos a usina de gás com nossos próprios recursos... Não existem desempregados em Furnes, a não ser alguns sujeitos, incapazes de fazer coisa alguma... As pessoas teriam abandonado o campo para ganhar mais, assim como operários descontentes de outras cidades. Teriam trabalhado três ou quatro meses... E depois?... Será que vamos ter sempre uma usina de
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gás para demolir, um hospital a construir? Acha que os operários voltariam para os lugares de onde vieram?
Sua mão tremia, enquanto ele curvava para os copos a cesta de vime que continha uma velha garrafa de Borgonha.
Um dos bruxelenses aproveitou essa pausa para dizer amavelmente:
- Espero que, apesar de tudo, tenhamos ainda a ocasião de apresentar nossas respeitosas homenagens à Sra. Terlinck.
- Não, meu senhor!
Não estava embriagado, longe disso, mas havia nele certa desarticulação, que o tornava ainda mais categórico que de costume. As vezes, dava a impressão de estar querendo uma discussão.
- Os senhores estão aqui por uma questão de adjudicação, e minha mulher nada tem a ver com os negócios da cidade. Cada qual no seu lugar. É este o meu princípio.
O Sr. Coomans estava cada vez mais rubro. Quatro garrafas haviam sido esvaziadas na mesa e, quando todos se levantaram, estavam obviamente entorpecidos.
- Se querem, podemos tomar o café em meu gabinete.
No gabinete, acendeu o radiador a gás, apanhou as caixas de charutos sobre a lareira e, nesse momento, em seu rosto surgiu como que uma ligeira hesitação. Franzindo as sobrancelhas, Terlinck desviou rapidamente os olhos.
Acontecera no momento em que ele se voltava para o centro do aposento e oferecia os charutos a Jostens, que se mantivera de pé. Terlinck erguera a cabeça para o bruxelense e, pelo espaço de um segundo, de bem menos de um segundo, tivera a impressão de ver Jef Claes.
Nem bem isso! A visão fora mais vaga, um sopro de lembrança, algo de indefinível. Jostens, barrigudo e bo-
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chechudo, não se parecia em nada com Claes. Era unicamente por estar ele no mesmo lugar que o outro na noite anterior? Ou seria por causa do vinho?
- Sentem-se, meus senhores... Aceitam um cálice de velho schiedam?...
Maria trazia a bandeja com o café, e o gabinete, habitualmente tão deserto, agora mal comportava tanta gente. Terlinck foi apanhar a bilha de barro do schiedam no armário, depois, em outra prateleira, o serviço de licor de pequeninos copos finamente cinzelados.
- Bebo ao seu longo reinado na prefeitura!
E Terlinck, que às vezes parecia fazer de propósito:
- O meu reinado só vai terminar no dia em que me levarem para o cemitério. Não é exato, Sr. Coomans? Pois hoje não existe mais ninguém que ouse tomar o meu lugar. Pergunte a eles...
Meulebeck, surpreso com tal atitude, tentava manter uma expressão irônica, que se harmonizava com sua pálida cabeça alongada.
- Sob sua gestão os impostos foram reduzidos! - suspirou o Sr. Coomans.
- O senhor é um filantropo! - o bruxelense julgou que devia acrescentar.
- Não, senhor!
- Quero dizer que o senhor se preocupa com a felicidade de seus administrados...
- Não, senhor! Os meus administrados, como diz, não são mais felizes porque pagam alguns francos a menos de imposto. E os doentes não serão mais felizes por morrer no novo hospital, em vez de no velho. Deve-se fazer o que tem de ser feito, mas é um erro acreditar que se pode mudar a sorte das pessoas. Posso lhe contar que tenho uma cunhada...
Coomans e Meulebeck se entreolharam.
- É uma irmã de minha mulher, uma de Baenst, sobrenome de que os senhores já devem ter ouvido falar.
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Pois bem, quando ela perdeu o marido, que era maestro, tinha quarenta anos e não dispunha de recursos de espécie alguma. O que os senhores teriam feito em meu lugar?
E depois de os ter deixado um momento sem saber o que responder:
- Aconselhei minha cunhada a procurar trabalho em Bruxelas! Se a tivesse acolhido em minha casa, eu teria agido estupidamente, pois não era o lugar dela. Casei-me com uma e não duas de Baenst! E se lhe tivesse dado dinheiro... Suponhamos que lhe desse dez mil, vinte mil francos... Quando o dinheiro acabasse, ela teria de arranjar de novo dez ou vinte mil francos... E assim por diante... Ao passo que, agora, tem um emprego em Bruxelas, onde não a conhecem. É caixa num café da rua Neuve e, no entanto, é uma filha da família de Baenst.
"Facoxmesma coisa na prefeitura, quando um infeliz vem me pedir trabalho. Não se dá emprego a alguém porque é um infeliz. Sai mais barato a secretaria de beneficência fornecer-lhe um auxílio e eu dar o emprego a alguém que esteja capacitado..."
Os copinhos tiniram uns contra os outros e todos beberam. A fumaça dos charutos já anuviava o ambiente. O gás chiava. A chuva formava regos nas vidraças.
Seria Jostens ou Duperron? Terlinck não sabia mais ao certo. O mais gordo dos dois! Ele murmurava:
- Será que o senhor poderia me mostrar onde fica o toalete?
No corredor, onde o ar estava gelado, tirou algo do bolso.
- Permita-me, Sr. Terlinck... Espero que não se ofenda, mas é o costume... Pode fazer um donativo aos seus pobres, se quiser...
O bruxelense lhe estendia uma pequena pasta, e Terlinck, ao recebê-la, abriu a porta do gabinete.
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- Este senhor não estava precisando em absoluto ir ao toalete, mas desejava entregar-me esta pasta... Contém... Esperem!... Contém cinco mil francos... O que acha disso, Coomans?... E você, Meulebeck?
O segundo dos bruxelenses tentava salvar seu companheiro, murmurando:
- É um simples donativo para os pobres da cidade...
- Eu já lhes disse que nunca dou nada aos pobres, Sr. Duperron... Duperron ou Jostens?... Isso não tem importância... E não vou deixar que levem um parafuso a mais do que aqueles a que os senhores têm direito... E não terão um só dia de prazo suplementar para terminar os trabalhos...
Só restava bater em retirada, mandar buscar os capotes molhados, as galochas. Terlinck lançou ainda um rápido olhar ansioso ao centro do gabinete, como para se certificar de que Jef Claes não estava ali.
Se Claes não tivesse morrido, será que se tornaria um homem como Duperron e Jostens?
Para que fazer a si mesmo uma tal pergunta?
- Boa-noite, meus senhores. Mas não! Não há do que me agradecer... Se fizeram um bom negócio, a cidade de Furnes também saiu lucrando... Boa-noite, Coomans... Boa-notie, Meulebeck...
O calor todo se dissipava, todo aquele ambiente de uma boa refeição, do vinho, dos charutos e do schiedam. Os motores dos carros foram ligados. Por polidez, os convidados acenavam com a mão pelas janelas.
Na casa vazia, Terlinck fez lentamente meia-volta, apagou o radiador a gás, tornou a guardar as caixas de charutos. Todas as portas permaneciam abertas. Na sala de jantar, Theresa e Maria ainda não haviam acabado de varrer as migalhas.
- Que dia é hoje? - ele perguntou.
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Terlinck não queria sentar-se nem ficar sem fazer nada. Estava com um pouco de dor de cabeça e evitava, com uma repugnância quase física, o centro de seu gabinete, o lugar onde Jef Claes...
- Já está tudo preparado?
- Não, Baas - respondeu Maria. - Não tive tempo.
Então ele mesmo foi preparar; atravessou a cozinha, dirigiu-se para uma tina, onde havia uma bomba e tudo o que era preciso para limpeza. Apanhou um balde, que encheu de água, uma escova, uns trapos.
- Espere, Bíias. Eu levo isso lá em cima...
Ele não se deu ao trabalho de responder, carregou utensílios, parou diante da porta da filha.
Toda quarta-feira fazia a mesma coisa, mas também toda quarta-feira, até o último minuto, não podia saber se iria até o fim.
Despira os punhos da camisa, o colete, o colarinho. Mal entreabrindo a porta, antes de se voltar para a cama, já ia murmurando com voz maquinai:
- Calma, minha filhinha... Seja boazinha, minha linda pombinha...
E a palavra 'pombinha' lhe causou um choque, pois acabara justamente de almoçar pombos.
Ela acompanhava o pai com os olhos. Um momento antes, estivera cantando, ele a ouvira do lado de fora da porta, uma canção triste, quase sem melodia, sem palavras precisas, que podia prolongar-se por horas a fio.
Mas no momento que o pai entrava no quarto, ela se retesava, os dedos crispados no colchão, os olhos cheios cie desconfiança.
E ele, que não tinha certeza se seria interrompido, catava depressa o grosso das sujeiras de toda espécie, espalhadas no assoalho. Ao mesmo tempo, repetia numa voz que ninguém teria reconhecido:
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- Calma, meu passarinho... Ela é boazinha, não é mesmo? Ela não vai dar uma tristeza a seu papai...
Embaixo, Theresa soluçava, pois ouvira trechos das conversas. E naquelas respostas, que não conseguia compreender, no tom do marido, no furor de sua verbosidade, ela discernia uma nova ameaça.
- Sabe muito bem, Maria, que ele não estava como nos outros dias...
- Não seria porque o Baas bebeu um pouco demais?
- Não é isso, Maria! Quando por acaso ele bebe, fica calado e se tranca...
Lá em cima, cada metro quadrado que limpava com um trapo molhado constituía uma vitória, e Terlinck se apressava em repetir:
- Ela é boazinha... Não quer ver seu pai triste... Ela vai se deixar lavar, como uma menina ajuizada...
Os olhos dela permaneciam secos, seu olhar sem expressão. O cheiro do quarto era nauseabundo, mas isso não o incomodava. Sobre a cama, Emilia continuava retesada, inteiramente nua, lívida, coberta de feridas.
- Hoje ela vai ter muito juízo... O paizinho dela vai lavá-la.
Chegava o momento mais difícil. Quando ele se aproximava do outro lado da cama, Emilia era freqüentemente tomada de um terror que quase sempre terminava num terrível acesso de cólera.
Então ela o atacava. Nesse dia, atacou como nos seus piores momentos, gritando, uivando, usando as unhas, tentando morder. Era preciso segurá-la sem machucar, aproveitar o instante de correr para a porta e sair do quarto, onde ela continuava a ganir palavras imundas.
Ninguém nunca soube onde aprendera aquelas palavras. Algumas eram tão cruas, tão ignóbeis que seu pai não as conhecia.
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Ao sair precipitadamente, ele virou o balde, voltou para apanhá-lo, a fim de nada deixar no quarto com que ela pudesse se machucar.
Por algum tempo ainda ele ficou escutando o rosário de injúrias e grosserias.
Depois foi se trancar no toalete do primeiro andar e lavou-se com cuidado, olhando-se gravemente no espelho.
Poderia ter ido à fábrica de charutos, que ainda não estava fechada, mas havia trocado de roupa e não estava com disposição de tornar a enfrentar a chuva.
Descendo com passos pesados, entrou no gabinete sem passar pela sala de jantar, onde ouvia sua mulher indo e vindo. Acendeu o gás, apanhou um charuto, pôs os óculos e relanceou um olhar muito rápido ao 'lugar'.
Depois, cruzou as pernas e começou a ler o seu jornal. Estava com sede, talvez por causa do vinho, mas não tinha coragem de ir buscar água na cozinha e não havia uma campainha à mão.
Aliás, Maria já subira. Terlinck a ouvia arrumar o quarto de onde ele acabara de sair. Mesmo com chinelos de feltro, ela pisava forte; sempre pisara assim, fazia duas vezes mais barulho do que qualquer pessoa quando subia ou descia as escadas; e à noite era uma barulheira quando se despia em sua mansarda no segundo andar.
As crianças voltavam da escola, transidas de frio sob seus capotes de capuz pontudo, que nada deixava ver de seus rostos. E havia, ao longo das ruas, o clape-clape intermitente dos tamancos. Os bicos de gás ardiam.
Terlinck ainda não acendera a luz, e isso o obrigaria a levantar-se. Continuava com os olhos no jornal, porém não estava mais lendo. Seu charuto apagara. Maria tinha começado a guardar as roupas, exceto as que levaria para baixo, a fim de secá-las na cozinha. Aproximava-se da cama. Debruçada para frente, começava por tirar as
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cobertas e lençóis antes de, com esforço possante, revirar os dois colchões.
Fora assim que tudo havia começado, naquele tempo! Ele entrara por acaso no quarto, sem segundas intenções.
Levantando-se, ele suspirou, saiu para o corredor arroxeado pelo crepúsculo. Uma luz filtrava sob a porta da sala de jantar. Theresa devia estar erguendo a cabeça da sua costura e perguntando a si mesma se o marido iria entrar na sala.
Mas ele subiu as escadas de cabeça baixa. No patamar, hesitou, tirou duas vezes a mão do trinco da porta. Finalmente, encolhendo os ombros, entrou; trancou a porta a chave, embora fosse uma precaução inútil, pois Theresa compreendera desde o momento em que o ouvira subir, e a ninguém ocorreria tentar entrar ali.
Para arrumar o quarto, Maria acendera a luz, ele a apagou. Ela ficou calada.
E todo o tempo ele continuou a ver, do lado de fora das janelas, o halo da cidade, a silhueta aguda dos bicos de gás através da cortina de chuva, a massa sombria da prefeitura recortada por janelas altas e estreitas.
Crianças continuavam passando. Muitas delas com capotes e capuchos, narizinhos vermelhos de resfriados, olhares de cobiça para as vitrines iluminadas, sobretudo as que exibiam comidas.
Afinal ele se levantou e Maria se levantou também, sem nada dizer, retornando ao seu trabalho exatamente no ponto em que o havia deixado. Ao sair, ele poderia acender a luz, mas não se deu ao trabalho; fechou a porta e se viu sozinho no patamar, de um lado o lance que descia, do outro o que subia; a filha lá em cima, provavelmente dormindo após a crise; a mulher lá embaixo, choramingando enquanto costurava.
As escadas estavam às escuras. Não eram aquecidas. Cada vez que alguém abria uma porta, conforme saía
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de um dos cômodos ou entrava, recebia uma baforada de frio ou de calor.
Desceu, tirou sua peliça do cabide.
- Vai sair, Joris? - perguntou a voz de Theresa. Ele ergueu os ombros sem responder, pôs o gorro na
cabeça, abriu a porta e enterrou as mãos nos bolsos.
A chuva continuava caindo. Vislumbrava a janela do seu gabinete na prefeitura, de luz apagada, pois não havia ninguém lá, e pensou que Van de Vliet devia estar
no escuro.
Não foi para a prefeitura nem para a fábrica, tampouco para Ostende. Não foi a parte alguma.
Empurrou a porta de vidro fosco do Velha Torre e aspirou o odor familiar de cerveja, genebra e charuto. Os cartazes estavam em seus lugares. Ninguém ocupava as cadeiras.
Não era a hora. O próprio Kees, surpreendido com a sineta da porta, veio depressa da cozinha.
- É o senhor, Baas? O que deseja que eu lhe sirva? Pois àquela hora o homem não sabia o que servir.
- O de sempre!
E Terlinck sentou-se em seu lugar, não muito afastado do aquecedor, cruzou as pernas, procurou um novo charuto, que enfiou na piteira de âmbar. Ouviu-se o estalido seco do estojo.
- Vou acender as luzes...
Terlinck hesitou. Quando entrara, só metade das lâmpadas estava acesa. Isso dava uma sensação de melancolia, de tédio. Um pouco como quando se ia ao Círculo durante a semana e se penetrava no salão de festas, em que uma única lâmpada clareava de longe as decorações e as bandeiras.
- Isso mesmo! Acenda tudo...
Kees, de costas, permitia-se franzir as sobrancelhas. E as mantinha ainda franzidas ao servir a cerveja.
- Então, Baas, tudo certo?
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- Muito certo.
- Contudo, o senhor não parece estar satisfeito. O fato era que tinha sido o seu grande dia! Van de
Vliet jamais fora mais poderoso em Furnes. Nem ele nem ninguém! Não era ele, Joris, o prefeito, a quem haviam confiado por um tempo bastante longo a administração da cidade, e a quem se pediam favores? Era o chefe, o Baas!
A cidade era da sua responsabilidade, assim como a fábrica de charutos, e ele administrava ambas igualmente. A prova era que a usina de gás não só seria demolida, como o seria por uma grande empresa de Bruxelas!
Ninguém tinha se rebelado. Surgiram protestos de que ele iria pôr na rua cinqüenta famílias e que haveria manifestações. Ora, as cinqüenta famílias contentaramse em olhar pelas vidraças em suas casas miseráveis o cortejo dos carros que chegavam, os senhores que saltavam de dentro e inspecionavam debaixo de chuva os terrenos baldios.
As cinqüenta famílias voltariam a ser o que eram antes.
- E quero que sempre haja gente pobre para catar bosta na rua! - tinha ele declarado em pleno conselho. - Pois, do contrário, é estrume que se perde. Portanto, uma riqueza desperdiçada! Ao passo que mais gente pobre...
- Dê-me mais um chope, Kees!
Tinha ele hesitado em afirmar a Coomans que jamais o substituiriam? Em outras palavras, aquele que o substituísse teria de contar com ele! Então seria como antes, como durante os vinte anos em que ele praticamente sozinho fora a oposição, atormentando o prefeito e os vereadores a ponto de deixá-los desesperados.
Kees parecia contrafeito. Olhava para o relógio que marcava cinco horas, a hora em que o prefeito, no
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seu gabinete, teria visto a porta se abrir e Kempenaar entrar com a correspondência para ser assinada.
- Parece que aqueles senhores jantaram em sua casa?... Com o tabelião Coomans e o advogado Meulebeck?...
- Quer jogar uma partida de damas, Kees?
- Com prazer, Baas.
- Qual vai ser a aposta?
- O senhor concorda com um chope contra um charuto?
E Joris Terlinck, as feições enrijecidas pela concentração, pelo esforço, passou quinze minutos curvado sobre as casas pretas e brancas e as pedras. Fumava. Resmungava. Kees jogava damas todos os dias porque os clientes precisavam de um parceiro e era perito no jogo. Permitia a si mesmo, entre dois lances, ir apertar sua bomba de chope, que gotejava.
Terlinck calculava, o olhar fixo, os lábios crispados na piteira.
- A sua vez!
- Vou lhe comer três pedras, Baas! A sua jogada não foi boa.
Kees quase se arrependeu, ao ver como seu adversário estava reagindo: tornava-se lívido, curvava-se sobre o tabuleiro com uma tensão que a pouca importância da partida não justificava.
- Mais um outro erro como este e estou perdido... Novo lance.
- E agora? - perguntou Joris avançando uma pedra e soltando-a depois de um longo momento. „-
- Agora melhorou para o senhor, Baas!
Poder-se-ia acreditar, pelo lampejo dos olhos do prefeito, que ele acabava de jogar seu futuro num lance de damas.
Após vinte minutos, ainda não conseguira ganhar.
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No momento em que entraram os fregueses, os dois jogadores estavam em igualdade: o mesmo número de
pedras!
Anularam a partida.
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VI
ERA A SEGUNDA vez que o seu carro dava problema ao voltar de Ostende para Furnes. Havia muito que já era noite. De um lado da estrada, as casas de praia, fechadas no inverno, escondiam-se entre as dunas. Do outro, além do primeiro plano de areia e de um capinzal seco, a mancha mais intensa na paisagem era o mar, que exalava como uma respiração fresca e úmida, e a luz do navio-farol no horizonte.
Joris Terlinck colocara-se no meio da estrada, e quando avistou os faróis de um carro que vinha de Nieuport abriu os grandes braços. Depois, com as pálpebras apertadas por causa das luzes que o cegavam, debruçouse na sombra da porta do carro.
- Boa-noite... Conhece a garagem Mertens?... Logo à direita, antes de entrar em Mariakerke?... Diga a Mertens ou ao seu ajudante que Terlinck, o prefeito de Furnes, teve problemas com o pneu e pede que ele venha imediatamente...
O céu era vasto nessa noite. Muitos pirilampos esvoaçavam sobre o mar e em certo trecho algumas luzes se encarreiravam, como uma lagarta: eram os barcos de pesca que saíam, um atrás do outro, do canal de Ostende.
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Não haviam passado dez minutos quando Mertens surgiu numa bicicleta.
- Foi o mesmo pneu da outra vez?
- Creio que é o mesmo.
Terlinck ficou vendo o mecânico manejar o macaco, desprender a roda sobressalente, labutar com todas as suas ferramentas geladas e, quando o serviço terminou, deu-lhe um charuto.
- Qualquer dia desses vou passar para pagar a minha conta, está bem?
- Quando quiser, Baas... Mas se tem de ir com freqüência a Ostende, seria bom que trocasse de carro...
A ponta vermelha do charuto. A bicicleta que se afastava. Terlinck prosseguia sua viagem, sem se apressar, a ponto de um ônibus barulhento ultrapassá-lo.
Estava atrasado, o que não tinha importância. Depois de Nieuport, em vez de seguir direto para Furnes, tomou o caminho do mar.
Estava absolutamente só. O tempo, fresco. Parecia-lhe que o ar que respirava tinha um gosto bom, que os minutos eram leves, que havia uma curiosa transparência, apesar da obscuridade.
Mais dunas e aqueles caniços pontiagudos como flechas. Casas baixas, dir-se-ia que agachadas para se proteger do vento, com os pequenos quadrados luminosos das janelas. Uma delas era a de sua mãe. Diminuiu a marcha, mas não chegou a parar. Teve tempo de entrever sua velha mãe, de pé com as costas um pouco curvadas, de touca branca na cabeça, que apanhava um prato sobre a mesa para guardá-lo no aparador.
Já lhe teria acontecido alguma vez fazer algo sem finalidade, passar por Coxyde sem nenhum motivo, talvez devido à esperança secreta de prolongar uma sensação de liberdade?
As ruas de Furnes esboçavam-se, a usina de gás, da qual existia apenas o esqueleto, o novo hospital que o rei
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viera inaugurar, a praça, milhares de pedrinhas secas do calçamento, realmente secas, pela primeira vez desde muito tempo.
Enfiou a chave na fechadura, empurrou a porta e logo encontrou, no corredor, como um símbolo de sua casa, duas pessoas que cochichavam.
à vista de Terlinck, o Dr. Postumus encolheu os ombros como para se proteger de um golpe. Theresa fungava e passava a mão nos olhos.
- Desculpe por tê-lo feito vir até aqui... Obrigada, doutor...
E Postumus colava-se à parede para passar. Trocava ainda um olhar, como uma promessa, com Theresa. Enquanto isso, Terlinck tirava a peliça, o gorro de lontra, limpava os pés no capacho e entrava na sala de jantar, onde a mesa estava posta com apenas um lugar.
- Já jantou? - perguntou à sua mulher, que entrara na sala.
Ela balbuciou que sim, sentiu que ele não acreditara, suspirou:
- Não se preocupe comigo, Joris. Maria! Sirva o jantar...
- É você quem está doente?
Theresa gostaria de ter respondido que sim, mas não era verdade, e contentou-se em fazer um gesto, erguendo a cabeça para o teto.
- O que ela teve? - perguntou Terlinck, desconfiado, servindo-se de sopa.
Estava prestes a se levantar e ir ver pessoalmente. Só começaria a comer depois de se tranqüilizar.
- Como sempre...
- Quem a estava espiando? O olhar dele era de irritação.
- Vocês duas, não é? Será sempre a mesma coisa!...
O seu soco na mesa fez tremer a louça.
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- Já repeti cem vezes que ela não suporta perceber que você está atrás da porta, com seus ares de mater dolorosa... E com mais razão ainda, quando a vê espiando pelo postigo!...
A Sra. Terlinck chorava.
- Não íamos demorar, Joris... Eu queria apenas ter certeza de que não faltava nada a Emilia... Não tive coragem de subir sozinha.
Como o mar e as luzes errantes já estavam longe!
- Ela tentou se levantar?
Um sinal afirmativo. Evidente! Assim que via as duas mulheres, Emilia se enfurecia e começava a proferir ameaças, depois recitava o seu repertório mais obsceno e se levantava para se atirar contra a porta.
- Ela caiu?
- Sim, caiu...
- E vocês duas não puderam erguê-la? Tiveram de chamar Postumus?
- Ela gritava tão alto que tive medo de os vizinhos protestarem.., A luz não acendia mais... a lâmpada deve ter queimado... Maria foi buscar uma vela, mas a vela apagou. Então, ficamos assustadas...
Ele empurrou o prato, foi se postar de costas para o fogo e, maquinalmente, cortou a ponta do charuto.
- Naturalmente, Postumus tornou a insistir para que nos separemos dela. O que mais disse ele?
- Sempre a mesma coisa... Escute, Joris...
- Nada feito! Não é certo que todos os médicos, inclusive o professor que mandei vir de Bruxelas, declararam que ela não tinha cura, sim ou não?
- Sim, mas...
- Vão tratá-la com jatos de água, não é mesmo? Depois a enfiarão numa camisa-de-força! Os enfermeiros chamarão seus colegas para ver o espetáculo e escutar, quando ela tiver suas crises...
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Saiu, batendo a porta, subiu as escadas, espiou apenas de longe para não excitar Emilia. Ela cantava na escuridão, mas devia ter percebido algum ligeiro estalido, pois o canto cessou. Terlinck reteve a respiração, e ela pareceu tranqüilizada.
Era tarde. Quando ele abriu a porta do Velha Torre, já havia algum tempo que todos estavam jogando. Alguém terminava uma frase:
- ... e recebi um cartão-postal de Nice...
E ele, ainda sem se sentar, como um homem que tem o direito de fazer perguntas:
- Um cartão-postal de quem?
Já sabia, mas queria forçá-los a dizer. Eles sabiam que ele sabia. Era sempre a mesma comédia, representada em câmara lenta, entrecortada de baforadas de charuto, de pequenos goles de cerveja, como para fazer durar mais o prazer.
- De Leonard...
- Ele lhe mandou também um cartão, Steifels? Steifels adotou o mesmo tom, curvou-se um pouco
para trás.
- Desde a semana passada... Alguém tem notícias da filha dele?
Ninguém respondeu. Kees servia a cerveja do prefeito.
- Parece que ela está em Ostende... - disse Steifels, que semicerrava as pálpebras para olhar suas cartas através da fumaça.
Terlinck tinha certeza de que o outro dizia isso por sua causa. Ele a teria encontrado? Ou o irmão, que era armador em Ostende, lhe dissera alguma coisa?
- Eu corto... Mais cerveja, Kees! A propósito, não deve faltar muito tempo agora... Se perguntassem minha opinião... Paus... Não! Não tenho ouros... Se me perguntassem minha opinião... eu diria que Leonard escolhe de propósito o momento para ir passear na França... Sua
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bronquite e o conselho do médico de uma viagem ao sul é tudo uma piada. O que está esperando para jogar, Leopold?
- E eu, sabem o que eu diria? Que se ele está mandando cartões-postais, é para ficar bem provado que se encontra no sul da França e vocês sabem onde...
- Uma partida de damas, Kees? - propôs Terlinck, com um suspiro.
O proprietário do café verificou se todos os copos estavam cheios, se ia ter alguns minutos de folga. Houve ainda frases, de quando em quando, uma aqui outra ali, que se juntavam no tempo e no espaço e acabavam formando um todo. E desse todo Terlinck era indiscutivelmente o centro.
Ele fez o que os outros desejavam. Disse também a sua frase, aos poucos, continuando a jogar, olhando atentamente as pedras pretas e brancas, numa frase bem à sua moda, que os outros poderiam mais tarde ruminar durante horas:
- Há pessoas assim... A deixar de ser alguma coisa, preferem não ser nada... Acho que você perdeu, Kees!... Um charuto?
- Joris...
O quarto estava às escuras; apenas um fino traço de luz prateada filtrava-se entre as cortinas e riscava u linóleo.
- Joris...
Ele não respondeu. Theresa suspirou, virou-se na cama, tentou dormir. Depois tossiu. Não renunciava com facilidade às suas idéias. Parou de respirar para ouvir a respiração do marido e verificar se ele ainda não adormecera. Então ele se esforçou por respirar regularmente, ruidosamente.
Não era a primeira vez que isso acontecia e era sempre nas noites em que ele havia ido a Ostende.
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- Está dormindo, Joris?
Ele não pôde conter um suspiro de desânimo e com isso se traiu.
- Por que está fingindo dormir? Será que não posso mais falar com você?
Ele pulou para fora da cama, descalço, deu três passos em direção à parede, onde ficava o comutador, permaneceu de pé, de pijama, olhando para a cama de sua mulher, em que só se distinguiam mechas de cabelos e um pedaço de rosto.
- O que você tem para me dizer? Diga de uma vez!
- Não se zangue, Joris!... Sabe muito bem que, quando está desse jeito, sinto palpitações e não consigo falar...
- Estou escutando...
- Tornou a ir a Ostende, não é verdade? Terlinck sentou-se na beira da sua cama de ferro e
ali permaneceu, sempre de pijama, indiferente ao frio, pois o quarto não era aquecido.
- E daí?
- Por que não quer me dizer nada?... Já foi mais de dez vezes a Ostende... Até de manhã você já foi...
- Quem lhe contou? Responda!... Quem lhe contou?
- Postumus... Ele o encontrou lá...
- E que mais Postumus contou?
- Não se zangue, Joris... Será que nunca poderemos conversar simplesmente, como marido e mulher? Você vai se resfriar...
- Pouco me importa.
Então, como se quisesse partilhar a sorte dele, resfriar-se também, Theresa se descobriu, sentou-se na cama, aconchegando a camisola contra o peito.
- Você a viu?
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Ele tentou esquivar-se, conhecendo de antemão o resultado:
- Quem?
- Sabe muito bem de quem estou falando...
- Sim, eu sei! É verdade! Há semanas sinto você se torturando, perguntando a si mesma, espionando-me, depois falando durante horas com Maria...
- Foi Maria quem me falou primeiro!
- E o que disse Maria?
- Não se zangue, Joris!... Você não pode ser tão mau assim! Será que lhe fiz alguma coisa?
Sim, o fato de ser como ela era! E "ainda por cima, o de lhe ter dado Emilia. Mas isso ele não podia lhe dizer. Além do mais, seria inútil. Ela sabia. Compreendia tudo. Adivinhava tudo. Havia momentos em que ele a julgava diabólica!
- Nestes últimos tempos, você não é mais o mesmo, Joris... E isso acontece justamente quando eu supunha que íamos ter um pouco de tranqüilidade... Tem tudo o que quer... Ninguém ousa nada contra você... Até o rei você já recebeu...
Então ele visualizou uma nítida imagem do quarto, os dois, Theresa na cama dela, de camisola e papelotes, ele sentado na beira da sua cama de ferro, de pernas e pés nus. Seus lábios se contraíram num sorriso mau, que não passou despercebido a Theresa.
- O que está pensando? Não é feliz? Não tem tudo o que desejou? Mas agora não sei o que está acontecendo com você...
- Não acha que seria melhor você tratar de dormir?
- Responda-me, Joris... Quando ele veio, confessou a você a verdade, não é mesmo?... O que ele lhe pediu?... Ele queria fugir com ela?... Ele precisava de dinheiro?... Tenho pensado tanto naquele dia, ele tocando a campainha da porta...
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- Continue!
- Não sei... Ele lhe pediu algo, que você recusou... Talvez ele até lhe tenha dito o que ia fazer?...
Ela o fitou nos olhos. Embora parecesse tão frágil, às vezes era capaz de uma terrível energia.
- Ele lhe disse o que faria?
- E se eu responder que sim?
- Joris!
Ela também saltou da cama.
- Você sabia que ele ia matá-la e depois se suicidar? Deixou que ele se fosse?... Eu poderia dizer que estava sentindo isso!... Naquela noite, quase corri atrás dele... Então, foi por culpa sua que...
- O melhor que você faz é deitar-se de novo. Mas não! Ela agora estava -empenhada. Isso lhe
acontecia periodicamente, depois de meses de silêncio e lágrimas. E então dava-se a grande cena, a retrospectiva total da vida do casal, com pormenores que todo mundo, exceto ela, já esquecera.
- E você tem agora o topete de ir ver essa moça? O que disse a ela? Não ousa me responder, não é? Aposto que lhe faz mil agrados, pois está tentando aliviar sua consciência... Meu Deus! Meu Deus! Como pode existir gente de coração tão duro...
Ouviu-se Maria movimentando-se na sua mansarda, onde chegava o eco da discussão do casal.
- Você sempre foi o mesmo. Quando se casou comigo, foi porque eu era uma de Baenst e, apesar do que se dizia, você não podia acreditar que não tivéssemos mais dinheiro! Quando fiquei grávida, não se envergonhou de ter relações com Bertha de Groote, porque ela era sua patroa e rica! E quando Maria teve um filho, pouco se importou de deixá-lo entregue a uma ama no campo.
Em momentos assim, ela chorava sem chorar: era uma peculiaridade sua. Fazia caretas, retinha os soluços e de tempos em tempos era obrigada a assoar o nariz.
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Era magra. Era feia. Terlinck a olhava muito mais do que a escutava.
- A verdade é que você detesta todo mundo e só gosta de si mesmo!... Pouco importa que Jef Claes tenha morrido, já que a morte dele serviu para derrubar Leonard Van Hamme. E ainda há pouco, eu estava falando com o Dr. Postumus...
Ela ainda tentou reter o final da frase, mas já era tarde.
- O que disse a Postumus?
- Pouco importa... O que está fazendo?... Deixeme! Está me machucando, Joris...
- O que você disse a Postumus?
- Disse-lhe que era por orgulho que você não queria mandar sua filha para uma casa de saúde... Você me machucou...
Agora ela olhava seu pulso marcado por um círculo vermelho. E chorava mais abertamente.
- Sabe Deus como você vai acabar!... Com você, tudo está sempre recomeçando... Quando penso que não há mais nada para acontecer, provoca novas desgraças... O que vai fazer em Ostende com essa menina?... Será que ousa dizer? Em furnes, todo mundo já sabe!... E se ela não estivesse grávida, seria de acreditar...
Ele riu, um riso seco, de olhos pregados no linóleo sob seus pês.
- Ê evidente que não pode responder!... Sabe o que aconteceu com a mãe de Jef?
Ele ergueu a cabeça, espantado, inquieto.
- Deu de beber... Está perdendo todos os seus empregos porque vai para os botequins beber com os carroceiros...
- Talvez ela goste disso, não acha?
Mas ele estava se sentindo mal, tão mal que ela notou e o fitou menos duramente:
- Não poderia fazer alguma coisa por ela?
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- O que quer que eu faça?
- Dar-lhe um emprego modesto na prefeitura ou em algum serviço municipal...
- Quer que eu dê emprego a uma mulher que bebe?
Ele estava com frio nos pés, nas pernas. Vestiu as calças, calçou os chinelos, foi para junto da lareira.
- Quando você terminar e me deixar dormir, avise...
- Quando penso que você vai todos os domingos à missa e que comungou no primeiro dia do ano!
Ela tinha um nariz comprido e estreito, pontudo, os olhos muito juntos. Terlinck quase teve vontade de se voltar para ver a própria imagem no espelho, certificar-se que, com o tempo, não ficara tão feio como ela.
- Você sempre foi um egoísta! Sempre me sacrificou! Sacrificou Maria! Sacrificou sua filha! Sacrificou sua mãe...
Ele cerrou o sobrolho.
- O que está dizendo?
- Estou dizendo que...
- Eu a proíbo de falar em minha mãe, está compreendendo?
Ela vagueava pelo quarto, com os nervos à flor da pele, a vontade de fazer um gesto, mas não sabia qual.
Estariam os dois ainda na cidade, na vida de todos os dias? O que pareciam eles dois, em trajes de dormir, junto às camas desfeitas? Joris espirrou. Estava se resfriando. Ela o advertiu, como uma ameaça:
- É melhor você se deitar.
Theresa gostaria de se apoiar em alguma coisa, chorar de verdade, pelo menos uma vez, e não aos pouquinhos, como vinha fazendo nos últimos trinta anos, dissolver-se, tornar-se outra criatura, entrar em um novo ciclo de pensamentos, numa nova vida.
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E, no entanto, ali estavam eles, no seu lar, em meio de objetos familiares, odores familiares! O pai de Terlinck, com seu boné de marujo, ficava acima da cama, e a mãe numa moldura oval, do outro lado. Theresa também tinha seus retratos, pelo menos o do pai, pois não havia nenhuma fotografia boa de sua mãe que pudesse ser ampliada.
- Por que me olha desta maneira? O que está pensando? Você me odeia, não é mesmo?
Ele refletiu antes de responder, abriu a boca, mas acabou não respondendo.
- Está vendo como me odeia! Está confessando! Sempre me detestou! E isso porque eu o impedia, sem querer, de levar a vida que você desejava... Responda, Joris...
- O quê?
- Um dia, nós...
A emoção a sufocava. Deus sabe que visões entreviam os seus olhos anuviados de lágrimas.
- Não somos mais jovens... Um dia, cedo ou tarde... um de nós dois...
E totalmente arrasada:
- O que vai fazer quando eu morrer?
- Não sei.
Ele acendeu um charuto que encontrou sobre uma mesa.
- Há momentos em que pergunto a mim mesma se você é tão duro, tão mau quanto pensam.
- Quem pensa isso?
- Todo mundo... Sabe muito bem que todo mundo tem medo de você... Foi por terem medo de você que o elegeram prefeito, pois sabiam que era o que você ambicionava e iria conseguir de qualquer maneira... E agora... Quando penso que forçou Leonard a expulsar a filha de casa...
- Não tive nada a ver com isso...
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Sabe muito bem que tenho razão, Joris!... Sabia
que bastaria você dizer uma palavrinha... E, justamente, o que não compreendo, o que me faz medo, é que agora você vai a Ostende e... O que diz ela?
- Quem?
- Lina!
Uma estranha expressão surgiu no rosto de Terlinck. E numa voz diferente da habitual declarou:
- Não diz nada.
- Não vai logo dar à luz?
- Suponho... Deve ser daqui a um mês... Talvez mais...
Theresa não compreendia. Por mais que o observasse, que o encarasse com seus olhos, que tinham o hábito de perfurar-lhe a alma, não conseguia compreender.
- Você não é mais o mesmo, Joris... Certas vezes me pergunto se não está debochando de mim, de nós, de si mesmo!... Não era assim antes... É o que me dá medo... Não quer mesmo me dizer alguma coisa?
- Você está precisando deitar-se!
Theresa percebeu que era a sua última palavra. Ele fumava o charuto, com as costas apoiadas à parede, e olhava à sua volta com uma expressão estranha, como alguém que não está vendo os objetos sob o mesmo prisma que os outros.
Ela estava cansada. Doíam-lhe os quadris. Estava ainda mais doente por causa de todas as lágrimas não derramadas, daquela cena tempestuosa, que terminara tolamente, como sempre.
Foi deitar e procurou por muito tempo uma posição cômoda. Depois perguntou, humildemente:
- Não vai apagar a luz?
Quase o ouvia pensar. Ele continuava imóvel no mesmo lugar, a camisa branca do pijama, de gola bordada com patas vermelhas de galinhas, calças pretas, os pés
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nus nos chinelos. Só apagaria a luz quando lhe desse vontade.
Ela suspirou, cobriu-se até os olhos, deixando apenas uma fresta na coberta para respirar.
Não via o bojo que formava sob as cobertas, enroscada na forma de um cão de caça; tampouco sabia que uma mecha dos cabelos grisalhos se destacava das outras.
Tentava dormir. Fungava. Abria os olhos, de quando em quando, e a cada vez recebia o choque brutal da luz.
Ele continuava fumando. Nunca conseguira que ele evitasse fumar no quarto, e o dia inteiro o ar tresandava a fumo apagado.
Estava regelada. Em certo momento, quando abriu as pálpebras, viu-o postado diante da janela. Com uma das mãos, afastara a cortina e olhava para a praça, cujas pedras do calçamento a lua prateava.
Era um estranho deserto, como o mar, como a duna. O relógio da prefeitura formava um disco avermelhado e alguém caminhava na rua.
- Joris... - chamou ela, com voz fraca.
Não houve resposta. Então ela pareceu adormecer. Passou-se algum tempo. Sentiu que alguém estava de pé na sua frente, que olhos a fitavam. Lentamente, com precaução, entreabriu um olho e viu que era ele, sempre em pé, acabando de fumar seu charuto e fitando-a.
Terminado o charuto, ele foi apagá-lo. Depois deitou-se.
De repente, o despertador tocou e ela teve um sobressalto; olhou angustiada à sua volta, pulou para fora da cama, precipitou-se para a cama de ferro de Terlinck.
Por que subitamente lhe ocorrera que ele não estaria mais ali?
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Estava, o torso descoberto, e a respiração regular agitava os pêlos ruivos de seu bigode, no qual havia fios prateados.
No andar de cima, Maria levantou-se. Toda uma orquestração de ruídos, lá fora, avisava que era dia de mercado.
Ela voltaria para se vestir depois, como nas outras manhãs. Enfiou um chambre sobre a camisola para ir ver se tudo lá embaixo estaria pronto quando ele se levantasse.
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SEGUNDA PARTE
QUE LHE IMPORTAVA ser visto, já que ninguém jamais admitiria a verdade? Gostava daquele lugar, no ângulo da banqueta, junto à janela do café, tão perto da rua, que devia dar a impressão de uma figura de cartaz de propaganda. Na sua frente estava pousada a caixa de charutos pela metade, o estojo, a piteira de âmbar e fósforos.
- Chamou-me, Sr. Jos?
O Sr. Jos era ele! Mais uma coisa em que ninguém em Furnes acreditaria! Fora Manola quem lhe dera aquele apelido, pois não encontrara outro diminutivo para Joris e sentia necessidade de apelidar todo mundo.
- Eu a chamei, Sra. Janneke.
Ela se levantou, suspirando, pois era imensa, e suas mãos estavam embaraçadas com o tricô rosa-pálido no seu regaço.
- Será que pode me preparar uma costeleta em meia hora?
- Naturalmente, Sr. Jos! Até mesmo com fritas, se quiser. Vou já para a cozinha...
- Não! Espere ainda um pouco...
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O relógio, bem à sua frente, marcava cinco horas. Ele calculava: desde as nove da manhã, somava... oito horas!
- Está cansado de esperar, não é, Sr. Jos?
Terlinck já sabia que ela viria sentar-se na sua frente. Mas não tinha pressa. O lugar que ela costumava ocupar era perto do aquecedor, ao lado de uma poltrona de vime, que só servia para o gato. Mas assim que um freguês se instalava, recomeçava a mesma comédia. Falava um pouco de pé, com um ar bonachão. As vezes continuava tricotando. Quando acontecia ser algum desconhecido, ela lhe perguntava se era de Ostende, se era a primeira vez que vinha à cidade, se fizera boa viagem; tudo isso com um interesse tão caloroso como se fosse um parente próximo.
Mal se percebia o momento exato em que ela se esgueirava devagarinho, como que encolhida, para finalmente sentar de banda na cadeira o seu vasto traseiro. E, para desviar a atenção, contava os pontos do tricô, encontrava alguma coisa para dizer, sorria com benevolência.
- A cerveja é boa, não é mesmo?
E depois de cada pedaço de frase, repetia: "Não é mesmo?"
Pois queria estar sempre de acordo com todo mundo!
- Não deve se espantar, não é mesmo, Sr. Jos... Eu conheço uma, a filha da dona da leiteria, que passou dois dias inteiros com as dores... Isso não impediu que o seu filhinho nascesse tão bonito como qualquer outra criança... É uma questão de sorte, não é mesmo?
Era o mês de abril. Os dias tinham-se alongado. Enquadrado pela janela, o porto aparecia dourado pelo sol poente, a estação marítima imobilizada como um cartãopostal, os carregadores vestidos de azul à espreita dos
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passageiros, os bondes amarelos e vermelhos que passavam rangendo seus freios ao dobrar a esquina da rua. Terlinck acendeu um novo charuto e, embora estivesse sempre com o relógio de parede na sua frente, consultou seu relógio de pulso.
A verdade, na qual ninguém acreditaria, era que só oito dias antes ele lhes dirigira a palavra.
Isso não impedia que o grupo do Velha Torre se entreolhasse maliciosamente cada vez que alguém, por uma ou outra razão, pronunciava o nome Ostende. Depois olhavam para Terlinck ou viravam a cabeça, o que significava exatamente a mesma coisa. Aqueles homens, maduros ou idosos, pareciam garotos que se excitam com a alusão a questões sexuais, enquanto Joris permanecia impávido, continuava a fumar, calmo, sem sequer demonstrar desprezo.
Até mesmo sua mulher se punha a suspirar ao vê-lo entrar em casa; e bastava a Terlinck olhar para Maria, atrás da porta da cozinha, para adivinhar que um instante antes as duas estavam falando dele. Dele, que ia a Ostende! Dele, que se tornara uma espécie de mau sujeito, de monstro com paixões vergonhosas!
Se elas pudessem vê-lo! Deixava seu carro do outro lado do cais, por causa da mão única e, ao atravessar a calçada, relanceava um olhar às janelas.
Parecia até de propósito: desde janeiro, mal havia chovido. Não em Ostende! Cada vez que ele ia lá o tempo era limpo, o céu nacarado como nas paisagens pintadas em conchas, que eram vendidas no dique.
Por que o simples fato de chegar a Ostende tornara-se um prazer, um alívio? À sua direita, descarregavam peixe dos barcos de pesca. E na sua frente, entre dois cafés, erguia-se a grande casa amarela. No andar térreo,
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vendiam-se cordames, artigos de marinha e, passando pela calçada, aspirava-se uma baforada de alcatrão.
Havia uma porta particular, à esquerda da loja de cordames, que ficava sempre entreaberta, deixando ver um corredor pintado, imitando mármore avermelhado.
Ele sabia como eram os quartos do primeiro andar; os vira de manhã, quando todas as janelas ficavam abertas durante a faxina, com os colchões e cobertas nos peitoris.
Havia na casa um grande cômodo, o quarto de Lina. Muito grande e muito claro, com três janelas. Os móveis eram velhos, mas de uma velhice diferente dos móveis de Furnes, uma velhice encantadora, tecidos com ramagens, babadinhos nas cortinas, musselines, bibelôs graciosos.
- Bom-dia, Sr. Jos!
Sentava-se junto à janela e ela lhe trazia um copo de cerveja.
Ela devia ter adivinhado a razão por que ele vinha sempre na mesma hora e se levantava assim que uma certa pessoa passava na calçada; mas durante muito tempo não haviam falado a respeito.
Muitas vezes Manola vinha buscar sua amiga. Andava rebolando, agitando muito o ar, sempre com peles que voltejavam a seu redor, exalando uma fragrância de pó-de-arroz.
Depois as duas se dirigiam para o dique e passeavam tagarelando e voltando-se para ver os homens.
Eram alegres, estouravam em risadas com qualquer coisa, e se ouvia de longe o riso estridente da Manola. Lina não se envergonhava do seu ventre, não parecia sofrer com a sua situação, nada fazia para esconder sua gravidez, muito pelo contrário.
Até por volta das cinco horas, elas ficavam sentadas num banco. O vendedor de amendoins, de casaco branco, aproximava-se com familiaridade, pois Lina adorava amendoins e os comprava todos os dias.
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Depois se levantavam, enveredavam por uma rua calma, atrás do Cassino, onde se ouvia uma música abafada por detrás das cortinas de seda creme.
Então as duas entraram no Monico.
Apenas isso. Sem dúvida havia pessoas, sobretudo mulheres, que passavam a tarde no dique vigiaudo seus filhos, provavelmente também o vendedor de amendoins e a mulher que alugava cadeiras, para observar as atitudes de Terlinck. E essa gente na certa o tomava por um desses homens já de idade que seguem as moças na rua.
Terlinck pouco se importava. Sabia que não era verdade, que não era em absoluto a mesma coisa.
Por que se preocupar com o que os outros pensavam?
Kempenaar, por exemplo!... Justamente na véspera... Adotara o seu ar mais conturbado para colocar sobre a pasta da escrivaninha do prefeito os autos de ocorrências, transmitidos todos os dias pelo comissário de polícia, com um suspiro...
- Ela tornou a fazer tolices - murmurou.
Sempre a mãe de Jef Claes! Eram verdadeiras novenas, duante as quais ela não parava de se embebedar e adquirira o hábito, nessas ocasiões, de agredir os agentes de polícia.
- É uma infeliz, não acha, Baas? Suponho que não vá castigá-la com uma multa.
- Por que não? - perguntara Terlinck, friamente.
- Porque é uma coitada, que...
- A lei é a lei para todo mundo, Sr. Kempenaar!
Não rasgara o processo. Não ignorava o que Kempenaar estava pensando. Talvez tivesse feito de propósito?
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Contudo, certa vez em Ostende, ele havia entrado no correio e remetido anonimamente uma ordem de pagamento de cinqüenta francos para a mãe de Jef.
Não por bondade! Nem por pena! Porque lhe dera vontade, só isso!
E foi nesse dia, como por acaso, que ele havia entrado. A decisão fora tomada há muito tempo. Sem querer, relanceara o olhar para um lado da rua, depois para o outro. Em seguida, fixara bem os olhos, como para desafiar a malícia, o porteiro postado à entrada.
- Vestiário. O senhor não quer tirar os agasalhos? Não! Entrou, tal como estava, com sua peliça curta,
que usava até a Páscoa, seu gorro de lontra e seu comprido charuto; tinha a impressão de ser muito alto, mais volumoso que de costume.
A impressão era provocada por ser tudo à sua volta tão delicado; uma peça curiosa, meio salão de chá, meio dancing, onde só havia coisas pálidas e sedosas, acolchoadas, e um odor açucarado, a que se misturava uma fragrância de mulher coquete.
Cochichava-se, ria-se baixinho; os músicos estavam sentados sob estandartes de seda e vestiam jaquetas lilases.
Atravessou todo o espaço vazio e encerado que servia de pista de dança e sentou-se à mesa que lhe indicaram, coberta por uma toalha.
- Um chá completo?
Deixou que lhe servissem um chá completo e tirou seu gorro de lontra. Bem à sua frente, do outro lado da pista, Manola estourava de rir, olhando-o, e ele não se perturbou, não desviou os olhos.
Quem acreditaria que era assim que as coisas haviam acontecido? Permanecia calmo, casmurro, impassível. Serviram-lhe o chá com torradas e geléia. A orquestra começava a tocar uma música suave, e um rapaz de
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smoking aproximou-se de Manola para convidá-la a dançar.
Manola era uma bela mulher, uma verdadeira flamenga, carnuda, rosada e alegre; era também uma mulher teúda e manteúda, muito bem cuidada até nos mínimos detalhes, formando ao seu redor uma atmosfera de prazer raro e delicado.
Onde Lina a encontrara? Sem dúvida no dique, e tinham-se tornado amigas, não se largavam mais, por assim dizer, exceto nos dias em que o amigo de Manola chegava de Bruxelas.
Quem poderia dizer no que Terlinck pensava, olhando para Lina que ficara sozinha na banqueta de veludo escarlate?
Pois bem, ele pensava:
"Espero que, pelo menos, ela não vá dançar!"
Só a idéia de que ela poderia dançar já o deixava de mau humor. Era quase uma ordem que ele transmitia no seu olhar. Não era cômico? Manola, que passava perto dele, girando nos braços de seu par, observava-o curiosamente e murmurava alguma coisa ao rapaz. Terminada a dança, voltou ao seu lugar e falou com Lina. Falava dele. Lina o examinava, falava por sua vez. Era evidente que devia estar dizendo:
- Eu o conheço. É Joris Terlinck, o prefeito de Furnes.
A música recomeçava, e dessa vez foi Lina quem o rapaz convidou. Não se lembrava ela que estava prestes a dar à luz? Em absoluto! Levantava-se! Será que não tinha vergonha? Não achava ridículo dançar com toda aquela barriga, que o vestido de seda preta mal disfarçava?
Terlinck estava realmente furioso. Agitava-se na cadeira. Tomava um gole de chá demasiado quente, lan-
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cava a Manola um olhar de censura. Não deveria ter impedido sua amiga...?
O que estava longe de imaginar era que dali a 15 minutos estaria ele próprio sentado à mesa das duas moças. A coisa aconteceu mais ou menos assim: ao passar por ele nos braços do seu par, Lina esboçara um ligeiro cumprimento. Não bem um cumprimento, pois não sabia se ele a reconhecera e se queria ser reconhecido; mas, ainda assim, uma imperceptível inclinação de cabeça.
Ela devia imaginar, e Manola também, que ele estava ali à procura de uma mulher.
Lina tornou a sentar-se. As duas continuaram conversando e rindo muito. Era sempre Manola quem dava o sinal. Não podia passar cinco minutos sem dizer uma frase, que a fazia estourar em risadas, e então mostrava dentes deslumbrantes, uma boca de um rosa que Terlinck não se lembrava de jamais ter visto em nenhuma outra criatura - um rosa fresco, úmido, macio.
Terlinck se levantou. Não foi premeditado. Não refletia sobre o que estava fazendo. Atravessou a pista e se viu diante das duas moças.
- Era de mim que estava rindo, Srta. Van Hamme?
Ela quase perdeu o fôlego. Ele estava de pé, muito grande, bem perto. Lina ergueu os olhos, balbuciou:
- Boa-noite, Sr. Terlinck...
E nenhum dos três sabia o que fazer.
- Minha amiga Manola...
A música recomeçou, os pares invadiram a pista. Como Terlinck se viu no caminho, sentou-se maquinalmente.
- Acha que é prudente dançar no estado em que se encontra?
- Por que não haveria de dançar? Manola interveio:
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- Desde que ela esteja com vontade, isso não pode fazer mal.
Manola lhe estendeu o seu cigarro. Ele não compreendeu logo o que a moça queria. Ela teve de insistir:
- Será que pode acender o meu cigarro?
- O senhor vem muito a Ostende? - perguntou Lina.
Estava um pouco constrangida com o olhar de Terlinck, pois ele não conseguia evitar ter os olhos pregados nela, e sentia-se que estava perdido em seus pensamentos. Como que flutuando.
Não se mostrava reprovador, como ela poderia ter imaginado, levando-se em conta sua reputação em Furnes. Não! Era quase o contrário: um espanto maravilhado.
O que mais espantava Terlinck era o fato de Lina ser a filha de Leonard Van Hamme! E que tivesse morado em Furnes até aqueles últimos meses! Que ninguém tivesse desconfiado de nada! Ela poderia ser tomada por uma moça como outra qualquer!
- O senhor não dança? - perguntou ela, para dizer alguma coisa.
Apanhava um cigarro na cigarreira de ouro de Manola, avançava o rosto para Terlinck, a fim de que ele lhe acendesse o cigarro.
- Não. Não danço nunca.
Se ele dançasse, ela seria capaz de aceitá-lo como seu par?
- Juro que não esperava encontrá-lo aqui! Você não pode compreender, Manola... Precisava tê-lo visto em Furnes... É tão severo que quase faz medo às criancinhas... Eu e minha prima o chamávamos de BichoPapão e, quando ele passava por nós, púnhamos a língua de fora... O senhor não se zanga por eu contar isso?
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Pensaria ele ainda em Jef Claes, que morrera apenas há cinco meses? Parecia alegre. Ele sempre a vira alegre! De uma alegria natural, que transbordava de toda a sua pessoa. Talvez estivesse lamentando a presença de Terlinck, que impedia os rapazes de tirá-la para dançar.
Uma vendedora de flores, com a cesta no braço, parou junto a Terlinck, ofereceu buquês às duas moças. Ele não reagiu de imediato. Constrangido, finalmente tirou do bolso sua gorda carteira.
Comprara flores para as duas! Cravos encarnados, que elas cheiravam distraidamente. E isso o fazia sentirse estranhamente perturbado.
- Com licença, vou dançar - murmurou Manola, levantando-se.
Sentiu-se ainda mais perturbado quando se viu a sós com Lina.
- O senhor parece estar com o pensamento longe!
- observou ela.
E de repente, inquieta:
- Será que foi o meu pai quem o mandou aqui?
- Esquece-se de que sempre me dei mal com Leonard.
- O senhor foi patrão de Jef, não é verdade? Bastante envergonhado, ele balbuciou:
- Sim. Eu era patrão dele...
- Não sei o que deu na cabeça de Jef. É verdade que ele sempre foi um pouco maluco...
Assim, ali estavam os dois, num salão de chá, e ela lhe falava tranqüilamente de Jef, sempre aspirando os cravos que acabara de receber!
Quem em Furnes acreditaria, se ele contasse? E ele próprio, em casa, nessa noite, ao lembrar-se, teria mesmo certeza da veracidade de tal cena?
Em redor dos dois tudo era suave, irreal. Contudo, algumas horas antes, porque aquele era o dia, Terlinck
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havia se esgueirado para dentro do quarto da filha, com o balde, o esfregão, a escova, usando a mesma linguagem de sempre:
- Ela está muito boazinha... Sim, a filhota vai ser muito boazinha hoje...
...Desviando os olhos do corpo nu, magro e lívido, estirado no enxergão...
- Eu sempre disse a Jef que ele era muito exaltado...
Lina falava com voz serena e seu olhar seguia os pares na pista.
- Em todo caso, foi bom eu sair de lá! Se tivesse permanecido em furnes...
Não terminou seu pensamento e deixou cair a cinza do cigarro num cinzeiro de porcelana azul. Depois Manola, cansada pela dança, retornou ao seu lugar e recomeçou a examinar Terlinck.
- Do que vocês dois estavam falando?
- Nada... Falávamos de Jef...
- Pobre rapaz!... Eu bem que gostaria de beber um vinho do Porto... Este chá está ruim...
Todos os três beberam o vinho do Porto. No dia seguinte, à mesma hora, Terlinck empurrava a porta do Monico! Hesitou um instante, dirigiu-se à mesa das duas moças, onde Manola o acolheu com familiaridade.
A verdade era que ela tratava todo mundo com familiaridade. Chamava de 'você' o garçom e o maestro da orquestra, a quem de vez em quando pedia alguma música de sua predileção.
- Acha que é prudente, Srta. Lina, dançar de novo hoje?
- Que mal pode me fazer? Desde que eu não esteja sentindo nada!
Certamente, ele não estava contando os dias. Mas observava Lina, com uma inquietação cômica. Adivinhava-se o que estava pensando:
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"É curioso que ela não esteja mais abatida! Parece que não está sofrendo! E, no entanto, é para logo, talvez para esta semana..."
A Sra. Terlinck passara malíssimo na gravidez.
- Aqui tem a sua costeleta, Sr. Jos!... Como vê, eu lhe preparei um bom prato de batatas fritas... Um homem grande como o senhor tem de comer muito.
Acendeu as lâmpadas, pois a noite caía, e os bicos de gás já pontilhavam a paisagem azulada.
- Ora, vamos, não faça essa cara! Os homens são sempre tão impacientes! Querem que a gente lhes faça um filho como quem bebe um copo de cerveja!
Janneke retornou ao seu lugar junto ao fogo, apanhou o tricô rosa, sobre o qual o gato havia se aninhado.
- Tenho certeza de que tudo vai dar certo...
A porta se abriu. O timbre já conhecido de Terlinck soou. Manola entrou, sem capote, sem chapéu e, desde a porta, respondeu ao olhar ansioso de Joris com um sinal negativo.
Depois, muito íntima, sentou-se à mesa, procurou Janneke com os olhos.
- Pode me servir também uma costeleta e fritas?
- É para já, senhorita... Manola explicou:
- O médico espera que dentro de uma ou duas horas estará tudo terminado... Mas o que é isso? Está tão pálido...
Também estava pálida, mas se esforçava por disfarçar sua preocupação, olhava-se no espelho e arrumava os cabelos.
- Ela está sofrendo muito?
- É claro que não é muito divertido!
Terlinck continuava a comer distraidamente. As batatas fritas estavam deliciosas, mas ele não se dava conta.
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Tampouco notou que Manola bebia um grande gole de seu copo de cerveja.
Sirva-me uma cerveja, Janneke! E mais para o
Sr. Jos!
Era ela quem lhe pusera o apelido, com um ar de
muito carinho.
Assim como Janneke, ela não amava todo mundo?
- Ele é engraçado com seu gorro de lontra! - dissera no primeiro dia. - Acha que ele está apaixonado por você?
- Ele?... Você está louca?
- Então, o que vem fazer no Monico?
Sim, o que ia ele fazer? Ele próprio saberia? Havia em sua maneira de agir, quando estava em Ostende, algo de meigo, de tímido. Mais exatamente, de humilde! Aproximava-se das duas moças e parecia implorar-lhes que lhe dessem um lugarzinho.
- Não estou incomodando? E daí a instantes:
- Porque, se estou incomodando... Manola estourava numa risada.
- Não faríamos cerimônia em lhe dizer, Sr. Jos! Enquanto isso, acho que devia acender o meu cigarro...
Aquela história de acender o cigarro fazia-o corar todas as vezes. De dez em dez minutos, ela apanhava um cigarro em sua cigarreira. Ele deveria se dar conta, ainda mais porque ela o ficava olhando. Mas não! Manola era obrigada a lembrar-lhe:
- Então, Sr. Jos, não vê que estou esperando?
- Desculpe-me...
Parecia distraído e, no entanto, não estava pensando em nada de preciso. Contemplava Lina, cujo rosto continuava redondo, um verdadeiro rosto de jovem, rosado, com uma ligeira penugem, alegrado por duas covinhas. E de repente Terlinck estremecia. Parecia-lhe ou-
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vir a sineta da porta de sua casa, à noite, precisamente na noite em que Jef Claes...
No entanto, ela sorria e eles estavam ali, num suave ambiente de música, de fragrância açucarada de vinho do Porto e de doces com creme!
- Não quero impedi-las de dançar...
As vezes, ficava bem quieto, sozinho, à mesa, enquanto as duas dançavam.
E quando, um pouco mais tarde, ele estava voltando no seu carro para Furnes, deixava o vidro da janela aberto para aspirar o ar fresco que o mar exalava, procurava os pequenos pontos luminosos no negrume ondeado, a passagem furtiva revelada pelo pincel amarelado dos faróis.
Theresa o olhava de soslaio, enquanto ele comia, suspirava de tempos em tempos, ordenava com voz lamentosa:
- Sirva o outro prato, Maria.
As vezes, parecia a Terlinck que conservara consigo o perfume das duas moças. E procurava sentir o cheiro em suas lapelas, em seus dedos.
- Vai sair, Joris?
- Sim, vou ao café de Kees.
Como sempre! E sentava-se no mesmo lugar, não longe dos jogadores, assistindo à partida. Acendia lentamente seu charuto, procurando manter a cinza intacta o maior tempo possível.
- É verdade que houve um acidente de bonde hoje em Ostende?
Era sobretudo Steifels quem mais se encarniçava, com seu falso risinho, sem nunca olhar para Joris. Este se mantinha impassível. Sabia que todos compreendiam. Alguém murmurou:
- Nas grandes cidades, todos os dias ocorrem acidentes.
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Kempenaar cantava em toda sessão recreativa do patronato e continuava, como sempre, cheirando mal. Mas tinha nos olhos um brilho novo, quando trazia a correspondência para Terlinck.
Certamente continuava respeitoso, um respeito untuoso, como suas mãos perenamente úmidas.
- Boa-noite, Baas!
- Boa-noite, Sr. Kempenaar!
E Kempenaar sentia-se intimamente contente, seus olhões luziam, de tempos em tempos ele passava os dedos pelos lábios num gesto de júbilo.
- O presidente do sindicato veio duas vezes ontem à tarde... Avisou que voltaria hoje... O senhor vai estar na prefeitura?
- Talvez...
O Sr. Kempenaar estava exultante! Ao retornar à sua sala de trabalho, dirigia a si mesmo piscadelas, vendo-se refletido num caco de espelho colocado acima da jarra de esmalte, junto à toalha de mão, que tresandava ao mesmo cheiro rançoso de sua pessoa.
- Se quer mais batatas fritas, pode comer as minhas. A minha porção foi muito farta...
Seria o caso de perguntar como Jannecke ganhava a vida, pois não se via vivalma no seu café. Ou então eram freqüentadores como Terlinck, mais amigos do que fregueses, que vinham sentar-se ao pé do fogo e tomavam uma cerveja enquanto conversavam com ela.
- O que estão falando das minhas batatas fritas? - protestou ela da cozinha. - Não estão boas?
- Estão sim, Jannecke, divinas! Eu só disse que era muita quantidade...
- Antes muito do que pouco, não é mesmo? O olhar de Manola pousou sobre a mão de Terlinck,
crispada sobre a toalha de papel. Depois, observandolhe a expressão do rosto, não riu.
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- Não fique assim tão preocupado, Sr. Jos! Já lhe disse que está indo tudo bem!
Ela não compreendia. As vezes, fitava-o como nesse momento, com um ar pensativo. Depois soltava alguma frase que revelava suas preocupações.
- É verdade que o senhor tem uma filha?
- É verdade.
- Como é ela?
Uma vez Manola passara por Furnes de carro, com o seu amigo, sem se interessar pela cidade. Lembrava-se de uma praça imensa, calçada com pedrinhas redondas e casas de empenas denteadas.
- O senhor acha que o pai de Lina agiu direito? Note-se que para ela foi melhor assim, pois aqui está mais tranqüila...
Às vezes, Terlinck ficava de ouvido atento como se, do café, ele pudesse ouvir os ruídos da casa vizinha. Manola procurava sempre saber o que ele estava pensando, por que vinha todos os dias e se mostrava tão delicado.
Em certo momento, ela imaginara que era por sua causa. Mas não! Quando ele falava, era sempre de Lina.
Não era ainda mais extraordinário?
- Acha que o pai dela vai querer ver a criança?
- Certamente, não!
- Por que Jef fez uma coisa daquelas, quando seria tão fácil ir embora com Lina?
Joris estremeceu, olhou-a com dureza.
- Por quê? - repetiu ele.
- Sim! Lina me disse que estaria disposta a ir embora com ele.
- Ele não tinha dinheiro.
Era o Terlinck de Furnes que acabara de falar, e ele próprio se espantou. As palavras soavam de um modo estranho. Manola não concordou.
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- Que diferença faz isso? Será que Jef está bem,
agora?
Terlinck teve a impressão de que o ar frio atravessava a vidraça. Suspirou, empurrou seu prato, acendeu um charuto.
Havia momentos em que perguntava a si mesmo o que fazia ali naquele ambiente que lhe parecia irreal. Fitou o gato embolado na almofada vermelha da poltrona de vime. O bichano ressonava e o aquecedor crepitava. O que tinha ele, Terlinck, a ver com aquela quietude, à qual era estranho?
- Então, Sr. Jos, jantou bem?
E essa Jannecke, que lhe falava com tanta familiaridade, com uma cordialidade de velha amiga, como se realmente o conhecesse!
- Não vai subir para saber o que está acontecendo?
Na opinião dele, já fazia muito tempo que Manola descera. E olhava o teto, como se o quarto de Lina fosse logo em cima.
- Se houvesse alguma novidade, teriam vindo me prevenir...
Então fixou os olhos na porta. Estava inquieto. Tinha vontade de andar. E, às vezes, também lhe dava vontade de tomar seu carro e voltar para Furnes, jurando nunca mais pôr os pés em Ostende.
E eis que a porta se abriu. Uma velhinha de avental olhava ao redor, fazia grandes sinais para Manola.
Terlinck compreendeu ao mesmo tempo que ela. A tensão em seu rosto diminuiu.
- Um menino? - perguntava Manola.
- Uma menina...
Terlinck mordia o lábio, procurava disfarçar sua emoção, apanhava um charuto, agarrava o copo e bebia, bebia até o fim.
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- Vou subir imediatamente... Não vem vê-la amanhã?
Manola franziu as sobrancelhas, notando a palidez de Terlinck.
- O que está sentindo?
- Nada... Nada... - resmungou ele. - Janneke! Quanto lhe devo?
Os estores das três janelas estavam abaixados, formando telas de um bonito amarelo dourado, sobre as quais se agitavam sombras.
Terlinck bateu a porta do carro.
Em Furnes, na sala de jantar, seu lugar na mesa estava posto, como sempre. Theresa costurava, sob o abajur. Maria descascava batatas para o dia seguinte.
Ao ver Joris entrar, deixou as cascas escorregarem do seu avental, aproximou-se do forno.
- Já jantei - anunciou ele.
E isso causou como um pequeno choque doméstico.
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QUANDO DESCEU às seis horas da manhã para acender o fogo, Maria viu luz sob a porta de seus patrões e parou, ouvidos atentos. O patamar estava frio e às escuras. Ventara a noite inteera e uma goteira, em alguma parte, não cessava de bater contra uma parede, com uma cadência exasperante.
A Maria pareceu que alguém gemia fracamente; depois ouviu os passos característicos do Baas no linóleo, andando de chinelos pelo quarto.
Arranhou a porta. Como não a ouvissem, fez girar o trinco, esperando que a notassem.
De fato, a porta se abriu. Terlinck surgiu na soleira, os cabelos em desalinho, os suspensories caídos sobre as coxas, os pés nus dentro dos chinelos e, em torno do pescoço, a gola de patas vermelhas de galinha de sua camisa. Maria olhou para a cama, perguntou baixinho:
- Há algum problema?
E foi nesse momento que ela se impressionou. Voltando-se bruscamente para Terlinck, teve a sensação que algo nele mudara. Não poderia precisar o quê. Muitas vezes acontecera ele ter de cuidar de sua mulher, e
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Maria o surpreendera com o mesmo aspecto desleixado, os bigodes murchos e a barba por fazer.
O que a impressionou, nesta manhã, foi a calma dele, sua indiferença. Estava ali tão perto e parecia tão longe, ou melhor, como que separado de Maria por uma placa de vidro. E lhe dizia, sem se abalar:
- Quero que vá chamar o Dr. Postumus.
- Imediatamente?
- Imediatamente.
Antes de sair, Maria teve tempo de perceber o olhar de Theresa, que os espreitava ansiosamente.
A crise se declarara por volta das quatro horas da madrugada. Após quinze minutos de gemidos abafados, Theresa chamara:
- Joris!... Joris!... Acho que estou morrendo... Ele se levantara, sem se afobar, sem resmungar.
Acendera a luz. Depois de um olhar rápido à mulher, vestira-se pela metade, pois, com aquela ventania, apesar das portas e janelas trancadas, penetravam correntes de ar no quarto.
Terlinck não tivera a idéia de chamar Maria. Havia sobre a lareira um fogareiro a álcool e um pequeno tacho de esmalte azul.
Com as duas mãos sobre o ventre, Theresa gemia de maneira regular, deixando escapar às vezes um uivo mais agudo a uma recrudescência da dor.
- Suspenda sua camisola para que eu lhe ponha uma compressa.
Durante duas horas, ele renovou as compressas quentes, sem nada dizer, com ar de estar pensando em outra coisa, enquanto a mulher o tempo todo escrutavaIhe o rosto. As vezes, depois de tornar a pôr a água para esquentar no fogareiro, ele ia sentar-se na sua cama e esperava, olhando o chão, a lareira ou qualquer outra coisa.
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Tenho certeza de que é um câncer, Joris... Desde que eu era pequenina, sabia que ia morrer de câncer...
- Quer parar de dizer tolices?
Claro que era câncer. Câncer no intestino. Mas não havia nada a fazer.
Ouviram a porta da frente bater e logo em seguida vozes invadiram o corredor. Maria havia encontrado o Dr. Postumus, que voltava de um parto no campo e imediatamente se dispusera a acompanhá-la.
Também ele franziu as sobrancelhas, ao ver a indumentária de Terlinck, e adotou sua voz profissional para falar com a enferma.
- Então, não está se sentindo bem? Estamos tendo uma pequena crise?
Theresa olhava-o, depois voltava os olhos para Joris, e a sua mímica era tão expressiva que o marido encolheu os ombros.
- Vou esperá-lo lá embaixo, doutor - anunciou ele.
Instalando-se no gabinete, escolheu um charuto numa das caixas, sentou-se no lugar habitual, de costas para o aquecedor a gás, que acendera. Permaneceu ali mais de quinze minutos sem fazer nada, e sua fisionomia continuava com aquela ausência de expressão que impressionara Maria.
Chegavam-lhe as vozes lá de cima. As vezes, a voz abafada e tranqüila de Postumus, mais freqüentemente uma espécie de queixume patético de Theresa. O médico devia estar auscultando-a. Ela se remexia na cama, deixava escapar gemidos. O dia nascia lentamente na praça deserta, onde o vento fazia rodopiar pedaços de papel.
Quanto Postumus desceu, Joris abriu sua porta, fazendo-o entrar no gabinete. E não tendo sido interrogado, como esperava, o médico baixou a cabeça.
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- Ela está com medo, não é doutor? - finalmente falou Terlinck, retomando o lugar na poltrona.
- Creio que ela está consciente do seu estado. Eu lhe afirmei que não era nada, mas não acreditou.
- E ela lhe disse que tinha medo de ficar presa em sua cama! Sabe, Dr. Postumus, do que ela realmente tem medo?
E como o médico virasse o rosto:
- Sabe, sim, porque ela lhe disse!... Theresa tem medo de mim... Medo de se ver reduzida à imobilidade, lá em cima, sem defesa contra mim... É uma mulher que está sempre com medo de alguma coisa... O que ela lhe pediu?
Postumus não sabia bem o que dizer.
- Bem... ela me falou da irmã, que mora em Bruxelas... É evidente que, se a Sra. Terlinck tiver de permanecer por muito tempo na cama, talvez seja aconselhável...
- Ela lhe disse que eu não aceitaria, confesse, doutor! Alegou que detesto sua irmã, como também detesto ela própria!... É isso mesmo, doutor... Por que está com essa cara?... Já estou habituado, sabe? Há trinta anos sou marido dela...
- Eu o aconselho, também, a colocá-la em um quarto separado...
- Acha que ela não tornará a se levantar?
- Pode durar meses, talvez anos, com altos e baixos...
Terlinck encolheu os ombros:
- Vou mandar buscar a irmã dela em Bruxelas. Era justamente esse desinteresse que espantava. Ele
olhava para a pessoa, sem vê-la, e o médico bateu em retirada, balbuciando palavras ininteligíveis.
- O café está pronto, Maria?
Terlinck foi servir-se na cozinha, apanhou uma jarra com água quente para se barbear e subiu as escadas.
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Vou avisar sua irmã e pedir-lhe que venha -
disse, sem olhar para a mulher.
Depois de se vestir como sempre, foi levar o desjejum a Emilia, que estava mais nervosa que de costume.
As borrascas continuavam, com pesadas nuvens prestes a rebentar e, de repente, o sol surgia por instantes, fazendo reluzir as pedrinhas molhadas da praça.
Quando Terlinck voltou ao seu gabinete para reabastecer o estojo de charutos, a correspondência estava sobre a escrivaninha e ele sentou-se para abri-la. Na terceira carta, em vez de franzir o cenho, ficou ainda mais calmo, como se o vazio em seu íntimo estivesse se tornando cada vez mais absoluto.
Meu querido padrinho:
Não pude ir abraçar minha mãe no domingo porque estou mais uma vez em cana. Desta vez, será por 15 dias. Posso lhe garantir que não é nada divertido. Faz muito frio, e a sopa fede tanto que me deixa de estômago revirado. O que não impede que eu tenha de tomá-la para não morrer de fome.
Tudo isso por causa de um sargento safado, que antipatiza comigo. Quando acontece alguma coisa ruim na companhia, a culpa é sempre minha.
Soube que o nosso novo capitão é de furnes e seu conhecido, o capitão Van der Donck. Tenho certeza de que se o senhor fosse procurá-lo, para lhe dar uma palavra a meu respeito, tudo aqui seria bem mais fácil para mim.
Por outro lado, gostaria de um pouco de dinheiro, pois descobri um truque para fazer vir comida da cantina e obter cigarros. Como não se entrega correspondência e ordens de pagamento aos presos, bastaria o senhor deixar
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o dinheiro dentro de um envelope no café que conhece e um camarada meu iria apanhá-lo.
O senhor sabe que nunca tive oportunidades na vida, e que não tenho ninguém, exceto o senhor, a quem apelar. É justamente por me faltar grana que tenho tantos problemas no quartel.
Conto com o senhor, padrinho, quanto ao capitão Van der Donck e quanto ao dinheiro.
Não diga nada à minha mãe, que não compreenderia e ficaria apavorada.
Agradeço ao senhor, padrinho, e lhe transmito os meus afetuosos sentimentos.
Albert.
Seu charuto apagara e ele tornou a acendê-lo. Depois levantou-se, sem razão, fez a volta do gabinete, desviando sem querer os olhos do lugar, um ponto indefinido, mas onde, desde aquela noite, ele sempre situava Jef Claes.
- Maria! - chamou Terlinck de repente, abrindo a porta.
A mulher veio, enxugando as mãos no avental, e ele viu de relance que ela sabia.
- Feche a porta, Maria. O que ele escreveu a você?
- Sempre a mesma coisa, Baas. Está preso. Parece que o sargento o persegue...
- Diga-me, Maria...
Ele a obrigava a olhá-lo de frente.
- Ele contou que me escreveu, não é mesmo?
- Contou isso, sim... Disse-me...
- O que foi que ele lhe disse?
- Que o senhor certamente iria ajudá-lo a sair da cadeia, pois bastaria uma palavra sua ao capitão Van der Donck...
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- Só isso?
- Por quê? Há mais alguma outra coisa? Ouviu-se um estalido da cama lá em cima. Theresa,
apesar das dores, devia estar tentando escutar através do assoalho.
- Você lhe contou?
Ela não se traiu, fez um ar de espanto.
- Ele sabe da verdade, não é, Maria? Foi você quem lhe contou?
- Juro que não, Baas! Foi ele... Um dia em que eu lhe suplicava que levasse a vida mais a sério e pensasse no seu futuro, ele replicou com um risinho debochado: "Não tenho de me preocupar com o meu futuro. O velho vai acabar tendo de fazer o necessário..." Juro, Baas, sobre a cabeça da Santa Virgem, que jamais pronunciei uma palavra que o levasse a supor...
A criada arriscou um olhar para o patrão: compreendia cada vez menos. Poder-se-ia acreditar que não se tratava dele, e que ele não tinha de tomar conhecimento de nada.
- Pode se retirar, Maria.
E no momento em que ela se dispunha a transpor a porta:
- A propósito... Deve haver também uma carta para minha mulher... Certamente, desta vez, ele resolveu dar o golpe completo.
- Há uma carta, sim...
- Dê-me a carta... Ande logo! Pode dizer à minha mulher que exigi que ela me fosse entregue.
E abriu uma ao lado da outra.
Minha querida madrinha:
Resolvi escrever-lhe porque estou muito infeliz e creio que estou seriamente doente...
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Albert descobrira que com Theresa bastava falar em doença para atingir diretamente seu coração e sua bolsa:
...se eu não puder mandar vir da cantina um pouco de comida, não sei como vou conseguir...
O relógio da prefeitura soou oito horas no momento preciso em que o carrilhão se pôs a badalar. Terlinck apanhou seu gorro, vestiu a peliça curta e um instante depois atravessava a praça com passos uniformes, parando alguns segundos, como sempre fazia, diante dos pombos.
Um grande carro americano passou, o de Van Hamme, seguindo na direção de Bruxelas. Desde que voltara do sul da França, Leonard participava menos da vida em Furnes; por outro lado, ia várias vezes por semana a Bruxelas.
Terlinck continuou seu caminho, entrou no gabinete, onde lançou um olhar a Van Vliet. Em seguida suspirou, de costas para a lareira; um suspiro que parecia expressar uma profunda indiferença.
- Ah, já chegou, Sr. Kempenaar?
A porta se abriu. Kempenaar precipitou-se com papéis nas mãos.
- Bom-dia, Baas... É verdade que a Sra. Terlinck não está passando bem e o médico foi vê-la esta manhã?
- O que isso pode lhe importar, Sr. Kempenaar?
- Peço desculpas... Eu...
- Diz isso só para dizer alguma coisa. Não é nem mesmo para me agradar.
Terlinck sentou-se. Kempenaar se curvou sobre a escrivaninha, passou-lhe um a um os papéis que ele anotava, escrevia na margem com um lápis fino a resposta a dar ou a providêhcia a tomar.
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As vezes, empurrava Kempenaar um pouco para o lado, mas dali a um instante ele voltava a se aproximar, bafejando-o com o seu hálito.
- O Sr. Coomans tornou a voltar ontem à tarde, Baas... Disse que viria hoje de manhã cedo falar com o senhor.
- O que ele quer?
- 'O Sr. Coomans não me disse, Baas...
De repente, antes de o sol desaparecer, pesados granizos começaram a cair na praça, crepitando, ressaltando nas vidraças. Depois o sol sumiu um momento e tornou a surgir detrás de outra nuvem.
- Bom-dia, Terlinck... Vim cedo para ter certeza de encontrá-lo...
Era o tabelião Coomans, a tez rósea e a barba branca, de um rosa e de um branco de porcelana. Sorria e saltitava como um duende malicioso, examinava Terlinck dos pés à cabeça, como se esperasse vê-lo mudado.
Mas não queria tomar a palavra antes da saída de Kempenaar, que recolhia os papéis.
- É verdade que você pretende montar uma loja de charutos em Ostende?
Finalmente, ele se sentara! E pôs-se a encher seu cachimbo de âmbar, o que não o impedia de se agitar, inclusive bambolear as perninhas curtas, como se pretendesse percorrer o gabinete.
- Talvez seja um bom negócio. Ostende é uma cidade grande...
- Não tenho a intenção de abrir uma loja em Ostende - replicou Terlinck.
- Ah!... Não?... Então foi engano?... Disseramme que você ia todos os dias a Ostende e que... Mas não falemos mais nisso!
Um macaco velho, bem lavado, bem escovado, bem vestido, mas um macaco velho e sempre fazendo caretas!
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- Kempenaar me disse que você queria falar comigo...
- Quer dizer... Sim!... Sim e não! Não quero tomar o seu tempo, se tem algo de melhor a fazer... Trata-se apenas de uma recomendação...
Ele pensava que tal palavra provocaria um sobressalto em Terlinck, que tinha horror a recomendações. Mas em absoluto! O prefeito continuava fumando seu charuto, as mãos espalmadas sobre a escrivaninha, o olhar vago.
- Conhece Schrooten, não é mesmo? O sacristão da igreja Sainte-Walburge, um bom rapaz, bom católico e bom eleitor. Tem oito filhos. O mais velho, que se chama Clement, está com 15 anos...
As nuvens passavam sem cessar diante do sol, e a cada vez parecia que a praça se tornava mais deserta e mais glacial.
- Continuo a explicar-lhe... esse jovem Clement tomou lições de violino com Bootering, o organista que ficou cego... E Bootering ainda anteontem me dizia que nunca viu um jovem mais bem-dotado para a música...
O Sr. Coomans começava a se desesperar em obter uma reação do seu interlocutor, e buscava as palavras:
- Estive também com o diretor da escola de frades que elogiou muito Clement... Se ele pudesse seguir os cursos do Conservatório, certamente se tornaria um grande músico... Para isso, é preciso ir para Gand... O sacristão não é rico... Está me ouvindo, Terlinck?
Terlinck se contentou em fazer que sim com a cabeça.
- Pois bem... Pensei que se déssemos uma bolsa a Clement Schrooten para continuar seus estudos em Gand... O que diz disso?
- Não digo nada.
- Qual é a sua opinião?
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Terlinck suspirou, um suspiro de homem cansado, olhou para Van de Vliet, como se quisesse seu testemunho.'
- Eu penso, Coomans, que conhece minha opinião a esse respeito. Ou bem esse jovem deverá realmente se tornar importante e conseguirá sozinho, ou então não interessa e não vale a pena gastar com ele o dinheiro da comunidade...
- Escute, Terlinck...
- Não escuto nada... Todos vocês do conselho adquiriram o hábito de fazer caridade com o dinheiro da cidade... Prometeu ao sacristão proteger o rapaz, e é a você que ele ficará eternamente grato... Eu, Coomans, não faço caridade. Considero que não serve para nada e faz mais mal do que bem... Se insiste, poderá propor o seu pequeno projeto na próxima reunião do conselho e eu votarei contra.
- Sabe, Terlinck, que você é...
- Sou tudo o que quiser, Coomans, mas enquanto administrar a cidade de Furnes, vou fazê-lo como bem entender. Não acredito em subvenções... Não creio em pessoas que precisam ser ajudadas... E agora está na minha hora...
O tabelião percebia muito bem que ele agia de caso pensado, e perguntava a si mesmo a que impulso Joris Terlinck obedecera. A discussão o deixara muito agitado, e ele sentiu necessidade de ir ter com Kempenaar em seu cubículo e interrogá-lo.
- O que se passa nesses últimos tempos com o nosso Terlinck?
E Kempenaar, satisfeito de não ser o único a tomar conhecimento do caso, disse com um suspiro:
- Ele está esquisito, não é mesmo?
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Por que esquisito? Ele fazia o que tinha de fazer, apenas isso. Sempre fizera o que considerava seu dever.
Só que, talvez, ele o fizesse agora sem convicção.
Poderia ter apoiado o pedido de subvenção do tabelião Coomans, pois isso não lhe custaria nada. Mas era contra os seus princípios. Além do mais, o presidente de honra do Círculo Católico agira mal por começar falando de Ostende, o que tinha um ar de chantagem.
Tanto pior para Clement Schrooten! Por acaso alguém dera a ele, Terlinck, dinheiro para aprender o seu ofício?
Depois de tirar o carro da garagem, aproveitou para entrar na casa pelos fundos e perguntar a Maria, que estava na cozinha:
- Como ela está passando?
- A injeção fez efeito...
Maria havia chorado. Junto com Theresa, evidentemente! A casa já cheirava a doença.
Terlinck se dirigiu para a fábrica de charutos, trabalhou duas horas, ocupou-se com um processo contra um cliente de Anvers, que não queria pagar.
Em seguida, passou na salsicharia Van Melle e escolheu um frango para Emilia.
Conheceria sua filha a diferença entre um frango e um guisado de carne? Não se podia saber. Ora ela se lançava avidamente sobre a comida, ora a esmigalhava e triturava, sujando tudo em volta.
Mas era ainda uma questão de dever. Ela não tinha outra alegria na vida. Era preciso dar-lhe o máximo possível, e nunca, quando se tratava de Emilia, ele medira os gastos. Aliás, se algum dia fosse alvo de censuras, poderia mostrar as notas da Van Melle, onde tudo o que comprava era destinado à sua filha.
Ainda não soara meio-dia. Ele voltou para casa com o frango sob o braço. Entregou-o a Maria, que sabia
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como devia prepará-lo, e depois de levantar a tampa das caçarolas, subiu para o quarto.
Theresa, que o ouvira entrar, espreitava-o com um ar ansioso, como sempre, dando a impressão de que ela estava constantemente esperando uma catástrofe ou alguma manifestação de brutalidade da parte do marido.
- Telegrafei à sua irmã - anunciou ele, sem olhála.
- Eu lhe peço perdão, Joris - choramingou ela.
- Perdão pelo quê?
- Eu deveria ter falado com você e não com o Dr. Postumus. Mas estava tão persuadida de que você recusaria!... É um pouco por sua causa que quero que minha irmã venha... Sozinho, com duas mulheres doentes...
Era um ardil! Quando ela choramingava assim, um dos seus olhos continuava seco, o olharzinho aguçado, pronto a descobrir o mínimo sinal de fraqueza no adversário.
- Rezei a manhã inteira, pedindo ao bom Deus que me chame sem demora... De que adianta continuar vivendo?... Sinto que nunca mais me levantarei desta cama. Agora, já não sou senão um peso para todo mundo...
Ele se voltou para a janela. Era ainda por dever que se achava ali, pois não era decente deixá-la sozinha o dia inteiro.
- Está aborrecido, Joris?
- Aborrecido por quê?
- Não é divertido ter uma mulher doente. A vida toda, só lhe causei problemas... Se pelo menos pudesse ter lhe dado uma filha como as outras...
Falava a verdade, sabia disso. Falava intencionalmente, para surpreender uma concordância da parte dele. E, nesse caso, ela mudaria de tática, passaria a
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acusá-lo de ser um egoísta, um grosseiro, e de ter causado a desgraça daquela casa.
- Acho que é melhor você procurar dormir, Theresa.
- Tentei. Não consigo... Daqui a pouco as dores recomeçarão... O médico me preveniu... Ele terá de voltar aqui para me dar outra injeção... Se eu pudesse morrer...
Algumas casas adiante, Kees, na soleira do Velha Torre, conversava alegremente com um guarda.
Terlinck voltou-se lentamente, fitou a mulher ainda mais lentamente, suspirou, curvou-se, tocou-lhe de leve a fronte com os lábios e se dirigiu para a porta.
- Joris!
Ele não se voltou, desceu as escadas, e seus passos pesados ressoaram em toda a casa.
Maria, que sabia o que ele viera buscar, estendeulhe o frango e um prato de compota de maçãs. Terlinck cortou a ave em pedaços pequenos, desossou-a, subiu ao quarto de Emilia, que encontrou mais uma vez estirada no chão, e teve de transportá-la para a cama.
À medida que se aproximava de Ostende, pisava no acelerador, tanto quanto lhe permitia o seu carro velho. Depois parou diante de uma ourivesaria e entrou, não sem constrangimento.
- O que o senhor deseja?
- Eu queria...
Não sabia. Ou melhor queria algo que fosse muito bonito, um objeto que se conserva para o resto da vida.
- É um presente...
- Um presente de casamento?
- Não... É para uma criança recém-nascida... Mostraram-lhe chocalhos de prata dourada, berlo-
ques de marfim.
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É o que há de melhor no gênero.
Comprou o chocalho e os berloques, parou seu carro diante de uma loja de comestíveis finos, escolheu uvas da Espanha, um ananás, tangerinas e duas garrafas de champanhe.
E sempre a mesma pressa, o mesmo desvario o impeliam; depois, no momento de estacionar no cais, em frente da estação marítima e da casa amarela, o mesmo pavor! As janelas e as cortinas de musseline do primeiro andar estavam fechadas.
Ele deixou seus embrulhos no carro, abriu a porta do café de Janneke, olhou para o canto junto ao aquecedor, onde sabia que se encontraria a proprietária, ao lado da poltrona do gato.
Lá estava ela, mas pareceu a Terlinck não ser a mesma que de costume; parecia preocupada, menos cordial. Com um olhar, indicou a Terlinck que o lugar que ele ocupava todos os dias estava tomado por um soldado de farda caqui.
- Por favor, uma cerveja - pediu Terlinck.
Ele compreendera e fazia uma pausa, como os freqüentadores de bares suspeitos, que se preparam para enfrentar uma briga.
- Estava esperando por mim? - perguntou ele de pé, diante do soldado sentado.
Mais um tipo que não valia nada, e isso se percebia só de ver a maneira de vestir a farda, o relaxamento com que usava o quepe, de banda, tapando-lhe um olho. Era um antigo marinheiro de Anvers, agora alistado no Exército.
- É o Sr. Terlinck? Eu venho da parte de Albert... Não se levantara e media Terlinck de alto a baixo,
atrevidamente.
- Creio que o senhor tem algo para me entregar.
- Entregar o quê? - perguntou Joris.
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Janneke manobrava sua bomba de cerveja, com dois bicos muito brunidos, e os observava de longe.
- Sabe do que estou falando! Deve me entregar um dinheiro para Albert.
- Não tenho nada para lhe entregar.
- Ah!
O soldado parecia desorientado.
- O senhor não recebeu a carta de Albert? E Terlinck, sem lhe dar tempo de refletir:
- Você leu a carta?
- Nós dois somos como irmãos...
- Pois bem! Você pode dizer a seu irmão que não tenho nada para dar a ele.
- Como o senhor quiser! Bateu na mesa com uma moeda.
- Quanto lhe devo, dona?
- Vinte e oito centavos.
Relutante, o soldado se levantou e ainda perguntou:
- O senhor pensou bem?
Mas Terlinck, sentado em seu lugar, não lhe dava mais atenção e olhava para fora.
- Não há nada de novo lá em cima, Janneke?
- Não, nada de novo... Acho que hoje de manhã ela se levantou um pouco da cama... Em seguida, fez funcionar o fonógrafo... Subi um instante, quando meu sobrinho veio entregar a cerveja... Não dá para acreditar, não acha? Há só oito dias que ela teve a criança... E, ainda por cima, é um corpinho de nada... Se ao menos fosse uma mulher forte!
- A amiga dela está lá em cima?
- Esqueceu-se de que hoje é o dia?
O dia do cavalheiro de Bruxelas! Um fabricante de produtos farmacêuticos, que tinha cinco filhos e acabara de casar a filha mais velha.
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Sabe que fiquei muito espantada, quando vi
aquele soldado que procurava pelo senhor? E já veio aqui um outro soldado, que me falou do senhor...
- O que ele lhe contou, Janneke?
- Não me contou nada...
Ela mentia. E isso quase desgostou Terlinck.
- Por que não me diz a verdade?
- Porque não gosto de me meter nessas histórias... Vi logo que ele não era um sujeito decente...
Estava com pressa de encerrar a conversa, e se precipitou de volta para o seu tricô, perguntando:
- O senhor não vai subir?
- O soldado lhe falou de Albert?
- Ele não me disse que o rapaz se chamava Albert. O que está preso, não é mesmo? Eu não dei muita atenção ao que ele dizia. Parece que o tal Albert esbofeteou um sargento. Está contando com o senhor para livrá-lo do apuro...
Evidentemente Janneke não era mais a mesma! O soldado lhe contara tudo! E agora sentia por Terlinck o mesmo respeito um pouco distante dedicado ao cavalheiro de Bruxelas, que ela nunca vira.
- Todo mundo tem seus aborrecimentos, não é mesmo? - concluiu Janneke filosoficamente. - Tanto os ricos como os pobres. E muitas vezes os ricos mais do que os pobres!
Um pouco mais tarde, ela o viu atravessar a calçada, apanhar no carro pequenos embrulhos claros, que lhe ocuparam os braços, e penetrar no corredor de falso mármore avermelhado.
A única reação de Janneke foi comentar para seu gato de olhos semicerrados, enquanto retomava uma carreira de pontos do tricô:
- O que está achando disso tudo, meu bichano?
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Lina estava deitada, ou melhor, sentada em seu leito, o antebraço apoiado em travesseiros debruados de rendas. Um largo laço de fita azul-pálido no pescoço fechava-lhe a camisola.
- Tire o que está em cima desta cadeira, Elsie!
O fonógrafo estava sobre a mesa de cabeceira e havia muitos discos espalhados sobre o edredom de seda estofada. Todas as cadeiras estavam ocupadas. Numa delas havia uma bandeja com restos do almoço, em outra um penhoar e roupas íntimas, na terceira frascos de medicamentos.
E o sol, que tornara a surgir, filtrava-se suavemente através das cortinas de musseline.
- Não me ouviu, Elsie?
- Ouvi, sim, senhora!
Pois Elsie tinha se recusado, já que sua patroa tivera uma filha, de chamá-la de senhorita. Era uma mulher alta, ossuda, como que talhada em madeira, originária do Luxemburgo. A desordem a fazia sofrer; entretanto, se via forçada a viver da manhã à noite naquela desarrumação.
- O que mais me trouxe, Sr. Jos? Humildemente, ele ia desembrulhando os presentes,
enquanto papéis de seda caíam no chão, para desespero de Elsie.
- Eu adoro ananás! Elsie! Traga uma faca e um prato.
- Mas, senhora, sabe muito bem que já comeu demais no almoço...
- Faça o que estou mandando, Elsie!... Duas taças... Não há gelo aqui? Vá pedir um pouco de gelo a Janneke...
No berço, junto ao leito, a criancinha tinha os olhos abertos, mas não era nela que Terlinck estava interessado.
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Sente-se. É cansativo olhá-lo quando está de pé,
é tão alto... Tire sua peliça... Como agüenta usar essas roupas tão pesadas?... Elsie!...
Elsie não podia estar em toda parte ao mesmo tempo. Descera ao café de Janneke para arranjar gelo, e sua fisionomia emburrada mostrava claramente sua reprovação.
- É pena que Manola não esteja aqui hoje... Ela gosta tanto de champanhe! Mas como o senhor sabe, é o dia dela.
Ela descobria os berloques, o chocalho.
- Não quer aproveitar a ausência de Elsie para abrir a janela? Sob o pretexto de que é diplomada, ela se recusa a fazer tudo o que lhe peço!
- Não sei se devo...
- Deve, sim, Sr. Jos!
Ele entreabriu timidamente a janela. Dir-se-ia que tinha medo de ser posto para fora do quarto. Andava sem fazer ruído, chegava mesmo a curvar-se, pois ela observara que era muito alto.
- Encontrou um ananás fresco? Foi na Van der Elst?
- Não reparei o nome...
- Na rua de Liège?
- Não... não sei mais...
- Trouxe o baralho?
Havia quatro dias que ela pedia um baralho para jogar belote, e ele sempre se esquecia de comprá-lo.
- Vou comprar agora!
- Sr. Jos...
Mas ele já saíra, sem capote.
- Não é um fenômeno estranho? - disse ela a Elsie, que voltava com o gelo. - Se eu não estivesse neste estado, poderia acreditar que ele está apaixonado... Houve um momento em que pensei que era por Manola...
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Elsie, emburrada, não respondeu e pôs o champanhe para gelar.
- Não acha isso engraçado?
- Para mim, os homens dessa idade nunca são engraçados... Até me fazem pena...
Ele voltava com dois baralhos.
- Venha se sentar, Sr. Jos... Vou lhe ensinar o jogo... Manola está sempre trapaceando! Ah, mas já está na hora... Elsie!... traga-me a garotinha...
Empurrou as cartas sobre o edredom já coberto de discos. Com um gesto muito natural, desfez o laço de fita azul e tirou um seio de dentro da camisola.
- Já vai, já vai, sua gulosa! Espere só um minutinho... Pronto!
Voltando-se para Terlinck, ela pediu, para grande escândalo de Elsie, que se atarefava pesadamente pelo quarto, com a vaga esperança de dar-lhe uma aparência de ordem burguesa:
- O senhor tem um cigarro?
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Ill
ELE ESTAVA num jardim, apoiado ao cabo de uma pá, como nos catálogos de negociante de cereais. Um detalhe curioso é que fumava, não um charuto, mas um enorme cachimbo de âmbar. Da casa (supostamente sua casa, mas ele não a reconhecia), Lina estava saindo com um bebê nos braços. Ao ver Terlinck, ela fazia um gesto alegre e se punha a correr para ele. Mas, à medida que se aproximava, ia se transfigurando. Então ele constatava, com espanto, que ela usava um vestido muito curto de pregas largas, à maneira das alunas de internatos, com os cabelos presos em duas trancas nas costas. Continuava correndo. Tropeçou. Caiu na alameda, bem junto a Terlinck, e não cessava de sorrir, ou rir; não era exatamente sorriso nem riso, mas uma expressão de alegria absoluta, da mais pura alegria.
Ele franzia as sobrancelhas porque o bebê escapara das mãos dela e caíra a alguns passos de distância. Quis apanhá-lo, e só então percebeu que se tratava apenas de uma boneca, não uma boneca grande, mas uma bonequinha de bazar, os braços imóveis e os olhos fixos.
Dava-se conta de que nada daquilo podia ser real. Estava sonhando. Mas não queria admitir que sabia ser
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um sonho, pois queria ver a continuação. Alguém se movimentava no seu quarto. Abrindo um pouco as pálpebras, constatou que haviam descerrado as cortinas e que chovia.
Suspirou, aborrecido. Tinham-lhe trazido a sua água quente. Estava, pois, na hora de se levantar. Mas por que Maria não saía, depois de ter deixado a jarra?
Abrindo os olhos, viu que não era Maria, mas sua cunhada Marthe, já de banho tomado e vestida. Ela o olhava. Esperava, sabendo-o acordado.
Ele a detestava, sem razão definida, mas a detestava. Sempre a detestara. Por que ela lhe trouxera a água quente? O que esperava, ali em pé, junto à sua cama?
- Bom-dia, Joris - murmurou ela.
Ele deixou escapar um resmungo. Ela continuava ali! Era evidente que queria permanecer, que tinha motivo para isso.
Marthe nunca fazia nada sem uma razão! Ela era a própria razão! E seu rosto, contra a luz, parecia lunar sob os cabelos grisalhos, pois não tinha uma só ruga, sua pele era lisa, porém branca, sem nenhum rosado.
O mau humor de Terlinck se justificava: primeiro havia o sonho que ele tivera de abandonar; depois o que acontecera na véspera. A bem dizer, não acontecera nada, ou antes, ele não sabia ao certo. Entrara no café de Janneke, como fazia todos os dias, antes de subir ao quarto de Lina. Ainda que o café se situasse na casa vizinha, para Terlinck era como a ante-sala do apartamento.
E Janneke servira-o, abanando a cabeça.
- Acho que seria melhor não subir hoje.
Terlinck teve de lhe arrancar uma a uma as informações.
- Ela está com uma visita, sabe? Depois, finalmente:
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- É um oficial que chegou de motocicleta! Até a estacionou na calçada...
Furioso, continauva olhando para a cunhada, que era capaz de permanecer ali durante horas, se fosse preciso. Finalmente, atirando as cobertas para um lado, sentou-se na beirada da cama. A princípio, não o fez de propósito. Mas, quando percebeu, não lhe desagradou escandalizar Marthe, que todos os dias ia à missa das sete da manhã. Do jeito que ele sentara, e com os movimentos que fazia para calçar as meias, ela podia ver-lhe até o alto das coxas peludas e todo o baixoventre.
Ele demorava de propósito. Suspirando, ela disse:
- Você se esquece, Terlinck, que eu o lavei dos pés à cabeça quanto você estava com tifo.
Bruscamente, ele se levantou.
- O que você está querendo?
A atmosfera tornara-se sufocante na casa. Marthe instalara sua irmã no antigo quarto de Emilia, do outro lado do patamar. Como o quarto passara a ser de guardados, fora preciso dispersar por todos os cantos da casa, inclusive nos corredores, móveis, grandes cestas de vime e um sem-número de objetos.
À noite, sentia-se que sempre havia alguém que não dormia, Marthe ou Maria. Ouviam-se passos furtivos nas escadas, a criada que vinha ficar de plantão ou que voltava para o seu quarto, ou ainda alguém que descia para ferver água. E luz perenemente debaixo da porta, murmúrios de vozes em tom de litania.
- Eu queria lhe falar durante alguns minutos, Joris! Pode fazer sua toalete...
A manhã era cinzenta, o céu tão baixo que parecia haver uma cortina diante das janelas. Era dia de mercado na praça. Guarda-chuvas abertos, telheiros gotejando.
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- O que está querendo agora?
Terlinck se censurava por detestá-la tanto e por ser incapaz de esconder o que sentia, pois provavelmente ela não merecia ser tão malquista. Nunca tivera uma chance. O marido, organista em Gand, de vez em quando chefe de orquestra, adoecera logo após o casamento, e a lua-de-mel de Marthe fora só cuidar do doente. Ao morrer, ele não lhe deixara nada.
Apesar disso, Terlinck nunca a ouvira queixar-se. Dizia as coisas simplesmente, como eram. Não se considerava desonrada por ter-se tornado caixa num café de Bruxelas. Aos 45 anos permanecia a mesma que aos vinte e nunca falava mal de ninguém.
O ódio de Terlinck seria causado pelo fato de ser ela filha de Justus de Baenst?
Começou a lavar os dentes, fez sinal de que estava escutando.
- É a respeito de Emilia - disse ela, no mesmo tom de voz.
A própria Theresa não teria ousado abordar o assunto a que Terlinck era mais suscetível. Emilia era problema só dele! Não era da conta de mais ninguém! Com a escova de dentes na boca, observou a cunhada com um olhar duro.
- Acho que seria melhor você se decidir...
- Decidir-me a quê?
Não tinha ele razão de não querer Marthe em sua casa? Chegara havia apenas dez dias e já se achava no direito de dar palpites sobre Emilia!
- Sabe o que quero dizer, Terlinck. O que talvez não saiba é que qualquer desses dias vai ter aborrecimentos...
Ele lavava o rosto, enxugava-se com uma toalha felpuda. E ela continuava no mesmo lugar, com a atitude de quem resolveu ir até o fim.
- Ontem mesmo o Dr. Postumus me falou...
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- Postumus?
Dessa vez o tom era de desafio. Postumus? Mas Terlinck estava disposto a esmagá-lo, se...
- Não adianta você adotar esse ar importante... Trate antes de tirar o sabão atrás das orelhas... Postumus simplesmente me disse o que eu já sabia: as pessoas estão começando a falar de Emilia...
- De Emilia?
- De Emilia, sim! E de você! Certas pessoas, suas conhecidas, andaram perguntando a Postumus se sua filha era realmente louca e se o lugar dela não deveria ser num manicômio.
- Quem?
- Não importa. Gente da prefeitura...
Ele só se barbeava dia sim dia não, e aquele não era o dia, portanto estava quase pronto.
- O que Postumus respondeu?
- Que o segredo profissional não lhe permitia falar. Contudo, há uma mulher que está encarniçada contra você.
- Que mulher?
- A mãe de Jef Claes.
Ela não podia impedir o seu olhar de tornar-se mais insistente. Theresa lhe falara da morte de Jef e da visita que o rapaz fizera a Terlinck pouco antes de se matar! No quarto da enferma, sem dúvida as duas mulheres haviam falado horas sobre o drama, em voz baixa, com olhares prudentes para a porta!
- No que a mãe de Jef Claes está se intrometendo?
Sim, no quê? E por quatro vezes ele lhe enviara dinheiro! Nunca agira assim com ninguém! Nem poderia dizer ao certo a que sentimentos obedecera. Mas era o que havia feito!
- Quando ela bebe, não pára de falar em você e de Emilia nos botequins. Se quer saber mesmo, chega a
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contar que a sua filha vive amarrada na cama e que é forçada a fazer suas necessidades nos lençóis. Diz ainda que uma pessoa normal não poderia entrar no quarto dela por causa do mau cheiro insuportável, que a sua mulher não tem permissão...
Mas se calou, impressionada. Terlinck estava ereto na sua frente, rigorosamente imóvel, com o ar estático, tão freqüente naqueles últimos tempos.
- E depois?
- Essas coisas a gente sabe como começam, mas nunca sabe onde irão terminar. As pessoas de Furnes não gostam de você, Joris...
Era verdade: tinham medo dele. E daí?
- Não acha que basta uma doente nesta casa? Existe uma boa casa de saúde em La Panne, onde você poderá ir ver Emilia todos os dias.
Como, de repente, ele estava longe! Ela o continuava vendo a menos de um metro de distância e, no entanto, era como se um espaço considerável os separasse. Ele a estaria vendo? O que estaria pensando?
- O que há com você, Joris? Por que não me responde?
- Eu?
Responder o quê? Para quê? Marthe não compreendia que...
Ele ergueu maquinalmente os olhos para o teto, acima do qual Theresa estava deitada. Por um instante, seus olhos se anuviaram, o pomo-de-adão se mexeu, mas a cunhada nada percebeu.
- Não vou me separar de minha filha! - declarou finalmente, de novo com a voz habitual, a voz de todos os dias, como se estivesse falando sobre um assunto banal.
E fixando Marthe, com as sobrancelhas franzidas:
- O que está esperando?
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A cunhada não se movia. Terlinck poderia jurar que ela estava murmurando uma rápida oração para ter coragem de ir até o fim.
- E mais ainda...
- Ouça, Marthe...
Acendendo um charuto, embora não tivesse ainda bebido o café, ele caminhou pesadamente pelo quarto e o assoalho tremeu.
- Eu a deixei vir, embora contrariando os meus princípios. Esta casa é minha! Está compreendendo? Theresa é minha mulher. Emilia é minha filha. Maria é minha cirada e minha antiga amante. Não precisa olhar desse jeito! Sem dúvida, tudo isso aconteceu porque tinha de acontecer, e nada pode ser mudado! Ainda não compreendeu?
Não, ela não compreendia, mas adivinhava confusamente o que o cunhado queria dizer e o que não dizia...
- Minha casa...
Ele parecia irritado ao pronunciar aquelas palavras. Não eram palavras de amor. Eram mais...
Marthe teria preferido que seu pensamento não fosse tão nítido: palavras de ódio, sim!
A casa a que ele estava ligado, quisesse ou não! A casa, a família, que lhe pesavam nos ombros, que pesavam na sua vida, no passado como no presente!
- É de Ostende que você quer me falar?
E um sorriso de desprezo, cujo sentido só ele podia saber, arreganhava-lhe os lábios.
- Imagino que também estejam falando de Ostende. O que está esperando para fazer o seu sermão?
Marthe não se sentia mais com forças para continuar e balbuciou:
- Acho melhor deixá-lo com a sua consciência!
A consciência, em todo caso, não o impediu de fazer os gestos de todos os dias, de descer à sala de jantar e
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chamar Maria para servi-lo, de subir para levar a Emilia sua refeição matinal.
A mansarda parecia mais sinistra nessa manhã cinzenta e abafada. Era verdade que cheirava mal, mas também era raro Terlinck conseguir terminar a limpeza sem ser interrompido por uma crise de Emilia.
Seria realmente preciso enfiá-la numa camisa-de-força? Certa vez, tinham-na amarrado na cama, era verdade, mas uma única vez. Com lençóis, aliás, para não machucá-la. Terlinck fizera Maria subir, na esperança de dar uma limpeza maior no quarto e de lavar Emilia, coberta de feridas.
Então ela tivera uma tal crise a ponto de rasgar completamente o lábio com os dentes, e era horrível ver seus olhos transtornados.
Hoje estava calma. Cantava uma eterna canção triste, brincando com os dedos, e não pareceu perceber a presença do pai.
Quando ele desceu, foi para entrar no quarto de sua mulher, debruçar-se sobre ela e tocar-lhe na fronte com os lábios.
- Bom-dia - disse ele.
Theresa ergueu os olhos fatigados, ao mesmo tempo ansiosos e resignados. E logo olhou a irmã, como para se tranqüilizar.
- Conseguiu dormir?
- Muito pouco... - murmurou ela, com uma voz que mal dava para se reconhecer. - Mas não faz diferença... Logo irei dormir por muito, muito tempo...
Lágrimas inchavam-lhe as pálpebras dobradas, rolavam pelas suas faces. Tudo era cinzento, triste. Ali também havia o cheiro da doença e de sua repulsiva mistura de medicamentos e artigos de higiene.
- Pedi ao vigário que viesse me ver... Isso não o aborrece?
Ele fez sinal que não com a cabeça e saiu.
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Era sua casa! Entrou no gabinete para apanhar charutos e contornou inconscientemente o famoso lugar, que nada marcava, mas que ele podia situar com precisão.
A Páscoa já havia passado. Ele não usava seu gorro de lontra, mas um chapéu preto e, quando não chovia, saía de jaquetão.
Atravessou a praça por entre legumes, aves e mulheres que o cumprimentavam. Na sua frente, erguia-se a torre enevoada e cinzenta, os ponteiros do relógio se adiantavam com pequenos trancos.
Não era também a sua prefeitura? Van de Vliet lá estava, acima da lareira, no seu traje carnavalesco. A poltrona esperava, os papéis cuidadosamente empilhados sobre a mesa.
- Sr. Kempenaar, por favor...
- Bom-dia, Baas. A Sra. Terlinck está melhor?
Kempenaar julgava de sua obrigação, todas as manhãs, perguntar com voz melancólica notícias da enferma.
- Continua passando bem mal, Sr. Kempenaar. Aliás, isso não é da sua conta!
Terlinck então tomou a correspondência das mãos do secretário mas não para aliviá-lo. Ao contrário, empurrava um pouco para trás sua poltrona, soltava baforadas do charuto para se cercar de fumaça e fitava o outro nos olhos.
- Diga-me, Sr. Kempenaar... Faz muito tempo que esteve no Círculo Católico?
- Toquei na apresentação do domingo passado...
- Não se faça de imbecil, Sr. Kempenaar! Sabe que não estou falando de suas palhaçadas... Esteve no Círculo segunda-feira?
O outro baixou a cabeça, como apanhado em flagrante.
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- Ficou no andar térreo, não é verdade? Mas presumo que a turma do Pequeno Círculo tenha se reunido no primeiro andar.
Exatamente como no dia em que fora discutido o caso de Leonard Van Hamme. Era sempre o mesmo jogo! Os membros da segunda ordem, os Kempenaar e os outros perambulavam pela sala, sob os enfeites do domingo anterior, que ainda não haviam sido removidos, e onde, por economia, só ficavam acesas uma ou duas lâmpadas. Bebiam-se canecas de cerveja ruim e sempre morna. E tentava-se adivinhar o que se passava lá em cima, nos salões de poltronas de veludo verde. Ouviam-se vozes. Viam-se pessoas atravessarem o alpendre, subirem apressadamente as escadarias.
- Não vale a pena se perturbar, Sr. Kempenaar. Como vê, estou a par de tudo. Pode me dizer quem estava no Pequeno Círculo?
- Estavam presentes o Sr. Coomans... o senador Kerkhove... E também o Sr. Meulebeck com um outro advogado, cujo nome ignoro.
- E quem mais, Sr. Kempenaar?
- Não sei mais... Espere... Não... Talvez o cônego de Vieuville?... Parece que avistei sua batina na escadaria...
- Ninguém mais?
Por que mentir, já que ele sabia que acabaria dizendo a verdade?
- Leonard Van Hamme não estava presente na sessão?
- De fato, disseram-me...
- O que mais lhe disseram, Sr. Kempenaar? Leonard não está agora se dando muito bem com aqueles senhores?
- Acho, sim, que estão se entendendo bem!
- Ele não esteve ontem na prefeitura? Não foi lhe dar bom-dia no seu escritório?
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- Continua sendo conselheiro municipal, e eu não podia impedi-lo de...
- O que ele lhe disse?
Era o Terlinck que metia medo: frio e calmo, duro como pedra.
- Ele me falou de coisas diferentes...
- E anunciou, Sr. Kempenaar, que não tardaria a me substituir nesta poltrona! Eis o que ele disse e que o senhor não ousa repetir! E o senhor respondeu afirmativamente! Pois vive com medo de perder o seu emprego. Não é isso, Sr. Kempenaar? Sua camisa está muito suja, e faço questão que os meus funcionários mantenham um aspecto decente. Faça-me o favor de trocar de roupa com mais freqüência, Sr. Kempenaar. Pode se retirar...
As dez horas da manhã, entrou no Velha Torre de Kees. Só havia ali uns poucos hortelãos, que haviam trazido sua comida e se faziam servir grandes tigelas de café com leite.
Terlinck foi até o fundo do café, adiante do balcão, junto ao bilhar. Kees percebeu que devia segui-lo.
- O que eles decidiram? - perguntou Terlinck, baixando a voz, sem se sentar.
- Parece que foi o tabelião Coomans quem foi buscar Leonard. Mas Leonard declarou que não queria mais ser candidato. Coomans lhe anunciou que qualquer dia desses o senhor ia ter problemas...
- Por causa de minha filha?
- Isso e outras coisas... O tabelião contratou a mãe de Jef como doméstica... Ela continua bebendo e, quando bebe, conta umas histórias...
E Kees acrescentou, depois de lançar um olhar prudente à sua volta:
- Precisa tomar cuidado, Baas!
- Aqui, o que dizem eles?
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'Aqui' significava o pequeno grupo que se reunia todas as noites no Velha Torre.
- Eles aguardam. Alguns consideram que do momento que o tabelião Coomans entrou em entendimento com Leonard...
- Sirva-me uma genebra, Kees.
- Pelo menos, não vai deixar que o passem para trás, Baas?
Terlinck contentou-se em olhar a praça através das vidraças embaciadas.
Sua praça! Sua cidade!
Depois foi tirar o carro da garagem e rodou por muito tempo a manivela para fazê-lo funcionar.
Sabia muito bem que não devia ter ido! Não, não devia porque, durante o almoço a sós com a sua cunhada, ela o olhara com um ar de interrogação, como para se assegurar. Menos ainda por causa dos olhares que lhe lançava Maria, cada vez que trazia um prato para a mesa.
Mas às cinco horas haveria uma reunião da comissão de finanças. Coomans era o presidente da comissão, da qual Leonard Van Hamme fazia parte. Devia ser discutido, entre outras coisas, o orçamento para a beneficência.
Era evidente, portanto, que ele não estaria de volta a tempo.
Ao levantar-se da mesa, adivinhou a pergunta na ponta dos lábios de Marthe: "Você vai a Ostende?"
Sem lhe deixar tempo para formulá-la, ele declarou:
- Vou a Ostende.
- O Dr. Postumus estará aqui às três horas.
- Não é de mim que ele está tratando.
Nesse dia sentiu necessidade de ir à casa da mãe. Sete vezes por semana passava diante da casa baixa pre-
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cedida de sua cerca de madeira verde e todas as vezes avistava a velha de touca branca, ora através das vidraças, ora no pedacinho de jardim que ela própria cultivava.
O curioso era que na casa do seu sonho havia uma cerca parecida e janelas semelhantes, também com batentes pintados de verde e branco.
Sua mãe não estava no jardim, por causa da chuva. Encontrou-a descascando batatas; erguendo a cabeça, ela contentou-se em observar com uma ponta de espanto:
- Ah! É você?
Ele a beijou distraidamente. Nunca o haviam habituado a efusões e quando, ainda pequenino, quisera beijar um de seus tios - agora já falecido - este o empurrara, declarando:
- Homens não se beijam!
Nada tinha de especial a dizer. Trouxera-lhe, como de costume, meia dúzia dos pães de mel de que gostava, e ela sequer se mexera ao vê-lo colocar o embrulho sobre o oleado da mesa.
- Está com pressa? - perguntou, notando que o filho não se sentava.
- Não... não, especialmente.
- Nestes últimos tempos, anda passando muito por aqui... É verdade que a sua cunhada está instalada em sua casa? Isso deve dar muita briga!... Sei bem como você é...
De vez em quando ela o observava por cima dos óculos.
Parecia exatamente essas boas velhinhas de estampas. Só que não era boa! Incapaz da menor indulgência. As vezes, até se poderia acreditar que ela detestava o filho; ou pelo menos desconfiava dele.
- Então a sua mulher está às portas da morte?
- Tem um câncer no intestino.
- O que você vai fazer?
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Como se tais coisas pudessem ser decididas de antemão!
- Não quer uma xícara de café?
- Obrigado.
- Está com pressa?
Havia um retrato dele na parede, aos cinco ou seis anos, com um arco na mão e, junto à mesa, a cadeirinha que sempre fora sua.
- Vou precisar visitá-la, antes que as coisas aconteçam... Só que sempre tenho medo de incomodar...
- Sabe muito bem, mamãe, que não nos incomoda.
Falavam ambos da boca para fora. Mentiam sem mentir, pronunciavam frases sem importância e sem relação com o que estavam pensando.
- Você está bem?
Será que nesse momento ela estava revelando um pouco de sua alma? Ele subentendia, pois conhecia sua mãe tão bem quanto ela o conhecia:
"Você está bem por ter feito fortuna, por ser o importante Joris Terlinck, fabricante de charutos e prefeito de furnes? Tem certeza de que não lamenta nada e de que tudo está saindo de acordo com os seus desejos?"
Ele respondeu, servindo-se de café:
- Muito bem!
Ela sabia que o filho mentia. Não tinha importância. Sempre fora assim entre os dois.
- Vá ver se ainda tem açúcar na lata.
Uma lata de pó de cacau decorada com imagens de Robinson Crusoe; ficava no mesmo lugar, desde quando Joris era criança. Ela sacudiu a lata. Restavam ainda três cubos de açúcar e uma poeira branca.
- É preciso ter calma, ouviu? - suspirou a velha, como se ele acabasse de lhe pedir um conselho. - Não guie muito depressa. Parece que ontem houve mais outro desastre na entrada de La Panne.
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Terlinck não guiou depressa nem devagar. Ia a Ostende. À medida que se aproximava, esquecia-se do que deixara para trás e não pensava senão na motocicleta niquelada e no oficial da véspera.
Havia dias em que ele não sabia mais o que comprar. As pesadas uvas da Espanha acabavam apodrecendo no apartamento. Havia champanhe de sobra. Quanto a bombons e chocolates, viam-se caixas espalhadas por cima de todos os móveis.
Tomou uma decisão audaciosa: entrou numa perfumaria, pediu um perfume muito fino, e espantou-se que um frasco pequeno custasse duzentos francos.
Assim que chegou ao cais, procurou com os olhos a motocicleta e suspirou de alívio, pois não a viu. Estava injustamente aborrecido com Janneke: ela não tivera culpa de nada na véspera. Lina recebera a visita de um oficial. O que não impediu Terlinck de vingar-se de Janneke não entrando no seu café e subindo diretamente para o apartamento.
Elsie abriu-lhe a porta e recebeu o embrulho maquinalmente, tão habituada estava a vê-lo chegar com embrulhos.
- Não há nenhuma visita? - perguntou Terlinck.
- Somente a Srta. Manola... O senhor não teve medo da chuva? Dê-me o seu impermeável...
Ao entrar no amplo cômodo, sempre claro, apesar do tempo encoberto, ele tinha todas as vezes o mesmo choque, a mesma timidez, e perguntava com convicção:
- Não estou incomodando?
Dessa vez, a sua emoção foi maior porque o sonho ainda não se dissipara de todo. Procurou Lina com os olhos, como que para ter certeza de que ela não era uma meninazinha, que a criancinha no berço não era uma boneca.
- Bom-dia, Sr. Jos... Não veio ontem?
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- Quer dizer... eu vim, mas não ousei subir. Disseram-me que havia visitas...
- Era meu irmão! Sente-se. O que há dentro do embrulho, Elsie?
- Um perfume, senhora... Noite de Outono...
- O que vocês duas estavam fazendo, quando cheguei?
Elas se entreolharam e se contiveram para não desatar em risadas. Era freqüentemente assim. Muitas vezes ele tinha a impressão de ser um adulto interrompendo crianças em seus jogos e mistérios.
Mistérios elas faziam por tudo e por nada. Se riam, e ele lhes perguntava por que, o amolavam durante algum tempo, antes de lhe confessar uma coisa muito simples. Se cochichavam, ele se entristecia, enquanto elas não lhe revelassem o que segredavam. Verdade ou não, estavam trocando confidencias.
Certa vez, no Jardim Zoológico de Anvers, ele vira, numa jaula, leõezinhos que, por algum motivo, tinham separado da mãe. Eram três, redondinhos, de pêlo lustroso, e rolavam uns sobre os outros, mordiscando patas, orelhas, estiravam-se em tal estado de beatitude inocente que chegava a enternecer os visitantes.
Elas eram um pouco assim, Lina e Manola, e no apartamento só Elsie parecia adulta, mas uma adulta que ninguém levava a sério, cujas seriedades tinham um tom de comédia.
Sem dúvida, havia ali um bebê de verdade! Mas brincava-se com ele como com uma boneca. Brincava-se com a vida! Brincava-se com Terlinck, ou melhor, o Sr. Jos!
- Por que não querem me dizer o que estavam fazendo?
- Discutíamos...
- A respeito do quê?
- De um assunto muito grave!
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- Que assunto?
- O senhor...
Tudo o que se passava ali era diferente dos outros lugares. As horas não tinham importância, nem nada do que serve de base sólida para a vida. Comia-se em qualquer lugar, a qualquer hora, numas bandejas, espalhadas por todos os cantos. Dormia-se à hora em que se tinha vontade, e se Manola; estirando-se, suspendia a barra do vestido, pouco lhe importava ficar assim, com um bom pedaço de coxa à mostra.
Terlinck tivera um sobressalto a primeira vez que ela anunciara:
- Vou fazer pipi!
Deixara aberta a porta do banheiro e se podia ouvir os ruídos que fazia.
- O que estavam dizendo de mim? - insistiu ele, sem entender a volubilidade delas.
- Muita coisa!... Manola depois vai lhe contar... Ele ficava logo todo perturbado, infeliz, e elas estouravam de rir.
- Por que ela não fala logo?
- Porque não.
- Não, por quê?
- Porque daqui a pouco vai levá-lo para a casa dela. Estou esperando uma visita às quatro horas.
- De quem?
- Está sendo muito curioso, Sr. Jos! Elsie! Dê-me minha filhinha. Está na hora da mamada...
Através da musseline das cortinas, ele via confusamente mastros de barcos e um fundo prateado de mar e céu. A criança chorava, não se calava senão no momento em que seu narizinho se esborrachava contra o seio da mãe.
- Vai levar o Sr. Jos, Manola?
Manola levantou-se preguiçosamente. Estava sempre vestida de seda, sempre perfumada. Apesar do fa-
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moso pipi, que Terlinck não conseguia esquecer, era difícil acreditar que aquela mulher, toda ela tão delicada e feminina, estivesse sujeita às duras leis da condição humana.
- Não tem medo de me acompanhar até minha casa, Sr. Jos? Está com o seu carro na porta? Não? Traga-o até aqui para eu não me molhar...
Ele hesitava em sair, levantava-se, esperava que Elsie lhe trouxesse sua capa.
A garotinha continuava mamando. Lina preocupava-se com sua amiga, que mais uma vez fora ao banheiro.
- Não me carregue de novo o meu ruge. Cada vez que você vem, carrega alguma coisa minha. Sim, Sr. Jos!... Por que está com essa cara? O que está sentindo? Está com medo de Manola?
Afinal, ele saiu recuando de costas, desceu as escadas com Manola, foi buscar o carro, enquanto ela o esperava no corredor.
Por trás das vidraças do café, avistou Janneke, que o observava. Abriu a porta do carro, fechou-a, partiu constrangido.
- Sabe onde moro? Rua Leopold. Logo adiante do dique...
Nervoso, ele guiava mal.
- Atenção! Aqui é mão única. Dobre na segunda rua à esquerda...
- É o irmão dela que vai voltar? - perguntou ele, fixando os olhos no calçamento molhado.
Ela não respondeu.
- Agora, à direita. Logo depois do hotel que está vendo. É a segunda casa...
Manola remexeu a bolsa, procurando a chave, e perguntou como por acaso:
- É verdade que, enquanto o senhor está aqui, a sua mulher está morrendo aos poucos?
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O mais extraordinário era que, ditas por ela, essas palavras não soavam trágicas. Parecia muito natural que lá, em Furnes, a Sra. Terlinck estivesse morrendo aos poucos!
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IV
O QUE LHE CHAMOU a atenção nas escadas foi o contraste entre o vermelho escuro do tapete, o brilho do corrimão de cobre e a brancura cremosa das paredes. Mais tarde, ele iria lembrar-se de uma enorme planta verde em um vaso de porcelana e lembrar-se também que, ao chegarem ao primeiro andar, uma das portas de dois batentes no andar térreo se entreabrira.
- Não é nada! É o inglês! - informou Manola, enfiando a chave na fechadura.
- Que inglês?
- Um pederasta que aluga o quarto e a sala do andar térreo... Entre! Quer me dar licença um minuto?
Desapareceu por uma porta, que devia ser a do banheiro, e continuou falando:
- Não sei como fazem as outras mulheres, mas quanto a mim, não consigo usar cinta o dia todo!
Ufa! Ela voltava friccionando por cima do vestido os quadris, que a cinta devia ter deixado marcados com pequenas riscas.
- Por que não se senta? O que gostaria de beber? Alguém devia ter arrumado a casa na ausência dela,
pois estava tudo na mais perfeita ordem. Porém, da ma-
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neira como ela se movimentava, bastariam uns poucos minutos para recriar a desordem habitual.
Contudo, ela se controlava, não esquecendo que estava em sua casa, e se esforçava por ser uma boa anfitriã.
- Aceita um conhaque? Um licor?
Ele não estava com vontade de conhaque nem de licor, más não ousava recusar, permanecia de pé, um pouco aturdido pelo turbilhão das sedas de Manola rangendo.
Não era o mesmo gênero de arranjo de Lina. O interior era ainda mais feminino, dando a impressão de que tudo ali era acolchoado. O que chamou especialmente a atenção de Terlinck, sem razão, por ser o primeiro detalhe que observou ao entrar, foi uma lareira em estilo Império de mármore branco e, nessa lareira, sobre greIhas de cobre com cabeças de esfinge, uma verdadeira tora de lenha, que queimava devagarinho, lambida por pequenas labaredas.
- Sente-se nesta poltrona... Pensei que seria melhor trazê-lo até aqui do que lhe falar diante de Lina... De qualquer forma, é preciso não esquecer que ela tem
18 anos...
O que Manola queria dizer? No que importavam os 18 anos de Lina? A verdade era que faltava segurança a Manola. Olhava-o de sobrancelhas franzidas. E Terlinck se mantinha teso em sua poltrona, o chapéu entre os joelhos.
- Deixe de lado o seu chapéu! - impacientou-se ela. - Sabe o que está parecendo?
Tampouco ela sabia. Em todo caso, ele tinha o ar de um homem com quem é difícil abordar certos assuntos.
- Pode fumar seu charuto... Claro que pode! Faço questão que fume um charuto... Espere! Vou-acender um cigarro para lhe fazer companhia.
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Tudo isso para ganhar tempo, para ir e vir, para observá-lo de soslaio. Ser assim perscrutado causou a Joris um estranho efeito. Pensou de repente que sempre o haviam olhado dessa maneira, sobretudo as mulheres, primeiro sua mãe, desde que ele era menino, depois Theresa, desde o começo do casamento, Maria que não conseguia, em pleno coito, ser natural, Marthe, nessa mesma manhã, e até Janneke, que não se sentia à vontade diante dele.
- Sabe que é um tipo bem estranho? - atacou de repente Manola, com uma familiaridade que lhe parecia facilitar as coisas. - Ontem, alguém que o conhece bem falou-me muito no senhor. É verdade o que eu disse há pouco sobre sua mulher?
- Sim, é verdade.
- E não o preocupa pensar que ela pode morrer justamente quando o senhor está fora? É verdade também que tem uma filha de trinta anos?
Para se manter calmo, ele bebeu um gole de conhaque, sem que os olhos de Manola o deixassem.
- É claro que isso não é da minha conta! O problema é seu... Só toquei no assunto porque estamos conversando... Não é disso que eu queria lhe falar... Eu queria lhe perguntar o que o senhor pretende fazer com Lina...
Ela pareceu aliviada. O mais difícil já passara e agora, que estava dito, respirava mais livremente.
- O que pretendo fazer?
- Sim! Não faça esse ar de quem não está compreendendo! Não é à toa que o senhor vem todos os dias a Ostende, carregado de presentes, que não se tem mais onde colocar!
Ele estava chocado com aquela vulgaridade, que nunca antes havia notado.
- Ontem, depois da visita de Ferdinand... o irmão de Lina, que é oficial aviador em Bruxelas... depois da
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visita de Ferdinand, como ia dizendo, aconselhei Lina a examinar seriamente a questão... O senhor sabe por que ele veio?
Em certos momentos, Joris perguntava a si mesmo se aquela cena era real, de tal forma Manola discutia a questão com uma gravidade cômica. Enquanto falava, continuava a estudá-lo, sem se dar ao trabalho de disfarçar. Devia ter dito a Lina:
- Deixe-me agir! Vou saber direitinho o que está se passando na cabeça dele!
Ela era a mais velha! Tinha experiência! Arvorara-se em guia e protetora de sua jovem amiga.
- Pois bem, ele veio lhe apresentar propostas da parte do pai... Conhece Leonard Van Hamme?... Será melhor para ele que não me encontre... Não contente de ter posto a filha grávida no olho da rua, quer agora que ela vá para mais longe, Inglaterra ou França... Foi para isso que Ferdinand veio de motocicleta a Ostende!
Ela se exaltava, empenhada em contar toda a sua história, às vezes pousava a mão no joelho de Terlinck para enfatizar uma de suas frases.
- Sabe, por acaso, quanto Lina recebeu de herança da mãe?... E sabe que os Van Hamme são ricos? Só que os pais dela eram casados com separação de bens... O dinheiro de Leonard, aplicado nos negócios, não parou de frutificar... Ele deve também ter se servido do dote da mulher, que era de duzentos mil francos... Hoje ele não quer reconhecer... Está compreendendo?
Claro que ele compreendia! E não podia deixar de se sentir perplexo com o que Manola dizia, cada vez mais exaltada.
- Aqueles duzentos mil francos eram francos de antes da guerra... E ele quer devolver os francos de agora... É esse o golpe! Assim, o que Lina recebeu ao todo foram cem mil francos... Nem isso, porque é preciso
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deduzir os direitos e custas... Calcule o que lhe sobra como renda! Não chega a três mil francos!... A metade do que pago de aluguel aqui... Ela não se dá conta! Está simplesmente gastando o capital... Só o que o parto lhe custou...
O extraordinário era sentir nela o gosto pelas cifras em todas as questões de dinheiro. Chegava a esquecer de acender o segundo cigarro e beber o seu licor. De quando em quando, voltava a afagar seu ventre e quadris, no lugar onde a cintada apertara.
- O velho Leonard deve saber muito bem que sua filha não pode viver com tão pouco... É a maneira que ele tem de mantê-la sob controle... E foi para fazer uma nova proposta que Ferdinand veio ontem aqui. Se Lina quiser ir morar na Inglaterra ou na França, o pai está disposto a dar-lhe uma pensão de três mil francos por mês. O que o senhor decidiria num caso assim?
Afinal, ela queria era o parecer dele! Com a maior seriedade do mundo, e num tom quase dramático, perguntava-lhe o que faria se estivesse no lugar de Lina.
- Não sei... - murmurou ele.
Naqueles últimos instantes, ele tivera uma impressão estranha, que era incapaz de analisar. Não por causa do ambiente, nem da presença de Manola. No entanto, estava ansioso, como quando se está mal sentado e deslocado num lugar.
Nunca sentira nada de parecido nos outros dias, no quarto de Lina ou no Monico.
Estava longe de Furnes, longe de sua casa. E, pela primeira vez, sentia a mesma espécie de vergonha que se sente num lugar suspeito.
Por várias vezes, a imagem da cunhada se impusera em sua mente, e não fora fácil afastá-la.
- É justamente por ser uma decisão grave que resolvi falar com o senhor... Lina não queria... Ela não sabe quanto dinheiro é preciso para viver... O que eu lhe
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disse foi isso: se o pai está oferecendo uma pensão é para continuar sob seu controle... O senhor não acha isso também? Ele não quer dar à filha uma quantia, mas uma pensão... Não vai assinar nenhum documento de compromisso... Nesse caso, que garantia tem Lina de que o pai continuará pagando?... Ele sempre poderá impor condições, obrigá-la a fazer isso ou aquilo...
Terlinck devia estar com uma expressão estranha no rosto, pois de repente Manola franziu as sobrancelhas e olhou-o desconfiada.
- Está aborrecido por eu ter falado nessas coisas?
Não, não estava aborrecido! Era algo infinitamente mais complicado. Sem dúvida, teria preferido que as coisas não chegassem àquele ponto. Sentia, entretanto, que o momento era muito importante, que os minutos eram graves, que depois não haveria mais tempo...
- Ouça-me, Sr. Terlinck...
Ela não o chamara de Sr. Jos, mas de Sr. Terlinck.
- Somos duas pessoas racionais, não é verdade? Acho que podemos conversar...
Ele fez que sim com a cabeça.
- O que pensa fazer com Lina?
Nada! Como explicar a Manola? Ele nunca pensara em fazer nada!
- Note que fiquei um tanto espantada pelo fato de o senhor cortejá-la, justamente quando ela estava grávida...
O olhar dela!... Qualquer outro, que não fosse Terlinck, sem dúvida teria soltado uma gargalhada à vista do jeito de Manola, parecendo uma cartomante que tenta desvendar os pensamentos de seu cliente.
- Por que não me responde? O que há com o senhor? Parece que está zangado... Será por eu lhe ter falado de dinheiro?
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Era isso justamente que o inquietava naqueles últimos minutos! Manola acabara de trair seu pensamento secreto: perguntava a si mesma se Terlinck seria um avarento!
- É por causa disso? - insistiu ela, prestes a tornar-se desdenhosa.
- Juro-lhe que não... Mas está me falando de coisas em que eu nunca havia pensado...
- Nunca pensou em tornar-se o amigo de Lina?
- Amigo dela, sim...
- Quando digo o amigo o senhor deve saber muito bem o que isso significa...
- Não, eu não havia pensado.
- É a mim que o senhor quer fazer acreditar nisso? Então que idéia lhe passou pela cabeça?
- Nenhuma idéia...
Ela estava perplexa, mas não desistia de compreender.
- Não é tampouco por minha causa que o senhor vem a Ostende?
- Não sei... É por vocês duas...
- O quê?
- Pelo prazer da companhia de vocês duas, de...
- Do quê?
E, empregando a palavra, como se fosse um insulto:
- O senhor por acaso é um platônico? Então, agora, porque estou lhe falando do futuro de Lina, não sabe o que fazer?
De repente, ele sentiu um aperto na garganta. Perturbado com a certeza de que era ainda capaz de chorar, calava-se, fitava intensamente Manola. E ela, em pé junto a uma mesa, acendia um cigarro e comentava:
- Estou constatando que fiz muito bem em traze-lo aqui.
Ele também se levantou. Os dois de pé, encarando-se, não sabiam mais o que dizer. Terlinck não deveria
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apanhar seu chapéu e sair? Não sabia. Nunca um ambiente lhe fora tão estranho como esse; no entanto, não se resignava a partir.
- O que está fazendo? - espantou-se ela, de repente. - O que está sentindo?
Ele fora se sentar diante da lareira, bem perto do fogo, o corpo debruçado para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto nas mãos.
- O que há? - impacientou-se Manola. Pareceu-lhe que ele estava chorando.
Ele descobriu o rosto baço, cinzento, duro.
- Escute, Manola... Eu...
Estava meio sufocado, o que só lhe acontecera em raras ocasiões; isso lhe fazia medo, pois temia um ataque do coração. Pôs-se a falar numa voz branda, macia, insistente, que não combinava com a sua pessoa. - ...Estou disposto a dar a Lina tudo de que ela precise... Basta você mencionar a quantia...
Neste caso, por que tanta complicação? Ela não compreendia, irritava-se por não compreender.
- Já que ela a encarregou de...
- Lina não me encarregou de nada! Não vá achar que ela teve alguma coisa a ver com isso. O que há com o senhor?
- Não há nada... Quero que me diga de quanto Lina necessita para viver...
- Quer saber uma quantia específica? Pois bem, meu amigo me dá cinco mil francos por mês, além do aluguel, e de vez em quando um perfume, uma jóia... Não é uma fortuna, mas não me queixo, e o dinheiro até dá para comprar umas ações... Acha muito?
- Não... Eu estava pensando em outra coisa...
- Em quê?
- Não sei... Você acha que Lina aceitaria... se tornar... minha...
- Por que não?
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- Ela lhe disse isso?
- Não me disse cruamente. Mas eu sei! Sempre é melhor do que ficar à mercê daquele pai horrendo. Esta é a minha opinião!
No fundo, Manola não sabia ainda ao certo o que devia pensar. Havia momentos em que, com o seu corpanzil ossudo, seu rosto pálido e severo, sob as sobrancelhas espessas, Terlinck quase lhe fazia pena.
- Vamos, tome mais um copo... Eu não tinha idéia de que o senhor fosse assim.
Como era ele? Bebeu documente o conhaque que Lina lhe estendia.
- Note que não o estou apressando. Tem tempo para refletir... Contudo, se é para dar em nada, não vale a pena provocar tantos mexericos.
- Evidentemente...
Ele nunca sentira a cabeça tão vazia. Afinal de contas, o que viera fazer em Ostende? Por que aquela mania? A que sentimento teria obedecido?
Olhava à sua volta como um sonâmbulo que acorda em um lugar inesperado.
- No fundo, o senhor é um sentimental!
Em absoluto! Mas era tão difícil explicar. Tão inútil.
- O meu amigo é exatamente o contrário. O que o interessa é o amor. Se o deixasse fazer como quer, ele já começaria a se despir nas escadas!
Ela se esforçava por alegrar a conversa, sentia que as coisas não estavam se encaminhando facilmente, mas não conseguia pôr o dedo no ponto sensível.
- Ferdinand só vai voltar na próxima semana... Lina lhe prometeu uma resposta na quinta-feira... Até lá...
E, saltando de uma idéia para outra:
- A propósito!... Sabe que ele está a par?... Perguntou à irmã como conhecera o senhor, onde tinham se
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encontrado, o que o senhor vinha fazer no apartamento dela...
- O que Lina respondeu?
- Que era natural que o senhor se interessasse pela criança, pois foi o patrão de Jef Claes... Era preciso dizer alguma "coisa!
Sim, era preciso dizer alguma coisa...
Eram quatro e meia da tarde. O pêndulo do relógio dourado que ornava a lareira, com figuras representando as quatro estações, soou uma pancada.
Era a hora em que se reunia, na prefeitura, a comissão de finanças. Ele devia ter comparecido. Sabia que agira mal, não comparecendo. Mas podia ainda, em menos de meia hora, tomar a estrada e chegar em plena sessão.
- No que está pensando? - inquietou-se ela mais
uma vez.
- Em nada... Penso que Lina deve estar nos esperando.
- Não! Eu a preveni de que hoje não levaria o senhor de volta... Teria sido meio constrangedor, compreende?
Por que ele revia constantemente sua cunhada em pé, no centro do seu quarto? E logo depois, a prefeitura, o relógio luminoso da torre, os conselheiros atrasados que cruzavam apressadamente a praça, as costas curvadas sob a chuva? A escadaria de pedra com seus rastros de água, a sala dos vereadores, em que se realizava a sessão, o tabelião Coomans saltitando como um duende e acariciando a barba branca...
- Não está com fome? Tenho aqui uns doces e chocolates... Mas talvez prefira um dos seus charutos?
Uma vez ele assistira a uma cena familiar em Ostende: um menino, que nunca vira o mar, sendo conduzido de olhos vendados, para que a sua primeira impressão fosse mais forte; no dique, tinham lhe tirado
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bruscamente a venda, e o menino olhou angustiado para aquele horizonte demasiado vasto; suas pernas vacilaram, como se tivesse perdido pé, como se fosse atraído para o abismo do universo. Finalmente, em pânico, se agarrara às pernas do pai, às saias da mãe, e desatara em pranto.
Terlinck andava de um lado para outro na sala de Manola, apanhava os bibelôs sobre os móveis, tornava a colocá-los no lugar e tentava não pensar: continuava vendo, como pelo lado contrário de uma luneta, um mundo minúsculo, sua prefeitura, sua casa, os conselheiros que se instalavam ao redor do pano verde, Marthe colocando uma bolsa de água quente na cama de Theresa e o Dr. Postumus que tocava a sineta da porta, Maria que vinha abri-la, enxugando as mãos no avental...
- Sinto que o senhor está querendo ir embora...
- Sim... Não...
Mas resolveu se retirar por causa do que Manola dissera. No momento de abrir a porta, ela comentou:
- Aposto que quando o senhor passar o inglês vai entreabrir a porta... É curioso como uma mulher... Se o senhor pudesse ver os rapazes que ele recebe e ouvisse as risadas!...
- Ah?
Teria sido um constrangimento para ele repetir essas palavras.
- Virá amanhã? Ver Lina, como de costume...
- Sim, amanhã.
- Boa-noite.
Ouvia-se, bem perto, as volumosas ondas obstinadas, ressoando no mar como um canhão distante durante a guerra.
Terlinck entrou no carro, acionou o motor, mas no momento de sair de Ostende parou diante de um café: precisava tomar uma cerveja. Depois seguiu seu caminho. Sempre a mesma estrada. As dunas e, mais adian-
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te, o mar, as luzes dos barcos e o fogo giratório do naviofarol.
Ao passar diante de sua casa, procurou instintivamente a luz que sempre ficava acesa no primeiro andar, desde que sua mulher estava doente. E, como havia imaginado em Ostende, Postumus estava lá: via-lhe as costas projetadas na tela dourada do estore.
A sala dos vereadores estava iluminada. Eram seis horas. Depois de guardar o carro na garagem, dirigiu-se lentamente para a prefeitura.
Desde o pé da escadaria de pedra, reconheceu o ruído característico dos finais de sessões, a porta que se abria, as vozes, os passos, os conselheiros que se demoravam, conversando em cada degrau. A uma pergunta que lhe faziam, Kempenaar respondia com a sua obsequiosidade inata:
- Não! Ele ainda não chegou...
Terlinck subia. Os outros desciam. A escadaria, que parecia talhada na rocha, formava um cotovelo. Fatalmente, quando Terlinck atingiu a curva, viu-se frente a frente com os conselheiros.
Nada havia de extraordinário nisso; no entanto, deu-se uma parada brusca tanto de um lado como do outro. Seria porque Terlinck, em cujo olhar havia uma imobilidade anormal, estava mais impressionante do que de costume?
Acabavam de comentar sua ausência, sua conduta cada vez mais estranha. E ele subia pesadamente a escadaria, passava pelos primeiros conselheiros sem cumprimentá-los, abria caminho no meio do grupo - só trajes negros -, que se afastava para deixá-lo passar.
Kempenaar, que se achava mais próximo, jurava depois que vira tremer o lábio do prefeito. Todos sentiram, aliás, um vácuo no tempo, uma hesitação das
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palavras que iam ser ditas e que ainda havia tempo de conter.
- Leonard Van Hamme!
Todos se voltaram, uns mais acima, outros mais abaixo na escadaria. A luz tornava os rostos róseos, em contraste com os trajes negros. A barba do Sr. Coomans era a única nota de brancura.
Todos estavam de sobreaviso. Van Hamme em primeiro plano, junto a Meulebeck, incumbido de lhe carregar a pasta.
- Leonard Van Hamme - repetiu Terlinck com a voz nítida de um bedel, martelando as sílabas -, acabo de comprar sua filha!
Por um momento, o silêncio foi absoluto, e sob as abóbadas de pedra soaram apenas os derradeiros ecos da voz. Então, Leonard Van Hamme quis precipitar-se, foi contido. Todos se agitavam.
Terlinck não fugiu. Entrou tranqüilamente em seu gabinete, fechou a porta, acendeu a luz.
Seu primeiro olhar foi para Van de Vliet, que parecia não compreender.
Esperava que batessem na porta, até mesmo a arrombassem?
Nada aconteceu. Após uma rápida balbúrdia, o silêncio!
Nem mesmo Kempenaar aparecia, e quando Terlinck, depois de tê-lo chamado em vão, abriu a porta do seu cubículo, o chapéu e a capa de Kempenaar haviam desaparecido.
Terlinck estava calmo, muito calmo. Na realidade, um pouco vazio, como depois de uma crise nervosa, como Emilia ficava durante dois ou três dias, após um de seus grandes ataques de histeria.
Ia se esquecendo de Emilia!
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Só havia ele, além do porteiro e sua família, na vasta construção da prefeitura. Fechou pessoalmente as portas, apagou as luzes com um cuidado minucioso.
Depois disso, atravessou a praça, notou que a lâmpada de um lampião estava queimada e finalmente parou diante da vitrine da Van Melle.
O que havia de bom? De tanto escolher todos os dias o que havia de melhor, ele não sabia mais o que levar.
Por que não um patê?... Havia um ananás, um só, como o que havia comprado para Lina...
Comprou-o... A Sra. Van Melle olhava-o de maneira diferente dos outros dias. O que havia nele de estranho? Será que ela já sabia do incidente da prefeitura?
- Boa-noite, Sr. Terlinck!
- Boa-noite...
Um pouco mais adiante, do outro lado da rua, via-se a grande porta e o pórtico glacial do Círculo Católico, com a sua luz no primeeio andar.
Ele caminhou, com o patê e o ananás debaixo do braço, procurou a chave no bolso, entrou em casa, parou no corredor para tirar o chapéu e o impermeável.
O interior cheirava a alho. Portanto, haveria sopa de alho. Estava tudo aquecido, o ar, as paredes, os objetos, até a luz e as sombras; dir-se-ia que a casa inteira estava banhada em água morna e límpida.
Empurrou a porta da sala de jantar e viu a da cozinha entreaberta. Havia muito Maria já o ouvira entrar, e vinha ao seu encontro para apanhar os embrulhos; fungava e, como se o patrão lhe tivesse perguntado - embora ele não houvesse aberto a boca -, abanava a cabeça em sinal de tristeza.
- Muito mal? - articulou Terlinck finalmente.
- Ele acaba de sair.
'Ele', naturalmente, era o Dr. Postumus.
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- Hoje deu duas injeções... Vai voltar às nove da noite...
- Ela está dormindo?
Sinal negativo de Maria. Não! Theresa estava de olhos bem abertos, e o mais terrível é que parecia compreender o que se passava com ela e ao redor dela. Certamente também ouvira o marido chegar. Estava esperando. Sabia que ele fora a Ostende!
Um farfalhar de vestido acima das escadas: Marthe se debruçava na obscuridade.
- É você, Joris?
Ele quis subir, mas foi ela quem desceu.
- O Dr. Postumus disse que será em breve... O terrível é que ela está sabendo... Pediu ao vigário que lhe desse a extrema-unção... Ele ficou de vir logo...
Sim! E daí...
E daí? Não...
E daí? Sim...
O que podia ele dizer? Será que podia ao menos confessar a si mesmo? Seria um monstro, um animal?
Estava furioso! Furioso com a idéia de que Manola certamente fora contar a Lina a conversa nessa tarde.
Isso o exasperava...
O quarto em Ostende, junto ao cais, sua desordem, a gravidade cômica de Elsie, as uvas numa bandeja, uma garrafa de champanhe vazia em qualquer lugar, Lina sorrindo sempre, como se não compreendesse, como se nada houvesse compreendido da vida...
Assim, em toda a sua vida, ele teria...
- O vigário... - repetiu ele como se tivesse dito dó ré mi f á sol...
Em frente! Era preciso continuar!
- Maria!... O patê e o ananás!
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Primeiro, lá em cima, no segundo andar, o patê de Emilia. Ela estava agitada e eriçada como um animal que pressente a tempestade.
Em seguida, o andar de baixo, Theresa!
Paciência! Era preciso ter coragem de abrir a porta, receber o olhar dela que o esperava, que se agarrava a tudo o que pudesse haver de estranho ou inquietante nele, que questionava, pesquisava, se preocupava...
E a outra, a cunhada, Marthe, em pé como uma cariátide, a cabeça já curvada como à cabeceira de uma defunta.
- Você voltou - disse Theresa com voz débil. Por que não haveria ele de voltar? Teria ela pensado
que ele não voltaria?
Uma sombra se esboçava de cada lado do nariz. Theresa já estava deitada de costas e talvez adotasse essa posição de propósito, para juntar as mãos como uma morta.
- Emilia vai bem?
Não seria melhor ela se calar, em vez de falar com aquela voz irreal?
- Você esteve em Ostende?
Parecia até sincera, usando aquele tom de estranha doçura.
- Divertiu-se? Está contente?
À direita da cama, Marthe fitava-o e seu olhar firme parecia uma ordem.
- Como está o tempo? - perguntava Theresa como se pudesse fazer alguma diferença para ela.
Ele se surpreendeu respondendo polidamente:
- Choveu quase o dia inteiro. Agora, começou a ventar...
E se ouvia, embaixo, Maria pondo a mesa, um caminhão na rua que sacolejava sobre as pedras, os cascos de um cavalo fazendo um ruído de ferraria.
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POR UM INSTANTE, ela deu a impressão de interromper a sua dor. As feições pareceram menos crispadas; seu olhar abandonou as regiões incertas onde costumava vaguear, procurou Marthe, depois a porta e, num esforço rápido, antes de recomeçar a sofrer, Theresa sussurrou:
- Ouça o que ele faz!
Dissera 'ouça', e não 'veja'. Era quase um rito. Marthe levantou-se, suspirando, pois mal acabara de se sentar. Abriu sem ruído o trinco da porta, entreabriu-a uns poucos milímetros, e ficou ali, imóvel, um pouco curvada para a frente.
Havia vários minutos que Terlinck subira, com passos lentos e pesados, e não o tinham ouvido entrar no quarto de Emilia. Aliás, não era a hora. De sua cama, as mãos sobre o ventre, o rosto às vezes trespassado por um espasmo, Theresa fixava os olhos na irmã.
- Não ouço nada, só ouço a respiração dele. Está parado no patamar. Não acendeu a luz...
E calou-se. Falar exigia de Theresa um grande desgaste de energia. E na maior parte das vezes era inútil,
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pois Marthe compreendia quase todos os olhares da irmã.
Poderiam elas acreditar, as duas ali, juntas no quarto, uma sofrendo, a outra cuidando e velando, que na verdade nunca se haviam conhecido como adultas?
A não ser por aqueles poucos dias, seria preciso voltar atrás trinta anos, na véspera do casamento de Theresa, para citar uma noite que as duas tivessem passado no mesmo quarto. Naquele tempo, Marthe ainda não completara 13 anos. Por assim dizer, elas não se conheciam.
No decorrer daqueles trinta anos, encontraram-se apenas em ocasiões solenes, casamentos, enterros, doenças.
Contudo, Marthe ali estava e, desde o primeiro momento, fora como se sempre tivessem vivido juntas. Por acaso, elas se dariam conta de que não eram mais duas meninas, mas duas velhas feias?
Marthe foi se ocupar do fogo, pois fora preciso instalar um fogareiro maior no quarto. Preparou a próxima compressa, sem se apressar, sem impaciência, e manejava sem nojo os utensílios.
Quinze minutos se passaram, quando ela tornou a olhar para a irmã e compreendeu que ela continuava pensando no homem lá em cima, imóvel na obscuridade do corredor, junto a uma porta, cujo postigo talvez estivesse aberto.
Procurou escutar de novo. No momento em que ela girava o trinco, Joris descia as escadas com passos ainda mais pesados, mais lentos, como mais decidido do que quando subira.
Ele devia ter visto a luz por baixo da porta. Certamente hesitava em abri-la, e ouvia-se do outro lado sua respiração forte. Mas Theresa não tinha mais capacidade para pensar nele. Quando Marthe se voltou, as feições da irmã estavam mais tensas; seus lábios entreabertos dei-
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xavam ver as gengivas pálidas, e ela segurava com ambas as mãos o ventre corroído por mil dores.
Tudo o que pôde fazer, entre dois espasmos, foi apontar para a mesa, onde se achava a seringa e as ampolas de morfina.
Ninguém ouvia as pancadas do relógio da prefeitura. Por vezes o carrilhão soava mas não se sabia nem se procurava saber a que horas ele correspondia.
Joris descera ao andar térreo e entrara no gabinete. Parecia que estava ali havia muito tempo, e não se ouvia nada, nem um só movimento ou um desses ruídos leves que indicam uma presença humana.
Theresa parecia dormir. Maria subira ao quarto. Era o momento em que combinava com Marthe as disposições para a noite, fixando o revesamento de vigília, a hora das gotas e as injeções.
- Pode ir, Maria. Eu fico com ela.
- A senhora vai ficar muito cansada.
Abriam uma cama de campanha, com um côncavo no feitio de um corpo. Quando Marthe tinha tempo, desatava seu corpete, desamarrava o colete, deixava cair a saia e a anágua, estirava-se durante uma ou duas horas, soerguendo-se no cotovelo quando ouvia algum movimento na cama da irmã. Apenas uma lamparina clareava o quarto.
- Sinceramente, prefiro ficar de vigília.
A irmã já a estava chamando com o olhar, sussurrava, com as sobrancelhas dolorosamente franzidas:
- Vá ver!
Marthe desceu. As escadas continuavam às escuras e, sem saber por que, não ousou acender a luz. Bateu na porta do gabinete, ou melhor, arranhou, abriu-a em seguida e viu Terlinck sentado em sua poltrona, de olhos voltados para ela.
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Poder-se-ia supor que ele nunca a vira, que não sabia por que ela aparecera ali, mas que aquela presença lhe era indiferente.
- Você está aí! - disse Marthe para falar alguma coisa.
E relanceou um olhar rápido em torno do cômodo, onde tudo estava em ordem. Não! Não descobria nada de anormal. Ou melhor, o de que ela só se deu conta depois, subindo as escadas, o que lhe causaria uma surpreendente sensação de vazio era o fato de Joris não estar fumando!
- Ele não está fazendo nada... Está sentado tranqüilamente...
Maria suspirou e foi se deitar, não sem ter trocado um olhar doloroso com Marthe. Depois fez-se de novo um imenso silêncio no quarto em que as duas irmãs se mantinham quietas, não falavam, imobilizadas pela espera.
Foi uma surpresa, quase um alerta, ouvir de repente rangerem os pés de uma poltrona, depois, subitamente, ruídos familiares, passos, o abrir de uma porta, o clique de um comutador.
Mais uma vez, Joris estava no patamar atrás da parede, e hesitava, acabava não entrando, indo para o seu quarto, onde se estirava no leito, sem se despir.
- Procure dormir um pouco... - aconselhou Marthe, a meia-voz.
Ela estremeceu. Parecia que vinha de muito longe, em velocidade vertiginosa. Num movimento brusco, ergueu-se em sua cama de campanha, percebeu que era apenas sua irmã que, havia alguns instantes, chamava em voz baixa:
- Marthe...
Seu primeiro movimento foi apanhar o vidro de remédio. Mas não era o que pediam os olhos de The-
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resa. Então Marthe escutou e compreendeu. Eram passos no outro quarto do mesmo andar. Passadas largas. E regulares, como o movimento de um relógio. Cinco passos até a janela, um tempo de parada, em seguida cinco passos no outro sentido...
Há quanto tempo durava aquilo? Que horas eram? O despertador, sobre a mesa-da-cabeceira, havia parado e os ponteiros marcavam meia-noite e dez.
E eis que Marthe, como sua irmã, prendia a respiração. Uma primeira porta se abria, depois a do quarto. Marthe não teve tempo de vestir uma roupa. Seu cunhado ali estava, todo vestido, apenas o colarinho da camisa aberto, o colete desabotoado e os cabelos em desalinho.
A iluminação tênue do quarto acentuava seu aspecto de homem muito fatigado e, como para aumentar essa impressão, ele apanhou uma cadeira, despejou no chão as roupas que se amontoavam nela e foi sentar-se à cabeceira da cama, voltado para sua mulher.
Pouco lhe importava a presença de Marthe. Ele não a via. Sem dúvida não percebeu sequer que, não sabendo onde se meter, ela tornava a deitar-se na cama de campanha, deixando apenas uma pequena fresta entre as cobertas para poder observá-lo.
Por que Theresa fechara os olhos? Queria fazer com que ele pensasse que ela estava dormindo? Ou então esconder-lhe seus pensamentos? Com os cotovelos apoiados nos joelhos, ele a fitava e não era enternecimento o que se lia no seu rosto, não era dor, mas uma espécie de embotamento, o esforço obstinado de um homem que procura compreender.
Uma das mãos da enferma, com todos os ossos em relevo, pendia sobre o edredom e ele hesitou por muito tempo em segurá-la, estendeu lentamente seus dedos grossos para tocá-la. Mas logo retirou a mão, irritado, pois
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vira baterem os cílios molhados, surpreendera uma fresta nos olhos de sua mulher, espreitando-o.
Era bem ela! Mesmo naquele momento, fingia dormir, enquanto o espreitava para saber o que ele estava realmente pensando!
O mais extraordinário foi que ela compreendeu o gesto do marido, adivinhou que estava aborrecido, soube muito bem por quê. Então abriu os olhos cheios de água transparente. Fitou-o numa súplica silenciosa e moveu os lábios. Foi preciso um certo tempo para que deles saíssem sons.
- Você está infeliz, não é mesmo?
O que ela queria dizer? Que ele estava infeliz porque ela ia morrer? Tinha certeza de que não era aquele o pensamento de Theresa. A seu ver, ele estava infeliz por uma outra razão, por causa de Ostende.
Mas ela não podia pensar por muito tempo, de um só fôlego. Era logo tomada de alguma dor, seu corpo se retesava, as duas mãos crispavam-se sobre o ventre dilacerado, e ela abria a boca, expondo de novo as gengivas.
Ela se voltara para Marthe que se levantara da cama, mas se mantinha imóvel, já habituada àquelas crises. Ela lhe enviou um sinal de que não havia nada a fazer, e ele esperou, a cabeça curvada, o olhar fixo num ponto ao edredom.
Ele levou muito tempo sem se dar conta de um pequeno cartão nas dobras do edredom, e que esse cartão era uma fotografia. Apanhou-a, espantado.
Era um retrato que datava dos primeiros tempos do seu casamento, um dia em que os dois tinham ido a Gand para assistir aos jogos florais. E haviam aproveitado para ir a um fotógrafo.
Theresa estava sentada numa cadeira Henrique II, e era alucinante vê-la assim, tão jovem quanto Lina e, como ela, com uma covinha em cada face e o rosto ainda gracioso de uma mocinha.
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Ele estava de pé, uma das mãos pousada no espaldar da cadeira; e a outra já cerrada, com uma energia violenta.
Terlinck, alto e magro, na ocasião usava o cabelo à escovinha e uma pequena barba quadrada.
- Joris!... - chamou sua mulher.
Ele não olhou de imediato. Quando ergueu a cabeça, parecia toda voltada para ele, estendia-lhe a mão magra.
Por que sentiu ela a necessidade de dizer, assim que foi capaz de falar:
- Agora, tudo vai acabar depressa!
Como se estivesse fazendo uma promessa ao marido. Talvez, apesar de tudo, para surpreender a reação dele?
- Ele comeu?
- Sabe muito bem que nada é capaz de impedi-lo de comer! - respondeu Maria.
Ele tomara sua refeição da manhã e depois subira para o quarto da filha. Parecia fazer de propósito em agir exatamente como sempre, nas mesmas horas, com os mesmos gestos, e até contar e medir os passos.
Entretanto, foi a primeira vez que, ao cruzar a praça com seus milhares de pedrinhas roliças, não se deu conta do que fazia e, se parou diante do bando de pombos, foi inconscientemente.
No seu gabinete, não se lembrou de cumprimentar Van de Vliet. Mas apanhou no bolso do colete o estojo de sua piteira, fechou-o com o estalido habitual e chamou:
- Sr. Kempenaar, por favor!
O secretário entrou, aproximou-se da escrivaninha, parou no lugar de costume, com papéis nas mãos. Após um momento, Terlinck ergueu a cabeça e observou:
- O senhor agora não diz mais bom-dia?
- Bom-dia, Sr. Terlinck.
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O secretário não disse 'Bom-dia, Baas', como sempre o fizera. Parecia voluntariamente frio, distante, o que era um tanto cômico, pois Kempenaar era feito para a obsequiosidade.
- Que dia é hoje, Sr. Kempenaar?
- Dia 23...
- Portanto haverá reunião do conselho municipal esta tarde. A que horas?
- As três horas, Sr. Terlinck.
- Há gente esperando na ante-sala?
- Ninguém!
E esse 'ninguém' já soava como uma vingança.
- Pode se retirar. Se precisar do senhor, eu o chamo.
Nunca lhe acontecera ficar assim, os cotovelos sobre a escrivaninha, sem fazer nada. Surpreendeu-o descobrir uma faixa de sol no móvel e seguiu a pincelada luminosa até a janela, em cuja moldura se enquadrava a praça.
Estava deserta. Jamais aquela praça estivera tão deserta. Deserto o gabinete! Deserta talvez a própria prefeitura, onde não se ouvia um só ruído.
Esquecera-se de colocar o relógio de ouro na sua frente e o tempo passou, nove horas soaram, nove e meia, e ele se levantou, entorpecido, sem ter trabalhado, pôs o chapéu na cabeça e saiu.
Viu as janelas de sua casa, do outro lado da praça, a do quarto em que Theresa fora instalada, em que Marthe vagueava, com passos amortecidos, entre a cama e a lareira.
O agente de polícia o cumprimentou e ele respondeu maquinalmente, depois se dirigiu ao outro lado da cidade. Nas empenas das casas baixas haviam pintado em amarelo e vermelho: Charutos Vlag Van Vlanderen. Os seus charutos! Com a bandeira flamenga e o bonachão homem gordo, que fumava piscando um olho.
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Na época da inauguração dos novos locais da manufatura, os jornais haviam publicado: "...pela primeira vez em Furnes, as oficinas e escritórios foram projetados de acordo com os mais modernos princípios de higiene e também com o objetivo de tornar mais alegre a vida daqueles que trabalham..."
Não era verdade. Terlinck cumprira seu dever, como sempre. Já que estava construindo, fazia tudo nas condições consideradas melhores. De sua parte, nunca se sentira a gosto em salas muito claras, que davam sempre a impressão de cheirar a verniz e a pintura. Quanto à oficina, onde trabalham trinta operárias, as paredes eram decoradas com sentenças cercadas de guirlandas: "A ordem já é uma economia." "O tempo perdido não se recupera mais..." "Trabalhar alegremente é trabalhar melhor..."
O patrão passava. Era cumprimentado. Fazia sinal com a mão para que não se levantassem. Uma vez no seu gabinete, não chamou ninguém. Apenas permaneceu ali o tempo habitual.
O que havia à sua volta fora ele, Joris Terlinck, quem fizera. E também o novo hospital e o matadouro, que especialistas de Hainaut e mesmo do Brabant vinham visitar.
Mais uma vez ele notou uma faixa de sol sobre sua escrivaninha e teve um tremor nos dedos, pois a faixa luminosa lhe trazia uma baforada de outro lugar, de Ostende, mais exatamente do dique, com a areia cor de tabaco amarelo, o mar variável, mas sempre pálido, os guarda-sóis, as roupas claras nos bancos, nas cadeiras alugadas, as crianças que corriam, as bolas vermelhas que iam bater nas pernas...
Quando voltou para casa, Maria veio ao seu encontro:
- Dr. Postumus está lá em cima!
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Ele a olhou, como perguntando: "Que diferença isso faz para mim?"
Cruzou com o médico na escada e teve a impressão de que o outro estava constrangido, ao deparar com ele.
- Não creio que deva alimentar muita esperança, Sr. Terlinck - murmurou o médico.
E Joris, cinicamente:
- Não alimento coisa alguma, Dr. Postumus!
Ele chegara numa má hora. Depois da visita do médico, o quarto estava em desordem e Marthe ajudava a irmã, que fazia suas necessidades.
- Perdão... - resmungou, saindo do quarto.
Até no vão da escada um raio de sol o perseguia, e esse sol já tinha uma tepidez de verão.
- O que está esperando para servir, Maria?
- Nada, Baas!...
Enquanto ela o servia, não parou de segui-la com os olhos. Maria percebeu, pensou um instante se haveria alguma coisa ridícula em sua pessoa. Mas não era isso, ele simplesmente estava procurando inteirar-se de algo. Não fazia ela parte de sua vida havia 25 anos?
Os móveis também. Havia uns muito velhos, objetos provenientes da casa de Justus de Baenst. Não da casa de Joris, pois a família era muito pobre para possuir bibelôs interessantes ou mesmo alguma outra coisa que valesse a pena conservar. Além do mais, sua mãe ainda era viva.
Não ouvira passos, e já Marthe estava na sala. Apoiando o cotovelo no aparador, ela tirou um lenço do bolso do seu avental e pôs-se a chorar em silêncio.
Sabia que ele estava esperando, sacudia a cabeça, incapaz de falar, mas finalmente balbuciou:
- Lá em cima, eu não ouso.
Era um acesso de nervos, mas passou logo. Recuperou seu sangue-frio, enxugou o rosto, olhou-se no espelho para se certificar de que não havia mais vestígio de lágrimas. Depois fitou o cunhado, que continuava comen-
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do, e era evidente que ela não compreendia, que tentava em vão compreender.
- Não vai subir para vê-la?... Esta manhã ela comungou...
Só essa palavra quase provocou novas lágrimas.
- Não posso deixá-la sozinha por muito tempo... Terlinck terminou a refeição, dobrou seu guardanapo e ia acender um charuto, quando se lembrou a tempo que seria melhor não fumar num quarto de doente.
Ao entrar, estava frio, muito calmo. O quarto já fora arrumado. Os frascos, os utensílios, as roupas estavam em seus lugares.
E sobretudo o olhar ansioso de Theresa, que imediatamente grudava nele.
- Está melhor da sua dor? - perguntou ele.
- Acabaram de me dar uma injeção mais forte...
Era terrível! Terrível estar ali e, por ser aquele momento, apesar de tudo pensar em Ostende! O sol talvez tivesse algo a ver com isso! Todas as impressões que Terlinck conservava de Ostende, apesar dos dias chuvosos, eram impressões ensolaradas, especialmente do sol através de cortinas de musseline, projetando-se no amarelo dourado das paredes...
Não iria! Não era possível! No entanto, se quisesse...
Marthe também o fitava, sem indulgência. Ele não sabia o que fazer, onde se meter. Era muito grande para o quarto. Nem era um verdadeiro quarto de dormir... Era um quarto de guardados, preparado para a doente.
- Joris!...
Ele não gostava de ouvi-la falar, pois aquela voz quase não era mais humana. Era preciso curvar-se sobre ela para distinguir as sílabas.
- Parece que estão querendo criar problemas para você...
Maquinalmente, como se não houvesse compreendido, ele perguntou com olhar duro:
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- Quem?
Ela fez-lhe sinal que não podia continuar falando. E ele, esquecendo o lugar em que estava, voltou-se para a cunhada.
- Foi Postumus quem contou alguma coisa?
- Não... Sem dúvida para tranqüilizar Theresa, ele disse que em breve Emilia iria para uma casa de saúde...
Seria o efeito da morfina? A doente cochilava, relaxava o corpo, enquanto uma respiração irregular fazia estremecer as narinas cercadas de sulcos profundos.
- O que vai fazer, Joris? - inquietou-se Marthe, que não podia se ocupar de tudo ao mesmo tempo.
Mas ele saiu, sem responder, e foi para o seu quarto.
Um pouco antes, Theresa dissera à irmã:
- Você precisa vigiá-lo!...
O fato é que Marthe espiou pelo buraco da fechadura, viu Joris fazer a barba, apanhar no guarda-roupa seu terno preto e a gravata branca.
Elas o esperavam. Não podiam acreditar que ele não viria. Devido ao sol e ao ar brando, as janelas haviam sido abertas para o espetáculo do porto, e o odor do alcatrão e dos peixes penetrava no apartamento. Seria por ouvirem um carro parar que elas estremeceram? Elsie tentava dar uma certa ordem no quarto, como sempre, sem conseguir de todo.
Enquanto isso, na entrada de sua casa, defronte à praça, onde saltitavam pombos azul-ardósia, ele só tinha que enveredar pela viela à direita, abrir a garagem, girar a manivela do carro.
Na certa, elas se espantariam ao vê-lo vestido daquele jeito, todo de preto e branco, como no Ano Novo e nos casamentos, quando envergava sua sobrecasaca.
Sem se afastar da frente da casa, ele via pessoas dirigindo-se à prefeitura, esperarem umas pelas outras
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no alpendre e fumarem mais um pouco, conversando, antes de entrar.
Logo atrás da prefeitura, ficava o prédio em que ele havia morado com sua mulher, num modesto apartamento de dois cômodos, quando trabalhava ainda com Bertha de Groote.
Bertha também morrera.
Deu alguns passos. Sentia a garganta seca. Através das cortinas do Velha Torre, constatou que não havia ninguém no café e entrou, atravessou toda a sala de assoalho coberto de serragem.
- Uma velha genebra - pediu ele.
Quando olhou para Kees, notou o outro, que era conselheiro comunal, já vestido para a sessão. A parede, a que Terlinck dava as costas, se refletia no espelho, e ele notou algo de anormal. Voltando-se, com o copo na mão, ficou um momento parado.
Os dois anúncios de seus charutos não estavam mais na parede! Não tinham se dado sequer ao trabalho de substituí-los, e eram ainda visíveis dois retângulos mais claros no papel pintado de falso veludo de Utrecht.
- Quanto lhe devo?
- Dois francos, Sr. Terlinck.
Kees, também, acabava de chamá-lo pelo seu nome, em vez de Baas.
O funcionário, vestido a rigor e com sua corrente de prata, sacudira duas vezes a sineta nos corredores e salas. Nunca houvera tanta demora para abrir uma sessão.
As 36 poltronas na sala estavam dispostas em círculo, e pouco a pouco o veludo encarnado dos assentos iam sendo substituídos por um traje preto, por uma silhueta mais ou menos pomposa, encimada pelo rosa ou o branco de um rosto.
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Conselheiros se demoravam atrás das portas. Embora ainda não fosse noite, os lustres estavam acesos, difundindo uma luz dúbia, que dava às pessoas aparência de retratos.
Por detrás das poltronas dispostas em bancada, uma barreira separava os conselheiros do público em pé, composto de velhos, aposentados ou curiosos que ali se achavam havia mais de uma hora e que esperariam pacientemente o tempo necessário.
Kempenaar tinha uma mesinha à parte, coberta com um pano verde. A sineta soou uma última vez por toda a prefeitura, e pessoas tossiram, portas se fecharam, Terlinck, sem cumprimentar ninguém, saiu do gabinete e veio sentar-se em seu lugar, entre os vereadores.
- Senhores, está aberta a sessão.
Não estavam todos ainda bem-instalados. Necessitavam de alguns minutos até encontrarem posição mais confortável. As cortinas de veludo púrpura não deixavam passar senão uma fresta de luz, e os lustres, no falso dia, pareciam lamparinas.
O Sr. Coomans tinha um ar grave. Em pé, junto à mesa presidencial, ele parecia estar sentado, tão baixa era a sua estatura. Olhava uma por uma as pessoas à sua volta, esperando que cessassem as tosses e o ruído ainda mais irritante de pés remexendo no assoalho.
- Senhores, antes de passar à ordem do dia, creio ser do meu dever, como presidente desta assembléia...
As portas estremeciam, pois não estavam de todo fechadas e por trás delas funcionários, que com certeza não queriam aparecer em público, tentavam ver e ouvir.
A voz do Sr. Coomans ressoava. A acústica da sala de sessões era tão boa que as mínimas palavras ali pronunciadas assumiam uma solenidade excepcional.
- ...Como quase todos os presentes sabem, a nossa prefeitura foi ontem o cenário de um incidente, como
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creio poder afirmar, nunca visto no decorrer de sua história secular...
Cabeças balançavam em sinal de aprovação. Duas ou três vozes murmuraram:
- Muito bem!
- Por outro lado, desde esta manhã, a personalidade que preside os destinos de nossa cidade está sob um inquérito judicial, a respeito da qual não posso dizer mais nada...
O movimento das cabeças era agora da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, conforme o lugar de cada um, pois todos sentiam necessidade de relancear um olhar a Terlinck.
- Em qualquer outra circunstância, eu teria sido o primeiro a exigir explicações do primeiro magistrado de Furnes. Assim, o debate a ser aberto seria... seria...
Nessa altura pôde-se ver como o tabelião Coomans estava emocionado: procurou em vão a seqüência de sua frase, depois fez um gesto largo, como que renunciando a prosseguir.
- Em resumo... os senhores tampouco ignoram que dolorosas razões de família, perante as quais nos inclinamos, nos impedem neste momento de sobrecarregar um homem já sofrendo tantas provações... É por isso, caros colegas, que me dirijo ao prefeito Terlinck e lhe pergunto se não julga mais digno, para si mesmo e para a cidade de Furnes, enviar imediatamente o seu pedido de demissão ao rei...
O sol ainda brilhava numa parte, numa pequena parte da praça. A criada do café de Kees, encarapitada numa escada dupla, lavava a fachada do estabelecimento.
Na sala do conselho não se via nada a não ser o lustre e, na luz tênue, os trajes negros, as fisionomias, os bigodes, as barbas, a mesa verde de Kempenaar e, finalmente, a silhueta de Joris Terlinck, que se erguia.
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No mesmo instante, como num movimento de balança, o pequeno tabelião Coomans se sentou. As portas estremeceram. Os gonzos gemeram.
- Senhores...
Novo movimento de cabeças, dessa vez lateral, pois Terlinck os olhava uns após outros, e uns e outros sentiam necessidade de desviar os olhos.
- Senhores, peço respeitosamente ao presidente do conselho municipal que prossiga com a ordem do dia...
Estavam todos esperando a última sílaba em absoluto silêncio, numa imobilidade quase inumana. Depois as pernas remexeram, as solas dos sapatos rangeram no assoalho e nas últimas fileiras ouviram-se murmúrios.
- Senhores! - exclamou o presidente Coomans. Então, assistiu-se a um fato único, verdadeiramente
único, na história da prefeitura de Furnes. Joris Terlinck sentara-se de novo. Talvez não se desse conta do que fazia? Do bolso do colete ele tirou o estojo que continha a cigarreira de âmbar.
Depois, embora fosse estritamente proibido fumar durante a sessão, escolheu um charuto, cortou-lhe a ponta com os dentes, riscou um pau de fósforo.
- Senhores... Um pouco de silêncio, por favor!... O conselho passa agora à ordem do dia... A primeira questão inscrita é...
Kempenaar, que não esperava aquele prosseguimento, folheava os dossiês, que preparara com tanto cuidado, encontrava a página, levantava-se, percebia que se enganara, tornava a remexer nos papéis.
- "Pedido de subvenção de..."
E todo mundo parecia hipnotizado pelo charuto de Terlinck.
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A
UNIÃO DOS SINDICATOS de iniciativa de La Panne, Coxyde e Saint-Idesbald, considerando que a cidade de furnes, pela sua situação, se beneficia diretamente do afluxo de estrangeiros nas supracitadas praias; considerando, por outro lado, que o momento é propício para... "
Kempenaar ergueu a cabeça, constatou que todas as pessoas olhavam para uma mesma porta e olhou também. Mas já era tarde. Somente uns poucos haviam entrevisto o uniforme preto, os galões e o cordão de prata de um guarda que parlamentava com o funcionário municipal. Agora a porta se fechara, a calma se restabelecera, e o funcionário, esgueirando-se entre as poltronas, aproximava-se de Joris Terlinck para lhe entregar uma carta.
"...que o momento é propício para... "
Não encontrava a linha, sabia perfeitamente que ninguém o ouvia. Tinha vontade, como os outros, de observar o prefeito abrindo o envelope e lendo a carta.
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"...propício para... Ah, sim!, intensificar a propaganda, sobretudo no estrangeiro, nos países de câmbio forte, solicita da municipalidade de Furnes que se disponha a lhe conceder uma subvenção excepcional de vinte mil francos. "
Consciencioso, Kempenaar tornou a pegar a folha que já largara sobre a mesa e repetiu:
- Sim... são mesmo vinte mil...
Terlinck, a carta aberta na sua frente, os braços cruzados no peito, o charuto com a piteira de âmbar na boca, era o mais imóvel, o mais calmo da assembléia.
Estava consciente de que todos os que o olhavam, nos degraus em hemiciclo, sabiam mais ou menos o conteúdo da carta, e, finalmente, compreendeu as palavras ameaçadoras do presidente Coomans.
Senhor prefeito:
Tendo telefonado em vão para o senhor esta manhã, julgo do meu dever adverti-lo de que há contra a sua pessoa um pedido de informação judicial. Após certo número de cartas anônimas, veio ter às minhas mãos uma carta, assinada por numerosos cidadãos de sua cidade, a respeito da situação bastante especial de um membro de sua família e do tipo de vida que leva em seu lar.
Não ignoro que o estado de saúde da Sra. Terlinck lhe causa grandes preocupações e esperarei alguns dias para proceder a um interrogatório sobre o assunto em questão.
Receba, senhor prefeito, as minhas distintas saudações.
O procurador do rei, Tihon
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Terlinck ainda não os desafiava. Olhava tão comportadamente para Kempenaar que se poderia jurar que ele assistia a uma sessão como todas as outras.
...a comissão de finanças, após ter deliberado, propõe ao conselho a aprovação...
Kempenaar tornou a sentar-se e Coomans pôs-se de pé. Havia pressa tanto da parte de um como do outro, uma espécie de constrangimento que, em sua precipitação, eles procuravam disfarçar.
- Alguém pede a palavra sobre a questão da subvenção a ser concedida ao sindicato de iniciativa?
Cuidadosamente, Terlinck pousou o charuto no rebordo da prancha ao seu lado, depois levantou-se com tal lentidão que parecia mover umas após outras as juntas do seu corpanzil.
- Está com a palavra o senhor prefeito.
- Senhores... Há uns quatro anos, lembro-me de ter entrado num aeroplano, que veio a furnes para oferecer batismos de vôo. O nosso distinto presidente, Sr. Coomans, também embarcou e, se não me engano, esqueceu-se de pagar sua passagem...
Ninguém riu. Não estavam compreendendo. E ele ainda dera toda a amplitude à sua voz, que de hábito iria repercutir em ecos sonoros por todas as paredes do hemiciclo. Parecia estar procurando as suas palavras, o seu tema.
Até esse ponto, ele mantivera os olhos fixos no assoalho na sua frente e só agora levantava gradualmente a cabeça.
- Quando me vi no ar, avistei a torre e a prefeitura, a flecha da igreja Sainte-Walburge e mais outros campanários em profusão em torno de nossa praça...
Nunca em toda a sua vida, estivera tão calmo, tão lúcido. Realmente, assistia-se a um fenômeno extraordi-
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nário. Terlinck fitava os seus colegas de preto, os rostos rosados à luz pálida do lustre, estudava-os um a um e, ainda que continuasse falando, tinha tempo de pensar, de se lembrar de um ou outro evento.
Não só ele os via, mas via a si mesmo, como se estivesse em outro lugar; via-se grande, volumoso, muito teso, e sabia que estava lívido, que suas feições, à força da rigidez, os apavorava.
Lançava sua voz contra as paredes, e a voz lhe voltava; ele a ouvia antes de prosseguir. E as pessoas nos corredores comprimiam-se para poder vê-lo pelas frestas estreitas.
- ...Vi também, em torno desses monumentos, em torno do que chamamos 'a cidade', casas baixas, térreas, muitas vezes ainda cobertas de palha esverdeada e, em redor de cada uma dessas casas, um pedaço de terra cultivada, um pasto, canais de irrigação cuidadosamente mantidos... Mais adiante, nas dunas, surgiam outras construções, telhados vermelhos e pitorescos, as casas de campo, as cidadezinhas artificiais, que se enchem no verão de gente vinda de outras partes e que, quando chega o inverno, suas ruas demasiado largas se esvaziam como canais desativados... E naquele momento compreendi, meus senhores, a alma de furnes!
Não era verdade; era agora que ele a compreendia! Compreendia tudo. Via. Olhou para seus colegas que, uns após outros, baixavam os olhos.
- ...Compreendi que, nesse pedaço de província, que nossos antepassados conquistaram ao mar, o que conta, o que importa, são as choupanas precedidas de uma cerca e aqueles homens, aquelas mulheres de touca branca que, do princípio ao fim do ano, se curvam sobre um pequeno pedaço de terra... Compreendi que a cidade, com sua prefeitura e suas igrejas, só estava ali para servir de ponto de concentração, e que o nosso mercado do sábado, nossas feiras de cavalos e outros animais
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são solenidades mais veneráveis do que a própria festa do Santíssimo Sacramento.
Algumas pessoas se agitaram ou tossiram. Ele esperava. Dispunha de tempo. Era o seu dia, de que ninguém iria privá-lo.
Sentia-se maior do que todos eles, maior do que ele próprio fora até então!
Poderia, com uma lucidez milagrosa, delinear sua vida tal como realmente havia sido e tal como finalmente ele a compreendia, desde a modesta habitação de Coxyde, a choupana de cerca verde, que acabava de descrever, até aquele minuto, passando pelos dois cômodos dos primeiros tempos de seu casamento e pela tabacaria da Sra. de Groote.
- Porque alguns entre os senhores, eu poderia mesmo dizer a maioria, que ganharam quantias vultosas especulando com terrenos à beira-mar, esqueceram-se, senhores, da razão de ser de nossa cidade.
"Querem agora fazer dela a capital de cidades-fantasmas, em que não se vive mais do que dois meses por ano, mas que rende bons lucros.
"E não pensam que, cada vez que uma casa de praia, um hotel se ergue na duna, é preciso que um homem, uma mulher, abandonem uma daquelas choupanas incrustadas nos campos, que troquem suas roupas por um uniforme para trabalharem como criados de gente que não é da nossa terra.
"Eles também irão ganhar muito mais dinheiro. Aprenderão línguas estrangeiras e novas maneiras!
"Mas acreditam os senhores que irão voltar um dia para o campo?
"Não imaginam os senhores que um dia não haverá mais ninguém, no sábado, para trazer para a praça nossos ovos, nossas aves, nossos legumes e que não ouviremos mais no calçamento de nossas ruas ecoarem as pesadas patas dos nossos cavalos de tração?..."
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Na frente dele, um filete de fumaça azul subia da cinza imaculada do charuto.
Terlinck não tinha pressa; no momento que se calasse, seria o fim. Não dizia as palavras que queria, as que pensava. Não poderia e, aliás, não eram pensamentos que procurava expressar.
Talvez fosse por acaso, ou para se preparar, que ele mencionara o caso do avião e da paisagem avistada, no dia em que sobrevoara a cidade e suas cercanias. Mas correspondia bem, naquele instante, à sua visão dos fatos, não apenas das pessoas e dos fatos, mas ainda do passado, do presente e do futuro.
Todos os presentes ouviam a sua voz estremecer e não conseguiam compreender. Talvez estivessem inquietos, pois o prolixo discurso de Terlinck não era o que haviam esperado.
Quanto a ele, via uma comprida fileira de caminhões carregados de sacos de trigo e monumentais carretas de palha, animais que baliam e rinchavam, charretes com camponeses vestidos de preto, dirigindo-se para a cidade, e vidas que também caminhavam, meninos que partiam de uma choupana e que se tornavam rapazes, meninas que prendiam os cabelos e encompridavam suas saias, cortejos que entravam em igrejas e saíam, uns claros, outros sombrios, ao som do mesmo badalar dos sinos...
- É nesta prefeitura, senhores, que devem vir se concentrar...
Pareceu procurar alguém com os olhos: Van de Vliet, que continuava imóvel em seu quadro, na parede.
- ...Não somos senão o fruto dessas centenas, milhares de choupanas, e o dia em que tiverem a infelicidade de se esquecer disso...
Por que não era possível materializar sua visão, mostrar-lhes o que ele estava vendo, inclusive a Sra. Terlinck em seu leito, Marthe de chinelas atarefando-se em
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redor da irmã e lá em Ostende, bem no final daquele caminho artificial à beira-mar, um quarto em que Lina, Manola e Elsie...
Deixara a sua frase em suspenso, e algumas pessoas aproveitaram para descruzar as pernas ou tornar a cruzá-las. Sabiam também que esse seria o derradeiro discurso de Terlinck e aguardavam polidamente, com certo embaraço, certa piedade.
- ...Talvez aqueles que construíram as cidades não se tenham dado conta dessas harmonias maravilhosas. Da mesma forma o homem, à medida que se desenrola sua vida, não se dá conta das conseqüências de...
Ele notou, na primeira fila, alguém que não estava mais ouvindo e que lia um prospecto na sua frente. As portas não mais fremiam da mesma maneira, e sem dúvida a atenção, detrás delas, se dissipara. Alguns se voltaram para olhar um velhinho que tossia desesperadamente e não conseguia recuperar o fôlego.
Então, fez-se um longo silêncio, tão longo que os presentes se perguntavam o que teria acontecido.
Desejava tanto... Aquela era a sua única oportunidade de concentrar tudo o que sabia, tudo o que aprendera, tudo o que enfim estava compreendendo, tudo o que sentia com tal força que chegava a convulsionar-lhe o peito...
Baixou a cabeça, desanimado, notou seu charuto que continuava fumegando, o apanhou e o apagou, esmagando-o no rebordo da prancha.
- Senhores, oponho-me à outorga dos créditos ao sindicato de iniciativa e, no caso de serem concedidos, eu renunciaria a presidir os destinos de nossa cidade.
Pronto! Libertara-se! E tornou a sentar-se, indiferente dali por diante ao que eles iriam fazer ou pensar.
- Senhores, se ninguém mais pede a palavra, vou pôr em votação a proposta da comissão de finanças...
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A primeira votação será de mão erguida... Os que se opõem à outorga dos créditos levantem a mão...
Terlinck sorriu, o que não lhe acontecia fazia muito tempo, pois havia os que, como sempre, não tinham compreendido e não sabiam se deviam ou não levantar a mão e que esboçavam um gesto tímido.
- Repito que aqueles que são contra a outorga dos créditos, isto é, estão de acordo com a opinião do prefeito Terlinck, levantem a mão.
Contaram-se duas ou três mãos levantadas no fundo da sala e um dos que assim votaram ficou rubro ao constatar que todos o olhavam.
- A votação contrária... Senhores, a proposta da comissão de finanças está aprovada.
Coomans voltou-se para Terlinck e os conselheiros se levantaram, pessoas começaram a falar a meia-voz atrás da barreira do público.
- Assim sendo, enviarei a minha demissão ao rei... Simples obra do acaso: justo nesse momento, ele se
voltou para Leonard Van Hamme e este, afundado em sua poltrona, sentiu-se tão constrangido que entabulou conversa com um vizinho.
O sorriso continuava nos lábios pálidos de Terlinck, disfarçados pelos bigodes ruivos. Ninguém mais permanecia em seu lugar. Para dar certa ordem à desordem, o Sr. Coomans batia na mesa com o seu corta-papel e gritava com voz estridente:
- Senhores, está suspensa a sessão...
Ouviu-se também o estalido peculiar do estojo que se fechava sobre a cigarreira de âmbar de Terlinck. Ele quase esqueceu sobre a prancha a carta do procurador, teve de voltar, e as pessoas se afastaram para lhe dar passagem. E se afastaram também quando ele se dirigiu para a porta, que o funcionário acabava de abrir.
Caminhava lentamente, como num cortejo e, sem saber por que, tinha a sensação de uma apoteose. No
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corredor, viu o rosto de Maria, mas ia tão absorto que a criada teve de puxá-lo pela manga no momento em que ele ia penetrar em seu gabinete.
- Baas!... Venha depressa...
Já tinha a mão no trinco de bronze cinzelado. Teria preferido abrir a porta, dizer adeus a Van de Vliet.
- ...A senhora está agonizando...
Outras pessoas ouviram o que Maria dissera. Acompanharam com os olhos os dois descendo a escadaria, Terlink sem chapéu, seguindo em silêncio a criada.
- Eu estava aqui há uns cinco minutos... Espero que não cheguemos tarde demais!...
Ela chorava sem chorar, andava quase aos tropeções. Entrementes a noite caíra, e os lampiões estavam acesos, todas as janelas da casa de Terlinck iluminadas.
Quando abriu a prota, ele foi rodeado de um silêncio espesso. Havia pessoas de pé, cercadas pela luz fraca, algumas se confundindo com as sombras. Marthe estava junto à cama, os olhos secos, mas o nariz vermelho. Apoiado à lareira, Dr. Postumus baixava a cabeça. E junto à janela havia duas mulheres de preto, muito retesadas, duas velhas que estavam sempre presentes quando alguém na cidade morria. Teria sido Maria quem as chamara? Tinham elas se aproveitado da porta aberta? Ambas choravam de lenço na mão. E já estavam vestidas de luto!
Uma delas fechou a porta, enquanto Terlinck se adiantava, hesitante, até o centro do quarto.
- Theresa! - murmurou Marthe, curvando-se sobre a irmã. - Theresa... É o seu marido... É Joris... Está me ouvindo?
Theresa tinha os olhos fechados, o rosto sem cor, uma depressão tão escura e profunda dos dois lados do nariz que dava a impressão de que estava manchada.
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Ainda respirava. Marthe via, sentia que ela respirava, participava sem querer do seu esforço, e tinha os olhos fixos no lençol que arfava em ritmo curto, com medo de vê-lo subitamente imobilizado.
- Theresa!... Seu marido...
Ela fez sinal a Terlinck que se aproximasse, e ele obedeceu automaticamente.
Compreendeu que devia debruçar-se também, sem saber ao certo por quê. Irritava-se com a presença de estranhos e quase se voltou para lhes dizer isso.
Mas não teve tempo. Um tremor percorreu as pálpebras que se entreabriram várias vezes. Delas filtrou um olhar, imediatamente pousado sobre Terlinck. Os lábios brancos f remiram; ele entreviu os dentes que não davam mais a impressão de matéria viva, mas de porcelana.
Viu então que tinha entre as suas a mão da mulher. Ela não pudera falar e o olhava, fazia um esforço enorme para colocar uma pergunta nesse olhar.
Pelo espaço de um segundo, poder-se-ia crer que ela ia chorar. Algo como uma brisa sobre a água passou em seu rosto, que estremeceu, depois insensivelmente se imobilizou, ao passo que as pálpebras permaneciam abertas, mas os olhos não viam mais.
Terlinck não pensou em se afastar imediatamente, e ninguém ousou tirá-lo dali. Sim, ele compreendera o olhar! Mas, durante toda a vida em comum com Theresa, houvera algo mais do que olhares entre os dois? E não era através dessa interpretação que eles diziam o que tinham a se dizer?
Fora uma pergunta que ela lhe fizera. Uma pergunta bem simples, banal. Perguntava-lhe se ele ainda era o prefeito ou se o haviam derrubado.
Terlinck tinha certeza! Podia jurar que ela só havia esperado por isso para morrer, que esperara o fim da sessão, como outras pessoas haviam esperado no Velha Torre ou na praça.
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Theresa sabia muito bem, ela que...
- Venha, Joris...
Ele se deixou levar para longe da cama e viu o Dr. Postumus curvar-se sobre a morta.
Não chorava. Não estava com vontade de chorar. Vacilou um pouco, mas não por muito tempo. Ouvia os soluços roucos de Maria atrás da porta, olhou para as duas mulheres de luto.
- Quero que se retirem - disse-lhes calmamente. Marthe se interpôs:
- Mas, Joris, preciso delas para... Ela não ousava pronunciar a palavra.
- Vamos, saiam daqui! - insistiu ele.
- Sr. Terlinck - protestou uma delas.
- Nada de Sr. Terlinck! Fora!...
E depois de abrir a porta para as carpideiras, ele se aproximou do médico.
- E o senhor, Dr. Postumus...
- Já terminei... Vou embora... Mas antes quero apresentar-lhe...
Marthe ficou estupefata ao ouvir seu cunhado replicar:
- O senhor apresentará a conta de seus honorários, e basta isso!
Seria possível que Marthe e Maria não compreendessem que ele queria todos os estranhos fora dali, queria fechar a porta de uma vez por todas, sentir-se em sua casa? Não compreendiam que essa atitude derivava do mesmo princípio que do seu discurso daquela tarde, do panorama da torre e dos campanários em meio das casas baixas e dos campos; e de toda a sua vida, da sua filha, lá em cima; e até mesmo de sua recusa de reconhecer o filho de Maria e de lhe dar dinheiro?
- Fechem a porta à chave - recomendou ele. Era curioso: adivinhava os olhares de Marthe, como
costumava adivinhar os de sua mulher! Era o mesmo tipo
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de olhar. Ela o observava, ansiosa, assustada com a sua calma.
- O que vai fazer? Simplesmente o que ele devia fazer!
- Diga a Maria que vá avisar o tapeceiro. Ele já deve ter voltado da prefeitura...
- Não acha que haverá tempo amanhã, Joris?
- Não!
Pois Theresa não devia permanecer naquele quarto, que só passara a ser seu por uma questão de circunstância, entre vidros de remédio, roupas de cama, todas as coisas que lembravam a doença. E Terlinck tampouco queria permanecer ali.
- Deve dizer-lhe que prepare tudo em meu gabinete... Pode-se empilhar os móveis na sala de jantar...
Marthe teve de deixá-lo sozinho, enquanto ia dar as ordens. Quando voltou, ele continuava de olhos secos, a fisionomia tranqüila. Mas as pálpebras da morta haviam sido fechadas.
- No armário do patamar, você deverá encontrar a camisola de rendas, que ela usou para o batismo...
Era ao batismo de Emilia que ele se referia. Não esquecia detalhe algum.
- A camisola está na prateleira de cima, embrulhada em papel de seda...
E notando que os cabelos ralos de Theresa pareciam ainda mais ralos, agora que estava morta, acrescentou:
- Há também uma touca... Não sei onde ela a guardou...
Depois saiu do quarto para ir tirar a gravata branca e o colarinho postiço, trocar os sapatos de verniz por chinelos. Quando reapareceu, acendera distraidamente um charuto, mas hesitou no limiar do quarto e o apagou.
- Não pode fazer isso você mesmo, Joris!
- Por quê?
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- Se não quer pessoas estranhas, pelo menos me deixe uns momentos com Maria... Vá para o gabinete. Eu o chamarei...
Terlinck sequer encolheu os ombros. Foi ele quem descobriu o corpo emagrecido da sua mulher e ordenou:
- Traga-me água morna...
Marthe obedecia, ia e vinha pela casa, esforçando-se por não fazer barulho, estremecendo, se resvalava na ombreira de uma porta. Terlinck era o único a falar com voz normal, a não andar na ponta dos pés.
- Maria já voltou?
- Já... O tapeceiro está lá embaixo... Ele diz... Terlinck não esperou para saber o que dizia o tapeceiro.
- Vou falar com ele.
O homem ainda estava com o traje negro que usara para assistir à sessão do conselho. Não sabia como se comportar. Havia preparado palavras adequadas ao momento.
- Sr. Terlinck, acredite que, apesar...
- Precisa ir imediatamente trocar de roupa, Sr. Stevens. Volte com o seu ajudante e transforme imediatamente este cômodo numa câmara-ardente.
- Não acha que, se amanhã bem cedo...
- Eu disse esta noite, Sr. Stevens! Apenas a porta da entrada poderá deixar para ornamentar amanhã.
Depois de o tapeceiro se retirar, abriu a porta do gabinete, a da sala de jantar, e começou a retirar os móveis sozinho.
Quando, bem mais tarde, entrou na cozinha, havia despido o paletó e gotas de suor luziam em sua testa.
- Maria! Providenciou o jantar de Emilia?
Teve a impressão de que Maria tremia de medo, mas deixou para depois perguntar a si mesmo o motivo daquele medo.
- Não, Baas... Há restos no armário... Podia-se...
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- Que horas são?
- Sete horas...
- Corra até a salsicharia Van Melle... Ainda está aberta... Compre uma costeleta...
Nas escadas, encontrou a cunhada. Como Maria, ela teve um estremecimento, apenas menos violento.
- O que vai fazer?
- Levar a cama para baixo.
- Acha que há razão para você fazer tudo isso sozinho?
Ela o ajudou. Era a cama do quarto grande, a cama que sempre fora de Theresa. Levou para baixo as guarnições. Marthe o ajudou a carregar o colchão.
- Sabe onde estão os lençóis?
Maria voltou, ele vigiou a costeleta no fogão, levou-a para cima, como nos outros dias, para Emilia, que estava aturdida com a agitação que ouvia na casa. Mal pôde aproximar-se da filha. Parecia amedrontada. Depois de colocar o prato na mesa-de-cabeceira, ele saiu recuando de costas, tomando o cuidado de não assustála mais ainda.
- Quem fornece os círios?
- Em geral é o cliente que...
- Maria! Corra à casa do sacristão de Sainte-Walburge... Peca-lhe uns círios...
Maria se pusera de pé.
- Parece que estou numa casa de loucos! - soluçou ela encaminhando-se para o corredor. Círios a esta hora!
Mas voltou para perguntar, chorando: . - Brancos ou amarelos?
- Joris... - murmurou Marthe, em tom de censura.
- Preferia que fossem eles?
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Ela não se atrevera a olhar. Fora ele quem fizera a limpeza da morta e agora a erguia nos braços, dirigia-se para a porta, descia as escadas, tendo o cuidado de não esbarrar nas paredes com o seu fardo.
E pensava em tudo.
- Vá buscar um pente...
Pois mechas de cabelos rebeldes escapuliam da touca e davam uma impressão de desmazelo.
- Joris!
Dir-se-ia que Marthe tinha medo do cunhado, de sua calma, de seu sangue-frio. Ele se lembrava de detalhes que a ninguém mais ocorrera.
- Há um outro candelabro de estanho numa cesta, que deve estar no patamar... Maria!... Vá ver...
Na cabeceira de cada cama da casa havia um galho de palhinha santa. Foi também ele quem escolheu um copo de estanho para a água benta.
- Devia se alimentar um pouco, Joris... Talvez, se tomasse uma bebida?...
E o olhar de Terlinck perguntava simplesmente:
- Por quê?
Faltavam ainda uma mesa de centro e uma bandeja para os cartões de visita. De quando em quando, ele se detinha no meio de um gesto para ficar à escuta. Era alguém na rua que se dirigia ao Velha Torre e que hesitava um momento diante da casa.
- Amanhã, Marthe, você irá ao jornal para o anúncio fúnebre...
Maria apareceu.
- Se ninguém vai comer, eu tiro a mesa.
- Daqui a um instante - prometeu ele. - O que há para o jantar?
Não se esquecera de nada? Ah, o terço! Foi buscálo no quarto e o colocou entre os dedos que já pareciam de cera.
218
- É preciso mandar um carro para apanhar minha mãe amanhã de manhã. Contanto que ela não esteja no mercado!... Venha, Marthe. Agora podemos jantar.
Terlinck fechou com cuidado a porta. Na sala de jantar, atulhada de móveis do gabinete, desdobrou seu guardanapo.
- Maria, pode servir!
E como Marthe não conseguia mais se conter e desatava finalmente em pranto, ele a fitou com um ar de censura.
- Mas o que Maria está fazendo? O jantar já estava pronto há uma hora atrás, e...
Levantando-se da mesa, entrou na cozinha, viu a porta do alpendre do fundo balançar e a abriu bruscamente.
- Escute, Baas... - desculpou-se a criada.
Ele se deteve. Na semi-obscuridade do alpendre, iluminado apenas pelos reflexos da cozinha, reconheceu Albert, em pé, numa atitude ao mesmo tempo lastimosa e hostil, um Albert em traje civil, de olhos febris como os do outro, Jef Claes, que certa noite...
- Eu disse a ele, Baas, que foi malfeito e que seria melhor...
Terlinck sequer deu atenção. Deixou-o ali, sem nada lhe dizer.
- Pode servir, Maria.
Marthe assoava o nariz todo o tempo. Ele tomava sua sopa, ouvia Maria ir e vir. Quando ela voltou para trocar os pratos, perguntou-lhe:
- Ele quer dinheiro para atravessar a fronteira? Maria não respondeu. Chorava, deixando cair livremente as lágrimas.
- Minha carteira está na roupa preta... Só tem que lhe dar mil francos...
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E permaneceu à mesa até o fim do jantar: comeu o queijo, a salada, a sobremesa. Marthe, que não se agüentava mais, havia subido.
Sozinho, ele abriu a porta da câmara-ardente e foi se sentar numa das duas cadeiras, que deixara porque eram de madeira preta.
Houve ainda alguma agitação na casa. O carrilhão da prefeitura soou diversas vezes, fazendo-se depois o silêncio mais absoluto, o vazio mais total, e finalmente os batentes do café de Kees se fecharam com estrondo, enquanto passos se afastavam em todas as direções. Podiam-se ouvir conversas de pessoas, que se afastavam, a mais de trezentos metros.
Quando, timidamente, Marthe empurrou a porta e arriscou um olhar semelhante a todos os olhares da família, furtivo, prestes a ser reabsorvido, Terlinck continuava sentado no mesmo lugar, diante de sua mulher imóvel, sua mulher Baenst de solteira, cujo catafalco se ergueria na igreja, sobre a laje já marcada com o nome dos Baenst, laje essa que ela pisara milhares de vezes, cada vez que ia à missa, às vésperas ou às bênçãos, e sobre a qual se ajoelhava antes de sentar no banco.
- Devia ir deitar-se, Joris!
Mas a fisionomia do homem que voltou a cabeça para ela era tão grave, de uma gravidade tão suave, tão serena, que Marthe não ousou insistir e ajoelhou-se no genuflexório, fez o Sinal-da-Cruz e ali ficou, com o rosto enterrado nas mãos.
220
VII
NO DIA DO ENTERRO, uma mulher murmurou: - Ele diminuiu pelo menos dez centímetros! E nas fileiras dos fundos, onde se comprimia a gente mais modesta, alguém comentou:
- Ele parece o marido de sua mãe...
Houve um certo receio, no momento da cerimônia obrigatória de desfilar diante dele e apertar-lhe a mão, pois Leonard Van Hamme estava presente e desde a véspera exercia a função de prefeito, enquanto esperava a sua nomeação.
O Sr. Coomans e o advogado Meulebeck estavam postados atrás dele. Haviam escalado o senador de Grooter para passar na frente, a fim de dar ao desfile um cunho oficial.
- ...Sinceras condolências... - balbuciavam as
pessoas ao passarem.
E se inclinavam diante de Marthe, que mal se distinguia sob o véu, depois diante da franzina Sra. Terlinck, e por fim diante de parentes da família de Baenst, que não conheciam.
221
Somente Terlinck parecia pensar em outra coisa, e às vezes olhava em seu redor no cemitério, como se estivesse acompanhando o vôo de um pássaro ou observando a folhagem de uma árvore.
- ...Sinceras condolências...
Leonard passou como os outros. Terlinck apertoulhe a mão como aos outros e inclinou-se ligeiramente como fazia a cada vez.
O procurador do rei esperou vários dias, e então viuse um carro parar defronte da casa de Terlinck e cinco pessoas saltarem do seu interior. Dr. Postumus chegou a pé.
Terlinck subiu com eles, polidamente, tão polidamente que ainda lhes fazia medo, apesar do seu ar fatigado.
- Procurem não excitá-la muito! - recomendou ele.
Abriu a porta, não pareceu sequer ouvir as exclamações dos outros. Nem comentários deste teor:
- O que é isto? - perguntava um jovem juiz de instrução, estendendo o dedo que passara sobre o enxergão.
- Matérias fecais! - respondia Postumus.
- De quantos dias calcula que sejam?
- Cinco, seis dias...
- Essas feridas nunca foram tratadas?
Esquadrinhavam toda a mansarda, verificavam a solidez das grades que Terlinck chumbara na trapeira. Depois Maria foi chamada e subiu as escadas, erguendo a saia com as duas mãos.
- Esta porta sempre esteve fechada? Quem tinha a chave?
- O Baas...
As vezes, olhando para Terlinck, tinha-se a impressão desagradável de vê-lo sorrir.
Seria impossível que, se ele quisesse...
222
O grupo insistia, uma vez começado o inquérito. E todos sabiam tão bem o que tinham vindo fazer, as decisões já estavam tão tomadas que se fizeram acompanhar de uma ambulância.
Postumus estava cômico. Não ousava olhar para Terlinck, caprichava em só falar em termos técnicos.
- Em suma, estamos diante de um caso de seqüestro caracterizado?
Albert já se fora. Maria havia recebido um cartãopostal de Lille, mostrara-o a Terlinck, que apenas dissera:
- Está bem.
O que estava bem? Não se sabia. Com ele, não se sabia mais coisa alguma. As vezes, podia-se dizer que ele vivia como se nada houvesse acontecido. Ia a seu gabinete de manhã e à tarde, não ao da prefeitura, mas ao da fábrica de charutos. Nem uma só vez tirara o carro da garagem. À noite, entrava no Velha Torre e sentava-se no mesmo lugar de sempre.
- Não acha que devo ir embora? - perguntara-lhe Marthe.
- Não.
- Mas é preciso fazer alguma coisa!
- Pois bem, fique aqui...
- Mandem subir os enfermeiros...
Estavam todos atentos. Algumas pessoas tinham prevenido que ele não deixaria levarem a filha e que talvez estivesse armado, pois andava muito estranho naqueles últimos dias.
Não sabiam! Não haviam compreendido nada!
Se quisesse fazer alguma coisa, não era isso que teria feito! Nem estaria mais em furnes!
Não tivera, por acaso, a possibilidade, apesar de sua idade, de começar uma vida nova, de viver uma nova juventude?
223
Manola fora bem clara: cinco mil francos por mês!
E será que Leonard?...
Era melhor deixá-los agir, deixá-los acreditar! Chegava mesmo a se esforçar em cumprimentá-los humildemente, como um vencido, a responder, compungido:
- Sim, senhor juiz... Sim, senhor procurador...
Estavam pondo sua casa em polvorosa, fazendo subir uma padiola, esbarrando nas paredes, tirando nacos de estuque. Emilia, sem dúvida, aturdida, mostrava-se dócil.
Os carros partiram - e fez-se o vazio. Maria julgava-se obrigada a soluçar na cozinha. Contudo, acabava de receber uma carta do filho contando que conseguira empregar-se numa indústria de produtos químicos.
Marthe só fazia relancear olhares. Vacilava. Inquiria.
- O que vai fazer?
E ele, que ela devia achar cínico:
- O que vou fazer? Vou continuar. Não é o que tenho a fazer?
Marthe não conseguia compreender. Não conhecia Janneke em Ostende, seu café, seu gato ruço, que tinha uma poltrona de vime só para ele, e...
Tampouco ouvira o discurso, o último. E mesmo que o tivesse ouvido, continuaria sem compreender.
Quem o compreendera?
Talvez apenas alguém. Mas esse alguém não passava de um quadro: Van de Vliet!
Fazem-se coisas sem saber ao certo qual o motivo, porque se acredita que é o que deve ser feito; depois...
No café de Kees, evitavam falar com ele durante a partida. Talvez preferissem não vê-lo ali. Mas ele ia, todas as noites, com seu charuto, seu estojo que estalava, sua piteira de âmbar.
- Então, Terlinck? Ele respondia:
- Então...
E os outros continuavam a partida. Pareciam aborrecidos.
- Confesse, pelo menos, que foi culpa sua se...
Ele sorria, bebia seu chope. Os imbecis não estavam longe de considerá-lo um fenômeno do tipo da mãe de Claes, que vivia se embriagando e, quando embriagada, invariavelmente agredia os policiais.
Quanto a ele, se quisesse...
Mas de que adiantaria contar-lhes? E permitir que entrassem na sua casa, que se tornara um museu, onde cada objeto que pertencera a Theresa estava no devido lugar, inclusive as chinelas azul-pálido ao pé de sua cama?
Ele, Terlinck, vivera uma vida como todo mundo.
Mas acaso não tivera a oportunidade, velho como estava, de viver uma segunda vida?
Era isso o que quisera expressar em seu discurso, mas não encontrara as palavras! Àquela gente, que agora vivia do aluguel de casas de praia e da venda de terrenos...
Pouco importava, já que ele havia decidido pensar sozinho!
Não se lembrava muito bem dos termos de seu discurso. Sentia apenas que se pudesse dizer o que tinha a dizer...
Colocara retratos de Theresa em todas as paredes. Obrigava Marthe a vestir as roupas da irmã.
- Escute, Joris, para mim, a situação é... E ele, sabendo que ela compreendia:
- A situação logo vai mudar, não concorda? Com o término do luto, por que a vida doméstica
teria de permanecer a mesma? Não era lógico que ele se casasse com a cunhada? Não para se divertir!
225
Mas para permanecerem juntos, com Maria e a
casa.
Para conversar... Porque, se ele quisesse...
FIM
Nieul-sur-Mer, 29 de dezembro, 1938.
226
ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA GRÁFICA E EDITORA PRENSA LTDA. E IMPRESSA NA EDITORA VOZES LTDA., PARA A EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A., EM MAIO DE MIL NOVECENTOS E OITENTA E QUATRO.
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O Prefeito Maldito é um estudo psicológico profundo da personalidade de um tirano que se crê imbatível.
Boa leitura
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