quarta-feira, 30 de março de 2011 By: Fred

Peri Ribeiro e Ana Duarte-Minhas duas estrelas...em texto

MINHAS DUAS ESTRELAS
Peri Ribeiro e Ana Duarte

Contracapa
"Esta é a melhor memória de um artista da música popular! brasileira publicada em livro até hoje (...) É uma narrativa! emocionada, mas adulta e ordenada, que
refaz a história de dois artistas deslumbrantes. E, o mais importante: é uma narrativa que seria empolgante de qualquer maneira, mesmo que seus protagonistas não
fossem a 'Estrela Dalva' e o fabuloso Herivelto." - do prefácio de RUY
"Não dá para falar de um sem o outro". Assim Pery Ribeiro confirma o que a posteridade se encarregou de provar. As vidas cruzadas de Dalva de Oliveira e Herivelto
Martins são um acontecimento único na história da música brasileira: o casamento do grande compositor popular, no auge de sua produção, com a melhor intérprete
de suas canções. Em Minhas duas estrelas, Pery compõe um relato vibrante, revelando os detalhes de um relacionamento intenso e turbulento.

Orelha:

PERY RIBEIRO nasceu no Rio de Janeiro
(RJ) e atualmente vive em Miami, nos
Estados Unidos. Cantor e compositor, foi
o primeiro a gravar "Garota de Ipanema", alén
de sucessos como "Barquinho", "Rio" <
"Berimbau", entre outros. Tem 58 discos
lançados no Brasil e também nos Estados Unidos, México e Japão. Foi o primeiro
artista brasileiro a receber do prefeito da
cidade de Miami Beach a chave da cidade em
(2003) e a ser premiado pelo FREC - Film,
Recording & Entertainment Council (Miami,
2005).
ANA nasceu em Goiânia (GO)
Esposa de Pery Ribeiro, trabalhou em São Paulo (SP) como modelo, atriz de cinema, decoradora e publicitária. Também produziu musicais em parceria com o diretor
de TV José Messias, entre os quais destaca-se "Viva Elvis" (1996) e "A grande chance" (1977). Vive em Miami desde 1998, onde tem uma agência de publicidade.
e Ana Duarte


MINHAS DUAS ESTRELAS

Prefácio: Ruy Castro
Copyright (c) 2006 by Pery Ribeiro
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada
ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico,
fotocópia, gravação etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de bancos
de dados, sem a expressa autorização da editora.
Todos os esforços foram empreendidos para determinar a origem
e a data das letras de músicas e imagens publicadas neste livro. Nem
sempre isso foi possível. Teremos prazer em creditar as fontes,
caso se manifestem.
Revisão: Carmem T. S. Costa, Agnaldo Holanda
e Valquiria Delia Pozza
índice onomástico: Luciano Marchiori
Capa: Sivanir Batista - Settor Estúdio Gráfico
Foto de capa e cadernos de imagens: Acervo do autor
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C!P) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ribeiro, Pery
Minhas duas estrelas / Pery Bibeiro, Ana Duarte ; prefácio Buy Castro. - São Paulo : Globo, 2006.
ISBN 85-250-3610-2
1. Martins, Herivelto, 1912-1992 2. Música popular - Brasil 3. Oliveira, Dalva de, 1917-1972 I. Castro, Buy. II. Título.
05.2313
CDD-780.92
índice para catálogo sistemático:
1. Música : Vida e obra 780.92
Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil
adquiridos por Editora Globo S. A.
Av. Jaguaré, 1485 - 05346-902 - São Paulo - SP
www. globolivros.com. br

SUMÁRIO
Prefácio: Entre quatro paredes de vidro,
por Ruy Castro
Introdução
Primeiras lembranças 23
2. Cassino da Urca 27
3. Dalva e Herivelto 3 0
4. Primeiros tempos 36
5. Nossas vidas 43
6. Grande Otelo, o fiel companheiro 48
7. Hoje quem paga sou eu 52
8. Orson Welles, uma rica experiência 69
9. Carmen Miranda 75
10. Nelson Gonçalves e seus dramas 77
11. O Trio de Ouro 84
12. Nossa infância 88
13. Segredo é para quatro paredes 94
14. Desse amor quase tragédia 98
15. Dercy Gonçalves, Venezuela e outras histórias 105
16. Abandono 114
17. Destruímos hoje o que podia ser depois 124
18. Que será de minha vida sem o teu amor 138
19. A vida com Lurdes 144
20. Procópio Ferreira, apaixonado por Dalva 150
21. Quiseste ofuscar minha fama só porque vivo a brilhar . . J 54
22. O casamento com Tito 159
23. Rainha do Rádio: o gosto do sucesso 167
24. José Messias, amigo e confidente 170
25. O místico Herivelto . 174
26. Separado de Bily 178
27. Primeira noite 181
28. César de Alencar, Boni e o "meu" Ribeiro 184
29. Que rei sou eu? 188
30. Rádio Nacional 198
31. Getúlio, Juscelino, Ademar: amizade com o poder 203
32. Bloqueado pelas lembranças 207
33. O túnel do fim 210
34. O relacionamento com minha mãe 214
35. México 217
36. Chacrinha, Flávio Cavalcanti, Sílvio Santos 220
37. A política e o Ecad 223
38. A obra de Herivelto 227
39. Solidão na Urca 233
40. Humor 238
41. Caminhos da autodestruição 242
42. O sonho do Shangri-lá 251
43. Agnaldo Timóteo, Antônio Maria e Madame Satã 254
44. Raul Sampaio, parceiro de vida 260
45. Sítio de Bananal 265
46. O relacionamento com meu pai 268
47. Lurdes, a rainha-mãe 2'4
48. Amor enrustido
49. Estrela Dalva, o grande mito 292
50. Eram felizes e não sabiam 297
51. Tenho saudades da Mangueira 302
52. Bandeira branca, eu peço paz 306
53. Meu irmão Bily, parceiro de uma vida 314
54. Adeus, minha praça Onze, adeus 317
55. O amor é o ridículo da vida 323
56. Herança 330
Posfácio, por Ana Duarte 337
Agradecimentos especiais 339
Anexo: créditos das letras de música 341
índice onomástico 349


Dedico este livro a todas as crianças que tiveram uma infância atribulada e traumática, e nem por isso deixaram de amar a seus pais, a vida, e de respeitar as leis
do Criador, tornando-se maiores que suas dores.
E, em especial, aos meus filhos Paula e Bernardo, na esperança de que entendam melhor o caminhar
de seu pai pela vida.
PERY RIBEIRO

Ao nosso filho Bernardo, dedico este trabalho que muitas noites me roubou de sua companhia, para dar forma à emoção e à sinceridade desse relato. Que a sua descoberta
de experiências tão intensamente vividas por seu pai lhe traga ainda mais razão para o orgulho e a admiração que nutre por ele.
A Paulinha, torcendo para que seu coração se abra para curtir o amor que seu pai sempre lhe ofereceu.
Ao Herivelto, que sempre cantei, pouco conheci e muito respeitei; e a Dalva, a quem muito admiro pela autenticidade; quero que recebam, onde for, a nossa homenagem.
ANA DUARTE

ENTRE QUATRO PAREDES DE VIDRO
PEQUENO TRAILER DE UMA 'GRANDE HISTÓRIA
ESTA É A MELHOR "MEMÓRIA" de um artista da música popular brasileira publicada em livro até hoje.
Minhas duas estrelas é uma memória do cantor Pery Ribeiro a respeito de seus pais, Dalva e Herivelto. Dalva, naturalmente, era a cantora Dalva de Oliveira, e Herivelto,
o compositor e também cantor Herivelto Martins - nomes que imperaram durante décadas nos palcos, nos discos e no rádio. Esta não é uma biografia deles, embora grande
parte de suas vidas esteja contada aqui inclusive nos detalhes quase inconfessáveis. Não é também uma autobiografia de Pery, embora seja ele o narrador.
É exatamente o que o nome indica: uma "memória", um relato vivido, de alguém que estava lá e que viajou ao extremo de suas lembranças para recuperar uma experiência
- e poucos
filhos de celebridades tiveram uma experiência que os feriu tão fundo.
Ao mesmo tempo, não é um derramamento espontâneo ou caótico, como se pode fazer no psicanalista ou no botequim.
É uma narrativa emocionada, mas adulta e ordenada, que refaz a história de
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dois artistas deslumbrantes, de como eles quase se destruíram um ao outro e de como essa guerra atingiu todos à sua volta. É também a tentativa de um filho procurar
entender o que levou seus pais a infligir dor mútua depois da separação, agredindo-se publicamente com palavras e canções, dia após dia, durante tantos anos. E,
o mais importante: é uma narrativa que seria empolgante de qualquer maneira, mesmo que não tivesse protagonistas como a "Estrela Dalva" e o fabuloso Herivelto.
Acontece que eles eram Dalva e Herivelto, e até quem chegou ontem à música brasileira ouviu os ecos da retumbante passagem de ambos pela História. Sabe que Herivelto
foi, muito antes de Vinícius de Moraes, o "branco mais preto do Brasil", pioneiro da Estação Primeira de Mangueira, introdutor do apito no samba, líder do conjunto
Trio de Ouro e autor (sozinho ou com parceiros) de uma obra que exigiria vários volumes de um songbook para lhe fazer justiça: "Ave Maria no morro", "Segredo",
"Acorda, escola de samba", "Minueto", "A Lapa", "Isaura", "Lá em Mangueira", "Praça Onze", "Caminhemos", "Cabelos brancos", "Carlos Gardel", "Hoje quem paga sou
eu" e muitos outros sambas e sambas-canções que se tornaram standards brasileiros. Mas sabe também que, com todo esse cartel, a maior criação de Herivelto Martins
foi Dalva de Oliveira.
Ele não se limitou a "descobri-la" e a se casar com ela. Moldoua à sua disciplina, ensinou-a a se vestir, a entrar e a sair do palco, a hipnotizar uma platéia e
lhe deu um repertório com que as outras cantoras nem ousavam sonhar. Só não a ensinou a cantar - nem precisava porque, filha de um clarinetista, Dalva já tinha
a musicalidade absoluta em seu DNA. com Herivelto (e mais o sambista Nilo Chagas, formando o Trio de Ouro), eles saltaram dos teatros e cortiços da Praça Tiradentes,
no
Rio, para o inacreditável luxo das apresentações nos cassinos e hotéis da década de 1940, o conforto dos apartamentos na Urca, a adoração do público, o respeito
dos poderosos e a admiração dos colegas (um deles, Villa-Lobos).
O menino Pery - nascido em 1937, ainda na pobreza do cortiço - descreve a ascensão de seus pais à glória e a sua própria atuação como coadjuvante infantil daquele
mundo. Aos quatro anos, cantou em público pela primeira vez, para dona Darcy Vargas, mulher do ditador do Brasil, no Teatro Municipal; aos cinco, dublou o anãozinho
Dengoso enquanto sua mãe fazia a voz da heroína na versão nacional do desenho de Disney Branca de Neve e os sete anões. Também aos cinco, foi "dirigido" por Orson
Welles, que decidiu filmar o Carnaval carioca pelos olhos de uma criança (os dele); e, antes dos dez anos, já conhecera suítes de hotéis indescritíveis, como o Quitandinha,
descera de bunda, degrau por degrau, escadarias acarpetadas, e sentira o perfume de mulheres deslumbrantes que o pegavam no colo. Pelas palavras de Pery, penetramos
nesses hotéis, sentimos aquele perfume. Os habitues do apartamento de seus pais eram Grande Otelo, Dorival Caymmi, Linda Batista, Francisco Alves, Orlando Silva,
Ciro Monteiro, Emilinha Borba, Pixinguinha, Dick Farney, Nelson Gonçalves. Seus colegas de trabalho no cassino da Urca (e que o pequeno Pery, escondido, ouvia extasiado
das coxias) eram Bing Crosby, Carmen Miranda, Jean Sablon, Charles Trenet, Josephine Baker. Pery via seus pais, bonitos e chiquérrimos no palco, ao lado daqueles
deuses internacionais, e não podia deixar de se extasiar: eles eram seus pais. Aquele mundo iria durar para sempre.
E, de repente (assim mesmo, de repente), em fins de 1949, quando ele mal completara doze anos, o mundo acabou. Tudo que Pery nem pressentia - as trevas que se instalavam
sobre sua família assim que as luzes do palco se apagavam - explodiu. Até então, era como se fizessem parte da vida a frieza de Herivelto como pai, as tremendas
surras de cinto que ele lhe aplicava e as incontroláveis explosões de cólera contra toda a família. Muitas passagens dilacerantes marcaram o jovem Pery (prepare-se
para se chocar). Ele apenas assistia a tudo, sem entender o que acontecia. Sem entender também a passividade de Dalva, que fingia ignorar as
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inúmeras escapadas amorosas de Herivelto. Um dia, uma dessas escapadas se transformou numa paixão que fez Herivelto sair de casa para sempre.
E, então, começou a grande guerra entre dois monstros sagrados da música brasileira. Quando Dalva tentou refazer sua vida, inclusive buscando um novo companheiro,
Herivelto desfechou um ataque em forma de uma série de artigos no Diário da Noite, escritos em parceria com o influente e maldoso repórter David Nasser. com este,
ou sozinho, passou a se referir veladamente a Dalva nas letras de suas músicas, estigmatizando-a como a mulher que "errara"
- eufemismo de então para adultério. Mesmo tendo contra si um jornal de Assis Chateaubriand e o peso das canções de Herivelto, Dalva nunca disse uma palavra em sua
defesa. E também não precisou: outros compositores, como Ataulfo Alves, Marino Pinto, Oswaldo Martins, Paulo Soledade, Humberto Teixeira, Nelson Cavaquinho, muitos
outros - a nata dos autores da época - passaram a fazer canções para que ela "respondesse" às acusações de Herivelto. Canções contundentes, terríveis, capazes de
machucar de ambos os lados. Os segredos nem precisavam escapar das quatro paredes, porque estas eram de vidro. Durante anos, o público acompanhou aquele confronto,
ora torcendo por um, ora por outro, como se fosse uma radionovela musical - como se não fosse de verdade.
Ninguém parava para pensar no que estaria acontecendo à cabeça de Pery e do caçula Bily, filhos de Herivelto e Dalva. Separados de seus pais por despacho da Vara
de Família, viram-se jogados em internatos e casas de parentes, onde ficavam expostos a todo tipo de humilhação e perguntas ("De que lado vocês estão?", "É verdade
que...?"). Eram filhos de pais famosos, e os artigos no Diário da Noite os deixavam nus diante da perversidade das outras crianças. "Bily'e eu passamos a nos agarrar
um ao outro", escreve Pery. "Seja éramos unidos, ficamos mais ainda. Numa esperança infantil, sonhávamos com um milagre que desse um fim àquele drama.
Mas o drama parecia não ter fim. Contra todas as expectativas, Dalva, sem Herivelto, encontrou a sua verdadeira voz e se tornou maior ainda do que nos tempos do
Trio de Ouro. Numa saraivada de sucessos, lançou "Tudo acabado" (J. Piedade e Oswaldo Martins), "Errei, sim" (Ataulfo Alves), "Palhaço" (Nelson Cavaquinho, Oswaldo
Martins e Washington), "Que será?" (Marino Pinto e Mário Rossi), "Calúnia" (Marino Pinto e Paulo Soledade) todas estas "respostas" a Herivelto -, "Olhos verdes"
(Vicente Paiva), "Rio de Janeiro" (Ary Barroso), "Zum-zum" (Fernando Lobo e Paulo Soledade), "Estrela do mar" (Marino Pinto e Paulo Soledade), "Kalu" (Humberto Teixeira),
"Neste mesmo lugar" (Klecius Caldas e Armando Cavalcanti)... a lista não teria fim. A Rádio Nacional a declarou sua rainha. Dalva gravou no estúdio da Abbey Road,
em Londres, com a orquestra de Roberto Inglez; foi sucesso na Argentina acompanhada por Francisco Canaro, tornou-se uma especialista em boleros e tangos. E, nos
anos 60, quando a música brasileira tomou rumos que poderiam tê-la sepultado, ressurgiu espetacularmente com as últimas grandes canções feitas para o Carnaval:
"Rancho da Praça Onze" (João Roberto Kelly e Francisco Anysio), em 1965; "Máscara negra" (Zé Kéti e Pereira Matos), em
1967; e "Bandeira branca" (Max Nunes e Laércio Alves), em 1970.
Herivelto nunca se conformou com que sua criação tivesse vida própria e atingisse dimensões muito maiores que as projetadas pelo criador - e ali começou novo drama:
o da sua lenta e dolorosa decadência como artista e como homem. Um drama também para Pery, que levou as décadas seguintes tentando penetrar na carapaça daquele homem
(tão cordial e aberto aos amigos), cujo amor represado - aos filhos e, segundo os amigos, à própria Dalva - devia lhe dilacerar a alma. Mas, enquanto Herivelto tentava
a custo manter-se à tona, Dalva não percebia que seu enorme sucesso já começava a ser minado por um inimigo terrível: o alcoolismo. A tradicional ignorância dos
familiares e médicos brasileiros a respeito dos mecanismos dessa doença fez com que aquilo tivesse o desfecho
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inevitável: anos numa espiral clássica de garrafas escondidas, goles roubados, um monstruoso acidente de carro, casamentos desfeitos, a impossibilidade de trabalhar
e, por fim, a morte horrível.
Tudo isso e muito mais está em Minhas duas estrelas. Se, ao lê-lo, você já não sairá ileso da experiência, imagine ter vivido tudo isso, cada dia de sua vida - até
hoje -, como Pery Ribeiro. E, no entanto, ao assisti-lo no palco ou ouvi-lo nos discos, você nunca pensaria em Pery como coadjuvante de um drama. Poucas personalidades
da nossa música popular passam tanta euforia vital, tanta alegria de viver - cada canção atacada de maneira muscular e viril. De onde ele tirou essa energia musical
e personalidade esfuziante que o têm caracterizado nos últimos quarenta anos? Agora sabemos: foi a forma que o Pery adulto encontrou para sobreviver ao Pery criança
e adolescente.
Ao contar a história de seus pais, ele deixou de lado a sua própria, de tantos triunfos (foi, por exemplo, o primeiro no mundo a gravar "Garota de Ipanema" - que
tal?), que ficará para outro livro. Aqui, o crucial era tentar expurgar seus fantasmas, o que ele fez com coragem invejável e a contribuição decisiva de sua mulher,
Ana Duarte, que deu ao material a ordem e a seqüência que o tornaram ainda mais eletrizante.
Dalva ou Herivelto - de que lado está Pery no livro? Essa é a pergunta que ele sempre sofreu ao ouvir. Você conhecerá a resposta, e talvez se surpreenda com ela
- como sempre se surpreendem aqueles para quem a vida é um jogo de preto ou branco, sem os meios-tons que fazem o sofrimento e a dor serem às vezes um espelho do
amor e da glória.

RUY CASTRO

INTRODUÇÃO
CRESCI SENTINDO minha vida devassada e narrada por uma imprensa marrom, sem o menor respeito nem senso de dignidade. Minha personalidade se formou sob enorme pressão.
Não sentia o direito de ter opiniões próprias ou de discordar de algo em nossa vida. Tinha medo de pensar, pois achava que meu pensamento seria descoberto por quem
estivesse por perto. Minha opinião sofria sempre um prejulgamento, para não ferir ou magoar ninguém.
Isso sem contar a sensação de desamparo, de solidão, e o pavor de tomar qualquer atitude: podia não estar de acordo com algum comando (colégio, meu pai, Exército...).
Assim, passei a ter profundo medo de autoridade. Medo de professor. Medo de meu pai. Medo de qualquer pai. Medo de polícia. Medo de barulho. Medo de escândalo. Medo
de tudo. Medo de viver no Brasil. Acho que esta é a razão maior que me levou ao México por quase dois anos e depois por mais quatro aos Estados Unidos. E, ainda
hoje, me leva a buscar um espaço profissional fora do Brasil.
Talvez seja porque lá fora não me sinto tão nu. Essa nudez forçada e brutal a que fui submetido aqui desde criança. Sei que é um contraste enorme, porque ninguém
ama mais este país do que eu. cada vez que ando pelas ruas e alguém me pergunta se sou filho
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de Dalva de Oliveira, o orgulho de ter uma mãe consagrada por todo um país é muito grande. Só que ao mesmo tempo isso me desnuda, porque sei - ou imagino - estar
ali alguém que sabe de minha história, que participou de minha intimidade, por meio do conhecimento de um drama. Ali está alguém que, na maioria das vezes, numa
ingênua postura, para engrandecer minha mãe, se colocará contra meu pai, ou pelo menos dirá:
"Seu pai foi grande, mas sua mãe foi muito maior!". Tudo isso é muito forte. E olhem que já tratei muito de minhas feridas, ou não poderia escrever este livro com
o máximo de amor e a imparcialidade que pretendo, num verdadeiro processo
de catarse.
A eterna exposição que a vida de artista traz me ensinou - na marra! - a administrar isso em meu interior e a superar os fantasmas. Posso hoje, por livre iniciativa
e premente necessidade interior, contar toda a minha história com meus pais.
Talvez seja essa a razão da apreensão de meus irmãos com tal relato: por não terem vida pública como eu, não tiveram de continuar a conviver com tudo isso. A partir
do momento em que nossa história saiu de cena, virando "jornal de ontem", puderam ir se beneficiando do véu do esquecimento que o tempo estende. Creio até que sem
muito esforço. Para eles, hoje em dia, seria como se não tivesse havido nada: afinal, quase meio século se passou... Daí manifestarem tanta reação à idéia do livro,
à idéia de revolver os fantasmas já enterrados por eles!
O que não imaginam é que eu tenha sido obrigado a encarar sempre esses nossos fantasmas, pelas ruas e pelos palcos da vida. Nunca tive o direito à bênção do esquecimento.
E, mais terrível ainda, ao ser artista também, passei a enfrentar a eterna cobrança das pessoas, pois carrego nos ombros o fardo da comparação com o brilho de meus
pais, convivendo com isso minuto a minuto.
Sei que, talvez, ainda precise limpar melhor meus porões, empoeirados e abençoados por uma herança que me pertence e da qual não pretendo abrir mão. Uma herança
conflitante, em tonalidades muitas vezes diferentes das que gostaria de encontrar. Mas, ao vivenciá-la, não tenho o que negar: foi pintada com a verdade e a mais
profunda emoção!
Além de tudo, devido aofeeling universal que a vida de artista sem fronteiras me trouxe, sei também da importância que os mitos Dalva e Herivelto alcançaram em nosso
país, como sei da premência de passar a limpo com respeito e amor, sem maldade, suas histórias, eternizando-os para a História.
PERY RIBEIRO
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PRIMEIRAS LEMBRANÇAS
CORRIA JÁ METADE DE 1942. O mundo chorava a perda de entes queridos de todas as nacionalidades na Segunda Guerra Mundial. No Brasil, escutávamos Hitler no rádio,
hipnotizando milhões de alemães, falando ao restante da humanidade sobre todo o seu poderio e a disposição de mais invasões, continuando seu sonho paranóico de conquistar
o mundo.
Países que nem imaginavam participar, pois ainda lhes doíam as feridas da Primeira Guerra, foram obrigados a tomar posição diante da louca investida. Quando a Inglaterra
foi atacada, o grupo dos Aliados cresceu. Os Estados Unidos se tornaram sede e portavoz de todo um bloco, empenhados em conter o avanço ensandecido de Hitler. O
Brasil também se alinhou e, naturalmente, foi convocado a enviar tropas. E derramou seu sangue na Itália, onde o soldado brasileiro demonstrou força e coragem na
tomada de Monte Castelo.
Aqui na pátria, Getúlio Vargas governava um país em formação, cheio de problemas e ansioso por conquistar uma posição mundial que assegurasse lugar de destaque no
conceito universal. Assim, quando os Estados Unidos pediram a coleta de qualquer
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espécie de metal a ser fundido e transformado em matéria-prima para construção de armamentos e até aviões que abasteceriam o front, começou a Campanha das Pirâmides.
O povo jogava na rua o que lhe sobrava ou encontrava de metal, em forma de brinquedo, mesa, cadeira, bicicleta, tudo o que pudesse ser derretido e enviado aos Estados
Unidos.
Essa campanha era abrilhantada com shows artísticos. como é antiga essa história de showmício! A grande patronesse era Darcy Vargas, a quem os artistas devotavam
carinho especial. Em vários pontos da cidade acumulavam-se as enormes pirâmides de ferro-velho. No encerramento da campanha, realizou-se no Teatro Municipal uma
grande festa, patrocinada por "dona" Darcy Vargas. O grana f inale era o show do Trio de Ouro, formado por Dalva de Oliveira, Herivelto Martins e Nilo Chagas, com
a participação de um garotinho de quatro anos, filho de Dalva e Herivelto: eu.
Fui colocado em cima de uma cadeira, para aparecer um pouco mais naquela imensidão de palco, devidamente fardado, de branco, olhos verdes bem arregalados, cantando
o hino especialmente composto por Herivelto para a Campanha das Pirâmides. Posso considerar esse show minha estréia como cantor. E minha primeira lembrança de palco,
de público me ouvindo cantar.
Mas havia o bicho-papão: a guerra. Nosso vizinho na Urca era um general do Exército. Tinha fotos recém-chegadas das batalhas, enviadas pelo filho. Arame farpado
espalhado por um campo, pessoas penduradas ou enrascadas, mortas, abatidas por tiros. Essas imagens me fizeram perder o sono muitas noites. O fantasma da guerra
nos rondava, a narrativa das pessoas que retornavam me perturbava. As fotografias mostradas pelo general me deixavam uma sensação cinzenta no ar. Triste. A guerra,
mesmo a distância, dava uma impressão de perda. De choque. De luto.
Como não havia televisão, era o jornal antes dos filmes no cinema que nos dava idéia do que ia pelo mundo. Eram imagens fortes. Ver Hitler discursando, eu não entendia
bem por quê, me
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dava uma profunda tristeza. Depressão. Até hoje as reportagens que tratam da guerra me evocam uma sensação familiar. Como se eu tivesse vivido aquilo tudo de perto.
Guerra e luto, música e alegria. Minha mãe gravava a versão para o lançamento brasileiro do grande clássico de Walt Disney, Branca de Neve e os sete anões, enquanto
eu dublava o anãozinho Dengoso. Dalva interpretava a Branca de Neve. A versão tinha sido feita pelo compositor Braguinha, o célebre João de Barro, autor de "Carinhoso",
"Pastorinhas", "Touradas em Madrid" e dúzias de outras obras-primas do Carnaval brasileiro. Braguinha era diretor do trabalho de dublagem e também dono do estúdio,
onde não havia ar-condicionado. Ele conta que eu, muito garoto, fui ficando agoniado com o calor; aos poucos, fui pedindo para tirar a roupa. Tira uma peça, tira
outra... acabei cantando completamente nu, sob os olhares invejosos dos adultos presentes no estúdio.
Um pouquinho mais velho, aos oito anos, participava das gravações do Trio de Ouro com meu pai, fazendo a terça em alguns vocais ou tocando tamborim.
Era um desafio gravar nessa época. Tratava-se do processo mono, isto é, gravava-se um cantor acompanhado de orquestra, ritmistas e coro em apenas um canal e registrava-se
a matriz num disco de cera importada, que dava origem aos discos de 78 rotações. Ensaiava-se uma música à exaustão: além de a execução precisar estar perfeita, não
se podia exceder os três minutos e meio, tempo máximo de registro na cera. O produtor ficava cronometrando o ensaio até atingir o tempo adequado. A cera usada para
registrar o som era muito cara, não podia ser reaproveitada, e qualquer erro era fatal.
Herivelto, apesar de todas essas complicações, introduziu inovações. Ele foi um mulatólogo ilustre, influência de seu sangue português, e pioneiro em colocar, nos
palcos, grupos de sambistas oriundos das escolas de samba e dos morros. Seu grupo de
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sambistas (na época diziam "sua escola de samba") era composto de mulatas do melhor samba-no-pé e de ritmistas-dos mais afinados, que ele punha no estúdio para gravar.
A Escola de Samba de Herivelto Martins, mais tarde Escola de Samba de Salão, era composta de oito a dez mulatas e outros tantos
ritmistas. Jupira, Cordélia, Suréia, Vanda, Ruth (depois mulher de Luís Bonfá), Brotinho e Carmen Costa, mais tarde
cantora famosa, são algumas das passistas que se destacaram ao seu lado. Abel Ferreira, Valter Boca-de-Sopa, Leonel do Trombone, Buci Moreira, Arnô Carnegal e
Boca
da Cuíca são nomes ilustres das raízes do samba e de alguns de seus músicos e ritmistas. O compositor Monsueto Menezes, também: o autor de "A fonte secou" era o
ritmista mais divertido da Escola de Samba de Herivelto.
Minha mãe contava uma história engraçada de um desses ritmistas. Um de meus brinquedos preferidos era um "cachorrinho" improvisado com um quadro (o rosto de um
índio com cocar). Dalva tinha ganho a tela de um dos ritmistas da Escola de meu pai. Ninguém deu muita bola. Eu puxava aquele rosto de índio de um lado para o outro,
amarrado por um barbante, dizendo que era meu "cachorro". O pintor era "tocador de prato" na Escola de Samba de meu pai. Seu nome: Heitor dos Prazeres.
Isso mesmo! Este meu "cachorrinho" era o primeiro quadro de um pintor que se tornaria um dos mais importantes primitivistas do Brasil, premiado e celebrado mundo
afora. Quando tomamos conhecimento disso, muito tempo depois, com o nome de Heitor despontando no mercado das artes, foi aquela correria na casa de minha mãe:
"Onde está aquele cachorrinho que o Pery arrastava?".
Felizmente, encontraram o quadro no sótão da casa de minha mãe, em Jacarepaguá. E hoje, orgulhosamente, ele está na parede de minha sala.
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CASSINO DA URCA
LEMBRANÇAS: VIAGEM AO PASSADO. Algumas imagens são bem nítidas. Fecho os olhos e me vejo no Cassino da Urca. Ao apagar das luzes, posso sentir o frio do corrimão
dourado, a maciez do tapete ouro-velho, o perfume francês das mulheres no ar, e aí, do alto da escadaria, vejo mulheres lindas, homens elegantes em seus smokings
e, o mais impressionante, os shows. Que maravilha de shows!
Irrequieto como qualquer garoto de cinco anos, estou descendo de degrau em degrau, de bunda, a escada acarpetada até o final, subindo novamente e recomeçando a brincadeira,
enquanto assisto aos shows de Jean Sablon, Josephine Baker, Charles Trenet, Carmen Miranda e, claro, de meus pais, Dalva e Herivelto. Entra a dupla de acrobatas
Vicky and Joy: seus corpos, cobertos de purpurina dourada ou prateada, evoluem em câmera lenta, diante de meus olhos de criança, extasiados com a beleza dos movimentos.
E as dançarinas, mulheres lindas de origem européia, em geral muito altas, com figurinos muito ricos... Interessante: vejo agora que minha fixação por mulheres
altas e loiras deve ter nascido aí, olhando as gringas.
Assim, entrando pela porta dos artistas no Cassino da Urca, derrapando pelas escadas, fui apresentado ao mundo artístico de meus pais.
O jogo nos cassinos funcionava a todo o vapor. Recebia turistas do Brasil e do exterior. Motoristas de táxi, garçons, crupiês, arrumadeiras, maítres, músicos, bailarinos,
cantores, cozinheiros, eletricistas. O jogo e os shows milionários davam trabalho a milhares de profissionais.
Os espetáculos se alternavam entre os cassinos do país: Urca, Copacabana, Icaraí, Pampulha, Santos, Guarujá, Quitandinha. O Brasil assistia a grandes artistas
internacionais: Pedro Vargas (México); Bing Crosby (EUA); Yma Sumac (Peru); Trio Los Panchos (México), que gravou "Caminhemos", de Herivelto, para a América Latina;
da França, Jean Sablon, Charles Trenet, George Boulanger, Josephine Baker, que contracenou com Grande Otelo; nossa Carmen Miranda; entre tantos outros anônimos
talentos vindos de todas as partes, trazendo brilho e alegria ao público, lotando os cassinos e criando no Brasil um pólo do show business mundial. Morávamos na
Urca, ao lado do Cassino. O dono, Joaquim Rolla, fazia questão de apresentar também shows com elenco nacional, a chamada "prata da casa". Herivelto era o diretor
artístico da parte nacional, ao lado de Carlos Machado. Junto com Chíanca de Garcia, montou um dos maiores espetáculos já vistos no Rio: Vem, a Bahia te esfera,
com tema especialmente composto por eles e um dos maiores sucessos do Trio de Ouro.
O show tinha a participação de Grande Otelo, nosso vizinho na Urca. Ele não saía lá de casa! Também eram nossos vizinhos Carmen Miranda, Dick Farney, Nelson Gonçalves,
Lourdinha Bittencourt, entre outros artistas.
A Urca foi um lugar fantástico nos anos 40, até perder o brilho quando o presidente recém-eleito, general Eurico Gaspar Dutra, em seu primeiro despacho, decretou,
em 1946, o fechamento dos cassinos em todo o território nacional, deixando sem trabalho famílias inteiras de um exército de profissionais.
O povo brasileiro e a classe artística, principalmente, se sentiram traídos, pois em campanha, quando já se especulava sobre o
destino dos cassinos, Dutra prometeu jamais fazer isso. Muito se discute sobre os porquês dessa atitude, porém o que sempre vem à tona é que Dutra teria sucumbido
à dona Santinha, sua mulher, conhecida carola.
Em nossa pesquisa, nos aproximamos de uma personagem que viveu de perto toda essa história e pôde nos contar o que realmente se passou. Essa senhora - que nos pediu
sigilo de seu nome - freqüentava a mesma mesa de jogo que o filho de Santinha e do presidente Dutra. Ele jogava sem controle algum, vivia mergulhado em dívidas.
A família acudia sempre. Comentava-se na época que chegaram ao ponto de vender a maravilhosa casa em que viviam na rua São Clemente, onde havia morado Rui Barbosa
e hoje é um espaço cultural da cidade, para pagar suas dívidas de jogo. Daí a ojeriza de dona Santinha e do general Dutra pelo jogo, que consideravam coisa do diabo.
Jamais assistirei novamente a cenas de tanta tristeza, revolta, indignação, sentimento de traição, como quando fecharam o Cassino da Urca. Famílias inteiras indo
em romaria até o Palácio do Catete, então sede do governo federal, pedindo, implorando ao presidente. Chefes de família se suicidando, problemas de toda ordem. Tudo
em vão.
O Brasil, que era colorido, ficou cinza, negro, banhado em lágrimas. E, a partir daí, músicos, bailarinos, girls, contra-regras buscaram outras soluções para poder
continuar vivendo daquilo que sabiam fazer.
Nasceram os espetáculos em nightclubs: Night and Day, Grill do Copacabana Pálace, Cassino Atlântico. Surgiram os primeiros shows na praça Tiradentes, nos teatros
João Caetano, Carlos Gomes e Recreio. Nessa fase, despontou o maior produtor de shows que este país conheceu.
Walter Pinto foi o criador do Teatro de Revista, espetáculo de squetes variados, reunindo cantores, humoristas, bailarinos e as
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vedetes. Nomes como Virgínia Lane, Eloína, Wilza Carla e Carmen Verônica estrelaram seus shows.
Nessa época, mesmo que os artistas e compositores não morassem no mesmo bairro, a música popular brasileira era uma única e grande família. Todos se freqüentavam,
trocavam experiências. Nossa casa se tornou ponto de encontro de compositores, cantores, músicos, artistas de teatro, atraídos pela inteligência, pelo humor e espírito
crítico de meu pai, no auge do sucesso do Trio de Ouro. Um compositor, apesar de sua tendência clássica, ia à nossa casa com freqüência. Dizia:
"Herivelto, como é possível, você não sabendo uma nota musical, tocando mal esse violão, ser autor de uma maravilha como''Ave Maria no morro'? Enquanto eu, formado,
erudito, não consegui ainda fazer algo assim?".
Seu nome era Heitor Villa-Lobos. Amante da música popular brasileira, admirador do talento inato de Herivelto e apaixonado por Dalva, a quem considerava a maior
cantora de todos os tempos, impressionadíssimo por sua voz, Villa-Lobos tinha personalidade forte e sistemática. Estava sempre tentando convencer Herivelto a estudar
música. Quando diziam que Villa havia chegado, ele resmungava:
"Lá vem aquele chato".
Mas havia muito respeito nessa intimidade, e Villa-Lobos, quando resolveu se mudar para a Europa, insistiu muito com Herivelto para ir também.
"Fazer o que no estrangeiro?", dizia Herivelto. "Não sei a língua deles, nem sei música, como você mesmo fala."
"Ora, Herivelto, com esse talento todo, basta estudar um pouco que terá a Europa a seus pés. E, não se esqueça, lá é o berço sagrado da música."
Mas meu pai não deu bola àquele convite para o berço da civilização ocidental.
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DALVA E HERIVELTO
PARA o UNIVERSO DE HERIVELTO, a Europa soava muito distante. Para quem nasceu numa cidadezinha do interior do Rio de Janeiro, chamada Paulo de Frontin, ele já estava
no "primeiro mundo": estava na Capital Federal.
Ainda moleque, foi com a família para Barra do Piraí, paixão que o acompanhou até a morte. Herivelto fazia questão de dizer que era de Barra do Piraí. Que tinha
nascido lá.
Meus avós paternos, Carlota e Félix Bueno Martins, eram pessoas humildes e rígidas. Forjaram a personalidade de meu pai de um jeito muito duro. Na rua, com os amigos,
meu pai era um sujeito maravilhoso, engraçado, vivia cercado de gente. Dentro de casa, com a família, era durão, intransigente, até cruel.
Desde cedo, a música esteve dentro dele e, mesmo aprendendo a cortar cabelo para trabalhar na barbearia do pai, sentia que a música o chamava.
A família havia se transferido para São Paulo quando o sonho falou mais alto: pegou o trem e saltou no Rio. Passando por um circo, procurou algo para fazer. O dono
perguntou se já havia trabalhado como palhaço. É claro que ele disse "sim".
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Nascia o palhaço Zé Catimba, sem nunca ter pisado num picadeiro. A carreira de palhaço não durou muito, mas deu para segurar, durante algum tempo, a fome e o sustento.
A música continuava seduzindo-o e, ao conhecer Francisco Sena, um negro muito musical, Herivelto, que era muito claro, teve a idéia de formar a Dupla Preto e Branco.
Trabalharam juntos de 1933 a 1935, quando morreu Sena, o bom crioulo, como Herivelto o chamava. Depois de algum tempo, foi substituído por um negro boa-pinta, Nilo
Chagas.
Um pouco distante daí, outra história começava e ia se juntar lá na frente à história de Herivelto.
Uma menininha nascia em Rio Claro, interior de São Paulo. Sua mãe, Alice, era pessoa simples, filha de portugueses. O pai, o marceneiro Mário, tocava clarinete e
era boêmio até a alma. Tão boêmio que sonhava com a chegada de um primogênito, filho homem, a quem daria o nome Vicente, para acompanhá-lo na farra. Mas nasceu
uma menina, chamada Vicentina. Quando cresceu um pouco, o pai a transformou em sua grande companhia. Chamava-a de Vicente e a levava aos bares de Rio Claro. O marceneiro
Mário era meu avô, e sua filha Vicentina, minha mãe: ela foi o filho homem que vovô queria ter.
Minha mãe contava que, ainda menina, aprendeu a tomar cachaça com ele. Para o resto de sua vida,, ela não iria esquecer esses ensinamentos. Lamentavelmente.
Vicentina teve três irmãs: Lila, Margarida e Nair. Todas extremamente musicais, mas não seguiram a carreira. Lila cantou alguns anos com Djalma Ferreira na Boate
Drink, em Copacabana, e desistiu. Margarida tinha voz linda, fez coro em algumas gravações e chegou a trabalhar com Herivelto, como cabrocha de sua Escola de Samba.
De Rio Claro, a família foi para Belo Horizonte. Depois de algum tempo, transferiu-se para São Paulo, onde as chances seriam maiores para Vicentina, que impressionava
a todos com sua bela voz e sonhava com a carreira artística.
Em São Paulo, ela começou a ter aulas de canto com o professor Gambardella, que aprimorou seu canto, treinando-a em cançonetas de óperas conhecidas, como a Viúva
alegre. Como é natural para qualquer principiante, ela não tinha repertório definido, cantava nos programas de calouros os sucessos da época, criações muitas vezes
inadequadas a sua voz. Mas o Rio de Janeiro era a metrópole que atraía os talentos de todo o país para seus palcos e, naturalmente, a projeção nacional. Era o grande
sonho.
Muito magrinha, bastante tímida, foi audaciosa e se inscreveu no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso. Um tremendo desafio. Já havia adotado o nome artístico
Dalva de Oliveira detestava o Vicentina. Chamada ao palco, tremia muito. Fez o melhor que sabia. Ao terminar, assustada, ouviu do temido Ary
Barroso:
"Minha senhora, quer um conselho? Volte imediatamente pró tanque, de onde nunca deveria ter saído. Vá lavar roupa, a senhora jamais deveria abrir a boca pra cantar!".
Minha mãe chorou muito. Mas, graças a Deus, e para sorte da música popular brasileira, não permitiu que o "conselho" abalasse seu sonho. Continuou estudando, tentando
a sorte. Anos depois, já reconhecida como grande cantora, recebeu um pedido de desculpas de Ary Barroso, acompanhado da música "Folha morta", transformada por Dalva
em grande sucesso.
Além de capital do país, o Rio de Janeiro era nosso grande centro cultural, a meta a ser conquistada por Dalva.
Trabalhando num teatro mambembe em São Cristóvão, o Teatro Pátria, ao ser abordada em 1936 por um sujeito magrinho, de
olhos azuis, meio Sinatra, meio matuto, Dalva
mal podia imaginar o que o destino lhe reservava a partir desse encontro.
Herivelto apresentava um número de palhaço no teatro, o do Zé Catimba", para ganhar urn dinheirinho extra, além dos cachês
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dos shows da Dupla Preto e Branco, realizados em espaços invariavelmente mambembes.
Dalva começou a assistir aos ensaios da dupla, à tarde, no teatro. Herivelto passou a prestar atenção nos números de Dalva: a voz linda, a extensão vocal o impressionavam.
As vezes, jantavam juntos após as apresentações no teatro, e ele a levava até a pensão onde ela morava. De brincadeira, numa daquelas tardes, quando Dalva ensaiava
um de seus números, Herivelto começou a fazer uns contracantos. Príncipe Pretinho, sempre por perto de Herivelto, assistia. Impressionado com o resultado, aplaudia
entusiasmado.
Eureca!, pensou Herivelto, já sentindo o "encaixe" da tessitura e vislumbrando a descoberta de um novo caminho para ele poder evoluir artisticamente. Aliás, para
os dois.
Era uma complicada descoberta, como sabem os entendidos: é muito difícil trabalhar com vozes feminina e masculina juntas. Primeiro, Herivelto começou a testar os
arranjos da dupla com Dalva, depois "abriu as vozes", separando a parte de Dalva das vozes masculinas, costurando os uníssonos e contracantos.
O resultado ficou maravilhoso. Passaram a trabalhar juntos. Ficavam ensaiando até tarde, nos bancos do campo de São Cristóvão, depois do teatro. Da música se fez
paixão. Da paixão se fez música: uma espécie de "religião" entre eles, o grande elo.
Cada vez ficavam mais tempo juntos, o namoro ia rolando, ficando a cada dia mais firme. Herivelto, vendo em Dalva um diamante bruto a ser lapidado, começou a desempenhar
seu papel de "Pigmalião". Pesquisou um repertório adequado à extensão vocal de Dalva, trabalhou sua postura no palco, escolheu os primeiros figurinos, ensaiou exaustivamente
a pferformance dos três: Dalva e a Dupla Preto e Branco.
Levados à RCA Victor pelo amigo e ardoroso fã do novo trabalho, Príncipe Pretinho, gravaram o primeiro disco em 78 rotações,
om duas composições de Príncipe: "Ceci e Peri" e "Itaquari". Corria o ano de 1937.
Foi o início de uma grande escalada. Começaram a gravar, a se apresentar em shows, em rádios: "Dupla Preto e Branco e Dalva de Oliveira, um trio de ouro!", anunciava
o comunicador César Ladeira, na então famosa Rádio Mayrink Veiga.
Ficava assim batizado: o Trio de Ouro.
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PRIMEIROS TEMPOS
Ao CONHECER MINHA MÃE, completamente apaixonado, Herivelto quis logo viver com ela. Dalva, sozinha no Rio, totalmente envolvida por
Herivelto, pelo papo inteligente, deslumbrada com sua musicalidade, seduzida por seus olhos azuis, perdidamente apaixonada, aceitou a proposta.
Uma proposta indecente para a época, pois dá para imaginar o escândalo nos anos 30: duas pessoas viverem juntas, sem casar?! Dalva chegara a mentir para a família
em São Paulo, dizendo nas cartas que já estava casada com Herivelto. A situação financeira dos dois era terrível. Vindos havia pouco tempo de suas cidades, estavam
começando a conquista da capital. Assim, embalados pela paixão, uniram suas pobrezas e, mais importante, sua musicalidade e seus sonhos.
Os primeiros endereços do casal: rua do Lavradio, rua Pedro I, rua Silva Jardim, rua dos Inválidos, verdadeiros muquifos em volta da praça Tiradentes. Quando nasci,
em outubro de 1937, meus pais moravam na rua do Senado, na Vila Rui Barbosa, em quarto alugado na casa de um alfaiate.
Viveram assim um bom tempo, em cabeças-de-porco, pardieiros. Minha mãe lavava as camisas de meu pai e até os ternos
de linho em banheiras. Passava nossas roupas em cima da cama. Cozinhava em espiriteiras a álcool, cuidava de mim e ainda cantava ao lado de meu pai, iniciando a
carreira do Trio de Ouro. O dinheiro era escasso, trabalhavam em espaços chinfrins, circos, boates nos subúrbios do Rio.
Somente em 1938 começaram a se apresentar nas rádios, o grande veículo de divulgação e valorização do artista na época. Não
havia arrecadação de direito autoral; a venda de discos engatinhava. Para se ter idéia do incipiente mercado da época, os artistas tinham de vender quinhentas cópias
de um 78 rotações para ter direito à gravação de outro disco. E não era nada fácil vender essas quinhentas cópias...
Assim, o aluguel barato daquelas casas de cômodos era o que conseguiam pagar. Hoje, para quem lê esta história, aqueles lugares podem parecer pitorescos. Mas não
era brincadeira. Morávamos em casarões velhos, malconservados. Muitas vezes, não havia quartos separados para cada família. Penduravam-se lençóis ou cobertores num
arame, nos cômodos maiores, e cada família morava de um lado.
Foi nessas condições que meu pai trouxe Nilo Chagas para morar conosco. Nilo morava muito longe, dificultando o trabalho do Trio. Meu pai estendeu um arame no meio
de nossa casa, ou melhor, de nosso quarto, e conseguiu com Dudu Olimecha um pedaço de lona de circo para dividir o cômodo. De um lado, a família Martins; do outro,
Nilo. Minha mãe contava que eu tinha paixão por ele e que a primeira palavra que pronunciei, antes mesmo de papai ou mamãe, foi Ganga, o apelido que dei ao Nilo.
Era ali naquele cômodo que recebiam os amigos, todos também começando suas vidas. Dorival Caymmi, recém-chegado da
Bahia, contou-nos que me conheceu num bercinho
humilde, nessa casa em que Nilo morava conosco. Lembrou-se da
camaradagem que unia a todos na dureza e na boemia dos arredores da Praça Tiradentes.
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Caymmí ficava impressionado com a elegância deles, mesmo morando desse jeito. Como no quarto havia um armário muito pequeno, de uma porta apenas, meu pai conseguiu
um espaço no guarda-roupa do Teatro Carlos Gomes para guardarem as melhores roupas. Quem também visitava meus pais era a atriz Zezé Macedo, muito amiga de minha
mãe.
Como quase todos no meio musical vivem me dizendo que me carregaram no colo, Zezé quando me
encontrava gostava de ir além e dizia que me conheceu na barriga de minha mãe. Ao saber que eu estava em busca dos amigos de meus pais, ela me procurou e ofereceu
uma carta-poema, linda, escrita para Dalva, depois de visitá-la no hospital, em 1971. No poema relembra que bordou uma camisa-pagã para mim nesse tempo distante.
vou mostrar um pouco da doçura de Zezé:
"Dalva,

Penso em você
Tão jovenzinha e linda...
Cantava, o olhar distante,
Uma balada, inspirada
No amor de alguém,
Apaixonado e amado.
Depois, eu lhe pedia:
'Cante o Itaquari!'
E você atendia,
E eu, feliz, sorria
Mas um dia, entendi:
Você já andava suspeitando
Que a cegonha chegasse
Trazendo-lhe o Pery...
Depois que Nilo se mudou para um quarto na Piedade, meu pai concordou que minha mãe começasse a trazer a família para
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morar com eles, mesmo ainda em situação difícil. Primeiro veio a mãe, Alice, com a irmã de Dalva, Margarida. Depois vieram as outras irmãs, Lila e Nair.
Morávamos na rua Pedro I numa casa miserável. Dormíamos todos juntos, no chão, separados apenas pela lona do circo. Ao lado deles, minha tia Lila recorda que morava
um rapazinho, muito simpático e falador, com um sorriso que cativava a todos. Seu nome: Sílvio Santos. Hoje, o grande apresentador de TV e dono de uma das mais
importantes redes de TV do país. Eram todos guerreiros unidos na mesma batalha: a conquista de um lugar ao sol. A busca da dignidade no viver. Daí fomos para um
apartamento um pouco melhor na rua Campos da Paz.
Confesso que lembrar toda essa pobreza me traz uma sensação, física até, de náusea. E hoje, depois de tanto tempo, quando passo por qualquer lugar desse tipo, com
lixo em volta, de imediato me vem à mente um cheiro de rato insuportável. Esses cheiros e o pavor enorme de baratas vão me acompanhar até a morte. São sensações
muito fortes. Mesmo não tendo idade para recordar todos os detalhes, ficaram marcas que jamais irão se apagar.
Eu já era nascido, mas meus pais ainda não haviam casado. Só vieram a se casar tempos depois, em 1939. Um grande amigo e conselheiro de meu pai foi quem o incentivou
a tomar essa atitude: Benedito Lacerda, flautista e compositor, seu parceiro em "A Lapa", gravada em 1950 por Francisco Alves. Afinal, argumentava Benedito, já tinham
um filho, outro estava a caminho, a moça precisava ter uma segurança, a família começava a aumentar.
A música "Ceci e Peri", composta por Príncipe Pretinho, a prinieira gravada pelo Trio de Ouro, deu origem a meu nome. Meu Pai, espírita e muito ligado à coisa indígena,
dizia, antes mesmo de eu nascer:
Se for homem, meu primeiro filho se chamará Pery; se for mulher, se chamará Cecy, assim, com y".
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Acho que por essas idéias, ao nascer meu irmão, quase três anos depois, ele lhe deu o nome de Ubiratan. Mas minha mãe contava que, desde pequeno, eu o chamava de
Bily. Não saía o Ubiratan. Todos em casa passaram a chamá-lo assim.
Muita gente acredita, e encontro até publicado na imprensa, que a origem de meu nome se deu por meio de concurso organizado por meus pais, no programa de rádio de
César Ladeira. Puro folclore. Basta lembrar que nasci pouco tempo depois que meus pais se conheceram, quando não eram nem um pouco famosos e ainda não tinham nenhum
acesso aos radialistas importantes.
Minha mãe gostava de lembrar um fato muito especial para ela, quando me amamentava ao peito: tinha tanto leite que conseguia amamentar outras duas crianças, muito
pobres, nossas vizinhas na casa de cômodos. Dizia orgulhosa que não teriam sobrevivido sem o seu leite.
Muitas vezes, ao ir trabalhar com meu pai, naqueles lugares simples do começo de carreira, e não tendo quem cuidasse de mim, entrava no palco comigo nos braços:
um lenço cobria minha cabeça e seu seio desnudo. Enquanto cantava, eu mamava.
A praça Tiradentes foi se tornando o reduto de meu pai. Na esquina onde hoje fica o Café Thalia, em frente do Teatro Carlos Gomes, se reunia toda a música brasileira.
Herivelto "batia o ponto" todas as noites. Ficava por lá até altas horas, batendo papo, em pé ou sentado a uma mesa, esquecido da vida. Ou melhor, fazendo vida.
Desse grupo de boêmios, Herivelto foi um dos primeiros a ter carro: um Ford azul, ano 1930/32. Muito vaidoso, desfilava com ele pela praça. No tempo do racionamento
por causa da guerra, não havia gasolina disponível para os civis. Surgiu então um tipo de combustível chamado gasogênio. Para adaptar na traseira do carro a geringonça
- dois enormes botijões-, era necessário levar o carro à oficina. Os botijões se pareciam com esses cilindros grandes de gás. Me impressionavam muito, porque eram
pretos, feios, antiestéticos e ocupavam toda a traseira do carro. Aquela
geringonça funcionava como uma espécie de maria-fumaça. Esquentava demais e no verão era um inferno. Mas, em compensação, no inverno de São Paulo era delicioso.
Quando em São
Paulo ainda existia inverno.
Muitas vezes, ao sair de algum show, com minha mãe e até comigo no carro, meu pai dizia que ia dar só uma "passadínha" pela praça Tiradentes. Entrava nos bares
e... esquecia-se de tudo. E a gente esperando por ele, no carro. Horas a fio. Se estivessem num clima legal, minha mãe esperava pacientemente. Senão, era mais um
motivo para briga. Mandava chamá-lo ou, pior, ia pessoalmente buscá-lo.
O trabalho ia melhorando, a praça Tiradentes era agora só para boemia: não morávamos mais por lá. Meus pais haviam alugado um apartamento na General Galvão, no Rio
Comprido, só para nós, sem a família de minha mãe. Meu avô havia vindo de São Paulo e já possuíam sua própria casa. Era um apartamento mais decente, onde tínhamos
nossos quartos separados. Passou a ser freqüentado por amigos, artistas, pessoas que mais tarde se tornariam grandes nomes do cenário artístico nacional.
Os nomes de Dalva e Herivelto foram se tornando conhecidos, os shows se sucediam, o Cassino da Urca começou a chamálos comofreelances, sem contrato fixo. As apresentações
do Trio de Ouro agradavam. Seus discos eram cada vez mais bem recebidos pelo público.
Nessa época, o maior divertimento das pessoas estava no rádio, não havia ainda a televisão. As famílias se reuniam em suas salas para ouvir o rádio. Era a maior
fonte de informação e de lazer. Curtiam seus artistas, dançavam ao som de suas músicas, se abasteciam das novidades que discutiriam no trabalho, nos bares, no dia
seguinte.
O grande momento dessa reunião era a Hora do Brasil. O famoso
programa tinha um tom solene, importante. Completamente
diferente da modorrenta Hora do Brasil de hoje, mais conhecida como
hora de colocar a fita no som". Líder total de audiência,
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poderíamos comparar o programa ao Jornal Nacional, nos seus áureos e distantes tempos de 80% de Ibope.,
Na Hora do Brasil havia um espaço muito disputado pelos artistas: de vez em quando a direção convidava algum para entrar no ar com uma música.
Era uma grande honra:
o Brasil inteiro ouviria. Todos queriam ser convidados.
Caso não se lembrem, até hoje o tema musical da abertura do programa é um trecho da ópera O Guarani, de Carlos Gomes. E o sucesso do Trio de Ouro,
"Ceci beijou Peri",
fazia uma adaptação popular daquele trecho da ópera. Por essa feliz coincidência, começaram a ser convidados com freqüência para se apresentar no programa. Lembro-me
de ter ido com eles muitas vezes.
A Hora do Brasil era transmitida ao vivo do prédio onde hoje fica a Câmara dos Deputados, na rua Primeiro de Março. Não sei se na época já era a Câmara. Não havia
orquestra. O conjunto de Benedito Lacerda acompanhava os artistas. Dino e Meira arrasavam nos violões.
Havia nos anos 40 um mercado de trabalho diferente do atual. Nos melhores cinemas apresentavam-se shows musicais ou humorísticos, num palco em frente das telas.
Antes do início ou no meio das sessões, fechava-se a cortina, puxava-se o piano, e os shows aconteciam para o público que assistiria logo depois aos filmes de Douglas
Fairbanks, Rita Hayworth, Glenn Ford, Mary Pickford, os mitos do cinema da época.
O Trio de Ouro fez muitos desses shows, num grande vaivém pela cidade, porque às vezes se apresentavam em dois cinemas na mesma noite. Chegaram a cantar ao lado
de Chico Alves, em cinemas do Rio e de São Paulo. Viviam sempre numa grande correria: não se podia perder a hora, era tudo ao vivo, fosse nos cinemas, fosse transmitido
pelo rádio.

NOSSAS VIDAS
NA MADRUGADA, depois do show no Cassino, meu pai tinha mania de reunir os amigos em casa para tomar cerveja preta e discutir o universo da música brasileira. Minha
mãe já começava a ser "a" Dalva de Oliveira. O Trio de Ouro acontecia para valer, e a estrela Dalva era seu grande brilho. Já tinham contrato fixo, desde 1941, com
o Cassino da Urca. E, em 1943, mudaram-se para a avenida João Luís Alves, 88, bem perto do Cassino.
Adivinhem quem, ao terminar o show, fazia o jantar para aquele bando de boêmios? Minha mãe. Vinha caminhando pelas ruas até nossa casa, de salto alto, maquiagem,
cabelo ainda arrumado, ainda vestindo soirée - um daqueles vestidos longos, bordados com vidrilhos, lantejoulas e paetês, quase sempre colados em seu corpo bem-feito,
e com os quais brilhava elegantíssima nos palcos. Chegava, jogava o sapato para o lado, colocava um avental por cima do soirée, amarrava o cabelo ou punha um turbante
e ia para o fogão, razia o macarrão mais gostoso que aquele povão já comeu.
Eu e meu irmão Ubiratan, meio século depois um dos diretores do departamento internacional da Rede Globo, íamos dormir
Título de música de Herivelto Martins. (Os créditos das músicas estão em anexo
no final do livro).
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cedo por causa do colégio. Muitas noites éramos acordados por aquela zoeira toda. Às vezes, eu não resistia ao eco das risadas e ia até a sala curtir um pouco aquela
festa. Meu rostinho de criança, com os olhos inchados de dormir, era saudado com entusiasmo pelos amigos de meus pais. Alguns eram especialmente carinhosos comigo:
Grande Otelo, Cícero Nunes e Linda Batista. Meus pais não implicavam nem me mandavam para a cama: eram complacentes. Eu adorava ficar ali, de colo em colo, assistindo
a toda aquela alegria, saboreando aquele carinho. Era uma grande curtição.
Pela manhã, era freqüente encontrarmos, no sofá, no chão da sala, na varanda, Orlando Silva, Ciro Monteiro, Nelson Gonçalves, Monsueto Menezes, Cícero Nunes, Otelo
e tantos outros, dormindo. Eu e Bily tínhamos de pular por cima deles para alcançar o ônibus da escola. Quando acordavam, iam até a praia, em frente de nosso apartamento
na Urca, para curar a ressaca.
Nas noites e nos jantares, Linda Batista estava sempre presente. Ela me pegava no colo, dizia que eu era seu namorado, seu amor. Chegava a me chamar de "meu homem".
Realmente acreditei nisso, passando a curtir uma paixão pueril por Linda nos meus cinco anos. Quando ela chegava, eu pedia a minha mãe para me vestir com a melhor
roupa: afinal, ia receber minha namorada!
Um dia, Linda levou um de seus "reais" namorados, o Bombonatti, para apresentar a meus pais. Fiquei conhecendo-o também, é claro. Entrei na maior crise; levou muito
tempo até me livrar daquele "amor". Tia Margarida lembra que minha mãe teve de me dar muita atenção e me consolar bastante...
Nessa época, a cantora Marlene estreava sua carreira como crooner do Cassino. Vinda de São Paulo, com apenas 15 anos, foi necessário um "jeitinho" de Carlos Machado,
diretor da casa, inventando uma declaração onde constava 21 anos, idade exigida para a maioridade legal.
Minha mãe sempre nos contava como aquela mocinha bonita, recém-saída do colégio, assistia embevecida a todos os ensaios e
shows do Trio de Ouro no Cassino. E como acabou conquistando um tremendo boa-pinta e excelente profissional, também crooner no Tassino da Urca, muito disputado pelas
mulheres, Newton Paz.
Minha mãe sempre adorou animais. Não me lembro de sua casa sem algum bichinho. Na Urca, tínhamos um cachorro, um papagaio falante e um macaco-prego, chamado Chico.
Um dia, o Chico se soltou da corrente e foi "visitar" a casa do vizinho, um general do Exército. Entrou pela casa, foi parar no quarto do general, pulou na penteadeira
da mulher dele, desarrumando e quebrando tudo. Foi um inferno. Minha mãe teve de ir lá, pedir muitas desculpas para o circunspecto general e trazer de volta para
casa o Chico, meio cabisbaixo, sentindo que havia dado um fora.
Sei que aprendi com ela a amar os animais. Se não tenho um cachorro, um gato para curtir, sinto que falta alguma coisa em casa. Felizmente, minha mulher, Ana, também
tem paixão por bichos e, assim, pude passar para meu filho Bernardo o amor e respeito aos animais que aprendi com minha mãe. Hoje em dia, temos em nossa casa, na
Lagoa, três cachorros: um akita branco, o Kyoto, totalmente zen, e um casal de daschunâ, Misha e Pitu, que já nos deram quinze "netos".
Todo o clima de festa e alegria que rolava em nossa casa com meus pais transformou a Urca, em nossas cabecinhas de criança, num parâmetro de felicidade, para mim
e para meu irmão Bily. com a situação financeira de nossos pais já bem melhor, e por serem muito festeiros, Bily e eu tínhamos festas de aniversário inesquecíveis
na Urca, quando podíamos chamar os amiguinhos da escola e todos os meninos da rua para comer o bolo e assistir aos filmes de Disney no projetor que meu pai alugava.
Era um sucesso.
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Meu pai era amigo e parceiro de grandes compositores da época, mas posso afirmar que o compositor favorito de Herivelto era Dorival Caymmi. Ele tinha paixão por
sua forma de compor, dizia sempre que suas músicas "rendiam" no palco. As maiores obras de Caymmi foram lançadas pelo Trio de Ouro, em arranjos vocais memoráveis:
"O mar", "Dora", "O canoeiro", "É doce morrer no mar", "Roda-pião", "Promessa de pescador".
Os dois inovaram em seu tempo. Foram os primeiros compositores a cantar as próprias obras. com uma diferença: Caymmi, dono de um timbre maravilhoso e personalíssimo,
cantou sozinho. Herivelto, de voz não tão privilegiada, inteligentemente sempre cantou em dupla ou em trio.
Em sua casa, ao lado da mulher, Stela, Caymmi recebeu a mim e a Ana, numa tarde chuvosa, para um depoimento bem à moda baiana, sem pressa e impregnado de carinho
por Herivelto e Dalva. A amizade dos dois casais era muito fraterna e, embora eles não morassem na Urca, estavam sempre pelo bairro nas festas de Sílvia Autuori
ou em visitas a Dick Farney e Carmen Miranda. E, principalmente, nunca deixavam de nos visitar. Eram recebidos sem cerimônia, na maior intimidade. Caymmi lembra:
"Às vezes chegávamos meio de repente e encontrávamos Herivelto ainda de pijama, com seu violão na cama. E Dalva, de robe, ia nos fazer um cafezinho".
Stela completa:
"Sabe, Pery, Dalva era muito simples, e nos dedicava um carinho especial, assim, de irmã mesmo".
com uma pontinha de saudade, nos contam sobre a época em que seu filho pequeno, Dori, apresentando uma forte bronquite, recebeu a recomendação do médico para uma
temporada à beiramar. Quando comentaram isso com meus pais, imediatamente eles ofereceram nossa casa na Ilha do Governador para umas férias e tratamento de Dori.
Stela conta que, diante da espontaneidade do oferecimento
aceitaram de bom grado e ficaram por lá um bom tempo, meses. Chegaram a receber algumas visitas nossas, em que Dalva e Herivelto diziam não ter pressa,
que aproveitassem, pois, devido ao corre-corre do trabalho, estavam sem tempo de curtir a casa.
Caymmi, continuando essa viagem no tempo, lembra-se de um quadro que pintou da janela de nossa casa, retratando a casa em frente, onde havia uma inscrição: "Mon
Revê" (Meu Sonho, em francês). O quadro hoje está em sua casa de Rio das Ostras, no litoral fluminense, e provocou em Haroldo Barbosa, quando fez uma visita a Caymmi,
uma agradável recordação: também por oferecimento de Dalva e Herivelto, Haroldo e Maria passaram a lua de-mel em nossa casa da Ilha. Ao rever aquela casa que contemplara
ao lado de Maria, num momento tão especial deles, o autor de "Pra que discutir com madame" queria a todo custo comprar o quadro. Caymmi recusou:
"Nem pensar! Eu e a Stela adoramos lembrar essas nossas férias com o quadro".
Em meio a essa camaradagem toda, brincávamos muito com seus filhos, Dori e Nana. Posso dizer: já naquela época, Nana era uma "pimentinha". E Dori mostrava sua especial
e ferina inteligência. Sempre carinhoso comigo, quando nos encontramos Dori gosta de brincar assim:
"Pery, você e eu somos os únicos neste país com pedigreel".
Sempre rimos muito com essa história.
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GRANDE OTELO, O FIEL COMPANHEIRO
O TEMPO JAMAIS APAGARÁ a saudade que sinto de um sujeito chamado Grande Otelo. Ele era o que se poderia chamar de "a sombra alegre de meu pai". Otelo, dono de especial
genialidade, cheio de problemas emocionais, tinha em meu pai o amigo, o irmão, o mentor. Bebia demais. Meu pai o definia numa frase:
"Otelo era tão grande que nem se matar conseguia, por mais que tentasse".
E ele tentou durante toda a sua existência...
Conta o compositor Bily Blanco que o escritor Orígenes Lessa o chamava, carinhosamente, de "sabagante valetudinário". Otelo, numa conversa, contou a Bily que não
sabia o significado da estranha expressão. Ao ser esclarecido, espantado, escutou a "tradução": indivíduo de compleição fraca, homem pequeno. Dá para imaginar a
cara de Grande Otelo diante disso?
Otelo tinha preferência por loiras enormes, e várias fizeram dele "gato e sapato". O dinheiro que gastava com elas daria para construir um cassino, diziam os amigos.
com o passar do tempo, os problemas de Otelo já não comoviam as pessoas, ninguém parava
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mais para ouvir suas histórias. Foi aí que comecei a receber insistentes convites dele para andarmos de bicicleta pela Urca.-
Eu ia sentado no quadro, ouvindo as lamúrias dele sobre a vida, os problemas com as mulheres. Eu devia ter no máximo sete anos e me tornara o confidente de Otelo.
Foi ele quem me presenteou com a primeira camisa do Botafogo, num momento de angústia, tentando garantir ouvinte para o coração do botafoguense Telinho - este era
outro apelido carinhoso de Otelo.
Ele me acordava à noite e íamos com meu pai e minhas tias Lila e Margarida pescar nos paredões da Urca. Otelo enchia a cara. Na volta da pescaria, naquelas madrugadas,
cantávamos nosso hino de pescadores:
Nós somos pescadores Que viemos de pescar Cocoroca!
Vez por outra, lá estávamos nós, cantando o hino com as varas de pescar nas costas. As cocorocas eram muitas vezes fritas por minha mãe para acompanhar a cervejinha.
Telinho não saía de casa. Minha mãe dizia que ele era seu "filho preto".
Certa noite, uma grande tragédia atingiu sua família, na Urca, quando trabalhava com Walter Pinto, no Teatro Recreio. Otelo estava casado com Gilda e criava um
filho dela, apelidado de Chuvisco, a quem curtia como seu filho. Até hoje não se sabe ao certo o que levou sua mulher a atitude tão drástica. Lembro-me bem. Acordamos
de madrugada com Otelo batendo em nossa porta e gritando desesperado: com um revólver, Gilda havia matado Chuvisco e se suicidado.
Se Otelo já bebia, passou a mergulhar no copo. O tempo se encarregou de minorar sua dor, e ele se reergueu. Tal capacidade seria posta à prova muitas vezes. Voltou
ao palco, ao cinema. Junto
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com Oscarito, fez grande sucesso na fase áurea da chanchada brasileira, nos estúdios da Atlântída e da Vera Cruz.
Mesmo estando sempre juntos, não era habitual a participação de Otelo nas músicas de Herivelto, mas chegaram a fazer algumas músicas em parceria. O conhecido samba
"Praça Onze" envolve um episódio engraçado. Herivelto contava que Grande Otelo chegou ao camarim do show lamentando o fim da praça Onze, pois a Nova Avenida (atual
avenida Presidente Vargas) estava rasgando a cidade. Trazia um monte de palavras escritas em algumas folhas de papel: "a praça iria se acabar, o sambista iria perder
seu lugar de concentração, que as lágrimas já tomavam conta do sambista, e... blá, blá, blá, blá".
Herivelto pegou aquela papelada, levou para casa e dias depois perguntou para Otelo se era isso que ele queria dizer:
Vão acabar com a praça Onze
Não vai haver mais escolas de samba, não vai
Chora o tamborim! Chora o morro inteiro!
Favela, Salgueiro!
Mangueira, Estação Primeira!
Guardai os vossos pandeiros, guardai
Porque a escola de samba não sai
Adeus, minha praça Onze, adeus
Já sabemos que vai desaparecer
Leva contigo a nossa recordação
Mas viverás, eternamente, em nosso coração
E algum dia, nova praça nós teremos
E o teu passado cantaremos
Otelo começou a gritar:
"É isso, é isso o que eu quero dizer!".
E a parceria aconteceu. Nascia um dos maiores sambas do Brasil. Esse talento natural de escrever para o homem simples
entender, e cantar, Herivelto adquiriu de suas origens humildes. A parceria não foi motivo só de alegria para Otelo; foi também de mágoa com Herivelto devido a
sua conhecida "tendência" de curtir sozinho os louros do sucesso...
Cresci ouvindo meu pai contar, de forma brincalhona, que a parceria na música "Praça Onze" havia acontecido só porque ele, Herivelto, soube desenvolver uma idéia
de Otelo sobre o término da praça. A respeito de suas parcerias com Otelo, dizia sempre que ele apenas dera alguns "palpites". No início foi engraçado, mas com
o passar do tempo as pessoas perguntavam:
"Ô, Otelo, mas, afinal, você é ou não é parceiro do Herivelto?".
A verdade era: Herivelto jamais deu um crédito real ao compositor Grande Otelo, seu parceiro em outros maravilhosos sambas, como "bom dia, avenida" e "Fala, Claudionor".
Otelo se ressentia muito com essa atitude, mas engolia a mágoa e continuava à volta do amigo de todas as horas e... parceiro de quase nada.
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HOJE QUEM PAGA SOU EU
MEU PAI VIVIA RODEADO por muita gente. Adorava compartilhar sua música com os colegas e conhecer as novidades da "concorrência". No auge da criatividade, as músicas
jorravam com facilidade, seu humor especialmente ácido e seu espírito natural de liderança atraíam as pessoas.
Na mesma rua de nossa casa, na Ilha do Governador, morava Benedito Lacerda. Também morava lá o humorista Castro Barbosa, do PRK-30, programa estourado de audiência
na Rádio Nacional. De Benedito Lacerda tenho recordações variadas, boas e más. Era dono de personalidade forte e autoritária. Apesar de boêmio, levava a sério a
vida familiar. Tinha carinho imenso por meus pais, a ponto de se tornar meu padrinho de batismo e compadre de Dalva e Herivelto.
Algumas vezes, nos fins de semana, meu pai e minha mãe me deixavam na casa do padrinho Benedito. De repente, comecei a não querer ir mais e a chorar quando queriam
me deixar lá. Minha mãe, com jeitinho, acabou me convencendo a contar o que se passava: meu padrinho andava extrapolando sua autoridade e me
Título de música de Herivelto Martins e David Nasser. i
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batendo. Lembro-me de que morria de medo dele. Seu jeito de lidar com criança era muito pouco delicado.
Em contrapartida, sendo uma das poucas pessoas com ascendência sobre o genioso Herivelto, minha mãe me contava que Benedito brigava muito com meu pai por causa
da forma como a tratava, das brigas violentas e de como ele "dava bandeira" para Dalva das paqueras fora de casa.
Para os amigos mais íntimos, os que freqüentavam o Café Nice, o apelido de Herivelto era Garnisé, por ser de estatura baixa, falar e discutir como ninguém. Ele entrava
no Nice, deixava minha mãe dentro do carro esperando, e ia beber e papear. Esquecia-se dela, e lá pelas tantas alguém lembrava:
"Herivelto, a Dalva está dormindo no carro, à sua espera, homem!".
Ele dizia apenas:
"Já estou indo!".
E esse "já estou indo" levava mais de uma hora. Benedito Lacerda, quando estava junto, brigava com ele e o mandava ir embora. Benedito acreditava no seguinte "conceito
de família": a boemia da rua não pode comprometer a casa. Era a moral vigente da época: os homens mantinham seus "pecados" bem longe do lar, um chefe de família
não podia perder a moral com a família.
Do Café Nice guardo algumas tênues lembranças, era muito criança, embora o "freqüentasse" com meus pais. Certas coisas ainda me vêm à mente. Uma das imagens fortes
é da época de eleição, aquele movimento todo, muita discussão, e a maioria dos artistas torcendo pelo candidato ledo Fiúza, do Partido Comunista. Lá conheci muitas
pessoas que se tornaram personalidades lrnportantes na música brasileira, como Ciro Monteiro, Lamartine Babo, entre outros.
Centre todos, meu pai nos falava com doçura sobre Noel Rosa, com
quem conviveu num curto período. Noel era pessoa extremamente
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doce, dizia, mas complexada. Devido ao parto por fórceps, tinha um defeito no rosto: queixo totalmente para dentro e boca torta para o lado, o que o obrigava
a comer só por um lado.
Certa vez, estando no Café Nice, Herivelto insistia para Noel comer algo, pois quase não se alimentava. Noel, numa demonstração de confiança e intimidade com meu
pai, pediu uma sopa e colocou a cadeira de modo que seu defeito ficasse voltado para
a parede, assim a colher entrava pela boca sem ser notada por quem o observasse. Estavam comendo quando alguém se aproximou, querendo puxar papo com Noel. Herivelto
tentou evitar a aproximação. Mas bastou isso para Noel parar, não comeu mais. Acredita-se que cenas como essa desestimulavam Noel a se alimentar, concorrendo para
contrair a tuberculose que tão cedo o levou.
O Café Nice ficava onde hoje é a Caixa Econômica, na avenida Rio Branco, e foi cenário de incontáveis histórias da música popular brasileira, fatos importantes ou
até molecagens dos artistas. Aparecia por lá com freqüência algum compositor humilde, procurando alguém para escrever suas músicas em partituras. Numa dessas vezes,
a "turminha" de sempre recebeu um sujeito e ouviu sua música, mas lhe recomendou voltar depois, pois ninguém ali sabia escrever notas musicais.
Mais tarde, o compositor retornou e apresentaram-lhe o "maestro" encarregado de escrever sua música. A "turminha" já havia montado a brincadeira. Colocaram o compositor
e o "maestro" sentados numa mesa, ao lado de um biombo. Atrás do biombo, Benedito Lacerda ouvia a música e escrevia tudo. Quando acabaram, o "maestro" o contestou,
dizendo:
"Não, senhor, esta música é um plágio. Esta música é do Benedito Lacerda. Você roubou a música do Benedito! Quer ver? Benedito, venha cá! Mostre aí aquela
sua música
nova, já todinha escrita, pró rapaz aqui! Cantarola para ele!".
Benedito mostrou a música, na maior cara-de-pau. O compositor, simplório, saiu arrasado do Café. Como poderia se rebelar ou
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discutir com a nata dos compositores? Coisas como essas eram freqüentes, a edição musical engatinhava e não havia registro de música. Dinheiro de composição praticamente
não existia, não havia a arrecadação de hoje.
Herivelto respeitava muito Benedito. Além do mais, era pequeno media cerca de 1,60 metro, e o compadre, muito grande, falava alto e grosso. Era engraçado os dois
andando juntos: um bem alto e o outro bem baixo. Foram parceiros em dezenas de composições: "Olhos verdes" e "Ai, morena" são algumas mais famosas de que me lembro.
Minha mãe contava um caso ocorrido com eles. Certa tarde, meu pai disse a Benedito que desejava fazer uma música falando do entardecer no morro, de forma mais lírica,
mais sentimental, sem papo de Carnaval. Nessa época, era costume das rádios tocar às seis da tarde músicas sacras, como a "Ave Maria" de Gounod. Era bonito ver o
entardecer chegando, o sol sumindo no horizonte, as luzes se acendendo, e as rádios tocando aquela música suave.
Essa foi a visão mais forte de Herivelto ao compor "Ave Maria no morro" - a visão do poeta. Ele contava que os primeiros versos que pintaram foram estes dois:
E quando o morro escurece, Elevo a Deus uma prece
Foi depois de ver um grupo de pessoas rezando numa capela,
ao cair da tarde. Aos poucos, foram surgindo outros versos, como
sinfonia de pardais/ anunciando o anoitecer", influenciado por sua
lembrança do barulho dos pardais aninhando-se nas árvores da praça
Tiradentes, no final da tarde, onde ficava jogando bilhar.
Quando Herivelto mostrou a Benedito os primeiros sons da música, escutou:
Oh, compadre! Isso é música de igreja, eu não entro nessa parceria nem a pau!".
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Herivelto então terminou a canção sozinho. O Trio de Ouro começou a mostrá-la ao público. A reação foi ótima. Logo depois a gravaram na Odeon. Quando "Ave Maria
no morro" bateu no mercado, foi um estouro.
Barracão de zinco sem telhado
Sem pintura lá no morro
Barracão é bangalô
Lá não existe felicidade de arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já vive pertinho do céu
Tem alvorada, tem passarada, amanhecer
Sinfonia de pardais anunciando o anoitecer
E o morro inteiro
No fim do dia
Reza uma prece, Ave Maria
Ave Maria, Ave
E quando o morro escurece
Eleva a Deus uma prece
Ave Maria
Benedito, parceiro em tantas obras de meu pai, logo gritou: "O, Herivelto, eu estou nesta parceria também, né?!". "Não, Benedito, nesta você não está, esta é 'música
de igreja', lembra?"
Por causa da interpretação de "Ave Maria no morro", Dalva aperfeiçoou os agudos, os trinados. Esse seu modo de interpretar despertou a atenção do maior cantor da
época, Francisco Alves. Foi ele quem criou algumas das obras mais famosas de meu pai, como "Caminhemos", "Ela", "Isaura", entre outras.
Dalva e Francisco Alves formaram um dos pares mais famosos da MPB. Juntos gravaram "Brasil", de Benedito Lacerda, "Dois
Corações" e "Timoneiro", de Herivelto, músicas que ficaram para sempre na história da discografia brasileira. Eram gravações lindíssimas, numa época em que um homem
e uma mulher, trabalhando em dupla, no disco, no cinema, eram garantia de excelente resultado comercial.
Chico Alves era pessoa extremamente altiva. De postura empertigada, falava como cantava: empostado. Foi um dos artistas de sua época que melhor souberam ganhar dinheiro.
De hábitos bem mais sofisticados que a média dos artistas, criava cavalos de corrida em seu haras, em Miguel Pereira, região serrana do Rio. Tinha carinho especial
por meus pais, ia muito a nossa casa e nos convidava sempre para ir a seu haras. Eu e Bily adorávamos o passeio: lá podíamos brincar à vontade, andávamos nos cavalos
mais mansos, bebíamos leite quentinho das vacas. E, o melhor de tudo, tínhamos nossos pais só para nós, um fim de semana inteirinho. Coisa rara.
Ao morrer prematuramente num acidente de carro, Chico recebeu de Herivelto e seu parceiro David Nasser uma bela homenagem traduzida no samba-canção "Francisco Alves",
gravado por Nelson Gonçalves.
Até a lua do Rio
Num céu tranqüilo e vazio
Não inspira mais amor
O violão desafina
Porque chora em cada esquina
A falta de seu cantor
Escravo da melodia
Ele cantando escrevia
O que na alma brotava
Subindo os degraus da glória
Ele escreveu a história
Da cidade que adorava
O Rio foi o seu berço
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O violão foi o terço
O samba a sua oração
Sambista de um mundo novo
Da alma simples de um povo
Que dança de pé no chão
Velho Chico tu recordas
Um violão cujas cordas
A mão de Deus rebentou
Porque falta ao samba agora
A lágrima que o samba chora
Na voz que a chama apagou
Virgínia Lane trabalhou com meus pais nos diversos cassinos espalhados pelo país: Urca,
Quitandinha, Pampulha e Poços de Caldas. No Cassino da Urca, no show Vem,
a Bahia te espera, com direção de Herivelto e Chianca de Garcia, tinha como colegas o Trio de Ouro, Grande Otelo, Linda Batista e o maestro Vicente Paiva. Ainda
menor de idade, Virgínia trabalhava com autorização especial do juiz de menores. Muito moleca e saltitante nos seus
15 anos, ganhou de Herivelto uma música especialmente
composta para ela cantar no show, "A pulga", uma canção brejeira que ela, com sua atuação apimentada, transformava num sucesso de palco:
Não fique aflita, senhorita
Se a pulga várias vezes a morder
Esse bicho é audaz e atrevido
E dono de nós se julga
Mas se você arranjar um bom marido
Ele caça a sua pulga...
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Em depoimento carinhoso, Virgínia recorda que minha mãe vivia falando dos filhos e me levava com freqüência para os
camarins, pois, sendo o mais velho, agüentava ficar acordado até
noite alta.
"Dalva demonstrava uma afinidade muito grande com o Pery. Qualquer coisa era com o Pery."
Virgínia também me fez um comentário inédito: foi a única pessoa a se referir a meu pai como um marido carinhoso com minha mãe. Disse-me que se lembrava dele com
ela sentada em seu colo ou ele tocando violão para ela. Todas as pessoas com quem conversei em geral comentam que havia entre meu pai e minha mãe um ciúme quase
doentio. E que era o grande causador das brigas.
A cantora Emilinha Borba, outra apaixonada por Dalva, me contou que conheceu minha mãe quando iniciava a carreira. Ela se lembra de minha mãe grávida, trabalhando
nos shows.
Achava meu pai muito sisudo, tinha medo de falar com ele. Ficava sabendo, no camarim do cassino, das brigas deles. Mas nunca viu nenhuma.
Um dia, estavam conversando no camarim e Dalva se abriu com ela, queixando-se do gênio de Herivelto. Vendo Dalva tão frágil e apaixonada, Emilinha resolveu dar
uma mãozinha e prometeu conversar com Herivelto na primeira oportunidade. Alguns dias depois, criou coragem e procurou meu pai. Disse a ele que precisava tratar
melhor a Dalva, moça tão bonita e dedicada a ele, ao trabalho deles. E, displicentemente, acrescentou:
Sabe, Herivelto? Se você não tratar melhor a Dalva, vai acabar perdendo-a... e olha que eu sei de um pretendente, um milionário, que faria de tudo para ter alguma
chance com ela!".
Na semana seguinte, Dalva a procurou, toda alegre, querendo saber o que ela havia falado a Herivelto, pois o homem tinha mudado "da água pró vinho". Estava bem manso
e atencioso. Emilinha respondeu bem marota:
Ah, minha amiga! Pura psicologia feminina!".
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A música brasileira era mesmo uma grande família. Todos se freqüentavam, todos eram amigos de meus pais. Pelo menos, enquanto estavam juntos. A separação deles
iria provocar um racha nessa quase unanimidade.
Ao compor "Cabelos brancos", a intenção de Herivelto era que fosse música de Carnaval, rápida e dançante. E assim foi gravada pelo conjunto Quatro Ases e Um Coringa,
com boa repercussão. Quando Sílvio Caldas a lançou, de forma mais sentimental, é que passou a ser vista como música romântica e se tornou carro-chefe do repertório
de Herivelto e do intérprete.
Não falem dessa mulher perto de mim
Não falem pra não lembrar minha dor
Já fui moço, já gozei a mocidade
Se me lembro dela, me dá saudade
Por ela vivo aos trancos e barrancos
Respeite ao menos meus cabelos brancos
Ninguém viveu a vida que eu vivi
Ninguém sofreu na vida o que eu sofri
As lágrimas sentidas
Os meus sorrisos francos
Refletem-se hoje em dia
Nos meus cabelos brancos
E agora em homenagem ao meu fim
Não falem dessa mulher perto de mim
De Sílvio Caldas meu pai costumava falar:
"Um boa-vida, nunca foi dedicado ao trabalho, chegava às raias da irresponsabilidade. Assumia compromissos, não cumpria, faltava a tudo o que com ele fosse combinado,
mas foi um dos maiores cantores que este país já conheceu".
Certa vez, Herivelto acertou uma gravação com Sílvio. Tudo combinado para as nove da manhã. No dia seguinte, nada de Sílvio aparecer. Meu pai esperou, esperou.
Foi até onde Sílvio morava e... lá estava ele, dormindo. Herivelto, superdisciplinado, deu uma bronca daquelas, tirou-o da cama, colocou-o debaixo do chuveiro
- acho que o porre tinha sido brabo - e carregou-o para o estúdio, onde toda a equipe os aguardava. Depois disso, quando tinha algum compromisso de gravação cedo
com ele, na noite anterior Herivelto não o largava. Levava-o para dormir em nossa casa. Ficava grudado nele até que chegasse a hora de ir para o estúdio.
Meu pai contava também que Sílvio jogava o último tostão no cassino. Ficava até sem dinheiro para a condução. Em plena madrugada, pedindo abrigo, Sílvio ia bater
na janela do quarto de meus pais na Urca - nosso apartamento era térreo. Herivelto acordava, botava-o para dormir na sala e ainda dava dinheiro para o ônibus do
dia seguinte.
Minha mãe gostava da forma gentil e quase humilde com que aquele amigo a tratava. Lembro-me bem dele: jeito calmo, falar pausado e caminhar lento. Seu nome quase
ninguém conhece, Alfredo. Mas basta dizer Pixinguinha. Escrevia muitas das partituras musicais que o Trio de Ouro cantava, transpondo para o papel os arranjos criados
por meu pai.
Outro maestro estimado por Herivelto era Radamés Gnatalli. Admirador de Herivelto, sempre aceitava seus palpites nos arranjos e chegou a aconselhá-lo a estudar música,
tal como havia feito villa-Lobos. Mas, ao conviver melhor com a obra e a criatividade de Herivelto, disse-lhe para esquecer o conselho, pois poderia comprometer-lhe
o talento, totalmente intuitivo.
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Elegância era a marca registrada de Ataulfo Alves. Postura impecável, ternos de linho 120. Amigo tanto de Dalva quanto de Herivelto, procurava ser sempre imparcial
quando explodiam as brigas do casal. Grande compositor, conviveu muito com meus pais. Como Herivelto e a maioria dos compositores contemporâneos, Ataulfo também
não sabia música. Toda a sua criatividade era intuitiva, mal arranhava o violão. Vendo o sucesso do trabalho de Herivelto com a Escola de Samba de Salão, Ataulfo
também formou seu próprio grupo, reunindo algumas mulatas, que chamava de "Pastoras".
Amante do sul do Brasil, Herivelto escreveu com Pedro de Almeida "Gaúcho velho", música que se tornou um hino dos gaúchos:
Gaúcho velho como eu, criado a bruto Que não se enreda nas maneias do amor Não sei por que o coração deste matuto Caiu no pialo deste anjo encantador
Ai, Rio Grande, minha bombacha, meu cavalo alazão
Ai, Rio Grande, esta saudade amarga mais que o chimarrão
Lá pelas tantas encilhei meu alazão
De légua em légua ele faz
De upa em upa
Eu carreguei aquela china na garupa
Ai, Rio Grande, minha bombacha, meu cavalo alazão
Ai, Rio Grande, esta saudade amarga mais que o chimarrão
Nessas boemias pela região sulista, Herivelto conheceu o compositor Lupicínío Rodrigues, de quem se tornou amigo. Por
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insistência de Lupe, como também o chamavam, Herivelto gravou uma composição sua em 1951, apesar de não ser adequada para as vocalizações do Trio. Era o samba-canção
"Vingança".
Não aconteceu muita coisa, tocou pouco nas rádios. Mas o suficiente para a cantora Linda Batista se apaixonar por ela e querer gravá-la. Porém, havia uma regra na
época: artistas de uma mesma gravadora não podiam regravar música já gravada por um colega sem autorização do outro. Minha primeira "namorada" procurou Herivelto,
amigo dela e de Lupe, e meu pai liberou a música. A gravação de Linda estourou, tornando "Vingança" um grande clássico e projetando Lupicínio Rodrigues para o cenário
musical nacional.
Marino Pinto, outro grande compositor, era unha e carne com meu pai. Conheceram-se no Café Nice e o freqüentaram muito juntos, apesar de Marino não beber nada.
Meu pai dizia que, "apesar desse defeito", Marino era grande companheiro, com uma conversa brilhante. Era figura obrigatória do macarrão de nossa casa, e do sofá
da sala, nas madrugadas. Seu apelido era Ovo Quente. Apelido dado por Ciro Monteiro, figura fantástica e divertida. A cara de bonachão, a pele muito morena, cabeça
grande, pouco maior que o normal, valeram a Ciro, por sua vez, o apelido de Formigão.
Era engraçado ver Ciro Monteiro acompanhando sambas na caixa de fósforos, suas mãozonas batucando naquela caixinha. Afáyel, sorridente, vivia fazendo piada de tudo.
Ciro era o grande arauto da alegria, do bom humor. Foi o maior gênio nos trocadilhos de que se tem notícia naquelas boemias. Fazia o Café Nice chorar de
rir com suas criações. E ajudava bem a esvaziar o estoque de bebidas do bar.
Ciro cansou de ir bater papo no carro com Dalva, enquanto erivelto bebia e ela mofava esperando-o. Ele gostava muito de
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Dalva: tratava-a carinhosamente de Lagartixa. Acredita-se que o apelido de Garnisé ou Galinho Garnisé, de Herivelto, tenha sido posto por Ciro, pois era ele
quem "batizava" todo mundo.
Exemplos de apelidos desse pessoal da música, alguns com origem explicável, outros que só podemos imaginar: Nelson Gonçalves - Metralha, pela gagueira; Gilberto
Alves - Palha de Aço, talvez pelo cabelo crespo; Orlando Silva - Chorão, e basta ouvilo cantar para entender; Anísio Silva - Maracujá de Gaveta, pela pele enrugada;
Ângela Maria - Sapoti, pela morenice; César de Alencar - Cabide; Jorge Goulart - Boca de Caçapa, e quem se lembra do tamanho de sua boca entende. A maioria era de
autoria do bem-humorado Ciro Monteiro.
Incontáveis manhãs, para ir à escola, nós tínhamos de desviar de um hóspede assíduo dormindo no chão da sala. Era um cantor, por muitos considerado um dos maiores
de todos os tempos da MPB: Orlando Silva, o "Cantor das Multidões", nome dado pelo radialista César Ladeira. Tinha um caso com a atriz Zezé Fonseca, os dois não
saíam da companhia de Dalva e Herivelto.
Normalmente, os amigos de meu pai pertenciam à "turma do copo", isto é, consumidores vorazes de bebida. A preferida era o conhaque Macieira. Entrava muito pouco
uísque no Brasil nesse tempo. Mas o caso de Orlando Silva era diferente: estava mergulhado nos tóxicos "pesados". Usava heroína. Os amigos, meu pai principalmente,
tentavam tirá-lo disso, porém não adiantava. Seu envolvimento já estava muito adiantado. Meu pai nos contava que ele carregava a droga no sapato.
Um dia, os dois casais estavam batendo papo em casa. Orlando foi ao banheiro e começou a demorar. Nada de voltar. Preocupado, meu pai forçou a porta: Orlando estava
desmaiado no chão, com agulha e seringa injetados na veia. Minha mãe sempre comentava como era chocante ver um amigo naquele estado.
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Em outra ocasião, iam minha mãe e Orlando Silva com um rupo de artistas fazer um show em cidade próxima do Rio. Paraam na estrada para abastecer e tomar café.
Na hora de ir embora, deram pela falta de Orlando. Dalva, já sabendo o que acontecia
quando ele Sumia, saltou do automóvel, pediu ajuda para o motorista e foi procurá-lo
no banheiro do posto de gasolina. Bateu na porta, e nada. Quando conseguiram abri-la, depararam com Orlando completamente dopado, mais uma vez com a seringa na
veia.
Zezé acabou cansando dessa vida maluca e, apaixonada ainda, foi para a Argentina dar um tempo, para esquecer Orlando. Muito bonita, acabou tendo um caso com o presidente
Perón.
Herivelto amava festas, especialmente quando podia brilhar com o Trio ou com sua Escola de Samba. Era sempre chamado para animar grandes festas nas casas dos milionários
cariocas, onde se apresentava ao lado de Dalva. Conduzindo sua Escola de Samba de Salão à beira da piscina, oferecia um espetáculo inesquecível. Quase sempre nessas
festas, na casa do jornalista Roberto Marinho ou de outras personalidades importantes, a figura obrigatória ao lado de meu pai e minha mãe era Grande Otelo, a quem
cabiam a animação e a apresentação do show.
Meu pai também gostava bastante de outro artista como animador de seus shows, o Gasolina. Era um "neguinho saliente", como Herivelto dizia, vibrante, alegre e "pau
pra toda obra". Gasolina cantava, contava piada, "enchia lingüiça" quando o show se atrasava.
Lembro-me de Gasolina com carinho especial. Grande profiswnal, grande ser humano. Que Deus guarde o "neguinho saliente".
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Ele era tão grande, com mãos tão desmesuradas, que todos pensavam tratar-se de segurança do meu pai. Criança, eu ficava impressionado com o tamanho daquele
outro crioulo da Escola de Samba de Herivelto. Passei anos sem vê-lo, apenas tendo notícias de sua carreira, de suas belíssimas composições.
Um dia, estou no Bar Monsieur Pujol, de Alberico Campana, em Ipanema, com Mièle e Ronaldo Bôscoli, à cata de sugestões para meu novo disco na Odeon, quando sou
abordado pelo grandalhão, gesticulando com aquelas mãozorras. Dizia que havia feito um samba para mim. Quis ouvir. Aí, ele me abraçou, e eu recebi nos ombros e
nas costas, por suas mãos, todas as notas do samba:
Para lavar a roupa da minha sinhá Para lavar a roupa da minha sinhá Sabão um pedacinho assim A água um pinguinho assim O tanque, um tanquinho assim E a roupa
um
tantão assim Para lavar a roupa...
Já sabem o nome dele: Monsueto Menezes. Adorei a música, gravei imediatamente. Foi um de meus primeiros sucessos. Eu tinha paixão por Monsueto. Todos nós. E não
dá para esquecer aquela mão de Monsueto batucando em minhas costas e nos ombros, cuspindo em meu ouvido, aquele bafo de cachaça!, e me deixando zonzo com aquele
batuque corporal.
Anos depois, Monsueto começou a pintar uns quadros primitivos. Então, quando a dureza apertava, em vez de pedir dinheiro emprestado, oferecia por qualquer dinheiro
algum quadro. E a gente "comprava". Cheguei a ter uns oito quadros do "Monsa" em casa. Minha mãe, mais alguns.
Herivelto demonstrava todo o carinho pelos amigos, adorava tê-los sua volta e pagar as despesas, com grande generosidade. Isso atraía os chamados "chupins", os
que estavam por perto apenas pelo sucesso e pelas noitadas patrocinadas pelo maior compositor da época. Lembro-me de muitas vezes em que, após um show ou ensaio,
ou mesmo quando apenas saía para dar uma volta e encontrava o pessoal, Herivelto levava todos para um restaurante: bebida e comida rolavam à vontade. Ele pagava
tudo.
David Nasser, mais tarde parceiro de meu pai em grandes sucessos, chegou a escrever a letra de um tango baseado nas generosas boemias de meu pai: "Hoje quem paga
sou eu", gravado por Nelson Gonçalves.
Antigamente nos meus tempos de ventura
Quando eu voltava do trabalho para o lar
Deste bar alguém gritava com ironia
"Entra mano, o Fulano vai pagar!"
Havia sempre alguém pagando um trago
Pelo simples direito de falar
Havia sempre uma tragédia entre dois copos
Nas gargalhadas de um infeliz a soluçar
Eu sabia que era um estranho nesse meio
Um estrangeiro na fronteira deste bar
Mas bebia, outro pagava e eu partia
Para o mundo abençoado do meu lar
Hoje faço desse bar a sucursal
Do meu lar que atualmente não existe
Tenho minha história pra contar
Uma história que é igual, amarga e triste
Sou apenas uma sombra que mergulha
Num oceano de bebida o seu passado
Faço parte desta estranha confraria
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Do vermute, do conhaque, do traçado
Mas se passa pela rua algum amigo
Em cuja porta a desgraça não bateu
Digo que entre nesse bar, beba comigo
Hoje quem paga soueu

ORSON WELLES, UMA RICA EXPERIÊNCIA
Foi HAROLDO BARBOSA quem indicou meu pai a Orson Welles. O gênio do cinema norte-americano veio ao Brasil numa espécie de "missão diplomática" do governo dos Estados
Unidos, encarregado de fazer alguns documentários sobre a América Latina para os estúdios RKO. Dentro da chamada "política de boa vizinhança", era um gesto de simpatia
dos Estados Unidos com os mais recentes aliados ao bloco de resistência às loucuras de Hitler.
O que nasceu da obediência a seus patrões da RKO se transformou numa grande aventura para Orson, ao se apaixonar por todo esse universo naif brasileiro, fascinante
para o gênio em sua descoberta do ritmo do samba, da negritude, da vida dos jangadeiros.
Antes de chegar ao Rio, Orson Welles esteve trabalhando no Peru. Já no Brasil, demorou-se mais do que o previsto no Nordeste, ao filmar os jangadeiros, pois acabou
se envolvendo com seu momento político e com seus líderes. Registrou em seu copião o movimento de reivindicação dos jangadeiros, que lutavam pela elevação a categoria
de Profissionais da Jangada, com direito a aposentadoria e outros benefícios. Registrou também todo o contexto de miséria da
luta desses pescadores, mostrando-a na plenitude de sua verdade.
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Ao chegar ao Rio, em 1942, Orson e sua "missão" já haviam consumido muito tempo e muito dinheiro. Os estúdios, ansiosos por um documentário tipicamente norte-americano,
e portanto cor-de-rosa, espantavam-se com a crueza do material enviado pela equipe. Na verdade, Orson nunca foi entendido nos Estados Unidos pelo trabalho que realizou
aqui. Ao se rebelar contra a RKO, as verbas enviadas foram escasseando e ele ficou sozinho com seu gênio cinematográfico e a paixão por um país que o recebia de
braços abertos - mesmo que esses braços não tivessem muita roupa.
O movimento dos jangadeiros crescia. Para sensibilizar o governo de Getúlio, eles foram de jangada até o Rio, em arriscada viagem. A imprensa carioca os recebeu
com muito alarde; os barcos e navios os saudaram com seus apitos e fogos. A então Capital Federal parou para vê-los, e o Brasil se comoveu.
Orson agendou a filmagem da reconstituição dessa chegada, na distante Barra da Tijuca. Para espanto de todos, uma fatalidade aconteceu: o líder dos jangadeiros,
Jacaré, morreu durante as filmagens. Sobrevivente de uma viagem tão arriscada, de Fortaleza ao Rio, morreu na Barra, em dia de mar calmo. Ninguém conseguiu explicar
o que houve.
Ao tomar conhecimento da morte do líder Jacaré, Orson Welles entrou em profunda depressão. Foram interrompidas as filmagens de Quatro homens e uma jangada. O dinheiro
vindo dos Estados Unidos diminuía cada vez mais. O estúdio chamou de volta a equipe, mas não conseguiu levar Orson Welles aos Estados Unidos. Este homem ficou aqui
com uma câmera, um operador e mais nada. E mudou de tema.
Nesse momento aconteceu a aproximação com Grande Otelo e Herivelto Martins, contratados como assistentes de direção de Orson Welles. Imaginem só, que honra. Trabalhar
com o talento precoce do cinema norte-americano que, aos 24 anos, fizera cair o queixo do mundo com seu filme de estréia: Cidadão Kane. Esta sua primeira obra
se tornou uma das mais importantes referências do
cinema norte-americano e mundial. E garantiu a Orson Welles o título de gênio para sempre.
Orson queria filmar o Carnaval. Mas do jeito dele: queria uma câmera seguindo uma criança pequena pelo morro, pelos ensaios, pela avenida, por entre as pernas dos
sambistas. Meu pai, "doutor em mulata e crioulo", organizou, a seu pedido, um Carnaval fora de época. A música "Praça Onze", grande sucesso do Carnaval de
1942, foi escolhida como tema principal da trilha sonora.
As filmagens de rua aconteciam em frente da escadaria do Teatro Municipal; outras, no estúdio da Cinédia. A criança que ia antecedendo e guiando a câmera - o "ponto
de vista da câmera" -, mostrando as calçadas, confete e serpentina pelas ruas, gente dormindo no chão após sambar até de manhã, lixeiro limpando a confusão, essa
criança era eu.
Minha lembrança das filmagens é um pouco confusa; a mim parecia tudo uma grande bagunça. Aquele amontoado de gente, eu passando entre as pernas dos crioulos, a câmera
me acompanhando, a voz de Orson no comando. O cansaço, a filmagem entrando pela noite, eu com fome, minha mãe me dando sanduíches...
Herivelto produzia as tomadas que Orson queria e, de seu assistente, passou a amigo. Dalva cozinhou muitas vezes para Orson Welles, depois das filmagens, das quais
participava com o Trio. Chegavam tarde, com tome e cansados, doidos por uma cerveja preta, pela macarronada já famosa de minha mãe e aquele clima descontraído
de nossa casa.
Sofrendo com a saudade de casa e da atriz Rita Hayworth, com
quem veio a se casar em 1943, Orson "adotou" nossa casa. Meus
Pais contavam do carinho que ele tinha comigo. Me punha no colo,
enquanto escutava Herivelto cantar suas músicas, até eu dormir.
tazia questão de me colocar na cama. Lembro-me do cheiro
penetrante de seus charutos cubanos, o hálito de cerveja preta. E de
sua altura (ainda não era tão gordo), quando me punha no colo.
a mim, bem pequeno nos meus cinco anos, ele parecia enorme.
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Orson ficava em casa até umas três ou quatro da madrugada tomando cerveja preta Black Princess, a preferida de meu paj Herivelto contava que ele bebia bem, mas
somente depois do trabalho concluído. De repente, levantava, chamava um táxi e se despedia, dizendo para Herivelto e Otelo:
"Tomorrow eight o'clock, nas estúdios da Cinédia!". Queria todos lá às oito em ponto. Quando os dois chegavam, entre oito e meia e nove horas, Orson já estava trabalhando.
A bronca era grande. Herivelto tentava disfarçar, dando ordens à equipe, começando a agitar o estúdio. Na terceira ou quarta vez, e esgotadas as clássicas desculpas
do trânsito, da condução, tomaram vergonha. Passaram a chegar na hora, embora mortos de sono. Herivelto e Otelo aprendiam na marra o significado da palavra "pontualidade"
no dicionário de um profissional norte-americano.
Para poder encarar melhor a responsabilidade, Herivelto precisava controlar Otelo, o mais atrasado da dupla. Então, já que ficavam o dia todo juntos, levou Otelo
para morar lá em casa. Assim, chegavam ao mesmo tempo ao estúdio.
Otelo havia recebido educação melhor que a de meu pai. Tinha sido criado por uma família paulista de posses e se aventurava em outros idiomas, cantava em francês
e inglês, havia excursionado pela Europa. Inicialmente, em seu arranhado inglês, era o elo entre eles, funcionando como intérprete. com o tempo, Herivelto também
foi se virando no inglês, além de Orson também ter começado a aprender um pouco de português. Para o trabalho, nos estúdios da Cinédia havia sempre um intérprete
oficial para garantir a fidelidade das informações trocadas.
Eu recebia de cachê 500 mil-réis por dia de filmagem. com esse dinheiro, meus pais compraram uma casa na Ilha do Governador, na rua Magno Martins, 65. A
Ilha era um dos lugares mais gostosos do Rio. Na época não havia ponte, a gente tinha de tomar a barca, a última saía às dez da noite. Pode-se imaginar a tranqüilidade.
Quando
Orson soube, ficou fascinado.
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"Eu querer ir junto", disse para meu pai. Foi. E não queria mais sair. Nos intervalos das filmagens, era
muito requisitado para festas, recepções. Avesso a tanta
badalação, sentia-se livre disso na Ilha. Dormia no chão, às vezes, porque Otelo, Bené Nunes e outros não deixavam de estar por lá também. Papo, cerveja preta, praia,
violão... era o que Orson Welles mais queria.
Numa daquelas recepções enfadonhas, como convidado de honra, vestindo um belo summer, Orson Welles foi receber uma homenagem, na presença do embaixador norte-americano
e convidados da alta sociedade carioca. Quando começaram a servir o jantar, Orson saiu à francesa, chamou um táxi e foi bater na porta de nossa casa, na rua Itapiru.
Meu pai ficou surpreso:
"Você não estava numa festa? Acho que devia voltar pra lá, não é o homenageado?".
"Eu não querer. Gente chata, muito chata!" Orson, já sem gravata, suando em bicas, foi entrando e tirando o paletó. Queria apenas sentar na sala de nossa casa e
tomar Black Princess.
Quando parou de mandar dinheiro, a RKO conseguiu "convencer" Orson a voltar a sua realidade norte-americana. Ele teve de se render e abandonar "o paraíso", como
se referia ao Brasil. Ao retornar, o momento político já era outro, os Estados Unidos não estavam mais interessados em fazer "bilu-bilu" no Brasil.
Em razão do grande talento que encontrou em Herivelto e Otelo, Orson chegou a convidá-los a ir para os Estados Unidos, insistiu que fossem morar lá. Mas Herivelto
e Otelo não quiseram se aventurar, começar tudo outra vez. Aqui estavam começando a sentir o gostinho do sucesso, depois de tempos tão difíceis.
Todo o material produzido por Orson ficou abandonado por quase meio século. Somente nos anos 90, numa co-produção francoarnericana, o documentário foi editado. Vieram
até o Brasil, em 1993, buscar subsídios sobre os acontecimentos da época. Gravaram
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depoimentos com Otelo e comigo. Infelizmente, meu pai já havia falecido e não pôde contar mais detalhes dessa experiência tão rica.
Já foi exibido no Brasil, nos cinemas de arte e na TV a cabo, com o nome de It's Ali True (E tudo verdade). Priorizaram as intermináveis cenas de jangadeiros, muito
pouco foi mostrado da riqueza do Carnaval carioca. E, o pior de tudo, não consegui me ver nele
- não sei se de propósito ou devido à perda desse material e infelizmente a idéia
original de Orson Welles de contar o Carnaval do Rio através dos olhos de uma criança,
dos meus, foi eliminada.
CARMEN MIRANDA
É MOTIVO DE ORGULHO para mim ter feito xixi na cama de uma mulher muito famosa. Já explico! Minha mãe contava uma história bem engraçada de quando eu era pequeno
e Carmen Miranda morava na Urca, perto de nossa casa.
Ao terminar seu primeiro contrato nos Estados Unidos, onde ficou seis meses, Carmen retornou ao show do Cassino da Urca, com a promessa do empresário norte-americano
de mandar novo contrato, mais longo, para levá-la de vez para morar nos Estados Unidos, filmando em Hollywood. Carmen, naquela expectativa, entrou em compasso de
espera. Meses se passaram, e nada. O tal M r. Lee não dava notícias.
Carmen então se agarrou a uma espécie de simpatia. Se uma criança fizesse xixi em sua cama, seria o sinal da chegada do tal contrato, do empresário norte-americano.
Carmen não tinha filhos. Durante algum tempo, contava minha mãe, ela passou a ir a nossa casa e pedia "o Pery emprestado". Em sua casa, Carmen me encharcava de água,
suco, qualquer líqüido, me colocava em sua cama e... nada de o xixi acontecer. Eu não era mais tão pequeno, não molhava mais tão facilmente a cama.
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Um dia, Carmen entrou correndo por nossa casa, aos berros:
"Ele fez, ele fez, Dalva, ele fez!".
Finalmente eu havia feito xixi na cama de Carmen. Ela acreditava que era o sinal para a simpatia se cumprir. E assim foi. Carmen Miranda se tornou o que todos nós
sabemos, The Brazilian Bombshell, - e eu ando buscando alguém que também faça xixi na minha cama...
Anos mais tarde, Carmen veio ao Brasil e Otelo me levou para encontrá-la no Anexo do Copacabana Pálace. Divertida, Carmen recordou essa história e me contou que
insistiu muito com minha mãe para deixar me levar com ela para os Estados Unidos, já que não tinha filhos, onde cuidaria de meus estudos e me teria sob sua proteção.
Minha mãe jamais permitiu e nunca comentou isso comigo. O engraçado, irônico até, é que, depois da separação de meus pais, fui "despachado" a viver em cada lugar!
E ninguém se lembrou dessa oferta, excitante, de Carmen.
NELSON GONÇALVES E SEUS DRAMAS
MAIS UMA VEZ VOLTA à memória a cena da infância: havia alguém dormindo no chão da sala. Mas quem seria aquele novo personagem sobre quem eu e Bily precisávamos pular
a caminho do colégio? Sabíamos que tinha um vozeirão, mas ainda não havia estourado como grande cantor. Acabaria transformando em grandes criações inúmeras canções
de Herivelto, como "Camisola do dia" e "Pensando em ti". Porém, naquele momento, não passava de um vulto estendido no chão da nossa sala.
Como havia sido lutador de boxe, mantinha certa dureza no jeito de cantar. Um estilo ainda sem polimento, sem as nuances que o tempo, a experiência e o exercício
da sensibilidade trariam às suas interpretações. Eu o via sendo orientado por meu pai, nas mínimas notas a emitir, até altas horas da madrugada. O tempo e Herivelto,
com sua mania de "Pigmalião", em horas e horas com o violão, contribuíram para que ele arredondasse o fraseado e se tornasse o grande Nelson, o Nelson Gonçalves.
Quando gravou "Nega manhosa", samba manemolente, a ginga e o molejo todo foram passados por Herivelto, pacientemente. As românticas, como "Pensando em ti" e "Atiraste
uma pedra", Nelson
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interpretava exatamente como meu pai orientava. Eram sessões de interpretação cansativas. Mas o resultado, com o tempo, se mostrou maravilhoso. Nelson se tornou
intérprete de enorme sucesso neste país.
Ao começar a ganhar fama, Nelson conheceu outro grande compositor: Adelino Moreira. Adelino o acompanhou por muitos anos e lhe deu muitos sucessos: "A volta do boêmio",
"Deusa do asfalto", "Escultura", "Fica comigo esta noite" e muitos outros. Vieram os Discos de Ouro, a glória, o dinheiro e... o vício, uma história que machucou
muita gente.
Herivelto ficou bem enciumado com a ligação de Nelson com Adelino. Não sem motivo: Nelson passou a evitá-lo, não procurava mais suas músicas, não freqüentava mais
sua casa.
Nelson Gonçalves tinha relacionamentos tempestuosos com as mulheres. Era passional, até violento. Meus pais seguraram muitas barras dele com as namoradas. Um desses
casos rumorosos aconteceu com a cantora Betty White. Nelson era apaixonado por ela.
Betty White, morena muito bonita, crooner no Cassino da Urca, cantava em inglês. Nelson tinha um estilo muito livre de vida. Apesar da paixão e do ciúme tremendo
de Betty, não abria mão da boemia, dos amigos. A Lapa falava mais alto.
Certa noite, na casa em que moravam na Urca, na rua Cândido Gaffrée, Nelson, todo arrumado para sair, enfrentou uma das crises de ciúme e apego de Betty: ela queria
ir com ele. Impossível. Os amigos o esperavam na Lapa para mais uma noitada. Como sempre, Betty insistiu, chorou, apelou, chantageando:
"Você não liga mais pra mim, não me ama mais. Eu não suporto isso, não sei viver sem você, Nelson. Já falei: se você me deixar, eu me mato!".
Nelson já tinha escutado esses chorámingos e ameaças muitas vezes, não deu importância e saiu pela porta dizendo apenas:
"Ora, Betty, deixa de bobagem. Só vou me divertir com os amigos. Logo mais, estou de volta".
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Nem bem estava atravessando a rua, uma vizinha gritou pela
janela:
"Nelson, corre aqui, pelo amor de Deus. Tá pegando fogo!". Sem imaginar o que poderia estar acontecendo, mas sentindo o nervosismo da voz, Nelson voltou correndo
para o apartamento. Triste surpresa. Encontrou sua Betty em chamas: num desatino, ela havia derramado um vidro de álcool nas roupas e ateado fogo. Em desespero,
ele tentou apagar o fogo, enrolando-a em cobertores. Apavorado, via a pele da linda Betty se soltando inteira. O cheiro de pele queimada dominou o apartamento. Aos
prantos, levou-a numa ambulância para a Casa de Saúde São Sebastião.
Foram quatro dias de agonia. Nelson ao lado dela o tempo todo, procurando confortá-la:
"Meu amor, pra que foi fazer isso". "É, meu amor, fiz uma loucura, não? Te amo tanto!" Infelizmente, Betty não resistiu às queimaduras. Nelson ficou abaladíssimo
e, para muitos, o caminho das drogas em sua vida começou aí. Herivelto, careta convicto e biriteiro por opção, tentou várias vezes aconselhá-lo. Inútil. Nelson também
estava se afundando nas drogas pesadas.
Tempos depois, Nelson se envolveu com a cantora Lourdinha Bittencourt, nossa vizinha na rua João Luís Alves, 88, na Urca, quando meus pais ainda viviam juntos.
Nós morávamos no térreo; ela, no último andar. Tinha o hábito de fazer "vocalização" pela manhã. A cada vez que Lourdinha subia nos exercícios, nas notas altas,
sua cachorrinha pequinesa uivava junto, bem alto, a ponto de incomodar a vizinhança, acordando todo mundo. Era terrível quando esses exercícios começavam.
Mas havia algo mais com relação a ela em casa. Certa vez, assisti a mais uma briga de minha mãe com meu pai, em que o pivô era Lourdinha. Meu pai negava, como
de costume. No entanto, tudo indica mesmo um casinho com ela na época do Cassino. Não seria de admirar. Lourdinha foi mulher belíssima. No palco da
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Urca, uma deusa: altiva, descia a escadaria cantando a opereta de Franz Lehár Viúva alegre, de soirée, chapéu enorme cheio de laços de fita, voz empostada, agudíssima.
Mais tarde Herivelto a aproveitaria no Trio. Os homens faziam procissão à frente de seu camarim, depois do show, para vê-la de perto.
E quem organizava tudo? Quem escolhia os que podiam ou não entrar no camarim? Os que ganhariam ou não sua companhia
para um jantar? Os eleitos para sair com Lourdinha? Quem determinava tudo era sua mãe de criação.
Dona Maria, uma mulata baixinha, invocada, criou Lourdinha desde cedo. Era ela quem selecionava os homens que cortejavam e entupiam o camarim e a casa de Lourdinha.
Se tivessem dinheiro, muito dinheiro, tinham acesso garantido; se não, nem chegavam perto. Lourdinha foi cortejada por ministros e presidentes. Na porta de sua casa,
ficavam parados os grandes milionários da época, políticos importantes, gente influente disposta a chegar perto dela, a qualquer custo.
Nos meus anos de criança, Lourdinha Bittencourt foi a imagem
mais forte do que representava a dinheirama toda. O perfume das mulheres dentro do Grill, a roupa elegante dos homens, os automóveis importados, o cheiro de
dinheiro no ar faziam parte de um cenário que emoldurava o momento de glória de Lourdinha. Era um sonho dourado o que ela vivia e, eu supunha, jamais acabaria.
A realidade que ela viveu ao lado de Nelson Gonçalves, contudo, foi bem diferente. O relacionamento deles foi tumultuado. Reflexo principalmente do envolvimento
dele com as drogas ilegais. Nelson viveu muitos anos com Lourdinha, apesar da oposição de dona Maria. Moraram num apartamento na Glória, depois num outro em Copacabana,
no Edifício Sevilha, na avenida Atlântica. Antes de seu envolvimento com ela, Nelson teve dois filhos. Junto com Lourdinha, adotaram duas crianças. Mas a paixão
por ele era tão grande que ela acabou assumindo uma filha de Nelson de
outro romance, Margareth, que Lourdinha tratava como sua própria filha.
Certa vez, nesse apartamento da avenida Atlântica, Nelson, num ataque de fúria, arrebentou a casa, começou a bater em Lourdinha. Desesperada, roupa toda rasgada,
machucada dos pés à cabeça, ela ligou para Herivelto pedindo socorro. Meu pai foi até lá com Lurdes, com quem casara depois de se separar de Dalva. Os dois a tiraram
de lá e a levaram para a casa na Urca. Trataram dela até ficar curada.
O tempo foi passando. Lourdinha ainda vivia com Nelson. Por sugestão de dona Maria, Herivelto a convidou para participar do Trio de Ouro (em sua terceira formação).
Herivelto começou a treiná-la, modificando um pouco seu jeito de cantar, tirando aquela impostação exagerada de cantora lírica. Lourdinha participaria do trabalho
com o Trio de Ouro de 1952 a 1979.
Numa viagem de trabalho com o Trio, por causa de um acerto financeiro, Lourdinha se desentendeu com meu pai e o chamou de desonesto. Foi terrível para Herivelto,
que se orgulhava de sua criação, simples mas honesta. Ficou uma mancha no relacionamento. O incidente o marcou e rendeu uma música maravilhosa em parceria com David
Nasser, "Atiraste uma pedra", que todos julgam ter nascido de um caso amoroso. Na verdade, a música foi feita para Lourdinha, num momento de decepção:
Atiraste uma pedra No peito de quem
Só te fez tanto bem
E quebraste um telhado
Perdeste um abrigo
Feriste um amigo
Conseguiste magoar
Quem das mágoas te livrou
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Atiraste uma pedra
Em quem sua boca
Tantas vezes beijou
Quebraste um telhado
Que nas noites de frio
Te servia de abrigo
Perdeste um amigo
Que os teus erros não viu
Que o teu -pranto enxugou
Mas acima de tudo
Atiraste uma pedra
Turvando essa água
Essa água que um dia
Por estranha ironia
Tua sede matou
Nelson casaria depois com Maria Luísa. Ela trouxe à vida de Nelson estabilidade doméstica e afetiva. com ela, Nelson adotou mais dois filhos. É de conhecimento
do público (Nelson já contou isso nas TVs etc.) o grande empenho de Maria Luísa para libertar Nelson das drogas. Felizmente, saíram vitoriosos na batalha. E a geração
mais recente pôde conhecer o talento de Nelson, que nos emocionou por mais de cinqüenta anos e impressiona até a nova geração, como o roqueiro Lobão, seu fã declarado.
O vozeirão de Nelson chegou mais longe ainda. Conquistou elogios de Frank Sinatra, quando o viu num show de Carlos Machado, apresentado no Radio City Music Hall,
de Nova York. Conta-se que Sinatra o cumprimentou pessoalmente no camarim. Para meus primeiros passos como cantor, o apoio de Nelson foi decisivo. Num momento em
que não recebia amparo algum de meu pai - ao contrário, queria fazer de mim um militar - e ansioso por uma brecha no cenário artístico, recebi de Nelson um presente.
Encontrei-o em São Paulo.
Ele me disse que estava sabendo que eu havia começado a cantar. Perguntou se estava conseguindo abrir as portas certas, se meus pais apoiavam. Respondi que estava
tentando e apenas minha mãe me dava força, que meu pai se negava a me ajudar. Indignado, Nelson, com aquele seu jeito de falar acelerado, parecendo uma metralhadora,
me disse:
"Porra, rapaz, qual é a do Herivelto? Tem de ajudar o filho, sim. vou falar com ele".
Então me convidou para ir com ele até Santos, litoral de São Paulo, onde faria um show num clube. Além de sua elegância, num terno bege-claro, não me esqueço do
anel de brilhante que usava. Era de chamar a atenção, um verdadeiro farol. Vaidoso, Nelson exibia a nova aquisição e explicava que era um solitário de cinco quilates,
de alta pureza.
Comentei:
"Nelson, será que um dia minha carreira de cantor vai me proporcionar uma jóia assim?".
"Mas claro, rapaz! E pra você ter certeza do que penso, vai entrar naquele palco comigo e cantar bonito como sua mãe."
Nelson me deu esse presente, importante naquele início de carreira: no meio de seu show, me chamou ao palco e me apresentou como "grande cantor que despontava para
o sucesso". Cantei uma música sozinho e outra, de meu pai, com Nelson. Foi uma emoção, uma honra.
Este foi Nelson, ser humano de temperamento difícil, agressivo às vezes, mas capaz de um gesto doce com um jovem que carregara no colo, ainda criança.
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O TRIO DE OURO
Do TRIO DE OURO eu me lembro com muita saudade. Se Dalva era o brilho, com sua força de interpretação e postura de grande dama da canção, Nilo Chagas, elegante,
charmoso e musical, dava um toque senhorial ao trio. Herivelto, miúdo, muito ágil, imprimia dinâmica ao grupo; criador da maioria das composições e dos arranjos
vocais, era o líder. Nilo Chagas, elegante dentro de um summer branco, meu pai também de summer e minha mãe vestindo invariavelmente um soirée, brilhando elegantíssima
nos palcos da Urca ou do Quitandinha.
Nilo Chagas, o Ganga, sempre mereceu meu carinho e respeito. No palco, parecia um deus negro, em sua elegante postura. Passados todos esses anos, guardo a lembrança
clara dele cantando uma canção de Caymmi:
Roda pião, bambeia pião...
Ou quando entrava sozinho no palco:
Eu ando pelas ruas da cidade Buscando não há meio de encontrar
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Um samba com alguma novidade Não há mais um motivo pra espera...
Em seguida, surgiam meu pai e minha mãe, cantando suas estrofes da canção. Era o "Samba pra três", composto por Herivelto para contar a união do Trio.
O encontro artístico de Herivelto com Nilo, numa época em que o negro não tinha nenhuma representatividade, marca mais uma vez o instinto pioneiro de meu pai. O
fato de Nilo ser negro e o Cassino da Urca não permitir a presença de negros! - tornou Herivelto uma pessoa orgulhosa de seu prestígio e força na profissão. Somente
a Nilo e Grande Otelo era permitida a entrada no Cassino da Urca, e eles só eram aceitos graças ao sucesso do Trio. A disciplina e a ordem no Cassino da Urca eram
rígidas. Não se permitia a entrada de menores de 18 anos, nem na platéia nem no palco. Assim, minhas tias Lila e Margarida, as irmãs de Dalva, ainda menores de idade,
tinham de se esconder no camarim de Otelo quando a fiscalização do Juizado aparecia. Só quando os fiscais iam embora elas podiam retornar ao palco para participar
do show com o Trio.
Dalva imitava muito bem voz de criança, e meu pai tirava grande partido disso num número em que ela interpretava a Zefinha, fazendo o maior sucesso com a platéia.
Essa sua performance chamou a atenção da produção do programa Escolinha do Manduca, da Rádio Nacional, onde atuavam Brandão Filho, José Vasconcelos, Lauro Borges
e Castro Barbosa (do PRK-30), entre outros comediantes. Dalva começou a participar do programa.
Uma dessas apresentações coincidiu com um show do Trio no Cassino. Herivelto não se afobou. Vestiu a roupa de cena em Marganda, penteou-a como Dalva e botou-a no
palco, no show Vem, a Bahia
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te espera. Travestida assim, ninguém percebeu a diferença... menos Chianca de Garcia, diretor do show. Logo depois do encerramento, foi elogiar Margarida pela coragem
e meu pai pela cara-de-pau!
O Trio de Ouro lotava as casas de espetáculos por onde passava: Recife, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte. Pela primeira vez, abriam-se em vozes os arranjos
vocais feitos por Herivelto para suas próprias composições e de Dorival Caymmi, Hekel Tavares, Benedito Lacerda, Príncipe Pretinho e muitos outros. Eu sentia orgulho
e amor quando os via no palco, em Petrópolis ou Niterói, Pampulha ou Guarujá.
Muitas vezes, ainda bem pequeno, ia junto para o palco e ficava na coxia, pudesse ou não entrar, tivesse ou não autorização. Precisava estar com eles, queria vê-los
sempre no palco. Minha infância toda se passou admirando e amando aqueles dois seres. Sabia os arranjos, as letras e as vozes de cada um. Até hoje tenho claramente
na lembrança seus timbres vocais e sua postura no palco. Eram divinos, a música em sua mais alta manifestação. E eram meus pais!
Herivelto impunha uma disciplina severa ao Trio, e os ensaios para introdução de uma música nova no repertório eram rigorosos. Ele era de uma dedicação impressionante
ao trabalho. Nada era mais importante. Era sua fonte de vida, de dignidade. E ofereceu esta dignidade a minha mãe.
Não era somente a disciplina que caracterizava o trabalho de Dalva e Herivelto. A música era o grande elo, conduzia suas vidas. Tudo era marcado pela música e pela
projeção que ela lhes oferecia. Era uma religião. Sei que herdei isso deles. Assistindo a meus pais criança ainda, talvez já pressentisse meu caminho. Aprendi com
eles o significado do trabalho e da devoção ao palco. Se faço, faço bem-feito. Tenho compromisso com essa religião, com a qualidade, tenho sempre de me orgulhar
do que faço.
Num depoimento saudoso, a cantora Marlene ressaltou o sentido de obediência total de Dalva e Nilo ao comando de Herivelto, que não permitia palpite dos dois companheiros.
Ele definia o repertório, os arranjos, a distribuição das vozes, os figurinos do grupo e até o cabelo de Dalva. Dominava tudo. Na atuação do grupo, transparecia
essa "ditadura" de Herivelto.
Em relação a Dalva, Marlene enfatizou:
"Ela era muito submissa, mal levantava os olhos. Tinha adoração e respeito por ele. Isso causava na gente uma grande admiração. Achávamos o grupo perfeito e dizíamos
que o Trio de Ouro não ia acabar nunca".
Esse sentimento era entendido e respeitado por quem conhecesse o Trio de perto, na época. Resultado: o trabalho, o Trio, a música, tudo era impecável, quase perfeito.
Só não era perfeita sua vida em comum. Nem tudo era tão cor-de-rosa como parecia.
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NOSSA INFÂNCIA
COMO JÁ DISSE, as brigas entre meu pai e minha mãe eram enormes, violentas até. E essa violência se refletia também em nós, filhos e parentes, que assistíamos a
tudo. Eu, por exemplo. Filho mais velho, era sobre mim que recaíam certos ataques de fúria de meu pai.
Ao fazer coisas que toda criança faz, meu pai tirava o cinto e me cobria de pancada. Eram surras desmedidas, momentos coléricos para situações de pouca gravidade.
Muitas vezes minha mãe tentava interceder. De nada adiantava, não conseguia conter meu pai e, às vezes, acabava apanhando também.
Na Urca, muitas vezes eu ia para a praia, me distrair (sempre adorei o mar), e acabava me esquecendo da hora da escola, como qualquer criança. De repente, meu pai
aparecia, me segurava e eu, sem saber por quê, ia tomando porrada desde a areia até a frente de nossa casa. Lá dentro, continuava a me bater; depois me enfiava dentro
de um armário de roupa suja, no banheiro. Ai de quem me tirasse de lá! Minhas tias Lila, Margarida ou Edith bem que tentavam, mas era complicado. Ninguém enfrentava
meu pai nesses momentos alucinados.
Edith era uma pessoa apaixonada por minha mãe. Ela veio do Recife com meus pais, ainda adolescente, por volta de 1943, para
morar conosco. Esteve presente em todos os momentos de nossa vida. Cuidava de mim e de Bily quando pequenos (e grandes também!), ajudava minha mãe no camarim, acompanhava
meu pai nos shows. Enfim, Edith passou a ser considerada por minha mãe como sua irmã de criação. E por nós - eu e Bily -, uma verdadeira tia.
Era completamente dedicada a minha mãe. Foi sua confidente e companheira nas horas difíceis. Apesar de ser um verdadeiro "cão fiel" de Dalva, conseguiu a façanha
de se manter também amiga de meu pai e de sua nova família com Lurdes. Lá também era considerada da família. Inclusive, era uma das poucas pessoas que se atreviam
a dizer algumas verdades a Herivelto.
com o passar do tempo, eu e Bily "herdamos" Edith. Sua fidelidade foi transferida para nós, e posso dizer que muito me honra essa herança, porque é um ser humano
da melhor qualidade.
Nossa casa não tinha luxo, mas minha mãe gostava muito dos seus móveis e objetos de decoração. A sala de jantar, no estilo Chippendale, muito usado na época, tinha
uma cristaleira, onde eram guardados todos os copos, cristais e objetos mais finos, para receber as visitas.
Num de seus dias de violência, após uma discussão ferrada, meu pai pegou um banquinho de madeira na cozinha e começou a quebrar a cristaleira e tudo o que havia
dentro. Até hoje me lembro dos detalhes da cena. Primeiro, como ele foi até a cozinha pegar o banco, de um jeito bruto, truculento; ouvi seus passos pesados no chão,
na ida e na volta. Depois, o modo como segurou o banquinho pelos pés. E em seguida as pancadas no vidro.
As taças, os copos, as portas, tudo foi destruído em segundos. Meio de lado, eu recebia os estilhaços e o impacto brutal daquele momento. Meu pensamento de criança
não entendia o porquê daquilo tudo. Minha mãe não esboçou um gesto sequer para impedi-lo. Ficou atônita e começou a chorar. A fisionomia dele, os gritos que dava,
os palavrões que soltava faziam meu coração disparar. Fiquei
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sem ação, perplexo, até que ele parou. E me lembro que sua mão estava sangrando.
Só quando tudo acabou as pessoas (acho que minhas tias) tentaram nos acudir. Minha cabeça parecia que ia estourar como os vidros. O medo me dominava. A lembrança
dos gritos e do barulho de vidro quebrando era muito forte. A partir daí, não podia olhar para o canto onde estava a cristaleira. Era uma sensação terrível, como
se a qualquer momento tudo aquilo pudesse acontecer outra vez.
Depois desse terrível incidente, minha mãe contava que passei a ser sonâmbulo. Acordava à noite, ia até a sala, falava com as pessoas, mas não me lembrava de nada
no dia seguinte, também chorava muito à noite, sentindo dores nas pernas. Muitas vezes, carinhosamente ela abria a roupa e colocava minhas pernas sobre seu peito.
Dizia que era o único jeito de conseguir me esquentar e me fazer dormir.
Esse episódio me marcou muito. Afinal, eu estava ao lado da cristaleira, assustado nos meus oito, nove anos. Posso garantir que aquela cena - o barulho do vidro
estourando, os estilhaços jamais sairá de minha memória, assim como o cheiro de roupa suja, lembrança adquirida dos castigos dentro do armário do banheiro.
Num desses dias, depois de sair do castigo, escutei meu pai dizendo a seus amigos na sala que me amava muito. Minha cabeça ferveu com essa declaração. Não conseguia
entender como alguém que dizia me amar me tratava daquele jeito. Pensava: será isso o amor?
Todas essas surras me deixaram tão traumatizado que jamais pude me imaginar batendo em meus filhos, seja no Bernardo, hoje com 23 anos e que vive comigo desde o
nascimento, ou na Paula, minha filha mais velha de quase 27 anos, de quem, por razões alheias à minha vontade, sempre estive distante. Acredito na importância da
disciplina, não na força bruta, e acima de tudo acredito no amor. Procuro dar a meus filhos muito carinho, muitos beijos, muitos abraços. E dizer aos dois com muita
freqüência: "Papai te ama!".
Minha mãe também tinha os momentos de bronca, mas não chegavam nem aos pés dos ataques de meu pai. Sempre foi mais doce. Na maioria das vezes, dispunha-se mais a
curar os estragos que meu pai fazia do que propriamente a nos castigar. Ficava mais ligada nas coisas do cotidiano: nosso banho, as roupas, o horário do colégio,
a comida (era uma grande cozinheira).
Era uma dona-de-casa ativa e cuidadosa, mesmo quando nossa casa era bem humilde. E, à medida que a situação financeira melhorava, foi aprendendo a curtir uma mesa
bem-posta, com boa porcelana, cristais e guardanapos de linho. Tinha paixão por toalhas bordadas da Ilha da Madeira.
Em quase todos esses "maus dias" de meu pai, era eu quem pagava o pato, pois meu irmão Bily se fazia de sonso - aprontava, corria e depois ficava num canto:
"Não fui eu, não. Não sei quem fez. Juro!".
E adivinhem para quem sobrava! Até hoje não entendi como o Bily conseguiu a proeza de nunca ter apanhado de meu pai.
Por falar em irmão, preciso contar que meu pai, antes de Dalva, viveu com uma senhora, Mariazinha. com ela, teve dois filhos, Hélcio e Hélio, dos quais Bily e
eu gostamos muito. Conta Hélio que a avó dele, dona Carolina, era um osso duro de roer. Ela viu sua filha Maria dar dois filhos a Herivelto e nada de ele registrar
as crianças. Herivelto vivia uma vida boemia, de pouca grana, e era a sogra quem segurava as despesas.
Espírita praticante, com intuições e até visões, dona Carolina sonhou que Herivelto deixaria Maria sem reconhecer os filhos. Preocupada, foi até ele, pediu, conversou,
ponderou que as crianças não podiam ficar sem registro. E nada. Chegando a seus ouvidos o envolvimento de Herivelto com Dalva e cansada de pedir o que era mais
do que justo para seus netos, ela se enfureceu e cobriu meu pai de porrada. Uma confusão tremenda.
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Foram parar na delegacia. Diante do delegado, e graças a uma "livre e espontânea pressão", Herivelto finalmente registrou Hélcio e Hélio. Uma das testemunhas desse
momento tragicômico foi Benedito Lacerda. Depois desse tumulto todo, a danada da dona Carolina disse para meu pai:
"Pronto, agora o senhor pode seguir seu caminho, fez o que era importante. Meus netos já têm sobrenome. E ninguém aqui precisa de mais nada do senhor. Eduquei a
Mariazinha, educo os filhos dela. Sua vida não é para ela".
Só viemos a conhecer esses irmãos anos mais tarde. Bily e eu, então com oito e dez anos, estávamos na casa de minha avó paterna, Lolota, no Engenho de Dentro. Do
terraço, vimos dois rapazes subindo a ladeira. Moleques, começamos a jogar pedra neles, pedaços de telhas, o que tivéssemos na mão. De repente, Lolota nos chamou,
pois queria nos apresentar a dois rapazes. Nosso susto foi enorme quando vimos quem eram: os mesmos em quem tínhamos acabado de jogar pedras! Eram Hélcio e Hélio,
em visita à avó, que achou ser a hora certa para os irmãos se conhecerem. Que vergonha!
Desde então, nossa amizade é grande e sólida. Nos queremos muito. Esse sentimento era estimulado por minha mãe, que sempre cobrou de meu pai uma atenção maior com
esses filhos. Hélcio, o mais velho, tem uma personalidade mais fechada, é de pouca conversa. Convivemos pouco, mas sempre de forma afetuosa.
com Hélio desenvolvi uma afinidade especial, independentemente de estarmos ou não juntos. Seu temperamento calmo se equilibra com meu jeito esquentado, mais passional.
Temos uma amizade franca e sincera, trocamos experiências sem nos impormos um ao outro. Ele é uma pessoa de bem com a vida, generoso e conciliador, sempre procurando
o melhor lado de tudo e de todos. Recordo com muito carinho alguns gestos seus, especialmente delicados comigo.
Morando em São Paulo, que adoro, por mais de vinte anos, sempre mantive um apartamento no Rio, na Barra. Quando ia de
avião para o Rio e estava sem carro, quem me salvava era Hélio. Morador do Humaitá, ia trabalhar a pé, no prédio de Fumas, e deixava seu carro a minha disposição.
Era um fusquinha branco, entregue a mim com o maior carinho.
Quando Ana e eu passamos o ano de 1988 morando em Nova York longe de todos, sem nosso filho Bernardo e numa difícil investida profissional, Hélio, mesmo sem ser
o mais abonado dos irmãos, foi o único a me fazer uma ligação internacional. Disse que tentava matar a saudade escutando meus discos e queria saber como estava minha
vida.
Hoje, morando em Miami, viajo para o Brasil com freqüência para cumprir minha agenda de shows. Quando vou ao Rio, é em seu apartamento, em Botafogo, onde me hospedo
e sou recebido com o maior carinho - e ótimos quitutes - pela minha cunhada Sara e meus sobrinhos Alexandre e Marquinhos.
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SEGREDO É PARA QUATRO PAREDES
A CASA NA ILHA DO GOVERNADOR era um lugar amado por todos nós. A Ilha era um oásis de tranqüilidade e representava uma pausa na correria do dia-a-dia de meus pais.
Bily e eu ficávamos em êxtase quando íamos para lá, pois teríamos os dois só para nós. Os amigos mais íntimos, como Otelo, também tinham paixão pela casa da Ilha.
Ele e meu pai pescavam com freqüência. Levavam tudo o que seria necessário para a pescaria que haviam anunciado para minha mãe. E ficavam pela rua até de madrugada
mas nem sempre pescando.
Às vezes, pegavam a barca para o Rio. De volta da farra, passavam na praça Quinze, compravam alguns peixes e, chegando em casa, jogavam "a pesca" no tanque, para
ser limpa para o almoço. Essa pescaria da madrugada funcionou muito tempo, até que um dia minha mãe, ao recolher pessoalmente os peixes no tanque, reparou que havia
um carimbo de inspeção. Ficou louca! Armou-se uma briga tremenda e, é claro, a pescaria da dupla acabou.
Trecho da música "Segredo", de Herivelto Martins e Marino Pinto.
Como contei, Herivelto dominava completamente o trabalho do Trio de Ouro, inclusive na questão financeira. Era ele quem fazia os contratos e recebia os cachês. Muito
correto, assim que recebia os pagamentos entregava a Nilo sua parte, mas nunca entregava nada para Dalva. Dizia que cuidava do dinheiro dos dois. jVIinha mãe não
gostava muito disso, não.
Às vezes, quando recebia do cassino, Herivelto agarrava Otelo, atravessava a rua e ia para o salão de jogos tentar a sorte. Algumas vezes, deixou ali o dinheiro
de uma quinzena. Rolla, dono do cassino, não gostava de ver funcionário jogando e lhe dava umas broncas.
Nesse tempo, já estava entrando algum dinheiro das gravadoras e editoras musicais, pois suas músicas começavam a ser cantadas pelo povão e os discos, a vender bem.
Ele não dependia somente do cassino para viver e achava que podia se dar ao luxo de deixar algum nas roletas. Minha mãe não gostava de jogo e ficava brava com ele.
Mas não se pode falar nada contra meu pai como provedor da casa. A geladeira e a despensa viviam abarrotadas. Minha mãe tinha a roupa que quisesse, com a costureira
que escolhesse. Roupa de trabalho, então, tinha de ser o que de melhor existisse! Fartura, muita fartura era do que ele gostava. Neste ponto, era mão-aberta mesmo.
Acho que era uma forma de compensar a pobreza de seu começo de vida.
Meu pai era considerado também um bom filho. Sustentava sozinho a vó Lolota (Carlota), atendendo-a em tudo o que necessitasse. Nas coisas básicas, como roupas,
remédios e principalmente alimentação, meu pai não permitia jamais que faltasse qualquer coisa a sua família. Quanto a nossa educação, como homem de POUCO estudo
(mal completou o primário), achava importante nos dar escola, mas sem a preocupação de conseguir um bom colégio, onde pudéssemos ter um ambiente melhor para nossa
formação.
Não foi tão romântica, porém, aos olhos meus e de meu irmão oily, a relação entre nosso pai e nossa mãe. Donos de personalidade fortíssima, eram o que poderíamos
chamar de dois vulcões.
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As brigas, pouco a pouco, se tornavam mais freqüentes. com mais dinheiro entrando, meu pai começou a buscar outras mulheres. De freqüentes, as brigas passaram
a violentas.
Não foram poucas as vezes em que, ao voltar do colégio, ficava sabendo que minha mãe estava no pronto-socorro - meu
pai batera nela. Ou, então, procurava meu pai
e diziam que ele estava no hospital - minha mãe arrebentara a cabeça dele com um cinzeiro de bronze.
Já morando na rua General Galvão, em 1941, numa casa com uma escadaria grande, a vida um pouco melhor, minha mãe engravidou pela terceira vez. O que foi uma surpresa.
No nascimento de Bily, em 1940, ela havia feito ligamento das trompas. Ao que parece, não muito bem-feito.
As brigas se tornaram cada vez mais agressivas. Um dia, no auge de um ataque de raiva, ele agarrou minha mãe pelos cabelos, deu socos e pontapés. No meio desse acesso,
o inevitável: minha mãe rolou pela escada e perdeu o nenê, num aborto forçado. Foitanta dor, tanta mágoa que durante muito tempo minha mãe guardou o feto num vidro
com álcool. Ficava exposto no banheiro. E a quem perguntasse sobre aquilo ou sugerisse jogar fora, dizia:
"Isso tem de ficar aí, pois serve para o Herivelto ver e não esquecer o que aconteceu".
Graças a Deus, com o tempo "aquilo" desapareceu de nosso banheiro.
Impressiona, nesse caso, sua atitude mórbida, sádica até, com meu pai. Mas, ao mesmo tempo, sem força alguma para acabar com aquela guerra. Ou para mudar a vida
deles. Vejo-a como prisioneira de um casamento pessoal e profissional, apaixonada por meu pai, estrela do Trio de Ouro, mas sem voz ativa para nada. Apenas podia
cantar. Ou brigar.
Minha mãe não imaginava quanta saudade ainda teria de tudo o que havia sido destruído. Pondo de lado as desavenças, os maustratos e um relacionamento extremamente
dolorido, ela e meu pai
Legendas das fotografias
Dalva e Herivelto na praia -fim dos anos 30
Formação original do Trio de Ouro, com Nilo Chagas, Herivelto Martins e Dalva de Oliveira (1939)
Trio de Ouro: Cassino da Urca, 1942 Show Vem, a Bahia te espera
Dalva, em pé, à direita, com a família: Lila, a caçula, Margarida, Pery, em pé, e a sogra Carlota com Bily no colo
Pery na casa de cômodos onde
nasceu Pery com Bily no colo
Pery agarrado com o violão desde cedo
Herivelto Martins e sua Escola de Samba de Salão, com destaque para a cabrocha Suréia
Trio de Ouro e o Regional de Benedito Lacerda: Popeye (pandeiro), Dino (violão), Meira (violão e Benedito na flauta
Pery com cinco meses
Pery com quatro anos filmando na Cinédia
Trio de Ouro - anos 40
Grande Othelo e Herivelto em show do Cassino da Urca (anos 40)
Reportagem com Orson Welles sobre o seu inacabado filme It's Ali True,/eiío no Brasil em 1942
Herivelto com Bily e Pery na praia da Ilha do Governador
Primeira comunhão de Pery e Bily
Herivelto com os filhos na casa da ilha do Governador
Pery e Bily com o pai, Herivelto, no sítio de Bananal
Pery com 9 anos e Bily com 7, pescando
Dalva, Pery e Bily posando para reportagem da Revista do Rádio
Pery e Bily em filmagem no estúdio da Cinédia
Linda Batista, Pery e Sílvio Caldas
Bily e Pery na casa de palafita
construída por Herivelto e emprestada ao
amigo Joca - Porto
de Maria Angu, Praia de Ramos
"Itaquary" foi a primeira gravação de Dalva de Oliveira com Herivelto Martins e Nilo Chagas,
da dupla Preto e Branco, em 1936. Do outro lado deSSe
78 rotações gravaram "Ceci e Peri", música qUe deu origem ao nome do primeiro filho
Dalva de Oliveira coroada Rainha do Rádio, em 1951

foram muito felizes juntos. Compartilharam a fase mais importante de suas vidas. As lembranças das coisas boas, dos momentos eln que tudo se encaixava seriam muito
fortes para ela. Mesmo quando tudo estava por um fio para se transformar em guerra...
Minha tia Lila lembra que, com o passar do tempo, ao terem mais posses e morando melhor, Herivelto era muito generoso com Dalva. E até carinhoso, quando as brigas
não aconteciam. Brigas quase sempre provocadas por seu comportamento.
Encerrada a luta entre esses dois seres geniosos e temperamentais, o amor falava mais alto do que a mágoa. Ficavam emburrados um tempo e a comunicação era feita
por meio das outras pessoas da casa. Era engraçado! Meu pai chamava uma de minhas tias, Lila ou Margarida, e pedia para elas contarem que havia comprado uma jóia
para minha mãe. Quando ela chegava perto para dar o recado (estavam todos na mesma sala!), Dalva dizia:
"Já ouvi. Diz pra ele que também achei uma camisa bonita e comprei de presente".
E assim se reconciliavam. Viviam um tempo de bonança, saindo juntos, indo a festas, restaurantes, recebendo os amigos na Urca. Ali, os amigos e a alegria contagiante
eram a moldura que traduzia a especial alquimia que vivenciavam no trabalho e na vida. Nos aniversários de um dos dois, então, era uma loucura! Suas festas eram
abertas a todos os artistas. A felicidade realmente reinava na casa.
Até que meu pai fizesse alguma bobagem.
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DESSE AMOR QUASE TRAGÉDIA
ENTRE AS ARTISTAS que freqüentavam a Urca, uma delas foi o pivô de uma das mais feias brigas de meus pais que presenciei. Refiro-me a Isaurinha Garcia. Quando ela
chegava de São Paulo, ia direto para nossa casa na Urca, onde minha mãe a esperava com todo o carinho. Eram íntimas, lá ela se sentia em casa.
À noite, os amigos iam chegando, o violão aparecia, Isaurinha (já com alguns conhaques na cabeça) começava a cantar. Meu pai a acompanhava no violão e tudo era
uma festa. Isaurinha era uma grande cantora, uma das maiores.
Essa era também a opinião de Dalva. Até que um dia, enquanto estava na rua, minha tia Nair, distraidamente, abriu a porta do quarto de minha mãe e, sem ser vista,
flagrou meu pai com Isaurinha na cama. Minha tia ficou chocada e no maior dilema sobre qual atitude tomar. Quando viu minha mãe voltar e meu pai e Isaurinha fazendo
festinha, na maior cara-de-pau, ficou revoltada. Chamou Dalva no quarto e contou tudo.
A reação dela foi tremenda. Voltou para a sala e "rodou a baiana pra valer: jogou pela janela toda a roupa e bagagem de Isaurinha,
Trecho da música "Fim de comédia", de Ataulfo Alves.
expulsou-a de casa e... não preciso dizer que meu pai foi parar no pronto-socorro.
Minha mãe era uma pessoa doce, mas, como boa taurina, tinha um gênio terrível se "pisassem no seu calo". Mais ainda quando estava coberta de razão. Não houve quem
não escutasse o escarcéu que ela fez em nossa rua da Urca. Essa história deixou muitas marcas nela e demorou para o clima voltar ao normal lá em casa.
Para os dias de hoje e, principalmente, para a mulher de hoje, sei que fica a questão: por que agüentar isso? Por que não acabar com tudo e se separar? Mas, como
disse antes, esse raciocínio se faz hoje. Não em meados dos anos 40. Era uma sociedade completamente diferente, com conceitos diferentes. Era uma mulher diferente,
também.
Essa mulher, nascida no começo do século, 1917, vivia o paradigma de que o casamento era para toda a vida e que devia obediência ao marido. Jamais havia para a mulher
da época a hipótese de deixar o marido. Seria um escândalo inadmissível! Daí haver um conformismo arraigado em sua cabeça. Se tivessem sorte no casamento, ótimo!
Senão, teriam de suportá-lo, a qualquer preço, até o fim.
Eu digo isso porque, ao mesmo tempo que me recordo, como criança, da grande festa que era nossa casa, também observo, como adulto, que não tínhamos privacidade.
Meu pai nunca preservou sua intimidade com minha mãe. Quando mais eles precisavam estar a sós, desfrutar da casa e do sucesso que começava, da paz da família, dos
filhos, mais meu pai entupia a casa de gente, para comer, dormir e invadir toda a nossa intimidade, que quase não existia.
Ele chegava para minha mãe e dizia:
Dalva, prepara tudo, porque já estão vindo pra cá fulano e sicrano...", e quantos mais ele pudesse arrastar pela rua e trazer Para casa.
Minha mãe, às vezes, ficava furiosa, porque nem sempre estava
lsposta a fazer comida e arrumar cama para tanta gente, depois de
cantar no cassino. Havia momentos bastante agradáveis e felizes, mas
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com o tempo o exagero passou a tomar conta de meu pai. E, mesmo não querendo, ela era obrigada por ele
apreparar as camas espalhadas pela casa inteira e a providenciar
comida e bebida para todos.
Hoje, vejo que essa total informalidade de meu pai, enchendo uma casa pequena de gente, deixava no ar um clima de excessiva intimidade. Era uma amiga deles andando
de camisola ou robe pela casa, era outro amigo dormindo na sala, todos usando o único banheiro. Meus pais também de camisola e pijama... Era muita tentação no ar!
Quando a situação se tornou insustentável e se separaram, meu pai foi para os jornais dizer que minha mãe tinha amantes e os escondia dentro dos armários. Imagino
que alguns desses amigos devem ter assediado minha mãe. Ora, não era de imaginar outra coisa: ela era muito bonita, muito querida por todos. E, sendo tratada pelo
marido desse jeito, deve ter atraído pretendentes acenando com outro tipo de convivência... Imagino que, aos poucos, o cansaço e o amor-próprio começaram a falar
mais alto em minha mãe. Esse clima, alternando sérias brigas com tempos de bonança, durou muitos anos. Creio até que chegaram a pensar em se separar, enfrentando
o preconceito da sociedade. Mas tenho certeza de que, quando pensavam no trabalho com o Trio de Ouro, na carreira, no sucesso que estavam fazendo juntos... desistiam
da idéia e empurravam seu dia-a-dia mais um pouco.
A situação, no entanto, foi ficando pior. Meu pai cada vez
mais dava bandeira de seus casos. Minha mãe costumava dizer que seu carro era um "rendez-vous ambulante", onde encontrava toalha molhada, absorventes, papel usado
depois do sexo e afins. Em contrapartida, ela o atormentava cada vez mais. Era como se fosse sua única defesa... Minha tia Lila conta que era como se minha mãe,
muito machucada por dentro e sem poder revidar à altura, tivesse ficado "viciada" nas brigas. Às vezes,' quando tudo estava aparentemente calmo, começava a cutucar
meu pai. Sua mãe, a avó Alice, brigava com ela nesses momentos: -
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"Dalva, até parece que você não sabe viver sem uma briga, menina! Deixa o homem em paz".
E assim iam levando a vida.
Até que, numa de suas viagens, meu pai conheceu uma aeromoça num vôo da Real. Naquele início da aviação comercial, as aeromoças, todas muito bonitas, eram escolhidas
a dedo, passando por uma seleção rigorosa. Além das misses, as aeromoças eram um símbolo de beleza da época.
Herivelto não tirou mais aquela gaúcha da cabeça - morena bonita de olhos verdes. Seu nome: Lurdes. Foi paixão à primeira vista! Procurando-a com freqüência no
Rio, ele soube que era recém-desquitada e tinha um filhinho de aproximadamente 2 anos.
Usando todo o seu charme, tocando suas músicas ao violão e recitando poemas, Herivelto batalhou o coração dessa morena. No começo, ela resistiu muito ao assédio,
devido à sua condição de homem casado e pai de família. Mas, como todos que o conheceram sabem, meu pai era muito determinado quando queria conquistar algo ou alguém.
E seus amigos me contaram que ele realmente se empenhou em conquistar Lurdes.
Corria o ano de 1947 quando a vida de meu pai começou a ficar dividida entre Dalva e Lurdes. Cada vez mais, ele foi ficando à vontade com essa situação, voltando
mais tarde de suas saídas ou não voltando - e apresentando com naturalidade Lurdes aos amigos.
Em casa, com esse comportamento, as brigas se tornaram mais freqüentes. E as histórias da rua sempre vazam! Minha mãe cada vez mais desconfiava de algum romance,
mas ele sempre negava. Dizia que era apenas boemia na Lapa, tudo imaginação dela. E adulava-a, comprava presentes e maneirava por algum tempo.
Até que um dia minha mãe, ao lavar um terno de linho de meu Pai na banheira, encontrou no bolso do paletó uma fotografia dele com uma mulher e uma criança no colo.
Imediatamente, imaginou Ser a tal morena das fofocas que chegavam com insistência até ela.
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Mas o menino... nunca haviam falado de uma criança. Sua cabeça parecia que ia explodir! Pensava:
"Herivelto sempre me deu trabalho por causa de mulher. EU sei, ele adora uma novidade. Mas depois de um tempo, passa. Agora, uma criança... Meu Deus, o que significa
isso?!".
E na cabeça de minha mãe não havia lugar para outra explicação a não ser que fosse filho de Herivelto. Quando meu pai chegou, armou-se uma tremenda confusão. Discutiram
muito. Herivelto tentou negar tudo. Dizia que era apenas uma amiga (aqueles papos masculinos), jurava que o filho não era dele, mas minha mãe não acreditava. E mais
brigas!
A partir daí, a existência de uma vida extraconjugal de meu pai ficou bastante evidenciada na cabeça de minha mãe. As desculpas não a convenciam mais. Ele não conseguia
aplacar suas desconfianças com presentes e carinhos. Começaram a falar na possibilidade de separação. Mas surgia a questão: e o Trio? E a carreira?
Nesse clima, imagino que foi surgindo devagarzinho a idéia de manterem o casamento por causa dos compromissos profissionais e dos filhos. E assim, aos poucos, meu
pai passou a forçar cada vez mais uma situação que só beneficiava a ele. Em seu egoísmo, procurava conciliar o sentimento que nutria por minha mãe, o trabalho com
o Trio de Ouro e a paixão por Lurdes.
Tudo isso acontecia sem meu pai sair da cama de casal que dividia com minha mãe.
Devagar, meu pai ia criando uma nova realidade - Lurdes começava a fazer parte de sua vida. Não sei se minha mãe encarava isso realmente. Só sei que Lurdes, como
qualquer mulher que entra na vida de um homem casado, pressionava meu pai para tornar realidade o que dissera a ela
logo que se conheceram - que estava disposto
a sair de casa e deixar' minha mãe.
Não foi o que aconteceu. Acredito que sempre com a desculpa (às vezes, verdadeira) do trabalho com Dalva no Trio de Ouro, o caso deles se arrastou por quase três
anos sem meu pai deixar a
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nossa casa. Enquanto isso, ele misturava bastante os "departamentos". Por exemplo: mesmo sem sair de casa, já visitava alguns amigos do casal, como Amália e Vicente
Paiva e Nelson Gonçalves, ao
lado de Lurdes, causando grande constrangimento aos que amavam minha mãe.
Lembro-me de conhecer Newton, filho de Lurdes, ainda muito pequeno e bem antes de meu pai sair de casa e morar com ela. Imagino que tenha me apresentado o menino
como filho de alguma amiga (naquele tempo, os adultos achavam que as crianças não entendiam o que se passava à volta delas).
Toda essa situação foi dando muita moral a Lurdes, a ponto de ela, algumas vezes, ligar para casa atrás de meu pai. Numa dessas vezes, quando já estava realmente
definido que iriam se separar, pouco antes da viagem à Venezuela, minha mãe atendeu pessoalmente o telefone.
Lurdes, já se sentindo fortalecida pelo desenrolar dos acontecimentos, travou o seguinte diálogo com minha mãe: "Quero falar com o Herivelto". "Quem quer falar?"
"É a Lurdes!!"
"Mas você não tem vergonha, não? Como é que se atreve?" "Ora, Dalva, deixa de bobagem. Você está cansada de saber de tudo. Nós duas precisamos resolver isto de uma
vez por todas. Proponho que a gente se encontre e converse." "Pra quê? Não temos nada pra conversar." "Temos, sim, Dalva. Que tal na Leiteria Boi?" 'Tá certo, acho
que é uma boa idéia. Amanhã às cinco. No dia seguinte, lá estavam as duas mulheres, frente a frente. Minha mãe matando a sua natural curiosidade em relação a Lurdes.
Ela, como artista, já era conhecida por Lurdes. Mediram-se Um pouco e começaram uma conversa de quase uma hora.
Minha mãe, ao voltar para casa, encontrou minha tia Margarida toda curiosa e aflita com o encontro. Dalva, ironicamente, disse:
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"Ah, aquela boba está achando que com ela o Herivelto vai ser diferente. Vai ser fiel. Imagina só!".
"E o que você disse pra ela?"
"Disse que ele vai continuar aprontando das suas. Não é flor que se cheire!"
E minha mãe continuou contando sobre a conversa:
"Ô, Lurdes, quero te prevenir de uma coisa muito importante. E não diga depois que não te avisei. O Herivelto não gosta de tomar banho. E cada vez que precisa, eu
é que encho a banheira e obrigo ele a se banhar. Portanto, está avisada. Ele chegava cheirosinho na sua casa por minha causa. Agora, cuida pra ele não feder!".
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DERCY GONÇALVES, VENEZUELA E OUTRAS HISTÓRIAS
O MARCO DA SEPARAÇÃO de Dalva e Herivelto se deu numa excursão à Venezuela, iniciada por volta de 1949. Foi o desfecho de uma agonia. Ele havia recebido um convite
de Dercy Gonçalves para integrar o Trio de Ouro à sua companhia teatral, que se apresentaria na Venezuela.
Nessa fase da vida, meus pais já estavam praticamente separados. Herivelto tentava administrar uma situação insustentável viver em casa com Dalva apenas pelo trabalho
com o Trio, enquanto o namoro com Lurdes se aprofundava. Na marra, meu pai ia impondo novas regras para o casamento, não permitindo que minha mãe interferisse
na sua vida pessoal, enquanto mantinham uma vida de fachada para darem continuidade aos compromissos
do Trio de Ouro.
Quando digo que a situação era insustentável, faço minha análise sob uma ótica masculina, no contexto moral vigente nos anos 40. Explico: essa situação funcionava,
na prática, apenas para meu pai. Lá em casa, continuavam a dividir o mesmo quarto, a mesma cama. Sei que um casamento não acaba realmente enquanto
um homem e uma mulher estão dividindo a mesma cama.
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Meu pai, egoisticamente, se liberara para viver o romance com Lurdes. Permitia-se dormir fora de casa e muitas coisas mais. Mas seu sentimento machista de posse
em relação à minha mãe permanecia - ele nunca lhe deu nenhuma liberdade; ao contrário, morria de ciúme.
Daí, mais motivos para brigas. Imagino que muitas delas foram provocadas por minha mãe. Apaixonada e ferida no amor-próprio, e mesmo sabendo ser impossível continuar
com aquele casamento, não se conformava em perder seu homem para outra mulher. E assim, estimulada pelas novas regras de liberdade de meu pai, ela devia provocar
muito o ciúme dele. Bonita, doce, alegre, destacando-se no Trio, Dalva era muito assediada. Meu pai, porém, não admitia, absolutamente, a hipótese de minha mãe ser
cortejada por alguém.
Antes do embarque para a Venezuela, já haviam iniciado o processo do desquite - viajaram sob regime de separação consensual. Por exigência do juiz da Vara de Família,
que não considerava meus pais aptos a nos darem a atenção necessária devido às características do seu trabalho, Bily e eu fomos enviados para o colégio interno.
Incrível, não? Na consideração desse juiz, a um casal de artistas não era permitido procriar, pois não haveria tempo em suas vidas para a educação dos filhos.
Alguns aspectos da viagem à Venezuela são ainda meio nebulosos, e precisei perseguir muito a verdade. Mas tive a sorte de conversar com três pessoas que participaram
da excursão: Amália Maia (esposa do maestro Vicente Paiva), Suzy Souza (corista da companhia) e a própria Dercy.
Herivelto, ao receber o convite de Dercy Gonçalves, dona da companhia, exigiu que se contratasse também o grande maestro e compositor Vicente Paiva como diretor
musical do show. Além de amigo dos meus pais, principalmente de Dalva, Vicente é autor de grandes sucessos de Carmen Miranda, como "Disseram que voltei americanizada",
"Mamãe eu quero!", e de uma das
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mais lindas canções brasileiras, "Ave Maria", que se transformou num dos carros-chefes de Dalva quando a gravou em 1951. Vicente foi acompanhado de sua esposa, Amália,
amiga de minha mãe, e que se iniciava como cantora no grupo, incentivada por Dalva.
Há controvérsias sobre a forma como foi armada essa produção. Meu pai sempre nos contou que Dercy havia abandonado o grupo em Caracas, sem pagar o cachê, sem as
passagens de volta e deixando os figurinos como parte do pagamento. Ficou até de relações cortadas com Dercy por causa desse trabalho. Alegava que chegara a penhorar
nossa casa na Ilha do Governador para contribuir como co-produtor desse show e fora abandonado por ela.
Numa rápida entrevista com Dercy, durante a festa de aniversário dos 90 anos do Braguinha, ela me disse que a produção do show tinha sido somente dela. Contou que
fora contratada pelo governo venezuelano, de quem havia levado o maior cano. Mas não quis se aprofundar muito no assunto.
Ao me encontrar com Amália Paiva e Suzy, pude ouvir uma história mais lúcida e desapaixonada sobre esse episódio. Segundo elas, o show, montado no formato das revistas
da praça Tiradentes, estreou em noite de gala no Teatro Municipal. Mas foi um fiasco. O usual palavreado e gestos obscenos de Dercy, mesmo no idioma português, chocou
o público de Caracas, bem mais tradicional. O espetáculo recebeu muitas vaias, provocando a retirada do público em cena aberta. Foi um susto para o elenco - estavam
acostumados a fazer o maior sucesso no Brasil. Ficou claro nos dois primeiros dias que somente os números musicais e de dança estavam agradando. Era necessário conter
Dercy nos seus gestos e textos muito apelativos ou cortar a sua participação para o show poder
continuar.
Impossível! Qualquer brasileiro sabe que ninguém segura a irreverente e genial Dercy Gonçalves. E o pior: ela era a
patroa. Como é que se corta a participação da patroa?
O show parou no terceiro dia. Nesse clima, Dercy optou por voltar ao Brasil.
Por intermédio da embaixada brasileira, havia conseguido com o governador de São Paulo, Ademar de Barros, as passagens de volta.
O elenco se reuniu para resolver o que fazer. Alguns queriam voltar logo. Outros, como Vicente Paiva, não quiseram voltar desenxabidos e sem dinheiro para o Brasil.
Decidiram então ficar: Herivelto, Dalva, Vicente, Amália, Suzy e Nilo (que, nesta altura, já viviam um romance) e mais três coristas.
No entanto, a passagem de volta não era o único problema da equipe; havia a conta do hotel também. Dercy, irreverente e moleca, como sempre, deu a sugestão de saírem
"à francesa", isto é, pulando a janela do hotel. Novamente, o grupo ficou dividido. A maioria (quinze pessoas) aceitou a sugestão. No dia e hora combinados, eles
"saíram" do hotel com Dercy. Um a um, jogaram a mala na rua e pularam a janela do hotel!
O grupo divergente - Herivelto, Dalva, Nilo, Vicente, Amália, Suzy e três coristas - resolveu enfrentar a situação. Foram à gerência, contaram a história do teatro
e explicaram que iriam procurar trabalho para pagar a hospedagem e a passagem de volta. Pela atitude corajosa, o grupo ganhou o apoio do gerente e começou a procurar
trabalho em Caracas.
Conta Amália que era mais difícil encontrar trabalho para fazerem juntos. Combinaram de tentar separadamente até conseguir reunir dinheiro para a volta. Encararam
os mais diversos tipos de espaços de shows. Algumas vezes, o Trio conseguia se reunir, mas quem encontrou mais facilidade para trabalhar foi Dalva, acompanhada do
maestro Vicente Paiva.
Muito amigos, Dalva, Vicente e Amália estavam sempre juntos. Dalvinha (como Amália carinhosamente a chama) e Herivelto já não dividiam o mesmo quarto nessa viagem
à Venezuela. Nesse momento tão difícil, iniciando uma nova etapa de vida com Herivelto (perto no trabalho, mas com o casamento desfeito), foi Amália a sua fiel
confidente. No colo da amiga, Dalvinha chorava a
perda do seu amor. Reclamava da saudade dos filhos. Ria dos pretendentes que a assediavam.
Falando em pretendentes, Amália contou também que meu pai curtia a sua nova liberdade, mas estava sempre de olho em Dalva. Morria de ciúme. Principalmente de um
belo rapaz venezuelano, sempre em volta de minha mãe, fazendo uma corte insistente. Um dia, no camarim, depois dos cumprimentos dos admiradores e, é claro, do entusiasmado
fã de Dalva, Herivelto começou uma cena de ciúme das grandes. Acabou apelando e partindo para a agressão física. Foi um rebu. Vicente teve de entrar no camarim para
apartar a briga.
Em sua biografia, meu pai conta ter ido para a Venezuela já separado de Dalva e afirma displicentemente que ela teve um caso lá todo o tempo. Mas não faz nenhum
comentário sobre sua postura possessiva e ainda agressiva com minha mãe. Amália não confirma esse romance, dizendo que Dalva estava sempre com ela e
Vicente. E me diz:
"E se Dalva estivesse namorando alguém, qual seria o pecado? Se eu soubesse, diria pra você. Ela não estava livre?".
Amália diz que nunca entendeu essa atitude de Herivelto, já que era de conhecimento de todos no meio musical seu romance com Lurdes. Lembra que, para desagrado
dela e de Vicente, que amavam Dalvinha, Herivelto já havia estado com Lurdes em sua casa no Rio, no ano anterior, 1948.
Após três meses em Caracas, conseguiram dinheiro suficiente para chegar ao aeroporto brasileiro mais próximo, o de Belém. Saudosos de suas famílias no Rio, sentiam
que agora, em solo brasileiro, seria mais fácil ganhar dinheiro para voltar para casa. Realmente foi. Ou melhor, foi além de suas expectativas. Fizeram um sucesso
estrondoso. Depois da dificuldade que amargaram em Caracas, o sucesso em Belém era um bálsamo para suas feridas.
Conta Suzy que alugaram uma grande casa, com mangueiras no quintal, e viviam como uma família. Minha mãe estava sempre
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alegre e bem-humorada, mas às vezes chorosa, por alguma estupidez de meu pai. Todos ajudavam na casa. Dalva, ótima cozinheira, estava sempre pela cozinha. Vicente,
o maestro, também tinha muito jeito para os pequenos consertos de que os figurinos do show necessitavam. Herivelto, grande contador de causos, alegrava todos com
o violão, cantando suas músicas e recitando poemas sertanejos. Suzy lembra que o grupo normalmente se dividia nas atividades sociais: com Dalva, saíam Vicente e
Amália; com Herivelto, ela e Nilo.
Nessas saídas pela noite de Belém, Herivelto algumas vezes abriu o coração para Suzy, contando sobre a sinuca de bico em que se encontrava: no Rio, Lurdes esperava
por ele, num clima de romance novo; em Belém, estava próximo fisicamente de Dalva, mas, ao mesmo tempo, muito distante. Nesses momentos de confidências, regados
às vezes por um drinque, Herivelto falava da falta que sentia de Dalva, de sua cumplicidade como companheira, de sua alegria e dedicação.
Eles foram muito bem recebidos pela sociedade de Belém, principalmente pelos mais boêmios, Dalva e Herivelto sempre muito paparicados. Minha mãe contava que essa
"temporada" em Belém durou por volta de três meses. Lembrava-se também de uma história pitoresca sobre o samba "Amigo", escrito por Herivelto na capital paraense.
Meu pai freqüentava a casa de um amigo, casado com uma mulher muito bonita, e as visitas foram se tornando cada vez mais freqüentes. Então, pintou um romance. Mas
Herivelto, sentindo a situação se complicar muito, saltou fora. E fez o samba:
Meu amigo
Teu amigo vai-se embora
Teu amigo parte agora
Para não mais regressar
Não quero ser o culpado
Da tragédia
Que por enquanto é comédia
No cenário do teu lar
Há mulheres
Que nasceram com o destino
De não ter o dom divino
De viverem só pra um
Meu amigo
Me despeço aqui por fim
Esta mulher que te beija
Te beija pensando em mim
O teu lar
Era o meu lar também
Pra quem vive sem ninguém
Um lar ajuda a viver
Mas vou-me embora
Pode a carne enfraquecer
Por favor, não me censure
Estou cumprindo o meu dever
Era um relato genial, num momento altamente inspirado. Quando estourou a polêmica musical e Nelson Gonçalves gravou o samba, em 1951, o público pensou que era mais
um dos recados de Herivelto para Dalva, mas não era verdade.
com a sinuca aumentando (Lurdes esperando-o no Rio, a saudade da ex-esposa, tão perto e tão longe, e o romance com a mulher de um amigo em Belém), meu pai viu
que era hora de retornar ao Rio e dar um rumo à sua vida. Chamou todos e disse que ia embora. Minha mãe, acho que pressentindo o desfecho dessa volta, não quis acompanhá-lo.
Preferiu tentar ainda fazer algum dinheiro em Belém e ficou com os amigos Vicente e Amália Paiva. com o maestro ao piano, começaram a faturar juntos.
Foi então que, trabalhando pela primeira vez por conta próPria, minha mãe se deparou com uma situação nunca vivida. Como já contei, meu pai era quem fazia os contratos
e recebia os cachês
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do Trio de Ouro. Dava a Nilo sua parte, mas nunca entregava a de Dalva. Era ele quem provia a casa e as despesas pessoais de minha mãe. Assim, Dalva trabalhava,
mas não tinha acesso ao dinheiro.
Conta Amália que, depois do primeiro show que Dalva e o maestro fizeram sozinhos em Belém, ele entregou o dinheiro do cachê para minha mãe. Ela arregalou os olhos
muito verdes e desatou a chorar. Assustado, sem entender o porquê daquele pranto repentino, Vicente procurava consolá-la. E ficou ainda mais surpreendido ao ouvir
a explicação dela:
"Não estou triste, não, Cabeção, estou emocionada. É a primeira vez que vejo tanto dinheiro junto.
É todo meu, tem certeza?". Comovido com aquela criatura tão frágil,
ele confirmou que já havia pego a sua parte e que aquele dinheiro era todo dela.
Vicente Paiva era um ser humano maravilhoso, um mulato boapinta, de sorriso contagiante. Nossas famílias estavam sempre juntas
- Bily e eu tínhamos mais ou menos a mesma idade de seus filhos, Deisy e Décio. Brincamos muito juntos. Deisy herdou sua beleza morena e o sorriso muito branco.
Ótima cantora, chegamos a trabalhar juntos em São Paulo, no início de nossas carreiras, e somos amigos até hoje.
Dalva escutava muito o amigo Vicente e sempre lhe pedia orientação. Amália conta que, quando minha mãe morava em Vila Isabel, na rua Barão de Cotejipe, e lhe ofereceram
a casa de Jacarepaguá para comprar, ela só fez o negócio depois de levá-los até lá e ouvir a aprovação de Vicente. Ele precisou incentivá-la muito, pois ela estava
receosa de assumir um compromisso tão grande.
Os três se divertiam muito juntos e trocavam apelidos. Dalva chamava Vicente de Cabeção e Amália, de Pinguinho. E Vicente chamava Dalva de Olívia Palito. Como maestro
e compositor, ele tinha adoração pelo canto de Dalva. Numa bela homenagem a seus olhos, compôs o samba-exaltação "Olhos verdes", um estilo muito em voga na era de
Getúlio, dominado à perfeição por ele. A música tornou-se um clássico da MPB e carro-chefe no repertório de Dalva:
Vem aí uma remota batucada
Na cadência bem marcada
Que uma baiana tem no andar
E nos seus requebros e maneiras
Na graça toda das palmeiras
Esguias e altaneiras
A balançar
São da cor do mar, da cor da mata
Os olhos verdes da mulata
Tão cismadores e fatais, fatais
E num beijo ardente e perfumado
Conserva o travo do pecado
Em saborosos cambucais
Em meados de outubro de 1949, o grupo voltou de Belém. No Rio, minha mãe foi obrigada a enfrentar a realidade: o fim de seu casamento com Herivelto, Ao chegar em
casa, ficou sabendo pela família que meu pai havia ido embora definitivamente. O romance com Lurdes, a bela aeromoça de olhos verdes, continuava e se transformava
em algo mais sério.
Aí então o circo começou a pegar fogo. Rasgada no seu amor, mordida de ciúme, ferida no amor-próprio e tendo de enfrentar a realidade com o fim das "férias", Dalva
retomou a carreira. E fez muito sucesso em sua primeira gravação sem o Trio de Ouro, "Tudo acabado". Sem conseguir encarar seu sucesso, meu pai apelou e rompeu o
clima de desquite amigável.
Bate-bocas, insultos, jornais, advogados, tribunais, gente que não tinha nada com a história, gente que tinha culpa no cartório. Gente que queria lucrar com tudo
aquilo. Gente que nos feriu muito.
A separação se transformou num inferno, sob todos os aspectos.
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ABANDONO
DE ABANDONO eu posso falar.
Meu pai, em seu instável universo musical, considerava o máximo a carreira militar. Era tudo o que sonhava para os filhos: segurança, estabilidade, respeitabilidade.
Assim, decidiu nos colocar num curso preparatório para o Colégio Militar do Rio. Procurou um colégio especializado, de preferência com internato. Não encontrou,
mas soube de um professor famoso pela aprovação de seus alunos no Colégio Militar. O nome dele era professor Júlio e sua escola - um externato - funcionava em um
casarão velho na rua Mariz e Barros. No prédio, havia salas de aula, carteiras, quadros-negros e nada mais.
Em sua fixação, nosso pai conseguiu o inimaginável: que o professor Júlio nos recebesse em regime de internato. Isto é: comprou duas camas de
armar, dessas de madeirinha bem vagabunda, em que o colchão não conseguia segurar o lençol, e com o passar do tempo as molas iam espetando corpo da gente.
À noite, sozinhos, Bily e eu armávamos as camas com lençol e travesseiros e, de manhã cedo, tínhamos de acordar antes do início das aulas, correr para um banheiro
no fim do corredor, nos preparar bem rápido, desarmar as camas e guardar tudo. O
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café-da-rnanhã era um pingado, tomado com pressa na esquina, para nos apresentar a tempo no pátio do colégio para as aulas. Quando a gente embalava naquele sono
gostoso
de criança e passava da hora de acordar, era terrível. Os alunos já entrando na sala de aula e a gente ali, arrumando as camas, dobrando tudo, na frente de uma platéia
nos gozando e humilhando.
Acreditem se quiser! Lá estávamos, Bily e eu, vivendo totalmente sozinhos em um casarão, à mercê da simpatia ou do desprezo de estranhos. Éramos uma espécie rara
de "menores abandonados": tínhamos pais, mas não estavam nem um pouco preocupados com nossa cabecinha, com nossos sentimentos. E, para piorar a situação, eram
figuras públicas e nossa vida estava nos jornais.
O almoço e o jantar eram na casa do professor Júlio, perto do colégio. Lá ainda tínhamos de enfrentar os filhos dele: altamente grosseiros, nos tratavam muito mal,
como o nosso escancarado abandono lhes permitia. Todos sabem da crueldade de que as crianças são capazes! Depois do jantar, voltávamos sozinhos para o colégio. Aquele
casarão antigo, escuro, vazio, onde só havia salas de aula, a escuridão com feixes de luzes entrando pelas janelas, o barulho dos nossos pés no assoalho velho de
madeira antiga e maltratada, o ranger das escadas para chegarmos ao "nosso quarto" no segundo andar, o barulho do bonde passando... são lembranças de um passado,
de uma infância de que - eu juro! - não tenho a menor saudade.
A noite, até a hora de dormir, a gente ligava um radinho e muitas vezes ouvíamos as músicas de nosso pai, a voz de nossa mãe entrando em maior evidência, já fazendo
sucesso. Agarrados, Bily e eu rezávamos para Cosme e Damião, fazíamos promessa, implorando para eles não nos deixarem tão sozinhos, para nos levar de volta para
casa. Chorando, desligávamos o rádio, apagávamos a luz e dormíamos na sala de aula.
Minha mãe não gostava de nos ver naquela situação, mas jamais conseguimos entender por que não tomava uma atitude. Quanto ao exame do Colégio Militar, é claro que
fomos reprovados!
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Para nós dois, a separação de nossos pais foi traumática. Não é difícil imaginar o estrago na cabeça de duas'crianças, no meio de tanta tensão, estresse e desrespeito.
O país inteiro comentava e cantava a nossa vida. Estávamos em todos os jornais, todos os dias. As pessoas tomavam partido: havia quem fosse favorável a Dalva e quem
fosse favorável a Herivelto. Não podíamos andar na rua, brincar, ir à praia, estudar - nada! - sem que um bando de pessoas nos viesse perguntar de que lado estávamos.
E os famosos capítulos do Diário da Noite, relatados por meu paji, eram motivo de muitas perguntas:
"Quem é que vocês acham que está certo: sua mãe ou seu pai?".
"É verdade que ela dormiu com fulano ou sicrano?"
"De quem vocês gostam mais?"
E a gente no meio daquela loucura, sem saber como lidar com aquele assédio neurótico. Bily e eu passamos a nos agarrar um ao outro. Seja éramos unidos, ficamos
mais ainda. Numa esperança infantil, sonhávamos com um milagre que desse um fim àquele drama.
Como nossos pais eram obrigados a cumprir um despacho do juiz da Vara de Família determinando que Dalva não poderia nos dar a necessária atenção devido à sua carreira
de sucesso, nossa vida teria de ser em colégio interno. Após a reprovação do Colégio Militar, fomos colocados no Liceu São Luís, no Engenho Novo. Lá o regime de
internato realmente existia, não éramos os únicos
nesse esquema.
Ficamos pouco tempo, pois o professor Lyra, dono do colégio, logo transferiu o internato para Itaguaí, cidade próxima ao Rio. Era um lugar pacato, gostoso e com
uma arquitetura colonial linda. Casas do tempo dos escravos, lugar onde dom Pedro trocava de cavalos a caminho de São Paulo. O progresso destruiu tudo, quase nada
foi preservado.
Não pensem que era um colégio compatível com a posição alcançada por meus pais, ao contrário. Nunca senti muita
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preocupação neles com uma qualidade maior em nossa educação, em nos oferecer um bom ambiente para alicerçarmos nossa vida. Talvez por desconhecerem a importância
disso,
apenas se ligavam em nos dar "estudo". Não sei se isso acontecia também pela mentalidade da época, que tornava tudo pior. Porque sei que nossos pais fizeram uma
tentativa de nos colocar em um colégio de nível melhor, o Anglo Americano, mas a matrícula foi terminantemente negada. Não aceitavam filhos de pais separados. Ainda
mais de artistas.
Em Itaguaí era tudo muito simples, quase precário. Estudávamos num prédio no alto de uma ladeira. Em outro prédio, no pé dessa ladeira, havia o refeitório com o
pátio do recreio e a sala onde fazíamos as lições. Na rua ao lado, numa casa antiga feita por escravos, era o dormitório. Tinha um telhado colonial lindo, mas atraía
morcegos, nos deixando apavorados à noite. Em frente ao refeitório havia uma padaria com um pãozinho maravilhoso. Quando sentíamos, na madrugada, o cheirinho da
primeira fornada de pães, a gente escorregava da cama e ia até os fundos da padaria comer um pão quentinho com uma caneca de café oferecidos pelo padeiro. Enquanto
isso... o bedel dormia profundamente. Não havia muito controle.
Eu tinha uma namoradinha, a Marilu, estudante do externato do colégio, que segurou muito a nossa barra. Estava sempre nos convidando para sua casa. Ela e a família
e mais alguns colegas, como a Shirley outra grande amiga, nos ofereciam um grande conforto. Marilu era uma menina sensível e se tornou uma mulher inteligente e muito
especial; somos amigos até hoje. A esses amigos de Itaguaí dedico minha gratidão pelo carinho que tiveram por nós.
Sábado era o dia de os alunos serem apanhados pelos pais. Numa semana minha mãe ia nos buscar; na outra, meu pai. Mas eles nunca chegavam logo cedo, como os outros
pais. Costumavam chegar só depois que anoitecia. E, durante todo o tempo da espera, a agonia tomava conta de nós dois.
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No auge das reportagens do Diário da Noite, o professor Lyra e sua esposa, dona Glorinha, eram obrigados a nos esconder em uma sala, até que todos fossem embora.
A curiosidade dos pais era tão grande que se esqueciam dos próprios filhos - apenas se preocupavam em nos olhar ou nos fazer aquelas perguntas horríveis. Sentíamo-nos
verdadeiros "bichos raros". Nossa privacidade já não era mais invadida, era o ponto exato onde todos queriam ficar.
Acredito que a vida dos meus pais realmente não lhes permitia serem muito pontuais. Por várias vezes, chegaram quando a gente já estava dormindo. Estavam muito preocupados
em viver o seu grande drama, ou em como sair dele. Nunca deram muita bola para o nosso
drama. Bily e eu íamos para um cantinho, fazíamos promessa para Cosme e
Damião, pedindo para que nossos pais não nos deixassem presos no colégio no fim de semana. E a
gente via o tempo passar, a noite avançar, sem que nossos pais chegassem. Era um sofrimento! Até hoje, o começo da noite me faz ficar nervoso. Penso até que o habitual
"sonínho" que sinto nesse horário, me obrigando a uma soneca, deve ser um resquício inconsciente desses tempos de colégio. Uma espécie de fuga arraigada em meu ser.
Essa situação de ter de viver no colégio interno, longe de nossa mãe, era horrível para nós. Aliás, para todas as crianças que estavam lá. A criança de internato
se sente abandonada pela família, como se não fosse amada de verdade. Em nossa cabecinha, era como se fôssemos culpados de algo e tivéssemos de ser castigados por
isso. E, para piorar, ainda sofríamos um preconceito às avessas. Como filhos de artistas famosos, causava muita estranheza nossa presença nesse tipo de colégio,
bem modesto, pois todos imaginavam que nossa família tinha posses para nos colocar em colégios melhores.
Passamos a ser discriminados pelos colegas porque tínhamos pais importantes. Éramos chamados de "riquinhos" e cruelmente
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ignorados nas brincadeiras de grupo. Tentávamos nos enturmar dizendo:
"É mentira, não sou rico, não. Juro que sou pobre também!". Era uma barra! Um dia, ao chegarmos ao internato com uma bola de futebol (linda!) que havíamos ganho
de meu pai no fim de semana, fomos convidados no recreio para o jogo.
Assim, sem querer, acabamos aprendendo a primeira lição sobre os chamados "jogos de poder" que regem o mundo - a melhor maneira de garantir nossa participação nos
jogos e brincadeiras era sendo os donos da bola. A partir daí, não deixávamos meu pai e minha mãe sossegados quando nossa bola estragava.
Minha mãe continuava a ser carinhosa como sempre, quando estávamos juntos. Só que, na verdade, não íamos para a rua Albano, 42 com tanta freqüência quanto gostaríamos.
Havia fins de semana em que tanto minha mãe quanto meu pai estavam trabalhando fora do Rio e não podíamos ficar com nenhum dos dois. Acabávamos passando a folga
com a avó Alice. E, assim, continuavam a fazer parte de nossa vida aqueles pardieiros horríveis, pois sua casa muito humilde ficava no centro da cidade, onde convivíamos
com uma grande pobreza.
Nesse novo tipo de vida - visita para meu pai, visita para minha mãe - fomos nos sentindo parte de um grande jogo. Muito cobrados, muito divididos, tendo de aprender
na marra a sobreviver no meio da guerra pessoal deles.
No Natal, tínhamos de revezar: dia 24 com um, dia 25 com o outro. No réveillon e dia 1a de janeiro, a mesma coisa. Para quem me lê agora, tudo isso deve soar muito
natural, já que hoje é corriqueiro para um número muito grande de filhos de pais descasados. Só quero lembrá-los de que, no fim dos anos 40 e início dos 50, os desquites
eram considerados uma grande vergonha para os familiares envolvidos. Ainda mais um desquite como o dos nossos pais, coberto por escândalos e contado em capítulos
nos jornais. Sofríamos
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muito, pois, além da tristeza em ver a família desfeita, tínhamos de conviver com o vexame da situação.
O comportamento de meus pais era terrível. Minha mãe passou a nos chantagear. Quando acabava o Natal e tínhamos de ir no dia seguinte para a casa de meu pai, ela
desmaiava na despedida. Ficava deitada no chão até ser acudida e então dizia:
"Estão vendo o que vocês fazem comigo? Podem ir, podem ir pró seu pai. Eu fico aqui sozinha, podem ir!".
No início, a gente se assustava com aqueles ataques. Mas fomos percebendo o seu joguinho, a sua chantagem. Apenas a beijávamos e saíamos. com o coração apertado,
é claro, posando de durões.
Embora não conseguisse atingir tanto meu pai com palavras (passou a se referir a ele como
"o Falecido"), sua bronca maior era voltada para Lurdes. Quando soube
que ela não sabia fazer nem café, muito menos cozinhar, e não cuidava para que meu pai não saísse sem um botão na camisa ou com a calça amarrotada, aí então minha
mãe se deliciava! Como já disse antes, ela era uma ótima cozinheira e uma dona de casa cuidadosa, especialmente com meu pai. Cuidava pessoalmente das roupas dele
e, mesmo quando o dinheiro começou a entrar, fazia questão de supervisionar e inspecionar tudo.
Já na casa de meu pai, nos fins de semana, a "artilharia" era bem mais pesada. E era eu, o mais velho, quem escutava com mais freqüência:
"Sua mãe não presta. Ela ainda está dando pra fulano? Ela é uma puta!".
Isso me causava uma dor enorme e diminuía cada vez mais a minha auto-estima. Algumas dess'as vezes, a gente tinha acabado de estar contente e feliz na companhia
de minha mãe ou estava saindo do colégio, e eu ficava com uma sensação de que tudo o que acontecia fora do julgamento do meu pai era pecaminoso, era sujo, era uma
merda.
Nossa adolescência (ou o que restou dela) não deixou recordações maravilhosas, a não ser o amor por nossos pais, sempre muito forte. Talvez porque esse amor já continha
em si uma enorme dose de perdão e entendimento do que eles foram para o mundo. Mas não deixa de ser um legado muito pesado, porque a nossa formação intelectual,
sentimental, profissional sofreu muito por não ter um chão mais sólido para caminhar.
Eu não sabia como construir melhor minha personalidade. Passei anos e anos achando que as pessoas à minha volta poderiam estar sabendo o que eu estava pensando,
o que queria ou o que não queria. Era uma sensação de nudez interior e de devastação interna. Parecia que qualquer coisa que fizesse ou pensasse imediatamente seria
descoberta pelas pessoas em volta de mim.
Não tinha uma voz que traduzisse o meu interior. Ele já era devassado. Isso expressa bem a insegurança que sempre tive em relação ao sucesso. Talvez seja por isso
que me sinta tão alijado do processo de ganhar dinheiro ou de uma projeção artística que me proporcione mais satisfação como profissional da música. Sigo meu caminho
tentando me autoconsertar. Espero que consiga receber da vida, ou de mim mesmo, aquilo com que sonho: uma real integração com o meu Eu interior, com o mundo onde
vivo, com as pessoas com quem quero conviver e com o amor e a paz que, eu pretendo, não saiam jamais do meu caminho.
O preço por sermos, Bily e eu, filhos de quem somos foi bastante alto. Nessa difícil tarefa de contar a minha vida com meus pais, busco uma imparcialidade total.
Procuro ser o filho que apenas narra o que viu, o que viveu, o que absorveu, sem nenhum julgamento.
Fui treinado para isso desde muito cedo. Ao sermos indagados pelo país inteiro, nos tempos de colégio, de quem a gente mais gostava ou quem poderia ter mais razão
naquela briga, Bily e eu tivemos de trabalhar muito nossa forma de amar nossos pais, para que não houvesse nenhuma preferência, ainda que nossas dores e mágoas fossem
enormes.
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Sei que tanto meu pai quanto minha mãe tinham seus claros e escuros, bonitos e feios. Mas como eram Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, quaisquer atitudes deles
se tornavam o assunto do dia nos jornais, crivando nossa trajetória com tristezas e belezas difíceis de serem carregadas, principalmente por duas crianças. Nessa
conjuntura, nossa vida foi transcorrendo e tivemos de enfrentar uma triste realidade: desde os últimos tempos na Urca, em 1949-50, nunca mais, em tempo algum, conseguimos
viver juntos. Fosse na casa da minha mãe, fosse na do meu pai.
Em relação a mim e a Bily, fico pensando como um homem tão inteligente e brilhante como meu pai pudesse descuidar tanto dos que amava. Por que entupia a geladeira
de comida e os armários de bebida, oferecia fartura a todos, enquanto nos dava uma formação escolar tão pobre e desguarnecida? Nunca entenderemos essa pouca preocupação
com nossa educação.
Acho que Deus nos muniu de uma força extra e de um instinto especial de sobrevivência. Apesar do tipo de criação que tivemos, hoje nos preocupamos muito com a qualidade
de nossa vida e com o que oferecemos aos nossos filhos. Cuidamos da qualidade de seus colégios e do ambiente em que desenvolvem as suas personalidades e potencialidades.
Tenho a preocupação de viver bem, curto e tenho sempre uma casa bonita, com decoração agradável, alguns quadros e objetos de arte, o vinho em minha mesa é sempre
de qualidade. A casa, o meu ninho, tem para mim uma grande importância.
Sei que para meu irmão Bily também é assim. A casa para nós é o refúgio, o porto seguro. Herança de um tempo em que participávamos do refúgio dos outros. Tempo em
que éramos jogados da casa de amigos ao esquecimento total nos colégios internos. Isso era abandono, a grande solidão a que tínhamos sido condenados, numa idade
em que nossa cabeça tinha mais é que estar sendo preservada e estimulada a produzir para o nosso futuro.
Mas não me cabe agora descobrir qual foi o mais culpado. Fui vendo, através dos anos, que na vida não existe culpado. Existe a vida. Existe o "grande palco", onde
cada um tem seu personagem a desempenhar, da melhor maneira que conseguir. Não importa a sinceridade de sua conduta para conquistar o aplauso ou a vaia. O que importa
é no que a platéia quer acreditar.
Já vi que as mentiras são mais aplaudidas do que a verdade, e muitas vezes não é a verdade que querem ouvir. O grande compositor Bily Blanco expressa isso com categoria
na música "O tempo e a hora", da obra Paulistana, uma sinfonia dedicada a São Paulo, terra natal de Ruth, sua esposa (e amiga querida), da qual participei com muita
honra:
O que vale é a versão
Pouco interessa o fato
Porque a sensação maior
É a do boato
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II
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DESTRUÍMOS HOJE o QUE PODIA SER DEPOIS
EMBORA TENHA SIDO MEU PAI quem decidiu se separar de minha mãe e mesmo já estando há alguns
ànos envolvido com outra mulher, isso não significou realmente o fim
de um capítulo, como se poderia esperar. Ao contrário, foi o início de muitos outros capítulos. Meu pai não estava preparado paira enfrentar a realidade de que minha
mãe poderia sobreviver sem ele. Ela era sua "cria". O sentimento de posse, pessoal e artística, desenvolvido por ele em relação a ela era muito grande. Afinal, eles
aconteceram juntos. Cresceram juntos naqueles catorze anos.
Para usar uma expressão muito em voga hoje, a formatação da vida de Dalva e Herivelto foi feita a dois. Não dá para falar de um sem o outro. Imagino que meu pai,
apesar dos conflitos, sentia isso de uma maneira muito forte. Se sentimentalmente ele já estava substituindo-a por Lurdes, artisticamente a perda era irremediável
para ele. Não se encontra mais de uma Dalva de Oliveira pela vida.
Penso que ele torcia para que se tornasse verdade o que tantas vezes dissera à minha mãe, para amedrontá-la, quando brigavam:
Trecho de "Tudo acabado", de Oswaldo Martins e J. Piedade.
"Você não é nada sem mim. Eu inventei você. Não se esqueça disso, Dalva!".
Mas, apesar de toda a insegurança calcada por ele, ela tinha de enfrentar a sua estrada sozinha. E lançou, no começo de 1950, "Tudo acabado", de J. Piedade e Oswaldo
Martins:
Tudo acabado entre nós
Já não há mais nada
Tudo acabado entre nós
Hoje de madrugada
Você partiu e eu fiquei
Você chorou e eu chorei
Se você volta outra vez
Eu não sei
Nosso apartamento agora
Vive à meia-luz
Nosso apartamento agora
Já não me seduz
Todo o egoísmo
Veio de nós dois
Destruímos hoje
O que podia ser depois
A letra da música caía como uma luva sobre a recente separação deles. O público, identificando o momento vivido por Dalva, fez da canção o primeiro grande sucesso
de minha mãe sem meu pai. E parecia, aos fãs de minha mãe, uma resposta à música "Cabelos brancos", de meu pai e Marino Pinto, lançada antes. Apesar de ter sido
composta muitos anos antes da separação, com o passar do tempo, por causa de sua letra, o público foi incorporando-a na briga musical.
Devido à grande aceitação do público, a gravadora Odeon lançou outro disco com Dalva, poucos meses depois, no qual minha
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mãe cantava de um amigo deles e ex-parceiro de meu pai, Marino Pinto, em parceria com Mário Rossi, o bolero "Que será":
Que será
Da minha vida sem o teu amor
Da minha boca sem os beijos teus
Da minha alma sem o teu calor
Que será
Da luz difusa ao abajur lilás
Se nunca mais vier a iluminar
Outras noites iguais
Procurar
Uma nova ilusão não sei
Outro lar
Não quero ter além daquele que sonhei
Meu amor
Ninguém seria mais feliz que eu
Se tu voltasses a gostar de mim
Se teu carinho se juntasse ao meu]
Eu errei
Mas se ouvires me darás razão
Foi o ciúme que se debruçou Sobre o meu coração
Outro sucesso estrondoso! Meu pai não soube enfrentar esse sucesso que minha mãe alcançava sem ele e apelou. Foi aí então que estourou a grande guerra musical, quando
meu pai escreveu em parceria com David Nasser a música "Caminho certo":
Eu deixei o meu caminho certo,
E a culpada foi ela .
Transformava o lar na minha ausência
Em qualquer coisa
Abaixo da decência
Compreendi que estava tudo errado
E, amargurado, - parti perdoando o pecado
Mas deixei o meu caminho certo
E a culpada foi ela
Sei agora que os amigos que outrora
Sentavam à minha mesa
Serviam sem eu saber
O amor por sobremesa
Acreditem, é muito fácil julgar
A infelicidade alheia
Quando a casa não é nossa
E é outro que paga a ceia
Este samba infeliz foi o estopim para que compositores do porte de Ataulfo Alves, Marino Pinto, Oswaldo Martins, Paulo Soledade, Humberto Teixeira, Nelson Cavaquinho,
Alvarenga e Ranchinho, Lourival Faissal, Guaraná etc. tomassem as dores de minha mãe e compusessem desesperadamente para dar a Dalva, com suas canções, uma resposta
a Herivelto.
No mesmo ano, 1950, minha mãe gravou, de Ataulfo Alves, a música "Errei, sim":
Errei, sim
Manchei o teu nome
Mas foste tu mesmo o culpado
Deixavas-me em casa
Me trocando pela orgia
Faltando sempre com a tua companhia
Lembro-te agora
Que não é só casa e comida
Que prende por toda a vida
O coração de uma mulher
As jóias que me dava
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Não tinham nenhum valor
Se o mais caro me negavas
Que era todo o seu amor
Mas se existe ainda
Quem queira me condenar
Que venha logo
A primeira pedra me atirar
Foi tanto o sucesso de "Errei, sim" que meu pai passou a odiar Ataulfo e por pouco não chegaram às vias de fato. Aliás, iria ser engraçado, Herivelto, baixinho,
e Ataulfo, com aquela altura toda... Conta-se que Ataulfo já havia composto "Errei, sim" alguns anos antes e, quando mostrou à minha mãe, ela imediatamente se identificou
com a música e quis gravá-la.
A amizade desses compositores com meu pai ficou muito abalada. Ele se sentia traído por eles. Para Marino Pinto, inclusive, fez, em parceria com Benedito Lacerda,
"Falso amigo":
Me trocaste por dinheiro
Eu que te considerava meu amigo verdadeiro
Aproveita
Eu não quero ter notícia
Que como Judas te portaste
Teus sambas são verdadeiras infâmias
Crivados só de calúnias
Contra o amigo leal
O vinho que bebeste à minha mesa
Fez revelar a beleza
Sem um disfarce sequer
Pantera de unhas encurvadas
Amigo das madrugadas
Um vagabundo qualquer
Sei que foi Marino quem lhe causou mais mágoa, pois eles eram realmente muito unidos. E, por isso mesmo, acho que acabou sendo perdoado, anos mais tarde, e ele e
meu pai até voltaram a ser parceiros nos anos 60.
É importante ressaltar que toda essa polêmica musical só aconteceu devido às características do mercado musical da época. Como os discos eram de 78 rotações (aquelas
bolachas pretonas), com apenas duas músicas, era costume os cantores de sucesso lançarem dois discos por ano: um no Carnaval e outro no segundo semestre.
No caso de minha mãe, a gravadora, detectando o potencial de mercado que a polêmica musical causava, passou a botar lenha na fogueira, lançando até três discos de
Dalva por ano nessa época. Em contrapartida, meu pai lançava outros três discos, assim tínhamos por volta de seis lançamentos deles ao ano, o que mostra que a cada
dois meses havia uma música nova para o público adotar e abastecer o clima de guerra entre eles.
O conflito musical continuava. Meu pai revidou a música de Ataulfo com o samba "Teu exemplo":
Há muita gente
Que encontra estrelas
Na própria lama
E junta um buquê de flores
Do mal que soube causar
Há muita gente
Que a glória arranca
Do próprio drama
E da tragédia da vida
Motivos para viver
E quando erra proclama
E quando peca sorri
Há muita estrela na lama
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Mas eu me refiro a ti
Porém tudo que fizeste
Não te fez minha inimiga
Mas a outras mulheres eu digo
Que o teu exemplo não siga
Marino Pinto e Paulo Soledade, no começo de 1951, deram a Dalva uma resposta forte, "Calúnia":
Quiseste ofuscar minha fama
E até jogar-me na lama
Só porque eu vivo a brilhar
Sim, mostraste ser invejoso
Viraste até mentiroso
Só para caluniar
Deixa a calúnia de lado
Que ela a mim não afeta
Deixa a calúnia de lado
Se de fato és poeta
Se me ofendes
Tu serás o ofendido
Pois quem com ferro fere
com ferro será ferido

Nesse mesmo ano, Herivelto, em parceria-COm Benedito Lacerda, lança "Consulta o teu travesseiro":
Consulta o teu travesseiro
E me diz se é possível
Entre nós uma reconciliação.'..
E, também em parceria com Benedito, "Não tem mais jeito":
Não tem mais jeito Mulher quando perde A vergonha e o respeito Não tem mais jeito...
Para enfrentar mais esses ataques, minha mãe ganha de Nelson Cavaquinho e Oswaldo Martins o samba "Palhaço", uma sutil ironia à antiga profissão de meu pai:
Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do palco por alguém
Volta que a platéia te reclama
Sei que choras, palhaço,
Por alguém que não te ama
Enxuga os olhos e me dá um abraço
Não te esqueças que és um palhaço
Faça a platéia gargalhar
Um palhaço não deve chorar
Recém-chegada de Londres, Dalva lança, do disco gravado com o maestro Roberto Inglês, outra música de Ataulfo Alves, "Fim de comédia":
Esse amor quase tragédia
Que me fez um grande mal
Felizmente essa comédia
Vai chegando ao seu final
Já paguei todos os pecados meus
O meu pranto já caiu demais
Só lhe peço pelo amor de Deus
Deixa-me viver em paz
Não quero me fazer de inocente
Porém não sou tão má
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Como disseram, por aí
Eu quero o meu sossego tão-somente
Cada um trate de si
Foi um tremendo sucesso. E, Paraencerrar o ano de 1951, minha mãe grava, de Luís Bittencourt e Marlene, "A grande verdade":
Vai
Não te posso prender
Não te posso obrigar
A mentir se não queres ficar
Não convém insistir
Não convém iludir
Pra mais tarde sofrer
Não me tens amizade
Esta é a grande verdade
Por isso não vejo razão
Para a nossa união, meu amor
Sonho quimera ilusão
Tudo vai terminar
Quando um dia o remorso chegar
E da felicidade existir a saudade
No teu coração
Verás então ao teu lado
Meu vulto meio apagado
Revivendo um amor desesperado
Meu pai ataca outra vez, agora em parceria com Raul Sampaio, que entrara para o Trio de Ouro, com a musica "Perdoar":
Perdoar
Eu não perdôo, não
Eu estou cada vez mais convencido
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De que aquela mulher
Ai, ai, meu Deus
É um caso perdido
Vem arrependida implorar perdão
Falta, erra e por fim
Ainda confessa, errei, sim
Já no começo de 1952, depois do Carnaval, Dalva lança de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, que anos depois se tornaria parceiro de Herivelto, "Poeira do chão":
O que te dei em carinho
Tu devolveste em traição
O que era um claro caminho
Tornaste desolação
Hoje tu voltas chorando
Para implorar o meu perdão
O meu perdão nada custa
Falando a palavra justa
Há muito eu te perdoei
E por amar a verdade
Vendo tanta falsidade
No fundo eu te lastimei
Se é falso e vil o interesse
O amor bem cedo fenece
É flor que morre em botão
Não, não pode alcançar os astros
Quem leva a vida de rastros
Quem é poeira ao chão
Do lado de minha mãe, eram muitos compositores trabalhando para enfrentar meu pai. Mas, aos poucos, a polêmica musical foi esfriando e os ataques foram se espaçando,
dando lugar a sucessos
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como "Kalu" e "Ai, loiô", na voz de Dalva, e, no repertório de meu pai, aos tangos como "Carlos Gardel" e "Hoje quem paga sou eu", gravados por Nelson Gonçalves.
Todos esses ataques musicais de meu pai a minha mãe foram criando uma grande animosidade em torno dele. O povo realmente considerava minha mãe uma pessoa desprotegida
e vítima dele. Para botar mais pimenta ainda nesse caldo, não satisfeito com o bate-boca musical (minha mãe fazia muito mais sucesso com as músicas do que ele),
Herivelto aceita a infeliz sugestão do jornalista David Nasser para usar um espaço no Diário da Noite para se "defender" de Dalva, dando sua versão da vida a dois
com ela.
Junto com David Nasser, meu pai começa a publicar no início de 1951 uma série de artigos diários (foram 22 capítulos ditados por ele e escritos por David) durante
cinco semanas. Ele não poupou palavras nem desrespeito por aquela que foi sua companheira, mãe de seus dois filhos, e lhe deu suporte profissional durante mais de
catorze anos.
Nas páginas verdes do Diário da Noite lia-se grande e destacada manchete:
"HERIVELTO NARRA SUA DESDITA CONJUGAL"
O país inteiro lendo aquelas coisas, as revistas especializadas tomando partido, ora do meu pai, ora da
minha mãe. Era uma nojeira, sem classificação, vergonha
para David Nasser e vergonha para um talento como Herivelto Martins. Uma frase de que me lembro muito bem e que me marcou profundamente, escrita por David Nasser
num dos capítulos escabrosos a que tive acesso, foi:
"Em que pese o enorme talento da cantora, há de se ressaltar a sua vida particular do mais baixo nível".
Esse texto teve uma repercussão espetacular e contribuiu muito para o ódio das pessoas. As revistas da chamada imprensa marrom se deliciavam, enquanto Herivelto
e David ofereciam subsídios para que mais e mais se pusesse lenha na fogueira.
Havia uma revista chamada Escândalo, de propriedade de um crápula, Fred Daltro, que publicou uma capa conosco (minha mãe rodeada por mim e Bily). A manchete era:
"DALVA DE OLIVEIRA, INDIGNA DE SER MÃEI"
Como resultado de tudo isso, a carreira do Trio de Ouro não manteve o mesmo respeito por parte do público. Na segunda versão do grupo, Nilo havia sido substituído
por Raul Sampaio, compositor de muitas canções lindas, como "Meu pequeno
Cachoeiro"; e minha mãe, por Noemi Cavalcanti. Surgiu um grande descrédito, que levou ao
declínio do Trio. Só havia aplausos nos lugares em que as pessoas ainda acreditavam em meu pai. Enquanto isso, Dalva foi conquistando a simpatia e carinho do grande
público e o sucesso que veio a seguir pode ser chamado de estrondoso. Era, sem dúvida, uma mulher desrespeitada pelo marido, ultrajada em narrativas trabalhadas
a quatro mãos.
Foi Nelson Gonçalves quem me contou como aconteceu a aproximação de meu pai com David Nasser. Chico Alves, grande amigo de Herivelto, era parente do jornalista
David Nasser, que tinha um enorme prestígio na área jornalística e grande influência junto aos formadores de opinião da época. Mas era também um homem ansioso por
participar do mundo da música. Seu sonho era competir com Nelson Rodrigues. Enquanto David fazia um jornalismo mais voltado para a política, Nelson escrevia sobre
o cotidiano, falava para o povo. A época permitia esse tipo de competição sadia, que a solidão de hoje matou.
Assim, ao se aproximarem pelas mãos de Chico Alves, cada um resolveu à sua maneira a carência do momento. David atingiu, por meio da música e do talento do parceiro
Herivelto, o desejo de falar para o povo e não somente para a elite. Por sua vez, meu pai encontrou, no apoio de David, a chance de destilar toda a dor-decotovelo
com o sucesso de Dalva. Arrasado pela perda do apogeu artístico vivido ao lado de minha mãe, teve as portas do Diário da
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Noite abertas para dar sua versão. Mais tarde, ao amargar as conseqüências desse gesto tresloucado, encontrou no mesmo David o prestígio necessário para se reerguer
perante a opinião pública com suas inspiradas parcerias.
Uma vez, fui com meu pai visitar David Nasser no Cosme Velho. Era uma casa bonita, com uma fachada de pedra, imponente, parecendo um castelo. Ao entrarmos, levei
um susto - não tinha móveis. Ele nos deu uns caixotes de cerveja para sentarmos. Havia vendido tudo o que tinha para comprar essa casa.
com o passar do tempo (uns cinco anos depois dos capítulos no jornal), tive o prazer de vê-lo na Rádio Tupi, pedindo para falar com minha mãe. Em princípio, ela
relutou um pouco, mas depois cedeu. E ouviu espantada um pedido de desculpas de David Nasser, extremamente comovedor. Foi triste ver aquele jornalista, tão importante
e tão festejado, humilhado e arrependido de ter servido com seu talento a tanta imundície colocada no papel.
Mais tarde, descobrimos o que mais motivou esse pedido de desculpas, além do arrependimento: a exigência de outro jornalista, que via a profissão se degradar com
a atitude de David. Esse jornalista era Ibraim Sued. Chocado com o que se lia no Diário da Noite, exigiu que David parasse com tudo aquilo.
Outro que se arrependeu muito, graças à atitude dos fãs de minha mãe, foi Fred Daltro, da revista Escândalo. Depois da reportagem absurda sobre a condição de Dalva
como nossa mãe, foi levado por um grupo de fãs para a Barra da Tijuca (em 1951 era ainda um bairro em formação), apanhou muito e foi enterrado na areia, ficando
somente com a cabeça de fora. Não morreu apenas por sorte... e para minha mãe saborear um pedido de desculpas, logo depois.
De minha parte, posso garantir que o mal feito a nós foi enorme, e não responsabilizo apenas David, mas meu pai também, pela atitude impensada, desatinada. Meu irmão
Bily, no entanto, com a humilhação sofrida nas páginas do Diário da Noite, passou a nutrir por David Nasser um ódio mortal, que o acompanhou por anos.
Quando Bily trabalhava na TV Rio, uma tarde teve a surpresa de saber que David iria ser entrevistado num programa da emissora. Preparou-se psicologicamente, então,
para tomar uma atitude qualquer ao estar diante de David. Dizer algo, xingá-lo, bater nele
- em sua fantasia imaginava qualquer coisa que o aliviasse por tanto mal causado.
Mas eis que de repente aparecia um David Nasser todo torto, doente, meio entrevado. Pedindo, por favor, a quem estivesse por perto, que buscasse uma cadeira, pois
não se agüentava em pé. Naquele momento, Bily lhe ofereceu uma cadeira. E David jamais soube de quem havia recebido ajuda. Mas meu irmão se sentiu aliviado: não
havia necessidade de fazer nada para punir aquele homem. A vida havia se encarregado de castigá-lo.
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QUE SERÁ
DE MINHA VIDA
Sem o teu AMOR
O HOTEL QUITANDINHA, em Petrópolis, foi cenário das mais saborosas lembranças da minha infância. Ao sabermos que nossos pais iam se apresentar lá, Bily e eu pulávamos
de alegria, com a certeza de dias muito divertidos. No hotel, desfrutávamos do que havia de melhor em acomodações. Como qualquer criança, a nossa paixão eram as
piscinas, especialmente a de água quente, dentro do hotel. Até hoje soa em meus ouvidos o eco do som da água e das pessoas gritando e falando alto, em volta da piscina
quente. Além do restaurante principal, havia outro Só para as crianças, todo colorido. A comida era farta e gostosa e um
clima-de-alegria dominava tudo.
Os shows aconteciam no Grill, ambiente chique, onde as mulheres iam de vestido longo e os homens de smoking. Havia uma espécie de mezanino onde eu gostava de ficar
para assistir às apresentações de meus pais e outros artistas no palco. Na hora do show do Trio de Ouro ou de alguma atração internacional, eu tinha de arranjar
um cantinho, pois ficava tudo lotado.
Trecho da música "Que será?", de Marino Pinto e Mário Rossi.
Os shows no Grill eram muito variados. O palco giratório era uma atração à parte. Assim que um número estava terminando, o palco começava a rodar e do outro lado
ia surgindo a atração seguinte.
Nossos pais, assim como os outros artistas e músicos, iam dormir muito tarde. Mas a gente, normalmente cansado de tanto brincar, dormia cedo. E acordávamos cedo
também. Portanto, logo pela manhã, Bily e eu estávamos acesos. Achávamos chiquérrimo pedir o café no quarto. Fazíamos o garçom entrar naquela penumbra, com o carrinho
cheio de delícias, e tomávamos nosso café iluminados apenas por um fiozinho de luz da cortina entreaberta, aos cochichos, para não acordar nossos pais. Depois, íamos
brincar de bola nos corredores. Normalmente, a equipe do show ficava em quartos ao lado do nosso. Podem imaginar o resultado: a bola acabava batendo na porta de
algum deles. Estava sempre conosco um
vibrafonista muito querido por nossa família, chamado Xuca-Xuca.
Recentemente, eu o vi - inteiraço - numa reportagem da TV Globo. Xuca teria mais ou menos a idade do meu pai, se ainda fosse vivo. Pois Xuca-Xuca correu muito atrás
de nós, quando a bola batia na porta dele, acordando-o.
O Quitandinha foi um dos lugares mais bonitos e chiques que conheci. Pena que, sem uma política cultural mais efetiva e sem a necessária reabertura dos cassinos
no Brasil, espaços como esse ficaram tão abandonados. Foi no Quitandinha que assisti a um momento marcante da carreira de minha mãe: sua volta aos palcos sem meu
pai. Sozinha naquele palco, onde tantas vezes entrara ao lado do marido, minha mãe recomeçava tudo. Imagino que a sensação era terrível. Não tinha mais Nilo, não
tinha mais Herivelto. Não havia mais a certeza do resultado, os arranjos conhecidos. Nem a certeza do aplauso. A insegurança tomava conta dela.
Essa primeira vez, após a temporada sozinha em Belém, aconteceu graças aos incentivos de Luís Bonfá, Xuca-Xuca e Francisco Pacheco, o Chicão. Ela e Chicão estavam
de namorico. Chicão era
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um sujeito alto, moreno, bonito e participava ao lado de Luís Bonfá do conjunto Quitandínha Serenaders. O grupo abria o espetáculo no palco giratório com uma bonita
apresentação, todos muito bem vestidos. Chicão tinha uma postura séria, mas simpática.
Eles deram à minha mãe uma força especial num momento decisivo. Sem o empurrão, talvez ela não conseguisse encarar aquele palco, com a lembrança de meu pai e do
sucesso do Trio de Ouro tão recentes. Mas encarou. com medo, tremendo, entrou no palco e cantou. Cantou bonito. Triste, machucada até o fundo da alma, minha mãe
cantou. com seu mundo caído, a única saída era erguer um novo. Era tudo ou... tudo.
E, a partir daí, minha mãe não parou mais. Foi contratada pela Rádio Nacional, começou a gravar sozinha na Odeon e a fazer muitos shows.
Em meio ao conflito que se estabeleceu entre meus pais, houve um momento em que a praça Tiradentes, no Rio, se tornou uma verdadeira arena de guerra. Por uma infeliz
coincidência, estavam em cartaz, ao mesmo tempo, Dalva e Herivelto. Meu pai apresentava-se num show de revista no Teatro João Caetano e minha mãe, no vizinho Teatro
Recreio, na rua Dom Pedro. A praça Tiradentes virou um conflito só. com o novo Trio (Raul Sampaio e Noemi Cavalcanti), meu pai amargava uma solidão artística
muito grande. Por mais que o respeitassem como um compositor genial, as pessoas não aceitavam a forma como ele se portava
na vida pessoal. Minha mãe, explodindo na carreira-solo, era produzida e dirigida pelo maior empresário teatral da época,
Walter Pinto.
O nome do espetáculo, É rei, sim, era um jogo de palavras com o sucesso de Dalva "Errei, sim" e o sucesso de Carnaval de Herivelto "Que rei sou seu?". Walter. deu
à minha mãe a posição de estrela do teatro de revista e ainda chamou Vicente Paiva, seu amigo e maestro preferido, para acompanhá-la. Vicente deitou e rolou. Compôs
especialmente para ela cantar no show "Olhos verdes",
que logo minha mãe gravaria. Outra canção de Vicente, com Jaime Redondo, que fazia a platéia vir abaixo com a interpretação de Dalva era "Ave Maria": -
Ave Maria
Nos seus andores
Rogai por nós, os pecadores '....'
Abençoai essas terras morenas
Seus rios, seus campos
E as noites serenas
Abençoai as cascatas
E as borboletas que enfeitam as matas
Ave Maria
Cremos em vós
Virgem Maria, rogai por nós
Ouvi as preces, murmúrios de luz
Que aos céus ascendem -
E o vento conduz
Conduz a vós
Virgem Maria, rogai por nós
O show no Recreio fez um sucesso descomunal. Trânsito interrompido, escolta policial para ela poder chegar com o carro aos fundos do teatro, saída do show também
sob proteção policial. Era algo nunca visto e, acredito, que jamais veremos igual.
Não é difícil imaginar o auge que ela vivenciava. Tinha seu próprio horário na Rádio Nacional, dentro do programa César de Alencar, aos sábados. Os discos nas paradas,
com cinco ou seis músicas estouradas... O país inteiro pendia muito mais para o seu lado do que para o de meu pai. O mundo feminino estava todo a favor dela, numa
projeção de seus próprios dramas pessoais.
Minha tia Edith, que sempre assessorou Dalva nos camarins, 'embra-se de um incidente envolvendo David Nasser no show do
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Recreio. Ainda era muito recente a baixaria promovida por ele e meu pai no Diário da Noite, e, mesmo assim, ele foi assistir ao espetáculo que ela estreava. com
uma tremenda cara-de-pau bateu à porta do camarim. Edith espantou-se ao vê-lo e ficou muda. Lá de dentro, minha mãe perguntou quem era. Ainda muda, Edith entreabriu
a porta, enquanto ele dizia:
"Dalva, você está maravilhosa! Vim cumprimentá-la".
Minha mãe pensou não ter escutado direito. Quando viu quem era de verdade, Edith conta que ela parecia "cachorro que arrepia o dorso". E soltou:
"Sai daqui, seu cretino maldito!".
Levantou e chutou a porta do camarim nas costas de David.
Esse foi o único confronto entre os dois. Só voltaram a se encontrar na Rádio Tupi, tempos depois. As razões de minha mãe agir assim, quem leu os capítulos do Diário
da Noite pode aquilatar.
Quando meus pais se separaram, nenhum deles continuou no apartamento da rua João Luís Alves, na Urca. A mobília toda foi parar num guarda-móveis. Meu pai, de mulher
nova, não quis riada. Comprou tudo novo. Minha mãe não queria deixar a Urca, onde havia atingido um estágio melhor de vida e as primeiras grandes realizações artísticas
aconteceram. E foi morar numa quítinete, um lugar minúsculo em que mal cabia uma cama de casal. Quando íamos visitá-la, dormíamos todos juntos. Depois, mudou-se
para a rua Barão de Cotegipe, na Vila Isabel, um bairro agradável, onde já podia receber melhor Bily e eu. Ali ficou pouco mais de um ano, e, finalmente, com o
sucesso, comprou a casa de Jacarepaguá.
Isso só aconteceu graças à insistência de sua irmã, Margarida, pois minha mãe temia pelo que pudesse acontecer com sua carreira. Tinha muito medo, não estava acostumada
a tomar decisões e relutou em assumir um compromisso tão longo e expressivo. Minha tia insistiu, o amigo Vicente Paiva apoiou e ela comprou a casa. Por pouco não
perdeu um belo negócio, por pura falta de autoconfiança.
Tempos depois, minha mãe iria demolir o que era apenas uma caslnha de subúrbio, pequena e modesta, e
construir uma bela adenda para receber os filhos, a família,
os amigos e os fãs. Seria o seu refúgio, o seu Shangri-lá, como gostava de se
referir a casa de Jacarepaguá.
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A VIDA com LURDES
MEU PAI, AO SAIR DA URCA, foi morar sozinho num apartamento pequeno na rua Santa Clara, em Copacabana. Mas logo estava morando com Lurdes, morena de olhos verdes
e personalidade forte, em Santa Teresa, na avenida Almirante Alexandrino, 292. Era um apartamento de três quartos, onde Bily e eu passávamos alguns fins de semana.
Embaixo morava o Ubirajara, pai do cantor Taiguara, um grande instrumentista (tocava bandoneon), que conheci melhor mais tarde, ao trabalharmos juntos.
Nessa mesma rua moravam as irmãs de Lurdes, Conceição e Jane. Eram pessoas maravilhosas - imparciais, inteligentes e muito sábias ao se relacionarem com a nova
vida da irmãao lado de Herivelto. Tratavam a mim e a Bily com um carinho e uma compreensão fora do comum. Junto com a mãe, dona Sílvia, cuidavam de Newton, filho
de Lurdes.
Até hoje não consegui entender por que Newton não vivia com a mãe. Ele tinha paixão por meu pai, que, afinal, o conheceu muito pequeno ainda. Mas Herivelto sempre
o tratou com distância. Era como se tivesse uma certa reserva em tratá-lo com carinho, por ser filho de outro homem. Considerado por nós desde o começo como irmão,
Newton tem muitas das qualidades da mãe:
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personalidade calma e serena e um equilíbrio interior que contribui para neutralizar qualquer problema entre os irmãos. Seu caráter e bom coração sempre me encantaram.
com o passar dos anos, ele, com esse temperamento, terminou por conquistar uma certa amizade com meu pai. E, principalmente, seu respeito como profissional. Meu
pai confiava a Newton, que é economista, seu imposto de renda e a administração de seus investimentos.
Quando soube que minha mãe já havia se mudado da Urca, Herivelto voltou com Lurdes para o bairro que adorava. Durante três anos morou na rua Joaquim Caetano, 3.
Depois, alugou uma casa na Otávio Corrêa, 84, que mais tarde comprou e onde viveu o resto da sua vida. Hoje, como o bairro está tombado, há na porta dessa casa uma
placa colocada pela prefeitura informando que ali morou uma grande personalidade do Rio: o compositor Herivelto Martins.
Lurdes tinha uma personalidade muito diferente da de minha mãe. Dona de um timbre de voz grave, falava muito pausadamente. com seu jeito calmo mas firme, conseguiu
uma verdadeira façanha com meu pai: raras vezes ele falou mais alto com ela. Meu pai tinha com Lurdes uma conduta nada semelhante à que teve com minha mãe. Quando
tinham algum problema, era resolvido dentro do quarto e ela sempre mantinha sob seu controle o clima da discussão.
Muito racional, Lurdes conduzia o casamento de forma inteligente e sabia usar seu domínio sobre meu pai com serenidade e rirmeza. Tudo isso, acredito, era influência
da educação diferenciada que recebera como filha de uma família de classe média alta do Sul do país, região mais privilegiada culturalmente. Seu pai era um homem
de negócios em Porto Alegre, proprietário de muitos imóveis, o que permitiu que ela tivesse uma formação de qualidade, além de certa tranqüilidade para viver no
Rio.
No início do relacionamento dos dois, havia muito companheirismo da parte dela. Saíam juntos, ela ia aos seus shows,
dirigia o carro, ajudava-o a buscar os crioulos
e cabrochas da escola de
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samba. Participava realmente da vida do artista Herivelto e da vida do homem que buscou nela a cura de suas feridas.
Coragem diante da vida era uma característica bem forte de Lurdes. E isso ela ofereceu ao meu pai. Em nenhum momento esmoreceu diante dos problemas enfrentados por
ele. Foi uma grande companheira, segurando uma barra muito pesada na fase do Diário da Noite e diante das depressões de meu pai.
Sua postura de mulher bonita e fina acompanhava Herivelto a todo lugar: do Catete, visitando Getúlio, às festas na casa de Roberto Marinho. Fosse nos palácios ou
nos botecos, Lurdes, com seus olhos verdes, fala mansa e uma tonalidade de voz que lembrava Marlene Dietrich, ajudava a atenuar a imagem de um homem marcado por
um momento terrível de descrédito junto ao público. Ela ajudou muito na recuperação social e familiar de meu pai. Organizou sua vida, seus compromissos profissionais.
Contribuiu para que ele readquirisse, em parte, a credibilidade, depois que foi se apagando devagarzinho a história descrita no Diário da Noite. Digo em parte porque
a marca de Dalva jamais o abandonou totalmente. Bem, não foi apenas a marca de Dalva, mas sim o que restou da análise feita pelo povo do que foi a vida dele com
minha mãe.
com Lurdes meu pai teve três filhos: Fernando, Yaçanã e Herivelto Martins Filho, apelidado por nós de Louro." Quando nasceu o primeiro, fiquei encantado. O Fernandinho
era um bebê lindo e foi uma criança dócil e inteligente, de quem eu gostava muito. Curtia cuidar dele quando Lurdes saía com meu pai. Nessa época, vindo de São
Paulo, estava morando com eles na casa da Urca. Cuidei do mesmo jeito de Yaçanã, trocando fraldas e dando comida na hora certa.
Meu pai tinha uma relação estranha com os filhos e depois com os netos. Enquanto estivessem entre a época de colo e os cinco anos, falassem errado e fizessem gracinhas,
ele adorava. Pegava no colo, brincava, curtia de verdade. Depois dessa fase, começava a inverter o tratamento: palavras duras, repreensões
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exageradas e, finalmente, abandono e até desprezo. Todos observamos esse comportamento dele com as crianças da família. Foi assim com Fernando e com Louro, foi assim
com os filhos do Fernando, fvlayara e Fernando (que continuaram morando na Urca depois da morte do pai). Era assim com todas as crianças.
Só não foi assim com Yaçanã. Pai de seis meninos, meu pai tinha loucura para ter uma menina. E, quando nasceu sua única filha, ela não recebeu o mesmo tratamento
dispensado aos filhos. Meu pai sempre a mimou, tratando-a sem a secura que usou conosco. Mas, apesar desse tratamento diferenciado, Yaçanã não foi especialmente
carinhosa com ele. Ao contrário, era muito mais grudada com a mãe.
Fernando era inteligente e brilhante, além de muito na dele. No entanto, foi excessivamente protegido e dominado pela mãe. Acredito que, ao longo do tempo, ele vivenciou
uma sensação meio paradoxal: de desamparo por parte do pai e de controle sufocante por parte de Lurdes. Talvez tenha sido esta a razão de ele entrar no mundo das
drogas. Era muito desequilíbrio para um garoto não tão forte assim.
Lurdes tinha verdadeiro fascínio por tudo o que fosse relacionado com a medicina. Acho que sua saúde delicada (era cardíaca) despertou uma grande intimidade com
esse mundo e seus assuntos. Tinha amigos médicos em quase todos os hospitais. Era ex-pert em bula de remédio, sabia-as de cor. Receitava remédios para quem quer
que fosse. Discutia com seus conhecidos as receitas dadas pelos médicos, chegando a discordar do tratamento que prescreviam.
Acredito que essa fixação tenha feito com que Louro cursasse medicina, mais para satisfazer a mãe do que por vocação. De todos os meus irmãos, Louro sempre foi
o de maior musicalidade. Tinha grande talento para a vida artística, mas não recebeu nenhum estímulo nesse sentido. Chegou a participar de uma novela na Globo, Minha
doce namorada, quando tinha uns dez anos. A permissão foi dada mais pelo status do trabalho na emissora do que pelo reconhecimento de sua vocação. Ao se tornar médico,
Louro jogou fora
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um talento fora do comum; no seu sangue, corre mais música do que medicina.
Depois que meu pai passou a viver com Lurdes, muita coisa em relação a nós, filhos do casamento anterior, se modificou. Já não tínhamos como falar com ele diretamente,
fosse porque ela quisesse ajudar em alguma decisão, ou para que ele não se aborrecesse, ou porque qualquer atitude ou decisão dele tivesse de passar pelo seu crivo.
O fato é que tudo o que queríamos com meu pai passava primeiro por Lurdes.
Ironicamente, isso criou uma distância incrível entre ele e nós (Bily e eu). O tempo passou, já não éramos crianças. Mesmo assim, quando queríamos falar com ele,
Lurdes tinha de estar por perto, ouvindo tudo, sabendo de tudo. Sabíamos que não adiantaria nada falar com ele a sós. De qualquer forma, ele levaria o assunto para
ela antes de nos dar qualquer resposta ou decisão.
Tudo isso comprometia a intimidade com o nosso pai. Ele, por sua vez, poderia, se quisesse, ter mudado esse quadro. Era só sair da situação cômoda de protegido
e enfrentar a questão de ser pai. Era só ser o Herivelto de antes. Mas já não era. Se eu tivesse de alugar um apartamento e precisasse de meu pai como fiador, primeiro
precisava falar com Lurdes, adiantar todos os detalhes. Isso semcontar as vezes em que ela simplesmente pegava o papel,
levavaaté ele e voltava com a assinatura,
sem que ao menos pudéssemos conversar a respeito ou até mesmo pedir uma orientação a ele.
Ao mesmo tempo, Lurdes assumia uma postura de boa madrasta e estimulava a convivência de todos nós com meu pai, mas sem oportunidade para uma real intimidade, sempre
num ambiente de muita gente. Ela mantinha a casa aberta, organizava grandes festas nas datas comemorativas - aniversário dele, Dia das Mães, Páscoa, Dia dos Pais
e Natal. Acompanhando o desejo de fartura de meu pai, estava sempre pronta para receber todos nós, mais esposas e filhos. A família era grande e qualquer reunião
virava uma festa
No Natal, então, era uma loucura. A ceia de meu pai era famosa na Urca, porta aberta mesmo. Ele chegava a receber, entre familiares e amigos, mais de cem pessoas,
com direito a performance de Papai Noel para as crianças, feita por atores amigos, e uma imensa árvore com os presentes.
com o passar dos anos, a saúde de Lurdes se tornou muito delicada. Além de cardíaca e safenada, tinha um problema sério de insônia e se tornou dependente de remédios
fortíssimos para dormir. com o tempo, esses remédios não surtiam mais efeito, apenas a deixavam grogue.
A vida de meu pai com Lurdes, em que pese ele dizer que ela era o grande amor da sua vida, escondia uma verdade gritante. Ele se tornou um burguês inflexível, um
ausente nas modificações que se processavam à sua volta. Daquele homem que influenciou seu tempo, cheio de imaginação e criatividade, capaz de movimentar um país
com música e letra, que fazia dos seus erros a alavanca de grandes conquistas, restou apenas a acomodação e a tristeza de ter de dormir sozinho. Sua mulher tomava
toneladas de sedativos (Mogadon, Ropynol e qualquer outra novidade surgida no mercado) e ficava até de madrugada dando voltas pela casa, completamente dopada, sem
conseguir dormir.
A situação entre Lurdes e meu pai era contraditória. De um lado, viviam de mãos dadas e à tarde, depois do almoço, tinham de deitar um pouco. Lurdes chegou a me
dizer:
"Teu pai não é mole. Tem de ser de noite e muitas vezes à tarde também. Às vezes, tenho de fingir que estou dormindo, senão não dá pra agüentar!".
Por outro lado, houve algo entre eles que nenhum filho conseguiria explicar. A casa, o centro espírita, a família os uniam. Mas eles não se uniam mais em suas solidões.
Ninguém vai conseguir honestamente explicar o que houve entre eles, para se tornarem tão sozinhos e ainda se dizendo apaixonados.
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PROCÓPIO FERREIRA, APAIXONADO POR DALVA
MINHA MÃE, com AQUELA MEIGUICE e lindos olhos verdes, sempre teve muitos pretendentes. O primeiro deles que conheci oficialmente foi Paim (Haroldo Paim Pamplona).
Era um homem bonito em sua farda imponente de oficial da Aeronáutica. Não durou muito, mas era um sujeito legal com a gente. Imagino que foi difícil conciliar a
filosofia de vida militar com a vida de artista de minha mãe. Além do mais, era a época do desquite, tinha de ser um namoro muito escondido.
Outro namorado de minha mãe que conhecemos foi Djalma Ferreira, organista famoso da noite do Rio, nos anos 50. Que eu saiba, foi importante para ela. Ele tocava
um Hammond B3 fantástico, todo iluminado nos teclados, e tinha um swing bárbaro. Comandou a Boate Drink, antes do Cauby Peixoto, e contribuiu muito para que a noite
do Rio fosse alegre e, acima de tudo, criativa. No fim dos anos 60, encontrei-o em
Las Vegas, onde morou por muitos anos.
Eu me lembro de uma passagem com eles em Jacarepaguá, na casa que minha mãe acabara de comprar. Antes da reforma, era uma casinha pequena, simples, de subúrbio
mesmo, onde só faltava em cima da porta aquela plaquinha simplória: "Isto é um lar". Numa madrugada, acordei meio assustado e procurei minha mãe no quarto. Ela não
estava. Ouvi vozes
que vinham da varanda da casa. Fui até lá e flagrei-a no maior namoro com um homem. Aquilo foi terrível para mim. Comecei a chorar e, é claro, acabei com o clima
romântico deles. Ela teve de me colocar na cama, me acalmar e ficar comigo até eu pegar no sono novamente. O homem na varanda era Djalma Ferreira.
No entanto, o mais apaixonado, o mais declarado, o mais fervoroso de todos os seus namorados, sem sombra de dúvida, foi o grande ator Procópio Ferreira. Era algo
assustador e comovente. Minha mãe chegava às vezes a seu camarim no teatro ou em alguma boate e quase não podia entrar de tantas flores que ele mandava, com cartões
apaixonados e convites para jantares românticos.
Ele a mimava muito. Era muito generoso com Dalva e a presenteava bastante. Deu-lhe de presente um piano para a sua casa de Jacarepaguá, pois dizia que uma cantora
como ela precisava de um para as suas reuniões musicais. E, muito mais tarde, vim a saber que um automóvel Austin que ela teve também havia sido presente dele.
Conosco era muito carinhoso, apesar do jeitão sério. Fazia tudo para nos agradar. Lembro que, num Natal, mandou nos buscar em casa, Bily e eu, e fomos com Edith
até o Teatro Serrador. Lá, surpreendeu-nos com um presente que enlouquecia qualquer menino: um relógio para cada um. Mas não era só isso. Quando chegamos em casa,
mais surpresa: Procópio havia mandado uma bicicleta para mim e outra para meu irmão.
Para ver a que ponto chegava essa paixão, vou contar uma passagem deles. Foram juntos fazer um show em Fortaleza. Minha
mãe havia ficado muito tempo em pé e começou
a sentir dores, assim que chegaram ao quarto do hotel para descansar, Procópio saiu dizendo que não demoraria. E, dali a pouco, apareceu com
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uma bacia cheia de água e um remédio, dizendo que ia lavar e massagear os pés de minha mãe. Encantada, ela aceitou o mimo.
Infelizmente, ela não o amava do mesmo jeito. Machucada pela forma grosseira com que fora tratada nos últimos tempos de casamento com meu pai, sentia-se uma verdadeira
princesa com todo esse carinho de Procópio. Mas daí a aceitar o pedido de casamento havia uma grande distância... Dalva tentava dissuadi-lo de seu amor, explicando
que tudo ainda era muito recente para ela e que não poderia retribuir com a mesma intensidade. Procópio não queria aceitar a sua recusa e dizia que bastava que
ela o deixasse amá-la!
Digo infelizmente porque fico imaginando como poderia ter sido diferente o desenrolar da vida da minha mãe se tivesse casado com Procópio. Um homem de caráter e
sensibilidade. Um artista de peso que não se ofuscaria com seu brilho. Ao contrário, poderia ter orientado sua carreira. Minha mãe sempre careceu desse apoio. Mas
ela era muito verdadeira e transparente em seus sentimentos e não admitia sua vida sem amor. Como não o amava, deixou Procópio, abrindo mão do seu braço forte e
carinhoso.
Muitos anos mais tarde, soube que minha mãe assinara algumas promissórias para conseguir comprar a casa de Jacarepaguá. Numa época de pouco trabalho, ela acumulou
dois ou três meses de pagamento e foi ficando nervosa. Como não era um financiamento da Caixa, mas um compromisso particular com o antigo dono, corria o risco
de perder a casa. Foi ficando aflita - não podia pedir outro adiantamento à gravadora Odeon, porque já havia recebido um para a primeira reforma que fez.
Minha tia Edith, acompanhando toda essa agonia, resolveu procurar Procópio às escondidas, no teatro onde ele estava se apresentando. Já havia passado um bom tempo
desde que Dalva terminara o romance, mas ele não tifubeou: disse a Edith para dar um jeito de pegar as tais promissórias. Edith conseguiu (não sei o que inventou
para minha mãe) e levou os documentos para ele. No dia seguinte, voltou ao teatro e recebeu as promissórias quitadas, mas
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não antes de jurar a Procópio que jamais contaria à minha mãe o que ele fizera. Ela só soube disso depois que ele já havia morrido.
Procópio foi um verdadeiro gentleman com minha mãe, apaixonadamente carinhoso na expressão do seu amor! Alguns anos atrás, numa festa no apartamento de Beki Klabin,
na avenida Vieira Souto, no Rio, encontrei Bibi Ferreira, filha de Procópio. Ela me chamou num canto e disse que tinha um presente para mim:
"O meu pai, grande apaixonado por Dalva, mandou fazer há muitos anos um par de abotoaduras de ouro, com a fotografia da tua mãe em cada uma delas. Eu guardava como
relíqüia e agora quero te dar de presente".
Estou para ir buscá-las a qualquer momento.
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QUISESTE OFUSCAR MINHA FAMA SÓ PORQUE VIVO A BRILHAR
Aos OLHOS DOS COMPOSITORES, até mesmo daqueles que eram amigos de Herivelto, minha mãe ficara acuada diante da investida covarde de meu pai. Como poderia responder?
Procurar outro jornal? Exigir direito de resposta no Diário da Noite, alimentando toda aquela sujeira? Ela não era
compositora. Como se defenderia? Como responderia a todos aqueles ataques?
Dalva era muito querida por todos e não se tem conhecimento de alguém no meio artístico com alguma queixa em relação a ela. Sua doçura e alegria despertavam carinho
em todos. Assim, os compositores, vendo-a tão desprotegida, começaram a produzir maciçamente para ela, oferecendo o que descrevesse o momento que vivia com Herivelto.
Em princípio, não havia nenhuma intenção de polemizar, embora o sucesso de "Tudo acabado", é claro, tenha despertado o interesse comercial na disputa. Mas os compositores
também tinham um interesse real em ajudá-la a combater a guerra que meu pai declarara.
Trecho da música "Calúnia", de Marino Pinto e Paulo Soledade.
Contratada da Rádio Nacional, gravando sozinha na Odeon, discos fazendo sucesso e o país inteiro só falando de Dalva e Herivelto, em meados de 1952, depois de eleita
Rainha do Rádio, veio o convite para minha mãe ir à Inglaterra gravar um disco e fazer algumas apresentações na Europa. Ficou deslumbrada. Na época, era muito raro
a ida de artistas brasileiros para o exterior, ainda mais alçando vôo tão alto. Dalva seguiu em excursão para Lisboa, Madri, Barcelona e Londres, onde - glória maior!
- cantou para a rainha Elizabeth no famoso Hotel Savoy. Conheceu grandes artistas nessa temporada e foi ouvida, entre outros, por Errol Flynn, Deborah Kerr e Katherine
Hepburn.
A telefonia no Brasil ainda engatinhava em termos de ligação internacional, e minha mãe falava com a gente de Londres por intermédio de radioamador. Quando batia
a saudade, procurava algum rádio e pedia para ligar. Nós éramos chamados às pressas por um radioamador que morava perto de casa. E assim conversávamos um pouco,
tudo muito rápido.
Em Londres, ela gravou um disco com o pianista inglês Roberto Inglês, famoso na época. Esse maestro e músico chamava a atenção pelo jeito diferente de tocar - procurava
mais as notas graves e fazia solos com a mão esquerda. com ele, Dalva gravou o disco que impulsionaria definitivamente sua carreira-solo. Nesse disco, já no formato
LP, estavam "Fim de comédia", "Que será" e "Kalu", canções que se tornaram verdadeiros hinos na música brasileira. Nem preciso dizer o barulho que aconteceu quando
apareceu nas lojas de discos. Foi uma loucura! A Odeon era só felicidade, na base do "tapete vermelho" quando ela aparecia na sede, na avenida Rio Branco, centro
do Rio. Festas, coquetéis, visitas na casa dos diretores, visitas à nossa casa, homenagens. O arsenal completo do sucesso.
Para poder avaliar a extensão do êxito de Dalva, é importante saber que, no auge da polêmica musical, ela chegou a vender 300
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mil cópias do disco 78 rotações com a música "Kalu" em 1951, fazendo com que a Odeon rodasse suas máquinas em turnos ininterruptos de 24 horas para abastecer
o mercado. Se levarmos em conta que, nessa época, a população do Brasil era infinitamente menor, vamos poder dizer que minha mãe vendeu, proporcionalmente, mais
discos que a Xuxa, que em 1989 atingiu a marca de 3 milhões de cópias.
Dalva era lembrada para tudo o que fosse considerado importante no meio. Um dia, recebeu um convite muito especial: recepcionar um famoso cantor norte-americano
que viria ao Brasil gravar um disco. Como campeã de vendas da gravadora, sua presença era indispensável. O coração de minha mãe disparou quando soube o nome do artista:
Nat King Cole!
Quando ela chegou em casa contando, fui logo pedindo para me levar junto. Lembro-me como se fosse hoje da ansiedade que nos dominava no caminho para o estúdio, na
avenida Rio Branco. E da emoção que tomou conta da gente quando a porta se abriu e Nat King Cole surgiu diante de minha
mãe. Ao ser apresentada a ele, Nat beijou sua mão. Eu, do lado, tambèm apertei a mão dele, enquanto um diretor da Odeon, Mr. Morris, traduzia tudo. Ele foi muito
simpático e afável. Eu nunca tinha visto
ninguém tão escuro assim. Nat King Cole era azul-marinho.
O disco foi produzido por Aloysio de Oliveira, na época diretor artístico da Odeon. Nat havia estourado nas paradas norteamericanas e começava a gravar uma série
dedicada ao mundo latino, cantando em espanhol. Aqui, ele cantou em português, ao lado do Trio Irakitan e, naturalmente, de Sylvinha Telles,. então mulher de Aloysio.
Dalva ficou encantada ao ser convidada pela Odeon para assistir às gravações e disse que iria todos os dias. Para minha sorte, começavam à tarde e pude ir com minha
mãe. Eu não podia perder essa chance.
Assistia a tudo embevecido. O que mais me chamava a atenção era a quantidade de cerveja que Nat King Cole tomava no
estúdio. Ele dizia que sua voz só ficava do jeito que queria - morna, pastosa, sussurrante - depois de quase meia dúzia de cervejas,
era assim que conseguia aquele grave maravilhoso.
Na época em que minha mãe estava começando a preparar um novo disco, os produtores Aloysio de Oliveira e Milton Miranda sugeriram um músico e arranjador totalmente
desconhecido. Disseram que seria bom se ela pudesse dar essa chance a alguém novo com talento. Ela concordou, e um dos primeiros arranjos para disco desse novato
surgiu aí. Era Antônio Carlos Jobim. A música, "Saia do caminho", de Custódio Mesquita.
tom esteve algumas vezes em Jacarepaguá. Sentava num piano Brasil de armário
e tirava sons maravilhosos. Já naquela época podia se sentir o toque mágico de alguém que viria a revolucionar o mundo com sua música.
A gravadora Odeon do Brasil investia em tudo o que pudesse fazer com que Dalva vendesse mais discos. Assim, criou, junto com a Odeon Argentina, a grande parceria
que iria estourar novamente o mercado. Os tangos.
Na Argentina da época, o mercado era dominado pelos maestros e arranjadores do tango mais tradicional. Minha mãe foi apresentada a Francisco Canaro e ele se apaixonou
pelo trabalho dela. Gravaram um disco em Buenos Aires - um estouro. Aníbal Troillo também se curvou diante da arte de Dalva e fizeram um disco juntos. Os tangos
se tornaram a febre do Brasil e um após o outro iam desencadeando o maior sucesso: "Lencinho branco", "Gira gira", "Che papusa", "Oi, cristal". A notoriedade e até
o sucesso surgiam aos poucos para Dalva em países como Argentina, Uruguai e Chile. Passou a excursionar com freqüência por esses países, tornando-se muito querida
do público.
Por volta de 1952, começava a despontar no mundo latino um grande cantor. Seu nome era Lucho Gatica. Minha mãe, já em contato direto com a Argentina e a música
latina, se identificou muito com seu canto, sua sensibilidade. Ao saber que também gravava na Odeon, fez uma campanha enorme dentro da empresa para
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que seus discos fossem lançados aqui no Brasil. Resultado: o sucesso de Lucho Gatica foi estrondoso.
Mais tarde, ele veio ao Brasil para conhecer sua grande incentivadora e ficaram amigos. Por causa de Lucho e sua música, minha mãe se tornou uma apaixonada pelo
México, que só conseguiu conhecer muitos anos depois, quando eu estava vivendo lá e ela foi passar alguns meses comigo.
Acredito que tenha sido nesse momento que comecei a perceber uma certa inquietação em minha mãe. O sucesso se fazia presente - a loucura dos fãs, o aplauso, o brilho
excessivo das luzes, a gritaria enorme em torno dela, a ausência total de privacidade foram minando-lhe a cabeça e o coração. Aquela febre era algo incontrolável
e enorme. Eu a via chegar em casa exausta, completamente enfraquecida pela perda de tanta energia. Para relaxar e entrar no giro da casa e da vida particular, recorria
ao conhaque, que passou a ser seu companheiro mais fiel. Essa relação com o conhaque já vinha desde o tempo de meu pai, rras era mais moderada, pois meu pai tinha
total controle sobre ela e a segurava muito.
O talento de Dalva era amado e reconhecido. Mas sua solidão foi começando a crescer, na medida em
que o sucesso entrava por um lado e a realidade ia saindo pelo
outro. Fui muitas vezes seu confidente, e sei perfeitamente o que ia dentro dela como ninguém poderá saber. A fragilidade de minha mãe era o mais formidável contraste
que poderia existir num ser humano, ungida como estava pelo sucesso.
Sua força e determinação brigavam dentro dela por um amparo emocional que a fizesse chegar em casa e encontrar um mundo real e verdadeiro. E não um cenário de filme,
como Tito, seu segundo marido, passou a construir a sua volta.
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O CASAMENTO com TITO
MINHA MÃE CONHECEU o segundo marido quando ele veio ao Brasil se apresentar ao lado de Gogó Andrews, com quem formava a dupla de comediantes Tito e Gogó. Juntos,
lotavam os teatros e levavam o público argentino ao delírio. Além de comediante, Tito Clemente era músico, excelente dançarino e coreógrafo (era conhecido como o
Fred Astaire argentino) e diretor de programas na TV.
Tito se apaixonou por minha mãe. Ela, romântica e carente, começou a curtir o clima do assédio com que ele a cercava. Jantares finos depois do show. Presentes.
Convites para ir a Buenos Aires. Friozinho, vinho tinto, lareira. Ele era um homem refinado, com educação européia, oriundo de um tipo de família que minha mãe,
até então, não havia conhecido. Uma família também de artistas. Seu pai era um conhecido tenor espanhol. A mãe, francesa, abandonou os mais finos colégios parisienses
para se entregar à paixão pelo teatro. Elegância e finesse. Tudo isso contribuiu para que Dalva entrasse de cabeça em um novo relacionamento. Para uma mulher que
veio do interior de São Paulo, pobre e tão maltratada pelo ex-marido, era algo
novo, um conto de fadas, longe do cenário de tantas mágoas.
Algum tempo depois que se conheceram, em meados de
1950, surgiu o convite para minha mãe gravar em Londres. Tito a
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acompanhou na viagem à Europa. Levou-a a museus, restaurantes lojas finas. Demonstrando seufeeling comercial, foi o responsável pela excursão realizada por Dalva
a outras cidades da Europa, conseguindo ótimos cachês para ela. Aproveitando o clima de lua-demel, casaram em Paris, na Igreja de Montmartre. No ano seguinte
1951, oficializaram a união (por procuração) no Chile.
Minha mãe começou a demorar cada vez mais em Buenos Aires. O sucesso de seus discos na Argentina facilitava esse vaivém. Tito também começou a vir ao Brasil, para
a casa de Jacarepaguá. Queria, estar perto dela. Ele nos tratava bem, mas não era carinhoso. A gente sentia que ele queria privacidade e que não gostava muito de
dividi-la com os filhos.
Numa das idas de minha mãe à Argentina, Tito a convenceu a viverem por lá. Ele havia acabado de receber um convite para dirigir uma emissora de TV de Buenos Aires.
Combinaram que ela viria ao Brasil cumprir temporadas. Chegaram' a montar uma casa, que não conhecemos - nosso pai não permitiu que vivêssemos com ela, longe dele.
Era bem o que Tito queria: Dalva só para ele.
Nossa única ida à Argentina foi antes de terem a casa. Ganhamos um enxoval novo para a viagem:
terninhos, casacos pesados para o frio. Ficamos hospedados na casa
da mãe dele, uma autêntica dama de rígida educação européia. Era uma casa finamente decorada, com regras muito formais. Para nós, tudo parecia cenário de filme
estrangeiro. A casa deles, que conhecemos apenas por fotografias, era realmente racée: decorada com móveis de estilo francês, objetos de arte, coleção de peças
de marfim, tapetes caros. Um luxo só. Penso que, naqueles primeiros tempos, minha mãe se sentiu mesmo uma princesa vivendo um conto de fadas
No Brasil, uma cantora novata, Ângela Maria, começava a medir forças com Dalva. Principalmente depois de os jornais e revistas anunciarem que minha mãe, já casada
com Tito e com casa em Buenos Aires, resolvera viver na Argentina. Não era bem isso. Mas o fato de estar num país vizinho ao nosso, ser amada pelo povo
argentino, fazendo sucesso com suas gravações com ídolos como Francisco Canaro, convivendo com outra família num clima tão diferente, contribuiu para ela se sentir
bem e resolver que ficaria um pouco por lá. Longe dos dramas da sua vida.
Aparentemente, estava feliz. Mas não sei até que ponto sentia falta do convívio com sua gente, das irmãs, de sua mãe e, principalmente, dos filhos. Estávamos definitivamente
presos aqui, pois meu pai jamais permitiria que deixássemos o Brasil.
Ela acabou voltando para o Rio. Junto veio Tito, que, numa declaração de amor mais do que explícita, deixou de lado uma carreira consagrada em seu país para acompanhá-la.
Ele era uma pessoa finíssima e se empenhou em transformar a vida de minha mãe. Veio também com o intuito de gerenciar a carreira dela. Queria criar um cenário perfeito
para que a grande dama da canção brasileira florescesse. Fazia tudo para que ela interpretasse sua vida como um papel dramático.
Tito pretendia cuidar da imagem de Dalva. Queria que as revistas tivessem fotos dela, nos palcos ou em casa, sempre bem produzida. Queria dar dignidade a cada gesto
de minha mãe. Se meu pai havia lapidado o diamante bruto, transformando-a de moça do interior em moça da capital, Tito terminou a metamorfose ao lhe dar um grande
polimento, revelando toda a sua capacidade de brilhar. De moça da capital, meio brega, ele a transformou em mulher chique, elegante, com alguns requintes até. Na
excursão à Europa, logo que se conheceram, ele lhe mostrou, de uma só vez, o mundo e o que havia de melhor nele. Apresentou-a aos grandes figurinistas, orientou-a
com o cabelo rebelde, convenceu-a a deixar de usar bijuterias espalhafatosas e ensinou a importância das jóias verdadeiras.
Tito procurava afastar minha mãe das companhias que só se acercassem dela para beber ou tirar proveito e vantagens financeiras. Por causa desse afastamento, certas
pessoas tinham ódio dele, diziam que era um cafetão de Dalva. Mas, na verdade, se alguém tentou oferecer uma conduta mais refinada à minha mãe, essa
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pessoa foi Tito. Ele dizia que a forma como ela vivia não era digna de uma estrela.
Ela bem que tentou atendê-lo. Naquele momento, ele era o seu homem e, como tal, passou a ser mentor e organizador da grande festa que cercava Dalva no Brasil. Mas
era muito difícil para ela. Não conseguia acompanhar a "cartilha" de Tito. Em sua espontaneidade, Dalva era um ser muito real - sentimento e verdade habitavam seu
interior.
Não se pode dizer que ela tivesse algum problema de disciplina. Ao contrário, fora treinada na intensa disciplina por Herivelto. A grande diferença é que meu pai
criou para Dalva uma imagem no palco, à qual ela se empenhou em assimilar, mas nunca pretendeu moldá-la fora dos palcos. Ele não tolhia sua personalidade, deixava-a
ser o que era.
Tito, não. Na maioria das vezes, exigia que ela fosse uma lody, se comportasse como rainha e atuasse - esta é a palavra - o tempo inteiro. Até mesmo em casa, com
a família e com os filhos. Ele queria trazer para nossa casa o clima de vida formal em que fora criado: horários rígidos, mesa muito
bem-posta, roupas mais formais,
mesmo em casa. Nada de penhoares ou pijamas circulando fora dos quartos.
Não funcionou. Minha mãe era uma pessoa vibrante, alegre, descontraída, moleca até. Adorava uma brincadeira. E, por mais que gostasse do marido e quisesse acertar
no casamento, aquele esquema fugia completamente de sua maneira de ser e de sua formação simplória de vida. Para piorar o choque cultural que pintou entre eles,
a família de minha mãe, de pessoas muito simples, não suportava Tito e não conseguia absorver nada de sua nova proposta de vida para Dalva.
Minha avó e meu avô foram os primeiros a gritar contra Tito, mesmo porque, ao administrar as finanças, ele não permitia que minha mãe fosse tão "aliviada" por eles
dois. E assim veio o desgaste das brigas. A bem da verdade, as brigas de minha mãe com Tito, porque ele não era de encrenca. Não revidava, apenas saía para outro
aposento ou para a rua.
No início, devido a sua discrição, acontecia na intimidade do quarto. Mas minha mãe, muito irreverente, acabou trazendo essas discussões para a sala. Tito resistia
sempre:
"Dalvita, no hagas esto delante de la gente!".
Apesar dessas diferenças, minha mãe queria realmente fazer o casamento dar certo, a ponto de resolver com Tito adotar uma criança, já que ela não podia mais ter
filhos. Desejosa de uma filha, eles adotaram uma linda menina, recém-nascida e moreninha, a quem passamos a amar como nossa irmã. A adoção de Gigi, batizada de Dalva
Lúcia, em 1954, não trouxe nem para minha mãe nem para Tito a paz que eles esperavam.
O mundo deles era muito diferente e os conflitos se sucediam. Ele tentava impor limites à minha mãe, controlar sua bebida, afastar as irmãs que a acompanhavam no
conhaque e evitar que enchesse a casa de fãs, perdendo sua intimidade e a grande magia de estrela. O fantasma do ciúme também rondava o casamento os dois morriam
de ciúme um do outro.
Tito tentou desenvolver algumas atividades no Brasil independentemente de Dalva. Chegou a fazer shows cômicos, mas o seu "portunhol" não o ajudava com o público.
Maurício Sherman contou-me que minha mãe lhe pedira para aproveitar a experiência do marido nas suas produções, pois ele se sentia muito mal de ficar sem atuar e,
pior ainda, por causa dela. Na época, Sherman era diretor da TV Tupi e o convidou para dirigir um programa infantil. De acordo com Sherman, Tito mostrou ser um
profissional talentoso e se saiu muito bem no trabalho.
Gigi recebeu uma atenção especial deles em sua educação, e foi se tornando uma espécie de menina prodígio. Tocava piano e dançava
balé. Minha mãe vivia exibindo-a
na imprensa e levando-a aonde fosse sempre que possível. Quando conversei com Gigi
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sobre sua infância, ela lembrou que sofria muito com os pileques de Dalva. Ainda criança, não entendia como uma pessoa podia ser tão maravilhosa e depois ficar
tão horrível. Recordamos como nossa mãe conseguia ser doce, mas também muito enérgica; como era organizada e histérica com a limpeza da casa e com a nossa higiene
- ficávamos com as orelhas queimando quando resolvia limpá-las! Gigi lembrou uma coisa muito importante: quando Dalva sofreu uma operação para extirpar um tumor
na área feminina, por volta de 1962, o médico a assustou muito afirmando que, se quisesse continuar a viver, teria de ficar longe até dos rótulos das bebidas.
Dalva ficou aterrorizada; mesmo sendo espiritualista, morria de medo de morrer. Levou a sério as palavras por um bom tempo. Tito, aproveitando a trégua, tratou
de colocá-la em tratamento médico para compensar os estragos da bebida. Emocionada, Gigi diz que esses dois anos, 1962 e 1963, em que ela se manteve afastada da
bebida, foram os mais felizes de sua infância. Infelizmente, durou pouco e nossa mãe voltou a se descontrolaria afogar as carências num copo, em vez de buscar dentro
do ser humano que era o seu próprio alimento.
com o passar do tempo, quatorze anos juntos, Tito foi se cansando. Não conseguira mudar a trajetória da vida de Dalva e o relacionamento deles estava muito desgastado.
É interessante observar que a vida amorosa de minha mãe acontecia em ciclos de quatorze anos ou, como podem preferir os estudiosos da cabala, em dois ciclos de sete
anos...
Convidado a dirigir um importante programa de TV em Buenos Aires, Tito entregou os pontos e resolveu deixar minha mãe. Retornou à Argentina em março de 1965. Para
complicar ainda mais, resolveu levar Gigi para viver com ele e sua mãe. Dalva, já chocada com a separação, aí sim ficou totalmente aturdida. Gigi, com quase onze
anos, havia conquistado todos nós, principalmente minha mãe. Eram duas grandes perdas, num mesmo momento.
Num gesto de desespero, minha mãe convenceu Tito a perguntar a Gigi com quem gostaria de ficar, na esperança de ser escolhida, creio eu. Para nossa surpresa e grande
decepção de Dalva, ela declarou querer ir com o "papito" para a Argentina. Não gosto de recordar como minha mãe ficou transtornada - tentou de todas as formas dissuadi-lo.
Propôs até uma reconciliação, mesmo sabendo que a situação entre os dois havia se tornado impossível. Ele não cedeu, e este foi mais um triste capítulo em sua vida.
Minha mãe sofreu muito e o conhaque se tornou mais e mais freqüente em sua vida.
Ela ligava para Buenos Aires, mas Tito não respondia. Notícias de Gigi, então, nem se fala. Ele realmente havia tomado uma decisão radical: cortar todos os vínculos
com Dalva. Eu percebia que, devagarzinho, o sentimento de derrota tomava conta dela. Por mais que fizesse sucesso, não era o bastante. Ela havia jogado muitas fichas
em Tito e no que ele representava - o sonho de um casamento feliz.
Era insuportável assistir ao que se passava no coração de minha mãe. Mesmo procurando não dar o braço a torcer, ela se abatera muito. Não era fácil encarar o fim
de um segundo casamento. E a perda do carinho de Gigi. Minha mãe ainda escreveu cartas para a filha adotiva durante muito tempo. As cartas eram rasgadas pela mãe
de Tito, que não queria ligação nenhuma com Dalva. Gigi conta que a avó tinha ódio mortal de Dalva, pois considerava que ela havia destruído a importante carreira
do seu filho na Argentina. Tito, infelizmente, com seu temperamento mais frio, permitiu esse tipo de desenlace para a relação deles.
Durante o casamento, eu via que, apesar de tantas críticas da ramília, Tito estava realmente empenhado em dar um novo sentido à vida de minha mãe. Lutou muito para
livrá-la da bebida. Trabalhou com dedicação para dar-lhe grandeza, tanto pessoal como artística. Não foi entendido por quase ninguém. Era muito conveniente para
todos - família, amigos e gravadora - considerá-lo um
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intruso. Sua tentativa de elevar o universo de Dalva incomodava a todos, pois assim evitava que ela fosse tão facilmente manipulada. Passados esses anos, vejo que
ele representou para mim um grande aprendizado. Os detalhes de sua elegância masculina me marcaram: ternos bem cortados, sapatos de qualidade, roupas muito bem passadas,
colarinhos impecáveis, gravatas de bom gosto, vinhos finos. E suas maneiras aristocráticas me trouxeram referências muito diferentes das que conhecia: postura à
mesa, discrição e delicadeza no trato com as pessoas. Embora sem perceber na época, posso dizer hoje que Tito foi meu professor de boas maneiras, cavalheirismo
e civilidade.
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RAINHA DO GOSTO DO
RÁDIO: SUCESSO
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No INÍCIO DOS ANOS 50, a Associação Brasileira de Rádio (ABR), no Rio, queria fazer as pessoas acreditarem que se associar a ela fosse algo maravilhoso. A ABR fazia
campanha dizendo ao público que ia oferecer hospital, tratamento e apoio total aos artistas. Pessoalmente, até hoje, nunca vi nada que pudesse dar orgulho aos que
pertenciam à entidade. Mas, naquele tempo, Emilinha Borba, Marlene e minha mãe acreditavam nisso. Ainda mais depois que surgiu o concurso de Rainha do Rádio, que
fortaleceu a projeção de todas as cantoras da época. Digo todas porque, com o concurso, elas tinham a oportunidade de aparecer em público, movimentar a carreira.
Mesmo ficando em quinto lugar, o importante era ser incluída na relação das que estavam participando.
A Revista do Rádio dava suporte publicitário ao concurso. Os votos eram conseguidos em todo o Rio, por meio de arrecadação nos espetáculos. Era uma dinheirama enorme
que se recolhia a cada show, de qualquer cantora. A coroação acontecia em algum teatro importante, com uma festa majestosa. Tudo patrocinado pela ABR. Minha mãe,
por exemplo, costumava arrecadar sacos e Wais sacos com trocados, níqueis, cheques, entregues no dia
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seguinte por ela, religiosamente, para a ABR. Era uma disputa acirrada, da qual os fãs participavam ativamente.) prestígio e a popularidade dessas cantoras eram
testados
nas praças dos bairros, nos circos, nos palcos por onde se apresentassem em nome do concurso.
com a vitória em 1951, Dalva entrou definitivamente para a história da música popular brasileira. Escrevia, sem saber ou sentir, o capítulo mais brilhante de uma
era. Foi, reconhecidamente, a artista mais ilustre e autêntica do momento mais fértil de nossa música popular. Ao ser coroada Rainha do Rádio, recebendo de Marlene
a faixa, ganhou como prêmio um pouco de dinheiro e um automóvel pequeno e feinho, que a fábricaqueria tornar conhecido por aqui. Foi o primeiro Volkswagen /Sedan
que chegou ao Brasil. Era engraçado ver a curiosidade das pessoas, querendo saber de que tipo era aquele carro que viria mais tarde a ser o mais popular do país.
Minha mãe era uma pessoa amorosa, capaz de gestos generosos para com a família, os amigos e os fãs. com estes tinha uma verdadeira relação de amor. Dizia que
eram as pessoas mais importantes em sua vida, pois proporcionaram o caminho para tudo. Ela me ensinou que, se a música é o nosso sangue, os fãs são as veias por
onde
ele circula. Guardava cuidadosamente tudo o que ganhava deles, do objeto mais simples ao mais rico. com o mesmo carinho. Construiu em Jacarepaguá um quarto só para
os presentes dos fãs. Já na fase de declínio na carreira, quando estava deprimida e sumia de casa, sabíamos que estaria lá no quartinho dos fãs. Alisando as faixas,
as coroas, os troféus, os pequenos mimos...
Certa noite, estava a caminho de uma apresentação numa "boate de lona", como eram chamados os circos, e, meio atrasada, ainda se maquiava no carro. Os moradores
da região, conhecendo seu percurso, costumavam esperar no caminho para saudá-la. Quase chegando ao circo, avistou um rapaz de semblante aflito que fazia insistentes
sinais. Ela mandou o motorista parar. Ele implorou que ela fosse ali perto ver sua mãe, de idade avançada e incapaz de se
locomover. Conhecer Dalva era o maior desejo dela. Por mais que sua secretária Virgínia Magalhães insistisse para que não fosse, argumentando que estava atrasada
para o show, minha mãe saltou do carro dizendo:
"Ela precisa me ver, é sua única chance. Os outros esperam. Quando eu chegar lá, também vou fazê-los felizes".
Foi até a casa do rapaz, abraçou a sua velha mãe e deixou um rastro de alegria. Esta era a Estrela Dalva.
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JOSÉ MESSIAS, AMIGO E CONFIDENTE
MUITOS PENSARAM que o relacionamento com Lurdes tivesse feito com que meu pai mudasse radicalmente o jeito de lidar com as mulheres ou com o casamento. Não foi
bem assim, como conta José Messias. Um dos grandes amigos de meupai, ele acompanhou de perto todo o processo após a separação de minha mãe e o início do segundo
casamento.
Era um rapazinho recém-chegado de bom Jardim, Minas Gerais, poeta e compositor, louco para entrar no mundo artístico. Foi apresentado ao meu pai por Raul Sampaio
e Noemi Cavalcanti. Imediatamente, Herivelto adotou Messias e fez dele o seu secretário. Acompanhava meu pai aonde quer que fosse, carregando sua pasta. Fazer trabalhos
na rua, buscar Bily e eu em Itaguaí, acompanhar meu pai em sua boemia eram algumas funções que determinaram o batismo de Messias no meio artístico.
Messias não tinha salário e morava na casa de meu pai, no quarto de empregada. Muito magrinho, suas roupas eram as do Herivelto, rnodificadas para ele. Não preciso
explicar com que ansiedade e dedicação ele acompanhava meu pai. Era fã, amigo, confidente,
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conselheiro. Na verdade, durante um período longo de nossa vida, foi um membro da família. Sabia de tudo, ouvia tudo e participava de tudo. Era uma pessoa querida
por todos em casa. Aliás, nas duas casas. Minha mãe também gostava dele e era grata pelo carinho que tinha conosco.
Assim, no início da vida de meu pai com Lurdes, Messias estava sempre por perto. Papos na praça Tiradentes, visitas ao Sindicato, à SBACEM (Sociedade Brasileira
de Autores, Compositores e Escritores de Música) ou à casa de David Nasser, nos shows com a escola de samba ou com o Trio de Ouro, lá estava Messias. Nessas andanças,
meu pai conheceu-uma moça muito bonita, que morava num barraco no Porto de Maria Angu. Era filha de um amigo dele, o Joca. Já morando com Lurdes em Santa Teresa
e no começo de uma vida a dois que ainda requeria alguns ajustes, mesmo assim Herivelto ainda teve coração para oferecer à mocinha.
O único confidente possível dessa história era Messias, companheiro de todas as horas. Ele tentava de todas as maneiras convencer meu pai a não seguir adiante.
Afinal, após tantos anos esperando que ele se separasse da minha mãe, Lurdes contava com a determinação dele ao iniciar uma nova vida. Não havia mais tempo para
brincadeiras.
Era complicado, era difícil, eles se encontravam às escondidas, mas Herivelto continuava o romance. Até que um dia a moça, chorando, se agarrou a meu pai e anunciou
que estava grávida. Os dois começaram a discutir o problema e, é claro, o pavor tomou conta dele. O tempo passando, as semanas eram vividas com uma angústia terrível.
A sombra de uma gravidez poderia complicar todo o seu esquema de vida, que já era complicado. E se os jornais soubessem... com a notícia martelando a cabeça, acabou
fazendo um samba para a moça junto com Messias. Era bonito, e meu pai, sem conseguir esquecer o assunto, ficava com Messias em casa brincando com o violão e tocando
o samba. Até que Lurdes, escutando a toda hora aquelas notas, perguntou:
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"Fez música nova, Herivelto?".
Herivelto, meio ressabiado, respondeu que sim. Mas, espertamente (tinha um raciocínio muito rápido!), emendou dizendo que era uma parceria com Messias, nascida
de um romance proibido dele, a moça estava grávida... enfim, toda a história, só que com o personagem trocado. Messias, encabulado, confirmou tudo. Mostrando-se
solidária, Lurdes pediu para ouvir o samba e eles cantaram:
Tufoste louca
Eu enlouqueci
A carne é fraca
Eu enfraqueci
Agora é tarde
Erramos
O que vamos fazer
Entrega a Deus
Só ele pode resolver

Lurdes, sem desconfiar de nada, aplaudiu, dizendo que a música era muito bonita.
Até que chegou o dia de meu pai se encontrar com a moça. Novamente aos prantos, ela se abraçou a ele e, muito triste, disse que foi alarme falso, que era somente
um atraso na menstruação, não havia gravidez. Meu pai a abraçou, "chorando" também a perda do filho. Mas chorava de alívio. Que presente dos céus!
Livre do drama que pairava sobre sua cabeça, Herivelto cantou a música que fizera pensando nela. A moça ficou toda envaidecida, chorou de emoção. Ao deixá-la, foi
se encontrar com Messias, que o esperava ansioso e preocupado. Herivelto contou então o que acabara de acontecer. O amigo respirou aliviado e, num momento de nervosa
inspiração, disse para meu pai:
"Herivelto, abortamos um samba!".
Meu pai tinha um estilo muito ditatorial com as pessoas que o cercavam e um desmedido egocentrismo. Não dava espaço para ninguém sobressair ao lado dele. O próprio
Otelo sofreu de perto esse comportamento. E vendo sempre José Messias, um jovem cheio de sonhos e vontade de conquistar a vida, acompanhando Herivelto por toda parte,
Otelo fez questão de adverti-lo:
"Messias, ouça o meu conselho. Se quiser vencer na vida, saia de perto do Herivelto".
Messias escutou o-conselho - mudou a rota de sua vida e passou a caminhar sozinho. Tornou-se um importante diretor e apresentador de TV, além de braço-direito de
Flávio Cavalcanti por quase vinte anos, e apresentava com sucesso um programa diário na Rádio Nacional do Rio.
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O MÍSTICO HERIVELTO
No COMEÇO DA CARREIRA, Herivelto tinha um amigo muito chegado chamado Barbosa. Mulato de temperamento doce e gentil, Barbosa "recebia" o Pai Joaquim. Meu pai
gostava de contar que numa noite, incorporado, ele disse:
"Corre pra casa, corre agora mesmo, Herivelto, porque você acaba de receber um presente".
Sem titubear, ele foi para casa e lá teve a notícia de que eu acabara de nascer.
A devoção de Herivelto à umbanda (e ao Pai Joaquim Mina) tornou-se um elo entre ele, a família e muitos amigos. A umbanda sempre teve um papel importante tanto na
vida de meu pai como na de minha mãe. Quando nasci, eles apenas viviam juntos. Embora meu padrinho Benedito Lacerda tivesse insistido para que casassem, o que realmente
o convenceu foi a ordem espiritual dada pelo Pai Joaquim. Recebida através do Barbosa, mandava meu pai casar. Isso significa que, mais do que o amor por minha mãe
ou o respeito pela moral vigente, o fator determinante foi a obediência às suas crenças religiosas, a uma "ordem superior".
Essa obediência às leis espirituais controlou toda a vida de meus pais, principalmente a de Herivelto. Ele era muito crédulo.
Após a morte de Barbosa, seu líder espiritual, acabou "iniciando" Lurdes na umbanda. Ao longo dos anos, ela foi desenvolvendo cada vez mais o seu canal mediúnico
e se tornou uma das mais concorridas mães-de-santo do Rio e a chefe espiritual de um centro espírita em Realengo, construído por meu pai.
Muito íntegro em sua devoção e realmente envolvido na tarefa de fazer caridade espiritual, Herivelto atraía para o centro pessoas de todas as camadas sociais e do
mundo da música. Não foram poucos os artistas que procuraram meu pai e Lurdes nos momentos críticos. Ela havia se tornado a guia espiritual de muita gente e a casa
deles na Otávio Corrêa vivia cheia. A notícia das graças alcançadas por meio do trabalho de Lurdes trazia pessoas de todas as partes, até do exterior.
O trabalho espiritual dos dois angariou amizades e carinho entre as pessoas beneficiadas. Houve inclusive uma situação muito difícil para eles, em que puderam ter
a chance de sentir todo o afeto e gratidão das pessoas. Foi quando a saúde de Lurdes se complicou e seu cardiologista aconselhou uma cirurgia delicada para a época
e pouco difundida no Brasil: a colocação de ponte de safena. Nesses casos, recorria-se ao mais destacado centro cardiológico da época, instalado em Houston, nos
Estados Unidos. Lurdes deveria ser operada por um dos grandes cardiologistas do mundo. Aí começou outro drama: a falta de dinheiro. Meu pai tinha uma vida financeira
limitada a shows esporádicos e aos direitos autorais para vergonha nacional, inexpressivos. Não havia como levantar tanto dinheiro.
Pelo menos era o que ele pensava... Rapidamente, espalhou-se pelo centro em Realengo e pela Urca que agora eram eles que estavam precisando de ajuda financeira.
E as pessoas que sempre receberam conforto e ajuda espiritual dos dois queriam saber como Podiam ajudar a salvar Lurdes. Foi uma loucura.
Toda a ajuda recebida nessa época por eles foi muito importante, mas duas pessoas se destacaram. Primeiro, uma grande amiga
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de Lurdes, do meu pai e também minha, Dulce Veloso. Não tendo grana viva, não se conformou e trouxe' um saco cheio de jóias dizendo que usassem tudo. Vendessem,
penhorassem, sem se preocupar em devolver tão cedo. Outra pessoa que surpreendeu com seu gesto foi Chico Anysio. Ele morava em frente à casa de meu pai na Urca
e freqüentava o centro. Quando soube do problema que atravessavam, chamou meu pai em sua casa, ofereceu um cheque em branco, só assinado, e disse:
"Herivelto, é para a operação da Lurdes. Primeiro veja quanto tem no banco; então, pode limpar a minha conta".
Assim, Lurdes pôde ir a Houston fazer sua bem-sucedida cirurgia. De volta ao Brasil, continuou o trabalho espiritual. Nossa família será eternamente grata a todos
os que puderam auxiliar naquele momento, seja com dinheiro ou participando da corrente de orações que se formou.
Meu pai fazia muita questão de ver todos os filhos no centro, vestidos de branco, descalços e batendo cjabeça. Alguns se identificaram com o culto, como Hélio
e Yaçanã. Ela, inclusive, tornou-se seguidora de Lurdes, dedicando-se também ao trabalho de mãe-de-santo. Após a morte de meu pai, a direção do centro ficou em
suas mãos. Mas Hélcio aparecia muito pouco, e Bily, Newton e eu íamos mais para agradar-lhe. Eu, particularmente, apesar de ser um homem crente em Deus e espiritualizado,
nunca descobri no centro de meu pai e de Lurdes as respostas às questões e aos problemas que me angustiavam. Ao contrário, sempre encontrei mais bálsamo para minhas
dores em outros espaços, principalmente em estágios mais diferenciados de espiritualidade, como a filosofia oriental.
Em busca do autoconhecimento, encontrei no Oriente um caminho mais estreito para Deus. Isto é, dentro da filosofia oriental, você se relaciona diretamente com Deus.
Nesse contexto, não se depende de tantos intermediários, como padre,
pai ou mãe-de-santo. Assim, ficam eliminados os "humanos", tão sujeitos a erro, que
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provocam muita confusão entre os dois mundos. A cada dia, tento estreitar mais essa relação com Deus. Afinal, Ele está em mim e eu estou nEle.
Vejo que há uma grande tendência nos líderes espirituais de se sentirem meio Deus. Essa sensação de onipotência se alimenta muito da carência e da fragilidade das
pessoas em seus momentos difíceis. A maioria não está preocupada com o autoconhecimento, porque isso implica ter força para não precisar pedir soluções a quem quer
que seja. Implica fazer suas próprias escolhas e, conseqüentemente, ter responsabilidade com elas. Lei de causa e efeito.
com o passar do tempo, Lurdes percebeu a força de seu trabalho espiritual junto a meu pai e passou a usar isso para assumir um controle sobre tudo e todos, na esfera
de parentes e amigos de meu pai. Perdeu os limites entre o real e o espiritual, adotando uma posição de dona da verdade, em nome de seu dom. Não questiono o dom
espiritual, mesmo porque presenciei muita gente ser confortada por esse dom, nem falo do trabalho de Lurdes junto aos estranhos. O que questiono é ela querer controlar
a vida de todos na família em nome de suas privilegiadas informações do além. Passou a ser a rainha-mãe, a quem todos tinham de bater cabeça e submeter à análise
seus problemas, recebendo soluções nem sempre tão condizentes com o que o assunto pedia.
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26
SEPARADO DE BILY
O MAIS TRISTE DE TUDO foi quando meu pai resolveu separar Bíly e eu. Até aquele momento, por pior que nos acontecesse, estávamos sempre juntos, tínhamos um ao outro.
Meu pai me mandou para São Paulo aos 17 anos, para ficar morando com um de seus irmãos, Hedenir, saxofonista da Escola Preparatória de Cadetes do Exército. Em sua
fixação para que seguíssemos a carreira militar, queria que eu fizesse concurso para essa escola. E, assim, fui separado também de minha mãe.
Fiquei morando com meu tio na rua Apotribu, no bairro do Jabaquara, suportando o gênio maldito dele - me dava surras imensas e me submetia às mais terríveis formas
de tratamento. Tinha até mesmo a petulância de proibir minha mãe de me ver! Eu tentava descrever para meu pai como meu tio me tratava, e o que ouvia em resposta
era que eu mentia, era um vagabundo e não queria estudar. Fosse o que fosse que meu tio fizesse, devia ser para o meu bem. Reclamar com ele era inútil! Meu tio
chegava ao ponto de me trancar num quarto, onde eu era obrigado a ouvir as coisas mais escabrosas sobre minha mãe. Como irmão do meu pai, tinha ódio mortal dela.
O que fui obrigado a passar na casa dele não conseguiria narrar para ninguém.
178 Pery Ribeiro e Ana Duarte
São Paulo recebia minha mãe como verdadeira rainha. Ela tinha seu próprio programa de rádio na Tupi, também transmitido na televisão, que já engatinhava no Brasil.
Os programas tinham uma audiência fora do comum. Seus discos tocavam sem parar e vendiam aos milhares. Mais uma vez, eu via a polícia ser chamada para garantir sua
entrada ou saída da Tupi em meio à multidão. Era um sucesso!
Um dia, estando em São Paulo para gravar seu programa e meu tio não permitindo que eu fosse ao seu encontro, ela veio atrás de mim no Jabaquara. Tocou a campainha.
Lá de dentro, sem aparecer, meu tio gritava com ela, dizendo que fosse embora, pois eu estava proibido de sair. Indignada com seu atrevimento, ela tocou mais forte
a campainha e bateu no portão até ele ir à porta. Meu tio disse que era ordem de meu pai que eu não saísse com ela. Armou-se então uma confusão ainda maior. Minha
mãe, que já não era de muito papo, meteu o pé no portão, quebrando-o, enquanto pedia para um dos amigos que a acompanhavam para chamar a polícia. com os vizinhos
e a própria polícia reconhecendo Dalva, foi mais fácil eu conseguir sair. Por causa de meu pai, ainda fiquei mais um tempo na casa do Jabaquara. Mas, depois desse
dia, sob as condições impostas por minha mãe.
Cheguei a fazer o exame para a Escola de Cadetes e, graças a meus esforços, fui reprovado. Ao ver isso, meu tio me ofereceu como castigo as fileiras do nosso glorioso
Exército, uma forma de agradar a meu pai, que a todo custo queria me ver fardado.
Passei a servir no 4° Regimento de Infantaria, em Quitaúna, no interior de São Paulo. Como soldado raso, ganhava uma mixaria. Então, para ter um soldo um pouco mais
condizente com minha escolaridade, tentei fazer o curso de cabo e assim melhorar
minha vida no quartel. Mas a surpresa veio logo: apesar do ótimo resultado nos
exames, fui recusado porque era filho de artistas. Tive de enfrentar a
infantaria, onde recebia ordens, na maioria das vezes, de uns analfabetos sem tamanho. Era terrível,
mas era a vida. A minha vida!
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Continuei morando na casa de meu tio enquanto servia no Exército. Aos 18 anos, mesmo tendo de laVar e passar minha farda para vestir às seis da manhã seguinte,
já começava a ensaiar uma forma de me ver livre não somente do meu tio, mas também de tudo o que representava estar em sua casa.
Comecei a namorar uma moça chamada Magaly e fugi muitas vezes para ir vê-la no colégio em cima do túnel da avenida Nove de Julho, onde ela estudava. Acabei fazendo
amizade com seu primo, a quem tenho grande gratidão e carinho. Cada vez mais amigos, fui convidado para ir morar com sua família e aceitei, emocionado em minha
carência. De novo pude sentir o prazer de estar numa casa de verdade, sendo respeitado e querido por toda a família.
Esse especial amigo meu, Luís Freddy Mastrocinque, ex-presidente do grupo Brastemp, é um irmão a quem devo muito e a quem gostaria de abraçar com mais freqüência.
Terminei o Exército morando com sua família carinhosa. Depois, me bateu a vontade de voltar para o Rio. Sentia muita saudade de minha mãe e de meu pai.
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27
PRIMEIRA NOITE
com TANTA CRISE EM NOSSA VIDA - separação, colégio interno, abandono -, não tivemos direito às crises e descobertas naturais da adolescência. Assim, não vi surgir
em mim nenhuma manifestação sexual que pudesse sentir como relevante. Além disso, o palavreado chulo que meu pai usava quando se referia à minha mãe, somado aos
prognósticos horríveis que fazia a meu respeito, um ser sensível começando a vida, tudo isso criou em mim um grande bloqueio às manifestações naturais do corpo.
Atravessei toda a adolescência me sentindo contido e bloqueado.
Ao completar 19 anos, voltei de São Paulo. E, embora com muita saudade de minha mãe, não fui morar em Jacarepaguá. Queria começar a trabalhar e preferi ficar com
meu pai na Urca. Ia para a casa dela com muita freqüência. Mas Jacarepaguá não era lugar para um rapazinho começando a conquistar sua liberdade, ainda mais sem
carro. Era muito longe de tudo. Para se ter uma idéia, havia um único caminho para chegar lá. Era pela rua 24 de Maio, paralela à linha do trem, que atravessava
os bairros do Engenho Novo, Méier, Cascadura e Campinho. E o pior: todo o caminho era de paralelepípedos. A gente ia pulando dentro dos ônibus. Lembro-me dos carros
maravilhosos de minha mãe: um Pontiac,
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um Oldsmobile e um Jaguar conversível prata, lindo, ano 1950 com painel de madeira. Ficavam destruídos por esse caminho. Ah adoraria ter hoje aquele Jaguar!
Nessa época, existiam no Rio os bailes das sociedades. Os clubes carnavalescos faziam esses bailes o ano inteiro para os associados e, no Carnaval, desfilavam com
muita alegria as alegorias e críticas à política do momento. Existiam os Fenianos, Tenentes do Diabo, Democráticos, Bola Preta. Minha mãe era sempre contratada para
se apresentar em seus salões. Num desses shows, fui junto com ela. Quando acabou o show, ficamos bebericando alguma coisa na mesa. E, é claro, nesses bailes o que
mais tinha era mulher. De repente, minha mãe me veio com esta pergunta:
"Pery, meu filho, você já dormiu com uma mulher?".
"Eu?", perguntei sem entender bem o que ela queria dizer.
"É, você!"
"Sinceramente, mãezinha, não!"
"Então vai ser hoje que você vai dormir com mulher! Escolha uma dessas que estão aqui no Democráticos, me diga qual gostou e me aponte."
Fiquei completamente sem jeito... Apesar de a intimidade com minha mãe ser total, o assunto mexia muito comigo. Ainda arrisquei:
"Deixa isso pra lá, mãezinha, eu resolvo com o tempo!",
"Não, senhor, é hoje! Escolha!"
Quem conheceu minha mãe sabe que, quando ela botava uma coisa na cabeça, não adiantava tentar enrolar. Assim, comecei a olhar em volta. Preciso explicar que as moças
que freqüentavam os bailes das sociedades eram do tipo liberado. Vasculhei o salão com atenção, os olhos excitadamente curiosos.
Descobri umas duas ou três moças que poderiam me atrair. Mostrei-as para minha mãe, completamente sem jeito e muito assustado por ser daquela maneira minha primeira
vez. Vi minha mãe chamar a que estava mais próxima, um mulherão de uns 24
anos - loura, os olhos muito bonitos e uma conversa macia. Ela atendeu encantada ao chamado. Sentou-se conosco, minha mãe perguntou o que ela queria beber, fomos
apresentados. Depois de uns dez minutos de conversa, Dalva perguntou:
"Você gostaria de sair com meu filho?"
A moça se assustou, mas não tanto.
"Claro que sim, ele é uma gracinha!"
Eu não sabia onde enfiar a cara. Fiquei vermelho, roxo, e fui descobrir naquela conversa quanto era tímido. Saímos, minha mãe nos deixou no apartamento da moça,
em Copacabana, na rua Otaviano Hudson, e seguiu no Jaguar para Jacarepaguá. Foi minha primeira noite com uma mulher. Meu batismo de homem aos 19 anos.
No dia seguinte, estava abençoando minha mãe pelo presente. Ela foi minha grande amiga. Ou melhor, "meu grande amigo", como gostava de me dizer.
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CÉSAR DE ALENCAR, BONI E o "MEU" RIBEIRO
NA VOLTA AO Rio, depois de terminar o período de Exército em São Paulo, comecei a procurar trabalho, sem saber exatamente o que fazer da vida. Não queria mais estudar.
Para fechar o segundo grau, havia terminado o curso de técnico em contabilidade, o mais curto que encontrei.
Fui morar na casa de meu pai na Urca, na rua Joaquim Caetano. A casa não era grande e Lurdes, já com Fernando e Yaçanã, naturalmente não tinha muito espaço para
me receber. O fato de estar morando com meu pai não me fazia sentir em casa. Eu não era o filho do casal. Tinha a sensação de que morava meio emprestado, no quarto
de baixo da casa, junto com outras pessoas a quem meu pai dava abrigo. Ele nunca perdeu a mania de trazer gente para morar em sua casa.
Lurdes procurava suprir algumas das minhas necessidades, mas era difícil para ela conviver com as circunstâncias que antecediam sua vida com meu pai. E eu era
um símbolo disso. É claro que todo conforto, carinho, atenção iam para meus novos irmãos, mas isso não chegava a me abalar; apenas aumentava meu vazio e. minha solidão.
Meu pai tinha um amigo, José de Almeida Castro, que dirigia a TV Tupi. Numa conversa, ele soube que a Tupi estava procurando pessoas interessadas em fazer parte
do quadro técnico. Como sempre tive interesse por fotografia, me inscrevi para o teste e curso de câmera de TV. Fiz, antes, um curso de fotografia. Aprovado, comecei
a trabalhar como cameraman na extinta TV Tupi.
Eu curtia meu trabalho e me saí muito bem. Gostava dos amigos que estava fazendo: Edna Savaget, Daniel Filho, Neide Aparecida, Régis Cardoso, entre outros. Minha
glória foi trabalhar ao lado do maior homem de televisão que o Brasil já conheceu, mestre Jacy Campos. Tive a honra de ser escalado por ele várias vezes para participar
do programa Câmera um, o que era sem dúvida a grande consagração para um profissional de TV. Um único câmera operava sozinho o teleteatro, ao vivo, sem cortes!
A TV Tupi era na Urca, perto da casa de meu pai. Claro que preferi ficar por lá, mesmo porque, depois de algum tempo, passei a trabalhar no período noturno, das
seis da tarde à meia-noite, quando se encerrava a programação. Eu namorava Dudu Barreto Leite e, uma noite, voltei para casa um pouco mais tarde, por volta das duas
da madrugada. Havíamos ido jantar para comemorar o aniversário dela e Dudu, que tinha carro, me levou para casa. Ao abrir a porta, não podia imaginar a surpresa
que me esperava. Meu pai, sentado na sala, me recebeu assim:
"O senhor sabe que horas são? Na minha casa, filho meu não chega a essa hora. Pode voltar para o lugar de onde veio agora!".
E foi me tomando a chave de casa. Fechei a porta e nunca mais voltei a morar com ele. Fiquei um bom tempo sem aparecer Por lá. Eu não tinha para onde ir, nem
estrutura financeira ainda para me agüentar. Naquele horário, nem condução havia para a casa de
minha mãe. Além do quê, morar em Jacarepaguá e trabalhar na Urca
era uma verdadeira loucura. Naquele tempo, era uma viagem de mais de uma hora, além de muito desconfortável. Tive de pedir Para Dudu me receber em sua casa nessa
noite.
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No começo, pedi socorro à minha mãe, nessa época casada com o argentino Tito. Ela tinha um apartamento de apoio na rua Nossa Senhora de Copacabana, que usava quando
não queria voltar a Jacarepaguá à noite. Nos primeiros dias, ainda pude usar o apartamento para morar. Mas, quando Tito soube, proibiu minha mãe de deixar que eu
ficasse lá. Dizia que era muita moleza permitir que um garoto de 20 anos tivesse um apartamento só para si.
Protegido por minha mãe, ainda continuei por lá, mas precisava ligar para Jacarepaguá para saber com certeza que ele não viria para a zona sul. Deu certo por um
tempo, até que Tito descobriu, trocou a chave e brigou com minha mãe. Não me perguntem onde fui morar a partir de então. O que vivi nessa época da minha vida foi
duro e exigiu muito amor-próprio e equilíbrio. Mas essas histórias dão outro livro.
Nos bastidores do trabalho na TV Tupi, a música começava a tomar conta de mim, e aprendi um pouco de violão e canto. Cheguei a cantar nos programas da tarde de"Édna
Savaget, sem muito compromisso. A grande virada veio iíuma certa manhã. Eu operava uma das câmeras no programa
meio-dia, de Jacy Campos, quando ele falou que determinado
cantor, já anunciado, não havia aparecido, mas que os telespectadores não iriam ficar sem música. Um novo cantor iria substituí-lo. E anunciou: Câmera 2, dê um close
no câmera 1".
Era eu! Minha cara de assustado foi para o ar (era tudo ao vivo), tive de largar a câmera imediatamente e cantar. E foi assim que comecei a minha carreira de cantor,
lançado, com muita honra, por Jacy Campos.
Nesse dia, fui ouvido por Paulo Gracindo, que imediatamente ligou para minha mãe e me convidou para cantar em seu programa de domingo na Rádio Nacional. Logo depois,
veio o convite de César de Alencar para cantar aos sábados no seu programa. No início, eu me apresentava como Pery Martins, o que deixou minha mãe louca de raiva.
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"É um absurdo! Seu pai nem quer que você cante e mesmo assim você prefere o sobrenome dele!"
"Não é isso, mãezinha! E que Pery Oliveira não soa legal. Não prefiro ninguém, você sabe!"
Mas, ciumenta do jeito que ela era, eu sabia que estava no meio de um conflito. Comecei a procurar um nome para mim, por várias razões. Primeira de todas: não queria
construir minha carreira usando o sobrenome de nenhum deles. Segunda: Pery Martins também não soava bonito, era apenas menos ruim. E
terceiro: era importante para mim não magoar minha mãe, que desde o primeiro minuto sempre me apoiou e incentivou a cantar. Como mãe e amiga, sabia que eu havia
nascido para isso.
Um dia, depois de vários sábados cantando no programa César de Alencar, estava discutindo tudo isso com o apresentador e com um contato de publicidade, o futuro
poderoso Boni da Rede Globo. César era famoso por criar apelidos e bordões e "batizou" muita gente do meio artístico. Reconhecendo que eu realmente precisava de
um nome só meu, ele teve de repente um insight e lembrou que, naquela semana, fazia um ano da morte do cantor Almir Ribeiro. E começou a pronunciar:
"Pery Ribeiro... Peri' Ribeiro... Pery Ribeiro. Já gostando do som, comecei a repetir o nome, e Boni também. Todos dizendo: "Soa muito bem". Tinha uma força, tinha
música no som. Eu me identifiquei com facilidade, me "senti" Ribeiro. E ali combinamos que eu seria "batizado" por César no programa do sábado seguinte, mas sem
nenhuma alusão a Almir, pois tudo o que eu queria e precisava era de um nome sem vínculo algum. Assim, tornei-me Pery Ribeiro, para todo o sempre, amém.
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QUE REI SOU EU?
MEU PAI TENTAVA reorganizar a vida com Lurdes e retomar a carreira. Devido aos capítulos no Diário da Noite, amargava uma situação difícil - a segunda versão do
Trio ia perdendo a credibilidade e o carinho do público, dia a dia, show a show. A atitude de contar em capítulos a vida com minha mãe deixou marcas muito feias.
E revelou uma faceta que o fez se arrepender muito: a de homem ressentido, que reagira ao descobrir que a ex-mulher podia existir artisticamente sem ele e pior,
fazer sucesso!
A primeira conseqüênciafoi ficar sem contrato com a Rádio Nacional, a número um, que preferiu Dalva de Oliveira a uma remontagem do Trio de Ouro Ele foi então
para a Rádio Tupi. Mas sempre se considerou muito injustiçado pelo pessoal da Rádio Nacional. Contava que até contrataram pessoas para vaiá-lo num Festival de Carnaval
no Teatro João Caetano, do qual participou com o Trio de Ouro e Nelson Gonçalves, defendendo a música "Ai, morena". Orgulhava-se muito da forma com que enfrentara
toda a vaia. Ordenara a Nilo e Noemi que ficassem no fundo do
Música de Carnaval "Que rei sou eu?", de Herivelto Martins e Valdemar Ressurreição.
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palco e mantivera-se na frente, ousadamente jogando beijos e curvando-se ao público em agradecimento, como se estivesse sendo aplaudido.
Vendo aquela cena, Nelson Gonçalves, companheiro de tantas jornadas, também foi para a frente do palco e postou-se ao lado de Herivelto, até que a vaia foi diminuindo,
o público começou a aplaudi-los e eles puderam cantar. Meu pai se gabava de sua experiência com platéias, aprendida no circo, que o fez sair-se tão bem nesse incidente.
Mas, em seu egocentrismo, costumava "esquecer" a participação de Nelson na história quando a contava.
Avaliando esse incidente hoje, o que me parece é que ninguém pagou para vaiar ninguém. Foi ele mesmo quem desencadeou a confusão e a gritaria, ao narrar pelos jornais
a vida a dois, com a ajuda do jornalista David Nasser. Isso sim provocou a ira e a revolta do grande público, que até pouco tempo antes não se cansava de aplaudi-lo
no Trio de Ouro, ao lado de Dalva. Foi essa narrativa e o samba "Caminho certo" que provocaram um ódio tão grande no público a ponto de não mais respeitá-lo como
o grande compositor que era.
O que fazia com que a vida e a carreira de meu pai fossem um POUCO melhor eram o Carnaval e a sua Escola de Samba de Salão, iudo o que se relacionasse a isso o
absorvia muito: a seleção das mulatas e ritmistas, a escolha do repertório e dos figurinos, idéias novas para os shows, tudo era feito com amor e cercado de
alegria. Todos os participantes da escola eram pessoas humildes, não se Preocupavam em analisar o que Herivelto fazia de sua vida. Para
eles, meu pai era apenas o grande compositor, o patrão que oferecia
a chance a quem jamais havia imaginado pisar em certos lugares,
como restaurantes, boates ou hotéis cinco-estrelas. E muito
mais, conhecer o país, levando sua arte em cima dos palcos.
A escola tinha esse clima. Muita animação, alegria e, acima
de tudo, disciplina, porque meu pai, como já disse, era homem de
enfrentar os crioulos". Era realmente durão. Mas ai daquele que
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fizesse alguma coisa contra qualquer um dos componentes. Ele os protegia como se fossem seus filhos. Ou até muito mais! Não aceitava que se referissem a eles como
negros, de modo pejorativo. Eram artistas, eram músicos. Somente ele podia, carinhosamente, chamá-los de crioulos ou crioulas. Uma vez, em um hotel de Maceió, não
querendo hospedar negros, disseram que havia lugar somente para erivelto. Ele não titubeou: foi para outro hotel com todos eles.
Além da escola de samba, Herivelto foi se dedicando às composições, com a parceria cada vez mais intensa com David Nasser, e ao mundo político do autor, que ele
começava a descobrir e a participar. Como era um guerreiro em potencial, não se deixava abater.
Para o compositor que perdera sua intérprete maior, criar músicas para Nelson Gonçalves em parceria com David Nasser era uma grande válvula de escape - além de
ótima fonte de renda, pois Nelson estava estourando em todo o Brasil, sendo chamado de "gogó de ouro". Para ele meu pai entregou "A camisola do dia", "Nega manhosa",
"Pensando em ti", "Atiraste uma pedra". Depois, aderindo à era do tango, ele e David compuseram "Carlos Gardel", "Vermelho 27", "Hoje quem paga sou
eu", além da homenagem do samba-canção "Francisco Alves", todas gravadas por Nelson.
"Caminhemos" havia sido lançada em 1947 por Francisco Alves, mas ao ser regravada por Nelson Gonçalves, em 1951, foi espontaneamente incorporada pelo
grande público à polêmica musical devido ao seu tema.
Não, eu não posso lembrar que te amei
Não, eu preciso esquecer que sofri
Faça de conta que o tempo passou
E que tudo entre nós terminou
E que a vida não continuou
pra nós dois
Caminhemos, talvez nos vejamos depois
Vida comprida, estrada alongada
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Parto à procura de alguém
Ou à procura de nada
vou indo caminhando
Sem saber onde chegar
Quem sabe na volta
Te encontro no mesmo lugar
Dessa forma, meu pai foi conseguindo manter o prestígio. Afinal de contas, não havia perdido o talento e a força de compor. Entregou também alguns sucessos a uma
cantora que despontava para o estrelato e que dizia, sem nenhum receio, que sua fonte inspiradora e sua grande mestra na arte de cantar era Dalva de Oliveira. Seu
nome era Ângela Maria, a quem meu pai deu "Recusa", um bolero que fez sucesso, mas não tanto quanto a música dedicada ao Dia das Mães, feita em parceria com David,
no fim dos anos 50 e também gravada pela Sapoti.
com uma linguagem muito simples, "Mamãe" foi um estouro na praça e se tornou um verdadeiro hino às mães, em qualquer classe social. Mas comenta-se que David não
queria escrever o que meu pai pedia e que Herivelto, com seufeeling popular, teve de insistir muito.
Ela é a dona de tudo
Ela é a rainha do lar
Ela vale mais para mim
Que o céu, que a terra, que o mar
Ela é a palavra mais linda
Que um dia o poeta escreveu
Ela é o tesouro que o pobre
Das mãos do Senhor recebeu
Mamãe, mamãe, mamãe
Tu és a razão dos meus dias
Tu és feita de amor e esperança
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Ai, ai, ai Mamãe
Eu cresci, o caminho-perdi
Volto a ti e me sinto criança
Mamãe, mamãe, mamãe
Eu te lembro, chinelo na mão
O avental todo sujo de ovo
Se eu pudesse eu queria outra vez, mamãe
Começar tudo, tudo de novo
Pode-se imaginar que, à medida que as canções da polêmica musical eram lançadas, o clima entre meus pais se transformou em guerra. A população, sempre atenta ao
meio artístico, se dividia em suas preferências por um ou por outro. Na verdade, mais por Dalva, como os jornais da época demonstram. Movida pelos capítulos no Diário
da Noite e pelo lançamento do samba "Caminho certo", essa guerra contra minha mãe terminou tendo como grandes vítimas nós, crianças. Até Lurdes, toda vez que ouvia
esse samba no rádio, dizia:
"Eu odeio essa música. Heritelto foi longe demais com isso!".
Lembro-me de uma noite no apartamento de Santa Teresa. Meu pai e Lurdes estavam no
quarto, e percebi que a conversa girava sobre a briga dele com minha mãe. Ela
tentava levantar o moral dele, meio acabrunhado o dia todo, e também demonstrava preocupação com Bily e eu
em meio a tanta confusão:
"E essa situação toda, Luj-des... Tá uma barra!".
"É, Herivelto, você foi muito longe. Precisa pensar nos meninos também."
"Eu sei, ela me fez perder a cabeça.
Não falo por qualquer outro filho. Falo por mim. Eu o vi várias vezes ficar extremamente constrangido ao ouvir essa música ou quando ela era mencionada. Uma vez,
o constrangimento chegou a ser um desabafo, uma espécie de pedido de desculpas indireto aos filhos. Tive o prazer de presenciar esse momento.
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Legenda das fotografias E MANCHETES DE REVISTAS
NEM O PAI, NEM A MÃE PODERÃO ORIENTAR
" A EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS! - A SENTENÇA É DO JUIZ DA QUARTA VARA DE FAMÍLIA
Disputa dos filhos na Justiça Revista do Rádio, fevereiro
de 1951
Alguns títulos das reportagens publicadas no Diário da Noite, onde Herivelto contava diariamente o seu desquite com Dalva
DA MÃE l OUTROS SEIS MESES IS ~- O PSSMOR0 DOMINGO EM t £' UWRATAN NA INTIMIDAM
Disputa dos filhos na Justiça - Revista do Rádio, junho de 1951
Dalva canta na Rádio BBC de Londres - 1952
Reportagem do casamento de Dalva
Dalva, Tito e a filha que adotaram, e Tito na França - 1952 Dalva Lúcia, a Gigi
Dalva fazendo sticesso em Buenos Aires, Argentina
A chegada de Dalva no porto do Rio de Janeiro, voltando de um tour na Europa 1952
Ao lado do senador
Assis Chateaubríand, quando Herivelto cantou na inauguração da Pery e Bily com Tito na Argentina - 1953 Rádio Tupi
Reportagem com Herivelto, a esposa Lurdes e os filhos Yaçanã e Fernando
na chegada do caçula, Herivelto 2, o Louro
Dalva e o cantor Francisco Alves
Dalva e o compositor tom Jobim
Dalva e a cantora Linda Batista
Dalva e a cantora Marlene
Dalva e César de Alencar
Herivelto com o presidente Juscelino Kuhitschek
Acima: Dorival Caymmi, Zé Bacurau, Marilu, Alvarenga, Stella, o Comandante, Dalva, Linda Batista, Madeleine e amiga. Abaixo: um casal de amigos, Badu, Ranchinho,
Herivelto, maestro Scaramboni, um amigo, Vic (da dupla de acrobatas Vic e Roy), Nilo Chagas
Revista do Rádio - 1957
José Messias estréia na Rádio Mairynk Veiga recebendo Raul Sampaio, Lourdinha Bittencourt e Herivelto, acompanhados por Orlando Silveira (acordeon), Dino Sete Cordas
e Canhoto (cavaquinho). Revista do Rádio - 1955
Após a morte de Ary Barroso, não conseguindo apoio de nenhum político, Herivelto fez uma placa com o nome de Ary e conclamou um grupo de artistas para batizar a
ladeira onde ele morava no Leme, tudo ao som de suas músicas no piano que carregaram para lá. Acima: Herivelto, Vicente Celestino, Dorival Caymmi, Monsueto, dois
amigos e Grande Othelo
Eu já havia voltado do Exército. Estava sentado atrás no carro dele e na frente ia Otelo. Iam papeando, falando de música, para variar, quando, de repente, tocou
no rádio a maldita "Caminho certo". EU gelei. Para minha surpresa, Otelo encarou o assunto com meu pai:
"Herivelto, essa música é uma vergonha pra sua carreira de compositor. Você nunca devia ter feito".
Espantado, pude assistir a meu pai responder acabrunhado a Telinho:
"É, eu sei. A gente faz cada burrada na vida... E depois tem de encarar os filhos".
Fiquei duro lá atrás, nem respirava direito para ele não se lembrar da minha presença. Os pensamentos se misturavam: eu não sabia se ele tinha dito aquilo especialmente
para eu escutar ou se havia esquecido da minha presença e desabafado com Otelo, seu grande companheiro. E aí chorei mansamente, as lágrimas correndo por minha face,
torcendo para meu pai não perceber. Naquele momento, apesar de ter sido uma das vítimas de sua atitude, tomou conta de mim uma mistura de sentimentos: amor, perdão
e pena por ele. Era uma vítima de si mesmo.
Muitos anos se passaram sem eu entender. Lurdes já havia passado a ter domínio total sobre meu pai, comandando tudo o que acontecia ao redor. Por isso, em minha
cabeça ficou sempre uma pergunta: se ela, como tanta gente, teve consciência da grande besteira que meu pai fez ao contar sua vida pessoal pelos jornais, por que
não usou a enorme ascendência que tinha sobre ele para impedi-lo ou, pelo menos, fazê-lo parar?
Essa pergunta sempre dançou em minha cabeça. E, à medida que eu crescia e passava a entender melhor o mundo dos adultos, mais essa questão representava um vácuo
em meu raciocínio. Afinal, por que Lurdes não usou de sua força para evitar que meu pai sofresse tanto? E fizesse tantos sofrer?
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Ao promover muitas conversas para conseguir levantar todos os aspectos dessa história, comecei a encontrar algumas peças perdidas (ou desconhecidas para mim), que
foram se encaixando com perfeição ao quebra-cabeça que me dispus a montar. Elas me mostraram ângulos que, na época dos acontecimentos, eu ainda não tinha maturidade
para captar.
Lurdes exercia um poder especial sobre meu pai. Como não era perdidamente apaixonada por ele, tinha capacidade de controlar os sentimentos e administrar melhor tudo
o que se referisse a seu casamento. Como ele mesmo a define em seu livro:
"Lurdes era uma pessoa muito lúcida e com uma visão clara e pragmática da vida".
Ela pertencia a uma camada mais alta da sociedade de Porto Alegre, e a educação que recebeu deu-lhe uma visão de vida mais elegante e uma posição social melhor.
Graças ao pai e à herança que este deixou, sempre teve boa condição de vida no Rio. Ela não permitia que Herivelto esquecesse que era um homem vindo do interior,
com um passado de pobreza, luta e sacrifícios. Um homem mais simples, e irascível.
com ela, no entanto, não havia gritos. Talvez porque não houvesse combustão no relacionamento deles... Estando numa posição superior, Lurdes não fazia questão de
modificar o quadro da separação de Herivelto. Acho até que o fato de sentir meu pai abatido em seu drama pessoal dava a ela uma força e uma estabilidade que ele
não tinha, mas que passava a buscar e encontrar nela.
O preconceito e a moral da época pesavam sobre ele. Não era fácil enfrentar um desquite nos
anos 50, ainda mais um desquite turbulento. com a virada dos 40 anospesando
para Herivelto, Lurdes se tornou um ponto de referência para a imagem
daquele homem separado de Dalva, um ponto de honra: perdera Dalva, mas... olha que beleza de morena,
também de olhos verdes, que estava ao seu lado! E tão finamente educada!
Sobre Lurdes também pesava o preconceito da época. Já desquitada e com um filho, não podia se dar ao luxo de outra separação, a moral da época não permitiria. Além
disso, investira muito naquele homem, esperara muito por ele. Aquele casamento tinha de dar certo! Percebo que cada um a sua maneira precisava do outro para vir
à tona. Para emergir socialmente. Numa época em que dificilmente uma mulher desquitada conseguia outro marido, meu pai assumiu Lurdes diante do mundo. E ela, em
troca, com sua postura de mulher fina e educada, conferiu a ele o status de homem de sorte, devolvendo a respeitabilidade que o escandaloso desquite roubara.
Em minha pesquisa, sempre encontro referência à grande habilidade de Lurdes em lidar com as pessoas. E me chamou especialmente a atenção um personagem do qual ela
tirou grande partido para impressionar meu pai. Ela era prima de um importante jornalista, Aparício Torelli, conhecido como Barão de Itararé. O apelido, decorrência
de sua grande cultura e elegante personalidade, além do fulgurante humor, foi conferido por ele mesmo em referência a um episódio da Revolução de 1930, a batalha
de Itararé, a batalha que não existiu". Suas crônicas eram muito apreciadas; seu humor e mordacidade, temidos.
Lurdes recebia o Barão em casa com freqüência, o que lhe
dava um grande prestígio diante do meu pai, acostumado a receber
apenas artistas e boêmios. Ainda não convivera com esse tipo de
mtelectual. Amigos dessa época, como Messias, me relataram a
defeerência com que esse primo de Lurdes era tratado por eles.
nteligentemente, ela começou a estabelecer um contraste entre
eles. Enquanto meu pai tinha as narrativas escandalosas de David
Nasser, uma ex-esposa sendo arrasada nos jornais e nas músicas e,
vivia um drama plebeu, ela gozava da companhia de um intelectual como o Barão de Itararé. com isso, colocava-se numa
posição superior diante de meu pai, social e culturalmente.
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Ela procurava dominá-lo sob todas as formas, tirando partido das situações que visualizava como favoráveis. Mas não sei se tinha consciência de que a sua grande
força estava no fato de que não competia com ele artisticamente. Meu pai jamais permitiu que houvesse competição, na música ou no palco, que ele não pudesse vencer.
Foi esse o seu grande problema com minha mãe. Ele foi ficando louco com o grande destaque de Dalva de Oliveira. Ao receber suas instruções para fazer algo numa
música ou num arranjo, intuitivamente minha mãe superava a encomenda, aperfeiçoava, dava o seu toque inspirado e... ficava maravilhoso. Resultado: conflito. Ele
ficava com os louros do sucesso porque, sem dúvida, o arranjo era dele, mas louco de raiva porque constatava que o melhor resultado era Dalva quem oferecia e era
a ela que o público dirigia o aplauso mais forte. Essa situação corrompeu o relacionamento deles.
com Lurdes ele nunca correu esse risco: era ele o artista da casa, era ele o ser maravilhoso e especial. Mas, por isso mesmo, tornou-se um produto nas mãos de Lurdes.
Aquele homem que sempre fora movido a emoção, violão e boemia, passou a ser enquadrado em outra realidade de vida. Conversando com Messias, que também escreve um
livro de memórias, ele conseguiu verbalizar bem esse novo contexto que meu pai passou a viver:
"A Lurdes foi a mulher da vida do Herivelto. A Dalva, porém, foi seu verdadeiro e insustentável amor. A Lurdes fez a agenda dele, mas bloqueou a sua criatividade".
com a sabedoria que os anos trazem, Messias encontrou as palavras certas para o que sempre senti e pensei da vida amorosa do meu pai. Assisti ao domínio de Lurdes
sobre ele crescendo à medida que sua criatividade ia morrendo. Ela passou a enquadralo numa regra que até então não existia para ele. A música de Herivelto passou
a não ter mais tanta vida. Passou'a ser apenas sucessos comerciais em que o mgrito muitas vezes era dos
intérpretes. Sem dúvida, continuava a ser o grande Herivelto, só que enquadrado num novo mundo sem a sua formidável liberdade de expressão e, creio, com alguma consciência
do
que estava acontecendo à sua volta. Ou deixando de acontecer.
Mas não havia volta para ele. Por outro lado, ela também não podia se dar ao luxo de um rompimento com meu pai. Eles tinham medo de que o bonde da vida não passasse
outra vez. O momento deles era tudo ou... tudo!
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RÁDIO NACIONAL
Nos ANOS DE 1940-50, não eram as gravadoras o grande suporte dos artistas, mas sim as rádios. Elas davam trabalho com a intensa programação ao vivo em seus auditórios.
Contratavam os melhores com exclusividade. Ter um contrato desses era motivo do maior orgulho entre os artistas. E a certeza do sustento assegurado.
Em 1942, o Trio de Ouro assinou o primeiro contrato com a cobiçada Rádio Nacional e começou a consolidar o prestígio junto ao público. As apresentações eram disputadíssimas
pelo auditório. Numa época em que os artistas se apresentavam parados em cena, meu pai, sempre inovador, dirigia as apresentações do Trio de Ouro de forma quase
teatral, com marcações rigidamente obedecidas por Dalva e Nilo. Muito caprichoso com os figurinos, Henvelto fazia dos números do Trio um verdadeiro show.
Ao retornar da Venezuela, meu pai começou a direcionar sua vida sem Dalva. Quando foi participar ao diretor da Nacional, Vítor Costa, o fim de seu casamento e a
saída de Dalva de Oliveira do Trio de Ouro, além de pedir um tempo para
providenciar outra cantora, meu pai viu se concretizar o que tanto temia (e tanto
adiara!):
"Nem pensar, Herivelto. Nosso contrato é com o Trio. Não existe Trio de Ouro sem Dalva de Oliveira! E, sem Dalva, não tem contrato".
Numa tentativa frustrada, Vítor Costa ainda procurou convencer Herivelto de continuar na rádio as apresentações do Trio com Dalva, em cumprimento ao contrato. Em
vão, meu pai não era homem para se convencer de nada. E já havia tomado uma atitude. Imagino como ficou ferido em seus brios para agir como agiu, diante da tão poderosa
Nacional.
"Nada disso! O Trio de Ouro é criação minha. Faço com ele o que bem entender. Fui eu quem inventei a Dalva. Invento outra. Sempre trabalhei, com Dalva ou sem Dalva.
Podem ficar com quem quiserem."
E saiu batendo a porta. Pagou um preço caro por isso. Obviamente, a direção da rádio fez questão de manter Dalva em seu cast, dando-lhe um contrato assim que retornou
ao Rio, vinda de Belém. O caminho dos meus pais começava a se dividir.
Na Rádio Nacional, o elenco era fantástico. O cast contratado compunha-se de 98 artistas. A rádio mantinha contratadas - prestem bem atenção! - cinco orquestras
(sob o comando dos maestros Radamés Gnattali, Lírio Panicali, Leo Peracchi, Ercole Vareto e Chiquinho (Francisco Duarte), ou seja, um quinteto formado por feras)
e um conjunto regional. Vivia-se uma época de ouro na história musical do país.
Não me lembro de ir muito à Rádio Nacional com meu pai, mas me recordo com clareza das idas freqüentes com minha mãe, Ja cantando sem o Trio.. Marlene, Francisco
Alves, Ivon Guri, tmilinha, Cauby Peixoto, Heleninha Costa, Luís Gonzaga,
Gilberto Milfont, Ellen de Lima, Zezé Gonzaga, José Garcia, Gregório
Barrios, Carmélia Alves, Orlando Silva, Os Cariocas, Quatro
ases e Um Coringa, Trio Irakitan, Trio Nagô, Francisco Carlos, Blecaute, Risadinha, Jackson do Pandeiro, Trigêmeos Vocalistas,
Linda Batista, Dircinha Batista, Maestro Chiquinho,
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Orlando Dias, Adelaide Chíozzo, Gilberto Alves, Deo, Carlos Galhardo, Ester de Abreu... peço perdão por não me lembrar de muitos outros. Todos fizeram parte
da minha vida. A Rádio Nacional nos anos 50 era um grande celeiro de craques da música e tive o privilégio de assistir de perto a esse momento especial.
Acostumei-me a vê-los, ao acompanhar minha mãe aos sábados, no programa César
de Alencar, aos domingos, no programa de Paulo Gracindo, e nas quintas, no programa
de Manoel Barcelos. Nessa convivência, com intuição de criança, sentia quem era sincero com minha mãe e quem era falso diante do que passávamos. Mas, de maneira
geral, todos a apoiavam e lhe dedicavam um carinho especial.
A imagem do auditório da Rádio Nacional é marcante para mim. O clima era de festa! Nos corredores, todos se falavam e se confraternizavam, contando as últimas novidades.
Alguns se estranhavam. Não deixava de ser uma "fogueira de vaidades". O burburinho do público no auditório para seiscentas pessoas era contagiante. Aquele espaço
podia "fazer" um artista ou derrubá-lo. Foi nesse auditório frenético que nasceu a expressão "macaco-de-auditório", que considero de muito mau gosto. Minha mãe também
deplorava essa expressão.
Nessa convivência com os maiores ícones da Nacional, as minhas lembranças mais fortes, fora meus pais, são de dois artistas não tão badalados na época, mas com
tamanho talento que se perpetuaram através desses cinqüenta anos muito mais que alguns astros daquela época. Falo de um rapazinho tímido, franzino, humilde até,
sempre pelos cantos, tocando um violão maravilhoso, era o Garoto. Sua música me impressionava. Ficava extasiado escutando-o dedilhar o
instrumento. Um dia, vi sozinho num do estúdios Ismael Neto. Curioso como toda criança, me
aproximei e fiquei ouvindo-o tocar uns acordes lindos. Repetidamente, e tocava a mesma canção.
Estava começando a compor uma múúsica muito suave. Nascia "Valsa de uma cidade". Mais tarde, Ismael receberia a ajuda de Antônio Maria na criação da letra.
Quando chegava com minha mãe à porta da Rádio Nacional, a fila dos fãs já estava enorme, virava o quarteirão. Ela levava mais de vinte minutos da porta do carro,
um lindo Jaguar prateado, até chegar ao elevador. Era uma loucura o assédio, todos gritando: "Dalva! Dalva!". Todos queriam tocá-la, beijá-la. Minha mãe era muito
paciente e gentil. Tinha grande amor por seus fãs. Permitia que a tocassem, mas, muito vaidosa, pedia para não amassar suas roupas, pois ia entrar em cena.
Eram fãs de todo o Brasil, oferecendo admiração pelo seu canto especial e, mais ainda, total solidariedade à mulher que se separara do marido, rompendo de forma
tão corajosa um relacionamento traumático. Naquele início dos anos 50, minha mãe estava provocando, sem ter consciência disso, um dos maiores fenômenos de identificação
de massa já observados em nosso país. Submissas aos maridos, em casamentos sem a menor qualidade e até violentos, vivendo sob o jugo do preconceito da sociedade,
que não lhes permitia romper com nada disso, essas mulheres projetavam em Dalva seus problemas de vida e invejavam-lhe o grito de liberdade.
Mesmo no auge da disputa dos fã-clubes de Marlene e Emilinha Borba, minha mãe era querida por todos. Sem nenhum pudor, POSSO afirmar que Dalva de Oliveira representava
uma unanimidade no cenário artístico brasileiro.
Hoje, quando retorno à Rádio Nacional, sinto o coração apertado. Entristeço-me com o aspecto decadente de suas instalações ao recordar a decoração do 19a andar,
a sala suntuosa do presidente Vítor Costa, com seu tapete fofo, as poltronas de couro e
lambris de madeira de lei. Outra sala chique era a do diretor de
Programação, Floriano Faissal, no 2° andar, onde os artistas mais importantes eram recebidos. Minha mãe tinha sempre as portas
abertas nessas salas e era recebida com deferência.
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Como crianças, Bily e eu aproveitávamos bem toda aquela mordomia: era lanchinho, colinho de gente famosa, muitos paparicos. Sempre digo: nenhuma criança passou
por colos tão variados quanto a gente. Por onde ando neste país, escuto:
"Conheci tua mãe. Você era pequenino e te peguei no colo".
Se o papo for com artistas da época, então, eles ainda se recordam de uma historinha que entrou para o folclore da família. Minha mãe, ao fazer os exercícios de
aquecimento da voz (os "vocalises"), desenvolveu o hábito de treinar assim: "PERÍ-Í-Í. PERÍ-Í-Í". Todos riam quando a escutavam. E eu, se estivesse longe, voltava
correndo para perto dela, me sentindo o máximo!
Edith, fiel escudeira de minha mãe, conta que, anos mais tarde, num momento profissional ruim, com pouco trabalho e tendo de pagar uma parcela intermediária da
casa de Jacarepaguá, Dalva recorreu ao diretor da Nacional, Vítor Costa, pedindo um empréstimo. com especial carinho por minha mãe, Vítor disse que a quantia estava
à disposição. Edith foi encarregada de buscar o cheque. Foi muito bem recebida e ainda escutou:
"Diga à nossa eterna Rainha do Rádio para não se preocupar em devolver.
É um presente de coração".
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GETÚLIO, JUSCELINO, ADEMAR: AMIZADE com O PODER
com SUA INTELIGÊNCIA e humor ferino, meu pai era muito requisitado pelos grandes políticos da época. Freqüentava palácios e gabinetes. Sua capacidade de falar ao
povo atraía os políticos, que lhe pediam músicas - na maioria das vezes, marchinhas de Carnaval - para suas campanhas.
Foi assim com Getúlio Vargas, por quem foi recebido muitas vezes no Palácio do Catete. Numa delas, no início de sua separação de Dalva e afastado da Rádio Nacional,
meu pai e alguns artistas estavam num bate-papo animado com o presidente, quando Getúlio perguntou:
"Herivelto, como é que vai a nossa Rádio Nacional?".
Meu pai, meio surpreso pela falta de informação do presidente, respondeu:
"Deve ir bem, meu presidente. Não sei muito o que acontece Por lá, porque meu contrato não foi renovado".
"Isso não é possível! Um artista como você não pode estar fora da Nacional. Você é um dos nossos patrimônios culturais!"
Alguns dias depois, meu pai recebeu um telefonema de Vítor Costa, diretor da Rádio Nacional, todo meloso:
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"Herivelto, você anda sumido. Vê se aparece pra conversarmos. E olha, Herivelto, dinheiro não vai ser problema pra gente acertar sua vida aqui, tá bom?".
E assim aconteceu a volta de Herivelto à Rádio Nacional.
Outro político que lhe pediu músicas para suas campanhas foi Ademar de Barros. A composição "A caixinha do Ademar", feita para a campanha à presidência da República
de 1950, que ele não venceu, foi gravada por Nelson Gonçalves com o pseudônimo de Quincas Gonçalves.
Quem não conhece Quem não ouviu falar Na famosa caixinha do Ademar Que deu livro
Deu remédio
- Deu estrada
Caixinha abençoada
se comenta de norte a sul
com Ademar tá tudo azul
Outras duas músicas da campanha de Ademar foram gravadas por Araci de Almeida, também com pseudônimo.
Não sei bem como era o acerto dele com os políticos, mas me lembro de que na época ele andava com a idéia fixa de ter um avião. Não deu outra. Quando Ademar perguntou
a meu pai o que queria, ele disse:
"Quero um avião!".
E o governador ofereceu a ele e a Benedito Lacerda, seu parceiro, um Junker, que devia ser da Vasp. Era um avião de três motores, um no bico e dois nas asas. Foi
um alvoroço. Meu pai ficou todo prosa, porque era dono de um avião. E a gente, na maior empolgação, torcendo para chegar logo o dia em que nos levaria para dar uma
volta. Lembro que uma das vezes em que fomos convidados
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para um passeio no avião estávamos em São Paulo. Mal levantou vôo no aeroporto de Congonhas, tivemos de retornar, pois a torre avisara que havia caído um pedaço
do avião. Fomos ver e era a tampa do reservatório de combustível que havia se soltado. Foi um susto e tanto.
Logo passou o entusiasmo de meu pai e Benedito - descobriram que sustentar um avião não era para qualquer um. Tentaram fazer de tudo com o aparelho: carga, turismo,
passeio, transporte... Algum tempo depois desistiram e passaram adiante aquele monstro por 200 mil cruzeiros, uma nota na época.
Também o presidente Juscelino Kubitschek era muito amável com os artistas e apreciava estar com meu pai. Ele gostava muito de música e de dançar e convidava os
compositores da época com freqüência para irem ao Palácio do Catete. Papos agradáveis rolavam e saraus musicais aconteciam. Numa dessas reuniões, meu pai foi convidado
a visitar Brasília, que ainda não passava de um grande projeto e muitas máquinas levantando poeira. Outros artistas foram junto, entre eles Dílermando Reis, Ataulfo
Alves, Grande Otelo, Onéssimo Gomes.
Na sede do governo em Brasília, o Catetinho, Juscelino falou bastante do seu projeto aos artistas, abraçado a meu pai. Explicou a importância de sua obra e, apontando
uma poeira que se levantava a alguns quilômetros adiante, disse:
"Herivelto, tá vendo a poeira que cobre aquela máquina gigantesca? Lá vai ser a maior avenida de Brasília, a W3. Quero que você
vá lá, escolha um terreno, qualquer
um, e diga pró meu assessor aqui".
Mesmo tendo de pagar o equivalente, hoje, a 50 reais por mês, meu pai fez pouco-caso daquele papo do presidente. Não acreditou na obra, não enxergou o futuro. E
hoje não sou herdeiro de um terreno na avenida W3, em Brasília.
Teve outra história parecida. Ele era amigo do prefeito de Angra dos Reis, que o adorava, e foi convidado para passar um fim
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de semana com ele. Quando estavam lá, em meio a muita cantoria e alguns drinques, o político, todo orgulhoso de sua cidade, ofereceu a meu pai:
"Herivelto, posso te oferecer uma ilha aqui em Angra!". "Ilha?"
"Claro, uma ilha. Angra tem centenas e eu ainda posso te oferecer uma!"
"Muito obrigado, senhor prefeito, mas o que eu faria com uma ilha? Muito obrigado."
E, mais uma vez, não sou herdeiro de uma ilha em Angra dos Reis.
Este era o meu pai, um homem completamente sem visão para o mundo prático.
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BLOQUEADO PELAS LEMBRANÇAS
A ATITUDE DE MEU PAI, sempre inclinado a ditar as regras e jamais respeitá-las, levou-o a não observar que eu tinha crescido e o tempo já havia me dado o direito
de decidir meu caminho. Tanto assim que, com a carreira caminhando bem, resolvi casar com uma moça por quem me apaixonei, a Cleide Galizio. Quando dei a notícia
a ele, seu único comentário foi:
"Meu pai sempre me disse que casar não é casaca".
O casamento seria na Igreja Santa Teresinha, em São Paulo, onde eu morava. Convidei todos os parentes do Rio e, é claro, minha mãe me prestigiou. Foi acompanhada
da minha tia Lila. Estava feliz, gostava de Cleide, e comemorou em grande estilo, num alegre pileque.
Meu pai, no entanto, não compareceu e não mandou sequer telegrama ou presente. Não se preocupou em saber se eu estava
triste por não tê-lo comigo. Isso me deixou arrasado.
Principalmente depois de vê-lo, anos mais tarde, nos casamentos de Bily e de Yaçanã.
Ao trazer Cleide ao Rio para conhecê-lo, senti nele indiferença e desprezo. Lurdes e o pessoal da Urca bem que poderiam ter
nos ajudado, estimulando sua receptividade. Mas não fizeram nada.
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No dia do casamento, lembro que me sentia péssimo. Não estava feliz como gostaria ou como pensava que ficaria. Era uma aflição, um desconforto, um nervosismo esquisito.
As marcas do passado estavam falando mais alto. Casamento para mim era sinônimo de dor, pancada, fracasso. Depois de tanta coisa vivida com meus pais, o compromisso
soava muito pesado. O medo era enorme. Estava numa confusão total. Embora gostasse de Cleide e tivesse realmente a intenção de casar, havia um peso, alguma coisa
escura no meu pensamento.
Saí de casa vestido para a celebração. No caminho, ia pensando se era isso mesmo que queria. O que sentia não era dúvida em relação a Cleide, mas uma certeza absurda
de que aquele ato, mesmo que fosse com outra pessoa ou em outro momento, não seria bom para mim. Era tudo muito aflitivo.
Quando cheguei à igreja, completamente lotada, uma multidão me aguardava. Fãs, amigos, reportagens, flashes, luzes. Uma confusão. Em minha agonia, eu me atrasara
e Cleide já estava no altar. Caminhei até ela. No meio do caminho, ao ver Hebe Camargo, na época grande amiga, não consegui mais me controlar. Abraceime a ela e
comecei a chorar copiosamente. Assustada, tentando disfarçar o que acontecia, Hebe me levou até a sacristia junto com alguns amigos nossos.
Eu continuava a chorar desesperadamente, soluçava muito, sem conseguir explicar o que se passava dentro de mim. Tentava, em pensamento, pedir a Hebe que me tirasse
dali. Queria sair correndo, queria um buraco para me enfiar, queria sumir. Lembro-me até hoje de como molhei a parte superior do vestido de Hebe, sempre tão bonita
e elegante, com minhas lágrimas. Fiz o mesmo com outra grande amiga, a cantora Leny Eversong, minha madrinha de casamento. O apresentador de TV "Murilo Leite,
amigo e padrinho de casamento, também ajudou a segurar minha barra.
Aos poucos, os conselhos e o empenho de Hebe e dos amigos mais chegados em me acalmar fizeram efeito. Fui me recompondo
até que me levaram ao altar, onde Cleide me esperava. E lá passei por uma experiência, no mínimo, estranha. Cleide é uma mulher muito bonita e, claro, como toda
noiva, havia caprichado na apresentação. Eu sabia que devia estar especialmente linda naquele dia. Sabia, mas não conseguia ver isso.
Ao contrário, quando olhei, não era ela. Via, nitidamente, uma cara horrível, um rosto que não tinha nada a ver com o da mulher que escolhi. Era uma figura disforme,
monstruosa. Entrei em pânico e recomecei a chorar. Tentei fugir daquela visão, mas só sabia chorar. Não conseguia explicar o que se passava na minha cabeça.
Os amigos entraram em ação, me acalmando novamente. O padre pôde começar seu trabalho. Por fim, nos casamos. Mas a realidade é que deveria ter saído correndo dali.
Ficamos casados apenas um ano. Não foi culpa de Cleide. De ninguém, aliás. Apenas ao resolver me casar, aos 26 anos, não imaginara o dragão que acordaria dentro
de mim. Muito menos a intensidade de suas labaredas.
O que vivi e sofri com meus pais e seus relacionamentos amorosos causou um estrago profundo em minha cabeça. Não sabia que estava despreparado para enfrentar um
casamento, apesar de estar amando. Tentei explicar tudo isso para Cleide - até hoje não sei se ela percebeu o meu drama na hora de casar -, mas não consegui me fazer
entender. Quem sabe hoje, passados tantos anos, ela entenda melhor e consiga me desculpar.
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O TÚNEL DO FIM
A NOITE DE 19 DE AGOSTO DE 1965, muito mais do que marcar o belo rosto de Dalva, marcou-lhe a vida. O começo do fim. Um desastre terrível. O Oldsmobile de minha
mãe se desgovernou no Túnel Novo de Copacabana, subiu na calçada e matou quatro pessoas. Nuno estava com ela.
Eles haviam acabado de jantar na Boate Drink, de Cauby Peixoto e do organista Djalma Ferreira, ex-namorado de Dalva, de quem Nuno sentia ciúme. Algumas pessoas disseram
ter visto os dois discutindo, ao sair da boate. Acredita-se que estivessem brigando quando ocorreu o desastre.
A relação deles era recente, menos de seis meses, e pouco aceita por nós. No desamparo da separação de Tito, em sua desesperadora solidão, minha mãe se rendera às
atenções desse jovem, que tinha mais ou menos a minha idade. Nuno entrara na vida dela como secretário e motorista e, nessa situação, se sentia frágil e inseguro
de seu papel na relação. Daí o ciúme.
Nuno estava ao volante e sofreu escoriações leves. Mas, ao perceber a extensão do acidente e achando que Dalva estava morta, apavorou-se. Ingenuamente, retirou,
Dalva do carro, toda ensangüentada e inconsciente, e informou aos policiais que era ela quem
dirigia. O costureiro de Dalva, Walter, também estava no carro, mas não pôde esclarecer muita coisa, pois disse que estava dormindo no banco de trás. Minha mãe foi
duramente processada pelas vítimas, e seu advogado, Virgílio Donicci, teve muito trabalho para esclarecer, por meio de perícia e um longo processo, que era Nuno
quem dirigia o carro.
A comoção que tomou conta das pessoas quando a notícia se espalhou foi impressionante. O desastre ocupou a primeira página de todos os jornais. No Hospital Miguel
Couto, naquela madrugada, uma pessoa esperava sozinha, antes que qualquer parente ou amigo chegasse. Ansioso, chorava e pedia notícias aos médicos que transitavam
pelos corredores. Era Mané Garrincha. Dono daquela simplicidade enorme, ao escutar no rádio a notícia, saiu correndo e foi o primeiro a chegar ao hospital. Quando
me viu, foi dizendo:
"Eu adoro ela! Vim pra ajudar. Faço qualquer coisa por ela!".
O Brasil inteiro torceu pela recuperação de Dalva, que esteve em coma durante alguns dias. O saldo do acidente foi penoso: afundamento do maxilar esquerdo, bacia
fraturada. A marca deixada na bochecha esquerda ficou horrível e, mesmo depois de algumas plásticas, não houve como recuperar a suavidade de suas feições. Não bastasse
o resultado do acidente em seu rosto de artista e mulher vaidosa, minha mãe ficou desesperada quando soube que no acidente haviam morrido quatro pessoas.
Depois do desastre no Túnel Novo, com todas as despesas que passou a ter, ela foi se enterrando em dívidas e problemas. Pouco trabalho, pouco reconhecimento do
grande público, poucos shows e, principalmente, a ausência de frescor na carreira fizeram com que ela mergulhasse em uma tristeza profunda. Ou na garrafa de conhaque.
Advogados para enfrentar o processo das vítimas, pagamento às famílias, despesas com hospitais e remédios, era muita coisa para
ela. Sem falar da reforma da casa, que ainda não tinha terminado.
Em meio a esse clima, minha mãe resolveu pedir ajuda à graVadora Odeon. Afinal, em seus momentos de glória, havia sido a
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número 1 em lucros para a companhia. Foi até o escritório do responsável pelas questões jurídicas da empresa, doutor Jessen ouviu-o dizer que, para receber algum
dinheiro emprestado, mesmo em forma de adiantamento, ela teria de assinar um documento abrindo mão de alguns discos. As músicas seriam escolhidas por eles. Isto
é:
Dalva "venderia" para a Odeon, em definitivo, algumas obras suas. Ela não acreditava no que escutava! Tentou argumentar que tinha filhos, sua obra seria um legado
a eles e não seria justo ter de entregar parte do que havia gravado para o controle total da Odeon.
Ela voltou para casa arrasada. Quando soubemos do assunto mais arrasados ficamos por não termos ainda estrutura financeira para ajudá-la nesse momento. Bily, mais
novo, estava começando a trabalhar. Eu casara havia pouco tempo e enfrentava as dívidas naturais de todo noivo. Além disso, vivia a corda bamba da carreira de cantor.
Minha mãe voltou a conversar algumas vezes com o pessoal da gravadora. Foram irredutíveis. Sabiam que era a única saída dela. Após dias de discussão inútil, não
suportando o peso dos problemas, ela entregou os pontos. E, assim, parte do que gravou - é claro que escolheram seus principais sucessos - hoje pertence à Odeon,
companhia que ela ajudou a crescer e enriquecer com o brilhantismo de seu canto.
Para compreender a mesquinharia desse gesto, é preciso que eu conte os valores dos contratos de minha mãe. Há alguns anos, tive acesso a esses contratos e fiquei
surpreso com os números ridículos. No auge de seu sucesso, os percentuais de minha mãe variavam de 1% a 5%, valor máximo dado a ela nos contratos. E era por esses
míseros percentuais que a gravadora estava lutando -- não lhe bastavam os 95% que já tinha em seu poder.
Minha mãe sofreu muito com esse episódio. Sentiu-se usada, desmoralizada artisticamente. Quem eram eles para julgar que ela nunca mais faria sucesso suficiente
para pagar um empréstimo-'
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O tempo - e o sucesso de "Máscara negra" e "Bandeira branca" -- mostrou que eles avaliaram erradamente. Mas já era tarde para recuperar o que havia assinado.
A partir daí, com aquelas mortes na lembrança, o rosto desfigurado, a auto-estima completamente abatida, não foi mais possível para ela segurar a cabeça. Cada vez
mais segurava o copo de conhaque. Era o começo de uma grande tragédia, como se não bastasse a que já havia vivido.
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O RELACIONAMENTO com MINHA MÃE
PARA FAZER O CASARÃO de seus sonhos, minha mãe praticamente demoliu a casa em Jacarepaguá. A primeira reforma já havia terminado e estávamos por lá sempre que podíamos,
para usufruir de seu carinho e atenção. Mas, no auge do sucesso, ela não parava em casa. Nos primeiros anos de casamento com Tito, eles
viajavam muito pelo Brasil, Europa, América do Sul. Nossa convivência, porém, não era tão calma como poderia parecer. A vida transcorria cheia de muitos altos e
muitos
baixos.
O sucesso e o temperamento obrigavam minha mãe a estar sempre cercada por muita gente: amigos, família, compositores, gente das mais diferentes qualidades. Era muita
festa. A casa da rua Albano vivia à espera de alegria, vozes, risos, música. E, claro, muito conhaque. Hoje, sinto que
minha mãe fazia questão desse barulho em volta dela.
Não sei se isso fazia parte de sua essência ou se era um hábito adquirido com os anos de casamento com meu pai. Havia sido assim antes e continuava assim com
Tito-, por mais que ele tentasse botar certo freio nela. Era como se o silêncio que precede a chegada de todos a incomodasse-, e fizesse mal, abrindo um buraco negro
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na lembrança e na solidão. Umas poucas vezes, senti nitidamente que ela trocaria toda aquela zoeira por um pouco de paz, por um ambiente mais calmo ao lado de quem
realmente amava.
Minha mãe não era do tipo que precisava "ter" para se sentir mais Dalva. Era do tipo que precisava "ser" para se sentir Vicentina. Uma mulher simples. E delicada.
Ela se entregava horas e horas sozinha, muitas vezes no escuro, a ouvir música romântica. Tinha uma preferência especial pela "Rapsody in Blue", de Gershwin. Lembro
que fiquei muitas vezes ao seu lado, enquanto ouvia músicas desse estilo, com sua pequena mão apertando a minha.
Hoje, vejo que esses momentos que passamos só nós dois juntos, em total comunhão e mantendo um silêncio pleno de respeito pelo que ela sentia, serviram para nos
aproximar muito. Ela fazia questão de que falássemos pouco, nos comunicando apenas por gestos. E viajava em seus pensamentos. Quase nunca deixava saber em que estava
pensando. Era somente o deleite de estar só. Sonhava, suspirava, e algumas vezes eu via lágrimas nos seus olhos - dizia que tinha saudade de "não sei bem o quê...".
Eu gostava muito disso, tínhamos uma verdadeira intimidade. Era um bálsamo para as nossas almas.
Nesses momentos, ela tinha mania de me chamar de "meu velho". com o tempo, passamos a ter uma sintonia diferente - ia muito além do relacionamento amoroso de mãe
e filho. Penso que, com minha atitude particular em relação aos dramas que vivia, evitando condená-la e sempre procurando entendê-la (às vezes até acompanhando-a
nos porres, só para estar junto), desenvolvemos uma cumplicidade e uma amizade maior.
Era minha forma de me aproximar mais dela. Quando qualquer argumentação ou atitude minha não conseguia impedi-la de se entregar à bebida, eu bebia junto, a protegia
do assédio negativo das pessoas. E procurava encontrar nessa situação um canal maior de comunicação com ela. Diante desse meu comportamento, ela
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passou a sentir em mim, além do filho amado, um amigo muito especial, e assim começou a me tratar.
Analisando hoje, acredito que esse processo tenha começado quando ela esteve comigo no México. Talvez porque tenha sido lá que percebi realmente quanto a bebida
havia tomado conta dela. Talvez também porque foi lá que a tive só para mim. Sei que esse período comigo foi a primeira vez em que ela se deu um tempo. Para minha
mãe, significou um momento de hibernação, e de interiorização também.
A partir daí, além de "meu filho", também passou a me chamar de "meu amigo" quando estávamos juntos. E quando estava embriagada, completamente carente, se dirigia
a mim como "meu velho". Cheguei a lhe perguntar, nesses momentos de intimidade, por que suportara por tanto tempo o mundo complicado da sua vida com meu pai. Por
que não se separou antes, já que havia razões e mais razões para que saísse de perto dele? Ela jamais soube explicar de verdade. Dizia que era uma mistura de coisas,
que ia aos poucos se fortalecendo, criando raízes. com o passar do tempo, e com tanta história vivida, não se poderia romper tão facilmente.
Esse "meu velho" vinha do fundo do seu ser fragilizado. Em seu grande cansaço interior, ela percebia que eu era um cúmplice muito antigo do seu sofrimento, porque
tinha estado desde o começo perto de tudo o que ela vivenciara. Era como se tivéssemos envelhecido juntos em uma longa jornada. Também sinto que esses momentos mágicos
renovavam o sentimento totalmente interiorizado que ela transmitia pela música.
Minha mãe cantava com a soltura e liberdade de estar consigo mesma, sem medo ou vergonha de demonstrar sua emoção. A forma minimalista e quase fria de cantar que
aos poucos ia nascendo com os novos intérpretes, principalmente da Bossa Nova, era repudiada por ela com todas as forças. Cantar era a plenitude da liberação
da emoção. Saísse como saísse.
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35 MÉXICO
EM 1965, RECEBI O CONVITE para participar de um show que marcaria minha carreira, o Gemini 5, ao lado de Leny Andrade e do Bossa Três (no piano Luís Carlos Vinhas,
no baixo Otávio Bailly Jr. e na bateria Ronie Mesquita). Sob a direção da dupla de ouro, Luís Carlos Mièle e Ronaldo Bôscoli, ficamos mais de um ano em cartaz na
Boate Porão 73 e no Teatro Princesa Isabel. com um estrondoso sucesso de público, o show virou disco ao vivo pela Odeon e recebeu da crítica especializada o título
de melhor pocket-show do cenário carioca.
Na esteira do sucesso, em 1966 fomos convidados para trabalhar no México por três meses. Outro sucesso. Renovamos pOr mais três meses. Depois, o grupo se desfez,
e continuei sozinho por mais um ano, até receber, em 1967, o convite do Sérgio Mendes (estouradíssimo com o grupo Sérgio Mendes 66) para montar com Gracinha Leporace
(que anos depois se tornaria sua mulher) o grupo Bossa Rio nos Estados Unidos.
Na Cidade do México, nos apresentávamos no mais importante nightclub, o El Senorial, uma casa muito chique com três espaços para shows. Quando renovamos o contrato,
o Natal se
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aproximava e resolvi convidar minha mãe para passá-lo comigo também conhecer o México, país com o qual sempre sonhou
Por uma linda coincidência, no dia seguinte à sua chegada minha mãe viu encantada a neve cair na cidade, o que não acontecia havia mais de quinze anos. Ela foi
tomada de uma emoção infantil; me abraçava, beijava, brincava com a neve e dizia que aquilo era coisa divina, um presente que estava recebendo de Deus.
Nessa época, eu morava porta a porta com Luís Carlos Vinhas. Sua mulher, Sílvia, também havia acabado de chegar do Brasil Minha mãe adorava cozinhar e os convidávamos
sempre para curtir seu tempero. A Silvinha conta que saía sempre com ela pela cidade. Faziam compras, supermercado, passeavam ou faziam companhia uma à outra quando
Vinhas e eu saíamos para trabalhar.
Recuperado hoje e totalmente abstêmio, Vinhas conta que ele e minha mãe tinham um truque para enganar a mim e a Sílvia. Quando ela ia para a cozinha fazer uma comidinha
qualquer, batia na porta deles pedindo um pouco de conhaque para o tempero. Era a "deixa". Aí Vinhas chamava a mulher, dizia que Dalva estava precisando de alguma
coisa, como cebola ou cheiro-verde, e pedia a ela para descer e comprar. Enquanto Sílvia estava na rua, ele e minha mãe colocavam um pouco de conhaque na comida
e bebiam o resto escondido de nós, porque nem eu nem a mulher dele queríamos ver os dois bebendo.
Imaginem só: México, inverno, o frio, tudo era uma boa desculpa para um drinque. Só que eles não sabiam ficar em poucos drinques. Quando percebíamos, estavam já
enrolando a língua. Era um porre a cada jantar. Nessa altura de sua vida, minha mãe estava bebendo muito e entrara num processo impressionante de autodestruição.
No México, desfrutávamos da vida noturna da capital - restaurantes, shows, passeios pela cidade, casa dos amigos. No El Senonal, ela ficou toda orgulhosa de meu
trabalho e do sucesso que fazíamos. Mas, com o tempo, foi se tornando impossível levá-la comigo:
tinha controle sobre ela somente enquanto estávamos juntos. Quando
eu susbia no palco para cantar, ela se embriagava. No estágio de alcoolismo em que se encontrava, bastavam alguns drinques para isso acontecer. Várias vezes a levei
para
casa completamente bêbada. Deixei de levá-la comigo. Se eu não podia controlar minha mãe, também não podia expô-la e a mim nos lugares em que trabalhava.
Era muito triste. Podem imaginar como me sentia vendo-a naquele processo terrível, se destruindo, sem que eu pudesse fazer nada, a não ser tentar ficar a seu lado,
conversando e curando os seus porres. Foi um período em que conversávamos muito quando ela estava sóbria. Era uma pessoa muito doce, carinhosa e imensamente frágil.
Mas eu sentia que dentro dela alguma coisa terminava. Um romper com os sonhos. Um desligamento da vida. A doença no fígado e a contínua insistência na bebida já
haviam tomado conta de sua profunda solidão.
Para Silvinha, minha mãe não se abriu muito, mas falava da solidão que sentia em sua vida, principalmente na carreira. Silvinha sentia que o interesse inicial dela
pelo México já não era tão forte. Forte era a vontade de ficar ao meu lado. Falava para todos, do prazer de estar comigo. E, principalmente, estava orgulhosa porque
mandei para ela a passagem e proporcionei o prazer de conhecer um país com o qual tanto sonhou.
Dalva passou a sair comigo somente quando eu não tinha de subir no palco. Procurava distraí-la durante as folgas, levando-a para a casa de amigos, aos shows e passeios
pela bela capital mexicana. Quando fomos a Acapulco, andamos por todos os lugares e ela ficou maravilhada. Estava na cidade que conhecia dos filmes e recordava seus
ídolos - Agustin Lara, Maria Félix, Pedro Vargas. Fizemos um passeio a La Quebrada, local turístico conhecido no mundo inteiro, onde as pessoas mergulham de um penhasco
altíssimo no mar azul. Quando voltei lá com meu pai, em 1974, minha mãe já havia falecido. Lembrei, emocionado, a sua alegria quase infantil naquele dia.
Ela estava feliz. E ao mesmo tempo triste. Muito triste. Sentia falta de cantar, mas as circunstâncias não a favoreciam. Ainda
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tentei com um amigo, o Cardini, dono de um restaurante finíssimo, que ela se apresentasse na casa. Uma noite, ele nos
convidou para jantar, e minha mãe resolveu dar uma canja. Foi Uma idéia infeliz. Já estava alta e não conseguiu fazer a voz
obedecer. Seu rosto era só aflição. Suas mãos se apertavam nos agudos, não conseguia
se equilibrar direito. Tirei-a rápido do palco, nos abraçamos e choramos juntos. Choramos muito. Não me importou que ninguém estivesse entendendo nada. Eu sabia
o que estava terminando ali: a vida de minha mãe.
Depois disso, ela recebeu um telefonema do Chacrinha pedindo que voltasse, porque a marcha "Máscara negra", que havia gravado para o Carnaval antes de ir ao México,
estava estourando nas rádios. com essa notícia, o rosto de minha mãe se iluminou. Ainda tentei segurá-la um pouco, para que se valorizasse mais, mas não houve jeito.
O Chacrinha ligava insistentemente. Como filho, queria cuidar dela e insistia para que não voltasse ao Brasil. Mas, como artista, eu a entendia. O sucesso e a evidência
acenavam para ela como um milagre, numa ressurreição maravilhosa.
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CHACRINHA, FLÁVIO CAVALCANTI, SÍLVIO SANTOS
HÁ PESSOAS POR QUEM tenho um respeito e gratidão enormes Flávio Cavalcanti e Chacrinha. Quando minha mãe estava se sentindo completamente alijada do mercado e precisando
de apoio, foram eles que carinhosamente estenderam a mão.
Flávio Cavalcanti foi o comunicador que ofereceu à minha mãe a chance de retornar ao palco, seis meses depois do desastre, não se importando com qualquer marca
que o acidente tivesse deixado em seu rosto. A Flávio importava o talento dela. E afirmou isso para o Brasil em cadeia nacional, na extinta TV Excelsior, em fevereiro
de 1966. A partir daí, Flávio chamava Dalva constantemente para cantar em seus programas.
Chacrinha, então, foi um grande amigo. Ele é que não ligava mesmo para o que pudesse ter afetado o rosto de minha mãe. Queria a Estrela Dalva em seus programas e
nada mais importava. Na verdade, as pessoas que realmente tinham carinho e respeito pelo ser humano Dalva não se importavam com nada disso. Mas havia profissionais
que negavam sua presença nas TVs porque a visão de seu rosto marcado não era compatível com a "beleza" do que era mostrado nos shows.
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Outro grande comunicador que apoiou muito minha mãe nessa fase difícil, convidando-a sempre para seus programas, foi Sílvio Santos. Em 1970, durante um festival
de Carnaval, ele conduziu minha mãe aos palcos com enorme carinho e respeito. Ela acabou vencendo o festival.
Aliás, 1970 foi o ano que marcou o início da recuperação de seu prestígio. Na saudosa TV Tupi, ganhou o terceiro lugar em um concurso de Carnaval, com "Bandeira
branca". Em 1971, venceu outra vez na TV Tupi, dessa vez com a música "A lágrima", e ainda recebeu um prêmio como a melhor intérprete do ano. Em 1972, Sílvio Santos
a convidou para participar de seu concurso de Carnaval. Dalva arrebatou novamente o primeiro lugar, com "Rancho da esperança".
Penso que essas vitórias foram realmente um presente de Deus para que ela se sentisse novamente amada e querida e esquentasse seu coração tão machucado. Muito pouco
tempo teve minha mãe para curtir esse sucesso: faleceu em agosto de 1972.
Plagiando Vinícius: "A bênção, Flávio, Chacrinha e Sílvio".
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A POLÍTICA E O ECAD
TUDO QUANTO RELATEI ATÉ AQUI comprova: meu pai sempre demonstrou pioneirismo em suas atividades. Homem de pouco estudo, que não terminou o primário, mas de muita
inteligência, era l dotado de especial consciência em relação à classe artística. Em sua época, o mercado musical brasileiro engatinhava e as fontes de
renda do compositor nacional se limitavam aos shows e contratos ocasionais com as rádios e gravadoras. Não havia pagamento dos
chamados direitos autorais aos compositores
ou dos direitos de execução aos intérpretes.
Preocupados, os compositores mais expressivos começaram a se articular e desenvolver um trabalho de conscientização junto à classe, ao governo e à sociedade.-Reuniam-se
nessa luta Herivelto Martins, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Braguinha, Mário Lago, Alberto Ribeiro, Haroldo Barbosa, Roberto Martins, entre outros. Dessa luta nasceu
a Regulamentação do Direito Autoral no Brasil e foi criada a primeira sociedade de direito autoral, mais tarde batizada de UBC - União Brasileira de Compositores,
que deu origem às diversas sociedades de hoje, como SBACEM, SOCIMPRO, SBAT, Abramus etc. Os artistas de hoje devem a essa atitude pioneira e corajosa dos colegas,
nos anos 40 e 50, o reconhecimento do seu
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direito de faturar cada vez que sua obra é executada ou vendida por meio dos discos. Ainda estamos muito longe do ideal para a classe artística, mas o alicerce
já foi conquistado.
Nos anos 60, Herivelto acabou se envolvendo mais profundamente com o trabalho do Sindicato dos Compositores, sendo seu presidente por dois mandatos consecutivos.
Também foi presidente da SBACEM - Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música. Como presidente do sindicato, obteve grandes conquistas para
a classe: o direito à aposentadoria para o artista e a obrigatoriedade da contribuição sindical. Esta última porque Herivelto conseguiu convencer o então ministro
do Trabalho, Nei Braga, da necessidade de autorizar o desconto obrigatório para o sindicato da classe por intermédio do Ecad, recém-criado.
Como presidente das duas sociedades, lutou contra a criação do ECAD - Escritório Central de Arrecadação de Direitos -, por prever o risco dessa idéia, a princípio
muito conveniente e facilitadora do mecanismo de arrecadação, mas perigosa se tivesse sua estupenda receita mal gerida. Houve protestos na época por parte dos profissionais
mais esclarecidos que pensavam como Herivelto. A formação do ECAD trouxe muita tristeza para meu pai, ao ver com o passar do tempo, como previra, apenas alguns
eleitos se beneficiando. A famigerada entidade veio para enriquecer poucos, e a distribuição igual para todos jamais aconteceu.
Essa participação no mundo político da música rendeu a Herivelto uma quantidade razoável de inimigos. Era um mundo sem os ideais dos quais ele sempre fora imbuído,
uma politicagem barata, onde interesses escusos e de poucos prevaleciam sobre os verdadeiros interesses da classe. Em várias ocasiões disse a meu pai que não entendia
como ele, o autor de obras tão importantes e sensíveis, se misturava com assuntos que muitas vezes não levavam a nada. Ou melhor, levavam-no a um mundo feio, distante
da beleza dos palcos a que estava acostumado. Cheguei a vê-lo sair de revólver na cintura
- e ele não tinha o costume de andar armado. Fiquei assustado:
"Meu pai, o que está acontecendo?".
"Vai haver uma reunião no sindicato e já vieram me contar que o Adelino anda por aí armado, dizendo que vai me pegar. Tenho de me proteger."
"Ora, meu pai, deixa disso! O senhor é um poeta. E poetas
não andam armados."
A briga maior, naquele momento, era com Adelino Moreira, seu grande opositor nessa política. Eu deplorava tudo aquilo e não quis muito saber por que brigavam. Penso
que essa participação, num mundo completamente alheio ao seu, afastou Herivelto pouco a pouco do palco e mais ainda do violão, embora música fosse o que mais amasse
na vida.
Outra faceta dele: tinha uma necessidade imensa de liderar, de aparecer. Se a música era o seu amor, a sede de comandar era a paixão. Sempre. Fosse o repertório
do Trio, os figurinos de Dalva ou as evoluções de sua escola de samba, com o famoso apito. Alguns colegas da época diziam até que essa história do apito, além de
funcional, ajudava-o a se destacar. Só dava Herivelto no samba.
É importante ressaltar, porém, que essa sede de destaque e de comando se restringia à área de trabalho, ao mundo musical. Em sua proximidade com políticos importantes,
como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ademar de Barros, sei que essa capacidade natural de liderança motivou alguns convites para concorrer a cargos políticos.
Nunca aceitou nem demonstrou interesse. Não era simplesmente o jogo do poder que o atraía, mas sim o poder e o destaque em seu ambiente musical.
Fazendo uma análise mais pragmática, posso dizer que meu Pai, com sua atuação na política do meio musical, também estava Procurando se "segurar" financeiramente,
pois o Trio de Ouro (com Raul Sampaio e Lourdinha Bittencourt) tinha cada vez menos trabalho. E sua escola de samba, ainda ativa, não faturava muito; apelas preenchia
um pouco do grande vazio que o artista Herivelto Passou a enfrentar.
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Havia algo em meu pai que só comecei a perceber após sua morte e que procurei observar de uma maneira completamente isenta de tendências. Nunca o vi manifestar
qualquer atração por lados, cores ou opiniões políticas, ou mesmo engajar-se em correntes partidárias. Era uma pessoa ligada exclusivamente à música, ao palco e
às manifestações de sua arte popular.
Mesmo que estivesse perto de Getúlio, Ademar ou Juscelino a finalidade da aproximação não era política, no sentido meramente eleitoreiro, mas sempre pretendendo
fazer algo pelos compositores. Havia nele uma grande consciência de classe e um empenho enorme de melhorar a condição de quem vivesse da música. Foi assim quando
se tornou presidente da SBACEM e presidente do Sindicato dos Compositores.
Era assim também quando compunha. Ele sempre honrou suas origens - o morro, a vida humilde, as raízes indígenas, o negro, a mulata, o crioulo - e, mais ainda, enalteceu-as
na sua música cheia de amor e espontaneidade, como ninguém fez com tamanha produtividade. Essencialmente, sinto que a grande finalidade da vida de meu pai, sua
função como ser humano foi sempre ligada à música antes de qualquer outra manifestação mundana.
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A OBRA DE HERIVELTO
MEU PAI COLORIU A VIDA BRASILEIRA de forma magistral, com cores fortes e definitivas, sons de rara beleza, numa concordância melódica e harmônica que se perpetuará
através dos tempos, numa rica expressão da arte popular. Posso também dizer que meu pai, Herivelto Martins, foi o cronista maior de sua cidade, o Rio de Janeiro.
Ele escreveu sobre tudo e usava seu talento para chamar a atenção sobre o que se passava na cidade. Antecipou o fim da praça Onze, no samba memorável ao lado de
Grande Otelo. Cantou o morro da Mangueira, homenageou a beleza triste da favela em sua Ave Maria, enalteceu as mulatas, as
Estelas, as Isauras e as Olindas. Cantou
cassinos e botequins. Anunciou o novo perfil da cidade com a construção da avenida Central (atual Rio Branco), que rasgou e remodelou o centro do Rio. Cantou o
Morro do Castelo, que foi demolido para dar espaço ao aterro do Flamengo.
Seus interesses eram mais amplos. Cantou do bondinho de Santa Teresa, no Rio, à cidade de Brasília para Juscelino. Escreveu para a Bahia e o Rio Grande do Sul. Cantou
Francisco Alves e Carlos Gardel. Não vejo, na música popular brasileira, nenhum compositor com tamanha versatilidade de temas e ritmos. Na obra de Herivelto,
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quase setecentas canções, encontramos samba, marcha, samba-canção, valsa, tango, bolero, baião, canção, jongo, frevo, guarânia, batuque, rancheira, fox.
Na capa do último disco de meu pai, Que rei sou eu?, produzido pela Funarte em comemoração ao Prêmio Shell da MPB dado a ele em 1987, o jornalista e pesquisador
Tárik de Souza, em texto escrito especialmente, afirmou que parece haver na obra de Herivelto vários compositores, tal o grau de diversificação no seu jeito de compor.
Como músico e compositor surgido no início do século, meu pai não recebeu nenhuma influência musical. Sua informação literária restringia-se aos poemas caipiras
aprendidos em Barra do Piraí. Tudo o que fez, assim como Donga, Pixinguinha, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Braguinha, Ataulfo Alves, Lamartine Babo, Noel Rosa e toda
a geração deles, foi de uma originalidade sem precedente na história musical do Brasil. Não tinham a quem seguir e então inventaram, inaugurando o caminho que todos
das gerações subseqüentes, sem exceção, trilhamos e ainda iremos trilhar. O pioneirismo era total.
Não se pode esquecer que a gravação, o registro em disco, engatinhava também. Era apenas o início do mercado musical e as gravadoras começavam a se instalar no país.
Edição não existia, registro muito menos. Tenho certeza de que a originalidade e o lirismo abençoaram aquelas cabeças e fizeram com que deixassem um legado espontâneo
e genial. Tanto que, até hoje, nos curvamos e bebemos em sua fonte.
Herivelto fez parte dessa geração e foi um dos seus gigantes, com uma obra magnificamente intuitiva e artesanal. Obra que atravessa o tempo pela unanimidade que
provoca. Nascida da espontaneidade, sem ser dirigida ou manipulada, baseada somente nas informações trocadas entre eles, sem obedecer a qualquer regra imposta por
ditaduras comerciais.
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Não se fazia música pensando no sucesso e no consumo, mas principalmente pelo orgulho, pela beleza da obra em si. E pela espontânea aceitação do público. Nada merecia
respeito e consideração dos que viviam da música se não fosse calcado na qualidade, na beleza e numa verdade interior que traduzisse
tão-somente uma comunhão com a música. A música de meu pai tinha essa força e essa verdade, assim como a de Ary Barroso, Lamartine, Caymmi, Braguinha, Lupicínio
e todos os grandes da época de
ouro. Tinham a soltura e a liberdade de criação que aos poucos foram morrendo no Brasil. Aliás, no mundo inteiro.
Por causa dessa liberdade, o período se tornou tão pródigo em sons, rimas e nuances. E, mesmo estando essas pérolas musicais meio esquecidas na música atual, o legado
transcende o tempo e, qual uma fênix, renasce no canto popular, eternizando-se na memória de nosso povo.
A geração que se seguiu, trazendo Antônio Carlos Jobim, Vinícius de Moraes, Carlos Lira, Baden Powell, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, veio com uma força muito
grande e realmente assustou os antecessores. Eles traziam um mundo desconhecido, cheio de novos sons, uma forma nova de tratar o amor, cheio de bossa, com muita
ginga e balanço. Uma Bossa Nova.
E importante dizer que a bossa realmente nova não nasceu somente daqueles que citei - e o mundo passou a enaltecer. Outros haviam muito antes prenunciado o novo
estilo - Ciro Monteiro, Vassourinha, Noel Rosa, Mário Reis. Mas havia no elenco comandado por
tom Jobim o desejo de romper com a linguagem usada em relação ao
amor, à mulher, à visão de mundo. O rompimento musical com o passado, um tanto escuro em sua forma de expressão, fez com que surgisse um aprimoramento do jeito
de cantar, tocar e compor. Havia mais frescor, alegria e uma bossa diferente.
Não se pode esquecer também que a Bossa Nova brotou de uma classe social emergente, mais abastada, e que conflitava com
os representantes do movimento antecessor, gente mais pobre,
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sem recursos para tomar uísque e, muito menos, morar de frente para o mar. E claro que o choque foi tremendo. Só não foi maior o confronto porque os novos compositores,
tom principalmente, tinham uma admiração enorme por Ary Barroso, Caymmi e todos os outros. Meu pai, por exemplo, é uma das grandes paixões de João Gilberto, que
gravou "Isaura" e "Ave Maria no morro". Cada vez que me encontrava com João no Brasil ou
em Nova York, a primeira coisa que falava era:
"Oi, Pery! Como vai teu pai? Já te falei: pra mim ele é e será sempre o mais importante".
Como a maioria dos seus contemporâneos, meu pai não assimilou de imediato a nova expressão. Demorou algum tempo para entender e passar a admirar o movimento. Acho
que contribuí bastante para a aceitação dele ao me integrar à Bossa Nova. Principalmente quando gravei "Garota de Ipanema" pela primeira vez para o mundo. O sucesso
foi tão grande que, acredito, colocou meu pai um pouco mais perto do movimento. Por fim, nos últimos anos, ele já enaltecia o trabalho daqueles que deixaram seus
nomes gravados no maior movimento musical que este país conheceu.
Recentemente, pude observar, surpreso, que algumas obras do meu pai de gênero mais interiorano receberam certa influência de Ary Barroso. Descobri isso ao assistir
ao showAry mineiro, das cantoras gêmeas Célia e Celma, minhas doces amigas. Como boas mineiras de Ubá, cidade natal do compositor, resolveram homenagear a faceta
mais interiorana de Ary, tão pouco divulgada.
E imediatamente me lembrei do meu especial amigo e vizinho na Serra da Cantareira, em São Paulo, o compositor Renato Teixeira, dizendo em minha casa como considerava
meu pai um compositor com forte influência rural. Cohtou-me também que a primeira música que aprendeu no violão 'em sua terra natal foi um tema interiorano de
Herivelto, "Caboclo abandonado":
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Quem visse aquele ranchinho
Lá na beira do caminho
Parava cheio de espanto
E Ao ouvir de dentro o canto
De um sabiá divinal
Jamais alguém pensaria
Que neste rancho existia
Um caboclo abandonado
Quem partiu deixou lembranças
E ele guarda uma esperança
E ele canta amargurado
A rola nunca se esquece
De onde fez o seu primeiro ninho
O seu primeiro ninho de amor
Pode rolinha triste
Andar por onde quiser andar
Mas ao seu primeiro ninho Tem que voltar
O samba tinha em meu pai o representante mais dedicado. Mas, com o tempo, a modernidade exigiu que o samba começasse a falar de maneira mais íntima ao coração.
Naturalmente, o blues norte-americano e as aparições, em meados dos anos 40, dos cantores românticos (os americanos Nat King Cole, Frank Sinatra e Bing Crosby e
o brasileiro Dick Farney) contribuíram para que se procurasse uma maneira de se comunicar mais ao pé do ouvido.
O romantismo de meu pai, o lirismo da época e a própria história de sua vida deram muita força para que nascesse o samba-canÇão. Eu não diria que ele tenha sido
o precursor, mas tenho certeza de que, junto com o Caymmi de "Só louco" e o Braguinha de "Copacabana", deu o passo inicial para que o samba-canção passasse a ser
Um gênero abraçado pelos que queriam falar mais de perto ao coração
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das pessoas. Chico Alves gravou de Herivelto "Culpe-me" e "Caminhemos". Foram grandes sucessos. Sílvio Caldas gravou "Cabelos brancos", outro sucesso. A partir
daí, o samba-canção ficou totalmente integrado à alma do brasileiro. Aliás, meu pai, quando discutíamos os rumos da cultura nacional, gostava de dizer:
"Pery, quando a música brasileira parecer mais decaída, quando a má qualidade quase matar a nossa cultura e o lixo estrangeiro mais estiver dominando a nossa música,
há de sempre surgir um samba-canção pra salvar a nossa dignidade cultural".
Assim espero, meu pai!
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SOLIDÃO NA URCA
NÃO É DIFÍCIL IMAGINAR como meu pai se sentiu quando o sucesso espontâneo deixou de existir, quando o "jabá" passou a dominar a consciência dos profissionais da
mídia, que tomaram para si a incumbência de decidir o que o povo queria ou não ouvir e comprar. O tempo estava passando e as mudanças aconteciam de forma brusca
e cruel. A indústria da música tomava o lugar do artesanato e da espontaneidade, do lirismo e da beleza. Surgia o "pára-quedista do sucesso", verdadeira invenção
do mercado, sem nenhuma preocupação de construir uma carreira, apenas correndo atrás do sucesso imediato. E, nessa inversão de valores que o mundo foi passando a
viver, esses produtos da mídia, em decorrência de sua vendagem de discos, passaram a ser considerados gênios da música.
Meu pai sofria com esse processo, com o distanciamento que passou a existir entre sua verdade e as mentiras do mercado musical que era obrigado a suportar. Resultado:
a enorme solidão que lhe era imposta pelas mudanças do mundo e, como se não bastasse, também a solidão de sua vida particular. Embora cercado por muitas pessoas,
em casa e no centro espírita, ele já não desenvolvia sua finalidade de vida: subir no palco e exercer sua arte.
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com Fernando, teve a sua maior dor, a maior dor de um pai Ele era o filho mais velho de seu casamento com Lurdes, uma união que meu pai desejava fosse definitiva.
Não sabemos por que
- se foi um problema de criação ou influência de uma juventude com valores contrários aos de meu pai e Lurdes -, mas o fato é que Fernando entrou para o mundo das
drogas e, como sempre acontece, perdeu o contato com a família.
No meu especial carinho pelo Fernando, tentei um canal de comunicação. Chegamos a conversar abertamente algumas vezes e senti naquele menino profunda solidão e tristeza.
E certa mágoa. Mas nem meu pai nem Lurdes souberam como lidar com o problema. Acho que, na verdade, pais e mães nunca sabem o que fazer quando percebem que seu
filho, aquela obra de Deus tão perfeita, e tão amada por eles, está se drogando...
Tentou-se de tudo até ele ser internado. Acreditávamos que, com essa medida, pararia com as drogas, mas já era tarde. No decorrer daquele processo difícil, com
seu organismo já debilitado, ele havia contraído uma doença grave - câncer de próstata. De acordo com o que observei e aprendi na vida, o câncer é a doença da mágoa,
do ressentimento, o que se encaixava perfeitamente na história de Fernando. Ele não durou muito. Morreu prematuramente em 1984, aos 32 anos incompletos.
Meu pai ficou abalado. Creio que foi essa dor que o levou a escrever uma frase boba e infeliz sobre filhos no livro sobre sua vida: "Filho, não sei pra que serve".
É uma afirmação que marca muito quem lê o livro. Talvez tenha sido sua forma de jogar fora uma dor guardada bem no fundo, por ter perdido um filho estupidamente
para as drogas.
Quando Fernando morreu, levei meu pai até Itaguaí, junto com minha amiga de infância Marilu. Fomos passear na Ilha de Itacuruçá, tentando fazê-lo espairecer e relaxar.
Durante a travessia para a ilha num barquinho, pude sentir quanto seu coração estava machucado. As poucas palavras que disse, as expressões
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que usava, o vazio do seu olhar, tudo era muito forte e doloroso. Foi a primeira vez que vi seus olhos azuis tão vazios, e até com algumas lágrimas.
com a morte de Fernando, os outros filhos com a Lurdes, Yaçanã e Louro, ainda solteiros, passaram a receber da mãe uma dose ainda maior de proteção. Tudo se concentrava
nos dois e nos filhos pequenos de Fernando, que continuaram a morar na casa do meu pai junto com a mãe, Martinha. Penso que a excessiva atenção de Lurdes aos filhos,
somada à solicitação constante das pessoas por sua ajuda como mãe-de-santo, fez com que meu pai se sentisse muito só dentro de casa.
Tudo isso foi deixando meu pai alheado de uma rotina à qual não pertencia, embora se desenrolasse em sua própria casa. Não fazia parte atuante daquela romaria e
ficava de lado na maioria dos assuntos. Havia um clima de eterno segredo no ar e ele só era solicitado quando precisava fazer frente às obrigações de provedor do
lar: a filha queria um carro novo, a esposa, uma viagem para Nova York, a neta precisava de um aparelho nos dentes. Resultado: mais solidão.
Yaçanã, única filha mulher, com total apego à mãe, acabou se tornando a maior colaboradora de Lurdes ("cambona", como se diz na umbanda), participando de todas
as atividades. Assim, nem a mulher nem a filha tinham mais tempo para Herivelto.
Lurdes, já comentei, não sabia fazer absolutamente nada em casa. Cozinhar, lavar ou administrar eram ciências impossíveis para ela. Vivia exclusivamente para as
atividades de mãe-de-santo e Yaçanã seguiu essa cartilha. Por isso, cansei de ver meu pai ficar nervoso ao encontrar sua camisa sem botão ou amarrotada, quando se
preparava para um show. Se Marta, a viúva de Fernando, ou Edith não estivessem por perto, ele tinha de sair daquele jeito. Não havia mais ninguém na casa com disposição
para cuidar da roupa dele.
Apenas o filho caçula, o Louro, procurava ficar perto de meu pai, oferecendo carinho e companhia. Foi o único filho de Lurdes
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que herdou a musicalidade de Herivelto. Conhecia todas as suas músicas e cantava com ele em dueto nas brincadeiras musicais da Urca. Também era o único interessado
em sua carreira. Acompanhava-o aos shows e demonstrava real interesse pelo Herivelto artista. Mas Louro nunca foi levado muito a sério pela família. Sua personalidade
delicada e dócil era confundida com algum distúrbio esquizofrênico, o que o fazia ser meio ridicularizado por todos. E meu pai, em vez de curtir seu carinho, acabava
não dando a atenção que ele merecia. Infelizmente.
Assim, meu pai foi ficando cada vez mais sozinho. Percebendo esse processo, os filhos mais velhos passaram a ir à Urca com mais freqüência. Eu, morando em São Paulo,
vinha ao Rio sempre que podia. Bily, Hélcio, Hélio e até Newton sempre estavam por lá. Procurávamos talvez uma intimidade, ainda que tardia, com nosso pai, um homem
que já fora tão requisitado pela fama e pelas pessoas que a alimentam. Mas não era fácil. Havia muitos anos meu pai assumira uma postura dura e irascível com a
própria família.
Solitário dentro de casa, ele ligava para os amigos ou se agarrava a alguém do centro espírita para ter companhia para sair e conversar. Não era pessoa de conseguir
ficar sozinha, nunca. Não conseguia ficar consigo mesmo por muito tempo. Para sair, tinha sempre um acompanhante - um amigo, um conhecido ou mesmo uma pessoa da
família. Para o sítio de Bananal, então, só ia se fosse com alguém.
Quem teve papel importante nessa fase da sua vida foi o dono do jornal Copacentro, João Bosco. Carregava meu pai para a rua com freqüência, organizava festas, reuniões
e às vezes até shows, em que ele podia brilhar, ser homenageado e receber um pouco da sua grande vitamina: o aplauso. Na verdade, tudo fazia parte da Grande Corte
que um dia existira na vida de Herivelto e que ele fizera questão de manter. E por sorte, nessa fase da vida, do alto a seus quase 80 anos, reconquistava a admiração
de um país, recebendo grandes homenagens.
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Era muito gratificante ver sua alegria ao ser homenageado. E mais feliz eu me sentia quando dividia com ele o palco nesses momentos. E um desses momentos inesquecíveis
foi quando participei junto com Elizeth Cardoso, Zezé Motta e a última versão do Trio de Ouro (com Shirley Dom) de uma homenagem muito especial a ele: o importante
Prêmio Shell da MPB (1987). No palco do Teatro Municipal pude saborear a sua felicidade ao ser ovacionado por uma platéia que o aplaudia de pé. Fizemos um emocionado
show dirigido com muita sensibilidade por Hermínio Bello de Carvalho, e que se tornou um disco lançado pela Funarte com o título Que rei sou eu?.
Digo reconquistava um país porque, depois da morte de minha mãe, a vida se encarregou de reincorporar a vida dela na dele. Era a grande e fantástica ironia - ao
ficar cada dia mais velho, mais era obrigado a oferecer ao público a imagem de homem que tivera a sorte um dia de ter Dalva de Oliveira como esposa e companheira
de trabalho. Isso aconteceu muito nos shows que fazíamos juntos. Talvez por respeito ao tempo transcorrido ou por estar junto comigo, dividindo os holofotes, o fato
é que no início de nosso trabalho ele relutava em fazer referência ou falar sobre ela quando contava a história de suas músicas. Mas, como quase tudo dizia respeito
ao tempo em que esteve casado com minha mãe, mesmo odiando ter de pronunciar seu nome, aos poucos a exigência do público falou mais alto. Passamos a terminar o
show cantando as marchas-rancho criadas por ela, encerrando invariavelmente com
"Bandeira branca".
com isso, Herivelto ganhou de volta do público que ia nos ver o carinho, a admiração e o reconhecimento. No meu íntimo, imaginava Dalva ali, assistindo a tudo,
feliz por ter conseguido... tanto riso, tanta alegria". ••'
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HUMOR
MEU PAI, POR SER DOTADO de um senso de humor inteligente e mordaz, era grande contador de histórias e casos engraçados e usava muito bem isso nos shows. Quando trabalhamos
juntos, eu sempre insistia para ele ficar um tempo sozinho em cena contando seus famosos casos e fazendo piada com assuntos que envolviam a sua própria vida. A
platéia se divertia. Era um sucesso.
Contava ele que, quando minha mãe morreu, os jornais e revistas estamparam nas primeiras páginas a fotografia dela. O país inteiro chorava, as pessoas muito emocionadas
com o fim de um sofrimento de meses. Ele estava parado na frente de uma banca quando foi abordado por um estranho:
"Pois é, seu Herivelto, que tristeza! Já foi o Nilo Chagas, agora está indo dona Dalva, só falta o senhor!".
Outra das suas histórias, que mostram a ingenuidade de certa parte do público, se passou no falecimento de Pixinguinha. Herivelto levava uma das alças do caixão
junto com outros artistas, boêmios e companheiros queridos. Uma multidão seguia o cortejo. Perto da cova onde Pixinguinha ia ser enterrado, ele escondeu o rosto
no braço e chorou, enquanto o povo todo, naquela contrição e dor, começava a cantar "Carinhoso":
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Meu coração
Não sei por que
Bate feliz Quando te vê...
Eis que de repente, a seu lado, alguém iniciou o seguinte papo com meu pai:
"Veja só, seu Herivelto, que maravilha de homenagem. Pode deixar, fique certo que, quando for a sua vez, nós haveremos de cantar 'Ave Maria no
Morro'".
Uma história engraçada, que acabou virando música, é a de Bené Nunes, grande pianista. Ele vivia com Oracina Corrêa e não saíam lá de casa. Chegavam ainda de manhã
no apartamento, por volta das nove horas, iam ficando para o almoço. Continuavam pela tarde afora. Anoitecia, minha mãe convidava para jantar e eles aceitavam. E
nada de ir embora. Meu pai, que gostava muito de Bené, acabou fazendo um samba para ele:
Você vem
Você fica e não sai
Você veio tão cedo
Que até já almoçou
E depois pra fazer companhia
Você foi ficando
E até jantou
Já são sete horas da noite
Você só ensaia sair, mas não sai
Não entende as piadas que eu jogo
Se é por falta de adeus
Até logo, até logo
Se a dor que mora nalma
No meu rosto se estampasse
Talvez à minha casa
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Você nunca mais voltasse
Você é um castigo, e castigo'eu não mereço
Pelo amor de Deus
Esquece o meu endereço!
Bené ria muito toda vez que meu pai cantava o samba, principalmente quando
Herivelto fingia que chorava ao dizer o finalzinho da música: Pelo amor de Deus Esquece
o meu endereço!
Uma das primeiras músicas que meu pai compôs, ainda morando no Morro de São Carlos, tem uma história bem pitoresca. Foi feita por encomenda de um bloco carnavalesco
do morro. Estamos falando de 1934, quando edição musical era apenas um sonho do artista. Era música para ser cantada no Carnaval, falando dos bondes e motorneiros,
do meio de transporte da época. Tinha apenas a primeira parte composta:
Seu condutor din-din
Seu condutor din-din
Pare o bonde pra saltar o meu amor
Seu condutor...
Alvarenga, companheiro de Ranchinho, ouviu a música e se apaixonou por ela. Então chegou perto do meu pai e pediu:
"Herivelto, o Ranchinho e eu vamos gravar um novo disco e quero incluir 'Seu condutor'. Você me dá a música?".
"Claro, Alvarenga, é um prazer, é sua!"
O tempo de Carnaval chegou e com ele o disco da dupla Alvarenga e Ranchinho. Só que com uma segunda parte que
Herivelto não compusera. Ele entrou numa loja, pegou
o disco, e qual não foi sua surpresa ao ver que seu nome não constava do selo como compositor. Procurou Alvarenga, mas ele não quis falar com meu pai. Indignado,
Herivelto contratou um advogado e foram para o
tribunal decidir a questão. Quando o juiz perguntou a Alvarenga se a música tinha sido composta por Herivelto, ele respondeu no ato:
"Claro que sim!".
E o juiz:
"Mas como é que você só colocou o seu nome no selo do disco, esquecendo o autor verdadeiro?".
"Mas, senhor juiz, eu gostei da música, pedi então pró Herivelto que me desse e ele me deu. Ora, deu, tá dado."
Meu pai riu muito de toda essa confusão. Mas não abriu mão de ter seu nome no disco como parceiro de Alvarenga.
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CAMINHOS DA AUTO DESTRUIÇÃO
QUANDO AINDA EXISTIAM os desfiles dos ranchos no Carnaval e não apenas das escolas de samba na avenida, minha mãe foi convidada a desfilar num trono, em cima de
um carro, como a grande Rainha dos Ranchos. Era uma homenagem à paixão que ela sempre teve pelas marchas. "Grão de areia", "Máscara negra", "As pastorinhas", "Bandeira
branca", "Rancho da praça Onze" são algumas que lançou com grande sucesso.
Os ranchos estavam em seus estertores. Ainda tentavam, nostálgicos, tristes e terminais, participar do Carnaval no Rio. O desfile (acho que foi um dos últimos, se
não o último) era na avenida Presidente Vargas e foi uma visão das mais tristes. Os participantes iam cantando uma marcha-rancho, a bateria no ritmo da marcha, lento,
triste, sem a menor animação, e a formação na rua era esparsa, sem conjunto. Melancólico mesmo.
Ela quis que eu fosse junto para dar apoio moral. Combinamos que eu ficaria sentado no chão do carro, para não ser visto, enquanto minha mãe ficava no alto, num
trono, usando um vestido longo que cobria a cadeira onde estava sentada. Eu ia olhando para a frente do carro e vendo aquela cena com muita tristeza. De vez em
quando, me virava para falar com ela e sentia que, aos poucos,
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ela deslizava uma palavra, como se estivesse ficando de porre. Tornava a virar para a frente, acompanhando o desfile, e, quando me voltava para minha mãe, sentia
que estava falando mais pastoso ainda. Eu não entendia. Como era possível ela estar bebendo num lugar como aquele? Sem ninguém nem bar por perto?
No final do desfile, fui descobrir que alguém tinha dado uma garrafa de conhaque para ela, e, é lógico, estava completamente embriagada. A razão de eu não ver é
que, quando me virava para a frente, ela pegava a garrafa de baixo do trono, bebia e guardava de novo, escondida pelo vestido longo. Ela era muito danada, moleca
mesmo, e era difícil segurá-la. Para atrapalhar mais ainda, pintavam esses "espíritos de porco".
Houve um tempo em que a TV Tupi colocava no ar muitos musicais. A música ainda era a porta-voz da brasilidade e a expressão dos cantores e compositores tinha uma
profunda representatividade e falava forte ao coração do brasileiro. Nessa época, por volta de 1970, o diretor artístico da emissora era o grande cantor Lúcio Alves,
que organizava os shows e a programação musical. Lúcio gostava muito de conjuntos vocais e estava sempre criando arranjos para os cantores que participavam de algum
programa.
Uma tarde fui procurá-lo, pedindo que se lembrasse de chamar minha mãe. Ela estava bastante afastada do meio e eu sabia que ele poderia ajudar, colocando-a em alguns
programas. Simpaticamente, ele me atendeu e logo minha mãe estava recebendo um telefonema para participar de um programa. Feliz com o convite, ela compareceu no
horário combinado, ensaiou e encontrou os colegas. Depois do ensaio, o pessoal costumava fazer uma horinha no bar ao lado da TV Tupi, na Urca, e a convidaram para
ir junto. Ela foi e, claro, bebeu alguma coisa por lá.
Quando voltou, um pouco atrasada, já estava falando meio mole, embora ainda não muito tomada pela bebida. Mas foi o bastante para Lúcio perceber, ao encontrá-la
no corredor, e cancelar sua participação no programa. Ela tentou falar com ele, dizer que
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estava sob controle, que podia cantar, Nuno também tentou ponderar, mas Lúcio ficou inflexível. E foi além: proibiu a entrada dela na emissora.
A mágoa que ela sentiu foi enorme e a acompanhou para sempre. Quando Nuno me contou, em princípio também fiquei chateado. Mas, com a cabeça mais fria, vi que no
seu cargo, e numa programação ao vivo, o Lúcio não podia correr nenhum risco. Lamentavelmente, minha mãe não estava mais tão segura nem forte o bastante para evitar
o mal que ela mesma fazia a sua vida. Episódios como esse começaram a se tornar mais freqüentes em seu dia-a-dia.
Numa dessas vezes, eu estava junto. com Chico Anysio e outros artistas, fomos fazer um show para a Prefeitura de Salvador. O show agradou e o prefeito ficou tão
satisfeito que convidou a todos para visitá-lo no dia seguinte. Eu estava aliviado, pois até o final não havia aparecido certo amigo e grande fã de minha mãe, lá
de Salvador. Além de apaixonado por Dalva, também gostava demais de uma bebida.
Os gays sempre foram fascinados por ela, e esse era um dos mais fanáticos. Seu nome era Sílvio Lamenha, trabalhava com antigüidades, era um sujeito inteligente
e grande papo. Quando não bebia. No jantar, ele apareceu e não consegui mais segurar minha mãe. Ele a carregou para a noite de Salvador e sumiram. Só fui saber dela
de madrugada, quando alguém ligou pedindo que eu fosse buscá-la, pois estavam completamente embriagados num bar que o dono queria fechar. Encontrei-os num boteco
de quinta categoria, junto de alguns pedreiros.
Outra história dela com Sílvio Lamenha aconteceu quando Luís Vieira estava conduzindo um programa de TV em Salvador e convidou minha mãe para participar
de um quadro especial, com bom destaque. Como amigo fraterno, Luís sabia da fase que ela estava atravessando. Assim, preveniu a produção e os outros artistas para
evitar qualquer
bebida no estúdio. Mas ele não podia imaginar
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que o perigo surgisse com o tal Lamenha, que queria mais era que o circo pegasse fogo. Ele trouxe escondido uma garrafinha de conhaque.
Quando Luís viu, já era tarde - ela já tinha tomado o primeiro gole, e ele a colocou para cantar um número apenas. O programa que ia homenageá-la como convidada
especial teve de ser encurtado, porque minha mãe já não se entendia, ficou completamente embriagada. Na fase em que estava- ela praticamente não comia -, não tinha
resistência alguma. Um gole apenas era fatal.
Quando acontecia algum incidente grave assim, nossa reação era a de que precisávamos tomar alguma atitude: fazer um tratamento, interná-la, qualquer coisa. Mas não
tínhamos nenhum controle sobre ela. Dalva tinha a sua casa, o seu marido, a sua vida, enfim. Cheguei a discutir isso com Nuno, que paradoxalmente não bebia nada.
Mas, em seu amor, ele não queria arriscar nada que a magoasse. Achava que teria pulso bastante para cuidar dela. À sua maneira e com muita dedicação, até que ele
tentou.
Só quem já passou pelo drama do alcoolismo em família ou na esfera mais íntima de amigos sabe aquilatar todo esse processo de minha mãe, o círculo vicioso em que
passou a viver. Quando estava sóbria, era a mulher mais doce do mundo. Parecia ser impossível que fosse ela a mesma pessoa que sumia pelas ruas, nos mais vulgares
botequins, completamente desguarnecida de auto-estima.
Em seu amor por Dalva, Luís Vieira me conta que, mesmo assim, não desistiu dela. Lembra quando estava apresentando um programa de TV em Porto Alegre e recebeu um
telefonema de Laércio Alves, autor de "Bandeira branca" e amigo dela, pedindo que a convidasse para seu programa na capital gaúcha. E acrescentou que seria bom
se Luís desse uma força, porque ela estava muito mal de dinheiro.
Ele não resistiu ao apelo. Tentou fazer Laércio garantir que ela não beberia. Mas, sabendo que não havia garantia nesses casos,
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resolveu arriscar, mais uma vez, e aceitou levá-la. Apesar do enorme carinho por ela, estava preocupado, pois havia um programa de televisão a respeitar, assim
como um grande público lotando o espaço onde se realizaria o show.
Lembrando-se do outro incidente, cercou-se de mais cuidados ainda. Pediu a colaboração de todos. Como a cantora Rosemary também estaria no programa, colocou-as no
mesmo camarim. Mas, papeando nos corredores, eis que aparece alguém e oferece uma dose de conhaque a Dalva, com a desculpa do frio que fazia. Foi o bastante para
ela se perder. Ao ser chamada, foi cambaleando e não conseguiu cantar absolutamente nada.
Luís gentilmente a tirou do palco. Depois que ela se foi, ele fez um discurso para aquele povão que lotava o auditório, descrevendo o que minha mãe estava passando,
a sua vida problemática. Fez um discurso que, ele mesmo acredita, parecia ter sido iluminado por Deus. O fato é que o povo começou a aplaudir de pé e a chorar feito
criança, numa demonstração de respeito a uma mulher que estava entregando os pontos. Infelizmente, não se encontram muitos Luís Vieira pela vida afora, não.
Mas "assombrações" aparecem algumas. Não sei explicar como acontece, mas sinto que existe um tipo de pessoa que adora provocar outro ser humano que está num momento
de fragilidade, fazendo com que aborte o sucesso que poderia ter - seja tentando não beber, no caso do alcoólatra, ou não comer, no caso do obeso em dieta. É aquela
pessoa que oferece um drinque ao alcoólatra ou um docinho ao obeso.
Existia na TV Record, no fim dos anos 60, um programa chamado Quem tem medo da verdade, dirigido por Carlos Manga e Wilton Franco. Nele, o convidado respondia a
um verdadeiro tiroteio de perguntas de um júri ávido por dramas, que analisava e se
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pronunciava a respeito de sua vida particular, refestelando-se com a desdita de quem quer que fosse. Eram os algozes da televisão ensaiando uma nova Inquisição,
os donos
de uma verdade paga pelos patrocinadores, onde a cretinice e a miséria dos inquisidores se alimentavam do infortúnio dos convidados.
Minha mãe já estava num processo adiantado de autodestruição. E foi assim que aceitou ir ao tal programa, dando com seu nome enorme audiência a quem se alimentava
das desgraças humanas. Só que ela já não tinha mais o cuidado de evitar que algo manchasse mais ainda a sua imagem, aonde quer que fosse. Assim, corajosa e ao mesmo
tempo assustada, ela se sujeitou ao Quem tem medo da verdade, abastecida do seu "elixir da coragem", o conhaque, e aí os membros do júri deitaram e rolaram. Arrasaram
com ela, dissecaram sua vida, invadiram seu íntimo e sua dignidade, de tal forma que, anos depois, ela ainda chorava ao se lembrar do programa, dos produtores e
dos jurados.
Sei que alguém dirá: "Mas ela poderia ter lutado, poderia ter tomado outra atitude, não permitindo tudo
aquilo" - É quando afirmo que minha mãe era muito frágil.
Foi frágil com meu pai, foi frágil com Tito, foi frágil para lutar contra a própria destruição. Ela já não reagia mais, principalmente nos últimos anos, quando
algo se quebrou de vez dentro dela.
Outro artista esmagado foi Grande Otelo. Na verdade, o programa vivia somente desse tipo de artistas ou personalidades, pessoas que tivessem dificuldade em dirigir
seus destinos com o rigor que nem sempre o seu talento permitia. E, quando penso nisso, me vêm sempre algumas perguntas: por que Judy
Garland dirigiu sua vida na direção que dirigiu? Por que Piaf também?
Por que Elis? E Garrincha? E Hemingway? E Marilyn? Por que Otelo também?
Por que tantos, com o potencial de mudar o mundo ao redor, se voltam contra si próprios e transformam seus
caminhos em total destruição do que ofereceram antes?
É claro que não conseguem
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anular o que representam, porque o que nos deixaram foi sinceramente grande e forte. Mas os que foram o veículo e a voz de um talento especial matam, ou tentam
matar, o seu interior, não se importando que, eventualmente, possam estar matando tanta beleza que um dia construíram.
Eu não estava no Brasil quando isso aconteceu. Ficava sabendo de tudo por intermédio de meu irmão ou de pessoas amigas. E garanto: não foi fácil suportar a idéia
de que minha mãe estava se permitindo passar por tudo isso. Era terrível.
Minha mãe sempre teve uma letra bonita. com o tempo, suas cartas passaram a chegar com uma letra feia, torta, fora de alinhamento. Comecei a ficar preocupado e
a perguntar para o meu irmão Bily o que estava acontecendo. Ele me dizia que nossa mãe estava adoentada, mas sem carregar muito nas tintas. Penso que para não me
preocupar e também para preservar a investida que eu estava fazendo em minha carreira no exterior.
Foi quando decidi voltar ao Brasil. Apesar do que meu irmão falava, sentia que havia algo muito errado. E olha que havia começado uma trajetória de peso nos Estados
Unidos. com o Grupo Bossa Rio, cantei ao lado de Sérgio Mendes por quatro anos, e já havia feito meu primeiro filme na Universal Studios, ao lado de Richard Widmark.
Mas precisava estar perto dela. Era algo imperativo. Um chamamento. Tranquei minha matrícula no Screen Actors Guild, em Hollywood, fiz uma pequena temporada no México
para levantar mais dinheiro e voltei.
Quando cheguei ao aeroporto do Rio, ela me esperava. Foi o maior susto da minha vida. Minha mãe estava completamente desfigurada. O desastre já havia deixado marcas
horríveis em seu rosto e agora a bebida também cobrava seu preço. A cirrose transformara minha bonita mãe numa figura muito feia. A dor que senti ao vela daquele
jeito fez com que a abraçasse chorando ali mesmo no aeroporto. Suas mãos, outrora tão bonitas e leves, firmes e expressivas, estavam murchas, sem vida; a pele do
rosto, ressecada; e os
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olhos eram qualquer coisa de desesperador, não tinham mais o brilho e o viço que me acostumei a ver durante a vida inteira. Seu andar era cambaleante, indeciso.
Eu pegava em seu braço e a pele parecia solta, flácida, sem vida. A doença havia tomado minha mãe por completo.
A partir daí, não voltei mais nem para o México nem para Los Angeles. Decidira ficar com ela, pois senti nitidamente que estava muito perto do fim e que não dava
mais para a gente se distanciar. Ainda pude conviver com ela mais um ano e meio, cantamos juntos no antigo Vivará, num show em que também estava Leila
Diniz. Procurei ficar do seu lado ao máximo.
Todo o problema de minha mãe com a bebida começou muito antes, ainda no casamento com Herivelto. Nessa época, porém, ela bebia num contexto social. Dizia-se: "A
Dalva gosta de uma bebidinha". Não era ainda uma coisa absurda que criasse maiores problemas. Mas era o início de um triste final que iria trazer tanto
sofrimento a ela.
Ao procurar o testemunho de quem conviveu com eles, alguns comentaram que meu pai ficava louco quando ela permitia que suas irmãs ficassem muito perto. Minhas tias
Lila e Nair também gostavam de beber, e, com elas do lado, a alegria, a animação, tudo era motivo para alguns drinques a mais. Meu pai sentia que, longe delas,
minha mãe ia mais devagar com o copo. Era mais fácil segurá-la. Ele também gostava de beber, mas era de uma maneira bem mais controlada.
Arrisco dizer que, se não tivesse sido tão traumática a separação de meus pais, talvez Herivelto não tivesse amargado tamanha sensação de perda em sua vida ou não
tivesse sentido se quebrar o grande encanto que o Brasil tinha com sua música.
E, se não tivesse sido tudo como foi, talvez minha mãe não tivesse experimentado o sabor de um sucesso tão rápido, tão explosivo, baseado no seu próprio infortúnio,
e, quem sabe, poderia ter saboreado uma escalada mais tranqüila, uma ascensão baseada na
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verdadeira força do seu talento. Mais calma, mais serena, mais duradoura.
Quem poderá nos dizer que, se não fosse assim, ela teria até vivido mais, sem traumas a corroer seu interior e se transformando na sua autodestruição?
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O SONHO DO SHANGRI-LÁ
DE VOLTA DO MÉXICO, nos primeiros tempos, fiquei em Jacarepaguá. Depois, acostumado a ter minha própria casa, aluguei um apartamento ao lado do Hotel Sheraton. Era
um dúplex minúsculo, onde minha mãe gostava de ir. Sentava-se em frente da janela e permanecia alheia admirando o mar. De vez em quando, ficava comigo por uns dois
dias e gostava de cozinhar seu famoso macarrão só para nós dois.
Nos fins de semana, a gente inventava as maiores reuniões em sua casa. Era churrasco, era macarrão, era tudo o que pudesse acontecer para deixá-la um pouco mais
contente. E como ela ficava feliz de nos ver e aos nossos amigos em volta da piscina, que construíra para nos agradar! Eram reuniões muito gostosas. Ela estava com
Nuno e eu sentia que aquele rapaz, quase da minha idade, tomava conta dela de uma forma tão carinhosa quanto um filho.
Era um rapaz simples, de mais ou menos 28 anos, de família de portugueses, que um dia se encantou com minha mãe, já com quase
50 anos. Conheceram-se quando ele foi trabalhar para ela como motorista e secretário. No início, ela ainda relutou em aceitar o assédio, mas a solidão e total carência,
após a separação de Tito, a fizeram aceitar o carinho de Nuno, que realmente se apaixonou por ela.
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Depois que minha mãe faleceu, não soube mais nada dele. Só recentemente tive a triste notícia de que havia sofrido um desastre de automóvel e morrido com mulher
e filho. Não consegui mais detalhes, mas parece que as circunstâncias em que Nuno e sua família vieram a falecer foram muito parecidas com o desastre que Dalva
e ele sofreram.
A vida de minha mãe em Jacarepaguá, na casa que passava por mais uma reforma, foi ficando muito triste. Ela estava aumentando a casa, dizia, porque queria um quarto
para cada irmã e um quarto para cada filho. Sonhava em ter todos nós morando com ela de novo. Uma característica forte de minha mãe era o sentido de proteção que
nutria em relação às irmãs. Procurava de todas as maneiras ter Margarida, Lila e Nair a seu lado o máximo de tempo possível e ajudá-las e protegê-las. Queria que
fossem morar com ela. Teriam seus quartos privativos e toda a assistência. Mas com uma condição: que não levassem seus maridos. Ela considerava todas mal casadas
e pretendia apoiá-las para que se separassem.
A casa foi se tornando um elefante branco, enorme, e um sorvedouro de dinheiro, que andava cada vez mais escasso. Dalva tinha de dormir num quartinho improvisado,
cheio de poeira. A reforma tirou totalmente seu conforto. Ao lado dela, Nuno agüentou esse momento com muita dignidade. Acho que, em sua simplicidade, sentia que
ela precisava ter um elo com alguma coisa, para não deixar apagar a sua chama de vida. Precisava ter algo para lutar. Então, ele a incentivava, trabalhando na obra,
dizendo que ela era uma estrela e tinha de ter uma casa como as grandes estrelas norte-americanas tinham.
As atuações nessa fase, mesmo esparsas, ainda seriam suficientes para mantê-la relativamente bem, mas essas sucessivas reformas desequilibravam completamente sua
vida financeira.
Nessa confusão de reforma, a presença dos amigos já não era tão freqüente. Minha avó e meu avô não moravam mais lá. Já ia longe o tempo em que ela chegava em casa
de madrugada, vinda
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de um show numa boate de lona qualquer (os circos), cansada e com o cachê que havia ganho num lenço amarrado. Os circos pagavam em dinheiro recolhido dos ingressos
e é fácil imaginar os trocadinhos que era obrigada a trazer num lenço de cabeça.
Naquela época, minha mãe chegava, colocava tudo em cima da mesa e minha avó começava:
"Preciso de tanto pra mercearia, de tanto pró açougue, preciso de tanto pra tinturaria.
Muitas vezes, perdia-se o controle do dinheiro totalmente. E, quando minha mãe dava pela coisa, só sobrava o lenço. As discussões muitas vezes eram fortes:
"Mas, mãezinha, eu já dei todo o dinheiro que você pediu no outro dia, todas as contas deveriam estar pagas. E, no entanto, você vem me pedir mais agora?".
Isso era motivo de muita tristeza para ela, porque jamais procurou controlar o dinheiro que deixava com minha avó - afinal era sua mãe. Mas era deixar o dinheiro
com ela, e desaparecia. Vale lembrar que meu avô, que gostava muito de sapatos, só calçava DNB, famosa marca masculina, de legítimo cromo alemão.
A vida inteira minha mãe procurou amparar sua família, principalmente mãe e pai. Nessa nova reforma, construiu um apartamento completo e independente no fundo da
casa para eles. Quando falou com minha avó Alice para ver com o marido (era seu segundo marido, o avô José, considerado como pai por minha mãe) se queriam morar
definitivamente com ela, nesse apartamento, meu avô mandou dizer que só aceitaria se tivessem a escritura do apartamento. Caso contrário, não iria.
Minha mãe ficou arrasada com a resposta. Ela se sentia sugada pela família. Sentia que abusavam de sua generosidade. Em meio a tanta decepção, Nuno era seu amparo,
permanecendo a seu lado como fiel escudeiro da grande estrela.
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AGNALDO TIMÓTEO, ANTÔNIO MARIA E MADAME SATÃ
GRANDE CANTOR E GRANDE CORAÇÃO, Agnaldo Timóteo conta uma passagem bem engraçada que o envolveu com minha mãe. Ele trabalhava para Angela Maria, nos idos dos anos
50, como motorista particular. Um dia, a Sapoti deu a ele uma incumbência: toda segundafeira, deveria acender uma vela na Igreja das Almas, na avenida Passos. Não
poderia se esquecer disso sob hipótese nenhuma, pois era um compromisso que ela tinha assumido.
Numa dessas segundas, ele foi levar um rapaz que estava namorando Angela até Jacarepaguá. Deveria ficar esperando para
trazê-lo de volta. E o tempo foi passando,
a noite chegando, e nada de ele se ver livre para cumprir a promessa de Ângela. Já tarde e vendo que não havia a menor chance de estar na Igreja das Almas a tempo,
Agnaldo começou a pensar que o que valia para o mundo espiritual era a intenção, não o endereço do gesto. Resolveu então acender ali mesmo. Saiu do carro, olhou
à sua volta, procurando um canto mais escondido. Viu a entrada de uma casa de muros altos e portão grande. Não havia nenhum sinal de vida por ali, tudo quieto. Ele
não perdeu tempo: acendeu a vela ali mesmo, num cantinho da entrada da casa.
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O que ele não podia imaginar era que a casa era de Dalva. E, quando já estava entrando no carro para sair, foi interceptado por Muno, que queria saber a razão de
alguém acender vela em frente da casa deles. Agnaldo tentou explicar, mas só piorou as coisas quando disse que trabalhava para Ângela Maria e a vela era dela. Nos
dias seguintes, os jornais estampavam as manchetes: "Macumba na porta de Dalva". "Angela Maria faz macumba para Dalva." Foi um alvoroço.
Anos depois, já cantor famoso, Agnaldo diria em entrevistas que o mal que poderia desejar a Dalva era o mesmo que desejaria para sua mãe. Mas, até que se provasse
que a promessa para a sua patroa não era macumba, muita confusão aconteceu.
Corria mais ou menos o ano de 1960, quando eu, garoto cheio de esperanças e sonhos, vivia nas ruas de Copacabana, fascinado com o mundo da música. Certa noite,
fui parar num restaurante que existia na esquina das ruas Fernando Mendes e Nossa Senhora de Copacabana, chamado Lê Bec Fin, sem saber que ali era o ponto favorito
de um dos grandes compositores da música brasileira, Antônio Maria. Aliás, soube depois que ele morava no mesmo quarteirão.
Eu estava sentado bem no fundo, com alguns amigos, quando o percebi tentando atravessar a rua em direção ao Lê Bec Fin. De onde eu estava, via sua figura vindo
e crescendo à medida que se aproximava. E aí pude reparar como Maria era grande. Ao pôr os pés dentro do restaurante, sua estatura dominou o ambiente. Eu não conseguia
tirar os olhos dele, fascinado com a visão do autor de Dorme, menino grande", canção que estava fazendo um tremendo sucesso com Nora Ney. De repente, ele me vê
e vem em minha direção. Eu não entendia por quê. Quando chegou à minha frente, disse muito sério:
O, garoto, você sabe que qualquer dia vou matar seu pai?" "Matar meu pai, seu Maria? Por quê?"
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"vou matar, sim, aquele cretino me arrasou e acabou comigo!"
"Mas o que ele fez, seu Maria?"
"Ele compôs o samba que eu queria ter composto, 'Caminhemos'. Aquele samba era eu que tinha de ter feito antes dele!"
Passado o susto, pude rir e apertar a mão daquele sujeito genial e bem-humorado. Fiquei ainda mais fã de Antônio Maria depois desse encontro.
Um bairro famoso do Rio, freqüentado pela marginalidade e pela boemia, que mereceu a atenção de Herivelto e até um samba dele, foi a Lapa. Essa homenagem, "A Lapa",
se transformou num dos grandes sambas de meu pai. Ele não era freqüentador assíduo, mas volta e meia aparecia para encontrar seu compadre Benedito Lacerda, que às
vezes se apresentava ali ou no Mangue, como era conhecida a "zona quente" do Rio. Benedito tocava até em calçadas e botequins baratos, junto com outros músicos,
para complementar o orçamento. Recolhia uns trocados do público, no chapéu ou mesmo no fundo do pandeiro.
Um sujeito se tornou uma verdadeira lenda nesse ambiente: Madame Satã. Era praticamente o dono da Lapa e o grande valente da época: brigava com a polícia, tombava
camburão, batia em vagabundo. Homossexual, virava o cão quando alguém, inadvertidamente, o chamava de veado. Batia em quem quer que fosse. Era um monstro. Muito
forte.
Madame Satã chegou a freqüentar algumas festas de aniversário de minha mãe, em Jacarepaguá. Era uma figura engraçada: baixo, muito parrudo, machão na postura, mas
dava um pouco de bandeira na sua fala efeminada, meio cantada. Extremamente educado, era muito carinhoso conosco e
com minha mãe. Olhava para ela como para uma
deusa, completamente fascinado.
Como todos sabiam na Lapa, ele admirava muito o Trio de Ouro e mais ainda Dalva de Oliveira. com a briga entre meu pai e
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rninha mãe, Madame Satã, como todos os gays do Brasil, tomou as dores de minha mãe: chorava com suas canções, sentindo que sua doce Dalva estava sendo injustiçada.
Um dia, meu pai, sem saber de nada, ficou frente a frente com Satã, na Lapa. Este, polidamente e com todo o respeito, chamou meu pai e disse:
"Seu Herivelto, por favor, eu respeito muito o senhor e o aconselho a não voltar aqui na Lapa. Gosto muito da Dalva, mas quem fizer mal a ela, eu mato! E eu não
quero fazer nada com o senhor, portanto desapareça daqui, seu Herivelto".
Meu pai, é claro, preferiu não arriscar e se manteve bem afastado da Lapa.
Num tempo em que meu pai andava meio descrente da carreira (1974), o José Tjurs, dono do Hotel Nacional no Rio o convida para montar um grande show - daqueles do
tempo dos cassinos
- junto com o Caribé da Rocha. Começam a contratar a equipe: bailarinos, músicos, coreógrafo, figurinista... Herivelto participaria também com seu Trio de Ouro,
ao lado de Lourdinha Bittencourt e Raul Sampaio. No elenco trabalhavam a Eliana Pittman e o Altamiro Carrilho - meu querido amigo e mestre na flauta! - e a direção
do espetáculo, chamado Brazilian Follies, era do Maurício Sherman.
Uma tarde, durante os ensaios, o Tjours traz a notícia de que o show iria representar o Brasil no Congresso da ASTA (American Society of Travei Agent) em Acapulco,
no México.
A equipe vibra! E o Tjurs se reúne com os organizadores Sherman, Herivelto e Caribe - para discutirem o que acrescentar ao show nessa investida internacional. Foi
unânime a idéia de que Precisariam contratar um apresentador, um mestre-de-cerimônias de preferência que também atuasse no espetáculo - com domínio dos idiomas
inglês e espanhol. Meu pai então sugeriu a eles que
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eu - recém-chegado de Los Angeles e do México - poderia atender a essa necessidade, além de trazer mais brilho para o elenco. Acharam ótima a sugestão. E pediram
a Herivelto para me levar até lá para conhecer o show e discutir a possibilidade de um contrato.
Logo que cheguei para o ensaio, cheio de gente, dei de cara com a Eliana Pittman, que me fez a maior festa. Até então, ela não sabia da possibilidade de eu entrar
no show. Na sala do Tjurs, junto com o Sherman e o Caribe, recebi oficialmente o convite e definimos meu contrato: eu seria o apresentador em inglês e espanhol
de todo o show, além de passar a ser seu destaque masculino. Só que não contávamos com o estrelismo da Eliana, que quando soube da minha contratação ficou louca,
pois queria ser a única estrela do show, sem outros nomes a concorrer com ela. Começou uma guerra sem precedentes. Logo nos primeiros shows no Hotel Nacional, ainda
no Rio, tivemos problemas com a Eliana e a Ofélia, mãe da artista. Primeiro era a questão do nome: a Ofélia não permitia que o nome da filha ficasse depois do meu,
ou do Trio de Ouro. Era um clima terrível, de muito ciúme. Mesmo assim fomos até Acapulco.
Lá, nos primeiros shows, o Sherman, percebendo que poderia haver problema se eu entrasse antes ou depois da Eliana - que não se conformava que eu entrasse primeiro
apresentando o show em inglês e espanhol -, preferiu colocar o Trio de Ouro com meu pai, o Raul e a Lourdinha entrando antes ou depois dela. Tenho de explicar que,
na época, a Lourdinha Bittencourt tinha um problema na perna e no pé, e não podia se locomover com muita rapidez; assim, qualquer marcação no palco teria de respeitar
as suas condições físicas.
- Ora, o microfone da Eliana, quando ela terminava seu número, tinha de ser entregue a meu pai ou a Lourdinha. Teimosament, ela não fazia isso, a introdução da
música começava, e nem meu pai nem a Lourdinha chegavam a tempo de iniciar seus
números Por várias vezes, o maestro teve de parar, contar e dar a
introdução
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novamente. Não preciso explicar, num show de blocos bem amarrados, como ficava feio. Isso aconteceu várias vezes, e sempre meu pai nos bastidores pedia a ela delicadamente
que não fizesse aquilo, pois estava prejudicando o trabalho de todos. Além do desrespeito com a situação da Lourdinha. Imaginem a Lourdinha com o pé doente tendo
de correr!
Mas não houve entendimento. Ela continuou a agir assim, e numa dessas vezes, ao terminar a apresentação do Trio, a Lourdinha saiu chorando. Meu pai, já bem nervoso
com aquilo, foi até a Eliana, e controladamente pediu mais uma vez:
"Minha filha, por favor, não faça mais isso, eu podia ser seu pai, respeite um pouco mais! Veja a Lourdinha, ela está se prejudicando, seu pé não permite que corra
tanto, por favor!!".
Ela se virou e ofendeu meu pai, dizendo que, se ele era um velho, ficasse em casa e não lhe enchesse a paciência. E mais um monte de impropérios. Eu estava chegando
perto deles, vi meu pai ser ofendido assim por ela, e tomei as suas dores. Ainda tentei ponderar com ela. Mas não adiantou.
"Você não tem nada com isso, Pery; aliás, nem devia estar nesse show!", desabafou Eliana.
E, num gesto inesperado, virou-se e me deu uma sapatada na cabeça. Surpreso, tentei segurá-la. Começamos a nos debater, ela segura minha camisa e a rasga. Meu pai
tenta apartar, a Ofélia vem chegando, vê aquela cena e parte para cima do meu pai.
Olha, foi uma confusão! Só sei que nos embolamos os quatro, rolamos no chão, e eram tapas, sapatadas, roupa rasgada, gritaria, enfim, os quatro engalfinhados. Cada
um saiu com galo na cabeça, olho roxo, boca sangrando. Foi uma briga feia. E inusitada na minha vida, pois eu realmente nunca fui de briga.
Dá para imaginar como ficou o clima entre nós depois disso, não? Durante muitos anos, quando nos encontrávamos, eu, a Eliana e a Ofélia, evitávamos qualquer aproximação.
Somente agora, mais recentemente, é que voltamos a nos falar...
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RAUL SAMPAIO, PARCEIRO DE VIDA
LURDES ERA OBSTINADA em refazer o Trio de Ouro. Sabia que era o fermento da vida de
Herivelto e insistiu muito com ele para acertar com Raul Sampaio a volta do
Trio e para, juntos, procurar nova cantora. Ao aceitar, muito honrado, o convite de meu pai, Raul também foi morar na casa dele na Urca.
Eu atravessava um momento de total inquietação interior, no auge da adolescência, e passei a estar muito tempo com Raul. Ele foi um grande amigo e até contribuiu
em minha formação de vida. com sua personalidade tranqüila, de bem com a vida, representou um oásis em minha juventude turbulenta. Nossos longos papos, os conselhos
carinhosos, a respeitosa visão da vida foram fundamentais para a minha formação.
Raul me ensinou o gosto pela leitura, pela poesia. Recomendou-me muitos livros para ler, principalmente os de autores espíritas, como Alan Kardec. E até o confuso
Pietro Ubaldí, do qual li A grande síntese. Em minha simplicidade juvenil, devolvi a Raul dizendo:
"Desse aqui não entendi nada". '.
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Foi também por intermédio de Raul que conheci um livro que me marcou muito, Eu e outras 'poesias, a única obra de Augusto dos
Anjos.
Quando o procurei para contar que escreveria sobre meu pai, disse que suas impressões eram muito importantes para mim, porque ele havia sido o grande parceiro de
vida de Herivelto e trabalharam juntos por quarenta anos. com o habitual bom senso, Raul expressou sua preocupação sobre como eu abordaria a figura dele:
"Pery, é necessário muito cuidado para falar de seu pai. Ele era uma personalidade controvertida, com facetas muito feias amplamente divulgadas. Mas não podemos
esquecer que também tinha o seu lado bonito, nem sempre tão conhecido".
Numa primeira impressão, lembra Raul, Herivelto era tido como antipático, mas se a pessoa vencesse isso, aprendia a gostar dele e descobria o brilhantismo de sua
conversa, o seu humor picante e inteligente. Ao mesmo tempo que era uma pessoa egocêntrica, também sabia ser generoso com os amigos. Muito polêmico, comprava brigas
para valer. Era fiel aos amigos e lutava por eles.
Raul ressaltou outros aspectos controvertidos de meu pai. Sempre autoritário e prepotente, era muito mais simpático com os humildes do que com as pessoas de posses.
Por isso, era amado pelas pessoas mais simples, como os integrantes de sua escola de samba ou os freqüentadores do centro espírita. Muito metódico em sua vida financeira,
Raul considerava Herivelto um gastador e vivia aconselhando-o a comprar alguns imóveis, a fazer um patrimônio. Meu pai respondia:
"Pra quê, Raul? Pra deixar pra filho? Isso é bobagem!". Conta Raul que, em seu tempo na Urca, meu pai sempre dormiu até mais tarde, e como Lurdes queria companhia
para ir à praia, ele sempre a acompanhava. Iam para as pedras de manhã cedo, em frente da casa, e ficavam tomando sol e desfrutando da água, até que meu pai fosse
se juntar a eles. Nessas manhãs, o papo rolava e, com a intimidade que passou a existir, muitas confidências
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eram feitas. Num desses dias, conversavam sobre meu pai, sobre o peso da separação dele e de Dalva, e Lurdes desabafou:
"Sabe, Raul, deixa eu explicar uma coisa: eu não amo o Herivelto como o grande amor da minha vida. Eu gosto dele. Sei que deixou sua mulher por mim. Considero-o
um homem muito inteligente, um sujeito trabalhador. Enfim, um bom chefe de família, numa situação financeira que sei que vai melhorar, à medida que passar a grande
crise de sua vida... Tudo isso contribui para que eu fique com ele. Mas garanto que ele não é o meu grande amor".
Ao escutar isso de Raul, senti que se encaixava no que sempre observei. E respondia a certas perguntas que fazia a mim mesmo e que não haviam ainda sido esclarecidas.
Para Raul, mesmo não tendo uma relação tão apaixonada com meu pai, ela era muito dedicada a ele e empenhada em fazer o casamento funcionar.
Herivelto era muito atencioso com Lurdes, comenta Raul, mas sem beijinho, sem chamego. Tinha orgulho e vaidade em mostrá-la, mas não existia ternura nele. Aliás,
somente com os netos ele viu Herivelto ser carinhoso. Sentia que meu pai era muito dependente de Lurdes. Quando viajavam a trabalho, não sossegava enquanto não
ligasse para ela. Por fim, Raul me deu sua opinião sobre a vida amorosa de meu pai:
"Herivelto amou desesperadamente a Lurdes. A Dalva era apenas a mulher do Trio, que era a vida dele. Penso que, primeiro, ele casou com a Dalva-cantora, depois
com a Dalva-mulher. Nesse esquema, ele juntou tudo. O Trio estourou, o dinheiro dos dois ficava na sua mão, ele controlava tudo. com a Lurdes foi diferente, nela
ele viu apenas a mulher".
Raul Sampaio foi mais um companheiro fiel do meu pai do que um parceiro de música, apesar de terem feito algumas juntos. Mas não foi com Herivelto que ele se mostrou
o compositor sensível e fértil que é. Teve canções gravadas por artistas como Orlando Silva, Angela Maria, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, Maria Bethânia e um conterrâneo
de Cachoeira do Itapemirim, Roberto
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Carlos, que consagrou sua canção "Meu pequeno Cachoeiro". com meu pai, ele atravessou quatro décadas de trabalho com o Trio de Ouro, passando por três cantoras:
Noemi Cavalcanti, Lourdinha Bittencourt e, nos últimos anos, Shirley Don.
Aliás, Shirley me contou uma historinha com meu pai. Disse que era motivo de muito orgulho para ela trabalhar ao lado de Herivelto, partilhando de tantas homenagens
emocionantes que ele recebeu nos últimos tempos, e comentou sobre sua famosa disciplina no trabalho. Ele era muito respeitoso e delicado com ela. Porém, passado
um ano da morte da esposa, quando começou a se recobrar, mudou de postura. Começou a se insinuar, a convidá-la para jantar. Shirley, não querendo magoá-lo nem estragar
o trabalho deles, foi disfarçando e fazendo que não entendia.
Não adiantou, ele foi mais fundo e se declarou a ela. Disse que queria refazer sua vida e a pediu em casamento. Muito surpresa e sem graça, ela foi honesta com
meu pai, dizendo que tinha admiração por ele, mas sentia um carinho quase que de filha. Herivelto não se deu por vencido e ainda tentou argumentar que poderia lhe
oferecer uma boa situação de vida. Diante disso, Shirley teve de ser mais enfática e dizer que realmente não havia a menor chance, pois era muito mais jovem que
ele - tinha uns 38 anos e meu pai 80 - e sonhava ainda com um casamento por amor e não por conveniência.
Essa paixão de meu pai por Shirley rendeu situações engraçadas. Um dia, fui vê-los participar de um concurso de música sacra numa igreja do centro do Rio. Ele era
convidado especial para cantar "Ave Maria no morro" e insistiu para que ela fosse sua acompanhante nessa homenagem. Como Shirley já havia me contado sobre a paquera
de meu pai, sentiu-se à vontade para me pedir ajuda:
"Pery, vê se fica perto e não me deixa sozinha com seu pai. Ele está terrível hoje, não me dá folga!".
Respondi que me poupasse, eu não queria me meter nos assuntos dele. Além do mais, tinha de cuidar do meu filho
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Bernardo, que estava comigo e, como toda criança, não conseguia ficar parado. Mesmo assim, a toda hora Shirley estava perto de mim De repente, ela me chamou para
fora
da igreja e, rindo muito, me contou:
"Pery, ficou pior ainda a situação. Agora, seu pai, me vendo com você o tempo todo, ficou nervoso e cismou que prefiro você a ele. Está morrendo de ciúme!".
Meu pai não era brincadeira em assunto de mulher...
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SÍTIO DE BANANAL
MEU PAI TINHA VERDADEIRA PAIXÃO pelo sítio de Bananal, no interior de São Paulo, bem perto de Barra Mansa. Foi comprado depois que ele se separou de minha mãe. Antes,
a propriedade pertencera a uma tia de Messias, a dona Nair. O terreno da entrada do sítio pertencia a Messias. Preocupado com a falta de patrimônio de meu pai,
insistiu muito com ele para comprar. Herivelto só concordou depois que o amigo cedeu a parte dele também. Ganhou em troca do seu pedaço de terra, ele conta, um
carro velho que estava parado em casa.
É um lugar maravilhoso, ao pé da Serra da Bocaina, com um clima fresco, muito mato e duas nascentes dentro do terreno. Uma delas meu pai represou, formando uma
deliciosa piscina de água corrente. A região é povoada de construções coloniais, incluindo a sede, ainda erguida por escravos. Quando crianças, adorávamos ir para
lá com meu pai. Toda aquela liberdade nos fascinava. O bom humor que tomava conta dele também nos alegrava.
Meu pai calçava umas botas e se metia no mato. Curtia muito reunir toda a família, os amigos da música e o pessoal mais chegado que freqüentava o centro espírita.
com o tempo, passou a ser muito querido pelo povo de Bananal, porque propiciava um
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acontecimento anual que a Igreja patrocinava e o prefeito tirava uma casquinha. Usando seu prestígio, ele convidava alguns artistas e armava uma grande festa. Colocava
todo mundo dormindo em seu sítio e à noite iam fazer o show num palanque armado no centro da cidade.
Marlene, Jerry Adriani, Virgínia Lane, Grande Otelo, Carmélia Alves, Wanderley Cardoso, Ribamar, José Messias, Bené Nunes, Milton Gonçalves, Emilinha Borba foram
alguns artistas que aceitaram o convite de meu pai. Eu também participei. Muitos músicos compareciam em troca de cachê simbólico para apenas tomar parte da grande
festa que meu pai fazia no sítio. Essa era a verdadeira razão do encontro.
Em certas ocasiões, era emocionante ver artistas sem tanta evidência aceitarem o convite e, no palco, exibirem todo o talento que um dia os consagrou. Saíam aclamados
pelo público. com o passar do tempo, o sítio virou a grande terapia de meu pai. com a solidão da Urca se acentuando, ele escapava para o mato, colocava as botas
e subia e descia o terreno, sem cansar. Passava dias maravilhosos. De volta para casa, se a gente perguntasse como estava se sentindo, respondia:
"Não sei, ando muito cansado. Minhas pernas doem, minhas costas doem, minha mão tá incomodando quando toco o violão!".
Era só ele resolver voltar para o sítio, e pronto. Nada mais doía. Aquele refúgio foi sua grande válvula para a sobrevivência nos últimos anos. O mais engraçado
é que muitas vezes ficava sozinho mesmo, apenas com o caseiro. E claro que os amigos de Bananal o visitavam. Um deles, chamado Roberto, era considerado por meu
pai como um dos amigos mais fiéis que teve em toda a vida e tornou-se íntimo dele, virando até confidente de seus problemas.
Meu pai estava sempre procurando reunir a família em Bananal. No Carnaval, o sítio ficava completamente lotado; chegava a ter quarenta pessoas hospedadas. Como sempre,
ele gostava de bancar sozinho todas essas festas. Mas, com o achatamento que a
classe média brasileira passou a sofrer, a partir de meados dos anos
80, seu nível de renda também ficou abalado. Não podia mais arcar sozinho com todo esse esquema.
Nós, os filhos mais velhos, e Lurdes tentamos explicar que era natural todos contribuírem e que devíamos organizar uma caixinha para os passeios no sítio. No entanto,
ele não aceitava, não era o jeito de ele levar a vida. Aos poucos, as reuniões no sítio foram escasseando. Alguns folgados "perdiam" o interesse no passeio ao saber
que deviam contribuir. E meu pai se sentia constrangido de convidar alguém sem estar pagando.
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RELACIONAMENTO com MEU PAI
MEU PAI NUNCA ESTEVE realmente presente em minha vida. O relacionamento com ele não era tão aberto como eu gostaria. Ele tinha princípios exageradamente cravados
dentro de si. Era homem de suprir as necessidades materiais da família: botar comida na geladeira, fazer festa no Natal, pagar colégio, comprar roupa. Menos ser
íntimo dos filhos. O contato físico com ele era escasso. Limitava-se a um beijo na mão, quando ainda tomávamos sua bênção, ou no rosto. Abraços só no aniversário,
no Natal ou no Dia dos Pais. Não me viu disputar uma partida de futebol, não ia ao colégio nas reuniões de professores, me botou para fora de casa por bobagem e
radicalismo, não foi ao meu casamento, nunca me incentivou na carreira, nem fez um elogio na minha presença ou um gesto de carinho. Aos amigos, a amizade, a alegria,
o companheirismo, a compreensão; à família, somente a austeridade das obrigações e do dever. Para mim, ele sempre foi um referencial de autoridade excessiva e de
honestidade e disciplina no trabalho. Todas as outras coisas que formam um indivíduo - ternura, carinho, entrega ao amor, delicadeza com os filhos - aprendi com
minha mãe ou sozinho, observando outras famílias.
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Meu pai tinha um modo estranho de ser. Não tenho a menor lembrança de senti-lo me encarando ou de conversar comigo, olho no olho. Ele nos olhava somente para brigar
ou chamar nossa atenção de forma ríspida. Em seus ataques me dizia coisas terríveis: que eu não seria nada na vida, que seria um vagabundo, que tinha jeito de veado.
Confesso que levei muito tempo para fazer do meu íntimo algo indevassável, onde meu pai não pudesse botar o dedo ou ferir com palavras.
No meu tempo de garoto, morria de inveja de alguns colegas de escola, ao ver o relacionamento entre eles e seus pais quando os visitava na Urca. A preocupação que
os pais demonstravam com a formação deles, as palavras carinhosas com que os tratavam e a suavidade com que transcorriam suas infâncias.
É claro que eu também reconhecia que, por ter os pais que tínhamos, Bily e eu saboreávamos momentos especiais que ninguém mais vivia. Eu estava consciente de que
vivíamos sem rotina e que a empolgação e os prazeres a que tínhamos acesso eram muito diferenciados. Mas era com paz e tranqüilidade que eu sonhava. com uma vida
normal. Sonhava em ter amigos. Bily e eu nunca tivemos amigos. Amigos íntimos.
A verdade nua e crua era que o meu amigo era Bily e o amigo de Bily era eu. E ponto final. Não havia como termos outras pessoas compartilhando a nossa difícil e
doída experiência de vida. Assim, Bily e eu não tivemos adolescência da forma gostosa como todos os outros colegas de colégio tiveram. Precisamos crescer rapidamente
- era sobreviver ou sobreviver.
Dos tempos de colégio, me lembro com um misto de carinho e inveja de José Messias, o rapazinho vindo de Minas, que passou bons e maus pedaços ao lado de meu pai,
e apenas por amor suportou seu temperamento e gênio irascível. Meu pai gostava dele, mas de vez em quando também o tratava de forma antipática. Fazia dele realmente
o confidente, o amigo do peito. Mas também atacava de mau patrão, com dureza:
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"ó, garoto, carrega minha mala. Você tem muito que aprender!".
Sei que Messias absorveu muitos ensinamentos de meu pai o culto à qualidade, o respeito ao trabalho e à própria verdade interior. Aprendeu a importância da disciplina.
E o grande privilégio: conviveu intensamente com a genialidade que dominou a geração de meu pai. No fundo (confesso!), sempre senti mesmo uma pontinha de inveja
de Messias por poder ter partilhado de momentos maravilhosos ao lado de meu pai, sentia inveja da intimidade deles. com os filhos, meu pai jamais compartilhou intimidade
alguma. Não dividia suas particularidades conosco.
Eu é que me metia nas suas coisas por sentir um amor enorme por ele. Mas somente nos assuntos relacionados a música ou palco. Hoje, sei que assimilei a dignidade
desse templo chamado palco vendo o amor que meu pai e minha mãe tinham por ele. E não poderia ser de outra forma, embora meu pai tivesse insistido para que eu não
seguisse a carreira artística. Ele vislumbrava muita incerteza em relação à profissão. No início, eu não conseguia entender seus receios. Só compreendi depois de
assistir ao gradual esquecimento que minha mãe foi sofrendo antes de morrer. E também meu pai, nos últimos anos de vida.
Sei que foi por meio da música que conquistei certa cumplicidade com ele, quando começamos a fazer shows juntos. Passamos a ter alguma coisa em comum e só nossa.
Cantando suas canções, enaltecendo seu trabalho, eu mostrava que não permitiria que ele fosse esquecido. Sabia que ele se orgulhava de ter um intérprete à altura
de sua obra e percebia que eu vibrava de verdade por estar no mesmo palco que ele. Mas eu apenas intuía tudo isso, não era realmente verbalizado por ele.
Não nos esqueçamos de que, em sua biografia, meu pai fez a infeliz declaração:
"Estou convencido de que filhos não servem pra nada, servem só para a gente amá-los".
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Quando cheguei ao coquetel de lançamento do livro, vindo de São Paulo, encontrei meus irmãos com cara de enterro e um exemplar do livro na mão. Estavam todos revoltados.
Eu não entendia nada, até eles me mostrarem a frase. Senti um imenso vazio ao lêla. Guardei meu exemplar apenas porque traz uma dedicatória de meu pai, nada mais.
O conteúdo jamais me interessou.
Fui lê-lo somente agora, quando resolvi escrever sobre meu pai, na tentativa de entendê-lo melhor. Não ajudou muito, pois o relato está falseado por uma exagerada
e tendenciosa postura de "bom moço". Nesse mesmo livro, ele também faz uma referência desairosa a Nilo Chagas. Diz que Nilo era um bobalhão, um inútil.
É um absurdo.
Sei que sua contribuição ao trabalho de Herivelto foi imensa. Não era fácil segui-lo nas suas idéias inovadoras e Nilo fazia isso com rapidez e segurança. Sem falar
na fidelidade que ofereceu a meu pai nos anos de efervescência do Trio de Ouro, além de ter ajudado a compor o visual do grupo com sua beleza negra e serena.
Esse comportamento era muito próprio de Herivelto. Incapaz de reconhecer o valor dos mais próximos a ele, que dirá talento para a música. Aliás, em ninguém. Eu,
por exemplo, mesmo tendo percorrido os caminhos que percorri, tendo realizado tanto, jamais consegui receber um elogio dele. Nunca consegui ouvir de sua boca qualquer
menção de reconhecimento ao meu trabalho. Sei que dizia aos amigos que tinha orgulho do meu trabalho. Mas, infelizmente, eu mesmo nunca tive o prazer de escutar
um só elogio ou incentivo de sua boca. Ao contrário, vivi algumas passagens muito desmotivadoras.
Sempre gostei de convidar meu pai ao estúdio quando eu iria gravar alguma música dele. Ele gostava de ir. Nessas ocasiões tornávamo-nos cúmplices do ofício. Ele
até dava sugestões, sem elogios. Apenas uma vez, em 1991, recebi dele algo parecido com um
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elogio. Estava fazendo um disco com o Roupa Nova, e Ricardo Feghali o produtor, sugeriu que fizéssemos um arranjo de "Ave Maria no morro" com um sabor sertanejo.
O boom sertanejo estava apenas começando, e convidamos a dupla Chrystian & Ralf, meus amigos para participar da faixa comigo.
Quando meu pai chegou para assistir à colocação das vozes, qual não foi a minha surpreza ao vê-lo chorar. Emocionado, disse que era a mais bonita gravação de "Ave
Maria no morro" que tinha ouvido. Ninguém presente naquele estúdio podia imaginar o prazer que eu senti ao ouvir isso de meu pai. Foi uma noite marcante para mim.
De certa forma, compensava outras ocasiões do passado, em que sua crítica ferina me atingiu profundamente.
Eu tinha em Flávio Cavalcanti, além de um amigo, um grande incentivador da minha carreira. Quando gostava de um disco que eu estava lançando - como o Pra tanto viver,
de 1985, só de voz e piano, com o grande Luís Eça -, tocava e comentava todas as doze faixas durante um único programa.
Por volta de 1963, no início da minha carreira, fui chamado por ele para receber um troféu em um dos seus programas na TV Tupi, diante de um grande júri. Era motivo
de orgulho essa premiação e foi muito importante para mim. Nesse júri estava meu pai. No final do programa, chegou o momento de entregar o lindo troféu dourado.
Um craque em trabalhar as emoções ao vivo, Flávio pediu a meu pai que subisse ao palco para me premiar e dizer algumas palavras. Ao me entregar o troféu, ele disse:
"Só espero que você nunca precise vender este troféu pra poder comer no futuro".
Surpreendido e sem-graça, Flávio chamou os comerciais no ato. E me poupou do vexame de ter de dar alguma resposta a meu pai. Não havia o que dizer diante de tanta
grosseria. Chocado, com o coração apertado, precisei usar todo o meu controle para
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disfarçar a vergonha e a frustração que sentia. Apesar de o programa estar quase no fim, o tempo que se passou até o encerramento me pareceu uma eternidade. Estava
a ponto
de explodir, não agüentava mais segurar os sentimentos.
Fui o primeiro a deixar o palco. Caminhei apressado até o camarim, me tranquei e aí chorei. Chorei muito. Chorei a humilhação, a vergonha. Chorei a falta de respeito
e o desprezo que senti nas palavras de meu pai.
Todas essas coisas me levaram a procurar, alguns anos depois, alguma forma de ajuda para as digerir melhor e curar as minhas feridas. Muitos foram os caminhos percorridos:
alguns religiosos, como a umbanda e o budismo, outros mais ortodoxos, como a psicanálise. No budismo, aprendi a importância da lei de causa e efeito. Na psicanálise,
aprendi a enxergar todo o processo de fora dele e compreendi algumas coisas que me ajudaram a melhorar meu enfoque da vida.
Numa das minhas últimas sessões de análise, ouvi do profissional que escutara toda a minha história com meus pais:
Você corre demais. Você tem pressa em tudo. Para amar. Para fazer sucesso. Você deseja ardentemente jogar todo o sucesso que fizer nos pés do teu pai e dizer:
"Toma, aí está o Pery que você dizia que ia ser um vagabumdo!". Mas lembro a você que tome cuidado, porque após fazer isso, virá um vazio maior que em qualquer outro
período da tua vida!
O sucesso eu já consegui colocar nos pés do meu pai. O vazio realmente veio, se instalou e me fez pensar muito e me trouxe muita tristeza e solidão. Doeu, mas me
fez crescer, aprendi que o importante são as metas que pretendo me dar de presente, e só a mim, sem ter de jogar aos pés de ninguém.
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LURDES, A RAINHA-MÃE
A PERSONALIDADE CALMA E FIRME DE LURDES, além de conquistar meu pai, aos poucos foi conquistando também a confiança de um grupo seleto de freqüentadores do centro
espírita. Além de conselheira espiritual, fizeram dela sua confidente. Dessa forma, essas pessoas também passaram a ter acesso à casa na Urca, onde seus conselhos
eram oferecidos num clima de mais intimidade. Ou até uma sessão espírita particular. Era um entra-e-sai, a qualquer hora do dia e da noite. Chegavam querendo logo
subir para falar com Lurdes.
Em cima, no quarto de casal, se desenvolvia a continuidade do centro. Ela os recebia e eles falavam, falavam... a ponto de Lurdes saber a vida completa de cada pessoa
que subisse aquelas escadas. Muita gente da família, também buscava sua palavra. Assim, ela passou a centralizar muita informação em suas mãos. E, é claro, isso
lhe deu um poder fantástico. Tornou-se fácil ter o controle da família, pois todo e qualquer assunto passava por ela. Era o domínio total.
Como acontece com freqüência'em torno de líderes espirituais, aos poucos foi se formando em volta de Lurdes uma grande corte, composta de artistas da Globo, políticos
importantes, empresários influentes. E lá embaixo, meu pai, que sempre tivera na
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vida espiritual uma forma de expiação do passado e uma busca de aprimoramento de sua conduta, foi ficando num papel de coadjuvante. A ele, que sempre havia sido
o centro das atenções, restava apenas recepcionar quem ia procurar Lurdes.
Ao mesmo tempo, via tantas pessoas importantes se mostrarem dependentes e obedientes da palavra e da orientação de Lurdes que experimentava certa sensação de superioridade.
Fazia meu pai experimentar também seu quinhão de poder por meio da esposa. As muitas pessoas que transitavam entre o centro e a casa da Urca eram poderosas, tinham
força no mundo artístico, na política, tinham força financeira.
Mas é claro que muita gente humilde e pobre também recorria a eles no centro. Nesses casos, meu pai e Lurdes ajudavam nas "obrigações" pedidas por algum guia do
centro, bancando todo o material necessário. Como já disse, ele era muito sincero, muito honesto em sua conduta no centro espírita. O crédito que desenvolveu ao
longo dos anos à frente do seu centro foi enorme.
No entanto, esse esquema full time de mãe-de-santo da Lurdes foi trazendo conseqüências para a vida do casal. Primeiro, ela foi ficando muito fraca de saúde. A energia
gasta para receber as entidades no centro, a continuidade desse trabalho dentro de casa, tudo isso era desgastante ao extremo. Mas, mesmo com a saúde debilitada
(colocou ponte de safena duas vezes), continuava a fazer de seu quarto o ponto de reunião de pessoas especiais, além de ir ao centro em alguns sábados. Conseqüentemente,
já não tinha mais tempo nem disposição para acompanhar meu pai no trabalho ou em passeios. com o entra-e-sai das pessoas em casa, suas vidas foram perdendo a privacidade
e intimidade tão necessárias.
Acho que Lurdes ficou tão carregada com os problemas dos outros, noite e dia nessa posição de guia espiritual, que foi perdendo a capacidade de se desligar. Daí
veio o problema da insônia. Eram tantas histórias, dramas, tristezas que não conseguia parar de pensar. Dormir tornou-se um sacrifício.
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Algumas vezes, como hóspede da casa, eu chegava de madrugada e ia até a cozinha comer algo. Ouvindo barulho, ela descia, completamente grogue, e sentava comigo
para conversar. Eu quase não conseguia entender o que dizia. Tomava altíssimas doses de soníferos e mesmo assim só pegava no sono lá pelas cinco ou seis horas da
manhã. Enquanto isso, meu pai, que dormia cedo, não a encontrava na cama no meio da noite e ia buscá-la na cozinha. Ela subia cambaleando e, claro, não conseguia
dormir antes de o dia amanhecer. Isso deve ter sido um grande sofrimento para ela.
Lurdes foi perdendo os limites entre o real e o espiritual, adotando uma posição de dona da verdade, em nome de seu dom. Não questiono o dom espiritual, mesmo porque
presenciei muita gente ser confortada por esse dom, nem falo do trabalho de Lurdes junto aos estranhos. O que questiono é ela querer controlar a vida de todos na
família em nome de suas privilegiadas informações do além. Passou a ser a rainha-mãe, a quem todos tinham de bater cabeça e submeter à sua análise seus problemas,
recebendo soluções nem sempre tão condizentes com o que o assunto pedia.
Sem querer julgar, apenas constatando sua forma de ser e levar a vida, posso dizer que Lurdes não permitia que nada acontecesse à sua volta sem que antes passasse
pelo seu crivo e conhecimento. Fazia questão de dominar totalmente os fatos, assumindo uma superpostura: de aprovação ou não do que acontecia perto de si. Era assim
com o centro, com os filhos, era assim com os "angustiados" que a procuravam e com meu pai. Pelo fato de não ter essa ascendência sobre mim ou sobre meus irmãos
Hélio e Hélcio, sua atitude conosco era cordial, mas sem profundidade. Porém, no que pudesse exercer algum controle sobre nós, não pedia licença ou consentimento.
Recordo quando tive um problema sério de saúde, uma pericardite aguda, e comecei a ser tratado em São Paulo, onde morava. Assim que tive uma melhora, resolvi passar
o Natal com meu pai, no Rio. No dia 31 de dezembro, tive uma recaída e fui levado às pressas para o hospital. Fiquei na UTI algum tempo, antes de ir para o
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quarto. Todos ficaram preocupados comigo, parentes, amigos e fãs, e queriam me ver. Recebia muitas visitas e gostava disso. Me sentia querido e importante.
Certo dia, apareceu Lurdes dando ordens e determinando quem deveria ou não me ver. A que horas eu podia ter visitas. Tentei ponderar, pedindo para ela não agir assim,
pois, dentro do possível em minha recuperação, não fazia restrição a quem fosse me visitar. Todos mereciam minha consideração - aprendi isso com minha mãe.
Não houve jeito. Ela desconversou um pouco e começou disfarçadamente a promover uma escala das visitas. Ao perceber sua insistência, dei um grito no quarto e comecei
a dizer, da forma mais calma possível, meio entre os dentes, que se ela quisesse me visitar seria um prazer enorme, mas que não se metesse no assunto das minhas
visitas. Ela saiu pisando duro, contou para meu pai (do seu jeito, com certeza), e a partir daí não recebi mais a visita de ninguém da Urca. Fiquei chateado, pois,
é claro, fazia questão da presença do meu pai.
Não havia limites para Lurdes... Sua sede de comando era tão desmedida que atingiu minha mãe, numa situação inusitada e distorcida. E erradamente alimentada pela
imprensa na época de sua morte, criando até hoje uma falsa idéia na cabeça das pessoas. Meu pai menciona em sua biografia que nos últimos tempos Lurdes se tornara
confidente, conselheira e amiga da minha mãe. Para mim, e só para mim, isso retrata uma posição bastante confortável dele. Vejamos: ao ter a própria mulher empenhada
em ser uma possível amiga de Dalva e em solucionar alguns de seus problemas, ele nos dá a impressão de que estaria aplacando certos sentimentos. Que não teriam chance
jamais de serem aplacados se não tivesse uma pessoa como Lurdes para substituí-lo ou fazendo o que ele deveria ter feito.
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Na verdade, deveria é um tempo de verbo ridículo, mas o que quero dizer é que meu pai, de forma cômoda, permitiu que Lurdes se comunicasse com minha mãe a ponto
de oferecer ajuda espiritual. Por que não? Ela fazia isso com muita gente, alguém poderá dizer. Se minha mãe estivesse querendo o conforto de alguma mãede-santo,
poderia ter lançado mão das mais respeitadas do país, que nos procuravam a toda hora oferecendo apoio espiritual. Lurdes não era a opção mais conveniente para ela.
Porém, em sua carência e fragilidade, minha mãe aceitou esse assédio, se deixando enredar por tanta generosidade. Não era pessoa de colocar nenhuma malícia na atitude
dos outros. Era muito aberta e, mais importante ainda, não cultivava ódios. Mágoas, sim. E, em sua ingenuidade, penso que também acreditava que, ao permitir a aproximação
de Lurdes, teria mais chance de rever meu pai. Quem poderia impedi-lo de ir (sua atual esposa) não o faria, pois já haviam se confraternizado e colocado uma pedra
em cima de tudo. Ledo engano.
Acho que, ao ir com freqüência visitar minha mãe no hospital, como que procurando substituir meu pai, Lurdes espelhava na realidade apenas uma postura arraigada
de quem queria manter até o último instante controle total dos acontecimentos. Nada mais. Afinal, era meu pai que minha mãe queria ver, e não ela. Se quisesse realmente
ser generosa, em vez de apenas posar, bem que poderia ter aproveitado seu domínio sobre meu pai intercedendo a favor de Dalva e, com seu apoio, dar a coragem necessária
a ele para vê-la nos momentos finais.
vou mais longe ainda. Acredito que para Lurdes, que tão bem conhecia o interior de meu pai, Dalva sempre representou a grande rival. Aquela que reinava em sua emoção.
A mulher-inspiração que nunca saiu de suas veias e de suas rimas. Ela devia considerar muito arriscado deixá-lo ficar frente a frente com um passado que não morrera
em seu coração. E ter depois de colar os
cacos novamente.
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Posando de boazinha para o mundo, como confidente e amiga de Dalva, Lurdes procurava apagar o próprio papel na separação deles. Por ela, meu pai largou tudo: a esposa,
os filhos e o Trio de Ouro, seu grande oxigênio. Sua postura era regida pelo peso da consciência, sabendo em seu íntimo que o processo que se finalizava, agonizante,
naquele hospital, havia começado num vôo da Real havia mais de 25 anos.
Acredito que foi uma tentativa extremada de atenuar sua responsabilidade em toda a história, mas daí a se tornar amiga de minha mãe vai uma distância enorme. Tiro
meu chapéu para a sagacidade da "rainha-mãe", mas ela não conseguiu me convencer.
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AMOR ENRUSTIDO
O AMOR PREGARA UMA PEÇA em meu pai e, por que não dizer, em minha mãe também. Não era a separação o que eles queriam. O que mais desejavam, com igual intensidade,
era que nada tivesse acontecido como aconteceu. No entanto, lá estavam os dois, soltos no mundo, tratando de recompor suas vidas, em direções opostas, colando seus
cacos.
Sempre tive dentro de mim a nítida sensação de que, se pudessem ter voltado no tempo, os dois teriam capitulado diante da separação. com meu pai, vou mais longe:
tenho certeza de que ele teria apagado a atitude infeliz de expor sua vida em desairosos capítulos no Diário da Noite. O que inicialmente me parecia romantismo de
filho se confirmou. Ao tentar buscar uma certeza nas pessoas que fizeram parte da vida e da intimidade de meus pais, confirmei (surpreso!) a minha percepção interior
do drama que eles passaram a viver.
Nessa busca da verdade, fui ao encontro de Nelson Gonçalves, grande companheiro de meu pai. Encontrei-o meio magro e abatido, se recompondo de um problema de saúde,
mas o mesmo brilhante e sincero Nelson Gonçalves. Perguntei sobre todas as coisas que queria saber - seu tempo na Urca, quando morava na
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Cândido Gaffrée, as histórias do Cassino. Ele confirmou tudo: a boemia na Lapa, sempre ao lado de
Herivelto, como freqüentava a nossa casa e a camaradagem existente
entre ele e meus pais. Conversamos sobre a fase negra que meu pai viveu depois da separação de minha mãe. Nelson comentou:
"Rapaz, eu estava sempre com Herivelto, e ele chegou a tomar alguns porres em nome do arrependimento que sentia!".
"Será que é sobre aquele assunto do Diário que eu estou pen' sando, Nelson?"
"Olha, menino, a gente já tinha tomado algumas quando ele me disse um dia: 'Nelson, reconheço que fiz uma tremenda cagada! Acho que cavei um buraco pra eu mesmo
cair!'".
De Nelson ainda ouvi:
"Sua mãe era apaixonada por seu pai, e assim permaneceu até morrer".
"E meu pai, Nelson?"
"O caso do seu pai é diferente. Era um apaixonado enrustido. Sem dúvida, o amor de sua vida foi a Dalva, mas ele não permitiria jamais que soubessem ou que percebessem.
Depois de tomar uma atitude, Herivelto não daria o braço a torcer jamais!"
"E a Lurdes?"
"Ela foi a mulher que o agüentou. O que não era fácil, você sabe. E com quem ele teve de sossegar, afinal não era mais criança, já tava nos quarentinha. Mas o Herivelto
não tinha muito chamego com ela. Sabe como é, não havia paixão. Além do quê, sem briga, falando baixinho como ela falava, a Lurdes trazia ele num cortado."
Nesse papo, tive o insight do que sempre esteve em minha cabeça e tinha dificuldade de verbalizar. Sem querer, Nelson encontrou as palavras certas: meu pai manteve
um amor enrustido por minha mãe! Essa constatação, feita como filho atento desde criança à trajetória do pai e que o acompanhou pela vida e pelos palcos, vem
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da minha observação do quanto ele produziu e da envergadura de sua obra enquanto esteve ao lado de Dalva de Oliveira.
Seus mais consolidados sucessos foram escritos ao lado de minha mãe: "Caminhemos", "Segredo", "Praça Onze", "bom dia", "Vem, a Bahia te espera", "bom dia, avenida",
"Isaura", "Lá em Mangueira" e a consagrada "Ave Maria no morro", só para citar alguns. Num levantamento rápido de sua discografia, pude verificar que mais de
150 das canções que escreveu ao lado dela foram lançadas com muito sucesso.
Ao me aprofundar nas pesquisas sobre a obra de meu pai e ao entrevistar alguns amigos da época, fui encontrando ainda mais subsídios para, esta "tese". E também
tomando conhecimento de muitas obras compostas por ele em decorrência da saudade e da tristeza que amargava por minha mãe. Deixo então que fale por si a obra legada
para o mundo e que os historiadores se encarreguem de fixar para a posteridade o que digo. Sou apenas um filho que os amou, acima de qualquer análise.
Quando minha mãe lançou o "Zum-zum" no Carnaval de 1950, de autoria de Paulo Soledade, o povo pensou que ela estava se referindo a meu pai, mas não estava. Era uma
homenagem ao falecido Comandante Edu, do Clube dos Cafajestes. Paulo, grande compositor, era um dos seus companheiros de clube e escreveu a música para ele. Como
tinha verdadeira adoração por minha mãe, pediu que a gravasse. Foi um tremendo sucesso:
Oi, zum-zum-zum-zum-zum-zum-zum Tá faltando um
Oi, zum-zum-zum-zum-zum-zum-zum Tá faltando um
Ele que era o porta-estandarte
E que fazia laúza e zum-zum
Hoje o bloco sai mais triste sem ele
Tá faltando um
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Ao ouvir a música e ficar sabendo que as pessoas achavam que Dalva estaria se referindo a ele, Herivelto compôs com Benedito Lacerda "Ai, morena":
Ai, morena
Seria meu maior prazer
Passar o Carnaval contigo
Beijar a tua boca
E depois morrer
Morena, tem pena
Se um dia isto acontecer
Serás minha rainha
Mais rainha do que és
E o Rei Momo beijará teus pés
Reparem no verso Mais rainha do que és - naquele ano, minha mãe foi eleita a Rainha do Rádio.
No mesmo ano de 1950, ele também escreveu com Benedito "Quando a idade chegar", uma inspirada profecia dirigida apaixonadamente à minha mãe. Referia-se aos amigos
(Ataulfo Alves, Nelson Cavaquinho, Marino Pinto, Paulo Soledade) que compunham as canções com que ela se defendia durante a briga:
Quando a idade chegar
E o espelho mostrar
O estado em que estás
Hás de lembrar dos amigos
Que já não te conhecem mais
Orgulho, vaidade
Sempre foi seu bem-estar
Não adiantou aconselhar
Não sou feiticeiro
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Mas prevejo o teu fracasso
Cairás muito cedo de cansaço
Uma das mais belas músicas que meu pai compôs, "Quando o tempo passar", em parceria com David Nasser, em 1951, é dessa fase:
Sei, quando o tempo passar
Ninguém mais vai lembrar
Que nós dois existimos
Sei, nosso amor foi um sonho
Um pássaro risonho
Que nós dois destruímos
Partirei
Mas sei que não irei sozinho
A noite vai no meu caminho
A noite e mais ninguém
Partirás
Serás feliz na tua estrada
Por outro amor iluminada
Pois não te quero mal nem bem
O mundo parecia cair sobre a cabeça de meu pai, ao mesmo tempo que martelava o sentimento de perda da mulher que ainda amava e de quem sentia muita falta. Nesse
momento crítico, José Messias foi o amigo que esteve profundamente ligado a ele. Era seu grande confidente e com ele Herívelto podia se abrir de verdade. Assim,
Messias assistiu a muitos porres, tomados em nome da saudade de minha mãe.
Numa tarde em 1950, vendo o amigo deprimido, propôs saírem para espairecer um pouco. Sentaram na praça Tiradentes e meu pai começou a beber um chope atrás do outro.
Messias, que jamais bebeu, lembra que esta foi mais uma das muitas tardes e noites em que ficou sentado com Herivelto nos bares, horas a fio,
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apenas com um copo de leite na frente. Meu pai ficava louco ao ver o amigo e confidente bebendo "aquilo", enquanto ele tomava cerveja ou uísque com gelo.
Nesse dia, Herivelto estava muito perturbado com os próprios pensamentos. O assunto girava e voltava ao nome de Dalva. Tanto falaram nela que meu pai começou a
cantarolar:
Nem o chope que eu bebi
Nem o chope
Conseguiu me libertar dessa mulher
Nem o chope, meu Deus
Nem o chope
Meu sofrimento é o que ela quer
Mas como não conseguia sair desses versos, ligou para o parceiro Benedito Lacerda pedindo que viesse rápido, pois tinham de terminar uma marcha para ganhar o Carnaval
daquele ano. Benedito chegou com o compositor Evaldo Rui. Escutaram a música, mas nada de pintar a continuação.
Acabou que a melodia da segunda parte foi sugestão de Messias, que teve a idéia de "chupar" um trecho de conhecida canção russa (não lembro mais o nome). Em cima
dessa sugestão, já completamente de porre, eles encaixaram o resto da música, que foi lançada por Nelson Gonçalves no Carnaval de 1951, com o nome de "Nem o chope":
Já bebi demais
Já sofri demais
Eu já fiz o que um homem não faz
Bebo pra esquecer meu sofrimento
E ela não me sai do pensamento
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Ao me descrever essa tarde, Messias também recordou que foi nessa época que meu pai adquiriu o hábito de passar o copo gelado na fronte. Vi esse gesto muitas vezes,
um hábito que ele manteve até o fim. Diz Messias que a sensação era que o gelo esfriava-lhe a cabeça - e as saudades de minha mãe. Ele passava a noite girando na
testa, de um lado para o outro, um copo gelado ou cheio de gelo dentro. E o papo, o porre e as confidências eram sempre: "Dalva! Que falta ela faz".
Como Herivelto não podia se referir explicitamente a Dalva (ou a outras mulheres), ELA era uma imagem muito forte e usada com freqüência por ele. Para lhe agradar,
Messias se valia da mesma imagem em suas composições. Assim, conseguia fazê-lo se identificar com o tema e atraí-lo para a parceria.
"Era a única maneira de me fazer notar: criar em cima da paixão do Herivelto."
Uma passagem de 1957 retrata bem o vulcão de sentimentos ocultos que ainda dominavam meu pai.
É o momento em que foi composta a música "Pensando em ti". Estavam
os dois na varanda do sítio em Bananal, ao cair da noite. Messias cantou para meu pai os versos iniciais de uma música inspirada em Dalva e Herivelto:
Pode o céu
Cair por cima de mim
Pode o sol
Deixar de me iluminar
Pode tudo
Neste mundo
Me acontecer
Só não quero é perdê-la
Pois sem ela, meu Deus
Eu não posso viver
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Eu adormeço
Pensando nela
Eu amanheço
Pensando nela
Eu passo o dia
A pensar na vida dela
Viver sem ela
É pintar
Sem aquarela
Herivelto gostou da idéia e trabalhou com ele na primeira parte da música, que ficou assim:
Eu adormeço
Pensando em ti
Eu anoiteço
Pensando em ti
Eu não te esqueço
É dia e noite
Pensando em ti
Eu vejo a vida
Pela luz dos olhos teus
Me deixa ao menos
Por favor pensar em Deus
De volta ao Rio, meu pai foi se encontrar com David Nasser, que, num momento muito inspirado, escreveu a belíssima segunda parte:
Nos cigarros que eu fumo
Te vejo nas espirais
Nos livros que eu tento ler
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Em cada frase tu estás
Nas orações que eu faço
Eu encontro os olhos teus
Me deixa ao menos
Por favor pensar em Deus
Enquanto isso acontecia, Messias, no seu cargo de secretário, permanecia do lado de fora da casa, esperando por Herivelto, enquanto ouvia sua idéia e seus versos
serem desenvolvidos por David. Quando ele me contou essa história e disse que tinha a letra que fizera (e batizara de "Pensando nela") guardada em algum lugar, não
o deixei em paz até me mandar um fax com essa letra original de "Pensando em ti", que transcrevi para vocês.
Junto recebi esse recadinho dele: "Feito na varanda de pedra do sítio em Bananal, que foi meu e acabou sendo do Herivelto... Na hora, falávamos de Dalva. Herivelto
falando com o ódio de quem ama e sente saudade!". Messias explica também que o tema que propusera tinha tal identificação com Herivelto que acabou rendendo duas
parcerias dele com David. Além de "Pensando em ti", gravada por Nelson Gonçalves, compuseram no mesmo clima "Se adormeço", gravada por Gilberto Milfont:
Se adormeço
O teu vulto invisível
A meu lado se deita
E a noite é mais noite
O sonho é mais sonho
A teu lado e sem ti
Se acordo e te vejo distante
Mergulhada nas sombras
Na noite de uns braços estranhos
Já fartos de ti
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Contigo e sozinho
Sonhando no sonho
Na noite da noite
No frio silêncio
De todo abandono
Eu me lembro de ti
E te aperto nos braços
Te beijo na boca
Enxugo teu pranto
Mas acordo abraçando
Meus braços vazios
Vazios de ti
Outra música para a minha mãe composta em parceria com José Messias foi "Jurei", também de 1957:
Jurei, tantas vezes jurei jurei, nunca mais perdoar Porém, toda vez que ela vem Meu perdão implorar Não sei negar Ela faz de mim O que bem quer Me acostumei a essa
mulher Quem muito apanha Termina perdendo a vergonha
Conta Messias que todos esses versos foram compostos exclusivamente porque meu pai não conseguia parar de pensar em minha mãe. Mas é claro que nada disso podia transparecer.
E, para não dar nenhuma bandeira, essas músicas eram mostradas para Lurdes como sendo a manifestação de algum amor de Messias.
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Para todos os efeitos, era Messias quem estava sentindo aquilo tudo Ele confirmava e segurava todas as barras. -
Somente agora, passados quase cinqüenta anos, com todos os envolvidos já mortos (Dalva, Herivelto e Lurdes), é que Messias se sentiu liberado para me confidênciar
essas experiências com meu pai, o amigo e mestre dos primeiros tempos. Quando conversamos, perguntei também por que na parceria de "Pensando em ti" não
saiu seu nome, mas apenas o de David. com a generosidade que lhe é peculiar, respondeu:
"Porque, na época, teu pai amargava um período terrível de desprestígio e ódio do grande público. Por onde passava, era desprezado e teve até o carro apedrejado.
E como o David Nasser tinha um prestígio enorme como jornalista, foi obrigado a se segurar nele para tentar minorar seu drama e melhorar sua imagem. Por isso, essa
minha homenagem a Dalva ficou embutida numa parceria só com o nome dele e do David".
Todas essas obras e confidências vêm realmente reforçar minha análise sobre o comportamento e os sentimentos de meu pai em relação à minha mãe. Vejo que o homem
Herivelto, à parte seus compromissos com a casa, os filhos e os assuntos mais corriqueiros, ficava sempre subjugado pelo artista Herivelto. Este tinha mais desenvoltura,
sentido criativo e encontrava mais prazer e amplitude ao mostrar sua verdadeira razão de viver. A música e sua obra determinavam-lhe os passos. Até mais que o coração.
Pelo menos enquanto ele não se permitiu morrer por dentro.
Nos meses em que minha mãe esteve internada, durante todo o tempo no leito do hospital, antes de morrer, o que mais ela desejou foi que meu pai a visitasse. Devido
a meu trabalho, ficava muito com ela nas madrugadas. E, naquele silêncio aterrador do hospital, ela me fez prometer que pediria a ele pára ir vê-la. Nunca foi.
Quando falei com ele, me oferecendo para acompanhá-lo numa visita durante a madrugada, horário em que não havia fãs nem a
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imprensa, ele me deu umas desculpas esfarrapadas, alegou que não queria mais ter seu nome envolvido nos jornais, blá, blá, blá.
Como filho (e minha sensibilidade me autoriza a dizer), acho que ele não foi lá por medo. Medo de constatar que ali falecia o amor maior de Herivelto Martins, a
mulher-inspiração da sua vida. A companheira de uma época brilhante, do seu momento mais fértil, quando a sua melhor obra aconteceu para o mundo e era ovacionado
ao lado de minha mãe com o verdadeiro Trio de Ouro. Já vimos como a grande explosão de criatividade de meu pai aconteceu ao lado de Dalva. E o auge de sua realização
artística também. Em minha percepção, acredito que tudo isso tenha influenciado sua posição de não ir ver minha mãe no hospital. Aquela era uma realidade muito forte
para ser vivida por ele tanto tempo depois. Iria mexer demais com o seu mundo interior, e anterior. Qualquer outra explicação oferecida por quem quer que seja será
pura especulação ou tentativa de encobrir a razão verdadeira. Medo, covardia. Medo dos fãs de Dalva. Sentimentos que até compreendo, mas que levaram muita gente
que acompanhou esses fatos a condenar meu pai. Sem necessidade.
Embora a história deles já fizesse parte do inconsciente coletivo, haviam se passado mais de duas décadas da separação, e mesmo que visitá-la fosse apenas uma atitude
política para o público que os observava, teria ajudado muito a humanizar a imagem de meu pai. Ele perdeu a grande chance de se redimir de todo o acontecido não
fazendo esse gesto da visita à minha mãe no leito de morte. Tentei dizer isso, mas ele não me entendeu. Preferiu ouvir outras vozes, que o aconselharam a não ir,
mas que não pagaram o preço que ele teve de pagar: o julgamento da história.
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49
ESTRELA DALVA, O GRANDE MITO
LOGO QUE SE SEPAROU, minha mãe ficou muito perdida, sem saber o que fazer, cheia de medos profissionais e financeiros. E, principalmente, sem saber como conduzir
a vida a partir daquele momento. Meu pai dizia sempre que ela nunca ia conseguir fazer nada sozinha. Criou problemas incríveis na cabeça dela com suas palavras.
Ele era uma pessoa muito espezinhadora e, para dominar, se aproveitava da delicadeza das pessoas que o cercavam e da guarda baixa de qualquer um que ansiasse por
se aproximar dele, como minha mãe, suas irmãs, eu, Messias.
Assim, ela morria de medo de ficar sozinha e de trabalhar sem ele. Seus receios e medos tomavam conta dela. No fundo, minha mãe era muito frágil, apesar da grande
força artística que passou a manifestar. O que tornava as coisas mais fáceis era o fato de ser uma pessoa muito querida, pois assim recebia apoio de todas as partes
- dos amigos, parentes e, por que não dizer, dos compositores, que mais tarde tirariam proveito do drama da separação. Mas era muito frágil. E acho que a própria
vida deu de presente para ela a condição de seguir sozinha, sem ter de tomar atitude alguma para modificar o estado das coisas.
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Além do mais, o que aconteceu a partir da separação, profissionalmente, favoreceu-a muito. Tudo colaborou: o fato de ser mulher num país extremamente machista, e
de meu pai ter tomado as atitudes públicas que tomou, mexeu muito com a cabeça das mulheres de todo o país e movimentou uma grande massa de oprimidas e marginalizadas.
Minha mãe se tornou a imagem da reação feminina contra o homem que fere, maltrata e impõe suas convicções.
Tornou-se a mulher que gritou pela primeira vez: "Errei, sim, manchei o teu nome, mas, porra, foste tu mesmo o culpado!". Esse grito veio forte, sem medo, passando
por cima dele. Ela cantava para as vítimas do preconceito. Para a mulher que até então era somente inspiração para samba. Mas que, a partir daí, ganhou representatividade,
força no discurso, ganhou uma voz. E que voz!
Cauby Peixoto, por quem Dalva tinha carinho de mãe, ia muito à nossa casa de Jacarepaguá e pedia para ela cozinhar seu prato preferido: galinha ao molho pardo. Quando
se referia a minha mãe, Cauby gostava de dizer que ela nascera mil anos antes do seu tempo, porque era a pessoa que mais sabia compreender e aceitar a difícil condição
do homossexual, fosse homem ou mulher.
Dalva cantava para quem vivia à margem. Imagino que foi nesse contexto que os homossexuais se identificaram com ela e passaram a acompanhar sua carreira com verdadeira
fixação. Ela era endeusada por eles e considerada A Rainha das Bichas! Chegou a receber oficialmente esse título e guardava com orgulho uma faixa com essa frase
em seu quarto de lembranças, em Jacarepaguá.
Minha mãe ganhou toda essa postura sem querer, apenas sendo o que era - emoção total, sensível, frágil, verdadeira. Não era escrava de nada. Como dizia sempre:
"Ah, o amor! O amor é o Amor. Só o amor importa!".
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Penso que essa capacidade de minha mãe se comunicar com os feridos na alma e no coração seja a razão <de seus discos continuarem a vender aos milhares e sua memória
jamais ser esquecida. Ninguém mais canta com aquela verdade escarnecida. Ninguém mais abre o peito e joga tanta emoção na direção dos que sofrem por amor. Os melhores
momentos da carreira de Dalva se cruzaram com verdadeiras tragédias na sua vida particular.
Em sua autenticidade, porém, ela acabava virando o jogo. Até com o advogado de meu pai no desquite, Clóvis Ramalhete, isso aconteceu. Não sei em que circunstâncias
a vida os aproximou, só sei que, alguns anos mais tarde, minha mãe o recebeu em casa para um almoço. Além de se desculpar com ela, ele veio a ser seu advogado.
com especial sentimento de triunfo, minha mãe escutou dele:
"Se soubesse que tipo de pessoa você era, jamais teria sido advogado do Herivelto".
Outro episódio quem me contou foi o jornalista e compositor Sérgio Cabral, em 1963, e demonstra bem a autenticidade de minha mãe. Ao pedir, meio descrente, para
participar, sem cachê, de um show no Teatro Municipal, promovido pelo velho CCP Centro de Cultura Popular, recebeu surpreso o "sim" de Dalva. Era um espetáculo escandalosamente
esquerdista. Só pôde ser realizado no Municipal porque o governador Carlos Lacerda estava viajando e o governo era ocupado interinamente pelo deputado Lopo Coelho.
Abrindo sua participação no show, em uma manifestação de pura ingenuidade, Dalva disse ao microfone:
"Já sei o que vocês querem ouvir: 'Lencinho branco ". Minha mãe nem imaginava que o CCP na época patrulhava as músicas que não tivessem em sua letra algum conteúdo
político. "Éramos todos comunistas", lembra Sérgio, mas o fato é que Dalva era tão maravilhosa que levou o seu tango até o fim. E foi muito aplaudida por uma platéia
formada basicamente de estudantes universitários de esquerda.
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Atualmente, o Brasil é um país que rompeu com o sentimento cantado. Não se rende mais à emoção como esses estudantes de esquerda se renderam. A.emoção não representa
mais a força de expressão necessária para a identificação mais ampla. Ficou out. Concordo com Cauby: minha mãe estava, e ainda está, muito além do seu tempo. E
nos legou uma herança musical que atravessa gerações, não nos deixando esquecer que existiu uma Dalva de Oliveira para amaciar nossa trajetória.
Hoje, uma geração que nem mesmo a conheceu passou a procurar sua história, seus discos e a querer saber quem foi aquela mulher que cantou como ninguém, que falou
o que ninguém mais fala e que se comunicou, através da emoção escancarada, à flor da pele.
Como uma espécie de Edith Piaf nacional, ela retirava da própria vida - marcada pela tragédia, a frustração amorosa e uma incrível capacidade de estar sempre recomeçando
- a força de sua arte. O drama pessoal vivido na separação de meu pai foi, sem querer, uma
espécie de aditivo na carreira de minha mãe. Dalva de Oliveira ficou acima
do bem e do mal, não era vista como de carne e osso". A Estrela Dalva é sempre desculpada, compreendida, amada. Dalva transcende.
Ao contrário, o homem Herivelto em nenhum momento dos depoimentos é poupado, mesmo todos levando sempre em conta o seu gigantismo e brilhantismo como artista e compositor.
Ele é de "carne e osso". Ela virou mito.
Há uma grande ironia da vida em tudo isso. Apesar de Dalva ter sido lançada e lapidada por Herivelto, ela estourou sozinha e brilhou mais ainda sem ele. Ao contrário
de Herivelto, que teve seu ápice artístico com ela no Trio de Ouro. Como compositor, criou maravilhas para brigar com ela, teve mais alguns sucessos com outros
intérpretes, mas foi perdendo a força em sua obra. Dalva
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passou a ser grande sem Herivelto, mas Herivelto nunca mais foi o mesmo sem Dalva.
Digo isso não apenas porque convivi com os acontecimentos. Baseio-me no testemunho unânime dos que conviveram com meus pais.
Nelson Gonçalves me disse:
"O Trio de Ouro era a Dalva, e depois de sua saída o grupo acabou".
Dorival Caymmi completou:
"Herivelto era um grande compositor, mas o Trio era a Dalva".
E o mais curioso é que, através do tempo, passamos a perceber que meu pai em toda a sua obra ficou atado à imagem de minha mãe, sua criação. vou mais longe: ficou
muito mais preso a ela, em importância, do que ela a ele.
Um perfeito exemplo dessa ligação é o livro Herivelto, uma escola de samba, escrito por Jonas Vieira e Natalício Norberto. Quando me encontrei com Jonas e comentamos
o livro, ele me disse que teve muito pouca liberdade no trabalho, que meu pai, para variar, direcionou tudo como quis e não permitiu que se falasse muito sobre Dalva,
dizendo que a obra era sobre ele. Mas essa postura deixava Jonas e seu parceiro Natalício numa grande sinuca: "Como falar de Herivelto sem Dalva?".
Meu pai era dono de um alter ego dos mais inflados de que se tem notícia. Quem o conheceu de perto sabe bem como era somente ele sabia fazer ou ser. Considerava-se
o único, o melhor, o mais inteligente, o mais produtivo. De um egocentrismo desmedido, jamais deu o braço a torcer reconhecendo o papel de minha mãe em sua trajetória.
Mas o que importa é que, à parte os resmungos de meu pai, a realidade irrefutável está expressa
na capa desse livro: a foto do Trio de Ouro com minha mãe. E na'contracapa
reina novamente uma foto de Dalva, sem Herivelto. O livro pode ser de Herivelto Martins, mas quem brilha em suas capas é Dalva de Oliveira.
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Legendas das fotos
Dalva sorridente ao lado dos filhos Pery e Bily - anos 60
Dalva e Nacib, seu maior fã e amigo
Pery, Elza Soares, Dalva e Orlando Dias
Reportagem na Revista do Rádio -janeiro/1961
Uma das fotos preferidas de Pery com sua mãe
Pery entre Dalva e sua primeira esposa, Cleide
Pery Ribeiro e Cauby Peixoto ajudam Dalva na cozinha
Terceiro Trio de Ouro com lourdinha Bittencourt, Raul Sampaio e Herivelto Martins anos 50
Pery com Raaul, Lourdinha e
Herivelto em tour pelo Brasil com
o Trio de Ouro - anos 1977
Pery com Elizete Cardoso e Raul Sampaio, quando Herivelto foi homenageado pelo Prêmio Shell de Música - Teatro Municipal - 7 de dezembro de 1987
Comemoração dos
80 anos de Herivelto Martins Pery, Herivelto, Shirley Dom, Dona Zica e alguns representantes da Velha Guarda da Mangueira
Miucha, Herivelto e Braguinha, ladeando
Ricardo Cravo Albim que ofereceu a festa aos 80
anos de Herivelto em sua casa no Largo da Mãe do
Bispo, na Urca, hoje sede do Instituto Cultural Cravo Albim
Ultima formação do Trio de Ouro, com Raul Sampaio, Shirley Dom e Herivelto Martins
As três gerações... Herivelto, o filho Pery e o neto Bernardo nos bastidores da TV Bandeirantes São Paulo, 1986
Pery com os filhos Paula e Bernardo no camarin
do Un-Deux-Trois ~
Rio de Janeiro, 1988
Herivelto foi enredo da escola de samba
Unidos da Ponte, no Rio, em fevereiro de 1986
Hélio, Nilton, Louro, Yaçanã, a neta Mayara e Pery, cercando Herivelto no dia de seu aniversário de 80 anos - casa da Urca - 30 de janeiro de 1992
Pery e Ana na noite paulistana - 1984
Pery com Ana e Bernardo no Natal de 1993, Rio
Pery com a esposa Ana e os filhos Paula e Bernardo em cruzeiro no Caribe, no Reveillon do Milênio - dezembro de 1999
50
ERAM FELIZES E NÃO SABIAM
OLHANDO o PASSADO DE LONGE como olho hoje, tão rico em emoções e aprendizado de vida, vejo que meu pai era muito
feliz e que apesar do relacionamento tempestuoso,
das brigas e das dores até físicas, minha mãe também era. Éramos todos felizes. Mas fui vendo que a felicidade real é algo muito diferente do que às vezes desejamos.
Ela tem a ver com a despreocupação com a existência. Tem a ver com a soltura e liberdade com que vivemos, sem a invocar tanto. Sem sofrer tanto para conseguir
tê-la. Ou até sofrendo, sem saber que ela está junto, por perto, sem se
pronunciar.
A felicidade para meu pai e minha mãe foi aquele instante. A felicidade para mim, para Bily, para minhas tias, para Otelo e para quem quisesse chegar. A felicidade
foi o apartamento da rua João Luís Alves, na Urca. Foi o tempo do Cassino da Urca.
Para quem veio dos parceiros da praça Tiradentes, o caminho até os cassinos da Urca e do Quitandinha havia sido longo e espinhoso. E estar nesses palcos e morar
no charmoso bairro da Urca, em frente da praia, representava a grande conquista do sucesso e
Adaptação de trecho da música "Professorinha", de Ataulfo Alves.
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da dignidade no viver. Era um momento de brilho intenso para eles e havia sido conquistado a dois.
Como filho, sempre procurei me relacionar mais com o íntimo dos meus pais do que com seus personagens, e por isso tenho certeza de que nem meu pai nem minha mãe
foram mais felizes na vida do que quando estiveram juntos. Brigando, trabalhando, compondo juntos.
Suas vidas eram expostas no palco, as desavenças eram curadas no palco, seu mundo brilhava no palco. Sempre juntos. O que eles não sabiam é que, juntos, estavam
fazendo a história da música de um país. Cheios de amor, às vezes cheios de dor, de rancor, mas cheios de vida também. com a juventude e o frescor fundamentais
para transformar as "infelicidades" numa história que tornaria o país, com sua música, uma emoção só.
Ao lado de minha mãe, meu pai conheceu o auge de sua força musical. Ela o inspirava. Ele construía as notas e as palavras sob medida para o seu canto. Sabia com
exatidão que brilho ela daria às canções. Juntos, ultrapassaram limites artísticos. Juntos, reinaram no palco: Herivelto nos arranjos e composições, Dalva no brilhantismo
de seu canto.
Minha mãe o ajudava muito em seu processo criativo. Ele costumava compor com freqüência ao dirigir o carro. De repente, começava a cantarolar uma frase musical.
Então, repetia algumas vezes, pedindo a ela para memorizar. Quando chegava em casa, pegava o violão e perguntava:
"Dalva, como é mesmo aquela frase que cantei no carro?". E ela cantava. Dava palpites, sugeria caminhos. Chamo isso de cumplicidade. Há uma canção, "Nossas vidas",
que nasceu assim. Meu pai a fez no carro, minha mãe ficou repetindo-a seguidamente, até ele poder parar numa padaria e escrevê-la num papel de pão, enquanto minha
mãe a cantava:
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Como já fomos nós dois tão iguais
E como hoje em dia
Tornamo-nos tão diferentes
Que a vida da gente se transformou
E até nossos beijos
Parecem beijos de quem nunca amou
Não me compreendes mais
Nem eu a ti
É inútil continuar, já vi
Procura esquecer
O endereço do meu apartamento
Eis o desfecho
Depois da indiferença
Deve vir o esquecimento
Quando me aventuro a falar na felicidade que acredito piamente ter existido na Urca, é porque devo ter percebido muito cedo que a força do talento que conduzia meus
pais consistia justamente em uma espécie de dramaticidade necessária aos dois. Eles precisavam ter o que tinham em suas vidas. Precisava ser do jeito que foi para
seguirem produzindo e crescendo com talento. A criatividade deles, com a força que o momento exigia, se alimentava totalmente da ausência de monotonia que marcou
a vida deles juntos.
As brigas e as reconciliações eram cercadas de música, de violão, letras bonitas, sambas gloriosos, macarrão na madrugada, cumplicidade nas canções, pescarias, amigos
e fidelidade ao palco. Tudo isso era Dalva e Herivelto juntos. Pura vida. Sem a assepsia que cerca os que apenas buscam o acasalamento, o sossego, a convivência
sem as emoções revigorantes, sejam elas quais forem, que aprofundam o relacionamento humano.
Quando ele se casou de novo, encontrou uma paz e um sossego com que não soube lidar. Era silêncio demais para um mundo feito de tantas cores e sons. Houve uma acomodação;
um vulcão
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entrou em calmaria. Ele continuou a viver, mas a sua função na vida ficou comprometida. Foi se tornando um ser esvaziado, com um olhar muitas vezes perdido e um
coração apagado, sem som. Só se acendia quando ele voltava para o palco. Ali, no seu templo, quando eu cantava junto com ele, podia ver uma garra, uma luz que lhe
iluminava a alma. Era bárbaro. Às vezes, fazia questão de me encolher no palco e oferecer mais espaço só para vê-lo brilhando.
Para mim, uma imagem marcante do artista Herivelto, uma verdadeira imagem de felicidade, era ele com sua escola de samba. Eu gostava de vê-lo com as mulatas e
os ritmistas tocando seu apito; ele se orgulhava de ter sido o inventor do apito. Depois que o usou pela primeira vez, nos anos 40, numa gravação carnavalesca, nunca
mais se fez Carnaval sem apito neste país. O apito se tornou um símbolo da sua presença no samba.
Na comemoração dos seus cinqüenta anos de carreira, Lurdes organizou no Rio uma festa no Café Nice, o novo, não o antigo. Bolei uma surpresa para ele. Reuni alguns
dos antigos crioulos e cabrochas e mais alguns participantes para reviver a Escola de Samba de Salão. O lugar estava cheio de parentes e amigos, como o companheiro
Grande Otelo, Elizeth Cardoso, Jamelão, Raul Sampaio, Braguinha, entre tantos que foram levar seu abraço.
Havíamos mandado fazer um apito de ouro para dar a ele como lembrança da data e de sua invenção. Em determinado momento, subi ao palco e o chamei. Ao chegar perto,
entreguei o presente em nome da família e lhe pedi que estreasse o apito, dando seu antigo brado de guerra. Não queria, mas insisti. Ele apitou como nos velhos tempos:
"Bateria, sentido! Tamborim e pandeiro! Tá na hora do samba que fala mais alto, que fala primeiro!".
Para sua total surpresa, os instrumentistas foram entrando um a um, sob o comando do ritmista Marçalzinho, sambando até o
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palco onde estávamos, ao som de sua famosa "Praça Onze Foi incrível a emoção que sentiu. Aliás, foi uma choradeira geral. Todo mundo se contagiou por aquela apresentação.
E o mais importante: pude ver meu pai num momento de verdadeira felicidade. Somente no palco com Dalva eu o havia visto daquele jeito.
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TENHO SAUDADES DA MANGUEIRA
MEU PAI ia com FREQÜÊNCIA à Mangueira ao lado de Cartola, que lá morava. O morro também fazia parte de sua vivência. Nos primeiros tempos no Rio, havia morado no
Morro do Pinto e no Morro de São Carlos. Cartola sempre foi muito tímido, um homem simples, com um natural talento para fazer lindas melodias e inspiradas letras.
Ele não ia tanto à nossa casa, minhas lembranças dele com meu pai são na praça Tiradentes.
Dessa convivência com Cartola e o Morro da Mangueira, Herivelto compôs vários sambas homenageando a Estação Primeira, em parceria com outros apaixonados por sua
magia e envolvimento. com Heitor dos Prazeres criou "Lá em Mangueira"; com Grande Otelo, "Adeus, Mangueira" e "Mangueira não". Mas seu grande hino de amor ao morro,
"Saudosa Mangueira", ele escreveu sozinho:
Tenho saudades da Mangueira
Daquele tempo em que eu batucava poria
Tenho saudades do terreiro da escola
Trecho da música "Saudosa Mangueira", de Herivelto Martins:
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Sou do tempo do Cartola
Velha guarda, o que que há
Eu sou do tempo
Em que o malandro não descia
Mas a 'polícia no morro também não subia
Ah, Mangueira! Minha saudosa Mangueira!
Depois que o progresso chegou
Tudo se transformou
E Mangueira mudou
Já não se samba mais
A luz do lampião
E a cabrocha não vai pró terreiro
De pé no chão
Não vai, não vai
Na época de convivência com Cartola, meu pai se encontrava também com Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça, sambistas dos mais autênticos do Rio de Janeiro, e eles
formaram um grupo. Chamava Bloco dos Arengueiros, e nele o samba e o pagode rolavam. Sem querer, deram espaço para talentos que se tornaram muito importantes para
a música brasileira. Mais tarde, o Bloco se transformaria na Mangueira, escola de samba que meu pai viu nascer, amou muito, cantou pelo resto da vida - e que jamais
se lembrou de homenageá-lo na Sapucaí.
O maior sonho de Herivelto era desfilar na avenida como enredo da sua amada Mangueira, em cima de um carro. No Carnaval, ficava muito magoado ao ver a escola homenagear
figuras públicas que nada tinham a ver com suas raízes, com sua história, nem demonstraram amor tão especial a ela, como Chico Recarey e
tom Jobim. Numa crise
de lucidez, ao encerrar seu desfile como homenageado, Jobim inclusive reclamava não saber o que estava fazendo ali.
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Em 1986, já com idade avançada, sentindo ter pouco tempo para ficar esperando ser lembrado pela sua Mangueira, meu pai aceitou emocionado o convite para ser o
enredo de uma escola que acabara de subir para o grupo especial, a Unidos da Ponte. Deles recebeu muito carinho e atenção. No dia do desfile, ele estava muito emocionado,
nervoso mesmo. Havia me convidado para ir ao seu lado, no alto de um carro. Seus filhos Hélio e Yaçanã e os netos Paula, Alexandre e Mayara também desfilaram na
escola. Bily não pôde ir, acho que estava morando na Itália.
Na hora H, na maior ansiedade, meu pai, que agora bebia moderadamente, apelou e me pediu para arrumar alguma bebida "pra dar coragem". Consegui uma daquelas garrafas
de bolso com uísque. Bem nervoso, ele tomou meia garrafa de um só gole, umas duas doses. Assim, mais relaxado, pôde "enfrentar" a alegria da homenagem.
Emocionado, curtiu o desfile e o aplauso do público lá do alto. Não conseguiu resistir, às lágrimas. Também não consegui. Ninguém consegue, é irreprimível. A emoção
de ver meu pai, o grande sambista Herivelto Martins, em pleno Sambódromo, ovacionado pelos amantes do samba, é indescritível.
É uma grande consagração! Naquele momento,
pouco importava a origem da homenagem.
Como pessoa realmente privilegiada por Deus, no ano seguinte, 1987, novamente pude subir ao alto de um carro daqueles e ouvir a avenida saudar a mim e a Bily numa
homenagem da Imperatriz Leopoldinense a nossa mãe. A diferença era que não pude ver nos olhos verdes de Dalva o brilho que vi nos olhos azuis de meu pai, no alto
do carro.
Acredito que, com o passar do tempo, a Mangueira percebeu ter ficado em falta com Herivelto. E, num derradeiro gesto, tentou minorar esse sentimento. Numa iniciativa
do produtor cultural e amigo de meu pai, Hermínio Bello de Carvalho, na manhã do 80' aniversário de Herivelto, a bateria mirim da Mangueira acordou
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meu pai ao som dos tamborins em frente de sua casa na Urca, levando 200 integrantes para homenageá-lo.
Infelizmente, não assisti a esse bonito espetáculo. Ninguém me avisou da homenagem e só cheguei de São Paulo à tarde, para abraçá-lo. Emocionado e confuso em seus
sentimentos, meu pai me contou a surpresa. E claro que a emoção foi grande. O espetáculo inesquecível parou a Urca. Levou-o às lágrimas. Lágrimas com uma pitada
de frustração. Não dava para apagar o sonho de desfilar num carro da Mangueira, visto pelo mundo inteiro, orgulhoso de ter contribuído, junto com seus companheiros,
para o engrandecimento da escola e de ter enaltecido, em tantos sambas, o amor pelo morro e pelo Carnaval.
Na festa dos 80 anos, oferecida pelo grande amigo Ricardo Cravo Albin em seu lindo apartamento na Urca, todos comentavam o desfile. Quando conversei com o Ricardo
sobre a festa, ele me lembrou que foi nesta noite a última apresentação pública do Trio de Ouro, comigo substituindo Raul Sampaio. Foi uma apresentação comovente,
aplaudida por 120 personalidades cariocas, no largo da Mãe do Bispo, hoje sede do Instituto Cultural Cravo Albin.
O affair Herivelto versus Mangueira era o grande tititi da noite, na qual estiveram presentes Elizeth Cardoso, Braguinha, Beth Carvalho, Zezé Motta, Sérgio Cabral,
Miúcha, Boni, José Maria Monteiro e Paulo Henrique Cardoso, para citar alguns, além da diretoria e a Velha Guarda da Mangueira. Diante de tantos comentários sobre
o absurdo da situação, alguns integrantes da diretoria da Mangueira, presentes à festa, se comprometeram a colocar o caso em discussão na Liga.
Pelo regulamento da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, as escolas não podem repetir os homenageados. Assim, a chance de meu pai ser homenageado pela sua
Mangueira exigia a mudança desse regulamento. Herivelto jamais conseguiu entender essa falta de reconhecimento e morreu sem saber como foi possível nunca ter sido
escolhido para tema da Mangueira, sua maior paixão.
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BANDEIRA BRANCA, EU PEÇO PAZ
No INÍCIO DOS ANOS 70, como uma fênix, minha mãe renasceu do esquecimento em que mergulhara e voltou a brilhar nos palcos e na programação das rádios. Sua saúde
já estava totalmente comprometida e a fazia alternar os palcos com os hospitais. Teve de se submeter a punções para retirada de líqüido - seu abdômen estava enorme
-, e na primeira, realizada no Hospital Pedro Ernesto, na Tijuca, os médicos confirmaram o diagnóstico de cirrose hepática. Já se desconfiava disso desde o desastre
no Túnel Novo.
Ainda internada, ela recebeu a visita de Max Nunes e Laércio Alves, que a convidaram para interpretar uma música deles num festival de Carnaval. Encantada com o
desafio, ela aceitou, pedindo um tempinho para se fortalecer. Ao deixar o hospital, foi direto para o estúdio da Odeon gravar "Bandeira branca".
Eu tinha acabado de chegar do exterior. Ao ser sagrada uma das vencedoras, minha mãe fez questão de que eu subisse ao palco do Maracanãzinho com ela para receber
o prêmio. Sem ter nada a ver com a festa, conduzindo-a por uma passarela enorme até a frente do palco, percebi o quanto estava insegura e frágil ao se
Trecho da música "Bandeira branca", de Max Nunes-e Laércio Alves.
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apoiar em mim. De cima daquele palco, abraçado a ela, provei a sensação divina de ouvir 20 mil pessoas gritando o nome de Dalva. Emocionada, ela chorava, apertando
minha mão, ao receber aquela homenagem grandiosa e cheia de amor, o Maracanãzinho inteiro cantando a marcha-rancho "Bandeira branca".
Sobre essa participação no concurso, Maurício Sherman me contou uma história. A marcha não havia entrado para a seleção das trinta finalistas do festival de Carnaval
de 1970, na TV Tupi. Ficou apenas na relação de reserva feita pela organização para eventuais problemas. Era a número
1 nessa lista. Por obra do destino, quando
a produção do concurso teve de desclassificar por fraude uma das finalistas, Sherman, então diretor da Tupi, mandou avisar os autores de que "Bandeira branca" havia
entrado para a final.
A música entrou no concurso de Carnaval defendida por Dalva, tirou o terceiro lugar e se consagrou para o resto da vida. Transcendeu o universo carnavalesco e se
tornou um clássico da música popular. E hoje, tenho certeza, ninguém se lembra nem do primeiro nem do segundo lugar desse concurso...
Nesse período, minha mãe estava profundamente triste. Mesmo que algumas coisas estivessem acontecendo para que ela pudesse se recuperar, mesmo que o sucesso trouxesse
alguma alegria, mesmo assim um vazio e um sentimento de perda haviam tomado conta dela. Em toda a sua trajetória de vida, não conheceu a glória sem enfrentar a dor.
A destruição, a fraqueza diante da bebida e um descontrole total da própria vida eram evidentes. Depois de ficar longe dela tantos anos, passou a me requisitar muito,
fazendo questão de que eu estivesse com ela em todos os lugares. Foi assim quando resolveu dividir comigo a felicidade da consagração de "Bandeira branca"
- pude sentir a imensidão do amor de minha mãe e quanto era generosa. Ao mesmo tempo, vi como estava frágil e angustiada.
Nessa minha volta ao Brasil, ainda tive a felicidade de dividir o palco com minha mãe em alguns shows no Rio, São Paulo e
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Salvador. Trabalhar com ela era sempre uma grande fonte de prazer e aprendizado para mim. Além de uma verdadeira-emoção, penso que desde os tempos de criança, ao
vê-la
no palco, no íntimo, sonhava com isso. Nosso último trabalho juntos foi uma temporada no Vivará do Rio, mais tarde Scala, num show produzido por meu irmão Bily
e Nuno. Ficamos uns dois meses em cartaz. Sentia que ela estava feliz e orgulhosa de trabalhar comigo.
Nós três nos unimos para evitar que ela bebesse. Mas seu organismo estava cada vez mais fraco. Quem tem alcoólatra na família sabe que o problema vai se agravando,
porque a pessoa já não se alimenta mais, vive da bebida. E o organismo fica sem defesa. Assim, minha mãe começou um entra-e-sai de hospitais. com a cirrose, o abdômen
acumulava muito líqüido e ela tinha de ser internada para os médicos fazerem punção em sua barriga.
Esse quadro durou por volta de um ano. Até que seu estado se agravou e ela foi internada na Casa de Saúde Arnaldo de Morais, de onde não mais conseguiu sair. Nesse
hospital, foi tratada com grande carinho e devoção pelo dr. César Barroso, que comandava uma junta médica empenhada em salvá-la. Nos três meses em que passou internada,
o quadro clínico de minha mãe foi piorando. Surgiram hemorragias, que consumiam sua pouca força e exigiam dos amigos e dos fãs muita doação de sangue.
Seu estado de saúde mobilizou mais do que os fãs de Dalva: mobilizou o país e a imprensa. O boletim médico ocupava as primeiras páginas dos jornais. Os fãs faziam
plantão 24 horas por dia em frente do hospital. Atendíamos a ligações de pessoas de todo o país informando que estavam fazendo novenas e vigílias pelo seu restabelecimento.
Éramos procurados por padres, pastores, mãesde-santo e rabinos, oferecendo a solidariedade de suas fés. Os colegas artistas entravam e saíam do hospital'a toda hora.
Conversando com Emílinha Borba, ela se lembrou de quando foi com o cantor João Dias fazer uma visita àminha mãe. Estavam
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de saída para São Paulo, onde iriam participar de um programa na TV Record. Vendo a grande despesa que ela estava tendo no hospital e recordando a generosidade que
Dalva sempre tivera com todos, combinaram durante a viagem de pedir aos colegas para doarem seus cachês do programa de TV para o tratamento.
Todos os artistas cooperaram. E Emilinha voltou ao hospital para nos entregar o dinheiro arrecadado. Toda essa solidariedade nos emocionava. Mesmo nos momentos em
que não podia receber visitas, os amigos se acotovelavam na sala de espera à cata de notícias mais detalhadas. O apoio e o carinho com minha mãe nos sensibilizavam
e nos davam força naquele momento difícil.
Em meio a esse turbilhão, eu estava ensaiando com Leny Andrade o show Gemini 5, que iria estrear no Teatro Santa Rosa sob a direção de dois talentosos amigos, Mièle
e Ronaldo Bôscoli. Podem imaginar o estado psicológico em que me encontrava? Terminava os ensaios e corria para o lado dela.
O estado de minha mãe se agravava cada vez mais e ela entrou em coma pela primeira vez. Ficamos em alerta total. Não queria sair de perto dela. Interrompi os ensaios.
Solidários e entendendo o meu momento, Mièle e Bôscoli chegaram a me oferecer o adiamento do show. Graças a Deus, ela ficou em coma menos de dois dias. Quando acordou
e me viu a seu lado, perguntou:
"O que o senhor está fazendo aqui? Não é hora do seu ensaio?".
"Ora, mãezinha, estou sem cabeça pra trabalhar. Estou preocupado com você. Quero que fique boa."
"Nada disso! Trate de ir ensaiar. O senhor tem um show para estrear. Isso é o que importa."
Estreei o show debaixo desse clima. Edith estava morando comigo num apartamento da avenida Nossa Senhora de Copacabana e me ajudava no camarim do Teatro Santa Rosa.
Ela conta que, quando minha mãe acordava, ia logo perguntando:
"Cadê o Pery?
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Edíth explicava o que eu estava fazendo e que estaria no hospital mais tarde. Minha mãe conversava um pouco com ela, mas logo a despachava para ir cuidar de mim,
das minhas roupas, da minha comida. Porque, na análise de minha mãe, eu não podia ficar sozinho.
A morte de minha mãe foi um processo que aconteceu devagarzinho. Entra-e-sai de hospitais, comas, noticiário falando dela o tempo todo. As pessoas acompanharam com
profunda tristeza os acontecimentos. Uns vinte dias antes de ela falecer, o dr. César, arrasado em sua impotência, se reuniu conosco e anunciou a morte clínica dela,
dizendo que não havia mais nada que pudessem fazer. Era apenas uma questão de tempo. Ela estava em coma nesse dia. Foi quando sofri de verdade sua perda. Quando
finalmente se foi, a morte já havia se pronunciado dias antes.
Quem já teve um ente querido sofrendo durante muito tempo com alguma doença grave sabe o alívio que a morte desse ser amado nos traz. O que aprendi sobre o ser
humano nesse lento processo de agonia foi impressionante. Se surgia a notícia de que ela havia sofrido uma hemorragia, o noticiário todo se empolgava e crescia em
intensidade. Homenagens com seus discos tocando nas rádios. As pessoas indo para as igrejas fazer promessas. Enquanto durava o perigo do grande mal, durava o interesse.
Quando ela ia melhorando, arrefeciam as homenagens, os discos tocavam menos, os jornais iam deixando de falar nela. Como todos sabem, felicidade não vende jornal.
Acontecia outra hemorragia, pronto!, começava tudo de novo. Jornais, rádios, interesse geral. À medida que ela melhorava, acabava tudo. Um amigo me preveniu:
"Não se espante, Pery, de ver que, à medida que as hemorragias passam e o estado dela melhora, o povo, os jornais vão perdendo o interesse. O povo precisa chorar
forte, de verdade. Não interessa chorar um pouquinho apenas".
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Até que minha mãe se foi e o povo teve sua grande notícia: Dalva morreu. Foi uma comoção nacional. O Rio parou. Telegramas vinham de todas as partes do país. O
ex-presidente Juscelino telefonou de Paris, além de mandar telegrama. O presidente Costa e Silva mandou telegrama. Políticos, religiosos, artistas se solidarizavam
com a família pela morte de Dalva.
O país chorou, e chorou muito. As revistas O Cruzeiro e Manchete dedicaram números especiais a minha mãe. Eu só havia visto algo parecido na morte de Carmen Miranda.
E muitos anos depois, com Ayrton Senna. O velório no Teatro João Caetano durou o tempo necessário para passarem por ela, acredita-se, mais de 100 mil pessoas. Foi
feita uma máscara mortuária, como derradeira homenagem.
No longo caminho para o Jardim da Saudade, em Jacarepaguá, o povo chorava. O subúrbio do Rio compareceu em peso ao trajeto, divulgado pela imprensa, por onde passaria
o carro de bombeiros com o caixão. A grande notícia acabava de ser dada e o Brasil inteiro chorava o desaparecimento de sua Estrela Dalva.
Nunca vou me esquecer de alguns detalhes daquele dia. Ela havia estado em coma por uns três dias e acordara na manhã do triste 30 de agosto de 1972. Passamos todo
o resto do tempo ao seu lado. Lembro que, quando ela acordava do estado de coma, seus olhos pareciam ainda maiores, mais brilhantes e mais verdes.
Num momento em que estava sozinho com minha mãe no quarto, ela acordou de um sono curto. Perguntei baixinho:
"Tudo bem, mãezinha? Está se sentindo bem? Quer alguma
coisa?
Ela me olhou com aqueles olhos lindamente verdes, segurou minha mão, levou-a até seu rosto pálido e me disse docemente:
"Força, meu filho! Pra frente, campeão! Eu parto, mas vocês continuam".
Como eu não conseguia me lembrar de mais detalhes do dia de sua morte, liguei para meu irmão Bily para esclarecer algumas
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questões. E aí pude entender o porquê do meu "esquecimento". Como Bily ouviu do médico que nossa mãe não passaria daquele dia, ficou preocupado comigo. Sabendo
da minha forma intensa de reagir, pediu ao médico para me aplicar um calmante bem forte. Por isso tudo é tão embaralhado na minha cabeça ao me recordar desse dia.
Por volta das cinco da tarde, Bily, Gigi e eu assistimos ao seu último suspiro. O silenciar do seu canto. A partir do seu silêncio, o Brasil cantou sozinho, e ainda
canta, o grito de paz que ela pediu em toda a sua existência, dedicada unicamente a cantar o Amor, e traduzido em:
Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz
Saudade mal de amor, de amor
Saudade dor que dói demais
Vem, meu amor
Bandeira branca
Eu peço paz!
Ali já não havia outra cabeça a fornecer subsídios comprometidos pelo despeito de marido ferido, como meu pai fez. Ali estava o ser humano se redimindo, já fora
do prazo, pelo papel de narrador oficial de tanta imundície.
Foi bonito, mas ele escreveu para o mundo que o julgava, não para Dalva, que já não podia ler nem saborear sua atitude.
Apenas sei que minha mãe jamais guardou ódio em relação a David ou a qualquer pessoa em sua vida. Era realmente imbuída de uma profunda capacidade de perdão para
com o mundo. "Viveu sem ódio, morreu em paz", como David escreveu.
Acredito que a morte de minha mãe deve ter mexido muito com a cabeça do jornalista David Nasser. Além dos pedidos de desculpas que procurou fazer à minha mãe enquanto
ela viveu, ele se sentiu responsável o bastante para escrever uns quinze dias depois de sua morte, na revista O Cruzeiro, uma declaração até bonita, não fossem as
dores que ele mesmo havia causado a ela.
O que ele publicou nessa edição dedicada inteiramente à minha mãe era, sem dúvida, um enorme, um gigantesco pedido de desculpas. Inteligentemente, oferecia um retrato
da conduta e da personalidade daquela que nos deixara havia poucos dias.
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MEU IRMÃO BILY, PARCEIRO DE UMA VIDA
BiLY TEM UMA VISÃO DE VIDA bastante diferente da minha, claro. E uma pessoa dotada de muita sensibilidade. Emotivo, mas com uma emoção toda interiorizada. Não se
extravasa com facilidade. As vezes, sinto como se ele tivesse vergonha dos sentimentos que tem, então os tranca. Cada um a sua maneira, digerimos as tormentas que
passamos, juntos ou separados.
Sinto que ele sempre procurou encontrar certas respostas ou apoios no modo como meu pai organizou a vida, na certeza de que tudo, ou quase tudo, pudesse estar mais
seguro quando colocado em seu devido lugar, sem dúvidas ou incertezas. Eu diria que a nova vida de meu pai com Lurdes o encantava um pouco mais. A casa, a mulher,
os filhos, a organização de uma família, a situação estável e sem sobressaltos, o caminhar sem riscos, enfim, a estabilidade burguesa. No íntimo, Bily é um indivíduo
que perseguiu sempre a segurança, muito mais que a incerteza, embora a incerteza pudesse acenar com possibilidades maiores.
Um exemplo: sempre tive a impressão de que ele gostaria de ser cantor, artista. Teria inclusive as condições básicas para isso: afinação, belo timbre, sensibilidade
e... muito DNA. Porém, não foi
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o que aconteceu, pois faltou o fundamental, a vocação, que ele não tem. Pois é só a vocação, e não o talento, que nos dá a força necessária para correr riscos, trilhar
as inseguranças e renascer a cada vez que pisamos o palco. Sem incertezas não existe o artista. Não existe a criação.
Mas, enfim, ao dar prioridade à segurança, meu irmão Bily construiu uma bonita carreira de homem de TV na mais importante emissora do país, a Globo. Ficou na área
artística, mas não quis pagar o preço de conhecer o êxtase total do artista: viver entre o céu e o inferno. Chegou perto, porém seguiu seu destino: a busca da estabilidade
profissional.
Talvez por ser o mais novo dos filhos de relações anteriores de meu pai, ele foi o que mais se ligou a Lurdes. Encontrou nela uma confidente e uma mentora e mantiveram
um relacionamento carinhoso e afável. Nunca precisou discutir com meu pai sobre seu comportamento no mundo, como acontecia com nossa mãe. Não precisava chamar
sua atenção por beber a mais nem sentir vergonha por algum vexame público que ele pudesse cometer. No novo modo de vida de meu pai não precisava ter de estar sempre
perdoando por condutas nem sempre de acordo com seus princípios ou os da sociedade.
Por essas coisas todas, era muito mais fácil para ele o convívio com a casa de meu pai, na Urca. Conseguiu até se tornar íntimo dessa nova estrutura, pois tudo
o que ele queria era se sentir parte de algo tão seguro, tão previsível. Nascido praticamente no dia do aniversário do meu pai - Bily é de 29 de janeiro e meu pai,
de 30 -, eles têm muita coisa em comum no temperamento, o que facilitou sua adequação às regras dele. Talvez porque elas tinham a sua medida. Da mesma forma que
a medida (ou a falta disso) de minha mãe tem muito mais a ver comigo.
Como parceiros de uma odisséia gigantesca para duas crianças, Bily e eu desenvolvemos uma liga muito forte que vai além do amor
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de irmãos. Ele foi dotado de um amor enorme por mim e sempre foi extremamente carinhoso e atencioso comigo. Também tenho por Bily o maior amor do mundo. Aliás,
não poderia ser diferente.
Diferentes são apenas nossos pontos de vista em relação à vida que levamos, mas jamais discordamos de uma coisa: o que vivemos foi nosso e nos pertence. Nos ensinou.
Moldou nossa filosofia de vida. Se divergirmos, é sempre uma divergência sadia, para que possamos nos oferecer, e a nossos filhos, um caminhar melhor do que tivemos,
com o orgulho de quem teve um tesouro desde que nasceu. Sermos filhos de Dalva e Herivelto!
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ADEUS, MINHA PRAÇA ONZE, ADEUS
NA SEMANA QUE ANTECEDEU a morte de meu pai, tínhamos ido ao Rio assistir ao show de dois novos artistas, João Marcelo e José Carlos, lindas vozes masculinas que
estavam fazendo uma homenagem a ele. Era o show Herivelto a gente canta assim. Fui com minha mulher, Ana, e combinamos de nos encontrar lá com Hélio, minha cunhada
Sara, Yaçanã e meu pai. Tratava-se de uma síntese emocionante da obra de meu pai, e realmente desfrutamos muito do trabalho deles. Emocionado, com a homenagem Herivelto
chegou às lágrimas.
Sentado ao lado, vi a emoção tomar conta dele. Em determinado momento, pensei em lhe segurar a mão como prova de carinho. Para minha angústia, não consegui. Briguei
comigo mesmo a noite inteira, travando uma batalha com meus pensamentos, mas não consegui segurar a mão de meu pai. Olhava para aquela mão envelhecida repousada
sobre a perna, bem debaixo dos meus olhos, tão perto de mim. Mas tão longe. Por mais que quisesse, não conseguia levar minha mão até a dele. Dominado por essa
Trecho da música "Praça Onze", de Herivelto Martins e Grande Otelo.
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sensação de impotência, aproveitando a semi-escuridão da casa noturna, chorei mansamente.
Foi estúpido. Mas não consegui. Na verdade, uma barreira em nossa intimidade havia sido construída ao longo do tempo. E não foi possível transpô-la num momento tão
decisivo. Pode parecer estranho, mas tenho um sentimento profundo de emoção quando falo de meu pai. A lembrança dele no palco, sozinho ou ao lado de minha mãe, leva-me
muitas vezes a chorar.
E, quando fico tomado dessa emoção, me vem sempre à mente minha mãe falando de sua "saudade de não sei o quê"... Hoje, acredito que essa mesma emoção tomava conta
dela em seus momentos de entrega interior, levando-a às recordações de um tempo muito marcante e, conseqüentemente, às lágrimas. Meu pai teve esse poder.
Ele foi muito forte. Ao lidar com minha mãe, ao lidar com a música e ao lidar com os filhos. Só que qualquer emoção em relação a ele que nos chegue à mente vem
sempre acompanhada da vontade de tê-lo abraçado, ou ter tocado em suas mãos, ou sentido com mais intimidade sua presença. Isso jamais foi possível. Razão pela qual,
lamentavelmente, uma semana antes de sua morte, eu não consegui segurar sua mão.
Na morte de meu pai não houve a "preparação" que uma doença grave naturalmente traz aos parentes. Foi uma coisa repentina. E rápida. Havia estado quatro dias antes
com ele no show Herivelto a gente canta assim, dirigido pela querida amiga e atriz Cristina Santos, com direção musical de Leandro Braga, outro grande talento
e amigo.
Nesse show, em 1992, fui surpreendido por facetas ainda desconhecidas para mim desse casal de amigos: a maturidade de Cristina no roteiro e na direção do show (convidei-a
para dirigir um show meu, meses depois) e a inventividade musical de Leandro,
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que fez uma leitura maravilhosa da obra de meu pai, a ponto de ele ir cumprimentá-lo dizendo:
"Maestro, muito obrigado pelo que fez com minhas músicas. Jamais pensei que eu fosse tão moderno".
Meu pai ficou tão impressionado com o show que resolveu apadrinhar o trabalho de todos e já no dia seguinte começou a ligar para os amigos importantes da área musical,
como Ricardo Cravo Albin, Albino Pinheiro e Sérgio Cabral, convidando-os para assistir com ele ao show na semana seguinte. Ele me ligou contando que iria reunir
esses amigos na quinta ou sexta-feira. Eu estava em São Paulo e me preparei para viajar para o Rio. Queria estar na reunião, só para compartilhar com ele a emoção
daquela homenagem tão sensível e bonita, junto com seus amigos.
Mas a semana seguinte não veio. Na noite de quarta-feira, logo depois do Jornal Nacional, recebi um telefonema de Bily dizendo que nosso pai havia passado mal pela
manhã e fora levado em uma ambulância para o Hospital Samaritano. Essas palavras me deixaram assustado, além de muito bravo por estar sendo avisado tanto tempo depois.
Discutimos, meu irmão disse que não me avisaram antes porque não havia motivo para me preocupar, era apenas um mal súbito, e que eu não precisaria vir ao Rio, a
não ser que algo se complicasse.
Apesar dessas palavras, não conseguia me tranqüilizar. Na época, morava na Serra da Cantareira, em São Paulo, um verdadeiro paraíso em meio a uma reserva florestal,
mas com o inconveniente de ser afastada da cidade e muito distante do aeroporto onde decolava a ponte aérea para o Rio. Aprisionado em minha impossibilidade de
estar perto de meu pai naquele momento, liguei para Hélio, mas não o encontrei em casa. Cada vez mais nervoso, liguei para o hospital e chamei a enfermeira-chefe,
tentando saber o que realmente estava se passando. Ela disse que meu pai já havia saído da UTI e estava em observação. Havia tido uma complicação nos pulmões.
Ao ouvir a palavra UTI, meu coração disparou e pensei:
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"Meu Deus, então é grave!".
Minha cabeça rodava, cheia de suposições. Voltei a falar com Bily e ele disse que o médico também tinha dito que o momento clínico de meu pai era de observação.
Por volta das onze horas, no dia 16 de setembro de 1992, o telefone tocou pela terceira vez: meu irmão Bily avisando que nosso pai havia morrido.
Minha reação foi muito forte. Contou-me Ana (incrível, apaguei tudo da lembrança!) que comecei a chorar desesperadamente, enquanto socava as paredes e portas do
nosso quarto, gritando que ficara sozinho no mundo. Assustada, Ana conseguiu aos poucos me acalmar. Ou, pelo menos, me tirar daquele transe em que mergulhara. Uma
tristeza profunda tomou conta de mim, uma sensação estranha me comendo por dentro. Não me conformava de nessa hora estar tão longe de meu pai.
com minha mãe, houve uma longa preparação para o desfecho. Já se previa havia mais de um ano seu fim. com meu pai, no entanto, estava sendo completamente diferente.
Foi uma dor súbita. Uma dor imprevisível. Afinal, havia bem pouco tempo, ele fizera um check-up e os médicos disseram que tinha o organismo de um rapaz. Ele era
muito saudável e não tinha nada de senil em seus 80 anos. Parecia um pesadelo: havíamos estado juntos fazia menos de uma semana, falamo-nos no dia anterior.
Eu queria ir imediatamente para o Rio, mas não havia mais avião naquela hora da noite. Quis então ir de carro e Ana, com paciência, me fez ver que era bobagem,
pois chegaria de carro na mesma hora do primeiro vôo da ponte aérea. E, para me "convencer" melhor, deu-me um calmante forte e me fez dormir.
Essa triste surpresa foi muito dolorida para todos. Em pleno ano de comemoração e homenagens aos seus 80 anos, Herivelto Martins morria repentinamente. Os amigos,
a família, o público brasileiro choravam a perda de um de seus maiores poetas. Sei que ao longo de sua vida meu pai não cativou o carinho, a simpatia e a camaradagem
necessários para que, em seu momento final, o povo
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rendesse uma homenagem efusiva e apaixonada. Mas o Brasil demonstrou que sabia estar perdendo um artista de envergadura.
A imagem dele, quatro décadas depois, ainda era respingada por aquele Herivelto dos anos 50. Estava sem brilho, sem abertura para as novas idéias, e não se permitiu
encaixar num contexto de vida mais leve e descontraído. Mantinha-se distante do povo, embora, de vez em quando, recebesse manifestações públicas de reconhecimento
ao seu talento, surpreendendo-se pelo grande carinho demonstrado.
Viajei para o Rio sentindo um grande vazio, a sensação de perda. Quando saltei do avião com meu filho Bernardo, que com apenas onze anos fizera questão de me acompanhar
(Herivelto foi o único avô que meu filho conheceu, pois os pais de Ana faleceram prematuramente), e fui para a Câmara dos Vereadores, onde seu corpo estava sendo
velado, ainda não acreditava no que estava vivendo. Perdia uma imagem que fora construída dentro de mim desde o berço, na casa de cômodos da rua do Senado. Perdia
a palavra que emocionava o mundo à minha volta enquanto eu crescia. Perdia a inteligência que formou minha sensibilidade e meu gosto pela música.
Não teria mais a contradição que meu pai representou: um poeta maior falando do amor e da beleza da vida, mas também o marido que bate e destrói tudo em sua volta.
O homem que me mostrou as cores da vida - desde a mais escura até a mais clara e brilhante, em todas as tonalidades e forças.
Não sei se todo adulto tem essa sensação desesperadora de desamparo ao perder um ente querido, como senti quando perdi meu pai. Uma criancinha sem pai. Creio que
o tempo nos faz crescer, na marra! Mas num momento como esse aflora a nossa criança interior. Eu me senti órfão. Meu sentimento em relação a meu pai era de respeito
e admiração. Se ele acertou ou errou como pai, já não importa mais. O que ficou de seus ensinamentos, da disciplina e do amor ao trabalho, isto sim é o que conta.
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Assim mesmo, só para mim, como filho. O restante, o tempo há de colocar em seu devido lugar.
Como acontecera na morte de minha mãe, mais uma vez eu estava em cima de um carro do Corpo de Bombeiros, levando um dos meus pais para a morada final. No caminho
da Câmara para o Cemitério São João Batista, algumas pessoas acompanhavam a passagem, acenando, outras até choravam o poeta que tinha dado tantas alegrias nas canções.
A partir daquele momento, nada mais importaria, fosse para amar ou desprezar. Os pecados haviam morrido com ele. Tudo morrera com ele. Menos a sua música. Já não
fazia a menor diferença como ele expressara sua personalidade ou sua conduta pela vida afora. A partir daí, restaria de Herivelto Martins a herança de sua obra maravilhosa.
Tenho consciência de que o tempo já está se incumbindo de torná-lo um mito. Grande e forte. Indestrutível e respeitado. A eternidade se prepara para colocá-lo no
mais alto grau de importância. Um verdadeiro ícone da música popular brasileira.
322
55
O AMOR É O RIDÍCULO DA VIDA
As PESSOAS QUE AMAM DE VERDADE, sem condições ou medos, são as que enxergam o ser amado como ele é, sem censuras, culpas ou julgamentos. As que não amam de verdade
são as que procuram encobrir os defeitos, as falhas ou as atitudes que possam "manchar a imagem - principalmente dos que morreram - e assim tiram das pessoas o
direito de serem autênticas, isentas de hipocrisia e, acima de tudo, de serem humanas.
É nesse contexto de humanidade que coloco o meu amor por meus pais. Sem críticas ou condenação. Apenas relato a história de amor e dor que vivi com eles, com a
humildade de ser humano que também erra, com o amor de filho e com a admiração de artista que sou. Se tudo for analisado com os olhos de hoje, com a filosofia
minimalista atual, com o comportamento desprovido de emoção de agora, talvez alguém diga - como já disse um jornalista numa matéria sobre Francisco Alves, publicada
na Folha de S.Paulo - que a separação de meus pais foi forjada e comercialmente planejada, que era somente uma discussão feita para levantar dinheiro.
Trecho da música "bom dia", de Herivelto Martins e Aldo Cabral.
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Mas, se mergulharmos no universo deles, veremos que havia dentro dos dois uma verdade maior do que o dinheiro ou as vantagens advindas da separação pudessem oferecer.
Havia nos dois um sentimento de fidelidade à sua grande verdade. Havia em meu pai, que foi quem primeiro colocou a história nos jornais. Era um grito verdadeiro.
Não havia farsa nem mentira. Foi cruel, foi estúpida e irresponsável toda a separação, mas ninguém poderá dizer que foi mentirosa.
Acredito que brigas e desavenças sempre existirão entre os casais. E, por causa delas, o mundo troca ou modifica seus aspectos, senão seria tudo igual, tudo como
começou. com meus pais não foi diferente. E hoje, passados tantos anos, procuro colocar toda a história mais perto de mim, mais próxima da análise que amigos, parentes
e, por que não, o grande público passaram a me oferecer como subsídio.
Nessa busca da verdade - avaliando o comportamento de ambos, a razão das brigas e o drama que os vitimou, antes de considerar qualquer um deles como o "grande culpado"
- reafirmo que tudo poderia ter sido bem diferente para ambos se meu pai tivesse conduzido tudo de maneira totalmente diferente do que fez.
Ele construiu um abismo enorme do qual não conseguiu mais sair, mergulhando no cenário frágil que construiu a sua volta. Por outro lado, arrisco dizer que minha
mãe teria preferido jamais ter ficado sozinha - mesmo com todo o sucesso - e ter continuado a viver ao lado do homem que a fez conhecer tanta beleza. O único amor
que experimentou verdadeiramente. Lamento muito que tenham se destruído tão profundamente, em igual proporção, e seguido caminhos tão adversos dos que sonharam nos
tempos do Teatro da Pátria, nos idos de 1936 para 1937.
Assim, revendo a forma de meu pai levar sua vida amorosa, observo que ele nunca encerrou um relacionamento para começar outro. Foi assim com Dalva, que surgiu quando
ainda estava com Mariazinha; foi assim com Lurdes, que entrou em sua vida ainda casado com Dalva.
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Enquanto o dinheiro e o sucesso não chegavam, meu pai foi um marido atencioso e dedicado. Quando o trabalho do Trio estourou, ninguém o segurou mais.
Jamais preservou minha mãe de suas infidelidades, ao contrário: parecia querer que ela soubesse quem ele estava namorando, fosse uma garota do cassino ou uma cabrocha
da escola. E mais grave: transou com Isaurinha Garcia na cama onde dormia com Dalva. Quando minha mãe reclamava, exigindo outro comportamento, ele encerrava a
discussão com porradas.
Mesmo com minha mãe já sabendo de seu caso com Lurdes, meu pai impôs um casamento de aparências a ela, antes da ida para a Venezuela, para dar continuidade aos
contratos do Trio.
Morando com Lurdes, continuava sua carreira de conquistador e chegou a ter um filho, que não conheceu, com uma componente do trio da sua irmã Nazinha (Hedinar).
Na época em que vivia com minha mãe, colocava dentro de casa um montão de homens para comer e beber, a qualquer hora do dia ou da madrugada. Nunca houve privacidade
na vida deles. Ele mesmo declarou em sua biografia:
"Dalva era uma pessoa muito recatada, tranqüila e não esboçava sentimentos agressivos. Depois, transformou-se. Aprendeu a ser agressiva, primeiro com insultos e
depois descendo ao terreno físico".
Ora, como ele poderia esperar que uma mulher permanecesse recatada e tranqüila nessa situação? Será que era esse seu desejo? Acho que minha mãe até tentou, ao permanecer
tanto tempo na formação do Trio. Como mulher e profissional, suportou o que advinha dessa atitude.
Tentou, ao achar que o conhaque poderia apagar as dores e decepções que o amor por aquele homem estavam causando. A partir daí, a bebida foi tendo um papel fortíssimo
em sua vida, a ponto de ser a razão maior de sua destruição. Não se pode esquecer que a bebida entrou em sua vida ainda no início, quando estava com meu pai. E
também não podemos esquecer que os traumas advindos
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de sua vida a dois não terminaram com a separação. Ainda permaneceram nas canções e nas ofensas públicas. Ele a acusou nos jornais de traí-lo. Pode até ter
acontecido... Uma mulher ferida em seu amor é capaz de muita coisa, certa ou errada. Mas o pior de tudo foi que "o segredo deles não ficou entre quatro paredes".
Meu pai, movido pela raiva, e também para se defender, atacou-a publicamente.
A polêmica musical talvez tenha começado quando Dalva gravou "Tudo acabado", que era um desabafo sutil, sem intenção de provocar. Ao responder à gravação com o
infeliz samba "Caminho certo", meu pai angariou um ódio indescritível entre as pessoas. Ao começar esse processo com David Nasser, as opiniões a respeito dele se
tornaram péssimas e, a partir daí, passaram a governar ou desgovernar - o seu mundo.
Mas existe também o lado dele, o homem que tomou algumas atitudes impensadamente, em rompantes de mágoa, dor e até vingança, quando o que se esperava era que não
se importasse mais com minha mãe. Afinal, não saíra de casa porque havia se apaixonado por outra mulher? Uma mulher que já existia muito tempo antes em sua vida
e de quem disse - até ditou para seu livro que "havia encontrado o grande amor da sua vida"?
Ora, por que então a tentativa de atingir tão profundamente minha mãe, tornando pública a vida de casados em capítulos de jornal e musicando de forma tão violenta
a relação que havia terminado? Ele não pensou, não ponderou as conseqüências e pagou um preço altíssimo. Sofreu muito, em que pese toda a sua atitude nascida do
rancor.
Meu pai passou a ter uma reação interior de mágoa e dor. Sei que sofreu muito e se agarrou à nova mulher. Também sei que ela o ajudou muito. Começava uma nova vida
com Lurdes em Santa Teresa. com sua personalidade pragmática, ela se tornou o refúgio que ele precisava naquele contexto. Mas não foi o bastante para ele.
326
O mais importante para o artista Herivelto, o seu Trio de Ouro, o verdadeiro, já não existia; os momentos de brilho se apagaram e os aplausos do público silenciaram
para ele. Seu interior estava arrasado e o grande júri popular passou a execrá-lo. Naquela época, me lembro, era freqüente ele beber muito mais do que o habitual.
Lurdes não tinha a personalidade alegre e receptiva de minha mãe com os amigos que ele acostumara a acolher em casa. Aos poucos, meu pai descobria que ela se preocupava
mais com o status social das visitas do que com seu talento musical. O que foi deixando Herivelto sem aquele caldeirão de criatividade ao qual estava acostumado.
com a briga, os compositores importantes ficaram com Dalva. Suas aparições não despertavam tanto interesse no público como antes. E ele absorvia tudo tristemente,
sem dar o braço a torcer. Meu pai sempre foi duro na queda. Sofria bastante. Penso que ali ele começou a morrer um pouco por dentro. Enfim, um período rico e feliz
havia terminado. Criou-se um antagonismo enorme ao seu nome e a sua pessoa. Ele agora precisava ter muito cuidado com "onde" e "como" aparecer para o público. Foi
uma barra cruel e pesada, pois estava mais exposto do que nunca ao julgamento de quem lia o Diário da Noite, ouvia as canções que compunha e presenciava as suas
atitudes impensadas. Atitudes de quem queria se livrar de um grande problema e cada vez mais se afogava nele. Mas garanto: meu pai amargou muito toda essa situação.
Ficou desnorteado e sem chão.
Quando minha mãe lançou "Tudo acabado", foi uma surpresa enorme para ele, pois ficou frente a frente com uma realidade: Dalva de Oliveira podia seguir sem Herivelto
Martins. Continuaria a existir sem ele, com mais brilho e sucesso. Foi apenas uma pequena amostra do que estava por vir. Meu pai apelou, respondendo com uma provocação
de baixo nível.
A constatação da perda não era apenas em relação ao amor ou à mulher. A grande perda era em relação ao Trio, à sua realização artística. Sem Dalva, seu alcance artístico
ficava esvaziado. Sei que
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a grandeza do compositor o segurou - e irá eternizá-lo -, mas, após a separação, o artista Herivelto nunca mais teve a mesma glória, nem acesso aos grandes palcos,
nunca mais recebeu a mesma sublime ovação dos tempos com minha mãe. Ao contrário de Dalva. Ela cresceu infinitamente com seu canto, a ponto de colocar sua gravadora
trabalhando 24 horas por dia para atender ao fabuloso sucesso. Ela atravessou fronteiras, ganhou o mundo. E o coração das pessoas.
A briga deles ficou presente demais na vida das pessoas, na época. Se hoje, passados tantos anos, ainda desperta paixão, imaginem quando o incêndio total era diário.
No entanto, não se deve pensar que todos tomaram o partido de minha mãe. Havia pessoas que acreditavam que a razão estava com meu pai. E era natural que assim fosse.
Afinal, o julgamento de suas vidas estava nas mãos de quem lesse o Diário da Noite ou mesmo ouvisse as canções. E isso abria espaço para qualquer sorte de análise.
O que favorecia muito a minha mãe era o fato de que jamais escreveu uma linha sequer nem ditou ou afirmou nada em entrevistas que revidasse as declarações ou condenasse
as atitudes de meu pai. Mesmo que fosse para se defender. Essa atitude, consciente ou inconsciente, deu a ela uma condição espetacular de desfavorecida, de vítima.
Só suas canções falavam em sua defesa.
Até hoje, dentro da minha busca da neutralidade, não sei o que fez minha mãe tomar tais atitudes: se foi medo de meu pai ou uma postura de sabedoria numa hora tão
crítica e decisiva. Ninguém vai poder saber se ela se sentiu pequena para superar um ataque tão grande ou se foi muito superior à pequenez do ataque de Herivelto.
Mas isso já não tem a menor importância, transcorrido mais de meio século... O que ficou de tanta vida, a própria vida já arquitetou o tamanho que passaram a ter,
por terem construído tanto para um país saborear suas emoções através de tanta música bonita, numa explosão de arte sincera, autêntica e sensível.
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Engraçado foi ver que o tempo conduziu as coisas à sua própria maneira, escreveu seu próprio enredo e os reuniu numa última canção.
Nunca mais haviam se falado, pouco se viram, desde então. Mas, em 1970, quando retornei dos Estados Unidos, meu pai me mostrou uma música nova. Era "Fracassamos".
Na época, ele poderia ter dado essa música para muitas cantoras: Ângela Maria, Clara Nunes, Maria Bethânia e outras. Mas, ao saber que Bily estava produzindo um
compacto para Dalva na Odeon, fez questão de que minha mãe a gravasse, mesmo estando rompido com ela. Bily lhe mostrou a música e ela adorou. Essa atitude rompia
um silêncio de quase vinte anos entre eles. Para meu pai, Dalva era a intérprete ideal para "Fracassamos", pois a letra é uma verdadeira síntese do que viveram em
suas vidas:
Nosso alicerce está ruindo
Fragorosamente está ruindo
E quanta coisa juntos nós realizamos
Porém agora reconheço, fracassamos
Nosso alicerce é igual à torre de Babel
Só não conseguiu chegar ao céu
Já não nos entendemos mais
Nossos carinhos são banais
O nosso amor já não tem gosto de amor
Vivemos juntos, nada mais
Era como se Herivelto, pressentindo faltar pouco para a luz de Dalva se apagar, sentisse a urgência de encerrar um ciclo. Fechar a mandala criada entre eles. A gravação
dessa música, uma das últimas composições de meu pai e uma das últimas gravações de minha mãe, reuniu novamente o compositor e sua intérprete maior. Duas décadas
depois da separação, esse episódio tem sabor de uma grande peça pregada pela vida, nossa grande "produtora". Soava como despedida. Uma triste e amorosa despedida.
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HERANÇA
UMA FILOSOFIA ESPIRITUALISTA AFIRMA que todos nós, antes de nascer, escolhemos nossos pais: se isso for verdade, eu declaro em alto e bom som musical que sou imensamente
feliz por ter escolhido quem escolhi.
Pois tenho uma herança a saborear. Não foi uma herança que me deixasse muito dinheiro, e jamais me importou esse fato. Foi uma herança de brilho interior e de muita
luz a iluminar o palco de minhas lembranças. Nessa cena aberta - o grande shaw da vida -, fui ao mesmo tempo platéia e ator. E por isso tenho amado a vida em sua
essência - feita de tamanha fragilidade e força, ao mesmo tempo.
O tempo, inexorável e preciso, transcorreu firme e suave, silencioso e paciente. O grande barulho da existência de meus pais já não desperta muita gente. Definitivamente
transformados em mitos, suas letras e músicas ainda fazem sonhar e chorar a alma dos mais sensíveis.
As vezes viajo no tempo e ainda ouço o vozerio nervoso de Dalva e Herivelto saindo para um show, minha mãe se pintando pelo caminho; sinto o perfume que usavam,
escuto meu pai repassando o repertório no carro. Eu ainda me vejo criança na coxia, admirando cada passo, cada movimento do Trio, cada frase musical, os
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duetos, as vozes, os arranjos, as letras. Seria capaz de cantar cada música, no lugar de qualquer um deles
Hoje sou um homem de meia-idade que adoraria ter minha mãe e meu pai por perto, e desfrutar de sua velhice curtindo os meus filhos, seus netos. E, mais do que os
consagrar com honrarias, gostaria de lhes oferecer este enorme perdão que o tempo trouxe, quando o mundo e as pessoas lhes fazem justiça. Depois de tudo que vivi,
não me presto a qualquer julgamento do comportamento de meus pais. Eles foram os meus pais. com eles aprendi a ver a beleza da vida. A ver música em cada som. Em
meio ao sofrimento deles, aprendi a ter e oferecer perdão. Talvez esta seja a palavra mais importante em toda a minha vida com os dois: perdão.
O meu hoje é feito de perdão. E feito de muito, muito amor. Faz bastante tempo que eu os perdoei por não terem organizado melhor a nossa infância. Que os perdoei
por não saberem como demonstrar o amor que sentiam por nós dois, e do qual eu e o Bily precisávamos tanto. Faz tempo já os perdoei por não terem tido o cuidado de
evitar que víssemos tanta coisa que vimos e que nos marcou profundamente. Não guardo rancor de nada, absolutamente nada. As possíveis mágoas ou dores, eu as transformei
em experiência de vida.
Meu tempo vem transcorrendo também, suave e firme. Aprendi muito cedo o valor de estar em sintonia com a vida. A minha visão de mundo é diferente da minha visão
de vida. Procuro obter da vida o melhor que eu possa colher. Aprendi que, em qualquer circunstância, a vida não tira nem oferece absolutamente nada: a vida é o que
é. Nós é que devemos tomá-la como a maior razão de tudo.' O mundo são as pessoas. A vida é Deus.
Lógico que ficaram marcas. E natural que eu não seja um tipo de homem certinho e centrado. Tenho minhas loucuras como qualquer pessoa, que erra e acerta, condizente
com minha condição de ser humano.
Sou a pessoa que eu mesmo construí. Minhas experiências de vida fizeram de mim um indivíduo corajoso, encarando os obstáculos
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com armas leais, sem covardia. Movido por um vulcão de força e determinação, e um profundo sentimento de justiça, fui obrigado a desprezar qualquer sentimento
de autopiedade e a edificar o respeito por mim mesmo. Aprendi que não existiriam acertos se não houvesse erros. O que interessa é o tamanho de nossa investida diante
da vida. A dignificação da caminhada. Desde cedo, aprendi a valorizar a busca da beleza. A amar a grandeza do mundo que me serve de moradia, pois sempre tive dentro
de mim um conhecimento do maior, do belo, do superior.
Aprendi a respeitar o meu corpo, esse templo que Deus me deu. Sei que por isso tive uma relação muito cautelosa com a bebida e com as drogas. Se por curiosidade
ou fraqueza recorri a alguma droga em dado momento, ou então me excedi na bebida, nada me fez prosseguir nesse caminho, achando que isso me daria uma realidade melhor
do que a que eu mesmo pudesse construir.
A minha realidade é feita de ontens, hojes e amanhãs. E eu preciso estar de cabeça-feita com autoconhecimento e respeito por mim, para poder lidar com o mundo.
As coisas mais lindas e mais saborosas da vida só serão realmente desfrutadas se eu estiver de cara limpa, ou pelo menos consciente do deleite a que estou me entregando.
Sem fugas. Pleno de mim mesmo. Mas isso nunca foi ou é fácil, porque, queiramos ou não, certos padrões que recebemos no princípio de nossa existência nos acompanham
e marcam profundamente nosso comportamento.
O amor formou vertentes dentro de mim que com freqüência correm em direções conflitantes. Sempre senti em meu interior um barulho muito grande. E um barulho forte
em relação ao amor. Meu relacionamento com o amor é algo muito complicado. Nunca foi uma relação calma, serena. A inquietação sempre povoou minha cabeça e meu coração.
Sempre senti falta de uma plenitude. Talvez pela minha essência artística, ou por tudo a que assisti em minha infância, eu tenha fantasiado muito na busca do amor,
deixando-o muito distante desse sentimento feito do dia-a-dia com uma mulher
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de carne e osso, quando se constrói uma vida e, enquanto envelhecemos juntos, podemos saborear o caminho percorrido.
Houve momentos no passado em que vivi numa enorme inconstância. Enxergava o amor como a conquista de um prêmio, ou de um troféu. Se aquele tivesse sido conquistado,
havia a obrigação de se conquistar outro. com as trocas constantes, vinha o sabor de perda, de fragilidade, de solidão. Acompanhado do gosto amargo de uma ressaca.
De várias ressacas.
Casei, descasei, casei de novo, me apaixonei por pessoas certas e erradas; fiz filhos, sou mal interpretado por um deles, talvez sufoque de proteção o que vive comigo.
Me deixei envolver, fiz sofrer, sofri; errei, consertei, não consertei; fiquei doido, fiquei apático; bati, apanhei, não respondi; odiei, desprezei, desprezo ainda;
traí, fui traído. Amei e fui amado como ninguém. Enfim, "confesso que vivi".
Hoje também tenho a minha casa, meus sonhos e realizações. Cresci e me tornei pai e marido. Sou um artista que trabalha no ofício aprendido desde o berço com meus
pais. A cada dia me aprimoro no que mais sei fazer - cantar. E canto com a certeza de que com meu canto eu me lanço ao mundo e sigo meu grande destino.
Vivo hoje em Miami, com alguma paz, não total, mas bem maior da que o Brasil de agora poderia me oferecer. Cheguei aqui seis anos atrás, em busca de um mundo que
pudesse receber a minha música e o meu eu, sem preconceitos nem limitações. No entanto, sou um eterno apaixonado pelo Brasil, viajo sempre para o meu país para tomar
a bênção à saudade. Para regar e colher os frutos da minha semeadura de mais de 40 anos de carreira. Costumo dizer que sou um "exilado cultural". Mas, ao contrário
do exilado político, não fujo de nada, apenas ainda me permito desafios. Sinto um vigor juvenil ao enfrentar novas platéias, novos aplausos, novas conquistas.
Serei sempre um apaixonado pela música. Mais do que isso: sou viciado em música. Ela me entorpece, acalma, empolga, me faz
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pensar, esquecer, lembrar, enfim, me motiva a viver. Tenho certeza de que nada me foi mais fiel e gratificante do que a música. Porque mesmo cercado da família,
dos amigos, das conquistas, a solidão é a minha grande companheira. Sim. Em meu entender, nós somos a grande solidão universal. E, ao descobrir isso, trabalho o
meu interior e faço da minha solidão o tesouro maior que equilibra o meu íntimo. Como sempre diz meu amigo Luís Gasparetto: "Só você vai ficar com você o resto
da eternidade". Longe de mim ser um solitário, ao contrário, apenas seleciono com quem dividir meus momentos para enriquecê-los.
Eu gostaria de amar mais os amigos desta caminhada. Saber dividir com eles os meus sonhos. Gostaria de saber amar melhor os meus filhos. Saber ser o melhor amigo
deles. Gostaria de ter convivido mais com minha filha Paula. Gostaria de amar melhor a mulher que vive comigo e suporta por demais as minhas incertezas; que já
enfrentou barras incríveis comigo, e com o meu trabalho; altos e baixos, às vezes mais baixos do que altos. A companheira que me faz trabalhar, criar mais e produzir
melhor. Que me instiga com a sua boa critica a me aperfeiçoar. Um sentimento especial nos une, e se transformou numa liga muito forte entre nós. Ela representa
o esteio da minha vida. Desde os conselhos na carreira até a elaboração deste livro, que sem ela não existiria. com seu estímulo o escrevi em rompantes de emoção,
num depoimento desordenado das minhas lembranças - trabalho feito à mão, que ela pacientemente deu forma em seu notebook, organizando com carinho os meus pensamentos
da primeira à última linha do que foi escrito.
Sou orgulhoso herdeiro de todas as minhas lembranças. Elas me ajudaram a ser o homem que sou. O artista que sou. Jamais poderia ser outra coisa na vida. Tenho'música
nas minhas veias. O palco é o meu oxigênio. Sou um artista à moda antiga, de quando os ídolos eram escolhidos pelo público, e não pelo marketing que fabrica sucessos
para consumo rápido. A música e a arte no Brasil
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têm sofrido muito na última década com a industrialização dos sentimentos. O que era artesanal, feito com o coração e para os corações, deu lugar a uma grande
indústria dominada apenas pelo volume de comércio, levando ao endeusamento dos recordistas de vendas, nem um pouco preocupados em construir uma carreira - o que
implica uma jornada muito mais longa, nem sempre só de sucessos. com isso, artistas que se dedicaram ao cultivo da maior qualidade e da beleza sofreram bastante,
e o abandono tomou conta de suas carreiras. Muitos grandes artistas brasileiros, e também eu, fazemos parte dessa geração que foi deixada à margem da máquina voraz
que se alimenta de resultados rápidos, imediatistas, e não tem compromisso com nenhum legado de cultura para as gerações vindouras.
Assim, para meus filhos Bernardo e Paula, não posso deixar outra herança que não seja a do trabalho, da perseverança, do amor à vida e, principalmente, a do perdão.
Em todos os sentidos. Meus bens materiais são muito poucos. Meus bens espirituais e morais quero que lhes sirva de luz para guiar seus passos. Que eles estejam na
vida de uma maneira forte e decisiva. Descobri a essa altura da existência que viver é armanezar coragem para conduzir com calma os rumos da nossa própria solidão.
Espero que suas decisões sejam tomadas em nome da justiça, do amor ao mundo e aos outros seres que lhes servem de parceiros nesta caminhada.
Que eles se orgulhem muito dos seus avós, de suas mães, do seu pai, e do amor que sempre norteou os passos de quem os precedeu neste mundo.
Que iluminem sempre os meus filhos, as Minhas duas Estrelas.
Eu,
Que nasci de uma fêmea de grande luz E de um homem gigante em cantar o amor Da emoção de um instante maior
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Eu,
Cujos olhos abri e eram cor do mar
E enxerguei toda a luz que me dava o sol
E aprendi a cantar pra viver
Eu,
Que em versos meu berço cobri E com música aos poucos cresci E de sonhos eu me alimentei
Eu,
Que com arte reguei meu jardim Só com flores fiz rimas pra mim E hoje sigo o destino que herdei
Eu,
Cantador de emoções de poetas mil Portador de alegrias prós corações Eu sou Pery
Letra da música "Eu" de Pery Ribeiro.
POSFÁCIO
Eu POSSO DIVIDIR a minha vida com Pery em antes e depois deste livro.
Como todo casal quando aprofunda um relacionamento, nós também contamos um ao outro sobre nossas vidas, nossas famílias. Foi assim meu primeiro contato com suas
lembranças da infância, dos pais, e do início de carreira. Um desabafo num dia difícil, uma lembrança gostosa vinda à tona num pôr-de-sol na cobertura da Barra,
confidências no jantar após um shovv com seu pai em São Paulo... Achava que conhecia toda a sua história, e que sabia quanto sua infância havia sido difícil.
Estava enganada. Quando se escuta um trecho aqui, um outro meses, ou anos depois, é muito diferente do que encarar a carga dessas emoções de uma só vez. Ter acesso
a todas as suas dores e alegrias, num desabafo sincero e confuso, foi muito forte. Me vi diante do mais íntimo do seu ser. Acompanhei todo o conflito que ele viveu
para decidir escrever este livro. Fui testemunha do doloroso processo de revolver suas memórias, muitas vezes, interrompido por crises de choro convulsivo. Pery
escrevia por dias seguidos, para depois parar por meses, subjugado pelo peso de suas dores. Foi uma verdadeira catarse para ele: expurgou todos os seus fantasmas
e redimiu todos os seus sentimentos.
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E mudou para sempre o nosso amor. Mais amigos e cúmplices ficamos. Desde então, se aquietaram as minhas cobranças, e passei a compreender que ele me oferece o que
tem de melhor, e muito, muito mais do que recebeu. Se não é tão carinhoso como eu gostaria - mesmo sentindo falta disso -, hoje entendo o porquê. Seja era um grande
pai, agora o enxergo ainda mais especial. A nossa história de vida ganhou um sentido ainda maior.
Me sinto privilegiada por ter dividido com Pery o desafio de escrever a sua história. E muito honrada por ter tido em minhas mãos a responsabilidade de organizar,
em livro, sentimentos tão delicados. Deus sabe que tratei com o maior respeito e carinho suas lembranças. Sinto imenso orgulho da sua coragem em se expor sem censura
ao mundo. Mais orgulho ainda do que sinto quando o vejo cantar divinamente num palco. Sua maior fã, e eternamente apaixonada,
ANA DUARTE
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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
A José Messias, com quem viajamos no tempo para resgatar a verdadeira essência dos acontecimentos.
Aos queridos Dorival Caymmi e Stella, que nos abriram sua casa e suas lembranças.
A Nelson Gonçalves, por sua escancarada sinceridade.
A Amalia, esposa de Vicente Paiva, por nos trazer fatos importantes do passado.
A Raul Sampaio, pela forma respeitosa ao compartilhar comigo suas memórias de tantos anos ao lado de meu pai.
Aos queridos Luis Vieira, Virgínia Lane, Marlene e Emilinha Borba, pelo carinho.
Ao Bily, meu irmão e guardião do acervo familiar, pelas fotos de nossa infância.
Ao Hélio, irmão mais velho, pela lembrança de fatos mais antigos.
Às minhas tias Margarida, Lila, e em especial, a tia Nirinha, pelas fotos de Herivelto e do Pery bebê.
A Edith, nossa tia do coração, pela sua preciosa memória.
Ao Nacib, maior fã de Dalva, que nos abriu seu arquivo pessoal de fotos e reportagens.
Ao amigo Bily Blanco, pelo apoio e espírito crítico ao primeiro manuscrito.
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A Ricardo Cravo Albin, pelas fotos da festa dos 80 anos de Herivelto.
A Sérgio Cabral, Max Nunes, Chico Anísio, Herminio B. de Carvalho e Bibi Ferreira.
A Antônio Sérgio Ribeiro, pelo material cedido de sua coleção da antiga Revista do Rádio.
A Silvia Regina, da Biblioteca Nacional, pela ajuda preciosa na pesquisa.
A Leon Barg, do selo Revivendo, pelas fotos cedidas. À equipe Copyrights, em especial a Dra. Adriana Vendramini. Ao Fernando, da editora Vitale, pelo acesso à obra
de Herivelto. Às Editoras Mangione & Filhos, ADDAF, SIGEM e Fermata, pela liberação das obras citadas.
A Elifas Andreato, por ter viabilizado a nossa parceria com a Editora Globo.
Aos editores da Globo, que deram suporte a nossa inexperiência, Eliana de Sá, Claudia Abeling, e, em especial, a Marcelo Ferroni, que pacientemente trabalhou conosco
na finalização do livro.
A Maurício Sherman, pelo carinho e pela aposta no projeto musical "Dalva e Herivelto".
A Ruy Castro, por ter sucumbido à curiosidade de ler o nosso livro, nos brindando depois - ele, o profissional das letras! - com um prefácio tão especial.
A Dalva e Herivelto, por existirem. E a Deus, por me fazer seu filho.
ANEXO
CRÉDITOS DAS LETRAS DE MÚSICA
I TÍTULO: AI MORENA AUTORES: BENEDITO LACERDA (BENEDITO LACERDA) e HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS) Copyright (c) 1951 l>y IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA
E COMÉRCIO. Todos os direitos autorais reservados para todos os países. Ali rights reserved. International copyright secured.
TÍTULO: AMIGO
AUTOR: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) 1950 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: ATIRASTE UMA PEDRA
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e DAVID NASSER (DAVID NASSER)
Copyright (c)1957by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: AVE MARIA
AUTORES: JAYME FONN GARCIA REDONDO (JAYME REDONDO) e
VICENTE DE PAIVA RIBEIRO (VICENTE PAIVA)
Copyright (c) 1947 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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340
34]
TÍTULO: AVE MARIA NO MORRO
AUTOR: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) 1943 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: BANDEIRA BRANCA
AUTORES: MAX NEWTON NUNES (MAX NUNES) e HARIR CURI MAS-
SAD (LAÉRCIO ALVES)
Copyright (c) 1969 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: bom DIA
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e ANTÔNIO GUIMARÃES CABRAL (ALDO CABRAL)
Copyright (c) 1942 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: CABELOS BRANCOS
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e MARINO DO ESPÍRITO SANTO PINTO (MÃRINO PINTO)
Copyright (c) 1948 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: A CAIXINHA DO ADHEMAR
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e BENEDITO LACERDA (RENEDITO LACERDA)
Copyright (c) 1949 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: CALÚNIA
AUTORES: MARINO DO ESPÍRITO SANTO PINTO (MARINO PINTO) e
PAULO VALENTE SOLEDADE (PAULO SOLEDADE)
Copyright (c) 1951 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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342
TÍTULO: CAMINHEMOS
AUTOR: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) 1947 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: CAMINHO CERTO
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e DAVID NASSER (DAVID NASSER)
Copyright (c) 1950 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: CARINHOSO
AUTORES: PIXINGUINHA e JOÃO DE BARRO
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TÍTULO: CONSULTA O TEU TRAVESSEIRO
AUTORES: BENEDITO LACERDA (BENEDITO LACERDA) e HERIVELTO
DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) 1951 fy IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: FALSO AMIGO
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e BENEDITO LACERDA (BENEDITO LACERDA)^
Copyright (c) 1954 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: FRACASSAMOS
AUTORES: ANTÔNIO GONÇALVES (NELSON GONÇALVES) e HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS) Copyright (c) 1956 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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343
TÍTULO: FRANCISCO ALVES
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e DAVID NASSER (DAVID NASSER)
Copyright (c) 1954 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: GAÚCHO VELHO
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS) e PEDRO GONÇALVES DE ALMEIDA (PEDRO DE ALMEIDA) Copyright (c) 1952 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: HOJE QUEM PAGA SOU EU
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e DAVID NASSER (DAVID NASSER)
Copyright (c) 1955 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: JUREI
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e JOSÉ MESSIAS DA CUNHA (JOSÉ MESSIAS)
Copyright (c) 1956 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: LOUCA
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e JOSÉ MESSIAS DA CUNHA (JOSÉ MESSIAS)
Copyright (c) 1954 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: MAMÃE
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e DAVID NASSER (DAVID NASSER)
Copyright (c) 1956 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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344
TÍTULO: NÃO TEM MAIS JEITO
AUTORES: BENEDITO LACERDA (BENEDITO LACERDA) e HERIVELTO
DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
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TÍTULO: NEM O CHOPE
AUTORES: BENEDITO LACERDA (BENEDITO LACERDA) e HERIVELTO
DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
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TÍTULO: NOSSAS VIDAS
AUTOR: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) 1948 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: OLHOS VERDES
AUTOR: VICENTE DE PAIVA RIBEIRO (VICENTE PAIVA)
Copyright (c) 1950 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: PALHAÇO
AUTORES: OSWALDO OLIVEIRA MARTINS (OSWALDO MARTINS),NEL-
SON ANTÔNIO DA SILVA (NELSON) e WASHINGTON FERNANDES
(WASHINGTON)
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TÍTULO: PENSANDO EM TI
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e DAVID NASSER (DAVID NASSER)
Copyright (c) 1957 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: PERDOAR
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e RAUL COCCO (RAUL SAMPAIO)
Copyright (c) 1952 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: POEIRA DO CHÃO
AUTORES: ARMANDO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE (ARMANDO CAVALCANTE) e KLECIUS PENNAFORT CALDAS (KLECIUS CALDAS) Copyright (c) 1952 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E
COMÉRCIO.
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TÍTULO: PRAÇA ONZE
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS),
e GRANDE OTELO
Copyright (c) by MANGIONE, FILHOS & CíA. LTDA..
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TÍTULO: QUANDO A IDADE CHEGAR
AUTORES: BENEDITO LACERDA (BENEDITO LACERDA) e HERIVELTO
DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) 1951 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: QUANDO O TEMPO PASSAR
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e DAVID NASSER (DAVID NASSER)
Copyright (c) 1951 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: QUE REI SOU EU
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e WALDEMAR RESSURREIÇÃO (JOÃO DE DEUS)
Copyright (c) 1944 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: QUE SERÁ?
AUTORES: MARINO DO ESPÍRITO SANTO PINTO (MARINO PINTO) e
MÁRIO ROSSI (MÁRIO ROSSI)
Copyright (c) 1950 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: SAUDOSA MANGUEIRA
AUTOR: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) 1953 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: SE ADORMEÇO
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e DAVID NASSER (DAVID NASSER)
Copyright (c) 1956 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
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TÍTULO: SE É POR FALTA DE ADEUS
AUTOR: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) 1942 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
Todos os direitos autorais reservados para todos os países.
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TÍTULO: SEGREDO
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e MARINO DO ESPÍRITO SANTO PINTO (MARINO PINTO)
Copyright (c) 1947 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
Todos os direitos autorais reservados para todos os países.
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TÍTULO: SEU CONDUTOR
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) by MANGIONE, FILHOS & CIA. LTDA..
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347
TÍTULO: TEU EXEMPLO
AUTORES: HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS (HERIVELTO MARTINS)
e DAVID NASSER (DAVID NASSER)
Copyright (c) 1950 by IRMÃOS VITALE SÁ. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
Todos os direitos autorais reservados para todos os países.
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TÍTULO: TUDO ACABADO
AUTORES: JOSÉ DA ROCHA PIEDADE (]. PIEDADE) e OSWALDO OLIVEIRA MARTINS (OSWALDO MARTINS) Copyright (c) 1948 by IRMÃOS VITALE SÁ. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
Todos os direitos autorais reservados para todos os países.
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TÍTULO: UM CABOCLO ABANDONADO
AUTORES: BENEDITO LACERDA e HERIVELTO DE OLIVEIRA MARTINS
(HERIVELTO MARTINS)
Copyright (c) by MANGIONE, FILHOS & CIA. LTDA..
Todos os direitos autorais reservados para todos os países.
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TÍTULO: VINGANÇA
AUTOR: LUPICÍNIO RODRIGUES (LUPICÍNIO RODRIGUES)
Copyright (c) 1944 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
Todos os direitos autorais reservados para todos os países.
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TÍTULO: ZUM-ZUM
AUTORES: FERNANDO DE CASTRO LOBO (FERNANDO LOBO) e
PAULO VALENTE SOLEDADE (PAULO SOLEDADE)
Copyright (c) 1950 by IRMÃOS VITALE S.A. INDÚSTRIA E COMÉRCIO.
Todos os direitos autorais reservados para todos os países.
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ÍNDICE ONOMÁSTICO
Abreu, Ester de, 200
"Adeus, Mangueira", 302
Adriani, Jerry 266
"Ai, loiô", 134
"Ai, morena", 55, 188, 283
Albin, Ricardo Cravo, 305, 319, 340
Alencar, César de, 64, 186, 200
Alexandre, neto de Herivelto, 93
Alfredo, Pixinguinha como, 61
Alice, mãe de Dalva, 32, 39, 100, 119,
253
Almeida, Araci de, 204 Almeida, Pedro de, 62 Alvarenga e Ranchinho, 127 Alves, Ataulfo, 14, 15, 62, 98, 127,
128, 129, 131,205, 228, 283,297 Alves, Carmélia, 199 Alves, Francisco, 13, 39, 56, 190, 199,
227, 323
Alves, Gilberto, 64 Alves, Laércio, 15, 245, 307 Alves, Lúcio, 243 Amália, Paiva, 103, 106, 107, 108,
109, 110, 111, 112 "Amigo", 110 Ana, mulher de Pery, 45, 46, 93, 317,
321
Andrade, Leny, 217
Andrews, Gogó, 159
Ângela Maria, 64, 160, 191, 254, 255,
262, 329
Anjos, Augusto dos, 261
Antônio Maria, 201, 255, 256
Anysio, Chico, 176, 244, 340
Arnô Carnegal, 26
Astaire, Fred, 159
"Atiraste uma pedra", 77, 81, 190
Autuori, Sílvia, 46
"Ave Maria no morro", 12, 56, 230,
263, 272, 282
"Ave Maria" (Gounod), 55
Babo, Lamartine, 53, 228 Bailly Jr., Otávio, 217 Baker, Josephine, 13,27, 28 "Bandeira branca", 15, 213, 222, 237,
242, 245, 306, 307 Barbosa, amigo de Herivelto, 174 Barbosa, Castro, 52, 85 Barbosa, Haroldo, 47, 223 Barbosa, Rui, 29
Barros, Ademar de, 108, 204, 225 Barros, Gregório, 199 Barroso, Ary, 15, 33, 223, 228, 229, 230
349
Barroso, dr. César, médico de Dalva,
308, 310
Batista, Dircinha, 199 Batista, Linda, 44, 58, 63, 199 Bernardo, filho de Pery, 45, 90, 93,
321, 335
Bily, apelido de Ubiratan (irmão de Pery), 14, 40, 44-5, 48, 57, 77, 89,
91,92,94-6, 106, 112, 114-6, 118,
121-2, 135-9, 142, 144, 148, 151,
170, 176, 178, 192,202,207,212,
236, 248, 269, 297, 304, 308, 311-
2, 314-6, 319-0, 329, 331, 339 Bittencourt, Lourdinha, 28, 80, 225,
257,258
Bittencourt, Luís, 132 Blanco, Bily, 48, 123, 339 Blecaute, 199 Boca da Cuíca, 26 Boca de Caçapa, apelido de Jorge
Goulart, 64
"bom dia, avenida", 51, 282 Bombonatti, 44 Bonfá, Luís, 26, 139, 140 Boni, 187, 305 Borba, Emilinha, 13, 59, 167, 199,
201, 266, 308, 309, 339 Borges, Lauro, 85 Bosco, João, 236
Bôscoli, Ronaldo, 66, 217, 229, 309 Boulanger, George, 28 Braga, Leandro, 318 Braga, Nei, 224 Braguinha (João de Barro), 25, 107,
223, 228, 229,231, 300, 305 Branca de Neve e os sete anões (Walt
Disney), 13 "Brasil", 56 Brazilicm Bombshell, The, apelido de
Carmen Miranda, 76 Brotinho, 26
Cabeção, apelido de Vicente Paiva,
112
"Cabelos brancos", 12, 60 Cabide, apelido de César de Alencar,
64
"Caboclo abandonado", 230 Cabral, Sérgio, 294, 305, 319 "Caixinha do Ademar, A", 204 Caldas, Klecius, 133 Caldas, Sílvio, 60, 232 "Calúnia", 15, 130, 154 Camargo,
Hebe, 208 "Caminhemos", 12, 28, 56, 190, 232,
282
"Caminho certo", 126, 189, 193 "Camisola do dia, A", 77, 190 Campana, Alberico, 66 Campos, Jacy, 185, 186 Canaro, Francisco, 15, 157, 161 "Canoeiro, O", 46 Cardini,
220 Cardoso, Elízeth, 237 Cardoso, Régis, 185 Cardoso, Wanderley, 266 "Carinhoso", 25, 238 Cariocas, Os, 199 Carlos Cachaça, 303 Carlos, Francisco, 199 Carlos, José,
317 Carolina, dona (mãe de Mariazinha),
91
Cartola, 302, 303 Carvalho, Hermínio Bello de, 304 Castro, José de Almeida, 185 Cavalcanti, Flávio, 173, 221, 272 Cavalcanti, Noemi, 135, 170, 263 Cavaquinho, Nelson,
15, 127, 283,
303 Caymmi, Dorival, 13, 37, 86, 223,
228, 296, 339 "Ceei e Peri", 35, 39 Célia e Celma, 230 ..".'.
350
Chacrinha, 220, 221,222
Chagas, Nilo, 12, 24, 32, 37, 84, 238,
271
"Che papusa", 157 Chicão ver Pacheco, Francisco Chiquinho, Maestro ver Duarte,
Francisco
Chorão, apelido de Orlando Silva, 64 Chrystian & Ralf, 272 Chuvisco, apelido do filho de Gilda,
49
Cidadão Kane (Orson Welles), 70 Clemente, Tito, segundo marido de
Dalva, 158-66, 186, 210, 214, 247,
251
Coelho, Lopo, 294 Cole, Nat King, 156,231 Comandante Edu, 282 Conceição, irmã de Lurdes, 144 "Consulta o teu travesseiro", 130 "Copacabana", 231 Cordélia, 26 Corrêa,
Oracina, 239 Costa e Silva, presidente, 311 Costa, Carmen, 26 Costa, Heleninha, 199 Costa, Vítor, 198, 199, 201, 202 Crosby, Bing, 13, 28,231 "Culpe-me", 232 Guri,
Ivon, 199
Daltro, Fred, 135, 136
Daniel Filho, 185
Décío, filho de Vicente Paiva, 112
Deisy, filha de Vicente Paiva, 112
Deo, 200
"Deusa do asfalto", 78
Dias, João, 309
Dias, Orlando, 200
Dietrich, Marlene, 146
Diniz, Leila, 249 '. '' • .
Dino, 42
Disney, Walt, 13,25,45
"Disseram que voltei americanizada",
106
"Dois corações", 56, 57
Don, Shirley, 237, 263
Donga, 228
"Dora", 46
Dori, filho de Caymmi, 46, 47
"Dorme, menino grande", 255
Duarte, Francisco (Maestro Chiquinho), 199
Dutra, Eurico Gaspar, presidente, 28,
29
"E doce morrer no mar", 46
Eça, Luís, 272
Edíth, irmã de criação de Dalva, 88,
89, 141-2, 151-2, 202, 235, 309-
10, 339 "Ela", 56 Elís Regina, 247 Elizabeth, rainha, 155 Eloína, 30
"Errei, sim", 15, 127, 128, 140 "Escultura", 78 Eu e outras poesias (Augusto dos Anjos),
261 Eversong, Leny, 208
Faissal, Floriano, 201
Faissal, Lourival, 127
"Fala, Claudionor", 51
"Falso amigo", 128
Farney, Dick, 13,28,46,231
Feghali, Ricardo, 272
Félix, Maria, 219
Fernando, filho de Herivelto e Lurdes,
146, 147, 184,234,235 Fernando, neto de Herivelto, 147 Ferreira, Abel, 26 Ferreira, Bibi, 153 Ferreira, Procópio, 151, 152, 153
351
"Fica comigo esta noite", 78
Filho, Brandão, 85
"Fim de comédia", 98, 155
Fiúza, ledo, 53
Flynn, Errol, 155
"Folha morta", 33
"Fonte secou, A", 26
Formigão, apelido de Ciro Monteiro,
63
"Fracassamos", 329 "Francisco Alves", 57, 190 Franco, Wilton, 246
Galhardo, Carlos, 200
Galizio, Cleide, 207
Gambardella, 33
Ganga, apelido de Nilo Chagas, 37, 84
Garcia, Chianca de, 28, 58, 86
Garcia, Isaurinha, 98, 325
Garcia, José, 199
Gardel, Carlos, 12, 134, 190, 227
"Gardel", 12, 134, 190
Garland, Judy, 247
Garnisé ou Galinho Garnisé, apelido de, 53, 64
"Garota de Ipanema", 230
Garoto, 200
Garrincha, 211, 247
Gasolina, apelido de Monsueto
Menezes, 65 Gatica, Lucho, 157 "Gaúcho velho", 62 Gershwin, George, 215 Gigi (Dalva Lúcia), filha adotiva de
Dalva e Tito, 163, 164, 165, 312 Gilberto, João, 230 Gilda, mulher de Grande Otelo, 49 "Gira gira", 157 Glorinha, dona (mulher do professor
Lyra), 118
Gnattali, Radamés, 61, 199 Gomes, Carlos, 42
Gomes, Onéssimo, 205
Gonçalves, Dercy, 105, 106, 107, 108
Gonçalves, Milton, 266
Gonçalves, Nelson, 13, 28, 44, 57, 64,
67,77-8,80, 103, 111, 134-5, 188-
90, 204, 262, 280, 285, 288, 296,
339 Gonçalves, Quincas (pseudônimo de
Nelson Gonçalves), 204 Gonzaga, Luís, 199 Gonzaga, Zezé, 199 Gounod, Charles, 55 Gracindo, Paulo, 186, 200 Grande Otelo, 13, 28, 44, 48, 50-1, 58,
65, 70, 85, 227, 247, 266, 300, 317 Grande síntese, A (Píetro Ubaldi), 260 "Grande verdade, A", 132 "Grão de areia", 242 Guaraná, 127 Guarani, O (Carlos Gomes),
42
Hayworth, Rita, 42, 71 Hedenir, irmão de Herivelto, 178 Hedinar, irmã de Herivelto, 325 Heitor dos Prazeres, 26, 302 Hélcio, filho de Herivelto, 91-2, 176,
236, 276 Hélio, filho de Herivelto, 91-3, 176,
236, 276, 304, 317, 319 Hemingway, Ernest, 247 Hepburn, Katherine, 155 Herivelto, uma escola de samba (Jonas
Vieira e Natalício Norberto), 296 Hitler, 23, 24, 69 "Hoje quem paga sou eu", 12, 67, 134,
190
Inglês, Roberto, 131 "Isaura", 12, 56, 230, 282 Ismael Neto, 200
It's AH True [É tudo verdade] (Orson Welles), 74
"Itaquari", 35
Itararé, Barão de (Aparício Torelli),
195
Jacaré, jangadeiro, 70
Jackson do Pandeiro, 199
Jamelão, 300
Jobim, Antônio Carlos (torn ), 229, 303
Joca, amigo de Herivelto, 171
Júlio, professor do internato militar,
114
Jupira, 26 "Jurei", 289 "Kalu", 15, 134, 155, 156
Kardec, Allan, 260 Kelly, João Roberto, 15 Kerr, Deborah, 155 Klabin, Beki, 153
Kubitschek, Juscelino, 205, 225, 226,
227, 311
"Lá em Mangueira", 282
Lacerda, Benedito, 39, 42, 52, 53, 56,
86, 92, 128, 130, 174,204,285 Lacerda, Carlos, 294 Ladeira, César, 35, 40, 64 Lagartixa, apelido de Dalva, 64 Lago, Mário, 223 "Lágrima, A", 222 Lamenha, Sílvio,
244, 245 Lane, Virgínia, 30, 58, 266 "Lapa, A", 12, 39,256 Lara, Agustin, 219 Lee, Mr., 75 Lehár, Franz, 80 Leite, Dudu Barreto, 185 Leite, Murilo, 208 "Lencinho
branco", 157, 294 Leonel do Trombone, 26 Leporace, Gracinha, 217 Lessa, Orígenes, 48
Lila, irmã de Dalva, 32, 39, 49, 85, 88,
97, 100, 207, 249, 252, 339
Lima, Ellen de, 199
Lira, Carlos, 229
Lobão, 82
Lolota ver Martins, Carlota
Louro, apelido de Herivelto Martins Filho, 146, 147, 235, 236
Lupe, apelido de Lupicínio Rodrigues,
63
Lurdes, terceira mulher de Herivelto,
81, 89, 101-6, 109-11, 113, 120,
124, 144-9, 170-2, 175-7, 184,
188, 192-6, 207, 234-5, 261-2,
267, 274-9, 281, 289-90, 300, 314-
5, 324-7
Lyra, professor e dono do Liceu São Luís, 116, 118
Macedo, Zezé, 38
Machado, Carlos, 28, 44
Madame Satã, 256, 257
Magalhães, Virgínia, 169
Magaly, namorada de Pery, 180
Maia, Amália ver Amália, Paiva
"Mamãe eu quero!", 106
"Mamãe", 191
Manga, Carlos, 246
"Mar, O ", 46
Maracujá de Gaveta, apelido de Anísio Silva, 64
Marcelo, João, 317
Margareth, filha de Nelson Gonçalves,
81
Margarida, irmã de Dalva, 32, 39, 44,
49, 85, 86, 88, 97, 103, 142, 252,
339
Maria Bethânia, 329
Maria Luísa, esposa de Nelson Gonçalves, 82
Maria, dona (mãe de criação de Lourdinha), 80
II
352
353
Mariazinha (Maria), primeira mulher
de Herivelto, 91, 92, 324 Marilu, namorada de Pery, 117, 234 Marinho, Roberto, 65, 146 Mário, pai de Dalva, 32, 253 Marlene, 44, 87, 132, 167, 168, 199,
201, 266, 339 Marta (Martinha), mulher de
Fernando, 235 Martins Filho, Herivelto (filho de
Herivelto de Lurdes), 146 Martins, Carlota (Lolota), mãe de
Herivelto, 92, 95 Martins, Oswaldo, 14, 15, 124, 125,
127, 131
Martins, Pery, Pery Ribeiro como), 186 Martins, Roberto, 223 Martins,Félix Bueno (pai de
Herivelto), 31
"Máscara negra", 15, 213, 220, 242 Mastrocinque, Luís Freddy, 180 Mayara, filha de Fernando, 147, 304 Meira, 42
Mendes, Sérgio, 217, 248 Menescal, Roberto, 229 Menezes, Monsueto, 26, 44, 66 Mesquita, Custódio, 157 Mesquita, Ronie, 217 Messias, José, 170, 173, 266, 269, 289
Metralha, apelido de Nelson C Gonçalves, 64 C
"Meu pequeno Cachoeiro", 135,263 C Mièle, Luís Carlos, 66, 217, 309 O
Milfont, Gilberto, 288 O
Miranda, Carmen, 13, 27, 28, 46, 75, O
106, 311
Miranda, Milton, 157
Monroe, Marilyn, 247 Pa
Monteiro, Ciro, 13, 44, 53, 63, 64, Pa
229 Pai
Moraes, Vinícius de, 12, 229 Pai
Moreira, Adelino, 78, 225
Moreira, Buci, 26 Morris, Mr.,-156
Nair, dona (tia de Messias), 265 Nair, irmã de Dalva, 32, 39, 98, 249,
252
Nana, filha de Caymmi, 47 "Não tem mais jeito", 130 Nasser, David, 14, 52, 57, 67, 81, 126,
134-7, 141, 171, 189, 190, 195,
284, 287,290, 312, 326 "Nega manhosa", 77, 190 Neide Aparecida, 185 "Nem o chope", 285 Neuza Maria, 199 Newton, filho de Lurdes, 103, 144,
145, 176,236 Ney, Nora, 255 Norberto, Natalício, 296 "Nossas vidas", 298 Nunes, Bené, 73, 239, 266 Nunes, Cícero, 44 Nunes, Clara, 329
Nuno, terceiro marido de Dalva, 210,
211, 244, 245, 251, 252, 253, 255,
308
"Oi, cristal", 157
"Olhos verdes", 15, 55, 112
Olimecha, Dudu, 37
Oliveira, Aloysio de, 156
Oliveira, Pery, Pery Ribeiro como, 187
Olívia Palito, apelido de Dalva, 112
Oscarito, 50
Ovo Quente, apelido de Marino Pinto,
63
Pacheco, Francisco (Chicão), 139 Pai Joaquim Mina ver Barbosa Paim ver Pamplona, Haroldo Paim Paiva, Vicente, 58, 103, 106, 108, 112,
140, 142, 339
Palha de Aço, apelido de Gilberto Alves,
64
"Palhaço", 131
Pamplona, Haroldo Paim, 150 Panicali, Lírio, 199 "Pastorinhas, As", 25, 242 Paula, filha de Pery, 90, 334 Paulistana (Bily Blanco), 123 l Paz, Newton, 45 í
Pedro I, dom, 116 l Peixoto, Cauby; 150, 199, 210, 262, t 293, 295
f "Pensando em ti", 77, 190, 286, 288, f 290
"Pensando nela", 288 Peracchi, Leo, 199 "Perdoar", 132
Perón, presidente da Argentina, 65 Piaf, Edith, 295 Piedade, J., 124 Pinguinho, apelido de Amália Paiva,
112
Pinheiro, Albino, 319 Pinto, Marino, 14, 15, 63, 94, 125,
127, 128, 130, 138, 154,283 Pinto, Walter, 29, 49, 140 Pixinguinha, 13, 61,228,238 "Poeira do chão", 133 Powell, Baden, 229 "Pra que discutir com madame", 47 "Praça
Onze", 50, 51, 71, 282, 301, 317 Príncipe Pretinho, 34, 39, 86 "Promessa de pescador", 46 "Pulga, A", 58 '•-'.
354
"Quando a idade chegar", 283 "Quando o tempo passar", 284 Quatro Ases e Um Coringa, 60 Quatro homens e uma jangada (Orson
Welles), 70
"Que rei sou seu?", 140 "Que será", 126, 155
Quem tem medo da verdade (Carlos Manga e Wilton Franco), 246
Ramalhete, Clóvis, 294 Ranchinho ver Alvarenga e Ranehinho "Rancho da praça Onze", 15, 242 "Rapsody in Blue" (Gershwin), 21 5 Recarey, Chico, 303 "Recusa", 191 Redondo,
Jaime, 141 Reis, Dilermando, 205 Reis, Mário, 229 Ribamar, 266 Ribeiro, Alberto, 223 Ribeiro, Almir, 187
Ribeiro, Pery, 11, 13-6, 26, 38-9, 46-7,
59, 75, 182, 186-7, 230, 232, 259,
261,263-4, 273, 310, 336-9 Risadinha, 199 Roberto Carlos, 262, 263 Roberto, amigo de Herivelto, 266 "Roda-pião", 46
Rodrigues, Lupicínio, 62, 63, 229 Rodrigues, Nelson, 135 Rolla, Joaquim, 28, 95 Rosa, Noel, 53, 228, 229 Rosemary, 246 Rossi, Mário, 15 Roupa Nova, 272 Rui, Evaldo,
285
Ruth, mulher de Bily Blanco, 123 Ruth, mulher de Luís Bonfá, 26
Sablon, Jean, 13, 27, 28
"Saia do caminho", 157
"Samba pra três", 85
Sampaio, Raul, 132, 135, 140, 170,
225, 257, 260, 262, 305, 339 Santinha, dona (mulher do general
Dutra), 29
Santos, Cristina, 318 Santos, Sílvio, 39, 222
355
Sara, cunhada de Pery, 93
"Saudosa Mangueira", 302
Savaget, Edna, 185, 186
"Se adormeço", 288
"Segredo", 12
Sena, Francisco, 32
Senna, Ayrton, 311
"Seu condutor", 240
Sherman, Maurício, 163, 257, 258,
307, 340
Shirley, amiga de Pery, 117 Silva, Orlando, 13, 44, 64, 65, 199 Sílvia (Silvinha), mulher de Luís Carlos
Vinhas), 218
Sílvia, dona (mãe de Lurdes), 144 Sinatra, Frank, 33,82,231 "Só louco", 231 Soledade, Paulo, 14, 15, 127, 130,
154, 282,283 Souza, Suzy, 106 Souza, Tárik de, 228 Stela, mulher de Caymmi, 46 Sued, Ibraim, 136 Sumac, Yma, 28 Suréia, 26
Taiguara, 144
Tavares, Hekel, 86
Teixeira, Humberto, 127
Teixeira, Renato, 230
Telinho, apelido de Grande Otelo, 49,
193
Telles, Sylvinha, 156 "Tempo e a hora, O", 123 "Teu exemplo", 129 "Timoneiro", 57 Timóteo, Agnaldo, 254 Torelli, Aparício ver Itararé, Barão de "Touradas em Madrid",
25 Trenet, Charles, 13,27,28 Trigêmeos Vocalistas, 199 Trio Irakitan, 156
TrioNagô, 199 Troillo, Aníbal, 157 "Tudo acabado", 15, 124, 125, 154,
326, 327
Ubaldi, Pietro, 260
Ubirajara, pai de Taiguara, 144
Ubiratan, irmão de Pery, 40, 43
"Valsa de uma cidade", 201
Valter Boca-de-Sopa, 26
Vanda, 26
Vareto, Ercole, 199
Vargas, Darcy 13
Vargas, Getúlio, 23, 24, 70, 112, 146,
203, 225, 226, 242 Vargas, Pedro, 28, 219 Vasconcelos, José, 85 Vassourinha, 229 :
Veloso, Dulce, 176 "Vem, a Bahia te espera", 282 "Vermelho 27", 190 Verônica, Carmen, 30 Vicentina, Dalva como, 32, 33, 215 Vicky and Joy, 27 Vieira, Jonas, 296
Vieira, Luís, 244, 245 Villa-Lobos, Heitor, 12, 30, 61 "Vingança", 63
Vinhas, Luís Carlos, 217, 218 Viúva alegre (Franz Lehár), 33, 80 "Volta do boêmio, A", 78
Walter, costureiro de Dalva, 211 Welles, Orson, 13, 69, 70, 71, 73, 74 White, Betty, 78 Widmark, Richard, 248 Wilza Carla, 30
Xuca-Xuca, 139 Xuxa, 156
356
Yaçanã, filha de Herivelto e Lourdes,
146, 147, 176, 184,207,235,304,
317
Zé Catimba, palhaço, Herivelto como,
32, 33
Zefinha, Dalva como, 85 Zefinha, Margarida como, 85 "Zum-zum", 282
357

Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini
em março de 2008





***De sarix***


  formato Texto...está anexo...saúde e paz...sarix


Índice.jpg





Contracapa

"Esta é a melhor memória de um artista da música popular! brasileira publicada em livro até hoje (...) É uma narrativa! emocionada, mas adulta e ordenada, que

refaz a história de dois artistas deslumbrantes. E, o mais importante: é uma narrativa que seria empolgante de qualquer maneira, mesmo que seus protagonistas não

fossem a 'Estrela Dalva' e o fabuloso Herivelto." - do prefácio de RUY

"Não dá para falar de um sem o outro". Assim Pery Ribeiro confirma o que a posteridade se encarregou de provar. As vidas cruzadas de Dalva de Oliveira e Herivelto

Martins são um acontecimento único na história da música brasileira: o casamento do grande compositor popular, no auge de sua produção, com a melhor intérprete

de suas canções. Em Minhas duas estrelas, Pery compõe um relato vibrante, revelando os detalhes de um relacionamento intenso e turbulento.

 



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