Saga William Dietrich
01
As Pirâmides de
Napoleão
2006
O que é Deus?
Ele é comprimento, largura, peso e profundidade.
São BERNARD DE CLAIRVAUX
PARA MINHA FILHA, LISA.
ESCANEADO, FORMATADO E REVISADO POR:
França Revolucionária
1978
Capítulo Um
O problema todo começou com a sorte nas cartas. Assim
como com a decisão de me alistar no exército a caminho de
uma invasão maluca que parecia ser a melhor solução para a
enrascada em que me envolvi. Ganhei uma jóia e quase
perdi minha vida; então, aprenda uma lição: jogar é um
vício.
Mas acredito que também seja algo sedutor, natural e parte
da vida, como respirar. O próprio nascimento pode ser
comparado a um lance de dados, uma mera questão de sorte
para definir se um bebê será um servo e o outro nasça para
ser rei. Na onda da Revolução Francesa, os riscos tinham
simplesmente aumentado demais, com advogados
gananciosos ditando o ritmo e o pobre rei Luís perdendo a
cabeça.
Durante o Reinado do Terror, o fio da guilhotina fazia da
existência em si uma questão de pura sorte. Então, com a
morte de Robespierre, veio um alívio insano e casais felizes
dançavam sobre os túmulos do cemitério de Saint Sulpice ao
som de um novo passo alemão chamado valsa. Agora, mais
de três anos depois, a nação mergulhou em guerras, na
corrupção e na constante busca pelo prazer.
As fardas marrons sem vida deram lugar a uniformes
brilhantes e modestos colarinhos, enquanto mansões
saqueadas passaram a servir como salões e bordéis para
ávidos intelectuais. Se o conceito de nobreza ainda era
repugnado, a riqueza revolucionária criava uma nova
aristocracia. Uma elite de auto-proclamadas "mulheres
maravilhosas" desfilava pelas ruas de Paris para ostentar sua
"luxúria insolente em meio à deplorável condição pública."
Os bailes eram freqüentados por donzelas vestindo fitas
vermelhas no pescoço, zombando da guilhotina. A cidade
contava com quatro mil casas de jogo, algumas tão simples
que os jogadores levavam seus próprios bancos dobráveis, e
outras tão opulentas que os aperitivos eram servidos em
bandejas dignas das catedrais, além de possuírem banheiro
interno.
Meus colegas norte-americanos consideravam ambas as
práticas igualmente escandalosas.
Os dados e as cartas não param: creps, vinte e um, faraó,
biribi, e por aí vai. Enquanto isso, a inflação era calamitosa e
ervas daninhas cresciam nos jardins abandonados de
Versailles. Para completar, exércitos marchavam pelas
fronteiras da França. Vivendo tudo isso, arriscar uma boa
quantia e torcer por um nove em Chemin de Fer parecia tão
natural e tolo quanto a própria vida. Como eu poderia saber
que aquela aposta me levaria a Bonaparte?
Se eu fosse um pouco supersticioso, poderia ter levado em
conta que a data — 13 de abril de 1793 — era uma sexta-
feira. Mas era primavera na Paris revolucionária, o que
significava que, pelo novo calendário instituído pelo
Diretório, era o vigésimo quarto dia do mês de Germinal no
Ano Seis e que o próximo dia de descanso ainda distava seis
dias, e não dois.
Nenhuma reforma havia sido tão inútil quanto aquela. A
arrogante medida do governo de descartar a cristandade fez
com que semanas passassem a ter dez dias em vez de sete. A
intenção dessa revisão era substituir o calendário papal por
uma alternativa uniforme de doze meses de trinta dias, cada
um com base num antigo sistema egípcio.
Até edições da Bíblia foram desmontadas para se abastecer a
produção de cartuchos de papel para armas nos dias
sombrios de mil setecentos e noventa e três, enquanto a
semana bíblica fora guilhotinada para dar lugar a meses di-
vididos em três décadas de dez dias cada, com o ano
começando no equinócio de outono, e a inclusão de cinco
ou seis feriados para balancear o idealismo com a órbita
solar.
Não satisfeito com a reformulação do calendário, o governo
introduziu um novo sistema métrico para pesos e medidas.
Existiam ainda propostas para uma nova duração do dia com
exatos cem mil segundos marcados no relógio. Razão, razão!
E o resultado foi que todos nós, incluindo eu — cientista
amador, investigador da eletricidade, empreendedor, franco-
atirador e idealista democrático -, não sabíamos mais quando
eram os domingos. O novo calendário era um tipo de idéia
lógica imposta por pessoas inteligentes, mas que ignoram
completamente o hábito, as emoções e a natureza humana.
Tudo isso, com certeza, apontava para o fracasso da
Revolução. Parecia um profeta? Para ser honesto, ainda não
estava habituado a pensar na opinião pública de modo
calculista. Eu aprenderia isso com Napoleão.
Pois é, meu pensamento estava dedicado à contagem das
cartas no jogo. Se eu fosse um homem da natureza, poderia
ter deixado os salões para me deliciar com os primeiros
aromas do ano e passear entre as folhas verdes, e, quem
sabe, me dedicado a contemplar as senhoritas no jardim de
Tuileries ou, pelo menos, as prostitutas de Bois de Boulogne.
Eu escolhi as mesas de jogo de Paris, aquela cidade gloriosa e
suja com seu perfume, poluição, monumentos e lama.
Minha primavera era à luz de vela; minhas flores eram
cortesãs, cujas roupas eram tão apertadas que seus seios
pareciam querer escapar desesperadamente; e meus
companheiros formavam a nova democracia de políticos e
soldados, nobres sem poder e comerciantes recentemente
enriquecidos, mas, todos, com uma coisa em comum:
cidadãos iguais. Eu, Ethan Gage, era o representante da luta
norte-americana pela democracia nos salões e mesas de
jogos.
Eu tinha um pouco de status graças a meu período como
aprendiz do grande e, infelizmente já falecido, Benjamin
Franklin. Ele me ensinou o suficiente sobre eletricidade para
que eu pudesse entreter uma seleta audiência, por exemplo,
ao girar um cilindro para transferir uma carga estática para as
mãos das moças mais bonitas e, então, desafiar os homens a
tentarem, literalmente, dar um beijo, digamos, chocante.
Também era um pouco conhecido por minhas
demonstrações de tiro. Além da eletricidade, eu exibia a
precisão do rifle longo norte-americano: tinha que acertar
seis balas numa bandeja de estanho a duzentos passos e, com
um pouco de sorte, cortar a pluma do chapéu de um general
incrédulo a cinqüenta.
Embora se limitasse, às vezes, a tentativas frustradas, meu
trabalho garantia parte do meu dinheiro com o esforço de
firmar contratos entre a França, com sua pressão militar, e
minha jovem e neutra nação. Uma tarefa ingrata, devo dizer,
já que o hábito revolucionário de abordar e confiscar navios
norte-americanos tornava tudo mais difícil. Entre uma
reunião e outra, meu maior problema era não ter muitas
opções para ocupar meus dias: eu era mais um dos jovens
que ficavam à deriva esperando o futuro chegar. Além disso,
o dinheiro era pouco para garantir meu sustento de maneira
confortável em Paris, com sua inflação proibitiva.
Justamente por isso, eu tentava a sorte nas cartas.
Nossa anfitriã era a misteriosa madame d'Liberté, uma
daquelas mulheres de negócios cheias de beleza, ambição,
vontade e esperteza que emergiram da anarquia
revolucionária. Quem diria que as mulheres poderiam ser
tão ambiciosas, inteligentes e sedutoramente convincentes?
Ela dava ordens como um sargento veterano e, mesmo
assim, entrava na nova moda de vestir vestidos clássicos para
exibir seus charmes femininos. Os tecidos eram tão
transparentes que os mais observadores podiam encontrar o
triângulo negro apontando para seu templo de Vênus. Seus
mamilos eram devidamente maquiados num leve tom de
vermelho e apontavam por cima de seu sutiã como soldados
espiando para fora de uma trincheira. Uma outra cortesã era
mais direta e exibia seus seios por inteiro, como um par de
melões prontos para a colheita.
Até os homens entravam na onda do visual. Para não serem
engolidos pelo deslumbre provocado pelas mulheres, muitos
dos exibidos abusavam de modelitos extravagantes com
direito a capas que iam até os joelhos, sapatos tão delicados
quanto as patas de gatinhos e brincos dourados que reluziam
em suas orelhas.
Não foi nenhuma surpresa eu me arriscar a retornar a Paris,
não é? Quem não amaria uma capital que tivesse três vezes
mais produtores de vinho do que padeiros?
"Sua beleza perde apenas para sua sabedoria", um
embriagado jogador e negociante de arte chamado Pierre
Cannard disse para a madame assim que ela cortou seu fluxo
de uísque. Essa foi sua punição por ter derramado bebida em
seu recém-adquirido e inimitável carpete oriental. Ela pagou
uma alta quantia a um nobre falido, que estava se desfazendo
de todas as riquezas para conseguir dinheiro. Todos os
nobres faziam o mesmo.
"Elogios não vão limpar meu carpete, monsieur."
Cannard não desistiu. "E sua sabedoria perde apenas para sua
força, sua força para sua teimosia, e sua teimosia para sua
crueldade. Sem uísque? Com essa frieza feminina, eu bem
que preferiria comprar bebida de um homem!"
Ela devolveu. "Você parece muito com nosso novo herói
militar."
"Você quer dizer o jovem general Bonaparte?"
"Um porco da Córsega. Quando a brilhante Germaine de
Staêl perguntou a ele sobre qual tipo de mulher ele
admirava, Bonaparte respondeu: Aquela que cuida melhor
da casa?
Os presentes riram. "Com certeza!", Cannard gritou. "Ele é
italiano e sabe bem o lugar de uma mulher!"
"Então, ela tentou novamente, perguntando quem é a
mulher mais distinta entre todas as outras. E o bastardo
respondeu: Aquela que pode dar à luz a mais crianças."
Fomos ao delírio. Foi impressionante o modo como
revelamos nossos sentimentos em relação às mulheres.
Realmente, qual era o lugar da mulher na sociedade
revolucionária? Elas receberam direitos, até mesmo o do
divórcio, mas o recém-afamado Napoleão tinha a mesma
postura de todos os outros milhões de reacionários que
prefeririam revogar essa decisão. Qual, então, seria o papel
do homem? O que a racionalidade tinha a ver com romance
e sexo, duas das maiores paixões francesas? O que ciência
tinha a ver com amor, igualdade com ambição, ou liberdade
com conquista? Todos sentíamos as coisas de um jeito
diferente no Ano Seis.
Madame d'Liberte havia comprado um apartamento no
primeiro andar acima da loja de chapéus. Ela gastou uma
bela quantia para mobiliar e abrir o estabelecimento tão
rápido que eu ainda podia sentir o cheiro da pasta do papel
de parede misturado ao aroma de colônia e fumaça de
tabaco. Sofás eram alcovas ideais. Cortinas de veludo
estimulavam o tato. Um novo piano, muito mais moderno
que a espineta aristocrática, enchia o ambiente com uma
mescla de melodias sinfônicas e patrióticas. Especialistas,
prostitutas, burocratas, informantes, mulheres em busca de
casamento estratégico e herdeiros falidos: todos esses tipos
poderiam ser encontrados ali.
Sentados à mesa comigo estavam um político libertado da
prisão há oito meses; um coronel que perdeu um braço na
conquista da Bélgica; um mercador de vinhos endinheirado
por ser fornecedor dos inúmeros restaurantes abertos pelos
chefs que tinham perdido seus empregos nas casas das
grandes famílias aristocráticas; e um capitão do exército de
Bonaparte na Itália. Ele gastava sua parte do saque mais
rápido do que havia ganhado. E, claro, eu.
Fui secretário de Franklin durante seus últimos três anos em
Paris, exatamente antes da Revolução Francesa, e retornei
aos Estados Unidos para me aventurar no comércio de peles,
depois trabalhei um pouco como agente de carga em
Londres e Nova Iorque no ápice do Terror. Agora, voltei à
cidade na esperança de que meu francês fluente me ajudasse
a fechar negócios com o comércio de madeira, fibras e
tabaco entre meu país e o Diretório. Sempre há uma chance
de ficar rico durante uma guerra. Sinceramente, também
esperava ser respeitado como "eletricista" — uma palavra
nova e exótica — e continuar as pesquisas de Franklin
baseadas em sua curiosidade sobre os mistérios maçónicos.
Ele acreditava que eles poderiam ter aplicações práticas
maiores. Especialmente por alguns estudiosos garantirem
que os Estados Unidos foram fundados por maçons com um
propósito secreto — cuja natureza ainda não foi revelada -, e
que nossa nação tinha uma missão. Em tempo, o
conhecimento maçônico só é revelado depois de um tedioso
processo de crescimento em seus vários níveis.
O bloqueio naval britânico impediu meus esquemas de
negócios. Uma coisa a Revolução não mudou: o tamanho e a
velocidade da implacável burocracia da França — era fácil
conseguir uma audiência, e impossível obter uma resposta.
Levando tudo isso em conta, eu acabava tendo muito tempo
para outras ocupações, como o jogo.
Era um jeito mais que agradável de manter uma pessoa
ocupada durante a noite. O vinho era aceitável, os queijos
eram bons, e, à luz de vela, cada rosto masculino parecia
enganador e toda mulher era maravilhosa.
Ao contrário do normal, meu problema naquela sexta-feira
13 não era estar perdendo. Eu estava ganhando.
Naquele período as ordens de pagamento e apólices
revolucionárias tinham perdido seu valor, dinheiro vivo
virou lixo e espécie era algo muito raro. Por isso, minha
pilha de ganhos consistia não apenas em francos de ouro e
prata, mas também em um rubi, e a escritura de uma
propriedade abandonada em Bordeaux - que eu não tinha a
menor intenção de visitar e seria utilizada numa próxima
rodada — e em fichas de madeira que davam direito a
refeições, garrafas de vinho, ou uma noite com uma mulher.
Até mesmo uma ou duas moedas de ouro com a face do rei
Luís apareceram no meu lado da mesa.
Eu estava com tanta sorte que o coronel me acusou de
querer ganhar seu outro braço, o mercador de vinhos
lamentou não ter conseguido me embebedar e o político
queria muito saber quem eu tinha subornado.
"Eu simplesmente conto cartas em inglês", tentei fazer a
piada, mas não funcionou, já que a Inglaterra era
abertamente o próximo alvo de Bonaparte, ainda colhendo
frutos de seus triunfos no norte da Itália. Ele estava
acampado em algum lugar na Bretanha, vendo a chuva e
torcendo para que a marinha britânica fosse embora.
O capitão pegou uma carta, pensou e corou. Era como se ele
avisasse a todos o que estava pensando. Isso me lembrou da
história da cabeça de Charlote Corday que, após ser
guilhotinada, teria ficado indignada ao ser repetidamente
esbofeteada por seu carrasco em frente ao público. O fato
gerou um debate científico sobre o momento preciso da
morte, o que levou o doutor Xavier Bichot a levar corpos de
vítimas da guilhotina para seu laboratório e tentar animar
seus músculos com eletricidade, usando a mesma técnica
que o italiano Galvani aplicava em sapos.
O capitão queria dobrar sua aposta, mas foi frustrado por sua
bolsa vazia. "O americano levou todo o meu dinheiro!" Eu
dava as cartas no momento e ele me olhou. "'Monsieur,
crédito para um soldado honrado."
Eu não estava com humor suficiente para financiar uma
guerra de apostas com um jogador excitado com suas cartas.
"Um banqueiro cauteloso precisa de garantias."
"Qual? Meu cavalo?"
"Não tenho necessidade de um em Paris."
"Minhas pistolas? Minha espada?"
"Faça-me o favor, não o implicaria em desonra, cavalheiro."
Ele ficou em silêncio, considerando novamente o que
possuía. Então, algum tipo de inspiração divina tomou o
homem, o que normalmente significaria problemas para
qualquer um envolvido. "Meu medalhão!"
"Seu o quê?"
Ele retirou de seu pescoço um volumoso e pesado medalhão
que trazia escondido, embaixo de sua camisa. Era um disco
de ouro, cheio de escrituras e perfurações que formavam um
curioso traçado de linhas e furos, com dois longos braços
semelhantes a ramos pendurados na parte de baixo. Ele
parecia bastante gasto e rudimentar, como se tivesse sido
forjado na bigorna de Thor. "Achei na Itália. Vejam o peso e
como é antigo! O carcereiro de quem eu tomei disse que
pertenceu a Cleópatra!"
"Ele conhecia a moça?", perguntei sem nenhum sinal de
entusiasmo.
"Foi o conde Cagliostro quem contou a ele!"
Isso chamou a minha atenção. "Cagliostro?" O famoso
curandeiro, alquimista e blasfemo que era querido nas cortes
da Europa, mas aprisionado na fortaleza do papa em San Leo,
morreu de loucura em mil setecentos e noventa e cinco?
Tropas revolucionárias invadiram a fortaleza ano passado. O
envolvimento do alquimista com o Caso do Colar, mais de
uma década atrás, ajudou a precipitar a Revolução ao fazer
com que a Monarquia parecesse gananciosa e tola. Maria
Antonieta o desprezava e o chamava de feiticeiro e
enganador.
"O conde tentou usar isto para subornar o guarda e escapar",
o capitão continuou. "O carcereiro simplesmente confiscou
o medalhão e, quando derrubamos as defesas, eu o tomei
dele. Talvez ele tenha poderes passados por séculos, já que é
tão velho. Vou vender para você por..." - ele olhou a minha
pilha - "mil francos de prata."
"Capitão, você está brincando. E uma história interessante,
mas..."
"Ele veio do Egito, o carcereiro me contou! Tem valor
sagrado!"
"Egípcio?", disse alguém com o timbre de um grande gato.
Urbano e preguiçosamente interessado. Olhei para o alto e
vi o conde Alessandro Silano, um aristocrata de
descendência franco-italiana que havia perdido a fortuna na
Revolução e, de acordo com os rumores, estava tentando
conquistar novas riquezas ao se tornar democrata e atuando
em papéis perigosos nas intrigas diplomáticas. Dizia-se que
Silano era um operativo de Talleyrand, o ministro de
Relações Exteriores da França. Ele também se apresentava
como estudioso dos segredos da Antigüidade nos moldes de
Cagliostro, Kolmer e St. Germaine. Alguns arriscavam a
dizer que sua reabilitação nos círculos do governo acontecia
por uso das Artes das Trevas. Ele tirava proveito de tanto
mistério, por exemplo, blefando nas cartas ao dizer que sua
sorte estava garantida pela magia. Mesmo assim, ele perdia
tanto quanto ganhava, então ninguém sabia se deveria, ou
não, levá-lo a sério.
"Sim, conde", disse o capitão. "Você, acima de todos os
outros, deve reconhecer seu valor."
"Devo?" Ele se sentou a nossa mesa com sua tradicional
languidez, seu forte traço sarcástico, seus lábios sensuais,
olhos escuros e pesadas sobrancelhas e o porte físico de Pan.
Ele era capaz de conquistar mulheres como o famoso
Mesmer, que as colocava sob um feitiço chamado hipnose.
"Quero dizer, por sua posição no Rito Egípcio."
Silano acenou com a cabeça. "E meu período de estudos no
Egito. Capitão Bellaird, certo?"
"Você me conhece, monsieur"?
"Pela reputação de um soldado galante. Eu sigo os boletins
da Itália com atenção. Se o senhor conceder a honra de sua
companhia, gostaria de me juntar ao seu grupo."
O capitão ficou lisonjeado. "Mas é claro."
Silano sentou e as mulheres se aproximaram. Ele era
precedido por sua reputação de amante, duelista, apostador e
espião. Também era conhecido por ter aderido ao
desacreditado Rito Egípcio da Maçonaria - lojas fraternais
que admitiam tanto homens quanto mulheres. Essas lojas
heréticas realizavam várias práticas ocultas e não faltavam
histórias apetitosas sobre cerimônias secretas, grandes orgias
e horríveis sacrifícios. Talvez dez por cento de tudo isso
fosse verdade. De qualquer maneira, o Egito tinha a
reputação de ser a fonte do conhecimento ancestral e
muitos místicos garantiam ter descoberto poderosos
segredos em peregrinações longas e misteriosas por lá. Como
resultado, a moda era possuir itens antigos de uma nação que
estava fechada para a Europa desde sua conquista pelos
árabes, há treze séculos. Silano havia estudado no Cairo
antes de os regentes mamelucos começarem a atacar
comerciantes e estudiosos europeus.
Agora, o capitão gesticulava desesperadamente para ratificar
o interesse de Silano. "O carcereiro disse que os braços
podem apontar para um grande poder! Conde, um homem
dos estudos como você pode entender o significado disso."
"Ou pagar por um pedaço de nada. Deixe-me ver."
O capitão levantou seu pescoço um pouco. "Veja como ele é
intrigante."
Silano pegou o medalhão e, exibindo seus longos e fortes
dedos de esgrimista, o virou para examinar os dois lados. O
disco era um pouco mais largo que uma hóstia. "Não é
bonito o suficiente para Cleópatra." Quando ele o segurou
perto de uma vela, a luz brilhou através dos buracos. Uma
série de inscrições se estendiam pelo círculo. "Como você
sabe que isto veio do Egito? Pela aparência poderia ter vindo
de qualquer cultura: assíria, asteca, chinesa e, até mesmo,
italiana."
"Não, não, ele tem milhares de anos! Um rei cigano me disse
para procurá-lo em San Leo, onde Cagliostro morreu.
Embora alguns digam que ele ainda vive e é um guru na
Índia."
"Rei cigano. Cleópatra." Silano lentamente devolveu a peça.
"Monsieur, deverias ser um escritor de teatro. Dou duzentos
francos de prata por ele."
"Duzentos!"
O nobre deu de ombros com os olhos ainda na peça. Fiquei
intrigado pelo interesse de Silano. "Você disse que ia vender
para mim."
O capitão concordou, especialmente por estar esperançoso
de que nós dois tivéssemos caído na história. "Sem dúvida!
Talvez ele até seja do faraó que perseguiu Moisés!"
"Então, vou dar trezentos."
"E eu ofereço quinhentos", disse Silano.
Sempre queremos o que o outro quer, certo? "Compro de
você por setecentos e cinqüenta", eu disse.
O olhar do capitão fixava em mim, passava para Silano, e
continuava intercalando os dois.
"Setecentos e cinqüenta e esta apólice no valor de mil
libras", complementei.
"O que significa setecentos e cinqüenta e algo tão sem valor
e inflacionado que ele poderia usar para limpar o traseiro",
Silano contra-atacou. "Dou mil francos, capitão."
O preço que o soldado queria havia sido alcançado tão
rápido que ele estava em dúvida. Como eu, ele imaginava a
razão do interesse do conde. Esse preço era muito acima que
o valor da peça em ouro. Ele pareceu tentado a colocar o
medalhão de volta dentro de camisa.
"Você já me ofereceu por mil", disse. "E como um homem
de honra, faça a troca ou saia do jogo. Vou pagar o valor que
me pede e vou ganhá-lo de volta dentro de uma hora."
Ele foi desafiado. "Feito", ele disse, definitivamente um
soldado na defesa de seu ideal. "Aposte nesta rodada e nas
próximas e eu vou ganhar o medalhão de volta de você."
Silano observou desesperançoso este affaire d'honneur.
"Pelo menos me dê algumas cartas." Fiquei surpreso por ele
ter desistido tão facilmente. Talvez ele só estivesse ajudando
o capitão a reduzir meus ganhos. Ou ele acreditava que
poderia ganhá-lo no jogo.
Se fosse isso, ele ficaria desapontado. Eu não tinha como
perder. O soldado apostou tudo num onze e perdeu.
Também perdeu outras três rodadas ao apostar contra as
probabilidades, desatento demais para contar quantas cartas
haviam sido dadas. "Maldição", ele murmurou. "Você está
com uma sorte dos diabos. Estou tão quebrado que vou ter
que voltar para o front?
Coloquei o medalhão em meu pescoço enquanto o soldado
olhava com cara feia, então levantei para pegar uma taça de
vinho e exibir meu prêmio para as donzelas, como um boi
desfilando numa feira rural. Quando domei meu instinto
masculino, resolvi guardar o medalhão dentro da camisa.
Silano se aproximou.
"Você é o homem de Franklin, não é?"
"Sim, tive o prazer de servir àquele estadista."
"Então, talvez, você possa apreciar meu interesse intelectual.
Sou um colecionador de antiguidades. Ainda quero comprar
esse colar de você."
Antes disso, uma cortesã com o delicado nome de Minette,
ou Gatinha, já havia sussurrado sobre a masculinidade do
meu colar. "Eu respeito sua oferta, monsieur, mas eu
pretendo discutir História Antiga nos aposentos de uma
donzela." Minette tinha saído mais cedo para aquecer seu
apartamento.
"Uma consulta perfeitamente compreensível. Mesmo assim,
posso sugerir os serviços de um verdadeiro especialista? Esta
peça tem um formato interessante, com sinais intrigantes.
Homens que têm estudado as artes antigas..."
"Podem apreciar o quão afetuosamente eu me sinto em
relação a minha nova aquisição."
Ele chegou ainda mais perto. "Monsieur, eu insisto. Pago o
dobro."
Não gostei da persistência. Seu ar de superioridade afrontou
minha sensibilidade norte-americana. Além do mais, se
Silano queria tanto assim o medalhão, então, talvez, ele
valesse um pouco mais. "E devo insistir que o senhor me
aceite como o vencedor de direito, e sugerir que minha
assistente, que também tem um formato bem interessante,
possa me abastecer precisamente com o tipo de expertise
que necessito?" Antes que ele respondesse, fiz reverência e
o deixei.
Totalmente bêbado, o capitão me interpelou. "Não é sábio
rejeitar Silano."
"Pensei ter ouvido você dizer que o colar tinha grande valor,
de acordo com o rei cigano e o carcereiro papal."
O oficial sorriu maliciosamente. "Eles também disseram que
o medalhão é amaldiçoado."
Capítulo Dois
Que tentativa patética de revanche verbal. Fiz uma rápida
reverência à madame e saí para dar de cara com uma noite
um tanto sombria, graças à neblina industrial causada pela
Nova Era. Era só olhar para o oeste e ver o brilho escarlate
provocado pelo crescimento das fábricas nos subúrbios de
Paris, sem dúvida o prenúncio do surgimento de uma época
ainda mais mecanizada.
Um lanterneiro estava perto da porta à espera de clientes. Eu
realmente estava com sorte. Sua aparência era um pouco
obscura por causa da capa e do capuz que vestia, mas, com
certeza, era mais escuro que um europeu: marroquino
talvez, disposto a fazer um trabalho baixo típico de
imigrantes. Ele reverenciou levemente e revelou seu
sotaque árabe. "Monsieur, tens a aparência de um homem de
sorte."
"E estou prestes a me sair melhor ainda. Quero contratar
seus serviços para me guiar até meu apartamento e, depois,
ao endereço de uma donzela."
"Dois francos te satisfazem?"
"Três, se você me afastar das poças de lama." Como é
maravilhoso ser o ganhador da noite.
Contratar um guia era fundamental já que a Revolução havia
se dedicado a tudo com fervor, exceto limpeza e reparos das
ruas. Os esgotos estavam entupidos, só metade das lanternas
públicas era acesa, e os buracos cresciam cada vez mais. E
também não ajudava o fato de o novo governo ter
renomeado mais de mil ruas com os nomes de heróis
revolucionários e todo mundo ficava constantemente
perdido na cidade.
Por isso, meu guia indicava o caminho carregando uma
lanterna que ficava pendurada em um cajado de duas mãos.
A madeira do bastão era trabalhada à mão. As laterais tinham
fissuras que davam mais firmeza e o pólo que segurava a
lanterna tinha o formato de uma cabeça de serpente. A boca
do réptil segurava a argola de sustentação da lanterna. Era
quase certo afirmar que se tratava de uma obra de arte vinda
da terra natal do guia.
Fui ao meu apartamento primeiro. Precisava guardar a maior
parte dos ganhos da noite. Sabia muito bem que não era
seguro levar todas as minhas riquezas para a alcova de uma
prostituta e, especialmente sabendo do interesse de todos,
também resolvi esconder o medalhão. Demorei alguns
minutos para decidir onde guardá-lo. Resolvido o impasse,
retornei às ruas escuras de Paris e segui o caminho para a
casa de Minette.
Mesmo que a cidade ainda fosse gloriosa por seu tamanho e
esplendor, ela podia ser comparada a uma mulher de certa
idade: era bonita a distância, mas um desastre de perto.
Casarões haviam sido saqueados. O palácio de Tuileries
estava interditado e vazio, com suas janelas lembrando
órbitas cegas. Monastérios e igrejas foram arruinados e
trancafiados, e ninguém parecia ter aplicado sequer uma
camada de tinta em toda a cidade desde a Queda da Bastilha.
A Revolução foi um desastre econômico, menos para
generais e políticos. Poucos franceses ousavam reclamar
abertamente; afinal de contas, governos sempre encontram
maneiras de justificar seus erros. O próprio Bonaparte, até
então um oficial de artilharia pouco conhecido, fez sua
grande jogada no último levante revolucionário e garantiu
sua ascensão.
Passamos pelos escombros da desmantelada Bastilha. Desde
sua tomada, vinte e cinco mil pessoas haviam sido
executadas pelo Terror e dez vezes mais conseguiram
escapar. Cinqüenta e sete novas prisões foram construídas
para suprir o debilitado sistema penitenciário. Sem qualquer
senso de ironia, o lugar passou a ser chamado de "Fonte da
Regeneração": com uma grandiosa estátua da deusa Isis que,
quando acionada, lançava dois jatos de água partindo de seus
seios. De longe, podia-se ver os contornos de Notre Dame -
agora renomeada "Templo da Razão" -, sabidamente
construída sobre o templo romano dedicado à mesma deusa
egípcia.
Um recado do destino sobre o que me aconteceria? Duvido
muito, dificilmente percebíamos o que nos esperava naquele
tempo. Quando paguei o lanterneiro nem percebi que ele
havia ficado um pouco mais que o usual em frente ao
apartamento, depois que eu entrei.
Acompanhado por rangidos e um constante cheiro de urina
seca, subi a escadaria de madeira até o quarto de Minette.
Seu apartamento ficava no desvalorizado terceiro andar, logo
abaixo do sótão, onde moravam serventes e artistas. Pela
altitude pude ter idéia do desempenho medíocre de seu
negócio, sem dúvida alguma prejudicado pela economia
revolucionária tanto quanto a dos fabricantes de perucas e
outros adornos. Minette tinha acendido apenas uma vela,
cuja luz era refletida pela bacia de cobre que ela usou para
lavar suas coxas. Ela estava vestida apenas com uma camisa
branca com laços no pescoço. Claramente um convite a uma
exploração mais minuciosa em breve. Ela veio me receber
com um beijo com gosto delicado de vinho e licor.
"Você trouxe meu presente?"
Puxei-a para perto e aproximei minha cintura. "Você já pode
senti-lo agora."
"Não." Ela recuou e colocou a mão no meu peito. "Aqui,
perto do seu coração." Ela alisou e desenhou o lugar onde o
medalhão deveria tocar a minha pele. "Quero usá-lo para
você."
"E arriscar que um de nós se fure com ele?" E a beijei
novamente. "Além do mais, não é seguro carregar prêmios
como esse por aí no escuro."
As mãos de Minette já exploravam meu torso. Só para
garantir. "Eu esperava mais coragem."
"Vamos fazer uma aposta. Se você ganhar, eu o trago na
próxima vez."
"Apostar como?", disse ela, de maneira suave e profissional.
"O perdedor vai ser aquele que gozar primeiro."
Ela deixou sua cabeça deslizar pelo meu pescoço. "E as
armas?"
"Qualquer coisa que você consiga imaginar." Suavemente, eu
a inclinei um pouco para traz, usei a perna que já estava
encostada em seu calcanhar para fazer um movimento e
deitá-la na cama. "En garde."
Eu venci nossa pequena disputa, mas ela insistiu numa
revanche, que eu também ganhei, assim como a terceira
rodada que a deixou gemendo. Pelo menos eu acho que
ganhei - você nunca sabe quando as mulheres realmente são
honestas nesse quesito, ainda mais uma cortesã. De qualquer
forma, foi o suficiente para mantê-la dormindo pesado
quando eu levantei, antes do amanhecer, e deixei uma
moeda de prata. Antes de sair, coloquei mais uma tora de
madeira na lareira para manter o quarto aquecido quando ela
acordasse.
O céu cinzento foi o sinal para os lanterneiros irem embora
e, com isso, os trabalhadores de Paris acordavam para mais
um dia. Carros de lixo disparavam pelas ruas. Homens com
tábuas cobravam para fornecer pontes temporárias sobre
ruas tomadas pela água estagnada. Carregadores de água
levavam seus baldes para as casas mais afortunadas. Meu
bairro - St. Antoine — não era chique nem desprezível.
Ficava no meio termo ao acolher profissionais como
artesãos, marceneiros, chapeleiros e chaveiros. O aluguel
sempre era baixo por conta do forte cheiro que misturava o
aroma das cervejarias e tinturarias. Tudo isso, porém, era
apenas mais um elemento no interminável odor parisiense
de fumaça, pão e esterco.
Bastante satisfeito com minha última noite, subi as escadarias
escuras de meu edifício com a única, e deliciosa, intenção de
dormir até o meio-dia. Por isso, quando abri a porta e entrei
em meu quarto, resolvi encontrar meu colchão em vez de
perder tempo com velas. Mesmo sonolento, pensei se
poderia penhorar o medalhão por um valor suficiente para
poder conseguir um apartamento melhor. Já que Silano
havia se interessado tanto, seu valor poderia ser ideal para
meus propósitos.
Então, senti uma presença. Virei e notei uma sombra entre
sombras.
"Quem está aí?"
Uma leve brisa passou e instintivamente tentei me virar
enquanto algo zunia pelo meu ouvido e atingiu meu ombro.
Não era algo afiado, mas a dor era intensa do mesmo jeito.
Caí de joelhos. "Mas que diabos?" O porrete havia deixado
meu braço paralisado.
Alguém me empurrou e caí de lado, todo desengonçado.
Não estava preparado para isso! Dei um chute meio
desesperado, acertei um calcanhar e ouvi um grito que me
causou certa satisfação. Deslizei para o lado tentando agarrar
alguma coisa. Valia tudo naquela hora. Encontrei um cinto e
puxei do jeito que deu. O invasor caiu no chão comigo.
"Merde", ele vociferou.
Levei um soco direto no rosto enquanto agarrava meu
agressor. A idéia era livrar minha bainha para poder sacar
minha espada. Eu esperava que ele me empurrasse, mas, em
vez disso, senti uma mão apertando minha garganta.
"Está com ele?", outra voz perguntou.
Quantos homens estavam ali?
Até agora tinha atingido um braço, um pescoço e acabado de
acertar um safanão numa orelha. Meu adversário gemeu
novamente. Consegui me virar e sua cabeça bateu no chão.
No meio da confusão, minhas pernas atingiram uma cadeira
que caiu e fez um barulho enorme. Ouvi um berro do andar
de baixo: "Monsieur Gage!" Era minha senhoria, a senhorita
Durrell. "O que você está fazendo com a minha casa?"
"Ajude-me", gritei, ou tentei gritar. A dor era muito forte.
Rolei para o lado, peguei minha bainha e comecei a sacar
meu florete. "Ladrões!"
"Em nome de Cristo, você pode ajudar aqui?", meu atacante
disse a seu companheiro.
"Estou tentando achar a cabeça dele. Não podemos matá-lo
enquanto não encontrarmos o que viemos buscar."
E, então, alguma coisa me acertou e apaguei.
Quando acordei, devia parecer estar mortinho da silva. Todo
maltrapilho e com o nariz sangrando no chão. Madame
Durrell estava agachada perto de mim como se
inspecionasse um defunto. Quando a mulher me rolou para
o lado e eu pisquei, ela quase caiu de costas.
"Você!"
"Oui, sou eu", murmurei. Por um momento, não me
lembrava de nada.
"Olhe o seu estado! O que você está fazendo ainda vivo?"
O que ela estava fazendo quase deitada sobre mim? Seu
cabelo ruivo sempre me assustava um pouco, parecia uma
nuvem infernal de fios querendo fugir em todas as direções.
Será que já era dia de pagar o aluguel? Com esses calendários
malucos eu vivia confuso sobre quando precisava pagar.
Foi então que lembrei do ataque.
"Eles disseram que estavam relutantes em me matar."
"Como você tem coragem de trazer arruaceiros como esses
aqui para dentro? Você pensa que pode criar uma bagunça
dessas em Paris do jeito que você faz na América? Você vai
pagar cada centavo dos consertos!"
Mesmo meio tonto, sentei. "Consertos?"
"Um apartamento totalmente revirado, uma boa cama
completamente arruinada! Você sabe quanto custa oferecer
a qualidade dos meus apartamentos ultimamente?"
Comecei a organizar as idéias e ligar os fatos mesmo com
uma espécie de gongo soando em minha cabeça. "Madame,
sou tão vítima quanto a senhora."
Minha espada havia desaparecido assim como meus
agressores. Bom, pelo menos não vou sentir falta dela, já que
servia mais para exibir que para usar propriamente: nunca fui
treinado para manejar aquela coisa e ela batia insis-
tentemente na minha coxa. Sempre que podia escolher,
ficava com meu rifle longo ou minha machadinha
algonquiana. Comecei a usar a arma indígena durante meus
dias de mercador de peles; aprendi com os índios e viajantes
que ela serve como arma, martelo, machado, barbeador,
cortador de unha, cortador de corda e ainda faz ótimos
escalpos. Nunca entendi ao certo como os europeus se
viravam sem uma dessas.
"Quando eu bati na porta, seus amigos disseram que você
estava bêbado depois da gandaia! Que você estava fora de si!"
"Madame Durrell, eles eram ladrões, não amigos." Comecei a
olhar o lugar com mais atenção. As cortinas estavam abertas
permitindo que toda a luz possível entrasse, e meu
apartamento parecia ter sido atingido por uma bala de
canhão. Armários abertos, tudo jogado no chão como os
restos de uma avalanche. Uma cômoda estava tombada,
enquanto meu colchão de penas havia sido destruído e
revirado.
Embora não tivesse muitos livros, eles causaram uma boa
bagunça quando a estante foi tombada. Tudo que ganhei na
noite anterior foi levado de dentro do livro oco de Newton,
que Franklin havia me dado de presente - com certeza ele
não esperava que eu lesse muita coisa mesmo — e, para
terminar bem, minha camisa estava rasgada até meu umbigo.
E, é claro, eu sabia que ela não havia sido destruída para
admirarem meu peito. "Sofri uma invasão."
"Invasão? Eles disseram que você os convidou!"
"Eles quem?"
"Soldados, arruaceiros, vagabundos... eles usavam chapéus,
capas e botas pesadas. Eles disseram que vocês tiveram uma
discussão por causa das cartas e que você iria pagar pelos
danos aqui."
"Madame, eu quase fui morto! Estive fora a noite toda, voltei
para casa e fui surpreendido pelos ladrões, que me deixaram
inconsciente. O estranho é que não sei o que eles poderiam
roubar aqui." Olhei para as paredes e vi que vários buracos
estavam abertos nas partes ocas. Será que meu rifle ainda
estava lá? Minha visão foi diretamente até o local onde ele
ficava. Continuava lá. Bom.
"Realmente, o que ladrões iriam querer com um pé-rapado
como você?" Ela olhou para mim friamente. "Um
americano! Todo mundo sabe que o seu tipo não tem
dinheiro algum."
Peguei um banquinho e sentei com força.
Ela estava certa. Qualquer vendedor da vizinhança poderia
ter dito aos bandidos que eu devia bastante. Deve ter sido o
lucro da noite de ontem, incluindo o medalhão. Pelo menos
até o próximo jogo, eu teria sido rico. Alguém deve ter me
seguido da jogatina até aqui e, sabendo que eu sairia logo
para ir ver Minette, armou tudo. O capitão? Silano?
Só sei que atrapalhei os planos dos ladrões com meu retorno.
Ou eles esperaram porque não encontraram o que estavam
procurando? Mas quem saberia de meus planos com
Minette? Bom, ela mesma a princípio. Ela chegou junto
rápido demais. Será que ela estava trabalhando com algum
armador? Era bastante comum ser enganado por prostitutas.
"Madame, eu me responsabilizo totalmente pelos reparos."
"Gostaria de ver o dinheiro que faça a promessa valer,
monsieur?
"Eu também." Levantei meio desequilibrado.
"Você deve falar com a polícia e explicar tudo!"
"Posso esclarecer melhor o que aconteceu depois de
conversar com alguém." "Quem?"
"A jovem donzela que me enganou."
Durrell suspirou e parecia demonstrar um pouco de
simpatia. Um homem ser ludibriado por uma mulher?
Tipicamente francês.
"A madame me permitiria a privacidade de arrumar meus
móveis, consertar minhas roupas e cuidar de meus
ferimentos? Independente do que a senhora pensa, sou
modesto."
"Você precisa é de cataplasma. E de aprender a manter suas
calças afiveladas."
"Sem dúvida. Mas também sou um homem."
"Bem." E ela se levantou. "Cada franco vai para o seu
próximo aluguel, então é melhor você conseguir de volta o
que perdeu." "Pode ter certeza disso."
Assim que ela saiu, fechei a porta e arrumei as grandes peças
de mobília. Por que eles simplesmente não me mataram?
Não encontraram o que procuravam, claro. E se eles
retornarem, ou se madame Durrell resolver fazer uma
limpeza por conta própria? Vesti uma camisa nova e fui
verificar o estado de minha arma predileta. Ótimo, meu rifle
longo da Pensilvânia estava em perfeitas condições. Ele era
meio chamativo para se carregar pelas ruas de Paris e, ao
mesmo tempo, muito complicado de ser penhorado, já que
seria identificado a minha pessoa. Minha machadinha
também estava lá e foi ela que coloquei em meu lugar
favorito, um pequeno compartimento na parte de trás da
jaqueta. E o medalhão? Fui checar o penico.
Lá estava ele. Embaixo da minha própria sujeira. Consegui
pescá-lo de seu esconderijo, lavei-me em minha bacia e
joguei os dejetos e a água suja pela janela do jardim noturno.
Como eu suspeitava, era o único lugar que não seria
vasculhado por um ladrão. Amarrei o medalhão
devidamente limpo em meu pescoço e saí para confrontar
Minette.
Agora faz sentido ela ter me deixado ganhar nossa disputa
sexual! Ela queria pegar meu medalhão de outra maneira, me
mantendo distraído!
Fiz o mesmo caminho de volta ao apartamento e comprei
pão com as poucas moedas que me restavam no bolso. Com
o avanço da manhã, Paris virava um formigueiro humano.
Vendedores me ofereciam vassouras, lenha, café torrado,
brinquedos, ratoeiras e tantos outros produtos. Bandos de
batedores de carteira se amontoavam em torno de fontes
para pegar as moedas lançadas em busca de sorte. Crianças
marchavam para a escola como tropas uniformizadas.
Carregadores entregavam todos os tipos de engradados e
barris nas Lojas. Um tenente com bochechas rosadas saiu de
um alfaiate, resplandecente com seu uniforme de
granadeiro.
Isso, aquele era o edifício dela! Subi as escadas em disparada.
Precisava pressioná-la antes que ela acordasse e fosse
embora. Porém, mesmo antes de chegar a seu andar, senti
que algo estava errado. O prédio parecia estranhamente
vazio.
A porta do apartamento estava levemente aberta. Chamei,
mas não tive resposta. A maçaneta havia sido forçada, a
fechadura estava alargada. Quando abri um pouco a porta,
um gato de bigodes avermelhados disparou para fora.
Uma única janela e as brasas ainda acesas da lareira
iluminavam o lugar. Minette estava na cama do jeito que eu
a havia deixado, mas descoberta do lençol e com sua barriga
aberta com uma faca. Uma poça de sangue fresco havia se
formado no piso de madeira embaixo da cama e o gato com
certeza lambeu.
O assassinato não fazia sentido.
Olhei o resto do quarto. Não notei sinais de arrombamento.
A janela, pelo que vi, estava intocada. Abri para espionar o
quintal lamacento atrás do prédio. Nada.
O que fazer? Pessoas nos viram cochichando no salão e
estava claro que eu pretendia passar a noite com ela. Agora
ela estava morta, mas por quê? Sua boca estava entreaberta e
seus olhos estavam virados.
Enquanto ouvia botas pesadas subindo as escadas, vi que a
ponta de seu dedo indicador brilhava com seu próprio
sangue, que ela havia utilizado para desenhar alguma coisa
nas tábuas de pinho. Não estava entendendo nada.
Era a primeira letra do meu último nome. A letra "G".
"Monsieur », disse uma voz na porta. "Você está preso."
Virei para ver dois gendarmes, membros da polícia formada
pelos comitês revolucionários em mil setecentos e noventa
e um. Atrás deles estava um homem que se comportava
como se suas suspeitas tivessem sido confirmadas. "E ele",
disse o sujeito esquisito com um sotaque árabe.
Era o homem que eu contratei como lanterneiro.
Mesmo que o Terror tivesse passado, a justiça da França
Revolucionária tinha a tendência de guilhotinar primeiro e
investigar depois. Era melhor evitar ser preso para garantir.
Deixei a pobre Minette, escancarei a janela do quarto,
quebrei o batente, pulei e cai facilmente no lamaçal abaixo.
Mesmo a noite longa e cansativa não afetou minha agilidade.
"Alto lá, assassino!" Houve um estampido e um tiro de
pistola passou zunindo ao lado da minha orelha.
Para espanto de um galo, pulei sobre uma cerca de madeira.
Abri caminho a pontapés pelo território de um cachorro
possessivo, encontrei uma passagem para as ruas
movimentadas e corri. Ouvi gritos, mas não sei dizer se
eram de alarme, confusão ou simplesmente comércio.
Felizmente, Paris era um labirinto de seiscentas mil pessoas
e eu estava rapidamente infiltrado na bagunça dos mercados
de Les Halles, com suas suculentas maçãs, cenouras
chamativas, e enguias brilhantes. Nada melhor que novos
estímulos para influenciar meus sentidos depois do forte
choque de ver um corpo dilacerado. Vi as cabeças de dois
gendarmes, numa corrida desenfreada na seção de queijos,
então segui na direção oposta.
Eu estava enfiado até o pescoço no pior dos problemas:
aquele que você não sabe ao certo o que é. O saque do meu
apartamento eu podia aceitar, mas quem matou minha
cortesã? Os ladrões que eu pensei estarem trabalhando com
ela? Por quê? Ela não tinha nem meu dinheiro e tampouco
meu medalhão. E por que raios Minette me incriminaria
com uma inicial de sangue? Eu estava, ao mesmo tempo,
desnorteado e assustado.
Para ajudar, me sentia especialmente vulnerável por ser um
norte-americano em Paris. Sim, dependemos da ajuda
francesa para conquistar nossa independência. Sim, o grande
Franklin foi uma celebridade durante seus anos como
diplomata, o que o transformou em figura estampada em
cartas, miniaturas e taças suficientes para atrair a atenção do
rei. Irritado, o monarca ordenou que a face de Franklin fosse
pintada no interior de um penico. E, sim, minha ligação com
ele me garantiu alguns amigos bem estratégicos na França.
Entretanto, as relações haviam se deteriorado desde que a
França decidiu interferir em nossos carregamentos neutros.
Políticos norte-americanos que, primeiramente, abraçaram o
idealismo da Revolução Francesa, ficaram enojados pelo
Terror. Se eu tinha alguma função em Paris, era tentar
explicar uma nação para a outra.
Vim a Paris pela primeira vez há quatorze anos. Foi o jeito
que meu pai encontrou para me afastar de meus sentimentos
por Annabelle Gaswick e das ambições sociais de seus pais.
Ah, sim. Ele também aproveitou para me manter bem longe
de sua herança. Embora eu não soubesse ao certo, ela
poderia estar grávida. Definitivamente, não era uma união
que minha família gostaria. Como um dilema similar, o fato
era atribuído ao então jovem Ben Franklin — meu pai
apostava que o estadista pudesse ser solidário a minha
situação. Ajudou muito o fato de Josiah Gage ter servido no
Exército Continental como major e, especialmente, ser um
maçom de terceiro nível. Franklin, maçom de longa data na
Filadélfia, havia sido eleito para a Loja das Nove Musas, em
Paris, em 1777. No ano seguinte, ele foi fundamental para a
iniciação de Voltaire, na mesma reunião de agosto, na qual
ele havia sido recebido.
Já que eu havia feito várias viagens de negócios a Quebec,
falava um francês passável, e era razoavelmente talentoso
com as letras (nesse momento, estava no segundo ano de
Harvard, embora já estivesse impaciente com clássicos
obrigatórios e intermináveis debates sobre questões sem
respostas), meu pai sugeriu meu nome como possível
assistente para o embaixador norte-americano em 1784.
Bem da verdade, Franklin estava com setenta e oito anos —
envelhecendo com vigor — e não tinha a menor
necessidade dos conselhos de um jovem ingênuo. Mas, sem
dúvida, estava disposto a ajudar um irmão maçom.
Chegando em Paris, o velhote gostou de mim mesmo com
minha clara falta de ambição. Foi ele quem me apresentou
tanto à Maçonaria quanto à Eletricidade.
"A força secreta que anima o Universo está na eletricidade",
Franklin me disse. "Na Maçonaria, por sua vez, está o código
do comportamento e do pensamento racional que, seria
capaz de curar o mundo de seus males."
Ele me contou que a Maçonaria havia emergido no princípio
do século XVTII, na Inglaterra, mas que suas origens seguem
até os construtores que vagavam pela Europa erguendo as
grandes catedrais. Eles eram "livres" , pois podiam utilizar
seus talentos para conseguir trabalho em qualquer lugar que
fossem necessários e cobrar um salário justo por isso.
Mesmo assim, as raízes do grupo vão mais longe no passado
até o movimento dos Cavaleiros Templários, cujo quartel-
general ficava no Templo do Monte, em Jerusalém, durante
as Cruzadas, e que gerou os principais banqueiros e líderes
militares da Europa.
Os Templários se tornaram tão poderosos que sua
fraternidade foi esmagada pelo Rei da França e seus líderes
queimaram na fogueira. Ficou a cargo dos sobreviventes
semearem a nova ordem. Como muitos grupos, os maçons
têm um certo orgulho por seu passado de perseguição.
"Até mesmo os mártires dos Templários são descendentes de
grupos mais antigos", Franklin dizia. "A Maçonaria relaciona
seus ancestrais com os sábios de nosso mundo até os
escultores e carpinteiros que construíram o Templo de
Salomão."
Os símbolos maçónicos são cunhas e ferramentas dos
pedreiros, pois os integrantes do grupo admiram a lógica e a
precisão da engenharia e da arquitetura. Embora o iniciado
na Maçonaria precisasse acreditar num Ser Supremo,
nenhum credo era defendido nas reuniões. Aliás, os
membros eram proibidos de discutir religião ou política na
Loja. Uma organização política baseada na racionalidade e
no questionamento científico e fundada por um pensamento
livre gerado em contraponto às guerras entre católicos e
protestantes ao longo dos séculos. Entretanto, suas práticas
envolviam misticismo antigo e preceitos matemáticos
arcanos. Sua ênfase na boa conduta moral e na caridade, no
lugar de dogmas e superstições, torna seus ensinamentos,
baseados no senso comum, um tanto quanto suspeitos em
relação aos conceitos religiosos. Seu caráter exclusivo torna a
Maçonaria alvo de inveja e rumores.
"Por que todos os homens não a seguem, então?", perguntei
a Franklin.
"Muitos humanos trocariam felizmente um mundo racional
por um supersticioso se isso aliviasse seus medos, lhes
garantisse status e promovesse alguma vantagem sobre seus
iguais", escutei do filósofo norte-americano. "As pessoas
sempre têm medo de pensar. E, aliás, Ethan, a integridade é
sempre prisioneira da vaidade e o senso comum é facilmente
sobrepujado pela ganância."
Embora apreciasse o entusiasmo de meu mentor, nunca tive
muito sucesso como maçom. Os rituais eram tediosos e a
cerimônia maçônica parecia obscura e interminável. Havia
uma quantidade imensa de discursos longos, memorização
de tediosos procedimentos e vagas promessas de
esclarecimento que viria apenas com o avanço dos níveis
maçónicos. Em resumo, a Maçonaria era chata e necessitava
de mais dedicação do que eu estava disposto a conceder.
Minha partida para os Estados Unidos com Franklin no ano
seguinte garantiu um certo alívio. E sua carta de
recomendação e minha proficiência em francês atraiu a
atenção de John Jacob Astor, um ascendente comerciante
de peles de Nova Iorque. Como fui obrigado a manter
distância da família Gaswick - Annabelle casou-se às pressas
com um prateiro —, aproveitei a chance de entrar no ramo
das peles no Canadá. Viajei com franceses até os Grandes
Lagos, aprendi a atirar e a caçar e, a princípio, acreditava que
encontraria meu futuro no oeste. Entretanto, quanto mais
ficávamos longe da civilização, mais eu sentia falta: não só da
América, mas também da Europa. Um saloon era o refúgio
naquela vastidão solitária. Ben costumava dizer que o Novo
Mundo era destinado a mostrar a verdade direta, enquanto o
Velho ficaria destinado à sabedoria semi-esquecida em sua
longa espera pela redescoberta. Ele viveu toda a sua vida
entre os dois continentes, assim como eu.
Finalmente, desci do Mississipi até Nova Orleans. Aquela
miniatura de Paris era quente, exótica e precocemente
decadente com seus cruzamentos de negros, crioulos,
mexicanos, cherokees, putas, mercadores de escravos,
especuladores de terras e padres missionários. Toda essa
energia atiçou meu desejo de retornar aos confortos
urbanos. Embarquei num navio para as ilhas açucareiras
francesas — produzindo com mão-de-obra escrava — e tive
minha primeira experiência real com as mazelas da vida e a
cegueira da sociedade para suas maiores atrocidades. O que
nos separa das outras espécies não é apenas o que os homens
podem fazer com outros homens, mas sim quão
incansavelmente eles conseguem justificar tais atos.
Depois disso tomei ura navio até Le Havre em tempo de
ouvir as notícias da Queda da Bastilha. Que diferença entre
os ideais da Revolução e os horrores que havia acabado de
ver! Acabei ficando longe da França por anos por causa do
crescente caos e, enquanto isso, passei a viver como
representante comercial entre Londres, Estados Unidos e
Espanha. Não tinha objetivo definido, meu propósito não
existia. Deixei de ter raízes.
Assim que o Terror perdeu força, finalmente voltei a Paris
na esperança de fazer fortuna numa sociedade caótica e em
polvorosa. A França fervilhava com uma sofisticação
intelectual indisponível nos Estados Unidos. Toda a Paris era
uma garrafa de Leyden, uma bateria carregada de faíscas
elétricas. Talvez, a sabedoria perdida pela qual Franklin lutou
tanto poderia ser redescoberta! Paris também tinha mulheres
consideravelmente mais charmosas que Annabelle Gaswick.
Se eu ficasse por ali, a sorte poderia sorrir para mim.
Agora, a polícia é que estava a ponto de fazer isso.
O que fazer? Lembrei de algo que Franklin escreveu: "A
Maçonaria fazia homens com a mais hostil das atitudes, das
mais distantes regiões e nas mais diversas condições
correrem em auxílio dos companheiros." Ocasionalmente,
eu ainda usufruía suas conexões sociais. A França tinha
trinta e cinco mil membros espalhados em suas seiscentas
Lojas. Ou seja, uma fraternidade tão hábil e poderosa foi
acusada de ter tanto fomentado a Revolução, quanto
conspirado para revertê-la. Washington, Lafayette, Bacon e
Casanova foram todos maçons. Assim como Joseph
Guillotin, que inventou a guilhotina como um meio de
aliviar o sofrimento dos enforcados.
No meu país, a ordem formava um panteão de patriotas:
Hancock, Madison, Monroe, até mesmo John Paul Jones e
Paul Revere. Justamente por isso, muita gente suspeita que a
minha nação foi uma invenção maçónica. Eu precisava de
conselho e tinha que recorrer a meus irmãos maçons, na
verdade a um específico: o jornalista Antoine Talma, que me
acolheu mesmo com minhas visitas irregulares à Loja,
principalmente por seu bizarro interesse pela América.
"Seus peles-vermelhas são descendentes de civilizações
perdidas que encontraram a serenidade que nos falta hoje
em dia", Talma gostava de usar como teoria. "Se pudéssemos
provar que eles são uma tribo de Israel, ou refugiados de
Tróia, descobriríamos o caminho para a harmonia."
Obviamente, ele nunca havia visto os mesmos índios que
eu. Eles eram tão frios, nervosos e cruéis e absolutamente
nada harmoniosos, mas eu não podia acabar com a ilusão
dele.
Solteirão pouco interessado pelas mulheres, Antoine era
escritor, jornalista e dono de pensões perto da Sorbonne.
Consegui encontrá-lo não atrás de sua mesa, mas num dos
novos cafés perto de Pont. St. Michael entretido com uma
"limonada" que ele garantia ter poderes curativos. Talma
estava sempre um pouco doente e experimentava
ininterruptamente purgantes e dietas exóticas para
conquistar uma saúde ilusória. Ele era um dos poucos
franceses que eu conhecia capaz de comer a batata norte-
americana — a maioria dos parisienses considerava o
tubérculo digno apenas de porcos.
Ao mesmo tempo, ele sempre lamentava não ter
aproveitado a vida o suficiente para se tornar o aventureiro
que ele sempre gostaria de ter sido; ele sempre era impedido
por um resfriado aqui, uma febre ali. Confesso que, em
algumas ocasiões, exagerei em meus relatos e, em segredo,
adorava seus elogios e cumprimentos sobre minhas
aventuras.
Ele me recebeu bem, como sempre. Tinha ares de jovem,
chegava a aparentar inocência e ostentava cabelos
bagunçados, mesmo depois de um corte curto — nova moda
republicana —, e vestia durante o dia uma capa rosada com
botões em tons de cinza.
Educadamente, fiz como se avaliasse o novo remédio e pedi
um café e um doce. O governo "denunciava"
constantemente os poderes viciantes da bebida negra como
meio de tentar esconder o fato de que a guerra dificultava,
cada vez mais, a chegada dos grãos. "Você poderia pagar a
conta?", perguntei a Talma. "Tive um infortúnio
recentemente."
Ele olhou mais cuidadosamente. "Meu Deus, você caiu num
poço?" Eu estava sujo, maltrapilho, com a barba por fazer e
olhos muito vermelhos.
"Ganhei nas cartas." Notei que a mesa de Talma estava cheia
de bilhetes de loteria. Nenhum premiado. A sorte dele com
as apostas não chegava nem perto da minha, mas o Diretório
apostava em pessoas otimistas como ele para garantir esse
tipo de suporte financeiro. "Preciso de um advogado
honesto."
"Tão fácil quanto encontrar um político com escrúpulos, um
açougueiro vegetariano e uma prostituta virgem", Talma
respondeu. "Se você experimentasse a limonada, ela poderia
ajudar a corrigir um pensamento confuso desses."
"Estou falando sério. Uma mulher que passou a noite comigo
foi assassinada. Dois gendarmes tentaram me prender por
isso."
Ele levantou suas sobrancelhas, ainda incerto se eu estava
brincando, ou não. Mais uma vez, eu havia despertado seu
desejo aventureiro. Eu também sabia que ele estava
pensando se esta seria uma história interessante para ser
vendida aos jornais. "Mas por quê?"
"Eles têm um lanterneiro que contratei como testemunha.
Não era segredo algum que meu destino seria seus aposentos
ontem: até mesmo o conde Silano sabia."
"Silano! Quem acreditaria naquele tratante?"
"Acho que ele foi bastante convincente com o gendarme
que disparou um tiro de pistola bem perto da minha orelha.
Sou inocente, Antoine. Pensei que ela estava envolvida com
ladrões, mas quando voltei para questioná-la ela estava
morta."
"Calma aí. Ladrões?"
"Eu os surpreendi revirando meu apartamento e eles me
nocautearam. Eu ganhei um bom dinheiro nas mesas, ontem
de noite, e também um medalhão estranho, mas..."
"Por favor, fale devagar." Ele estava esvaziando os bolsos à
procura de um pedaço de papel. "Um medalhão?"
Tirei a corrente e mostrei. "Você não pode escrever sobre
isto, meu amigo." "Não escrever! Você deveria dizer para
não respirar!" "Isso só pioraria minha situação. Você deve
me proteger com seu sigilo." Ele insistiu. "Mas eu poderia
expor a injustiça."
Coloquei o medalhão na mesa de mármore, escondi da visão
de qualquer outra pessoa e fiz com que deslizasse até meu
amigo. "Veja: o soldado de quem eu ganhei isto disse que ele
veio do Egito Antigo. Silano ficou curioso, deu um lance e
até tentou comprá-lo, mas eu não vendi. Não consigo ver
por que vale a pena matar por ele."
Talma cerrou os olhos, virou a peça de ponta-cabeça, e
brincou com os braços da peça por um minuto. "O que são
estes símbolos?"
Pela primeira vez, olhei com mais cuidado. O sulco através
do disco - como se marcasse o diâmetro do objeto - eu já
havia notado. Acima dele, o disco era perfurado de forma
aparentemente aleatória. Abaixo, havia três séries de marcas
em ziguezague, como se uma criança tivesse desenhado uma
montanha a distância. Abaixo de tudo, listras arranhadas
como se fossem patentes militares formavam um pequeno
triangulo. "Não tenho a menor idéia. É muito robusto em
termos visuais."
Talma abriu os dois braços da peça e formou um V de ponta-
cabeça. "E o que você acha disso?"
Ele não precisava explicar. Parecia com o símbolo maçônico
do compasso, a ferramenta de construção usada para
inscrever um círculo. O simbolismo secreto da ordem
freqüentemente mostrava o compasso ao lado do esquadro
da carpintaria, um sobrepondo o outro. Se você esticasse os
braços do medalhão até o limite de alcance, eles
desenhariam uma circunferência três vezes maior que o
próprio disco. Seria o medalhão alguma ferramenta
matemática? "Não consigo identificar nada", eu disse.
"Mas Silano, que fez parte do herético Rito Egípcio da
Maçonaria, estava interessado. O que significa que, talvez, o
disco tenha algo a ver com os mistérios de nossa Ordem."
Era dito que as imagens maçónicas foram inspiradas pelos
antigos. Algumas eram ferramentas comuns como marreta,
colher de pedreiro, cavalete, mas outros eram mais exóticos
como o crânio humano, pilares, pirâmides, espadas e
estrelas. Tudo era simbólico e feito para sugerir uma ordem à
existência, mas que eu sempre achava difícil identificar no
dia-a-dia. No avanço de cada grau maçónico, mais símbolos
eram explicados. Algum elemento ancestral de nossa
fraternidade estaria em minhas mãos? Hesitamos em falar
sobre o assunto na cafetería, pois membros da Loja juram
segredo. Aliás, é este segredo que faz com que nosso
simbolismo seja mais intrigante para os não-iniciados.
Fomos acusados de todos os tipos de magia e conspiração,
enquanto o que mais fazemos é nos reunirmos vestindo
aventais brancos. Como um sábio já disse, "Mesmo que este
seja o segredo — que eles não tenham segredo — ainda
assim é um grande feito manter o sigilo."
"O medalhão remete a um passado distante", eu disse,
enquanto colocava o disco em volta do pescoço novamente.
"O capitão de quem ganhei afirmava que ele havia vindo
com Cleópatra e César até a Itália, e que depois ficou em
posse de Cagliostro, mas o soldado levava tudo isso tanto em
consideração que o apostou na mesa do Chemin de Fer."
"Cagliostro? E ele disse que era egípcio? E Silano ficou
interessado?"
"Parecia casual na hora da partida. Pensei que ele só estava
valorizando o lance. Mas agora..."
Taima ponderou. "Talvez, tudo isso seja coincidência. Um
jogo de cartas, dois crimes."
"Talvez."
Ele tamborilava os dedos. "Entretanto, tudo também pode
estar relacionado. O lanterneiro levou a polícia até você por
ter calculado que sua reação ao ataque a seu apartamento
seria o suficiente para você correr em direção a uma terrível
cena de crime, ou seja, o tornando passível de
interrogatório. Veja a seqüência dos fatos. Eles queriam
simplesmente roubar o medalhão. Ele não estava no seu
apartamento. Nem nos aposentos de Minette. Você é pouco
conhecido, por isso de difícil acesso. Mas, se fosse acusado
de assassinato e revistado..."
Minette havia sido morta simplesmente para me incriminar?
Minha cabeça estava a mil. "Por que alguém quer isto tanto
assim?"
Talma estava empolgado. "Porque grandes eventos estão em
andamento. Porque os mistérios maçónicos que você
irreverentemente chacoteia, podem, afinal de contas, afetar
nosso mundo."
"Quais eventos?"
"Tenho informantes, meu amigo." Ele adorava ser esquivo,
sempre pretendendo conhecer grandes segredos que, de um
modo ou de outro, acabavam chegando às impressoras dos
jornais.
"Então, você concorda que sou alvo de uma armação?"
"Sem dúvida." Talma me tinha em alta conta, sempre. "Você
tem que ir ao homem certo. Como jornalista, eu busco a
verdade e a justiça. Como amigo, acredito em sua inocência.
Tenho contatos importantes."
"Mas como posso provar?"
"Você precisa de testemunhas. Sua senhoria atestaria seu
caráter?" "Acho que não. Eu devo o aluguel." "E o
lanterneiro, você pode achá-lo?" "Encontrá-lo? Eu quero
ficar longe dele!"
"Faz sentido." Ele pensou um pouco, bebendo mais de sua
limonada. "Você precisa de abrigo e de tempo para
encontrar algum sentido para tudo isso. Os mestres da nossa
Loja podem nos ajudar."
"Você quer que eu me esconda numa Loja?"
"Quero que você fique seguro enquanto eu descubro se esse
medalhão pode ser o passaporte para uma oportunidade
incomum para nós dois." "Para quê?"
Ele sorriu. "Ouvi rumores, e rumores de rumores. Seu
medalhão pode ser mais antigo do que você imagina. Preciso
falar com as pessoas certas. Homens de ciência."
"Homens de ciência?"
"Homens próximos ao jovem e ascendente general Napoleão
Bonaparte."
Capítulo Três
Com seus quarenta e nove anos, o químico Claude Louis
Berthollet era o aprendiz mais famoso do guilhotinado
Lavoisier. Ao contrário de seu mestre, ele se fez necessário à
Revolução ao encontrar o nitrato capaz de substituir o
salitre, indispensável para a produção de pólvora. Chegando
à liderança do novo Instituto Nacional, que havia tomado o
lugar da Academia Real, ele dividira com seu amigo
matemático Gaspard Monge a tarefa de ajudar a pilhar a
Itália.
Foram os estudiosos que aconselharam Bonaparte a escolher
as obras-primas mais valiosas e ideais para trazer para a
França, como, por exemplo, a Mona Lisa. Este fato ajudou
ambos os cientistas a se tornarem confidentes do general e
conhecer muitos segredos estratégicos. O expediente
político da dupla lembrava o de um astrônomo que, ao fazer
pesquisas sobre um novo sistema métrico, fora forçado a
trocar suas bandeiras brancas — utilizadas como marcadores
— por tecidos tricolores, já que o branco era visto como um
símbolo do rei Luís. Nenhuma profissão escapou da
Revolução.
"Então, você não é um assassino, monsieur Gage?", o
químico perguntou esboçando um sorriso. Com uma testa
alta, nariz proeminente, queixo e boca sisudos, e olhos
tristes, ele parecia mais um dono de fazenda que cientista.
Mesmo com a crescente aliança da ciência com o governo, a
relação era tão dúbia quanto a de um pai contemplando o
pretendente da filha.
"Juro por Deus, pelo Grande Arquiteto dos Maçons, e pelas
leis da química." Suas sobrancelhas levantaram levemente.
"Forças nas quais eu devo acreditar, certo?"
"Só estou tentando ratificar minha sinceridade, doutor
Berthollet. Eu suspeito que o assassino seja um capitão do
exército ou o conde Silano, que demonstrou grande
interesse pelo medalhão que eu tinha acabado de ganhar."
"Um interesse fatal."
"Soa estranho, eu sei."
"E a garota escreveu a inicial do seu nome, não do deles."
"Se ela escreveu."
"A polícia afirma que a caligrafia dela combina com a escrita
no chão."
"Eu só dormi com ela e paguei o combinado. Não tinha
motivo para matá-la, ou ela de me acusar. Só eu sabia onde o
medalhão estava."
"Humm, sim." Ele pegou um par de óculos. "Deixe-me ver."
Enquanto examinávamos, Talma apenas acompanhava a
distância, dobrando um lenço caso ele, por alguma razão,
precisasse espirrar. Berthollet virou o disco assim como
Silano e Talma fizeram e, finalmente, inclinou-se para trás.
"Tirando uma quantidade módica de ouro, não entendo a
razão para toda essa confusão."
"Nem eu."
"Nenhuma chave, nenhum mapa, nenhum símbolo de
algum deus, e nenhum outro atrativo em particular. Acho
muito difícil acreditar que Cleópatra tenha usado isso."
"O capitão disse apenas que pertenceu a ela. Como rainha..."
"Ela teria tido tantos objetos atribuídos a ela quanto lascas de
madeira e frascos de sangue relacionados a Jesus." O cientista
chacoalhou a cabeça. "Uma afirmação muito atraente para
inflacionar o preço de uma jóia esquisita, não?"
Estávamos sentados no porão do hotel Le Cocq, usado por
um braço da Loja Oriental da Maçonaria por causa de sua
orientação leste-oeste. Uma mesa com tecido e um livro
fechado descansavam entre dois pilares. Bancos misturavam-
se com a bruma embaixo dos arcos do porão. A única
iluminação era provida por velas, que bruxuleavam entte
hieróglifos egípcios que ninguém sabia como ler e passagens
bíblicas do Templo de Salomão. Um crânio estava à vista
numa prateleira, nos lembrando de nossa mortalidade, mas
sem contribuir para a discussão. "E você garante a inocência
dele?", o químico perguntou ao meu amigo maçom.
"O americano é um homem da ciência como você, doutor",
Talma disse. "Ele foi aprendiz do grande Franklin e também
é um eletricista."
"Sim, eletricidade. Relâmpagos, papagaios voadores e faíscas
num salão. Diga-me, Gage, o que é a eletricidade?"
"Bem", eu não queria me exibir perante um renomado
cientista. "Doutor Franklin considerava a eletricidade uma
manifestação do poder básico que anima o Universo. Mas a
verdade é que ninguém sabe. Podemos gerá-la ao girar uma
manivela, armazená-la numa jarra, então sabemos que ela é.
Mas quem sabe por quê?"
"Precisamente." O químico considerou, virando o medalhão
sobre a mão. "E ainda assim, e se as pessoas soubessem, num
passado distante? E se elas controlassem poderes inatingíveis
mesmo em nosso tempo?"
"Eles conheciam a eletricidade?"
"Eles sabiam como erguer monumentos extraordinários, não
sabiam?"
"É interessante que Ethan tenha encontrado este medalhão e
vindo até nós neste momento específico", Talma
acrescentou.
"E ainda assim a ciência não acredita em coincidências",
Berthollet respondeu.
"Momento específico?", perguntei.
"Entretanto, devemos reconhecer oportunidades", o
químico continuou. "Que oportunidade é esta?", eu estava
começando a ficar esperançoso. "De escapar da guilhotina e
entrar para o exército", Berthollet disse. "O quê?!"
"Ao mesmo tempo, você pode ser um aliado da ciência." "E
da maçonaria", Talma complementou. "Vocês estão loucos?
Que exército?"
"O exército francês", disse o químico. "Veja bem, Gage,
como um maçom e homem da ciência, você pode jurar
manter um segredo?" "Eu não quero ser um soldado!"
"Ninguém está pedindo isso de você. Você jura?"
Talma me olhava com grande expectativa, enquanto
segurava seu lenço perto dos lábios. Engoli e concordei. "É
claro."
"Bonaparte deixou o Canal e está preparando uma nova
expedição. Até mesmo seus oficiais não sabem o destino,
mas alguns cientistas sabem. Pela primeira vez desde
Alexandre o Grande, um conquistador está convidando
sábios para acompanhar suas tropas, realizar pesquisas e
registrar o que presenciarem. Esta é uma aventura capaz de
fazer frente às de Cook e Bougainville. Talma sugeriu que
você e ele integrassem a expedição, ele como jornalista e
você como especialista em eletricidade, mistérios antigos e
neste medalhão. E se ele for uma pista valiosa? Você vai,
colabora com nossas especulações, e quando você retornar
todo mundo vai ter esquecido da infeliz morte de uma puta."
"Uma expedição para onde?" Eu sempre fui cético em
relação a Alexandre, que pode ter feito coisas incríveis num
curto período de tempo, mas tinha morrido com um ano a
menos que minha própria idade - um fato que me fazia não
recomendar sua carreira de maneira alguma.
"Para onde você acha?", Berthollet disse impacientemente.
"Egito! Não vamos só para tomar uma rota comercial vital e
abrir a porta para nossos aliados lutarem contra os ingleses
na Índia. Vamos para explorar o nascimento da história.
Ainda pode haver segredos úteis lá. Por isso, é melhor que
homens da ciência como nós tenham mais pistas do que os
hereges do Rito Egípcio, não?"
"Egito?" Pela alma de Franklin, que interesse eu poderia ter
lá? Poucos europeus haviam visto o lugar, que ainda estava
envolto em mistério como os contos árabes. Tinha uma vaga
idéia de areia, pirâmides e fanatismo exagerado.
"Não que você seja muito cientista ou maçom", Berthollet
alfinetou. "Mas como americano e explorador, você pode
oferecer uma perspectiva muito interessante. Seu medalhão
pode ser um lance de sorte. Se Silano o quer, ele pode ter
significado."
Eu não escutei muita coisa depois da primeira frase. "Por que
não sou muito cientista ou maçom?" Eu estava na defensiva,
pois, em segredo, eu concordava.
"Ethan", disse Talma. "Berthollet quer dizer que você ainda
precisa deixar sua marca."
"Estou dizendo, monsieur Gage, que aos trinta e três anos de
idade, sua realização é muito aquém de sua habilidade e sua
ambição é tímida demais por ser tão cuidadosa. Você não
contribuiu com relatórios para os acadêmicos, não avançou
de nível na Maçonaria, não acumulou fortuna, não começou
uma família, não comprou uma casa e nem mesmo escreveu
algo merecedor de distinção. Francamente, estava cético
quando Antoine o recomendou. Mas ele acha que você tem
potencial e, nós racionalistas, somos inimigos dos místicos
seguidores de Cagliostro. Não quero ver o medalhão
escorregando de seu pescoço guilhotinado. Tenho grande
respeito por Franklin e torço para que, algum dia, você pelo
menos se iguale a ele. Então, você pode tentar provar sua
inocência na corte revolucionária. Ou pode vir conosco."
Talma segurou meu braço. "Egito, Ethan! Pense nisso!"
Isto mudaria minha vida completamente, mas quanta vida
eu tinha para me preocupar? Berthollet fez uma irritante e
precisa análise de meu caráter, embora eu fosse bastante
orgulhoso de minhas viagens exploratórias. Poucos homens
tinham visto tanto da América do norte como eu, e, admito,
feito tão pouco com isso.
"Mas o Egito já não tem dono?"
Berthollet gesticulou. "Ele é nominalmente parte do Império
Otomano, mas está realmente sob o controle de uma casta
de escravos renegados chamados mamelucos. Eles ignoram
Istambul e oprimem os demais egípcios. Eles não são nem
da mesma raça! Nossa missão é de liberação, não de
conquista, monsieur Gage."
"Vamos ter que lutar, certo?"
"Bonaparte garante que vamos tomar o Egito com um tiro ou
dois."
Bem, aquilo era otimista. Napoleão parecia ser um general
oportunista e astuto ou cego feito pedra. "Este Bonaparte, o
que vocês acham dele?" Todos ouviam elogios por suas
primeiras vitórias, mas ele passava tão pouco tempo em
Paris. Em geral, era um desconhecido. Pelos rumores, ele
era um homem arrogante.
"Ele é o homem mais enérgico que eu conheço, e vai ser um
sucesso espetacular ou um fracasso mais espetacular ainda",
Talma disse.
"Ou, como na maioria das ambições do Homem, vai fazer os
dois", Berthollet completou. "Não há como negar seu
brilhantismo, mas é o julgamento que gera a grandiosidade."
"Eu teria que abandonar todos os meus contatos
diplomáticos e de negócios", disse. "E fugir como se fosse
culpado por homicídio. A polícia não pode encontrar o
conde Silano e o capitão que perdeu o jogo, colocar todos
numa sala e deixar a verdade surgir?"
Berthollet olhou para o outro lado. Talma suspirou.
"Silano desapareceu. Temos a informação que o ministro das
Relações Exteriores ordenou sua proteção", meu amigo
disse. "E quanto ao seu capitão, ele foi pescado do Senna
noite passada — torturado e estrangulado. Naturalmente,
dado o seu desaparecimento, você é o principal suspeito."
Engoli seco.
"O lugar mais seguro para você agora, monsieur Gage, é no
meio de um exército."
Se eu ia fazer parte de uma invasão, era prudente fazer isso
armado. Meu rifle-longo, datado de minhas jornadas no
mercado de peles, ainda estava guardado na parede de meu
apartamento. Fabricado em Lancaster, Pensilvânia, coberto
com níquel e estanho para dar durabilidade, ainda
permanecia fantasticamente preciso, como eu
ocasionalmente demonstrava no Champ de Mars.
Igualmente importante, a curva da coronha era graciosa
como as coxas de uma mulher e o filigrana trabalhado em
metal era tão confortável quanto uma bolsa de moedas. Não
era apenas uma ferramenta, mas sim um companheiro fiel,
tranqüilo, que nunca reclamava, feito de ferro e com o
perfume de grãos de pólvora, linhaça e óleo.
Sua alta velocidade dava a seu pequeno calibre melhor
chance de matar a longa distância que o mosquete de grande
calibre. A crítica, como sempre, era a esquisitice de uma
arma de fogo que era apoiada perto do queixo. A recarga
demorava muito para as salvas rápidas dos combates
europeus. E ele não acomodava a baioneta. Mas até aí, toda a
idéia de ficar numa fila esperando para levar um tiro era
totalmente descabida para os americanos. A grande
desvantagem de qualquer arma era a necessidade de
recarregar depois de um tiro e a grande vantagem de um
rifle preciso é que você poderia, efetivamente, acertar algo
com aquele primeiro tiro. A primeira ordem do dia era
recuperar minha arma.
"Seu apartamento é exatamente onde a polícia vai procurar
você!" Talma protestou.
"Já faz mais de dois dias. Esses homens ganham menos que
um aprendiz de padeiro e são mais corruptos que um juiz.
Acho pouco provável que eles ainda estejam esperando.
Vamos hoje de noite, subornamos o vizinho, e atravessamos
pela parede do lado dele."
"Mas eu tenho bilhetes para a carruagem da meia-noite para
Toulon!"
"Tempo de sobra, se você ajudar."
Decidi ser prudente e entrar no prédio como eu saí, pela
janela do quintal dos fundos. Mesmo que a polícia tivesse
ido embora, madame Durrell ainda estaria zanzando por ali e
eu não estava nem perto de poder pagar os reparos e o
aluguel. Naquela noite, Talma, mesmo relutante, decidiu me
ajudar a invadir meu próprio apartamento.
Olhei para dentro e tudo estava do mesmo jeito. O colchão
ainda revirado e penas espalhadas pelo lugar como flocos de
neve. Entretanto, a fechadura tinha sido trocada. Minha
senhoria estava tentando garantir que eu pagasse as dívidas
antes de pegar minhas coisas. Além do mais, ela morava
exatamente abaixo do meu quarto, por isso decidi ser o mais
cuidadoso possível.
"Vigie a janela", sussurrei para meu amigo.
"Depressa! Eu vi um gendarme na rua de baixo!"
"Vou entrar e sair sem dar um pio."
Cheguei à janela do meu vizinho, Chabon, um bibliotecário
que toda noite ensinava crianças. Como eu esperava, ele não
estava. A verdade é que eu nem esperava poder subornar
um homem sério como ele. E eu estava contando com isso.
Quebrei um vidro e abri a janela. Ele ficaria perturbado ao
encontrar um buraco na sua parede, mas, afinal de contas,
eu estava numa missão para a França.
A sala cheirava a livros e fumaça de cachimbo. Arrastei um
baú pesado para longe da parede e usei minha machadinha
para abrir um buraco. Eu mencionei que ela servia como
cunha ou alavanca também? Acho que quebrei algumas
coisas, mas também não sou nenhum carpinteiro. Estava
fazendo mais barulho do que pretendia, mas se eu fosse
rápido, não faria diferença. Vi meu chifre de pólvora e o
apoio da minha arma.
Então, eu ouvi um clique na fechadura da minha porta e
passos no meu apartamento. Alguém ouviu o barulho!
Enrolei o chifre rapidamente, peguei o rifle e comecei,
lentamente, a retirá-lo da parede.
Eu tinha acabado de soltá-lo quando alguém agarrou o cano
no outro lado.
Espiei pelo buraco. Dei de cara com a imagem de madame
Durrell, com seu cabelo ruivo parecendo emitir raios
elétricos, e sua horrível boca estampava um sorriso de
triunfo. "Você acha que não conheço seus truques? Você
me deve duzentos francos!"
"Pelos quais estou viajando para ganhar", sussurrei o melhor
que pude. "Por favor, solte minha arma, madame, assim
poderei quitar minhas dívidas."
"Como? Matando outra pessoa? Pague ou chamo a polícia!"
"Eu não matei ninguém, mas ainda preciso de tempo para
organizar as coisas."
"Começando pelo seu aluguel!"
"Tenha cuidado, eu não quero machucar você. O rifle está
carregado." Era um hábito que aprendi com os viajantes em
meus tempos de explorador.
"Você acha que tenho medo de sujeitos como você? A. arma
é parte do pagamento!"
Puxei, mas ela deu um tranco de volta com muita vontade.
"Ele está aqui! Veio roubar as coisas dele!", ela gritou. Ela
segurava como se tivesse as mandíbulas de um terrier.
Então, em desespero, eu abruptamente reverti o movimento
e a empurrei através do buraco na parede. Derrubei mais
peças e atravessei. Cai dentro do meu apartamento. De
repente, eu estava em cima da minha senhoria, segurando a
arma e coberto por pedaços de madeira e poeira. "Desculpe,
eu queria ter feito isso silenciosamente."
"Socorro! Estupro!"
Cambaleei em direção à janela e arrastei a madame comigo,
já que ela estava agarrada na minha perna. "Vai ser
guilhotina pra você!"
Olhei para fora. Talma havia desaparecido do quintal
lamacento. Um gendarme estava em seu lugar olhando para
mim, surpreso. Maldição! A polícia não mostrou metade
desta eficiência quando eu dei queixa pelo roubo da carteira
uma vez.
Minha atenção foi para o outro lado: a tentativa de madame
Durrell morder meu tornozelo falhou por sua latente falta de
dentes. Os poucos que tinha não causaram nenhum efeito.
A porta estava fechada e a chave, sem dúvida, estava no
bolso de minha senhoria, e eu não tinha tempo para polidez.
Liberei a arma, conferi a munição, mirei e atirei.
Um som ensurdecedor tomou conta do quarto, mas, pelo
menos, Durrell largou minha perna assim que a trava foi
feita em pedaços. Chutei a porta e corri para o corredor.
Uma figura encapuzada bloqueava meu caminho na escada.
Lá estava o lanterneiro, armado com um cajado que levava
uma cabeça de cobra na extremidade superior e com os
olhos assustados pelo barulho do tiro.
A fumaça começava a tomar o lugar.
Ouvi um clique e uma ponta de espada surgiu da cabeça da
cobra. "Entregue-o a mim e eu o deixo ir", ele sussurrou.
Hesitei um pouco. Minha arma estava descarregada. Meu
oponente estava postado como um hábil lanceiro.
Foi então que algo voou da escuridão e atingiu a cabeça do
lanterneiro em cheio, deixando-o zonzo. Eu avancei.
Usando o apoio de meu rifle para atingir seu externo como
se fosse uma baioneta. Ele ficou sem ar, curvou-se e rolou
escada abaixo. Desci logo atrás, pulei seu corpo esparramado,
e corri para fora.
Dei de cara com Talma.
"Você está louco?", meu amigo perguntou. "Policiais estão
vindo de todas as direções!"
"Mas eu consegui", disse com empolgação. "Que diabos você
usou para acertá-lo?"
"Uma batata."
"Então, elas são boas para alguma coisa afinal de contas."
"Peguem eles!" Madame Durrell estava gritando de uma
janela de frente para a rua. "Ele tentou se aproveitar de
mim!"
Talma olhou para cima. "Espero que sua arma valha tudo
isto?
Imediatamente, estávamos em disparada pelas ruas. Mais um
gendarme apareceu na outra extremidade, então Talma me
empurrou pela porta de uma estalagem. "Outra Loja", ele
falou baixinho. "Imaginei que precisaríamos disso."
Entramos com tudo e rapidamente puxamos o proprietário
para um lugar mais reservado. Depois de um ágil aperto de
mão maçónico, Talma apontou para a porta do porão.
"Assuntos urgentes da Ordem, amigo."
"Ele é maçom também?" O dono da estalagem apontou para
mim.
"Ele tenta."
Ele nos seguiu pelo caminho e trancou a porta atrás de nós.
Paramos sob arcos de pedra e pudemos respirar um pouco.
"Há alguma saída?" Talma perguntou.
"Passando os barris de vinho há uma grade. O buraco é
grande o suficiente para se esgueirar e leva até os esgotos.
Vários maçons escaparam por ali durante o Terror."
Meu amigo ficou ressabiado, mas não se acovardou. "Qual o
caminho para o mercado de couro?"
"Direita, eu acho." Ele nos parou com a mão. "Espere, vocês
vão precisar disso." E acendeu uma lanterna.
"Obrigado, amigo." Passamos pelos barris, retiramos a grade
e deslizamos por um túnel de 10 metros cheio de lodo até
chegarmos à rede principal de esgotos. Era escuridão por
todo lado. Nossa luz fraca iluminava apenas os ratos. A água
era gelada e fedorenta. A grade fez um barulho acima de nós
quando nosso salvador a travou novamente em seu lugar.
Tentei examinar meu casaco verde todo lambuzado. Era o
único em bom estado que me restava. "Admiro sua
disposição em descer aqui comigo, Talma."
"Melhor isso e o Egito do que a prisão parisiense. Sabe,
Ethan, alguma coisa acontece cada vez que estou com você."
"É interessante, não acha?"
"Se eu morrer aqui, minhas últimas memórias vão ser de sua
senhoria histérica."
"Então, vamos evitar morrer." Olhei para a direita. "Por que
você perguntou sobre o mercado de couro? Pensei que o
terminal das carruagens fosse perto do Palácio de
Luxemburgo, não?"
"Exatamente. Se a polícia encontrar nosso benfeitor, ele vai
despistá-los." Ele apontou. "Vamos para a esquerda."
Chegamos à carruagem meio molhados, fedidos e sem
nenhuma bagagem, exceto pelo rifle e a machadinha.
Fizemos o melhor possível para tentarmos nos limpar na
fonte. Meu casaco verde de viajem estava arruinado e todo
manchado. "As poças estão ficando cada vez piores", Talma
explicou de maneira pouco convincente a um carteiro.
Nossos lugares não eram os melhores, já que Talma havia
comprado os bilhetes mais baratos, o que nos deixava na
parte traseira — logo depois da cabine fechada —, com toda
a poeira e barulho que o diabo podia enviar.
"Isso vai nos manter longe de perguntas impertinentes",
justificou Talma. Como boa parte do meu dinheiro havia
sido roubado eu nem podia reclamar.
Só podíamos torcer para que a carruagem rápida nos levasse
logo até Toulon, pelo menos antes da polícia chegar e
começar a fazer perguntas nas estações. Do jeito que
estávamos, com certeza seríamos lembrados. Assim que
chegássemos à frota de invasão de Bonaparte estaríamos
seguros: eu carregava uma carta de apresentação de
Berthollet. Adotei a identidade de Gregoire e justificava meu
sotaque estranho ao dizer que era nativo do Canadá francês.
Antes de ir se aventurar comigo, Talma havia despachado
sua valise, por isso, pude pegar uma camisa emprestada antes
que colocassem a mala no teto do transporte. Minha arma
foi alojada no mesmo lugar, então a machadinha era a única
coisa que evitava a sensação de estar totalmente sem defesa.
"Obrigado pela roupa", eu disse.
"Tenho muito mais que ela", meu companheiro se gabou.
"Trouxe algodão especial para o calor do deserto, tratados
sobre nosso destino, vários cadernos com capa de couro e
um cilindro de penas novas. Meus remédios vão ser rea-
bastecidos com as múmias do Egito."
"Com certeza você não acredita nessa charlatanice." O pó
dos mortos havia se tornado um remédio muito popular na
Europa. Nem preciso dizer que a venda do que parecia ser
um frasco de sujeira encorajava todos os tipos de fraude.
"Exatamente pelo fato de o remédio ser pouco confiável na
França quero uma múmia para mim. Depois de recuperar
nossa saúde, podemos vender os restos."
"Um copo de vinho faz mais bem e com menos trabalho."
"Ao contrário, o álcool pode levar à ruína, meu amigo." Sua
aversão ao vinho era tão peculiar quanto sua afeição a
batatas. "Por isso você prefere comer os mortos?"
"Mortos que foram preparados para a vida eterna. Os elixires
dos antigos estão em seus restos mortais!"
"Então por que eles ainda estão mortos?"
"Será? Ou atingiram algum tipo de imortalidade?"
E com aquela lógica confusa, partimos. Nossos
companheiros de viagem eram um fabricante de chapéus,
um mercador de vinhos, um especialista em cordas de
Toulon, e um oficial alfandegário que parecia determinado a
ficar dormindo por toda a extensão da França. Torci pela
presença de uma donzela ou duas, mas nenhuma embarcou.
Nossa passagem pelas avenidas de Paris foi tranqüila, mas
tediosa, como qualquer outra viagem. Dormimos o resto da
noite e o dia foi uma rotina chata de paradas curtas para a
troca de cavalos, comprar quinquilharias e usar os banheiros
do interior. Sempre que podia, eu olhava para trás, mas não
havia sinais de perseguição. Quando eu cochilava tinha
sonhos com madame Durrell cobrando o aluguel!
Ficamos entediados rapidamente e Talma começou a matar o
tempo com suas incansáveis teorias de conspiração e
misticismo. "Você e eu podemos estar numa missão de
importância histórica, Ethan", ele disse enquanto nosso
cocheiro descia em direção ao vale de Rhone.
"Pensei que estivéssemos meramente fugindo de meus
problemas."
"Ao contrário, podemos contribuir de forma vital para esta
expedição. Entendemos os limites da ciência. Berthollet é
um homem da razão, pensa tudo friamente como simples
fatos químicos. Mas nós, maçons, respeitamos a ciência e
sabemos que as respostas mais profundas para os grandes
mistérios estão nos templos do leste. Como artista, sinto que
meu destino é descobrir segredos para os quais a ciência
ainda é cega."
Olhei de forma cética e lembrei que ele já havia engolido
três elixires milagrosos com água dos esgotos, reclamado de
cólicas estomacais, e pensado que o fato de sua perna ter
adormecido era sinal de paralisia geral. Seu casaco de viagem
era lilás, tão militar quanto um par de chinelos. Este homem
estava realmente viajando para uma fortaleza muçulmana?
"Antoine, existem doenças no leste que nem sabemos os
nomes. Estou surpreso que você esteja indo, no fim das
contas."
"Nosso destino tem jardins, palácios, mesquitas e haréns. É o
paraíso na Terra, meu amigo, um repositório do
conhecimento dos faraós."
"Pó de múmia."
"Não zombe. Ouvi falar de curas milagrosas."
"Francamente, todo esse papo maçónico de segredos do
leste não fez muito sentido para mim", disse enquanto
esticava as pernas. "O que há para ser aprendido sobre
ruínas?"
"É por isso que você nunca ouve, de verdade, as nossas
reuniões", alertou Talma. "Os maçons foram os primeiros
homens do ensino, mestres construtores que ergueram as
pirâmides e as grandes catedrais. O que nos une é a
reverência ao conhecimento e o que nos distingue é nosso
desejo de redescobrir verdades de um passado distante.
Magos antigos conheceram poderes que nem somos capazes
de sonhar. Hiram Abiff, o grande artífice que construiu o
Tempo de Salomão, foi assassinado por seus rivais invejosos
e foi elevado dos mortos pelo próprio Mestre Maçom."
Maçons tinham que participar de parte desta história na
iniciação, um ritual que me deixou com cara de bobo. Uma
versão da história sugere a ressurreição, enquanto a outra
defende a simples recuperação de um corpo das mãos de um
assassino covarde, mas nenhuma delas indicava um milagre.
"Talma, você não acredita nisso de verdade, acredita?"
"Você é apenas um iniciado. Conforme subimos de nível,
aprendemos coisas extraordinárias. Milhares de segredos
estão enterrados nos antigos monumentos e os poucos com
coragem de desvendá-los tornaram-se os grandes
professores do mundo. Jesus. Maomé. Buda. Pitágoras.
Todos aprenderam o conhecimento secreto egípcio
originário de uma Grande Era há muito perdida, de
civilizações responsáveis por trabalhos que não sabemos
mais como reproduzir. Seletos grupos de homens como
maçons, cavaleiros templários, illuminati, luciferianos e os
seguidores de Rosa Cruz buscaram recuperar esse
conhecimento."
"Verdade, mas essas sociedades secretas estão
freqüentemente em conflito umas com as outras, como, por
exemplo, a Maçonaria Tradicional e o Rito Egípcio. Os
luciferianos, pelo que sei, consideram Satã em pé de
igualdade com Deus."
"Não Satã, Lúcifer. Eles simplesmente acreditam na
dualidade entre Bem e Mal e que deuses possuem naturezas
dúbias. De qualquer maneira, não estou me equiparando a
esses grupos, estou simplesmente dizendo que eles reconhe-
cem que o conhecimento perdido é tão importante quanto
uma descoberta científica no futuro. Pitágoras gastou
dezoito anos estudando com os sacerdotes em Memphis",
explicou Taima.
"E onde esteve Jesus por um período similar em sua vida?
Aquele que os Evangelhos não mencionam? Alguns
acreditam que ele pode muito bem ter estudado no Egito.
Em algum lugar lá existe o poder para refazer o mundo, para
restaurar a harmonia, para reconstruir uma Era de Ouro, é
por isso que nossa frase de ordem é 'Ordem a partir do Caos'.
Homens como Berthollet examinam rochas e rios. Eles são
hipnotizados pelo mundo natural. Mas você e eu, Gage,
sentimos o mundo sobrenatural que acontece sutilmente.
Eletricidade, por exemplo! Não a vemos, mas ela está lá!
Sabemos que o mundo de nossos sentidos é apenas um véu.
Os egípcios também sabiam. Se pudéssemos ler os
hieróglifos, seríamos mestres!"
Como todos os escritores, meu amigo tinha uma imaginação
fértil e nenhum senso. "Eletricidade é um fenômeno natural,
Antoine. São raios no céu e choques nas atrações da feira.
Você parece com aquele charlatão, Cagliostro."
"Ele era um homem perigoso que queria usar os ritos
egípcios com propósitos sombrios, mas não era nenhum
charlatão."
"Quando ele praticava alquimia na Polônia, foi pego
trapaceando."
"Ele foi incriminado pelos invejosos! Testemunhas dizem
que ele curou doentes desenganados por médicos comuns.
Ele integrava a realeza. Ele pode ter vivido durante séculos,
como St. Germaine, que era, na verdade, o príncipe Ragoczy
da Transilvânia, que conheceu pessoalmente Cleópatra e
Jesus. Cagliostro era aluno do príncipe. Ele..."
"Foi desacreditado, desprezado e morreu na prisão depois de
ser traído por sua própria esposa, que tinha a reputação de
ser a maior puta da Europa. Você mesmo disse que o Rito
Egípcio era nonsense. Qual a prova de que qualquer um
desses autoproclamados feiticeiros tenha séculos de
existência? Escute, eu não duvido que existam coisas
interessantes para se aprender nas terras muçulmanas, mas
eu fui recrutado como cientista, não sacerdote. Sua própria
Revolução menosprezou religião e misticismo."
"E é por isso que existe tanto interesse em misticismo hoje
em dia! A Razão está criando um vácuo para o pensamento.
A perseguição religiosa gerou sede por espiritualidade."
"Você não acredita que as razões de Bonaparte são..."
"Quieto!" Talma apontou para a parede da carruagem.
"Lembre de seu juramento."
Ah, sim. As identidades do líder de nossa expedição e seu
destino final deviam ficar em segredo, como se nenhum tolo
pudesse adivinhar a partir de nossa conversa. Acenei em
concordância, sabendo que por causa do barulho da roda e
nosso lugar no fundo, eles poderiam ouvir pouco de
qualquer maneira. "Você está dizendo que esses mistérios
são nosso verdadeiro propósito?" Disse mais rapidamente.
"Estou dizendo que nossa expedição tem propósitos
múltiplos."
Encostei na parede e fixei meu olhar nas colinas soturnas
cobertas por tocos de árvores criadas pela fome insaciável
das novas fábricas por madeira. Parecia que as árvores
também estavam sendo recrutadas para as guerras. Enquanto
as indústrias ficavam ricas, o campo ficava empobrecido e
vazio, e as cidades ficavam encobertas por névoas
fedorentas. Se os antigos podiam fazer coisas com magia
limpa, melhor para eles.
"Além disso, o conhecimento a ser buscado é a ciência",
Talma continuou. "Platão levou o assunto para a filosofia.
Pitágoras para a geometria. Moisés e Salomão para as leis.
Todos são diferentes aspectos da Verdade. Alguns dizem que
foi o último grande faraó nativo, o mágico Nectanebo, quem
dormiu com Olímpia e gerou Alexandre o Grande."
"Já disse que não quero me espelhar num homem que
morreu aos trinta e dois."
"Talvez você conheça o novo Alexandre, em Toulon.
Talvez." Ou talvez Bonaparte seja simplesmente o mais novo
herói do momento - esperando a primeira derrota para ser
esquecido. Enquanto isso, eu ficaria a seu lado para
conseguir um perdão para um crime que não cometi me
comportando da maneira mais agradável que eu conseguir. E
suportar.
Deixamos o campo desmatado e chegamos a uma estrada
que já havia sido um parque aristocrático. Ele foi confiscado
pelo Diretório de algum nobre ou notável da Igreja. Já
tomado por camponeses, poceiros e grileiros, o lugar estava
abarrotado por acampamentos rudimentares espalhados
entre as árvores e pude ver várias trilhas de fumaça saindo
das fogueiras. A noite estava caindo e eu torcia para que
chegássemos a uma estalagem logo. Minha bunda doía por
causa das batidas.
De repente, o cocheiro gritou e algo bateu lá na frente. O
transporte parou. Uma árvore havia caído e os cavalos
empacaram, relinchando em confusão. A base da árvore
parecia ter sido cortada. Figuras enegrecidas saíam da
floresta com os braços apontando para o cocheiro e seu
assistente.
"Ladrões!", eu gritei, buscando minha machadinha sob meu
casaco. Mesmo com minhas habilidades enferrujadas, eu
sabia que podia acertar o alvo a uns 10 metros. "Rápido,
peguem as armas! Talvez possamos afugentados!"
Mas assim que eu desci da carruagem fui recebido pelo
oficial de alfândega sonolento, que a essa altura estava
bastante acordado. Ele pulou do transporte e caiu à minha
frente apontando uma pistola enorme para o meu peito. A
boca da arma parecia tão grande quanto a de uma pessoa
gritando.
"Bonjour, monsieur Gage", ele disse. "Jogue sua pequena
machadinha selvagem no chão, por favor. Estou aqui para
levar você, ou seus restos, de volta a Paris."
Capítulo Quatro
Os ladrões ou agentes - eles costumavam ser a mesma coisa
na Franca Revolucionária - nos alinharam como estudantes
num pátio da escola e começaram a nos despir de valores.
Somando o suposto oficial de alfandega, eram seis homens
ao todo, pelo que pude ver na penumbra do entardecer.
Dois deles pareciam ser os "gendarmes" que tentaram me
prender em Paris. Será que o lanterneiro estaria ali também?
Não o vi. Alguns tinham pistolas apontadas para o cocheiro,
enquanto os outros se concentravam nos passageiros,
levando bolsas e relógios de bolso.
"A polícia encontrou um novo jeito de recolher impostos?",
perguntei causticamente.
"Não tenho certeza de que ele realmente seja um oficial de
alfândega", disse o chapeleiro.
"Silêncio!" O líder do grupo apontou sua arma para o meu
nariz como se eu houvesse esquecido que ele a carregava.
"Não pense que não estou agindo em nome de pessoas de
autoridade, monsieur Gage. Se você não entregar o que eu
quero, você vai encontrar muito mais policiais do que
gostaria nas celas de uma prisão estadual." "Entregar o quê?"
"Acredito que o nome dele seja Grégoire", o chapeleiro
tentou ajudar. Meu interrogador engatilhou a pistola. "Você
sabe o quê! Ele deve ser entregue a estudiosos que possam
colocá-lo em uso adequado! Abra sua camisa!"
O ar esfriou meu peito. "Está vendo? Não tenho nada."
Ele se irritou. "Onde está, então?"
"Paris."
A arma mudou de direção e encontrou a têmpora de Talma.
"Pegue-o agora ou eu estouro os miolos de seu amigo."
Antoine perdeu a cor. Tinha quase certeza de que ele nunca
havia tido uma arma apontada em sua direção antes, e agora
eu estava ficando realmente incomodado. "Cuidado com
essa coisa."
"Vou contar até três!"
"A cabeça de Antoine é dura feito pedra. A bala vai
ricochetear."
"Ethan", meu amigo clamou.
"Um!"
"Eu vendi o medalhão para financiar esta viagem", eu tentei.
"Dois!"
"Eu usei para pagar o aluguel." Talma estava balançando.
"Trê..."
"Espere! Está na minha mala, em cima da carruagem." Nosso
algoz apontou a arma para mim novamente.
"Na verdade, vou ficar feliz de me livrar daquela coisa. Só
me trouxe problema."
O valentão gritou para o cocheiro. "Jogue a mala dele aqui
pra baixo!" "Qual delas?"
"A marrom", eu disse, enquanto Talma olhava para mim.
"Todas são marrons no escuro!" "Por todos os santos e
demônios..." "Vou pegá-la."
Agora, o cano da pistola estava encostado nas minhas costas.
"Depressa!", meu inimigo olhou em direção à estrada. Mais
tráfego chegaria em breve e eu tive a agradável visão mental
de uma carroça de feno passando por cima dele bem
devagar, mas de propósito.
"Vocês podem me ajudar a descer a mala? Estou sozinho e
vocês são seis."
"Cale a boca, ou atiro em você agora mesmo, arrebento cada
mala e encontro eu mesmo!"
Subi até o compartimento de bagagem na carruagem. O
ladrão estava bem perto, mas um pouco abaixo de mim.
"Ah, aqui está."
"Passe para baixo, cachorro yankee"!
Enfiei uma mão e encontrei meu rifle, que estava embaixo
da bagagem leve. Pude sentir o pequeno compartimento
onde estavam os cartuchos e balas e também o chifre de
pólvora. Uma pena eu não tê-lo recarregado desde o tiro na
porta do meu apartamento: nenhum viajante teria cometido
este erro. A outra mão pegou a mala de meu amigo. "Pegue!"
Eu joguei e mirei bem. A mala acertou a pistola e ouvi um
bang quando a arma caiu e disparou acertando a mala de
Talma. Os cavalos recuaram. Todo mundo gritava. Eu
aproveitei para rolar de cima da carruagem para o lado
oposto ao dos ladrões, levando meu rifle. Houve outro
disparo e pedaços de madeira voaram sobre minha cabeça.
Em vez de correr para a floresta, rolei para debaixo do
transporte. Comecei a recarregar meu rifle enquanto estava
deitado - um truque que aprendi com os canadenses. Limpei
o cano, joguei pólvora e prensei.
"Ele está fugindo!" Três dos bandidos pensaram que eu tinha
fugido e começaram a correr por trás da carruagem, em
direção às árvores do lado que caí. Os passageiros também
pareciam preparados para correr, mas dois dos ladrões
ordenaram que ficassem onde estavam. Enquanto
praguejava, o falso inspetor de alfândega lutava para
recarregar sua pistola. Terminei minha recarga, coloquei o
rifle em posição e atirei nele.
O flash foi capaz de cegar naquela escuridão toda. Conforme
ele ia para trás com a força do tranco, pude notar que algo
estava pendurado dentro de sua camisa e, agora, estava à
vista. Era o emblema maçónico do esquadro cruzado com o
compasso, sem dúvida ligado ao Rito Egípcio de Silano.
Havia uma letra familiar no meio. Então, aí estava a
explicação!
Rolei, levantei e girei minha arma segurando pelo cano o
mais forte que pude para atingir outro bandido com a
coronha. Foi ótimo ouvir o crack no instante em que cinco
quilos de bordo puro e ferro atingiram o osso. Saquei minha
machadinha. Onde estava o terceiro pilantra? Então, outra
arma foi disparada e alguém gemeu. Comecei a correr em
direção às árvores para o lado oposto que os três primeiros
seguiram. Ao mesmo tempo, os outros passageiros,
incluindo Talma, dispersaram.
"A mala! Pegue a mala dele!", gritava o homem em que eu
havia atirado, mesmo com toda sua dor.
Sorri abertamente. O medalhão estava seguro na sola da
minha bota.
A mata estava escura e ia ficando mais negra conforme a
noite avançava.
Corri o melhor que pude, sozinho, usando meu rifle como
guia para não dar de cara com nenhuma árvore. E agora? Os
ladrões estavam ligados a algum braço do governo francês ou
eram apenas impostores? O líder deles tinha o uniforme
correto e também sabia de meu prêmio e minha posição, o
que sugeriria que alguém com conexões oficiais — além de
ser aliado de Silano e membro do Rito Egípcio — estava no
meu encalço.
Não foi só a rapidez do bandido em engatilhar a pistola na
minha cara que me assustou. Dentro de seu símbolo
maçônico, ia me lembrando, estava a letra padrão para
representar Deus , ou gnosis, conhecimento, ou talvez geo-
metria.
A letra "G".
Minha inicial é a mesma letra que a pobre Minette havia
escrito com seu próprio sangue.
Teria sido esse emblema sua última visão na vida?
Quanto mais ansiosas outras pessoas estivessem por meu
medalhão, mais eu ficava determinado em mantê-lo. Tem
que haver alguma razão para toda essa popularidade.
Parei na floresta para recarregar, colocando a bala,
prensando e escutando com cuidado depois de carregar. Um
galho quebrou. Alguém estava me seguindo? Eu os mataria
assim que estivessem ao alcance. Mas e se fosse o pobre
Taima tentando me achar na escuridão? Bem que ele poderia
ter simplesmente retornado para a carruagem, mas não
arrisquei atirar, gritar ou fazer qualquer outra coisa perigosa.
Então corri para dentro da floresta.
O ar da primavera estava frio. A adrenalina da escapada
evaporava e me deixava arrepiado e com fome. Estava
traçando um círculo de volta à estrada tentando encontrar
uma fazenda quando vi uma luz constante de uma lanterna.
Então, outra lâmpada e mais uma. Bem no meio da floresta.
Agachei e ouvi vozes baixas numa língua diferente do
francês. Aqui sim é um lugar para me esconder! Havia
acabado de encontrar um acampamento do povo de Rom ,
os ciganos!
Ou, como muitos pronunciavam a palavra, gipcianos, tidos
como Andarilhos do Egito. Os ciganos não faziam nada para
desencorajar essa crença e diziam ser descendentes de
sacerdotes dos faraós, mesmo assim alguns os consideravam
uma praga de malandros nômades. Essa alegação de
autoridade antiga encorajava amantes e golpistas a pagarem
bem por seus agouros.
De novo, um som atrás de mim. Minha experiência nas
florestas da América entrava no jogo. Busquei camuflagem
nas folhas e usei uma sombra feita pela lanterna mais
próxima para me esconder. Meu perseguidor, se é o que ele
era, foi diretamente para minha antiga posição. Ele parou
depois de espiar o brilho das carroças, analisou assim como
eu, e então foi adiante, sem dúvida imaginando que eu havia
buscado refugio lá. Quando seu rosto apareceu na luz, não o
reconheci nem como atacante nem como passageiro. E
agora tudo estava mais confuso ainda.
Independentemente, suas intenções eram inquestionáveis.
Ele carregava uma pistola.
Conforme o estranho se aproximava da carroça mais
próxima, aproveitei para me mover silenciosamente atrás
dele. Ele estava olhando para a maravilha multicolorida que
era o vardo cigano quando minha arma deslizou sobre seu
pescoço e parou colado ao seu crânio.
"Acredito não termos sido apresentados", eu disse
calmamente.
Houve um longo silêncio. Então, em inglês, "Sou o homem
que acabou de ajudar a salvar sua vida."
Fiquei surpreso e incerto se respondia na minha língua
nativa. "Qui etes-vous?", exigi de maneira direta.
"Sir Sidney Smith, um agente britânico suficientemente
fluente na língua da França para saber que seu sotaque é pior
que o meu", ele respondeu, novamente em inglês. "Tire o
cano da arma da minha orelha e eu explico tudo a você,
amigo."
Estava atordoado. Sidney Smith? Tinha encontrado um
impostor maluco ou o mais famoso fugitivo da França? "Solte
sua pistola primeiro", eu disse em inglês. Então eu senti
alguma coisa cutucar minhas costas. Era pontudo e afiado.
"Assim como você vai largar seu rifle, monsieur, já que está
em minha casa." Em francês novamente, mas, desta vez,
com um distinto sotaque oriental: um cigano. Mais meia
dúzia deles surgiram das árvores ao redor. Todos vestiam
lenços e chapéus, cintos presos à cintura, botas até os
joelhos e tinham aparência dura e vulgar. Todos tinham
facas, espadas e porretes. Nem percebemos que havíamos
sido surpreendidos.
"Tenha cuidado", eu disse. "Pode haver mais homens me
perseguindo." Baixei meu rifle até o chão assim como Smith
entregava sua pistola.
Um homem forte me encarou, com sua espada em punho, e
deu um sorriso. "Não mais", ele passou o dedo de um lado ao
outro da garanta enquanto pegava o rifle e a pistola. "Bem
vindos ao Rom!"
Quando entrei na área iluminada pelas fogueiras dos ciganos,
era como se tivesse entrado em outro mundo. As carroças
em forma de barril pintadas em diversas cores criaram uma
vila encantada entre as árvores. Senti cheiro de fumaça,
incenso e cozidos suficientemente temperados com alho e
ervas para serem considerados exóticos. Mulheres em
vestidos coloridos, com cabelos chamativos negros e argolas
douradas nas orelhas desviavam o olhar de seus potes
fumegantes. Seus olhos eram tão profundos e imensos
quanto os lagos dos antigos.
As crianças estavam agachadas perto das carroças como
diabretes em vigília. Pôneis desgrenhados relinchavam nas
sombras perto das carroças mais distantes. Tudo levava um
tom de âmbar por causa do brilho das lâmpadas. Em Paris,
tudo era razão e revolução. Aqui era algo mais antigo,
primitivo e livre.
"Sou Stefan", disse o homem que nos desarmou. Ele tinha
olhos negros e cautelosos, um grande bigode e um nariz tão
amassado e dobrado por alguma luta antiga que parecia uma
cordilheira. "Não ligamos para armas, já que elas são caras na
hora de comprar, mais caras na manutenção, barulhentas
para usar, chatas para recarregar e fáceis de serem roubadas.
Então, expliquem suas razões para trazê-las ao nosso lar."
"Eu estava a caminho de Toulon quando nossa carruagem foi
abordada", disse. "Estou fugindo de bandidos. Quando vi
suas carroças parei e ouvi ele" — apontei para Smith —
"chegando atrás de mim."
"E eu", disse Smith, "estava tentando falar com este
cavalheiro depois de ajudar a salvar a vida dele. Atirei no
ladrão que estava prestes a atirar nele e, devo dizer, ele corre
feito um coelho."
Então, aquele havia sido o outro tiro que ouvi. "Mas como?",
questionei. "Quero dizer, de onde você apareceu? Não te
conheço. E como você pode ser Smith? Todo mundo acha
que você fugiu para a Inglaterra."
Em fevereiro, um notável capitão naval britânico - terror da
costa francesa - conseguiu, com ajuda de uma mulher da
realeza, fugir da Prisão do Templo, em Paris, que havia sido
construída num antigo castelo dos Cavaleiros Templários.
Ele estava desaparecido desde então. Smith fora capturado
enquanto tentava roubar uma fragata francesa na boca do rio
Sena. Sua audácia e notoriedade com ataques rápidos eram
tamanhas que as autoridades se recusaram a aceitar
pagamento de resgate ou mesmo uma troca. Gravuras com
sua descrição estavam espalhadas tanto em Londres como
em Paris. Agora, ele dizia estar aqui.
"Eu estava te seguindo na esperança de te avisar. O fato de
eu chegar a sua carruagem pouco depois de uma emboscada
não foi coincidência. Estou atrás de você o dia todo, sempre
a uma milha de distância. Meu plano era falar com você na
estalagem agora de noite. Quando vi os guardas temi pelo
pior para o seu grupo. Seu plano de fuga foi brilhante, mas
você estava em inferioridade numérica. Quando um dos
agressores mirou, atirei nele."
Continuei suspeitando. "Avisar de quê?"
Ele olhou para Stefan. "Povo do Egito: vocês são de
confiança?"
O cigano empertigou-se. "Enquanto você for convidado do
Rom, seus segredos permanecem aqui. Assim como você
protege este fugitivo, inglês, nós o protegemos. Nós também
vimos o que aconteceu e sabemos distinguir os criminosos
das vítimas. O ladrão que tentou seguir vocês dois não
retornará a seus companheiros."
Smith consentiu. "Bem, então somos todos companheiros
nas armas! Sim, eu escapei da Prisão do Templo com ajuda
real e, sim, eu pretendo retornar à Inglaterra. Estou
simplesmente esperando os documentos necessários serem
forjados para que eu possa escapar pelo porto da Normandia.
Novas batalhas me aguardam. Mas, enquanto estive preso
naquele edifício horrível, dediquei algum tempo para
conversar com o diretor da prisão, que fora um aluno dos
Templários e aprendeu todas as histórias de Salomão e seus
maçons, do Egito e seus sacerdotes, e dos poderes e
amuletos perdidos nas brumas do tempo. Nonsense pagão,
mas interessante para diabo. E se os antigos conhecessem
poderes hoje perdidos?"
Continuou. "Então, enquanto planejava minha fuga, os
monarquistas transmitiram rumores de forças francesas se
organizando para uma certa expedição para o leste, e que um
americano foi convidado para se juntar a eles. Ouvi falar de
você, senhor Gage, e de sua especialidade em eletricidade.
Quem não teria ouvido falar de alguém próximo ao grande
Franklin? Os agentes não só notificaram sua partida para o
sul, como também informaram que facções rivais no
governo francês tinham um interesse especial em você e
num certo artefato: algo a ver com as mesmas lendas que eu
ouvi de meu carcereiro. Facções governamentais o queriam
sob custódia. Parece que temos inimigos em comum e a
idéia de conseguir sua ajuda antes que nós dois deixemos a
França me ocorreu. Decidi seguido discretamente. Por que
um americano seria convidado para uma expedição militar
francesa? Por que ele aceitaria? Ouvi histórias do conde
Alessandro Silano, uma aposta num salão de jogo..."
"Acho que você sabe absolutamente tudo sobre mim,
senhor, e é impressionantemente rápido para repetir em voz
alta. Qual seu objetivo?"
"Descobrir qual é o seu, e alistar seus serviços para a
Inglaterra."
"Você é maluco"
"Escute-me. Stefan, meu novo amigo, podemos
compartilhar um pouco de seu vinho?"
O cigano concordou e bateu palmas ordenando a uma jovem
chamada Sarylla, que tinha cabelos cacheados e belos olhos.
Uma figura digna de um museu de cera, ou a uma casa de
prazeres masculinos. Pensei logo nisso, já que sou um pouco
bem apessoado. Poderia me dar bem.
Ela serviu um copo de vinho.
Por Cristo, eu estava morrendo de sede! Crianças e cães
reuniam-se perto das obscuras rodas das carroças enquanto
bebíamos e não perdiam a chance de nos olhar, como se, do
nada, fossemos revelar chifres ou penas por todo o corpo.
Assim que matou sua sede, Smith se aproximou. "Agora,
você possui alguma jóia ou instrumento, é isso?"
Deus do céu, Smith também estava interessado no meu
medalhão? O que o coitado do capitão francês havia
encontrado na Itália? Será que eu também acabaria
estrangulado e boiando em algum rio por ter ganho aquela
coisa? Seria ele realmente amaldiçoado? "Você está
desinformado."
"E outros o querem, não é?"
"Você também, presumo."
"Ao contrário, quero garantir que você se desfaça dele.
Enterre. Tranque em algum lugar. Jogue fora, derreta,
esconda ou pelo menos mantenha essa maldita peça fora de
vista até essa guerra acabar. Não sei se meu carcereiro sabia
apenas contos de fadas, mas qualquer coisa que esquente
esta disputa com a Inglaterra ameaça a ordem civilizada. Se
você acha que essa coisa tem valor financeiro, posso
conseguir que o almirantado o compense por ela."
"Senhor Smith..."
"Sir Sidney."
Sua ordenação foi concedida por serviços mercenários ao
reino da Suécia, não à Inglaterra, mas ele tinha uma
reputação por se auto-engrandecer. "Sir Sidney,
compartilhamos apenas a língua. Sou americano, não inglês,
e a França se aliou a minha nação em nossa recente
revolução contra o seu país. Minha pátria é neutra em
relação ao conflito de vocês e, acima de tudo, não faço a
menor idéia do que o senhor esteja falando."
"Gage, escute aqui." Ele se postou como um falcão, a
ansiedade em pessoa. Tinha a constituição de um guerreiro,
ereto e com ombros largos, peito estufado e cintura firme e,
agora que observei isso, talvez Sarylla estivesse prestando
atenção nele. "Sua revolução colonial foi pela independência
política. O movimento na França é sobre a própria ordem da
vida que conhecemos. Meu Deus, um rei guilhotinado!
Milhares massacrados! Guerras deflagradas em todas as
fronteiras da França! Apoio ao ateísmo! Terras da Igreja
confiscadas, dívidas ignoradas, propriedades tomadas, a ralé
armada, tumultos, anarquia e tirania! Vocês são tão parecidos
com a França quanto Washington se parece com
Robespierre. Você e eu não compartilhamos apenas a língua,
mas sim uma cultura e um sistema político de lei e justiça. A
loucura que tomou conta da França vai desestabilizar a
Europa. Todos os homens de bem são aliados, a não ser que
acreditem na anarquia e na ditadura."
"Tenho muitos amigos na França."
"Assim como eu! São seus tiranos que devem ser removidos.
Não estou pedindo que traia ninguém. Espero que você
continue seu caminho até onde o tal jovem Napoleão
indique. Tudo que peço é que você mantenha o talismã em
segredo. Guarde-o para você, não para Bona, Silano ou
qualquer outro que o peça. Leve em consideração que o
futuro comercial de sua nação segue, inevitavelmente, ligado
ao do Império Britânico, não a uma revolução fadada ao
fracasso. Mantenha seus amigos franceses! Faça de mim seu
amigo da mesma maneira e, talvez, possamos ajudar um ao
outro qualquer dia desses."
"Você quer que eu espione para a Inglaterra?"
"Não, absolutamente!", ele pareceu ofendido, e olhava para
Stefan na esperança do cigano apoiá-lo em sua evidente
inocência. "Eu simplesmente ofereço ajuda. Vá para onde
deve e preste atenção em tudo que vir. Mas, se você se
cansar de Napoleão e precisar de ajuda, contate a Marinha
Britânica e apresente a qualquer homem o que lhe mostro
agora. Este anel traz o meu brasão: um unicórnio. Vou
notificar o almirantado de sua autenticidade. Use-o como
garantia de salvo-conduto."
Smith e Stefan olhavam para mim com grande expectativa.
Eles achavam que eu era bobo? Eu podia sentir o volume do
objeto na sola falsa da minha bota.
"Em primeiro lugar, não sei do que estão falando", menti
novamente. "Segundo, não sou aliado de ninguém, nem
França nem Inglaterra. Sou meramente um homem da
ciência, recrutado para observar um fenômeno natural
enquanto um certo problema legal que eu tenho seja
resolvido em Paris. Terceiro, se eu tivesse o objeto de que
fala, eu não admitiria, considerando o letal interesse que
todos parecem ter pela coisa. E quarto, toda esta conversa é
inútil, pois qualquer item que eu possa ter possuído - mesmo
nunca tendo -, não estaria mais em meu poder, uma vez que
os ladrões levaram minha bagagem quando fugi." Pronto,
pensei. Isto acabaria com o assunto.
Smith sorriu. "Bom homem!", gritou, dando tapinhas em
meu ombro. "Eu sabia que você tinha instinto! Ótimo show?
"E agora comemos", Stefan disse, pelo jeito também
aprovando minha performance e considerando o assunto
resolvido. "Conte-me mais sobre suas aulas na Prisão do
Templo, Sir Sidney. Nós, Rom, remetemos nossas origens
até os faraós, Abraão e Noé. Esquecemos de muita coisa, mas
lembramos de tantas outras, e ainda podemos prever o
futuro e mudar as linhas do destino. Minha Sarylla aqui é
drabardi, uma adivinha, e talvez ela possa ver o seu futuro.
Venham, venham e sentem-se. Deixem-nos falar da
Babilônia e de Tiro, Memphis e Jerusalém."
Será que todo mundo, menos eu, estava perdido na
Antiguidade? Coloquei o anel de Smith, afinal de contas, não
faria mal ter mais um amigo.
"Quem me dera, mas eu ameaço a todos com minha
presença", Smith disse. "Para dizer a verdade, um pelotão de
cavalaria francesa está em meu encalço. Queria ter esta
conversa, mas preciso partir antes que eles encontrem o
assalto, fiquem sabendo de meu tiro providencial e
procurem nesta mata." Ele balançou a cabeça. "Francamente,
não sei o que fazer com esta fascinação com o oculto. Meu
carcereiro, Bonifácio, era o pior tipo de tirano jacobino, mas,
constantemente, falava de segredos místicos. Todos nós
acreditamos em mágica, mesmo nós, adultos, que somos
levados a pensar o contrário. Um homem estudado deixaria
o assunto de lado, por ser bobeira, mas, às vezes, cultura
demais pode nos cegar."
Pareceu um pouco com o que Talma havia dito.
"Os Rom mantiveram os segredos de nossos ancestrais
egípcios por séculos", Stefan disse. "Mesmo assim, somos
meras crianças perante as artes antigas."
Bem, a conexão deles com os egípcios pareciam incertas
para mim — o próprio nome deles sugeria a Romênia como
uma terra natal mais provável — mas, de qualquer modo, era
um grupo agradável e colorido, com muitas roupas, jóias,
lenços, além algumas figuras de Anúbis e sua cabeça de
cachorro e também típicas cruzes ansada. As mulheres
podiam não ser iguais a Cleópatra, mas elas realmente
tinham uma beleza estonteante. Que segredos sexuais elas
guardariam? Pensei nesta questão por algum tempo, afinal de
contas, sou um cientista.
"Adieu, meus amigos", Smith disse. Ele deu uma bolsa a
Stefan. "Aqui está o pagamento para conduzir o monsieur
Gage e o talismã que ele não tem em segurança até Toulon
— ele vai passar desapercebido em suas carroças desen-
gonçadas. Fechado?"
O cigano analisou o dinheiro, jogou uma moeda para o alto e
riu. "Por tudo isso eu o levaria até Istambul! Mas, por ser um
homem perseguido, eu também o levaria de graça."
O inglês fez reverência. "Acredito que você o faria, mas
aceite a generosidade da Coroa."
Viajar com os ciganos me manteria separado deTalma até
chegar em Toulon, mas sem dúvida isso seria mais seguro
tanto para o meu amigo quanto para mim. Ele ficaria
preocupado, mas, até aí, ele sempre se preocupa mesmo.
"Gage, até nosso próximo encontro. Não tire meu anel de
seu dedo; os franceses não vão reconhecê-lo - eu o mantive
escondido na prisão. Enquanto isso, mantenha sua
percepção sempre vigilante e lembre-se da velocidade com
que idealismo se transforma em tirania e como libertadores
podem se tornar grandes tiranos. Quem sabe você, por
alguma razão, não precise aparecer na terra natal de seu
país?" Então, ele mergulhou em direção às árvores tão habil-
mente quanto havia aparecido na primeira vez. Sem dúvida,
um encontro no qual ninguém acreditaria.
Encontrar novamente? Não se eu pudesse fazer algo a
respeito. Eu não imaginava como Smith poderia,
eventualmente, reaparecer em minha vida uma vez que eu
estivesse a milhares de quilômetros de onde estou agora. Eu
estava simplesmente aliviado pela partida do fugitivo.
"Agora vamos ao banquete", disse Stefan.
O termo banquete foi um exagero, mas o acampamento se
serviu de um rico guisado, acompanhado com pão grosso e
pesado. Senti-me seguro entre estes estranhos nômades e,
inegavelmente, um pouco espantado com sua pronta
hospitalidade. Eles pareciam não querer nada além de minha
companhia. Eu estava curioso para saber se eles realmente
tinham idéia do que eu escondia na sola de minha bota.
"Stefan, não que eu esteja admitindo que Smith estivesse
certo sobre o pingente. Mas, se tal objeto existir, qual o
motivo que faz os homens tão gananciosos?"
Ele sorriu. "Não é pelo colar em si, mas pelo fato de ele ser
uma espécie de pista."
"Pista para quê?"
O cigano descontraiu. "Tudo que sei são velhas histórias. A
lenda mais comum diz que os antigos egípcios, nos
primórdios da civilização, enclausuraram o poder que
consideravam perigoso até que a Humanidade tivesse a
qualidade moral e intelectual para utilizá-lo adequadamente.
Uma chave para esse poder foi deixada na forma de um
colar. Acredita-se que Alexandre o Grande tenha recebido
essa peça quando iniciou sua peregrinação pelo deserto até o
oásis de Siwah, onde foi declarado filho de Zeus antes de sua
marcha para a Pérsia. Conseqüentemente, ele conquistou
todo o mundo conhecido. Como ele conseguiu tanto em tão
pouco tempo? Aí ele morreu jovem na Babilônia. Doença?
Ou assassinato? O rumor é que Ptolomeu, um dos generais
de Alexandre, levou a chave de volta para o Egito com o
intuito de conseguir grandes poderes, mas ele não foi capaz
de entender o significado do amuleto."
A explicação ficava cada vez mais complexa. "Cleópatra, que
era descendente de Ptolomeu, levou a jóia quando
acompanhou César até Roma. Então, César também foi
assassinado! E isso continuou pela história com grandes
homens se aproximando e encontrando a ruína. Reis, papas
e sultões começaram a acreditar que o medalhão era
amaldiçoado, mesmo com magos e feiticeiros atribuindo a
ele o poder de desvendar grandes segredos. Entretanto,
ninguém mais lembra como usá-lo. Uma chave para o Bem
ou para o Mal? Ninguém sabe. A Igreja Católica o levou para
Jerusalém durante as Cruzadas, mas foi em vão. Os
Cavaleiros Templários se tornaram seus guardiões e primeiro
o esconderam em Rodes, depois em Malta. O medalhão
ficou esquecido por séculos até que alguém reconhecesse
sua importância. Agora, talvez, ele tenha chegado até Paris...
e então entrado a pé em nosso acampamento. É claro, essa
parte você negou."
Não gostei nem um pouco dessa história do medalhão gerar
tantas mortes. "Você realmente pensa que um homem
comum como eu tropeçaria nessa chave?"
"Eu já criei uma centena de pedaços da Verdadeira Cruz e
encontrei os dedos e dentes dos grandes santos. Quem pode
dizer o que é real e o que é falso? Só tenha em mente que
alguns homens têm interesse demais nesse medalhão que
você diz não carregar."
"Talvez Smith estivesse certo. Supondo que eu o tenha, acho
que deveria jogá-lo fora. Ou dá-lo a você."
"Eu não!", ele parecia alarmado. "Não sei como usar nem
como compreender essa coisa. Se as histórias são
verdadeiras, o medalhão só vai fazer algum sentido no Egito,
onde foi forjado. Além do mais, ele traz má sorte para os
homens errados."
"Isso eu confirmo", confessei amargamente. Uma sova,
assassinatos, fugas, emboscadas... "Ainda assim, um homem
como Franklin diria que é tudo superstição nonsense?
"Ou talvez ele usasse sua nova ciência para investigá-lo."
Estava impressionado com a falta de ganância de Stefan,
especialmente depois de suas lendas terem abastecido minha
própria avareza. Muitas outras pessoas queriam este
medalhão, ou o queriam enterrado: Silano, os bandidos, a
expedição francesa, os ingleses e esse misterioso Rito
Egípcio. Tudo isso deixava claro que era tão valioso que eu
deveria ficar com ele até conseguir fazer uma bela fortuna
ou descobrir para que diabos ele serve. Isso significava que
meu destino era o Egito.
Enquanto isso, senti que estava sendo observado por trás.
E lá estava Sarylla. "Sua garota aqui pode ler minha sorte?"
"Ela é versada nos mistérios do Taro." Ele estalou os dedos e
ela mostrou seu baralho de cartas místicas.
Eu já havia visto os símbolos e, mesmo assim, as ilustrações
da morte e do demônio continuavam perturbadoras. Ela deu
as cartas perto do fogo. Em silêncio. Pensou um pouco e
virou as restantes: espadas, amantes, taças, o mágico. Ela
parecia confusa, sem fazer nenhuma previsão. Finalmente
ela segurou uma carta.
Era o tolo, o bobo da corte. "É ele."
Bem, eu pedi por essa, não é? "Sou eu?"
Ela consentiu. "E aquele que você procura."
"O que você quer dizer?"
"As cartas dizem que você vai aprender o que eu quero dizer
quando chegar aonde você deve ir. Você é o tolo que deve
encontrar o tolo, para se tornar sábio e encontrar a
sabedoria. Você é o que busca aquele que primeiro fez a
mesma busca. Além desse ponto é melhor que você não
saiba." E ela não disse mais nada. Esse é o espírito da
profecia, não é? Ser tão vaga quanto um contrato bem
escrito. Eu bebi mais vinho.
Já passava da meia-noite quando ouvi o som de glandes
cavalos. "Cavalaria francesa!", alertou a sentinela dos ciganos.
Eu podia ouvir os relinchos e sons de galhos quebrando a
distância. Quase todas as lâmpadas foram apagadas e
praticamente todos buscaram refúgio nas carroças. Todos
menos Stefan, que permaneceu com a única lâmpada acesa.
Sarylla me pegou pela mão.
"Temos que tirar estas roupas de você se você quer parecer
um Rom", ela cochichou.
"Você tem um disfarce para mim?"
"Sua pele."
Bem, pelo menos era a idéia. E muito melhor Sarylla do que
a Prisão do Templo. Ela me puxou e fomos para dentro de
um vardo e seus dedos ágeis logo deram cabo de minhas
roupas sujas. Ela tirou as dela também, é claro, e ganhou a
forma de uma criatura quase etérea na luz fraca. Que dia!
Deitei numa das camas ao lado de seu corpo morno e sua
pele macia enquanto escutava Stefan murmurar com o
tenente da tropa. Escutei as palavras "Sidney Smith",
algumas ameaças em voz alta e muito barulho quando as
portas das carroças eram escancaradas pelos militares.
Quando chegou a nossa vez, olhamos para cima fingindo
estarmos dormindo e Sarylla deixou seu lençol cair e exibir
seus seios. Pode apostar que os soldados ficaram um bom
tempo olhando para dentro, mas não para mim.
Então, enquanto os cavaleiros partiam, só tive ouvidos para
o que ela havia proposto fazermos em seguida. Com ou sem
maldição, minha viagem até Toulon tinha acabado de mudar
para melhor.
"Mostre-me como elas fazem no Egito", sussurrei para ela.
Capítulo Cinco
Um mês depois, no dia dezenove de maio de mil setecentos
e noventa e oito, eu estava de pé no tombadilho superior da
nau capitanea francesa L'Orient, com seus cento e vinte
canhões, e não muito longe dos ombros do homem mais
ambicioso da Europa. Um grupo de oficiais e sábios
observava a parada majestosa realizada pelos cento e oitenta
navios que partiam do porto. A Expedition de 1'Egypt havia
começado.
O azulado Mediterrâneo ficou branco com tantas velas assim
que os navios deslizaram com uma brisa fresca. O convés
ainda brilhava depois de uma ventania que esperávamos ser
capazes de manter uma suposta esquadra inglesa a distância.
À medida que as embarcações passavam pela entrada do
porto de Toulon, as quilhas de cada navio pareciam ganhar
dentes ao se chocarem contra a espuma. Bandas militares
estavam reunidas na coberta de proa dos maiores navios,
competindo entre elas em volume e barulho ao tocar
músicas patrióticas conforme as naus ultrapassavam umas às
outras.
Os canhões da fortaleza da cidade dispararam em saudação e
trinta e quatro mil soldados e marinheiros gritavam em
algazarra logo que a nau capitanea de Bonaparte passava de
vento em popa. Num boletim às tropas, ele havia prometido
a cada um deles espólios suficientes para comprar seis acres
de terra.
Era apenas o começo. Comboios menores dos portos de
Genova, de Ajaccio, na Córsega, e de Civita Vecchia, em
Lazio (que recebia suprimentos de Roma), aumentariam o
número de divisões francesas presentes na força de invasão
do Egito. Quando chegarmos a Malta, serão quatrocentas
embarcações e cinqüenta e cinco mil homens. Adicione aos
números mil cavalos, centenas de carroças e artilharia
pesada, mais de trezentas lavadeiras — que também
deveriam prestar outros serviços capazes de aumentar a
moral das tropas — e centenas de esposas e concubinas
"contrabandeadas" a bordo dos navios. Quem também
encontrou lugar na frota foram quatro mil garrafas de vinho
para os oficiais e oitocentos exemplares escolhidos a dedo
para a reserva pessoal de Joseph Bonaparte, que veio para
ajudar seu irmão a ficar bem-humorado. Nosso comandante
também trazia empacotada uma carruagem de luxo puxada
por dois cavalos para que ele pudesse vistoriar o Cairo com
estilo.
"Somos um exército da França, não da Inglaterra", ele disse a
sua equipe. "Vivemos melhor durante uma campanha do
que eles vivem num castelo."
O comentário seria lembrado com amargura nos meses
seguintes.
Cheguei a Toulon depois de uma tranqüila jornada nas lentas
carroças dos ciganos. Foi um tempo bem agradável. Aprendi
truques simples de cartas com os "sacerdotes do Egito",
assim como explorei o Taro e aprendi muitas lendas sobre
cavernas do tesouro e templos de poder. É claro que
nenhum deles jamais pisara no Egito assim como também
não sabiam se tais lendas tinham um mínimo de verdade,
mas distorcer os fatos e aumentar os contos era uma de suas
principais fontes de renda. Eu os vi revelarem futuros
otimistas para ordenadores, jardineiros e policiais. O que eles
não conseguiam ganhar com a fantasia, eles roubavam, e o
que não podiam roubar não lhes fazia falta. Acompanhar o
bando até Toulon foi uma ótima maneira de completar
minha fuga de Paris, até melhor do que a carruagem de
passageiros, mesmo sabendo que meu sumiço deixaria
Antoine Talma altamente ansioso. Entretanto, era um alívio
não ter que ouvir as teorias maçónicas do jornalista e deixei
o conforto de Sarylla com tristeza.
O porto parecia um hospício por causa dos preparativos e de
toda a expectativa. O lugar estava fervilhando com soldados,
marujos, empreiteiros militares, taberneiros e prostitutas. Era
possível avistar os famosos sábios por seus chapéus vistosos,
empolgados e apreensivos, caminhando com suas botas
ainda duras por serem tão novas. Os oficiais eram
chamativos como pavões em seus uniformes
resplandecentes e os soldados comuns estavam agitados e, ao
mesmo tempo, aflitos por participarem de uma expedição
sem destino anunciado. Eu era mais um naquela multidão,
com minhas roupas e um casaco verde mais manchado do
que nunca, mas, para garantir, embarquei rapidamente no
L'Orient e fiquei longe do alcance de bandidos, gendarmes,
donos de antiquários, lanterneiros e qualquer um que
pudesse me ameaçar. Foi a bordo daquele navio que eu
finalmente te encontrei Talma.
"Tinha medo de que enfrentaria o perigo e encontraria a
aventura no leste sem um amigo!", exclamou. "Berthollet
também estava preocupado! Mon Dieu, o que aconteceu?"
"Desculpe-me, mas não tinha como enviar notícias para
você. Era melhor viajar no anonimato. Sabia que você ficaria
preocupado, amigo."
Ele me abraçou. "Onde está o medalhão?" Pude sentir o
calor de seu hálito na minha orelha.
A essa altura eu já estava preparado. "Bem seguro, meu
amigo. Bem seguro." "O que é isso no seu dedo? Um novo
anel?" Ele estava olhando para o emblema de Sidney Smith.
"Um presente dos ciganos."
Talma e eu trocamos informações sobre nossas aventuras
particulares. Ele disse que os bandidos sobreviventes se
dispersaram totalmente desnorteados depois de minha fuga.
Então, chegou a cavalaria, mas à procura de outro fugitivo —
"estava tudo confuso no escuro" — e depois mergulharam
na floresta. Nesse meio tempo, o cocheiro aproveitou os
militares para tirar a árvore do caminho e liberou nossa
passagem. Depois que chegaram à estalagem, Talma decidiu
esperar pela carruagem do dia seguinte caso eu brotasse da
floresta. Como eu não apareci, ele foi para Toulon temendo
por minha morte.
"Ciganos!" Ele ficou espantado. "Você realmente tem talento
para encontrar problemas, Ethan Gage. E do jeito como
você atirou naquele homem! Fiquei maravilhado, empolgado
e apavorado!"
"Ele quase atirou em você."
"Ê claro que você esteve entre os índios Vermelhos."
"Encontrei muita gente em minhas viagens, Antoine, e
aprendi a manter uma mão aberta em saudação e a outra
numa arma." Fiz uma pausa. "Ele morreu?" "Eles o
carregaram sangrando."
Bem, mais uma coisa para me preocupar durante a noite.
"Os ciganos são larápios como sua reputação diz?" Talma
perguntou.
"Não se você mantiver seus bolsos fora do alcance. Eles
salvaram minha vida. Suas especiarias despertam sentidos
saciáveis por suas mulheres. Sem lar, sem emprego, sem
laços..."
"Você encontrou seu lugar! Estou surpreso de que tenha
retornado!"
"Eles acreditam que são sacerdotes do Egito. Eles ouviram
lendas de um medalhão perdido e dizem que ele é a chave
para algum antigo segredo lá."
"Mas claro, isso explicaria o interesse do Rito Egípcio!
Cagliostro se viu em disputa com a Maçonaria tradicional.
Talvez Silano acredite que isso possa garantir alguma
vantagem a sua facção. Mas nos roubar abertamente? O
segredo deve ser muito poderoso, então."
"E quais as novas de Silano? Ele não conhece Bonaparte?"
"O que se sabe é que ele foi para a Itália - procurar pistas
daquilo que você ganhou, talvez? Berthollet contou ao nosso
general sobre o medalhão e ele parece bem interessante,
mas Bonaparte também chamou os maçons de imbecis
consumidos por contos de fadas. Seus irmãos Joseph,
Lucien, Jerome e Luis, que fazem parte de nossa
fraternidade, o contrariaram nesse ponto. Ele disse que está
interessado tanto em suas opiniões sobre a Louisiana quanto
em seu gosto por jóias, mas eu acho que ele está lisonjeado
por ter um americano a seu lado. Ele aprecia seus laços com
Franklin. E também espera que, algum dia desses, você possa
explicar seus esquemas para os Estados Unidos."
Taima me apresentou como um célebre fugitivo para os
demais sábios que estavam a bordo da nau capitanea. Éramos
parte de um grupo de cento e sessenta e sete profissionais
civis convidados por Bonaparte. Esse efetivo incluía
dezenove engenheiros civis, dezesseis cartógrafos, dois
artistas, um poeta, um orientalista e um bom número de
matemáticos, químicos, antiquários, astrônomos,
mineralogistas e zoólogos. Encontrei Berthollet novamente -
ele foi o responsável pela seleção da maior parte do grupo -
e, na hora apropriada, fui apresentado ao general.
Minha nacionalidade, minha relação com o famoso Franklin
e a história de que eu havia escapado de uma emboscada
foram suficientes para impressionar o jovem conquistador.
"Eletricidade!", exaltou Bonaparte. "Imagine se pudéssemos
utilizar os raios elétricos de seu mentor!"
Fiquei impressionado por Napoleão ter assumido a liderança
de uma expedição tão ambiciosa. O mais famoso general da
Europa era baixo, magro e desconcertantemente jovem. Aos
vinte e nove anos ele perdia apenas para quatro de seus
trinta e um generais e, enquanto a diferença de altura
divulgada pela Inglaterra e pela França só mostrava que os
propagandistas britânicos exageravam em sua falta de
tamanho — ele tinha um respeitável metro e setenta -,
mesmo assim, ele parecia "engolido" por suas botas e sua
espada. As donzelas de Paris o apelidaram de "Gato de
Botas", uma provocação que ele jamais esqueceu. O Egito
transformaria esse jovem em Napoleão, que tomaria o
mundo de assalto, mas, no passadiço do L'Orient, ele não era
muito Napoleão ainda; ele ainda era visto muito mais como
um humano com suas falhas e com seu esforço, do que
como o tirano de pedra.
Os historiadores criaram um ícone, mas os contemporâneos
viveram com um homem. Na verdade, a rápida ascensão de
Napoleão durante a Revolução foi tão incômoda assim como
foi de tirar o fôlego, e fez com que mais de um de seus
oficiais superiores desejassem que não desse certo. Não
contavam que a autoconfiança de Napoleão fosse tanta que
beirava a vaidade.
E por que não? Aqui em Toulon ele havia deixado de ser
capitão de artilharia para se tornar general-de-brigada dias
depois de comandar a artilharia que rechaçou ingleses e
monarquistas. Ele sobreviveu ao Terror e, a um curto
período na prisão, casou-se por interesse com Josefina, cujo
primeiro marido havia sido guilhotinado, ajudou a trucidar
um levante de contra-revolucionários em Paris e liderou o
maltrapilho Exército da França em várias vitórias
surpreendentes contra os Austríacos na Itália. Suas tropas o
idolatravam como se fosse César, e o Diretório ficou mais
que satisfeito com o tributo que ele enviou para seu tesouro
falido. Napoleão queria recriar Alexandre, e seus superiores
civis queriam sua incansável ambição fora da França. O Egito
serviria a ambos os lados muito bem.
Que herói ele parecia ser naquela época, muito antes de seus
sonhos de palácios e creme! Seu cabelo era escuro e
chamativo, seu nariz era praticamente romano, seus lábios
eram enrugados como os de uma estátua clássica, seu queixo
dividido, e seus olhos pretos. Ele tinha paixão por falar com
as tropas, entender a sede humana por glória e aventura, e se
postava do jeito que todos imaginávamos que os heróis
faziam: torso reto, cabeça erguida, olhos num horizonte
místico. Ele era o tipo de homem cujos modos, assim como
suas palavras, faziam acreditar que ele sabia o que estava
fazendo.
Fiquei impressionado, já que ele havia claramente subido na
vida por mérito, não por berço. Isso era algo que se
encaixava no ideal norte-americano. Acima de tudo, ele era
um imigrante, assim como todos nós, já que foi da ilha da
Córsega direto para a escola militar francesa. Ele passou a
juventude não querendo nada mais ambicioso que a
independência de sua terra natal. Pelo que se sabe ele era
um estudante mediano em todas as matérias — menos ma-
temática -, era esquisito socialmente, vivia muito sozinho,
não tinha nenhum mentor ou padrinho poderoso e
enfrentou, logo após a formatura, a insurgência da
Revolução. E, enquanto muitos estavam com medo do
conflito, Bonaparte aproveitou o momento.
A inteligência que ele aperfeiçoou na rígida escola militar se
fez presente quando foi preciso improvisação e imaginação -
quando a França estava sob cerco. O preconceito que ele
enfrentou por ser um nobre rústico de terceira categoria
vindo das ilhas, caiu por terra quando demonstrou sua
competência ao encarar a crise. A timidez e a precipitação
da adolescência foi ceifada com um casaco desajeitado, e ele
transformou esquisitice em charme. Foi justamente o
incomum Napoleão quem abraçou o idealismo da
Revolução, na qual a patente era conquistada pela habilidade
e que não determinava limites para a ambição. Embora o
conservador Sidney Smith não compreendesse, era
justamente aí que as duas revoluções - norte-Americana e
Francesa - se igualavam. Bonaparte era um homem que
venceu por conta própria.
Entretanto, as relações sociais de Napoleão com as pessoas
eram as mais estranhas que eu já havia visto. Ele
desenvolveu um carisma inegável, mas sempre era
expressado como se ele fosse um ator e interpretasse um
papel — tímido, recatado, cuidadoso e tenso. Quando ele
olhava para você ele o fazia com o brilho de um candelabro
e com tanta energia como se a pessoa pudesse sentir o calor.
Ele conseguia focar com uma intensidade tanto lisonjeira
quanto esmagadora - ele fez isso comigo uma dúzia de
vezes. No momento seguinte, ele mudava sua atenção de
foco para outra pessoa e te deixava com a sensação de que
uma nuvem havia coberto o Sol e, segundos depois, ele con-
seguia se retrair e passar desapercebido mesmo no meio de
uma sala lotada. Seu olhar ficava fixo no chão — como se o
assoalho respondesse -, perdido em pensamentos e palavras
que só ele compreendia.
Uma parisiense o descrevera como um tipo que você
deveria ter medo de encontrar num beco. Ele carregava uma
cópia de The Sorrows of Young Werther, de Goethe, no
bolso — um romance sobre suicídio e amor impossível que
ele já havia lido seis vezes. Eu veria suas paixões
melancólicas se desdobrarem, em triunfo e horror, na
Batalha das Pirâmides.
Levou oito horas para que o último navio fechasse a parada.
As bandeiras tricolores da França tremulavam em cada
mastro. Ao todo, batemos em revista uma dúzia de navios de
linha, quarenta e duas fragatas e centenas de transportes. O
Sol já estava baixo quando a nau capitanea finalmente zarpou
partindo atrás de seus filhotes como uma galinha faz com
sua cria. A frota ocupava duas milhas quadradas de água. Os
grandes navios de guerra encurtavam as velas para permitir
que os pequenos barcos mercantes acompanhassem o ritmo.
Quando os demais comboios integraram o grupo, passamos a
cobrir quatro milhas quadradas. A velocidade não passava de
três nós.
Com exceção dos veteranos, todos estavam péssimos.
Sabendo que poderia ficar facilmente enjoado, Bonaparte
passou a maior parte de seu tempo numa cama de madeira
suspensa por cordas que mantinham um certo equilíbrio
mesmo durante as ondulações do navio. O resto de nós
ficava enjoado o tempo todo — até mesmo dormindo.
Finalmente, Talma não precisava inventar nenhuma doença.
Ele estava doente e, em várias ocasiões, confessou estar pró-
ximo da morte certa. Os soldados não conseguiam chegar até
o tombadilho superior para botar seus bofes para fora; por
isso todos os barcos estavam abarrotados de baldes de
vômito. Os cinco níveis do L'Orient estavam tomados por
dois mil soldados, mil marinheiros, gado, ovelhas e tantos
suprimentos que nós nos esgueirávamos mais do que
andávamos da popa à proa. Sábios de alta patente como
Berthollet tinham cabines de damasquino vermelho, mas
elas eram tão pequenas que eles pareciam viver num caixão.
Nós, intelectuais menos conhecidos, tínhamos que dar um
jeito em compartimentos feitos de carvalho. Na hora de
comer, o aperto era tamanho que mal conseguíamos levar a
mão à boca. Uma dúzia de cavalos relinchava e mijava no
porão, e absolutamente todas as roupas estavam úmidas. As
portinholas das armas inferiores haviam sido fechadas, então
o ambiente tornava a leitura impossível. Preferíamos ficar ao
ar livre, mas os marinheiros em serviço ficavam freqüente-
mente irritados com a lotação de sua área de trabalho e
ordenavam que voltássemos para baixo. No fim do primeiro
dia todos estavam entediados. Quando a semana terminou,
nós pedíamos a Deus pelo deserto.
Adicione a tudo isso o desconforto causado pela ansiedade
de um possível encontro com navios ingleses. Todos sabiam
que um provocador chamado Horatio Nelson - que já havia
perdido um braço e um olho, mas continuava com o mesmo
entusiasmo de sempre — estava a nossa procura com sua
esquadra. Já que a Revolução privou a Marinha Francesa da
maioria de seus melhores oficiais monarquistas e o fato de
nossos transportes e recuos de armas estarem entupidos com
suprimentos deixavam todos apreensivos para qualquer
duelo naval.
O principal passatempo era o clima. Poucos dias depois de
partirmos passamos por uma tormenta, com trovões e tudo.
O L'Orient jogava tão forte que o gado entrou em pânico e
qualquer coisa que não estivesse presa formou um grande
monte de entulho. Hora depois, tudo ficou calmo
novamente e, um dia depois, o calor era tão intenso que o
piche borbulhava das fissuras do tombadilho. O vento era
inconstante e a água desinteressante. Minha memória dessa
viagem limita-se a tédio, náusea e apreensão.
Enquanto navegávamos para o sul, Bonaparte adquiriu o
hábito de convidar estudiosos para fazerem discursos depois
da ceia em sua cabine. Os cientistas consideravam as
discussões bastante divertidas ao passo que os oficiais tinham
a desculpa perfeita para tirar boas sonecas. Napoleão
considerava-se um sábio por ter utilizado suas conexões
políticas para ser eleito ao Instituto Nacional e gostava de se
vangloriar dizendo que se não fosse um soldado, com
certeza, seria um acadêmico. A imortalidade suprema, dizia
ele, era atingida com o aprimoramento do conhecimento
humano, não vencendo batalhas. Ninguém acreditava que
fosse sincero, mas era um sentimento interessante de ser
expresso.
Então, nos encontramos numa cabine ocupada por canhões
aguardando pacientemente em seus suportes como cães
treinados. O chão era pintado no formato de um tabuleiro de
xadrez em preto-e-branco, semelhante ao existente numa
Loja Maçónica, baseado nos traços da antiga arquitetura
dionisiana. Um membro de nossa fraternidade desenhou o
projeto? Ou os maçons haviam simplesmente incorporado
todo e qualquer símbolo comum? Eu sabia que havíamos
utilizado as estrelas, a Lua, o Sol, a balança e as formas
geométticas, incluindo a pirâmide dos templos antigos. Esses
"empréstimos" também funcionavam em duas vias: suspeito
que a adoção da abelha operária como seu emblema foi
inspirada pelo símbolo maçónico da colmeia do qual ele
ouvira falar por seus irmãos.
Foi nessas reuniões que observei a sociedade científica da
qual eu agora fazia parte e não podia culpar um grupo tão
brilhante por considerar minha presença como duvidosa.
Segredos místicos? Berthollet disse aos cientistas que eu
havia encontrado um "artefato" e esperava compará-lo a
outros no Egito. Bonaparte anunciou que eu tinha teorias
sobre um antigo mestre da eletricidade egípcio. Quanto a
mim, disse, vagamente, que esperava que eu observasse as
pirâmides por uma nova perspectiva.
Meus colegas tinham mais realizações. Berthollet eu já
mencionei. Em termos de prestígio ele só era igualado a
Gaspart Monge, o famoso matemático mais velho do grupo,
com cinqüenta e dois anos. Com suas sobrancelhas grandes
e peludas e notáveis olheiras, Monge parecia um velho cão
sábio. Fundador da geometria descritiva, sua carreira
científica foi relegada pelo ministério quando a Revolução
solicitou que ele salvasse a indústria francesa de canhões.
Prontamente, ele ordenou o derretimento de sinos das
igrejas para a fabricação de artilharia e escreveu The Art of
Manufacturing Guns. Ele levou sua mente analítica para
tudo que tocava, desde a criação de um sistema métrico até
auxiliar Bonaparte a roubar a Mona Lisa da Itália. Ele me
adotou como uma espécie de sobrinho distante, talvez por
ter sentido que minha mente não era tão disciplinada quanto
a dele.
"Silano!" Monge exclamou quando eu expliquei como havia
me juntado à expedição. "Cruzei com ele em Florença. Ele
estava a caminho das bibliotecas do Vaticano e balbuciou
alguma coisa sobre Istambul e também Jerusalém, se pudesse
passar pelos turcos, é claro. O motivo ele não disse."
Nosso geólogo também era famoso. Seu nome? Déodat Guy
Silvian Tancrede Grated de Dolomieu. E ele não era maior
que o cano de meu rifle, mas tinha renome nos círculos
acadêmicos por ter matado um rival num duelo quando
tinha dezoito anos - período em que foi aprendiz dos
Cavaleiros de Malta. Aos quarenta e sete ele havia se tornado
independente financeiramente, tinha o posto de professor
na escola das minas e descobriu o mineral batizado dolomita.
Esse pensador devotado, e seu grande bigode, não conseguia
esconder sua ansiedade por ver o Egito.
Etienne Lous Malus, um matemático e especialista em
propriedades ópticas da luz, era um encorpado engenheiro
do exército com seus vinte e dois anos. Sonolento de voz
forte, Jean Baptiste Joseph Fourier, trinta anos, era outro
matemático famoso. Nosso orientalista e interprete era Jean-
Michael de Venture, Jean Baptiste Say era o economista, e
pela área da zoologia respondia Etienne Geofrey Saint-
Hilaire, que acreditava na peculiar idéia de que as
características de plantas e animais poderiam mudar com o
passar do tempo.
O mais ordinário era também o gênio mecânico do grupo: o
balonista caolho Nicolas-Jaques Conte, de quarenta e três
anos, que usava um tapa-olho sobre o orbe destruído pela
explosão de um balão. Ele foi o primeiro homem na história
a usar balões para reconhecimento militar, na batalha de
Fleurus. Ele inventou um novo objeto de escrita chamado
lápis, que não precisava de tinta, e o carregava para todo lado
em seu casaco pata rascunhar projetos de máquinas que
constantemente surgiam em sua mente inventiva. Ele estava
estabelecido como o inventor e faz-tudo da expedição e
também estava abastecido com um estoque de ácido
sulfúrico que reagiria com o ferro para produzir hidrogênio
para seus balões de seda. Esse elemento, mais leve que o ar,
provava ser mais prático que as primeiras tentativas de
erguer balões com calor.
"Se seu plano de invadir a Inglaterra pelo ar fizesse senso,
Nicky", Monge gostava da brincar. "Eu não estaria
vomitando sem parar nesta banheira nesse momento."
"Tudo que eu preciso é de balões suficientes", Conte
argumentaria. "Se você não tivesse gastado cada centavo em
suas fundições de canhões, ambos estaríamos tomando chá
em Londies."
Aquela época era alimentada pelas idéias para a guerra.
Lembrei de meu compatriota Robert Fulton, que, em
dezembro, teve sua proposta para a criação de um navio de
guerra submersível vetada pelas autoridades francesas.
Também existiam propostas para a construção de um túnel
sob o Canal.
Esses cavalheiros de estudo e oficiais se reuniriam no que
Napoleão chamava "Institutos", nos quais ele escolhia um
tópico, definia os envolvidos e nos guiava por debates e
discussões sobre política, sociedade, táticas militates e
ciência. Tivemos um debate de três dias de duração sobre o
mérito e a inveja corrosiva gerados pela propriedade privada
e uma discussão noturna sobre a idade da Terra; outra sobre
interpretação de sonhos; e várias outras sobre a verdade e a
utilidade da religião. Aqui, as contradições internas de
Napoleão eram claras: ele zombaria da existência de Deus
num minuto e, pouco depois, ficaria ansioso para ser
crucificado com seu inegável instinto cóisego. Ninguém
sabia no que ele realmente acreditava, muito menos ele, mas
Bonaparte era um forte defensor da utilidade da teligião para
controlar as massas. "Se eu pudesse fundar minha própria
religião eu governaria a Ásia", ele nos disse.
"Acho que Moisés, Jesus e Maomé chegaram primeiro",
Berthollet disse seco.
"Este é meu ponto", Bonaparte disse. "Judeus, cristãos e
muçulmanos têm suas origens nas mesmas histórias sagradas.
Todos adoram o mesmo Deus monoteísta. E - exceto por
alguns detalhes que colocam a verdade definitiva na voz de
cada profeta — todas são mais semelhantes do que
diferentes. Se deixarmos claro aos egípcios que a Revolução
reconhece a unidade da fé, não devemos ter problemas
religiosos. Tanto Alexandre quanto os romanos tinham
políticas de tolerância sobre a fé dos conquistados."
"São os fiéis que devem lutar mais fervorosamente por causa
das diferenças",
Conte pontuou. "Não se esqueça das guerras entte católicos
e protestantes." "Mas não estamos no alvorecer da razão? Da
nova era científica?" Fourier tomou partido. "Talvez, a
Humanidade esteja prestes se tornar racional."
"Ninguém é racional sob a mira de uma arma", o balonista
respondeu.
"Alexandre conquistou o Egito ao se declarar filho do Zeus
grego e do Amon egípcio", Napoleão lembrou. "Pretendo
ser tão tolerante quanto Maomé e Jesus."
"Enquanto você pensa em ser papa." Monge chiou. "Onde
fica o ateísmo da Revolução?"
"Um passo fadado ao fracasso, seu grande erro. É imaterial
Deus existir ou não. Simplesmente, se você insere a religião,
ou mesmo a superstição, no conflito com a liberdade, a
primeira sempre vai ganhar da segunda na cabeça das
pessoas." Era esse tipo de julgamento político cinicamente
colocado que Bonaparte gostava de fazer para manter sua
força intelectual perante os estudos dos cientistas. Ele
gostava de nos provocar. "Além do mais, a religião é o que
impede os pobres de matarem os ricos."
Napoleão também era fascinado pelas verdades subliminares
presentes nos mitos.
"Tome a ressurreição e a concepção virginal como
exemplos", ele começou a falar enquanto o racional
Berthollet revirava os olhos. "Esta não é apenas a história do
cristianismo, mas de incontáveis credos antigos. Assim
como seu maçom Hiram Abiff, certo Talma?" Ele gostava de
manter o foco em meu amigo na esperança de que o
elogiasse em artigos jornalísticos que ele enviava de volta à
França.
"É muito comum existir uma lenda que faz a pessoa pensar,
com certa freqüência, se tudo aquilo é realmente verdade",
Talma concordou. "A morte é o fim absoluto? Ou ela pode
ser revertida e até mesmo indefinidamente postergada? Por
que os faraós dedicaram tanto tempo e atenção a ela?"
Venture, o homem do leste, entrou na discussão.
"Certamente, as primeiras histórias de ressurreição
remontam à lenda do deus egípcio Osíris e sua irmã e esposa
Ísis. Osíris foi morto por seu irmão mau, Seth, mas ela
recolocou suas partes desmembradas de volta e o trouxe de
volta à vida. Então, ele dormiu com Ísis, sua irmã, e gerou
seu filho, Horus. A morte nada mais foi do que um prelúdio
para o nascimento."
"E agora vamos para a terra onde isto supostamente foi
feito", disse Bonaparte. "De onde estas histórias vieram se
não de um pequeno grão de verdade? E se elas forem, de
alguma forma, reais, que poderes os egípcios dominavam
para realizar tais feitos? Imaginem as vantagens da
imortalidade. Do tempo inexaurível! Quanta coisa
poderíamos fazer!"
"Ou, pelo menos, ganharmos um pouco com juros
compostos", brincou Monge.
Fiquei agitado. É por isso que estamos realmente invadindo
o Egito? Não por ser uma colônia, mas sim uma fonte de
vida eterna? É por isso que existe tanta gente curiosa sobre o
medalhão?
"É tudo mito e alegoria", Berthollet ridicularizou. "Qual povo
não teme a morte e sonha em superá-la? Todos eles estão
mortos, incluindo os egípcios."
O general Desaix aproveitou o intervalo de suas sonecas.
"Cristãos acreditam num tipo diferente de vida eterna", ele
pontuou de surpresa.
"Mas, enquanto os cristãos rezam por ela, os egípcios faziam
as malas para esperá-la", De Venture contrapôs. "Assim
como outras culturas primordiais, eles preparavam suas
tumbas com tudo que precisariam para a próxima jornada. E
nenhum deles era econômico na preparação, o que gera
oportunidade. As tumbas podem estar abarrotadas com
tesouros. Reis rivais escreviam aos faraós dizendo: 'Por
favor, mande-nos ouro, pois ele é mais recompensador que
o pó'."
"Isso é fé, para mim", o general Dumas resmungou. "Fé que
você pode tocar."
"Talvez eles tenham sobrevivido de outra maneira. Na forma
dos ciganos que conhecemos", eu disse. "O quê?"
"Ciganos. Eles alegam descenderem dos sacerdotes do
Egito."
"Ou podem ser St. Germaine ou Cagliostro", completou
Taima. "Esses homens diziam ter vivido por mil anos e ter
andado com Jesus e Cleópatra. Talvez seja verdade."
Bertholled zombou novamente. "A verdade é que Cagliostro
está tão morto que os soldados desenterraram seu corpo na
prisão papal e o torraram antes de beber vinho em seu
crânio."
"Isso se aquele fosse mesmo seu crânio", Taima insistiu
teimosamente.
"E o Rito Egípcio garante estar no caminho certo para
redescobrir esses poderes e milagres, não é isso?" Napoleão
perguntou.
"É o Rito Egípcio que procura corromper os princípios da
Maçonaria", Taima respondeu. "Em vez de se
comprometerem com a moralidade e com o
Grande Arquiteto, como um Ser Supremo, eles buscam
poderes sombrios nos caminhos ocultos. Cagliostro inventou
uma perversão à Maçonaria e aceita mulheres para rituais
sexuais. Eles usariam esses poderes antigos para eles mes-
mos, em vez de empregá-los para o Bem da Humanidade. É
uma pena que eles tenham virado moda em Paris e seduzido
homens como o conde Silano. Todos os verdadeiros maçons
os repudiam."
Napoleão sorriu. "Para que, então, você e seu amigo
americano possam encontrar os segredos antes dele!"
Talma concotdou. "E colocá-los a nosso serviço, não deles."
Lembrei da lenda que Stefan me contou: os egípcios
deveriam estar esperando por avanços morais e científicos
antes de entregarem seus segredos. E mil canhões
demonstravam nossa preparação.
A conquista da ilha mediterrânea de Malta levou um dia,
custou três vidas francesas e quatro meses de preparação —
antes de nossa chegada - com espiões, negociações e
subornos. Os trezentos e poucos Cavaleiros de Malta eram
um anacronismo medieval, já que metade deles era francesa
e estava mais interessada em pensões do que morrer por
glória. Depois das formalidades de um à curta resistência,
eles beijaram as mãos de seu conquistador. Nosso geólogo,
Dolomieu, que fora expulso da ordem em desgraça depois de
seu duelo juvenil, foi recebido de volta como um filho
pródigo para ajudar nas negociações de rendição. Malta foi
cedida à França, o Grão-mestre foi subordinado a um
principado na Alemanha e Bonaparte repetiu seu ato da
Itália e partiu para saquear os tesouros da ilha.
Ele deixou os Cavaleiros com uma farpa da Santa Cruz e a
mão murcha de João Batista. A França arrecadou cinco
milhões de francos em ouro, um milhão em peças de prata e
outro milhão com os tesouros incrustados com gemas de São
João. A maior parte do saque foi transferida para o L'Orient.
Napoleão também aboliu a escravidão e ordenou que todos
os homens malteses usassem um laço tricolor. O hospital e o
correio foram reorganizados; sessenta garotos de famílias
ricas foram enviados para serem educados em Paris; um
novo sistema de educação foi definido; e cinco mil homens
foram deixados para guarnecer a ilha. Foi uma prévia da
combinação de saque e reforma que ele pretendia realizar no
Egito.
Foi em Malta que Talma veio a mim todo empolgado com
sua nova descoberta. "Cagliostro esteve aqui!", ele festejou.
"Onde?"
"Nesta ilha! Os Cavaleiros disseram que ele visitou o local há
um quarto de século, na companhia de seu mentor grego,
Alhotas. Ele conheceu Kolmet aqui! Estes homens sábios
delibetaram com o Grão-mestre e examinaram o que os
Cavaleiros Templários haviam trazido de Jerusalém."
"E?"
"Ele pode ter descoberto o medalhão aqui, em meio aos
tesouros dos Cavaleiros. Você não percebe, Ethan? É como
se estivéssemos seguindo suas pegadas. O destino está em
curso."
Mais uma vez, lembrei de Stefan contando sobre César e
Cleópatra, sobre cruzados e reis, e uma busca que consumiu
o Homem através das Eras. "Alguns desses Cavaleiros
lembram da peça ou sabem o que ela significa?"
"Não. Mas estamos no caminho certo. Posso vê-lo
novamente?"
"Eu o escondi por segurança. Ele só causa problema quando
está fota do cofre." Eu confiava em Talma e, mesmo assim,
fiquei relutante em mostrar o medalhão depois das amargas
histórias de Stefan sobre o que acontecia com homens que o
tocaram durante a história. Os sábios sabiam que ele existia,
mas eu recusei todos os pedidos para análises e exames.
"Mas como vamos solucionar o segredo se você o mantém
escondido?"
"Vamos levá-lo ao Egito, primeiro."
Ele parecia desapontado.
Pouco mais de uma semana depois, nossa armada zarpou
novamente forçando o curso para o oeste, em direção a
Alexandria. Os rumores se espalharam dando conta de que
os ingleses continuavam a nos caçat, mas não vimos ne-
nhum sinal deles. Mais tarde descobriríamos que a esquadra
de Nelson havia ultrapassado nossa armada durante a noite.
Nenhum dos dois lados percebeu.
Foi numa das noites - enquanto os soldados apostavam os
sapatos para aliviar o tédio da viagem — que Berthollet me
convidou para acompanhá-lo até o nível mais inferior do
L'Orient. "Monsieur Gage, está na hora de nós, estudiosos,
justificarmos nosso soldo."
Descemos no breu. Nossas lanternas davam uma luz muito
pífia. Homens nas redes balançavam de um lado para o
outro como mariposas em casulos, tossindo e roncando. No
caso dos mais novos e saudosos de casa, o choro era o
companheiro durante a noite toda. As tábuas do navio
estalavam. O mar assobiava ao bater no casco e gotas
brotavam das frestas como um xarope escuro. Fuzileiros
guardavam o arsenal e a sala do tesouro com baionetas que
brilhavam no escuro como estilhaços de gelo. Paramos e
entramos na Caverna de Aladdin, a sala do tesouro. O
matemático Monge já esperava por nós sentado num baú
selado a bronze. Outro forte oficial estava presente. Era
Edme François Jomard, um jovem geógrafo e especialista em
mapas que escutava a maioria das discussões filosóficas em
silêncio. Jomard viria a ser meu guia nos mistérios das
pirâmides. Seus olhos negros brilhavam com inteligência e
ele trouxe um baú cheio de livros feitos por escritores
antigos.
Minha curiosidade por sua presença perdeu força por causa
do conteúdo da cabine. Ali estavam o tesouro de Malta e boa
parte do pagamento do exército francês. Caixas brilhantes
com moedas como favos de mel. Sacos encerravam séculos
e séculos de relíquias religiosas adornadas com jóias. Um
punhado poderia refazer a vida de um homem.
"Nem pense nisso", disse o químico.
"Mon dieu. Se eu fosse Bonaparte, eu me aposentaria hoje."
"Ele não quer dinheiro, ele quer poder", Monge disse.
"Bem, ele quer dinheiro também", Berthollet emendou. "Ele
se tornou um dos oficiais mais ricos no exército. Sua esposa
e parentes gastam a fortuna mais rápido do que ele consegue
roubar. Ele e seus irmãos formam um belo clã da Córsega."
"E o que ele quer de nós?", perguntei.
"Conhecimento. Compreensão. Decodificação. Certo,
Jomard?" "O general está particularmente interessado em
matemática", o jovem oficial disse.
"Matemática?"
"Matemática é a chave para a guerra", disse Jomard. "Com
treinamento adequado, coragem não varia muito de uma
nação para outra. O que vence é superioridade numérica e
poder de fogo no ponto de ataque. Isso não requer apenas
homens, mas suprimentos, estiadas, animais de carga,
alimento para os animais e pólvora. Você precisa de
quantidades exatas, movendo-se em distâncias exatas até o
lugar exato. Napoleão disse que, acima de tudo, ele quer
oficiais que saibam contar."
"E em mais que uma maneira", Monge completou. "Jomard é
um estudioso dos clássicos e Napoleão o quer contando de
novos jeitos. Autores antigos como Diodorus da Sicília
sugeriram que a Grande Pirâmide é um quebra-cabeça
matemático, certo Edme?"
"Diodorus propôs que as dimensões da Grande Pirâmide
simbolizam, de alguma forma, um mapa da Terra", Jomard
explicou. "Depois que conquistarmos o país, vamos medir a
estrutura para colocar essa afirmação à prova. Os gregos e
romanos eram fascinados pelo propósito das pirâmides assim
como nós e, por isso, Diodorus sugeriu essa idéia. Homens
seriam realmente escravizados por tanto tempo por uma
mera tumba, especialmente sem nenhum corpo ou tesouro
ter sido encontrado nela? Heródoto afirma que, na verdade,
o faraó era sepultado numa ilha situada num rio subterrâneo
muito abaixo do monumento em si."
"Então a pirâmide é só uma lápide? Um marco?"
"Ou um aviso. Ou, por causa de suas dimensões e túneis, um
tipo de máquina." Jomard deu de ombros. "Quem sabe, uma
vez que os construtores não deixaram nenhum registro."
"Mesmo assim, os egípcios semearam o mundo com pistas
que nenhum de nós consegue entender ainda", Monge
disse. "E é aí que nós entramos. Olhe para isso. Nossas tropas
o capturaram na Itália e Bonaparte o trouxe para esta
viagem."
O químico mostrou uma espécie de pacote enrolado em
tecido e, dentro dele, uma barra de bronze do tamanho de
uma travessa de jantar com a superfície coberta com esmalte
negro entalhado em prata. Belíssimas pinturas de figuras
egípcias estavam gravadas em estilo antigo e dispostas de
maneira espaçada numa série de linhas umas sobre as outras.
Os deuses, deusas e hieróglifos eram unidos por uma borda
com animais, flores e árvores fantásticas. "É a Tábua de Ísis,
que já pertenceu ao cardeal Bembo."
"O que isso significa?", perguntei.
"É isso que o general quer que a gente responda. Por
séculos, estudiosos suspeitam de que há alguma mensagem
nesta inscrição. A lenda diz que Platão foi iniciado nos
Grandes Mistérios em algum tipo de câmara embaixo da
maior pirâmide do Egito. Talvez isso seja um plano, ou
mapa, de tais câmaras. Em tempo, não há nenhuma
evidência desses lugares. Pode ser que seu medalhão seja a
chave para a compreensão disso."
Duvidava. As marcas no meu medalhão pareciam
rudimentares comparadas a esta obra de arte. As figuras
eram formais, mas graciosas, como anjos. Havia adornos
enormes nas cabeças, babuínos sentados e gado em
movimento. As mulheres pareciam falcões com asas em seus
braços. Os homens tinham cabeças de cachorros e pássaros.
Tronos eram apoiados em leões e crocodilos. "O meu é
muito mais rudimentar."
"Você vai estudá-lo à procura de pistas antes que cheguemos
às ruínas fora do Cairo. Muitos dos personagens seguram
bastões, por exemplo. Eles são cajados de poder? Há alguma
conexão com a eletricidade? isso poderia acelerar a
Revolução?"
Os homens que faziam essas perguntas eram figuras
proeminentes da ciência. Eu ganhei minha bugiganga num
jogo de cartas. Porém, resolver este quebra-cabeça poderia
abrir portas para várias recompensas comerciais, sem falar
no perdão pela confusão em Paris. Enquanto contava as
figuras, fiquei curioso por algumas delas possuírem adornos
maiores nas cabeças. "Tem algo aqui", ofereci. "O número de
personagens primários aqui, vinte e um, coincide com o
número das cartas do Taro que os ciganos me mostraram."
"Interessante", Monge disse. "Uma inscrição para prever o
futuro, talvez?"
Dei de ombros. "Ou apenas uma travessa bonita."
"Fizemos uma cópia dela e você pode levá-la para sua
cabine." Ele se esticou até outro baú. "Outra peculiaridade é
esta aqui. Nossas tropas a encontraram na mesma fortaleza
em que Cagliostro foi aprisionado. Pedi para que a
trouxessem quando Bethollet me falou sobre você." Era um
disco redondo do tamanho de uma travessa de jantar, com o
centro vazio e sua borda composta por três anéis, cada um
encaixado dentro do outro. Os anéis tinham símbolos de
sóis, luas, estrelas e signos do zodíaco. Eles eram móveis,
assim os sinais podiam ser realinhados uns com os outros.
Do porquê eu não fazia a menor idéia.
"Achamos que talvez seja um calendário", Monge disse. "A
possibilidade de alinhar os símbolos sugerem que ele pode
mostrar o futuro ou indicar uma certa data. Mas qual data e
por quê? Alguns de nós acreditam que ele seja relacionado à
precessão dos equinócios."
"Processão de quê?"
"Precessão. Uma antiga religião baseada no estudo do céu",
Jomard explicou. "As estrelas formavam padrões, se moviam
pelos céus em ângulos previsíveis, eram consideradas vivas e
com o controle sobre o destino do Homem. Os egípcios
dividiram a área do céu em doze signos do zodíaco,
estendendo cada um deles por doze zonas até o horizonte.
Todos os anos no mesmo momento - digamos, dia vinte e
um de março, acontece o equinócio da primavera, quando a
duração do dia e da noite é igual —, o Sol nasce sob o
mesmo signo do zodíaco."
Preferi não chamar a atenção do oficial por ele ter utilizado
o calendário gregoriano tradicional e não o novo sistema
revolucionário.
"Porém, não precisamente no mesmo ponto. Cada ano do
zodíaco sofre pequenas alterações durante a realização de
todo o circuito por causa do movimento da Terra sobre seu
eixo, o que leva mais ou menos dois mil e seiscentos anos.
Depois de longos períodos de tempo, a posição das
constelações muda de lugar. Em vinte e um de março deste
ano, o Sol está em Peixes, assim como esteve quando Cristo
nasceu. Talvez seja por isso que os primeiros cristãos
tenham escolhido o peixe como seu símbolo. Mas, antes de
Jesus, o nascer do Sol em vinte e um de março estava na
constelação de Aries, numa Era que durou dois mil cento e
sessenta anos. Antes disso, estava em Touro, quando as
pirâmides devem ter sido construídas. A próxima,
exatamente dois mil cento e sessenta anos depois de Peixes,
é a Era de Aquário."
"Aquário tem um significado especial para os egípcios",
Monge completou. "Muitas pessoas pensam que estes
símbolos são gregos, mas, na verdade, eles são muito mais
velhos - alguns surgiram na Babilônia e outros no Egito. As
jarras despejando água de Aquário simbolizam a cheia anual
do Nilo, vital para a fertilização e irrigação da produção
agrícola do Egito. A primeira civilização do Homem surgiu
no ambiente mais esquisito da Terra: um Jardim do Éden
desprovido de verde no meio de um deserto inóspito, um
lugar de calor constante e raríssima chuva, e umedecido
apenas por um rio que se levanta por razões até hoje
desconhecidas. Isolado de inimigos pelos desertos do Saara e
da Arábia, alimentado por um misterioso ciclo anual, sob
uma belíssima coleção de estrelas num céu aberto, esta terra
de contrastes extremos era o lugar ideal para a religião
evoluir."
"Então isto é uma ferramenta para calcularmos o ciclo do
Nilo?"
"Pode ser. Mas também pode sugerir o período propício para
diversas ações. É isso que esperamos que você decifre."
"Quem o fez?"
"Não sabemos. Seus símbolos são diferentes de qualquer
outra coisa que tenhamos visto e os Cavaleiros de Malta não
têm nenhum registro de onde ele veio. Hebreu? Egípcio?
Grego? Babilônio? Ou algo totalmente diferente?"
"Sem dúvida é um enigma para a sua mente, não a minha,
doutor Monge. Você é um matemático. Eu tenho
dificuldades em calcular o troco das coisas."
"Todo mundo se confunde com o troco. Escute, ainda não
sabemos o que isso significa, Gage. Mas o interesse por seu
medalhão indica que ele é uma peça de alguma charada
importante. Como americano, você é privilegiado por estar
numa expedição francesa. Berthollet garantiu proteção legal
a você. Mas isso não é um ato de caridade, é uma troca pelos
seus serviços. Há uma dúzia
de razões pela qual Bonaparte quer ir ao Egito, mas uma
delas é que pode haver segredos antigos para serem
aprendidos, sejam eles místicos, tecnológicos ou elétricos.
Aí você, o homem de Franklin, aparece com este misterioso
medalhão. É uma pista? Tenha estes artefatos em mente
enquanto avançamos em direção ao desconhecido.
Bonaparte quer conquistar um país. Tudo que você tem que
dominar é uma charada."
"Mas uma charada para o quê?"
"Para saber de onde viemos, talvez. Ou para descobrir por
que caímos em desgraça."
Voltei para a cabine que dividia com Talma e um tenente
chamado Malraux. Minha mente estava, ao mesmo tempo,
maravilhada pelo tesouro e pelos mistérios que eu precisava
desvendar. Eu não conseguia ver nenhuma conexão entre o
medalhão e esses novos objetos e ninguém tinha idéia do
que eu deveria fazer. Por décadas, encantadores e charlatões
como Cagliostro percorreram as cortes européias dizendo
conhecer os grandes segredos dos egípcios, entretanto sem
explicar precisamente o que exatamente eram tais
descobertas. Eles começaram uma febre pelo oculto. Céticos
zombaram deles, mas a idéia de que deveria haver alguma
coisa na terra dos faraós criou raízes e ganhou força. Agora,
estou no meio de toda essa loucura. Quanto mais a ciência
avança, mais as pessoas sentem falta da magia.
No mar, adotei a prática dos marujos de andar descalço por
causa do calor do verão. Enquanto me preparava para deitar,
com a mente funcionando a toda, notei que minhas botas
tinham sumido. Isso era preocupante, já que elas eram
usadas como esconderijo.
Comecei a olhar em volta um pouco ansioso. Malraux já
estava dormindo e murmurava alguma coisa enquanto
sonhava e roncava. Chacoalhei Talma,
"Antoine, não encontro minhas botas!"
Ele acordou meio zonzo. "Por que você precisa delas?"
"Só preciso saber onde elas estão."
Ele rolou para o outro lado. "Algum contramestre deve ter
roubado pra apostar."
Fiz uma pequena busca pelas mesas de cartas e dados, mas
não encontrei minhas botas. Será que alguém descobriu o
compartimento oco no salto?
Quem se atreveria a violar as posses dos estudiosos? Quem
poderia ter descoberto meu esconderijo? Talma? Ele poderia
ter pensado em algo depois de perceber minha calma
quando ele perguntou sobre o paradeiro do medalhão.
Voltei para a cabine e olhei para meu companheiro. Ele
continuava dormindo com uma criança, o que me fez
suspeitar mais ainda dele. Quanto mais o medalhão ganhava
importância, menos eu confiava nas pessoas. E eu estava
envenenando a fé em meu amigo.
Voltei para minha rede, deprimido e inseguro. O que
deveria ter sido um prêmio no salão de jogo começava a
parecer cada vez mais com um pesado fardo. Ainda bem que
não deixei o medalhão escondido na bota! Coloquei a mão
no ouvido de uma arma de doze libras ao lado da rede. Já
que Bonaparte proibiu o treinamento de tiro para
economizar pólvora e manter nossa passagem silenciosa, eu
enrolei o medalhão num saco de pólvora vazio e usei
alcatrão para grudá-lo no tampão da boca da arma. A
proteção seria retirada antes do uso e meu plano era retirar o
medalhão de lá antes de qualquer combate naval para não
correr nenhum risco de ser roubado do meu pescoço ou da
bota. E elas desapareceram, o que me deixou nervoso só de
pensar em ficar longe do meu prêmio. Quando a manhã
chegar, e todos estiverem no tombadilho, vou tirá-lo de lá e
usá-lo. Amaldiçoado ou não, quero essa coisa presa no meu
pescoço.
Na manhã seguinte minhas botas estavam de volta onde eu
havia deixado. Quando olhei de perto notei que a sola e o
salto foram forçados.
Capítulo Seis
Quase me afoguei nas ondas de Alexandria por causa do
medo que Bonaparte tinha da esquadra do almirante Nelson,
que esperava como um lobo em algum lugar no horizonte.
Napoleão estava com tanta pressa de chegar em terra que
ordenou um desembarque anfíbio. Não foi a última vez que
eu ficaria ensopado no país mais seco que eu já conheci.
Chegamos à cidade egípcia em Io de julho de 1798, e
ficamos maravilhados com as torres e os domos das
mesquitas, mas sob um sol infernal de verão. Éramos cerca
de quinhentos homens amontoados no tombadilho principal
da nau capitânea: soldados, marinheiros e cientistas. Por
longos minutos tudo ficou tão quieto que podíamos ouvir o
som de cada onda que atingia o navio. Egito! Ele tremulava
como uma distorção de um espelho recurvo. O marrom da
poeira e o branco da sujeira faziam com que a cidade
parecesse qualquer coisa, menos grandiosa.
Era como se tivéssemos chegado no endereço errado. Os
navios franceses lentamente chafurdaram nas águas rasas.
Podíamos ouvir cornetas, o tiro de alerta e os prantos de
pânico na cidade. Como será que foi contemplar nossa
armada de mais de quatrocentos navios que pareciam ocupar
todo o oceano? Conteúdos de casas inteiras eram despejados
em carroças movidas por burros. As tendas do mercado
desapareciam enquanto seus comerciantes levavam seus
bens para poços. Soldados árabes vestidos com armaduras
medievais guarneciam parapeitos rachados com piques e
mosquetes antigos. O artista de nossa expedição, barão
Dominique Vivant Denon, desenhava furiosamente: as
paredes, os barcos, a vastidão épica do norte da África.
"Estou tentando capturar a forma das estruturas sólidas
contra o peculiar volume de luz que vem do deserto", ele
me explicou.
A fragata Juno se aproximou para fazer um relatório. Ela
havia chegado à cidade um dia antes para se encontrar com
o cônsul francês e as notícias causaram um frenesi absurdo
na equipe de Napoleão: a esquadra de Nelson passou por
Alexandria a nossa procura, dois dias atrás! Foi pura sorte
não nos encontrarmos na hora do desembarque. Quanto
tempo levaria para que eles retornassem? Em vez de arriscar
atravessar o fogo cruzado dos fortes na entrada do porto,
Bonaparte ordenou um desembarque anfíbio imediato com
botes grandes na praia de Marabut, doze quilômetros a oeste.
De lá, as tropas francesas poderiam marchar pelo litoral e
tomar o porto.
O almirante Brueys protestou veementemente. Ele
reclamava que a costa nao era mapeada e que uma ventania
poderia se formar a qualquer momento. Napoleão manteve a
ordem.
"Almirante, não temos tempo a perder. Com sorte, teremos
três dias e nada mais. Se eu não usar essa vantagem agora,
estamos perdidos." Uma vez na praia, seu exército estaria
fora do alcance das naus de guerra inglesas. Se continuasse
nos navios, ele poderia ser afundado.
Ainda assim, ordenar um desembarque era mais fácil que
fazê-lo acontecer. As embarcações só conseguiram começar
a ancorar perto dos bancos de areia no começo da noite,
indicando que a operação continuaria por longas horas.
Pudemos escolher entre permanecer a bordo ou
acompanhar Napoleão e assistir ao assalto à cidade. Mais
aventureiro que sensato, decidi deixar o L'Orient. Seu
balanço estava me deixando enjoado novamente.
Independente de seu estado miserável por causa da náusea,
Talma me olhou como se eu fosse maluco. "Pensei que você
não queria ser um soldado!"
"Só estou curioso. Você não quer ver a guerra?"
"Posso ver as batalhas do lugar onde estou. Quem estiver na
praia vai ver os detalhes sanguentos. Encontro você na
cidade, Ethan." "Até lá já consegui um palácio para a gente!"
Sorriu palidamente enquanto olhava para os bancos de areia.
"Talvez eu deva ficar com o medalhão por razões de
segurança?"
"Não." Trocamos um aperto de mão. E aproveitei para fazer
um lembrete discreto: "Se eu morrer afogado, não vou
precisar dele."
Só consegui entrar num bote ao anoitecer. Bandas tocavam
constantemente a Marseillaise nos navios maiores. Olhei
para a terra e vi que o horizonte estava marrom por causa da
areia soprada do deserto. Vi alguns cavaleiros árabes
galopando em nossa direção e depois até perto da praia.
Desci primeiro por uma corda e depois pela escada que
acompanhava a lateral do navio de guerra com seu contorno
único e seus canhões ouriçados como pêlos rebeldes numa
barba curta. Carreguei meu rifle e seus acessórios nas costas;
o chifre de pólvora e o saco de balas estavam amarrados em
meu pescoço.
O barco oscilava bastante. "Pule!", um dos marujos ordenou.
Então eu pulei. Sem nenhuma elegância, mas rapidamente.
Logo fui colocado num remo de duas mãos. Mais e mais
homens chegaram ao bote até ficarmos no limite. Mas, é
claro, mais alguns conseguiram se acomodar, ou melhor, se
amontoar. Finalmente fomos empurrados e a água entrava
pela amurada.
"Remem, seus malditos!"
Nossos botes pareciam um enxame de besouros aquáticos
andando lentamente em direção à costa. Em pouco tempo,
não ouvíamos mais nada além da aproximação estrondosa de
onda após onda. Depois que vencemos a rebentação, tudo
que eu conseguia ver da frota de invasão era o topo dos
mastros.
No começo, nosso navegador, um pescador em tempos de
paz, nos levou com habilidade através da barreira de ondas
até a praia. Mas o barco estava sobrecarregado — parecia
mais uma carroça abarrotada de vinho. Começamos a
deslizar com as ondas e a popa dava sinais de que ia levantar
enquanto o pescador gritava com os remadores. Foi aí que
uma onda forte nos jogou para o lado. A inclinação e a
virada foram inevitáveis.
Não tive tempo de segurar a respiração. A água veio com
força e me jogou para baixo. Os trovões da tempestade se
transformaram num ribombar abafado conforme eu ia
afundando, até sentir a areia. Meu rifle parecia uma âncora,
mas eu me recusei a soltá-lo. Aquele período submerso
pareceu uma eternidade. Meus pulmões estavam quase
explodindo, mas, num momento de lucidez e calma, notei
que havia afundado o suficiente para me apoiar no fundo e
dar um impulso para cima.
Minha cabeça chegou à superfície no momento em que eu
estava prestes a engolir água. Respirei desesperadamente
antes de outra onda me atingir. Corpos se batiam no escuro.
Enquanto agitava os braços, encontrei um remo solto. Pouco
depois o nível da água foi abaixando e uma onda final me
carregou para o raso. Confuso, engasgado com água do mar,
nariz escorrendo e olhos ardendo. Foi assim, cambaleando,
que cheguei ao Egito.
Tudo era plano e sem marcas no horizonte. Nenhuma
árvore à vista. A areia estava impregnada em cada cavidade
de meu corpo e de minhas roupas. O vento empurrava tão
forte que tropecei.
Outros homens quase afogados foram surgindo da água.
Nosso bote virado encalhou na areia e os marinheiros
fizeram com que ajudássemos a colocá-lo de pé para tirar
toda a água. Tão logo conseguiram reunir remos suficientes,
lá se foram os marujos buscar outra leva de tropas. A lua
estava alta e pude ver a mesma cena se repetindo em vários
pontos da praia. Alguns botes chegavam tranqüilamente
como deviam, enquanto outros tombavam e rolavam como
destroços. Era o caos. Homens se amarrando uns aos outros
para enfrentar as fortes ondas e resgatar seus camaradas.
Vários corpos de soldados afogados estavam abandonados na
costa, meio enterrados pela areia da praia. Pequenas peças de
artilharia encalhadas completavam o cenário. A quantidade
de equipamentos que a maré trazia dava a impressão de que
éramos sobreviventes de um naufrágio. Enquanto isso, uma
bandeira tricolor francesa tremulava e estalava ao vento; ela
servia de referência para o ponto de encontro das tropas.
"Henri, lembra das fazendas que o general prometeu?", um
soldado ensopado disse a um companheiro, gesticulando em
direção às dunas mais próximas. "Aí estão seus seis acres."
Já que eu não estava ligado a uma unidade militar, comecei a
perguntar sobre o paradeiro do general Bonaparte. Os
oficiais davam de ombros e amaldiçoavam. "Provavelmente
em sua grande cabine vendo a gente se afogar", um disse.
Existia muito ressentimento por causa do grande espaço que
ele tinha teservado para si no navio.
Mesmo assim, um esboço de movimento organizado
começava a se formar na ponta da praia. Homens se reuniam
próximo a uma figura baixa que gesticulava furiosamente,
com isso, outras tropas se uniam ao grupo. Eu conseguia
ouvir a voz de Bonaparte distribuindo ordens bem definidas
e fileiras começando a se formar. Quando cheguei perto
notei que ele estava sem chapéu — levado pelo forte vento
— e ensopado até a cintura. Seu sabre encostava na areia,
desenhando uma linha atrás dele enquanto se movia. Ele
agia como se nada de estranho estivesse acontecendo e com
uma autoconfiança que encorajava os demais.
"Quero uma linha de tiro nas dunas! Kleber, leve alguns
homens até lá em cima se você não quiser ser atacado por
beduínos! Capitão! Use sua companhia para liberar aquele
canhão, precisaremos dele ao amanhecer. General Menou,
onde está você... aí está! Levante seu estandatte para reunir
seus homens ali. Vocês aí da infantaria, parem de andar
como ratos afogados e ajudem aqueles homens a virar o
bote! Um pouco de água tirou vocês da realidade, hein?
Vocês são soldados da França!"
Ao presenciar as maravilhas geradas pela obediência prestada
a Bonaparte, comecei a reconhecer seu talento para o
comando. Uma turba gradualmente se transformou num
exército, soldados formaram colunas, organizando
equipamento e arrastando os mortos para enterros rápidos e
sem cerimônia. Ocasionalmente eu escutava sons de tiros
que mantinham as tribos nômades a distância.
Depois de muitas viagens sobrecarregadas, os botes levaram
milhares de homens que se reuniam na areia sob a luz do
luar e das estrelas. O equipamento espalhado pela costa foi
recuperado e redistribuído. Alguns homens perceberam que
seus chapéus eram tão pequenos que pareciam pertencer a
crianças, enquanto outros tinham tamanhos tão grandes que
cobriam até as orelhas. Em tom de piada, todos começaram a
trocá-los até enconttarem tamanhos adequados. O vento da
noite foi morno e secamos rapidamente.
O general Jean-Baptiste Kleber, outro maçom pelo que eu
sabia, chegou em passadas largas. "Eles envenenaram o poço
em Marabut e os homens estão morrendo de sede. Foi
loucura partir de Toulon sem cantis."
Napoleão deu de ombros. "Foi um erro que não podemos
corrigir agora. Vamos encontrar água quando tomarmos os
muros de Alexandria."
Kleber fez cara feia. Ele tinha mais porte de general que
Bonaparte: um metro e oitenta e dois centímetros de altura,
forte, musculoso e cabelos cacheados que davam a ele a
seriedade de um leão. "Também não temos comida."
"Que também nos espera em Alexandria. Se você olhar para
o mar, Kleber, não vai ver nenhum navio britânico, o que
justifica totalmente um ataque rápido."
"Tão rápido que precisávamos vir no meio de temporal e
perder tantos homens afogados?"
"Velocidade é tudo numa guerra. Sempre vou gastar alguns
para salvar muitos." Bonaparte parecia tentado a falar mais -
ele não gostava de que opinassem em suas ordens —, mas
completou de outra maneira. "Você encontrou o homem de
quem falei?"
"O árabe? Ele pode falar francês, mas é uma víbora."
"Ele é um operativo de Talleyrand e vai ganhar uma libra
por orelha e mão que trouxer. Ele vai manter os outros
beduínos afastados do seu flanco."
Deixamos a praia com as ondas quebrando a nossa esquerda.
Milhares de homens marchando noite adentro. A espuma
parecia brilhar. Ocasionalmente escutávamos um tiro de
mosquete ou de pistola no escuro, à direita. Poucas lâmpadas
brilhavam mais à frente: Alexandria. Todos os generais
abriram mão dos cavalos e andavam como soldados comuns.
O general Louis Caffarelli, da engenharia, mancava ao nosso
lado com uma perna de madeira. Nosso gigantesco
comandante da cavalaria, o mulato Alexandre Dumas,
andava com a perna torta e sua cabeça era mais alta que a de
qualquer outro soldado. Ele tinha força de gigante e, para se
manter entretido na viagem, se pendurava numa viga sobre
os pequenos estábulos, envolvia uma montaria com suas
pernas e levantava o animal apavorado apenas com a força
de seus membros inferiores. Fofoqueiros de plantão diziam
que ele tinha músculos até atrás das orelhas.
Ainda sem companhia definida, caminhei com Napoleão.
"Você gosta da minha companhia, americano?"
"Penso que o general em comando esteja mais protegido que
os outros. Por que não ficar à seu lado?"
Ele riu. "Perdi sete generais numa única batalha na Itália e
comandei cargas pessoalmente. Só o destino sabe por que fui
poupado. A vida é pura sorte, não acha? Sofremos com uma
tempestade em vez da frota inglesa e alguns homens se
afogaram no desembarque. Você sente pena deles?"
"Claro."
"Não sinta. A morte chega para todos nós, a não ser, é claro,
que os egípcios tenham encontrado a imortalidade. E quem
pode dizer que uma morte é melhor que outra? A minha
própria poderia chegar nesta manhã, e seria uma boa morte,
sabe por quê? Porque enquanto a glória é passageira, a
obscuridade é eterna. Aqueles homens que se afogaram vão
ser lembrados por suas famílias durante gerações. Eles
morreram seguindo Bonaparte para o Egito! A sociedade,
inconscientemente, sabe disso e aceita o sacrifício."
"Esse é um pensamento europeu, não americano."
"Não? Veremos quando sua nação for mais velha. Estamos
numa grande missão, Ethan Gage. Vamos unificar o leste e o
oeste. Comparado a isso, o indivíduo pouco importa."
"Unificar pela conquista?"
"Pela educação, pot exemplo. Vamos derrotar os tiranos
mamelucos e, no processo, liberaremos essas pessoas da
tirania dos otomanos. Mas, depois disso, vamos melhorar
suas vidas e no tempo certo eles vão abençoar o dia em que
a França colocou os pés em suas praias. Em troca, vamos
aprender sobre sua cultura antiga."
"Você é um homem confiante."
"Sou um visionário. Um sonhador, como alguns generais me
acusam. Entretanto, eu meço meus sonhos com o compasso
da razão. Já calculei quantos dromedários seriam necessários
para cruzarmos o deserto em direção à Índia. Tenho
panfletos impressos em língua árabe que explicam minha
missão de reforma. Sabia que o Egito nunca viu uma
impressora? Ordenei que meus oficiais estudassem o Corão e
deixei claro a meus soldados que não saqueiem ou molestem
as mulheres árabes. Quando os egípcios perceberem que
estamos aqui para libertados, não para oprimidos, eles vão se
juntar a nós para combatermos os mamelucos."
"Mas você lidera um exército sem água."
"Faltam várias coisas, mas vou contat com os egípcios para
consegui-las. Foi isso que fizemos quando invadimos a Itália.
Foi isso que Cortez fez quando queimou seus navios depois
de desembarcar no México. Nossa falta de cantis não deixa
outra opção para nossos homens senão o sucesso do ataque."
Era como se ele estivesse se dirigindo a Kleber, não a mim.
"Como pode ter tanta certeza, general? Considero difícil ter
certeza sobre tantas coisas."
"Porque aprendi na Itália que a história está ao meu lado."
Fez uma pausa, considerando se poderia se abrir mais, e me
incluir em suas aspirações políticas. "Por anos eu me senti
relegado a uma vida comum, Gage. Eu também tinha
dúvidas. Eu era um córsico pobretão membro de uma
nobreza distante e relegada, um colono ilhéu com sotaque
forte que passou a infância aturando provocações e esnobes
na escola militar francesa. Meu único amigo era a
matemática. Aí a Revolução veio e surgiram oportunidades,
das quais eu tirei o melhor. Prevaleci ao cerco de Toulon.
Espalhei a notícia em Paris. Recebi o comando de um
exército derrotado e surrado no norte da Itália. No mínimo,
um futuro bom parecia possível, mesmo com a chance de
perder tudo novamente com uma simples derrota", o
general confidenciou.
"Mas foi na batalha de Arcola, lutando contra os austríacos
para liberar a Itália, que o mundo realmente se abriu para
mim. Tínhamos que atravessar uma ponte que terminava
num matadouro e, carga após carga, todas foram falhando, o
que deixou a rua acarpetada por corpos. Finalmente, sabia
que o único jeito de vencer naquele dia era liderar a última
investida pessoalmente. Soube que você é um apostador,
mas não há aposta como aquela, com balas passando feito
vespas, todos os dados lançados num avanço nublado pela
glória, homens gritando, estandartes estalando ao vento,
soldados caindo. Conquistamos a ponte e vencemos o dia.
Eu não sofri um arranhão sequer. Gage, não há orgasmo
mais potente que a empolgação de ver um exército inimigo
fugir. Depois do combate, regimentos franceses inteiros me
cercaram celebrando o garoto que antigamente não passava
de um simples córsico. Foi naquele momento que eu vi que
tudo era possível — tudo! — se eu ousasse. Não me
pergunte por que eu acho que o destino é meu anjo
protetor, eu só sei que é. Agora ele me trouxe ao Egito e
aqui, talvez, eu possa imitar Alexandre assim como vocês,
sábios, imitam Aristóteles." Ele deu um tapa no meu ombro
e seus olhos acinzentados me encaravam na luz fraca do
alvorecer. "Acredite em mim, americano."
Mas, primeiro, ele tinha que abrir caminho até a cidade.
Napoleão esperava que a mera presença da coluna invasora
na costa seria suficiente para persuadir os alexandrinos a se
renderem, mas eles ainda não tinham experimentado o
poder de fogo europeu. A cavalaria mameluca era confiante
e audaciosa. A casta de guerreiros escravos cujo nome
significava "homens comprados" foi organizada pelo famoso
Saladino como sua guarda pessoal durante o tempo das
Cruzadas. Esses guerreiros do Cáucaso eram tão poderosos
que conquistaram o Egito das mãos dos turcos otomanos. Os
mamelucos egípcios foram os primeiros a derrotar as hordas
mongóis de Genghis Kahn, ganhando renome imortal como
soldados, e mantiveram o Egito cativo por séculos, sem se
misturar com a população e nem sequer aprender a língua
egípcia. Eles eram uma elite guerreira que tratava seus
próprios cidadãos como vassalos, de maneira tão rude que só
um ex-escravo, marcado pela crueldade, poderia saber. Eles
galopavam para a batalha, em garanhões árabes superiores a
qualquer cavalo que os franceses tinham, e vinham munidos
de um mosquete, um cinto cheio de pistolas, uma lança e
uma cimitarra. Sua coragem era equiparada apenas a sua
arrogância.
No leste, a escravidão era diferente do que a existente em
Nova Orleans e no Caribe. Para os otomanos, escravos eram
os aliados mais confiáveis, já que eram demovidos de seu
passado e não faziam parte das famílias feudais turcas.
Alguns se tornavam príncipes, um recado para dizer que os
mais oprimidos poderiam chegar ao topo. E, sem dúvida, os
escravos mamelucos tornaram-se os mestres do Egito.
Infelizmente, seu grande inimigo era sua própria deslealdade
— nenhum sultão mameluco jamais morreu de velhice na
cama por causa de suas infindáveis conspirações pelo poder
— e seu armamento era tão primitivo quanto a beleza de
seus cavalos. Eles empunhavam antiguidades. Além disso,
enquanto escravos podiam se tornar mestres, homens livres
eram constantemente tratados como servos. A população
egípcia tinha pouca consideração por seus líderes. Os
franceses viam a si mesmos como libertadores, não
conquistadores.
Embora a invasão tenha surpreendido os inimigos, no início
da manhã centenas de mamelucos alexandrinos reuniram
uma força maltrapilha que misturava sua própria cavalaria,
beduínos e camponeses egípcios que foram forçados a servir
como escudo humano. Atrás deles, nas muralhas da velha
parte árabe da cidade, mosqueteiros e artilheiros aguardavam
ansiosos nas plataformas. Assim que as primeiras fileiras
francesas se aproximaram, o canhão inimigo foi disparado a
esmo e atingiu a areia bem perto das colunas européias. Os
franceses pararam enquanto Napoleão se preparava para
oferecer os termos de rendição.
Porém, a oportunidade não chegou, pois, aparentemente, os
mamelucos entenderam a pausa das fileiras como hesitação e
começaram a mover aquela massa de camponeses
pessimamente armados em nossa direção. Bonaparte,
entendendo que os árabes queriam uma batalha, sinalizou as
bandeiras para suporte naval. Corvetas mais rasas e lugres
começaram a se mover em direção à praia para colocar seus
canhões em alcance. O pouco armamento leve que foi
trazido nos botes longos também era levado para a frente.
Eu estava cansado, com sede e pegajoso por causa do sal e da
areia. Finalmente, caí na real que estava enfiado no meio de
uma guerra por causa daquele medalhão desajeitado. Eu
dependia deste exército para sobreviver. Ainda assim, era
estanho, mas eu me sentia seguro perto de Bonaparte. Como
ele dizia, ele tinha uma aura que misturava um pouco de
invencibilidade e sorte. Felizmente, nossa marcha atraiu um
grande número de curiosos, oportunistas e mendigos.
Batalhas atraem espectadotes como se fossem garotos
assistindo a uma briga de escola. Pouco antes do amanhecer
vi um garoto vendendo laranjas. Comprei um saco por um
franco de prata e ganhei pontos com o general por dividir
com ele. Ficamos na praia chupando a polpa enquanto
olhávamos o exército — que mais parecia uma turba
desordenada — cambalear em nossa direção. Os cavaleiros
mamelucos galopavam brilhantes como pássaros com suas
roupas de prata atrás dos camponeses. Eles giravam as armas
e gritavam contra nós.
"Ouvi dizer que vocês, americanos, se gabam por sua
precisão com seus rifles de caça", Napoleão disse, de
repente, como se tivesse tido idéia para uma brincadeira
nova. "Você se importaria em demonsttar?"
Os oficiais se viraram para olhar. Meu rifle era meu orgulho.
A empunhadura de bordo tratada com óleo, o chifre de
pólvora lixado bem fino a ponto de eu poder ver os grãos de
pólvora francesa dentro dele, as partes de bronze polidas
eram luxos que eu não poderia ter nas florestas da América
do norte, onde um simples brilho poderia entregar sua
posição para um animal ou para o inimigo. Os viajantes
passavam avelã verde para esconder qualquer brilho. Mesmo
com a beleza de meu rifle, alguns soldados consideravam seu
cano longo uma frescura. "Não acho que estes homens
sejam meus inimigos", eu disse.
"Eles se tornaram seus inimigos quando você pisou na praia,
monsieur?
Verdade. Comecei a carregar minha arma. Eu deveria ter
feito isso mais cedo, já que estava indo para uma batalha,
mas passeei pela praia como se estivesse de férias. Agora eu
precisava fazer por merecer meu lugar e contribuir com a
luta. Coloquei pólvora extta para o tiro de longa distância e
usei a vareta para apertar a bala enrolada em linho.
Conforme os alexandrinos se aproximavam ajeitei a mão no
gatilho, mas minha atenção foi distraída por um beduíno
que chegava cavalgando por trás de nossas linhas. Seu cavalo
negro espalhava a areia e suas roupas escuras ondulavam no
vento. Atrás dele havia um tenente da cavalaria francesa,
desarmado e aparentando estar doente. Amarrando as rédeas
perto do grupo de Bonaparte, o árabe prestou continência e
atirou um pano enrolado em nossos pés. Ele abriu conforme
caiu, espalhando um par de mãos e orelhas ensangüentadas.
"Estes homens não vão mais incomodar, effendi, disse em
francês. O rosto do beduíno estava mascarado pelo capuz de
seu turbante. Seus olhos clamavam por aprovação.
Bonaparte fez uma pequena nota mental do conteúdo do
pacote. "Você fez bem, meu amigo. Seu mestre estava certo
em recomendado."
"Sou um servidor da França, effendi? Então seus olhos
cerraram na minha direção, como que em sinal de
reconhecimento. Fiquei perturbado. Eu não conhecia
nenhum nômade. E como esse aí falava a nossa língua?
Enquanto isso, o tenente deslizou do cavalo e ficou de pé
meio cambaleante e desajeitado, sem saber o que fazer.
"Este eu resgatei dos bandidos que ele perseguiu até longe
no escuro", o árabe disse. Era um troféu e também, todos
sentimos, uma lição.
"Aplaudo sua ajuda." Bonaparte dirigiu-se ao prisioneiro
liberto. "Encontre uma arma e junte-se a sua unidade,
soldado. Você tem mais sorte do que merece."
Os olhos do homem estavam irados. "Por favor, senhor,
preciso descansar. Estou sangrando..."
"Ele não é tão sortudo quanto você pensa", o árabe disse.
"Não? Para mim, ele parece vivo."
"O hábito beduíno é de espancar mulheres cativas... e
estuprar homens capturados. Repetidas vezes." Os oficiais
gargalharam sem cerimônia e alguém deu um tapa nas costas
do soldado desventurado, que cambaleou. Algumas das
risadas eram simpáticas, outtas eram cruéis.
O general pressionou os lábios. "Devo ter pena de você?"
O jovem começou a soluçar. "Por favor, estou tão
envergonhado..."
"A vergonha está na sua captura, não na sua tortura. Assuma
seu lugar nas fileiras e destrua o inimigo que humilhou você.
É assim que você apaga o embaraço. E quanto ao resto de
vocês, contem a história para todas as tropas. Não haverá
compaixão para este homem! Sua lição é simples: não seja
capturado de maneira alguma." Ele virou as costas para a
batalha.
"Meu pagamento, effendi! O árabe esperava.
"Quando eu tomar a cidade."
O árabe ainda não se movia.
"Não se preocupe, Príncipe Negro, sua bolsa está ficando
mais pesada. Haverá recompensas ainda maiores quando
chegarmos ao Cairo."
"Se chegarmos até lá, effendi. Só eu e meus homens lutamos
até agora."
Nosso general não foi afetado por essa observação e aceitou
a insolência de um bandido do deserto, coisa que nunca faria
com seus oficiais. "Meu aliado americano estava prestes a
corrigir isso ao demonstrar a precisão do rifle longo da
Pensilvânia. Não era mesmo, monsieur Gage? Fale sobre suas
vantagens."
Todos olhavam para mim novamente. Podia ouvir a marcha
do exército egípcio se aproximando. Sabendo que a
reputação de meu país estava em jogo, segurei firme em
minha arma. "Todos sabemos que o problema de qualquer
arma de fogo é que só podemos dar um tiro e então gastar
algo entre vinte segundos e um minuto para recarregar",
expus. "Nas florestas da América, um erro significa que sua
presa vai escapar ou que o índio estará em cima de você
com sua machadinha. Então, para nós, o tempo gasto para
carregar um rifle longo é mais que compensado pela chance
de atingir alguma coisa com o primeiro tiro, diferentemente
de um mosquete cuja trajetória da bala não pode ser
prevista."
Coloquei a arma no meu ombro. "Agora, o cano longo de
ferro leve e o peso da arma ajudam a compensar o tranco do
disparo. Também, diferentemente do mosquete, o interior
do cano tem estrias que fazem a bala girar e melhoram a
precisão. O comprimento do cano aumenta a velocidade e
permite que a mira seja colocada bem à frente. Assim ela
fica mais alinhada com o alvo e facilita a visibilidade para o
olho humano." Olhei de lado. Um mameluco estava
cavalgando à frente de seus companheiros poucos metros
atrás da massa de camponeses. Compensando o vento do
oceano e a perda de altitude da bala, mirei alto em seu
ombro direito.
Nenhuma arma de fogo é perfeita - mesmo um rifle
apontando à queima-roupa não colocaria uma bala em cima
da outra — mas o "triângulo de erro" da minha arma era de
apenas duas polegadas a duzentos passos. Pressionei o
gatilho de preparação e soltei o gatilho de disparo evitando
qualquer solavanco. Então, continuei o movimento e atirei
imaginando que a bala atingiria o homem no peito. O rifle
deu um tranco, surgiu uma nuvem de fumaça, e vi o
cavaleiro ser jogado para longe de seu garanhão.
Houve um murmúrio em apreciação - e se você acha que
não há satisfação num tiro como aquele, então você não
entende o que motiva os homens na guetra. Bem, eu estava
numa encrenca agora. Baixei a arma, colocando o apoio na
areia primeiro, abri um cartucho de papel e comecei a
recarregar.
"Um bom tiro", Bonaparte cumprimentou. O tiro do
mosquete era tão impreciso que se os soldados não mirassem
nos pés dos inimigos, o solavanco da arma poderia mandar
uma saraivada sobre as cabeças adversárias. O único jeito de
exércitos se atingirem era formar linhas apertadas e atirar a
curtas distâncias.
"Americano?", o árabe perguntou. "Tão longe de casa?" O
beduíno subiu em seu cavalo, se preparando para partir.
"Para estudar nossos mistérios, talvez?"
Agora eu lembro de onde conhecia essa voz! Era a mesma
do lanterneiro em Paris, o homem que levou os gendarmes
até mim quando descobri o corpo de Minette! "Espere! Eu
sei quem você é!"
"Americano, sou Achmed Bin Sadr e você não sabe
absolutamente nada."
E antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, ele galopou
para longe.
Sob ordens aos gritos, as tropas francesas organizaram o que
viria a ser sua formação favorita contra a cavalaria
mameluca: um quadrado com o centro vazio. Cada lado era
formado por várias fileiras de homens e cada um deles
olhava para fora, ou seja, sem se preocupar com flancos, e
suas baionetas fotmavam uma cerca com lados de puro aço.
Para definir as fileiras, alguns oficiais usavam seus sabres para
desenhar linhas na areia. Enquanto isso, o exército egípcio
— aquela turba, para ser mais exato - começou a se lançar
contra nosso exército gritando sob o ritmo de tambores e
cornetas.
"Menou, forme outro quadrado perto das dunas", Napoleão
ordenou. "Kleber, diga ao resto dos homens que se
apressem." Muitos dos soldados franceses ainda estavam
chegando da praia.
Agora os egípcios corriam diretamente em nossa direção,
uma onda de miseráveis armada com cajados e foices,
empurrada por uma linha de cavaleiros bem vestidos e
brilhantes. Os aldeões pareciam aterrorizados. Quando eles
chegaram a cinqüenta metros de distância, a primeira linha
francesa atirou.
O estampido dos tiros me fez pular e o resultado foi algo
parecido com uma gigantesca foice ceifando uma fileira de
trigo. A linha de frente inimiga ficou em pedaços, com
inimigos mortos e feridos indo ao chão. O resto simples-
mente entrou em colapso por causa do terror causado pela
salva disciplinada, diferente de qualquer coisa que eles
haviam visto até ali. Uma enorme coluna de fumaça branca
tomou o ar cobrindo o quadrado francês. A cavalaria mame-
luca parou em confusão, os cavalos com medo de pisar no
carpete de corpos, e seus mestres amaldiçoando os servos
que mandaram para a morte. Enquanto os senhores
forçavam seus cavalos lentamente sobre seus lacaios, a
segunda linha francesa atirou. E nesse momento alguns dos
mamelucos tombaram de seus cavalos. Foi a deixa para a
terceira linha disparar, mesmo com a primeira terminando
de recarregar. Os cavalos gritavam, caíam e se contorciam.
Depois desse furacão de balas, os servos sobreviventes
levantaram como se por comando e fugiram empurrando os
cavaleiros para trás, transformando o primeiro ataque
egípcio em fiasco. Os guerreiros atacavam seus lacaios com a
parte lateral das espadas, mas de pouco adiantava para
impedir a fuga. Alguns dos fugitivos lotaram os portões da
cidade pedindo refúgio e outros correram para o interior,
desaparecendo nas dunas. Enquanto isso, os navios franceses
começaram a atirar em Alexandria. Seus projéteis explodiam
contra os muros da cidade como punhos de ferro. As defesas
antigas começaram a desmoronar como areia.
"A guerra é essencialmente um ato de engenharia",
Napoleão pontuou. "E a imposição da ordem sobre a
desordem." Ele estava de pé, com as mãos para trás e a
cabeça girando, absorvendo detalhes, como se fosse uma
águia. De maneira incomum ele conseguia criar uma
imagem mental de todo o campo de batalha e sabia qual
setor garantiria a vantagem. Era assim que ele se distinguia
dos demais. "É a disciplina triunfando sobre a indecisão. A
organização sendo aplicada ao caos. Gage, você sabia que
seria algo extraordinário se ao menos um por cento das balas
disparadas efetivamente atingisse o alvo? E por isso que
fileiras, colunas e quadrados são tão importantes."
Mesmo que eu ainda tivesse aversão à brutalidade do
militarismo, a frieza dele me impressionava. Era um homem
da revolução moderna, calculista científico, contador
sangrento, racionalista desprovido de emoção. Naquele
momento de violência desenfreada, vi os engenheiros
soturnos que dominariam o futuro. A moralidade seria
sobrepujada pela aritmética. A paixão seria superada pela
ideologia.
"Fogo!"
Mais e mais tropas francesas se aproximavam dos muros da
cidade e um terceiro quadrado foi formado mais próximo ao
mar, o que deixou os soldados com as canelas molhadas
quando as ondas se aproximavam. Algumas peças de
artilharia leve foram posicionadas entre as duas formações e
carregados com munição de dispersão, que deveriam varrer
a cavalaria inimiga com pequenas balas de aço.
Livres de seus servos, os mamelucos atacaram novamente. A
cavalaria veio em carga máxima, levantando um spray de
areia e água na praia. Os soldados berravam gritos de guerra,
suas roupas se inflavam como velas e as plumas e penas de
seus fantásticos turbantes lutavam para não voar longe. A
velocidade não fez nenhuma diferença. Os franceses
atiraram mais vez e a linha de frente dos mamelucos foi
derrubada. Alguns dos cavaleiros apenas caíram ao colidir
com seus camaradas feridos e engrossaram os números
rolando pelo chão; outros conseguiram desviar e saltar sobre
a barreira humana.
Independente da agilidade com a qual a cavalaria formava
outra linha organizada, os franceses atiravam novamente e
seus cartuchos voavam feito confete. Os ataques etam
dilacerados. Os sobreviventes mais valentes continuavam
assim mesmo, trombando com os corpos de seus
companheiros, apenas para encontrar o fim pela saraivada de
balas disparada pela artilharia. Era simplesmente uma
chacina, tão mecânica quanto Bonaparte sugeriu. Mesmo
tendo vivido maus bocados durante meus dias nas florestas
da América, a ferocidade desta violência em massa me
deixou chocado. O metal zunindo pelo ar. Grandes borrifos
de sangue produzidos por tiros mortais. Nunca imaginei que
o corpo humano tivesse tanto sangue.
Uns poucos cavaleiros conseguiram chegar até as linhas
francesas brandindo suas espadas e lanças, mas nenhum
deles conseguiu se aproximar o suficiente por conta das
baionetas. Aí vinha um comando em francês e outra
saraivada era disparada. Os guerreiros tombavam. Crivados
de balas.
O que havia restado da casta governante finalmente
debandou e galopou em direção ao deserto.
"Agora!", Napoleão vociferou. "Para os muros antes que os
líderes inimigos se reagrupem!" Trompas soaram e, com
empolgação, mil soldados formaram uma coluna e
marcharam rapidamente. Eles não tinham escadas ou
artilharia de cerco, mas não precisavam muito disso. Sob o
forte bombardeio naval, os muros da cidade se
despedaçavam como queijo podre. Algumas das casas dentro
da muralha queimavam. Os franceses ficaram ao alcance dos
mosquetes e uma rápida série de disparos foi feita de ambos
os lados da defesa. Os defensores mostravam mais coragem
do que eu imaginava, mesmo em face do massacre. As balas
voaram como vespas e, finalmente, alguns europeus
tombaram, parcamente balanceando a carnificina deixada
em seu avanço.
Napoleão acompanhou as tropas - comigo ao seu lado —
enquanto desviava de inimigos inertes, alguns ainda
gemendo, em meio a uma grande mancha negra que tomava
a areia. Fiquei surpreso ao ver que muitos dos mamelucos
mortos tinham pele mais clara que seus servos e que seus
cabelos eram ruivos e até mesmo louros.
"Escravos brancos do Cáucaso", o gigantesco Dumas
vociferou. "Eles vão trepar com as egípcias, diziam, mas não
vão ter filhos com elas. Mas eles também vão para a cama
uns com os outros, já que preferem seu próprio sexo e raça
antes de qualquer chance de contaminação com os lacaios.
Jovens garotos de oito anos de idade são comprados todos os
anos de suas famílias nas montanhas para continuar a casta.
Eles são educados pelo estupro e pela crueldade. Quando
chegam à idade adulta, são impiedosos como lobos e
desprezam qualquer um que não seja mameluco. Sua única
lealdade é direcionada a seu bey ou chefe. Ocasionalmente
eles também recrutam negros e árabes, mas a maioria vê a
pele escura com desdém."
Olhei para o general e notei sua pele mesclada por várias
raças. "Suspeito que você não vá permitir que o Egito
mantenha este preconceito, cetto general?"
Ele chutou um inimigo morto. "Oui. É a cor do coração que
importa."
Paramos pouco antes da linha de tiro na base de uma grande
pilastra que se projetava para fora dos muros da cidade. Ela
tinha vinte e três metros de altura, era tão grossa quanto a
altura de um homem e foi batizada em homenagem ao
general romano Pompeu. Estávamos, literalmente, sobre o
entulho de várias civilizações. Pude ver um antigo obelisco
egípcio utilizado como base do pilar e colunas de granito
cor-de-rosa esculpidas quentes ao toque. Bonaparte, já rouco
de tanto gritar ordens, parou de pé perto da pequena sombra
feita pela estrutura. "A coisa está ficando quente." Sem
dúvida, o sol estava surpreendentemente alto. Quanto
tempo passara desde o começo da peleja?
"Tome, pegue uma fruta."
Ele me olhou com apreciação e eu pensei que talvez este
pequeno gesto semeasse a amizade. Só mais tarde eu
aprenderia que Napoleão valorizava qualquer um que
pudesse lhe prestar algum serviço, era indiferente com os
que não podiam, e implacável com seus inimigos. Mas,
agora, ele sugava a fruta como uma criança e parecia gostar
da minha companhia enquanto continuava a exercer seu
comando no cenário a nossa frente. "Não, não, não por aí",
ele dizia às vezes. "Sim, aquele portão ali. Ele é que deve ser
forçado!"
Eram os generais Kleber e Jacques François Menou que
estavam na linha de frente do ataque. Os oficiais lutavam
como loucos, parecia que eles acreditavam ser invulneráveis
às balas. Fiquei igualmente impressionado com a coragem
suicida dos defensores. Eles sabiam que não tinham
nenhuma chance, mas lutavam assim mesmo. Mas
Bonaparte era o grande coreógrafo capaz de dirigir sua dança
com soldados que pareciam brinquedos. Seu pensamento já
estava muito à frente daquela luta. Ele olhou por cima do
pilar ornado com capitéis coríntios que apoiavam o nada.
"As maiores glórias sempre foram conquistadas no Oriente",
ele murmurou.
Os disparos árabes estavam diminuindo. Os franceses
chegaram ao pé dos muros despedaçados e se ajudavam
mutuamente para escalar. Um portão foi aberto por dentro;
outro caiu depois de ser castigado por machados e pancadas
com mosquetes. Uma bandeira tricolor apareceu no alto de
uma torre e outras eram carregadas pelas plataformas dos
muros da cidade. A batalha estava quase concluída e pouco
depois aconteceu o curioso incidente que mudaria minha
vida.
Foi um corpo-a-corpo selvagem. Os árabes ficaram tão
desesperados quando a pólvora acabou, que começaram a
atirar pedras. Depois de ser atingido por várias pedras, o
general Menou saiu de lá tão zonzo e abatido que levou
vários dias para se recuperar. Kleber sofreu um ferimento a
bala perto do olho e continuava lutando com a testa
enrolada numa bandagem ensangüentada. Entretanto,
subitamente, os egípcios romperam suas linhas como um
dique inundado e os europeus invadiram.
Alguns dos habitantes se prostravam com medo, imaginando
quais barbaridades aquela horda de cristãos praticaria. Outros
superlotavam as mesquitas. Muitos deixaram a cidade e
partiram em direção ao leste e ao sul, mas a maioria voltou
dois dias depois quando percebeu que não tinha comida,
água nem lugar para ir. Um punhado dos mais resistentes
entrincheirou-se na Torre e na Cidadela, mas seus tiros logo
cessaram por conta da falta de pólvora. As represálias
francesas foram rápidas e brutais. Houve vários massacres
localizados.
Napoleão entrou na cidade no início da tarde. "Uma
pequena batalha que nem renderia um boletim", ele
salientou para Menou enquanto se abaixava sobre a padiola
que levava o general ferido. "Embora eu vá inflacionar seu
teor para o povo de Paris. Diga a seu amigo Taima que
prepare suas penas, Gage." Ele piscou. Bonaparte adotou o
tom oblíquo de cinismo que todos os oficiais franceses
mostravam desde o Terror. Eles se orgulhavam de serem
durões.
Alexandria desapontava. As maravilhas do leste eram
conttariadas por ruas sem pavimentação, carneiros e galinhas
soltos, crianças brincando peladas, mercados infestados por
moscas e um sol de matar. Boa parte da cidade era composta
por velhas ruínas e, mesmo sem a batalha, ela pareceria
meio vazia - a casca de uma glória antiga. Havia até prédios
semi-afundados perto do limite das docas, como se a cidade,
aos poucos, estivesse seguindo para o mar. Só quando os
arrombamentos nos mostraram o interior das casas mais
requintadas tivemos contato com um outro mundo - mais
fresco, opulento e secreto. Vimos fontes, pórticos
sombreados, entalhes mouros, e sedas e linhos dançando
levemente com as correntes de ar seco do deserto.
Tiros esporádicos ecoavam pela cidade enquanto Napoleão,
acompanhado por um grupo de auxiliares, iniciava uma
travessia cautelosa pela avenida principal que vinha do
porto, onde agora apareciam os primeiros mastros franceses.
Cruzamos uma porção rica das casas dos mercados com seus
detalhes trabalhados em pedra e janelas com grades de
madeira quando ouvimos um zumbido parecido com um
inseto e um pedaço de reboco explodiu feito um pequeno
gêiser de poeira pouco acima do ombro de Napoleão. Fiquei
assustado, já que por pouco o tiro não havia me atingido. O
tecido esfolado do uniforme de nosso general o deixou, de
repente, parecido com suas tropas. Olhamos para cima e
vimos uma pequena nuvem de fumaça de pólvora perto de
uma janela gradeada sendo levada para longe pelo vento.
Disparando de um abrigo camuflado, um franco-atirador
quase abateu o comandante da expedição.
"General! Você está bem?", um coronel gritou.
Em resposta, um segundo tiro zuniu e então um terceiro.
Eles tiveram um intervalo tão curto que, ou havia dois
atiradores, ou o primeiro estava recebendo mosquetes
recarregados de outra pessoa. Um sargento que estava
poucos passos à frente de Napoleão grunhiu e caiu sentado
com uma bala em sua coxa, e outro pedaço de parede
explodiu atrás da bota do general.
"Vou estar bem quando estiver atrás de um poste",
Bonaparte resmungou, levando nosso grupo para baixo de
um pórtico e fazendo o sinal da cruz. "Atirem de volta, pelo
amor de Deus!" Dois soldados finalmente revidaram. "E
tragam artilharia. Não vamos dar a ele o dia todo para me
acertar."
Uma escaramuça bem quente teve início. Vários granadeiros
começaram a atirar na casa que havia se transformado numa
pequena fortaleza e outros correram para conseguir apoio da
artilharia. Mirei com meu rifle, mas o franco-atirador estava
bem protegido: errei como todos os outros. Esperamos por
longos dez minutos para que o canhão chegasse e, até aquela
hora, trocamos muitos tiros — um deles feriu um jovem
capitão no braço. O próprio Napoleão pegou um mosquete e
atirou, mas não conseguiu nada melhor que os demais.
Foi a peça de artilharia que animou nosso comandante. Era
nisso que ele era treinado. Em Valência, seu regimento
passou pelo melhor treinamento de canhões do exército e,
em Auxonne, ele trabalhou com o lendário professor Jean
Louis Lombard, que traduziu o título inglês Princípios da
Artilharia para o francês. Seus oficiais me disseram a bordo
do L'Orient que ele não tinha vida social em seu início de
carreira como segundo tenente — ele preferia estudar e
trabalhar das quatro da manha até as dez da noite.
Agora, ele mirava seu canhão mesmo com as balas
continuando a pipocar perto dele.
"Foi exatamente o que ele fez na batalha do Lodi", o capitão
ferido falou em apreciação. "Ele posiciona algumas armas por
conta própria e os homens começam a chamado de O
Pequeno Cabo."
Napoleão acendeu o pavio. A arma fez um estrondo, deu um
tranco em sua carreta e o tiro saiu berrando para atingir um
local um pouco abaixo da janela do atacante e jogando pedias
para todos os lados enquanto destruía a grade de madeira.
"De novo."
A arma foi rapidamente recarregada e o general a mirou na
porta da casa. Outro disparo. O tiro explodiu dentro da sala
causando uma chuva de fragmentos. A rua foi tomada pela
fumaça.
"Avante!" Este era o mesmo Napoleão que atacou sobre a
ponte de Arcola. Os franceses avançaram com seu general
de espada em punho. E eu a seu lado. Invadimos pela
entrada atirando em direção às escadas. Um servo, jovem e
negro, caiu rolando escada abaixo. O grupo de assalto pulou
seu corpo e avançou para o alto. No terceiro andar
encontramos o lugar atingido pela primeira canhonada. Pelo
buraco era possível ver os telhados de Alexandria, mas o
aposento estava tomado por escombros. Um velho segurava
um mosquete e estava semi-soterrado com as pedras
espedaçadas, sem dúvida nenhuma, morto. Outro mosquete
estava apoiado na parede com sua coronha quebrada. Vários
outros estavam espalhados como fósforos usados. Uma
segunda figura, talvez seu recarregador, foi lançada contra o
canto da parede, provavelmente pelo impacto do disparo, e
se movia debilmente sob uma camada de escombros.
Não havia mais ninguém na casa.
"Fogo bem cerrado para um exército de dois homens",
Napoleão comentou. "Se todos os alexandrinos lutassem
desta maneira, eu ainda estaria fora dos muros."
Fui até o guerreiro atordoado no canto, imaginando quem
eles poderiam ser. O velho que matamos não parecia
inteiramente árabe e havia algo estranho em seu assistente
também. Levantei um pedaço de janela estilhaçada.
"Cuidado, monsieur Gage, ele ainda pode estar armado",
Bonaparte alertou. "Deixe o George acabar com ele com a
baioneta."
Eu já tinha visto baionetas demais por um dia. Ajoelhei e
levantei o defensor ainda zonzo, apoiando-o em meu
ombro. A figura gemeu e piscou, com os olhos desfocados.
Um apelo saiu em voz baixa e áspera. "Água."
Reparei no timbre e nas características delicadas. O
guerreiro ferido era, na verdade, uma mulher suja com
resíduo de pólvora. Em melhores condições, ela seria uma
jovem, sadia e relativamente bonita.
E o pedido foi feito em inglês.
Uma busca na casa revelou a existência de água nas jarras do
tétieo. Dei um copo à mulher. Estava tão curioso quanto os
franceses sobre qual seria sua história. Esse gesto e minha
própria voz em inglês parecem ter me garantido alguns
pontos de confiança. "Qual seu nome, moça?"
Ela engoliu e piscou, enquanto olhava para o teto. "Astiza."
"Por que você estava nos atacando?"
Agora ela havia focado o olhar em mim e seus olhos
pareciam ter visto um fantasma. "Eu estava carregando as
armas." "Para o seu pai?"
"Meu mestre." Ela lutou para se levantar. "Ele está morto?"
"Sim."
Sua expressão era imutável. Sem dúvida ela era uma escrava
ou serviçal: estaria triste por seu proprietário ter sido morto
ou aliviada por estar livre? A garota parecia considerar sua
nova posição com espanto. Notei um amuleto esquisito
pendurado em seu pescoço. Era de ouro - incongruente na
posse de uma escrava — e tinha a forma de um olho
amendoado com um ônix negro formando a pupila. Uma
sobrancelha ondulava acima e havia uma extensão inferior
com outra curva elegante. Enquanto isso, seus olhos
intercalavam olhares na direção do corpo de seu mestre e na
minha. Sem parar.
"O que ela disse?", Bonaparte questionava em francês. "Acho
que ela é uma escrava. Ela estava recarregando os mosquetes
para seu mestre, aquele homem ali."
"Como uma escrava egípcia sabe falar inglês? Eles são
espiões britânicos?" Repeti a primeira questão para ela.
"Mestre Omar tinha uma mãe egípcia e um pai inglês", ela
respondeu. "Ele tinha negócios com a Inglaterra. Para
aperfeiçoar sua fluência, nós usávamos a língua nesta casa.
Também falo árabe e grego."
"Grego?"
"Minha mãe foi vendida da Macedônia para o Cairo. Fui
criada lá. Sou uma grega egípcia e uma sem-vergonha." Ela
disse com certo orgulho.
Voltei-me ao general. "Ela poderia ser uma intérprete", disse
eu em francês. "Ela fala árabe, grego e inglês."
"Uma intérprete para você, não para mim. Devo tratá-la com
uma guerrilheira." Ele estava ranzinza depois de quase levar
um tiro.
"Ela estava seguindo instruções de seu mestre. Ela tem
sangue macedônico."
Agota ele ficou interessado. "Macedónia? Alexandre o
Grande era macedônico: justamente ele, que fundou esta
cidade e conquistou o leste antes de nós."
Tenho um fraco por mulheres e a fascinação de Napoleão
pelo velho grego criador de impérios me deu uma idéia.
"Você não acha que o fato de Astiza ter sobrevivido a seu
tiro de canhão pode ser obra do destino? Quantos
macedônios podem morar nesta cidade? E eis que
encontramos uma que fala minha língua nativa. Ela pode ser
muito mais útil viva do que morta. Ela pode nos ajudar a
entender o Egito."
"O que uma escrava saberia?"
Olhei firme para ela. Ela acompanhava nossa discussão sem
entender nada, mas tinha olhos largos, brilhantes e
inteligentes. "Ela tem conhecimento de algum tipo."
Bem, falar de destino sempre o deixou intrigado. "Sorte dela,
então, e também minha, que você a tenha encontrado. Diga
a ela que eu matei o mestre dela em batalha e, portanto,
passei a ser seu novo mestre. E que eu, Napoleão, a coloco
sob os cuidados de meu aliado norte-americano — você."
Capítulo Sete
Algumas vezes, a vitória é mais confusa que a batalha. Um
ataque pode ser altamente simples por natureza; já a
administração pode se transformar num pesadelo sem
escapatória. Assim foi em Alexandria. Bonaparte aceitou
rapidamente a rendição do sultão Mohammed El-Koraim e
desembarcou o restante de suas tropas, artilharia e cavalos.
Os soldados e cientistas festejaram por cinco minutos por
pisarem em terra firme, e, quase imediatamente, começaram
a reclamar da falta de abrigo, pouca água potável e das
confusões do abastecimento. O calor era palpável — um
peso que todos tínhamos de enfrentar — e a areia cobria
tudo com sua poeira fina. Houve trezentas baixas francesas e
mais de mil alexandrinos estavam mortos ou feridos. Não
havia um hospital adequado para nenhum dos dois lados. Os
europeus feridos foram enfiados em mesquitas ou
magníficos palácios confiscados, repletos de dor, calor e
moscas inquietas. Os egípcios feridos tiveram que se virar
por conta própria. Muitos morreram.
Enquanto isso, a maior parte dos transportes foi enviada de
volta à França e as naus de guerra foram posicionadas em
formação defensiva perto da baía de Abukir. Os invasores
ainda temiam o retorno da esquadra de Nelson.
A maioria dos soldados que desembarcava precisava acampar
nas praças da cidade ou nas dunas próximas. Oficiais tinham
mais sorte, pois se apropriaram das casas mais refinadas.
Talma e eu dividimos com vários oficiais a casa que eu havia
ajudado a capturar do mestre de Astiza. Assim que ela
recuperou os sentidos e aceitou sua nova situação social,
ficou me estudando de soslaio como se tentasse descobrir se
eu era um desastre ou, talvez, uma nova oportunidade. Foi
ela quem pegou algumas moedas, fez algumas trocas com
vizinhos e nos trouxe comida, mesmo enquanto resmungava
sobre nossa ignorância dos modos e práticas bárbaras do
Egito. Como por obra do destino, ela nos adotou do mesmo
modo que nós a adotamos. Ela era zelosa, mas sempre
cautelosa; obediente, mas conformada; vigilante, mas
ressabiada.
Fiquei intrigado com ela, assim como já havia acontecido
com outras tantas mulheres. Franklin tinha a mesma
fraqueza. Aliás, era o mesmo ponto fraco de todo o exército:
havia centenas de esposas, amantes e prostitutas aventureiras
na expedição. Assim que chegaram ao continente, as
mulheres francesas trocaram suas roupas masculinizadas por
vestidos que exibiam mais de seus dotes — para total horror
dos egípcios. As mulheres também mostraram ser, no
mínimo, tão duronas quanto seus maridos ao enfrentar as
condições rudimentares reclamando muito menos que os
soldados. Os homens árabes as viam com medo e fascinação.
Para manter suas tropas ocupadas, Napoleão mandou um
contingente marchando a sudoeste em direção ao Nilo, uma
aparentemente simples jornada de noventa e cinco
quilômetros. Contudo, o primeiro passo para a conquista da
capital - Cairo — mostrou-se cruel, uma vez que as
consideradas ricas fazendas do delta estavam empobrecidas
ao fim de um período de seca, pouco antes da cheia do rio.
Alguns poços estavam vazios. Outros foram envenenados ou
selados com pedras. As vilas eram feitas de tijolos de barro e
palha e os fazendeiros tentavam esconder suas poucas
ovelhas e galinhas. Em princípio, as tropas francesas
pensaram que os camponeses eram muito ignorantes por
eles não darem a mínima para o dinheiro francês e, ainda
que relutantemente, trocavam comida e água por botões das
roupas dos soldados. Só mais tarde eles entenderam que os
lavradores esperavam que seus mestres mamelucos
vencessem. Por isso, ter dinheiro francês poderia mostrar
um sinal de colaboração com os cristãos, enquanto ter um
botão poderia significar ter sido retirado de um europeu
morto.
A marcha poderia ser localizada por seu rastro de poeira que
subia alto. O calor passava dos quarenta graus e alguns
soldados, deprimidos e descontrolados por causa da sede,
cometeram suicídio.
As coisas não eram tão tenebrosas para nós em Alexandria.
Milhares de garrafas de vinho eram descarregadas ao lado
das rações militares e uniformes brilhantes tomavam conta
das ruas como um aviário cheio de espécies tropicais com
suas plumas sobressaindo na paisagem. Os dragões da
cavalaria e fuzileiros vestiam capas verdes; os oficiais
utilizavam cinturões vermelhos bastante brilhantes; os
homens da infantaria leve exibiam laços tricolores; e os
carabineiros ostentavam plumas escarlates. Comecei a
aprender um pouco sobre exércitos.
Alguns grupos eram nomeados por causa de suas armas:
como, por exemplo, o mosquete leve chamado de fuzil que,
originalmente, equipava os fuzileiros, as granadas utilizadas
pela infantaria pesada batizou os granadeiros, e as carabinas
curtas distribuídas aos carabineiros em suas casacas azuis; a
infantaria leve, ou caçadores, eram tropas leves equipadas
para ataques rápidos; os cavaleiros hussardos vestidos de
vermelho faziam as vezes de cavalaria leve ou batedores,
batizadas em homenagem às unidades semelhantes oriundas
da Europa Central; e os dragões eram a cavalaria pesada,
cujos membros vestiam capacetes para evitar golpes com
sabre.
De modo geral, o plano de batalha era fazer com que a
infantaria leve confundisse e desarrumasse as linhas inimigas
enquanto a artilharia fazia seu trabalho e prepava o caminho
para que uma linha ou coluna da infantaria pesada, com seu
poder de fogo concentrado, pudesse dar o golpe decisivo e
quebrar a formação inimiga. Então, a cavalaria passaria em
velocidade para eliminar as forças de oposição. Na prática, as
tarefas de cada uma dessas unidades se misturavam e, no
Egito, o papel do exército francês foi simplificado pelo fato
de os mamelucos apostarem muito em sua cavalaria e os
franceses terem um efetivo reduzido nesta posição.
O contingente de Napoleão também contava com a Legião
de Malta, recrutada após a tomada da ilha, e mercenários
árabes como Achmed Bin Sadr. O general já tinha planos
para enrolar uma companhia de mamelucos — tão logo os
derrotasse — e organizar uma unidade especial de camelos
composta por egípcios cristãos.
A força terrestre totalizava trinta e quatro mil homens, dos
quais vinte e oito mil eram da infantaria e três mil
compunham a cavalaria e a artilharia. Havia uma falta crítica
de cavalos que só poderia ser sanada no Egito de maneira
lenta e árdua. Bonaparte descarregou cento e setenta e um
canhões - que variavam das armas de cerco de vinte e quatro
libras até as peças leves de campo capazes de atirar até três
tiros por minuto, mas, uma vez mais, a ausência de cavalos
limitava a quantidade que ele poderia transportar num
primeiro momento. As fileiras de infantaria estavam mais
mal equipadas ainda, além de sofrer no calor com mil
setecentos e setenta e sete mosquetes pesados, mochilas de
couro, uniformes de lã dos Alpes e chapéus de duas pontas.
Os dragões cozinhavam em seus capacetes e os colarinhos
dos uniformes ficavam rígidos por causa do sal. Nós, sábios,
não tínhamos vestimentas tão rígidas - podíamos tirar nossas
jaquetas quando quiséssemos - mas éramos igualmente
afetados pelo calor, pigarreando como peixes sufocando fora
d'água. A não ser quando viajava, eu andava sem a roupa que
me gerou o apelido "casaca verde" (que dividia os gostos
com "o homem de Franklin") entre os soldados. Uma das
primeiras ordens de Bonaparte foi reunir algodão suficiente
para novos uniformes, mas eles levariam meses para ficar
prontos e, quando ficaram, se mostraram-se muito frios para
o inverno.
Como já disse, a cidade era frustrante. Ela parecia ao mesmo
tempo vazia e arruinada. Quase não existia sombra, não
havia tesouro, tampouco as famosas beldades otomanas. As
mulheres árabes mais ricas e belas estavam enclausuradas ou
fugiram para o Cairo. As poucas que apareciam surgiam
cobertas dos pés à cabeça como padres da Inquisição, vendo
o mundo por seus véus ou pequenos buracos feitos em seus
capuzes. O contraste era visto nas camponesas que se
vestiam sem preocupação — algumas das mais pobres
mostravam seus seios com a mesma normalidade que
exibiam os pés — e pareciam raquíticas, sujas e doentes. A
promessa de Taima parecia uma piada cruel: nada de haréns
e dançarinas exóticas.
E ele também não havia encontrrado nenhuma cura
milagrosa ainda. Horas após o desembarque, Taima alegou
sofrer de mais febre e desapareceu no mercado nativo
procurando novas drogas. O que ele trouxe de volta não
passava de remédios de charlatões. Era paradoxal ver um
homem que passava mal ao ver carne vermelha
experimentando "antigos" remédios egípcios como sangue
de verme, bosta de burro, alho amassado, leite materno,
dente de porco, cérebro de tartaruga e veneno de cobra.
"Taima, tudo que você vai conseguir é uma bela diarréia",
chamei a atenção.
"Isso está limpando meu sistema. Meu farmacêutico
mencionou sacerdotes egípcios com mais de mil anos de
idade. Ele pareceu bastante venerável para mim."
"Eu perguntei e ele tem quarenta anos. O calor e essas
porcarias fizeram ele secar como uma uva passa."
"Tenho certeza de que ele estava brincando. Ele me disse
que quando as cólicas terminarem vou ter o vigor de um
jovem de dezesseis anos."
"E, pelo jeito, uma mentalidade condizente."
Talma tinha ganhado bastante dinheiro recentemente.
Embora fosse um civil, seu papel como jornalista era
essencial para o exército. Ele descreveu nosso ataque com
tantos elogios que eu mal reconhecia os fatos. Berthier,
chefe de gabinete de Bonaparte, fez um pagamento extra
como recompensa. Na surdina, é claro.
Eu vi pouca coisa que valesse a pena ser comprada no
mercado de Alexandria. O lugar era quente, misterioso,
empestado por moscas e seus estoques estavam baixos
depois da captura da cidade. Mesmo assim, os espertos
mercadores depenavam nossos soldados, entediados de
maneira mais efetiva que a própria pilhagem da cidade. Eles
aprenderam o básico do francês com rapidez incrível. "Vem,
ver minha tenda, monsieur! Aqui ter o que você querer!
Você não querer? Eu saber que você querer!"
Astiza era uma feliz exceção a nossa desilusão. Depois de sair
dos escombros e se limpar, ela passou por uma fantástica
transformação. Nem tão clara como os bravos mamelucos
nem tão escura como os egípcios comuns, ela apresentava
traços de porte simplesmente mediterrâneos: pele azeitada
levemente tocada pelo Sol, cabelo negro como azeviche,
mas listrados com faixas acobreadas, olhos que lembravam
amêndoas escaldadas, um olhar reservado, mãos e
tornozelos saudáveis, seios altos, cintura fina e quadris
firmes. Uma mulher fascinante, em outras palavras, uma
Cleópatra. Eu saboreava minha sorte até que ela deixou claro
que considerava seu salvamento dúbio e me via com
desconfiança.
"Vocês são uma praga de bárbaros", ela disse. "Vocês são o
tipo de homem que não pertence a lugar nenhum, por isso
vão a qualquer lugar destruindo as vidas de pessoas
sensíveis."
"Estamos aqui para ajudar vocês."
"Eu pedi ajuda? O Egito pediu para ser invadido, investigado
ou salvo?" "É a tirania." Tentei argumentar. "Ela faz
necessário o resgate por ser retrógrada."
"Para quem? Meu povo morava em palácios quando o seu
estava em cabanas. Aliás, como é o seu lar?" "Na verdade,
não tenho lar." "Pais?" "Mortos." "Sem esposa?"
"Sem interesse." Sorri charmosamente. "Devia imaginar.
Sem país?"
"Sempre gostei de viajar e tive a chance de visitar a França
quando era jovem. Acabei crescendo lá ao lado de um
homem famoso chamado Benjamin Franklin. Eu gosto dos
Estados Unidos, minha terra natal, mas tenho muita vontade
de viajar pelo mundo. Além disso, esposas gostam de ficar
em casa."
Seu olhar era de dó. "O jeito que você gasta a sua vida não é
natural."
"É sim, se você gostar de aventura." Resolvi mudar de
assunto. "O que é este belo colar que você usa?"
"O olho de Horus, senhor desabrigado."
"Olho de quem?"
"Horus é o deus falcão que perdeu um olho em combate
com o maldoso Seth." Agora eu lembrei! Algo a ver com a
ressurreição, sexo entre irmão e irmã, e este Horus foi o
resultado do incesto. Deve ter sido um escândalo na época.
"Assim como os egípcios lutam contra o seu Napoleão,
Horus enfrentou a escuridão. O amuleto traz boa sorte."
Sorri. "Quer dizer que você tem sorte em pertencer a mim
agora?"
"Ou sorte que eu vá viver o suficiente para ver vocês irem
embora."
Ela cozinhava pratos cujos nomes eu desconhecia — tinha
gosto de carneiro com grão-de-bico e lentilhas — e servia de
um jeito tão repulsivo que fiquei tentado a usar um daqueles
vira-latas das ruas para provar cada refeição e procurar por
veneno. Entretanto, a comida era surpreendentemente boa
e ela se recusava a receber qualquer pagamento. "Se eu for
pega com uma de suas moedas vão cortar minha cabeça
depois que os mamelucos matarem todos vocês."
E também não prestava serviços noturnos.
As noites na costa egípcia conseguiam ser tão frias quanto os
dias eram quentes.
"Na Nova Inglaterra nós dormimos próximos para afastar o
frio", disse a ela na primeira noite. "Você é bem-vinda para
se aproximar se assim desejar."
"Se seus oficiais não tivessem invadido nossa casa, não
estaríamos nem no mesmo aposento."
"Por causa dos ensinamentos do Profeta?"
"Meus ensinamentos vêm da deusa egípcia, não dos
mamelucos que odeiam mulheres. E você não é meu
marido, você me capturou. Além disso, todos vocês fedem
como porcos."
Deu uma fungada, não escondendo o desapontamento.
"Então, você não é muçulmana?"
"Não."
"Nem judia, cristã copta ou católica grega?" "Não."
"E quem é essa deusa?"
"Uma de quem você nunca ouviu falar."
"Conte-me. Estou aqui para aprender."
"Então, entenda o que até mesmo um homem cego poderia
ver. Os egípcios viveram nesta terra por dez mil anos sem
pedir ou precisar de qualquer coisa nova. Fomos
conquistados várias vezes, e nenhum deles nos trouxe satis-
fação maior do que tínhamos anteriormente. Centenas de
gerações de homens impacientes como vocês só pioraram as
coisas e não trouxeram nada de bom." Ela poderia ter ido um
pouco além já que me considerava ignorante o suficiente
para entender sua fé e gentil o bastante para agredi-la por ser
ofendido, entretanto ela seguiu minhas ordens e se portou
como uma duquesa. "O Egito é a única terra antiga onde as
mulheres têm direitos iguais aos homens", ela disse,
mantendo sua postura inalterada mostrando sabedoria e
charme.
Francamente, fiquei perplexo.
Bonaparte sofria do mesmo problema com o resto da
população. Ele emitiu uma proclamação relativamente longa.
Posso entender o tom e seus instintos políticos, mas ela
começa assim:
Em nome de Deus, o clemente e misericordioso. Não há
divindade exceto Alá, Ele não tem nenhum filho e não
divide Seu poder com ninguém.
Em nome da República Francesa, fundada na liberdade e
igualdade, o comandante-em-chefe Bonaparte deixa claro
que os governadores otomanos do Egito insultaram a nação
francesa e oprimiram os mercadores franceses por tempo
demais: a hora de sua punição chegou.
Por muitos anos, o bando de escravos mamelucos,
comprados na Geórgia e no Cáucaso, tiranizou a região mais
bonita do mundo. Mas o Deus Todo-Poderoso, que controla
o Universo, decretou que seu reino deveria terminar.
Povo do Egito, vão dizer a vocês que vim para destruir sua
religião. Não acreditem! Respondam a estes impostores que
eu vim para restaurar seus direitos e punir os usurpadores;
que eu venero a Deus mais que os mamelucos e que eu
respeito O Profeta Maomé e o admirável Corão...
"Um início bem religioso." Pontuei assim que Dolomieu leu
fazendo um drama satírico.
"Especialmente vindo de um homem que acredita
completamente na utilidade da religião e nem um pouco na
realidade de Deus", o geólogo respondeu. "Se os egípcios
engolirem este monte de merda eles merecem ser
conquistados."
Um ponto mais adiante na proclamação foi mais específico.
Todas as vilas que se levantarem contra o exército serão
arrasadas e queimadas...
A prerrogativa religiosa de Napoleão logo foi desprezada.
Recebemos a notícia de que os mulas do Cairo haviam
declarado a todos nós como infiéis. Bela resposta para
liberalismo e unidade da religião! Um contrato por trezentos
cavalos e quinhentos camelos que havia sido negociado com
xeiques locais evaporou imediatamente e ataques, inclusive
com franco-atiradores, aumentaram. A conquista do Egito
seria muito diferente do que Bonaparte imaginou. A maior
parte dos homens de sua cavalaria marcharia durante os
primeiros estágios do avanço para o Cairo carregando suas
selas nas cabeças, e ele aprenderia muito nesta campanha
sobre a importância de logística e suprimentos.
Enquanto isso, o povo de Alexandria foi desarmado e
obrigado a vestir laços tricolores. Os poucos que cumpriram
ficaram ridículos. Talma, entretanto, escreveu que a
população estava delirante por sua liberação dos governantes
mamelucos.
"Como você pode enviar tanta porcaria para a França?", eu
disse. "Metade da população fugiu, a cidade está cheia de
buracos de bala de canhão e a economia entrou em colapso."
"Estou falando do espírito, não do corpo. Os corações deles
estão elevados."
"Quem diz isso?"
"Bonaparte. Nosso benfeitor e a única pessoa que pode
ordenar nossa volta para casa."
Foi só em minha terceira noite em Alexandria que percebi
que não havia despistado meus perseguidores em Toulon.
Era difícil conseguir dormir. Ficamos sabendo de mais
atrocidades cometidas por beduínos a outro soldado que foi
capturado fora de sua unidade. Estas tribos do deserto
vagavam pelas areias da Arábia e da Líbia como piratas
atacando indiscriminadamente mercadores, peregrinos ou
soldados perdidos. Montados em camelos e capazes de
recuar para a vastidão desértica, eles estavam além do
alcance de nosso contingente. Eles matariam ou capturariam
os desatentos. Homens foram estuprados, queimados,
castrados ou empalados e deixados no deserto para
morrerem.
Sempre fui amaldiçoado com uma imaginação fértil demais
para coisas como essas, e consegui imaginar claramente
como gargantas poderiam ser cortadas enquanto os soldados
dormiam. Escorpiões eram colocados dentro de botas e
mochilas. Cobras apareciam escondidas em jarros de comida.
Carcaças eram jogadas dentro de poços tentadores. O
suprimento não funcionava direito, os cientistas estavam
esgotados e ranzinzas, e Astiza permanecia como uma freira
recolhida dentro de um quartel. Andar no calor era como
puxar um trenó pesado. Que loucura era esta na qual eu
havia me alistado? Não progredi em nada para decifrar o que
o medalhão poderia significar. Ainda não encontrei nada
parecido em Alexandria. Então, comecei a pensar,
incomodado e insatisfeito, até chegar num ponto de
esgotamento tão grande que caí no sono.
Acordei com um solavanco. Alguém ou alguma coisa havia
caído em cima de mim! Comecei a tatear em busca de uma
arma quando reconheci o aroma de cravos e jasmim. Astiza?
Será que ela mudou de idéia? Ela estava me prendendo com
as pernas — uma coxa de pele sedosa travando cada lado do
meu peito - e, mesmo em meu estado letárgico, meu
primeiro pensamento foi: Ah, é assim que se faz. O aperto
morno de suas pernas começou a acordar outras partes do
meu corpo e seus cabelos e torso formavam uma silhueta
encantadora no escuro. Então uma nuvem se moveu o
suficiente para que a Lua iluminasse nossa janela e eu pude
ver que seus braços estavam erguidos acima de sua cabeça e
seguravam algo brilhante e afiado.
Era minha machadinha.
E ela desceu.
Eu me contorci em horror, mas ela tinha me imobilizado. A
lâmina passou perto da minha orelha e houve uma batida
seca conforme a arma atingiu o piso de madeira, que foi
seguido por um assovio. Algo morno e vivo tocou na minha
cabeça. Ela livrou a machadinha e golpeou novamente e
continuou atacando. A lâmina continuava a bater próximo a
minha orelha. Fiquei paralisado enquanto algo que parecia
couro continuava a se debater encostado no meu crânio.
Finalmente parou.
"Cobra", ela sussurrou. Ela olhou para a janela. "Beduíno."
Ela saiu de cima de mim e ficou parada tremendo um pouco.
Algum tipo de víbora foi picada em vários pedaços, pelo que
vi, e seu sangue se espalhou pelo meu travesseiro. Ela tinha a
espessura de um braço de criança e presas saindo de sua
boca. "Alguém colocou isso aqui?"
"Pela janela. Ouvi o maldito se esgueirando como uma
barata. Era covarde demais para nos encarar. Você deveria
me dar uma arma para que eu o proteja direito."
"Proteger de quê?"
"Você não sabe de nada, americano. Por que Achmed Bin
Sadr está perguntando sobre você?"
"Bin Sadr!" Ele foi o homem que entregou várias mãos e
orelhas cortadas e cuja voz parecia com a do lanterneiro em
Paris, mesmo que parecesse totalmente nonsense. "Eu não
sabia quem ele era."
"Cada pessoa em Alexandria sabe que você se tornou
inimigo dele. E ele não é um inimigo que você gostaria de
ter. Ele vagueia pelo mundo, tem um bando de assassinos e é
seguidor de Apófis."
"Quem diabos é Apófis?"
"O deus serpente do submundo que, a cada noite, tem que
ser derrotado por Rá, o deus Sol, para que o amanhecer
chegue. Ele tem legiões de seguidores como o deus demônio
Ras-al-ghul."
Pela dentadura de Washington, lá vamos nós para mais
nonsense politeísta. Será que ganhei uma lunática? "Parece
que o seu deus Sol tem um bocado de problemas com ele",
fiz graça. "Por que ele simplesmente não o pica como você
fez e acaba com isso de uma vez por todas?"
"Porque, embora Apófis possa ser derrotado, ele nunca pode
ser destruído. É assim que o mundo funciona. Todas as
coisas são eternamente dúbias, água e terra, terra e céu, Bem
e Mal, vida e morte."
Chutei a serpente para longe. "Então isso é obra de algum
tipo de culto?"
Ela balançou a cabeça. "Como você conseguiu se meter em
tanto problema tão rápido?"
"Mas eu não fiz nada para Bin Sadr. Ele é nosso aliado!"
"Ele não é aliado de ninguém além dele mesmo. Você tem
algo que ele quer."
Olhei para os pedaços do réptil. "O quê?" Claro que eu sabia,
sentindo o peso do medalhão pendendo em sua corrente.
Bin Sadr era o lanterneiro com seu cajado de cabeça de
cobra, que, de alguma forma, tinha uma identidade dupla
como pirata do deserto. Ele devia estar trabalhando para o
conde Silano na noite em que eu ganhei o medalhão. Como
ele chegou de Paris até Alexandria? Seria ele algum tipo de
capanga de Napoleão? Por que ele se importava com o
medalhão? Ele não estava do nosso lado? Fiquei meio
tentado a dar aquela coisa para o próximo que viesse atrás de
mim e acabar logo com aquilo. Mas o que me deixava
irritado era que ninguém tinha pedido educadamente. Eles
atiraram em mim, roubaram minhas botas e jogaram cobras
na minha cama.
"Deixe-me dormir no seu canto, longe das janelas", pedi à
minha protetora. "Vou deixar meu rifle carregado."
Para minha surpresa ela aceitou. Mas, em vez de deitar
comigo, ela se agachou perto do braseiro, mexeu no carvão e
jogou algumas folhas lá dentro. Uma fumaça pungente subiu.
Pelo que vi, ela estava fazendo uma pequena figura humana
de cera. Observei enquanto ela empurrava uma lasca de
madeira no queixo da figura. Eu já tinha visto a mesma coisa
nas Ilhas de Açúcar. Aquela mágica surgiu no Egito? Ela
começou a fazer marcas curiosas numa folha de papiro.
"O que você está fazendo?"
"Vá dormir. Estou lançando um feitiço."
Já que eu estava ansioso para sair de Alexandria antes que
outra cobra fosse jogada na minha cabeça, fiquei mais do que
feliz quando os cientistas me deram uma oportunidade de
partir para o Cairo mais cedo sem ter que cruzar o infernal
delta por terra. Monge e Berthollet iam fazer a jornada de
barco. Os sábios iriam navegar para o oeste cm direção à
boca do Nilo e então subir o rio até a capital.
"Venha conosco, Gage", Monge ofereceu. "Melhor navegar
do que andar. Traga seu amigo escriba também. E a garota
pode nos ajudar cozinhando para todos nós."
Usamos um chebek, um barco raso batizado como Le Cerf,
armado com quatro canhões de oito libras e comandado pelo
capitão Jacques Perree da marinha francesa. A embarcação
seria a nau capitânea desta pequena flotilha de canhoneiras e
barcos de suprimentos que seguiriam o exército rio acima.
Ao raiar do dia já estávamos a caminho e, por volta do meio-
dia, chegamos a baía de Abukir, o equivalente a um dia de
marcha a este de Alexandria. Lá a frota francesa estava
ancorada em linha de batalha para se defender contra
qualquer ressurgimento dos navios de Nelson. Era uma vista
magnífica, uma dúzia de navios de alto bordo e quatro
fragatas ancoradas como um muro inteiriço - eram cinco mil
canhões apontados em direção ao mar. Podíamos ouvir
apitos e berros dos marinheiros conforme passávamos. E
então seguimos em direção ao grande rio, navegando pelas
águas que levavam tons de marrom por causa do sol, criando
algo parecido com o Mediterrâneo, e tomando até as
constantes ondas nas bordas do rio.
Conforme o calor do dia aumentava, aprendi mais sobre as
raízes da expedição. Berthollet contou que o Egito era objeto
da fascinação da França há décadas. Selados do mundo
exterior pela Conquista Árabe em seiscentos e quarenta
depois de Cristo, suas glórias antigas eram invisíveis para a
maioria dos europeus e suas fabulosas pirâmides conhecidas
mais pelas histórias fantasiosas do que por fatos. A maioria
das pessoas numa nação do tamanho da França tinha um
conhecimento muito primário.
"Nenhum país no mundo tem uma história tão profunda
quanto o Egito", disse o químico. "Quando o historiador
grego Heródoto veio para registrar suas glórias, as pirâmides
já eram mais velhas para ele do que Jesus é para nós hoje. Os
próprios egípcios construíram grandes impérios, então
alguns colonizadores deixaram suas marcas aqui: gregos,
romanos, assírios, líbios, núbios e persas. A gênese deste
país é tão antiga que ninguém lembra. Ninguém consegue
ler os hieróglifos, então não sabemos o que as inscrições
dizem. Os egípcios atuais dizem que as ruínas foram
construídas por gigantes ou magos."
Ele continuou. Então, o Egito adormeceu até que,
recentemente, alguns mercadores franceses em Alexandria e
Cairo passaram a ser atacados pelos arrogantes mamelucos.
Os observadores otomanos em Istambul, que governaram o
Egito desde mil quinhentos e setenta e sete, pouco fizeram
para intervir. E a França também não desejava ofender os
otomanos - seu útil aliado contra a Rússia.
Então, a situação ficou em banho-maria até que Bonaparte,
com seus sonhos de glória no Oriente, encontrou Talleyrand
e seu conhecimento da geopolítica global. Em segredo, eles
montaram um esquema para "liberar" o Egito da casta
mameluca como um "favor" para o sultão em Istambul. Eles
iriam reformar um dos cantos do quintal do mundo árabe e
criar um trampolim para conter os avanços britânicos na
índia. "A potência européia que controla o Egito vai, em
longo prazo, controlar a Índia", Napoleão escreveu ao
Diretório. Havia esperança de que fosse recriado o antigo
canal que ligava o Mediterrâneo ao Mar Vermelho. O último
objetivo era fazer contato com o paxá indiano chamado
Tippoo Sahib, um francófilo que visitou Paris sob a alcunha
de Cidadão Tippoo, e cujo entretenimento palaciano incluía
um tigre mecânico que devorava uma marionete em
formato de inglês. Tippoo estava lutando contra um general
inglês chamado Wellesley no sul da índia, e a França já
havia enviado armas e conselheiros.
"A guerra na Itália se pagou e gerou uma sobra", disse
Berthollet, "e graças a Malta, essa aqui já está garantida
também. O córsego ficou popular com o Diretório por suas
batalhas gerarem lucro."
"Você ainda vê Bonaparte como italiano?"
"Com a mãe que tem. Certa vez, ele contou a história de que
ela havia desaprovado seus modos rudes com os convidados
quando ele já era grande demais para ser castigado e avançou
contra ele para puxar sua orelha. Paciência e revanche são
lições de um córsego! Um francês aprecia a vida, mas um
italiano como Bonaparte a planeja. Como os antigos
romanos, ou os bandidos da Sicília, a laia dele acredita em
famílias herméticas e leais, avareza e revanchismo. Ele é um
soldado brilhante, mas se lembra tanto do desprezo e das
humilhações que acaba esquecendo quando deve parar de
iniciar guerras. Acredito que essa seja sua fraqueza."
"Então o que você está fazendo aqui, doutor Berthollet?
Você e o resto dos eruditos, sem dúvida, não buscam glória
militar. E nem fortuna."
"Afinal de contas, você sabe alguma coisa sobre o Egito,
monsieur Gage?"
"Tem areia, camelos e sol. Além disso, muito pouco."
"Você é honesto. Nenhum de nós sabe muito sobre o berço
da civilização. Conhecemos histórias sobre vastas ruínas,
ídolos estranhos, leitura indecifrável, mas quem na Europa
viu essas coisas? Homens querem aprender. O que é o ouro
de Malta comparado a ser o primeiro a ver as glórias do Egito
antigo? Vim pela aventura do descobrimento que faz do
homem realmente imortal."
"Pelo renome?"
"Pelo reconhecimento que vai viver para sempre."
"Ou pelo conhecimento da magia antiga", completou Talma.
"É por isso que Ethan e eu fomos convidados, não é?"
"Se o medalhão de seu amigo é realmente mágico", o
químico respondeu,"não há diferença entre história e fábula,
é claro."
"E uma diferença entre mero desejo por uma jóia e a
crueldade de matar para possuí-la", Talma contrapôs. "O
americano aqui está correndo perigo desde que ganhou o
medalhão em Paris. Por quê? Justamente por não ser a chave
para a glória acadêmica. É a chave para algo mais. Se não for
o segredo da verdadeira imortalidade, então, talvez, nos leve
a um tesouro perdido."
"O que prova que tesouros geram mais problemas do que
lucros."
"A descoberta é melhor que ouro, Berthollet?", perguntei
tentando fingir desinteresse nessa coisa toda.
"O que é o ouro se não recurso para uma finalidade? Aqui
temos esta conclusão. As melhores coisas da vida não
custam nada: conhecimento, integridade, amor e beleza
natural. Olhe onde você está, entrando na boca do Nilo com
uma mulher exótica. Você é outro Marco Antonio com
outra Cleópatra! O que pode ser mais satisfatório que isso?"
Ele deitou novamente para cochilar.
Olhei para Astiza, que estava começando a entender francês,
mas parecia satisfeita em ignorar nossa conversa e observar
as pequenas casas marrons de Rosetta conforme
navegávamos. Uma mulher belíssima, sim. Mas uma que
parecia tão remota e trancafiada como os segredos do Egito.
"Fale-me sobre seu ancestral", disse de súbito em inglês.
"Quê?" Ela me olhou com alarme. Não era muito fá de
conversas casuais.
"Alexandre. Ele era macedónio como você, não?"
Ela parecia embaraçada por ser questionada por um homem
em público, mas, lentamente, acenou com a cabeça
afirmativamente — como ela estava em companhia de
homens rústicos era melhor aceitar seus modos grosseiros.
"Um egípcio por escolha assim que ele viu esta grande terra.
Nenhum homem jamais o igualou."
"E ele conquistou a Pérsia?"
"Ele marchou da Macedónia até a índia e antes que tivesse
terminado as pessoas achavam que ele era um deus. Ele
conquistou o Egito muito antes deste levante francês de
vocês e cruzou a vastidão das areias de nosso deserto para
participar da Primavera do Sol no oásis de Siwah. Lá ele
recebeu artefatos de poder mágico, o oráculo o proclamou
um deus filho de Zeus e Amon, e profetizou que ele
governaria todo o mundo."
"Deve ter sido um endosso conveniente."
"Foi a felicidade dele com a profecia que o convenceu a
fundar a grande cidade de Alexandria. Ele demarcou os
limites com cevada descascada, um hábito grego. Quando os
pássaros se amontoaram para comer a cevada, chamando a
atenção dos seguidores de Alexandre, seus videntes disseram
que era um presságio que a cidade atrairia moradores e que
ela alimentaria muitas terras. Eles estavam certos. Mas o
general macedónio não precisava de profetas."
"Não?"
"Ele era mestre de seu próprio destino. Mesmo assim ele
morreu, ou foi assassinado, antes que pudesse concluir sua
tarefa e os símbolos sagrados de Siwah desapareceram.
Assim como o próprio Alexandre. Alguns dizem que seu
corpo foi levado de volta à Macedónia, outros crêem que foi
trazido para Alexandria, mas outros dizem que Ptolomeu o
levou para um local secreto nas areias do deserto. Como seu
Jesus ascendendo ao Paraíso, ele parece ter desaparecido da
Terra. Então, talvez, ele fosse um deus, como o oráculo
havia dito. Tomando seu lugar no céu como Osíris."
Ela não era uma mera escrava ou servente. Como diabos
Astiza aprendeu tudo isso? "Ouvi falar de Osíris", eu disse.
"Que teve os membros recolocados por sua irmã Ísis."
Pela primeira vez ela olhou para mim de uma maneira que
parecia realmente entusiasmada. "Você conhece Ísis?" "Uma
deusa mãe, certo?"
"Ísis e a Virgem Maria são reflexos da mesma pessoa."
"Cristãos não ligariam para isso."
"Não? Todos os tipos de crenças e símbolos cristãos vêm dos
deuses egípcios. Ressurreição, vida após a morte, fecundação
divina, tríades, trindades, a idéia de que o homem pode ser
humano e divino, sacrifício, mesmo as asas dos anjos e as
patas e rabos dos demônios: tudo isso precede o seu Jesus
por milhares de anos. O código de seus Dez Mandamentos é
uma versão mais simples da confissão negativa que os
mortos egípcios fazem para provar sua inocência quando
morrem: 'Eu não matei.' Religião é como uma árvore. Egito
é o caule e todas as outras são ramos."
"Não é o que a Bíblia diz. Havia os falsos ídolos e o
verdadeiro deus hebreu."
"Como você é ignorante em suas próprias crenças! Já ouvi
vocês, franceses, dizerem que a cruz é o símbolo romano da
execução, mas que tipo de símbolo é esse para uma religião
baseada na esperança? A verdade é que a cruz combina o
instrumento de morte de seu salvador com nosso
instrumento de vida, a cruz ansada, nossa antiga chave para
a vida eterna. E por que não? O Egito era o país mais cristão
de todos antes dos árabes chegarem."
Pela alma de Cotton Mather ! Eu poderia espancá-la por
blasfêmia se eu não estivesse tão assombrado. Não era
apenas o fato de ela alegar tais coisas, mas a confiança casual
com a qual ela o fazia. "Nenhuma idéia bíblica pode ter
vindo do Egito", disse explosivamente.
"Pensei que os hebreus tivessem fugido do Egito e que o
jovem Jesus tenha morado aqui, não? Além disso, no final
das contas de que importa, pensei que seu general havia
garantido que este não era um exército de cristãos, certo?
Vocês são homens da ciência sem deuses, não?"
"Bem, Bonaparte adota e se desfaz de crenças como um
homem troca de casaco."
"Nossas crenças e ciências têm mais semelhanças do que os
francos podem assumir. Isis é a deusa do conhecimento,
amor e tolerância." "E Isis é a sua deusa."
"Ísis não pertence a ninguém. Sou sua servidora."
"Você realmente idolatra um velho ídolo?" Meu pastor na
Filadélfia deveria estar apopléctico a essa altura.
"Ela é mais nova que seu último suspiro, americano, tão
eterna quanto o ciclo do nascimento. Mas eu não espero que
você entenda. Tive que abandonar meu mestre no Cairo
porque ele não compreendia e ousou corromper os antigos
mistérios."
"Que mistérios?"
"Do mundo a nossa volta. Do triângulo sagrado, do quadrado
das quatro direções, do pentagrama do livre-arbítrio e do
hexagrama da harmonia. Você já leu Pitágoras?"
"Ele estudou no Egito, certo?"
"Por vinte e dois anos antes de ser levado pelo conquistador
persa Cambises para a Babilônia e finalmente fundar sua
escola na Itália. Ele ensinou o que era a unidade de todas as
religiões e povos, ensinou que o sofrimento deveria ser
encarado com bravura e que a esposa era igual a seu marido."
"Parece que ele via as coisas do seu jeito."
"Ele via as coisas do jeito dos deuses! A mensagem dos
deuses está na geometria e no espaço. O ponto geométrico
representa Deus, a linha representa o homem e a mulher, e
o triangulo é o número perfeito representando o espírito, a
alma e o corpo."
"E o quadrado?"
"As quatro direções, como eu disse. O pentagrama era a
rivalidade, o hexagrama as seis direções espaciais e o
esquadro duplo era a harmonia universal." "Acredite se
quiser, mas eu ouvi a mesma coisa de um grupo conhecido
como Maçonaria. Eles alegam ensinar como Pitágoras fez e
dizem que a régua representa precisão, o esquadro a
integridade e o malho a determinação."
Ela concordou. "Precisamente. Os deuses fazem tudo claro e
mesmo assim os homens continuam cegos! Busque a
verdade e o mundo se torna seu."
Bem, esse resto de mundo, aliás. Estávamos bem dentro do
Nilo, aquela maravilhosa via aquática onde o vento
normalmente soprava para o sul e a corrente seguia ao norte,
o que permitia o tráfego em ambas as direções.
"Você disse que fugiu do Cairo. Você é uma escrava
fugitiva?"
"E mais complicado que isso. Egípcio." Ela apontou.
"Entenda nossa terra antes de tentar entender nossa mente."
A planície achatada do interior fora de Alexandria havia
mudado para algo suntuoso, mais perto da imagem bíblica
das histórias de Moisés preso no junco. Campos verdes de
arroz, trigo, milho, açúcar e algodão formavam retângulos
brilhantemente definidos entre fileiras de imponentes
palmeiras altivas feito pilastras e pesadas como seus frutos
alaranjados e rubros. Bananeiras e plátanos se mexiam ao
sabor do vento. Búfalos da índia levantavam seus chifres
enquanto se banhavam. A freqüência das vilas de barro com
cor de chocolate aumentava e, na maioria das vezes, era
indicada pelo topo de uma minarete. Passávamos pot barcos
rápidos chamados de faluchos com seus, no máximo, dez
metros e um remo longo com estrutura suficiente para
comportar um homem que de lá lançava suas redes. O
cheiro da água do Nilo tomava conta da brisa. Nossa flotilha
de canhoneiras e barcos de suprimentos passou sem causar
nenhuma alteração. Muitos camponeses nem se deram ao
trabalho de olhar.
Lugar estranho esse aonde eu vim parar. Alexandre,
Cleópatra, árabes, mamelucos, faraós antigos, Moisés e,
agora, Bonaparte. O país todo transbordava história
incluindo o estranho medalhão que estava em meu pescoço.
Agora eu pensava sobre Astiza, que parecia ter um passado
muito mais complexo do que eu imaginava. Será que ela
poderia reconhecer alguma coisa a mais no medalhão?
"Que feitiço você fez quando estávamos em Alexandria?"
Demorou um pouco até que ela, relutantemente,
respondesse. "Um feitiço para ficarmos a salvo e que
possibilitaria um outro. E um segundo para que você
encontre sua sabedoria."
"Você vai me deixar esperto?"
"Isso parece impossível. Talvez eu possa fazer você ver." Eu
ri e ela finalmente deixou escapar um leve sorriso. Ao ouvi-
la eu estava conseguindo que ela me deixasse entrar um
pouco mais em suas defesas. Ela queria respeito, não apenas
para ela, mas para sua nação.
Naquela noite, lançamos âncora e dormimos no tombadilho
do chebek sob um vasto véu de estrelas. Eu deitei perto de
onde ela dormia. Podia ouvir a água batendo, o ranger da
madeira, e os murmúrios dos vigias.
"Fique longe de mim", ela sussurrou quando acordou, se
apertando contra a madeira.
"Quero te mostrar uma coisa."
"Aqui? Agora?" Ela tinha o mesmo tom de desconfiança que
madame Durrell usava quando nós discutíamos sobre o
pagamento do meu aluguel.
"Você é uma historiadora das verdades evidentes. Veja isto."
Entreguei o medalhão a ela. Com o brilho de uma lanterna
do tombadilho ele era apenas perceptível.
Ela sentiu com os dedos e prendeu a respiração. "Onde você
conseguiu isto?" Seus olhos abriram e seus lábios ficaram
entreabertos. "Eu ganhei num jogo de baralho em Paris."
"Ganhou de quem?"
"De um soldado francês. Supostamente, o objeto veio do
Egito. De Cleópatra, ele alegava."
"Talvez você tenha roubado desse soldado." Por que ela diria
isso?
"Não, só ganhei nas cartas. Você é a especialista em religião.
Diga-me o que sabe sobre isso."
Ela o virou na mão, estendeu os pequenos braços para
formar um 'V, esfregou o disco entre o polegar e o dedo
indicador para sentir as inscrições. "Não tenho certeza."
Foi desapontador. "É egípcio?"
Ela o segurou no alto para vê-lo com mais luz. "Dos
primórdios, se é que é mesmo. Parece primitivo,
fundamental... então é isto que o árabe quer tanto?"
"Vê todos estes buracos? O que você acha que eles são?"
Astiza o analisou por um minuto e depois o segurou pela
parte de traz e apontou para o céu. "Veja como a luz
atravessa. Certamente os buracos devem ser estrelas."
"Estrelas?"
"O sentido da vida está escrito nas estrelas, americano.
Veja!" Ela apontou para o sul em direção à estrela mais
brilhante, que subia no horizonte. "Aquela é Sírius. Que tem
ela?"
"E a estrela de fsis, a estrela do Ano Novo. Ela espera por
nós."
Capítulo Oito
"Quando o poço seca passamos a conhecer o real valor da
água", o velho Ben Franklin escreveu. Sem dúvida, a marcha
do exército francês para o Nilo foi um desastre mal
planejado. As companhias se atropelavam quando
encontravam um poço em condições e bebiam toda a água
antes que o próximo regimento chegasse. Homens
surtavam, entravam em colapso, tinham delírios e atiravam
neles mesmos. Eram atormentados por um novo fenômeno
que os sábios nomearam como miragem, na qual um ponto
distante no deserto parecia conter lagos de água brilhante. A
cavalaria avançava em carga máxima até o lugar apenas para
encontrar areia seca e, novamente, viam o "lago" no
horizonte. Era tão ilusório quanto o fim do arco-íris.
Parecia que o deserto estava brincando com os europeus.
Quando as tropas chegaram ao Nilo, dispararam feito gado
assustado, pularam no rio para beber até vomitar, mesmo
enquanto outros homens tentavam beber ao redor. Seu
destino misterioso, o fabuloso Egito, parecia tão cruel quanto
uma miragem. A falta de cantis e a falha de não ter
assegurado a posse de poços foram considerados erros
criminosos pelos generais que, por sua vez, culpavam
Napoleão, um homem difícil de aceitar qualquer culpa. "Os
franceses sempre reclamam de tudo", ele resmungava.
Mesmo assim, as críticas o atingiram já que ele sabia que
eram válidas.
Na campanha na fértil Itália, água e comida eram facilmente
obtidas durante uma marcha e as roupas do exército eram
adequadas ao clima. Aqui ele estava aprendendo a trazer
tudo com ele, mas tais lições eram dolorosas. Os nervos
ficavam à flor da pele com o calor.
O exército francês começou a marchar Nilo acima em
direção ao Cairo. Os camponeses egípcios fugiam e se
reorganizavam atrás de nós como se cruzássemos a névoa.
Assim que uma coluna se aproximava de uma vila, mulheres
e crianças levavam os animais para o deserto e os escondiam
entre as dunas e ficavam vigiando como animais numa toca.
Os homens ficavam um pouco mais para tentar esconder
comida e suas escassas ferramentas da nuvem de invasores.
Tão logo a bandeira tricolor cruzasse a borda da vila, eles
saíam correndo para o rio, montavam em feixes de papiro e
remavam para a água, onde ficavam esperando como patos
cautelosos. Divisão após divisão marcharia por suas casas
como uma longa lagarta empoeirada com uniformes azuis,
vermelhos, brancos e verdes. Portas eram chutadas,
estábulos explorados e qualquer coisa útil era levada. Então,
o exército continuava sua marcha e os camponeses
voltariam para retomar suas vidas novamente apagando
totalmente nossos rastros.
Nossa pequena frota navegava em paralelo com a força
terrestre tentando localizar suprimentos e vigiando o lado
oposto do rio. Desembarcávamos perto do quartel-general
de Napoleão todas as noites para que Monge, Berthollet e
Talma pudessem tomar notas sobre o país que
atravessávamos. Era perigoso ficar longe da proteção dos
soldados, por isso eles entrevistavam oficiais para saber sobre
animais, pássaros e vilas. Às vezes, eles os recebiam de
forma ranzinza por invejarem a posição a bordo dos barcos.
O calor era enlouquecedor e as moscas eram um tormento.
A cada novo desembarque a tensão entre os oficiais parecia
pior, já que a maioria dos suprimentos estava nos barcos ou
nas docas em Alexandria e nenhuma divisão tinha tudo de
que precisava. As tropas ficavam desconfortáveis com as
constantes e tórridas histórias de capturas e tortura e os
ataques dos franco-atiradores beduínos.
A tensão finalmente entrou em ponto de ebulição quando
um insolente grupo de inimigos conseguiu chegar perto da
tenda de Napoleão numa noite. Eles gritavam e atiravam de
seus esplêndidos corcéis árabes e vestes coloridas. Quando o
furioso general enviou os dragões da cavalaria, sob o
comando de um jovem assistente chamado Croisier para
destruí-los, os habilidosos cavaleiros egípcios brincaram
com nossas tropas e então escaparam sem perder um
homem sequer. Os pequenos cavalos do deserto pareciam
correr duas vezes mais, com a metade da água, que as
pesadas montarias européias, que ainda se recuperavam da
longa viagem pelo mar. Nosso comandante ficou com tanta
raiva e humilhou o assistente de tal maneira que Croisier
jurou morrer bravamente em batalha para compensar sua
vergonha — uma promessa que ele cumpriria em um ano.
Mas Bonaparte não perdeu sua fúria.
"Tragam-me um guerreiro de verdade!", ele gritou. "Eu
quero Bin Sadr!"
Isto deixou Dumas irado, pois ele sentiu a honra de sua
cavalaria ser insultada. Não ajudava o fato de haver poucos
cavalos e a maior parte de seus soldados continuar sem
montaria. "Você honra aquele cortador de gargantas e
insulta meus homens?"
"Quero um flanco que mantenha os beduínos longe de
minha base, não almofadinhas aristocráticos que não
consigam pegar um bandoleiro!" Os oficiais mais experientes
olhavam para ele.
Dumas não recuou. "Então espere por bons cavalos em vez
de sair correndo para o deserto sem água! E incompetência
sua, não de Croisier!"
"Você se atreve a me desafiar? Você vai ser fuzilado!"
"Vou te quebrar em dois antes que você faça isso,
baixinho..."
A discussão foi interrompida pela chegada a galope de Bin
Sadr e meia dúzia de homens vestindo turbantes que
controlaram os ímpetos dos generais. Kleber aproveitou a
chance para puxar o esquentado Dumas para trás enquanto
Napoleão lutou para se controlar. Os mamelucos estavam
nos fazendo de tolos.
"O que é, effendi"? Novamente, a parte de baixo do rosto do
árabe estava mascarada.
"Você é pago para manter os beduínos e mamelucos longe
do meu flanco", Bonaparte alfinetou. "Por que não está
fazendo isso?"
"Talvez porque você não esteja pagando conforme
prometido. Tenho uma jarra cheia de orelhas frescas, mas
nenhum ouro fresco para que eu lhe mostre. Meus homens
trabalham por dinheiro, effendi, e eles vão lutar pelos
mamelucos se o inimigo oferecer dinheiro fácil."
"Bah. Vocês estão com medo do inimigo."
"Eu os invejo! Eles têm generais que pagam conforme o
prometido!" Bonaparte olhou feio para Berthier, seu chefe
de gabinete. "Por que ele não foi pago?"
"Homens têm duas orelhas e duas mãos", Berthier disse
rapidamente. "Houve um desacordo sobre quantos ele
realmente matou."
"Você questiona minha honestidade?", o árabe bradou. "Vou
trazer suas línguas e pintos!"
"Pelo amor de Deus", Dumas suspirou. "Por que estamos
lidando com bárbaros?"
Napoleão e Berthier começaram a cochichar baixinho entre
eles sobre dinheiro.
Bin Sadr analisou o resto de nós com um olhar impaciente e,
de novo, parou em mim. Eu podia jurar que o maldito estava
olhando para a corrente em volta do meu pescoço. Encarei
de volta, suspeitando que ele tivesse colocado a cobra na
minha cama. Seu olho desviou para Astiza, com um olhar
próximo do ódio. Ela permaneceu impassível. Esse homem
poderia ser o lanterneiro que tentou me entregar em Paris?
Ou seria apenas eu sucumbindo ao medo e fantasiando como
os soldados sedentos? Na verdade, eu não tinha dado uma
boa olhada no homem na França.
"Tudo bem", nosso comandante finalmente disse.
"Pagaremos pelas mãos que você trouxe até agora. Haverá o
dobro para todos os seus homens quando conquistarmos o
Cairo. Apenas mantenha os beduínos longe daqui."
O árabe fez reverência. "Você não será mais incomodado
por aqueles chacais novamente, effendi. Vou arrancar os
olhos e fazer com que engulam suas próprias vistas. Vão ser
castrados como gado. Vou amarrar seus intestinos nos rabos
de seus cavalos e vou chicotear o animal para correr por
todo o deserto."
"Bom, bom. Faça com que a notícia se espalhe." Ao encerrar
com o árabe, ele se virou. A frustração havia passado. Ele
parecia embaraçado com sua explosão e pude notar que,
mentalmente, se punia por ter perdido o controle.
Bonaparte cometia muitos erros, mas raramente mais de
uma vez.
Mas Bin Sadr não tinha terminado. "Nossos cavalos são
rápidos, mas nossas armas são velhas, effendi. Poderia nos
ceder algumas novas, pois não?" Ele gesticulou em direção às
carabinas de cano curto que a cavalaria de Dumas carregava.
"Para o inferno com você", o cavaleiro rosnou.
"Novas?" Bonaparte repetiu. "Não, não temos de sobra."
"E quanto àquele homem com o rifle longo?" Agora ele
apontava para mim. "Eu lembro dele e do tiro nos muros de
Alexandria. Deixe-o comigo e, juntos, mandaremos os
demônios que o atacaram para o inferno."
"O americano?"
"Ele pode atirar nos que fugirem."
A idéia intrigou Napoleão, que estava procurando uma
distração. "O que você acha, Gage? Você quer cavalgar com
um xeique do deserto?"
O homem que tentou me matar, pensei, mas não disse. Eu
não queria chegar perto de Bin Sadr exceto para estrangulá-
lo, claro, antes de interrogá-lo. "Fui convidado como
estudioso, não franco-atirador, general. Meu lugar é no
barco."
"Longe do perigo?", Bin Sadr tripudiou.
"Mas não fora do alcance. Chegue perto da ribanceira
qualquer hora dessas e você vai ver o quão perto eu chego
de acertar você, lanterneiro." "Lanterneiro?" Bonaparte
perguntou.
"O americano tomou muito sol na cabeça", disse o árabe.
"Vá, fique em seu barco, pensando estar fora de perigo e,
talvez, alguém encontre nova utilidade para o seu rifle em
breve. Você vai desejar ter vindo com Achmed Bin Sadr." E,
com isso, pegando um saco de moedas de Berthier, ele se
virou e partiu galopando.
E quando o fez o tecido que cobria seu rosto se moveu
rapidamente e pude vislumbrar seu rosto. Ele tinha uma
queimadura feia, coberta por cataplasma, no mesmo lugar
onde Astiza cortou a figura de cera.
Estávamos a meio caminho do Cairo quando chegou a
notícia de que o governante mameluco Murad Bey
organizou uma força para impedir nossa passagem.
Bonaparte decidiu tomar a iniciativa. Ordens foram dadas e
tropas partiram na tarde do dia doze de julho para uma
marcha noturna de surpresa até Shubra Khit, a próxima
cidade grande às margens do Nilo. Na manhã, a aproximação
francesa surpreendeu cerca de dez mil homens do ainda
desorganizado exército egípcio. A melhor parte era formada
por mil integrantes da esplêndida cavalaria mameluca e o
resto se resumia a uma turba de camponeses fellahin
armados com pouco mais que porretes. Eles se moveram
sem saber o que fazer enquanto os franceses formavam
fileiras de combate. Por um momento, pensei que a massa
recuaria sem luta. Então, eles conseguiram algum
encorajamento — víamos seus líderes apontando para o Nilo
— e também se prepararam para a batalha.
Fiquei com o camarote especial sentado no Le Cerf, que
estava ancorado. Conforme um Sol dourado nascia no leste,
assistimos da água a banda do exército começar com a
Marseillaise, cujas notas flutuavam pelo Nilo. Era um som
que fazia as tropas sentirem calafrios e, sob sua inspiração, os
franceses chegariam perto de conquistar o mundo. A
eficiência com que os soldados montavam seus quadrados
espinhentos aumentou impressionantemente. Os estandartes
dos regimentos tremulavam com a brisa matinal.
Não é uma formação fácil de se aperfeiçoar e mais difícil
ainda de ser mantida durante uma carga inimiga — quanto
cada homem está olhando apenas em frente e confiando
plenamente que o homem de trás manterá a posição. Há
uma tendência natural de se mover para trás, o que pode
fazer toda a formação entrar em colapso, ou dos medrosos
largarem suas armas. Sargentos e os veteranos mais durões
formavam a retaguarda para garantir que os homens da
frente não fraquejassem. Entretanto, um quadrado firme é
virtualmente inexpugnável. A cavalaria mameluca poderia
circular para encontrar um ponto fraco e não encontraria.
As formações francesas claramente confundiam o inimigo.
Parecia que a batalha seria outra demonstração
desbalanceada do poder de fogo europeu contra a coragem
medieval dos árabes. Esperamos, bebericando chá de menta
egípcia, enquanto o céu da manhã passava de róseo a azul.
Então, ouvimos tiros de aviso e velas apareceram na curva
do rio. Gritos de triunfo vieram dos mamelucos na praia.
Ficamos inquietos no tombadilho enquanto os inimigos
desciam o rio. O Nilo trazia uma armada de barcos egípcios
vindos do Cairo com suas latinas preenchendo o horizonte
com um varal cheio de roupa. Bandeiras islâmicas e
mamelucas tremulavam em cada mastro e dos tombadilhos
repletos de soldados e canhões veio um grande clamor com
trombetas, tambores e cornetas. Era esse o outro uso para
meu rifle a que Bin Sadr se referia? Como ele sabia?
A estratégia do inimigo era óbvia. Eles queriam destruir
nossa frota e derrotar o exército de Bonaparte flanqueando
pelo rio.
Joguei meu chá para o lado e conferi a munição de meu rifle.
Eu me sentia encurralado e exposto na água. No final das
contas, eu não era mais um espectador.
O capitão Perree começou a dar ordens de levantar âncora
enquanto os marinheiros colocavam os canhões em posição.
Talma pegou seu caderno e parecia pálido. Monge e
Berthollet agarraram as amarras e correram até a amurada
para olhar, como se estivéssemos numa regata. Por alguns
minutos as duas frotas se aproximaram com certa graça,
como grandes cisnes deslizando. Então veio uma batida seca,
uma nuvem de fumaça na proa da nau capitânea mameluca e
algo passou zunindo no ar criando um gêiser de água verde
perto de nossa popa.
"Não vamos conversar antes?", perguntei levemente com a
voz mais instável do que eu gostaria.
Como resposta, a linha de frente de toda a flotilha egípcia
trovejou conforme seus canhões atiravam e o rio parecia se
levantar. Esguichos de água surgiram por todos os lados
deixando todos molhados com sua garoa. Uma bala atingiu
em cheio uma canhoneira à nossa direita fazendo uma
chuva de destroços. Gritos vinham da água. Havia aquele
estranho som de água sendo esguichada com os tiros
passando e buracos abertos cm nossa vela que pareciam
formar uma expressão de surpresa.
"Acho que as negociações acabaram", Talma disse
rapidamente enquanto se apertava contra uma roda fazendo
notas com um dos novos lápis de Conte. "Isso vai render um
boletim empolgante." Seus dedos mostravam sua tremedeira.
"Os marinheiros parecem consideravelmente mais precisos
que seus camaradas em Alexandria", Monge pontuou
admirado pulando do cordame. Ele se mantinha
imperturbável como se assistisse a uma demonstração de
canhões numa fundição.
"Os marujos otomanos são gregos!", Astiza alertou,
reconhecendo seus compatriotas por suas roupas. "Eles
servem o regente no Cairo. Agora vocês vão ter uma luta!"
Os homens de Perree começaram a atirar de volta, mas era
muito difícil navegar contra a corrente e conseguir uma
linha de tiro adequada. Sem contar o fato de termos
claramente menor poder de fogo. Mesmo estufando nossas
velas para evitar contato rápido com o inimigo, a frota rival
se aproximava inevitavelmente. Olhei para a costa. O
começo deste duelo naval aparentemente foi o sinal para os
mamelucos em terra. Eles brandiam suas lanças e avançaram
contra as baionetas galopando direto para a linha de tiro
francesa. Os cavalos partiam para cima dos quadrados como
ondas contra uma costa rochosa.
De repente, houve um enorme bang, perdi o contato com a
madeira e Astiza e eu fomos jogados para o lado. Em
circunstâncias normais eu teria apreciado o momento de
inesperada intimidade com ela, mas ele tinha sido causado
por uma bala de canhão que atingiu nosso casco. Quando
rolamos para o lado e nos separamos, eu estava enjoado. O
tiro percorreu o convés principal estraçalhando dois de
nossos artilheiros e borrifando a parte frontal do navio com
sangue. Farpas feriram vários outros homens, incluindo
Perree, e nossa força diminuía enquanto a dos árabes parecia
aumentar.
"Jornalista!" o capitão gritou para Talma. "Pare de escrever e
segure o leme!"
Talma ficou branco. "Eu?"
"Preciso amarrar meu braço e manejar o canhão!"
Nosso escriba correu para obedecer, ao mesmo tempo
empolgado e em pânico. "Para onde?"
"Em direção ao inimigo!"
"Venha, Claude Louis!", Monge gritou para Berthollet
enquanto o matemático ia para a frente assumir outra arma
abandonada. "É hora de colocarmos nossa ciência em uso!
Gage, comece a usar o seu rifle se você quiser viver!" Meu
Deus, o cientista tinha mais de cinqüenta anos e estava
determinado a vencer a batalha por conta própria! Ele e
Berthollet assumiram o canhão de proa. Nesse meio tempo,
finalmente atirei e um marujo inimigo caiu de seu cordame.
Uma névoa de pólvora dos canhões chegou até nós. Os
barcos árabes deslizavam na escuridão. Quanto tempo até
sermos abordados e cortados em fatias pelas cimitarras?
Notei que Astiza havia engatinhado até a frente para ajudar
os cientistas a carregarem o canhão. Seu instinto de auto-
preservação tinha, aparentemente, sobreposto a admiração
que ela tinha pela perícia de artilharia dos gregos. O próprio
Berthollet carregou o primeiro tiro e agora Monge fazia
mira.
"Fogo!"
O canhão soltou uma lingüeta de fogo. Monge correu para o
mastro frontal e ficou na ponta dos pés para conferir sua
pontaria, e desceu desapontado. O tiro errou o alvo.
"Precisamos de coordenadas para calcular a distância precisa,
Claude Louis", ele resmungou, "ou vamos ficar
desperdiçando pólvora e balas." Ele deu um tapinha nas
costas de Astiza. "Recarregue!"
Mirei meu rifle novamente com bastante cuidado. Desta
vez, um capitão mameluco sumiu de vista. Uma chuva de
balas veio em resposta. Recarreguei. Suando.
"Que droga, Talma, mantenha o curso!" Monge gritou.
O escriba estava controlando o leme com pouca
determinação. A frota otomana estava chegando cada vez
mais perto e os marujos inimigos se amontoavam na proa
prontos para a abordagem.
Os dentistas, pelo que vi, estavam calculando coordenadas
em pontos de referencia e rabiscando linhas de intersecção
para conseguir a distancia estimada para a nau capitanea
inimiga. A água continuava a jorrar como geiseres por todos
os lados. Pedaços de destroços cruzavam o ar.
Mirei novamente e atirei no artilheiro grego otomano
acertando o cérebro, e corri para a proa. "Por que vocês não
atiram?"
"Silêncio!", Berthollet gritou. "Precisamos de tempo para
checar os cálculos!" Os dois cientistas estavam elevando a
arma, mirando tão precisamente quanto um instrumento de
medição.
"Mais um grau", Monge cochichou. "Agora!"
O canhão trovejou novamente, sua bola saiu gritando e pude
seguir seu rastro e, então, ela atingiu a nau capitanea
mameluca perfeitamente no meio fazendo um buraco nas
entranhas do barco. Foi uma maravilha. Por Thor, os dois
estudiosos acertaram o alvo melhor que os atiradores
treinados.
"Viva a matemática!"
Um segundo depois e então toda a embarcação explodiu.
Aparentemente, os cientistas conseguiram um tiro certeiro
no arsenal. Ouvimos um barulho imenso vindo de uma
nuvem de pedaços de madeira, canhões quebrados e partes
de corpos humanos levantando vôo e, depois, tocando a
opaca superfície do Nilo. O golpe de ar fez nosso barco se
movimentar sem rumo e a fumaça turvou o céu azul do
Egito na forma de um grande cogumelo. E, então, havia
apenas a água se movendo onde antes esteve a nau árabe.
Era como se tivesse sumido por mágica. Os tiros dos
muçulmanos cessaram imediatamente.
Ouvimos o lamento vindo dos barcos menores da flotilha
enquanto viravam para subir novamente o rio. No mesmo
momento, a cavalaria mameluca, que formava sua segunda
carga - a primeira falhou -, repentinamente quebrou a
formação e bateu em retirada para o sul com este sinal
aparente da onipotência francesa. Em minutos, o que era
uma violenta batalha em terra e mar se transformou numa
fuga desordenada. Com apenas um tiro bem colocado, a
batalha de Shubra Khit foi vencida e o ferido Perree foi
promovido a almirante de retaguarda.
E eu, por associação, era um herói.
Quando Perree desembarcou para receber os cumprimentos
de Napoleão, ele, generosamente, convidou os dois
cientistas, Taima, e cu, concedendonos crédito total pelo
tiro decisivo. A precisão de Monge foi uma maravilha.
Mesmo com a experiência grega, o novo almirante, mais
tarde, calculou que as duas frotas trocaram mil e quinhentos
tiros de canhão em meia hora, e que sua flotilha contabilizou
apenas seis mortos e vinte feridos.
Esse era o reflexo do estado da artilharia egípcia, ou das
outras nações em geral, perto do final do século XVII.
Disparos de canhão e mosquetes eram tão imprecisos que
um homem corajoso podia ficar na frente da linha de tiro e
ter uma boa chance de conseguir sobreviver. Os homens
atiravam muito cedo. Atiravam cegados pela fumaça.
Recarregavam em pânico e esqueciam de limpar as cargas,
deixando uma bala encavalada na outra, de forma que as
armas nem chegavam a atirar e eles só percebiam quando o
mosquete explodia. Os soldados atiravam nas mãos e orelhas
dos homens das linhas à frente, estouravam tímpanos, e
esfaqueavam uns aos outros quando encaixavam as
baionetas. Bonaparte me disse que pelo menos um por cento
das baixas de batalha era causado pelos próprios soldados.
Por isso os uniformes são tão brilhantes: para impedir que
amigos matem uns aos outros.
Um dia, rifles caros como o meu vão mudar tudo isso,
espero, e a guerra vai evoluir em algo como homens
rastejando na lama em busca de cobertura. Qual a glória no
assassinato? Pensei em como seria uma guerra na qual os
cientistas fizessem todos os cálculos e cada bomba e bala
atingissem seu alvo. Mas isso, é claro, é apenas uma idéia
boba de algo que vai ser sempre impossível.
Enquanto Monge e Berthollet foram os homens que
manejaram a arma decisiva, eu fui aplaudido por ter lutado
com fervor pela França. "Você tem o espírito de
Yorktown!", Napoleão parabenizou, batendo em minhas
costas. Novamente, a presença de Astiza aumentou minha
reputação. Como todo bom soldado francês eu tinha uma
mulher atraente e, mais ainda, uma com a disposição e
vontade para carregar um tiro de canhão. Eu me tornei um
deles, enquanto ela usava seu conhecimento ou magia — no
Egito, os dois pareciam ser a mesma coisa — para ajudar os
feridos. Os machos se juntaram a Napoleão para um jantar
em sua tenda.
Nosso general estava de bom humor por causa do resultado
da peleja, que serviu tanto a ele quanto a seu exército. O
Egito podia ser alienígena, mas a França seria sua dona.
Agora a mente de Bonaparte estava cheia de planos para o
futuro, mesmo ainda estando a mais de mil e seiscentos
quilômetros de distância do Cairo.
"Minha campanha não é de conquista, mas de matrimónio",
ele proclamou enquanto comíamos frango que seus
assistentes encontraram em Shubra Khit e os assaram nas
varetas de recarga de seus mosquetes. "A França tem um
destino no leste, assim como sua jovem nação, Gage, tem no
oeste. Enquanto os Estados Unidos levam a civilização aos
selvagens vermelhos, nós vamos reformar os muçulmanos
com idéias ocidentais. Vamos trazer moinhos de vento,
canais, fábricas, diques, estradas e carruagens para o
sonolento Egito. Você e eu somos revolucionários, sim, mas
eu também sou um construtor. Eu quero criar, não destruir."
Eu acho que ele realmente acreditava nisso, assim como ele
acreditava em outras mil coisas sobre ele mesmo, muitas
delas contraditórias. Ele tinha o intelecto e a ambição de
doze homens, e era um camaleão que tentava comportar
todas elas.
"Estas pessoas são muçulmanas", eu chamei a atenção. "Eles
não vão mudar. Eles lutam contra os cristãos há séculos."
"Eu também sou muçulmano, Gage, se há um único Deus e
cada religião é apenas um aspecto de uma verdade central. É
isso que devemos explicar a estas pessoas, que somos todos
irmãos sob Alá, Jeová, Yahweh, ou qualquer outro. França e
Egito vão se unir, uma vez que os mulas vejam que somos
seus irmãos. Religião? É uma ferramenta, como medalhas ou
pagamento extra. Nada inspira tão bem como a fé sem
evidências reais."
Monge riu. "Sem evidências? Sou um cientista, general, e
Deus pareceu bem evidente e real na hora em que as balas
de canhão começaram a passar por nós."
"Comprovado ou desejado, como uma criança pede por sua
mãe? Quem sabe? A vida é curta e nenhuma de nossas
perguntas mais profundas é jamais respondida. Então, eu
vivo para a posteridade: morte não é nada, mas viver sem
glória é morrer todos os dias. Lembrei-me da história de um
duelista italiano que lutou quatorze vezes para defender sua
alegação de que o poeta Aristo era melhor que o poeta Tasio.
Em seu leito de morte, o homem confessou que não leu
nenhum dos dois." Bonaparte riu. "Aquilo é viver!"
"Não, general", o balonista Conte respondeu, dando um
tapinha em seu copo de vinho. "Isto é viver."
"Ah, eu aprecio uma boa taça, um belo cavalo, e uma
mulher maravilhosa. Veja o nosso amigo americano aqui.
Ele salvou esta bela macedónica, está na tenda do
comandante e prestes a compartilhar das riquezas do Cairo.
Ele é um oportunista como eu. Não pensem que não sinto
falta da minha mulher, que é uma pequena bruxa gananciosa
com uma das mais belas bucetas que eu já vi, uma mulher
tão sedutora que trepei com ela uma vez sem perceber que
seu cachorrinho estava mordendo minha bunda!" Ele
gargalhou por lembrar. "O prazer é raro! Mas é a história que
dura e nenhum lugar tem mais história que o Egito. Você vai
registrar isso para mim, certo Talma?"
"Escritores prosperam com seus temas, general."
"Vou dar aos autores temas dignos de seus talentos."
Talma levantou seu copo. "Heróis vendem livros."
"E livros fazem heróis."
Todos brindamos, a que exatamente, eu não sei dizer. "Você
tem muita ambição, general", eu disse.
"Sucesso é a substância do desejo. O primeiro passo para a
grandeza é decidir ser grande. Os homens vão seguir."
"Seguir o senhor até aonde, general?", Kleber perguntou
com genialidade.
"Para todos os lugares." Ele olhou um pouco para cada um de
nós. Seu semblante era intenso. "Todos os lugares."
Depois do jantar, eu fiz uma pausa para me despedir de
Monge e Berthollet. Eu estava cheio de barcos,
especialmente por ter visto um explodir. Talma e Astiza
também queriam ficar em terra firme. Dissemos um até logo
temporário aos dois cientistas sob uma noite repleta por
incontáveis estrelas.
"Bonaparte é cínico, mas sedutor", eu pontuei. "Não há
como ouvir seus sonhos sem ser afetado por eles."
Monge concordou. "Aquele ali é um cometa. Se não for
morto, vai deixar uma marca no mundo. E em todos nós."
"Sempre admire, mas nunca confie nele", Berthollet alertou.
"Estamos todos pendurados pela cauda de um tigre,
monsieur Gage, torcendo para não sermos devorados."
"Com certeza ele não vai comer sua própria espécie, meu
amigo químico."
"Mas o que é sua própria espécie? Se ele não acredita muito
em Deus, vai acreditar muito menos em nós, que somos
reais. Ninguém é real para Napoleão exceto Napoleão."
"Isso parece cínico demais!'
"Será? Na Itália ele mandou um grupo de seus soldados para
um combate violento com os austríacos que causou a morte
de muitos deles."
"Isso é guerra, não é?" Lembrei dos comentários de
Bonaparte na praia.
"Não quando não há necessidade militar do combate, nem
das mortes. A bela mademoiselle Thurreau visitava Paris e
Bonaparte estava ansioso para demonstrar seu poder e trepar
com ela." Berthollet colocou a mão em meu braço. "Fico
feliz que tenha se juntado a nós, Gage, você está se
mostrando bravo e bastante útil. Marche com nosso jovem
general e irá longe, como ele prometeu. Mas nunca se
esqueça de que os interesses de Napoleão são dele, não os
seus."
Esperava que o restante de nossa jornada até o Cairo fosse
um passeio por avenidas rodeadas por palmeiras esverdeadas
e plantações de melão irrigadas. Em vez disso, para evitar as
curvas do rio e as passagens estreitas pelas vilas, o exército
francês deixou o Nilo a poucas milhas a leste e voltou a
enfrentar o deserto e as fazendas secas novamente,
cruzando lama ressecada pelo sol e canais de irrigação. O
vale aluvial — que o Nilo alagava todo ano — provocou uma
nuvem de poeira seca que transformou nossa força numa
horda de homens empoeirados, marchando para o sul com
os pés cheios de bolhas.
O calor no meio de julho normalmente passava dos quarenta
graus. A areia voava do topo das dunas. Homens começaram
a sofrer de cegueira temporária por causa do brilho
incessante. O sol era tão impetuoso que precisávamos en-
rolar as mãos para pegar uma pedra ou tocar o cano de um
canhão.
Não ajudava o fato de Bonaparte — ainda com medo de um
ataque britânico a sua retaguarda ou uma resistência mais
organizada na vanguarda - repreendia seus oficiais a cada
pausa ou atraso. Enquanto eles focavam na marcha atual, sua
mente sempre estava no cenário mais amplo,
acompanhando o calendário e imaginando onde,
estrategicamente, estaria a frota inglesa a caminho do aliado
Tippoo, na Índia. Ele tentou observar todo o Egito com seus
olhos. O genial anfitrião que vimos depois da batalha do rio,
uma vez mais, se transformou no tirano ansioso, galopando
de um ponto a outro pedindo mais velocidade. "Quanto mais
rápido, menos sangue derramamos!", ele explicava.
Como resultado, todos os generais estavam suados, sujos, e
freqüentemente xingando uns aos outros. Os soldados
estavam deprimidos por causa das brigas e desolação da terra
que eles vieram conquistar. Muitos jogavam seu
equipamento fora para não carregá-lo. Tantos outros
cometeram suicídio. Astiza e eu passamos por dois corpos
deixados pelo caminho já que todo mundo estava com
pressa demais para enterrá-los. Apenas os beduínos em
nosso encalço desencorajavam os homens a desertarem.
Nossa hoste de homens, cavalos, burros, armas, carroças,
camelos, pedintes e seguidores de acampamentos fluía em
direção ao Cairo como uma flecha de poeira. Quando
paramos para descansar nas fazendas, melados de suor, nossa
única diversão era atirar pedras nos numerosos ratos da área.
Na borda do deserto, homens atiravam em cobras e
brincavam com escorpiões atiçando os insetos para lutarem
uns com os outros. Eles aprenderam que a picada do
escorpião não era tão mortal quando imaginavam a
princípio, e que esmagar o bicho contra o ferrão liberava
uma gosma que servia como um bálsamo para aliviar a dor e
acelerar a cura.
Não chovia, nunca, e raramente aparecia uma nuvem. De
noite, não fazíamos mais que nos espalhar. Todo mundo
simplesmente caía na seqüência em que marchava e boa
parte era imediatamente atacada por moscas e mosquitos-
pólvora . Comemos comida fria já que havia pouca madeira
para usar como combustível. A noite esfriava até o alvorecer
e acordávamos molhados com o orvalho. Ninguém
descansava por completo. O Sol voltava a se levantar com
toda a força e logo estávamos assando novamente. Notei que
Astiza deitava bem perto de mim conforme a marcha
prosseguia, mas nós dois estávamos tão debilitados, sujos e
expostos no meio dessa horda que não havia nada de
romântico em sua decisão. Simplesmente buscávamos o
calor um do outro durante a noite e reclamávamos das
moscas e do sol no meio do dia.
Finalmente, o exército pode descansar por dois dias em
Wardan. Os homens se lavaram, dormiram, pilharam e
fizeram trocas por comida. Mais uma vez, Astiza provou seu
valor ao ser capaz de conversar com os camponeses e
conseguir mantimentos. Ela foi tão bem-sucedida que fui
capaz de abastecer alguns dos oficiais do quartel-general de
Napoleão com pão e frutas.
"Você está sustentando os invasores como os hebreus foram
sustentados pelo maná que caia do céu", tentei brincar com
ela.
"Não vou matar soldados comuns de fome por causa das
ilusões de seu comandante", ela devolveu. "Além disso,
alimentados ou famintos, vocês todos vão embora logo."
"Você não acha que os franceses podem vencer os
mamelucos?"
"Eu não acho que eles possam vencer o deserto. Olhe para
todos vocês, com seus uniformes pesados, botas quentes e
pele rosada. Existe alguém, além de seu general louco, que
não se arrepende de ter vindo até aqui? Estes soldados vão
partir por conta própria, logo logo."
As previsões dela estavam começando a me incomodar. Ela
era uma cativa poupada por minha bondade, afinal de
contas, e era hora de repreendê-la. "Astiza, poderíamos tê-la
matado como assassina em Alexandria. Em vez disso, eu te
salvei. Podemos deixar de ser mestre e serva, ou invasor e
egípcia, e sermos amigos?"
"Amiga de quem? Um estrangeiro em seu próprio exército?
Aliado de um oportunista militar? Um americano que não é
nem cientista nem soldado?"
"Você viu meu medalhão. Ele é a chave para alguma coisa
que eu vou descobrir."
"Mas você quer essa chave sem entendê-la. Você quer
conhecimento sem estudo. Pagamento sem trabalho."
"Eu encaro isso como um trabalho muito duro."
"Você é um parasita saqueando outra cultura. Eu quero um
amigo que acredite em algo. Nele mesmo para começar. E
coisas maiores do que ele."
Bem, isso era insolência! "Sou um americano que acredita
em todos os tipos de coisas! Você deveria ler nossa
Declaração de Independência! E eu não controlo o mundo.
Só tento fazer minha vida nele."
"Não. O que um indivíduo faz controla o mundo. A guerra
nos uniu, monsieur Ethan Gage, e você não é um homem
totalmente desprezível. Mas companheirismo não é amizade
verdadeira. Primeiro você tem que decidir por que está no
Egito, o que você pretende fazer com este seu medalhão e
qual sua verdadeira causa, aí então vamos ser amigos."
Bom. Insolente demais para a escrava de um mercador,
pensei. "E vamos ser amigos quando você me reconhecer
como seu mestre a aceitar seu novo destino!"
"Que tarefa deixei de fazer? Para onde deixei de te
acompanhar?"
Mulheres! Fiquei sem resposta. Desta vez, dormimos à
distância de um braço e minha mente me manteve acordado
até depois da meia-noite. O que foi muito bom, já que
escapei por pouco de um burro perdido que quase pisou na
minha cabeça.
Um dia depois do ano novo egípcio, em vinte de julho na
vila de Omm-Dinar, Napoleão finalmente recebeu a
informação sobre a disposição das defesas do Cairo, agora há
apenas vinte e nove quilômetros de distância. Os defensores
cometeram a tolice de separar suas forças. Murad Bey
liderava o grosso do exército mameluco em nosso próprio
lado oeste do rio, mas o invejoso Ibrahim Bey manteve uma
boa parte das tropas no leste. Era a oportunidade que nosso
general estava esperando. A ordem para marchar veio duas
horas depois da meia-noite. Gritos e chutes de oficiais e
sargentos evitaram qualquer atraso.
Como uma grande fera levantando de sua caverna, a força
expedicionária francesa se espreguiçou, levantou e marchou
no escuro para o sul com uma súbita expectativa que me
lembrou dos arrepios que eu sentia ao demonstrar a
eletricidade de Franklin. Esta seria uma grande batalha e o
dia seguinte testemunharia a destruição do principal exército
mameluco ou a nossa debandada. A despeito do discurso de
Astiza sobre controlar o mundo, senti ter tanta influência do
meu destino quanto uma folha seguindo a corrente.
A manhã chegou escarlate, com neblina nos juncos do Nilo.
Bonaparte nos acordou cedo, ansioso para esmagar os
mamelucos antes que eles juntassem suas forças, ou pior,
dispersassem para o deserto. Notei que ele exibia a carranca
mais intensa até aquele momento na expedição - não apenas
empolgado com a batalha, mas totalmente obcecado por ela.
Um capitão fez uma pequena objeção e Napoleão respondeu
bruscamente como um canhão. Seu humor deixou os
soldados apreensivos. Nosso comandante estaria preocupado
com a batalha? Se estivesse, todos deveríamos ficar
preocupados também. Ninguém dormiu o suficiente.
Podíamos ver outra grande cortina de poeira no horizonte
onde os mamelucos e sua infantaria, se reuniam.
Foi durante uma rápida parada na vila que eu descobri a
razão para o tom sombrio do general. Foi por sorte que um
dos assistentes do general, um bravo jovem soldado
chamado Jean-Andoche Junot, desceu de seu cavalo para
beber enquanto eu fazia o mesmo.
"O general parece muito impaciente para a batalha", eu disse.
"Eu sabia que essa luta chegaria e que a velocidade é
fundamental na guerra, mas acordar no meio da noite
parece, de certa forma, pouco civilizado."
"Fique longe dele", o tenente me alertou rapidamente. "Ele
ficou perigoso depois da noite passada."
"Vocês estavam bebendo? Apostando ou o quê?"
"Há poucas semanas, ele me pediu para fazer algumas
perguntas discretas por causa de rumores. Recentemente,
recebi algumas cartas interceptadas provando que Josefina
está tendo um caso amoroso, um segredo conhecido por
todos, menos pelo nosso general. Noite passada, pouco
depois da notícia do posicionamento mameluco, ele exigiu
saber o que eu havia descoberto." "Ela o traiu?"
"Ela está apaixonada por um almofadinha chamado
Hippolyte Charles, um assistente do general Leclere na
França. A mulher estava traindo Bonaparte desde o dia em
que se casaram, mas ele estava cego para a infidelidade já
que seu amor por ela é insano. Sua inveja é inacreditável e
sua fúria na noite passada foi vulcânica. Achei que ele fosse
atirar em mim. Ele parecia maluco, batendo na cabeça com
seus punhos. Você sabe o que é ser traído pela pessoa que
você ama incondicionalmente? Ele me disse que as emoções
não existiam mais, o idealismo acabou, e que nada restava a
ele senão a ambição."
"Tudo isso por causa de um caso? Um francês?"
"Ele a ama tão desesperadamente e se odeia por esse amor.
Ele é o mais independente e solitário dos homens
justamente por ser cativo daquela rameira com quem ele
casou. Ele ordenou esta marcha imediatamente e jurou
repetidas vezes que sua felicidade havia acabado e que, antes
do sol se pôr, ele destruiria os exércitos egípcios até o último
homem. Digo uma coisa, monsieur Gage, estamos sendo
levados à batalha por um general ensandecido pela raiva."
Aquilo não parecia nada bom. Se há uma coisa que uma
pessoa espera de um comandante é ter cabeça fria. Engoli
seco. "A hora não era das melhores, Junot."
O tenente subiu novamente em seu cavalo. "Não tive
escolha e meu relatório não deveria ter causado surpresa. Eu
conheço a mente dele. Ele vai tirar a distração da frente
quando a batalha começar. Você vai ver." Ele acenou, como
se precisasse se convencer. "Só estou feliz por não estar do
outro lado."
Capítulo Nove
Eram duas horas da tarde, o período mais quente do dia,
quando o exército francês começou a formar quadrados para
a Batalha das Pirâmides. Seria mais correto chamar de
Batalha de Imbaba, a cidade mais próxima, mas as pirâmides
no horizonte renderam um nome poético nos relatos de
Talma. As plantações de melão de Imbaba foram
rapidamente tomadas por soldados que tentavam matar a
sede antes do combate. Uma das minhas memórias é o suco
babado nos uniformes, conforme os regimentos formavam
suas fileiras.
As pirâmides ainda distavam vinte e quatro quilômetros, mas
chamavam a atenção com sua geometria perfeita. Daquela
distância elas pareciam topos de prismas colossais,
enterrados até o pescoço na areia. Ficamos todos empolga-
dos ao vê-las, tão fabulosas e gigantescas, as maiores
estruturas já construídas. Vivant Denon rabiscava
alucinadamente, tentando encaixar o cenário num caderno e
lutando para captar o ambiente do local.
Imagine o magnífico conjunto que formava a cena. Nosso
flanco esquerdo corria ao longo do Nilo, diminuindo a
marcha ante as águas que logo começariam a inundar a
região, mas, mesmo assim, num azul majestoso que refletia o
brilho do céu. Além disso, havia o verde viçoso dos campos
irrigados e das palmeiras que o margeavam. Um pedaço do
Éden. A nossa direita, estavam as dunas, intermináveis como
ondas no oceano. E, finalmente, à distância estavam as
pirâmides - aquelas estruturas míticas que pareciam
pertencer a um mundo diferente, fruto de uma civilização
que mal podíamos imaginar — subindo em direção a seus
picos perfeitos. As pirâmides! Já as tinha visto em figuras
maçónicas, angulares e íngremes, com um olho que tudo vê
no topo. Agora elas eram reais, mais achatadas do que eu
imaginava, oscilando como uma miragem.
Adicione dezenas de milhares de homens uniformizados em
formações cerradas, a massiva cavalaria mameluca, os
pesados camelos, os burros barulhentos e os oficiais
franceses a galope - já roucos de tanto gritar suas ordens. Eu
estava preso num ambiente tão exótico que parecia ter sido
transportado para um sonho. Talma se perdia numa confusão
de folhas de papel enquanto escrevia vorazmente tentando
registrar tudo. Denon resmungando para si mesmo que
todos deveríamos posar para um retrato antes da batalha.
"Espere. Espere!"
Uma resplandecente hoste coberta por uma bela camada de
poeira se formava contra o exército de Bonaparte. Ela
parecia ser duas ou três vezes maior que nossos vinte e
cinco mil homens. Se os generais mamelucos fossem um
pouco melhores, provavelmente seríamos totalmente
dominados. Mas, de maneira tola, o exército árabe foi
dividido pelo poderoso rio. Sua infantaria, desta vez formada
por soldados otomanos da Albânia, estava muito recuada
para ataque imediato.
A fraqueza fatal dos mamelucos não era apenas o fato de não
confiarem uns nos outros, mas também de não confiarem
em nenhum otomano que não fosse de sua estirpe. A
artilharia estava mal posicionada em nosso distante flanco
esquerdo. Especialmente por causa da incompetência
inimiga, os soldados franceses estavam confiantes no
resultado positivo. "Vejam como eles são idiotas!", os
veteranos diziam para seus camaradas. "Eles não sabem nada
de guerra!"
A cidade do Cairo brilhava no horizonte, com seus duzentos
e cinqüenta mil habitantes e repleta de suas minaretes
impossivelmente finas. Encontraríamos riqueza lá? Minha
boca estava seca e minha mente entorpecida pela sensação.
Novamente, o coração do exército árabe eram os mamelucos
montados que agora tinham a força de dez mil homens. Seus
cavalos eram soberbos corcéis árabes otimamente
encouraçados. Seus cavaleiros formavam um caleidoscópio
de roupas e sedas, com turbantes carregando penas de garças
e pavões, e capacetes banhados a ouro. Eles estavam
armados com peças dignas de museus. Mosquetes antigos
tinham jóias incrustadas e madrepérola. Cimitarras, lanças,
chuços, machados de batalha, maças e adagas reluziam.
Mosquetes extras e pistolas eram colocados nas selas ou
cintos, e cada mameluco era seguido por dois ou três servos
que carregavam, a pé, mais armas e munição. Esses escravos
correriam ao lado de seus mestres para entregar armas
prontas aos mamelucos, que não precisavam parar para
recarregar. Os cavalos empinavam e bufavam como
garanhões de circo. Suas cabeças demonstravam impaciência
com a iminente carga. Nenhum exército havia resistido a
eles durante os últimos quinhentos anos.
Os camelos e seus beduínos vestidos de branco espreitavam
pelas bordas da formação egípcia, mascarados como
bandidos e rondando feito lobos. Eles esperavam para cair
sobre nossas fileiras para matar e saquear quando nossa
formação fosse quebrada pelos mamelucos. Nosso próprio
lobo, Bin Sadr, estava à espreita da mesma maneira que eles
nos caçavam. Vestidos de preto, seus cortadores de garganta
lambiam os beiços enquanto esperavam nas dunas. Além de
emboscar os beduínos, os egípcios avançariam para saquear
os mamelucos mortos antes que os soldados franceses
chegassem até suas vítimas.
Os egípcios amarraram pequenos canhões nas costas dos
camelos. Os animais urravam e bufavam enquanto trotavam
sob os gritos de comando de seus ansiosos treinadores, de
maneira tão inconstante que a arma se mostraria inútil. O rio
foi novamente tomado pelos feluccas da frota muçulmana,
que, por sua vez, estavam abarrotados com marinheiros
barulhentos. Mais uma vez, ouvimos o som de tambores,
cornetas, trompas de caça e tamborins, além de ver um mar
de bandeiras, estandartes e flâmulas flutuando sobre a
formação como um gigantesco desfile de carnaval. As
bandas francesas não deixaram por menos e deram o troco
enquanto a infantaria européia se posicionava de maneira
débil para a prática de tiro ao alvo e fixava baionetas. O Sol
brilhava em cada uma daquelas pontas mortais. Estandartes
de regimentos carregavam símbolos de vitórias passadas.
Tambores ecoavam para transmitir comandos.
O ar era um forno que aquecia nossos pulmões. A água
parecia evaporar antes de chegar dos lábios até a garganta.
Um vento quente vinha do oeste do deserto e o céu
mostrava uma cor marrom agourenta para aqueles lados.
Nessa hora, a maior parte dos cientistas e engenheiros estava
com o exército — mesmo Monge e Berthollet haviam
desembarcado —, mas nosso papel no combate ainda não
estava definido. O general Dumas, agora mais gigantesco,
montando um enorme cavalo de batalha marrom, chegou
galopando para gritar uma nova ordem.
"Burros, estudiosos e mulheres para os quadrados! Assumam
suas posições no centro, seus inúteis!"
Raramente eu escutava palavras tão reconfortantes.
Astiza, Talma e eu seguimos o rebanho de cientistas,
mulheres francesas e animais até o centro de um quadrado
de infantaria comandado pelo general Louis-Antoine Desaix.
Talvez ele fosse o soldado mais hábil deste exército, com os
mesmos vinte e nove anos de Napoleão e dois centímetros e
meio mais baixo que nosso Pequeno Cabo. Diferente de
outros generais, ele era devotado a seu comandante como
um cão leal. Simples, desfigurado por um corte de sabre e
tímido com as mulheres, ele parecia mais feliz quando
dormia entre as rodas de uma peça de artilharia. Agora ele
formava suas tropas num quadrado tão robusto - com fileiras
de dez homens de profundidade olhando para as quatro
direções — que lá dentro parecia um refúgio num pequeno
forte formado por seres humanos. Carreguei meu rifle
novamente e olhei para o Egito por trás desta formidável
barreira de ombros largos, chapéus altos e mosquetes
prontos para o combate. Oficiais montados, cientistas a pé e
mulheres faladeiras se misturavam no espaço interno, todos
nervosos e quentes. Canhões foram colocados em cada um
dos cantos exteriores dos quadrados. Os artilheiros contavam
totalmente com o apoio da infantaria para não serem
atropelados.
"Por Moisés e Júpiter, nunca vi tanto esplendor", eu
murmurei. "Não é difícil de imaginar por que Bonaparte
gosta de guerra."
"Imagine se o Egito fosse sua casa e você estivesse olhando
para estas divisões francesas", Astiza respondeu baixinho.
"Imagine enfrentar a invasão."
"Ela vai trazer tempos melhores, eu espero."
Impulsivamente, peguei sua mão e apertei. "O Egito é
desesperadamente pobre, Astiza."
Surpreendentemente, ela não me repeliu. "Sim, ele é."
Mais uma vez, os músicos do exército tocaram a Marseillaise
para acalmar os nervos. Então, Napoleão cavalgou por nosso
quadrado com sua equipe. Seu cavalo era negro, seu chapéu
emplumado e seus olhos cinzentos pareciam lascas de gelo.
Subi numa carreta de munição de duas rodas para ouvi-lo. A
notícia da infidelidade de sua esposa não havia deixado
nenhuma marca óbvia, exceto aquela furiosa concentração.
Agora ele apontava dramaticamente para as pirâmides, que
bruxclcavam com o caior como se víssemos aquela pureza
geométrica através da água.
"Soldados da França!", ele gritou. "Quarenta séculos vos
contemplam!"
Os gritos irromperam. Os soldados franceses reclamavam
tanto de Bonaparte entre as batalhas quanto o amavam
durante uma luta. Ele os conhecia, sabia como pensavam,
sentiam dores de estômago e respiravam, e sabia como pedir
a eles o impossível em troca de uma medalha, uma menção
num despacho, ou a promoção para uma unidade de elite.
O general inclinou-se para perto de Desaix e usou palavras
mais amenas mas que, embora alguns de nós pudéssemos
ouvir, não eram endereçadas ao exército. "Sem
misericórdia."
Senti um arrepio repentino.
Murad Bey, novamente comandante do exército árabe em
nosso front, viu que Napoleão pretendia marchar em frente
para que seus quadrados abrissem caminho pelo centro
inimigo, dividindo as tropas mamelucas para que fossem
destruídas gradativamente. Embora o governante egípcio
não tivesse a menor noção das táticas européias, ele tinha o
bom senso de tentar evitar qualquer coisa que o francês
tentasse atacando primeiro. Ele levantou sua lança e, com
aquele grito sinistro e forte, a cavalaria mameluca iniciou
outra carga. Esses guerreiros escravos foram invencíveis por
séculos e a casta dominante simplesmente não conseguia
acreditar que a tecnologia acabaria com seu reinado. Esse
ataque foi maior do que qualquer outro até aquele momento.
Eram tantos cavalos avançando contra nossa formação que
eu, literalmente, pude sentir a terra tremer sob a carreta em
que eu subi.
A infantaria esperou confiante e nervosa, pois sabia que os
mamelucos não tinham nem a artilharia nem a disciplina de
tiro necessárias para vencer as formações francesas. Ainda
assim, o avanço inimigo era tão furioso quanto uma
avalanche. Todos estávamos tensos. O chão tremia, areia e
poeira subiam ferozmente no centro daquela onda cheia de
lanças, e os inimigos brandiam seus mosquetes como foices
nos campos de trigo. Fui pouco negligente ao ficar olhando
sobre as cabeças das fileiras a minha frente. Astiza e Talma
olhavam como se eu fosse louco, mas eu ainda não havia
visto uma arma mameluca capaz de me acertar a qualquer
distância. Levantei meu rifle e esperei, enquanto observava
os estandartes do inimigo.
Eles chegavam cada vez mais perto, o barulho aumentava, e
os mamelucos berravam seus gritos de guerra. Os franceses
não soltavam um pio. O espaço aberto entre nós se
estreitava. Não íamos atirar? Juro que pude ver os olhos
claros dos inimigos surpreendentemente caucasianos, o
brilho de seus dentes, as veias de suas mãos, e fiquei
impaciente. Finalmente, sem uma decisão consciente,
apertei o gatilho, minha arma deu um solavanco e um dos
guerreiros inimigos voou para traz desaparecendo na turba.
Foi como se meu tiro tivesse sido o sinal para começar.
Desaix gritou e a linha de frente francesa produziu uma já
familiar lingüeta de fogo. No momento seguinte, fiquei
surdo e a cavalaria adversária foi ao chão como uma onda de
corpos retorcidos, cavalos gritando e patas desesperadas.
Uma nuvem de fumaça e poeira passou por nós. Então, outra
salva da fileira de trás, e outra, e mais outra. De algum lugar,
a artilharia disparou e os tiros de dispersão faziam seu
trabalho. Era uma tempestade de chumbo e ferro.
Mesmo os mamelucos que não foram atingidos colidiam e
caíam sobre as montarias de seus camaradas. Uma carga
violenta foi transformada em caos instantâneo a alguns
metros das primeiras baionetas francesas. Os inimigos
abatidos estavam tão perto que fomos atingidos pelas buchas
incandescentes dos canhões europeus. Pequenos focos de
fogo apareceram nas roupas de mortos e feridos. Recarreguei
meu rifle, mas não sei para quê. Estávamos encobertos pela
fumaça.
Os sobreviventes recuaram para se reagrupar enquanto os
soldados de Napoleão recarregavam de forma rápida e
mecânica. Cada movimento havia sido treinado centenas de
vezes. Os poucos franceses abatidos pelo fogo mameluco
foram puxados para o meio do quadrado que se
recompunha. Os sargentos espancavam os covardes para
forçá-los a voltar e fazer seu trabalho. Era como uma criatura
marinha que gerava um braço no lugar de um membro
perdido. Nada podia matá-la.
Os mamelucos atacaram novamente. Desta vez, eles
tentaram penetrar o lado e a retaguarda de nosso quadrado.
O resultado foi o mesmo. Os cavalos chegaram angulando
contra as tropas mas poucos chegaram perto, e mesmo esses
garanhões recuaram frente às baionetas. Alguns dos
cavaleiros voaram longe. Seda fina e linho ganhavam
manchas vermelhas conforme os árabes eram atingidos pelas
grossas balas de chumbo. Desta vez eram dois quadrados
cobrindo o flanco aliado enquanto os mamelucos galopavam
entre eles. Novamente, o ataque terminou em confusão. Os
defensores começavam a ficar mais desesperados. Alguns
ficavam de pé e atiravam contra nós com mosquetes e
pistolas, mas os tiros eram tão esporádicos e imprecisos que
não ameaçavam os franceses. Poucos de nossa infantaria
gemeram ou gritaram com ferimentos. Então, outra salva
europeia atingiu os árabes que caíram de seus cavalos. Em
pouco tempo estávamos cercados por um círculo de mortos
e moribundos, triste fim de boa parte da aristocracia militar
do Egito. O massacre das primeiras batalhas parecia coisa de
criança perto dessa chacina.
Mesmo com as balas dos árabes passando regularmente perto
da minha cabeça, senti uma curiosa imunidade. Havia um
senso de irrealidade naquilo tudo: as colossais pirâmides a
distância, o ar vítreo, o calor opressivo, as palmeiras
balançando ao sabor do vento mesmo quando um tiro
cortava uma folha de suas copas. Os fragmentos de verde
flutuavam como penas. Grandes nuvens de poeira subiam ao
céu conforme o inimigo galopava em nossa direção, sem
propósito aparente que não procurar uma fraqueza nos
quadrados de Bonaparte. E não encontrar. A infantaria
egípcia parecia enraizada na retaguarda, como se esperasse
por seu inexorável destino fatal. Temendo revoltas, os
mamelucos haviam atrofiado os braços da força numérica de
sua nação, paralisada pela incompetência. E pelo medo.
Olhei para o oeste. Todo o céu estava ficando escuro e o sol
se transformava numa órbita laranja. Chuva? Não. Eram
outros tipos de nuvens. Nuvens de areia. O horizonte foi
tomado por uma tempestade que se aproximava.
Ninguém mais parecia se preocupar com o clima. Com
inegável coragem, os mamelucos se reagruparam, pegaram
rifles e pistolas recarregados de seus servos, e avançaram
uma vez mais. Desta vez eles pareciam determinados a
concentrar toda sua fúria em nosso quadrado. Atiramos e a
linha de frente deles caiu, como antes, mas a coluna era tão
grossa que os homens da retaguarda sobreviveram para
cavalgar sobre seus companheiros abatidos antes que pu-
déssemos recarregar. Com energia e desespero, eles levaram
seus cavalos direto para as baionetas francesas.
Foi como se tivéssemos sido abalroados por um navio. O
quadrado dobrou com a violência do ataque. Cavalos
morriam enquanto esmagavam a infantaria de Bonaparte
com seu peso. Alguns homens recuaram em pânico. Mais
franceses correram das fileiras internas do quadrado para
reforçar a frente que havia sido forçada. Houve uma
repentina luta desesperada das espadas, lanças e pistolas
mamelucas contra as baionetas e tiros de mosquete à
queima-roupa dos franceses. Ainda empertigado em minha
carreta, atirei naquela bagunça. Não tinha idéia de quem ou
o que eu atingi.
De repente, um cavalo e um guerreiro gigante surgiram com
a força de um tiro de canhão passando por cima dos
guerreiros presos nas baionetas. O garanhão árabe estava
riscado por uma baioneta e o mameluco de turbante, todo
ensangüentado; mas ele lutava em frenesi. Soldados
correram para interceptá-lo, mas a cimitarra do inimigo
cortava os canos de seus mosquetes como se fossem
canudos. O animal enlouquecido pisoteava e dava coices,
girando num círculo meio demoníaco, e seu cavaleiro
parecia protegido contra as balas. Os cientistas fugiram das
patas do cavalo, enquanto homens tropeçavam e gritavam.
O mais desconcertante de tudo era que o atacante olhava
fixamente para mim. Eu ainda me balançava na carreta em
meu distinto casaco civil.
Mirei nele, mas antes que pudesse atirar, o garanhão atingiu
a carreta e me jogou longe. Caí com força, sem ar, e o cavalo
de olhos esbugalhados vinha em minha direção com suas
patas violentas. Seu mestre ignorava as centenas de pessoas a
sua volta e focava a atenção em mim. Era como se ele
tivesse escolhido um inimigo pessoal.
Então ouvi um grito, o cavalo recuou e caiu. Talma, pelo que
vi, pegou uma lança e cravou a ponta na anca do animal. O
cavaleiro escorregou e caiu tão forte quanto eu e ficou
momentaneamente zonzo. Antes que ele recobrasse os
sentidos, Astiza deu um grito apavorante e, com a ajuda de
Talma, jogou a carreta em sua direção. As rodas bateram no
cavalo abatido e o guerreiro alucinado ficou preso entre a
sela e o aro. O homem se contorcia como um animal e tinha
ombros grandes feito um touro, mas não tinha escapatória.
Consegui subir pelo cavalo e pulei sobre ele com a
machadinha encostando-a em sua garganta instintivamente.
Astiza também pulou, gritando em árabe, e suas palavras ou
seu sexo o deixaram paralisado. O cansaço tomou o lugar do
frenesi e ele parou de resistir.
"Diga a ele para se render!", gritei para Astiza.
Ela gritou algo e o mameluco aceitou, derrotado. Sua cabeça
caiu para trás batendo na areia. Eu havia feito meu primeiro
prisioneiro! Foi um sentimento forte e inesperado que
chegava a ser mais satisfatório que uma mão muito boa nas
cartas. Por Júpiter! Eu começava a entender o entusiasmo
dos soldados. Viver, depois de um lampejo da morte, é
eletrizante.
Desarmei o árabe rapidamente e peguei a pistola de um
oficial emprestada para acabar com o sofrimento do cavalo.
Outros cavaleiros haviam passado, mas, eventualmente, cada
um deles foi golpeado e jogado no chão pela infantaria
francesa. A exceção foi um cara forte que cortou dois
homens ao meio, levou um tiro, pulou de volta para o caos
da linha de contato e galopou para longe gritando seu
triunfo, mesmo ferido. Esse era o tipo de coragem que
aqueles malditos tinham e isso levou Napoleão a dizer que
com um punhado deles ele varreria o mundo.
Eventualmente, ele recrutaria sobreviventes mamelucos
para sua guarda pessoal.
Mesmo assim, a fuga daquele guerreiro foi uma raridade e a
maior parte dos inimigos simplesmente não conseguia
penetrar em nossas defesas. Seus cavalos recuavam perante
as baionetas. Finalmente, os sobreviventes fugiram em
disparada enquanto os tiros de dispersão franceses os
perseguiam e tiravam mais deles de suas selas. Apesar da
bravura egípcia, foi um massacre. Os europeus
contabilizavam dúzias de baixas, mas os mamelucos mortos
passavam dos milhares. A areia estava coberta com seus
mortos.
"Reviste suas roupas", Astiza disse enquanto cuidávamos de
nosso prisioneiro. "Eles carregam riqueza para a batalha para
que ela seja perdida se eles morrerem."
Realmente, meu prisioneiro parecia um baú de tesouro. Seu
turbante era de caxemira e quando o removi descobri um
capuz costurado com peças de ouro como um capacete
amarelo. Havia mais ouro na sua cinta, suas pistolas eram
incrustadas com madrepérola e gemas, e sua cimitarra tinha
uma lâmina negra de Damasco e uma empunhadura de
chifre de rinoceronte incrustada com ouro. Em questão de
segundos eu estava rico, assim como boa parte do exército.
Mais tarde, os franceses perceberam que cada mameluco
podia ser roubado em aproximadamente quinze mil francos,
em média. Os homens saqueavam corpo atrás de corpo.
"Meu Deus, quem é ele?", perguntei.
Astiza virou seu rosto, olhou para suas marcas, e parou. "Um
filho de Horus", ela murmurou. Em seu anel havia o mesmo
símbolo que ela usava como amuleto. Não era um símbolo
islâmico.
Ele puxou sua mão para longe. "Isto não é para você", ele de
repente rosnou em inglês.
"Você fala nossa língua?", perguntei, espantado novamente.
"Fiz negócios com mercadores europeus. E ouvi falar de
você, o inglês com a capa verde. O que faz um inglês com os
francos?"
"Sou americano. Antoine é francês, Astiza é egípcia e
grega."
Ele assimilou. "E eu sou mameluco." Ele estava deitado de
costas, olhando para o céu. "E a guerra e o destino nos
uniram."
"Qual o seu nome?"
"Eu sou o kyacheff Ashraf El-Din, tenente de Murad Bey."
"E o que é um filho de Horus?", perguntei a Astiza.
"Um seguidor dos ancestrais. Este homem não é um típico
mameluco do Cáucaso. Ele é das antigas famílias daqui, não
é?"
"O Nilo corre em minhas veias. Sou descendente dos
Ptolomeus. Mas prestei juramento às forças mamelucas ao
próprio Murad Bey."
"Ptolomeus? Você quer dizer o clã de Cleópatra?", perguntei.
"E dos generais de Alexandre e César", ele disse com
orgulho.
"Os mamelucos desprezam os egípcios que eles governam",
Astiza explicou, "mas, ocasionalmente, os recrutam das
grandes famílias de maior tradição."
E minha jornada até ali ganhava mais uma inesperada
coincidência. Fui atacado por um mameluco raro que jura
lealdade a um deus pagão e fala inglês. "Posso confiar em
você se o deixar ficar de pé?"
"Sou seu prisioneiro, capturado em batalha", Ashraf disse.
"Submeto-me a sua misericórdia."
Deixei o homem se levantar. Ele balançou por um
momento.
"Seu nome é complicado", eu disse. "Acho que vou te
chamar de Ash."
"E eu vou responder."
E toda essa sorte evaporaria se eu não conseguisse satisfazer
meus colegas encontrando significado para o medalhão.
Astiza deu um belo palpite sobre ele. Talvez este demônio
pudesse fazer o mesmo. Com a divisão festejando e todos os
olhos na batalha, tirei o medalhão da minha camisa e
balancei na frente dele. Os olhos de Talma ficaram
arregalados.
"Sou mais que um guerreiro, filho de Horus", eu disse. "Vim
ao Egito para entender isto. Você o reconhece?"
Ele piscou maravilhado. "Não. Mas outra pessoa pode
reconhecer."
"Quem no Cairo conhece seu significado? Quem conhece os
velhos deuses egípcios e a história de sua nação?"
Ele olhou para Astiza. Ela acenou com a cabeça de volta para
ele e eles falaram alguma coisa em árabe. Finalmente ela
virou para mim.
"Mais deuses do que você imagina estão lhe protegendo,
Ethan Gage. Você capturou um guerreiro que afirma
conhecer um homem que eu só havia ouvido falar em
rumores e que leva o nome de um homem há muito
perdido." Quem?
"Enoc, o sábio, também conhecido como Hermes
Trismegistus; Hermes, o três vezes grande, escriba dos
deuses e mestre das artes e ciências."
"Meu deus." Enoc também era nome do pai de Matusalém
no Velho Testamento, pelo que me recordava dos sermões.
Um homem de vida muito longa. Minha memória maçónica
também mencionava o suposto Livro de Enoc como fonte
de sabedoria antiga. O livro perdeu-se há vários milênios.
Olhei para meu cativo ensangüentado. "Ele conhece esse
sábio?"
Astiza confirmou enquanto nosso prisioneiro continuava a
olhar maravilhado para o medalhão. "Enoc", ela disse, "é
irmão dele."
Começamos a avançar. O quadrado se transformou em
colunas e marchamos em direção às fortificações egípcias
em Imbaba. Literalmente, escalávamos montes de mortos.
Amarrei as mãos de Ash atrás de suas costas com um cordão
dourado que tirei de sua cintura e o deixei sem turbante. Sua
cabeça só não era totalmente raspada pela existência do
tradicional tufo de cabelo no topo, pelo qual, acreditava-se,
o profeta Maomé, em seu último suspiro, puxaria os
mamelucos para levá-los ao Paraíso. Seu capuz de ouro
estava amarrado no meu cinto e Astiza carregava sua
fabulosa espada. Senti pena por expor meu inimigo
derrotado ao sol quente, mas o sentimento diminuía
conforme a atmosfera ficava cada vez mais nublada pela
poeira. Podiam ser apenas quatro da tarde, mas o dia estava
ficando escuro.
Conforme passávamos pelos restos do campo de batalha
pude ver melhor o que havia acontecido. Enquanto o nosso
quadrado e o de Jean-Louis Raynier enfrentaram a maior
parte dos ataques da cavalaria, outras divisões avançaram.
Uma quebrou as linhas inimigas perto da margem do Nilo e
começou a limpar a retaguarda da infantaria egípcia com
tiros de canhão. Outras duas atacaram Imbaba com força
para acabar com as baterias inimigas lá. Os sobreviventes da
cavalaria mameluca se separaram. Alguns buscavam refúgio
na cidade fortificada e outros, entre eles Murad Bey, eram
empurrados para o oeste em direção ao deserto. Este último
grupo começava a se dispersar. A batalha estava se
transformando em confusão total, e a confusão rapidamente
deu lugar à matança.
Os franceses eliminaram as defesas externas de Imbaba na
primeira carga, que também desintegrou a infantaria
albanesa. Quando começavam a fugir, os soldados otomanos
eram abatidos ou empurrados para o Nilo. Toda vez que os
franceses faziam uma pausa, eles eram rapidamente
ordenados a continuar atirando por insistência do
comandante-em-chefe em pessoa. Era a fúria amarga de
Napoleão. Pelo menos mil mamelucos foram pegos na fuga e
empurrados para o rio, onde rapidamente afundavam com o
peso de suas fortunas pessoais. Aqueles que tentavam ficar
de pé eram mortos. Era a guerra em sua forma mais
primitiva. Vi alguns dos franceses saírem da carnificina tão
manchados de sangue, que parecia terem mergulhado em
vasos de vinho.
Nosso general passou galopando. Seus olhos brilhavam.
"Agora! Esmaguem o inimigo agora ou vão pagar caro mais
tarde!"
Ultrapassamos Imbaba e marchamos rapidamente as últimas
milhas que nos separavam do Cairo e das pirâmides. A
cidade parecia um conto de fadas cheio de mirantes e domos
no outro lado do Nilo. Metade do exército mameluco ainda
estava a salvo e nos seguia na margem oposta. Eles gritavam
contra nossas formações como se as palavras pudessem fazer
o trabalho que as balas haviam falhado em realizar. Nenhum
dos dois lados estava ao alcance. Então, quando eles
chegaram perto da frota de feluccas atracada no cais do
Cairo, os mais valentes dos mamelucos embarcaram para
cruzar o rio e tentar nos atacar.
Tarde demais. Imbaba era um cemitério. Murad Bey já
estava fugindo para o deserto. A armada improvisada dos
mamelucos navegou em direção à costa cheia de soldados
franceses, uma investida mais tola que a da cavalaria muçul-
mana. Eles chegaram sob uma tempestade de balas. Pior
ainda, todo o campo de batalha estava tomado por um
crescente muro de areia e poeira como se Deus, Alá ou
Horus tivesse decidido realizar uma intervenção final. Os
barcos chegavam de frente para o vento.
A tempestade que chegava do oeste parecia sólida. A luz
ficava mais fraca como se um eclipse cobrisse o Sol. O céu
do lado oeste estava negro e as poderosas pirâmides —
impressionando por seu tamanho e simplicidade - eram
envolvidas por uma névoa marrom. Ibrahim Bey avançava
em direção à tempestade ao lado de seus corajosos
seguidores, mas seus barcos sobrecarregados começavam a
inclinar mais e mais com o vento que aumentava. O Nilo es-
pumava e longas linhas de franceses empoeirados se
posicionaram na margem com a tempestade em suas costas.
Os homens de Napoleão atiraram várias vezes em salvas
firmes e disciplinadas. Os egípcios gritavam, gemiam e caiam
de seus barcos.
A tempestade ficava cada vez mais alta e forte, como uma
montanha infinita que surgia do céu. Já não conseguia ver
mais nada. Nem árabes fugindo na margem oeste, nem
pirâmides, nem mesmo Napoleão e seu pessoal. Parecia o
fim do mundo.
"Abaixem-se!", Ashraf gritou. Ele, Astiza, Talma e eu
agachamos juntos e usamos nossas roupas para cobrir nossos
narizes e bocas.
O vento nos atingiu com força total como um soco. O
barulho veio em seguida, mas logo deu lugar à areia voando
como um enxame de abelhas. Foi bastante ruim para os
franceses, que receberam o solavanco pelas costas, mas foi
pior ainda para os mamelucos que foram atingidos de frente
em seus pequenos e instáveis barcos. O cenário ficou escuro.
O barulho do vento engolia qualquer outro ruído. A batalha
parou. Nós três seguramos as mãos enquanto tremíamos e
rezávamos para uma quantidade ímpar de deuses -
lembrando que existem poderes mais fortes que nós
mesmos. Por longos minutos a tempestade de areia nos
açoitou e tentou tirar o ar de nossos pulmões.
Então, tão rápido quanto surgiu, a tempestade perdeu
intensidade e o barulho acabou. A poeira caía suavemente
sobre todos nós.
Milhares de soldados franceses levantaram-se lentamente de
suas covas rasas. Pareciam ter ressuscitado. Estavam
totalmente marrons. Eles não falavam, abismados e
horrorizados. O céu clareava sobre nossas cabeças. O Sol
estava vermelho como um coração rasgado.
Olhamos para o Cairo e para o rio. Não havia mais barcos na
água. Todos os mamelucos que tentaram nos atacar se
afogaram ou atolaram na margem leste. Os barcos
emborcaram. Podíamos ouvir os lamentos dos
sobreviventes, e Astiza traduziu. "Agora somos escravos dos
franceses!" Eles fugiam para a cidade, pegavam seus
pertences e mulheres e desapareciam no anoitecer. A
estranha tempestade, com sua natureza sobrenatural, parecia
ter apagado um grupo de conquistadores para instalar outro.
O vento extinguiu o passado e inseriu o estranho futuro
europeu.
Chamas surgiram na borda do rio perto da cidade enquanto
poucas feluccas ainda ancoradas lá começavam a queimar.
Alguém pretendia atrasar a travessia dos franceses ao
incendiar barcos, mas era inútil, já que havia barcos
disponíveis rio abaixo e acima. As embarcações queimaram
noite adentro, iluminando a cidade que estávamos prestes a
ocupar, como luzes num teatro. As fantásticas construções
mouras dançavam sob a luz das chamas.
Os soldados franceses estavam triunfantes, exaustos e
imundos após sobreviver tanto à batalha quanto à
tempestade. Eles se amontoaram no Nilo para tomar banho e
então sentaram nos campos de melão para comer e limpar
seus mosquetes. Corpos de árabes mortos estavam em toda
parte. Todos devidamente depenados pelos vitoriosos. Os
franceses somaram outro pequeno número de baixas e cerca
de duzentos feridos; os árabes passavam dos milhares.
Simples soldados franceses enriqueceram com o saque. A
vitória de Napoleão era completa, seu comando sobre o
exército foi confirmado e ele ganhou a aposta.
Ele cavalgava entre as tropas como um leão vitorioso,
recebendo elogios e, em troca, devolvia cumprimentos.
Todo o descontentamento e a tensão das últimas semanas
desapareceu com a alegria da vitória. A intensa fúria de
Napoleão parecia ter sido satisfeita com a intensidade do dia,
e seu orgulho ferido pela traição da esposa amenizado pela
matança. Foi uma batalha sem misericórdia, como ele pediu.
Josefina nunca saberia quanta carnificina foi feita por conta
de seus joguetes.
O general me encontrou naquela noite. Não sei quando — o
choque de uma luta tão grande como aquele e a tempestade
embaralharam meu senso de tempo - ou como. Seus
assistentes vieram procurando especificamente por mim,
entretanto, sabia que, de algum modo, eu era solicitado.
Bonaparte nunca deixava seus filhotes em paz; ele sempre
pensava um passo à frente.
"Monsieur Gage, vejo que você capturou um mameluco", ele
disse no escuro.
Como ele ficou sabendo disso tão rápido? "Parece que sim,
general. Só não sei se por acidente ou intenção."
"Você leva jeito para estar onde a ação acontece, pelo que
parece."
Fiquei lisonjeado. "Ainda assim, continuo sendo um
estudioso, não um soldado."
"Exatamente a razão pela qual o procurei. Liberei o Egito,
Gage, e amanhã vou ocupar o Cairo. O primeiro passo para
minha conquista do leste está completo. O segundo depende
de você."
"De mim, general?"
"Agora você vai desvendar as pistas e descobrir que segredos
estas pirâmides e templos escondem. Se existem mistérios,
você vai desvendá-los. Se existem poderes, você vai entregá-
los a mim. E, como resultado, nossas tropas vão se tornar
invencíveis. Vamos marchar ao encontro de Tippoo,
expulsar os britânicos da índia e selar a destruição da
Inglaterra. Nossas duas revoluções, a americana e a francesa,
vão remodelar o mundo."
É difícil mensurar o efeito emocional que tal situação pode
ter num ser humano normal. Não que eu ligue muito para
Inglaterra, França, Egito, Índia ou a criação de um novo
mundo. Mas aí chega este baixinho carismático, com
emoção explosiva e visão gloriosa, e me convida para
participar de algo muito maior que eu. Estava esperando por
uma nova chance. E aqui estava ela. Logo pensei que a
carnificina do dia e o agouro sobrenatural da tempestade
indicavam um futuro grandioso: um homem que mudou
tudo a sua volta, para melhor ou pior, como um pequeno
deus. Sem pensar nas conseqüências, me senti lisonjeado.
Fiz uma leve reverência e o saudei.
Então, com o coração na garganta, vi Bonaparte andar
pomposo assim como a descrição soturna de Sydney Smith
sobre a Revolução Francesa. Pensei bastante nos montes de
mortos no campo de batalha, os egípcios pesarosos, e o
descontentamento com as tropas que brincavam ao falar de
seus seis acres de areia. Pensei nas investigações dos sábios,
nos planos europeus de reforma, e na esperança de
Bonaparte de uma marcha sem fim até a fronteira da índia,
assim como Alexandre fez antes dele.
Lembrei do medalhão em meu pescoço, o anel de Smith no
meu dedo e em como o desejo sempre consegue banalizar a
felicidade pura e simples.
Foi depois de Bonaparte desaparecer que Astiza chegou
perto e sussurrou.
"Agora você vai ter que decidir em que você realmente
acredita."
Capítulo Dez
A casa do irmão de Ashraf ficava numa das partes mais
renomadas do Cairo, o que, em termos reais, significava um
bairro com um pouco menos de poeira, doença, ratos,
cheiro ruim e gente em relação ao resto da cidade. Do
mesmo modo que em Alexandria, as glórias do leste
pareciam ter desaparecido também da capital do Egito, um
lugar com pouca estrutura para saneamento, remoção de
lixo, iluminação das ruas, controle de tráfego ou captura das
matilhas de cães que vagavam pelas ruas. É claro que disse o
mesmo de Paris. Mesmo assim, se o Egito tivesse mobilizado
seus cachorros em vez de sua cavalaria, nossa conquista não
teria sido tão fácil. Vários vira-latas eram abatidos a bala ou a
baioneta por soldados entediados todos os dias. As
execuções tinham tanto impacto na população canina
quanto um golpe certeiro contra moscas.
E ainda assim, como em Alexandria, ou Paris, havia miséria
em abundância. Os mamelucos eram mestres em cobrar
imposto pesado dos camponeses oprimidos e gastar todo o
recurso em monumentos a eles mesmos. Seus palácios
exibiam a graça árabe que faltava às estruturas pesadas da
Europa e da América. As casas mais ricas eram lisas na parte
exterior, mas tinham, quintais e jardins repletos de
laranjeiras, palmeiras, romãzeiras e figueiras; belos arcos
mouros; fontes azulejadas; e salas frescas repletas de
carpetes, almofadas, estantes entalhadas, tetos abobadados e
mesas de bronze e latão.
Algumas tinham sacadas complexas e janelas com anteparos
de mashrabiyya , cujo entalhamento era tão cuidadoso
como um chalé suíço e o resultado tão misterioso quanto
um véu. Bonaparte tomou para si a recém-construída casa de
mármore e granito de Mohammed Bey el-Elfi, que possuía
banhos em todos os andares, uma sauna e janelas de vidro.
Os acadêmicos de Napoleão foram acomodados no palácio
de outro bey chamado Quassim, que fugiu para o Alto Egito.
Seu harém deu lugar a um laboratório de invenções para o
engenhoso Conte, e seus jardins passaram a ser áreas de
seminário para os estudiosos. As mesquitas muçulmanas
eram ainda mais elegantes com suas torres e domos
equiparando-as em graça e grandeza às mais belas catedrais
góticas da Europa. As tendas dos mercados eram brilhantes
como arco-íris e os carpetes orientais eram expostos em
varões como um jardim de flores. Os contrastes do Egito
eram praticamente esmagadores - calor e sombra, riqueza e
pobreza, merda e incenso, argila monocromática e cores
exuberantes, tijolos de barro e calcário brilhante.
Os soldados tiveram que ficar em áreas consideravelmente
menos luxuosas que os oficiais: casas medievais sombrias e
sem banheiros. Muitos definiram imediatamente a cidade
como desapontadora, cheia de gente feia, calor de tirar os
nervos e com comida muito ruim. Eles reclamavam que
França tinha conquistado um país sem vinho, bom pão e
mulheres disponíveis. Essa opinião mudaria assim que o
verão ficasse mais ameno e algumas mulheres começassem a
se tornar concubinas dos novos governantes. Com o tempo,
as tropas passaram até a considerar que o aish, ou pão fino
assado, era um substituto aceitável para o seu pão.
O exército sofreu com disenteria desde o desembarque,
entretanto as baixas causadas por doenças já eram maiores
que as de batalha. A ausência de álcool gerava tantos
resmungos que Bonaparte ordenou que os alambiques
produzissem vinho com tâmaras, as frutas mais abundantes
na região. E, enquanto oficiais planejavam o plantio de
vinhas, as tropas descobriram rapidamente a droga
muçulmana chamada hashish, que era enrolada com mel e
misturada com ópio. Beber seu licor ou fumar suas sementes
se tornou hábito e, durante a ocupação do Egito, o exército
nunca conseguiu manter a droga sob controle.
O general entrou em sua cidade capturada pelo portão
principal à frente de um regimento, com bandas tocando e
bandeiras ondulando ao vento. Ashraf indicava o caminho e
Astiza, Talma e eu entramos por um portão menor e nos
aventuramos por ruas tortuosas passando por bazares que,
dois dias depois da grande batalha, estavam semi-
abandonados. Garotos jogavam água para baixar a poeira.
Burros carregando cestas nos forçavam a tomar entradas
inesperadas ao descer esmagando tudo e todos pelas vielas.
Mesmo o coração do Cairo comportava os sons típicos das
vilas: cachorros latindo, camelos bufando, galos gritando, e o
grito estridente chamando os muezim para a prece, que,
para meus ouvidos, soava como gatos acasalando. As lojas
pareciam estábulos e as casas mais pobres eram praticamente
cavernas sem luz. As crianças com icterícia e cobertas com
feridas nos encaravam com olhos arregalados. As mulheres
se escondiam. Era óbvio que a maioria da nação vivia em
pobreza abjeta.
"Talvez as melhores casas estejam em outro lugar", Talma
disse preocupado.
"Não, é sobre isso que vocês se responsabilizam a partir de
agora", Ashraf disse.
A noção de responsabilidade estava incomodando minha
mente. Eu disse a Ashraf que se o irmão dele nos recebesse
eu concederia sua liberdade. Eu realmente não queria
sustentar outro dependente além de Astiza e, para ser since-
ro, a idéia de servos e escravos sempre me deixou pouco à
vontade. Franklin teve um par de negros uma vez e eu
ficava tão incomodado pela presença deles que ele os
libertou. Ele dizia ter considerado um mau negócio:
custavam caro na compra, mais ainda na manutenção e não
tinham nenhum incentivo para trabalhar bem.
Ashraf pareceu pouco feliz perante minha misericórdia.
"Como vou comer se você me jogar fora como um órfão?"
"Ash, não sou rico. Não tenho recursos para te pagar."
"É claro que tem. Com o ouro que pegou de mim!"
"Eu devo pagar de volta o que acabei de ganhar na batalha?"
"E não é justo? Vamos fazer assim. Vou ser seu guia.
Conheço todo o Egito. Por isso, você vai me pagar o que
tomou. No final, vamos ter exatamente o que tínhamos
quando tudo isso começou."
"Mas é uma fortuna que nenhum guia ou servo merece
ganhar!"
Ele ponderou. "Verdade. Então você também vai contratar o
meu irmão. Ele vai investigar o seu mistério. Aí você
também paga para ficar na casa dele, mil vezes melhor que
essas pocilgas. Isso! Sua vitória e generosidade vão lhe
garantir muitos amigos no Cairo. Os deuses sorriram para
nós durante todo o dia, meu amigo."
Isso me ensinaria a ser generoso. Tentei encontrar conforto
em Franklin, que aconselhou: Aquele que multiplica
riquezas, multiplica cuidados. Essa parecia ser a verdade
sobre minhas fortunas. Mesmo assim, Ben era tão obcecado
por um dólar como qualquer um de nós e fazia barganhas
pesadas também. Nunca consegui um aumento, aliás.
"Não", disse a Ash. "Vou te pagar uma parte do soldo, assim
como a seu irmão. Apenas quando descobrirmos o que o
medalhão significa, eu pago o restante."
"Parece justo", Astiza disse.
"E mostra que você tem a sabedoria dos ancestrais!", Ashraf
completou. "Fechado! Alá, Jesus e Horus te acompanhem!"
Eu tinha bastante certeza de que aquilo seria blasfêmia em
pelo menos três religiões, mas tudo bem; poderia funcionar
bem com maçons. "Fale-me de seu irmão."
"Ele é um homem muito estranho como você. Vai gostar
dele. Enoc não dá a mínima para política, mas faz tudo pelo
conhecimento. Ele e eu somos totalmente diferentes, pois
eu faço parte deste mundo e ele de outro. Mas eu o amo e
respeito. Ele sabe oito línguas, incluindo a sua. Ele tem mais
livros que o número de esposas do sultão em Istambul."
"Isso é muito?"
"Ah, sim!"
E então chegamos à casa de Enoc. Como as demais moradias
do Cairo, a parte externa de seus três andares era lisa, com
pequenas janelas e uma pesada porta de madeira e uma
janelinha de ferro. A batida forte de Ashraf não obteve
resposta. Teria Enoc fugido com os senhores mamelucos?
Mas então uma pequena abertura atrás da janelinha foi
aberta, Ash gritou alguns xingamentos em árabe e a porta
abriu. Um gigante mordomo negro chamado Mustafá nos
levou pata dentro.
O alívio do calor foi imediato. Passamos por um pequeno
átrio e chegamos a um quintal com uma fonte e laranjeiras
sombreadas. A arquitetura da casa parecia ter sido criada para
receber a brisa. Uma escada de madeira ornamentada subia
de um lado para as salas superiores. Mais à frente, vimos a
sala de estar, cheia de cerâmica moura e coberta com tapetes
orientais e travesseiros, por um lado, onde os visitantes
podiam descansar. E do outro, uma sacada gradeada de onde
as mulheres podiam escutar as conversas dos homens. O
teto era ornado com arcos agradáveis e as estantes esculpidas
estavam repletas de volumes. Cortinas ondulavam com o ar
do deserto. Talma estava boquiaberto. "Meus sonhos eram
assim."
Mas não paramos por ali. Mustafá nos levou por uma
pequena área mais adiante. Ela era completamente vazia
exceto por um pedestal de alabastro entalhado com símbolos
misteriosos. Acima dele havia um quadrado com o céu azul
brilhante no topo de enormes paredes brancas. O sol
iluminava um lado como neve e deixava o outro totalmente
obscurecido nas sombras.
"É um poço de luz", Astiza sussurrou.
"Um o quê?"
"Poços como esses eram usados para medir o tempo nas
pirâmides. No solsticio de verão o sol estaria imediatamente
acima do poço não produzindo nenhuma sombra. É assim
que os sacerdotes conseguem identificar o dia mais longo do
ano."
"Sim, está correta!", Ashraf confirmou. "Ele diz as estações e
prevê a cheia do Nilo."
"Por que eles precisavam saber disso?"
"Quando o Nilo sobe, as fazendas são inundadas e o trabalho
era direcionado para outros projetos, como construir as
pirâmides", Astiza disse. "O ciclo do Nilo era o ciclo do
Egito. A medição do tempo foi o início da civilização.
Pessoas eram designadas para registrar o tempo, e se
tornaram sacerdotes, e pensavam em todos os tipos de coisas
úteis para as outras pessoas fazerem."
Em seguida, encontramos uma grande sala cujo tom sombrio
era tão intenso quanto a claridade da sala anterior. O lugar
era abarrotado por estátuas empoeiradas, vasos de pedra
quebrados e pedaços de muros com inscrições egípcias
coloridas. Homens de pele vermelha e mulheres de pele
amarela posavam de forma rígida, mas ao mesmo tempo
graciosas, bastante parecidas com as imagens que eu vi no
L'Orient. Algumas estátuas mostravam deuses com cabeça
de chacal, o deus gato Bastet, faraós rígidos e serenos,
falcões negros polidos, e massudas caixas de madeira com
figuras em tamanho natural de seres humanos na parte
externa completavam a cena. Talma já havia descrito estes
elaborados caixões para mim. Eles continham múmias.
O escriba parou antes de ficar mais extasiado. "São reais?",
perguntou. "Uma fonte como esta pode curar todas as
minhas doenças..."
Dei um empurrão nele. "Vamos lá antes que você morra
engasgado."
"As múmias destes sarcófagos foram retiradas", Ashraf disse
a ele. "Os ladroes abandonariam os caixões, mas Enoc disse a
todo mundo que pagaria por eles. Ele acredita que a
decoração seja outra chave para o passado."
Notei que alguns eram cobertos tanto por hieróglifos quanto
por desenhos. "Por que escrever em algo que seria
enterrado?", perguntei.
"Isso poderia guiar os mortos pelos perigos do submundo, de
acordo com meu irmão. Para os vivos, eles são úteis para
guardar coisas, já que a maioria das pessoas é supersticiosa
demais para olhar lá dentro. Eles temem a maldição."
Uma estreita escadaria de pedra no fundo da sala levava a um
armazém trancafiado, iluminado por lâmpadas. A convite de
Ashraf descemos para uma grande livraria. Suas prateleiras
de madeira iam do chão até o teto abarrotadas com livros,
diários, rolos e folhas de pergaminho. Alguns itens eram
amarrados com fitas de couro, outros com cordões
brilhantes e uns até com laços dourados. Todos com palavras
em outras línguas e pareciam ficar unidos por fibras feitas
com tecido antigo que cheiravam tão mal quanto um túmulo
recente.
Na grande mesa central sentava um homem velho.
"Saudações, meu irmão", Ashraf disse em inglês.
Enoc parou de escrever e olhou para cima. Ele era mais
velho que Ashraf, era careca com longos cachos
acinzentados e barba pesada. Parecia que a gravidade de
Newton havia puxado todos os seus cabelos na direção de
suas sandálias. Enoc tinha nariz de falcão, roupas cinzas,
olhos claros e a pele da cor do pergaminho que prendia sua
atenção até há pouco. Ele ostentava um ar sereno
encontrado em poucas pessoas. Seus olhos davam uma leve
sensação de sarcasmo.
"Então, os franceses estão ocupando até minha biblioteca?",
disse em tom seco.
"Não, eles vieram como amigos, e o mais alto é americano.
Seu amigo é um escriba francês..."
"Que está interessado em meu amigo desidratado", Enoc
disse com deleite. Talma estava olhando fixo para uma
múmia dentro de um sarcófago aberto no canto. Aquele
caixão também estava coberto com escrituras belas e
indecifráveis. A múmia estava parcialmente enrolada em
faixas. Algumas eram de linho antigo e estavam entrelaçadas
em seus pés. Incisões haviam sido feitas na cavidade
peitoral. Não havia nada de animador sobre o corpo com sua
aparência pálidamente marrom e ressecada, olhos fechados,
um buraco no nariz e a boca entreaberta exibindo um
pequeno dente branco. Achei perturbador.
Talma, por outro lado, parecia uma raposa no galinheiro.
"Ela é realmente antiga?", ele respirou novamente. "Uma
tentativa de conseguir a vida eterna?"
"Antoine, acho que eles falharam", falei meio seco.
"Não necessariamente", Enoc disse. "Para os egípcios, a
preservação do corpo físico era um requisito para a vida
eterna. De acordo com os relatos que temos, os antigos
acreditavam que o indivíduo era composto por três partes: o
corpo físico, o ba — que podemos chamar de caráter — e o
ka, ou força vital. Os dois últimos combinados equivalem à
alma moderna. Ba e ka precisam se encontrar e se unir no
perigoso submundo enquanto o Sol, Rá, o atravessa todas as
noites, para formar a imortal akh que viveria entre os
deuses. As múmias eram as moradias durante o dia até que a
travessia fosse completada. As religiões egípcias
combinavam o material e o espiritual em vez se separá-los."
"Ba, ka e Rá"? Parece uma firma de advogados." Sempre
fiquei desconfortável em relação ao espiritual.
Enoc ignorou. "Decidi que a jornada deste aqui deveria
acabar agora. Tirei as faixas e o cortei para investigar as
antigas técnicas de embalsamamento."
"Dizem que estes tecidos poderiam ter propriedades
medicinais", Talma disse.
"O que vai contra a crença egípcia", Enoc respondeu. "O
corpo era a moradia da alma, não a essência da vida em si.
Assim como você é mais que seus alimentos, escriba. Você
sabe que sua arte é a mesma do sábio Thoth."
"Na verdade, sou jornalista. Estou aqui para registrar a
liberação do Egito", Talma disse.
"Você coloca isso de maneira hábil." Enoc olhou para Astiza.
"E também temos outra visitante?"
"Ela é uma..." Ashraf começou.
"Serva", Enoc finalizou. Ele olhou para ela com curiosidade.
"Então, você voltou."
Diabos, esses dois também se conheciam?
"Foi a vontade dos deuses." Ela baixou seus olhos. "Meu
mestre está morto, morto pelo próprio Napoleão, e meu
novo amo é o americano." "Uma intrigante virada do
destino."
Ashraf se adiantou para abraçar seu irmão. "Também é pela
graça de todos os deuses e à misericórdia destes três estou
contigo novamente, irmão! Já estava em paz e pronto para o
paraíso, mas então fui capturado!"
"Você é escravo deles agora?"
"O americano já me libertou. Ele me contratou como seu
guarda-costas e guia com o dinheiro que pegou de mim. Ele
deseja contratá-lo também. Logo terei de volta o que perdi.
Isso não é obra do destino?"
"Contratar a mim para quê?"
"Ele veio ao Egito com um artefato antigo. Disse a ele que
você poderia reconhecê-lo."
"Ashraf é o guerreiro mais valente que eu já vi", disse. "Ele
superou um quadrado de infantaria francesa e foi necessário
o esforço de todos nós para derrubá-lo."
"Bah. Fui capturado por uma mulher empurrando a roda de
uma carreta." "Ele sempre foi corajoso", disse Enoc.
"Demais, aliás. E vulnerável a mulheres também."
"Sou um homem deste mundo, não do próximo, meu irmão.
Mas estas pessoas buscam o seu conhecimento. Eles têm um
antigo medalhão e querem descobrir seu propósito. Quando
o vi eu sabia que deveria trazê-lo até você. Quem sabe mais
do passado que o sábio Enoc?"
"Um medalhão?"
"O americano o conseguiu em Paris, mas acha que é
egípcio", Astiza disse. "Homens tentaram matá-lo para
conseguir o objeto. O bandido Bin Sadr o deseja. Sábios
franceses estão intrigados por ele. Bonaparte favorece nosso
amigo por conta dele."
"Bin Sadr, a Cobra? Ouvimos dizer que ele cavalga com os
invasores."
"Ele cavalga com quem pagar mais", Ashraf zombou.
"E quem o paga, acima de todos?", Enoc perguntou a Astiza.
Novamente, ela olhou para baixo. "Outro sábio." Ela sabia
mais do que tinha me contado?
"Ele é um espião para Bonaparte", Ashraf teorizou, "e um
agente, talvez, para seja lá quem for que quer tanto esse
medalhão." "Então, o americano deve tomar muito cuidado."
"Com certeza."
"E o americano ameaça a paz de qualquer casa que entrar."
"Como sempre, você é rápido quando se fala da verdade,
meu irmão."
"E, mesmo assim, você o traz a mim."
"Porque ele pode possuir aquilo que foi rumor por tantos e
tantos anos!"
Eu não estava gostando nem um pouco daquela conversa.
Tinha acabado de sobreviver a uma grande batalha e ainda
estava em perigo? "Apenas me digam, quem é esse Bin
Sadr?", perguntei.
"Ele era um saqueador de túmulos tão incansável que foi
banido", disse Enoc. "Ele não tem senso de propriedade ou
respeito. Homens sábios passaram a menosprezá-lo, então
ele se uniu aos europeus que estudam as artes negras. Logo
se tornou mercenário e, pelo que se diz, um assassino, e
começou a vagar pelo mundo na companhia destes homens.
Ele desapareceu por um tempo. Agora ressurgiu,
aparentemente trabalhando para Bonaparte." Ou para o
conde Alessandro Silano, pensei.
"Isso pode render uma esplendida matéria para o jornal",
disse Talma. "Ele o mataria se você publicasse."
"Mas, talvez, seja muito complicada para meus leitores", o
jornalista completou.
Talvez eu devesse simplesmente dar o medalhão para Enoc,
pensei. Afinal de contas, como o prêmio que eu havia
tomado de Ash, ele não me custou nada. Ele que lide com
cobras e rufiões. Mas não, e se ele levasse a um verdadeiro
tesouro? Berthollet pode pensar que as melhores coisas não
têm preço, mas a meu ver as pessoas que pensam assim são
as que já têm dinheiro.
"Então, você busca respostas?", perguntou Enoc.
"Procuro alguém em quem confiar. Alguém que queira
estudá-lo, não roubá-lo."
"Se seu colar é o tipo de indicador que eu imagino ser, eu
não o quero para mim. É um fardo, não um presente. Mas,
talvez, eu possa lhe ajudar a entendê-lo. Posso vê-lo?"
Tirei-o do pescoço e o deixei balançando pela corrente.
Todos olhavam curiosos. Então, Enoc fez a mesma inspeção
que todos os outros haviam feito, virando, mexendo com os
braços e usando uma lâmpada para iluminá-lo por seus
buracos. "Como você conseguiu isso?"
"Ganhei num jogo de cartas de um soldado que afirmava ter
pertencido a Cleópatra. Ele disse ter sido posse do alquimista
chamado Cagliostro."
"Cagliostro!?"
"Você ouviu falar dele?"
"Ele esteve no Egito uma vez." Enoc balançou a cabeça. "Ele
procurava segredos que homem nenhum deveria aprender,
entrou em lugares que ninguém deveria entrar e proferiu
nomes que homem algum deveria dizer."
"Por que ele não deveria dizer um nome?"
"Conhecer o nome real de um deus é o mesmo que saber
chamá-lo para atender a sua vontade", Ashraf disse. "Dizer o
nome dos mortos equivale a invocá-los. Os antigos
acreditavam que as palavras eram mágicas, especialmente as
escritas."
O olhar do velho saiu de mim e parou em Astiza. "Qual seu
papel aqui, sacerdotisa?"
Ela fez uma leve reverência. "Eu sirvo a deusa. Ela trouxe o
americano até mim da mesma maneira que fez contigo
agora. São seus desígnios."
Sacerdotisa? De que diabos ele estava falando?
"Que talvez nos digam para jogar o colar no Nilo", Enoc
disse.
"Sim. Mas ainda assim, os antigos o forjaram para que
pudesse ser encontrado, não foi, sábio Hermes? E chegou
até nós de um modo inusitado. Por quê? Quanto seria sorte e
quanto seria destino?"
"Uma questão ainda não respondida em uma vida de
aprendizado", Enoc suspirou, perplexo. "Agora, isto...", ele
estudou o medalhão novamente, apontando para as
perfurações no disco. "Vocês reconhecem o padrão?"
"Estrelas", Astiza sugeriu.
"Sim, mas quais?"
Todos balançamos a cabeça.
"Mas é simples! É Draconis, ou Draco. O dragão." Ele traçou
uma linha ao longo das estrelas que pareciam formar uma
serpente contorcida ou um pequeno dragão. "É uma
constelação de estrelas capaz de guiar o dono deste
medalhão, acredito."
"Guiá-lo como?", perguntei.
"Quem sabe? As estrelas giram no céu noturno e mudam de
posição de acordo com as estações. Uma constelação
significa pouca coisa a não ser que esteja relacionada a uma
data ou época do ano. Então o que de bom isso traz?
Esperamos por uma resposta para o que imaginávamos ter
sido uma pergunta retórica.
"Não sei", Enoc admitiu. "Ainda assim, os antigos eram
obcecados com o tempo. Alguns templos foram construídos
apenas para serem iluminados no solstício de inverno ou no
equinócio de outono. A jornada do Sol era considerada a
jornada da vida. Isso não veio acompanhado com alguma
coisa ligada ao tempo, veio?"
"Não", disse. Mas lembrei do calendário que Monge havia
me mostrado no L'Orient e que foi encontrado na mesma
fortaleza onde Cagliostro ficou enclausurado. Talvez o velho
conjurador carregasse ambas as peças. Seria uma pista?"
"Sem saber quando deve ser usado, o medalhão pode ser
inútil. Agora, esta linha que divide o círculo, o que ela
significa?"
"Não sei", eu disse.
"Tenho quase certeza de que estas linhas em ziguezague
representam o símbolo antigo para água." Fiquei surpreso.
Pensei que fossem montanhas, mas Enoc insistiu que
simbolizavam as ondas. "Mas esta pequena pirâmide ra-
biscada me intriga. E estes braços... ah, vejam aqui." Ele
apontou e chegamos perto. Havia um entalhe ou dente na
metade de cada braço que eu não havia notado, como se
parte do braço tivesse sido marcada cuidadosamente.
"É uma régua?", arrisquei. "Aquele entalhe poderia marcar a
mensuração.
"Uma possibilidade", Enoc disse. "Mas também poderia ser o
lugar para encaixe de outra peça. Talvez a razão para este
medalhão ser tão misterioso, americano, é que ele está
incompleto."
Foi Astiza quem sugeriu que eu deixasse o medalhão com o
velho para ser estudado, assim ele poderia procurar por
objetos parecidos em seus livros. Fiquei em dúvida no
começo. Estava acostumado ao peso dele no meu pescoço e
também seguro por saber onde ele estava todo o tempo.
Agora eu o entregaria a um semi-desconhecido?
"Ele não tem uso para nenhum de nós até que saibamos o
que é e para que serve", ela explicou. "No seu pescoço ele
pode ser roubado nas ruas do Cairo. Deixando aqui na casa
de um estudioso recluso é como deixar num cofre."
"Posso confiar nele?"
"Que escolha temos? Quantas respostas você conseguiu em
semanas desde que ganhou o medalhão? Dê um dia ou dois
para Enoc fazer alguns progressos."
"E o que eu faço nesse meio-tempo?"
"Comece fazendo perguntas aos seus próprios sábios. Por
que a constelação de Draco estaria na peça? A solução será
mais rápida se trabalharmos juntos."
"Ethan, é um risco grande demais", Tal ma disse, olhando
com desconfiança para Astiza.
Realmente, quem era essa mulher que foi chamada de
sacerdotisa? Ainda assim, meu coração considerava os
medos de Talma exagerados, dizia que eu estava sozinho
nesta empreitada e, agora, tinha conseguido aliados
espontâneos na busca pelo segredo deste mistério. Os
desígnios da deusa, sem dúvida. "Não, ela está certa", eu
disse. "Precisamos de ajuda ou então não vamos fazer
nenhum progresso. Mas, se Enoc fugir com meu medalhão,
ele vai ser perseguido por todo o exército francês."
"Fugir? Ele acabou de nos convidar para ficar na casa dele."
Meu quarto era a melhor acomodação que eu tive em anos.
Era fresco e não muito claro, a cama ficava bem acima do
piso e era cercada por cortinas. O azulejo tinha camadas de
carpetes. O lavatório e o jarro de água eram feitos de prata e
latão. Que contraste para a sujeira e o calor da campanha!
Mas eu não conseguia parar de pensar que estava sendo
seduzido para uma história que não entendia e comecei a
repassar os acontecimentos mentalmente. Foi por acaso que
encontrei uma mulher mestiça de gregos e egípcios que
falava inglês? Que o irmão deste estranho Enoc tivesse
avançado diretamente contra mim depois de ter penetrado
no quadrado francês na Batalha das Pirâmides? Que
Bonaparte não tinha apenas permitido, mas aprovado esta
aquisição para minha pequena comitiva? Era como se o
medalhão fizesse algum tipo de mágica que atraísse pessoas
para perto de mim.
Certamente era hora de fazer mais perguntas a minha
suposta serviçal. Depois que tomamos banho e descansamos,
encontrei Astiza no quintal principal, agora fresco e
aprazível. Ela sentava perto da fonte esperando por meu
interrogatório. Lavada, com roupas novas e cabelos
escovados que brilhavam como obsidiana. Seus seios
estavam envoltos em faixas de linho. Eia sentava com as
pernas cruzadas e exibia belas sandálias nos pés.
Sua beleza era completada por braceletes, tornozeleiras e
uma cruz ansada no pescoço. A visão era tão estonteante
que era difícil pensar direito. Mesmo assim, eu precisava
continuar.
"Por que ele te chamou de sacerdotisa?", eu perguntei sem
rodeios, enquanto sentava ao lado dela.
"Com certeza você não pensa que meus interesses são
limitados a cozinhar e lavar para você, certo?", ela disse
calmamente.
"Eu sabia que você era mais que uma serviçal. Mas
sacerdotisa de quê?"
Seus olhos estavam bem abertos e seu semblante solene. "Da
fé que corre por todas as religiões há dez mil anos: fé de que
existem mundos além dos que podemos ver, Ethan, e
mistérios além do que pensamos compreender. Isis é um
portal para tais mundos."
"Você é uma porcaria de pagã."
"E o que é uma pagã? Se você analisar a origem da palavra,
ela significa morador do interior, uma pessoa da natureza
que vive pacificamente de acordo com o ritmo das estações
e do sol. Se isso é paganismo, então sou uma crente
fervorosa."
"Uma crente em quê, mais especificamente?"
"Que a vida tem propósito, que algumas partes do
conhecimento devem ficar em segredo, e que certos
poderes devem ficar guardados e fora de uso. Ou, se forem
utilizados, que seja para o Bem."
"Eu a trouxe para esta casa ou aconteceu o inverso?"
Ela riu graciosamente. "Você acha que nos encontramos por
acidente?"
Bufei. "Lembro de ter acontecido por conta de um tiro de
canhão."
"Você tomou o caminho mais curto para o porto de
Alexandria. Nós fomos avisados para ficar de olho num civil
com uma casaca verde vindo por ali, possivelmente
acompanhando Bonaparte."
"Nós?"
"Meu mestre e eu. Aquele que você matou." "E sua casa
calhou de estar no caminho?"
"Não, mas a casa de um mameluco que tinha fugido estava.
Meu mestre e eu a ocupamos e nossos acólitos nos
trouxeram armas." "Você quase matou Napoleão!"
"Não necessariamente. O Guardião estava mirando em você,
não nele." "O quê?!"
"Minha Ordem achou melhor matar você logo, antes que
soubesse demais. Mas os deuses aparentemente têm outros
planos em mente. O Guardião quase acertou todo mundo,
menos você. Então, a sala explodiu e quando acordei lá
estava você. Foi aí que eu soube que você tinha um
propósito, mesmo sendo tão cego a ele."
"Qual propósito?"
"Concordo que seja difícil de imaginar. Mas você deve
ajudar, de alguma forma, a guardar o que deve ser guardado,
ou usar o que deve ser usado." "Guardar o quê? Usar o quê?"
Ela balançou a cabeça. "Não sabemos."
Pelos raios de Franklin, essa era a maior besteira que eu já
tinha ouvido. Eu devia acreditar que minha cativa tinha me
encontrado em vez do contrário? "O que você quer dizer
com o Guardião?"
"Simplesmente alguém que vai ajudar a manter a salvo os
ensinamentos antigos que fizeram desta terra a mais rica e
bela do mundo, há cinco mil anos. Ouvimos boatos do colar
- Cagliostro não conseguiu ficar quieto por causa de sua
empolgação quando o encontrou - e dos homens
inescrupulosos que estavam a caminho para desenterrá-lo e
roubá-lo. Mas você? Tão ignorante! Por que Isis o colocaria
em suas mãos? Mesmo assim nos encontramos e depois
fomos levados a Ashraf, e de Ashraf para Enoc. Segredos
que ficaram adormecidos por milênios estão sendo
despertados pela marcha dos franceses. As pirâmides
tremem. Os deuses estão impacientes e guiam nossas mãos."
Eu não sabia se ela era tapada como uma lunática, ou esperta
como uma vidente. "Em direção a quê?"
"Não sei. Todos nós somos cegos para toda a verdade.
Vemos algumas coisas, mas perdemos outras. Os estudiosos
franceses de quem você tanto fala são homens sábios, não?
Magi?"
"Magi?"
"Ou como nós os chamamos no Egito, magos."
"Acredito que homens da ciência se diferenciam dos
mágicos, Astiza."
"No Egito Antigo, esta distinção não existia. Os sábios
conheciam mágica e realizavam muitos feitiços. Agora, você
e eu precisamos fazer uma ponte entre seus estudiosos e
homens como Enoc para solucionarmos este quebra-cabeça
antes que os inescrupulosos o façam. Estamos numa corrida
com o culto da cobra, o deus serpente Apófis, e o Rito
Egípcio. Eles querem descobrir o segredo primeiro e usá-lo
para seus desígnios maléficos."
"Quais desígnios?"
"Não sabemos, exatamente por nenhum de nós saber
exatamente o que estamos procurando." Ela hesitou.
"Existem lendas de grandes tesouros e, mais importante,
grandes poderes, do tipo que balança impérios. O que é
exatamente? Muito cedo para dizer. Deixe Enoc estudá-lo
um pouco mais. Saiba, porém, que muitos homens ouviram
estas histórias durante séculos e devanearam sobre a verdade
por trás delas."
"Você quer dizer Napoleão?"
"Suspeito que ele saiba menos que todos, mas espera que
alguém descubra para que ele possa se apoderar e usar para
benefício próprio. Por que, ele não tem certeza, mas ele
ouviu as lendas sobre Alexandre. Todos nós estamos nu-
blados pelo mito e pelas lendas, exceto talvez Bin Sadr — e
quem quer que seja seu verdadeiro mestre."
Capítulo Onze
Eu comecei a investigação com u m dos astrônomos da
expedição, Nicholas-Antoine Nouet. Enquanto a maioria dos
franceses amaldiçoava o deserto por seu calor e por seus
insetos perigosos, Nouet estava encantado, dizendo que o ar
seco facilitou bastante o mapeamento dos céus. "É o paraíso
dos astrônomos, Gage! Um país sem nuvens!" Eu o
encontrei agachado no novo Instituto, sem casaco e com as
mangas arregaçadas, fuçando uma pilha de bastões calibrados
utilizados para medir a posição das estrelas em relação ao
horizonte.
"Nouet," perguntei, "o céu é constante?"
Ele olhou para cima irritado porque eu quebrei sua linha de
pensamento. "Constante?"
"Sim, as estrelas se movem?"
"Bem." Ele se levantou e olhou para fora, para o jardim
sombreado que os cientistas desapropriaram. "A Terra gira, e
é por isso que as estrelas parecem nascer e se pôr como o
sol. Elas fazem um círculo em torno do nosso eixo boreal, a
Estrela Polar."
"Mas as estrelas não se movem?"
"Esse assunto ainda está sendo discutido."
"Então, há milhares de anos," eu o pressionei, "quando as
pirâmides foram construídas, o céu era igual ao que se vê
hoje?"
"Ah, agora vejo aonde você quer chegar. A resposta é sim, e
não. As constelações basicamente se mantiveram iguais, mas
o eixo da Terra oscila num ciclo de vinte e seis mil anos."
"O doutor Monge me contou sobre isso, no L'Orient. Ele
disse que a posição do Zodíaco, em relação ao Sol nascente,
em uma data específica, muda. Alguma outra coisa mudaria
também?"
"Uma diferença, em vários milênios, seria a Estrela Polar.
Porque o eixo da Terra oscila, e ela apontava para uma
estrela boreal diferente há milhares de anos."
"Existe alguma possibilidade que essa estrela tenha sido
Draco?"
"Eu acredito que sim. Por que você pergunta?"
"Você soube que eu tinha um artefato do passado. Minhas
investigações preliminares aqui no Cairo dão a entender que
ela representa a constelação de Draconis, o dragão. Se Draco
fosse a Estrela Polar..."
"Isso quer dizer que você deve orientar o artefato para o
norte, então."
"Exatamente. Mas por quê?"
"Monsieur, o fragmento de antiguidade é seu, não meu."
"Monge mostrou-me outra coisa a bordo do L'Orient. Era
um dispositivo circular com signos do Zodíaco. Ele
acreditava ser algum tipo de calendário, talvez para fazer
previsões do futuro."
"Isso não seria incomum entre as culturas antigas. Sacerdotes
antigos teriam poderes extraordinários se pudessem prever
como os céus seriam no futuro. Eles poderiam prever a
cheia do Nilo, além das datas ideais para plantio e colheita. O
poder de nações e a ascensão e queda de reis dependia desse
conhecimento. Para eles, religião e ciência eram uma coisa
só. Você tem esse dispositivo? Talvez eu possa decifrá-lo."
"Nós o deixamos no L'Orient junto com o tesouro de Malta."
"Bah! Para ser derretido e consumido pelo próximo grupo de
cafajestes que estiverem na direção do Diretório? Por que
esses tesouros estão num navio de guerra prontos para entrar
em guerra? Precisamos dessas ferramentas aqui no Egito!
Peça a Bonaparte que permita que você a apanhe, Gage.
Essas coisas são simples, assim que você resolve o quebra-
cabeça."
Eu precisava de algo mais substancial antes de me dirigir ao
general. Enoc ainda estava enclausurado na biblioteca com o
medalhão, quando eu soube, dois dias depois, que o geógrafo
Jomard, que eu conheci no L'Orient, ia cruzar o Nilo até
Gizé para tirar suas primeiras medidas preliminares das
pirâmides. Eu ofereci meus serviços voluntários, assim com
os de Ashraf, como guia. Talma também juntou-se a nós,
enquanto Astiza ficou para trás, para ajudar Enoc.
Nós quatro aproveitávamos a brisa matinal enquanto
seguíamos na balsa. O rio corria próximo às enormes
estruturas, com margens íngremes de areia e de calcário que
levava ao platô onde elas foram construídas. Paramos o
barco na praia e começamos a escalar.
Por mais extraordinário que tenha sido lutar com a visão
dessas célebres estruturas em Imbaba, elas estavam longe
demais para nos impressionar por seu tamanho. Era sua
pureza geométrica, contra o deserto severo, que chamava a
atenção. Agora, enquanto avançávamos com dificuldade
pela trilha que tinha origem no grandioso rio, sua imensidão
se tornava aparente. As pirâmides inicialmente surgiram
sobre o topo da subida como deltas perfeitas, com desenhos
tão harmoniosos quanto simples. O volume de sua massa
contra o céu elevava o olhar em direção ao seu ápice, em
direção ao céu. Depois, quando podiam ser vistas por
completo, suas dimensões titânicas mostraram-se aparentes,
como montanhas de pedras ordenadas pela matemática.
Como o Egito primitivo construiu algo tão grandiosos? E por
quê? O próprio ar que os rodeava parecia cristalino e sua
majestade carregava uma estranha aura, como o cheiro
curioso e o formigamento que algumas vezes sinto quando
demonstro a eletricidade. Estava tudo muito quieto aqui,
comparado ao tumulto do Cairo.
Além do efeito intimidador da pirâmide, havia ainda o
famoso guardião que olhava fixamente em direção a leste. A
gigantesca cabeça de pedra batizada como Esfinge, por mais
extraordinária que se pudesse imaginar de descrições por
escrito, guardava a subida a uma pequena distância abaixo
das pirâmides. Seu pescoço era uma duna de areia com seu
corpo leonino enterrado no deserto. O nariz da estátua fora
danificado anos atrás enquanto os mamelucos treinavam
com canhões, mas seu olhar fixo e sereno, seus lábios
africanos cheios e seu ornato de cabeça criava uma aparência
tão eterna como se desafiasse a barreira do tempo. Os rastos
de erosão e deterioração fazia com que parecesse mais antiga
que as pirâmides que estavam atrás, o que me fez pensar se
por acaso havia sido construída antes. Havia algo sagrado
sobre este local? Que tipo de povo havia construído
tamanho colosso e por quê? Seria ele um sentinela? Um
guardião? Um deus? Ou pura vaidade de um só homem,
tirano e senhor? Não consegui evitar pensar em Napoleão.
Seria o nosso republicano, revolucionário, libertador e
homem do povo alguma vez tentado a encomendar uma
cabeça como esta?
Atrás havia dunas cobertas de entulho, restos de paredes
quebradas e topos de pirâmides menores reduzidas a pó. O
trio de pirâmides principais que dominavam Gizé formavam
uma linha diagonal, de nordeste a sudeste, com a Grande
Pirâmide de Queóps mais próxima ao Cairo. A segunda, um
pouco menor e atrás, fora atribuída pelos gregos ao Faraó
Quefren, e a terceira, menor ainda, mais a sudeste, fora
construída por um Miquerinos.
"Uma das coisas interessantes sobre a Grande Pirâmide é que
está exatamente alinhada com as direções cardeais e não
somente com o norte magnético," Jomard nos disse
enquanto descansávamos um pouco. "É tão precisa que seus
sacerdotes e engenheiros devem ter tido conhecimento
sofisticado de astronomia e topografia. Além disso, notem
como se pode escolher a direção para a qual se olha, pela
maneira como as pirâmides se relacionam umas com as
outras. O padrão de sombra trabalha como uma bússola.
Você poderia usar a relação de seus ápices e sombras para
orientar uma ferramenta de medição."
"Você acredita que são uma espécie de marco geodésico?",
perguntei.
"Essa é uma teoria. As outras dependem de medidas.
Venham." Ele e Ashraf avançaram com passos largos,
carregando bobinas de fitas de medição. Talma e eu,
acalorados e exaustos pela subida, saímos um pouco atrás.
"Nem um resquício de verde," Talma murmurou. "Um lugar
de mortos, certamente."
"Mas que tumbas, hein, Antoine?" Olhei para trás, para a
cabeça da Esfinge, tendo o rio abaixo de nós e as pirâmides
acima.
"Sim, e você sem sua chave mágica para nos deixar entrar."
"Não acredito que preciso do medalhão para isso. Jomard
disse que foram abertos séculos atrás por caçadores de
tesouros árabes. Suponha que possivelmente entraremos
sozinhos."
"De qualquer maneira, não lhe incomoda não ter o
medalhão?"
Ergui os ombros em sinal de indiferença. "Francamente, é
mais legal não carregá-lo."
Ele olhou insatisfeito para os triângulos de cor marrom
acima de nós. "Por que você confia mais na mulher do que
em mim?" A dor em sua voz me surpreendeu.
"Isso não é verdade."
"Quando lhe perguntei onde estava o colar, você mostrou-se
reservado. Mas ela o convence a entregá-lo a um idoso
egípcio que você mal conhece."
"Empréstimo, para estudo. Eu não dei a ela, eu o emprestei.
Eu confio em Enoc. Ele é uma cientista como nós."
"Eu não confio nela."
"Antoine, você está com inveja."
"Sim, e por quê? Não é só porque ela é mulher e você corre
atrás de mulheres como um cachorro atrás de um osso. Não,
é porque ela não está contando a você tudo o que sabe. Ela
tem sua própria agenda, que não é necessariamente nossa."
"Como você sabe disso?"
"Porque ela é uma mulher."
"Uma sacerdotisa, segundo ela, tentando nos ajudar." "Uma
bruxa."
"Confiar em egípcios é a única maneira de solucionar este
mistério, Antoine."
"Por quê? Eles não conseguiram resolvê-lo em cinco mil
anos. Daí aparecemos com uma bugiganga e, de repente,
temos mais amigos do que nunca? Para mim, isso é tudo
muito conveniente."
"Você é muito desconfiado."
"Você é muito ingênuo."
E, sem mais, seguimos em frente, apesar de nenhum dos
dois estar satisfeito.
Enquanto caminhávamos com dificuldade pela areia
escorregadia em direção à pirâmide maior, suando com o
calor, eu me sentia cada vez menor. Mesmo quando me
virava, o monumento parecia mais onipresente, como se nos
abocanhasse. À nossa volta via-se apenas o tempo que havia
se disseminado na areia. No nosso caminho havia pedras que
algum dia já tinham sido paredes de corredores ou quintais.
O deserto gigantesco crescia atrás de nós. Pássaros negros
voavam com a brisa do ar. Por fim paramos diante da mais
alta e maior estrutura da Terra, com dunas ondulantes ao seu
redor. Os blocos com os quais foi construída pareciam tijolos
de gigantes, maciços e pesados.
"E aqui, talvez, seja um mapa do mundo," anunciou Jomard.
Com suas feições rígidas, o cientista francês me lembrava de
alguns falcões talhados em pedra que eu havia visto na casa
de Enoc: Horus. Ele olhava para cima admirado, enquanto
observava a face triangular da pirâmide.
"Um mapa do mundo?" Talma perguntou um pouco
incrédulo.
"Assim disse Diodorus e outros antigos estudiosos. Ou,
talvez, um map; do hemisfério norte."
O jornalista, ruborizado do calor, sentou-se em uma
extremidade de un dos blocos. "Eu pensei que o mundo
fosse redondo."
"Ele é."
"Eu sei que vocês cientistas conhecem mais o assunto do
que eu, Jomard mas, a menos que eu esteja alucinando, eu
acho que a estrutura à minha frente representa algo muito
importante."
"Observação astuta, Monsieur Talma. Você talvez tenha o
conhecimento de um cientista: a idéia de um ápice
representando o Pólo, a base, o equador, e cada lado um
quarto do norte de uma semi-esfera. Como se uma laranja
fosse cortada primeiro ao meio, horizontalmente, e depois
em quatro pedaços na vertical."
"Nenhum deles triângulos planos," disse Talma, abanando-
se. "Por que não construir então um monte, como um pão,
se você quer modelar metade do nosso planeta?
"Meus mapas do Egito e do mundo são planos, e mesmo
assim representam algo redondo," o cientista respondeu.
"Nossa dúvida é se os egípcios, de modo abstrato,
desenharam a pirâmide com um ângulo e área precisos para
espelhar matematicamente nosso globo. Os povos antigos
diziam que suas dimensões correspondem a uma fração dos
trezentos e sessenta graus que divide a Terra. Este é um
número sagrado, que vem dos egípcios e babilônios, baseado
no número de dias do ano. Será que eles, de fato,
escolheram proporções para demonstrar como traduzir com
exatidão uma terra curva em uma superfície plana, como a
face de uma pirâmide? Heródoto nos diz que a área do lado
de uma pirâmide é igual ao quadrado de sua altura. Acontece
que essa proporção é a ideal para calcular a área superficial
de um círculo, como nosso planeta, de um quadrado, e
transpor os pontos de um para o outro."
"Por quê fariam isso?" perguntou o jornalista.
"Para gabarem-se, talvez, de que sabiam disso."
"Mas Jomard," contestei, "as pessoas acreditavam que o
mundo era plano, até Colombo."
"Não é verdade, meu amigo americano. A Lua é redonda. O
Sol é redondo. E os egípcios acreditavam que a Terra,
também, era redonda; e os gregos usavam medidas exatas
para calcular uma circunferência. Penso que os egípcios
procediam da mesma maneira."
"Como poderiam saber quão grande é nosso planeta?"
"É brincadeira de criança se você conhece geometria básica
e astronomia, medindo pontos fixos contra a sombra do Sol
ou o declínio das estrelas."
"Ah, sim," disse Talma. "Quando eu era bebê, eu fazia isso
antes de cochilar."
Jomard se recusou a sair por baixo. "Qualquer um que tenha
visto a sombra que a Terra faz na Lua ou um barco
desaparecer no horizonte suspeitaria que nosso planeta é
quadrado. Nós sabemos que o grego Eratosthenes usou
vários comprimentos de sombras do sol do meio-dia, no
solstício do verão, em dois pontos diferentes do Egito, para
chegar perto dos trezentos e vinte quilômetros de uma
resposta correta em 250 a.C. Esta pirâmide já tinha quase
três mil anos quando ele fez essas medidas. De qualquer
forma, o que impediria seus antigos construtores de fazer a
mesma coisa, ou medir alturas de estrelas relativas em
pontos no norte e no sul ao longo do Nilo para, de novo,
calcular os ângulos e, assim, o tamanho de nosso planeta? Se
você viajar pelo rio, a altura das estrelas sobre o horizonte
varia em muitos graus, e os marinheiros egípcios com
certeza teriam notado isso. Tycho Brahe realizou tais
medidas a olho nu e calculou com exatidão o tamanho da
Terra, então, por que não o fariam os egípcios? Nós
atribuímos o nascimento do conhecimento aos gregos, mas
eles o atribuíam aos egípcios."
Eu sabia que Jomard tinha lido mais textos antigos do que
qualquer um de nós, então observei a grande massa à minha
frente com curiosidade. Seu revestimento externo de pedra
calcária fora roubado séculos atrás para a construção dos
palácios dos muçulmanos e as mesquitas no Cairo, restando
apenas o miolo dos blocos. Entretanto cada pedaço daquilo
era colossal, colocadas em fileiras intermináveis. Comecei a
contar as filas de alvenaria e desisti de fazê-lo depois que
cheguei na centena. "Mas os egípcios não tinham navios
para circular o globo, então que importância teria para eles o
tamanho do planeta?" Eu contestei. "E construir uma
montanha que contivesse um cálculo? Não faz nenhum
sentido."
"Assim como a enganação de construir uma Igreja de São
Pedro para um Ser que santos e lunáticos garantem ver,"
Jomard retrucou. "O que não faz sentido para um homem é
o propósito da vida para um outro. Alguma vez conseguimos
nos explicar? Por exemplo, qual o propósito da maçonaria,
Talma?"
"Bem." Tivemos que parar para pensar um pouco. "Para
viver em harmonia e sermos racionais, em vez de matar-nos
uns aos outros por causa de política e religião, eu acho."
"E aqui estamos, algumas milhas distante dos restos de um
campo de batalha de um exército lotado de maçons. Afinal,
que é o lunático? Quem sabe porque os egípcios fariam tal
coisa?"
"Eu pensei que isso fosse o túmulo de um faraó," disse
Taima.
"Um túmulo sem ocupação. Quando caçadores de tesouros
árabes conseguiram entrar nele há séculos e trilharam seus
caminhos através de túneis que circulavam os tampões de
granitos que, se supõe, selariam a entrada para sempre, eles
não viram nem sinal de que qualquer rei, rainha ou qualquer
plebeu houvesse, um dia, descansado aqui. O sarcófago
estava vazio e sem tampa. Não havia nada escrito e nem
sinal de tesouro ou palavras que honrassem o nome da
pessoa para quem ele havia sido construído. A maior
estrutura da face da terra, maior que as mais altas catedrais, e
vazia como a dispensa de um camponês! Algo tão
megalomaníaco, levantada por milhares de homens, a fim
construir o seu derradeiro lugar de descanso. É muito
estranho tudo isso para ninguém descansar aqui."
Eu parecia Ashraf, que não conseguia acompanhar nosso
francês. "Para que é a pirâmide?" Perguntei em inglês.
Ele elevou os ombros, com menos admiração ao
monumento do que nós. Claro, ele viveu no Cairo toda a sua
vida. "Para segurar o céu."
Eu suspirei e me virei para Jomard. "Então você acredita que
seja um mapa?"
"Essa é uma hipótese. Outra é que suas dimensões significam
algo divino. Por milhares de anos, arquitetos e engenheiros
perceberam que algumas proporções e formas são mais
satisfatórias que outras. Elas correspondem entre si em várias
maneiras matemáticas interessantes. Alguns acreditam que
essas relações sublimes revelam verdades fundamentais e
universais. Quando nossos ancestrais construíram as
grandiosas catedrais góticas, eles tentaram usar suas
proporções dimensionais e geométricas para expressar idéias
e ideais religiosos, para efetivamente fazer com que a
construção fosse sagrada em seu próprio formato. 'O que é
Deus?' São Bernardo perguntou um vez. 'Ele é comprimen-
to, largura, altura e profundidade.'"
Lembrei da exaltação de Astiza sobre Pitágoras.
"Então?" indagou Taima.
"Então essa pirâmide pode ter sido, para os antigos que a
construíram, não a imagem do mundo, mas uma imagem de
Deus."
Inquieto, observei a vasta estrutura, enquanto meu cabelo
grudava no meu pescoço. Estava em silêncio, e, mesmo
assim, de lugar nenhum, senti um sombaixo, como quando
se pressiona uma concha contra o ouvido. Seria Deus um
número, uma dimensão? Havia algo de Deus naquela
simplicidade perfeita à minha frente.
"Infelizmente," continuou Jomard, "todas essas idéias são
difíceis de serem verificadas até que sejam realizadas as
medidas para confirmar se realmente altura e perímetro
combinam em escala com as dimensões da Terra. Isso será
impossível de ser feito até que escavemos o suficiente para
encontrar a verdadeira base e cantos da pirâmide. Precisarei
de um pequeno exército de trabalhadores árabes."
"Suponho que podemos retornar então," disse Talma
esperançoso.
"Não," respondeu Jomard. "Podemos pelo menos começar a
medir sua altura pelo pedaço mais baixo que podemos
visualizar. Gage, você ajudará com a fita. Talma, você deve
ter muito cuidado para anotar cada altura de pedra que lhe
daremos."
Meu amigo me olhou com dúvida. "Tudo isso para quê?"
"O sol está começando a descer. Quando chegarmos ao topo,
estará mais frio."
Ashraf preferiu ficar embaixo, pois acreditava que tamanha
escalada era algo que apenas europeus malucos poderiam
fazer. E, realmente, não era fácil. A pirâmide parecia cada
vez mais íngreme conforme subíamos.
"Uma ilusão óptica fazia com que parecesse mais grossa do
que realmente é, quando olhávamos para frente," explicou
Jomard.
"Você não disse isso antes de nós começarmos a subir,"
reclamou Talma.
Levou mais de meia hora de cuidadosa escalada para que nós
três chegássemos na metade do caminho. Era como escalar
blocos infantis gigantescos, uma escada gigante, sendo que
cada degrau media aproximadamente dois pés e meio de
altura. Além disso, havia a possibilidade de uma queda muita
feia. Nós medíamos cuidadosamente cada miolo de pedra
enquanto subíamos, enquanto Talma mantinha os registros.
"Olhe o tamanho desses monstros," disse o jornalista. "Eles
devem pesar várias toneladas. Por que não construir com
pedaços menores?"
"Por razões de engenharia, talvez?" Sugeri.
"Não há requisitos arquitetônicos para pedras tão grandes,"
disse Jomard. "Entretanto os egípcios cortavam esses
beemontes , faziam com que flutuassem no Nilo, os
empurravam montanha acima, e, de alguma forma, os
levantavam até essa altura. Gage, você é um especialista em
eletricidade. Poderiam eles ter usado tal força misteriosa para
mover essas rochas?"
"Se a utilizaram, eles possuíam maestria em algo que mal
compreendemos. Posso projetar uma máquina para lhe dar
um pequeno choque, Jomard, mas não para fazer qualquer
tipo de trabalho útil." Novamente me senti inadequado para
a missão a que me propus. Olhei em volta, a fim de poder
contribuir com algo concreto. "Aqui tem alguma coisa.
Algumas dessas pedras têm conchas." Apontei.
O cientista francês seguiu meu dedo. "Realmente!", disse
surpreso. Ele agachou-se para inspecionar a pedra calcária
que eu apontei. "Não conchas, mas fósseis de conchas, como
se esses blocos fossem do fundo do mar. E uma curiosidade
que tem sido notada nas cordilheiras européias, e que tem
gerado um novo debate sobre a idade da Terra. Alguns
dizem que criaturas do mar foram carregadas para cima pelo
dilúvio, mas outros argumentam que nosso mundo é bem
mais velho que a contagem da Bíblia, e que nossas
montanhas atuais já estiveram debaixo do oceano."
"Se isso for verdade, as pirâmides podem ser mais velhas que
a própria Bíblia," sugeri.
"Sim. Mudar a escala do tempo muda tudo. " Ele passava os
olhos pela pedra calcária, admirando as impressões das
conchas. "Olhe, ali! Temos até um náultilo!"
Talma e eu olhamos por cima de seu ombro. Incrustado no
bloco de pirâmide havia um corte transversal de uma
concha náutica espiral, uma das formas mais lindas da
natureza. Começando em sua ponta espiralada, sua câmara
crescia em proporções agradáveis e delicadas, enquanto a
criatura do mar crescia em uma elegante espiral externa. "E
isso faz você pensar em quê?" perguntou Jomard.
"Comida do mar," disse Talma. "Estou com fome."
Jomard ignorou o comentário, olhando para a espiral na
pedra, transferida por uma razão que eu não compreendia.
Longos minutos se passaram e me atrevi a olhar lá do alto.
Um falcão planava na mesma altura em que estávamos.
Aquilo me deixou tonto.
"Jomard?" Talma finalmente chamou. "Você não tem que
ficar observando o fóssil. Ele não vai sair correndo."
Como resposta, o cientista de repente tirou de sua bolsa de
sobrevivência um martelo para pedras e começou a dar leves
batidas nas pontas dos blocos. Já havia uma rachadura perto
do fóssil, que ele aproveitou, conseguindo soltar a espécie
marinha e a segurou em sua mão. "Poderia ser?" ele
murmurou, girando a elegante criatura para ver seus padrões
de luz e sombra. Ele parecia ter se esquecido de nossa
missão, e de nós.
"Ainda temos um longo caminho até o topo," avisei, "e está
ficando tarde."
"Sim, sim." Ele piscou como se acordasse de um sonho.
"Deixe-me pensar sobre isso lá em cima." Ele colocou a
concha em sua mochila. "Gage, segura a fita. Talma, deixe o
lápis pronto!"
Chegar ao topo nos tomou mais meia hora de cautelosa
subida. Era mais de quatrocentos e cinqüenta pés de altura,
de acordo com nossos números, mas aquilo não passava de
numa medida aproximada. Olhei para baixo. Os poucos
soldados franceses e beduínos que podíamos ver pareciam
formigas. Felizmente, já não havia mais pedra no topo da
pirâmide, então havia um espaço do tamanho de uma cama
onde podíamos ficar de pé.
Eu me senti mais perto do céu. Não havia montanhas que
competissem, apenas o deserto, o fio prateado do rio Nilo e
o colar verde em cada uma das margens. O Cairo, do outro
lado do rio, brilhava como mil torres de mesquitas, e podia
se escutar o gemido dos fiéis em oração. O campo de batalha
de Imbaba era uma arena empoeirada, salpicado de covas
onde os mortos eram jogados. Longe, ao norte, o
Mediterrâneo era invisível sobre o horizonte.
Jomard tirou da mochila o fóssil náutilo novamente. "Há
uma claridade aqui em cima, não acham? Este templo
focaliza isso." E começou a anotar alguns números.
"E não mais do que isso," disse Talma, sentado em total
resignação. "Eu mencionei que estou com fome?"
Mas Jomard estava perdido novamente em algum mundo
próprio, então finalmente nós ficamos quietos por algum
tempo, já acostumados a essas meditações dos cientistas.
Parecia que o mundo se curvava, e depois pensei que não
passava de ilusão devido à altura. Havia uma espécie de foco
no ápice da estrutura, de qualquer maneira eu gostei da
sensação de isolamento silencioso. Algum outro americano
teria subido até aqui?
Finalmente Jomard levantou-se, pegou um fragmento de
pedra do tamanho de seu pulso e o atirou o mais longe
possível. Acompanhamos a parábola de sua queda,
imaginando se poderíamos atirar longe o suficiente para
passar a base da pirâmide. Ele não podia, e a pedra chocou-se
contra um bloco mais abaixo, começando a saltar,
despedaçando-se. Seus pedaços rolaram em direção à base.
Ele olhou para baixo por um momento, como se pensasse
em sua mira. Então virou-se para nós. "Mas é claro! É tão
óbvio. E seu olho, Gage, tem sido a chave!"
Eu me endireitei. "Tem?"
"Em que maravilha estamos parados! Que auge de
pensamento, filosofia e cálculo! Foi o náultilo que me fez
ver isso!" Talma parecia não entender nada. "Fez ver o quê?"
"Algum de vocês já ouviu falar sobre a seqüência de
números de Fibonacci?"
Nosso silêncio respondia tudo.
"Chegou à Europa perto do ano de mil e duzentos por
Leonardo de Pisa, também conhecido como Fibonacci,
depois que ele estudou no Egito. Sua origem real vai muito
além no passado, a épocas desconhecidas. Veja", ele mostrou
seu papel. Nele havia uma série de números: 1, 1, 2, 3, 5, 8,
13, 21, 34, 55. "Vocês vêem o padrão?"
"Eu acho que joguei esses números na loteria," disse Talma.
"Eu perdi."
"Não, vêem como funciona?" insistiu o cientista. "Cada
número é a soma dos dois anteriores. O próximo na
seqüência, somando o trinta e quatro com o cinqüenta e
cinco, seria o oitenta e nove."
"Fascinante", disse Talma.
"Agora o mais impressionante sobre essa série é que com
geometria, pode-se representar essa seqüência não como
números, mas como padrão geométrico. Você faz isso
desenhando quadrados." Ele desenhou dois quadrados
pequenos lado a lado e colocou o número "1" dentro de cada
um. "Vejam, aqui temos os dois primeiros números da
seqüência. Agora desenhamos um terceiro quadrado ao lado
dos dois primeiros, do tamanho dos dois primeiros
combinados, e nele colocamos o número "2." Depois um
quadrado com os lados do tamanho do quadrado número um
e do quadrado número dois combinados, e lhe damos o
número "3." Vêem?" Ele rabiscava rapidamente. "O lado do
novo quadrado é a soma dos dois quadrados anteriores,
assim como o número da seqüência de Fibonacci é a soma
dos dois números anteriores. As áreas dos quadrados
rapidamente vão crescendo.
Em pouco tempo, ele tinha um desenho como este:
"O que significa o número no topo, o 1.6-alguma coisa?"
Perguntei.
"É a proporção do comprimento do lado de cada um dos
quadrados em relação ao menor anterior," respondeu Jorna
rd. "Vejam que as linhas do quadrado "3" tem comprimento
proporcional às linhas do quadrado "2" assim como a
proporção dos quadrados oito e treze."
"Não entendi."
"Veja como a linha do topo do quadrado três é dividida em
dois comprimentos diferentes devido à junção dos
quadrados um e dois?" Jomard explicou pacientemente. "A
proporção entre o comprimento da linha mais curta e da
linha mais longa se repete de novo e de novo, não
importando o tamanho do diagrama. A linha mais longa não
é uma vez e meia maior que a linha mais curta, mas 1.618,
ou o que os gregos e italianos chamam de Número Dourado
ou Seção Dourada."
Tanto Talma como eu nos ficamos admirados. "Você quer
dizer que tem ouro aqui?"
"Não, seus idiotas." Ele sacudiu a cabeça com desgosto.
"Apenas que as proporções parecem perfeitas quando
aplicadas à arquitetura, ou a monumentos como esta
pirâmide. Há algo sobre esta proporção que torna tudo
muito agradável ao olho. Catedrais foram construídas para
refletir esses números divinos. Pintores renascentistas
dividiam suas telas em retângulos e triângulos representando
a Seção Dourada para fazer composições harmoniosas.
Arquitetos gregos e romanos usaram isso em templos e
palácios. Agora, precisamos confirmar minha teoria com
medidas mais precisas do que as que fizemos hoje, mas meu
palpite é que esta pirâmide tem a inclinação precisa do
número dourado, 1.618."
"O que o náultilo tem a ver com isso?"
"É o seguinte: primeiro, imaginem um linha descendo do
topo deste colosso até a base, diretamente até a base."
"Posso garantir que é uma linha longa, depois dessa subida
árdua," disse Talma.
"Mais de cento e trinta e sete metros," concordou Jomard.
"Agora imaginem uma linha do centro da pirâmide até seu
canto externo."
"Ela teria a metade da largura de sua base," arrisquei, ficando
com dois pés atrás que sempre fiquei em relação a Benjamin
Franklin.
"Exatamente!" gritou Jomard. "Você tem jeito com a
matemática, Gage! Agora, imaginem uma linha que sai desse
canto externo da pirâmide, subindo até seu topo, onde
estamos agora, completando o triângulo retângulo. Minha
teoria é que considerando a linha da base da pirâmide como
1, a linha que sobe até o topo seria 1.618 — a mesma
proporção harmônica dos quadrados que desenhei!" Ele
parecia triunfante.
Nós parecíamos dois bobos.
"Não vêem? Esta pirâmide foi construída de acordo com os
números de Fibonacci, os quadrados de Fibonacci ou os
números dourados que os artistas sempre acharam
harmoniosos. Não apenas parece correto, isso é correto!"
Talma olhou para as outras duas pirâmides vizinhas. "Então
elas são todas assim?"
Jomard balançou a cabeça. "Não, esta aqui é especial, eu
suspeito. É um livro, que tenta nos dizer algo. É único por
uma razão que eu ainda não entendi."
"Me desculpe, Jomard," disse o jornalista. "Estou feliz por
você estar tão animado, mas o fato de linhas imaginárias
serem igual a 1.6, ou seja lá o que você disse, parece uma
razão ainda mais idiota para se construir uma pirâmide do
que chamar algo pontudo um hemisfério ou construir um
túmulo onde ninguém será enterrado. Para mim, se qualquer
uma dessas opções for verdadeira, seus antigos egípcios são
tão loucos quanto sábios."
"Ah, mas é aí que você se engana, meu amigo," respondeu o
cientista muito feliz. "Eu não culpo seu ceticismo, contudo,
eu não enxerguei o que estava diante de meu nariz o dia
todo, até que o olho afiado de Gage me ajudou a encontrar o
fóssil náutilo. Ou seja, a seqüência Fibonacci, traduzida em
geometria Fibonacci, transforma-se em um dos desenhos
mais lindos da natureza. Vamos desenhar arcos através
destes quadrados, de um canto até o outro e depois conectar
os arcos." Ele virou o desenho. "Aí teremos um desenho
assim:"
8
1
2
1
"Aqui está! Como que se parece?"
"O náultilo," arrisquei novamente. O homem era
absurdamente inteligente, mesmo assim eu ainda não
entendia aonde ele queria chegar.
"Exatamente! Imaginem se eu expandir esta figura
adicionando mais quadrados: o vinte e um, o trinta e quatro
e assim sucessivamente. A espiral continua crescendo,
girando e girando, maior e maior, cada vez mais parecida
com o náutilo. E este padrão de espiral é algo que vemos
muitas vezes. Quando se aplica a seqüência Fibonacci à
geometria, e aí aplicamos essa geometria à natureza, você vê
esse sublime padrão numérico, esta espiral perfeita, sendo
usada pelo próprio Deus. Você encontrará esta espiral numa
semente de flor ou nas sementes de um pinheiro. As pétalas
de muitas flores são números Fibonacci. Um lírio tem três,
um ranúnculo, cinco, uma espora de jardim, oito, cravos de
milho, treze, alguns ásteres tem vinte e um e algumas
margaridas, trinta e quatro. Nem todas as plantas seguem o
padrão, mas muitas seguem porque essa é a maneira mais
eficiente de empurrar sementes em crescimento ou pétalas
de um centro comum. Também é muito linda. Então, agora
podemos ver como é maravilhosa esta pirâmide!" Ele se
sentia satisfeito com sua própria explicação.
"É uma flor?" perguntou Talma, assim eu não era o único
chato.
"Não." Ele estava sério. "O que escalamos não é somente um
mapa do mundo, senhor jornalista. Não é também apenas
um retrato de Deus. É de fato um símbolo de toda criação, a
força da vida, uma representação matemática de como
funciona o Universo. Esta massa de pedras incorpora não so-
mente o divino, mas o mais verdadeiro segredo da
existência. Tem codificado, dentro de suas dimensões, as
verdades fundamentais de nosso mundo. Os números
Fibonacci são a natureza em sua maior eficiência e beleza,
um máximo de inteligência Divina. E esta pirâmide guarda
tudo isso, e fazendo isso guarda a mente do próprio Deus."
Ele sorriu. "Aqui estava, toda a verdade da vida nas
dimensões desta primeira grandiosa construção, e tudo
desde então tem sido um grande esquecimento."
Talma ficou em silêncio como se nosso companheiro tivesse
enlouquecido. Eu me sentei, sem saber no que pensar. Esta
pirâmide realmente existiria para conservar números?
Parecia estranho, mas talvez os antigos egípcios pensavam
diferente. Então meu medalhão era algum tipo de pista
matemática ou algum símbolo? Estaria ele conectado a
alguma estanha teoria de Jomard? Ou o cientista lia algo em
sua mente que os construtores nunca imaginaram?
Em algum lugar naquela direção estava o L'Orient, com um
calendário que pode ter mais chaves para o quebra-cabeça e
que parecia a próxima coisa que eu deveria examinar.
Quando pensei em tocar o medalhão que estava escondido
contra o meu peito, me senti mal por ele não estar lá. Talvez
Talma tivesse razão, eu era muito ingênuo. Eu deveria
confiar em Enoc? E com o triângulo retângulo de Jomard em
mente, imaginei os braços do medalhão como varas,
apontando para algo debaixo de meus pés.
Eu olhei para baixo e vi o vertiginoso caminho que subimos.
Ashraf movia-se para seguir a linha da sombra da pirâmide,
olhando para a areia em vez de olhar para o céu.
Capítulo Doze
Napoleão estava de bom-humor quando pedi licença para
retornar à nau capitânia, mostrando a confiança de um
homem que sentia que seus esquemas para conquistar a
glória oriental estavam se encaixando. Ele era apenas mais
um entre vários generais que lutaram nos campos de batalha
da Europa, mas aqui ele era onipotente, um novo faraó. Ele
se deleitou com sua posição na guerra, confiscando o
tesouro dos mamelucos para adicioná-lo a sua fortuna
pessoal. Ele até experimentou as vestes portentosas de um
otomano, mas apenas uma vez - seus generais riram dele.
Mesmo que a nuvem escura que cobriu Napoleão quando
ele soube da traição de Josefina ainda não tivesse se
dissipado, ele suavizou sua dor arranjando sua própria
concubina. De acordo com o costume local, o francês
examinou um desfile de cortesãs egípcias oferecidas pelos
governantes das cidades, mas quando os oficiais dispensaram
a maioria dessas supostas beldades por causa de sobrepeso e
deselegância — os europeus gostavam de suas mulheres
jovens e magricelas —, Bonaparte se consolou com Zenab, a
filha de Sheikh El-Bekri. O pai da moça de dezesseis anos
ofereceu seus serviços em retribuição à ajuda do general
numa disputa contra outro nobre, por causa de um jovem
que caiu nas graças de dois xeiques. O pai ficou com o garoto
e Napoleão levou Zenab.
Essa donzela, que aceitou docilmente o acordo, logo se
tornou a "egípcia do general". Bonaparte estava ansioso para
trair sua esposa e empatar a disputa, e Zenab estava
encantada porque o "Sultão Kebir" a escolheu entre tantas
mulheres mais experientes. Após alguns meses, o general
sentiu-se entediado com a garota e começou a se relacionar
com a bela francesa Pauline Foures, chifrando o infeliz
marido que foi enviado para a França com a missão de
entregar despachos. Os britânicos ficaram sabendo do
relacionamento por boatos em cartas interceptadas. Eles
capturaram o navio do tenente e, com um senso de humor
maldoso, o devolveram ao Egito com o único e simples
propósito de atrapalhar a vida amorosa de Bonaparte. Assim
acontecia uma guerra em que as fofocas eram armas
políticas. Estávamos envolvidos num conflito no qual a
paixão era política, e a mistura humana de sonhos globais e
luxos triviais fascinava a todos nós. Ele era Prometeu e
homem-comum, tirano e republicano, idealista e cínico.
Naquela época, Bonaparte começou a refazer o Egito. Apesar
da inveja de seus generais, ficava claro para nós, cientistas,
que ele era mais inteligente do que qualquer um deles. Eu
mesmo não julgo a inteligência pelo que se sabe, mas pelo
que se quer saber, e Napoleão queria saber sobre tudo. Ele
devorava informação como um glutão devora comida, e
tinha interesses muito maiores do que qualquer oficial do
exército, até mesmo Jomard. Ao mesmo tempo, ele conse-
guia trancar sua curiosidade como se fosse um baú, para tirar
depois, enquanto se concentrava com intensidade na missão
militar que tinha em mãos.
Era uma combinação rara. Bonaparte sonhava em remodelar
o Egito, assim como Alexandre tinha refeito o Império
Persa, e enviou memorandos para a França solicitando de
tudo, desde sementes até cirurgiões. Se os macedônios
fundaram Alexandria, Napoleão estava determinado a fundar
a colônia francesa mais rica da História. Governantes locais
se reuniam em um Conselho de Estado para ajudar com a
administração e os impostos, enquanto cientistas e
engenheiros eram bombardeados com questões sobre
perfuração, construção de moinhos de vento, melhorias
viárias, e extração de minerais. Cairo seria reformado. A
ciência tomaria o lugar da superstição. A Revolução chegaria
ao Oriente Médio!
Então, quando me aproximei para pedir permissão para
retornar à nau capitânia, foi com ar afável que perguntou:
"Este calendário antigo nos diz o que, exatamente?"
"Pode nos ajudar a encontrar o sentido do medalhão e de
minha missão, fornecendo algum tipo de ano-chave ou data.
De que maneira, não se sabe, mas o calendário não ajuda se
estiver confinado em um navio."
"O confinamento previne que seja roubado." "Eu pretendo
examiná-lo, general, não vendê-lo."
"Claro. E você não revelará segredos sem antes dividi-los
comigo, o homem que o protegeu de acusações de
assassinato na França. Não é, monsieur Gage?" "Estou
trabalhando em conjunto com seus cientistas no momento."
"Bom. Você deverá receber mais ajuda em breve." "Ajuda?"
"Você verá. Enquanto isso, espero que você não esteja
pensando em abandonar nossa expedição, tentando
embarcar no navio para a América. Você compreende que
se eu permitir que você volte ao L'Orient por causa dessa
engenhoca, sua garota escrava e seu prisioneiro mameluco
ficarão aqui no Cairo, sob minha proteção." Seu semblante
estava cerrado.
"Mas é claro." Percebi que ele atribuiu tamanha importância
emocional a Astiza que nem mesmo eu havia admitido.
Quem disse que eu me importava se a vida dela dependia da
minha conduta? Eu não pensava nela nesses termos, mas
mesmo assim eu estava intrigado com ela, e admirava como
Napoleão percebia meu sentimento. Nada lhe passava
despercebido. "Eu retorno para eles assim que puder.
Entretanto, gostaria de levar comigo meu amigo, o jornalista
Talma."
"O escriba? Eu preciso dele aqui, para registrar minha
administração."
Talma estava impaciente, pediu para ir junto, para que
pudesse visitai Alexandria, e eu gostava de sua companhia.
"Ele está ansioso para enviar seus relatos no navio mais
rápido. Ele também gostaria de conhecer mais do Egito e
fazer com que a França tomasse interesse pelo futuro deste
país."
Napoleão considerou. "Traga-o de volta em uma semana."
"Serão dez dias, no máximo."
"Você levará despachos meus para o almirante Brueys, e
monsieur Talma pode levar alguns até Alexandria. Quero
suas impressões e as considerações de ambos quando
regressarem."
Apesar dos receios de Talma, deixei o medalhão com Enoc.
Ele encontrou falas de deuses, estrelas e uma porta secreta
em seus velhos livros, e eu esperava que ele, em breve,
encontrasse alguma informação sobre o medalhão. Enquanto
isso, eu examinaria o antigo calendário que estava no
L'Orient esperando que ele pudesse dar uma pista sobre o
propósito do pingente. Além dc mais, era um alívio não tê-
lo pendurado em meu pescoço e num lugar seguro. Avisei
Astiza que deveria ficar lá dentro, em segurança, e pedi a
Ashraf que mantivesse ambos sob proteção. "Eu não o
guiarei até a costa?"
"Bonaparte diz que a sua presença aqui garante meu retorno.
E eu voltarei." Dei palmadas em suas costas. "Somos
parceiros, todos nós nesta casa, Cidadão Ash. Você não me
trairá, certo?"
Ele se endireitou. "Ashraf guardará esta casa com sua vida."
Eu não queria carregar meu rifle pesado a uma breve viagem
por um país conquistado, mas também não queria que
brincassem com ele. Depois de refletif, me lembrei do
comentário de Ash sobre sua superstição e medo de
maldições e o guardei junto com meu machado em um dos
sarcófagos vazios de Enoc. Estariam seguros lá.
Estranhamente, Talma não comentou minha decisão de
confiar meu medalhão aos egípcios, em vez disso, perguntou
a Astiza se ela tinha alguma mensagem para enviar para
Alexandria. Ela disse que não.
Alugamos uma felucca para nos levar de volta ao Nilo. Essas
ágeis embarcações, subindo e descendo o largo e lento Nilo
com suas velas triangulares, assim como os burros enchiam
as ruas do Cairo. Foram vários minutos de cansativas
barganhas, mas logo estávamos a bordo e nos dirigíamos
para Abukir, guiados por um timoneiro que não falava nem
francês nem inglês. A língua de sinais era suficiente e nós
apreciamos a viagem. Quando, mais uma vez, entramos no
delta fértil de rios do Cairo, mais uma vez me impressionou
a serenidade infinita das cidadelas ao longo das margens do
rio, como se os franceses nunca tivessem passado por aqui.
Burros carregavam montes monumentais de palha. Meninos
pulavam e brincavam no raso, indiferentes aos crocodilos
que deitavam como cachorros nas laterais silenciosas dos
canais. Nuvens de garças brancas levantavam vôo nas ilhas
de bambu verde. Peixes prateados pulavam e mergulhavam
entre talos de papiros. Amontoados de vegetação traziam
lírios e flores de lótus flutuando pelo Nilo de locais
longínquos da África. Meninas com vestidos alegres se
sentavam nos telhados planos das casas, escolhendo tâmaras
ao sol.
"Eu não imaginava que conquistar um país era tão fácil,"
Talma comentou enquanto a corrente nos carregava pelo
rio. "Algumas centenas de mortos e somos mestres do lugar
onde toda a civilização começou. Como Bonaparte sabia?"
"É mais fácil tomar um país do que administrado," eu disse.
"Exatamente." Sentado, se apoiou na amurada, admirando
calmamente a paisagem que passava. "Aqui estamos,
senhores do calor, moscas, esterco, cachorros enraivecidos e
camponeses analfabetos. Soberanos da palha, areia e água
verde. Eu lhe digo, é disso que são feitas as lendas."
"Que é sua especialidade, como nosso jornalista."
"Minha pena transformou Napoleão em visionário. Ele
permitiu que eu viesse com você porque eu concordei em
escrever sua biografia. Eu não me oponho. Ele disse que
devemos ter mais medo de jornais inimigos do que de mil
baionetas. Isso não é exatamente uma novidade para mim.
Quanto mais heróico eu o fizer parecer, mais rápido ele
satisfaz suas ambições e mais rápido poderemos todos voltar
para casa."
Eu sorri pela maneira enfadonha que os franceses
enxergavam o mundo após tantos anos de guerras, reis e
terror. Nós, americanos, somos mais inocentes, mais
determinados, mais honestos, e ficamos desapontados com
mais facilidade.
"De qualquer maneira é um país maravilhoso, não é?",
perguntei. "Estou surpreso pela riqueza da vegetação. O Nilo
corre liso em um jardim de luxo, e, então, a paisagem muda
tão abruptamente para um deserto que se pode definir o
limite entre a vida e a morte com a ponta de uma espada.
Astiza me disse que os egípcios chamam a parte fértil de
terra preta, por causa do solo, e o deserto de terra vermelha,
por causa da areia."
"E eu chamo tudo de terra marrom, por causa do tijolo de
barro, os camelos desagradáveis e os burros barulhentos.
Ashraf contou a história de um egípcio que naufragou e
voltou à sua vila anos após ter sido dado como morto. Ele
ficou longe o mesmo tempo que Ulisses. Sua esposa fiel e
suas crianças correram para recebê-lo. E quais foram suas
primeiras palavras? Ah, aí está meu burro!'"
Eu sorri. "O que vai fazer durante esse tempo em
Alexandria?"
"Ambos lembramos do paraíso que é. Eu quero tomar notas
e fazer perguntas. Há livros para serem escritos aqui, mais
interessantes do que uma simples hagiografía de Bonaparte."
"Você poderia perguntar sobre Achmed Bin Sadr."
"Você tem certeza que foi ele que você viu em Paris?"
"Não tenho, não. Estava escuro, mas a voz é a mesma. Meu
guia tinhs um cajado esculpido em forma de cobra. Astiza
me salvou de uma cobra em Alexandria. E ficou interessado
demais em mim."
"Napoleão parece confiar nele."
"Mas e se esse Bin Sadr, na verdade, não trabalhar para
Bonaparte, mas para o Rito Egípcio? E se ele for um
operativo do conde Alessandro Silano, que quer
desesperadamente o medalhão? E se ele tiver alguma coisa a
ver com o assassinato da pobre Minette? Cada vez que ele
olha para mim é como se ele estivesse procurando pelo
medalhão. Então quem é ele, realmente?"
"Você quer que eu seja o seu detetive?"
"Uma investigação discreta. Estou cansado de surpresas."
"Eu vou aonde a verdade me leva. De cima a baixo, e da
cabeça aos ..." ele olhou diretamente para minhas botas -
"pés."
Sua confissão naquele instante foi óbvia. "Foi você quem
roubou meus sapatos no L'ORIENT"!
"Eu não os roubei, Ethan, tomei emprestado para inspeção."
"Eu não pensei que você tivesse feito isso."
"Guardei um segredo de você, assim como você escondeu o
medalhão de mim. Eu estava preocupado que você fosse
perdêdo durante o ataque a nossa carruagem, mas estava
muito constrangido para admitir. Eu botei fé em sua
presença nesta expedição para Berthollet principalmente por
causa da força do medalhão, mas quando nos reunimos em
Toulon você se recusou a mostrado para mim. O que eu
deveria pensar? Era minha responsabilidade para com os
cientistas tentar entender o que você estava tramando."
"Não havia nenhuma trama. Era simplesmente porque todas
as vezes que eu mostrava o medalhão ou falava sobre ele, eu
entrava em apuros."
"Dos quais eu tirei você. Você podia ter confiado um pouco
em mim." Ele arriscou sua própria vida para me ajudar a vir
para cá, e eu não o tratei como um parceiro. Sua inveja tinha
razão.
"Você podia ter deixado minhas botas em paz," eu
acrescentei.
"Mantêdo escondido não o protegeu de ter uma cobra jogada
em sua cama, não é? Aliás, qual é o lance com cobras? Eu
detesto cobras."
"Astiza disse que existe um tipo de deus cobra," eu disse,
concordando em mudar de assunto. "Seus seguidores
criaram um culto moderno, eu acho, e talvez nossos
inimigos sejam parte dele. Sabe, o cajado com cabeça de
cobra de Bin Sadr me lembra de uma história da Bíblia.
Moisés jogou seu cajado no chão diante do faraó e ele se
transformou em uma serpente."
"Agora o assunto é Moisés?"
"Estou tão confuso quanto você, Antoine."
"Mais ainda, eu acho. Pelo menos Moisés tinha bom-senso
para tirar seu povo deste país insano."
"É uma história estranha, não?" "O quê?"
"As dez pragas que Moisés tinha que trazer. Cada vez que
um dos desastres acontecia, a dúvida aumentava no coração
do Faraó e ele pensava em deixar os hebreus partirem. Daí,
ele mudava de idéia até que Moisés chegava com a próxima
praga. Ele devia realmente precisar daqueles escravos."
"Até a última praga, quando seu filho mais velho morreu.
Foi então que o Faraó deixou que eles partissem."
"E mesmo com tudo aquilo, ele mudou de idéia novamente
e perseguiu Moisés com seu exército. Se ele não tivesse feito
isso, ele e seus homens nunca teriam morrido quando o Mar
Vermelho se fechou. Por que ele não desistiu? Por que não
deixar Moisés simplesmente ir embora?"
"O Faraó era teimoso, como nosso próprio pequeno general.
Talvez essa seja a lição da Bíblia, que algumas vezes você
tem que deixar as coisas irem embora. Perguntarei onde
puder sobre seu amigo reptiliano, mas estou surpreso que
você não tenha pedido que eu pergunte sobre outra pessoa."
"Quem?"
"Astiza, é claro."
"Acho que ela está em segurança. Como cavalheiros, temos
que respeitar a privacidade de uma mulher."
Talma bufou. "E agora ela está com o medalhão — o mesmo
medalhão que eu não pude ver, e no qual o terrível Bin Sadr
não conseguiu colocar as mãos!"
"Você ainda não confia nela?"
"Confiar em uma escrava, uma franco-atiradora, uma
beldade, uma bruxa? Não. E eu gosto dela mesmo assim."
"Ela não é uma bruxa."
"Ela é uma sacerdotisa que lança feitiços, você me disse. Que
obviamente está enfeitiçando você, e que se apoderou
daquilo que nos trouxe até aqui." "Ela é uma parceira. Uma
aliada."
"Eu gostaria que você fosse para a cama com ela, como todo
mestre tem o direito de fazer. Assim você poderia limpar sua
mente e a veria do jeito que ela é."
"Se eu fizer ela dormir comigo, não conta."
Ele balançou a cabeça em sinal de pena. "Bem, eu vou
perguntar sobre ela mesmo que você não queira, porque eu
descobri uma coisa que você não sabe." "O quê?"
"Que quando ela morou no Cairo, ela teve algum tipo de
relacionamento com um estudioso europeu que
supostamente pesquisava segredos antigos." "Qual
estudioso?"
"Um nobre franco-italiano chamado Alessandro Silano."
O poder dos franceses era visível na baía de Abukir. O
almirante François-Paul Brueys D'Aigalliers criou uma
barreira defensiva de madeira e aço. Na chegada ao Egito, ele
inspecionou o desembarque de Napoleão e suas tropas como
um diretor de escola dispensando uma sala de aula
indisciplinada. Seus navios de batalha ainda estavam
ancorados em uma longa fileira, com as portinholas abertas e
quinhentos canhões apontando diretamente para o mar.
Uma leve brisa vinda do nordeste empurrava as ondas
contra as embarcações, balançando-as como berços
majestosos.
Somente quando velejamos em direção ao lado que está a
sotavento, atrás dos navios, percebi que apenas metade
daqueles navios estava pronta para a guerra. Os franceses
ancoraram a dois quilômetros da praia em uma baía pouco
profunda, e a metade dos navios que se dirigiam à terra
estavam em manutenção. Os marinheiros uniformizados
montavam em andaimes para pintar os cascos. Botes de
desembarque eram usados como balsas para suprimentos e
marujos. As roupas de uso e de cama secavam ao sol. Os
canhões estavam fora das posições por causa de reparos.
Tendas foram montadas nos passadiços quentes. Centenas de
marinheiros estavam em terra firme cavando poços e
manejando caravanas de camelos e burros que traziam
provisões de Alexandria. Por um lado era uma fortaleza
marítima, por outro era um mercado.
Ainda assim, o L'Orient era um dos maiores navios de guerra
do mundo. Parecia um castelo e subir sua escadaria era como
escalar um gigante. Eu gritei para anunciar minha chegada e,
enquanto afelucca se afastava para levar Taima, eu já estava a
bordo. Era Io de agosto de 1798, o sol estava forte, a costa
reluzia como ouro, e o mar brilhava num azul vazio.
Fui conduzido à cabine principal que o almirante
reivindicou de Napoleão. Brueys trajava uma camisa branca
de algodão, aberta no pescoço e encarava uma mesa cheia de
papelada. Mesmo com a brisa do mar, ele suava e estava
surpreendentemente pálido. Fisicamente, ele era o oposto
do general: quarenta e cinco anos, com cabelo longo e
pálido, uma boca larga e generosa, olhos amistosos e estatura
elevada. Se a aparência de Bonaparte era energética, a de
Brueys era calma, de um homem tranqüilo consigo mesmo e
com sua estação. Ele pegou os despachos do general, fez
uma leve careta, e, educadamente, por causa da amizade
passada entre nossos países, perguntou meu propósito.
"Os cientistas começaram investigações sobre as ruínas
antigas. Eu desconfio que o calendário ligado a Cagliostro
possa ser útil para entender a mente dos egípcios. Bonaparte
me deu permissão para examiná-lo." Eu lhe transmiti a
ordem.
"A mente dos egípcios? Qual o uso disso?"
"As pirâmides são tão extraordinárias que não entendemos
como foram construídas. Este instrumento é uma pista."
Ele parecia cético. "Uma pista se nós quiséssemos construir
pirâmides."
"Minha visita à seu navio será breve, almirante. Eu tenho
documentos que me permitem levar a antiguidade ao Cairo."
Ele acenou com a cabeça exaustivamente. "Perdoe-me por
não ser mais cortês, monsieur Gage. Não é fácil trabalhar
com Bonaparte, e eu estou com disenteria desde que
chegamos a este país maldito. Minha barriga dói, meus
navios precisam de suprimentos, e minha tripulação mal-
educada é formada principalmente por aqueles ruins demais
para fazer parte do exército."
A doença explicava sua palidez. "Então, eu não vou
incomodá-lo mais. Se puder designar uma escolta até o
depósito..."
"Mas é claro." Ele suspirou. "Eu o convidaria para o jantar se
eu pudesse comer. E outra coisa, como você pode ser
problema se tudo que fazemos é ficar aqui ancorados,
esperando que Nelson nos encontre? É loucura manter a
frota no Egito, mesmo assim Napoleão se agarra aos meus
navios como uma criança ao seu cobertor."
"Seus navios são críticos para todos os planos do general."
"Fico lisonjeado. Bem. Deixe-me apresentá-lo ao filho do
capitão, um rapaz brilhante e promissor. Se você conseguir
acompanhar o ritmo dele, é porque está em melhor forma
do que eu."
O aspirante Giocante, um menino de dez anos de idade, era
o filho do capitão do navio, Luce Casabianca. Um garoto
esperto, de cabelo escuro que explorou cada fenda do
L'Orient. Ele me levou até o tesouro com a agilidade de um
macaco. Nossa descida foi mais fácil do que da última em
que eu percorri o caminho com Monge, e o sol entrava por
entre as portinholas abertas. Um cheiro forte de terebintina
e serragem tomava o local. Vi latas de tinta e carvalho
serrado.
Quando chegamos ao tombadilho abaixo da linha de água, já
não se via nada. Agora o cheiro era de água parada e o odor
podre de alimentos que se tornaram rançosos devido ao
clima. Estava mais fresco lá em baixo, porém mais escuro e
silencioso.
Giocante virou-se e me deu uma piscada. "Você não vai
encher seus bolsos com pedaços de ouro, vai?" O garoto
brincou comigo ironicamente.
"Eu não me safaria com você olhando, não é?" Diminui o
tom de voz até o volume de um sussurro de confidência. "A
menos que façamos uma dupla, garoto, e assim ambos
poderemos ir a terra firme ricos como príncipes!"
"Não preciso disso. Meu pai me disse que um dia
ganharemos uma enorme recompensa inglesa."
"Ah. Então o seu futuro está garantido."
"Meu futuro é este navio. Somos maiores do que qualquer
coisa que os ingleses possam ter, e, quando chegar a hora,
ensinaremos uma lição a eles." Ele deu ordens aos
marinheiros que mantinham guarda no depósito e começou
a destrancar o compartimento do tesouro.
"Você parece confiante como Bonaparte."
"Eu sou tão confiante como o meu pai."
"Ainda assim, é uma vida desafiadora para um garoto no
mar, não é?", perguntei.
"É a melhor vida, porque temos passagem livre. Isso é tudo o
que meu pai fala. As coisas são mais fáceis quando se sabe o
que se deve fazer." E antes que eu pudesse responder ou
mesmo pensar em sua filosofia, ele rapidamente começou a
subir a escada.
Um almirante em formação, pensei.
As duas portas do compartimento foram fechadas atrás de
mim e eu fiquei trancafiado do lado de dentro. Perdi algum
tempo fuçando com a luz de uma lanterna entre as caixas de
moedas e jóias para encontrar o engenhoca que Monge e
Jomard me mostraram. Encontrei a peça num canto como
um dos tesouros menos valiosos. Assim como a descrevi, ela
era do tamanho de um prato de jantar, mas vazio no centro.
A borda era feita de três anéis - cobertos de hieróglifos,
signos do Zodíaco e desenhos abstratos - que rodavam um
dentro do outro. Uma pista, talvez, mas de quê? Sentei,
desfrutando a umidade e o frescor do ambiente, e brinquei
com as rodas movendo-as de um lado para outro. Cada volta
alinhava símbolos diferentes.
Estudei o anel interno primeiro, que era o mais simples, com
apenas quatro desenhos. Havia uma esfera inscrita,
movendo-se sobre a linha, e no lado oposto do círculo,
outra esfera abaixo da linha. A noventa graus de cada, di-
vidindo o calendário em quartos, havia meias-esferas, bem
como meias-luas, sendo que uma apontava para cima e a
outra para abaixo. O padrão me lembrava os quatro pontos
cardeais em uma bússola ou em um relógio, mas, pelo que
eu sabia, os egípcios não tinham nenhuma destas coisas.
Refleti mais um pouco. O que estava no topo parecia um sol
nascendo. Então, eu imaginei que o anel interno
representasse a rotação de um ano. Os solstícios do verão e
do inverno eram representados pelo sol acima e abaixo das
linhas, ou horizonte. Os meios-sóis eram os equinócios de
março e setembro, quando dia e noite são praticamente
iguais. Simples assim, se eu estivesse certo.
E nada fazia sentido, ainda.
Vi que um dos anéis gira o Zodíaco. Constatei a presença
dos doze signos, que não eram muito diferentes do que
conhecemos hoje. Depois, um terceiro anel, o mais externo,
trazia símbolos estranhos de animais, olhos, estrelas, raios de
Sol, uma pirâmide e o símbolo de Horus. Em alguns lugares,
linhas inscritas dividiam cada anel em seções.
Meu palpite era que esse calendário, se é que isso era um
calendário, era uma maneira de alinhar a posição das
constelações em relação ao nascer do Sol durante todo o ano
solar. Mas que uso tinha isso para meu medalhão? O que
Cagliostro viu nele, se é que realmente foi dele? Fiz
movimentos para frente e para trás, tentando fazer
combinações na esperança de que algo fizesse sentido. Nada
aconteceu, é claro — eu sempre odiei quebra-cabeças,
mesmo que eu gostasse de desvendar as probabilidades das
cartas. Talvez o astrônomo, Nouet, pudesse decifrá-lo, se eu
fosse capaz de levá-lo de volta comigo.
Finalmente, decidi chamar o topo de solstício de verão, se é
que era isso, e daí colocar a estrela de cinco pontas do
terceiro anel — não muito diferente daquela da bandeira
norte-americana ou de um simbolismo maçônico - acima
dele. Como a Estrela Polar! Por que não brincar com os
símbolos que eu conhecia? E o anel do Zodíaco que eu girei
até Taurus, o touro, estava entre os outros dois: de acordo
com Monge, era o período em que a pirâmide supostamente
fora construída. Desde então, já haviam passado a Era de
Touro, de Libra, e de Peixes, a que vivíamos agora. Em
breve chegaria a Era de Aquário.
Depois examinei os demais signos. Não parecia haver
qualquer padrão em particular...
A não ser que... Eu observei com atenção, enquanto meu
coração batia com força. Quando acertei os anéis para que o
verão, o touro e a estrela formassem uma fileira vertical —
um em cima do outro —, os finais das linhas inclinadas
inscritas se conectavam para fazer duas linhas maiores na
diagonal. Elas faziam um ângulo para o exterior desde o
círculo interno, como as pernas oblíquas do medalhão ou a
inclinação da pirâmide. Era tamanha semelhança que parecia
que eu estava olhando o eco da peça que deixei com Astiza e
Enoc.
Mas o que isso significava? Não vi nada no começo.
Caranguejos, leões e balanças de Libra formavam padrões
sem sentido. Mas espere! Havia uma pirâmide no anel de
fora, e ele estava agora bem abaixo do signo do equinócio de
outono, diretamente adjacente à linha inclinada inscrita. E o
símbolo de Aquário estava no segundo anel, e este, também,
era adjacente a uma hora que, se eu estivesse lendo a
engenhoca de maneira correta, ocupava a posição das quatro
horas no anel, bem abaixo do três que representava o
equinócio de outono, ou seja, vinte e um de setembro.
A posição de quatro horas deveria corresponder a um mês
depois, ou vinte e um de outubro.
Se eu tivesse adivinhado corretamente, vinte um de
outubro, Aquário e a pirâmide tinham algum tipo de relação.
Aquário, Nouet disse, era um signo criado pelos egípcios
para celebrar a subida do Nilo, que alcançaria o cume em
algum momento em outubro.
Poderia o dia vinte e um de outubro ser sagrado? O pico da
cheia do Nilo? A época de visitar a pirâmide? O medalhão
tem um símbolo para água parecido com uma onda. Havia
alguma conexão? Algo seria revelado nesse dia em
particular?
Encostei na parede, confuso. Eu tentava me agarrar a algo...
mas não havia nada, uma data absurda. Era pura suposição,
mas talvez Enoc e Astiza pudessem ver sentido nisso tudo.
Cansado do quebra-cabeças, percebi que estava pensando
naquela estranha mulher que parecia esconder mais segredos
do que eu suspeitava. Sacerdotisa? Qual era seu papel em
tudo isso? Talma estaria certo em suspeitar? Ela teria mesmo
conhecido Silano? Parecia impossível, mesmo assim, que as
pessoas que eu estava conhecendo estivessem conectadas de
uma forma tão bizarra.
Mas eu não sentia medo, eu sentia falta dela. Lembrei de um
momento no quintal de Enoc, no frescor do começo da
noite, com as sombras azuladas, o céu como uma cúpula, o
cheiro dos temperos e da fumaça da cozinha da casa que se
misturava às nuvens de poeira e de água da fonte. Ela sentou
em um banco, calada, meditando, e permaneceu ao lado de
um pilar. Eu simplesmente admirei seu cabelo e sua
bochecha, e ela permitiu que eu a observasse. Naquele
momento, não éramos mestre e serviçal, nem ocidental e
egípcia, mas homem e mulher. Tocá-la faria quebrar o
encanto.
Então, eu simplesmente olhei, sabendo que aquele seria um
momento que eu carregaria comigo para o resto de minha
vida.
Ruídos do navio me fizeram voltar do meu devaneio. Havia
gritaria, pés correndo e o soar de tambores. Olhei para as
vigas que estavam acima de mim. O que aconteceu agora?
Algum tipo de treino da frota? Tentei me concentrar, mas a
tensão lá em cima parecia só aumentar.
Então gritei para que me deixassem sair. Quando a porta
abriu, me dirigi ao marinheiro. "O que está acontecendo?"
Sua própria cabeça estava inclinada para cima, tentando
escutar. "Ingleses!"
"Aqui? Agora?"
Ele olhou para mim, com o rosto sombreado pelas luzes
fracas da lanterna. "Nelson."
Capítulo Treze
Deixei o calendário e me juntei a um bando de homens que
subiam para os postos de tiro, enquanto os marinheiros
xingavam a falta de preparação do navio. Nossa nau capitânia
tinha apenas metade das provisões, e não havia tempo agora
para um carregamento cuidadoso de suprimentos. Homens
corriam para todos os lados para recolocar canhões em seus
lugares, levantar vergas e retirar o sistema de andaimes.
Saí ao ar livre no passadiço principal. "Desmonte as tendas!"
berrava o capitão Casabianca. "Avise os homens em terra
firme que subam a bordo!" Então, virou-se para seu filho
Giocante. "Vá organizar os meninos da pólvora." O garoto,
que mostrava mais entusiasmo do que medo, desapareceu
abaixo da superfície para supervisionar o recarregamento de
munição das armas famintas.
Subi até o almirante Brueys no tombadilho superior, que
estudava o mar com seu telescópio. O horizonte estava
embranquecido pelas velas, e o vento atrapalhava nosso
caminho. O esquadra de Nelson tinha cada polegada de tela
levantada e esticada e rapidamente eu contei quatorze
navios. Os franceses tinham treze, mais quatro fragatas — a
balança estaria equilibrada — mas estávamos ancorados e
metade não estava pronta. Seis estavam alinhadas à frente do
L'Orient, e seis atrás. Já era meio da tarde, certamente tarde
demais para batalha, e talvez Brueys pudesse sair para o mar
durante a noite. Só que os ingleses não mostravam sinal
disso. Em vez disso, eles vinham em nossa direção como um
bando de cães de caça ansiosos, com a espuma do mar
voando e suas proas. Eles pretendiam começar uma batalha.
Brueys olhou para o topo dos mastros.
"Almirante?" Ousei chamá-lo.
"Centenas de homens em terra firme, nossos suprimentos
desprotegido nossas velas e vergas para baixo e metade da
tripulação meio doente," resmungou para si mesmo. "Eu
avisei que isso poderia acontecer. Agora teremos que brigar
sem nos mexer."
"Almirante?" Tentei novamente, "acho que minha
investigação está encerrada. Devo voltar à terra firme?"
Ele me olhou mudo por um instante e se lembrou de minha
missão. "Al sim, Gage. É muito tarde, americano. Todos os
nossos barcos estão empenhados em trazer nossos
marinheiros de volta."
Segui até a amurada do sotavento e olhei. Com certeza, a
frota de botes se dirigia à praia para apanhar homens que lá
aguardavam. E, pelo que se podia notar, eles não tinham
muita pressa de voltar.
"Quando os barcos retornarem, os ingleses já estarão sobre
nós," disse Brueys. "Você será nosso convidado para a
batalha, infelizmente."
Engoli e olhei novamente para os navios ingleses, grandiosos
castelos inclinados, com nuvens de velas esticadas, enquanto
homens avançavam com formigas pelas pontas das vergas,
com todas as suas armas apontando pai fora e com suas
bandeiras de batalha vermelhas batendo ao sabor do vento
Pareciam um bando desesperado e impetuoso. "O Sol está se
pondo," diss impaciente. "Certamente os britânicos não
atacarão no escuro."
O almirante olhava a esquadra que se aproximava com olhar
de resignação Percebia-se agora que ele parecia certamente
esquelético por causa da disenteria, e pronto para uma árdua
batalha como um homem que acabou de corre vinte milhas.
"Nenhum homem são faria isso," ele respondeu. "Mas este
Nelson." E fechou o telescópio. "Minha sugestão é que
retorne ao tesouro. Ele fica abaixo da linha da água. É mais
seguro lá."
Não queria lutar contra os ingleses, mas parecia covardia não
fazê-lo. "Se você tiver um rifle reserva..."
"Não, não fique no caminho. Esta é uma batalha da marinha.
Você é um cientista, e sua missão é retornar até Bonaparte
com sua informação." Ele deu um tapinha no meu ombro,
virou-se e começou a distribuir mais ordens.
Como estava muito curioso para me esconder lá embaixo
agora, me dirigi até a amurada, me sentindo perfeitamente
inútil enquanto silenciosamente amaldiçoava o impaciente
Nelson. Qualquer almirante normal teria diminuído a
velocidade quando o céu se tornasse laranja, manobrado sua
frota até a formação de uma linha organizada de batalha, e
fornecido a seus homens uma refeição quente e uma boa
noite de sono antes do começo de uma briga. Mas este era
Nelson, que fez fama ao abordar não somente um navio
francês, mas o que estava ao lado também, pulando de um
para o outro e capturando ambos. Mais uma vez, ele não
mostrava sinal de que diminuiria a velocidade. Quanto mais
se aproximava, mais se ouviam os gritos de consternação
entre os marinheiros franceses. Isto era loucura! E mesmo
assim, era cada vez mais óbvio que a batalha começaria no
final do dia.
Os marinheiros em terra ainda subiam nos botes, tentando
retornar a seus navios.
Alguns canhões emitiam sons surdos, mas sem efeito. Eu
podia ver a nau capitanea inglesa navegando rumo noroeste
em direção ao final da linha francesa perto de da Ilha de
Abukir, onde os franceses instalaram uma bateria terrestre.
O final da baía era cheio de bancos de areia, e Brueys estava
confiante que a frota inglesa não conseguiria contorná-la.
Mas ninguém havia contado isso a Nelson, e dois navios de
guerra ingleses, convenientemente chamados de Jealous e
Goliath, competiam entre eles pelo privilégio de encalhar.
Insanidade! O Sol estava no horizonte, vermelho como
sangue, e os morteiros franceses em terra atiravam, mas não
conseguiam alcançar os navios ingleses com seus tiros
balísticos.
Goliath tomou a dianteira em sua pequena corrida,
mostrando a bonita silhueta contra o globo que sumia, e, ao
invés de bater numa pedra, escorregou perfeitamente entre
o Le Guerrier e a costa. Em seguida virou-se habilmente e
navegou pela linha francesa até o lado que está a sotavento,
entre Brueys e a praia! Navegou à bolina quando ficou lado a
lado do segundo navio da formação, Le Conquerant, lançou
âncoras como se tivesse chegado a um porto, e rapidamente
disparou uma banda de artilharia contra o despreparado
navio francês. Ouviu-se um estrondo e uma enorme nuvem
turva cercou ambas as embarcações. O Le Conquerant
inclinou-se como se tivesse levado um soco colossal.
Fragmentos do navio voavam para todos os lados enquanto o
navio francês era destroçado. Escutavam apenas os gritos.
Estávamos ancorados, com o vento contra nós, e não
podíamos fazer nada a não ser esperar a nossa vez.
Zealous ancorou no lado aposto ao Le Guerrier, e os navios
britânicos Orion, Audacious e Theseus também seguiram
para a baía de Abukir, atacando os franceses em seus lados
desprotegidos. A formidável parede de Brueys de repente
parecia estar sem sorte. A fumaça dos tiros elevou-se,
formando uma nuvem gigantesca, e o som surdo que se
ouvia há pouco estava cada vez mais próximo,
transformando-se num rugido. O Sol tinha se posto, o vento
morria e o céu escureceu. Agora, o resto da frota britânica,
que diminuiu a velocidade, descia ameaçadoramente pelo
lado do mar, e cada navio francês ancorado à frente de
Brueys estava sendo atacado por ambos os lados em
desvantagem de dois para um. Enquanto os primeiros seis
navios franceses estavam sendo derrubados, os navios da
parte traseira da formação não tinham intenção de juntar-se
à batalha. Estavam ancorados e sua tripulação observava
tudo, sem esperanças. Era uma matança sangrenta sem fim.
Enquanto escutávamos os brados de comemoração dos
ingleses no crepúsculo, os gritos dos franceses eram de
horror e ódio por causa da crescente carnificina. Napoleão já
estaria amaldiçoando a todos se ele estivesse vendo isso.
Há uma horrorosa ostentação em uma batalha marinha, um
balé triste que só intensifica a tensão antes de cada salva de
canhões. Barcos se materializam de dentro da fumaça como
vultos gigantescos. Pode-se escutar o estrondo dos canhões,
e os segundos são longos enquanto as baterias são
recarregadas, os feridos são colocados de lado, e baldes de
água são atirados na tentativa de apagar o fogo. Aqui, no
Nilo, alguns dos navios ancorados batiam uns contra os
outros. A fumaça criou uma neblina densa, que mal deixava
passar a luz da Lua cheia que aparecia. Os navios que não
estavam ancorados, faziam suas manobras às cegas. Eu vi um
navio inglês emergir bem próximo ao nosso navio — lia-se
Bellerophon — e ouvi gritos ingleses para mirar. Ele flutuava
como um iceberg.
"Para baixo!" Brueys gritou para mim. No tombadilho de
baixo, eu podia escutar o capitão Casabianca gritando, "Fogo!
Fogo!" Eu me joguei no chão e o mundo pareceu um grande
rugido. L'Orient inclinou-se, tanto pela descarga de nossas
próprias armas como pelo peso dos tiros dos ingleses. Senti o
navio estremecer e escutei o som de algo se estilhaçando
quando fomos atingidos. Mas as táticas francesas de mirar
nos mastros causaram destruição do outro lado também.
Como árvores sendo cortadas por um machado, os mastros
da Bellerophons caíram acompanhados por um rugido
gigantesco, destruindo seu tombadilho superior com um
estrondo espantoso. O navio de batalha britânico começou a
cambalear para longe. Agora era a vez dos marinheiros
franceses comemorarem. Eu me levantei, um pouco
envergonhado porque ninguém mais havia se jogado ao
chão. Entretanto vários deles estavam mortos ou feridos, e
Brueys sangrava nas mãos e na cabeça. Ele recusou a ser
enfaixado, deixando pingar sangue fresco no piso de
madeira.
"Eu quis dizer para baixo até o depósito, monsieur Gage," ele
acrescentou.
"Talvez eu traga boa sorte," eu disse ainda tremendo,
enquanto o Bellerophon desaparecia por entre as nuvens de
fumaça.
Mal tinha acabado a minha frase quando uma das armas
atravessou a escuridão como uma luz alaranjada e uma bala
de canhão voou em nossa direção destruindo o parapeito e
cortando a coxa do almirante. Sua perna inferior foi
arrancada como um dente que é puxado por um cordão,
voando ensangüentada em piruetas para a escuridão. Por um
momento, Brueys ainda ficou em pé, olhando para o seu
membro inferior sem poder acreditar, mas em seguida caiu
lentamente como um banquinho quebrado. Seus oficiais
gritaram e se aproximaram dele. O sangue jorrava sem parar.
"Leve-o para enfermaria!" gritou o capitão Casabianca.
"Não", Brueys disse ofegante. "Eu quero morrer onde eu
possa ver."
A situação era caótica. Um marinheiro cambaleava com
metade do couro cabeludo arrancado. Um aspirante da
marinha deitava sobre sua arma com um pedaço de madeira
enorme em seu peito. O tombadilho principal tornou-se um
verdadeiro inferno, coberto com destroços do navio,
mastros caídos, vísceras e sangue. Homens pisoteavam seus
companheiros caídos. Marinheiros cobertos cm pólvora
derrapavam no sangue derramado. Canhões latiam,
mosquetes estalavam, gritos ecoavam e a destruição parecia
pior do que num campo de batalha. A noite palpitava com
os flashes das armas, e a batalha era vista em brilhos
repentinos. Mal podia escutar, e eu cheirava a fumaça. Eu
percebi que outros dois navios britânicos ancoraram perto
de nós, e já começavam a atirar. L'Orient tremia com os
impactos como um cachorro castigado e o volume do nosso
latido diminuía conforme os canhões franceses eram
desabilitados.
"Ele está morto", anunciou Casabianca, de pé. Olhei para o
almirante. Ele parecia branco e vazio, como se tivesse
murchado por causa do sangue que jorrou dele, mas ainda
assim mostrava-se sereno. Pelo menos, não teria que se
justificar para Napoleão.
Novamente, houve mais um ataque ao navio e mais
estilhaços. Desta vez, Casabianca foi atingido e caiu. A
cabeça de um outro oficial simplesmente desapareceu,
causando uma chuva vermelha nos ombros, e um tenente
recebeu uma bola no meio de seu corpo e foi jogado para
longe como se fosse uma catapulta. Eu estava muito
apavorado e nem sequer conseguia me mover.
"Pai!" O aspirante da marinha que me havia guiado
anteriormente apareceu e correu para perto de Casabianca,
com os olhos escancarados de medo. Para acalmá-lo, o
capitão o pegou no colo. Mais bravo do que realmente feri-
do, falou para o menino. "Fique lá em baixo como eu
mandei".
"Eu não vou deixá-lo!"
"Você não deve abandonar seu posto." Segurou o filho pelos
ombros. "Nós somos exemplos para os homens na França!"
"Eu o levarei", eu disse, agarrando e puxando o menino.
Agora era eu quem estava ansioso para sair daquele horror.
"Venha, Giocante, você vale mais cheio de pólvora lá
embaixo, do que morto aqui em cima."
"Me deixa!"
"Faça como eu mandei!", gritou o pai.
O menino estava acabado. "Eu tenho medo que você
morra."
"Se eu morrer, a sua responsabilidade será ajudar a reunir os
homens." Aí ele se acalmou. "Ficaremos bem."
O garoto e eu descemos para uma escuridão terrível. O ar de
cada um dos três níveis de armas estava irrespirável por
causa da fumaça que cobria o local e o barulho era
desagradável: o tiro dos canhões, a destruição dos ataques do
inimigo e os gritos dos feridos. Os ouvidos de vários
atiradores sangravam por causa da batalha. Enquanto o
menino correu para ajudar nas funções do navio eu, sem
nada para oferecer, seguia descendo até abaixo da linha da
água mais uma vez. Se L'Orient afundasse, pelo menos eu
levaria o calendário comigo para fora do navio. Aqui em
baixo, cirurgiões cerravam as pernas dos feridos cujos gritos
só eu, com minha surdez relativa, podia suportar, enquanto
as lanternas balançavam com cada estrondo de canhão.
Marinheiros traziam baldes e baldes de água do mar para
lavar o sangue.
Havia uma fileira de garotos que passavam para cima, cheios
de cartuchos de munição. Eu passei por eles até a sala dos
tesouros, onde já não havia luz.
"Preciso de uma lanterna!" Gritei para o guarda.
"Não perto da pólvora, seu imbecil!"
Suando, comecei a procurar no escuro pelo calendário. Ali
estava eu, no meio daquela fortuna e a única maneira de tirar
isso daqui era através de uma tempestade de fogo. E se
afundássemos? Milhões de francos em tesouro iriam para o
fundo do mar. Quem sabe eu não conseguiria enfiar um
pouco e minhas botas? Eu podia sentir o forte balanço do
L'Orient cada vez que u britânico atacava o navio. O
madeiramento da estrutura tremia. Eu me agachava como
uma criança, gemendo conforme procurava. Foi quando
escutei um marinheiro gritar: "Fogo!"
Olhei para fora. A porta do porão se fechou e os garotos
subiam. Isso significa que nossos canhões em breve ficariam
em silêncio. Em cima, tudo esta laranja. "Abram as válvulas
para inundar o porão!", alguém gritou e eu comecei a escutar
o barulho da água. Precisava sair dali. O calor já estava bastan
desconfortável. Os feridos gritavam aterrorizados.
Uma cabeça apareceu na escotilha. "Saia daí, seu americano
louco! Não v que o navio está pegando fogo?"
Ali! O calendário! Senti o seu formato, agarrei-o e subi a
escada morrenc de medo, deixando uma fortuna para trás.
Havia fogo por toda parte e ele alastrava mais rápido do que
se poderia imaginar. Alcatrão, cânhamo, tini madeira seca e
tela: lutávamos sobre uma pilha de gravetos.
Um marinheiro francês se inclinou em minha direção, com
uma baio ne apontada e os olhos bem abertos e me
perguntou: "O que é isso?" Ele olhe para o estranho objeto
que eu carregava.
"Um calendário para Bonaparte."
"Você o roubou da sala de tesouros!"
"Tenho ordens para salvá-lo."
"Mostre-as!"
"Estão com Brueys." Ou, pensei, no fogo. "Ladrão! Vou levá-
lo para a prisão!"
Ele estava enlouquecido. Olhei em volta desesperado.
Homens pulavam do navio como ratos.
Eu tinha um segundo para decidir. Eu poderia lutar contra
este lunático por um anel de metal ou trocá-lo por minha
vida. "Aqui!" Atirei o calendári Ele deixou cair seu
mosquete, de mal jeito conseguiu pegá-lo de volta e
aproveitei o momento para passar por ele e fugir.
"Volte aqui!"
Aqui o fogo e a fumaça estavam piores. Era um cemitério de
horrort um banquete de um açougueiro com corpos
amontoados que começavam queimar com o fogo. Olhos se
viraram em minha direção, enquanto dedos esticavam
pedindo socorro. Muitos dos mortos estavam em chamas.
Continuei subindo até alcançar o tombadilho superior
novamente, agachando-me e desviando. Todos os mastros
estavam em chamas, como uma grande pirâmide de fogo, e,
conforme a fumaça subia, bolas de fogo caíam como se
tivessem sido atiradas do inferno. Os cinzas estalavam sob o
meu pé. Os carros de armas estavam esmagados e os
marinheiros estavam caídos uns sobre os outros como pinos
de boliche. Eu corri em direção à popa. Para qualquer lado
que se olhasse, viam-se vultos atirando-se ao mar.
Eu literalmente tropecei no capitão Casablanca. Ele estava
caído no chão, com um grande buraco no seu peito, e
acompanhado do filho cuja perna estava retorcida onde
havia quebrado. Tropecei num pai moribundo, mas ainda
havia chance para seu filho. Agachei-me junto deles.
"Temos que sair daqui, Giocante, o navio deve explodir a
qualquer instante." Eu tossi. "Eu o ajudo a nadar."
Ele balançou a cabeça. "Eu não deixarei o meu pai."
"Você não pode ajudá-lo agora."
"Eu não deixarei o barco."
Ouviu-se um estrondo, quando, em chamas, uma ponta de
verga caiu no tombadilho. Os britânicos atiraram ainda mais
uma salva e o navio francês tremeu, chiando e rangendo.
"Você não tem mais um navio!"
"Deixe-nos, americano", falou com dificuldade o capitão.
"Mas seu filho".
"Acabou-se."
O menino tocou meu rosto despedindo-se. "Dever", ele
disse.
"Você já cumpriu seu dever! Você tem toda uma vida à sua
frente!"
"Esta é minha vida." Sua voz tremia, mas seu rosto estava
calmo como um anjo em uma gruta no inferno. Então, isso
que é decidir no que acreditar, eu pensei. Isso é dever. Eu
senti horror, admiração, inferioridade e fúria. Uma vida
perdida! A fé cega foi a causa de metade das mazelas da
história. E também não era disso que santos e heróis eram
feitos? Seus olhos estavam duros e escuros, e se eu tivesse
tempo de olhar através deles, talvez pudesse descobrir todos
os mistérios do mundo.
"Abandonar navio! Abandonar navio!" gritavam seguidas
vezes alguns poucos oficiais sobreviventes.
"Droga, eu não deixarei que você se mate." Eu o agarrei.
O menino me empurrou com tanta força que eu caí. "Você
não é parte da França! Vá embora!"
E em seguida ouvi outra voz. "Você!"
Era o fuzileiro louco, que me seguiu até lá. Seu rosto estava
queimado, e de suas roupas saía fumaça. Seu casaco estava
ensopado de sangue. E ainda mirava em mim!
Corri para a popa, me escondendo na fumaça, e olhei uma
última vez para trás. Pai e filho estavam encobertos, e suas
silhuetas ondulavam com o calor. Era insano como eram
dedicados a este navio, a seu dever, seu destino. Era
glorioso, monstruoso e inviável. Conseguiria fazer com que
algo tivesse metade dessa importância na minha vida? Ou era
sorte minha por não ter nada parecido? O marinheiro estava
cego pela fumaça e pelo sangue, balançando tanto que mal
podia fazer mira, enquanto chamas tentavam alcançá-lo.
Então, sem poder ser mais do que o homem que eu era,
pulei.
Era um salto de fé na total escuridão. Eu não podia enxergar
nada, mas sabia que a água abaixo poderia estar lotada de
homens, corpos e destroços. De alguma maneira, escapei de
tudo isso e mergulhei no Mediterrâneo, enquanto a água sal-
gada entrava por minhas narinas. O frescor da água causou
um alívio imediato, como bálsamo para minhas bolhas.
Mergulhei fundo na escuridão, e, em seguida, lutei para
voltar à superfície. Quando subi, comecei a nadar o mais
longe possível do navio, sabendo que aquilo seria um barril
de pólvora se o porão não inundasse a tempo. Podia sentir o
calor dele na coroa da minha cabeça enquanto nadava. Se eu
pudesse usar algum destroço para chegar mais rápido até a
praia...
E o L'Orient simplesmente explodiu.
Ninguém jamais havia escutado tamanho som. Foi como um
trovão em Alexandria, há trinta e sete quilômetros de
distância, iluminando a cidade como se fosse dia. A onda de
choque da explosão alcançou os beduínos, que observavam a
batalha da praia e os arremessou de seus cavalos. Ela me
empurrou com força e me deixou surdo. Os mastros foram
atirados para o céu como rojões. Os canhões voaram longe
como pedras atiradas por um garoto. Houve uma penumbra
explosiva de pedaços de madeira e de água do mar, para cima
e para baixo, uma coroa de fragmentos, e depois pedaços do
navio começaram a chover por centenas de metros em todas
as direções, ainda atingindo e matando homens. Forquilhas
retorcidas caíam do céu e se espetavam nos parapeitos.
Sapatos despencavam com pés em chamas. O próprio mar se
curvou, me empurrando para mais longe, mas, em seguida, o
casco do navio quebrou-se e afundou, e as ondas que se
formaram puxaram todos de volta.
Desesperadamente, me agarrei a um pedaço de madeira
antes de ser levado de volta à escuridão. Segurei com toda a
força, sentindo a dor nos meus ouvidos enquanto descia
numa espiral cada vez mais fundo. Meu Deus, era como ser
agarrado pelas garras de um monstro! Pelo menos a sucção
me salvou do bombardeio de destroços que despencaram na
superfície do mar como pregos. Olhando para água
alaranjada acima de mim, a superfície parecia uma janela de
vidro estilhaçada. O que parecia ser minha última visão tinha
uma beleza estonteante.
Não sei até que profundidade eu desci. Minha cabeça doía,
meus pulmões queimavam. Então, quando achei que não
conseguiria mais prender a respiração, o navio que afundava
parecia abrir suas garras e a madeira na qual eu me segurava
começou finalmente a me carregar para cima. Irrompi à
superfície com minha última gota de ar, tremendo com dor
e medo, girando com o pedaço de madeira que me salvara a
vida. E, por causa da minha dor, eu sabia que havia
sobrevivido mais uma vez, para o bem ou para o mal.
Deitei de costas, piscando para as estrelas. A fumaça se
afastava. Aos poucos pude perceber que me cercava. O mar
estava acarpetado de madeira e corpos destruídos. O silêncio
era assustador, exceto por alguns gritos de socorro. A
explosão do L'Orient foi tão estupenda, que todos os tiros
cessaram.
A tripulação do navio britânico tentou soltar um berro de
comemoração, mas ele ficou preso em suas gargantas.
Eu me afastei, já não havia mais calendário nem qualquer
outro tesouro que estava a bordo do L'Orient. A lua
iluminava um cenário composto por navios destruídos e em
chamas. A maioria tinha seus mastros destruídos.
Certamente, agora, tudo estava acabado. Mas não, as
tripulações gradualmente acordaram do pesadelo de horror,
e depois de um quarto de hora, os canhões começaram a
atirar novamente, e seus golpes ecoavam por dentro da água.
E assim continuou a batalha. Como posso explicar tamanha
loucura? A artilharia selvagem dos navios ecoou durante
toda a noite como marteladas da fundição do diabo. Hora
após hora eu flutuei e o frio aumentava, até que finalmente
as armas pararam de atirar por exaustão bilateral e o mar
clareou depois de um tempo que pareceu durar milhares de
anos. Com a madrugada, homens dormiram, apoiados em
sua artilharia quente.
O nascer do Sol revelou toda a extensão do desastre francês.
A fragata La Serieuse foi a primeira a afundar, escondendo-
se na escuridão, mas só entregou os pontos lá pelas cinco
horas. Le Spartiate parou de atirar às vinte e três horas.
Franklin, nomeada em honra ao meu mentor, rendeu-se aos
britânicos às vinte e três e trinta. O capitão mortalmente
ferido do Le Tonnant's estourou os miolos antes de se
render. L'Heureux e Le Mercure foram encalhados para
prevenir que afundassem. A fragata L'Artemise explodiu
depois de ser incendiada por seu capitão, e a Le Timoleon
foi levada à terra para ser queimada pela tripulação no dia
seguinte. Aquilon, Guerrier, Conquerant e Peuple Souverain
simplesmente se renderam.
Para os franceses, a Batalha do Nilo não foi somente uma
derrota, mas sim a total aniquilação. Somente dois navios e
duas fragatas conseguiram escapar. Três mil franceses foram
mortos ou feridos no combate. Em uma luta, Nelson
conseguiu destruir o poder naval francês no Mediterrâneo.
Apenas um mês depois de chegar ao Egito, Napoleão ficou
isolado do mundo exterior.
Centenas de sobreviventes, alguns queimados e sangrando,
começaram a ser levados do mar por botes ingleses. Eu
observei fascinado, e depois percebi que eu poderia ser salvo
também. "Aqui!" Eu finalmente gritei em inglês, acenando.
Eles me puxaram a bordo como um peixe morto. "Em que
barco você estava, companheiro?" me perguntaram. "Como
diabos você foi para na água?" "L'Orient", respondi.
Eles me olharam como se eu fosse um fantasma. "Você é um
francês? Ou um maldito traidor?"
"Eu sou americano." Piscava para tentar tirar o sal dos meus
olhos, e levantei o dedo que tinha o anel do unicórnio. "E
um agente de Sir Sidney Smith."
Imagine um lutador após vencer uma luta com muita
dificuldade, e você tem minha primeira impressão de
Horatio Nelson. O leão da Inglaterra foi enfaixado e
alcoolizado por causa de um machucado feio logo acima de
seu olho cego. Um tiro que quase o matou. Ele falava com
dificuldade por causa de um dente que doía, e, aos quarenta
anos, já tinha os cabelos brancos e o rosto de linhas duras.
Isso é o que acontece com você quando você perde um
braço e um olho em batalhas passadas e se segue Bonaparte.
Ele era pouco mais alto que Napoleão, sua constituição era
ainda menor — por que os baixinhos são os mais invocados?
- e tinha bochechas afundadas e voz anasalada. Mesmo
assim, ele apreciava dar uma boa surra, assim como o general
francês, e nesse dia ele tinha conquistado uma vitória
decisiva, sem precedentes. Ele não somente derrotou o
inimigo, ele o destruiu.
Seu olho bom queimava como se aceso por uma luz divina,
e, realmente, Nelson acreditava que estava numa missão de
Deus; uma busca por glória, morte e imortalidade. Se alguém
colocasse a ambição dele e a de Bonaparte no mesmo quarto,
elas entrariam em combustão espontânea. Vire-os com
manivelas e deles sairão fagulhas. Eles eram garrafas de
Leyden, colocados no meio de nós, pequenos barris de
pólvora.
Como Napoleão, o almirante britânico conseguia deixar uma
sala cheia de subordinados extasiados por sua mera presença,
mas Nelson comandava não apenas com energia e
determinação, mas com charme, e até afeição. Ele tinha
mais carisma que uma cortesã real, e alguns de seus capitães
pareciam alegres cãezinhos de estimação. No momento, se
amontoavam em torno dele em sua cabine, observando o
almirante com admiração e, a mim, com total desconfiança.
"Como diabos você conhece Smith?" perguntou Nelson
quando me levantei perante ele, ensopado e exausto com
meus ouvidos apitando.
Rum e água fresca tiraram um pouco do sal da minha
garganta. "Depois de escapar da Prisão do Templo, Sir Sidney
me seguiu por causa dos rumores de que eu acompanharia
Bonaparte ao Egito", falei em voz baixa. "Ele ajudou a salvar
minha vida em uma peleja na estrada para Toulon. Ele me
pediu para ficar de olho cm Napoleão. Então, retornei à frota
francesa, imaginando que vocês a achariam cedo ou tarde.
Não sabia como as coisas acabariam, mas se vocês
venceram..."
"Ele está mentindo", disse um dos capitães. Hardy, eu acho
que era seu nome.
Nelson sorriu de leve. "Sabe, não temos muito uso para
Smith por aqui."
Eu olhei para o pouco amistoso grupo cie capitães. "Eu não
sabia."
"O homem é tão inútil quanto eu." Fez-se um silêncio
mortal. Então o almirante começou a rir e os demais se
uniram à piada. "Inútil como eu! Ambos vivemos pela
glória!" Eles gargalharam. Estavam exaustos, mas tinham
aquela aparência satisfeita de homens que passaram por
maus bocados. Seus navios estavam em pedaços, o mar
estava lotado de carne podre e acabaram de vivenciar
horrores suficientes para toda uma vida de pesadelos. Mas
estavam orgulhosos também.
Eu fiz o melhor que pude para sorrir.
"Mas um bom lutador", Nelson acrescentou, "se você não
tiver que ficar na mesma sala que ele. Sua fuga o
transformou no assunto da Inglaterra." "Mas ele chegou a
voltar." "Sim. E não o mencionou, que eu me lembre."
"Nosso encontro foi inconseqüente", eu admiti. "Eu não
pedi para ser seu espião. Mas ele antecipou seu ceticismo e
me deixou isso." Eu levantei minha mão direita. "É um anel
selado, inscrito com este símbolo. Ele disse que isso provaria
a minha história."
Eu o tirei do dedo para que o vissem, e os oficiais
resmungavam ao reconhecê-lo.
Nelson o segurou perto de seu olho bom. "E do bastardo
Smith, com certeza. Aqui está seu chifre ou devo dizer
ferrão?" Novamente, todos riram. "Você se alistou com
aquele diabo Napoleão?"
"Sou um membro do grupo de cientistas que está estudando
o Egito. Sou aprendiz de Benjamin Franklin. Estava tentando
fechar alguns acordos comerciais, houve problemas legais
em Paris, uma oportunidade para aventura ..."
"Sim, sim." Ele balançou a mão. "Qual a situação do exército
de Bonaparte?"
"Derrotaram os mamelucos e tomaram o Cairo."
Ouviram-se sussurros de desapontamento na cabine.
"E mesmo assim não tem um frota", disse Nelson a seus
oficiais e a mim. "O que significa que, embora não possamos
chegar até Bona, Bona não pode chegar até a Índia. Não
haverá ligação com Tippoo Sahib, e nenhuma ameaça ao
nosso exército lá. Ele está isolado."
Eu balancei a cabeça. "Parece que sim, almirante."
"E a moral de suas tropas?"
Eu considerei. "Eles reclamam, como todos os soldados. Mas
também acabam de conquistar o Egito. Eu suponho que se
sintam como os marinheiros que venceram Brueys."
Nelson balançou a cabeça. "Silêncio. Terra e mar. Mar e
terra. Seus números?"
Eu encolhi os ombros. "Não sou um soldado. Eu sei que suas
perdas foram poucas."
"Hum. E suprimentos?"
"Ele se supre do próprio Egito."
Ele bateu com a mão. "Droga! Será como abrir uma ostra
com dificuldade!" Ele me olhou com seu bom olho e me
perguntou. "Bem, o que você quer fazer agora?"
O quê? Já foi muita sorte não ter morrido. Bonaparte estava
esperando que eu solucionasse um mistério que ainda me
incomodava, meu amigo Talma suspeitava de Astiza, um
assassino árabe sem dúvida queria jogar mais cobras na
minha cama, e havia ainda a questão da pirâmide que foi
construída para representar o mundo, ou Deus, ou sabe-se lá
o que. Aqui estava minha chance de fugir.
Mas eu ainda não tinha decifrado o medalhão, não é? Talvez
eu pudesse conseguir um punhado do tesouro ou uma
porção de algum pó misterioso. Ou mantê-lo longe dos
lunáticos do Rito Egípcio e do culto da cobra de Apófis. E
uma mulher estava esperando, não?
"Eu não sou um estrategista, almirante, mas talvez esta
batalha mude tudo", eu disse. "Não sabemos como Bonaparte
vai reagir até que as notícias cheguem a seus ouvidos. Que
eu, talvez, possa levar. Os franceses não sabem da minha
relação com Smith." Voltar? Bem, a batalha e o menino que
queria morrer me fizeram pensar diferente. Eu tinha um
dever também, que era voltar para o medalhão e para Astiza.
Era terminar, finalmente, algo que eu havia começado. "Eu
explicarei a situação a Bonaparte e, se isso não o comover,
então eu descobrirei tudo o que puder nos próximos meses
para voltar com as informações." Um plano formulou-se em
minha mente. "Um encontro longe da costa, no final de
outubro, talvez. Logo após o dia vinte e um."
"Smith está agendado para estar na região, nessa época",
completou Nelson.
"E qual o seu interesse nisso?" Hardy perguntou.
"Eu tenho problemas próprios para acertar no Cairo.
Também gostaria de receber passagem para um porto
neutro. Depois de L'Orient, acho que já vi guerra demais."
"Três meses para você voltar com informações?" Nelson
contestou.
"Deve demorar mais ou menos esse tempo para Bonaparte
reagir e bolar novos planos para os franceses."
"Por Deus', contestou Hardy, "este homem serviu em um
navio inimigo e agora quer sair para terra firme? Eu não
acredito em uma palavra dele sequer, com ou sem anel."
"Não servi. Observei. Eu não dei nenhum tiro."
Nelson pensou, com meu anel em mãos. Em seguida o
devolveu para mim. "Fechado. Destruímos tantos navios que
você nem faz diferença. Diga ao Bona exatamente o que
você viu: quero que ele saiba que está condenado.
Entretanto, levará meses para que possamos montar um
exército para tirar o córsego do Egito. Enquanto isso, quero
que faça contas de sua força e sinta o humor. Se houver
qualquer chance de rendição, quero saber disso imediata-
mente."
Assim como você, Napoleão dificilmente desistirá,
almirante, pensei, mas não disse nada. "Se você puder me
colocar em terra ..."
"Nós conseguiremos um egípcio para levá-lo à praia amanhã,
para que não haja suspeitas de que estivemos conversando."
"Amanhã? Mas se você quer que eu leve notícias a
Bonaparte..."
"Durma e coma primeiro. Não há pressa, Gage, porque eu
acredito que informações preliminares já saíram na sua
frente. Nós perseguimos uma corveta que conseguiu entrar
em Alexandria um pouco antes da batalha, e tenho certeza
que o diplomata a bordo tinha certeza de nossa vitória. Ele é
o tipo de homem que já está a caminho. Qual é mesmo seu
nome, Hardy?"
"Silano, dizem os relatórios."
"Sim, é isso", disse Nelson. "Um operativo de Talleyrand
chamado Alessandro Silano."
Capítulo Quatorze
A primeira coisa a fazer, depois de receber essa notícia
perturbadora, era encontrar Talma, que imaginou que eu
estivesse morto quando a história da explosão do L'Orient
chegou a Alexandria. Silano aqui? Seria essa a "ajuda" que
Bonaparte mencionou?
Ponderando seus próprios danos, a frota inglesa não arriscou
um ataque ao porto de Alexandria, já devidamente reparado
e defendido pelos franceses. Em vez disso, montaram um
bloqueio. Quanto a mim, uma barcaça árabe me depositou
na praia da baía de Abukir. Ninguém reparou que eu
desembarquei, pois as demais embarcações varriam as águas
para pegar escombros e roubar os mortos. Botes franceses e
britânicos também recuperavam corpos em uma trégua
temporária, e, em terra, homens feridos gemiam em baixo
de um abrigo de lona de couro cru. Cheguei à praia,
maltrapilho como os demais, ajudei a carregar alguns feridos
para a sombra criada com uma vela de navio e depois me
juntei a uma procissão de marinheiros franceses desconexos
que se dirigiam a Alexandria.
Eles estavam indignados e falavam em revanche contra os
ingleses, mas estavam sem esperança, afinal de contas,
estavam presos no Egito. A caminhada era longa e quando
parei e olhei para trás, pude ver colunas de fumaça de al-
guns navios franceses que ainda ardiam em chamas.
Enquanto marchávamos, vimos os restos de uma civilização
extinta há muito tempo. Uma escultura de um rosto estava
caída sem cerimônia. Um pé real, tão grande como uma
mesa, com os dedos do tamanho de abóboras, surgia detrás
dos escombros. Éramos a ruína moderna caminhando
penosamente por ruínas passadas. Só cheguei na cidade à
meia-noite.
Alexandria zunia como uma colmeia. Eu ia de pousada em
pousada, perguntando sobre um francês baixo, interessado
em curas miraculosas, até que finalmente descobri que
Talma estava hospedado na mansão de um mameluco morto,
transformada em pousada por um comerciante oportunista.
"O doente?" respondeu o proprietário. "Ele desapareceu sem
levar sua sacola e remédios."
Aquilo não pareceu bom. "Ele não deixou nenhum recado
para mim, Ethan Gage?"
"Você é amigo dele?" Sim.
"Ele me deve centenas de francos."
Eu paguei a dívida de Talma e peguei sua bagagem,
esperando que o jornalista tivesse retornado ao Cairo. Só
para ter certeza que ele não partiu pelo rio, chequei as docas.
"Não é típico do meu amigo Talma sair assim sozinho,"
disse, preocupado, ao supervisor portuário. "Ele não é tão
aventureiro."
"Então, o que ele está fazendo no Egito?"
"Procurando cura para suas doenças."
"Tolo. Ele deveria ter tomado as águas da Alemanha."
O supervisor confirmou que o conde Silano chegou ao
Egito, mas não proveniente da França. Ele veio da costa da
Síria. O relatório indicou que ele desembarcou com dois
enormes baús com seus pertences, um macaco preso numa
corrente de ouro, uma acompanhante loura, uma naja numa
cesta, um porco numa gaiola e um gigantesco guarda-costas
negro. Como se isso não bastasse, ele vestia roupas árabes e
também usava um cinto amarelo, além de botas da cavalaria
austríaca e carregava um florete francês. "Estou aqui para
decifrar os mistérios do Egito!", ele proclamou. Enquanto o
cheiro de pólvora ainda vinha do que sobrou da frota
francesa, Silano organizou uma caravana de camelos e partiu
para o Cairo. Será que Talma foi com ele? Parecia pouco
provável. Ou teria Antoine entrado para o grupo com a idéia
de espionar o conde?
Juntei-me a uma patrulha da cavalaria até Rosetta e, então,
peguei um barco de patrulha até o Cairo. Daquela distância, a
capital parecia curiosamente intocada depois do apocalipse
em Abukir, mas, logo, soube que as notícias do desastre,
realmente, chegaram antes de mim.
"E como se segurássemos uma corda", disse o sargento que
me escoltou até o quartel general de Napoleão. "Existe o
Nilo e uma estreita faixa de verde que o acompanha, e mais
nada além de deserto vazio para todos os lados. Se você for
para o deserto, eles te matam para roubar suas roupas. Vá a
uma vila e você pode acordar com uma faca cortando sua
traqueia. Durma com uma mulher e sua bebida pode ser
envenenada, ou suas bolas sumirem. Consiga um cachorro e
corra o risco de pegar raiva. Podemos marchar apenas em
duas dimensões, não três. Será que essa corda vai nos
enforcar?"
"Os franceses avançaram em direção à guilhotina", conclui
sem vontade.
"E Nelson já cortou nossa cabeça. Isto aqui é o corpo, à
deriva no Cairo."
Acho que Bonaparte não gostaria daquela analogia,
preferindo dizer que o almirante britânico havia cortado
nossos pés, enquanto ele, o cérebro, continuava desafiador.
Quando me apresentei em seus aposentos, ele alternava
entre jogar toda a culpa em Brueys - "Por que ele não
navegou para Corfu?" — e insistir que a essência estratégica
da situação permanecia inalterada. A França ainda era a
senhora do Egito e estava em condições de assaltar do
Oriente. Se a Índia havia se tornado uma possibilidade
remota, a Síria continuava sendo um alvo tentador. Logo, a
riqueza e o poder de mobilização do Egito estariam
estabilizados. Coptas cristãos e mamelucos renegados eram
recrutados pelas forças francesas. Uma unidade especializada
em camelos transformaria o deserto num mar navegável. A
conquista continuaria. E Napoleão seria o novo Alexandre.
Mesmo depois de repetir tudo isso, como se precisasse se
convencer, o semblante soturno de Bonaparte era claro.
"Brueys foi corajoso?", ele me perguntou.
"Mesmo depois de uma bala de canhão arrancar sua perna,
ele insistiu em ficar em seu posto. Ele morreu como um
herói." "Bem, temos que levar isso em conta."
"Assim como o capitão Casablanca e seu filho. O tombadilho
estava em chamas e eles se recusaram a abandonar o navio.
Eles morreram pela França e pelo dever, general. A vitória
poderia ser de qualquer lado. Mas quando o L'Orient
explodiu..."
"Todo o tesouro maltês foi perdido. Maldição! E o almirante
Villeneuve fugiu?"
"Não havia como seus navios participarem da luta. O vento
estava contra eles."
"E você sobreviveu, também." A observação parecia um
pouco amarga.
"Sou um bom nadador."
"É o que parece. E o que parece. Você é um belo
sobrevivente, hein, Gage?" Ele brincou com alguns
compassos e me olhou. "Tenho um recém-chegado
perguntando sobre você. Um tal conde Silano, que diz o
conhecer de Paris. Ele compartilha seu interesse por
antiguidades e tem feito sua própria pesquisa. Disse a ele que
você estava pesquisando algo no navio e ele demonstrou
interesse em examinar suas descobertas."
Eu não estava interessando em dividir informações com
Silano. "Temo que tenhamos perdido o calendário durante a
batalha."
"Mon Dieu. Nada de bom vai sair de tudo isso?"
"E eu também perdi o rastro de Antoine Talma, que
desapareceu em Alexandria. Você o viu, general?" "O
jornalista?"
"Ele trabalhou arduamente para enfatizar suas vitórias."
"Assim como eu trabalho duro para conquistá-las. Dependo
dele para escrever minha biografia para publicação na
França. O povo tem que saber o que realmente está
acontecendo aqui. Não, eu não cuido pessoalmente de trinta
e cinco mil homens. Seu amigo aparecerá, se ele não fugiu."
A idéia de possíveis deserções atormentava Bonaparte.
"Você está perto de desvendar as pirâmides e aquele seu
colar?"
"Eu examinei o calendário. Ele deve sugerir datas curiosas."
"Para quê?"
"Eu não sei."
Ele fechou o compasso de calibre com firmeza. "Começo a
me preocupar com a sua utilidade, americano. Mas Silano
me disse que a sua pesquisa pode fornecer lições, lições
militares."
"Lições militares?"
"Poderes antigos. O Egito permaneceu proeminente por
milhares de anos, construindo obras-primas enquanto o
resto do mundo morava em cabanas. Como? Por quê?"
"Esta é justamente a questão que comecei a discutir com os
cientistas", eu disse. "Estou curioso para saber se existe
alguma referência antiga sobre o fenômeno da eletricidade.
Jomard especulou se poderiam tê-la usado para mover os
blocos gigantes. Mas não podemos ler seus hieróglifos, tudo
está semi-enterrado na areia e ainda não tivemos tempo
suficiente para examinar as pirâmides."
"O que estamos por remediar. Vou investigá-las
pessoalmente. Mas, primeiro, você virá ao meu banquete
esta noite. É hora de você trocar algumas idéias com
Alessandro Silano."
Fiquei surpreso com o tamanho do meu alívio ao ver Astiza.
Talvez fosse a soma de ter sobrevivido a outra terrível
batalha, estar preocupado com Talma e ter ouvido a
deprimente definição do sargento francês para nossa posição
no Egito, de saber do surgimento de Silano no Cairo, ou de
ficar atento à impaciência de Bonaparte com velocidade de
meus progressos. Em qualquer caso, eu me sentia solitário.
Quem eu era, além de um americano em exílio, alistado a
um exército estrangeiro em uma terra ainda mais
estrangeira? A única coisa que eu tinha era essa mulher que,
mesmo me negando intimidades, se tornou minha
companheira e amiga; um pensamento secreto que não
arriscaria compartilhar com ela.
Mesmo assim, seu passado continuava tão vago que me
perguntava se eu realmente a conhecia. Busquei
cuidadosamente algum sinal de sentimento oculto quando
ela me recebeu, mas ela simplesmente parecia feliz por eu
ter regressado ileso. Enoc e ela estavam ansiosos para escutar
a minha versão da história, pois o Cairo fora infestada por
rumores sobre a batalha. Se eu tivesse qualquer dúvida sobre
a inteligência de Astiza, ela teria desaparecido quando notei
como seu francês havia evoluído rapidamente.
Enoc e Ashraf não tinham notícias de Talma, mas escutaram
várias histórias sobre Silano. Ele tinha chegado ao Cairo com
sua comitiva, fez contato com alguns maçons entre os
oficiais franceses e conversou com místicos e magos
egípcios. Bonaparte lhe garantiu ótimas instalações na
residência de outro governador mameluco, e um número
considerável de pessoas tem sido visto entrando e saindo
durante todo o dia. E ele já esteve com o general Desaix
várias vezes para saber dos planos de envio das tropas
francesas para o Nilo.
"Ele direciona a ganância dos homens para os segredos do
passado", disse Astiza. "Ele montou seu próprio exército de
beduínos cortadores de garganta, recebeu várias visitas de
Bin Sadr e desfila sua prostituta loira em uma carruagem
finíssima."
"E parece que tem perguntado por você", disse Enoc. "Todos
querem saber o que aconteceu com você em Abukir. Você
trouxe o calendário?"
"Eu o perdi, mas antes tive a chance de examiná-lo. É apenas
suposição, mas quando alinhei os anéis de uma maneira que
me faziam lembrar o medalhão e as pirâmides, percebi que
apontavam para uma data, um mês depois do equinócio do
outono, ou seja, vinte e um de outubro. Esta data é
significante aqui no Egito?"
Enoc pensou. "Não. Tanto o solstício, o equinócio ou o Ano
Novo têm significado quando o Nilo começa a encher, mas
não sei nada sobre essa data. Talvez seja um antigo feriado,
mas se isso for verdadeiro, o significado se perdeu. De
qualquer maneira, consultarei meus livros e mencionarei a
data aos imãs mais sábios."
"E sobre o medalhão?", perguntei. Sentia-me desconfortável
por tê-lo deixado, mas, ao mesmo tempo, estava feliz por
não arriscá-lo na baía de Abukir.
Enoc foi buscá-lo e seu brilho dourado e familiar me
confortou. "Quanto mais eu o estudo, mais velho acredito
que seja — mais velho, eu acho, que a maior parte do Egito.
Os símbolos devem ser da época na qual as pirâmides foram
construídas. É tão velho que não existem mais livros desse
período, mas a menção a Cleópatra me deixa intrigado. Ela
era uma ptolemaica que viveu três mil anos depois da
construção das pirâmides, além de ter sangue grego e
egípcio. Quando se uniu a César e Antônio, ela foi o último
grande elo entre o mundo romano e o Egito Antigo. Há
lendas de que existe um templo, cuja localização é
desconhecida, dedicada a Hathor e Ísis, a deusa da criação,
do amor e da magia. Cleópatra a idolatrava lá."
Ele me mostrou imagens da deusa. Isis era uma mulher
convencionalmente bela, com um adorno de cabeça alto,
mas Hathor era estranha, seu rosto era longo e suas orelhas
projetavam-se para fora como as de uma vaca. Simples, mas
agradável.
"O templo provavelmente foi reconstruído na dinastia
ptolemaica", disse Enoc, "mas sua origem é muito mais
antiga, talvez tão antiga quanto as pirâmides. A lenda diz
que se orientava na direção da estrela Draco, quando ela
apontava para o norte. Se isso estiver correto, segredos
podem ter sido compartilhados entre os dois lugares. Estou
procurando por algo que se pareça com um quebra-cabeça,
um santuário, ou uma porta — algo para o que esse
medalhão possa apontar. Já consultei muitos textos
ptolemaicos sobre esse assunto."
"E?", notei que ele gostava de decifrar esses quebra-cabeças.
"E tenho uma antiga referência grega de um pequeno
templo de Isis protegido por Cleópatra onde se lê, 'O cajado
de Min é a chave para a vidaT
"Cajado de Min? Bin Sadr tinha um cajado, com cabeça de
serpente. Quem é Min?"
Astiza riu. "Min é um deus que se tornou a palavra-raiz para
homem, assim como Ma'at ou Mut se tornou a palavra-raiz
para mãe. Seu cajado não é como o de Bin Sadr."
"Ele está em outra ilustração." Enoc mostrou um desenho
onde se via um sujeito calvo com a postura ereta e uma
característica bastante peculiar: um membro masculino,
rígido, de comprimento prodigioso.
"Pelas almas de Saratoga. Eles penduravam isso em suas
igrejas?"
"É apenas natural", disse Astiza.
"Natureza bem-dotada, isso sim." Minha voz denunciava a
inveja.
Ashraf abriu um grande sorriso. "Típico de egípcios, meu
amigo americano."
Olhei para ele rispidamente e ele riu.
"Vocês estão se divertindo às minhas custas", reclamei.
"Não, não, Min é um deus real e esta é a representação real
dele", Enoc garantiu, "embora meu irmão esteja exagerando
na anatomia de nossos compatriotas. Normalmente eu
pensaria na frase 'O cajado de Min é a chave para a vida'
como uma mera referência sexual e mística. Em uma de
nossas histórias de origem, um dos primeiros deuses engoliu
suas próprias sementes e cuspiu e cagou as primeiras
crianças."
"Que bizarro."
"E esta é a cruz de ansada, a precursora de sua cruz cristã, a
qual normalmente se refere como a chave para a vida
eterna. Mas por que Min está no templo de Ísis?
Freqüentado por Cleópatra? Por que chave, em vez de
essência ou qualquer outra palavra? E por que isto depois: 'A
cripta mostrará o caminho para o paraíso'?'
"Por que, realmente?"
"Não sabemos. Mas o seu medalhão pode ser uma chave
incompleta. As pirâmides apontam para o céu. O que há
nessa cripta? O que sabemos, como eu disse, é que Silano
tem pedido informações sobre a expedição de Desaix para o
sul, subindo o Nilo."
"Para dentro do território inimigo?"
"Em algum lugar no Sul está o templo de Hathor e lá dorme
Isis."
Eu pensei. "Silano estudou demais em capitais antigas.
Talvez ele tenha as mesmas pistas que nós. Mas ele ainda
precisa do medalhão, eu imagino. Fique com ele escondido
aqui. Vou encontrar o feiticeiro no banquete hoje à noite e,
se o assunto surgir, eu lhe digo que o perdi na baía de
Abukir. Pode ser nossa única vantagem se estamos em uma
corrida por essa chave da vida."
"Náo vá ao banquete", disse Astiza. "A deusa me diz que
devemos nos manter afastados desse homem."
"E meu pequeno deus, Bonaparte, me diz que eu tenho que
jantar com ele."
Ela parecia desconfortável. "Então não lhe diga nada."
"Sobre minhas investigações?" E aproveitei para sondar a
afirmação feita por Talma. "Ou sobre você?"
Sua face ficou rosada. "Ele não se interessa por seus servos."
"Não? Talma me contou que soube que você conheceu
Silano no Cairo. Não foram as notícias de Bin Sadr que
levaram Antoine até Alexandria, mas você. O que
exatamente você sabe sobre Alessandro Silano?"
Ela ficou em silêncio muito tempo. E abriu a guarda. "Eu
sabia dele. Ele veio estudar os povos da Antiguidade, assim
como eu. Mas ele queria explorar o passado, não protegê-lo."
"Sabia dele?" Por Hades, eu sabia da existência dos homens
da China, mas nunca tratei de nada com nenhum eles. Não
foi isso o que Talma sugeriu. "Ou você o conhecia por outros
motivos que não quer admitir e os tem escondido de mim
todos estes dias?"
"O problema com homens modernos", interrompeu Enoc,
"é que perguntam muito. Não respeitam o mistério. Isso
causa problemas infinitos."
"Eu quero saber se ela conheceu ..."
"Os antigos compreendiam que alguns segredos devem
permanecer em sigilo e que algumas histórias devem ser
esquecidas. Não permita que seus inimigos façam você
perder seus amigos, Ethan."
Eu bufava enquanto me olhavam. "Mas certamente não é
coincidência que ele esteja aqui", insisti.
"Claro que não. Você está aqui, Ethan Gage. E o medalhão
também."
"Eu quero esquecê-lo", acrescentou Astiza. "E o que eu me
recordo dele é que é mais perigoso do que parece."
Eu estava atordoado, mas estava claro que não estavam
contando os detalhes íntimos. E talvez eu só tivesse
imaginando mais do que realmente pode ter acontecido.
"Bem, ele não pode nos fazer mal no meio do exército
francês, não é verdade?", falei, finalmente, só para dizer
algo.
"Não estamos mais no meio de um exército, estamos nas
ruas do Cairo." Ela pareceu preocupada. "Eu fiquei
atemorizada quando soube das notícias da batalha. Então
chegaram as informações do conde Silano."
Estava ali a oportunidade de responder com delicadeza, mas
eu estava confuso. "E agora estou de volta, com meu rifle e
meu machado", eu disse, só para completar. "Eu não tenho
medo de conde Silano."
Ela suspirou. Seu cheiro de jasmim era intoxicante. Desde a
época da rigorosa marcha, ela se transformou, com a ajuda
de Enoc, em uma beldade egípcia, com suas vestes de linho
e seda, seus braços e pescoço adornados com jóias douradas
e desenhos, seus olhos eram grandes e luminosos. Os olhos
de Cleópatra. Sua forma lembrava as curvas dos jarros de
alabastro de unguento e perfume que eu vi no mercado. Ela
me lembrou de quanto tempo fazia que eu não sabia o que
era a companhia feminina, e de quanto eu gostaria de tê-la
agora. Como cientista honrado, esperava que minha mente
se mantivesse ocupada com assuntos mais importantes, mas
ela não se comportava assim. De qualquer forma, deveria eu
confiar nela?
"Armas não são garantia contra a magia", ela disse. "Será
melhor que eu divida os aposentos com você novamente,
para ajudar a vigiá-lo. Enoc entende. Você precisa da
proteção da deusa."
Agora sim estávamos progredindo. "Se você insiste ..."
"Ele montou uma cama extra para mim."
Meu sorriso era tão apertado quanto minhas nádegas. "Que
atencioso."
"É importante que focalizemos no mistério", ela disse com
simpatia. Ou estava pensando em me torturar? Talvez sejam
a mesma coisa para as mulheres.
Tentei mostrar indiferença. "Apenas certifique-se de estar
perto o suficiente para matar a próxima serpente."
Fui ao banquete de Bonaparte com a mente repleta de
confusão e frustração. Era o risco de todos aqueles que se
envolvem com mulheres. Seu propósito era lembrar aos
oficias superiores que suas posições no Egito permaneciam
intactas, e que deveriam comunicar isso às tropas. Também
era importante demonstrar aos egípcios que, apesar do
recente desastre naval, os franceses continuavam
despreocupados, desfrutando de seus jantares como faziam
antes. Os planos futuros envolviam celebrar o aniversário da
Revolução, o equinócio de outono de vinte e um de
setembro, um mês antes da data do calendário. As bandas
militares tocariam nas festividades, que também contariam
com corridas de cavalo e um vôo com um dos balões do
conde.
O banquete foi o mais europeu possível. Cadeiras foram
montadas para que ninguém tivesse que se sentar no chão ao
estilo muçulmano. Os pratos de porcelana, os cálices de água
e vinho e os talheres de prata foram cuidadosamente
distribuídos pelo deserto como cartuchos e canhões. Apesar
do calor, o menu incluía a sopa costumeira, carne, vegetais e
salada européia.
Silano, em contraste, era um orientalista. Ele vestia um robe
e um turbante, usando abertamente o símbolo maçônico do
compasso e do esquadro com a letra G ao meio. Talma ficaria
irado por esta apropriação indevida. Quatro de seus dedos
levavam anéis, uma pequena argola adornava sua orelha e a
bainha de seu florete era um filigrana de ouro sobre esmalte
vermelho. Quando entrei, ele se levantou de sua mesa e se
curvou.
"Monsieur Gage, o americano! Soube que esteve no Egito e
agora posso confirmar isso! A última vez em que
desfrutamos um da companhia do outro foi em um jogo de
cartas, se bem me recordo."
"Eu, pelo menos, a desfrutei. Eu venci, pelo que me
lembro."
"Mas é claro, alguém tem que perder! De qualquer maneira,
o prazer é o jogo em si, ou não? Certamente foi uma
diversão com a qual eu posso arcar." Ele sorriu. "E entendo
que o medalhão que você ganhou o trouxe a essa
expedição?"
"Ele e a uma morte precoce em Paris." "Um amigo?" "Uma
prostituta."
Não havia meios de desconcertá-lo. "Oh, meu caro. Não vou
fingir que entendo dessas coisas. Mas, é claro, você é o
sábio, o especialista em eletricidade e em pirâmides e eu sou
um mero historiador."
Tomei meu lugar à mesa. "Meu conhecimento de ambos os
assuntos é modesto, eu receio. Estou honrado por sequer ter
sido incluído na expedição. E você também é um mago, pelo
que soube, mestre do oculto e do Rito Egípcio de
Cagliostro."
"Você exagera minhas capacidades assim como eu, talvez,
supervalorize as suas. Eu sou um mero estudante do passado
que espera que ele possa fornecer respostas sobre o futuro.
O que sabiam os sacerdotes egípcios e ainda não
descobrimos? A liberação que trouxemos ao Egito abriu as
portas para uma fusão entre a tecnologia do oeste com a
sabedoria do leste."
"Sabedoria de quê, conde?", perguntou o general Dumas
depois de engolir uma grande quantidade de comida. Ele
comia do mesmo modo que cavalgava: em velocidade
máxima. "Não vejo isso nas ruas do Cairo. E os estudiosos,
sejam eles cientistas ou magos, não fizeram muita coisa. Eles
comem, falam e fazem rascunhos."
Os oficiais riram. Acadêmicos eram vistos com ceticismo, e
os soldados acreditavam que os cientistas perseguiam
objetivos sem propósito, que mantinham o exército preso
no Egito.
"Isto é injusto com nossos cientistas, general", corrigiu
Bonaparte. "Monge e Berthollet dispararam um tiro de
canhão certeiro na batalha do rio. Gage provou sua perícia
na precisão de seu rifle longo. Os cientistas ficaram dentro
dos quadrados da infantaria. Os planos estão em andamento
para a construção de moinhos de vento, canais, fábricas e
fundições. Conte planeja inflar um de seus balões! Os
soldados iniciaram a liberação, mas são os estudiosos que vão
levá-la adiante. Nós vencemos a batalha, mas eles
conquistam a mente."
"Então deixe-os aqui e vamos voltar para casa." Dumas
voltou, mas a atenção estava voltada para sua coxinha de
frango.
"Os sacerdotes antigos eram igualmente úteis", disse Silano.
"Eles eram curadores e executavam as leis. Os egípcios
tinham feitiços para curar os doentes, ganhar o coração de
uma amante, proteger contra maldades e ganhar saúde. Nós,
do Rito Egípcio, vimos feitiços influenciarem o clima,
proporcionar invulnerabilidade ao perigo e prevenir a
morte. Pode-se aprender até mais, eu espero, agora que
controlamos o berço da civilização."
"Você está promovendo a bruxaria", alertou Dumas. "Tenha
cuidado com sua alma."
"Aprendizado não é bruxaria. É ele que gera as armas que
vão para as mãos dos soldados."
"Sabres e pistolas serviram bem até agora."
"E de onde veio a pólvora, se não de experiências com a
alquimia?"
Dumas arrotou em resposta. O general era imenso, estava
levemente bêbado e tinha pavio curto. Talvez ele se livrasse
de Silano por mim.
"Defendo a descoberta de poderes desconhecidos, como a
eletricidade", Silano continuou, acenando com a cabeça para
mim. "Qual é essa força misteriosa que se pode observar
simplesmente esfregando o âmbar? Existem energias que
impulsionam o mundo? Podemos transformar elementos
básicos em elementos mais valiosos? Mentores como
Cagliostro, Kolmer e St. Germaine mostraram o caminho.
Monsieur Gage pode aplicar os conhecimentos do grande
Franklin..."
"Ha!", Dumas interrompeu. "Cagliostro foi desmascarado
como fraude em meia dúzia de países. Invulnerável?" Ele
pôs a mão sem seu pesado sabre de cavalaria e começou a
puxar. "Tente um feitiço contra isto."
Antes mesmo que ele pudesse sacar, em um rápido
movimento, Silano apontava seu florete contra o punho do
general. Foi como a batida de uma asa de um beija-flor, e o
ar tremulou com o arco feito pela espada. "Eu não preciso de
mágica para vencer um mero duelo", disse o conde com tom
de advertência.
Todos na sala ficaram em silêncio, surpresos com sua
velocidade. "Guardem suas espadas, os dois" , Napoleão
finalmente ordenou. "Claro." Silano embainhou sua lâmina
fina tão rápido quanto a havia sacado. Dumas, zangado,
deixou que o sabre caísse em sua bainha. "Então você confia
no aço como o resto de nós", murmurou. "Está desafiando
meus outros poderes também?" "Gostaria de conhecê-los."
"A alma da ciência é o teste metódico", concordou o
químico Berthollet. "Uma coisa é alegar ter poderes mágicos,
a outra é usá-los efetivamente, conde Silano. Admiro seu
espírito de pesquisa, mas alegações extraordinárias exigem
provas extraordinárias."
"Talvez eu deva fazer as pirâmides levitarem."
"Isso impressionaria a todos nós, com certeza."
"E, mesmo assim, a descoberta científica é um processo
gradual de experimentação e evidência", continuou Silano.
"Assim é também com mágica e poderes antigos. Eu espero
conseguir levitar pirâmides, tornar-me invulnerável a balas
ou alcançar a imortalidade, mas no momento sou um mero
investigador, como vocês, cientistas. Por essa razão fiz a
longa viagem até o Egito depois de investigações em Roma,
Istambul e Jerusalém. O americano ali tem um medalhão
que pode ser útil para minha pesquisa, se permitir que eu o
estude."
As cabeças se viraram para mim. Eu balancei a cabeça. "É
arqueologia, não magia e nem mesmo para ser usada em
experiências de alquimia."
"Para estudo, eu disse."
"Que os verdadeiros cientistas estão providenciando. Seus
métodos são críveis. O Rito Egípcio não é."
O conde parecia um professor desapontado com seu aluno.
"Está me chamando de mentiroso, monsieur"?
"Não, eu estou", Dumas interrompeu novamente, atirando
seu osso no prato. "Uma fraude, um hipócrita e um
charlatão. Magos, alquimistas, cientistas, ciganas ou
sacerdotes não têm utilidade para mim. Você chega aqui em
túnica e turbante como um palhaço de Marselha e fala de
magia, mas eu vi você mastigando a sua carne como todos
nós. Balance essa sua pequena agulha o quanto quiser, mas
vamos testá-la em um batalha real contra sabres de verdade.
Eu respeito homens que lutam e constroem, não aqueles que
falam e fantasiam."
Agora os olhos de Silano tremiam como se estivesse muito
irritado. "Você contestou minha honra e dignidade, general.
Talvez eu deva desafiá-lo."
Havia um tumulto na sala. Silano tinha a reputação de um
duelista mortal, tendo matado pelo menos dois inimigos em
Paris. E Dumas era um Golias.
"E talvez eu deva aceitar seu desafio", respondeu o general.
"Duelar é proibido", Napoleão disse rispidamente. "Vocês
dois sabem disso. Se qualquer um dos dois tentar, mandarei
atirar nos dois."
"Então você está a salvo por enquanto", Dumas disse ao
conde. "Mas é melhor que encontre seus feitiços, porque
quando retornaremos à França ..."
"Por que esperar?", disse Silano. "Posso sugerir um torneio
diferente? Nosso estimado químico pediu um teste, então
permita que eu proponha um. Para o jantar de amanhã,
deixe-me trazer um pequeno leitão que mandei vir da
França. Como você sabe, os muçulmanos não vão nem tocar
nele. Você diz que eu não tenho poderes. Permita-me,
então, duas horas antes do jantar, apresentar o porco a você
para que seja preparado da maneira que desejar: assado,
cozido ou frito. Eu não chegarei perto dele até que seja
servido. Você cortará a comida em quatro partes iguais e
servirá a mim o quarto que você preferir. Você comerá
outra porção."
"Aonde quer chegar com essa bobagem?", perguntou
Dumas.
"No dia seguinte ao jantar, uma de quatro coisas acontecerá:
ou ambos estaremos mortos ou nenhum de nós estará
morto; ou eu estarei morto e você não; ou você estará morto
e eu não. Destas quatro opções, eu lhe darei três e apostarei
cinco mil francos que, no dia seguinte, você estará morto e
eu estarei bem."
Fez-se silêncio na mesa. Dumas parecia nervoso. "Esse é um
dos velhos truques de Cagliostro."
"Que nenhum de seus inimigos jamais aceitou. Aqui está a
sua chance de ser o primeiro, general. Você duvida dos
meus poderes o suficiente para jantar comigo amanhã?"
"Você tentará algum tipo de truque ou mágica!"
"Que você diz que eu não consigo fazer. Prove-o então."
Dumas olhou para cada um de nós. Em uma batalha ele
confiava em si mesmo, mas e agora?
"Duelar é proibido, mas eu gostaria de ver esta aposta", disse
Bonaparte. Ele estava desfrutando do tormento de um
general que o desafiou na marcha.
"Ele me envenenaria com um truque de mão, eu sei disso."
Silano abriu seus braços, sentindo a vitória. "Você pode me
examinar dos pés à cabeça antes de nos sentarmos para
comer, general."
Dumas desistiu. "Bah, eu não jantaria com você nem que eu
fosse Jesus, o diabo ou o último homem na Terra." Ele se
levantou e empurrou a cadeira para trás. "Continuem com
suas investigações", ele mostrou a sala, "mas eu lhes garanto
que não há nada neste deserto além de um monte de pedras
velhas. Você se arrependerá de escutar esses parasitas - seja
este charlatão ou o sanguessuga americano." E com isso se
retirou da sala, furioso.
Silano virou-se para nós. "Ele é mais sábio que sua reputação,
recusando meu desafio. Isso significa que ele viverá o
suficiente para ter um filho que fará coisas grandiosas, eu
posso prever. Quanto a mim, peço apenas permissão para
fazer investigações. Eu gostaria de procurar por templos
quando o exército marchar rio acima. Eu respeito a todos
vocês, bravos soldados, e peço apenas uma pequena
retribuição." Ele olhou para mim. "Eu gostaria que
pudéssemos trabalhar juntos como colegas, mas,
aparentemente, somos rivais."
"Eu simplesmente não vejo a necessidade de compartilhar
suas metas com meus pertences", respondi.
"Então me venda o medalhão, Gage. É só dizer o preço."
"Quanto maior for sua vontade de ficar com ele, menor
minha vontade de entregá-lo a você."
"Maldito seja! Você é um empecilho para o conhecimento!"
Ele gritou e bateu sua mão contra a mesa, e foi como se uma
máscara tivesse escorregado de sua face. Havia ódio por trás
dela, ódio e desespero, quando olhou para mim com olhos
de inimizade implacável. "Ajude-me ou prepare-se para o
pior!"
Monge levantou de um salto, como um verdadeiro retrato
da mais pura censura. "Como se atreve, monsieur"! Sua
impertinência reflete o seu pobre caráter. Agora, eu próprio
estou tentado a aceitar o duelo!"
Napoleão levantou-se, obviamente aborrecido com o fato de
a discussão estar ficando fora de controle. "Ninguém comerá
porco envenenado. Eu quero que o animal seja morto e
jogado ao rio Nilo nesta mesma noite. Gage, você está aqui,
e não em Paris, por minha causa. Eu ordeno que ajude o
conde Silano de qualquer maneira que puder."
Eu me levantei. "Então devo contar o que eu estava
relutante em admitir. O medalhão perdeu-se quando saí do
navio na Batalha de Abukir."
Naquele momento, ouviu-se um burburinho na mesa, e nem
todos acreditavam que aquilo era verdade. Eu
particularmente adorei a notoriedade, mesmo sabendo que
aquilo significaria mais problemas. Bonaparte franziu a testa.
"Você não comentou nada sobre isso antes", Silano disse
ceticamente.
"Não me orgulho de minha situação", respondi. "E eu queria
que os oficiais vissem o perdedor mesquinho que você é."
Dirigi-me para os demais. "Este nobre não é um estudioso
sério. Ele nada mais é do que um jogador frustrado, tentando
recuperar por ameaça o que perdeu nas cartas. Eu sou
maçom também, e Rito Egípcio corrompe os conceitos de
nossa ordem."
"Ele está mentindo", defendeu-se Silano. "Ele não teria
voltado ao Cairo se o medalhão não fosse mais dele."
"Claro que voltaria. Eu sou um cientista desta expedição,
assim como Monge ou Berthollet. A pessoa que não voltou
foi meu amigo, o escritor Talma, que desapareceu em
Alexandria na mesma época em que você chegou lá."
Silano virou-se para os outros. "Mágica, novamente."
Eles riram.
"Não faça piadas, monsieur", eu disse. "Você sabe onde
Antoine está?" "Se você encontrar o seu medalhão, talvez
que possa ajudá-lo a encontrar Talma."
"O medalhão se perdeu, já lhe disse!"
"E eu disse que não acredito em você. Meu querido general
Bonaparte, como sabemos de que lado esse americano, que
fala inglês, realmente está?"
"Isso é ultrajante!", gritei, enquanto secretamente pensava
de qual lado eu deveria realmente estar, mesmo
determinado a ficar no meu próprio lado, seja ele qual for.
Como disse Astiza, no que eu acreditava verdadeiramente?
Em tesouros ensangüentados, mulheres maravilhosas e em
George Washington? "Duele comigo!", o desafiei.
"Não haverá duelos!", Napoleão ordenou mais uma vez.
"Chega! Todos estão agindo como crianças! Gage, você tem
permissão de deixar minha mesa."
Levantei e me reverenciei. "Talvez assim seja melhor." Dei
as costas e saí porta afora.
"Você verá como sou um estudioso sério!", Silano gritou
para que eu escutasse. E ouvi quando ele disse a Napoleão
"Não devemos confiar naquele americano. Ele é o homem
que pode fazer todos os seus planos falharem."
Já passava do meio-dia no dia seguinte quando Ash, Enoc,
Astiza e eu descansávamos perto da fonte de Enoc,
discutindo o resultado do jantar com Silano. Enoc armou
seus serviçais com porretes. Sem nenhuma razão aparente,
sentíamos que estávamos sob cerco. Como Silano chegou
até aqui? Qual era o interesse de Bonaparte? O general
também desejava poderes ocultos? Ou tudo aquilo não
passava de mera curiosidade?
Nossa resposta chegou com uma leve batida na porta de
Enoc, e Mustafá foi atender. Ele voltou não com um
visitante, mas com uma jarra. "Alguém deixou isto."
O recipiente de barro era gordo, tinha uns sessenta
centímetros de altura e era bastante pesado. "Não tinha
ninguém lá e a rua estava deserta." "O que é?", perguntei.
"É um recipiente de óleo", respondeu Enoc. "Não é o
costume entregar um presente desta maneira." Ele parecia
preocupado, mas levantou-se para abri-lo.
"Espere", eu disse. "E se for uma bomba?" "Uma bomba?"
"Ou um cavalo de Tróia", disse Astiza, que conhecia as
lendas gregas tão bem quanto as egípcias. "Um inimigo deixa
isso, nós o levamos para dentro ..."
"E de dentro saltam soldados anões?", perguntou Ashraf que
se divertia com a conversa.
"Não. Cobras." Ela se lembrou do incidente em Alexandria.
Agora Enoc ficou ressabiado.
Ash levantou. "Fiquem para trás e deixem-me abri-la." "Use
uma vara", disse seu irmão. "Eu usarei um espada e serei
rápido."
Ficamos de pé e demos alguns passos para trás. Usando a
ponta da cimitarra, Ashraf quebrou o selo de cera e soltou a
tampa. Não se escutou nenhum som dentro da jarra. Então,
usando a ponta da arma, Ash vagarosamente levantou a
tampa e a virou. De novo, nada. Ele inclinou a jarra com
cuidado, apontando a espada... e pulou para trás. "Cobra!",
confirmou.
Droga. Já estava saturado com todos esses répteis no meu
caminho.
"Mas não pode ser", disse o mameluco. "A jarra está cheia de
óleo. Posso sentir o cheiro." Ele novamente se aproximou
com cuidado, apontando a ponta da espada. "Não... espere.
A cobra está morta." Ele parecia confuso. "Que os deuses
tenham piedade."
"Que diabos?"
Fazendo caretas, o mameluco enfiou sua mão na jarra e a
levantou. De dentro saiu uma bola de cabelo cheia de óleo,
emaranhada com as escamas de uma cobra. Quando
levantou seu braço, vimos um objeto redondo embrulhado
nas espirais da serpente morta. O óleo escorreu de uma
cabeça humana.
Eu gemi. Era Talma, com os olhos arregalados.
Capítulo Quinze
"Eles o mataram para mandar uma mensagem para mim", eu
disse.
"Mas por que eles matariam o seu amigo por algo que você
disse que não tinha? Por que não mataram você?",
perguntou Ashraf.
Eu também pensava nisso. A cabeça do pobre Talma voltou
temporariamente para dentro da jarra. Eu nem queria pensar
onde poderia estar o corpo.
"Porque não acreditam nele", respondeu Astiza. "Somente
Ethan sabe ao certo se o medalhão ainda existe e o que ele
pode significar. Querem coagi-lo, não matá-lo."
"Esta é uma maneira maldita de fazer isso", eu disse
resmungando. "E quem é ele?", perguntou Enoc. "O beduíno
Achmed Bin Sadr." "Ele é um operativo, não o mestre."
"Então deve ser Silano. Ele me avisou que deveria levá-lo a
sério. Ele chega e Antoine morre. Tudo isso é minha culpa.
Eu pedi a Talma que investigasse Bin Sadr em Alexandria.
Talma foi seqüestrado ou seguiu Silano para espioná-lo. Ele
foi pego e não disse nada. O que ele realmente sabia? A
morte dele deveria me assustar."
Ash bateu em meu ombro. "Exceto por ele não conhecer o
guerreiro que existe em você!"
Realmente, eu era suficientemente humano para ter
pesadelos por um mês, mas isso não se confessa em horas
como essas. Além disso, se havia uma coisa da qual eu tinha
certeza era de que Silano nunca teria meu medalhão.
"É minha culpa", disse Astiza. "Você disse que ele foi a
Alexandria para me investigar."
"Foi idéia dele, não minha ou sua. Não se culpe."
"Por que não perguntou o que queria saber diretamente para
mim?"
Porque você nunca responde completamente, pensei.
Porque você adora ser um enigma. Mas eu não disse nada.
Sentamos em silêncio por um segundo, batalhando contra a
culpa. Algumas vezes, quanto mais inocentes somos, mais
nos culpamos.
"Seu amigo não será o único a morrer se Silano realizar o
que pretende", Enoc disse, finalmente.
Parecia que o velho sabia mais do que aparentava. "O que
você quer dizer?"
"Há mais em jogo do que você imagina ou sabe. Quanto
mais estudo, mais eu temo e mais me convenço."
"Do quê?"
"De que seu medalhão deve ser algum tipo de pista ou chave
para abrir a porta sagrada para uma catacumba que está
escondida há muito tempo. Seu propósito tem sido buscado
há milênios e, com o tempo, como não foi decifrado,
provavelmente ficou esquecido em Malta até que Cagliostro
o descobriu em seus estudos e procurou por ele. Amaldiçoa
àqueles que não são dignos e os leva à loucura. Ele provoca
os brilhantes e se tornou um enigma. É uma chave sem
fechadura ou um mapa sem destino. Ninguém se lembra a
que está relacionado. Enganou até a mim mesmo."
"Então talvez seja inútil", disse com um pouco de esperança
e, ao mesmo tempo, arrependimento.
"Ou então a hora de usá-lo finalmente tenha chegado. Silano
não teria vindo até aqui depois de tudo o que estudou se não
tivesse expectativas reais."
"De ficar rico?"
"Não é só isso. Existe riqueza, e existe poder. Eu não sei o
que realmente motiva este misterioso europeu e seu
chamado Rito Egípcio, mas se Silano chegar a encontrar
aquilo que tem procurado, ele não será apenas imortal, mas
terá riqueza fora do comum e acesso a segredos que
poderiam desfazer as fundações do mundo. O homem certo
pode construir. O homem errado..."
"Quais segredos? O que todos vocês querem de verdade?"
Enoc suspirou, considerando o que diria. Finalmente falou.
"O Livro de Thoth."
"O livro do quê?"
"Thoth é um deus egípcio de sabedoria e conhecimento",
disse Astiza. "O nome inglês thought, pensamento, vem
dessa palavra. Ele é grandioso, aquele a quem os gregos
chamam Hermes. Quando o Egito começou, Thoth estava
lá."
"As origens de nossa nação são misteriosas", disse Enoc.
"Antes de surgir a História, o Egito já estava lá. Em vez de
lendas sobre um despertar gradual, nossa civilização parece
ter brotado e nascido da areia inteiramente definida e
formada. Não há precedentes e, de repente, reinos surgem
com toda pompa e circunstância. De onde vem o
conhecimento? Nós atribuímos esse nascimento repentino à
sabedoria de Thoth."
"Foi ele quem inventou a escrita, o desenho, a topografia, a
matemática, a astronomia e a medicina", explicou Astiza.
"De onde vem, não sabemos, mas foi ele quem começou
tudo o que veio a seguir. Para nós, ele é como Prometeu,
que trouxe fogo, ou Adão e Eva, que comeram da maça do
conhecimento. Sim, a sua Bíblia sugere um nascimento
similar, mas se lembra dele com temor. Acreditamos que os
homens eram mais sábios naqueles dias, e tinham
conhecimentos mágicos. O mundo era mais limpo e mais
feliz." Ela apontou para um quadro na parede da biblioteca
de Enoc. Era de um homem com a cabeça de um pássaro.
"Aquele é Thoth?" Há algo perturbador nas pessoas com
cabeças de animais. "Por que um pássaro? Alguma fixação?"
"E uma íbis e os egípcios vêem essa união entre humanos e
animais como algo verdadeiramente maravilhoso." O tom de
suas palavras era levemente frio. "Ele também é retratado
como um babuino. Os egípcios acreditam que não existiam
grandes diferenças entre homem e animal, homem e deus,
vida e morte, criador e criatura. Tudo é parte de uma só
coisa. É Thoth quem preside quando nossos corações são
pesados contra uma pena perante um júri de quarenta e dois
deuses. Não devemos amaldiçoar o pecado que não
cometemos, para que nossa alma não seja devorada por um
crocodilo."
"Compreendo", eu disse, mesmo não entendendo nada.
"Algumas vezes ele perambulava pelo mundo para observar
e ocultava sua sabedoria para aprender ainda mais. Os
homens o chamava de Tolo."
"Tolo?"
"O bufão, o sabe-tudo, o contador de verdades", disse Enoc.
"Ele aparece de tempos em tempos. O ditado é que o tolo
segue o tolo."
Agora eu estava realmente confuso. Foi exatamente isso que
a cigana Sarylla disse na floresta francesa, quando leu as
cartas de Taro. Será que o que eu acreditei ser a mais pura
bobagem era, na verdade, uma profecia real? Ela me chamou
o tolo, também. "Mas por que toda essa exaltação sobre esse
livro?"
"Esse não é qualquer livro, mas sim o primeiro livro", disse
Enoc. "E certamente você concorda que livros podem
mover o mundo, seja a Bíblia, o Alcorão, as palavras de Isaac
Newton, ou as canções da Ilíada que inspiraram Alexandre.
Em sua melhor forma, ele é a destilação do pensamento, da
sabedoria, esperança e desejo. O Livro de Thoth é a
representação de quarenta e dois rolos de papiros, uma mera
amostra de trinta e seis mil, quinhentos e trinta e cinco rolos
originais — uma centena para cada dia do ano solar. Foi
neles que Thoth registrou seu conhecimento secreto e
escondeu por todo o mundo, para ser encontrado pelos mais
valorosos na hora certa. Esses pergaminhos contêm um
resumo do poder mais profundo do mestre que construiu as
pirâmides: Força. Amor. Imortalidade. Alegria. Vingança.
Levitação. Invisibilidade. A habilidade de ver o mundo
como ele verdadeiramente é, em vez da ilusão de sonhos na
qual vivemos. Há alguns padrões que regem nosso mundo,
algumas estruturas invisíveis, que a lenda diz poder ser
manipulada para produzir efeitos mágicos. Os egípcios
antigos sabiam como fazer tudo isso. Nós esquecemos."
"É por isso que todos estão tão desesperados por esse
medalhão?"
"Sim. Pode ser uma pista para uma busca tão velha quanto a
História. E se as pessoas não tivessem que morrer ou
pudessem ser revividas se morressem? Para um só indivíduo,
o próprio tempo permitiria o acúmulo de conhecimento que
o faria mestre de todos os outros homens. Para exércitos,
significaria a indestrutibilidade. Como seria um exército que
não conhece o medo? O que seria de um tirano imortal? E se
o que chamamos de magia não passasse de ciência antiga,
dirigida por um livro escrito por um ser ou seres tão antigos
e sábios que nós nos esquecemos quem são e por que
vieram?"
"Certamente, Bonaparte não espera ..."
"Eu não creio que os franceses saibam exatamente o que
procuram e o que isso faria por eles ou já teriam
desmantelado nossa nação. Há histórias e isso é o suficiente.
O que tem a perder apenas procurando? Bonaparte é um
manipulador. Ele colocou você para trabalhar no problema.
Cientistas como Jomard também. Agora Silano. Mas Silano é
diferente, eu suspeito. Ele finge trabalhar no governo
francês, mas ele realmente usa o suporte para trabalhar para
si mesmo. Ele está seguindo os passos de Cagliostro,
tentando descobrir se as lendas são reais."
"Mas elas não são", eu protestei. "Quero dizer, isto é loucura.
Se o Livro existe, por que não se vê sinal dele? As pessoas
sempre morreram, mesmo no antigo Egito. E elas devem
morrer, a fim de que a sociedade se renove, para que os mais
jovens substituam os mais velhos. Se não o fizerem, as
pessoas iriam à loucura pela impaciência. A morte natural
seria substituída pelo assassinato."
"Você tem mais conhecimento do que sua idade aparenta!",
gritou Enoc. "E agora começou a entender por que segredos
tão poderosos foram raramente usados e devem continuar
adormecidos. O Livro existe, mas é perigoso. Nenhum
simples mortal poderia ter algo tão poderoso em mãos.
Thoth sabia que seu conhecimento deveria ser bem
guardado até que nosso avanço moral e emocional fosse
equivalente à nossa inteligência e ambição, então o
escondeu em algum lugar. Mesmo assim, os sonhos
correram por toda a História e talvez fragmentos das
escrituras foram aprendidos. Alexandre o Grande veio ao
Egito, visitou o oráculo e seguiu em frente para conquistar o
mundo. César e sua família triunfaram depois que estudou
aqui com Cleópatra. Os árabes se tornaram a civilização mais
poderosa do mundo depois que devastaram o Egito. Na
Idade Média, os cristãos vieram para a Terra Sagrada. Para as
Cruzadas? Ou por razões mais profundas e secretas? Mais
tarde, outros europeus começaram a vasculhar lugares
antigos. Por quê? Alguns dizem que foi pela busca de
artefatos cristãos. Alguns citam a lenda do Santo Graal. Mas
e se o Graal for uma metáfora para este livro, uma metáfora
para a verdadeira sabedoria? E se ele representar um fogo
mais perigoso que o de Prometeu? Alguma das batalhas que
você presenciou até agora o convenceram de que você está
preparado para tal conhecimento? Somos somente um
pouco superiores aos animais. Então, nossa velha ordem
acorda vagarosamente de sua letargia, temendo que túmulos
há muito enterrados sejam reabertos e que um livro de
segredos perdido seja finalmente redescoberto. Mesmo
assim, não sabemos o que, exatamente, estamos protegendo!
Agora, esses magos sem deus chegaram com seu Bonaparte."
"Você quer dizer os sábios."
"E esse conjurador, Silano."
"Então, você deseja destruir o medalhão, para que o Livro
não seja encontrado?"
"Não", disse Ashraf. "Ele foi redescoberto por alguma razão.
A sua chegada já foi um sinal, Ethan Gage. Mas esses
segredos são para o Egito, não para a França."
"Temos nossos próprios espiões", continuou Astiza. "Os
rumores eram de que um americano chegaria com algo que
seria a chave para o passado, um artefato que esteve perdido
há séculos e que era uma pista para poderes perdidos por
milênios. Fomos avisados que seria melhor apenas matá-lo.
Mas em Alexandria você matou meu mestre primeiro, e eu
vi que ísis tinha outro plano."
"Os rumores vieram de quem?" Ela hesitou. "Ciganos."
"Ciganos!"
"Um bando mandou o alerta da França."
Sentei, abalado com essa nova revelação. Por Júpiter e Jeová,
também fui traído pelo Rom? Stefan e Sarylla me distraíram
enquanto o aviso de minha chegada era enviado com
antecedência? Que tipo de marionete eu era? E estas pessoas
a minha volta agora, gente de quem eu gostava e em quem
eu confiava, eram fontes verdadeiras, que poderiam me
levar a um livro inestimável, ou um bando de lunáticos?
"Quem são vocês?"
"Os últimos sacerdotes de deuses antigos, que foram
manifestações terrenas de uma raça e de um povo muito
mais sábio que os atuais", disse Enoc. "Eles são a origem e
seus propósitos foram perdidos no passado. Nós somos nossa
própria maçonaria, se preferir, os herdeiros do princípio e
protetores do final. Somos Guardiões que desconhecem
inteiramente o que vigiamos, mas com a missão de manter
esse Livro longe de mãos erradas. As antigas religiões não
morrem completamente, são simplesmente absorvidas pelas
mais novas. Nossa missão é descobrir a porta antes de
oportunistas sem princípios e depois fechá-la novamente,
para sempre."
"Qual porta?"
"Isso é o que não sabemos."
"E vocês querem fechá-la depois de dar uma olhadinha."
"Não podemos decidir o que é melhor fazer com o livro até
encontrá-lo. Devemos ver se oferece esperança ou
sofrimento, redenção ou maldição. Mas, até encontrá-lo,
vivemos com o medo de que alguém mais, muito menos
escrupuloso, o encontre primeiro."
Balancei a cabeça. "Além de tentar me assassinar em
Alexandria e não ter nenhuma pista além do que eu tenho,
vocês não são uma Ordem muito organizada, certo?", eu
reclamei.
"A deusa faz as coisas na hora que ela deseja", Astiza disse
com serenidade.
"E Silano também." Olhei atentamente para nosso pequeno
grupo. "Ísis não ajudou o pobre Talma, e não nos protegerá.
Não acho que estamos a salvo aqui."
"Minha casa está protegida ...", começou Enoc.
"E nossos inimigos sabem disso. Seu endereço não é mais
um segredo, conforme nos mostra a jarra de óleo. Você
deve sair daqui, agora. Você acha que ele não virá bater à sua
porta, se estiver suficientemente desesperado?"
"Ir embora! Eu não vou fugir do Mal. Não deixarei para trás
livros e artefatos que demorei toda uma vida para juntar.
Meus serviçais podem me proteger e, ademais, tentar mudar
minha biblioteca denunciaria qualquer novo esconderijo.
Meu trabalho é continuar pesquisando e o seu é continuar
trabalhando com os estudiosos franceses até que seja
possível descobrir o paradeiro desta porta e encontremos
um jeito de protegê-la de Silano. Estamos em uma corrida
pela redescoberta. Não vamos perdê-la por causa de uma
fuga agora." Enoc estava furioso. Tentar escondê-lo seria um
grande problema.
"Então, pelo menos, precisamos de um lugar seguro para
Astiza e o medalhão", respondi. "E loucura mantê-lo aqui
agora. E se eu for roubado ou morto, é imperativo que não
encontrem o medalhão comigo. De fato, seu eu for
seqüestrado, a sua ausência vai ser a única coisa que pode me
manter vivo. Astiza pode ser usada como refém. Até
Napoleão notou meu... interesse por ela." Mantive meus
olhar desviado enquanto disse isso. "Enquanto isso,
Bonaparte está prestes a liderar um grupo de cientistas até as
pirâmides. Talvez com isso descobriremos algo para
despistar Silano."
"Não se pode deixar uma mulher jovem e linda por conta
própria", disse Enoc.
"Então, onde uma mulher pode ser escondida no Egito?"
"Harém", sugeriu Ashraf.
Confesso que algumas fantasias eróticas relacionadas a essa
misteriosa instituição borbulharam em minha mente. Tinha
uma idéia de piscinas de banho rasas, escravos com
abanadores, e mulheres semi-vestidas famintas por sexo.
Será que eu poderia visitar um deles? Mas, se Astiza fosse
para um harém, ela conseguiria sair de lá?
"Não serei trancada em um palácio", disse Astiza. "Não
pertenço a homem nenhum."
Bem, você pertence a mim, pensei, mas não era a hora de
tocar no assunto.
"Em um harém, nenhum homem, exceto o amo, pode
entrar, ou mesmo saber o que está acontecendo", insistiu
Ashraf. "Eu sei de um nobre que não fugiu dos franceses,
Yusuf al-Beni. Ele manteve posse de sua casa e de seus
pertences. Tem um harém para suas mulheres, e poderia
refugiar a sacerdotisa. Não como uma das mulheres do
harém, mas como uma convidada."
"Pode-se confiar em Yusuf?"
"Ele pode ser comprado, eu acredito."
"Eu não quero ficar alheia aos acontecimentos e perder meu
tempo costurando com um bando de mulheres tontas", disse
Astiza. Maldição, mulher. Ela era independente. E essa era
uma das coisas que eu gostava nela.
"Mas você também não quer estar morta ou pior", respondi.
"A idéia de Ashraf é excelente. Escondê-la como uma
hóspede, com o medalhão, enquanto vou até as pirâmides, e
Enoc e eu resolvemos esta situação. Não saia de lá. Não dê
ao colar nenhuma importância especial, caso alguém no
harém o veja. Nossa esperança é que o esquema de Silano
possa ser sua destruição. Que Bonaparte possa ver através
dele e perceber que o conde quer esses poderes para si
mesmo, não para a França."
"É tão arriscado quanto me deixar sozinha", disse Astiza.
"Você não estará sozinha, você vai estar com um bando de
mulheres bobas, como você mesma disse. Fique escondida e
espere. Eu encontrarei esse Livro de Thoth e volto para te
buscar."
Capítulo Dezesseis
A visita de Napoleão às pirâmides foi uma excursão maior do
que a que eu havia feito antes com Talma e Jomard. Mais de
cem oficiais, soldados de escolta, guias, serviçais e cientistas
cruzaram o Nilo e subiram o platô de Gizé. Era algo parecido
com um passeio de feriado com direito a um comboio de
burros carregando esposas, amantes e uma cornucópia de
frutas, doces, carnes e vinhos. Guarda-sóis eram erguidos
contra o Sol. Carpetes eram estendidos na areia.
Nós iríamos jantar ao lado da eternidade.
Silano era notado por sua ausência. Soube que ele estava
conduzindo suas próprias investigações no Cairo. Fiquei feliz
por ter tirado Astiza do caminho e a colocado em segurança.
Conforme penávamos em direção à inclinação, contei a
Bonaparte sobre a horrenda morte de Talma para medir sua
reação e incitar dúvida sobre meu rival. Infelizmente,
minhas notícias pareceram ser mais irritantes que chocantes
para nosso comandante. "O jornalista não tinha nem
começado minha biografia! Ele não deveria ter saído por aí
antes de o país ser pacificado."
"Meu amigo desapareceu quando Silano chegou, general.
Coincidência? Temo que o conde possa estar envolvido. Ou
Bin Sadr, o saqueador beduíno."
"Aquele saqueador é nosso aliado, monsieur Gage. Assim
como o conde, que é um agente de Talleyrand. Ele me
garantiu não saber nada sobre Talma e, de qualquer forma,
não teria nenhuma razão. Teria?"
"Ele disse que queria o medalhão."
"Que você disse ter perdido. Numa nação com milhões de
nativos descontentes, por que você suspeita das únicas
pessoas que estão do nosso lado?" "Mas eles estão do nosso
lado?"
"Eles estão do meu lado! Assim como você vai estar, quando
começar a solucionar o mistério. Foi para isso que o
trouxemos aqui! Primeiro você perde o medalhão e o
calendário, e depois você faz acusações contra nossos
colegas! Talma morreu! Homens morrem na guerra!"
"Eles não têm suas cabeças entregues num jarro."
"Já vi partes piores serem entregues. Escute aqui. Você viu a
derrota da nossa frota. Nosso sucesso está em perigo.
Estamos isolados da França. Rebeldes mamelucos se reúnem
no sul. A população ainda não se conformou com a nova
situação. Insurgentes cometem atrocidades exatamente para
colher o tipo de terror e confusão que você está mostrando.
Fique firme, Gage! Você foi trazido aqui para resolver
mistérios, não para criá-los."
"General, estou fazendo o melhor que posso, mas a cabeça
de Talma foi uma mensagem clara..."
"De que o tempo é essencial. Não posso me dar ao luxo de
ter simpatia, porque simpatia é uma fraqueza, e qualquer
fraqueza da minha parte é um convite à destruição. Gage, eu
tolerei a presença de um americano porque me disseram que
você poderia ser útil na investigação dos antigos egípcios.
Você conseguiu encontrar alguma lógica para as pirâmides
ou não?"
"Estou tentando, general."
"Não tente, faça. Porque no momento em que você não
tiver utilidade para mim, eu posso te jogar na prisão."
Reprimenda dada, ele olhou atrás de mim. "Ah, elas são
grandes, não são?"
A mesma admiração que sentimos na minha primeira visita
era experimentada por outras pessoas conforme elas
alcançavam o campo de visão da Esfinge e das pirâmides
atrás dela. O papo-furado parou enquanto nos aglomeramos
como formigas na areia. A presença do tempo era quase
palpável. Nossas sombras eram distintas na areia assim como
as das pirâmides. Mas eu não fiquei preso aos fantasmas dos
trabalhadores e faraós, mas sim ao espírito sereno das
próprias estruturas.
Napoleão, entretanto, escrutinou os monumentos como um
contramestre. "Tão simples como se uma criança tivesse
construído, mas certamente tem porte. Veja o volume das
pedras, Monge! Seria necessário reunir um exército para
construir essa grandona. Quais as dimensões, Jomard?"
"Ainda estamos cavando para tentar encontrar a base e os
cantos", o oficial respondeu. "A Grande Pirâmide tem pelo
menos duzentos e vinte e oito metros em cada lado e mais
de cento e trinta e sete metros de altura. A base cobre treze
acres e mesmo sendo gigantesca, calculo que existam dois
milhões e meios de pedras. O volume é grande o suficiente
para comportar qualquer uma das catedrais da Europa. É a
maior estrutura do mundo."
"Tanta pedra", Napoleão murmurou. Ele perguntou as
dimensões das outras duas pirâmides e, usando um lápis de
Conte, começou a fazer contas. Ele brincava com
matemática do mesmo jeito que outros homens faziam com
rabiscos e desenhos. "Onde você acha que eles conseguiram
as pedras, Dolomieu?", ele perguntou enquanto calculava.
"Em algum lugar perto daqui", o geólogo respondeu. "Estes
blocos são de calcário, o mesmo material que forma o leito
rochoso do platô. É por isso que elas parecem desgastadas.
Calcário não é muito duro e corrói fácil com a água. Na
verdade, formações de calcário são normalmente perfuradas
por cavernas. Podemos encontrar algumas por aqui, mas
devo admitir que este platô é sólido por causa da aridez.
Também há relatos de granito dentro da pirâmide que deve
ter vindo de locais muito distantes. Acredito que o calcário
externo também tenha vindo de uma pedreira diferente, e
melhor."
Napoleão mostrou seus cálculos. "Vejam, é absurdo. Com as
pedras destas pirâmides poderíamos construir um muro em
volta da França com dois metros de altura e um metro de
espessura."
"Espero que você não espere que o façamos, general",
Monge brincou. "Seriam milhões de toneladas para levar
para casa."
"Sem dúvida." Ele riu. "Pelo menos eu encontrei um
governante que ofusca minha própria ambição! Fico
diminuto perante ti, Queóps! Mesmo assim, por que não
simplesmente cavar um túnel numa montanha? E verdade
que os saqueadores de túmulos árabes não encontraram
nenhum corpo lá dentro?"
"Não há evidência de que alguém tenha sido enterrado lá",
Jomard disse. "A passagem principal estava bloqueada por
tampões de granito que pareciam estar guardando... nada."
"Então, nos vemos diante de outro mistério."
"Talvez. Ou talvez as pirâmides tenham outro propósito, que
é minha teoria. Por exemplo, o posicionamento da pirâmide,
perto do paralelo trinta, é intrigante. É quase exatamente a
um terço do caminho entre o Equador e o Pólo norte. Como
expliquei ao Gage, os antigos egípcios deviam entender a
natureza e o tamanho de nosso planeta."
"Se sabiam, então eles estão à frente de metade dos oficiais
do meu exército", Bonaparte disse.
"Do mesmo modo, a Grande Pirâmide e suas companheiras
estão orientadas na direção dos pontos cardeais de maneira
mais precisa que a maioria dos medidores modernos
especifica. Se você traçar uma linha do centro da pirâmide
até o Mediterrâneo ela vai cortar exatamente o Delta do
Nilo. Se você traçar linhas diagonais do canto de cada
pirâmide até o lado oposto e estendê-los - um indo para o
nordeste e outro para o noroeste - eles formam um triângulo
que engloba o delta perfeitamente. A localização não foi ao
acaso, general."
"Intrigante. Uma localização simbólica para ligar o alto e o
baixo Egito, talvez. A pirâmide é um instrumento político,
não acha?"
Jomard estava encorajado pela atenção a suas teorias já que
os oficias riam delas. "Também é interessante considerar a
apótema da pirâmide", ele disse entusiasmado.
"O que é apótema?", interrompi.
"Se você fizer uma linha bem no meio de uma das faces da
pirâmide", o matemático Monge explicou, "da ponta até a
base, ou seja, dividindo o triângulo em dois, esta linha seria a
apótema."
"Ah."
"A apótema", Jomard continuou, "parece ter exatamente
cento e oitenta e dois metros, ou seja, a medida da estádia
grega. É uma medida comum utilizada em várias partes do
mundo antigo. Seria a pirâmide um padrão de medição ou
foi construída baseada num padrão que precedeu, por muito
tempo, os gregos?"
"Possivelmente", disse Bonaparte. "Mas usar um
monumento desses como ferramenta de medição parece
mais absurdo que fazê-la de tumba."
"Como você sabe, general, cada grau tem sessenta minutos
de latitude ou longitude. A apótema também tem um
décimo de um minuto de um grau. Não pode ser
coincidência. E tem mais, o perímetro da base da pirâmide
parece ser igual a meio minuto e dois circuitos formam um
minuto inteiro. Além disso, o perímetro da base da pirâmide
também parece ser igual à circunferência de um círculo cujo
raio é a altura da pirâmide. É como se a pirâmide tivesse sido
dimensionada para codificar as dimensões de nosso planeta."
"Mas dividir a Terra em trezentos e sessenta graus é uma
convenção moderna, não é?"
"Ao contrário, esse número remonta à Babilônia e ao Egito.
Os antigos escolheram trezentos e sessenta porque
representa os dias do ano."
"Mas o ano tem trezentos e sessenta e cinco", interferi. "E
vinte e cinco minutos."
"Os egípcios adicionaram cinco dias santos quando isso se
tornou aparente", Jomard disse, "assim como nós
revolucionários adicionamos feriados ao nosso calendário de
trinta e seis semanas de dez dias cada. Minha teoria é de que
o povo que construiu esta estrutura conhecia o tamanho e o
formato da Terra e incorporou suas dimensões à estrutura
para que elas não fossem perdidas caso o conhecimento
decaísse no futuro. Talvez eles tenham antecipado a Idade
das Trevas."
Napoleão parecia impaciente. "Mas por quê?"
Jomard deu de ombros. "Talvez para reeducar a
Humanidade. Talvez simplesmente para provar que sabiam.
Construímos monumentos para Deus e para conquistas
militares. Eles podiam construir monumentos para a
matemática e a ciência."
Parecia improvável que um povo soubesse há tanto tempo
tanta coisa. E ainda havia alguma coisa fundamentalmente
certa sobre a pirâmide, como se ela tentasse transmitir
verdades eternas. Franklin uma vez mencionou uma
sensação similar nas dimensões dos templos gregos, e
lembro de Jomard vinculando tudo àquela estranha
seqüência numérica de Fibonacci. Novamente pensei se
esses jogos matemáticos tinham alguma coisa a ver com o
segredo do meu medalhão. Matemática deixava minha
mente nublada.
Bonaparte virou para mim. "E o que nosso amigo americano
pensa? Qual a visão vinda do Novo Mundo?"
"Americanos acreditam que as coisas devem ter propósito",
eu disse, tentando parecer mais sábio do que realmente era.
"Somos práticos, como você disse. Então, qual o uso prático
para este monumento? Talvez a idéia de Jomard esteja certa
e ela é mais que uma tumba."
Napoleão não caiu na minha enrolação. "Bem, a pirâmide
serve para alguma coisa, pelo menos." Rimos por obrigação.
"Venham. Quero olhar lá dentro."
Enquanto a maioria da comitiva se contentou com o
piquenique, um pequeno grupo entrou pelo buraco escuro
na face norte da pirâmide. Havia um portal de calcário no
local da entrada original construída pelos antigos egípcios.
Jomard explicou que essa entrada só foi encontrada quando
os muçulmanos começaram a retirar pedras da pirâmide para
construir o Cairo. Em tempos antigos, ela foi
inteligentemente escondida por uma porta de pedra.
Ninguém sabia ao certo onde estava. Então, antes que isso
fosse revelado, árabes medievais tentaram saquear a
pirâmide simplesmente começando a construir sua própria
entrada. Em oitocentos e vinte, o califa Abdullah Al
Mamun, sabendo que os historiadores registraram uma
entrada do lado norte, fez com que um bando de
engenheiros e pedreiros cavassem um túnel para dentro da
pirâmide esperando que eles alcançassem a estrutura de
corredores e passagens. Por sorte, ele começou abaixo de
uma das portas mais antigas. Foi por essa escavação que
entramos.
Enquanto a escolha do local de entrada estava errada, os
árabes logo encontraram uma passagem estreita dentro da
pirâmide. Ela tem apenas um metro e vinte centímetros de
altura e desce da entrada original em um ângulo que Jomard
calculou ser de trinta e três graus. Engatinhando para cima,
os árabes encontraram a entrada original para o lado de fora
e uma segunda passagem que subia pela pirâmide na mesma
inclinação que a outra descia. As histórias antigas nunca
mencionaram uma passagem que subia, e estava bloqueada
com pedras de granito tão duras que era impossível furá-las.
Achando que tinha achado uma passagem secreta para o
local do tesouro, Al Mamun ordenou que seus homens
cavassem, circulando esses granitos. Estava quente e o local
era sujo, ou seja, o trabalho era insalubre. Eles descobriram
que a primeira pedra de granito era seguida de mais uma, e
mais outra e assim por diante. Depois de um grande esforço
eles encontraram outra passagem que subia, mas esta, agora,
estava fechada por uma pedra de calcário. Determinados,
escavaram mais. Finalmente, eles conseguiram entrar e
encontraram...
"Nada", disse Jomard. "E também algumas coisas. Que vocês
verão hoje."
Sob orientação do geógrafo, fizemos um reconhecimento
dessa confusão arquitetônica de entradas e junções, e, em
seguida, começamos a descer pela primeira passagem que os
árabes encontraram. A escuridão era total no fim da
passagem.
"Por que uma rampa e não degraus?", Napoleão indagou.
"Para escorregar coisas, talvez", disse Jomard. "Ou talvez isso
não seja uma entrada, mas sirva para outras funções, como
tubulação ou um telescópio apontando para alguma estrela
em particular."
"O maior monumento do mundo", disse Bonaparte, "e não
faz sentido. Há algo aqui que ainda não sabemos."
Com a ajuda de tochas carregadas por guias locais nós
cuidadosamente descemos uns cem metros, apoiando os pés
nas laterais. Blocos trinchados deram lugar a uma passagem
lisa de calcário que acabou em uma sala que mais parecia
uma caverna com uma cova num piso desigual. Dava a
impressão de estar inacabada.
"Como podem ver, esta passagem parece levar a lugar
algum", disse Jomard. "Não encontramos nada interessante."
"Então o que estamos fazendo aqui?", perguntou Bonaparte.
"A falta de qualquer propósito óbvio é que é mais intrigante
aqui, não acha? Por que cavaram aqui embaixo? E espere,
tudo isso melhora. Vamos subir novamente."
Fizemos isso, suando e ofegando. Poeira e esterco de
morcego manchavam nossas roupas. O ar dentro da
pirâmide era morno, úmido e embolorado.
De volta à junção de túneis e passagens, subimos agora
acima do ponto de entrada original e entramos numa
passagem muito bem escavada pelos homens de Al Mamun.
Ela subia no mesmo ângulo que a inicial, descia, e, de novo,
era muita baixa para que pudéssemos ficar em pé. Não havia
degraus e era íngreme demais para escalar. Depois de
sessenta metros, suados e com falta de ar, chegamos a uma
junção. Acima, havia outra passagem baixa que levava para
uma grande sala, com o teto triangular, que os árabes
nomearam a Sala da Rainha, apesar de nossos guias
garantirem que nunca houve nenhuma evidência de que
uma rainha tivesse sido enterrada lá. Engatinhamos até lá e
ficamos de pé. Havia uma alcova de um lado, possivelmente
para uma estátua ou para um caixão de pé, mas estava vazia.
A simplicidade da sala fazia com que fosse espetacular. Seus
blocos de granito eram lisos, sem imagens, e cada um pesava
várias toneladas, mas eram encaixados tão perfeitamente,
que era impossível passar um pedaço de papel entre eles.
"O teto triangular deve distribuir o peso da pirâmide para as
paredes da sala", disse Jomard.
Napoleão, impaciente com a situação precária, prontamente
ordenou que retornássemos para a junção cuja passagem
continuava a subir. Queríamos ver a Sala do Rei, que ficava
mais acima.
Agora a passagem minúscula para anões tornou-se um
corredor para gigantes. O duto ascendente estreitou-se e
ficou mais alto, formando uma galeria inclinada que
terminava em um console quase dez metros acima de nossas
cabeças. Novamente não havia degraus; era como subir uma
rampa. Felizmente, os guias prenderam uma corda. Mais
uma vez, o trabalho de pedras era perfeito e simples. A
altura dessa seção era tão inexplicável quanto as dimensões
diminutas das passagens anteriores.
Isso teria sido construído por humanos?
Um árabe segurou sua tocha no alto e apontou para o teto.
Vimos marcas escuras lá em cima, em perfeita simetria, mas
não dava para saber o que eram. "Morcegos", cochichou
Jomard. Asas vibravam e rangiam nas sombras.
"Vamos nos apressar", ordenou Napoleão. "Estou com calor
e quase asfixiado." A fumaça da tocha tremulava.
A galeria tinha quarenta e sete metros de comprimento,
Jomard anunciou depois de enrolar a fita, e novamente não
se via propósito óbvio. Então a subida acabou e tivemos que
nos inclinar para avançar horizontalmente de novo.
Finalmente, entramos na maior sala da pirâmide, construída
um terço acima da massa da estrutura.
A Sala do Rei era um retângulo construído com blocos de
granito vermelho colossais. Novamente, a simplicidade era
ímpar. O teto era plano e o piso e as paredes
desinteressantes. Não havia nenhum livro sagrado ou deus
com cabeça de pássaro. O único objeto que se via era um
sarcófago de granito preto do outro lado do salão. Ele não
tinha tampa e estava tão vazio quanto a própria sala. Com
dois metros e vinte centímetros de comprimento, um metro
de largura e noventa centímetros de altura, ele era grande
demais para caber na estreita passagem que acabamos de
subir, e deve ter sido colocado no lugar enquanto a pirâmide
estava sendo construída. Mas Napoleão parecia intrigado,
pela primeira vez, inspecionando o esquife de pedra
cuidadosamente.
"Como eles podem ter colocado isso aqui?", perguntou.
"As dimensões da sala também são muito interessantes,
general", disse Jomard. "Medi dez metros e meio de
comprimento por cinco e vinte de largura. As dimensões da
sala representam um quadrado duplo."
"Que coisa, hein!", eu disse, sendo mais irônico do que eu
pretendia.
"Ele quer dizer que seu comprimento é duas vezes sua
largura", explicou Monge. "Pitágoras e os gregos tinham
muito interesse na harmonia de tais retângulos perfeitos."
"A altura da sala é metade da largura de sua diagonal",
acrescentou Jomard, "ou seja, cinco metros e setenta
centímetros. Gage, me ajude aqui e lhes mostrarei outra
coisa. Segure esta ponta da fita naquele canto."
E assim o fiz. Jomard estendeu a fita diagonalmente até a
parede oposta, exatamente a metade de seu comprimento.
Em seguida, segurei a fita no meu canto, ele levou sua ponta
da fita em direção ao outro lado da sala e a medida da
diagonal agora ocupava toda a parede onde eu estava. "
Voilà!", ele gritou, e sua voz ecoou na sala de pedra.
Mais uma vez, não mostrei tamanha excitação.
"Não o reconhece? Foi o que conversamos no topo da
pirâmide! O número dourado!"
Agora podia vê-lo. Se você dividir esta sala retangular em
dois quadrados, medir a diagonal de um desses quadrados, e
levar essa linha para uma das paredes da sala, a razão entre o
comprimento e o que sobrou é o supostamente mágico mil
seiscentos e dezoito.
"Então você está dizendo que esta sala possui os números de
Fibonacci, da mesma maneira que a própria pirâmide", eu
disse, tentando fazer com que soasse normal.
As sobrancelhas de Monge se ergueram. "Números de
Fibonacci? Gage, você sabe mais de matemática do que eu
imaginava."
"Ah, fui aprendendo um pouquinho aqui, outro pouco ali."
"Então, qual é o uso prático dessas dimensões?", perguntou
Napoleão.
"Representa a natureza", eu arrisquei.
"E comporta as unidades básicas de medição básica do reino
egípcio", disse Jomard. "Em seu comprimento e proporções,
acredito que signifique um sistema de cúbitos, assim como
podemos desenhar o sistema métrico nas proporções de um
museu."
"Interessante", disse o general. "Mesmo assim, construir
tudo isso... É um quebra-cabeça. Ou uma lente, talvez, como
uma lente focaliza e concentra a luz."
"Foi isso que senti", disse Jomard. "Qualquer pensamento
que possamos ter, qualquer oração que sejamos capazes de
fazer, parece amplificada pelas dimensões desta pirâmide.
Escutem isso." Ele começou um zunido baixo e aumentou o
tom. O som ecoava estranhamente e parecia vibrar por
nossos corpos. Parecia uma nota musical voando pelo ar.
Nosso general balançou a cabeça. "Exceto por esse foco... o
quê? Eletricidade?" Ele se virou para mim.
Se eu dissesse um grandioso "sim", ele provavelmente teria
me dado uma recompensa. Em vez disso, eu mostrei-me
vazio como um idiota.
"A caixa de granito também é muito interessante", disse
Jomard para preencher o silêncio assustador. "Seu volume
interior é exatamente a metade de seu volume exterior.
Embora seu tamanho fosse para encaixar um homem,
suspeito que suas dimensões precisas não são acidentais."
"Caixas dentro de caixas", disse Monge. "Primeiro esta sala,
depois o exterior do sarcófago, depois o interior... para quê?
Temos uma série de teorias, mas nenhuma de minhas
respostas é conclusiva."
Olhei para cima. Senti como se estivéssemos sendo
pressionados por milhares de toneladas, ameaçando nossa
existência a qualquer instante. Por um momento, tive a
impressão de que o teto estava descendo! Mas não... pisquei,
e a sala permaneceu como antes.
"Deixem-me", Bonaparte ordenou de repente.
"O quê?"
"Jomard está certo. Sinto poder aqui. Vocês não o sentem?"
"Parece opressivo e vivo ao mesmo tempo", comentei.
"Como um túmulo, mas, mesmo assim, podemos sentir a
luz, mas sem sustância."
"Quero ficar um tempo aqui sozinho", disse o general.
"Quero ver se consigo sentir o espírito desse faraó morto.
Talvez seu corpo não esteja mais aqui, mas sua alma
permanece. Talvez Silano e sua mágica sejam reais. Quem
sabe eu não consiga sentir a eletricidade de Gage. Deixem-
me no escuro com uma tocha apagada. Descerei quando
estiver pronto."
Monge parecia preocupado. "Talvez um de nós devêssemos
ficar de guarda ..."
"Não." Ele subiu na borda do sarcófago preto e se deitou,
olhando para o teto. Olhamos para ele e ele deu um leve
sorriso. "É mais confortável do que parece. A pedra não é
nem tão quente nem tão fria. Nem sou tão alto, estão
surpresos?", ele riu de sua piadinha. "Não que eu pretenda
ficar aqui para sempre."
Jomard parecia transtornado. "Sabemos de pessoas que
entram em pânico..."
"Nunca questione minha coragem."
Ele se inclinou. "Ao contrário, eu o saúdo, meu general."
Então saímos obedientemente, e tocha por tocha
desaparecia pelo pequeno hall de entrada até que nosso
comandante foi deixado sozinho no escuro. Caminhamos
para baixo pela galeria principal, apoiando-nos na corda. Um
morcego voou e bateu as asas perto de nós, mas um árabe
balançou a tocha e a criatura cega se afastou e parou
novamente no teto. Quando chegamos à passagem menor,
que levava à entrada da pirâmide, eu estava ensopado de
suor. "Esperarei por ele aqui", disse Jomard. "Vocês podem
esperar lá fora." Não precisava dizer duas vezes.
O dia parecia iluminado por mil sóis quando finalmente
saímos da pirâmide pela rampa de areia. Nuvens de poeira
saíam de nossas roupas imundas. Minha garganta estava seca
e a cabeça doía. Encontramos sombra no lado leste da
estrutura e aguardamos sentados, bebendo água. Os
membros da equipe que ficaram do lado de fora se
espalharam pelas ruínas. Alguns circulavam pelas outras duas
pirâmides. Outros montaram pequenas tendas e almoçavam.
Alguns subiram até a metade da estrutura acima de nós,
enquanto outros competiam para ver quem podia arremessar
pedras mais longe da lateral da pirâmide.
Franzi a testa, consciente de que ainda estava longe de
resolver o mistério do medalhão. "Toda essa pilha enorme
para apenas três pequenas salas?" "Não faz sentido, faz?",
concordou Monge.
"Sinto como se existisse algo muito óbvio que não estamos
vendo."
"Acho que deveríamos ver números, como disse Jomard.
Pode ser um quebra-cabeça criado para intrigar a
Humanidade por séculos." O matemático tirou do bolso um
papel e começou a fazer seus próprios cálculos.
Bonaparte ficou lá dentro uma hora inteira. Finalmente
gritou e entramos novamente para encontrá-lo. Assim como
nós, ele saiu de lá sujo e piscando, levantando poeira e areia
sob seus pés. Mas quando saiu, vi que estava pálido demais,
com seus olhos fora de foco, com o olhar de um homem
que acordara de um sonho bem real.
"Por que demorou tanto tempo?", perguntou Monge.
"O que é tanto tempo?"
"Uma hora, pelo menos."
"Verdade? O tempo não existia lá dentro."
"E?"
"Cruzei meus braços no sarcófago, como aquelas múmias
que vimos."
"Mon Dieu, general."
"Eu ouvi e vi ...", ele balançou a cabeça para clarear os
pensamentos. "Ou será que...?" Ele parou.
O matemático segurou seu braço e perguntou. "Ouviu e viu
o quê?"
Ele piscou. "Vi imagens de minha vida, ou pelo menos eu
acho que sejam da minha vida. Não tenho nem muita
certeza se era o futuro ou o passado." Ele olhou em volta,
mas não sei se pretendia ser evasivo ou brincar conosco.
"Que tipo de imagens?"
"Eu... foi muito estranho. Não falarei sobre isso, eu acho. Eu
não..." Em seguida fixou o olhar em mim. "Onde está o
medalhão?", ele pediu de repente.
Ele me surpreendeu. "Está perdido, lembra-se?"
"Não. Você está enganado." E me olhou atentamente com
seu olhar acinzentado.
"Ele afundou com o L'Orient, general."
"Não", disse ele com convicção e trocamos olhares
incômodos. "Você gostaria de beber um pouco de água?",
Monge perguntou preocupado.
Napoleão balançou sua cabeça novamente como se
colocasse as idéias no lugar. "Não entrarei lá novamente."
"Mas general, o que o senhor viu?", insistiu o matemático.
"Não falarei sobre isso novamente."
Todos ficamos incomodados. Reparei como a expedição
dependia da energia de Bonaparte, agora que o vi zonzo. Ele
era imperfeito como homem e como líder, mas tão
inspirado e tão dominante em seu propósito e intelecto, que
todos nós o seguíamos e idolatrávamos inconscientemente.
Ele era a chama e o norte. Sem ele, nada disso estaria
acontecendo.
A pirâmide parecia olhar para nós.
"Devo descansar", disse Napoleão. "Vinho, não água." Ele
estalou os dedos e um serviçal correu para apanhar uma taça.
Então virou-se para mim. "O que faz aqui?"
Ele perdeu todos os sentidos?
"O quê?", eu estava confuso com sua confusão.
"Você veio com um medalhão e uma promessa de que ele
faria sentido. Você alega que perdeu o primeiro e não
cumpriu o segundo. O que foi que eu senti lá dentro?
Eletricidade?"
"Possivelmente, general, mas não tenho o instrumento para
dizer. Estou tão intrigado como todos."
"E eu estou intrigado com você, um suspeito de assassinato e
um americano, que vem na nossa expedição, parece não
servir para nada, e mesmo assim está em todos os lugares!
Estou começando a perder a confiança em você, Gage, e não
é confortável ser um homem em quem eu não confio."
"General Bonaparte, tenho trabalhado para ganhar sua
confiança, no campo de batalha e aqui! Não faz sentido fazer
declarações sem nexo. Dê-me tempo para trabalhar minhas
teorias. As idéias de Jomard são intrigantes, mas não tive
tempo de avaliá-las."
"Então se sentará aqui na areia até que o faça." Ele tomou a
taça e bebeu.
"O quê? Não! Eu tenho anotações no Cairo!"
"Você não voltará ao Cairo até que volte e me diga algo útil
sobre esta pirâmide. Não histórias antigas, mas o que é e
como pode ser aproveitada. Há alguma força aqui, e eu
quero saber como utilizá-la."
"Eu também desejo a mesma coisa! Mas como devo fazer
isso?"
"Você é um cientista, supostamente. Descubra como fazer.
Use o medalhão que você diz ter perdido." E ele saiu
andando.
Nosso pequeno grupo olhou para ele estupefato.
"Que diabos aconteceu com ele?", disse Jomard.
"Acho que teve alucinações no escuro", disse Monge. "Deus
sabe que eu não ficaria lá sozinho. Nosso córsico tem
culhões."
"Por que ele se concentrou em mim?" Seu antagonismo me
balançou.
"Porque você esteve em Abukir", disse o matemático. "Eu
acho que a derrota o incomoda mais do que ele possa
admitir. Nosso futuro estratégico não é bom."
"E eu devo acampar aqui estudando esta estrutura até que
seja desvendada?"
"Ele se esquecerá de você em um dia ou dois."
"Não até que sua curiosidade seja sanada", disse Jomard.
"Tenho que ver os registros antigos novamente. Quanto
mais conheço esta estrutura, mais fascinante parece ser."
"E sem sentido", resmunguei.
"Será, Gage?", perguntou Monge. "Há precisão demais para
ser sem sentido, eu acho. Não apenas muito trabalho, mas
muito pensamento. Fazendo outro cálculo agora, me
ocorreu outra correlação. Esta pirâmide é realmente um
brinquedo matemático."
"O que quer dizer?"
"Tenho que checar minha suposição com os números de
Jomard, mas se extrapolarmos a inclinação de subida da
pirâmide até seu pico original, um pouco mais alto do que é
agora, e comparar sua altura com o comprimento de duas
laterais, eu acredito que chegamos a um dos números mais
fundamentais da matemática: Pi."
"Pi?"
"A razão do diâmetro de um círculo para sua circunferência,
Gage, é considerado por muitas culturas um número
sagrado. E aproximadamente vinte e duas partes para sete,
ou seja 3.1415... o número nunca foi totalmente calculado.
Mesmo assim, todas as culturas tentaram chegar o mais
próximo possível. Os antigos egípcios chegaram ao número
3.160. A razão da altura da pirâmide para a soma de dois de
seus lados parece se aproximar desse número."
"A pirâmide significa o Pi?"
"Foi construída, talvez, para obedecer ao valor egípcio desse
número." "Mas, de novo, por quê?"
"Novamente, estamos diante de mistérios antigos. Mas é
interessante, não é, que seu medalhão incluía um diâmetro
dentro de um círculo? Pena você ter perdido. Você perdeu,
certo?"
Interessante? Era uma revelação. Por semanas estive
viajando às cegas. Agora parecia que eu sabia
definitivamente para o que apontava o medalhão: a
pirâmide, nas minhas costas.
Capítulo Dezessete
Contra a minha vontade, fiquei para ajudar Jomard e Monge
a tirar mais medidas da pirâmide, dividindo a tenda armada
próximo da Esfinge. Depois de prometer retornar em breve,
eu estava incomodado de estar tão longe de Astiza e do
medalhão, especialmente com Silano no Cairo. Mas se eu
ignorasse a ordem pública de Napoleão, eu me arriscaria a
ser preso. Além disso, eu sentia que me aproximava da
descoberta do segredo. Talvez o medalhão fosse um mapa
para alguma outra passagem naquela pilha de pedras que
estava próxima à porta. E havia o dia vinte e um de outubro,
a data que eu decifrei no calendário antigo que pode, ou não,
significar alguma coisa, e ainda faltam dois meses para esse
dia. Eu ainda não sabia como tudo isso se encaixa, mas talvez
os cientistas encontrassem mais alguma pista. Então, enviei
uma mensagem para a casa de Enoc, explicando meu caso e
perguntando se ele poderia mandar uma mensagem sobre
meu atraso para o harém de Yusuf. Pelo menos eu sabia para
que tipo de coisa eu deveria estar atento, acrescentei, eu
simplesmente não tinha idéia do que seria.
Meu exílio temporário da cidade não foi inteiramente ruim.
Sentia-me confinado na casa de Enoc e a cidade do Cairo era
barulhenta, enquanto o silêncio do deserto era relaxante.
Uma companhia de soldados nos vigiava para nos proteger
de beduínos e mamelucos, e eu achei que ficar aqui por
algumas noites poderia ser mais seguro para Astiza e Enoc,
porque minha ausência deveria desviar a atenção deles.
Silano tinha engolido atravessado a idéia de que o medalhão
estava no fundo da baía de Abukir. Eu não havia me
esquecido do pobre Talma, mas as provas de seu assassino, e
vingança, teriam que esperar. Ou seja, eu tentava me
convencer, como os humanos costumam fazer, de que tudo
isso teria um desfecho positivo.
Como disse, há três grandes pirâmides em Gize, e todas elas
possuem pequenas passagens e salas vazias. A pirâmide de
Quefren ainda está coberta, no seu topo, por um tipo de
pedra calcária que alguma vez fez com que as três estruturas
tivessem suas superfícies lisas e polidas. Elas deviam brilhar
como prismas de sal! Usando instrumentos de pesquisa,
calculamos que a Grande Pirâmide tinha uma altura de cento
e quarenta metros, trinta metros a mais que o pináculo da
Catedral de Amiens, a mais alta da França. Os egípcios
usaram apenas duzentas e três camadas de alvenaria para
alcançar essa prodigiosa altitude. Medimos a inclinação de
seu lado em cinqüenta e um graus, precisamente a
necessária para fazer com que a altura e metade de sua
circunferência sejam ambas iguais a Pi e à seqüência de
Fibonacci, calculada por Jomard.
Apesar da coincidência ímpar, eu ainda não sabia o
propósito da pirâmide. Como obras de arte, eram sublimes.
Quanto à sua utilização, pareciam sem sentido. Esses
prédios, na época de sua construção, eram tão lisos que uma
pessoa não podia ficar em pé em cima delas; seus corredores
eram tão estranhos que humanos mal podiam utilizá-los;
esses dutos levavam a salas que pareciam nunca ter sido
ocupadas; e seus códigos matemáticos são obscuros demais
para qualquer pessoa, a menos que fosse um especialista.
Monge disse que a coisa toda provavelmente tinha a ver
com religião. "Daqui a cinco mil anos, as pessoas
conseguirão compreender os motivos por trás da Catedral de
Notre Dame?"
"É melhor que os padres não escutem você dizendo isso."
"Padres são obsoletos; a ciência é a nova religião. Para os
antigos egípcios, a religião era sua ciência, e a magia uma
tentativa de manipular o que não podia ser compreendido. A
Humanidade avançou de um passado no qual cada tribo e
nação tinham seus próprios grupos de deuses para um no
qual várias nações adoram um só deus. Mesmo assim,
existem muitos tipos de fé, e cada uma chama a outra de
herege. Agora temos a ciência, baseada não na ciência, mas
na razão e na experimentação, e centralizada não em uma
nação, papa ou rei, mas na lei universal. Não importa se você
é chinês ou alemão, se fala árabe ou espanhol: a ciência é a
mesma. É por isso que ela triunfará, e é por isso que a
Igreja temeu Galileu. Mas esta estrutura em particular foi
construída por um povo particular com crenças particulares,
e podemos nunca redescobrir suas razões porque foram
baseadas num misticismo religioso que não conseguimos
compreender. Ajudaria se algum dia pudéssemos decifrar os
hieróglifos."
Eu não podia discordar dessa predição - eu era o homem de
Franklin, afinal de contas — e mesmo assim eu tinha que
imaginar por que a ciência, se era assim tão universal, já não
varrera tudo o viera antes dela. Por que as pessoas eram
ainda tão religiosas? A ciência era inteligente, mas fria,
explanatória e ainda assim silenciosa em suas maiores
questões. Respondia como, mas não por que, e por essa
razão as pessoas permaneciam ansiosas. Eu suspeito que as
pessoas do futuro compreenderão Notre Dame, assim como
nós compreendemos um templo romano. E, talvez, o
adorem e o temam da mesma maneira. Aos revolucionários,
em seus fervores racionais, ainda lhes faltava algo, eu pensei,
e o que faltava era o coração ou a alma. A ciência teria
espaço para isso, ou esperanças de vida após a vida?
Não disse nada disso; somente respondi: "E se for mais
simples que isso, doutor Monçe? E se essa pirâmide for
apenas um túmulo?"
"Eu tenho pensado sobre isso, o que me parece um paradoxo
fascinante, Gage. Suponha que, em princípio, era para ser
apenas um túmulo. Seu tamanho por si só já é um grande
problema, não é? Quanto mais elaborada for uma pirâmide
para manter a salvo uma múmia, mais você chama a atenção
para a localização dessa múmia. Deve ter sido um dilema
para faraós que queriam preservar seus restos mortais para
sempre."
"Eu pensei em outro dilema também", respondi. "O faraó
deseja descansar sem ser perturbado para sempre. Mas o
crime perfeito é aquele que ninguém imagina que possa
acontecer. Se você quiser roubar o túmulo de seu mestre, a
melhor maneira é fazê-lo antes que ele seja fechado para
sempre, porque, assim que isso acontecer, ninguém poderá
descobrir quem é o ladrão! Se isto é um túmulo, eles
precisavam ter fé naqueles que o fechariam. Em quem o
faraó confiava?"
"Mais uma crença sem provas!", Monge disse e riu.
Mentalmente, me lembrei o que sabia sobre o medalhão.
Um círculo dividido em suas partes iguais: um símbolo,
talvez, para Pi. Um mapa da constelação de Draco contendo
a antiga Estrela Polar em sua metade superior. Um símbolo
para água. Marcas confusas distribuídas em um delta como
uma pirâmide. Talvez a água fosse o Nilo, e as marcas
representassem a Grande
Pirâmide, mas por que não gravar ali uma simples pirâmide?
Enoc disse que o emblema parecia incompleto, mas onde
encontrar o resto? O cajado de Min estava em algum templo
perdido. Parecia uma piada. Tentei pensar como Franklin,
mas não consegui fazer nenhuma relação. Ele poderia
brincar com relâmpagos num dia e encontrar uma nova
nação no dia seguinte. Alguma chance de que as pirâmides
tenham atraído raios e os transformaram em gra-nito? E se
toda a pirâmide fosse algum tipo de garrafa de Leyden? Eu
não tinha escutado um ruído de trovão, ou visto uma gota de
chuva, desde que cheguei ao Egito.
Monge nos deixou para se juntar a Bonaparte para o batismo
oficial do novo Instituto do Egito. Lá os cientistas
trabalhavam em qualquer coisa, desde aparelhos para
fermentar álcool ou assar pão (usando sementes de girassol
como combustível, já que o Egito não produzia madeira
adequada) até catalogação da vida selvagem do país. Conte
montou um ateliê para repor equipamentos, como
impressoras, que foram perdidas com a destruição da frota
em Abukir. Ele era aquele tipo de inventor que poderia
transformar qualquer coisa em qualquer outra coisa. Jomard
e eu permanecíamos no deserto, desenrolando fitas,
movendo pedras, e medindo ângulos com instrumentos de
pesquisa. Gastamos três dias e noites vendo as estrelas dando
voltas em torno dos picos das pirâmides, discutindo para que
o monumento serviria.
Na manhã do quarto dia, aborrecido com a meticulosidade
do trabalho e a especulação conclusiva, parei para observar
um ponto panorâmico de Cairo sobre o rio. Ali observei algo
curioso. Conte aparentemente conseguiu produzir
hidrogênio suficiente para inflar o balão. A bolsa de seda
parecia ter aproximadamente doze metros de diâmetro e seu
topo estava coberto com uma rede de onde caíam cordas
que seguravam uma cesta de vime. Estava suspenso sobre
uma corda a uns trinta metros do chão, juntando uma
pequena multidão. Observei o veículo pelo telescópio de
Jomard. Todos aqueles que o observavam pareciam ser
europeus.
Até agora os árabes mostraram pouco interesse na tecnologia
ocidental. Eles nos viam como intrusos temporários e infiéis,
obcecados por aparelhos mecânicos e despreocupados com
nossas almas. Um pouco antes, tinha oferecido ajuda a Conte
para montar um gerador de fricção para guardar a
eletricidade - Franklin chamaria aquilo de bateria -, e fui
convidado pelos cientistas para dar um leve choque em
alguns professores e estudiosos do Cairo. Os egípcios deram
as mãos uns aos outros, eu apliquei ao primeiro uma
descarga de uma garrafa de Leyden e todos pulavam quando
a descarga passava através deles, provocando grande
consternação e gargalhadas. Mas depois da surpresa inicial,
eles pareciam mais surpresos do que curiosos. Eletricidade
era magia barata, que não servia para nada além de
brincadeiras em feiras.
Enquanto observava o balão, notei uma larga coluna de
soldados franceses no portão sul do Cairo. Sua regularidade
contrastava com aquela da multidão de mercadores e
condutores de camelos que se amontoavam ao redor da
entrada da cidade. Os soldados formavam uma linha de
branco e azul e suas bandeiras de regimento balançavam
com o ar quente. As fileiras não pararam de sair até que toda
uma divisão estivesse fora dos muros. Alguns montavam
cavalos, e duas peças de artilharia eram puxadas por animais.
Chamei Jomard, que também focalizou sua lente. "É o
general Desaix, pronto para sair à procura das tropas fugitivas
de Murad Bey", ele disse. "A expedição vai explorar e
conquistar o alto Egito, uma região que poucos europeus
conhecem."
"Então a guerra não acabou."
Ele riu. "Estamos falando de Bonaparte! A guerra nunca
acabará para ele." Ele continuou a observar a coluna. "Acho
que também vejo seu velho amigo." "Velho amigo?" "Aqui,
veja você mesmo."
Perto da coluna havia um homem de bata e turbante com
meia dúzia de beduínos servindo como escolta. Um desses
homens tinha um guarda-sol sobre sua cabeça. Podia se ver
o florete pendurado em sua cintura e o garanhão preto que
ele havia comprado no Cairo: Silano. Alguém menor
montava um cavalo a seu lado, mas estava envolvido por
uma bata. Um serviçal pessoal, talvez.
"Boa sorte a eles."
"Eu o invejo", disse Jomard. "Imagine as descobertas que
eles vão fazer!"
Silano desistiu do medalhão? Ou teria ido procurar alguma
parte que faltava no tal templo sul, como Enoc disse?
Também vi Bin Sadr. Ele liderava a guarda beduína,
montando com facilidade um camelo.
Escapei deles? Ou estariam fugindo de mim?
Olhei novamente para seu acompanhante menor, coberto
com roupas pesadas e me senti desconfortável. Acho que
esperei demais na pirâmide obedecendo as ordens de
Napoleão. Quem era aquele cavalgando ao lado de Silano?
Eu sabia dele, ela me confirmou.
E ela nunca me explicou o que, exatamente, ela quis dizer.
Eu fechei o telescópio. "Tenho que retornar ao Cairo."
"Você não pode ir embora. São as ordens de Bonaparte.
Precisamos de uma hipótese convincente primeiro."
Mas eu temia que algo desastroso tivesse acontecido na
minha ausência, pois fiquei muito tempo longe, e,
inconscientemente, deixei de lado a tarefa de decifrar o
medalhão e vingar a morte de Talma. Minha demora pode
ter sido fatal. "Sou um cientista americano, não um soldado
francês. Ao diabo com as ordens."
"Ele pode mandar que atirem em você!"
Mas eu já descia a rampa, passando pela Esfinge, em direção
do Cairo.
A cidade parecia mais agourenta na minha volta. Mesmo que
a divisão de Desaix tenha tirado as tropas francesas de
algumas casas, milhares de habitantes que saíram depois da
Batalha das Pirâmides estavam retornando. O Cairo tentava
se levantar do choque causado pela invasão e voltava a ser o
centro nervoso do Egito novamente. Conforme a cidade
recuperava seu movimento, os habitantes também ficavam
mais confortáveis e passaram a andar pelas ruas como se o
lugar ainda pertencesse a eles, e não a nós. E eles estavam
em maior número.
Embora patrulhas militares andassem com certa
tranqüilidade, o mesmo não se aplicava a um estrangeiro
solitário como eu. Essa sensação me lembrou das
peculiaridades da eletricidade, especialmente do arrepio que
as mulheres consideravam tão eróticos nas feiras em Paris. O
Cairo estava elétrico por causa da tensão. As notícias da
derrota em Abukir chegaram rapidamente e acabaram com
aquela impressão de que os francos eram invencíveis. Pois é,
estávamos na corda bamba e notei que ela começava a
balançar.
Comparada às demais ruas, o logradouro de Enoc era
bastante tranqüilo. Onde estavam as pessoas? A fachada da
casa estava do mesmo jeito que a deixei, com a mesma
sobriedade de todas as casas egípcias. Entretanto, quando
cheguei perto, senti que algo estava estranho. A porta não
estava fechada como de costume. Dei uma espiadela e senti
que estava sendo observado, embora não conseguisse ver
ninguém.
Quando empurrei a porta ela deslizou um pouco. "Salaam?",
meu cumprimento ecoou e dividiu o espaço com o barulho
das moscas. Empurrei mais, mas era como se alguém fizesse
força do outro lado, e, finalmente, consegui espaço
suficiente para me esgueirar. E então pude ver a obstrução.
O gigante negro Mustafá estava morto e impedia a abertura
da porta. O rosto dele estava afundado por um tiro de
pistola. A casa exalava o inexorável aroma da morte.
Olhei para uma janela e notei que tinha sido destruída pelos
intrusos.
Fui conferindo sala por sala. Onde estavam os outros
serviçais?
Rastros de sangue estavam em todo o lugar, como se alguém
tivesse arrastado corpos depois de uma batalha e de um
subseqüente massacre. A decoração era caótica com mesas
tombadas, tapeçarias arrancadas e almofadas reviradas e
rasgadas. Os invasores procuravam por alguma coisa e eu
sabia o que era. Minha ausência não poupou ninguém. Por
que eu não insisti para que Enoc se escondesse em vez de
deixá-lo com seus livros? Por que diabos eu achei que tanto
a minha ausência quanto a do medalhão o manteria a salvo?
Logo cheguei à sala de antiguidades, cujas estátuas e esquifes
estavam quebrados e revirados. Subi as escadas até a
biblioteca e passei pela porta derrubada. Estava tudo escuro,
mas a sala cheirava a fogo. Com o coração na mão, encontrei
uma vela e acendi.
Marcas de fogo estavam em todo o lugar. Prateleiras
reviradas e livros e pergaminhos amontoavam-se num
canto, como folhas de outono, mas estavam semi-queimadas
e ainda queimavam lentamente, mas sem soltar fumaça.
Imaginei que não havia nada vivo na sala, mas aí alguém
gemeu. Notei que alguns papéis se moveram e uma mão
rompeu a barreira, como uma vítima de uma avalanche que
lutava para sair da neve. Os dedos estavam contorcidos pela
dor.
Segurei a mão e provoquei mais dor, então soltei e comecei
a tirar os papéis de cima do pobre coitado. Era Enoc, jogado
sob uma pilha de livros em brasa. Ele estava chamuscado,
suas roupas estavam sem-idestruídas e seus braços e peito
estavam totalmente queimados. Ele estava, literalmente,
numa fogueira literária.
"Thoth", ele gemia. "Thoth."
"Enoc, o que aconteceu?"
Ele não conseguia me ouvir em seu delírio. Fui até sua fonte
e usei uma vasilha antiga para trazer água, que, por sua vez,
estava rósea por causa do sangue derramado durante a luta.
Joguei um pouco em seu rosto e lhe dei um gole. Ele babou,
mas logo sugou tudo como um bebê faminto. Seus olhos me
localizaram, finalmente.
"Eles tentaram queimar tudo." Era um gemido muito baixo.
"Quem?"
"Me soltei e corri para dentro das chamas. Eles nem
tentaram me impedir." Tossiu.
"Meu Deus, Enoc, você se jogou no fogo?"
"Estes livros são a minha vida."
"Foram os franceses?"
"Os árabes de Bin Sadr. Eles não pararam de perguntar onde
ele estava, sem dizer o que queriam. Fiz de conta... que...
não sabia. Eles queriam a mulher. .. e eu disse que ela
tinha... ido... com você. Eles não acreditaram. Se eu não
corresse... para o... fogo... eles teriam me feito... falar mais.
Espero que os empregados... não tenham falado"
"Onde estão todos?"
"Os serventes foram presos... nas dispensas. Ouvi gritos."
Eu me sentia um perfeito inútil: apostador bobo, soldado
diligente, e metido a sábio. "Causei tudo isso a você."
"Você não fez... nada que... os deuses... não quisessem." Ele
gemeu novamente. "Meu tempo acabou. Os homens... estão
mais gananciosos. Eles... eles querem... a ciência e a magia
para... ter... poder. Quem quer... viver... num mundo desses?
Mas saber de alguma... e o conhecimento... não são as
mesma coisa." Ele apertou meu braço. "Você tem que
impedir!"
"Impedir o quê?"
"Estava em meus livros... no final das contas."
"O quê? O que eles queriam?"
"É uma chave. Você... deve... inserir em algum... lugar." Ele
estava apagando.
Cheguei mais perto. "Enoc, diga-me, por favor, Astiza está a
salvo?"
"Não sei."
"Onde está Ashraf?"
"Não sei."
"Você descobriu algo sobre o vinte e um de outubro?"
Ele apertou meu braço novamente. "Você precisa... acreditar
em algo... americano. Acredite nela."
E morreu.
Caí sentado, em desespero. Primeiro Talma, agora isso.
Cheguei tarde demais para salvá-lo e para saber o que ele
descobriu. Fechei os olhos de Enoc com meus dedos que
tremiam por causa da raiva e da sensação de impotência.
Tinha acabado de perder minha melhor fonte para os
mistérios antigos. Será que alguma coisa que pudesse
explicar o medalhão ainda estava inteira na pilha de livros
queimados? Mas como eu saberia qual deles?
Havia um livro curiosamente grosso, encapado com couro e
com as bordas queimadas, perto do peito de Enoc. Estava
escrito em árabe. Teria algo a ver com nossa busca? Peguei o
volume e olhei sem entender sua escrita ornamental. Bem,
talvez Astiza consiga entender.
Se ela ainda estiver no Cairo. Demorou, mas comecei a
imaginar quem a pequena figura encapuzada ao lado de
Silano poderia ser.
Ansioso e perdido em minhas preocupações, voltei à
escadaria em direção à sala de antiguidades sem nenhum
cuidado. Isso quase custou minha vida.
Um grito de guerra angustiado antecipou a saída de uma
lança de atrás da estátua de Anúbis. Ela me atingiu no peito e
me jogou longe. Atingi um sarcófago de pedra e fiquei sem
ar. Quando parei, fiquei confuso, e olhei para meu peito. A
lança havia atingido o livro de Enoc em cheio. As últimas
páginas separaram a ponta da arma do meu coração.
Ashraf segurava a lança. Ele cerrou os olhos.
"Você!"
Tentei falar, mas só engasgava.
"O que você está fazendo aqui? Os franceses disseram que
você estava nas pirâmides! Pensei que você fosse um dos
assassinos e estava procurando pelos segredos de meu
irmão!"
Finalmente consegui ar suficiente para falar. "Vi Silano
deixando a cidade com o general Desaix e rumando direção
ao sul. Não sabia o que aquilo podia significar, então voltei
correndo."
"Eu quase matei você!"
"Este livro me salvou." Empurrei o volume e a ponta da
lança para o lado. "Não consigo ler, mas Enoc estava
segurando ele. O que você acha, Ash?"
Usando sua bota para segurar o livro enquanto puxava a
lança, o mameluco parou e abriu. Fragmentos voaram como
esporos. Ele leu por um momento. "Poesia." E jogou para o
lado.
Ah, é assim que escolhemos morrer. Poeticamente.
"Preciso de ajuda, Ashraf."
"Ajuda? Você é o conquistador, lembra? Você é aquele que
está trazendo ciência e civilização para o pobre Egito! E isto
é o que você trouxe para a casa de meu irmão: carnificina!
Todo mundo que conhece você morre!"
"Foram os árabes que fizeram isso, não os franceses."
"Foi a França, não o Egito, que bagunçou com a ordem das
coisas."
Não tinha como responder. E também não podia negar que
eu era parte daquilo. Escolhemos sempre as razões mais
absurdas para revolucionar o mundo.
Respirei fundo. "Preciso achar Astiza. Ajude-me, Ash. Não
como prisioneiro, ou mestre e escravo, não como
empregado, mas como amigo. De guerreiro para guerreiro.
Astiza está com o medalhão. Ela vai ser brutalmente morta
por causa dele, do mesmo jeito que mataram Talma, e não
confio no exército para pedir ajuda. Napoleão também quer
o segredo. Ele vai ficar com o medalhão para ele."
"E será amaldiçoado como todos que tocam aquela coisa."
"Ou vai descobrir o poder capaz de escravizar o mundo."
A resposta de Ashraf foi o silêncio, o que me fez pensar
como estava sendo enganado pelo general que eu seguia.
Bonaparte era um salvador republicano ou tirano potencial?
já tinha visto pistas disso em seu caráter. Como diferenciar
esses dois tipos? Ambos exibem charme e ambição. Talvez
uma pequena parcela do conhecimento de Thoth fosse
capaz de guiar o coração de Napoleão para o outro lado, ou
afundá-lo em ambição. Enoc tinha me dado uma âncora.
Acredite nela. Como Jefferson escreveu, o Eu, a vida, e a
liberdade para buscar a felicidade eram fundamentais. Do
jeito que ele falava, e tinha fama de ser um sábio, ele
chegaria a presidente.
"Meu irmão te ajudou e olha o que aconteceu com ele",
Ashraf disse amargamente. "Você não é amigo. Eu errei
quanto te trouxe ao Cairo. Você deveria ter morrido em
Imbaba."
Eu estava desesperado. "Se você não vai me ajudar como
amigo, então eu ordeno que você me ajude como cativo e
servo. Eu paguei por seu serviço!"
"Você ainda tem coragem de dizer isso depois de tudo?" Ele
pegou uma bolsa e jogou em mim. Moedas rolaram pelo
chão de pedra. "Eu cuspo no seu dinheiro! Vá! Encontre a
mulher sozinho! Preciso preparar o funeral para o meu
irmão."
Então, eu estava sozinho. Pelo menos tive a integridade de
deixar o dinheiro onde estava, mesmo sabendo que um
pouco de dinheiro ajudaria. Eu estava quebrado. Peguei as
coisas que tinha deixado num sarcófago vazio: meu rifle
longo e a machadinha.
Passei novamente pelo corpo de Mustafá e voltei para as ruas
do Cairo.
Eu não voltaria mais lá.
A casa de Yusuf al-Beni, o harém onde Astiza estava
escondida, era mais chamativa que a de Enoc. Chegava a
lembrar uma fortaleza com torres de combate que
avançavam sobre a rua. As janelas frontais eram altas, mas
sua porta era protegida por um arco pesado e grosso digno
de um castelo medieval. Cheguei disfarçado até a entrada.
Minhas armas estavam enroladas num carpete e eu me vesti
com roupas egípcias caso os franceses estivessem a minha
procura para me levar de volta às pirâmides.
Será que tinha chegado tarde demais novamente?
Bati na porta e um porteiro do tamanho de Mustafá me
confrontou. Enorme, barbeado e com uma brancura
inversamente proporcional à negritude de Mustafá. Cada
uma das casas ricas daqui tinha um troll humano?
"O que você quer, mercador de tapetes?" Eu já entendia um
pouco de árabe àquela altura.
"Não sou mercador. Preciso ver seu mestre", respondi em
francês.
"Você é francês?", ele perguntou na mesma língua.
"Americano."
Ele rosnou. "Não está." E começou a fechar a porta.
Tentei um blefe. "O sultão Bonaparte procura por ele." O
gigante parou. Foi o suficiente para confirmar que Yusuf
estava lá dentro. "O general tem assuntos a tratar com uma
mulher que é convidada aqui, uma donzela chamada Astiza."
"O general quer escrava?", o tom era de total descrença.
"Ela não é escrava, é uma estudiosa. O sultão precisa
consultar seus conhecimentos. Se Yusuf não está, então
você deve entregar a mulher para o general."
"Ela não mais aqui."
Era a resposta em que eu não queria acreditar. "Vou ter que
trazer um pelotão de soldados? O sultão Bonaparte não é um
homem que gosta de ficar esperando."
O porteiro balançou sua cabeça me dispensando. "Vá,
americano. Ela ser vendida." "Vendida?"
"Para beduíno mercador de escravos." Ele ia bater a porta na
minha cara, mas coloquei a ponta do carpete e interrompi o
movimento. "Você não pode vendê-la, ela é minha!"
Ele pegou a ponta do tapete com uma mão como se
segurasse o cabo de uma frigideira. "Tire tapete da minha
porta ou tapete fica aqui", ele alertou. "Você não ter mais
negócios aqui."
Girei o tapete e na direção da cintura dele e enfiei a mão
onde estava a empunhadura do rifle. O clique do gatilho foi
audível o suficiente para que ele repensasse sua atitude.
"Quero saber quem a comprou."
Estudamos um ao outro. Ele também devia estar pensando
se era rápido o suficiente para me vencer. Finalmente, ele
resmungou. "Espera."
Ele desapareceu e me deixou feito bobo, ou penitente.
Como ele se atreveu a vender Astiza? "Yusuf, venha aqui,
sem bastardo!" Meu grito ecoou pela casa. Fiquei em pé por
longos minutos pensando se seria simplesmente ignorado.
Se fosse, eu entraria atirando.
Finalmente ouvi os passos pesados do porteiro que
retornava. Ele preencheu o espaço da porta quando chegou.
"Essa mensagem ser do comprador da mulher. É simples. Ele
diz que você sabe o que precisa para comprar ela de volta."
A porta bateu.
Isso significava que Silano e Bin Sadr estavam com ela. E
também significava que eles não tinham o medalhão e
também sabiam que ele não estava comigo.
Eles a manteriam viva na esperança que eu o levasse. Ela era
uma refém, vítima de seqüestro.
Enquanto pensava no que fazer, dei um passo atrás na porta.
Onde estava o medalhão? E, então, algo fino passou pela
minha orelha pousando na areia. Olhei para cima. Uma mão
feminina fechava uma janela gradeada lá em cima. Peguei o
que ela jogou.
Era um pacote de papel. Quando desenrolei, encontrei o
Olho de Horus de Astiza e uma mensagem em inglês, com a
letra dela. Meu coração se apertou:
"Vá até a parede sul à meia-noite. Traga uma corda."
Capítulo Dezoito
Nada diferenciava mais a mentalidade dos invasores e dos
egípcios do que as mulheres. Para os muçulmanos, os
arrogantes francos eram dominados por fêmeas grosseiras
que combinavam ostentação com pedidos imperativos e
ridicularizavam qualquer homem que tivessem contato com
elas.
Os franceses, por outro lado, acreditavam que o Islã
escondia sua maior fonte de prazer em prisões opulentas,
mas soturnas, e deixavam de lado a inspiração gerada pela
companhia feminina. Se os muçulmanos diziam que os
franceses eram escravos de suas mulheres, os franceses
pensavam que os muçulmanos tinham medo das deles.
A situação ficou mais tensa quando algumas mulheres
egípcias decidiram se tornar concubinas dos conquistadores.
Enquanto desfilavam nas carruagens dos oficiais, elas
ficavam com braços e pescoços descobertos, e apareciam em
público sem véu. Deslumbradas com liberdades que
ganharam dos franceses, elas aproveitavam toda
oportunidade de gritar para janelas gradeadas: "Vejam nossa
liberdade!". Os imãs nos consideram corruptos, os sábios
encaravam o Egito como medieval, e os soldados só estavam
interessados em boa companhia na cama.
Embora as ordens fossem claras para não molestar as
mulheres muçulmanas, não havia nenhuma proibição
quanto a pagar por elas. E algumas queriam, e muito, ser
compradas. Outras damas egípcias defendiam suas virtudes
como Virgens Vestais, a menos que um oficial se
comprometesse a casamento e boa vida na Europa.
O resultado foi muito desentendimento e atrito. Todo esse
segredo em torno das mulheres islâmicas fazia delas alvos
mais desejados ainda.
As burcas que cobriam as mulheres muçulmanas tinham o
objetivo de controlar a luxúria masculina, mas tinha o efeito
contrário nos franceses. Eles especulavam a idade e as
formas de cada mulher que passava. Eu náo estava imune a
essa discussão, já que os tesouros da casa de Yusuf
alimentaram minha imaginação por anos com as histórias de
Scherazade e As Mil e Uma Noites. Quem nunca ouviu as
famosas histórias vindas do harém do sultão em Istambul?
Ou sobre as hábeis concubinas e os eunucos castrados nesta
estranha sociedade, onde era possível que um filho de
escravo crescesse e se tornasse um mestre? Era um mundo
que eu lutava para tentar entender.
A escravidão serviu aos otomanos como meio de injetar
sangue novo e realeza numa sociedade peculiarmente
traiçoeira. Poligamia também servia como uma espécie de
recompensa por lealdade política. Até mesmo a religião tão
sagrada era a justificativa para a impossibilidade de aumento
de posses.
Perguntava-me se o medalhão ainda estava dentro do
harém, mesmo que Astiza tivesse partido. Era minha única
esperança. Ela podia ter convencido seus seqüestradores de
que eu ainda estava com a jóia e deixado uma mensagem
para mim. Mulher esperta. Encontrei um lugar para
esconder meu rifle num beco próximo e fui comprar roupas
e outros itens. Se Astiza estivesse nas mãos de Silano, eu a
queria de volta. Mesmo que não tivéssemos um
relacionamento propriamente dito, eu sentia uma mescla de
inveja, protecionismo e solidão que me surpreendia. Ela era
a pessoa mais próxima de ser chamada de amigo de verdade
por aqui. Já tinha perdido Talma, Enoc e Ashraf. Estaria
perdido se a perdesse também.
Mesmo com meu porte europeu, não atraí muita atenção ao
andar vestido como árabe. O fato de o Império Otomano ser
uma miríade de cores e povos ajudou muito. Entrei nos
corredores do bazar de Khan al-Khalili, um lugar tomado
pelo ar pesado, pela mistura de haxixe e carvão, e pilhas de
tecidos e alimentos. Depois de comprar comida, uma capa e
um cobertor para as frias noites do deserto, retornei ao beco
para guardar tudo e saí novamente para negociar um cavalo
ou camelo com o dinheiro que sobrou. Eu nunca tinha
cavalgado um camelo, mas eles eram a melhor opção para
uma longa jornada. Minha mente estava fervilhando com
idéias e perguntas.
Bonaparte sabia que Silano seqüestrou Astiza? O conde
estava seguindo as mesmas pistas que eu? Se o medalhão era
uma chance, onde estava a fechadura? Por causa da minha
preocupação, fiquei desatento e dei de cara com uma
patrulha francesa.
Os soldados quase passaram por mim, mas o tenente sacou
um pedaço de papel de seu cinto, olhou para mim, e gritou
para a companhia parar. "Ethan Gage?"
Fingi não entender.
Vários mosquetes foram apontados para mim. A tradução se
fez desnecessária. "Gage? Eu sei que é você. Não tente
correr ou vamos atirar."
Fiquei parado, tirei o turbante e tentei blefar. "Por favor, não
quebre meu disfarce, tenente. Estou numa missão para
Bonaparte."
"Ao contrário, você está preso."
"Acredito que esteja enganado, tenente."
Ele olhou para o retrato no papel. "Denon fez um rascunho
rápido da sua cara e é você mesmo. O homem desenha
bem."
"Estou prestes a retornar a meus estudos na pirâmide..."
"Você é procurado por assassinato de um estudioso e imã
chamado Qelab Almani, também conhecido como Enoc ou
Hermes Trismegisto. Você foi visto saindo de sua casa com
uma arma e uma machadinha."
"Enoc? Você está louco? Estou tentando desvendar o
assassinato dele."
Ele leu o papel novamente. "Você também é procurado por
deixar as pirâmides sem permissão, insubordinação e por não
vestir seu uniforme."
"Sou um sábio! Não tenho um uniforme!"
"Mãos ao alto!" Ele balançou a cabeça negativamente. "Não
vai fugir de seus crimes agora, americano."
Fui levado a um quartel mameluco que foi transformado
numa prisão. As autoridades francesas usavam o lugar para
julgar rebeldes, criminosos comuns, desertores,
aproveitadores e prisioneiros de guerra desde o início da
invasão. Meus protestos foram ignorados e fui jogado numa
cela que parecia um encontro de poliglotas, o problema é
que eles eram ladrões, charlatões, renegados e, de certo
modo, senti como estivesse de volta aos salões de Paris.
"Exijo saber as acusações contra mim!", gritei.
"Não tem porquê", rosnou o sargento que trancou a porta.
Ficar preso pela morte de Enoc só náo era mais desesperador
do que perder meu encontro à meia-noite no muro sul da
casa de Yusuf. Quem quer que tenha jogado o Olho de
Horus provavelmente náo teria muitas chances para ajudar
um homem estranho a entrar no harém. E se meu
misterioso aliado desistisse e o medalhão fosse vendido ou
perdido? De qualquer forma, se Astiza estiver nas garras de
Silano e foi levada para o sul com a expedição de Desaix, ela
ficava mais distante a cada hora que passava. Eu estava
imobilizado justamente no momento da minha vida em que
eu não tinha um minuto a perder. E isso era enlouquecedor.
Um tenente surgiu para registrar meu nome nos livros da
prisão.
"Pelo menos consiga uma audiência com Bonaparte, por
favor", pleiteei.
"É mais sábio ficar longe dele, a não ser que queira ser
alvejado imediatamente. Você é suspeito deste assassinato
aqui por causa de registros anteriores ligados à morte de uma
cortesã em Paris. Alguma coisa sobre dívidas também está
registrada...", ele estudou os papéis. "Uma senhoria chamada
madame Durrell?"
Fiquei furioso. "Eu náo matei Enoc! Eu descobri o corpo!" "E
você informou as autoridades?" O tom era tão cínico quanto
o de todos a quem eu devia.
"Escute bem, toda a expedição pode estar em perigo se eu
não conseguir finalizar meu trabalho. O conde Silano está
tentando monopolizar segredos importantes."
"Não tente incriminar Silano. Foi ele quem forneceu os
antecedentes sobre seu caráter com depoimentos de
madame Durrell e de um lanterneiro. Ele informou que
você ficaria tentado a ter uma recaída desse seu
comportamento destrutivo." Ele leu novamente.
"Características dignas do Marquês de Sade."
Então foi isso. Enquanto eu segurava fita métrica nas
pirâmides, Silano ficou ocupado no Cairo denegrindo minha
reputação.
"Tenho o direito a representação legal, não tenho?"
"Um defensor do exército vai falar com você dentro de uma
semana."
Eu estava amaldiçoado? Tudo isso era muito conveniente
para meus inimigos, já que eu estava trancafiado e não podia
seguir os passos do conde, estava impedido de me defender
e, claro, de comparecer a meu encontro no harém! O Sol se
escondia através da janela da cela e o jantar parecia ervilha
podre e purê de lentilha. Tínhamos um barril cheio de água
para dividir e a única privada era um balde.
"Preciso de uma audiência agora!"
"É possível que você seja levado a Paris para responder às
acusações lá." "Isso é insano!"
"Melhor a guilhotina do que um pelotão de fuzilamento
aqui, não é?" Ele deu de ombros e saiu.
"Como assim melhor?" Eu gritei, enquanto despencava no
chão.
"Coma um pouco de purê", disse um soldado, preso por
tentar vender um canhão para um ferro velho. "O café da
manhã é pior."
Recusei.
Bem, eu apostei e perdi, certo? Eu não conseguia ganhar em
Paris, é claro que eu não teria nenhuma sorte aqui também.
Se eu tivesse seguido os sermões de Franklin, eu teria uma
profissão decente, mas seu conselho 'durma cedo, acorde
cedo' era algo contra a natureza humana. Uma das coisas que
eu gostava nele é que ele nem sempre seguia seus próprios
conselhos. Mesmo perto dos oitenta, ele estava sempre
pronto para a farra se alguma mulher bonita estivesse
presente.
Logo escureceu. E a cada minuto que passava, Astiza ficava
mais longe. Ouvi meu nome enquanto ficava mais
deprimido no canto da minha cela por conta do meu
desespero. "Ethan!" De onde veio isso?
"Ethan?" A voz estava baixa e ansiosa. "O americano? Ele
está aí?" Abri caminho entre os presos e coloquei o rosto na
pequena abertura. "Quem está aí?" "Sou eu, Ashraf."
"Ash! Pensei que você tivesse me abandonado!"
"Pensei melhor nisso tudo. Meu irmão gostaria que eu te
ajudasse. Você e a sacerdotisa são a única esperança de salvar
os segredos que ele tanto lutou para proteger. E aí fico
sabendo que você foi preso! Como você se mete em tanta
confusão tão rápido?"
"É um dom."
"Agora preciso tirar você daí." "Mas como?"
"Fique o mais longe possível da janela, por favor. E tape os
ouvidos." "O quê?"
"Ah, também seria uma boa idéia ficar agachado." Ele
desapareceu.
Era de se esperar. Os mamelucos tinham um jeito bem
direto de fazer as coisas. Empurrei meus companheiros de
cela e fui para o canto mais distante, e tentei falar com os
prisioneiros. "Acho que algo dramático está prestes a
acontecer. Por favor, venham para este lado do aposento,
cavalheiros." Ninguém se moveu.
Tentei de novo. "Tenho haxixe aqui. Se vocês se
aproximarem eu divido com todos."
Eles formaram um belo escudo humano instantes antes da
explosão. A parede externa da cela, logo abaixo da janela,
explodiu e uma bala de canhão arrebentou a porta de
madeira e ferro que trancafiava a prisão. Quando a porta caiu
aproveitei a chance. "Agora! Derrubem o carcereiro!"
Quando os outros correram e dispararam pelo corredor, eu
fui pelo outro lado, escalei os escombros e sai pelo buraco
que Ash tinha acabado de abrir. Ele estava agachado nas
sombras. Esperando. Reconheci imediatamente o mosquete,
as duas pistolas e a espada que eu tomei dele quando o
capturei. Bem, lá se foram meus troféus.
"De onde diabos você conseguiu um canhão?"
"Ele estava posicionado aqui atrás, parece ser evidência de
algum crime." "Evidência?" Ah, sim. O soldado que tentou
vendê-lo. "Eles deixaram carregado?"
"Para usar contra os prisioneiros, caso alguém tentasse uma
fuga." Ouvimos tiros de mosquete e corremos.
Passamos pelas ruas escuras esgueirando como ladrões.
Pegamos minhas armas, minha corda e provisões onde eu as
havia deixado. Então, observamos o trajeto da lua, esperando
pela hora certa. Quando chegamos à parede sul da casa da
Yusuf eu não sabia o que esperar. Uma porta pesada e grossa
contava com um grande cadeado de ferro. Era ela que
guardava a entrada reservada às mulheres. Não poderíamos
entrar por ali.
Então, a única coisa a fazer era esperar silenciosamente
abaixo da janela da parede. E torcer para que as patrulhas
francesas que infestavam a cidade depois da fuga não
passassem por ali.
"Agora também fiz de você um fugitivo", sussurrei.
"Os deuses não deixariam você vingar a morte do meu irmão
sem mim." A noite avançava e o silêncio era completo.
Tanto na rua quanto nas janelas acima de nós. Perdi a hora?
Ou meu informante foi capturado? Impaciente e impulsivo,
peguei o Olho de Horus do meu bolso e o joguei para o alto
em frente à janela. Para minha surpresa, ele não caiu.
Em vez disso, ele ficou flutuando quando prendeu num fio
de seda que estava pendurado ali. Amarrei minha corda no
fio e observei enquanto ela era puxada para cima. Esperei até
ela ser amarrada, dei um puxão para testar, e apoiei meu pé
na parede. "Espere aqui", disse a Ashraf.
"Você acha que meu olhar não é tão atento quanto o seu?"
"Eu sou o especialista em mulheres. Segure o rifle."
A janela do harém ficava a cerca de vinte e cinco metros
para o alto. A veneziana da janela era grande suficiente para
eu passar minha cabeça e ombros. Empolgado pela
perspectiva da visão, venci a altura rapidamente. Levava
apenas minha machadinha presa ao cinto. Levando em
conta tudo que tinha acontecido naquele dia, eu estava mais
que preparado para usá-la.
Felizmente, fui puxado por braços jovens para dentro da
sala. O que melhorou muito o meu humor. Quando vi
minha assistente anônima, notei que ela era jovem, bonita,
vestindo roupas desapontadoras e usava até mesmo o véu.
Mas ver seus olhos amendoados era o suficiente para morrer
de amores por ela. Talvez esse fosse o método para levar um
muçulmano à loucura. Ela levou o dedo para onde seus
lábios estariam e sinalizou para que ficasse quieto. Ela me
deu um novo pedaço de papel e sussurrou, "Astiza."
"Fayn"? Perguntei. Onde?
Ela balançou a cabeça e apontou para o papel. Desdobrei a
folha. "Está escondido para ser visto", dizia em inglês. Era a
letra de Astiza.
Então ela deixou o medalhão para trás! Olhei ao redor e
notei vários pares de olhos me observando como animais
numa floresta. Várias mulheres do harém acordaram em
silêncio, mas estavam vestidas como minha jovem guia.
Todas pediram silêncio com os dedos. Entendi o recado.
Minhas fantasias sobre piscinas cristalinas, dançarinas e
roupas exóticas tinham caído por terra. Os aposentos do
harém pareciam mais simples e modestos que as salas
públicas que eu tinha visto e nenhuma delas parecia
preparada e empolgada para uma eventual visita noturna de
Yusuf. Eu estava na ala reservada para que as mulheres
pudessem cozinhar, costurar e fofocar sem invadir o
território masculino.
Elas me olhavam com medo e fascínio.
Comecei a andar pelo ambiente sombrio procurando pelo
medalhão. Escondido para ser visto? Seria uma janela? Todas
eram protegidas com telas de mashrabiyya. O harém tinha
uma sala central e labirintos de quartos menores. Cada um
deles tinha uma cama desarrumada, um baú de roupas,
cabides cheios de roupas, algumas reveladoras e outras
misteriosas. Era um mundo do avesso, com cores,
pensamentos e prazeres limitados, confinados.
Onde eu já tinha escondido o medalhão? No sapato, num
canhão, num penico. Nenhum desses era "escondido para
ser visto", pelo menos acho que não. Abaixei para levantar
um cobertor, mas a jovem senhorita segurou minha mão.
Notei que elas estavam esperando que eu o encontrasse.
Seria a prova de que era eu quem deveria encontrá-lo.
Entendi o recado e a obviedade da minha tarefa ficou
evidente. Endireitei o corpo para olhar mais amplamente.
Escondido à vista de todos, ela queria dizer. No pescoço de
alguém, numa mesa, em cima...
Uma prateleira de jóias.
Se existe uma coisa universal na cultura humana é a paixão
pelo ouro. O que estas mulheres nunca mostrariam na rua,
elas vestiriam para Yusuf e qualquer outro aqui dentro:
anéis, moedas, braceletes e tornozeleiras, brincos, tiaras e
correntes de cintura. Uma penteadeira estava repleta de
ouro. Parecia como um eco diminuto do tesouro do
L'Orient. E no meio de tudo aquilo, largado casualmente
como uma moeda numa mesa de bar, estava o medalhão.
Vários outros objetos o cobriam. Bin Sadr e Silano nunca
entraram aqui e ninguém pensou em procurar por ele.
Desembaracei o disco e, quando terminei, um brinco pesado
rolou pela mesa e caiu no chão fazendo muito barulho.
Fiquei congelado. De repente, outras cabeças surgiram nas
camas. Rostos mais velhos. Uma delas me viu, se cobriu com
as roupas mais próximas e falou rispidamente. As mais
jovens responderam impacientes.
Uma conversa áspera em árabe começou. Comecei a me
mover em direção à janela. As mais velhas gesticulavam para
que eu deixasse o medalhão, mas não ignorei o pedido e
coloquei em volta do meu pescoço. Não era isso que elas
queriam? Aparentemente não. A mais velha gritou e várias
outras começaram a gritar junto. Um eunuco berrou do lado
de fora da porta, e outras vozes masculinas vinham do andar
de baixo. Aquele anel era feito de pedra? Era hora de ir
embora.
Quando corri para a janela, as mulheres mais velhas
tentaram me barrar balançando os braços e, dessa maneira,
revelando-os. Pareciam morcegos gigantes. Avancei mesmo
assim e uma delas, que tentou agarrar meu pescoço, caiu
gritando. Um sino começou a badalar e ouvi um tiro de
alerta. Elas iam acordar toda a cidade! Segurei na borda da
janela e chutei com força. Metade da tela voou longe e
alguns pedaços caíram lá embaixo. Saí da janela e comecei a
descer pela corda. Lá embaixo, vi que a porta traseira estava
aberta e dela saíam servos armados com porretes e varas.
Outros homens invadiram o harém atrás de mim. Mesmo
enquanto descia, alguém tentou puxar a corda para cima.
"Pule!" Ashraf gritou. "Eu pego você!"
Por acaso ele sabia quanto eu pesava? E eu não queria largar
simplesmente porque não estava disposto a me desfazer da
corda que tinha comprado naquela tarde. Peguei a
machadinha e cortei o fio bem acima da minha cabeça. Ela
rompeu e eu despenquei os últimos dez metros. Caí sobre
algo macio e fedido. Era uma carreta que Ash encontrou no
beco e usou para amortecer minha queda. Rolei para o lado,
amarrei o que sobrou do cabo e me preparei para lutar.
Houve um estrondo quando Ash disparou seu mosquete e
um dos homens voou para trás. Ele jogou meu rifle nas
minhas mãos, eu atirei no segundo homem, avancei como
um índio e rachei a cabeça do terceiro com a machadinha.
Os outros recuaram confusos. Ashraf e eu disparamos na
direção oposta.
Um bando de homens de Yusuf veio atrás de nós, mas eles
atiravam de qualquer jeito. Parei para recarregar o rifle. Ash
desembainhou a espada. Agora só precisávamos escapar da
cidade...
"Lá estão eles!"
Era uma patrulha militar francesa. Xingamos, demos meia
volta e corremos para o lugar de onde viemos. Ouvi a ordem
francesa de apontar e atirar, então agarrei o braço de Ash e o
puxei comigo para o chão sujo. Veio o disparo e várias balas
passaram zunindo acima de nós. E então ouvimos gritos de
dor mais à frente. Eles acertaram os homens de Yusuf.
Aproveitamos a cobertura da fumaça para entrar numa rua
lateral. Pelo que ouvi, mais tiros foram disparados e balas
voavam para todos os lados.
"Que tipo de excremento era aquele em que caí?" perguntei
a Ash.
"Bosta de burro. Você caiu naquilo que os francos chama de
merde, meu amigo."
Outra bala passou perto de um poste de pedra. "Merda
mesmo, tem toda a razão."
Fugimos pelas ruas até chegarmos a uma avenida próxima ao
portão sul. Tudo indicava que tínhamos conseguido
despistar nossos perseguidores. "Também perdemos as
provisões. Maldita velha!"
"Moisés encontrou maná no deserto."
"E o rei Jorge vai se deparar com bolo em sua mesa de chá,
mas não sou ele, sou?"
"Você está ficando de mau-humor." "Já era hora."
Estávamos quase nos muros do Cairo quando um esquadrão
de cavalaria francesa virou na nossa rua. Eles estavam numa
patrulha de rotina, e ainda não tinham nos visto, mas
bloquearam o caminho.
"Vamos nos esconder naquele recuo", Ashraf sugeriu.
"Não. Não precisamos de cavalos? Amarre a corda naquela
pilastra. Na altura do ombro de um oficial a cavalo." Eu
peguei a outra ponta e fiz o mesmo do outro lado da rua.
"Quando eu atirar, prepare-se para roubar um cavalo."
Fiquei parado no meio da rua de frente para os cavaleiros.
Tirei meu rifle naturalmente e deixei que o vissem.
"Quem vem lá?", um dos oficiais falou. "Identifique-se!"
Eu atirei e derrubei seu chapéu.
Eles vieram em carga máxima.
Pulei para a sombra, deixei o rifle de lado e segurei uma
ponta da corda. Puxei. Os primeiros soldados foram jogados
de suas selas como bonecos e atingiram em cheio os que
vinham atrás. Os cavalos recuavam e os homens ficavam
dependurados. Eu saltei e derrubei um cavaleiro. Ashraf
também tomou um cavalo à força. Tiros de pistola foram
disparados, mas as balas não tinham direção. E partimos o
mais rápido possível.
"Os franceses vão começar a repensar de que lado você
está", Ash falou ofegante quando começamos a galopar e
olhávamos para os soldados.
"Eu também."
Cavalgamos em direção ao muro e ao portão. "Abram!
Mensageiros de Bonaparte!", gritei em francês. Eles viram
animais da cavalaria e abriram antes que pudessem nos ver
mais de perto. Quando notaram as roupas árabes já era tarde
demais. Voamos entre os sentinelas e seguimos em direção
ao deserto. Nenhum dos tiros dos guardas sequer chegou
perto.
Eu tinha fugido e estava com o medalhão. Podia resgatar
Astiza, encontrar o Livro de Thoth e me tornar Senhor do
Mundo - ou pelo menos salvá-lo.
Mas agora eu estava à mercê de cada beduíno, mameluco e
cavaleiro francês do Egito.
Capítulo Dezenove
O deserto egípcio a oeste do Nilo era um oceano sem fim de
areia e rochas. Os poucos oásis da região pareciam ilhas no
meio da vastidão seca. A oeste do Nilo, e sul do Cairo - um
platô estéril separado do Mar Vermelho por montanhas que
deveriam ser parecidas com as da lua - era mais vazio ainda,
uma frigideira inalterada desde a criação do mundo. O céu
azul era interminável e a aridez da terra seria capaz de
mumificar cada tarde maldita. Não havia água, sombra,
pássaros, plantas, nem mesmo insetos. Por milênios, magos
e monges peregrinaram aqui para encontrar Deus. Quando
fugi para cá, fiquei com a impressão de tê-lo deixado bem
para trás, onde as águas do Nilo eram fartas e nas grandes
florestas verdes da minha pátria.
Ashraf e eu cavalgamos naquela direção justamente por ser a
mais insana. Passamos pela Cidade dos Mortos, no Cairo, um
complexo de tumbas muçulmanas. Trotamos rapidamente
pelas fazendas que acompanhavam o Nilo e desviamos dos
cães que latiam com nossa passagem. Muito antes do nascer
do sol éramos apenas dois pequenos pontos distantes na
planície árida.
O Sol nasceu e com ele veio o calor. Encontramos cantis nas
selas de nossos cavalos, mas eles duraram apenas até o meio-
dia. A sede passou a ser o maior problema. Era tão difícil
respirar, e meus olhos ardiam contra o brilho claro do
deserto que lembrava a neve. A corrente do medalhão
queimava em meu pescoço. Uma miragem de um lago
cintilava fora de nosso alcance, a armadilha já era mais do
que familiar naquele momento.
Então, isso é Hades, pensei comigo. É isso que acontece
com homens sem objetivos que bebem, trepam e jogam
pelo pão de cada dia. Eu torcia para encontrar um pouco de
sombra para me proteger e dormir para sempre.
"Precisamos ir mais rápido", Ashraf disse. "Os franceses
estão em nosso encalço."
Olhei para trás. Uma trilha de pó se movia com o vento. Em
algum lugar lá atrás, um pelotão de hussardos seguia nossa
trilha recente.
"Como vamos fazer isso? Nossos cavalos não têm água."
"Então temos que achar água para eles." Ele apontou para
colinas ondulantes que pareciam pães cortados em fatias.
"Numa jazida de carvão?"
"Mesmo uma jazida de carvão pode esconder um diamante.
Vamos despistar os franceses nos desfiladeiros e vales. E
depois encontramos um lugar para beber."
Forçamos o passo e entramos no terreno mais alto seguindo
vales arenosos e tortuosos. A única vegetação visível eram
espinhos. Ashraf estava procurando por alguma coisa, e logo
encontrou: uma formação de rocha tão seca e queimada pelo
Sol que se abria em três desfiladeiros. Era só escolher um
deles. "Aqui podemos cobrir nosso rasto." Entramos no chão
de pedra e os rastos cessaram. Escolhemos o desfiladeiro do
meio por ser mais estreito e menos simpático: talvez os
franceses pensem que fomos para outro lado. O lugar estava
tão quente que era como cavalgar para dentro de um forno.
Em pouco tempo, ouvimos os gritos de nossos
perseguidores, que, frustrados pelo fim do rasto, discutiam
sobre qual caminho tomar.
Perdi o senso de direção e apenas seguia meu amigo
mameluco. As cristas rochosas ficavam cada vez mais altas e
eu comecei a ver os contornos das montanhas de verdade.
Aqui estava a formação que separava o Vale do Nilo do Mar
Vermelho. Não havia um sinal sequer de água ou vegetação.
Excetuando o barulho de nossos cavalos e o atrito das
roupas, o silêncio era desesperador. Com um deserto desses,
até entendo toda a preocupação dos egípcios com a morte.
O contraste entre os campos fartos e a desolação da areia
poderia ser a origem da idéia da expulsão do Éden? Essa
sensação deve ter servido como lembrete da breve duração
da vida e alimentou sonhos de imortalidade. Com certeza, o
calor seco mumificava os corpos naturalmente mesmo antes
de os egípcios fazerem isso religiosamente. Imaginei alguém
encontrando minha carcaça daqui alguns séculos e vendo
minha expressão de arrependimento.
Finalmente, as sombras ficavam maiores e os sons da
perseguição foram diminuindo. Os franceses deveriam estar
tão sedentos como nós. Eu estava tonto, meu corpo doía e
minha língua estava grossa.
Paramos em frente ao que parecia ser uma armadilha
rochosa, um beco sem saída. Rochedos altos nos cercavam,
a única saída era a passagem estreita por onde havíamos
acabado de entrar. As paredes eram tão elevadas que
projetavam uma sombra mais que bem-vinda. F agora?
Ashraf sentou. "Agora você me ajuda a cavar." Ele ajoelhou
na areia na base do rochedo, num lugar que poderia
comportar o lado de uma cachoeira, se é que algo tão
absurdo pudesse existir ali. Mas talvez já tenha acontecido: a
rocha tinha manchas negras, como se, ocasionalmente, água
tivesse fluido por ali. Ele começou a cavar com as mãos.
"Cavar?" Ele ficou maluco por causa do Sol?
"Ajude, se você não quiser morrer! Uma tormenta assola
esse lugar uma vez por ano, ou talvez a cada dez anos. Como
o diamante no meio do carvão, alguma água pode ter ficado
por aqui."
Comecei a cavar. O esforço parecia inglório em princípio e
as mãos queimavam com a areia. Porém, a areia começou a
ficar gradualmente mais fria e, surpreendentemente, estava
úmida. Quando senti a sensação e o cheiro da água, comecei
a jogar areia para o lado como um terrier. Pelo menos
encontramos umidade de verdade. A água começou a
pingar, mas estava tão grossa com o sedimento que parecia
sangue coagulado.
"Não posso beber barro!" E continuei cavando.
Ashraf agarrou meu braço e nos jogou para trás. "O deserto
pede paciência. Esta água pode estar aqui há um século.
Podemos esperar um pouco mais."
E, enquanto eu olhava impacientemente, o maravilhoso
líquido começou a empoçar na depressão que cavamos. Os
cavalos relincharam e se moveram.
"Ainda não, meus amigos, ainda não", Ash acalmou.
Foi a travessa mais rala que eu já vi, mas foi tão bem-vinda
quanto um rio. Depois de uma eternidade, abaixamos para
beijar nossa poça, como os muçulmanos se curvam em
direção a Meca. Fiquei arrepiado e aliviado. Somos
verdadeiros sacos de água! Totalmente indefesos se não
formos constantemente reabastecidos! Bebemos tudo até
virar lama novamente, então sentamos e rimos. A água criou
um círculo úmido e limpo em torno de nossas bocas,
enquanto o resto do rosto continuava tomado pela areia.
Parecíamos palhaços.
Esperamos nossa fonte reencher, tomamos mais um pouco e
deixamos um pouco para os cavalos. Passamos o anoitecer
levando água para nossas montarias, bebericando um pouco
mais, e jogando o que restou em nossas cabeças e mãos. Eu
quase me sentia humano novamente.
As primeiras estrelas surgiram e me dei conta de que já não
ouvia mais nenhum som dos franceses há um bom tempo.
Então, todo o firmamento surgiu e as rochas brilhavam
prateadas.
"Bem-vindo ao deserto", Ashraf disse.
"Estou faminto."
Ele deu um sorriso largo. "Isso quer dizer que você está
vivo."
Fiquei com frio, mas, mesmo que tivéssemos madeira, não
arriscaríamos acender o fogo. Em vez disso, começamos a
conversar e nos confortamos ao dividir a dor pelas mortes
de Talma e Enoc, e também falamos sobre futuros possíveis:
com Astiza ao meu lado e o Egito independente para Ash.
"Os mamelucos são exploradores. É verdade", ele admitiu. "E
podemos aprender coisas com seus franceses, assim como
eles aprenderiam conosco, mas o Egito deve ser governado
pelo povo que vive aqui, Ethan, não pelos franceses
branquelos."
"Não é possível a coexistência dos dois?"
"Não acho. Paris aceitaria um árabe em seu conselho
municipal mesmo que esse imã tivesse a sabedoria de Thoth?
Não. Não é a natureza humana. Imagine que um deus desça
do céu com as respostas para todas as nossas perguntas.
Escutaríamos ou pregaríamos ele numa cruz?"
"Todos sabemos a resposta para essa questão. Então, cada um
deve ficar em sua terra, Ash?"
"E dar sabedoria ao lugar. Eu acho que era isso que Enoc
estava tentando fazer: manter a sabedoria do Egito
preservada e escondida de acordo com os desejos dos
antigos."
"Mesmo que ela ensinasse a levitar rochas ou garantir a vida
eterna?"
"Coisas que vêm muito fáceis perdem o valor. Se uma nação
ou homem conseguir erguer uma pirâmide por mágica,
então ela fica tão sem valor quanto uma simples colina. E
viver para sempre? Qualquer um que tenha olhos pode ver
que isso é contra a natureza. Imagine um mundo cheio de
velhos, com poucas crianças. Um mundo sem perspectiva
de avanço por que cada negócio é propriedade de patriarcas
que são trezentos anos mais velhos que você. Não seria o
paraíso, seria um inferno de cautela e conservadorismo,
idéias anacrônicas e discursos prontos. Apenas velhos
rabugentos cheios de memórias. Temos medo da morte?
Claro. Mas é a morte que possibilita a vida, e o ciclo da vida
é tão natural quanto a cheia do Nilo. Morrer é nossa última,
e maior, obrigação."
Esperamos um dia para garantir que os franceses não
estavam a nossa espera. Então, apostando que a falta de
água os empurrou de volta ao Cairo, rumamos para o sul e
viajamos de noite para evitar o calor. Tomamos um curso
paralelo ao Nilo. Porém, vários quilômetros para o leste para
evitar sermos avistados, e enfrentamos colinas tortuosas e
desgastantes.
Nosso plano era encontrar a tropa principal de Desaix, onde
Silano e Astiza deveriam estar. Agora era minha vez de
perseguir o conde do mesmo jeito que os franceses
perseguiam os insurgentes mamelucos rio acima. Na hora
certa, eu resgataria Astiza e Ashraf teria sua revanche sobre
quem quer que tenha matado o pobre Enoc. Precisávamos
encontrar o cajado e Min, voltar correndo para a Grande
Pirâmide e encontrar o tal livro perdido de Thoth para,
então, protegê-lo do Rito Egípcio. E, então, pensaríamos se
seria melhor mantê-lo guardado, destruí-lo ou levarmos
conosco. Eu saberia o que fazer quando a hora chegasse,
como o velho Ben dizia. Infelizmente, não era tão simples.
Enfim, encontramos pequenos sinais de vida no deserto em
nosso trajeto. Um monastério copta com torres abobadadas
brotou na aridez como cogumelos numa floresta de pedra.
Um jardim repleto de palmeiras dava sinais da existência de
um poço. O hábito mameluco de levar a riqueza para a
batalha mostrava outra função mais útil: Ashraf recuperou a
bolsa que jogou em mim e lá dentro havia moedas
suficientes para comprar comida. Matamos a sede e
compramos bolsas de água maiores. Mais poços abasteceram
nosso caminho enquanto rumávamos ao sul. Eram como
estalagens numa estrada invisível.
Vez por outra passávamos perto do Nilo e Ashraf ia até uma
das vilas para conseguir comida e água, e eu ficava
observando das colinas próximas. O vento trazia sons de
camelos e burros, também de crianças rindo e o chamado
para a oração. Eu ficava sentado. Observando de maneira
quase alienígena. Ash retornava na madrugada e
cavalgávamos mais alguns quilômetros até que o Sol
retornasse, o sinal para esperarmos em cavernas e lugares
mais frescos como encostas de rochedos que ele conhecia.
"Estas são tumbas dos antigos", explicou Ash, quando
arriscamos acender uma fogueira para cozinhar e fazer uma
refeição acompanhada por chá. "Estas cavernas foram
abertas há milhares de anos." Elas estavam cheias de areia,
mas ainda impressionavam. Colunas suportavam o teto.
Murais brilhantes decoravam as paredes. Diferentemente do
granito sem graça da Grande Pirâmide, encontrei
representações de vida, em vez de morte, pintadas em
centenas de cores. Eram garotos brincando, meninas
dançando, redes recolhendo peixes e os antigos reis
apareciam envolvidos em árvores de vida, cujas folhas
representavam os anos de sua jornada. Animais vagavam por
florestas imaginárias e barcos flutuavam em rios pintados
onde hipopótamos e crocodilos nadavam. O ar era cheio de
pássaros. Não vi sinal dos mórbidos crânios e corvos típicos
da Europa ou da América. Tudo era mais animado, feliz,
agradável e selvagem do que o Egito que eu atravessava
agora.
"Pelo jeito eles viviam no paraíso naquela época", eu disse.
"Verde, riqueza, menos gente e com muitas certezas. Sem
medo de invasão ou pavor pelo novo tirano. É como Astiza
disse, melhor naquele tempo que em qualquer outro
depois."
"Nos anos mais felizes, todo o país era unido da parte alta do
Nilo até a terceira ou quarta catarata", Ashraf concordou.
"Navios egípcios navegavam do Mediterrâneo até Aswan, e
caravanas traziam riquezas da Núbia e terras como Punt e
Sheba. Extraíamos ouro e gemas das montanhas. Monarcas
negros trouxeram marfim e temperos. Reis caçavam leões
no deserto. E, a cada ano, o Nilo enchia e renovava o vale
com sedimentos, da mesma maneira que faz hoje. Ele vai
chegar ao auge na data que o seu calendário indicou, vinte e
um de outubro. Todo ano, os sacerdotes olhavam as estrelas
e o Zodíaco para calcular os melhores períodos para semear
e colher, e também para medir o nível do Nilo." Ele apontou
para algumas figuras. "As pessoas daqui, mesmo os mais
nobres, traziam oferendas ao templo para garantir que o
ciclo continuasse. Existiam templos magníficos em vários
pontos perto do Nilo."
"E os sacerdotes aceitavam as oferendas."
"Sim."
"Para uma cheia que acontecia todo ano independente
deles." Ele sorriu. "Sim."
"Aí está uma profissão para mim. Prever que as estações vão
passar, que o Sol vai nascer e ganhar dinheiro às custas da
gratidão das pessoas."
"Exceto que não era previsível naquela época. Em alguns
anos a cheia não acontecia e isso causava fome. Você
provavelmente não gostaria de ser um sacerdote naquele
tempo."
"Aposto que eles tinham uma boa desculpa para a falha e
pediam para a população dobrar o tributo." Eu tinha faro
para trabalho fácil e já imaginava como era o sistema de vida
deles. "E o que é essa escritura?", perguntei apontando para
as letras acima de algumas pinturas. "Não reconheço a
linguagem. É grego?"
"Copta", Ashraf disse. "A lenda diz que os primeiros cristãos
se esconderam nestas cavernas para fugir da perseguição dos
romanos. Somos os últimos numa longa tradição de fugitivos
que passou por aqui."
Outra parede atraiu minha atenção. Outro tipo de escrita
definia uma série de marcas confusas. Alguns trechos
pareciam claros: um risco representava "um", três significava
"três", e assim por diante. Algo soava familiar naquele padrão
e fiquei pensando o que poderia ser enquanto sentei perto
da entrada da caverna.
Pouco depois fez todo o sentido do mundo.
Peguei o medalhão.
"Ash, veja isso. Esse pequeno triângulo de riscos no meu
medalhão... parece com as marcas na parede!"
Ele olhou de um para o outro. "Realmente. Mas e daí?"
E daí? Isso podia mudar tudo. Se eu estivesse certo, a parte
de baixo do medalhão não representava a pirâmide, ele
representava números! Eu carregava algo que continha
algum tipo de conta ou somatória! Os sábios podiam ser
alucinados por matemática, mas minhas semanas de
sacrifício e vida dura estavam valendo a pena — eu tinha
acabado de encontrar um padrão que, em outras
circunstâncias, teria passado despercebido. Tudo bem, eu
ainda não sabia o que fazer com eles, já que aparentavam ser
apenas grupamentos de um, dois e três.
Mas eu estava chegando perto do mistério.
Depois de muitos dias e quilômetros, chegamos a um pico
de calcário desgastado perto de Nag Hammadi, onde o Nilo
fazia uma curva e era acompanhado por campos verdes na
margem oposta. Lá, do outro lado do rio, avistamos nossa
presa.
Desaix e sua divisão de soldados com três mil e dois homens.
Eles formavam uma fileira com mais de um quilômetro e
meio de comprimento, que marchava lentamente ao lado do
rio. Para nossa vantagem, parecíamos insetos andando sobre
um gigantesco quadro. Foi naquele momento que percebi o
quão impossível era a tarefa a que os franceses haviam se
proposto. Do ângulo em que eu estava, olhei para as tropas e
imaginei não só a vastidão do Egito, mas também do restante
da África e os demais territórios. Essa visão fez a força
francesa parecer insignificante como uma mosca nas costas
de um elefante. Como este ínfimo punhado de homens seria
capaz de subjugar este império desértico cheio de ruínas e
infestado por tribos a cavalo? A idéia era tão audaciosa
quanto a de Cortez, mas Cortez tinha como alvo o coração
de um Império, enquanto o pobre Desaix já havia capturado
o coração e, agora, perseguia os braços feridos, mas
desafiadores, nos ermos de areia. O problema dele não era
derrotar o inimigo, mas sim encontrá-lo.
E o meu problema não era encontrar meu inimigo — que
deveria estar em algum lugar naquela coluna —, mas sim
colocar as mãos nele agora que eu era um fora-da-lei para os
franceses. Também esperava encontrar Astiza ali, e
precisava encontrar um jeito de me comunicar com ela.
Meu único aliado era um mameluco; e mesmo minhas
roupas eram árabes. Eu nem sabia por onde começar agora
que a divisão estava a nosso alcance. Atravessar o rio e
galopar com força exigindo justiça? Ou tentar assassinar
Silano sorrateiramente? E que provas eu tinha de que ele era
meu inimigo afinal de contas? Se eu o matasse, eu seria
enforcado.
"Ash, algo me diz que pareço com um cachorro que corre
atrás de um carro de bois: não sei ao certo o que fazer com o
meu prêmio quando pegá-lo."
"Não seja um cachorro, então", o mameluco disse. "O que
você realmente quer?
"A solução para o mistério, uma mulher e vingança. Mas
ainda não tenho certeza de que Silano seja o responsável por
qualquer coisa. E também não sei direito o que fazer com
ele. Não tenho medo de enfrentar o conde. Só tenho dúvida
sobre o que ele merece. Era mais fácil cavalgar pelo deserto.
É vazio. E sem complicações."
"Ainda assim, meu amigo, no final, um homem não pode se
unir ao deserto tanto quanto um barco não é um com o mar
— ambos passam pela superfície. O deserto é um caminho,
não o destino."
"E agora chegamos ao fim da jornada. O exército vai
proteger Silano? Vão me considerar um fugitivo? E onde
Achmed Bin Sadr está se escondendo?"
"Sim, Bin Sdar. Não vejo o bando dele com os soldados."
Em resposta, um pedaço de rocha voou perto de nós e, em
seguida, ouvimos o som do disparo.
"Está vendo com os deuses respondem a todos nós?" Ashraf
apontou.
Virei minha sela para o norte, atrás de nós. No alto das
colinas de onde viemos estavam doze homens. Todos com
roupas árabes, montados em camelos, e trotando em grande
velocidade. Eles tremulavam com o reflexo do calor. O
homem que vinha na liderança carregava algo longo demais
para ser um mosquete. Era um cajado de madeira.
"Bin Sadr. O demônio em pessoa", murmurei. "Ele mantém
os beduínos longe da retaguarda dos franceses. E agora ele
nos viu."
Ahsraf sorriu. "E ele vem a mim tão facilmente depois de ter
matado meu irmão?"
"A cavalaria deve ter pedido a ele que procurasse por nós."
"Azar o dele, então." O mameluco estava pronto para a
carga.
"Ash, pare! Pense! Não podemos atacar doze homens de
uma vez!"
Ele olhou para mim com desprezo. "Você está com medo de
algumas balas?"
Mais fumaça apareceu perto dos árabes e mais pedaços de
pedras voaram em nossa volta. "Sim!"
Meu companheiro levantou a manga de sua blusa e mostrou
o buraco de uma bala. Ele sorriu novamente. "Senti um
vento quando essa daqui passou. Então sugiro sair daqui
logo."
Aceleramos e descemos em direção à ribanceira e viramos
para longe do Nilo o mais rápido que podíamos para ganhar
distância e cobertura. Por mais que os cavalos superassem os
camelos numa arrancada, eles tinham mais resistência para
nos alcançar mais tarde. Os dromedários podiam ficar
semanas sem água e então bebiam uma quantidade capaz de
matar qualquer outro animal. A cavalaria francesa ficaria
para trás com facilidade, mas os guerreiros do deserto, sem
dúvida, seriam mais persistentes.
Conseguimos manter uma boa distância por uma hora, mas
com o calor e a falta de água os cavalos começaram a cansar.
Era de se esperar, afinal de contas, eles não pastavam e nem
bebiam há dias. Tentamos despistá-los ao subir numa
ribanceira e descer pelo lado oposto, mas a poeira servia
como um localizador perfeito.
"Você pode diminuir o ritmo deles?", Ash finalmente pediu.
"Estou ao alcance deles, mas na velocidade em que estão vou
ter apenas um tiro. Demora quase um minuto para
recarregar." Paramos num ponto alto e tirei o rifle das
minhas costas. Ele ficou pendurado ali, incomodando por
quinhentos quilômetros, mas em momento algum pensei
em deixar aquele peso reconfortante para trás. Ele não
reclamava e era mortal. Mirei sem desmontar. O alvo era Bin
Sadr, pois se ele morresse, a perseguição acabaria
imediatamente. Eram longos quatrocentos passos de
distância. Não havia vento, o ar estava seco e o alvo vinha
direto para mim... mas também estava a uma distância
suficiente para que a imagem se turvasse e parecesse uma
bandeira tremulando ao vento. Droga, onde ele estava
exatamente? Apontei alto para compensar a queda da bala,
conferi a mira e atirei. Meu cavalo se mexeu com o tiro.
Demorou um pouco para a bala chegar. E o camelo dele
levou um tranco.
Acertei? Todos os beduínos pararam e formaram um círculo
em torno dele, enquanto gritavam consternados e tentavam
atirar em nós, mesmo estando fora de alcance. Virei minha
montaria e galopamos o mais rápido que pudemos. Pelo
menos ganhamos um pouco de tempo, era o que
esperávamos. Ash olhou para trás.
"Seu amigo tirou um de seus companheiros do camelo e está
montando. O outro sujeito está pegando uma carona. Eles
vão vir com mais cuidado agora."
"Mas ele sobreviveu." Paramos e eu recarreguei, e isso nos
custou mais do que o tempo que tínhamos ganhado. Eu não
queria ser encurralado num tiroteio, por que eles cairiam
sobre nós na hora de recarregar. "E ainda estão vindo."
"É o que parece."
"Ash, não podemos lutar contra todos eles." "Parece que
não."
"O que eles vão fazer se pegarem a gente?"
"Antes eles só iriam nos estuprar e matar. Mas agora que
você matou o camelo dele, suspeito que vamos ser despidos,
estuprados, empalados no deserto e eles vão usar escorpiões
para nos atormentar enquanto morremos de sede e calor. Se
tivermos sorte uma serpente vai nos achar primeiro."
"Você não me disse isso antes de eu atirar."
"Você não disse que ia acertar o camelo!"
Entramos num desfiladeiro sinuoso e torcemos para que não
terminasse num beco sem saída como aquele no qual
encontramos água. Mesmo com as manobras, nosso rastro
era óbvio e os cavalos babavam. Logo eles cederiam.
"Sabe, não vou dar o medalhão a ele. Não depois de Taima e
Enoc. Vou enterrar, comer, jogar num buraco. Mas não vai
ficar com ele."
"Eu não cavalgaria com você se pensasse diferente."
O desfiladeiro acabou numa ladeira de pedregulhos que
levava à borda da formação. Desmontamos e puxamos
nossas montarias exaustas pelos arreios. Eles avançaram
alguns metros na marra e depois se recusaram a continuar.
Estávamos tão cansados quanto eles. Tentamos puxá-los, mas
eles resistiam à nossa força e continuavam a nos puxar para
trás.
"Temos que encontrar outro caminho!", eu gritei.
"É tarde demais. Se voltarmos agora, vamos encontrar Bin
Sadr. Vamos deixar os cavalos." Soltamos os arreios e os
animais desceram para dentro do desfiladeiro e fugiram na
direção dos árabes.
Ficar a pé no deserto é o mesmo que pedir para morrer.
"Estamos perdidos, Ashraf."
"Os deuses te deram duas pernas e inteligência para serem
usadas, certo? Vamos, o destino não nos trouxe tão longe
para acabar com a gente." Ele começou a subir a pé mesmo
quando os árabes chegaram, gritaram em triunfo, e
começaram a atirar na nossa direção. Quando as rochas atrás
de nós começaram a explodir com os tiros, eu encontrei
uma energia que não imaginava ter. Felizmente, eles tiveram
que parar para recarregar e aproveitamos para correr para o
alto. Aquela ladeira íngreme seria um desafio para os
camelos também. Escalamos o último obstáculo e
encontramos um cenário de desolação e nenhuma forma de
vida à vista. Corri para a próxima ravina...
E logo parei impressionado.
Demos de cara com um grupo de pessoas abrigadas numa
das depressões rochosas.
Um grupo de cinqüenta negros estava agachado e a única
parte do corpo visível era o branco dos olhos. O resto era
pó. Só notamos serem negros ao chegarmos mais perto. Eles
estavam nus, com feridas e atormentados por moscas. Todos
estavam presos por grilhões, homens e mulheres. Seus
grandes olhos viraram em nossa direção. Aquelas pessoas
estavam tão chocadas em nos encontrar como nós
estávamos em relação a elas. Meia-dúzia de árabes com
armas e chicotes estavam por perto. Traficantes de escravos!
Os traficantes estavam agachados com suas vítimas, sem
dúvida intrigados pela troca de tiros. Ashraf gritou alguma
coisa em árabe e eles responderam, a conversa parecia
empolgante. Depois de um tempo, ele acenou com a cabeça.
"Eles estavam descendo pelo Nilo e viram os franceses.
Bonaparte tem confiscado as caravanas e libertado os
escravos. Então eles subiram aqui para esperar a passagem de
Desaix e seu exército. Eles ouviram tiros e ficaram
confusos."
"O que vamos fazer?"
Em resposta, Ash apontou seu mosquete calmamente e
atirou. Ele atingiu em cheio o peito do líder da caravana. O
homem caiu para trás sem fazer um pio e, antes que ele
caísse no chão, o mameluco havia sacado duas pistolas e
atirado no rosto do segundo traficante e no ombro do
terceiro.
"Lute!", ele gritou.
O quarto infeliz começava a sacar sua pistola quanto eu o
matei sem pensar. Ash já avançava com sua espada. Em
segundos, o homem ferido e o quinto mercador estavam
mortos e o sexto corria alucinadamente pelo caminho por
onde vieram.
A ferocidade repentina de meu amigo me deixou chocado.
O mameluco foi até o líder e vasculhou o corpo com a ponta
de sua espada. Ele levantou a lâmina e um anel cheio de
chaves. "Estes traficantes são vermes", ele disse, "eles não
capturam seus escravos em batalha, eles compram essas
pessoas em troca de bugigangas e ficam ricos à custa do
sofrimento deles. Eles merecem morrer. Recarregue suas
armas enquanto eu tiro as correntes."
Os negros ficaram tão ansiosos e felizes que enroscaram as
correntes. Ash encontrou dois deles que falavam árabe e deu
ordens diretas. Eles entenderam e gritaram para seus
companheiros em sua língua nativa. O grupo ficou parado o
suficiente para que fossem soltos, e, seguindo as ordens de
Ash, eles pegaram as armas dos árabes, que eu prontamente
recarreguei, e pedras.
Ashraf sorriu para mim. "Agora temos nosso pequeno
exército. Eu disse que os deuses têm seus meios." Ele
gesticulou e levou nossos novos aliados para o alto da
passagem. Nossos perseguidores devem ter parado por causa
dos sons da batalha, mas agora estavam vindo atrás de nós e
puxavam seus camelos relutantes. Ash e eu ficamos
esperando no campo de visão e os capangas de Bin Sadr
gritaram. Eles pareciam tão excitados como se tivessem
avistado um cervo ferido. Acho que aparentávamos estar
debilitados por causa do contraste com o céu azul às nossas
costas.
"Entregue o medalhão e eu prometo não machucar vocês!",
Bin Sadr disse em francês.
"Aí está uma promessa em que eu acredito", eu sussurrei.
"Peça misericórdia ou eu vou queimar você do jeito que
você queimou meu irmão!" Ashraf gritou de volta.
Então, cinqüenta negros recém-libertos surgiram da encosta
e formaram uma linha em cada um dos lados. Os árabes
ficaram parados, sem saber o que fazer, e muito menos
entendendo como eles acabaram entrando em uma
armadilha. Ash deu um comando e os negros urraram. O ar
foi tomado por pedras e pedaços de correntes pesadas.
Enquanto isso, nós dois atiramos. Bin Sadr e outro homem
tombaram. Os escravos nos passaram as armas dos
traficantes mortos e atiramos com elas também. Beduínos e
camelos começaram a rolar gritando de terror. Nossos
perseguidores formaram uma pequena avalanche de
pedregulhos e os que não caíram, mal conseguiam mirar por
causa da péssima posição em que estavam. Outra chuva de
pedras caiu sobre os árabes.
Matamos ou ferimos vários deles em sua fuga. E quando os
sobreviventes se reuniram na base do desfiladeiro eles nos
olharam como cães repreendidos e disciplinados.
Bin Sadr estava segurando o braço.
"A cobra tem a sorte do demônio", eu vociferei. "Eu só o
feri."
"Sempre podemos rezar para que infeccione e gangrene",
Ashraf disse.
"Gage!", Bin Sadr berrou em francês. "Entregue o medalhão!
Você nem sabe para que ele serve!"
"Mande Silano ir para o inferno!", gritei de volta. Nossas
palavras ecoavam no desfiladeiro.
"Entregamos a mulher em troca dele!"
"Diga a Silano que vou buscá-la!"
Os ecos se perdiam. Os árabes ainda tinham mais armas e eu
estava desconfiado sobre como liderar escravos libertos
ladeira abaixo para um combate. Bin Sadr também estava
medindo os riscos. Ele ponderou e montou, nitidamente
sentindo dores. Seus seguidores fizeram o mesmo.
Ele começou a cavalgar para longe, mas virou seu camelo e
olhou para mim. "Quero que você saiba", ele disse, "que seu
amigo Talma gritou antes de morrer!" A palavra morrer
reverberou inúmeras vezes, e parecia não ter fim.
Ele estava fora de alcance agora, mas não longe do meu
campo de visão. Atirei em frustração. A bala bateu a cem
passos de onde ele estava. Ele riu e o som foi amplificado
pelo desfiladeiro, e então o restante de seus capangas trotou
na mesma direção.
"Assim como você também vai", murmurei. "Você também
vai."
Sem cavalos, pegamos dois camelos que os traficantes de
escravos usavam e deixamos os outros quatro com os
libertos. Eles tinham provisões suficientes para iniciar a
longa jornada de volta para sua terra natal. Também
entregamos algumas das armas para caçar e se defender de
outros traficantes que, com certeza, tentariam recapturá-los.
Ensinei a eles como carregar e atirar, tarefa que eles
aprenderam com entusiasmo.
Todos caíram de joelhos para nos agradecer tão
fervorosamente que precisamos levantá-los com dificuldade.
Nós os libertamos, é verdade, mas eles também nos
ajudaram. Ashraf rascunhou ura caminho pelas colinas do
deserto, longe do Nilo, até chegarem à primeira catarata. E
os deixamos.
Foi minha primeira vez num camelo. Um animal tão
barulhento, rabugento e feio que carregava sua própria
comunidade de pulgas e mosquitos-pólvora. Mas ele era bem
treinado e razoavelmente dócil. Seguindo a orientação de
Ash, eu sentei e segurei o arreio enquanto o camelo
levantou. Foram necessários alguns gritos — Hut! Hut! —
para que ele se movesse, mas depois seguiu tranqüilamente o
animal de Ash. O ritmo era diferente, como pequenos
solavancos, e demorou um pouco para me adaptar, mas não
era de todo ruim. Lembrei da sensação de estar num navio
em alto mar. Serviria até encontrar outro cavalo e eu
precisava achar a expedição francesa antes de Bin Sadr.
Seguimos o Nilo até uma balsa e lá atravessamos para o outro
lado do rio.
Cruzamos com a trilha do exército e atravessamos uma
plantação de bananas antes de chegarmos, novamente, ao
deserto e rumar para o oeste. A tarde já avançava quando
encontramos a coluna novamente. Eles acampavam ao
longo do curso do Nilo. Sombras das palmeiras cobriam o
chão.
"Se partirmos agora poderemos entrar nas defesas antes do
pôr-do-sol", eu disse.
"Um bom plano. E deixo em suas mãos, amigo." "O quê?",
fiquei passado.
"Fiz o que precisava fazer: tirar você da cadeia e te guiar até
aqui, certo?" "Mais do que precisava. Estou em débito
contigo."
"Assim como também lhe devo pela minha liberdade,
confiança e companheirismo. Eu estava errado em culpá-lo
pela morte do meu irmão. A maldade acontece e quem sabe
o motivo? Forças opostas agem nesse mundo, sempre em
tensão. O Bem deve combater o Mal, é uma constante. E
vamos combatê-lo, mas cada um a seu modo. Preciso voltar
para o meu povo agora."
"Seu povo?"
"Bin Sadr tem homens demais para manter longe do flanco
francês. Eu ainda sou mameluco, Ethan Gage, e o exército
de Murad Bey está em algum lugar no deserto. Meu irmão
Enoc estava vivo até a França chegar, e temo que muitos
outros morram até que essa presença estrangeira deixe meu
país." "Mas, Ashraf, sou parte desse exército!"
"Não. Você é tão francês quanto mameluco. Você é algo
estranho e deslocado, americano, e foi mandado para cá pela
vontade dos deuses. Não sei ao certo qual será seu papel,
mas sinto que devo deixá-lo para que possa cumprir sua
missão e também acho que o futuro do Egito depende da sua
coragem. Enrão, vá para a sua mulher e faça o que os deuses
dela pedem para ser feito."
"Não! Não somos apenas aliados, somos amigos! Não somos?
E eu já perdi amigos demais! Preciso da sua ajuda, Ashraf.
Vingue a morte de Enoc comigo!"
"A vingança vai acontecer na hora em que os deuses
escolherem. Se não fosse assim, Bin Sadr teria morrido hoje,
mas você não erra quase nunca. Acredito que ele tenha um
destino diferente, talvez algo mais terrível. Enquanto isso, o
que você precisa é descobrir o que esse conde Silano sabe e
cumprir seu destino. O que quer que aconteça em campos
de batalha no futuro não será capaz de alterar os laços que
criamos nestes últimos dias. Que a paz esteja com você,
amigo, até que você encontre o que procura."
E assim ele e seu camelo desapareceram em direção ao pôr-
do-sol. Mais sozinho do que nunca, eu comecei a pensar em
como encontrar Astiza.
Capítulo Vinte
Eu tinha noção exata que entrar galopando na divisão de
Desaix atirando em Silano causaria nada mais que minha
prisão. Mas o que me faltava em poder eu compensava em
posses: eu tinha o medalhão, e meu rival não. Logo notei
que seria mais fácil fazer Silano vir até mim.
Era quase anoitecer quando me aproximei. Eu estava com os
braços erguidos. Vários deles correram com mosquetes, já
que aprenderam a ver a aproximação de qualquer egípcio
como suspeita. Muitos franceses desatentos haviam morrido
numa guerra que ficava cada vez mais cruel.
Assumi o risco de apostar que as notícias de minha fuga do
Cairo não tivessem chegado a estes acampamentos. "Não
atire! Sou o americano recrutado para a companhia de
estudiosos de Berthollet! Fui enviado por Bonaparte para
continuar minhas investigações sobre os antigos!"
Eles me olharam com suspeita. "Por que você está vestido
como um nativo?"
"Você acha que eu ainda estaria vivo sem escolta e vestido
como europeu?"
"Você veio sozinho do Cairo? Ficou maluco?"
"O bote que eu navegava bateu numa rocha e precisou de
reparos. Fiquei impaciente e segui em frente. Espero que
existam ruínas aqui."
"Eu o reconheço", um dos homens disse. "O Homem de
Franklin". Ele cuspiu.
"Sem dúvida você aprecia a oportunidade de estudar o
magnífico passado", disse calmamente.
"Enquanto Murad Bey nos assedia, sempre a alguns
quilômetros adiante, nós o derrotamos. E o rechaçamos de
novo. E de novo. Toda vez ele foge, e depois volta. E a cada
investida mais alguns de nós não voltarão mais à França.
Agora esperamos em ruínas enquanto ele escapa cada vez
mais dentro do deserto deste maldito país. Ele está tão fora
de alcance como uma miragem."
"Se você pelo menos pudesse ver a miragem", outro
completou. "Mil soldados feriram os olhos com a poeira e o
Sol, e outra centena é de mancos e cegos. Parece uma
brincadeira de mau gosto. Preparados para o lugar? Sim,
senhor! Aqui está seu efetivo de mosqueteiros cegos!"
"Cegueira! É o menor dos problemas", incluiu um terceiro.
"Cagamos duas vezes o nosso peso do Cairo até aqui.
Hemorróidas não melhoram. Bolhas viram queimaduras.
Temos até casos de peste. Quem não perdeu meia-dúzia de
quilos só nessa marcha?"
"Ou ficou tão cheio de vontade a ponto de poder trepar com
os ratos ou as mulas?"
Todos os soldados gostavam de reclamar, mas, sem dúvida, a
desilusão com o Egito aumentava. "Talvez Murad esteja
prestes a ser derrotado", eu disse. "Então vamos derrotá-lo!"
Bati no meu rifle. "Meu trabuco teve tanto trabalho quanto o
de vocês, meus amigos."
Agora eles ficaram interessados. "Esse é o rifle longo
americano? Ouvi dizer que ele pode matar um índio a mil
passos."
"Nem tanto, mas se você só puder dar um tiro, esta é a arma!
Há pouco tempo derrubei um camelo a quatrocentos
passos." Não precisava dizer a eles no que eu estava
mirando.
Eles se aproximaram. Homens se unem para admirar boas
ferramentas e, como eu disse, esta era uma bela peça, uma
jóia entre as porcarias dos mosquetes da infantaria.
"Hoje minha arma descansa, pois tenho uma missão
diferente, mas não menos importante. Estou aqui para
conversar com o conde Alessandro Silano. Vocês sabem
onde posso encontrá-lo?"
"No templo, acho", um sargento disse. "Pelo jeito ele quer
morar lá."
"Templo?"
"Longe do rio, depois de uma vila chamada Dendara.
Paramos para que Denon pudesse fazer mais retratos,
Malraux medisse mais pedras e Silano ficasse murmurando
mais feitiços. Belo circo de lunáticos. Pelo menos ele trouxe
uma mulher."
"Uma mulher?" Tentei não demonstrar meu interesse
pessoal.
"Ah, aquela", um soldado concordou. "Dormi com ela nos
meus sonhos". Ele sorriu enquanto gesticulava com o punho
para cima e para baixo.
Resisti à tentação de arrebentá-lo com meu rifle. "Qual o
caminho para o templo?"
"Você pretende ir vestido como um bandido?"
Endireitei a postura. "Acho que pareço um xeique."
Todos gargalharam. Eles indicaram o caminho e ofereceram
escolta, mas eu recusei. "Preciso conversar com o conde
sozinho. Se ele já não estiver nas ruínas e vocês o
encontrarem, transmitam esta mensagem. Digam que ele
pode encontrar o que procura à meia-noite."
Apostava que Silano não me prenderia. Primeiro ele me faria
encontrar o que ambos procuramos e depois o trocaria por
Astiza.
O templo brilhava sob as estrelas e a lua. Era um imenso
santuário com pilastras e um teto reto de pedra. Ele e seus
templos anexos eram unidos por um muro de tijolos de
barro com um quilômetro quadrado de circunferência gasto
e semi-enterrado. O portão principal projetava-se da areia
com espaço apenas para uma pessoa passar por baixo. Tinha
entalhes de deuses egípcios, hieróglifos, um Sol alado
flanqueado por cobras. Mais adiante, o espaço era abundante
em dunas como as ondas do oceano. Uma lua pálida
iluminava a areia tão suavemente quanto a pele de uma
mulher egípcia. Sensual e esculpida. Sim, havia uma coxa,
depois um quadril e um obelisco enterrado parecido com
um mamilo...
Estou longe de Astiza há muito tempo, não estou?
O edifício principal tinha uma fachada lisa, com seis pilares
imensos saindo da areia até o teto de pedra. O topo de cada
coluna exibia a face desgastada de uma deusa robusta. Ou
melhor, quatro faces: em cada pilar ela olhava para os pontos
cardeais. Seu cabelo penteado descia por trás parecendo as
orelhas de uma vaca. Com seu grande sorriso e enormes
olhos amigáveis, Hathor mostrava uma serenidade bovina.
Notei que o cabelo era colorido com tinta apagada, um
indício de que a estrutura havia sido colorida de forma
chamativa. O longo período de abandono do tempo era
aparente pelas dunas que o ocupavam. Sua parte frontal
parecia com uma doca sendo consumida pela maré
crescente.
Olhei ao redor, mas não vi ninguém. Tinha meu rifle, minha
machadinha e nenhum plano definido. Só esperava que este
fosse o templo que acolhesse os seguidores de Min, que
Silano viesse a meu encontro aqui e que eu conseguiria vê-lo
antes que ele me visse.
Subi numa duna e atravessei a entrada central. Por causa do
acumulo de areia eu não fiquei muito distante do teto assim
que entrei. Quando acendi uma vela emprestada pelos
soldados pude admirar um teto pintado de azul e coberto
com estrelas amarelas de cinco pontas. Elas pareciam com
estrelas do mar, ou a cabeça, braços e pernas de homens que
assumiram seus lugares no céu noturno. Também havia
fileiras de urubus, sóis alados com decoração vermelha,
dourada e azul. Embora olhássemos para o teto da Capela
Sistina, o topo do templo era tão decorado quanto ela.
Conforme eu avançava pelo primeiro e maior salão, a areia
diminuía e fui me afastando do teto. Nessa hora comecei a
ter a noção da altura que os pilares realmente tinham. O
interior parecia uma clareira de árvores meticulosamente
adornado e pintado com símbolos. Perambulei admirado por
entre dezoito colunas gigantes, cada uma coroada com uma
das quatro faces da deusa. Os pilares se aproximavam
conforme subiam. Aqui havia uma fileira de cruzes de
ansada, a chave secreta para a vida. As figuras egípcias
imóveis faziam oferendas aos deuses. Havia hieróglifos
indecifráveis. Alguns deles estavam encapsulados em
cilindros que, erroneamente, os franceses tomaram como
cartuchos. Havia pássaros, najas, folhagens e animais velozes
esculpidos.
Cada canto da sala tinha o teto mais elaborado ainda com
decorações dos símbolos do Zodíaco. Uma enorme mulher
nua — esticada como borracha — se enrolava em torno
deles: uma deusa do céu, imaginei. Sem dúvida, a soma de
tudo aquilo era impressionante e estonteante, uma camada
tão grossa de deuses e símbolos que parecia estar andando
dentro de um jornal ancestral. Eu era um homem mudo
numa ópera.
Examinei a área procurando rastros. Nenhum sinal de Silano.
Nos fundos deste grande salão estava a entrada para um
outro ambiente, tão alto quanto, mas menor e mais
intimista. Ela dava acesso a várias outras salas com paredes e
teto igualmente decorados, mas vazias e sem propósito defi-
nido por mais de mil anos. Então surgia um degrau para
outra entrada, e mais um depois daquele, e cada sala ficava
menor que a anterior. Diferentemente de uma catedral
cristã, que ficava mais ampla conforme uma pessoa
avançava, os templos egípcios pareciam encolher. Quanto
mais sagrado fosse o ambiente, menos luz ele tinha e raios
de luz eram exclusivamente projetados para iluminar tais
salas em poucas, e raras, ocasiões num ano.
Poderia ser este o significado de minha data em outubro?
Fiquei tão maravilhado com a decoração que esqueci de
minha missão por um certo tempo. Via cobras e flores de
lótus bruxuleando, barcos flutuando no céu e terríveis e
letais leões. Havia babuínos e hipopótamos, crocodilos e
pássaros exóticos. Homens marchavam carregando
oferendas em gloriosas procissões. Mulheres ofereciam seus
seios assim como suas vidas. Deidades aguardavam opulentas
como imperadores com paciência em poses laterais. Este
mix de animais e deuses com cabeças de feras parecia rude e
idólatra, mas, pela primeira vez, notei como os egípcios
eram bem mais próximos a seus deuses do que somos dos
nossos. Nossos deuses estão no céu, distantes, fora deste
mundo, enquanto os egípcios podiam ver Thoth toda vez
que uma íbis pisasse num lago. Eles podiam ver Horus em
cada vôo do falcão. Eles podiam dizer aos vizinhos que
haviam conversado com uma moita em chamas e todos
aceitariam serenamente.
Ainda não havia sinal de Silano ou Astiza. Será que os
soldados me enganaram? Ou eu estava entrando direto numa
armadilha? Pensei ter ouvido passos, mas quando prestei
mais atenção não havia nada. Encontrei uma escada e
comecei a subir num padrão tortuoso como um falcão em
ascensão. As paredes eram pintadas com uma longa
procissão de oferendas escada acima. Devem ter acontecido
cerimônias lá em cima. Cheguei ao teto do templo, que era
cercado por um baixo parapeito. Mais uma vez, fiquei sem
saber para que estava olhando: eu andava entre pequenos
santuários. Em um deles, pequenos pilares encimados por
Hathor formavam uma cena semelhante a um gazebo que
lembrava um parque em Paris. No canto noroeste havia uma
porta que levava a um santuário com duas salas. Um
desenho em baixo-relevo na câmara interna mostrava um
faraó, ou um deus, se levantando dos mortos e mais que uma
maneira: seu pênis estava ereto e triunfante. Ele me lembrou
o intumescente deus Min. Poderia ser a lenda de Ísis e Osíris
que me contaram quando vinha para o Egito? Um falcão
flutuava sobre o ser recém-ressuscitado. Novamente, minha
mente fraca não encontrava nenhuma pista útil.
Por outro lado, a câmara externa me deixou empolgado. No
teto, duas mulheres nuas flanqueavam uma espetacular
saliência cheia de figuras. Depois de estudá-la por um
tempo, decidi que o desenho deveria significar a
representação do céu sagrado. Elevado por quatro deusas e
oito representações de Horus e suas cabeças de falcão —
seriam uma representação dos doze meses? — havia um
disco circular pintado em azul e amarelo que simbolizava o
paraíso. Olhei para os símbolos do Zodíaco de novo, não
muito diferente da versão conhecida pelo mundo moderno:
o touro, o leão, o caranguejo, os peixes gêmeos. Havia uma
série de trinta e seis figuras, homens e animais, na
circunferência. Poderia representar a semana de dez dias
egípcia e francesa?
Cocei o pescoço enquanto tentava encontrar alguma lógica
para tudo isso. No eixo nordeste do tempo estava a figura de
Horus, o falcão, que parecia ancorar todos os demais. Para o
leste estava Taurus, o touro, representando a Era em que as
pirâmides foram construídas. No sul estava a criatura meio-
peixe e meio-cabra, e perto dela, um homem jogava água de
duas jarras... Aquário! Este era o símbolo da Era do Futuro,
séculos atrás, e também representava a vital cheia do Nilo.
Aquário, como o símbolo da água no medalhão, e Aquário,
como o signo no calendário perdido no L'Orient que me
levou a indicação de vinte e um de outubro.
A abóbada do telhado me lembrou uma bússola. Aquário era
direcionado a sudoeste.
Precisava sair um pouco para tentar encontrar a direção
certa. Uma escada de pedra levava até o parapeito na parte
traseira do templo, então subi para olhar. A sudoeste havia
outro templo menor, mais decaído do que este em que eu
estava. Enoc disse que haveria um pequeno templo de Ísis e,
lá dentro talvez, o misterioso cajado de Min. Depois dele
restavam apenas as dunas sobre o muro de proteção e
colinas distantes brilhavam prateadas sob as estrelas gélidas.
Senti o medalhão no meu peito. Seria eu capaz de completá-
lo?
Um segundo lance de escadas me levou de volta ao térreo.
Era tão íngreme que eu parecia mergulhar com o falcão que
havia subido do outro lado. Nenhum homem com oferendas
descia. Estava no templo principal novamente, mas uma
porta levava à areia. Olhei para cima e vi o muro do templo
com duas cabeças de leão ameaçadoras como gárgulas.
Meu rifle estava pronto. Andei para os fundos na direção do
templo menor que eu havia visto. Palmeiras haviam crescido
nas ruínas do lago sagrado à minha direita. Tentei imaginar
este lugar em seu tempo de glória, sem a invasão das dunas,
com caminhos pavimentados e brilhantes, jardins bem
cuidados e um lado cintilante com sacerdotes se banhando.
Que oásis deve ter sido! Agora, ruínas. Na traseira do templo
eu virei e parei abruptamente. Figuras gigantescas estavam
esculpidas no muro. Elas tinham dez metros de altura. Pelas
coroas, imaginei serem um rei e uma rainha que faziam
oferendas a uma deusa de seios fartos, talvez Hathor ou Ísis.
A rainha era uma mulher esguia e estilizada com uma coroa
vertiginosa, braços lisos e pernas longas e magras. Sua peruca
era trançada e um tipo de naja dourada pousava sobre sua
testa.
"Cleópatra", respirei fundo. Se Enoc estiver certo tinha que
ser ela! Ela estava no lado oposto a seu pequeno templo de
Isis, o que significava uns vinte metros a sul da construção
principal.
Olhem em volta. Exceto por mim, o complexo continuava
sem vida. Tive o pressentimento de que o lugar estava em
suspensão, esperando. Pelo quê?
O templo de Isis foi construído num terreno mais elevado,
por isso havia um canal de areia entre ele e a escultura de
Cleópatra. Metade do pequeno templo era um santuário
murado como o maior. A outra metade estava exposta e
semi-arruinada, nada mais que uma massa obscurecida de
pilares e vigas a céu aberto. Escalei alguns blocos quebrados
até a porta da área murada. "Silano?" O eco da minha
pergunta voltou para mim.
Mesmo hesitante, entrei. Estava muito escuro e a única luz
vinha da porta e de outras duas aberturas que mal permitiam
a entrada de pombos. A altura da sala era maior que sua
largura e comprimento, o que gerava uma sensação
claustrofóbica, além de ter um cheiro cáustico.
Dei mais um passo.
De repente, uma revolução de asas se manifestou e abaixei
instintivamente. Um vento morno me atingiu e apagou
minha luz. Os morcegos passaram chiando e batendo em
minha cabeça com o couro de suas asas. Então, eles se
afunilaram até a saída. Reacendi minha vela. Minha mão
tremia.
Mais uma vez deparei-me com paredes repletas de entalhes
e traços de tinta antiga. Uma mulher dominava as cenas. Ísis.
Não vi sinal de Min e seu cajado, ou qualquer outra coisa.
Será que eu estava caçando o vento? Eu sempre tive a
sensação de estar tateando às cegas com pistas que nenhum
homem racional conseguia entender. O que eu deveria ver?
Finalmente percebi que esta sala era consideravelmente
menor que o perímetro do templo, ou seja, tinha que existir
outra sala. Voltei para o pórtico e descobri uma segunda
porta e outra sala alta, mais estreita que a primeira e tão
abafada quanto. Esta, entretanto, tinha uma mesa de pedra,
como um altar. O pedestal tinha o tamanho de uma pequena
escrivaninha e ficava posicionado no centro do ambiente.
Era lisa, intocada e eu teria passado direto não fosse uma
ocorrência peculiar: conforme me curvei sobre o altar, a
corrente se soltou do meu pescoço, bateu no pedestal, o
medalhão se soltou e caiu no chão de pedra sem fazer um
ruído sequer. Isso nunca tinha acontecido antes. Xinguei
alto, mas quando abaixei para pegá-lo, o que vi me deixou
estarrecido.
Duas letras V esmaecidas pelo tempo estavam gravadas na
laje do chão. Uma sobrepunha a outra como compasso e
esquadro. Os egípcios tinham esse estilo geométrico, mas a
semelhança era clara.
"Pelo Grande Arquiteto", falei baixo. "Como pode?" Lembrei
da estrutura de Enoc: A cripta vai guiá-lo ao paraíso.
Coloquei o medalhão novamente e bati o pé no piso. Ele se
moveu. Havia um espaço oco ali embaixo.
Ajoelhei empolgado. Deixei o rifle de lado e usei a lâmina da
machadinha para conseguir segurar a laje. Ela subiu como
uma porta pesada e soltou uma brisa de ar estagnado -
indício claro de que ela não havia sido aberta por um longo
tempo. Com a ajuda da vela, olhei lá dentro. A luz dançava
contra o chão lá embaixo. Seria um tesouro? Deixei a arma
de lado por um momento e deslizei um pé primeiro. Soltei.
Despenquei três metros e caí como um gato. Meu coração
estava acelerado ao extremo. Olhei para cima. Seria fácil
demais para Silano colocar a placa no lugar se estivesse me
vigiando. Ou ele estava esperando para ver o que eu
encontraria?
Havia passagens para duas direções.
Novamente dei de cara com um turbilhão de gravuras. O
teto continha um campo de estrelas de cinco pontas. As
paredes eram repletas de deuses, deusas, falcões, abutres,
cobras. Os motivos se repetiam ininterruptamente. A
primeira passagem virava um beco sem saída e terminava
num monte de ânforas de barro. Eles eram sujos, opacos e
não aparentavam conter nada de valor. Só para ter certeza
usei a machadinha para abrir uma delas. Quando ela rachou,
levantei a vela.
Pulei assustado. Dei de cara com o rosto horripilante de um
babuíno mumificado e suas enormes órbitas oculares vazias.
A mandíbula mostrando os dentes completava a cena. Que
diabos?
Quebrei outra jarra e encontrei outro babuíno. Pelo que
lembrava, era outro símbolo para o deus Thoth. Então esta
era uma catacumba bizarra cheia de múmias de animais.
Seriam oferendas? Levantei a vela para perto do teto e vi que
o corredor acabava ali mesmo, mas pequenas coisas se
moviam nas sombras. Pareciam insetos.
Dei meia volta e segui em direção a outra passagem.
Comecei a querer sair da cripta o mais rápido possível, mas
se a pista de Enoc tivesse algum uso, ele estaria aqui
embaixo. Porém, não poderia ficar muito tempo: a haste da
vela diminuía cada vez mais. Notei que havia mais
movimento, algo rastejava pelo chão.
Conferi com a luz fraca da vela e vi rastros de uma cobra na
areia e também uma rachadura por onde ela deve ter se
esgueirado. Eu estava suando. Bin Sadr estava aqui também?
Por que eu deixei o bendito rifle?
E então algo brilhou.
O segundo túnel acabou, mas sem jarros desta vez. Em vez
disso, encontrei uma representação da agora familiar figura
fálica de Min - provavelmente um elemento de grande
fascínio para a sensual Cleópatra. Ele era rijo como uma
tábua. Em mais de um sentido. Seu membro era ereto e...
brilhava impressionantemente.
Min não era ornamentado com tinta, mas sim com ouro. Seu
falo era delineado com dois bastões de ouro. Uma das pontas
deste par de "cajados de Min" era ligada a uma dobradiça —
metade obscenidade e metade instrumento da vida. Uma
pessoa que não conhecesse o enigma do medalhão
consideraria a peça como mero ornamento sagrado.
Mas acho que Cleópatra tinha outra coisa em mente. Talvez
ela tenha deixado esta peça no Egito, caso ela realmente o
tenha levado a Roma, para garantir que o segredo ficasse
seguro em sua terra natal. Forcei o membro dourado até que
ele saísse na minha mão e depois me concentrei na
dobradiça. Agora as hastes douradas formavam um V. Peguei
o medalhão, abri seus braços e o deitei atravessando este
novo V. Quando criei um símbolo familiar à maçonaria - um
compasso cruzado com um esquadro - os entalhes dos
braços do medalhão encaixaram. O resultado foi um
diamante de braços sobrepostos balançando sob o disco,
mas, é claro, sem a letra 'G'.
Esplêndido. O medalhão estava completo e, talvez, eu
tivesse acabado de encontrar a origem de um símbolo da
minha fraternidade.
E ainda não fazia idéia do que ele significava.
"Ethan".
O som era fraco, quase um suspiro ao vento, mas era a voz
de Astiza. Eu sabia que o chamado vinha de algum lugar lá
fora. Foi como se eu tivesse sido atingido por um raio.
Coloquei o recém-completado medalhão no pescoço e corri
em direção à passagem. Para meu alívio, vi que a tampa
ainda estava aberta e consegui sair rápido da cripta. Minha
arma estava intocada onde eu a havia deixado. Peguei o rifle
e agachei. Tudo estava em silêncio. O chamado de Astiza
teria sido fruto da minha imaginação? Rapidamente, fui em
direção à entrada e espiei com cuidado o lado de fora. Pude
ver Cleópatra no muro do templo principal.
"Ethan?" Era quase um soluço e vinha dos pilares próximos à
câmara em que eu estava.
Saí do templo e avancei tão silencioso quanto um índio. O
rifle estava em prontidão.
"Astiza?" Minha voz ecoava entre as colunas. "Você
conseguiu?"
Dei a volta em um pilar e lá estava ela. Eu parei, confuso.
Ela estava vestida como as mulheres em minhas fantasias
sobre os haréns. Sua roupa de linho era transparente, podia
ver suas pernas através do vestido, ela usava jóias pesadas e
tinha os olhos maquiados. Sem dúvida, vestida para seduzir.
Ela estava com braços levantados, pois seus pulsos estavam
acorrentados a grilhões que estavam presos a uma viga de
pedra mais acima. Por conta da posição seus seios estavam
levantados e ela se contorcia um pouco. O efeito era uma
inevitável sensação erótica de desamparo — o retrato
clássico da princesa em perigo. Parei estupefato por esta
aparição saída de um conto de fadas. Ela parecia pálida.
"Ele está completo?", ela perguntou baixinho.
"Por que você está vestida assim?" Tinha centenas de
perguntas pipocando em minha cabeça como bolas na tacada
inicial do bilhar, mas esta foi a mais realista que surgiu. Eu
podia jurar que estava alucinado.
A resposta veio com a ponta de uma espada pressionando
minhas costas. "Porque ela é a distração", o Silano sussurrou.
"Solte o rifle, monsieur." Ele apertou a espada um pouco
mais. Desta vez doeu.
Tentei pensar. A arma fez um baque seco quando caiu no
chão.
"Agora, o medalhão."
"É seu, se você desacorrentar Astiza e deixar a gente partir",
tentei.
"Soltá-la? Mas por que se ela pode simplesmente abaixar os
braços?"
E quando Astiza obedeceu, seus punhos simplesmente se
soltaram dos grilhões. Sua expressão era de pena. As
correntes caíram levemente. Era tudo falso. Os véus
cobriam o corpo dela como a uma estátua clássica e suas
roupas íntimas chamavam atenção apenas para os lugares
que cobriam. Ela aparentava estar embaraçada por causa do
engodo.
Fui um tolo, mais uma vez.
"Você já percebeu que ela está comigo agora, certo?", Silano
disse. "Mas você é americano, não é? Muito direto,
confiante, idealista e ingênuo? Você viajou até aqui
fantasiando sobre como resgatá-la? Você não só nunca
entendeu o medalhão como nunca entendeu Astiza."
"É mentira." Olhei para ela enquanto falava. Esperava uma
confirmação. Ela permaneceu tremendo, massageando os
pulsos.
"Será?", Silano disse atrás de mim. "Vamos entender a
verdade. Talma foi a Alexandria fazer perguntas sobre ela
não por ser seu amigo, mas por que ele era um agente de
Napoleão."
"Outra mentira. Ele era um jornalista."
"Que fez um acordo com o córsico e seus cientistas. Ele
prometeu ficar de olho em você em troca de participação
nas grandes decisões da expedição. Bonaparte quer descobrir
o segredo, mas não confia em ninguém. Então, Talma
poderia vir se espionasse você. Entretanto, o jornalista
suspeitava de Astiza desde o início. Quem era ela? Por que
ela tinha vindo com você como um cão obediente,
acompanhando um exército, entrando para um harém? Por
afeição ao seu charme desajeitado? Ou pelo fato de ela ter
trabalhado para mim o tempo todo?"
Ele certamente gostava de se gabar. Astiza olhava para as
colunas arruinadas.
"Meu caro Gage, você por acaso entendeu alguma coisa do
que aconteceu com você? O jornalista descobriu algo
perturbador sobre nossa bruxa Alexandrina: que,
diferentemente do que ela te disse, quem a alertou sobre sua
chegada não foram os ciganos. Fui eu. Sim, estávamos em
contato. Porém, em vez de te matar, como eu recomendei,
ela queria te usar para descobrir o segredo. Quando
desembarquei em Alexandria, Talma pensou que pudesse me
espionar também, mas Bin Sadr o pegou. Eu disse àquele
tolo que se juntasse a mim - poderíamos vender o segredo
pelo preço mais alto para um rei ou general, inclusive
Bonaparte -, mas não houve argumento com ele. Ele
ameaçou ir até Bonaparte e nos denunciar. Ele também
insistiu na fantasia de que o medalhão estava perdido, mas
dei a ele uma última chance de pegar de quem quer que o
possuísse, mas ele se recusou. No fim das contas, o pequeno
hipocondríaco foi mais leal do que você merecia, e um
patriota francês convicto."
"E você não é." Minha voz estava fria.
"Minha família perdeu tudo que tinha com a Revolução.
Você acha que eu tenho contato com a ralé por ligar para a
liberdade? A liberdade deles tomou tudo de mim e agora vou
usá-los para conseguir tudo de volta. Eu não trabalho por
Bonaparte, Ethan Gage. Sem saber, Bonaparte trabalha para
mim."
"Aí você mandou Talma para mim numa jarra." Eu estava
muito tenso, com os punhos tão cerrados que meus dedos
estavam brancos. O céu pareciase mover e as correntes
lembravam um pêndulo num dos truques de Mesmer. Eu só
tinha uma chance.
"Uma baixa de guerra", Silano respondeu. "Se ele tivesse me
escutado, ele estaria mais rico que Croesus ."
"Mas eu não entendo. Por que seu lanterneiro Bin Sadr
simplesmente não pegou o medalhão naquela primeira noite
em Paris, no momento em que coloquei o pé na rua?"
"Porque eu pensei que você o tinha dado para a puta e não
sabíamos onde ela morava. Mas ela não disse nada mesmo
quando o árabe a degolou. E meus homens também não
acharam nada no seu apartamento. Francamente, eu nem
tinha certeza da importância do medalhão — só confirmei
isso depois de fazer algumas perguntas. Eu achava que
poderia tirar de você numa prisão, mas você fugiu em
conluio com Talma e estava a caminho do Egito como um
estudioso - que beleza! - antes que eu tivesse certeza de que
aquela quinquilharia era o que todos nós estávamos
procurando. Eu ainda não sei onde você escondeu o
medalhão naquela primeira noite."
"No meu penico."
Ele riu. "Ironia, ironia! A chave para o maior tesouro da
Terra e você o cobriu com merda! Que palhaço. Mas que
sorte você teve, devo admitir, já que escapou das
emboscadas em Toulon e em Alexandria, fugiu de cobras,
saiu ileso de grandes batalhas e chegou até aqui. Você é
muito sortudo! E, no fim das contas, você chega até mim
trazendo o medalhão. Tudo por uma mulher que não
permitiu ser tocada por você! A mente masculina! Ela disse
que só precisaríamos esperar, contanto que Bin Sadr não o
pegasse primeiro. Aliás, ele te achou?"
"Eu atirei nele."
"Sério? Uma pena. Você tem causado muitos problemas,
Ethan Gage." "Ele sobreviveu."
"Mas é claro. Ele sempre sobrevive. Você não vai gostar de
encontrá-lo novamente."
"Não esqueça que ainda estou na companhia dos cientistas,
Silano. Você quer responder a Monge e Berthollet pela
minha morte? Bonaparte dá ouvidos a eles, e ele tem um
exército. Você vai para a forca se me ferir."
"Acredito que isso se chame autodefesa." Ele empurrou
levemente sua espada e senti uma pontada. E uma gota de
meu sangue. "Ou seria a tentativa de capturar um fugitivo da
justiça revolucionária? Ou um homem que mentiu sobre ter
perdido o medalhão mágico para mantê-lo para si mesmo?
Qualquer um vai servir. Mas sou um nobre e tenho meu
próprio código de honra, então me deixe oferecer minha
misericórdia. Você é um fugitivo procurado, sem amigos ou
aliados, e não ameaça mais ninguém, se é que algum dia
ameaçou. Então, eu fico com o medalhão... em troca de sua
vida. Se você prometer me contar o que Enoc descobriu."
"O que Enoc descobriu?" Do que ele estava falando?
"Seu debilitado mentor pulou numa fogueira com um livro
antes que pudéssemos torturá-lo. Soldados franceses estavam
chegando. Então, o que havia no livro?"
O vilão se referia ao triste apego de Enoc ao livro de poesia
árabe. Eu estava suando. "Eu ainda quero a mulher."
"Mas ela não quer você, quer? Alguma vez ela disse que
vocês eram amantes?"
Olhei para ela. Astiza estava se segurando com as mãos em
uma das algemas, e nos olhava com pesar. "Ethan, era o
único jeito", ela suspirou.
Provei da mesma desilusão que Bonaparte havia
experimentado quando ficou sabendo da traição de Josefina.
Cheguei tão longe por isso? Para ficar sob a ponta da espada
de um aristocrata arrogante? Ser humilhado por uma
mulher? Privado de tudo pelo que havia lutado? "Tudo bem."
Minhas mãos foram para o meu pescoço e tirei o talismã.
Segurei o objeto na minha frente como se fosse um pêndulo.
Mesmo de noite ele brilhava gélidamente. Notei que os dois
engoliram a seco quando viram o novo formato. Eles me
guiaram e eu havia encontrado a parte que faltava.
"Então é a chave", Silano ofegava. "Agora tudo que temos de
fazer é compreender os números. Você vai me ajudar,
sacerdotisa. Gage? Vire devagar e entregue o medalhão."
Eu obedeci, movendo-me um pouco para longe de seu
florete. Eu só precisava de uma leve distração. "Você não
está mais próximo de resolver o mistério do que eu estou",
avisei.
"Não estou? Eu resolvi muito mais que você. Minha jornada
pelo Mediterrâneo me levou a muitos templos e bibliotecas.
Encontrei evidências de que a chave estaria em Dendara, o
templo de Cleópatra. Sabia que deveria olhar para Aquário.
E, aqui no sul, encontrei o templo da própria Cleópatra, que
idolatrava a adorável e todo-poderosa Ísis, Hathor, sua
cabeça de vaca e suas orelhas e tetas bovinas. Ainda assim,
não sabia o que procurar."
"Há uma cripta com o deus fálico, Min. O pedaço que faltava
estava lá."
"Que sábio de sua parte encontrá-lo. Agora passe para cá."
Lentamente, ainda sob a ameaça do florete, entreguei a ele.
Ele pegou com a voracidade de uma criança triunfante.
Quando ele o levantou, o símbolo dos maçons parecia
dançar. "Estranho como a memória sagrada é transmitida
mesmo por aqueles que não compreendem suas origens, não
é?", Silano disse.
E foi naquela hora que eu ataquei.
A machadinha esteve a milímetros da ponta da espada nas
minhas costas. Só precisava de um instante para pegá-la —
justamente quando estava de frente para ele e sua atenção
triunfante estava voltada para o medalhão. O teste, porém,
seria saber se Astiza gritaria quando visse o que eu estava
fazendo.
Ela não gritou.
O que quer dizer que, talvez, ela não estivesse do lado de
Silano, afinal de contas. Que aquele homem fosse um
mentiroso. E que eu não era tão imbecil.
Fui rápido. Muito rápido. Mas Silano foi mais rápido. Ele se
abaixou e a machadinha passou girando perto de sua orelha e
foi parar na areia. Mesmo assim, o arremesso tinha
desequilibrado o conde, que precisou de um instante para se
recuperar. Era o suficiente para pegar meu rifle! Eu
levantei...
E ele avançou, ágil e certeiro, colocando a lâmina de seu
florete dentro da boca do meu rifle. " Touché, monsieur
Gage. E agora estamos num impasse, não é?"
Acho que parecíamos ridículos. Eu estava paralisado com
meu trabuco apontado para o peito dele. Ele também ficou
parado, perfeitamente equilibrado, com a espada na boca da
minha arma.
"Exceto", ele continuou, "por eu ter uma pistola". E colocou
a mão dentro do casaco.
Então eu apertei o gatilho.
Meu rifle explodiu, levei um solavanco forte e fragmentos
do cano e da espada voaram sobre a cabeça de Silano. Nós
dois saímos rolando. Minhas orelhas zuniam e meu rosto
estava cheio de cortes por causa da explosão.
Silano berrou.
E houve um chiado e um estrondo.
Olhei para cima. Uma coluna de pedra, precariamente
equilibrada e semi-deslocada por algum terremoto distante,
balançava. Uma corrente estava enrolada em volta da rocha
e Astiza puxava com toda a sua força.
"Você moveu as correntes", Silano disse estupidamente
olhando confuso para Astiza.
"Sansão", ela respondeu.
"Você vai matar todos nós!"
O bloco deslizou da coluna e caiu como um martelo batendo
num pilar inclinado e iniciando sua queda também. As
colunas de sustentação eram um castelo de cartas. Houve
um chiado forte e outros sons crescentes conforme toda a
parte superior do edifício começava a ruir. Saí dali o mais
rápido que pude enquanto toneladas de rocha despencavam
e chegavam a deslocar o solo. Ouvi um estalo quando a
pistola de Silano disparou e pedaços de rocha voaram como
estilhaços de metralhas, mas o som foi abafado pela queda
das colunas que rolavam e se amontoavam.
Astiza surgiu e começou a me puxar para a borda da
plataforma do templo em meio a todo o caos. "Corra, corra!
O barulho vai atrair os franceses!" Pulamos e uma nuvem de
poeira nos acompanhou conforme a seção de um dos pilares
caia sobre nós como um rolo compressor. Ele bateu nos pés
de Cleópatra. Enquanto isso, na sacada destruída, Silano
gritava e amaldiçoava. Sua voz vinha do meio daquela
bagunça de poeira, areia e destroços.
Ela parou e me devolveu a machadinha. "Podemos precisar
disso."
Perplexo, olhei para ela. "Você derrubou todo o templo."
"Ele esqueceu de cortar meu cabelo. Ou de segurar seu
prêmio." O medalhão, grande e desajeitado com seu novo
formato, balançava em seu punho como um brinquedo.
Levantei a machadinha. "Vamos voltar e acabar com ele."
Mas ouvimos gritos dos franceses vindo da frente do
complexo de templos e tiros de aviso das sentinelas. Ela
balançou a cabeça. "Não temos tempo."
Então nós corremos, saindo por um portão traseiro no muro
oeste e fomos em direção ao deserto. Sem armas, sem
cavalos, sem comida, sem água e sem roupas adequadas.
Ouvimos tiros e mais tiros, mas nenhuma bala passou perto.
"Depressa", ela disse. "O Nilo está quase no máximo!"
O que aquilo significava?
Não tínhamos nada, a não ser minha machadinha e o
medalhão amaldiçoado. E tínhamos um ao outro.
Mas, na verdade, quem era a mulher que eu havia salvado e
que também tinha me salvado?
Capítulo Vinte e Um
As águas do Nilo estavam altas, marrons e poderosas. Era
outubro, o período da cheia anual, e a data sugerida pelo
calendário circular se aproximava. Roubamos um pequeno
barco e descemos pelo rio em direção à Grande Pirâmide,
onde Monge imaginou que a chave para este enigma
pudesse estar. Era a última chance de resolver o assunto, se
não fosse possível, eu seguiria meu caminho até o
Mediterrâneo. Só não tinha a menor idéia se a mulher
estranha que estava ao meu lado me acompanharia.
Quando o Sol nasceu já estávamos há milhas de distância do
exército de Desaix por causa da corrente. Eu podia ter
relaxado, mas aí surgiu um batedor francês galopando pela
margem do rio, olhou para nós, e depois trotou para longe
quando seguimos por um braço do rio. Sem dúvida ele sabia
de nossa fuga. Baixei o botaló para que a vela nos desse mais
velocidade. O barco inclinou um pouco com o forte vento e
a água assobiava nas laterais conforme avançávamos.
Passamos por um crocodilo que bocejava. Sua aparência era
pré-histórica e horrenda. A água batia em seus escamas e
seus olhos de pálpebras amarelas nos contemplavam. Bom,
comparado a Silano, ficar ao lado dele é mais reconfortante.
Que belo par, heim? Eu vestia roupas árabes e Astiza parecia
uma cortesã real e estávamos a bordo de uma felucca
enlameada que fedia a peixe. Ela tinha falado pouco depois
que nos reencontramos, ficava olhando para o Nilo e
alisando o medalhão - agora em seu pescoço - com seus
dedos. Parecia até que ela era a dona. Eu não havia pedido
de volta. Ainda.
"Andei muito para achar você", eu finalmente toquei no
assunto.
"Você seguiu a estrela de Ísis."
"Mas você não estava acorrentada como parecia."
"Não. Nada era o que parecia. Eu, você, e ele."
"Você já conhecia Silano?"
Ela suspirou. "Ele era mestre e amante antes de se dedicar às
artes das trevas. Ele acreditava que a magia do Egito é tão
real quanto Berthollet acredita na química. Ele esperava
encontrar segredos ocultos aqui se seguisse os passos de
Cagliostro e Kolmer. Ele não dava a mínima para o mundo.
E só pensava apenas nele por causa da mágoa que ele tem
por ter perdido tudo na Revolução. Quando percebi o quão
egoísta ele era, nós brigamos. Fugi para Alexandria e
encontrei abrigo com meu novo mestre, o Guardião. Os
sonhos de Silano são superficiais. Alessandro quer os
segredos do Egito para ser poderoso, talvez imortal, então eu
fiz jogo duplo."
"Ele te comprou de Yusuf?"
"Sim. Foi propina para o velho libertino."
"Libertino?"
"Yusuf não era tão altruísta. Eu precisava sair de lá. Ele viu
meu livro. "Não se preocupe, ele não me tocou."
"Então você voltou para seu antigo amante."
"Você não voltou das pirâmides. Silano me disse que não te
encontrou na casa de Enoc. Ir com o conde era o único jeito
de fazer algum progresso sobre o medalhão. Nenhum de nós
sabia sobre Dendara, ele sim. O lugar estava esquecido por
séculos. Eu falei para Alessandro que você estava com o
medalhão e então ele deixou aquela mensagem para você
saber onde me achar no harém. Nós dois sabíamos que você
viria atrás da gente. E então eu pude cavalgar sem estar
amarrada. Os franceses fariam muitas perguntas se me
vissem presa."
Alessandro! Não gostou de ver tanta intimidade ao usar o
primeiro nome. "E então você derrubou o templo em cima
dele."
"Ele acredita que é irresistível. Assim como você."
E ela também, brincando com nós dois como meios para
seus propósitos. "Você perguntou em que eu acreditava,
Astiza. Em quem você acredita?" Como assim?
"Você ajudou Silano por que também quer o segredo."
"Claro. Mas quero guardá-lo, não vender para algum tirano
mesquinho como Bonaparte. Você consegue imaginar
aquele homem no comando de um exército de imortais? Em
seu apogeu, o Egito era defendido por um exército de apenas
vinte mil homens e parecia imbatível. Aí então alguma coisa
aconteceu, algo se perdeu, e as invasões começaram."
"Ficando ao lado dos homens que assassinaram Talma..."
"Silano sabia de coisas que eu desconhecia e vice-versa.
Você teria encontrado o Templo de Dendara sozinho? Não
sabíamos a qual templo os livros de Enoc se referiam, mas
Silano sabia por causa dos estudos em Roma, Istambul e
Jerusalém. Nunca teríamos encontrado os outros braços do
medalhão sozinhos, do mesmo jeito que ele não o
conseguiria completar sem você e Enoc. Você tinha algumas
pistas. Ele outras. Os deuses fizeram nossos caminhos se
cruzarem."
"Os deuses, ou o Rito Egípcio? Não foi nenhum cigano que
contou sobre minha viagem ao Egito."
Ela olhou para longe. "Eu não podia contar a verdade porque
você entenderia tudo errado. Alessandro mentiu dizendo
que você tinha roubado o medalhão dele. Fiz de conta que o
ajudaria para poder usá-lo. Você sobreviveu à tentativa de
assassinato. E então Enoc convenceu Ashraf a tentar te
encontrar no meio da batalha - você, o homem com a casaca
verde, que, convenientemente, chamava a atenção em cima
de uma carreta. Ele queria ver esse medalhão que tinha
deixado todos nós curiosos. Tudo aconteceu como deveria
ter acontecido, menos a morte do pobre Talma."
Minha mente estava alucinada. Talvez eu fosse mesmo
ingênuo. "Então somos todos ferramentas para você: eu pelo
medalhão e Silano pelo conhecimento do ocultismo? Sem
diferenças. Apenas peças para serem usadas?"
"Eu não me apaixonei por Silano."
"Eu não disse que você estava apaixonada por ele, eu disse..."
Parei. Ela estava olhando para longe de mim. Astiza estava
tensa, tremia e seu longo cabelo dançava ao vento morno
que provocava pequenas ondas no rio. Apaixonada? Por ele.
Isso queria dizer que, talvez, minha insistência, meu charme
e minhas boas intenções tinham servido para algo? Eu
realmente não a conhecia. E o amor era um terreno muito
perigoso para um homem como eu, sem dúvida, uma
perspectiva mais apavorante que uma carga mameluca ou
uma salva de canhões navais. Que diabos eu realmente
sentia por esta mulher que parecia ter me traído, mas talvez
não tenha?
"Quero dizer que também não me apaixonei por ninguém",
pisei em falso. A resposta não foi das melhores. "Na verdade,
nem sei se o amor existe."
Ela me provocou. "Como você sabe que a eletricidade existe,
Ethan?"
"Bem." De fato, era uma ótima pergunta, já que ela é
naturalmente invisível. "Por faíscas, acredito. Você pode
senti-la. Ou por um relâmpago."
"Exatamente." Agora ela olhava para mim e sorria como a
Esfinge — enigmática e inalcançável. Agora a porta estava
aberta e tudo que eu precisava era dar um passo para dentro.
O que Berthollet tinha dito sobre meu caráter mesmo? Que
eu ainda não tinha compreendido meu potencial? Agora era
a chance de crescer, de me comprometer não com um ideal,
mas com uma pessoa.
"Eu nem sei de que lado você está", vacilei.
"Estou do seu lado."
Que lado seria esse? Então, antes que a conversa nos levasse
a algum tipo de desfecho agradável, ouvi o estalo de um tiro
vindo do rio.
Olha rio abaixo. Uma felucca vinha em nossa direção, sua
vela estava esticada e o passadiço lotado de homens.
Consegui reconhecer o braço enfaixado de Achmed Bin
Sadr mesmo a uma distância de trezentos metros. Por toda a
porcelana da China não era possível me livrar deste homem?
Não me sentia tão incomodado com a presença de alguém
desde que Franklin recebeu John Adams para jantar e eu
tive de escutar suas opiniões irritantes sobre metade dos
políticos dos Estados Unidos.
A única arma que tínhamos era minha machadinha e ela não
ajudaria em nada. Virei o leme e levei o barco para a
margem. Talvez encontrássemos uma caverna para nos
escondermos. Mas não seria possível, já que um esquadrão
de hussares de casacas vermelhas e azuis descia velozmente
a nosso encontro no banco de areia. Cavalaria francesa! Não
desci nem trinta kilômetros?
Pensando bem, melhor eles que Bin Sadr. Eu seria levado a
Bonaparte, enquanto o árabe faria coisas comigo e com
Astiza que eu nem queria imaginar. Quando chegássemos a
Napoleão, ela poderia simplesmente dizer que foi
seqüestrada e eu confirmaria. Pensei bastante em pegar o
medalhão daquele belo pescocinho e jogá-lo no Nilo, mas
não conseguiria. Já tinha apostado muito naquilo. Além
disso, como todo mundo, eu também estava curioso para
descobrir seu segredo. Ele era nosso único mapa para o
Livro de Thoth.
"É melhor você esconder isso", eu disse. Ela o escondeu
entre seus seios.
Aportamos em um banco de areia e deixamos o barco. A
felucca de Bin Sadr ainda estava brigando contra a
correnteza para subir até nossa posição. Os árabes gritavam e
atiravam para o alto. Os doze cavaleiros franceses formaram
um semicírculo em nossa volta e fecharam qualquer
alternativa de fuga. Levantei minhas mãos e me rendi.
Rapidamente fomos totalmente cercados por cavalos
empoeirados.
"Ethan Gage?"
"A seu dispor, tenente."
"Por que você está vestido como um bárbaro?" "E mais
refrescante."
Seus olhos eram atraídos por Astiza, mas ele não ousou
perguntar por que ela estava vestida como uma prostituta.
Ainda havia um pouco de boas maneiras em mil setecentos
e noventa e oito. "Sou o tenente Henri d'Bonneville. Você
está preso por roubo de propriedade do Estado, destruição
de antiguidades, assassinato, invasão e desordem no Cairo,
por fuga, má fé, espionagem e traição."
"Nada de assassinato em Dendara? Espero ter matado
Silano."
Ele ficou empertigado. "O conde está se recuperando dos
ferimentos e já organiza um grupo para nos ajudar na
perseguição."
"Você esqueceu do seqüestro." Sinalizei para Astiza.
"Eu não esqueci. Assim que capturada, a mulher vai
cooperar com a acusação ou também será interrogada e
julgada."
"Só não concordo com a acusação de traição", eu disse. "Sou
americano. Eu não precisaria ser francês para trair o seu
país?"
"Sargento, amarre os dois."
A felucca chegou e Bin Sadr, e o resto de seu bando de
cortadores de garganta, vieram com toda a disposição. Eles
empurravam os cavalos franceses como se fossem
negociantes num bazar de camelos. "Ele é meu!", o árabe
rosnou, enquanto agitava seu cajado com a cabeça de cobra.
Fiquei satisfeito ao ver que seu braço esquerdo estava numa
tipóia. Bom, se eu não podia matar esta dupla maldita de uma
vez, eu podia ir fazendo o trabalho aos poucos — membro
por membro —, assim como os franceses estavam fazendo
com Nelson.
"Vejo que se tornou um marujo, Achmed", saudei. "Caiu do
camelo, foi?"
"Ele vem para o meu barco!"
"Sinto em discordar, monsieur" o tenente d'Bonneville disse.
"O fugitivo Gage rendeu-se para a minha cavalaria e é
procurado para interrogatório por autoridades francesas. Ele
está sob jurisdição do exército agora."
"O americano matou alguns dos meus homens!"
"Isso você pode resolver com ele quando terminarmos, se é
que vai sobrar algo a ser feito."
Bem, aí está uma idéia animadora.
Bin Sadr olhou furioso. Agora ele tinha uma queimadura na
outra bochecha e pensei se ele tinha algum problema de
pele ou se Astiza tinha aprontado mais alguma coisa. Ela
bem que podia deixar o sujeito com lepra, ou a peste talvez,
não?
"Então vamos levar a mulher." Seus homens concordaram
com a idéia.
"Acho que não, monsieur." O tenente olhou rapidamente
para seu sargento, que, por sua vez, sinalizou para os
soldados. As carabinas deixaram de apontar para mim,
viraram-se para a direção do bando de Bin Sadr. Em
resposta, os mosquetes também se voltaram para a cavalaria
francesa. Era um alívio, finalmente, não ter ninguém
apontando armas para mim. Tentei pensar como poderia
tirar proveito daquilo.
"Não me faça ser seu inimigo, francês" Bin Sadr vociferou.
"Você é um mercenário sem autoridade alguma",
d'Bonneville respondeu agressivamente. "Se você não voltar
para o seu barco imediatamente, vou prendê-lo por
insubordinação e considerar enforcá-lo também." Ele olhou
ao redor impaciente. "Isto é, se eu conseguir achar uma
árvore."
O silêncio incômodo que durou um longo minuto e a
intensidade do Sol faziam com que tudo e todos parecessem,
literalmente, fritar. O silêncio foi quebrado por um cavaleiro
francês que tossiu e levou um solavanco. Enquanto ele caia
da cela, ouvimos o som do tiro distante que o matou
ecoando pelas colinas do Nilo. Ouvimos mais tiros e um dos
homens de Bin Sadr grunhiu e caiu.
Agora todas as armas miraram na direção da ribanceira. Uma
fileira de homens descia a toda velocidade com suas roupas
ondulantes e lanças brilhantes. Era uma companhia de
mamelucos! Fomos pegos por uma unidade de Murad Bey e
parecia que eles estavam em diferença de cinco para um
contra nós.
"Desmontar!", d'Bonneville gritou. "Formem uma linha de
combate!" Ele olhou para os árabes. "Lutem conosco!"
Mas os árabes estavam correndo para sua felucca. Eles
subiram de qualquer jeito no barco e tentaram escapar nas
águas do Nilo.
"Bin Sadr, seu covarde maldito!", d'Bonneville vociferou.
A resposta foi um gesto obsceno do árabe.
Os franceses ficaram sozinhos contra o ataque mameluco.
"Fogo!" A ordem do tenente resultou numa salva das
carabinas da infantaria, que não era, nem de longe,
disciplinada e organizada quanto um quadrado de infantaria.
Poucos mamelucos caíram e então eles nos sobrepujaram.
Sinceramente, eu esperava pelo golpe de uma lança
enquanto pensava em quais seriam as chances de encontrar
não um, mas três inimigos num mesmo ponto do rio de uma
vez só. Um mameluco se aproximou. Eu ia morrer. Mas ele
desceu se abaixou em sua sela, esticou seu braço e me tirou
do chão como se eu fosse um abacate caído. Segundos
depois, eu estava montado no cavalo.
Eu gemi e vacilei, mas seu braço segurava firme em torno do
meu peito. Então, ele disparou por entre os soldados
franceses e foi em direção ao barco árabe, amaldiçoando e
desafiando, enquanto eu cambaleava. A mão livre carregava
uma espada e ele guiava sua montaria com os joelhos. "Vou
vingar meu irmão! Fique e lute, víbora!"
Era Ashrafí
Atingimos a beira do rio e a água subia em borrifos. Bin Sadr
voltou e nos enfrentou na proa de seu barco. Também lutava
com um braço. Ash girou a espada e o cajado da cabeça-de-
cobra veio ao seu encontro. Houve um clangor, como aço
atingindo aço, e percebi, finalmente, que a parte interna do
bastão era feita de algum tipo de liga metálica. A carga do
mameluco foi tão furiosa que o árabe foi jogado para trás,
mas quando ele caiu perto, seus companheiros atiraram e
Ash foi forçado a desviar. O barco se afastou em direção às
águas mais profundas.
Cavalgamos para longe deixando os ruídos da batalha. Eu
parecia um saco de trigo na sela. A velocidade era tamanha
que quase desmaiei com o vento e era praticamente
impossível ver através da nuvem de poeira em nosso rastro.
Só consegui identificar que d'Bonneville havia sido abatido e
um mameluco se agachava sobre ele com uma faca. Outro
hussardo se arrastava com uma lança cravada nas costas e
tentava cortar a garganta do inimigo antes de morrer. A
captura era pior que a morte e os soldados vendiam suas
vidas a um preço muito alto. Os árabes de Bin Sadr
deslizavam para longe e não tentaram sequer atirar para
ajudar os franceses.
Galopamos até o topo de uma duna, de onde podíamos
contemplar o Nilo. Ash me soltou e eu caí em pé. Enquanto
cambaleava, notei que ele demonstrava algum tipo de dor.
"Sempre tenho que resgatá-lo, meu amigo. Daqui a pouco
minha dívida pela Batalha das Pirâmides será paga."
"Já foi mais que paga", disse ofegante. Vi outro cavalo
galopando em nossa direção com Astiza sendo carregada do
mesmo jeito que eu fui. O guerreiro a largou no chão sem
cerimônia alguma. Olhei para o rio e a pequena escaramuça
havia acabado. Os franceses estavam deitados e imóveis. Bin
Sadr içara velas e demandava rio acima em direção a Desaix
e Dendara para relatar minha provável morte. Algo me dizia
que o bastardo tentaria levar crédito por isso. Mas é claro
que Silano faria questão de ter certeza.
"Então você se uniu ao bey", eu disse.
"Murad vai vencer, mais cedo ou mais tarde."
"Bons homens acabaram de ser chacinados."
"Tão bons quanto meus amigos massacrados nas pirâmides.
A guerra é onde bons homens morrem." "Como nos
encontrou?"
"Encontrei meu povo e segui você. Imaginei que Bin Sadr
faria o mesmo. Você leva jeito para se enfiar em confusão,
americano."
"E para escapar delas, graças a você." Vi uma mancha
vermelha em suas roupas. "Você está ferido!"
"Bah! Outro arranhão do ninho de cobras. Suficiente para
não me deixar acabar com o covarde agora, mas não para me
matar." Mesmo assim, ele estava se abaixando - claramente
ferido. "Um dia eu vou pegá-lo sozinho e então veremos
quem sai arranhado. Ou talvez o destino tenha outra mazela
guardada para nós. Só posso esperar."
"Você precisa cuidar dessa ferida!"
"Deixe-me ver", Astiza disse.
Ele desmontou sem jeito, respirava pesado e ficou
constrangido quando ela abriu seu robe e olhou seu torso
para avaliar os danos.
"A bala atravessou como se você fosse um fantasma, mas
você está perdendo sangue. Vamos usar seu turbante para
contê-lo. O ferimento é sério, Ashraf. Você vai ficar um
tempo sem cavalgar, a não ser que esteja ansioso demais para
chegar ao Paraíso!"
"E deixar vocês dois sozinhos?"
"Talvez isto também seja desígnio dos deuses. Ethan e eu
devemos acabar com isso sozinhos."
"Se eu virar as costas por um segundo ele vai se enrascar de
novo!"
"Vou cuidar dele agora."
Ashraf ponderou. "Sim, você vai." Então ele assobiou. Duas
montarias formidáveis vieram trotando. Ambos estavam
selados e balançavam suas crinas e rabos. Foram os melhores
cavalos que eu tive na vida. "Levem estes dois e orem pelos
homens que os guiavam. Tome esta espada de Murad Bey,
Gage. Se algum mameluco tentar te prender, mostre a ele e
você será deixado em paz." Ele olhou para Astiza. "Vocês
estão voltando para as pirâmides?"
"É onde o Egito começa e termina", ela disse.
"Cavalguem sem parar, pois os franceses e árabes logo
estarão em seu encalço. Protejam a magia que vocês
carregam ou a destruam, mas não deixem que caia nas mãos
de nossos inimigos. Tome, uma proteção contra o Sol." Ele
deu a ela uma capa, e, em seguida, virou para mim. "Onde
está seu famoso rifle?"
"Silano enfiou a espada nele."
Ele ficou confuso.
"Foi a coisa mais estranha. Ele enfiou o florete no cano e eu
fiquei tão enfurecido que puxei o gatilho e meu mais fiel
amigo explodiu. Então, Astiza derrubou o teto sobre ele. Foi
bem-feito! Mas o bastardo sobreviveu."
Ashraf chacoalhou a cabeça. "Ele tem a sorte do deus
demônio, Ras-al-ghul. E algum dia, meu amigo, quando os
franceses partirem, vamos sentar juntos e tentar entender o
que você acabou de dizer!" Mesmo com dores, ele montou
novamente e cavalgou ao encontro dos outros entre os
destroços e corpos.
Galopamos para o norte, seguindo o rio, como Ash orientou.
Seriam mais que trezentos quilômetros até as pirâmides. Os
cavalos carregavam bolsas com pão, tâmaras e água, mas, ao
entardecer - sem ter dormido na noite anterior — estávamos
exaustos por causa da viagem e da tensão. Paramos numa
pequena vila ao lado do Nilo e recebemos abrigo de acordo
com a hospitalidade simplista que os egípcios mostravam.
Dormimos antes mesmo de terminar o jantar. A caridade da
qual desfrutamos foi espantosa, especialmente por vir de
pessoas exploradas pelos mamelucos e saqueadas pelos
franceses sem misericórdia. Mesmo passando por tudo isso,
o pouco que os camponeses tinham eles dividiram conosco
e, depois que dormimos, nos cobriram com seus próprios
cobertores - depois de limparem e cuidarem de nossos
ferimentos.
Seguimos a orientação dos moradores e acordamos duas
horas antes do amanhecer. Novamente, avançamos rumo ao
norte.
Na segunda noite, estávamos doloridos, mas, de algum
modo, mais recuperados e nos abrigamos perto de palmeiras
próximas do rio, ou seja, longe de casas, humanos e cães.
Precisávamos de um tempo sozinhos. Desde o ataque dos
mamelucos, não tivemos nenhum contato com tropas de
ambos os lados, só tínhamos contato com vilas e seus ciclos
de vida com ritmo próprio, alheio ao mundo externo. Os
habitantes trabalhavam em jangadas de junco, já que a cheia
do Nilo tinha alagado seus campos trazendo, do misterioso
centro da África, uma nova camada do sedimento
fundamental para a agricultura.
Usei uma pederneira e a espada de Ash para fazer fogo. A
noite chegou e de alguma forma, a proximidade ao Nilo
reafirmava a promessa de que a vida continuaria. Nós dois
estávamos em choque por causa de tudo que aconteceu nas
últimas semanas e sentíamos que este pequeno momento de
paz não duraria muito. Em algum lugar no sul, sem dúvida,
Bin Sadr e Silano já deviam ter descoberto que não
estávamos mortos e começariam a nos perseguir. Por isso,
éramos gratos pela quietude das estrelas, o conforto da areia
e pelo carneiro e frutas que recebemos na última vila.
Astiza vestia o medalhão novamente e, admito, ficava muito
melhor nela do que em mim. Decidi confiar nela, pois ela
poderia ter alertado Silano sobre a machadinha, fugido de lá
com o medalhão depois que os pilares caíram, ou me
abandonado depois da luta no rio. Ela ficou e lembrei do que
ela disse no barco: que ela não amava a ele. Essa frase
revirava na minha cabeça desde aquele dia, mas ainda não
sabia muito bem o que fazer com ela.
Em vez de tocar no assunto, perguntei outra coisa. "Você
ainda não tem certeza do que é esta porta secreta que vamos
procurar?"
Ela sorriu com ar triste. "Nem tenho certeza de que ela
deve, ou pode, ser encontrada. Mas por que Ísis teria nos
deixado chegar tão longe se não for por alguma razão?"
A meu ver, Deus não ligava muito para razão, mas eu não
podia dizer isso a ela. Em vez disso, juntei coragem e fiz
minha aposta. "Eu já encontrei o meu segredo", disse.
"O que?"
"Você."
Mesmo com a luz do fogo pude ver que ela corou quando
virou o rosto. Então, coloquei minha mão em sua bochecha
e a virei de volta para mim.
"Escute, Astiza, já gastei muitos quilômetros de deserto
pensando nisso. O Sol é quente demais e a areia queima
mesmo com as botas. Passei por dias em que eu e Ashraf
vivemos na lama e comíamos gafanhotos fritos. Mas eu nem
penso nessas coisas. Eu penso em você. Se este Livro de
Thoth é um livro de sabedoria, talvez ele simplesmente diga
para encontrar o que você já tem, e aproveitar o dia em vez
de ficar se preocupando com o amanhã."
"Isto não soa como meu incansável aventureiro."
"A verdade é que eu também me apaixonei por você",
confessei. "Praticamente quando tirei os escombros de cima
de você e notei que era uma mulher. Só era difícil de
assumir isso para mim mesmo." Eu a beijei. Que se dane se
ela não beijasse de volta do jeito que eu imaginava.
Enfrentar a adversidade e o perigo é o melhor jeito de
aproximar um homem e uma mulher.
Felizmente, Isis não é uma deusa tão pudica quanto as
deidades modernas e Astiza sabia muito bem o que queria
assim como eu. Se o medalhão ficava bonito em suas roupas
sedutoras, definitivamente era glorioso em seus seios.
Deixamos que a Lua nos vestisse, fizemos uma pequena
cama com nossas vestimentas e vivemos aquela noite como
se não houvesse amanhã.
O medalhão pinicou quando ficou entre eu e ela. Então,
Astiza o retirou e deixou na areia por um tempo. Sua pele
era perfeita como as esculturas do deserto e seu perfume era
tão doce quanto a flor de lótus. A alma e a presença de uma
mulher são mistérios mais sagrados que qualquer pirâmide
empoeirada. Eu a adorei como deusa e a explorei como um
templo. E ela sussurrou no meu ouvido: "Isso é imortalidade
por uma noite."
Mais tarde, enquanto estávamos deitados sob as estrelas, ela
pegou o medalhão e apontou para o céu e a Lua crescente.
"Veja", ela disse. "A adaga de Thoth."
Capítulo Vinte e Dois
Nossa cavalgada de volta ao Cairo foi uma jornada pelo
tempo. Montes de vegetação demarcavam os restos de
antigas cidades, de acordo com os camponeses. Dunas
recentes revelavam o topo de um templo enterrado aqui, um
santuário ali. Encontramos dois colossais babuínos de pedra
perto de Minya. As estátuas gordas e polidas contemplavam
serenamente o Sol nascente. Eles eram duas vezes maiores
que um homem e estavam adornados com o que parecia ser
uma capa de penas, como se fossem tão nobres e antigos
quanto a Esfinge. É claro que os macacos gigantes eram
manifestações do misterioso Thoth.
Passamos por centenas de vilas feitas de tijolos enquanto
cavalgávamos pelo deserto ao lado de inúmeras palmeiras
que, por sua vez, formavam um mar verde. Vimos mais um
punhado de novas pirâmides, algumas delas tão desgastadas
que não passavam de colinas e outras ainda exibindo os
traços de sua forma original. Astiza e eu seguimos caminho
em nossa pequena bolha de satisfação e contentamento -
mesmo com a importância da missão e uma possível
perseguição. Nossa união criou o refúgio para a ansiedade e o
peso do fardo. Dois agora eram um só, a ambigüidade deu
lugar ao comprometimento e a confusão se tornou
propósito. Como Enoc sugeriu, eu encontraria algo em que
acreditar. Não em impérios, medalhões, mágica ou mesmo
eletricidade, mas sim no companheirismo da mulher ao meu
lado. Era um belo ponto de partida para qualquer outra coisa.
O trio de pirâmides que procurávamos finalmente surgiu no
horizonte do deserto como ilhas aparecem no oceano.
Cavalgamos intensamente para chegar em vinte e um de
outubro - a data que eu acreditava ter algum significado
misterioso. A temperatura diminuiu um pouco, o céu
formava um domo azul perfeito, e o Sol servia como a
carruagem dos deuses para realizar sua travessia diária rumo
ao paraíso. Só era possível ver o Nilo por seu cinturão de
árvores. Andamos por horas com a impressão de que a
distância para os monumentos continuava a mesma. Só
perdemos essa sensação com a chegada do entardecer
quando elas começaram a inflar como um dos balões de
Conte — enormes, chamativas e inalcançáveis. Elas surgiam
dos confins da Terra e seu ápice poderia muito bem ter
vindo diretamente do submundo.
Aquela imagem me deu uma idéia.
"Deixe-me ver o medalhão", perguntei de súbito a Astiza.
O metal dourado parecia em chamas com o reflexo do Sol
enquanto ela o tirava. Olhei para os 'Vs' dos braços, um
apontado para cima e o outro para baixo. "Isso parece duas
pirâmides, não parece? Suas bases estão unidas e cada um
dos picos aponta numa direção oposta?"
"Ou o reflexo de apenas uma num espelho ou na água."
"Como se ela existisse tanto na superfície quanto no
subterrâneo, como a raiz de uma árvore."
"Você acha que existe algo embaixo da pirâmide?"
"Encontrei coisas sob o templo de Ísis. Mas e se o medalhão
representar a parte interior, não a exterior? Quando
exploramos o interior com Bonaparte, os dutos internos
desciam como os lados da pirâmide. Os ângulos eram
diferentes, mas eram claramente um eco deles. Suponha que
não seja um símbolo, mas um mapa dos dutos?"
"Você quer dizer, corredores que sobem e descem?"
"Sim. Havia uma tábua no navio que me trouxe do Egito."
Eu lembrei da tábua prateada e negra do cardeal Bembo que
Monge mostrou dentro da L'Orient. "Ela mostrava vários
níveis e figuras. Parecia ser um mapa ou diagrama para
algum lugar subterrâneo com camadas diferentes."
"Existem histórias de antigos livros que mostravam aos
mortos como atravessar os perigos e monstros do
submundo", ela disse. "Thoth mediria seus corações e seus
livros os guiariam por najas e crocodilos. Se o guia fosse
adequado, eles emergiriam do outro lado. No paraíso. E se
algo dessas histórias for verdade? E se, de alguma maneira, os
corpos enterrados na pirâmide efetivamente fizessem uma
jornada por desafios cavernosos?"
"Poderia ser a explicação pela ausência das múmias", deixei a
imaginação voar. "Mas quando exploramos a pirâmide,
confirmamos que todos os corredores descendentes não
tinham saída. Eles não sobem novamente na direção oposta
como no medalhão. Não encontrei nenhum 'V
descendente."
"Assim são os corredores que conhecemos", Astiza disse,
repentinamente empolgada. "Mas de qual lado da pirâmide
está a entrada?"
"Norte."
"E qual constelação o medalhão mostra?"
"Alpha Draconis, a Estrela Polar quando as pirâmides foram
construídas. Então?"
"Segure o medalhão como se a constelação estivesse no
céu."
Fiz o que ela pediu. O disco circular foi colocado contra o
céu boreal e a luz brilhava através das minúsculas
perfurações no padrão de Draconis, o dragão. Os braços do
medalhão ficaram perpendiculares ao norte.
"Se o medalhão for um mapa, os dutos estariam em quais
lados da pirâmide?", Astiza perguntou.
"Leste e oeste!"
"O que pode significar que as entradas ainda não foram
descobertas nos flancos leste e oeste das pirâmides", ela
concluiu.
"Mas por que ainda não foram encontradas? Já escalaram
todos os pontos da estrutura."
Astiza franziu a testa. "Não sei."
"E por que as conexões com Aquário, a cheia do Nilo e esta
época do ano?" "Também não sei."
E, então, vimos um fragmento branco no deserto.
Era uma cena curiosa. Oficiais franceses, assistentes, sábios e
serviçais estavam arranjados num semicírculo para um
piquenique no deserto com seus cavalos e burros amarrados
mais atrás. A comitiva estava de frente para as pirâmides.
Mesas de campo foram colocadas de uma ponta a outra e
cobertas com linho branco. As velas das feluccas foram
usadas como coberturas para tendas erguidas com lanças
capturadas dos mamelucos e os sabres da cavalaria serviam
como pregas para as pontas do tecido.
Taças de cristal da França e cálices dourados do Egito
dividiam a mesa com as pesadas pratas européias e peças de
porcelana. Garrafas de vinho semivazias completavam o
banquete ao lado de cestas de frutas, pães, queijo e carne.
Enquanto as velas não eram acesas, Napoleão sentava ao lado
de vários de seus generais e cientistas. Todos conversavam
amigavelmente. De longe vi meu amigo Monge, o
matemático.
Como estávamos vestidos como árabes, o auxiliar do grupo
veio nos espantar como fazia com qualquer beduíno curioso.
Mas ele percebeu meu porte e a beleza de Astiza, a essa
altura, coberta apenas com uma capa esfarrapada que ela
tentava vestir da melhor maneira possível. Ele ficou mais
atento a ela, claro. Aproveitei o silêncio do rapaz para
chamar sua atenção em francês.
"Sou Ethan Gage, o sábio americano. Estou aqui para relatar
que minhas investigações estão quase completas."
"Investigações?"
"Dos segredos da pirâmide."
Ele foi cochichar minha mensagem e Bonaparte levantou,
observando como um leopardo. "É Gage. Surgindo do nada
como o demônio em pessoa", ele disse aos outros. "E trouxe
a mulher com ele."
Ele acenou para que fôssemos até ele. Os soldados olhavam
com volúpia para Astiza, que manteve o olhar acima deles e
andou com tanto decoro quanto nossos costumes
permitiam. Os homens evitaram comentários mais vulgares,
pois perceberam que havia algo de diferente acontecendo
entre nós, eu acho, alguma coisa sutil dando indícios de uma
relação de companheirismo e propriedade. Éramos um casal
e, por isso, ela deveria ser respeitada. Então, os olhares de
todos saíram dela e focaram em mim.
"O que está fazendo com esta fantasia?", Bonaparte
interpelou. "E você não tinha desertado?" Ele olhou para
Kleber. "Pensei que ele tinha desertado."
"Maldito cafajeste! Fugiu da cadeia e despistou a patrulha que
o perseguia, se me lembro bem", o general disse.
"Desapareceu no deserto."
Felizmente, as notícias de Dendara ainda não haviam
chegado aqui. "Ao contrário, enfrentei muitos riscos a seu
serviço", disse displicentemente. "Minha companheira foi
seqüestrada por Silano e o árabe Achmed Bin Sadr: sua vida
seria trocada pelo medalhão do qual falamos. Por causa da
coragem dela, e de minha determinação, que escapamos
para continuar nossos estudos. Vim procurar pelo doutor
Monge para consultá-lo sobre uma questão matemática que
espero possa iluminar nossa descoberta sobre as pirâmides."
Bonaparte me fitou com descrença. "Você acha que sou
idiota? Você disse que o medalhão foi perdido."
"Disse isso apenas para mantê-lo longe do conde Silano, que
não compartilha seus interesses e aqueles da França em seu
coração."
"Então você mentiu."
"Eu disfarcei para proteger a verdade daqueles que a
utilizariam para fins escusos. Por favor, general, escute. Não
estou preso, nem capturado e muito menos fugindo. Eu vim
procurando pelo senhor, pois eu acredito que estejamos
perto de uma grande descoberta. Tudo que preciso agora é
da ajuda dos outros sábios."
Ele intercalava olhares entre eu e Astiza, meio furioso, meio
deslumbrado. A presença dela me concedeu uma curiosa
imunidade. "Não sei se te dou uma recompensa ou se atiro
em você, Ethan Gage. Sabe, existe algo ardiloso em você,
algo que vai além de seus rudimentares modos americanos e
sua educação rústica."
"Apenas tento o melhor que posso, senhor."
"O melhor que você pode!" Ele olhou para os outros, pois
tinha a chance de dar mais uma de suas lições. "Nunca é o
suficiente fazer o melhor, você deve ser o melhor. Não é
verdade? Eu faço o que é necessário para realizar a minha
vontade!"
Fiz uma reverência. "E eu sou um apostador, general. Minha
vontade é irrelevante se as cartas não são favoráveis. Mas,
existe alguém cuja sorte não mude? Não é verdade que você
foi um herói em Toulon, depois ficou um curto período na
prisão depois da queda de Robespierre, e, então, tornou-se
herói novamente quando seus canhões salvaram o
Diretório?"
Ele ficou zangado por um momento, mas pareceu
compreender o argumento e, finalmente, sorriu. Napoleão
podia não suportar os tolos, mas ele gostava do estímulo de
um debate. "Está certo, americano. Está certo. Vontade e
sorte. Em um dia eu deixei um hotel barato em Paris e a
dívida do meu uniforme para ter minha própria casa,
carruagem e criadagem. Em um dia de sorte!" Ele se dirigiu
aos demais. "Vocês sabem o que aconteceu com Josefina?
Ela foi presa também e iria para a guilhotina. Numa manhã o
carcereiro levou seu travesseiro embora — dizendo que ela
não precisaria dele ao anoitecer, já que ela não teria mais
cabeça! Porém, algumas horas depois chegou a notícia de
que Robespierre estava morto, assassinado, e que o Terror
tinha acabado e, em vez de ser executava, ela estava livre.
Oportunidade e destino: que jogo!"
"O destino nos prendeu no Egito", disse Kleber, semi-
embriagado. "E a guerra não é um jogo."
"Ao contrário, Kleber, a guerra é o maior de todos os jogos,
já que as apostas se limitam a morte ou glória. Recuse a
partida e a derrota é a única opção. Certo, Gage?"
"Nem todo jogo deve ser jogado, general." Que homem
estranho. Ele misturava esclarecimento político com
inquietação emocional, e os maiores sonhos com o pior do
cinismo. Ele nos desafiava a cobrir sua aposta e enfrentá-lo.
Um jogo? É isso que ele tem a dizer aos mortos?
"Não? A própria vida é uma guerra, e todos nós somos
derrotados pela morte no final. Por isso fazemos o que
podemos para sermos imortais. O faraó escolheu a pirâmide.
Eu escolhi... fama."
"E alguns homens escolhem o lar e a família", Astiza disse
calmamente. "Eles vivem através de seus filhos."
"Sim, isto é suficiente para eles. Mas não para mim, ou para
os homens que me seguem. Queremos a imortalidade da
história!" Bonaparte tomou um gole de vinho. "Você me
transformou num belo filósofo nesta refeição, Gage! Tome
sua mulher como exemplo. A sorte é uma mulher. Pegue-a
hoje, ou talvez você não possa ficar com ela amanhã." Ele
sorriu perigosamente. "Uma belíssima mulher", ele disse a
seus companheiros, "que tentou atirar em mim."
"Na verdade, ela estava tentando atirar em mim"
Ele riu. "E agora vocês formam um casal! Mas é claro! A
sorte também transforma inimigos em aliados, e estranhos
em confidentes!" Mas, abruptamente, ele ficou sério. "Mas
não vou deixar vocês dois correndo por aí vestidos como
egípcios até que essa questão com Silano seja esclarecida.
Não entendo o que está acontecendo entre você e o conde,
mas eu não gosto disso. Precisamos estar todos no mesmo
lado. Estamos discutindo o próximo passo de nossa invasão:
a conquista da Síria."
"Síria? Mas Desaix ainda está perseguindo Murad Bey no
Alto Egito."
"São apenas escaramuças. Temos como investir contra o
norte e o leste ao mesmo tempo. O mundo espera por mim,
mesmo que os egípcios não vejam como eu melhoraria suas
vidas." Seu sorriso foi apertado, sem esconder o óbvio
desapontamento. Sua promessa de tecnologia ocidental e
governo não conquistou a população. O reformista que eu vi
na cabine do L'Orient estava mudando e seus sonhos de
iluminação colidiam com o povo confuso que ele havia
vindo salvar. A última gota de inocência de Napoleão tinha
secado com o calor do deserto. Ele espantou uma mosca.
"Enquanto isso, eu quero o mistério da pirâmide resolvido!"
"Que eu posso solucionar melhor sem a interferência do
conde, general."
"Que você vai solucionar com a cooperação do conde.
Certo, Monge?"
O matemático parecia intrigado. "Creio que dependa do que
o monsieur Gage acredita ter descoberto."
E então ouvimos um ribombar parecido com um raio
distante.
Olhamos para o Cairo, com seus mirantes acompanhando o
Nilo. Em seguida, outro estouro, e mais outro. Eram
canhões.
"O que é aquilo?" Napoleão perguntou a quem pudesse
responder.
Uma coluna de fumaça começou a subir no céu limpo. Os
disparos continuaram, menos ruidosos, e mais fumaça
apareceu. "Tem alguma coisa acontecendo na cidade",
Kleber disse.
"É obvio." Bonaparte voltou-se para seus assistentes.
"Recolham tudo isso. Onde está meu cavalo?"
"Acredito que possa ser um levante", Kleber incluiu
inquieto. "Havia rumores nas ruas e os mulas chamavam de
suas torres. Não levamos a coisa muito a sério."
"Não. Os egípcios é que não me levaram a sério."
O pequeno grupo perdeu todo o foco em mim. Camelos se
movimentaram, cavalos relincharam e os homens correram
para suas montarias. Conforme os sabres eram retirados da
areia, as tendas começaram a cair. Os egípcios estavam se
rebelando no Cairo.
"E quanto a ele?", o assistente de campo disse, apontando
para mim.
"Deixe ele por enquanto", disse Bonaparte. "Monge! Você e
os sábios vão levar Gage e a garota com vocês. Volte ao
instituto, feche as portas e não deixe ninguém entrar. Vou
mandar uma companhia da infantaria para proteger vocês. O
resto de vocês, me siga!" E ele partiu galopando pelas areias
em direção aos botes que os transportaram pelo rio.
Enquanto os soldados e serventes empacotavam tudo
rapidamente, Astiza pegou uma vela sem ser notada. Então,
eles também partiram seguindo o rastro dos oficiais. Em
minutos, estávamos sozinhos com Monge. Além de nós, só
restavam as pegadas e marcas do banquete na areia. Uma
ventania passou e ficamos, novamente, sem ar.
"Meu caro Ethan", Monge finalmente disse enquanto
assistíamos ao êxodo em direção ao Nilo, "você sempre
chega trazendo problemas."
"Estou tentando ficar longe deles desde Paris, dr. Monge,
mas sem sucesso algum." O som da rebelião ecoava pelo rio.
"Então venha. Nós, cientistas, vamos ficar a salvo do perigo
durante esta emergência."
"Não posso voltar ao Cairo com você, Gaspard. Meu negócio
é com a pirâmide. Veja, tenho o medalhão e estou prestes a
compreendê-lo, acredito." Com um gesto, Astiza mostrou a
peça. Monge ficou surpreso com seu novo design e a
semelhança com o símbolo maçónico.
"Como você pode ver", continuei, "encontramos outra
parte. O medalhão é um tipo de mapa para lugares secretos
dentro da Grande Pirâmide, aquela que você diz conter o Pi.
A chave é este triângulo de riscos no disco central. Concluí
que eles devem representar números egípcios enquanto
explorava uma tumba no sul. Acredito que seja uma pista
matemática, mas do quê?"
"Riscos? Deixe-me ver novamente." Ele pegou o medalhão
de Astiza e o estudou com sua lente de aumento.
"Imagine que cada grupo de riscos seja um dígito", eu disse.
Ele contou silenciosamente, movimentou os lábios
sutilmente, e pareceu surpreso. "Mas é claro! Por que eu não
vi isso antes? O que temos aqui é um padrão estranho, mas
apropriado para onde estamos. Meu Deus, que decepção."
Ele me olhava com pena e meu coração começou a ficar
agoniado. "Gage, você já ouviu falar do Triângulo de Pascal?"
"Não, senhor."
"Batizado por Blaise Pascal, que escreveu um tratado sobre
esta progressão numérica específica há apenas cento e
cinqüenta anos. Veja bem, é um tipo de progressão
piramidal." Ele pegou um sabre e começou a rabiscar na
areia e desenhou um padrão numérico parecido com isso:
1
1 1
1 2 1
1 3 3 1
1 4 6 4 1
"Pronto! Você vê o padrão?"
Eu devo ter ficado parecendo um bode tentando 1er
Tucídides. Sofrendo por dentro, consegui lembrar de Jomard
e dos números de Fibonacci.
"Exceto pelos números um", Monge disse pacientemente,
"você pode notar que cada número é a soma dos dois
números do mesmo lado na fileira de cima. Vê o primeiro
'dois'? Acima dele temos dois uns. Este é o triângulo de
Pascal. E é só o começo dos padrões que você pode
encontrar aqui, mas o fato é que o triângulo pode se
estender indefinidamente. Agora, vejamos os traços no seu
medalhão."
I
I I
I II I
I III III I
"É o começo do mesmo triângulo!" Eu concluí. "Mas o que
isso significa?"
Monge devolveu o medalhão. "Quer dizer que este objeto
não pode ser do Egito Antigo. Sinto muito, Ethan, mas se é
o Triângulo de Pascal, toda sua busca foi inútil."
"O que?"
"Nenhum matemático antigo conhecia este padrão. O
medalhão deve ser uma fraude moderna, sem dúvidas."
A sensação foi a mesma de levar um soco no estômago.
Fraude? Isso era só um truque do velho Cagliostro? Tudo
isso, inclusive a morte de Talma, não valia nada? "Mas ele
parece com a pirâmide!"
"Ou a pirâmide parece com o triângulo. Ligar esta velharia às
pirâmides do Egito é um ótimo jeito de fazer dinheiro. Essa
coisa deve ser algum brinquedo de um estudioso ou algo que
dava sorte, com Pi e as aletas de um compasso. Talvez fosse
somente uma brincadeira. Quem sabe? Apenas suspeito,
meu amigo, que você foi enganado por algum charlatão." Ele
colocou a mão no meu ombro. "Não fique constrangido.
Todos nós sabemos que você não é um sábio de verdade..."
Eu não conseguia acreditar. "Tinha certeza de que estávamos
tão perto..."
"Gosto de você, Ethan, e não quero que você se machuque.
Então, deixe-me dar um conselho. Não volte ao Cairo, só
Deus sabe o que está acontecendo lá." Os sons de tiros
ficavam cada vez mais altos. "Bonaparte suspeita que você
seja um inútil e ele está ficando cada vez mais impaciente
por causa da frustração. Pegue um barco até Alexandria e
leve Astiza com você num navio para a América. E só você
explicar suas razões e os ingleses vão te deixar ir. Vá para
casa, Ethan Gage." Trocamos um aperto de mãos. "Vá para
casa."
Fiquei em choque. Não conseguia compreender que todo o
meu sofrimento não serviu para nada. Eu tinha certeza de
que o medalhão apontava o caminho para dentro da
pirâmide, e, agora, o maior matemático da França disse que
eu havia sido enganado! Monge deu um sorriso triste. E,
então, pegou suas coisas, montou no burrinho e começou a
ir lentamente de volta à cidade e seu Instituto. Os tiros
aumentavam à distância.
Ele virou novamente. "Queria poder fazer o mesmo, Ethan!"
Astiza olhava para Monge com incredulidade. Ela estava
sombria. Quando ele chegou longe o suficiente para não nos
escutar, ela explodiu. "Aquele homem é um idiota!"
Fiquei estarrecido. "Astiza, ele é uma das melhores mentes
de toda a França!"
"E aparentemente acredita que o aprendizado começa e
termina em suas pomposas opiniões e seus ancestrais
europeus. Ele sabe como construir uma pirâmide? Claro que
não! E ainda assim ele insiste que o povo que as construiu
sabia menos do que ele, ou do que este Pascal, sobre
números."
"Ele não disse isso."
"Olhe os padrões na areia! Eles não parecem com a pirâmide
à sua frente?" Mm.
"E isso não tem absolutamente nada a ver com o fato de
estarmos aqui? Não acredito nisso."
"Mas qual é a conexão?"
Ela olhava para a areia e para a pirâmide, para a pirâmide e
para a areia. "Deve ser óbvio, acho. Estes números
correspondem aos blocos da pirâmide. Apenas um no topo,
só que esse não está mais lá. Aí dois, três e continuam.
Fileira depois de fileira, bloco atrás de bloco. Se você seguir
este padrão, cada bloco vai corresponder a um número. Este
Monge é cego!"
Será que ela estava certa? Senti a empolgação retornar.
"Vamos completar mais algumas fileiras na areia."
Logo, o padrão tornou-se aparente. A próxima linha, por
exemplo, mostrava 1, 5, 10, 10, 5, 1. A seguinte, 1, 6, 15,
20, 15, 6, 1. E assim por diante com cada fileira ficando mais
larga e seus números maiores. Lá pela décima terceira fileira,
o número central era 924.
"Por qual número estamos procurando?" perguntei. "Não
sei."
"Então, para que serve isso?"
"Vai fazer sentido quando vermos."
E continuamos. Conforme o Sol afundava no horizonte do
oeste, a sombra das pirâmides ficava maior. Astiza tocou em
meu braço e apontou para o sul. Havia uma nuvem de poeira
naquela direção, ou seja, um grupo considerável se
aproximada. Fiquei inquieto. Se Silano e Bin Sadr
sobreviveram é de lá que eles viriam. Ao norte, podíamos
ver o brilho das chamas e ouvir o constante, e organizado,
fogo da artilharia francesa. Uma batalha de larga escala se
desenrolava na capital, que, supostamente, deveria ter sido
pacificada. O controle de Napoleão era mais frágil do que ele
imaginava. Vi um saco ovalado começar a subir. Era uma dos
balões de Conte sendo usado por observadores para ajudar
no combate.
"É melhor corrermos", disse.
Comecei a inserir números mais rapidamente, mas cada
fileira adicionava uma seqüência com mais dois números. E
ficava mais complicado. E se errarmos? Astiza ajudou
fazendo contas de cabeça com uma velocidade
impressionante. E nossa pirâmide cresceu. Era como se a
construíssemos na areia. Em pouco tempo, minhas costas
começaram a doer e os olhos embaçaram. Números,
números, números. Se Monge estava certo, por que os
antigos egípcios criariam um engodo tão obscuro e cheio de
pistas como este?
Finalmente, depois de cerca de cento e cinqüenta linhas
abaixo do topo, encontramos uma pedra que tinha os
mesmos dígitos que, de acordo com Monge, representavam
o valor egípcio para Pi: 3160.
Fiquei sem ação. É claro! O medalhão era o mapa para um
ponto específico na pirâmide! Face norte. Imagine uma
porta e um duto nas fazes leste e oeste. Lembre-se de Pi.
Procure um bloco com o valor de Pi com este jogo
numérico. Chegue no período correspondente a Aquário,
como os egípcios representavam a cheia do Nilo, e... entre.
Se eu estivesse certo.
A face oeste da pirâmide estava rosada quando começamos a
escalada. A noite se aproximava, o Sol estava baixo e gordo,
bem parecido com o balão de Conte. Nossos cavalos estavam
amarrados lá embaixo e os sons de tiros no Cairo ficavam
abafados por causa do gigante monumento entre nós e a
cidade. Subi os degraus contando para encontrar a fileira
onde deveria estar o bloco que correspondia a Pi, o número
eterno, devidamente codificado nas dimensões da pirâmide.
"E se os números se referem a pedras externas que foram
removidas?", eu disse.
"Eles corresponderiam aos internos, espero. Ou algo assim.
O medalhão vai nos guiar até a pedra que dá acesso ao
centro da pirâmide."
Estávamos ofegantes ao chegar na qüinquagésima terceira
fileira quando Astiza apontou. "Ethan, olhe!"
Um grupo de cavaleiros fazia a curva na pirâmide mais
próxima. Um deles nos viu e os outros começaram a gritar.
Mesmo com a fraca luz do entardecer, não foi difícil
reconhecer as bandagens nos braços de Bin Sadr e Silano. Se
isso não funcionasse estaríamos mortos - ou pior, se Bin Sadr
fizesse do seu jeito.
"É melhor achar aquela pedra logo."
Continuamos contando. Eram milhares de blocos na face
oeste e quando chegamos a um possível candidato ele não
tinha absolutamente nada de diferente. A rocha estava
corroída pelo tempo, pesava várias toneladas e estava muito
bem presa pelo peso colossal acima dela. Empurrei, chutei,
tentei levantar, mas nada funcionou.
Uma bala atingiu as pedras.
"Pare! Pense!", Astiza pediu. "Deve haver um jeito especial
ou qualquer um poderia ter tropeçado nisso." Ela segurou o
medalhão contra o céu. "O local exato tem que ter algo a ver
com isso."
Mais tiros chegaram perto de nós.
"Somos alvos fáceis aqui em cima", eu disse.
Ela olhou para baixo. "Não. Ele não pode nos matar até
descobrir o que sabemos. Bin Sadr vai ficar fazendo a gente
falar."
Era verdade. Silano gritava com os homens que atiravam e
baixava seus mosquetes enquanto os empurrava em direção
à pirâmide.
"Ótimo."
De repente, eu percebi que a sombra da segunda pirâmide
incidia sobre a que estávamos. Seu longo triângulo subia pela
areia e chegava até nossa posição. O pico dela estava intacto
e, em seu ápice, parecia apontar para um bloco à nossa
direita, mas algumas fileiras para baixo de nossa posição. A
cada dia a sombra tocava uma pedra diferente e hoje era a
data sugerida pelo calendário. Acho que erramos por pouco
nossa contagem.
Cheguei ao ponto imediatamente acima da sombra e segurei
o medalhão contra o Sol. A luz atravessou os pequenos
buracos e projetou a formação de Draconis na pedra...
"Ali!" Astiza apontou. Uma marca leve de buracos, ou
melhor, marcas de formão, aparecia perto da base da pedra.
Ela reproduzia o padrão encontrado no medalhão. E, abaixo
dela, a junção entre a pedra e a de baixo era um pouco mais
larga que as demais. Agachei e assoprei. Quando a poeira
voou, dei de cara com o mais sutil dos símbolos da
maçonaria talhado na pedra.
Eu já podia ouvir os árabes gritando quando começaram a
escalar. "Gage, desista!", Silano dizia. "Você chegou tarde
demais!"
Foi aí que lembrei do nome que várias pessoas deram ao
medalhão desde que o consegui. Chave. Tentei colocar o
disco na abertura, mas ele era levemente convexo e não
encaixou.
Olhei para baixo e tanto Silano quanto Bin Sadr também
subiam os degraus.
Então, inverti o medalhão. Os braços prenderam, eu sacudi,
e eles moveram um pouco mais...
Subitamente ouvi um clique. E, como se fossem puxados por
cordões, os braços da peça entraram ainda mais na pedra. O
disco quebrou e saiu quicando para baixo na direção de
Silano. Ouvi vários ruídos das pedras se movendo e ralando.
Os homens abaixo de nós gritavam.
Como num passe de mágica, a pedra perdeu seu peso e
levantou alguns milímetros em relação à rocha de baixo.
Empurrei e, agora, ela rodava e subia como se fosse feita de
plumas. Ela se moveu e revelou um túnel escuro inclinado
exatamente como o corredor que explorei com Napoleão.
Um bloco de dez mil libras tinha acabado de ficar leve como
uma pena. A chave desapareceu na rocha.
Descobrimos o segredo. Onde estava Astiza? "Ethan!"
Girei e vi que ela tinha descido para pegar o disco. A mão de
Silano apertava sua garganta. Ela se livrou e correu para
cima, enquanto ele ficou segurando apenas trapos. Peguei a
espada de Ash e baixei para ajudá-la a subir. Silano
desembainhou um novo florete. Seus olhos brilhavam.
"Atire nele!" Bin Sadr gritou.
"Não. Agora ele não pode fazer nenhuma gracinha com o
rifle. Ele é meu." Decidi deixar o estilo de lado. Era hora de
desespero e de força bruta. Mesmo com sua lâmina passando
muito perto do meu torso, gritei feito um viking e desci a
espada com a força que usaria para cortar uma tora de
madeira. Aproveitei a vantagem da altura e fui tão rápido
que ele foi forçado a aparar o golpe, sem poder atacar. As
lâminas se chocaram e a espada de Silano entortou com a
força do meu ataque. Não quebrou, mas torceu seu pulso.
Ainda devia estar ferido por causa da explosão do meu rifle.
Quando ele tentou virar para pegar sua empunhadura
novamente, perdeu o equilíbrio e caiu sobre outros
mercenários. Todos eles rolaram pirâmide abaixo. Os
homens tentavam se agarrar às pedras para evitar uma queda
mais violenta. Tentei acertar Bin Sadr e joguei a espada
como se fosse uma lança, mas ele desviou e a lâmina atingiu
outro homem em cheio - ele foi jogado para trás com o
golpe.
Ele veio para cima de mim com uma lâmina mortífera
saindo da ponta de seu cajado de cabeça-de-cobra. Ele
golpeou. Eu desviei, mas não rápido o suficiente. A arma
afiada entrou levemente no meu ombro. Antes que ele
pudesse virar o bastão e cortar mais, uma pedra atingiu seu
rosto em cheio. Astiza estava atirando pedaços da pirâmide.
Bin Sadr também estava ferido e segurava o cajado com
apenas uma mão por causa da bala. Senti uma oportunidade
para derrubá-lo. Agarrei o bastão e puxei para cima. Com o
susto, ele puxou para baixo enquanto piscava por causa do
bombardeio de Astiza. Relaxei por um momento e ele quase
caiu para trás. Aí puxei de novo e o empurrei de uma vez.
Ele caiu e rolou vários degraus abaixo. Seu rosto estava
ensangüentado e eu tinha ficado com o precioso cajado. Pela
primeira vez, notei uma ponta de medo.
"Devolva!"
"Vai virar carvão, bastardo!"
Astiza e eu voltamos para o buraco, nossa única rota de fuga,
e rastejamos para dentro. Precisamos escorar nossa descida
com os braços para não escorregarmos. Conseguimos
empurrar a pedra da entrada de volta à sua posição original.
Bin Sadr subia como um maluco e rosnava de raiva. O bloco
encaixou tão facilmente quanto havia saído, mas, conforme
retornava, ele ganhou seu peso novamente e selou a
passagem na cara do vilão. De um instante para o outro
estávamos mergulhados na escuridão.
Ouvimos a frustração dos árabes que batiam na pedra por
fora. Foi o determinado Silano quem ordenou a solução.
"Pólvora!"
Não tínhamos muito tempo.
Estava tudo completamente escuro até que Astiza bateu em
algo contra a lateral do duto e eu vi fagulhas. Ela conseguiu
acender a vela que pegou da mesa de Napoleão. O breu era
tão intenso que a escuridão parecia odiar daquela pequena
fonte de luz. Pisquei e respirei fundo. Havia um recuo perto
da entrada e dele saia uma saliência com um braço suspenso
à porta de pedra pela qual entramos. O corredor era todo
dourado e impressionava por ter pelo menos cinco
centímetros de grossura. O ouro provavelmente protegia o
material da corrosão ou deterioração. Tudo aquilo era uma
espécie de mecanismo que aliviava o peso da porta,
movendo-a para cima e para baixo como um pistão. Havia
um soquete conectado à máquina e um poço que descia no
escuro. Não tinha idéia de como funcionava.
Tentei forçar a porta. Ela estava presa como uma rolha, só
que infinitamente mais pesada. Recuar parecia impossível.
Estávamos temporariamente salvos e permanentemente
presos. Porém, percebi um detalhe que havia me escapado
antes. Enfileiradas ao longo da parede do túnel encontrei
tochas secas, praticamente mumificadas pela dessecação.
Alguém queria que encontrássemos o caminho até o fundo.
Capítulo Vinte e Três
O túnel oposto também parecia projetado para almas
deslizarem e não para homens escalarem. Descemos
intercalando escorregões com esbarrões. Por que não tinha
degraus? Será que algum dia, algum tipo de carrinho ou
trenó descia por aqui? Vai ver os construtores nunca
pensaram em usar estas passagens. Ou elas seriam utilizadas
para criaturas ou transportes que nem imaginamos?
Passamos por três espaços vazios no teto do túnel nos trinta
metros. Quando levantei minha tocha pude ver blocos
suspensos de granito negro. Para que eles serviam?
Continuamos descendo. Em certo ponto, o arenito deu lugar
a paredes de calcário ainda perfeitamente refiladas e tratadas.
Passamos por baixo de toda a pirâmide e chegamos à base do
platô de calcário sobre o qual a estrutura foi construída.
Adentramos mais ainda nas entranhas da Terra, muito mais
abaixo do túnel que explorei com Jomard e Napoleão. A
passagem começou a ficar sinuosa. Uma corrente de ar
deixou uma trilha de fumaça atrás de nós. O cheiro era de
rocha empoeirada.
De repente, o corredor se transformou num túnel tão baixo
que precisamos engatinhar. Mas logo depois ele cresceu
novamente. Quando levantamos e erguemos a tocha, vimos
que estávamos numa caverna de calcário.
Um canal gasto mostrava onde a água costumava bater. O
topo estava tomado por estalactites. Enquanto o teto era
obra da natureza, as paredes eram repletas de hieróglifos e
desenhos, que, novamente, não compreendíamos. As
pinturas mostravam criaturas agachadas que rosnavam e
obstruíam passagens sinuosas cheias de línguas de fogo e
piscinas mortais. "O submundo", Astiza cochichou.
Estátuas de deuses e faraós perfilavam-se pelas paredes como
sentinelas protetoras com seus semblantes orgulhosos, olhos
serenos, lábios cerrados e poderosos músculos. Najas
entalhadas demarcavam as portas. Uma fileira de babuínos
formava uma coroa no teto de pedra. Uma estátua de Thoth
com cabeça de pássaro ficava ao lado da porta. Sua mão
esquerda segurava a balança para pesar o coração humano.
"Meu Deus, o que é esse lugar?", murmurei.
Astiza estava grudada ao meu lado. Estava frio na caverna e
ela tremia com suas roupas finas. "Acho que essa é a
verdadeira tumba. Não aquela sala vazia que você descreveu
para mim. As lendas de Heródoto sobre a verdadeira câmara
funerária sob a pirâmide podem estar certas."
Coloquei o braço em volta dela. "Então por que construir
uma montanha monstruosa em cima dela?"
"Para esconder, demarcar, selar, para confundir", ela
teorizou. "Seria um jeito de manter a tumba oculta para
sempre ou para esconder alguma coisa dentro dela. Por
outro lado, os antigos poderiam querer sempre ser capazes
de achar a caverna e para isso precisavam marcá-la com algo
tão gigantesco que nunca seria perdido: a Grande Pirâmide."
"Porque a caverna era o verdadeiro local de descanso do
Faraó"
"Ou algo mais importante."
Olhei para a estátua com a cabeça de pássaro. "Você quer
dizer esse troféu que todos querem, o tal mágico Livro de
Thoth, que contêm todo o conhecimento."
"Acho que este pode ser o lugar onde vamos achá-lo." Eu ri.
"Então tudo que temos que fazer é encontrar o caminho
para fora daqui!"
Ela olhou para o teto. "Você acha que os antigos abriram
essa caverna?"
Não. Dolomieu, nosso geólogo, disse que o calcário é que se
desgasta com a água corrente e como sabemos, o Nilo está
bem perto daqui. Em algum momento no passado, o rio ou
algum afluente provavelmente correu por esse platô. A área
pode estar cheia de bolhas como um favo de mel. Quando os
egípcios descobriram este lugar eles conseguiram um
esconderijo ideal... mas somente se pudessem mantê-lo em
segredo. Acho que você está certa. Construa uma pirâmide e
todo mundo vai olhar para ela, não para o que está embaixo."
Ela segurou meu braço. "Talvez os dutos que Napoleão
explorou servissem simplesmente para convencer os
trabalhadores e arquitetos menos importantes de que o faraó
seria enterrado lá."
"Enquanto isso, um outro grupo construía o duto que
acabamos de descer e escrevia estes hieróglifos. Eles
desceram até aqui e voltaram, certo?" Tentei soar
convincente.
Astiza apontou. "Não, eles não voltaram."
Um pouco à frente, passando os pés de Thoth, vi um carpete
de ossos e crânios cobrindo a caverna de um lado ao outro.
A morte estava em todo lugar. Passamos por eles com medo.
Havia centenas de corpos humanos deitados em filas. Não
havia marca de armas em seus restos.
"Escravos e sacerdotes", ela disse, "envenenados ou com as
gargantas cortadas para que não contassem os segredos a
ninguém. Esta tumba foi sua última obra."
Cutuquei um crânio. "Vamos garantir que não seja a nossa.
Venha. Sinto cheiro de água."
Atravessamos a câmara de ossos da melhor maneira que
pudemos, com os mortos tilintando conforme passávamos
até que chegamos a uma câmara com uma fossa no meio.
Havia uma borda em torno do buraco e quando olhamos
para baixo, o brilho de nossa tocha refletiu na água. Era um
poço. Acima dele subia um buraco estreito com uma haste
idêntica à que vimos na entrada da pirâmide. Seria a mesma?
A caverna podia ter feito uma volta e nos trazido
diretamente abaixo da entrada secreta e essa construção
poderia ser a mesma que controlava o peso do bloco por
onde entramos.
Toquei a peça. Ela subiu e desceu gentilmente como se
flutuasse. Olhei com mais cuidado. Lá embaixo, no poço,
havia uma bola dourada cujo diâmetro era a altura de um
homem que permitia à haste subir e descer de acordo com o
nível da água. Encontrei um medidor de água ao lado do
fosso. "O velho Ben Franklin adoraria adivinhar para que
isso serve."
"Estas marcações são semelhantes às que usamos nos
medidores do Nilo para controlar a cheia do rio", Astiza
disse. "Quanto mais altas, mais ricas seriam as safras do ano e
maiores seriam as taxa que o faraó cobraria. Mas por que
medir aqui embaixo?"
Ouvi água corrente por perto. "Porque isso está conectado a
um braço subterrâneo do Nilo", tentei adivinhar. "Conforme
o rio enche, este poço sobe e leva a haste junto."
"Mas por quê?"
"Porque é um portão sazonal", concluí. "Uma trava
temporal. Lembra que o calendário apontava para Aquário
na data de hoje, vinte e um de outubro? Quem quer que
tenha criado a porta de pedra por onde entramos, a
construiu de modo que ela pudessse ser aberta no período
de cheia máxima, por alguém que conhecesse o segredo do
medalhão. Durante o período de seca, a caverna fica
perfeitamente selada."
"Mas por que temos que entrar quando o Nilo enche?"
Fiquei incomodado enquanto balançava a haste. "Boa
pergunta."
Continuamos em frente. A caverna serpenteava e, em pouco
tempo, já não sabia mais para qual lado estávamos indo.
Nossas primeiras tochas queimaram até o final e acendemos
novas. Não tenho medo de espaços pequenos, mas senti
como se estivesse enterrado lá embaixo. Sem dúvida, o
Submundo de Osíris! E então chegamos a uma grande sala
que fazia todas as outras parecerem diminutas. Uma câmara
subterrânea tão espaçosa que as tochas não conseguiam
iluminar os cantos mais distantes. Encontramos uma espécie
de lago de água negra.
Paramos na borda e notamos o teto de pedra. No meio do
lago imóvel e opaco havia uma pequena ilha. Uma tenda de
mármore com quatro pilares e teto. Algo ocupava o centro.
Baús, estátuas, e pilhas de peças menores que, mesmo a uma
distância considerável, brilhavam e cintilavam rodeando a
estrutura central.
"Tesouro." Tentei dizer casualmente, mas quase engasguei.
"É como Heródoto descreveu." Astiza respirou fundo como
se ainda não acreditasse no que via. "O lago, a ilha... este é o
verdadeiro túmulo do Faraó. Inexplorado, nunca roubado.
Que dádiva ver isso!"
"Estamos ricos", incluí. Meu estado de iluminação espiritual
chegava perto da ganância comum. Não me orgulho de
meus instintos comerciais, mas eu comi o pão que o diabo
amassou nos últimos meses e um pouco de dinheiro seria
uma boa compensação. Fiquei abestalhado na mesma
proporção quando vi as riquezas no depósito do L'Orient. O
valor histórico pouco importava naquela hora. Eu só queria
pegar um pouco, encher os bolsos e dar um jeito de cair fora
desse sepulcro e escapar do exército francês.
Astiza apertou minha mão. "É sobre isso que as lendas têm
falado, Ethan. Conhecimento eterno, tão poderoso que tem
de ficar escondido até que homens e mulheres sejam sábios
o suficiente para usá-lo. Acredito que vamos encontrá-lo
naquele pequeno templo."
"Encontrar o que?" O brilho do ouro ainda tinha toda minha
atenção.
"O Livro de Thoth. O cerne sobre a verdade da existência."
"Ah, sim. Mas estamos preparados para suas respostas?"
"Devemos protegê-lo dos hereges como os do Rito Egípcio
até estarmos prontos."
Encostei minha bota na água. "Uma pena não termos um
feitiço para andar sobre a água. A água parece gelada
demais."
"Não, veja. Existe um bote para levar o faraó para o céu."
Encostado ao lado do lago havia um bote branco estreito e
gracioso, tão belo quanto uma escuna, que descansava num
berço de pedra. Ele tinha uma proa alta e parecia com os que
eu tinha visto nas pinturas da parede do templo. Era grande
o suficiente para carregar nós dois e tinha um remo dourado
para empurrá-lo. Como não apodreceu? Porque não foi feito
com madeira. Os construtores usaram alabastro oco e juntas
de ouro. A pedra era tão polida que parecia translúcida.
"Vamos navegar com pedra?"
"Com pedra fina", ela disse. Conduzimos o veículo
cuidadosamente até a água. Ondulações apareceram em
vários pontos do lago.
"Você acha que tem alguma coisa viva na água?", perguntei
totalmente desconfortável.
Ela subiu a bordo. "Vamos saber quando chegarmos ao outro
lado."
Embarquei e empurrei com o cajado de Bin Sadr. Então,
deslizamos em direção à ilha, sempre olhando para os lados,
atentos para algum monstro que resolvesse aparecer.
Não era longe e o templo era bem menor do que imaginei.
Encostamos e fomos em direção ao Faraó. Havia uma
carruagem de ouro com lanças de prata, mobília de ébano e
jade, baús de cedro, armaduras incrustadas com jóias, deuses
com cabeça de cachorro, e jarros com óleo e especiarias. A
ilhota brilhava com pedras preciosas como esmeraldas e
rubis. Também vi turquesa, feldspato, jaspe, cornalina,
malaquita, âmbar, coral e lápis-lazúli.
Um sarcófago de granito vermelho, sólido como uma
fortificação, com um tampo de rocha pesado demais para ser
levantado sem a ajuda de pelo menos doze homens. Haveria
alguém lá dentro? Não tinha o menor interesse em
descobrir. A idéia de invadir a cova de um faraó não me
atraia. Pegar o tesouro sim.
Astiza não dava atenção a nada disso. Ela mal olhou para as
jóias, roupas, jarros e travessas de ouro. Ela parecia em
transe enquanto andava pelo caminho prateado até o
templo, com seus pilares gravados com as cabeças de
babuíno de Thoth. Eu segui.
Encontramos uma mesa de mármore sob o teto também de
mármore. Sobre eia estava uma caixa de granito vermelha,
com um dos lados abertos, e dentro ela encerrava um cubo
dourado com aberturas em ouro. Tudo isso por um livro, ou
mais precisamente, rolos de pergaminho? Puxei e ele abriu
como se estivesse azeitado.
Coloquei minha mão dentro...
E não encontrei nada.
Tateei em todas as direções e só sentia a camada de ouro.
Bufei. "E lá se vai a sabedoria." "Não está aí?"
"Os egípcios não sabiam muito mais do que sabemos. É tudo
mito, Astiza."
Ela ficou paralizada. "Então para que este templo? Por que a
caixa? Qual a razão de todas as lendas?"
Dei de ombros. "Talvez a biblioteca tenha sido a parte fácil.
Escrever o livro é que deve ter sido impossível."
Ela olhou ao redor com cuidado. "Não. Ele foi roubado."
"Acho que nunca esteve aqui."
Ela balançou a cabeça. "Não. Eles não construiriam um cofre
de granito e ouro por nada. Alguém esteve aqui antes.
Alguém de alta patente com o conhecimento suficiente para
entrar e, ainda assim, orgulhoso e furioso demais para não
respeitar a pirâmide."
"E não levar todo esse ouro?"
"Este profeta não ligava para ouro. Ele estava interessado no
outro mundo, não nesse. Aliás, ouro é lixo comparado ao
poder deste livro." "Um livro de mágica."
"De poder, sabedoria, graça e serenidade. Um livro de morte
e renascimento. Um livro de felicidade. Capaz de inspirar o
Egito a se tornar a maior nação do mundo e, então, levar
outro povo a influenciar o mundo."
"Outro povo? Quem o levou?"
Ela apontou. "Ele deixou a identidade ali."
Encostado no canto do templo de mármore estava um
cajado de pastor. Ele tinha uma extremidade curvada para
prender o pescoço de ovelhas. A madeira parecia
maravilhosamente preservada e, diferentemente de qualquer
outro bastão, era notavelmente polido e levava a figura de
um anjo com asas na extremidade curva e a cabeça de uma
cobra na outra. No meio identifiquei dois querubins
estendendo suas asas e um suporte prendendo-os ao cajado.
Era um objeto bastante modesto em meio às maravilhas do
faraó.
"Que diabos é aquilo?"
"O cajado do mago mais famoso da história", Astiza disse.
"Mago?"
"O príncipe do Egito que se tornou o libertador."
Olhei para ela. "Você está dizendo que Moisés esteve aqui?"
"Não faz sentido?"
"Não, é impossível."
"Será? Um fugitivo criminoso que falou com Deus, volta do
deserto com a extraordinária tarefa de liderar os escravos
hebreus para a liberdade. De repente, ele tem o poder de
operar milagres - uma habilidade que ele nunca demonstrou
antes?"
"Poder concedido por Deus."
"Será? Ou pelos deuses, sob a foram de um único e grande
Deus?" "Ele estava lutando contra os deuses egípcios e seus
ídolos falsos." "Ethan, eram homens lutando contra
homens."
Ela parecia uma daquelas malditas revolucionárias francesas.
Ou com Ben Franklin.
"O salvador de seu povo não só levou os hebreus e destruiu
o exército do faraó", Astiza continuou. "Ele levou o talismã
mais poderoso do mundo. Seu poder era tamanho que os
imigrantes escravos conseguiram conquistar a Terra
Prometida."
"Um livro."
"Um repositório de sabedoria. Receitas de poder. Quando os
judeus chegaram à Terra Prometida os exércitos defensores
foram varridos diante de seus olhos. Moisés encontrou
comida, curou os doentes e puniu os blasfemos. Ele viveu
mais que o normal. Algo manteve os hebreus vivos no
deserto por quarenta anos. Foi esse livro!"
Tentei lembrar das histórias da Bíblia de novo. Moisés era o
bebê hebreu que foi resgatado por uma princesa, criado
como príncipe, e que matou um capataz de escravos num
momento de fúria. Ele fugiu, voltou décadas mais tarde, e
quando o Faraó se recusou a libertar seu povo, ele invocou
as Dez Pragas sobre o Egito. Quando o Faraó perdeu seu
primogênito na décima, e pior das tragédias, ele libertou os
hebreus da escravidão. E esse deveria ter sido o fim da
história se o Faraó não tivesse mudado de idéia novamente e
perseguido Moisés e os hebreus com seiscentas carruagens.
Por quê? Porque ele descobriu que Moisés tinha levado mais
que os escravos. Ele levou a fonte do poder egípcio, seu
maior segredo, sua posse mais importante. Ele a levou e...
Abriu o mar.
Teriam eles levado este livro de poder até o Templo de
Salomão, supostamente erguido pelos ancestrais dos
maçons?
"Não pode ser. Como ele chegou até aqui e saiu?"
"Ele veio até o Faraó pouco antes da cheia do Nilo", Astiza
disse. "Você não percebe, Ethan? Moisés tinha sido um
príncipe egípcio. Ele conhecia os segredos sagrados. Ele
sabia como entrar aqui e sair, algo que ninguém havia
ousado. Naquele ano, o Egito não perdeu só uma nação de
escravos, um faraó e um exército. Ele perdeu seu coração,
sua alma, sua sabedoria. E essa essência foi levada por uma
tribo nômade que, quarenta anos depois, a levou..."
"Para Israel." Sentei no pedestal vazio. Minha mente não
parava de trabalhar.
"E Moisés, tão ladrão quanto profeta, nunca teve permissão
de seu próprio Deus para entrar na Terra Prometida. Talvez
ele tenha sentido culpa por ter libertado algo que deveria ter
permanecido escondido."
Fiquei olhando para o vazio. Este livro, ou pergaminho,
estava desaparecido há mais de três mil anos. E aqui
estávamos eu e Silano perseguindo um cofre vazio.
"Estamos procurando no lugar errado."
"Ele pode ter se tornado parte da Arca da Aliança", ela disse
empolgada, "como as Tábuas dos Dez Mandamentos. Os
mesmos conhecimento e poder responsáveis pela
construção das pirâmides foram passados aos judeus, que
passaram de um povo obscuro à condição de uma das tribos
cujas tradições seriam a fonte das três grandes religiões! Ele
pode ter ajudado a derrubar os muros de Jericó!"
Minha mente não parava de girar. Heresia! "Mas por que os
egípcios enterrariam um livro desses?"
"Porque conhecimento sempre traz recompensas, mas
existem riscos. Ele pode ser usado para o Bem e para o Mal.
Nossas lendas dizem que os segredos do Egito vieram do
Mar, de um povo esquecido mesmo quando as pirâmides
foram erguidas, e Thoth concluiu que tal conhecimento
deveria ficar escondido. Pessoas são criaturas emocionais,
mais espertas que sábias. Talvez os hebreus tenham
percebido isso também, já que o livro desapareceu. Eles
podem ter aprendido que usar o Livro de Thoth é perigoso
demais."
Eu não acreditei em nada daquilo, claro. A mistura de deuses
era uma blasfêmia absurda. E sou um homem moderno, um
homem da ciência, um americano cético a exemplo de
Franklin. E mesmo assim ainda existiria uma força divina
que envolvia todas as maravilhas do mundo? Existia mesmo
um capítulo da história da Humanidade que nossa Era
Revolucionária esqueceu?
Nesse momento ouvimos o eco de um boom, um trovejar
longo, e a brisa se movimentando. A caverna tremeu. Uma
explosão.
Silano achou a pólvora.
Enquanto o eco da explosão continuava a ocupar a câmara,
levantei do pedestal. "Você ainda não respondeu minha
outra pergunta. Como Moisés saiu daqui?"
Ela sorriu. "Talvez ele não tenha fechado a porta por onde
ele entrou e saiu por lá mesmo. Ou, mais provavelmente,
exista mais que uma entrada. O medalhão não sugere mais
de um duto? Um oeste e um leste? Ele fechou a parte oeste,
mas saiu pela leste. A boa notícia é que sabemos que ele
conseguiu. Chegamos até aqui, Ethan. Vamos encontrar o
caminho para fora. O primeiro passo é sair dessa ilha."
"Não antes de eu me servir."
"Não temos tempo para isso!"
"Uma pitada deste tesouro é o suficiente para comprarmos
todo o tempo do mundo."
Eu não tinha um saco decente ou uma mochila. Como posso
descrever as riquezas que tentei vestir? Enrolei colares
suficientes para me causar uma bela dor nas costas e
coloquei mais braceletes que uma puta babilónica. Coloquei
cintos de ouro ao redor da minha cintura e até peguei os
querubins de Moisés e coloquei nas minhas ceroulas. Ainda
assim, não tinha tocado em praticamente nada do tesouro
que descansava sob a Grande Pirâmide. Em contrapartida,
Astiza não tocou em nada.
"Roubar dos mortos é a mesma coisa que roubar dos vivos",
ela alertou.
"Exceto pelo fato de que os mortos não precisam mais",
argumentei, mergulhado por minha ganância ocidental e
meus instintos empreendedores que diziam para não perder
uma oportunidade única como essa. "Quando sairmos daqui,
vamos precisar de dinheiro para continuar procurando pelo
livro", justifiquei. "Pelo amor de Deus, coloque um anel ou
dois nos dedos."
"É má sorte. Pessoas morrem quando saqueiam tumbas."
"É uma simples compensação por tudo que passamos."
"Ethan, tenho medo da maldição."
"Sábios não acreditam em maldições e americanos acreditam
em oportunidades claras como essa. Não vou embora
enquanto você não pegar algo para você."
Ela colocou um anel com prazer similar ao de um escravo
prendendo seus grilhões. Eu sabia que ela pensaria como eu
tão logo saíssemos de lá. Só aquele anel, com um rubi do
tamanho de uma cereja, valia o salário de uma vida toda.
Entramos rapidamente no bote e deixamos a ilha. Percebi
que a superestrutura acima de nós tremia e continuava a
estalar e chiar com o efeito da explosão. Torci para que o
idiota não tivesse usado pólvora demais e comprometido o
teto.
"Devemos levar em conta que Bin Sadr e seus assassinos vão
vir da mesma direção que viemos, se o arrombamento com a
pólvora funcionou", eu disse. "Mas se o medalhão mostrou
um 'V com dois dutos, o outro caminho está no túnel leste.
Com sorte, podemos sair do lado de lá, fechar a porta e estar
longe quando eles descobrirem que saímos."
"Eles vão ficar entorpecidos pelo tesouro também", Astiza
previu.
"Quanto mais, melhor."
O barulho perturbador continuava e foi acompanhado por
um assobio, como uma cascata de areia caindo. Será que a
explosão acionou algum tipo de mecanismo antigo? A
estrutura parecia viva e descontente. Consegui ouvir os
gritos dos capangas de Silano vindo em nossa direção.
Levei Astiza até o portal leste. O cajado de Bin Sadr ainda
estava comigo. Encontramos dois túneis, um descendo e
outro subindo. Escolhemos o que subia. Era quase certeza
que ele nos levaria a um duto ascendente oposto ao que
usamos para descer. Ele subia no mesmo ângulo em direção
à face leste da pirâmide. Mas quanto mais alto escalávamos,
mais alto os sons ficavam.
Descobrimos o porquê rapidamente. Aqueles vazios que
notamos no duto oeste também estavam aqui. E da boca de
cada um deles descia um bloco gigante de granito que selaria
a passagem e qualquer fuga. Um segundo descia depois do
primeiro, e um terceiro além dele. A areia deveria servir de
contrapeso para manter as pedras no lugar. Agora, com a
delicadeza de Silano, o sistema foi acionado para liberar as
travas. Com certeza, os portais estavam se fechando no túnel
por onde entramos também. A essa altura, estávamos presos
sob a pirâmide com os homens de Bin Sadr.
"Rápido! Talvez possamos passar antes que eles fechem!"
Comecei a avançar.
Astiza me agarrou. "Não! Você vai ser esmagado!"
Mesmo enquanto tentava me soltar, eu sabia que ela estava
certa. Eu conseguiria passar pelo primeiro, e, talvez, pelo
segundo. Mas o terceiro me esmagaria, ou, mais
provavelmente, me deixaria enclausurado pela eternidade
entre ele e seu irmão.
"Tem que haver outro caminho", eu disse mais esperançoso
do que confiante.
"O medalhão só mostrava dois dutos." Ela me puxou de volta
pelos colares como se fosse um cachorro de coleira. "Eu
disse que isso era má sorte."
"Não, existe o túnel descendente que deixamos para trás.
Eles não fechariam a saída para sempre."
Corremos de volta e voltamos ao lago subterrâneo e sua ilha.
Conforme chegávamos perto, vimos um brilho e
confirmamos o pior. Vários árabes estavam na ilha do
tesouro, gritando com a mesma alegria que eu senti, e
brigando pelas melhores peças. Então, eles viram nossas
tochas. "O americano!" Bin Sadr gritou. Suas palavras
ecoaram pela água. "Quem matar o desgraçado recebe em
dobro! E o dobro disso se me trouxer a mulher!"
Onde estava Silano?
Eu não resisti e balancei o cajado na direção do bastardo. Foi
como agitar uma capa em frente a um touro.
Bin Sadr e dois homens subiram no bote de alabastro e quase
tombaram, mas deslizaram com o impulso. Os outros três
pularam na água e começaram a nadar.
Sem outra opção, corremos pelo túnel descendente. Ele
também dava a impressão de levar para o leste, mas para as
profundezas do leito de calcário. Temia encontrar um beco
sem saída, como o corredor que vimos com Napoleão. Ouvi
outro som aumentar de volume. Era o rugido profundo e
gutural de um rio subterrâneo.
Talvez fosse a saída!
Chegamos a uma cena de Dante. O túnel acabava numa
plataforma de pedra que dava acesso a uma outra caverna
levemente iluminada por um brilho vermelho. A fonte de
luz era um fosso tão profundo e enevoado cujo fundo eu não
consegui ver. Era uma luminescência que parecia não ser
deste mundo, turva, mas pulsante, como se viesse do reino
de Hades. Rochas se acumulavam em suas bordas e areia
escorria em direção à lua. Algo misterioso se movia lá
embaixo, pesado e grosso. Uma ponte de pedra quebrada,
sinalizada e sem corrimão atravessava a fossa. Ela era coberta
por estrelas amarelas sobre uma base de esmalte azul, como
uma versão invertida do teto de um templo. Quem
escorregasse nunca conseguiria voltar.
A ponte terminava numa escadaria de granito. Um pequeno
curso d'água corria dos degraus em direção ao poço.
Possivelmente era a fonte do vapor. Foi dali que ouvi o
barulho do rio. Mesmo sem poder ver, imaginei que havia
um braço subterrâneo do Nilo ali, correndo pelo lado mais
distante da câmara como um canal de irrigação. O canal
deveria estar no topo da escadaria molhada, um pouco acima
da plataforma em que estávamos.
"Essa é a saída", eu disse. "Só precisamos chegar lá primeiro."
Eu podia ouvir os árabes vindo atrás de nós enquanto eu
corria para a ponte.
De repente, um dos blocos que continha uma das estrelas
cedeu e minha perna ficou presa no buraco. Quase cai na
fossa. Foi sorte eu ter conseguido me agarrar na borda da
ponte e me levantar. O bloco fez um barulho enorme
quando bateu no chão, depois de um bom tempo. Olhei para
a névoa vermelha. O que estava se mexendo lá embaixo?
"Pelas barbas do profeta, acho que tem cobras lá embaixo",
eu disse tremendo enquanto saia da ponte. Ao mesmo
tempo, os gritos dos árabes ficavam mais altos.
"É um teste, Ethan, para punir aqueles que entram sem o
conhecimento. Há algo de errado com a ponte." "Com
certeza."
"Por que pintar o céu no piso da ponte? Porque o mundo
está de cabeça para baixo aqui, porque... o disco do
medalhão! Onde está?"
Depois que Astiza o recuperou nos degraus da pirâmide, eu
o enfiei no bolso. Um souvenir depois de tanto trabalho.
Tirei o objeto e dei a ela.
"Veja", ela disse, "a constelação de Draco. Não é a Estrela do
norte, Ethan. Ê o padrão que temos que seguir." E antes que
eu sugerisse discutirmos o assunto, ela passou por mim e
pisou numa pedra específica da ponte. "Toque apenas nas
estrelas que estão na constelação!" "Espere! E se você estiver
errada?"
Um mosquete disparou e a bala ricocheteou na câmara. Bin
Sadr vinha com tudo.
"Que escolha temos?"
Segui Astiza e usei o cajado de Bin Sadr para me equilibrar.
Mal começamos quando os árabes saíram do túnel e pararam
na borda do poço assim como nós. Eles ficaram ressabiados
com a peculiaridade ameaçadora do lugar. Então, um deles
correu. "Eu pego a mulher!" Porém, ele só avançou alguns
centímetros quando outro bloco cedeu e ele foi
surpreendido. Sem a sorte que eu tive, ele escorregou na
ponte, bateu, gritou e tentou se agarrar com os dedos, mas
caiu e foi batendo nos lados do poço até sumir lá embaixo.
Os árabes foram até a borda da ponte para olhar. Alguma
coisa se mexeu e, rapidamente, o grito da vítima parou.
"Esperem!", Bin Sadr disse. "Não atire neles! Vejam!
Devemos pisar onde eles pisam!" Ele estava me
acompanhando tão cuidadosamente quanto eu acompanhava
Astiza. Então ele pulou onde eu estava. A ponte se manteve.
"Sigam-me!"
Era bizarro. Todos nós imitávamos os saltos de uma mulher.
Outro árabe errou e caiu gritando quando mais um bloco
cedeu. Todo mundo parou para olhar. "Não, não, aquele ali!"
Bin Sadr alertou, apontando. O jogo mortal recomeçou.
Quando cheguei no meio do caminho não era possível ver o
fundo de jeito nenhum. Que espécie de fossa vulcânica era
aquela? Era isso que a pirâmide deveria selar?
"Ethan, mais rápido", Astiza implorou. Ela estava esperando
para ter certeza de que eu pisaria nas pedras certas. Isso dava
tempo para Bin Sadr memorizá-las também. Finalmente, ela
chegou até a escadaria, diminuindo a tensão, e eu dei meu
último salto chegando à Estrela Polar. Dei uma passada
triunfante até os degraus de granito e virei, segurando o
cajado de Sadr, pronto para golpeá-lo. Talvez ele errasse!
Mas não, ele continuou implacável. Seus olhos brilhavam.
"Você não tem para onde fugir, americano. Se você me der
o cajado vou te poupar para ver o que vamos fazer com a
mulher."
Ele estava há alguns passos de distância. Seus três capangas
sobreviventes se amontoaram atrás dele. Se eles avançassem,
estaria perdido.
O árabe parou. "Você vai se render?"
"Vá para o inferno."
"Então atirem nele agora", Bin Sadr ordenou. "Eu lembro das
últimas estrelas." Mosquetes e pistolas começaram a subir.
"Pegue aqui", eu ofereci.
Joguei o cajado para cima, alto, para que ele pegasse. Ele
cerrou os olhos. Instintivamente ele se esticou, inclinou e
segurou o bastão com a velocidade de um réptil e, durante o
processo, moveu seu pé esquerdo inconscientemente para
se apoiar.
A peça-chave da ponte cedeu.
Os árabes congelaram ouvindo a pedra se despedaçar
enquanto ricocheteava fosso abaixo.
Houve um ruído e o som de pedras se desfazendo. Olhamos
para baixo. O bloco iniciou o desmantelamento. A conexão
da ponte com o piso de granito se dissolvia enquanto as
demais pedras se soltavam e caiam. Bin Sadr cometeu seu
erro fatal. Os capangas gritaram e começaram a correr sem
se preocupar em quais pedras pisar, e mais delas caíam.
Bin Sadr saltou para a escadaria de granito.
Se tivesse largado seu cajado, ele poderia ter conseguido
alcançar, ou pelo menos ter me agarrado com uma das mãos
e me arrastado com ele. Mas ele ficou tempo demais com
sua arma favorita. Seu outro braço ainda estava ferido e
fraco e sua mão escorregou na rocha úmida e ele começou a
deslizar para dentro do abismo tentando segurar a si mesmo
e o cajado. Finalmente, ele largou o bastão, segurou numa
pequena rocha e parou sua queda. A arma sumiu de vista.
Ele estava pendurado no precipício, a corrente de água
passava por ele e se dissolvia em vapor. Enquanto isso, seus
companheiros gritavam em pânico quando a ponte
despencou para o inferno e os levou junto. Eles
mergulharam verticalmente e caíram batendo-se contra as
paredes. Vi quando eles desapareceram na névoa.
Bin Sadr se segurava a duras penas. Ele olhava para Astiza
com ódio. "Queria ter assassinado essa puta como aquela que
matei em Paris", ele disse por entre os dentes.
Peguei minha machadinha e apontei para seus dedos. "Isto é
por Taima, Enoc, Minette e todos os outros inocentes que
você vai encontrar no outro lado." E levantei o braço.
Ele cuspiu em mim. "Vou esperar por você lá." E se jogou.
Ele caiu girando em direção ao fundo, sem dar um grito.
Pequenas rochas caíam em seu caminho. E então havia
apenas o silêncio. "Ele morreu?", Astiza cochichou.
Estava tudo tão quieto que tive medo dele ter encontrado
um jeito de escalar de volta. Olhei para baixo. Alguma coisa
se movia lá, mas eu não conseguia ouvir nada além do
barulho da água escada acima. Mas aí comecei a ouvir, bem
baixo no começo, sons de um homem começando a gritar.
Eu já tinha ouvido minha cota de gritos tanto em batalha
quanto de gente ferida. Entretanto, havia algo diferente
neste som. Era um grito abominável carregado de um terror
tão absoluto que meu estômago ficou embrulhado por
pensar no que quer que estivesse lá embaixo. Os gritos
aumentaram e chegaram até o topo. Eu sabia, com uma
certeza macabra, que era a voz de Achmed Bin Sadr.
independente de minha inimizade com o homem, eu
estremeci. Ele estava sofrendo o horror dos amaldiçoados.
"Apófis", Astiza disse. "O deus-serpente do Submundo. Ele
está encontrando o que ele idolatrava."
"isso é mito."
"É?"
Depois do que pareceu ser uma eternidade, os gritos deram
lugar a palavras ensandecidas. E então pararam. Estávamos
sozinhos.
Eu estava com calafrios, de medo e frio. Nos abraçamos, o
mais próximo que podíamos. A luz vermelha do fosso era
apenas luz fria. Enfim, começamos a subir a escadaria e senti
o cheiro do Nilo na cascata. Qual seria o próximo teste do
submundo que enfrentaríamos? Eu não tinha energia - o
desejo, Napoleão diria — para seguir adiante.
Chegamos a uma vala que corria no topo da escada. A água
do Nilo corria de uma abertura parecida com um cano na
parede da caverna até a borda e então desaparecia por outro
túnel na outra extremidade da escadaria. A corrente jorrava
com tanta força que era impossível subir. Nossa única saída
seria seguir o fluxo da água. E isso significava entrar no tubo
sombrio.
Eu sabia que não encontraríamos ar lá dentro.
"Não acho que Moisés veio por aqui."
Capítulo Vinte e Quatro
"Moisés era um príncipe egípcio que sabia como a câmara
foi construída", Astiza disse. "Ele não acionou os cilindros
de granito como aquele tolo do Silano. Ele saiu por um dos
dutos."
"E ele pode ter saído por aqui se entrou num período de
baixa do rio", eu disse. "Mas com o fluxo dessa maneira, que
é quando a porta abre do nosso jeito, está cheio até a boca.
Não tem ar lá dentro. Se entrarmos, precisamos usar a saída
certa ou ficaremos presos."
"Mas então por que uma ponte que testa nosso
conhecimento sobre a constelação?", Astiza perguntou.
"Deve ser possível sair por aqui, mas apenas para pessoas que
conheçam os perigos. Talvez esse seja o último recurso dos
arquitetos, caso algum erro os deixasse presos aqui. Pode ser
um teste de fé e podemos sair daqui."
"Diga que você não está pensando em se jogar nesse tubo até
o Nilo, por favor!"
"E pior do que esperar por uma morte lenta aqui?"
Ela tinha um jeito especial de chegar ao ponto crucial das
coisas. Poderíamos ficar sentados naquela escadaria pela
eternidade, contemplando a ponte quebrada e o granito lá
em cima, ou arriscar no canal. Talvez Thoth tivesse senso de
humor. Lá estava eu, com o medalhão usado e quebrado,
fugitivo, vencido por um profeta do deserto por uns três mil
anos de diferença na corrida atrás do livro, cansado,
dolorido, apaixonado e fantasticamente rico, isto é, se algum
dia pudesse usar o metal que carregava no corpo.
"Sufocar é mais rápido que morrer de fome", concordei.
"Você vai se afogar se não se livrar de boa parte desse
tesouro."
"Você só pode estar brincando! Se vamos pular dentro desse
jato de água, não seria possível, talvez, que o teto se abra em
algum lugar lá na frente, ou que a saída para o Nilo não
esteja tão longe? Não cheguei tão longe para ir embora sem
nada."
"E o que você chama de nada?" Seu sorriso era enganador.
"Bem, tirando você." Realmente parecíamos um casal; uma
pessoa sabe disso quando começa a se enrolar com o que
fala. "Só quis dizer que é muito bom ter um incentivo
financeiro no mundo lá em cima."
"Primeiro temos que salvar o mundo."
"Vamos começar nos preocupando em salvar nosso
pescoço." Olhei para o jato de água negra. "Antes de
tentarmos, acho melhor eu te beijar. Caso seja a última vez,
sabe."
"Uma precaução sensível."
E eu a beijei.
Ela foi tão bondosa em retornar o favor que comecei a ter
todos os tipos de idéias.
"Não." Ela empurrou minha mão boba para o lado. "Sua
recompensa estará do outro lado. Acredite em mim, Ethan."
E, dizendo isso, ela se jogou sobre a pequena mureta, caiu na
água, apontou os pés para baixo e se soltou. Em um segundo
ela estava onde o teto tocava a água. Ela conseguiu tomar
fôlego uma última vez, mergulhou a cabeça e desapareceu.
Pelas jóias de Cleópatra, a mulher tinha coragem! E nem
amarrado eu ficaria sozinho nessa tumba. Então, antes que
eu pudesse teorizar mais sobre o assunto, pulei... mas em
vez de flutuar como uma rolha, eu afundei como um navio a
pique.
Era o tesouro, sabe.
Eu estava tão impotente quanto um rato preso ou uma bala
no cano do rifle. Tentei alcançar o teto para conseguir ar,
mas não cheguei perto. Eu ia batendo no fundo como se
estivesse preso a uma âncora. Amaldiçoando minha sorte,
ou estupidez. Comecei a arrancar tudo. Colares dourados
caíram, esvaziei os bolsos das preciosas gemas, livrei meus
braços dos braceletes. E lá se foram também os cintos
milionários e a tornozeleira que valia tanto quanto uma bela
casa no interior. Anéis caiam como migalhas de pão. Assim
que eu soltava cada uma das peças, elas se perdiam para
sempre. A não ser que alguém revirasse toda a lama do Nilo
ou começasse a abrir as barrigas dos crocodilos.
Com toda essa descarga, comecei a boiar um pouco. Saí do
fundo e deslizei pela galeria subterrânea. Minhas mãos iam
arranhando as paredes na esperança de localizar algum
bolsão de ar já que meus pulmões começavam a apertar e
queimar. Não respire! Gritei mentalmente. Só mais um
segundo. E mais um...
E outro.
E mais ainda. Joguei o resto do tesouro fora.
Meus pulmões queimavam, meus ouvidos estavam quase
explodindo e eu estava cego no escuro.
Eu tinha medo de colidir com o corpo de Astiza, o que
causaria tanto desespero que eu provavelmente engoliria
todo Nilo. Confesso que era a imagem de vê-la esperando
por mim do outro lado que mantinha minha determinação.
Acredite!
Estiquei meu braço numa última tentativa desesperada de
encontrar rochas úmidas e encontrei... Absolutamente nada!
Minha cabeça irrompeu na superfície no mesmo momento
em que minha respiração explodia internamente. Ar! Ainda
estava completamente escuro, mas me esforcei para tomar
fôlego. Então, bati no teto novamente e doeu. Fui sugado
novamente. Ar, ar, só mais um pouco. Oh Deus, como doía.
Eu não conseguia mais agüentar... e então meu peso sumiu.
Fui lançado em direção ao nada e a água caia comigo. Fiquei
surpreso e apavorado, enquanto caia rodando. Enjoei e
vomitei antes de mergulhar numa piscina negra. Emergi
babando, com os olhos piscando e percebi que, novamente,
estava numa caverna de calcário. Finalmente, pude respirar!
E, mais impressionante ainda, eu conseguia enxergar. Mas
como? Sim! Um facho de luz vinha da água no outro lado da
caverna, era o brilho do mundo lá fora! Mergulhei
novamente e nadei com toda a força.
E emergi na margem do Nilo.
Lá estava Astiza, flutuando de costas. As roupas estavam
transparentes e o cabelo negro boiava ao sabor da
correnteza, mas seu corpo estava pálido perto de um baixio
cheio dos juncos de papiro e flores de lótus. Não é possível
que ela tenha se afogado!
Ela rolou e jogou água em mim. Seu sorriso era
recompensador.
"Você se desfez de sua ganância e os deuses deram ar em
retorno", ela provocou.
Troquei o tesouro de Croesus por ar. Thoth tinha senso de
humor.
Fomos até o raso e ficamos perto do junco, descansando no
fundo lamacento apenas com as cabeças fora da água,
enquanto pensávamos no que fazer em seguida. De algum
modo, a noite tinha acabado e passava pouco do amanhecer.
Um sol acalentador tocava nossos rostos e vimos uma trilha
de fumaça saindo do Cairo. Ouvimos tiros e explosões da
luta. A cidade ainda se rebelava e Bonaparte continuava
determinado a suprimir o levante.
"Acho que já fiquei tempo demais no Egito, Astiza",
brinquei.
"A pirâmide está selada e o Livro se foi. Não podemos fazer
mais nada aqui. Mas o que foi perdido continua sendo uma
arma potente. Acho que ainda temos que descobrir que fim
ele levou."
"Ele não foi visto pela última vez com um judeu fugitivo
chamado Moisés, há três mil anos, sem nenhuma notícia
desde então?", ponderei.
"Nenhuma notícia? Como Moisés conseguiu realizar todas as
suas façanhas? Foram apenas as Tábuas dos Dez
Mandamentos que os hebreus carregavam na Arca da
Aliança que garantiram suas vitórias ou eles tiveram mais
alguma ajuda? Por que passar quarenta anos no deserto antes
de invadir a Terra Prometida? Talvez eles estivessem
arquitetando alguma coisa."
"Ou talvez eles não tivessem nenhuma mágica e tiveram que
fazer as coisas do modo tradicional, como montar um
exército, por exemplo."
"Não. O que é o Livro se não outra fonte do mesmo
conhecimento que você e outros cientistas tentam
desvendar nesse momento? O livro daria a sábios de
qualquer nação as informações necessárias para dominar o
mundo. Você acha que Silano e Bonaparte não pensaram
nisso? Você acha que eles não sonham em ter os poderes
dos grandes feiticeiros ou a imortalidade dos anjos?"
"Então você quer passar quarenta anos no deserto
procurando por ele?"
"Não no deserto. Você sabe onde o Livro deve estar,
justamente onde os romanos, árabes, cruzados, templários e
turcos sabiam, e sempre procuravam: Jerusalém. Foi lá que
Salomão construiu seu Templo e é onde a Arca foi
guardada."
"E nós vamos achar o que eles não conseguiram? O Templo
foi destruído pelos babilônios e romanos umas três ou quatro
vezes. Já a Arca, se não foi destruída, bateu asas e fugiu para
os ermos. Isso tudo é tão mítico quanto o Santo Graal."
"Mas sabemos o que estamos procurando. Não é um Graal,
nem um tesouro e muito menos uma arca."
Você sabe como são as mulheres. Quando grudam numa
idéia, só largam se encontrarem algo mais interessante para
fazer. Elas não entendem as dificuldades ou têm a certeza de
que é você quem vai pegar no pesado se surgir alguma
complicação. "Idéia! Vamos procurar por ele, mas só depois
de resolver minhas pendências na América..."
Nossa discussão filosófica acabou quando ouvimos o estalo
de tiros de mosquete e água começou a formar pequenos
gêiseres em nossa volta.
Olhei para a margem. Uma patrulha francesa estava no alto
de uma duna. O conde Alessandro Silano os acompanhava,
vivo e saudável. Enquanto seus capangas correram para a
morte certa, ele foi prudente e ficou do lado de fora.
"Os feiticeiros!", ele gritou. "Peguem eles!"
Bem, pro inferno. O bastardo parecia ser indestrutível
mesmo, mas aposto que ele estava pensando a mesma coisa
de nós. E, claro, ele não tinha a menor idéia do que
trouxemos de lá de dentro, ou melhor, não trouxemos.
Astiza ainda tinha o disco do medalhão e eu me dei conta de
que o querubim de Moisés continuava preso
desconfortavelmente na minha cueca. Hum, talvez ainda
conseguisse fazer algum dinheiro no fim das contas.
Começamos a nadar com toda a força a favor da corrente
para aumentarmos a distância. Quando os soldados desceram
da ribanceira para mirar melhor, já estávamos fora do
alcance.
Ouvi Silano explodindo. "Para os barcos, seus idiotas!"
O Nilo tem cerca de oitocentos metros de largura no trecho
das pirâmides, mas, nas condições em que estávamos,
parecia ter o tamanho do oceano. A mesma corrente que
nos afastava de Silano levava diretamente para a luta no
centro do Cairo. Quando vencemos os últimos metros do rio
e chegamos à margem, pude ver uma bateria de artilharia se
posicionando fora dos muros da cidade e um dos balões de
Conte perto do chão. Ele era inflado e seria utilizado como
posto de observação. Era muito bonito, com suas cores
patrióticas, e carregava vários sacos com pedras nas laterais
para servirem como lastro. O balão me deu uma idéia.
Poderia ser nossa única chance.
"Você já pensou em voar para longe de seus problemas?"
"Agora mais do que nunca." Ela estava tão molhada quanto
um gato que escapou do afogamento.
"Então vamos pegar aquele balão."
Ela limpou os olhos molhados. "Você consegue operar
aquela coisa?"
"Os primeiros aeronautas franceses foram um galo, um pato
e uma ovelha."
Saímos do Nilo e seguimos a ribanceira, andando na direção
de Conte. O conde gritava e apontava para nos denunciar,
mas todos os olhares estavam focados na luta na cidade.
Seria por pouco. Peguei a machadinha, que consegui manter
durante minha longa descida pelo turbilhão de água. Ela já
aparentava bastante desgaste.
"Agora!"
Avançamos. Se alguém tivesse olhado na nossa direção teria
imaginado ver dois árabes rebeldes num primeiro momento
e, depois de muito pensar, dois lunáticos seminus:
molhados, sujos de areia, com olhos selvagens, e
desesperados. Mas a luta nos acobertou e deu o tempo que
precisávamos para chegar até Conte no momento em que o
balão terminava de ser inflado. Um artilheiro subia na cesta.
Astiza distraiu o cientista quando brotou na frente dele
como uma prostituta desgrenhada e mostrou mais de seus
dotes do que nós dois gostaríamos. Conte era um sábio, mas
também era um homem, e ficou estupefato como se Vênus
em pessoa tivesse aparecido diante dele. Enquanto isso, eu
dei uma gravata no artilheiro e o derrubei de seu
movimento. "Desculpe! Mudança de planos!"
Ele recuou e pensou em responder, mas estava confuso
pelos trapos egípcios que eu vestia. Então, para evitar
problemas futuros, coloquei-o para dormir usando a coronha
da machadinha e tomei seu lugar na cesta. Vários soldados
desembarcaram e se alinhavam para atirar, mas foram
atrapalhados por Silano. Ele correu feito doido e parou na
frente da linha de tiro.
"Sinto muito, Nicolas, mas temos que pegar sua nave
emprestada", Astiza disse para Conte enquanto soltava as
amarras que prendiam o balão ao chão. "Ordens de
Bonaparte."
"Quais ordens?"
"Para salvar o mundo!" O balão estava subindo e ficou longe
demais para alcançá-la, mas a corda corria perto no solo.
Então ela pulou e agarrou o cabo, mas ficou pendurada
abaixo da cesta enquanto decolávamos. Conte correu atrás
de nós balançando os braços e trombou com Silano, que
vinha correndo e conseguiu saltar e segurar no último
trecho da amarra. O aumento súbito de peso fez o veículo
perder um pouco de altitude. Estava a apenas quinze metros
do chão.
Silano começou a subir com tenacidade e força. Imaginei
um bulldog subindo.
"Astiza! Rápido!"
A velocidade, porém, aumentava rapidamente.
Astiza subia lentamente por causa do cansaço e Siíano se
aproximava com um olhar de ódio. Estiquei o braço para
baixo e no momento que a mão dela se aproximou, ele
agarrou seu calcanhar. "Ele me pegou!" Ela chutou, e ele
xingou e balançou, mas continuou segurando na corda. E
pegou sua perna novamente. "Ele parece uma sanguessuga!"
Apoiei-me na borda da cesta e me inclinei para puxá-la.
"Vou te trazer para dentro e cortar a corda!"
"Ele está segurando com o outro braço também! Ele vai ficar
preso em mim!"
"Dê um chute nele, Astiza! Lute!"
"Não consigo", ela gritou. "Ele travou minhas pernas."
Olhei para baixo. O maldito apertava as pernas dela como
uma serpente sufocadora. Seu semblante era de pura
determinação. Puxei, mas não agüentava com o peso dos
dois. Juntos, eles pesavam mais ou menos cento e cinqüenta
quilos.
"Diga o que você descobriu, Gage!", ele gritou. "Deixe-me
subir ou vamos todos cair!"
O balão continuou a se mover com dificuldade a pouco mais
de trinta metros do chão. Passamos sobre a ribanceira e
deslizamos para cima do Nilo. Conte corria paralelamente à
margem atrás de nós. Mais a frente, vi uma companhia de
infantaria francesa virar e admirar a cena com espanto.
Passaríamos tão perto que eles poderiam nos matar se
decidissem atirar.
"É o anel!", Astiza berrou lá de baixo. "O anel que você me
fez usar! Esqueci de tirá-lo. É a maldição, Ethan, a maldição!"
"Não existe maldição!"
"Tire ele de mim!"
Mas suas mãos estavam firmes feito ferro na corda e longe
demais, por isso eu não podia tirar a porcaria do anel da mão
dela se não quisesse arrancar a mão fora. Silano estava mais
longe ainda, e não largava das pernas dela.
Isso me deu uma idéia.
"Pegue minha machadinha!", eu disse. "Abra a cabeça dele
como uma noz!"
Ela soltou a mão direita — a que não levava o anel —, pegou
minha arma e desceu com força na direção de Silano. Mas o
desgraçado nos ouviu e quando ela o golpeou, ele largou um
pouco e desceu para que seus braços segurassem os
tornozelos de Astiza. Com isso, ele deixou a cabeça fora do
alcance. A lâmina passou perto do seu cabelo.
Tentei levantar a corda, mas falhei.
"Astiza!", Silano gritou. "Não faça isso! Você sabe que eu te
amo!"
Ela ficou paralisada ao ouvir aquelas palavras. Eu entrei em
choque. Astiza piscava revirando a memória e milhares de
dúvidas tomaram conta da minha mente. Ele a amava? Ela
disse que não o amava, mas...
"Não acredite nele!", eu disse.
Ela estava fora de si. E desceu a machadinha uma vez mais.
"Ethan! Não consigo segurar! Puxe a corda!"
"Está muito pesada! Derrube ele! Os soldados estão mirando!
Eles vão atirar na gente se não subirmos!" Se eu tentasse
descer para derrubar Silano, provavelmente todos cairíamos.
Ela deu um tranco, mas o conde parecia uma craca. Ela
soltou um dos pés.
"Astiza, eles vão atirar!"
Ela olhou para cima em pânico. "Não sei o que fazer." Ela
soluçava. Continuamos a deslizar pelo Nilo.
"Astiza, por favor", o conde pedia. "Ainda temos tempo..."
"Chute! Chute! Eles vão atirar na gente!"
"Não consigo." Ela estava engasgando.
"Chute!"
Astiza olhou para mim com lágrimas nos olhos. "Encontre-
o", ela sussurrou.
Ela girou a machadinha contra a corda, que se partiu com
um estalo.
E, instantaneamente, ela e Silano desapareceram.
Sem o peso extra, o balão subiu como uma rolha de
champagne. Perdi o equilíbrio com o tranco e caí no fundo
da cesta. "Astiza!"
Mas não houve resposta. Ouvi apenas os gritos dos dois
caindo.
Consegui levantar em tempo de ver um splash titânico no
rio. A queda distraiu os soldados por um momento, mas logo
os mosquetes viraram em uníssono em minha direção. Eu
ganhava mais distância. O comando foi dado, vi os tiros
serem disparados e a nuvem de fumaça que eles criaram.
Ouvi vi as balas zunindo, mas nenhuma chegou onde eu
estava.
Vasculhei a superfície do rio. O Sol nascente atrapalhava
minha visão. Será que vi uma cabeça? Talvez duas? Algum
deles sobreviveu à queda? Ou tudo que via era efeito da água
que brilhava em todo o Nilo?
Quanto mais eu me esforçava, menos certeza eu tinha do
que podia ver. Os soldados gritavam na ribanceira. Então,
tudo ficou absurdamente embaçado.
Perdi minha esperança, minha ambição virou poeira e meu
coração estava profundamente sozinho.
Pela primeira vez em muitos anos, eu chorei.
O Nilo lembrava prata derretida e eu estava cego.
Continuei subindo. Conte estava lá embaixo, olhando
estupefato para sua preciosidade perdida. Eu já estava tão alto
quanto um dos mirantes e pude ver os telhados esfumaçados
do Cairo. O mundo começava a parecer de brinquedo e o
som da batalha também diminuía. O vento me levava para o
norte, rio abaixo.
O balão ultrapassou a altura das pirâmides e ficou tão alto
quanto as montanhas. Comecei a imaginar se conseguiria
parar e que, se continuasse,também seria queimado pelo sol
como ícaro. Pude ver o Egito em toda sua glória. Uma
porção esverdeada serpenteava em direção ao sul até se
perder de vista. Ao norte, para onde eu ia, o verde abria
espaço para o delta do Nilo, onde nascia um vasto lago de
águas amarronzadas, repleto de pássaros e salpicado por
palmeiras e tamareiras. Mais além estava o brilho do
Mediterrâneo. Tudo era muito silencioso. As aventuras que
passei recentemente pareciam ser fruto de algum sonho
barulhento e tenebroso. O vime do balão estalava e ouvi um
pássaro cantar. Tirando isso, eu estava sozinho.
Por que a forcei a usar o anel? Agora não tenho nem tesouro
e nem Astiza.
Por que diabos eu não dei ouvidos a ela?
Porque eu precisava do maldito Livro de Thoth para enfiar
um pouco de senso nessa minha cabeça oca, pensei. Porque
eu era o pior sábio do mundo.
Larguei meu corpo na cesta de vime. Tanta coisa havia
acontecido. A pirâmide estava selada, Bin Sadr morto, o Rito
Egípcio derrotado. Tive minha vingança pelas mortes de
Talma e Enoc. Até mesmo Ash estava reunido com seu
povo na luta pelo Egito. Eu não fiz nada de útil, além de
definir em que eu acreditava.
Na mulher que eu tinha acabado de perder.
A busca pela felicidade, pensei amargamente. Qualquer
chance para que aquilo acontecesse tinha acabado de cair no
Nilo. Fiquei furioso, melancólico, e sem vontade de viver.
Queria voltar para o Cairo e descobrir o que aconteceu com
Astiza, independente do preço que pagaria. Eu queria
dormir por mil anos.
O balão não permitia nenhuma das duas coisas. Estava frio
naquela altitude, minhas roupas ainda estavam molhadas e
fiquei zonzo por causa da vertigem. Cedo ou tarde essa
geringonça teria que descer, mas o que fazer depois?
O delta parecia uma terra encantada lá embaixo. As
palmeiras formavam fileiras e os campos completavam o
visual com padrões acolchoados. Tudo parecia limpo, em
ordem e calmo. Pessoas apontavam e corriam atrás de mim,
mas logo eles ficavam para trás. Burros andavam pelas
antigas estradas. O céu era mais azul ainda. Eu estava
vislumbrando o paraíso.
Flutuei para o Nordeste a uma altura de quase um
quilômetro e meio acima da Terra. Em algumas horas avistei
Rosetta, a boca do Nilo e a baía de Abukir, onde a frota
francesa tinha sido destruída. Alexandria estava logo à
frente. Cruzei a costa, as ondas pareciam camadas de creme,
e fui em direção ao Mediterrâneo. Ótimo, eu morreria
afogado no fim das contas.
Por que não deixei o medalhão no começo de tudo isso?
E então vi um navio.
Havia uma fragata no Mediterrâneo que cruzava a costa
perto de Rosetta. O barco de brinquedo brilhava contra o
Sol. O mar estava cheio de espuma das ondas. Bandeiras
balançavam ao vento.
"É o emblema inglês", falei comigo mesmo.
Não tinha prometido a Nelson que retornaria com
informações mais ou menos nesse período? Independente
de minha mágoa, idéias de sobrevivência começaram a
surgir na minha mente.
Mas como eu faria para descer? Agarrei as cordas e tentei
estourar o balão. Não tinha mais minha machadinha nem
meu rifle para furá-lo. Olhei para baixo e a fragata tinha
mudado seu curso para me interceptar e marujos do
tamanho de insetos apontavam em minha direção.
Entretanto, eles não me alcançariam de modo algum se eu
não descesse até o mar. Foi nessa hora que lembrei ainda ter
um pedaço de vela e uma pequena pederneira. Uma presilha
de aço segurava os cabos sob o balão de gás. Descasquei um
pedaço e abri espaço suficiente para bater minha pederneira
contra o metal, o que gerou fagulhas suficientes para
incendiar os fiapos da corda, que, por sua vez, foram
suficientes para ascender minha vela. Protegendo a chama
do vento, coloquei o fogo perto do balão de gás.
Conte me disse que o hidrogênio era inflamável.
Segurei a chama perto da seda, vi que o tecido mudava de
forma...
E um jato de ar quente me atingiu em cheio. Cai na cesta
apavorado.
O saco irrompeu em chamas!
O balão não explodiu já que o estouro inicial não foi tão
violento, mas queimava como um pinheiro seco. Comecei a
cair muito mais rápido do que queria. Conforme as chamas
aumentavam, eu soltava todos os sacos de areia para
amenizar a queda. Eliminar o lastro ajudou muito pouco. O
cesto balançava ferozmente em espiral e um rastro de fogo e
fumaça ficava para trás. Rápido demais! Agora, o manto de
espuma deu lugar a ondas individuais bem definidas. Uma
gaivota gritou perto do balão incandescente que despencava
do céu.
Segurei o melhor que pude e o cesto bateu com tudo. Uma
grande quantidade de água subiu e o balão caiu, chiando ao
apagar, nas águas do Mediterrâneo.
Felizmente, o cesto fazia água, mas numa velocidade lenta, e
as chamas serviam como um sinal imperdível para os
ingleses. A fragata vinha em minha direção.
Meu bote salva-vidas afundou na hora que um bote longo
era baixado do navio. Fiquei na água por apenas cinco
minutos antes de ser recolhido.
Mais uma vez, fui jogado todo ensopado no piso de madeira,
enquanto tripulantes ficavam curiosos e um jovem marujo
olhava para mim como se eu fosse o homem da Lua.
"De onde diabos você veio?"
"Bonaparte", disse ofegante.
"E quem diabos é você?"
"Um espião inglês."
"Aye, eu lembro dele", um dos tripulantes disse. "Tiramos
ele do mar na baía de Bukir. Ele brota da água como uma
maldita bóia de pesca." "Por favor", tossi. "Sou amigo de Sir
Sidney Smith." "Sidney Smith, ah? Isso vamos ver!"
"Eu sei que ele não é querido pela Marinha, mas se você me
colocar em contato..."
"Você pode tentar suas mentiras com ele agora mesmo."
Em pouco tempo, eu estava pingando no tombadilho
superior, tão cansado, acabado, faminto, com sede e
deprimido que tinha certeza que iria definhar. O grogue que
eles me deram desceu queimando tudo no caminho.
Descobri que estava aos cuidados do capitão Josiah
Lawrence, do HMS Dangerous.
Não gostei nem um pouco do nome.
Como disseram, Sidney apareceu. Vestido com o uniforme
de um almirante turco, ele veio até mim depois de sair de
alguma cabine lá embaixo depois de ficar sabendo de meu
resgate. Não sei dizer qual de nós estava mais ridículo: eu,
ensopado como um rato, ou ele, bancando o potentado
oriental.
"Por Deus, é mesmo Gage!", exclamou o homem que eu
tinha visto no acampamento cigano.
"Ele diz ser seu espião", Lawrence anunciou com desgosto.
"Bem da verdade, prefiro me considerar um observador",
disse.
"Pelo Coração do Carvalho ", gritou Smith. "Nelson disse
que entrou em contato com você depois do Nilo, mas
nenhum de nós realmente acreditava que você apareceria
novamente." Ele bateu em minhas costas. "Parabéns, meu
homem, parabéns! Acho que nasceu para isso!"
Tossi. "Também não esperava reencontrá-lo, Sir Sidney."
"Mundo pequeno, não é? Então, espero que você já tenha se
livrado do maldito medalhão a essa altura?"
"Sim, senhor."
"Sabia que aquela coisa só traria problema. Só problema. E
quais as novas de Bonaparte?"
"Há uma revolta no Cairo. E resistência mameluca no sul."
"Esplêndido!"
"Entretanto, não acho que os egípcios consigam derrotá-lo."
"Vamos ajudá-los. E você voou como um pássaro direto do
ninho de Bona?"
"Peguei um de seus balões de observação emprestado."
Ele mostrou admiração com a cabeça. "Espetáculo fantástico,
Gage! Que espetáculo! Cansado do radicalismo francês,
acredito. De volta ao rei e à pátria. Não, espere — você é das
colônias. Mas agora você concorda com o ponto de vista
inglês?"
"Prefiro considerar meu ponto de vista como americano, Sir
Sidney. Tira um monte de problemas do caminho."
"Bem. Certo, certo. Depois de tudo isso você ainda não
consegue abandonar a indecisão nas horas difíceis, não é?
Temos que acreditar em alguma coisa, certo?"
"Bonaparte está falando em marchar sobre a Síria."
"Eu sabia! O bastardo não vai descansar até ocupar o palácio
do Sultão em Istambul! Síria, heim? Então é melhor
marcarmos nosso curso para lá e darmos o aviso. Qual o
nome daquele pasha?" Ele virou para o capitão.
"Djezzar", Lawrence respondeu. "O nome significa
'açougueiro'. Nascido na Bósnia, criado como escravo, e um
homem conhecido por ser inusitadamente cruel numa
região cruel por natureza. O bastardo mais sanguinário num
raio de oitocentos quilômetros."
"Justamente o homem que precisamos para encarar os
franceses!" Smith festejou.
"Não tenho mais nada a tratar com Napoleão", interrompi.
"Só preciso saber se uma mulher com quem eu estava no
Egito sobreviveu a uma terrível queda, e, se possível,
reencontrá-la se ela estiver viva. Depois disso, precisaria
conseguir uma passagem para Nova Iorque."
"Perfeitamente compreensível! Você cumpriu sua parte!
Mas devo dizer que um homem como você seria valioso
para alertar os crioulos sobre este maldito Bonaparte, não é?
Quero dizer, você viu este tirano cara a cara. Fale a verdade,
Gage, você quer ver o Levante? É apenas a primeira pedra
que atiraram no Cairo! Aliás, é o lugar onde você saberá
sobre a tal mulher! Podemos colocar você lá dentro com a
ajuda de nossos espiões infiltrados."
"Talvez se eu perguntar em Alexandria..."
"Mas é só você desembarcar lá e você vai ser alvejado
imediatamente! Ou pior, enforcado por espionagem e roubo
do balão! Ah, claro, os franceses vão afiar as guilhotinas para
você! Essa opção não serve. Eu sei que você é um lobo
solitário, mas deixe a marinha real dar uma ajudinha. Se a
mulher estiver viva, vamos ficar sabendo pela Palestina, e
podemos organizar um ataque com boas chances de resgatá-
la. Admiro sua coragem, mas agora é hora de ter a cabeça
fria, homem."
Ele tinha razão. Acho que entrei para a lista negra de
Napoleão e voltar correndo para o Egito sozinho vai ser mais
suicida do que valente. Meu passeio de balão me deixou a
cerca de cento e sessenta quilômetros de distância de Astiza,
no Cairo. Talvez eu pudesse cooperar com Sir Sidney até
descobrir o que aconteceu. Assim que chegássemos a algum
porto com El Arish ou Gaza, eu faria algum dinheiro com o
querubim. Aí era só ganhar uma rodada de carteado,
conseguir um rifle...
Smith continuava a falar. "Acre, Haifa, Jaffa, todas cidades
históricas. Sarracenos, cruzados, romanos, judeus... quero
dizer, sei exatamente o lugar onde você pode nos dar uma
mãozinha!"
"Uma mãozinha?" Eu queria a ajuda deles, não o contrário.
"Alguém com suas habilidades poderia simplesmente entrar
lá e observar enquanto faz perguntas sobre essa mulher.
Lugar perfeito tanto para seus interesses quanto para os
meus."
"Interesses?"
Ele acenou com a cabeça. Planos brotavam de sua mente
como uma tempestade. Ele me tomou pelos braços como se
eu tivesse caído do céu para resolver todos os seus
problemas.
"Jerusalém!", ele gritou.
E enquanto eu realizava o desejo dos deuses e a sorte nas
cartas, a proa do navio começou a virar.
REFERÊNCIA HISTÓRICA
A invasão de Napoleão Bonaparte ao Egito, em 1798, não foi
apenas uma das maiores aventuras militares de todos os
tempos, mas também uma virada de mesa tanto para a
França, quanto para o Egito e a história da arqueologia.
Para Bonaparte, o Egito provaria, ao mesmo tempo, ser
derrota e ascensão, pois dali ele conseguiu o desespero e a
fama necessários para tomar o controle absoluto da França.
Para o Egito, a invasão francesa foi o início da Era Moderna
depois de séculos de domínio otomano e mameluco. O
conflito não apenas abriu as portas para a tecnologia
ocidental e comércio, como também começou uma
turbulenta era de colonialismo, independência,
modernização e tensão cultural que ainda existem.
Para a arqueologia, o fato de Napoleão ter incluído 167
estudiosos em sua força de invasão foi um divisor de águas.
No início de 1799, soldados franceses descobriram a pedra
de Rosetta, com inscrições em grego, demótico e escritas
antigas que, mais tarde, seriam a chave para decifrar os
hieróglifos. Esse fato - aliado à publicação do monumental
Description de 1'Egypt, em 23 volumes entre 1809 e 1828 -
gerou o nascimento da ciência chamada Egiptologia.
Também foi o começo da moda do visual egípcio e produziu
a fagulha responsável pela fascinação que o Egito exerce até
os dias de hoje.
A idéia de que a Grande Pirâmide de Gize é mais que uma
tumba e que o faraó pode estar enterrado em outro lugar
existe desde o tempo de historiadores antigos como
Heródoto e Diodorus. O quebra-cabeça ficou mais
complicado quando os saqueadores árabes não encontraram
nenhuma múmia, nenhum tesouro e nenhuma inscrição
quando invadiram a estrutura no século nono.
Os últimos dois séculos foram marcados por muita
fascinação, debate, estudo das dimensões das pirâmides,
mistérios e explicações matemáticas. Enquanto os teóricos
mais especulativos acusam os egiptólogos mais renomados
de terem a mente fechada, e alguns acadêmicos apelidaram
os mais modestos de "piramidiotas", ainda há lugar para um
debate sério sobre a estrutura e seus propósitos.
Novos mistérios ainda são descobertos por robôs de
exploração e ainda existem suspeitas de cameras secretas. As
pirâmides de Gize realmente estão localizadas sobre um
platô de calcário que poderia conter cavernas, e Heródoto
relatou a existência de um lado subterrâneo imediatamente
abaixo da estrutura.
Este romance segue o relato histórico da invasão militar de
Bonaparte bem de perto. A maior parte dos personagens é
real, incluindo o jovem Giocante Casabianca, de dez anos de
idade, cuja morte na Batalha do Nilo inspirou um famoso
poema do século 19 chamado "O Garoto que Ficou no
Tombadilho em Chamas". Uma liberdade histórica que
tomei foi a presença de Desaix no templo de Dendara três
meses antes de sua chegada real.
O exército fez uma pausa no final de janeiro, em 1799, e o
ressabiado artista Vivant Denon ficou tão abestalhado com a
maravilha do templo que escreveu, "O que eu vi hoje fez
valer a pena todo o meu sofrimento." Dias depois, quando a
primeira divisão francesa encontrou as ruínas de Karnak e
Luxor, as tropas pararam espontaneamente, aplaudiram e
apresentaram armas.
Muitos detalhes históricos utilizados neste romance,
incluindo a presença dos balões de Conte, são verdadeiros.
Existe debate acadêmico sobre Napoleão ter efetivamente
entrado na Grande Pirâmide e o que aconteceu com ele se
ele o fez, mas o autor visitou o sarcófago de granito assim
como Bonaparte pode ter feito e considerou a experiência
impressionante.
Esta história mistura fatos militares e políticos,
conhecimento maçônico, estudos bíblicos, especulações
místicas e informações sobre o Egito Antigo. Para saber mais
sobre a história da invasão, recomendo Bonaparte in Egypt,
a premiada obra de J. Christopher Herold, de 1962. O livro
contém relatos fascinantes de testemunhas oculares da
expedição incluindo Vivant Denon, o capitão francês Joseph
Marie Mouret e o egípcio Al-Jabarti. Algumas citações
atribuídas a Napoleão neste romance foram extraídas de sua
vida real, embora nem todas tenham sido ditas durante a
Campanha no Egito. Suas próprias palavras o retratam como
um homem fascinantemente complexo.
Existem centenas de trabalhos populares e acadêmicos sobre
a egiptologia. A literatura especulativa e histórica sobre as
pirâmides, deuses antigos e magia egípcia também é vasta.
Uma boa introdução para as teorias alternativas sobre o Egito
Antigo é o livro Pyramid Quest, de Robert Schoch e Robert
McNally, de 2005. Ele menciona o nascimento do Rito
Egípcio da Maçonaria.
N.T.: Aqui o autor faz uma alusão utilizando o nome original da Maçonaria, Freemasonry. Ele
utiliza o radical ^m? (livre), para mostrar a natureza dos primeiros membros do grupo em sua
versão européia.
N.T.: A menção à letra "G" faz sentido se levado em consideração com o inglês de Deus, God.
N.T.: Rom é um termo correspondente ao cigano, por conta de sua língua tida com original, o
Romani, proveniente do norte da Índia.
N.T.: Carroça cigana.
N.T.: Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi ministro das Relações Exteriores da França.
N.T.: Lugre: navio pesqueiro à vela com dois ou três mastros.
N.T.: Navio pesado com dois níveis de canhões e feito para lutar em formação de linha com
outros navios.
N.T.: Ou equinócio vernal.
N.T.: Também conhecido com o Torquemada norte-americano. Foi o inquisidor do célebre
episódio conhecido como as Bruxas de Salém, em 1692.
N.T.: Vela triangular, inclinada em um ângulo de aproximadamente 45 graus.
N.T.: Inseto que penetra pelas roupas e cabelos causando urticaria.
N.T.: Barcos minúsculos, de fundo plano, guarnecidos com canhões.
5 N.T.: Treliça amplamente utilizada no Egito, cujo objetivo era permitir que as mulheres
olhassem para fora, mas não fossem expostas a olhares alheios.
N.T.: Animais gigantescos descritos na Bíblia, provavelmente era o
hipopótamo.
SAGA WILLIAM DIETRICH 02
A CHAVE DE ROSETA
Tradução
Mário Vilela
2008
Unicórnio Azul
Escaneado, Formatado e Revisado Por:
Para minha filha Heidi
A posse do saber não elimina o maravilhamento e o
mistério. Sempre há mais mistério.
Anais Nin
Caros leitores,
Ethan Gage está encrencado de novo, e vocês são os únicos
culpados! Graças à maravilhosa acolhida e interesse que
tiveram para com As Pirâmides de Napoleão, e a época
pitoresca que aquele romance descreve, o meu americano
jogador, "eletricista", protegido de Benjamin Franklin,
atirador certeiro e mulherengo de meia-pataca (a sorte de
Ethan com as senhoras é inegavelmente irregular) está de
volta em A Chave de Roseta. Desta vez, ele se vê metido na
invasão da Terra Santa por Napoleão Bonaparte e na ascen-
são do general ao poder na França, tudo isso em 1799.
Muitos de vocês se perguntam o que teria acontecido à
Astiza, a namorada de Ethan, e ao conde Alessandro Silano,
o vilão, depois que os dois despencam no fecho do livro
anterior. Escrevi A Chave de Roseta para descobrir o
mesmo.
Assim como As Pirâmides de Napoleão, o novo romance
baseia-se num episódio real da assombrosa carreira do
general francês, combinando os primórdios da ciência da
eletricidade e os ensinamentos de Franklin com um mistério
- apoiado em fatos - sobre o Livro de Tot, os templários, o
misticismo judaico e a Pedra de Roseta. As batalhas
realmente aconteceram, e muitas das personagens do livro
(Sidney Smith, o aventureiro inglês; Antoine de
Phélippeaux, o francês fiel ao Antigo Regime e rival de
Napoleão; Al-Djezzar, ou "o Açougueiro"; Gaspard Monge, o
matemático; e Haim Farhi, o judeu desfigurado) existiram.
No trabalho de pesquisa para esta narrativa, chapinhei nos
túneis subterrâneos de Jerusalém, percorri as muralhas de
Acre e subi as trilhas da cidade perdida de Petra. Igualmente
verdadeiro é o golpe de Estado que levou Napoleão ao poder
na França. A maneira pela qual ele transformou seu fracasso
na Terra Santa em triunfo em Paris é o mistério histórico
que está no âmago desta narrativa. Qual era o segredo de
Napoleão?
Recebi mensagens de muitos leitores que apreciaram o ritmo
rápido, o humor irônico e a pesquisa cuidadosa da primeira
caça ao tesouro levada a efeito por Ethan, e penso que vocês
terão mais dessas características em A Chave de Roseta. Já
nas primeiras páginas destas novas peripécias, mesmo quem
ainda não conhece Ethan Gage e suas aventuras, será
imediatamente conquistado pela maneira de ele de ver as
coisas. A Chave de Roseta vem para completar o ciclo da
narrativa, que ao fim me deixa um pouco sem fôlego após
tantas aventuras. Mas sempre há mais mistério...
Boa leitura.
William Dietrich
PARTE 1
- 1 -
Encararmos mil mosquetes apontados para o peito tende
mesmo a nos fazer ponderar se não tomamos a decisão
errada. E ponderar, eu ponderei - com cada boca de
mosquete tão escancarada quanto a boca de um cão de rua a
querer nos morder num beco do Cairo. Mas não: embora eu
seja humilde ao extremo, também tenho minhas pretensões
à superioridade moral - e, no meu entender, não fora eu
quem se perdera, mas o exército francês. Coisa que eu
poderia ter explicado a meu ex-amigo, Napoleão Bonaparte,
se ele não estivesse lá nas dunas, fora do alcance da minha
voz, desinteressado e irritantemente distraído, com seus
botões e suas medalhas reluzindo ao sol do Mediterrâneo.
Na primeira vez em que eu estivera numa praia com
Bonaparte, quando o homem desembarcara seu exército no
Egito, em 1798, ele me disse que os afogados ali seriam
imortalizados na história. Agora, nove meses depois, do lado
de fora do porto palestino de Jafa, eu é que viraria história.
Os granadeiros franceses preparavam-se para atirar em mim
e nos infelizes cativos muçulmanos entre os quais eu fora
jogado - e, mais uma vez, eu, Ethan Gage, tentava achar um
jeito de passar a perna no destino. Vede bem, era uma
execução em massa, e eu caíra em desgraça junto ao general
de quem um dia procurara ser amigo.
Ah, quanto chão nós dois havíamos percorrido em nove
curtos meses!
Entre os coitados dos prisioneiros otomanos, fui me
enfiando atrás do maior que achei, um gigante negro do alto
Nilo que calculei ter espessura suficiente para deter uma bala
de mosquete. Todos nós havíamos sido arrebanhados, tal
qual gado perplexo, numa linda praia. Os olhos se
mostravam arregalados e brancos até nas caras mais escuras,
e o vermelho-escarlate, o amarelo-nata, o verde-esmeralda e
o azul-safira dos uniformes turcos estavam sujos da fumaça e
do sangue após a cidade ter sofrido pilhagem atroz. Havia
marroquinos esbeltos e ágeis, sudaneses altos e
macambúzios, albaneses pálidos e truculentos, soldados de
cavalaria circassianos, artilheiros gregos, sargentos turcos - a
mistura de tropas de um vasto império, todos humilhados
pelos franceses. Não apenas eu ficava confuso diante daquele
falatório ininteligível, mas também eles freqüentemente não
entendiam uns aos outros. A multidão se mexia para lá e
para cá, com os oficiais já mortos, e tal desordem oferecia
um contraste com as fileiras impecáveis de seus vitoriosos
carrascos, dispostos como se estivessem desfilando em
parada. A resistência otomana enraivecera Napoleão (não se
deve jamais colocar numa estaca a cabeça de emissários), e o
número de prisioneiros famintos ameaçava tornar-se um
estorvo para a força invasora. Assim, fizeram-nos marchar
através dos laranjais até uma faixa de areia com o formato de
um crescente, logo ao sul do porto capturado, com o mar
espumante adquirindo um maravilhoso tom verde e dourado
nos baixios, e a cidade queimando, já sem chamas, no alto
do morro. Eu enxergava algumas frutas que ainda se
prendiam aos galhos de árvores estouradas pelos projéteis.
Meu ex-benfeitor e recente inimigo, montado em seu cavalo
à maneira de um Alexandre, estava (pelo desespero e pelo
cálculo extremo) a ponto de exibir uma crueldade de que
seus próprios marechais falariam, aos cochichos, por muitas
campanhas ainda. E, no entanto, ele agora não tinha sequer
a cortesia de prestar atenção! Estava lendo outro daqueles
romances sorumbáticos, seguindo o hábito de devorar uma
página, arrancá-la e passá-la aos oficiais. Eu, descalço e
ensangüentado, estava a apenas vinte milhas em linha reta
do lugar onde Jesus Cristo morrera para salvar o mundo.
Meus dias imediatamente anteriores, de perseguição,
tormenta e guerra, não me haviam convencido de que os
esforços de nosso Salvador conseguiram melhorar de todo a
natureza humana.
"Preparar!" Puxaram-se os cães de um milhar de mosquetes.
Eu tivera de marchar com os outros prisioneiros para a praia
porque os sicários de Napoleão haviam me acusado de espião
e traidor. E, sim, as circunstâncias tinham dado um quê de
verdade a tal caracterização. Mas de modo algum eu
começara com esse objetivo. Era simplesmente um
americano em Paris, alguém cujos incipientes
conhecimentos de eletricidade (e a necessidade de fugir a
uma injustíssima acusação de homicídio) fizeram que fosse
incluído na companhia dos cientistas, ou savants, de
Napoleão durante a brilhante conquista do Egito pelo
general. Eu também desenvolvera aptidão para estar do lado
errado na hora errada. Levara tiro da cavalaria mameluca, da
mulher que eu amava, de degoladores árabes, de belonaves
britânicas, de fanáticos muçulmanos, de pelotões franceses -
e olhem que sou um sujeito afável!
Minha mais recente nêmesis francesa era um patife
chamado Pierre Najac, um assassino e larápio que não
conseguia superar o fato de que certa vez eu o baleara na
diligência para Toulon, quando tentou me roubar um me-
dalhão sagrado. E uma história complicada, como atesta o
volume anterior. Najac reaparecera em minha vida tal qual
uma dívida que nos persegue, e ele, cutucando-me as costas
com um sabre de cavalaria, obrigara-me marchar na fileira
de prisioneiros. O canalha estava antegozando meu iminente
passamento com a mesma sensação de triunfo e asco que se
tem ao esmagar uma aranha particularmente irritante. Já eu
lamentava não ter apontado um tantinho mais alto, e duas
polegadas para a direita, quando atirara nele.
Como já tive ocasião de observar, tudo parece começar com
a jogatina. Lá em Paris, fora um jogo de cartas o que me
rendera o misterioso medalhão e dera início à encrenca.
Agora, o que parecia um jeito simples de recomeçar - tirar
cada xelim dos perplexos marujos da HMS Dangerous antes
que os britânicos me desembarcassem na Terra Santa - não
resolvera absolutamente nada e, podia-se argumentar,
levara-me à presente enrascada. Permitam que eu repita: o
jogo é um vício, e é tolice confiar na sorte. "Apontar!"
Mas estou colocando o carro na frente dos bois.
Eu, Ethan Gage, passei a maior parte dos meus trinta e
quatro anos tentando ficar longe de demasiada confusão e de
demasiado trabalho. Como por certo diria o grande e
falecido Benjamin Franklin (meu mentor e ex-empregador),
essas duas ambições são tão opostas quanto a eletricidade
positiva e a negativa. O anseio por uma, não trabalhar, vai
quase certamente fazer gorar a outra, não arrumar confusão.
Mas, assim como a dor de cabeça que se segue ao álcool ou à
traição que causam as belas mulheres, trata-se de uma lição
que esquecemos com a mesma freqüência em que as
aprendemos. Foi minha aversão ao trabalho pesado o que
reforçou meu gosto pela jogatina, rendendo o medalhão, que
me levou ao Egito com metade dos vilões do mundo em
meu encalço, e o Egito trouxe minha linda, e perdida, Astiza
a mim. Ela, por sua vez, convencera-me de que
precisávamos salvar o mundo do amo de Najac, o conde e
feiticeiro franco-italiano Alessandro Silano. Tudo isso, meio
sem que eu esperasse, colocou-me do lado contrário a
Bonaparte. No decorrer dos acontecimentos, apaixonei-me,
encontrei uma entrada secreta para a Grande Pirâmide e fiz
as descobertas mais surpreendentes de todos os tempos, só
para perder tudo o que eu prezava quando me vi obrigado a
fugir de balão.
Eu avisei que era uma história complicada.
Fosse como fosse, minha bela e exasperante Astiza -
primeiro candidata a assassinar-me, depois minha serva,
depois sacerdotisa do Egito - caíra do balão no Nilo, junto
com meu inimigo, Silano. Desde então, eu vinha tentando
desesperadamente saber o paradeiro dela, com aflição
redobrada pelo fato de que as últimas palavras de meu
inimigo a Astiza foram: "Sabes que ainda te amo!". Que tal
uma coisa dessas para vir nos espreitar o pensamento à
noite? Qual era afinal o relacionamento entre Astiza e
Silano? Foi por isso que concordei em deixar que sir Sidney
Smith, aquele inglês maluco, desembarcasse-me na Palestina
logo adiante do exército invasor de Bonaparte, para que eu
fizesse investigações. Uma coisa levou a outra, e agora lá
estava eu, encarando mil bocas de mosquete.
"Fogo!"
Antes que eu lhes conte o que aconteceu quando os
mosquetes cuspiram fogo, talvez deva voltar ao ponto em
que se interrompera meu relato anterior, no final de outubro
de 1798, quando me vi sem escapatória no convés da fragata
Dangerous, que rumava para a Terra Santa com velas
enfunadas, lépida, singrando o mar espumoso. Quão
animado era tudo aquilo - a bandeira inglesa desfraldada, os
robustos marujos a puxar as rijas cordas de cânhamo com
uma cantoria enérgica, os altivos oficiais de chapéu bicorne
a percorrer o castelo de popa, os vários canhões a orvalhar-
se pela espuma do Mediterrâneo, as gotinhas a secar em
estrelas de sal. Em outras palavras, era justamente o tipo de
iniciativa militante e viril que eu aprendi a detestar, tendo
escapado por pouco à carga violenta de um guerreiro
mameluco na Batalha das Pirâmides e ao sem-número de
traições de um árabe adorador de cobras chamado Achmed
bin Sadr, o qual eu finalmente despachara para um inferno
condizente. Eu estava um pouco cansado de aventuras
frenéticas e mais do que disposto a voltar correndo para
Nova York e assumir um belo emprego de contador,
escriturário ou talvez despachante, cuidando de testamentos
chatíssimos para viúvas trajadas de preto, e proles ingênuas e
nada merecedoras. E, uma escrivaninha e uns livros-caixa
empoeirados - aquilo sim é vida! Mas sir Sidney não queria
saber de nada disso. Pior: eu enfim decidira o que era
importante para mim no mundo - Astiza. Eu não poderia
simplesmente arrumar passagem para casa sem saber se ela
sobrevivera à queda com o vil Silano e se poderia, de algum
modo, ser resgatada.
A vida era mais simples quando eu não tinha princípios.
Smith estava paramentado como almirante turco,
arquitetando uma borrasca de planos e mais planos.
Recebera a incumbência de ajudar os turcos e seu Império
Otomano a frustrarem mais avanços dos exércitos de
Bonaparte do Egito para a Síria, já que a esperança do jovem
Napoleão era abocanhar para si um império no Oriente. Sir
Sidney precisava de aliados e informações e, após ter-me
pescado do Mediterrâneo, dissera-me que seria vantajoso
para nós dois se eu me unisse a ele. Assinalou que seria
temerário de minha parte tentar voltar para o Egito e encarar
sozinho a ira dos franceses. Na Palestina, por outro lado, eu
poderia fazer indagações sobre o paradeiro de Astiza, ao
mesmo tempo que avaliava as diversas facções que poderiam
alinhar-se contra Napoleão. "Jerusalém!", gritara sir Sidney.
Será que ele enlouquecera? Segundo todos os relatos, aquela
cidade semi-esquecida, um buraco otomano tomado pela
sujeira e história, pelo fanatismo religioso e pela doença, só
sobrevivera impingindo o turismo obrigatório aos crédulos e
facilmente logrados peregrinos de três religiões. Mas,
quando se era um guerreiro e maquina-dor inglês como
Smith, Jerusalém tinha a vantagem de ser uma encruzilhada
da complexa cultura da Síria, um antro poliglota de
muçulmanos, judeus, greco-ortodoxos, católicos, drusos,
maronitas, turcos, beduínos, curdos e palestinos, todos
recordando ofensas feitas uns aos outros vários milênios
antes.
Sinceramente, eu nunca me aventuraria nem a cem milhas
daquele lugar, e só o fiz porque Astiza convenceu-me de
que Moisés roubara das entranhas da Grande Pirâmide um
livro sagrado da antiga sabedoria, e de que os descendentes
dele haviam levado o livro para Israel. Com isso, Jerusalém
se tornava o paradeiro mais provável do objeto. Até aquele
momento, o tal Livro de Tot só rendera dissabores. Mas, se
ele de fato contivesse as chaves para a imortalidade e o
domínio do universo, eu não podia de jeito nenhum
esquecê-lo, podia? De um modo ilógico, havia mesmo lógica
em ir para Jerusalém.
Smith me imaginava um cúmplice de confiança, e, a bem
dizer, tínhamos realmente uma espécie de aliança. Eu o
conhecera num acampamento cigano, depois que baleei
Najac. O sinete que Smith me dera salvou-me de ser
enforcado no mastro pelo almirante Nelson, após aquela
bagunça no Nilo. E Smith era um herói de verdade, que
queimara navios franceses e escapara de uma prisão
parisiense fazendo sinal das grades da janela para uma de
suas ex-companheiras de cama. Depois que peguei um
tesouro faraônico sob a Grande Pirâmide, perdi-o para não
me afogar e roubei um balão de meu amigo e colega savant
Nicolas-Jacques Conte; fiz um pouso forçado no mar e me vi
encharcado e totalmente desprovido de dinheiro no castelo
de popa da Dangerous, com o destino me pondo outra vez
cara a cara com sir Sidney e me deixando tão à mercê dos
britânicos quanto eu estivera dos franceses. Meus
sentimentos (de que eu já estava bastante farto de guerra e
tesouros e me encontrava pronto para voltar para casa, na
América) foram alegremente desconsiderados.
"Assim, Gage, enquanto investigas na Palestina síria o
paradeiro dessa mulher com quem te encantaste, podes
também sondar os cristãos e judeus a respeito da possível
resistência a Bonaparte", dizia-me Smith. "Pode ser que eles
tomem o partido dos franceses, e, se Bonaparte estiver
levando um exército para lá, nossos amigos turcos vão
precisar de toda a ajuda que puderem conseguir." Ele me
segurou pelo ombro. "Eu penso que és justamente o homem
para esse tipo de trabalho: esperto, afável, errante e
desprovido de escrúpulos e crenças. As pessoas te contam
coisas, Gage, porque acham que não tens importância!"
"É só porque sou americano, e não britânico nem francês..."
"Exatamente. Perfeito para o que queremos. Djezzar vai se
impressionar com o fato de que até um homem superficial
como tu tenha abraçado a causa."
Al-Djezzar, cujo nome significava "o Açougueiro", era o
notoriamente cruel e despótico paxá de Acre, com quem os
britânicos contavam para combater Napoleão. Uns e outros
encantados com a perspectiva, disso eu tinha certeza.
"Mas só tenho rudimentos de árabe e não sei nada sobre a
Palestina", observei sensatamente.
"Isso não é problema para um agente sagaz e intrépido como
tu, Ethan. Em Jerusalém, a Coroa tem um colaborador de
codinome Jericó, um ferreiro de ofício que já serviu na
nossa marinha. Ele pode te ajudar a procurar essa Astiza e
trabalhar para nós. Jericó tem até contatos no Egito! Alguns
dias com tua manha diplomática, mais a oportunidade de
caminhar por onde andou o próprio Jesus, e estarás de volta
com nada mais sério que poeira nas botas e alguma relíquia
sagrada no bolso, tendo solucionado todos os teus
problemas. É mesmo formidável como essas coisas se
resolvem. Entrementes, vou ajudar
Djezzar a organizar a defesa de Acre no caso de Bonaparte
marchar para o norte, como vens nos alertar. Logo, logo,
seremos considerados dois verdadeiros heróis, festejados nos
salões de Londres!"
Sempre que as pessoas começam a nos elogiar e usar palavras
como "formidável", é hora de checar se já não nos furtaram
nada. Mas - pela batalha de Bunker Hill! - eu estava mesmo
curioso a respeito do Livro de Tot e vinha me afligindo com
a lembrança de Astiza. O sacrifício que ela fizera para salvar-
me fora o pior momento da minha vida (sinceramente, pior
até do que quando meu adorado fuzil da Pensilvânia
explodiu), e o buraco no meu coração era tão grande que
uma bala de canhão podia atravessar por ali sem esbarrar em
nada pelo caminho. Aliás, boa frase para usar com uma
mulher, e eu queria tentar essa tirada com Astiza... Assim, é
claro que eu disse sim - a palavra mais perigosa do idioma.
"Mas vede - estou sem roupas, sem armas e sem dinheiro",
assinalei. A única coisa que eu conseguira reter da Grande
Pirâmide haviam sido dois pequenos serafins de ouro, uns
anjinhos ajoelhados que Astiza afirmava provirem do cajado
de Moisés e que eu, um tanto vergonhosamente, enfiara nas
ceroulas. Minha primeira idéia fora penhorá-los, mas eles
adquiriram valor sentimental, apesar de me provocarem
coceira. No mínimo, no mínimo, eram uma reserva de
metal precioso que eu preferia não revelar. Então, que Smith
me desse uma verba, já que estava tão ansioso para alistar-
me.
"Esse teu gosto por roupa árabe vem perfeitamente a calhar",
disse o capitão-de-mar-e-guerra britânico. "E ganhaste um
bronzeado bem trigueiro, Gage. Para passar por nativo, basta
arranjar turbante e capa em Jafa. Quanto a levar alguma arma
inglesa, isso poderia te fazer parar numa cadeia turca se
desconfiarem que és espião. O que vai te manter a salvo é a
sagacidade. Mas eu posso te emprestar uma lunetinha. Ela é
formidável, perfeita para acompanhar claramente os
movimentos de tropas."
"Ainda não falastes em dinheiro."
"A verba régia será mais que suficiente."
Ele me deu uma pequena bolsa com uma quantidade variada
mas reduzida de moedas de prata, bronze e cobre: reais
(espanhóis), piastras (otomanas), um copeque (russo) e dois
risdales (holandeses). Ah, a verba governamental!
"Mas isto mal paga o desjejum!"
"Não posso te dar esterlinas, Gage, porque elas te
denunciariam num instante. Mas és homem de muita
capacidade, hein? Estica os tostões! Deus sabe que o
Almirantado tem de fazer a mesma coisa!"
Bem, eu já podia começar a mostrar capacidade ali mesmo,
pensei com meus botões: talvez eu e os tripulantes que não
estivessem de serviço pudéssemos matar o tempo com um
joguinho cordial de cartas. Quando eu ainda não caíra em
desgraça como savant na expedição de Napoleão ao Egito,
gostava de conversar sobre as leis da probabilidade com
figuras ilustres como o matemático Gaspard Monge e o
geógrafo Edme-François Jomard. Eles me haviam estimulado
a pensar de modo mais sistemático sobre probabilidade e
vantagem da banca, aguçando minhas habilidades de
jogador.
"Será que posso chamar vossos homens para um carteado?"
"Hum... Cuidado para que eles não fiquem com o teu
desjejum!"
— 2 —
Comecei com brelan, que não é ruim para jogar com
marujos simplórios, dependendo como é o blefe. Nisso, eu
trazia alguma prática dos salões de Paris (só o Palais Royale
tinha cem salas de jogo em meros seis acres), e os honrados
marujos britânicos não eram páreo para alguém que eles logo
estavam chamando de francês duas-caras. Por conseguinte,
após haver tirado deles o máximo possível, para tanto
fingindo que tinha cartas melhores (ou insinuando estar
vulnerável quando, na realidade, a mão me deixava mais
armado que a cinta repleta de ferros e bocas de fogo de um
bei mameluco), propus jogos que pareciam exigir mais sorte
que outra coisa. Marinheiros e tenentinhos que já haviam
perdido meio mês de soldo num jogo de habilidade vieram
ansiosamente apostar o soldo inteiro num jogo pura e
simplesmente de azar.
Só que, naturalmente, as coisas não seriam assim. No
lansquenê, a banca (eu) lança uma aposta que os outros
precisam igualar. Viram-se duas cartas, a da esquerda a
minha, a da direita a do apostador. Eu então começo a virar
outras cartas até achar par para uma das duas primeiras. Se é
o par da carta da direita, ganha o apostador; se é o par da
carta da esquerda, ganho eu. As chances são iguais, não é
mesmo?
Mas, se as duas primeiras cartas são iguais, a banca ganha de
imediato, numa ligeira vantagem matemática que, após
várias horas, deu-me boa margem de lucro e os fez implorar
por um jogo diferente.
"Vamos então experimentar faraó", sugeri. "Já virou
coqueluche em Paris, e tenho certeza de que a sorte dos
senhores vai mudar. Afinal, sois meus salvadores, e estou em
dívida convosco."
"E, vamos recuperar o dinheiro que perdemos, ianque
trapaceiro!"
Faraó, entretanto, é um jogo ainda mais vantajoso para a
banca, pois esta ganha automaticamente a primeira carta. E
não se conta a última carta no baralho de cinqüenta e duas, a
qual é do apostador. Ademais, a banca ganha sempre que as
cartas são iguais. Não obstante a obviedade de minha
vantagem, eles acharam que com o tempo levariam a
melhor sobre mim, jogando a noite toda, quando o que
aconteceu foi exatamente o oposto: quanto mais o jogo se
estendia, mais minha pilha de moedas aumentava. Quanto
mais eles pensavam que a sorte inevitavelmente me
abandonaria, mais minha vantagem se tornava inexorável.
Numa fragata que ainda não apresara nada, os ganhos eram
parcos, mas havia tanta gente querendo levar a melhor sobre
mim que, quando avistamos o litoral da Palestina, minha
pobreza já se remediara. Meu velho amigo Monge teria
simplesmente dito que a matemática reina soberana.
Quando se tira dinheiro de um homem, é importante
tranqüilizá-lo com a certeza de que ele jogou
brilhantemente e foi apenas vítima dos caprichos do azar, e
ouso dizer que distribuí tamanha solidariedade em tal grau
que me tornei amigo do peito de figuras que eu espoliara ao
extremo. Agradeceram-me por eu ter feito quatro
empréstimos a juros altos aos perdedores mais lamentáveis, e
isso enquanto eu embolsava lucro suficiente para instalar-me
em Jerusalém em grande estilo. Quando devolvi o medalhão
com retrato de namorada que um dos tolos penhorara, eles
já estavam prestes a me eleger presidente.
Dois de meus oponentes, porém, mantiveram-se
teimosamente insensíveis a tal charme. "Tens a sorte do
capeta", observou com olhar furioso um enorme fuzileiro
naval, de cara vermelha, que atendia pelo bastante preciso
apelido Big Ned. Ele disse aquilo enquanto contava e
recontava os dois tostões que lhe restaram.
"Ou a sorte dos anjos", aventei. "Jogaste de modo magistral,
meu camarada, mas parece que a divina providência tem
sorrido para mim nesta longa noite." Dei um sorriso de
orelha a orelha, procurando parecer tão afável quanto Smith
me descrevera. Em seguida, tentei reprimir um bocejo.
"Homem nenhum consegue ser tão sortudo por tanto
tempo."
Dei de ombros. "Fui apenas feliz."
"Eu quero que jogues com os meus dados", disse o fuzileiro,
com mirada tão estreita e torta quanto uma viela de
Alexandria. "Aí veremos se és mesmo sortudo."
"Meu caro nauta, uma das marcas do homem inteligente é a
relutância em confiar nos dados de outrem. Os dados são os
olhos do demônio."
"Estás com medo de me dar a chance de recuperar o que
perdi?"
"Não, estou simplesmente satisfeito em jogar o meu jogo e
deixar-te jogar o teu."
"Ora, ora, acho que esse americano é meio covardão",
escarneceu o amigo do fuzileiro, um homem mais atarracado
e mais feio que chamavam de Little Tom. "Está morrendo de
medo de dar uma colher de chá a dois honrados fuzileiros..."
Se Ned tinha a massa de um cavalo, Tom ostentava a vileza
compacta de um cão de rinha.
Comecei a ficar receoso. Outros marujos acompanhavam o
diálogo com interesse cada vez maior, já que eles também
não reaveriam seu dinheiro de nenhuma outra maneira.
"Muito pelo contrário, senhores - nas cartas, já nos batemos
a noite toda. Lamento que tenhais perdido, estou certo de
que destes o melhor de vós e admiro tal perseverança, mas
talvez devêsseis estudar a matemática das probabilidades. É o
homem quem faz a própria sorte."
"Estudar o quê?", quis saber Big Ned.
"Eu acho que ele quis dizer que trapaceou", interpretou
Little Tom. "Ora, não há por que falarmos em
desonestidade."
"E, mas os fuzileiros estão pondo em dúvida a tua honra,
Gage", declarou um capitão-tenente de quem eu abiscoitara
cinco xelins. Ele disse aquilo com mais entusiasmo do que
eu gostaria de ter ouvido. "Consta que és um atirador e tanto
e que lutaste bastante bem contra os franceses. Não vais dei-
xar esses fuzileiros questionarem o teu bom nome, vais?"
"Claro que não, mas todos vimos que foi um joguinho jus..."
Big Ned martelou o punho contra o convés, e um par de
dados saltou de sua manopla como se fossem pulgas.
"Devolve o nosso dinheiro, joga com estes dados ou
encontra-me no convés da bateria ao meio-dia." Ele disse
isso num resmungo, com um sorriso afetado apenas o
suficiente para irritar. Ficou claro que Ned era de um
tamanho tal que não estava acostumado a perder.
"Ao meio-dia já estaremos em Jafa", respondi, saindo pela
tangente.
"Então, teremos ainda mais tranqüilidade para discutir o
assunto lá entre os canhões."
Bem, o que eu devia fazer estava suficientemente claro.
Levantei-me. "É, precisas mesmo aprender uma lição. Que
seja ao meio-dia, então."
Os presentes aprovaram aos brados. Para que a notícia da
briga se espalhasse por toda a Dangerous, só demorou um
pouquinho mais do que a fofoca de um encontro amoroso
clandestino levava para ir de uma ponta a outra da Paris
revolucionária. A marujada supôs que seria uma luta na qual
eu, por conta de cada tostão que ganhara, me debateria
dolorosamente ante o peso da mão e a força dos braços de
Big Ned. Aí, quando já tivesse sido amassado o bastante, eu
imploraria para devolver todos os meus ganhos do jogo. A
fim de distrair desse futuro desagradável minha tão fértil
imaginação, subi ao castelo de popa para observar nossa
aproximação de Jafa, testando a nova luneta.
Era um telescopiozinho de visão muito nítida, e o principal
porto da Palestina, meses antes de Napoleão vir a tomá-lo,
constituía-se de um farol numa costa que de resto era plana
e nevoenta. Jafa coroava uma colina com fortes, torres e
minaretes, e suas construções de teto abobadado desciam em
degraus para todos os lados, qual pilha de tijolos. Tudo estava
cercado por uma muralha que, na direção do mar,
encontrava o cais do porto. Terra adentro, havia laranjais e
palmeiras e, mais além, campos dourados e pastagens
castanhas. Canhões negros se projetavam de seteiras, e,
mesmo de duas milhas de distância, ouvíamos os gemidos
dos muezins a chamar os fiéis para a prece.
Em Paris, eu provara laranjas de Jafa, afamadas porque a
casca espessa possibilita que sejam transportadas para a
Europa. Havia tantas árvores frutíferas que a próspera cidade
mais parecia um castelo na floresta. Estandartes otomanos
tremulavam à brisa morna do outono, tapetes pendiam dos
balaústres, e o cheiro dos fogos a carvão vegetal chegava à
água. Próximo à costa, havia alguns recifes de aspecto
perigoso, sinalizados por pequenos anéis concêntricos
brancos, e o pequeno porto estava cheio de dhows e
faluchos. Assim como as outras embarcações grandes,
ancoramos em mar aberto. Uma flotilha de pequenas balsas
árabes veio ver que negócios poderia oferecer, e me preparei
para partir.
Depois, é claro, que eu tivesse me acertado com aquele
fuzileiro descontente.
"Gage, eu soube que a tua famosa sorte te meteu num rolo
com Big Ned", disse sir Sidney, passando-me o saco de
bolachas de bordo que, supunha-se, deveria bastar para me
alimentar até Jerusalém. Os ingleses não são conhecidos pela
boa culinária. "O homem é um touro e tem cabeça de aríete,
sendo tão tapado quanto. Tens algum plano para embromá-
lo?"
"Sir Sidney, eu até tentaria jogar com os dados de Big Ned,
mas desconfio que, se eles fossem um tantinho mais
pesados, fariam esta fragata adernar."
Ele riu. "É, ele já usou de trapaça com mais de um desses
infelizes que foram alistados na marra - e tem músculos para
calar qualquer reclamação. Big Ned não está acostumado a
perder. Não foram poucos os que gostaram de ver-te passar a
perna nele. Que pena que, na briga, essa tua cachola vá pagar
o pato."
"Poderíeis proibir a luta."
"A tripulação está inflamada para diabo e só vai poder
desembarcar em Acre. Um bom arranca-rabo ajuda a
sossegá-los. Mas pareces bem lépido, hein? Faze-o dançar!"
Deveras. Desci para procurar Big Ned e o achei perto do
fogo da cozinha, onde ele ia passando banha na imponente
musculatura, para que eu não tivesse como segurá-lo.
Brilhava tal qual um ganso na mesa de Natal.
"Poderíamos ter uma palavrinha em particular?"
"Estás arregando, não?" Abriu um sorriso de orelha a orelha.
Seus dentes pareciam grandes como as teclas de um desses
pianos modernos.
"Acabo de ponderar o assunto e cheguei à conclusão de que
o nosso inimigo comum é Bonaparte e de que não há por
que hostilizarmos um ao outro. Mas ainda tenho o meu
amor-próprio. Vem comigo e vamos acertar tudo longe dos
olhares dos outros."
"De jeito nenhum. Vais devolver o que deves não apenas a
mim, mas a cada marujo e fuzileiro deste navio!"
"Impossível. Não sei quem deve o que a quem. Mas, se me
acompanhares agorinha mesmo e prometeres me deixar em
paz, eu te devolvo o dinheiro em dobro."
Agora os olhos deles brilhavam, gananciosos. "Maldito sejas
- vais me dar o triplo!"
"Então vem até a coberta inferior para que eu lhe mostre a
minha bolsa sem criar escarcéu."
Big Ned bamboleou atrás de mim como um urso de circo
obtuso, mas ávido. Descemos à parte mais baixa da fragata, lá
onde se guardavam os suprimentos.
"Escondi o dinheiro aqui embaixo, para que ninguém o
furtasse", eu disse, levantando um alçapão que levava ao
porão. "Ben Franklin, o meu mentor, afirmava que a riqueza
aumenta as preocupações, e atrevo-me a dizer que ele tinha
razão. Farias bem em te lembrares disso."
"Que se dane o rebelde do Franklin! Ele devia ter sido
enforcado!"
Enfiei o braço pelo alçapão. "Ai, ai, ai - a bolsa saiu do
lugar... Acho que caiu..." Olhei bem em volta e, erguendo a
vista para aquele Golias ameaçador, usei do mesmo
desamparo fingido que várias mulheres haviam usado para
comigo. "Perdeste quanto no jogo? Três xelins?"
"Por Deus, foram quatro!"
"Então triplica isso..."
"Justamente - agora estás me devendo dez!"
"O teu braço é mais comprido que o meu. Será que podes
me dar uma ajuda?"
"Estica o braço tu mesmo!"
"Eu só consigo tocar a bolsa com a ponta dos dedos. Talvez
possamos achar um gancho..." Fiquei ali de pé, com cara de
perdido.
"Ianque canalha..." Ele se abaixou e enfiou a cabeça pelo
alçapão. "Não estou vendo porcaria nenhuma."
"Ali, à direita - vês aquele brilho da prata? Estica o braço o
mais que puderes."
Big Ned resmungou, com o tronco atravessado no alçapão,
espichando-se e tateando.
Nisto, com uma vigorosa levantada, eu o fiz seguir o resto do
caminho para o porão. O homem era pesado como um saco
de farinha, mas isso, depois que ele já estava mesmo indo
abaixo, foi uma vantagem. Big Ned caiu, ouviu-se um baque
e um chape, e, antes que ele pudesse urrar bastante na água
sebosa do fundo do navio, eu já fechara e trancara o alçapão.
Céus, que linguajar vinha agora lá de baixo! A fim de abafá-
lo, rolei alguns barris de água para cima do alçapão.
Depois, peguei a bolsa de onde estava realmente escondida
(entre dois barris de bolacha de bordo), enfiei-a nas calças e
subi saltando, de mangas arregaçadas, para o convés da
bateria. "Os sinos do navio deram meio-dia!", gritei. "Em
nome do rei Jorge, onde foi que ele se meteu?"
Ergueu-se um coro a chamar Big Ned aos gritos, mas não
houve resposta.
"Ele se escondeu, é? Bem, não vou culpá-lo por não querer
me enfrentar." Só para manter as aparências, ensaiei
movimentos de boxe.
Little Tom estava rubro. "Por Satanás, eu é que vou te dar
uma sova!"
"Não vais, não. Não vou brigar com cada homem deste
navio."
"Ned, vem dar o que esse americano merece!", chamou
Tom, gritando.
Mas não teve resposta.
"Será que ele foi tirar uma soneca lá nos mastaréus?" Ergui os
olhos para o velame e então me diverti vendo Little Tom
subir para escalar o mastro com dificuldade, berrando e
suando.
Passei algum tempo ali embaixo, portando-me como um
galo impaciente. Depois, tão logo ousei fazê-lo, eu me voltei
para Smith. "Quanto tempo vamos ficar esperando esse
covarde? Eu e vós sabemos que temos assuntos a tratar em
terra firme."
A tripulação estava visivelmente decepcionada e
extremamente desconfiada. Smith sabia que, se eu não saísse
logo da Dangerous, ele provavelmente perderia seu mais
recente - e único - agente americano. Tom, ofegante e
frustrado, pulou de novo para aquele convés. Smith
verificou a ampulheta. "É, já passa de quinze do meio-dia, e
Ned teve a chance dele. Vai-te, Gage, e cumpre tua tarefa
em nome do amor e da liberdade."
Houve um urrar de descontentamento.
"Não jogueis cartas se não podeis vos dar ao luxo de perder!",
berrou Smith à marujada.
Eles escarneceram, mas me deixaram passar até a escada do
navio. Tom sumira lá para baixo. Eu não tinha muito tempo,
de modo que, tal qual um gato aflito, deixei-me cair nas sujas
redes de pesca de uma balsa árabe. "Para a praia, agora
mesmo - e vais ganhar uma moeda a mais se fores bem
depressa", cochichei para o barqueiro. Eu próprio empurrei a
balsa para longe da fragata, e o capitão muçulmano começou
a remar para as rochas e o porto de Jafa com o dobro do
vigor de costume, o que ainda equivalia à metade do que eu
teria preferido.
Voltei-me para acenar para Smith. "Mal posso esperar para
que nos vejamos de novo!" Mentira deslavada, é claro. Tão
logo eu descobrisse o paradeiro de Astiza e tirasse
conclusões satisfatórias acerca do Livro de Tot, não tinha
nenhuma intenção de chegar perto nem dos ingleses nem
dos franceses, que se engalfinhavam já fazia um milênio. Eu
preferiria antes partir para a China! Em especial quando
houve uma agitação no convés da bateria e a cabeça de Big
Ned despontava subitamente, como a de uma marmota do
chão, rubro de raiva e esforço. Eu o olhei pela nova luneta e
vi que parecia ter sido batizado com lodo.
"Volta aqui, cachorro covarde! Vou te arrancar os braços e
as pernas!" "Acho que o covarde és tu, Ned! Foste tu que
não apareceste na hora combinada!"
"Tu me ludibriaste, ianque trapaceiro!"
"Eu fiz que aprendeste uma lição, isto sim!" Mas estava
ficando difícil ouvir à medida que íamos sacudindo para
longe. Sir Sidney levantou o chapéu, numa saudação irônica.
Os fuzileiros navais ingleses já corriam a baixar uma lancha.
"Dá para ir um pouquinho mais depressa, Simbá?" "Sim - por
mais uma moeda, efêndi."
Foi uma regata disputada, pois os musculosos fuzileiros
batiam as ondas tal qual roda-d'água, com Big Ned urrando
na proa. Ainda assim, Smith já me inteirara a respeito de
Jafa. A cidade tinha apenas um portão terrestre, e era preciso
guia para locomover-se pelo lugar. Com uma boa dianteira,
eu me esconderia bem o suficiente.
Assim, peguei uma das redes de pesca do meu barqueiro e,
antes que este pudesse fazer objeção, arremessei-a na rota da
lancha (que já se achegava). A rede se emaranhou nos remos
de estibordo, tanto que eles começaram a girar em círculos,
vociferando insultos tais que fariam corar um sargento-
instrutor.
Meu barqueiro reclamou, mas eu tinha moedas o bastante
para pagar em dobro pela miserável rede e mantê-lo
remando. Saltei para o cais de pedra um bom minuto antes
daqueles que vinham reivindicar o que consideravam seu.
Estava determinado a localizar Astiza e dar o fora - fazendo
votos de nunca mais rever Big Ned nem Little Tom.
- 3 -
Jafa se ergue qual um filão de pão no litoral do
Mediterrâneo, com praias vazias a curvarem-se na cerração
para o norte e para o sul. Como porto comercial, o lugar
perdera importância para Acre, ao norte (lá onde ficava o
quartel-general de Al-Djezzar, ou "o Açougueiro"); Jafa
ainda era, porém, próspera cidade agrícola. Havia fluxo
constante de peregrinos, que chegavam para visitar
Jerusalém, e de laranja, algodão e sabão, que eram
exportados pelo porto. As ruas eram um labirinto que
conduzia às torres, mesquitas, sinagogas e igrejas que
encimavam a cidade. Anexos domésticos se projetavam
ilegalmente sobre vielas escuras. Burros tropeliavam para
cima e para baixo nas pedras do pavimento.
Por mais que meus ganhos no jogo pudessem ser de origem
discutível, eles logo se revelaram inestimáveis quando um
moleque de rua me convidou à taverna de sua irmã, num
andar superior. A irmã - decepção! - era desprovida de
encantos. Mas o dinheiro me proporcionou pão sírio, falafel,
uma laranja e uma sacada com tela, atrás da qual pude me
esconder enquanto o bando de fuzileiros britânicos subia
por uma viela e descia por outra, correndo na inútil busca
por minha vil carcaça. Esbaforidos e afogueados, eles
acabaram parando numa taverna cristã no cais, para falarem
de minha perfídia enquanto tomavam vinho palestino de má
qualidade. Nesse meio-tempo, circulei sorrateiramente para
gastar mais de meus ganhos no jogo. Comprei um manto
beduíno de listras grená e brancas, com mangas, mais botas
novas, calças bufantes de beduíno (tão mais confortáveis no
calor que os apertados calções europeus!), faixa de cintura,
colete, duas camisas de algodão e pano para turbante. Como
Smith previra, o resultado me fazia parecer mais um
membro exótico de um império poliglota, desde que eu
tomasse o cuidado de ficar longe dos arrogantes e
inquiridores janízaros, soldados otomanos que usavam botas
de cor vermelha e amarela.
Ali descobri que não havia diligência para a cidade santa,
nem mesmo uma estrada que prestasse. Financeiramente, eu
era demasiado prudente (Ben Franklin, outra vez) para
comprar ou alimentar um cavalo. Por conseguinte, adquiri
um burro dócil, suficiente para levar-me até lá e não muito
além. Como exíguo armamento, economizei comprando
uma adaga árabe curva, com cabo de osso de camelo. Tenho
pouca habilidade com espadas e não me animei a adquirir
um dos mosquetes muçulmanos, que são compridos,
desajeitados e rebuscados; a madrepérola marchetada das
coronhas é linda, mas eu já vira quanto eles haviam se
mostrado medíocres contra os mosquetes franceses durante
as batalhas de Napoleão no Egito. E qualquer mosquete seria
muitíssimo inferior ao lindo fuzil da Pensilvânia que eu
sacrificara em Dendara para poder escapar com Astiza. Se o
tal Jericó era metalurgista, talvez pudesse me fazer um
substituto!
Para ser meu guia e guarda-costas em Jerusalém, escolhi um
tipo empreendedor, barbudo e muito vivo na hora de
regatear; chamava-se Mohammad, nome que parecia ter sido
dado a metade dos varões muçulmanos de Jafa. Entre o meu
árabe rudimentar e o tosco francês de Mohammad,
aprendido porque os mercadores francos dominavam o
comércio do algodão, nós dois conseguíamos nos
comunicar. Ainda preocupado com o dinheiro, calculei que,
se partíssemos logo, eu poderia economizar um dia de
pagamento pelos serviços de Mohammad. Eu também
escapuliria da cidade sem ser visto, para o caso de algum
fuzileiro ainda estar à espreita por ali.
"Pois muito bem, Mohammad, eu prefiro partir lá pela meia-
noite. Sabes como é, evitamos o trânsito e desfrutamos o
revigorante ar da noite. Como dizia Ben Franklin, acordar
cedo..."
"Como quiserdes, efêndi. Estaríeis talvez fugindo de
inimigos?"
"Claro que não. Já te disse que sou uma pessoa afável."
"Então só pode ser dos credores."
"Mohammad, sabes que paguei adiantado metade do preço
extorsivo que me cobras. Tenho dinheiro bastante."
"Ah, então é mulher. Esposa ruim? Já vi as esposas cristãs..."
Balançou a cabeça e sentiu arrepios. "Nem Satã conseguiria
aplacá-las."
"Basta que estejas pronto à meia-noite. Combinados?"
A despeito da dor pela perda de Astiza e da aflição em
descobrir o paradeiro dela, confesso que me passou pela
cabeça procurar uma ou duas horas de companhia feminina
em Jafa. Não obstante as condenações das mais variadas
religiões, todas as variedades de sexo, desde as mais
monótonas até as mais pervertidas, eram objeto de
propaganda pelos moleques árabes nas ruas, com uma
insistência que desconcentrava. Sou homem, não sou
monge, e já fazia mesmo uns dias... Mas o navio de Smith
continuava ancorado ao largo, e, se Big Ned tivesse alguma
persistência, seria bem próprio da minha sorte que o
fuzileiro me encontrasse enrolado com alguma rameira,
demasiado ocupado para passar a perna nele. Por isso, pensei
melhor e resolvi esperar para buscar alívio em Jerusalém,
muito embora copular na Cidade Santa fosse o tipo de coisa
que deixaria meu antigo pastor apoplético. A verdade era
que a abstinência e a fidelidade a Astiza faziam que eu me
sentisse bem. Minhas tribulações no Egito me levaram a
decidir reforçar a autodisciplina, e lá estava eu, tendo
passado pelo primeiro teste. "A consciência limpa é um
Natal permanente", gostava de dizer Franklin.
Mohammad chegou uma hora atrasado, mas finalmente me
conduziu pelo labirinto de vielas escuras até o portão que,
com o chão coberto de esterco, dava para terra adentro.
Exigia-se propina para que o abrissem à noite, e atravessei a
arcada com a curiosa euforia que advém ao iniciarmos uma
nova aventura. Afinal, eu sobrevivera a oito tipos de inferno
no Egito, recuperara temporariamente a solvência graças à
habilidade no jogo e saíra numa missão que nenhuma
semelhança tinha com trabalho de verdade, apesar de meus
devaneios de tornar-me contador. O Livro de Tot, que os
crentes acreditavam capaz de proporcionar desde a
sabedoria científica até a vida eterna, provavelmente já não
existia... e, no entanto, podia ser que ele estivesse em algum
lugar, dando à viagem o caráter otimista de uma caça ao
tesouro. E, apesar de meus instintos lúbricos, eu realmente
ansiava por Astiza. Fiquei impaciente pela chance de, por
intermédio do agente de Smith em Jerusalém, descobrir de
algum modo o que acontecera com ela.
Assim, passamos a passos largos pelo portão - e paramos.
"O que é que estás fazendo?", perguntei ao subitamente
deitado Mohammad, imaginando se ele não teria desmaiado.
Mas não: deitara-se de caso pensado, tal qual um cão após
dar voltas no tapete da lareira. Ninguém consegue relaxar
como um otomano, no qual os próprios ossos parecem então
dissolver-se.
"Efêndi, os bandoleiros beduínos infestam a estrada para
Jerusalém e roubam todo e qualquer peregrino desarmado",
disse no escuro o guia, displicentemente. "Continuarmos
sozinhos não é só arriscado - é insano. Mais tarde, meu
primo Abdul conduzirá uma caravana de camelos para lá, e
nós, por segurança, iremos junto com ele. É assim que eu e
Alá cuidamos de nosso hóspede americano."
"Mas e aquela conversa de sairmos cedo?"
"Pagastes, e saímos." E, tendo dito isso, voltou a dormir.
Maldição! Bem, era o meio da noite, estávamos cinqüenta
jardas para fora das muralhas, eu tinha pouca idéia da direção
a seguir, e era bem possível que ele tivesse razão. A
Palestina era tristemente célebre por estar tomada por
bandoleiros, ou caudilhos às turras uns com os outros, ou
saqueadores vindos do deserto. Assim, eu me afligi durante
três horas, preocupado com a possibilidade de que os
fuzileiros britânicos aparecessem por ali, até que finalmente
Abdul e seus camelos resfolegantes se reuniram mesmo no
portão, bem antes do nascer do sol. Fizeram-se as
apresentações, emprestaram-me uma pistola turca e
cobraram-me mais cinco xelins tanto por ela quanto pela
escolta adicional e outro xelim pela forragem do burro. Eu
estava na Palestina havia menos de vinte e quatro horas, e
minha bolsa de dinheiro já minguava. Em seguida,
preparamos um chá.
Por fim, surgiu um fio de luz quando as estrelas se
desvaneceram, e partimos através dos laranjais. Uma milha
depois, passamos por campos de algodão e trigo, com a
estrada orlada de tamareiras. Na madrugada, não se viam as
casas de telhado de palha; apenas os latidos dos cães
indicavam onde elas ficavam. O rangido das selas e o badalo
dos sinos dos camelos vinham assinalar nossa passagem. O
céu clareou, os galos e os pássaros começaram a cantar, e, à
medida que o alvorecer se avermelhava, eu enxergava os
montes escarpados mais adiante, lá onde transcorrera tanto
da história bíblica. As árvores de Israel haviam sido
eliminadas para fazer carvão e cinza de sabão, e mesmo
assim, após o deserto egípcio absolutamente árido, aquela
planície costeira parecia tão luxuriante e agradável quanto a
viçosa região dos colonos alemães da Pensilvânia. Era a Terra
deveras Prometida.
Por meu guia, eu soube que a Palestina era nominalmente
parte da Síria, uma província otomana cuja capital, Damasco,
estava sob o controle da Sublime Porta, ou seja, do governo
imperial em Constantinopla. Mas, assim como o Egito
estivera na realidade sob o controle dos mamelucos
(independentes até que Bonaparte os expulsou), a Palestina
estava sob o controle do bósnio Djezzar, ele mesmo um ex-
mameluco, que há um quarto de século governava o Acre,
infelizmente com célebre crueldade, desde que sufocara
uma revolta das tropas mercenárias dele próprio. Djezzar
estrangulara várias esposas para não ter de aturar rumores de
infidelidade, mutilara os conselheiros mais próximos para
lembrá-los de quem mandava ali e afogara generais ou
capitães de navio que lhe desagradaram. Na opinião de
Mohammad, essa desumanidade era necessária. A província
se fragmentava num número excessivo de grupos religiosos
e étnicos, cada um deles tão à vontade entre os outros
quanto um calvinista num piquenique no Vaticano. A
invasão do Egito lançara ainda mais refugiados na Terra
Santa, com os fugitivos mamelucos do bei Ibrahim
procurando ali um ponto de apoio. Tropas otomanas recém-
recrutadas chegavam em quantidade, prevendo a invasão
francesa, ao mesmo tempo em que o ouro e as promessas de
ajuda naval dos britânicos acirravam ainda mais as coisas.
Metade da população espionava a outra metade, e todo clã,
seita e culto sopesavam as vantagens e desvantagens de
Djezzar e dos até então invencíveis franceses. As notícias
das assombrosas vitórias napoleónicas no Egito, a última das
quais fora a supressão de uma revolta no Cairo, abalavam o
Império Otomano.
Eu também sabia que Napoleão ainda tinha esperanças de
juntar forças com Tippu Sahib, o sultão francófilo que lutava
contra os Wellesley na índia. O ambiciosíssimo Bonaparte
estava organizando um corpo de camelos com o qual ele
esperava atravessar os desertos orientais de modo mais
eficiente que Alexandre Magno conseguira. Aos vinte e
nove anos, o corso queria superar o macedónio, galopando
todo o caminho até a índia meridional para reunir-se ao
"cidadão Tippu" e privar a Grã-Bretanha de sua colônia mais
rica.
Segundo Smith, eu teria de extrair sentido daquele angu. "A
Palestina me parece uma barafunda repleta de donos da
verdade e da virtude", comentei com Mohammad enquanto
cavalgávamos, eu grande demais para meu burro, cuja
espinha era dura como uma barra de nogueira. "Aqui há
tantas facções quanto numa vereança de New Hampshire."
"Aqui todos os homens são santos", disse Mohammad, "e
não existe nada mais irritante que um vizinho, igualmente
santo, de religião diferente."
Amém, pois outro homem estar convencido de que ele tem
razão é insinuar que podemos estar errados, e aí está a raiz
de metade do derramamento de sangue do mundo.
Franceses e britânicos são exemplos perfeitos, disparando
canhonadas uns contra os outros para ver quem é mais
democrático: se os republicanos franceses, com sua
guilhotina ensangüentada, ou se os parlamentaristas
britânicos, com suas prisões para inadimplentes. Em meus
tempos de Paris, quando tudo o que tinha para me
preocupar eram as cartas do baralho, as mulheres e às vezes
um contrato de navegação, eu não me lembro de ter ficado
muito aborrecido com alguém, nem alguém comigo. Aí veio
o medalhão, a campanha egípcia, Astiza, Napoleão, Sidney
Smith, e cá estava eu, instigando minha diminuta montaria
rumo à capital mundial da discordância teimosa. Pela
milésima vez, perguntei-me como é que eu fora parar ali.
Devido a nosso atraso e ao passo majestoso da caravana,
levamos três longos dias para alcançar Jerusalém, chegando
lá ao crepúsculo do terceiro. Era um trajeto cansativo e
serpeante, por caminhos que teriam sido desdenhados por
qualquer cabra que tivesse algum amor-próprio (era evidente
que a estrada não recebia manutenção desde a época de
Pôncio Pilatos), e em pouco tempo os montes castanhos,
cobertos de arbustos, ficaram íngremes como os Apalaches.
Subimos a garganta do Bab al-Wad até umas matas de
pinheiro e zimbro, com a relva acastanhada pelo outono. O
ar se tornou perceptivelmente mais frio e mais seco.
Subimos, descemos e demos voltas e voltas, passando por
burros que zurravam, camelos respingados de baba que
peidavam e carroceiros cujos bois batiam cabeça enquanto
os dois condutores batiam boca. Passamos por frades de
hábito marrom, missionários armênios de sotaina, judeus
ortodoxos de barba e longos cachos nos lados da cabeça,
mercadores sírios, um ou dois comerciantes de algodão
franceses radicados na Palestina e muçulmanos de
incontáveis seitas, usando turbante e cajado. Beduínos
desciam encostas conduzindo rebanhos de carneiros e
cabras que pareciam derramar-se ali como água, e moças de
aldeia gingavam de modo bem interessante à beira da estra-
da, equilibrando cuidadosamente na cabeça jarros de barro;
faixas de cintura, em cores brilhantes, oscilavam no balanço
dos quadris, e seus olhos escuros brilhavam como pedras
negras no fundo de um rio.
Os lugares que se intitulavam estalagens, ou khans,
mostravam-se bem menos atraentes: eram pouco mais que
pátios murados que serviam principalmente de curral para
moscas. Também deparamos com bandos de cavaleiros mal-
encarados, que em quatro ocasiões exigiram pedágio. Em
cada uma dessas vezes, meus acompanhantes ficaram na
expectativa de que eu contribuísse com mais do que parecia
ser minha justa parte. Aqueles parasitas me pareciam simples
assaltantes, mas Mohammad insistiu em que eram valentões
das aldeias locais que mantinham à distância bandoleiros
ainda piores, e cada vila tinha direito à parte desse pedágio.
Mohammad provavelmente dizia a verdade, já que cobrar
tributo para nos proteger dos ladrões é coisa que todos os
governos fazem, não? Aqueles rústicos armados eram uma
mistura de policiais com extorsionários.
Mas, quando eu não estava resmungando sobre o
interminável esvaziamento do meu bolso, Israel tinha seus
encantos. Se a Palestina não chegava a ter aquele ar de
antiguidade do Egito, ela ainda assim parecia bem rodada,
como se pudéssemos ouvir os ecos dos heróis hebreus, de
santos cristãos e conquistadores muçulmanos de um passado
remoto. Oliveiras tinham o diâmetro de barris de vinho,
com o lenho retorcido por incontáveis séculos. Pedaços
diversos de entulho histórico se projetavam de cada
elevação. Quando parávamos para tomar água, as pedras que
calçavam o caminho para as bicas e poços eram côncavas e
lisas, por conta de todas as sandálias e botas que as haviam
percorrido antes de nós. Assim como no Egito, a luz
apresentava uma limpidez muito diferente do que se via na
brumosa Europa. O ar também tinha gosto de poeira, como
se houvesse sido respirado vezes demais.
Foi num daqueles khans que me fizeram lembrar de que eu
não deixara totalmente para trás o mundo do medalhão. Um
velhote de religião e idade indeterminada recebia seu magro
sustento do estalajadeiro para que servisse de faz-tudo, e era
tão humilde e discreto que só reparávamos nele para pedir
um copo de água ou mais uma pele de carneiro onde deitar.
Eu teria tido olhos para alguma serviçal, mas um esfarrapado
com vassoura de gravetos não atraía minha atenção, de
modo que, quando estava me despindo altas horas e expus
momentaneamente meus serafins de ouro, dei de costas
com o homem e me sobressaltei antes de ter percebido que
ele estava ali. Ficou de olhos arregalados em face dos
anjinhos de asas abertas, e de início pensei que o velho
mendigo vira alguma coisa que queria furtar. Mas ele apenas
recuou, consternado e temeroso.
Cobri os serafins com a roupa de baixo, e o brilho sumiu
como se a luz houvesse se apagado.
"A bússola", murmurou ele em árabe.
"O quê?"
"Os dedos de Satã. Que Alá tenha misericórdia de vós."
Ele estava claramente maluco. Ainda assim, seu olhar de
assombro e desalento me deixou apreensivo. "São relíquias
pessoais. Nada de falar delas a ninguém, ouviste?"
"Meu imã me confidenciou sobre elas. Da furna."
"A furna?" Os serafins tinham vindo do subterrâneo da
Grande Pirâmide.
"Apófis." E, tendo dito isso, ele se virou e fugiu.
Ora, eu não ficava tão perplexo desde que o maldito
medalhão realmente funcionara. Apófis! Era esse o nome de
um deus-cobra (ou demônio-cobra) que Astiza afirmara estar
nas entranhas do Egito. Eu não a levei a sério (afinal, sou
discípulo de Franklin, um homem da razão, um homem do
Ocidente), mas havia mesmo algo lá embaixo num poço
fumarento, e eu achava ter deixado isso e seu nome bem
para trás, no Egito... No entanto, cá estavam falando dele
outra vez! Pela fuça de Anúbis, eu estava farto de divindades
transviadas a meter-se na minha vida como parentes
indesejados que vinham deixar marcas no chão com barro
de suas botas. E agora um velho faz-tudo trazia novamente o
nome à baila. A coisa não tinha sentido, era verdade, mas a
coincidência era inquietante.
Tornei a me vestir, correndo e de novo escondendo os
serafins na roupa, e saí apressadamente de meu cubículo
para procurar o velho e lhe perguntar o que significava
aquele nome.
Mas não o achei em lugar nenhum. De manhã, o
estalajadeiro contou que o criado aparentemente pegara seus
escassos pertences e se escafedera.
E chegamos bem à legendária Jerusalém. Reconheço que se
tratava de uma visão impressionante. A cidade fica
encarapitada num monte entre outros montes, e em três de
seus lados o terreno despenca abruptamente para vales
estreitos. É pelo quarto lado, o norte, que os invasores
sempre vêm. Oliveiras, vinhedos e pomares recobrem as
encostas, e jardins proporcionam pontos de verde no
interior da cidade. Muralhas colossais, de duas milhas de
comprimento, erguidas por um sultão chamado Suleíman, o
Magnífico, circundam por completo a população de
Jerusalém. Menos de nove mil pessoas moravam ali quando
cheguei, subsistindo economicamente dos peregrinos e da
inconstante indústria da cerâmica e do sabão. Eu logo
descobriria que uns quatro mil eram muçulmanos; três mil,
cristãos; e dois mil, judeus.
O que fazia a cidade sobressair eram suas edificações. O
Domo da Rocha - a mesquita principal - tinha uma cúpula
dourada que brilhava como um farol ao poente. Mais perto
de onde estávamos, o Portão de Jafa era a antiga cidadela,
com suas ameias encimadas por uma torre redonda como
um farol. Pedras tão descomunais quanto as que eu vira no
Egito constituíam as fundações da cidadela. Eu encontraria
pedras semelhantes no Monte do Templo, a plataforma do
antigo templo judaico, área que agora servia de base para a
grande mesquita. Aparentemente, os alicerces de Jerusalém
haviam sido assentados por gigantes.
Por toda a parte, o horizonte estava pontuado de cúpulas,
minaretes e torres de igreja, legado deste ou daquele cruzado
ou conquistador, cada um deles tentando deixar um edifício
santo que compensasse sua respectiva variedade nacional de
matança. O efeito era tão competitivo quanto barracas de
verduras a rivalizar entre si numa feira de domingo, com os
sinos cristãos tocando enquanto os muezins gemiam e os
judeus entoavam suas preces. Trepadeiras, flores e arbustos
brotavam das mal conservadas muralhas, e palmeiras
marcavam praças e jardins. Do lado de fora da cidade, fileiras
de oliveiras desciam marchando para vales rochosos e
tortuosos, fumacentos devido à queima de lixo. Desse
buraco infernal, erguia-se o olhar para ver pássaros
rodopiando diante de palácios celestiais de nuvens, tudo
nítido e detalhado. Com o sol baixo, Jerusalém, assim como
Jafa, era da cor do mel, com sua pedra calcária fermentando
aos raios amarelos do sol.
"A maioria dos homens vem para cá procurando alguma
coisa", comentou Mohammad enquanto fitávamos a
antiquíssima capital, do outro lado do chamado Vale da
Cidadela. "O que procurais, meu amigo?"
"Sabedoria", respondi, e era bem verdade. Sabedoria era o
que se presumia que estivesse contido no Livro de Tot, e -
pelos óculos de Franklin! - eu bem que precisava de alguma.
"E, espero, notícias de quem amo."
"Ah. Muitos homens procuram a vida inteira sem achar
sabedoria nem amor, de modo que é bom que tenhais vindo
para cá, onde queira Deus que as preces por ambas as coisas
sejam atendidas."
"Tomara que sim." Eu sabia que Jerusalém, justamente
porque a consideravam tão sagrada, fora atacada, queimada e
saqueada mais vezes do que qualquer outro lugar da Terra.
"Vou te pagar agora e ir atrás do homem com quem me
hospedarei." Tentei não fazer tinir em demasia a bolsa de
dinheiro enquanto contava o restante da paga de
Mohammad.
Ele a pegou avidamente e então reagiu com um assombro
muito ensaiado e praticado.
"Nenhum mimo por ter compartilhado convosco meus
conhecimentos da Terra Santa? Nenhuma recompensa por
terdes chegado em segurança? Nada por esta vista gloriosa?"
"Imagino que também te consideres responsável pelo bom
tempo."
Ele pareceu magoado. "Procurei ser vosso servo, efêndi."
Assim, contorcendo-me na sela para que ele não visse quão
pouco me restava, dei-lhe uma gorjeta que eu não podia
muito permitir-me. Ele fez uma reverência e agradeceu
efusivamente. "Que Alá sorria para vossa generosidade!"
Não consegui esconder o azedume em meu "Vai com Deus".
"E que a paz esteja convosco!"
Uma bênção que acabou não tendo efeito.
- 4 -
Quando segui pela trilha de terra e atravessei uma ponte de
madeira até o ferro negro do portão de Jafa e a feira mais
além, vi que Jerusalém era uma semi-ruína. Um policial, ou
subashi, revistou-me à procura de armas (elas não eram
permitidas nas cidades otomanas mais importantes), mas
deixou que eu conservasse minha reles adaga. "Eu achava
que os francos saíssem por aí com coisa melhor",
resmungou, tomando-me por europeu, apesar dos trajes.
"Sou um simples peregrino", eu lhe disse. Seu olhar era
cético. "Pois que continues assim."
Depois, vendi meu burro pelo que pagara por ele (ao menos
eram algumas moedinhas de volta!) e me localizei.
Através do portão, passava um tráfego constante.
Mercadores se encontravam com caravanas, e peregrinos de
uma dúzia de seitas davam graças ao entrar nos locais
sagrados. Mas a autoridade otomana estava em declínio
havia dois séculos, e governadores inoperantes, saqueadores
beduínos, impostos extorsivos e rivalidade religiosa haviam
atravancado a prosperidade de Jerusalém até não mais poder.
Barracas de feiras orlavam as principais ruas, mas seus toldos
desbotados e suas prateleiras semivazias só enfatizavam a
melancolia secular. Jerusalém era sonolenta, com as aves
tendo ocupado as torres da cidades.
Mohammad me explicara que a cidade se dividia em quatro
bairros, para os muçulmanos, os armênios, os outros cristãos
de modo geral e os judeus. Segui por vielas tortuosas da
melhor maneira possível, até o quadrante noroeste,
construído ao redor da igreja do Santo Sepulcro e da sede
franciscana. O trajeto era tão despovoado que eu topava com
galinhas na rua o tempo todo. Metade das casas parecia
abandonada. As residências habitadas, construídas de pedra
antiquíssima, com barracões e sacadas de madeira
projetando-se como pústulas, decaíam tal qual a pele das
velhas. Assim como no Egito, frustravam-se quaisquer
fantasias que eu tivesse de um Oriente opulento.
As vagas orientações de Smith e meus próprios pedidos de
informação me levaram a um sobrado de pedra calcária com
sólido portão de madeira, encimado por uma ferradura; no
mais, a fachada não tinha traços distintivos, bem à maneira
árabe. De um lado havia uma porta menor, também de
madeira, e eu sentia o cheiro do carvão vegetal da forja de
Jericó. Bati vigorosamente na portinha de entrada, esperei e
tornei a bater com força, até que se abriu uma pequena
viseira. Fiquei surpreso em deparar com um olhar de mulher
- no Cairo, eu me acostumara a porteiros muçulmanos
corpulentos e esposas confinadas. Ademais, as pupilas eram
cinza-claro, de uma translucidez incomum no Oriente.
Por instrução de Smith, comecei em inglês. "Meu nome é
Ethan Gage e trago carta de apresentação de um comandante
de navio inglês para o homem a que chamam Jericó. Estou
aqui..."
A viseira se fechou. Continuei ali, de pé. Após alguns
minutos, imaginei se estava mesmo no endereço certo, até
que enfim a porta se abriu, como se por vontade própria, e
entrei cautelosamente. Estava no pátio de trabalho de um
ferreiro, disso não havia dúvida, com as pedras do piso
manchadas de cinza pela fuligem. Mais adiante, vi o fulgor
de uma forja, num barracão térreo cujas paredes estavam
cobertas de ferramentas penduradas. A parte esquerda do
pátio era uma venda abastecida de implementos prontos; à
direita, um depósito de metal e carvão vegetal. Projetando-
se ligeiramente por sobre essas três alas, estava a moradia,
acessível por uma escada de madeira sem pintura e tendo na
frente uma sacada, com rosas murchas a cascatear de vasos
de ferro. Algumas pétalas haviam caído nas cinzas ali
embaixo.
O portão se fechou às minhas costas, e percebi que a mulher
ficara escondida por ele. Ela passou por mim como um
fantasma, sem dizer palavra, seus olhos me examinando com
uma mirada fugaz e oblíqua, de intensa curiosidade, o que
me surpreendeu. E verdade que sou um safado vistoso, mas
será que eu era mesmo tão interessante assim? O vestido lhe
ia do pescoço às canelas, a cabeça estava coberta por um
lenço, à moda de todas as religiões na Palestina, e a mulher
afastou púdicamente o rosto. Entretanto, vi o suficiente para
chegar a uma conclusão fundamental: ela era bonita.
O rosto exibia a beleza arredondada de uma pintura
renascentista, com a pele muito clara para aquela parte do
mundo, tendo uma lisura de casca de ovo. Os lábios eram
cheios, e, quando consegui que nossos olhares se
encontrassem, ela, recatada, baixou o seu. O nariz tinha
aquele ligeiro arco mediterrâneo, aquela sutil curva
meridional, que eu acho tão sedutora. O cabelo estava todo
coberto, exceção feita a alguns fios soltos que escapavam do
lenço e indicavam uma cor surpreendentemente clara. O
talhe do corpo era bastante esbelto, mas ficava difícil dizer
mais que isso. E então a mulher desapareceu por um vão de
porta.
Tendo feito aquele reconhecimento instintivo, eu me voltei
para ver um homem de barba, músculos rijos e avental de
couro vir caminhando da forja a passos largos. Tinha
antebraços de ferreiro, grossos como pernis e marcados
pelas inevitáveis queimaduras. A fuligem do ofício não
ocultava o cabelo cor de areia nem os surpreendentes olhos
azuis, que me miravam com certo ceticismo. Teriam as
ondas atirado vikings na Síria? No entanto, a constituição do
homem era suavizada em alguma medida pelos lábios cheios
e pelo rubor que se escondia sob a barba nas faces (um viço
querubínico que ele comparrilhava com aquela mulher),
algo que me fazia pensar na gravidade bondosa que sempre
associei a José, o Carpinteiro. O homem descalçou uma luva
de couro e estendeu a mão calejada. "Gage, não?"
"É, Ethan Gage", confirmei ao apertar uma palma dura como
lenho.
"Jericó." O homem podia ter boca de mulher, mas seu aperto
de mão era um torno.
"Como tua esposa talvez já tenha explicado..." "Irmã."
"Deveras?" Bem, já era um passo na direção certa. Não que
eu estivesse esquecendo Astiza por um momento que fosse -
é só que a beleza feminina desperta uma curiosidade natural
em todo varão saudável, e sempre é mais seguro saber em
que pé estão as coisas.
"Ela fica encabulada com estranhos. Por isso, não a
constranjas."
O recado, vindo de um homem rijo como um toco de
carvalho, era bem claro. "Naturalmente. Em todo o caso, é
louvável que ela aparentemente entenda o inglês."
"Seria surpreendente se não entendesse, já que morou na
Inglaterra. Comigo. Ela não tem nenhuma relação com
nossos assuntos."
"Encantadora, porém indisponível. As melhores senhoras
são assim."
Ele reagiu a minha verve com tanta animação quanto um
ídolo de pedra.
"Smith mandou-me avisar sobre tua missão, de modo que
posso te oferecer alojamento temporário e um conselho que
vem resistindo ao teste do tempo: qualquer estrangeiro que
tenha pretensões a entender a política de Jerusalém não
passa de um tolo."
Conservei a afabilidade de sempre. "Então quem sabe minha
tarefa seja breve? Eu pergunto, não entendo a resposta e vou
embora para casa - como qualquer peregrino."
Ele me olhou de alto a baixo. "Preferes a indumentária
árabe?"
"E confortável e anônima, e achei que ela poderia ser útil no
souk e na cafeteria. Falo um pouco de árabe." Eu estava
decidido a continuar tentando. "Quanto a ti, Jericó, não
consigo imaginar que vás desabar logo, logo."
Só consegui desconcertá-lo.
"Sabes a história bíblica, aquela sobre o desabamento das
muralhas de Jericó? Tu me pareces sólido como uma rocha.
Um bom homem para termos do nosso lado, não?"
"Jericó é a vila onde nasci. Lá não há mais muralhas."
"E eu não esperava encontrar olhos azuis na Palestina...",
continuei, hesitante.
"Sangue dos cruzados. As raízes de minha família são bem
antigas. Deveríamos ser uma mistura de cores, mas nossa
geração acabou saindo bem clara. Todas as raças passaram
por Jerusalém - cruzados, persas, mongóis, etíopes. Todos os
credos, opiniões e nações. E tu?"
"Americano, de ascendência breve e, quanto antes
esquecida, melhor - está aí uma das vantagens dos Estados
Unidos. Se bem entendi, aprendeste inglês na marinha
deles, não?"
"Miriam e eu ficamos órfãos por causa da peste. Os padres
católicos que nos acolheram nos contaram alguma coisa do
mundo, e, em Tiro, eu me alistei numa fragata inglesa e
aprendi a fazer reparos no ferro. Os marujos me deram esse
meu apelido. Fui aprendiz de ferreiro em Portsmouth e
mandei buscar minha irmã. Era minha obrigação."
"Mas, obviamente, não ficaste por lá."
"Sentíamos falta do sol; os britânicos são brancos como
vermes. Eu havia conhecido Smith na marinha. Pela
passagem de volta e algum pagamento, concordei em ficar
de ouvidos atentos aqui. Hospedo os amigos de Smith. Eles
fazem o que ele manda fazer. Descobrem pouca coisa que se
aproveite. Os meus vizinhos pensam que eu simplesmente
me aproveito de saber inglês para acolher hóspedes de vez
em quando, e não estão lá muito errados."
Inteligente e direto, o tal ferreiro. "Sidney Smith acredita
que ele e eu podemos nos ajudar mutuamente. Eu me vi na
expedição de Bonaparte ao Egito. Agora, os franceses estão
planejando vir para cá."
"E Smith quer saber o que os cristãos, os judeus e os drusos
podem fazer."
"Exatamente. Ele está tentando ajudar Djezzar a organizar a
resistência aos franceses..."
"...Com gente que odeia Djezzar, um tirano que está sempre
pisando no pescoço deles. Não são poucos os que vão
considerar os franceses seus libertadores."
"Se a mensagem é essa, vou levá-la a Smith. Mas também
preciso de ajuda para mim mesmo. Conheci no Egito uma
mulher que está desaparecida. Para ser mais preciso, ela caiu
no Nilo. Quero saber se está viva e, nesse caso, como
resgatá-la. Disseram-me que tens contatos no Egito."
"Uma mulher? Intima de ti?" Ele parecia tranqüilizado por
meu interesse em alguém que não fosse a irmã. "Esse tipo de
investigação é mais caro do que ficar ouvindo as fofocas
políticas em Jerusalém."
"Quão mais caro?"
Ele me olhou de alto a baixo. "Desconfio que mais do que
podes pagar." "Então não vais me ajudar?"
"Quem não vai te ajudar são meus contatos no Egito. Não
sem dinheiro." Avaliei que ele estava não tentando me
explorar, mas apenas me dizendo a verdade. Se eu quisesse
chegar a algum lugar com minha busca, precisaria de um
parceiro, e quem melhor que aquele ferreiro de olhos azuis?
Assim, dei-lhe uma dica da outra coisa que eu procurava.
"Talvez tu possas colaborar. E se, em troca, eu te prometesse
uma parte do maior tesouro do mundo?"
Ele finalmente riu. "O maior tesouro? E qual seria ele?"
"É segredo. Mas ele poderia fazer de um homem um rei."
"Ah. E onde estaria esse tesouro?"
"Espero que bem debaixo de nossos narizes, aqui mesmo em
Jerusalém." "Tens idéia de quantos tolos já alimentaram a
esperança de descobrir tesouros em Jerusalém?"
"Não serão os tolos a descobri-lo."
"Queres que eu gaste o meu dinheiro procurando por essa
tua mulher?" "Eu quero que invistas no teu futuro."
Ele passou a língua pelos lábios. "Smith achou um biltre bem
descarado e atrevido, não?"
"E és ótimo juiz de caráter!" Ele podia estar cético, mas
também estava curioso. Eu apostava que pagar por notícias
de Astiza não lhe custaria assim tão caro. E ele tinha a
mesma ganância de todos nós: não há quem não sonhe com
tesouros enterrados.
"Eu posso ver se não custa demais."
Eu o fisgara. "Eu também preciso de outra coisa. Um bom
fuzil."
Jericó vivia com simplicidade, embora o ofício de ferreiro
lhe desse alguma prosperidade. Sendo cristão, sua casa tinha
mais mobiliário que uma moradia islâmica. Os muçulmanos
preferem almofadas, pois estas podem ser movidas para que
as mulheres fiquem isoladas quando chegam convidados do
sexo masculino - o hábito da tenda beduína nunca foi
deixado para trás. Já nós, os cristãos, estamos acostumados a
ter a cabeça mais perto do calor do teto que do frescor do
chão; por isso, sentamos em posição alta e formal, num
atravancamento estacionário de mobília. Em vez das
almofadas e arcas islâmicas, Jericó tinha mesa, cadeiras e
grandes armários. A carpintaria e a marcenaria, porém, eram
de uma simplicidade puritana. O piso de tábuas estava
desprovido de tapetes, e os ornamentos nas paredes de
estuque se limitavam a um ou outro crucifixo ou imagem de
santo - um lugar despojado como um convento, e tão
desconcertante quanto. Miriam, a irmã, mantinha a casa
imaculada. A comida era farta, mas básica: pão, azeitona,
vinho e quaisquer verduras que Miriam conseguisse comprar
na feira a cada dia. De vez em quando, ela trazia carne para o
irmão, musculoso e esfomeado, mas o produto era
relativamente raro e caro. Embora o inverno já se
aproximasse, não havia nada para o aquecimento, exceção
feita ao calor que vinha do carvão a queimar no fogo e na
forja lá embaixo. As janelas tinham treliça, não vidraças, de
modo que o frio mais intenso era contido por sacos de
serragem que ficavam nelas por toda a estação, o que vinha
reforçar a escuridão e a melancolia outonais. A água das
bacias era gelada; o vento, penetrante; as velas e o óleo,
caros e escassos; e nós dormíamos e levantávamos
muitíssimo cedo. Para um parisiense boa-vida como eu, a
Palestina foi um baque.
O que primeiro nos uniu foi a fabricação de meu fuzil. Jericó
era constante, hábil, reservado e aplicado (todos atributos
que, imagino, eu deveria tentar imitar) e conquistara o
respeito da cidade. Via-se isso, indiferentemente, no olhar
dos homens (muçulmanos, cristãos e judeus) que apareciam
naquele pátio coberto de fuligem para comprar implementos
de ferro. Achei que eu pudesse orientá-lo no projeto de uma
boa arma, mas ele já estava adiante de mim. "Estás falando
de um fuzil alemão como o Jäger? Um fuzil de caça?",
perguntou quando lhe descrevi a arma que eu perdera. "Já
trabalhei em alguns. Mostra-me na areia o comprimento que
queres." Esbocei um cano de quarenta e duas polegadas.
"Não vai ficar desajeitado demais?"
"O comprimento dá precisão e potência à bala. Quanto ao
calibre, o quarenta-e-cinco já basta; a velocidade do fuzil
permite que se usem balas menores que as de mosquete, e
assim, para uma mesma quantidade de bucha e pólvora, eu
posso levar mais munição. Ferro doce, ranhuras profundas,
uma caída na coronha para que os olhos fiquem na altura da
mira, mas a fronte permaneça longe da chama. O melhor
fuzil que já vi consegue pregar três em cada cinco pregos a
cinqüenta jardas. Leva um minuto inteiro para carregar e
socar, mas o primeiro tiro já acerta mesmo alguma coisa."
"Por aqui, a regra são as armas de alma lisa. São rápidas na
hora de recarregar, e dá para municiá-las com qualquer coisa
- se for necessário, até seixos. Para essa tua arma, vamos
necessitar de balas precisas."
"Ser preciso é ser certeiro."
"No combate aproximado, a rapidez ao recarregar leva às
vezes a melhor." Jericó tinha a parcialidade dos marujos com
os quais servira, homens que, ao abordarem um navio
inimigo, partiam direto para o arranca-rabo brutal.
"E o tiro certeiro ao menos impede que se aproximem de
nós. Para mim, tentar lutar com um mosquete comum é
como ir ao bordel de olhos vendados - podemos até
conseguir o que queremos, mas também podemos errar e
muito o alvo."
"Não sei nada dessas coisas." Como era difícil brincar com
ele!
Jericó olhou para o esboço na areia. "São quatrocentas horas
de trabalho. E pretendes usar o tal tesouro para me pagar por
isso?"
"Em dobro. Vou dar duro procurando enquanto fabricas o
fuzil."
"Não." Ele balançou negativamente a cabeça. "E fácil
prometer dinheiro que não se tem. Vais ajudar, não apenas
nesse serviço, mas também em outros. Será uma experiência
nova para ti - fazer trabalho de verdade. Nos dias de pouco
movimento, podes caçar tesouros enterrados ou ouvir
rumores suficientes para satisfazer a Sidney Smith. Podes
cobrar dele para saldar tua própria dívida comigo."
Trabalho honesto? A idéia era instigante (verdade seja dita,
eu às vezes invejo tipos sérios e responsáveis como Jericó),
mas também assustadora. "Ajudarei na forja", regateei, "mas
precisas me garantir horas suficientes para que eu cisque por
aí. Que tenhas o fuzil pronto no final do inverno, quando
Napoleão chegar. Nessa altura, eu já terei achado o tesouro e
conseguido o dinheiro com Smith." Conseguir arrancar
alguma coisa do Almirantado é como extrair caldo de
cadarços, mas a primavera estava bem longe. Poderia
acontecer muita coisa até lá.
"Pois então usa o fole para avivar aquele fogo." E, depois que
obedeci de um átimo, e joguei carvão com a pá, e virei tanto
metal que meus ombros doíam, Jericó balançou a cabeça, de
má vontade. "Miriam acha que és um bom homem."
Com o endosso dela, eu sabia que tinham alguma confiança
em mim.
Jericó primeiro pegou uma haste metálica cilíndrica, ou
mandril, de calibre ligeiramente menor que o do cano
pretendido para meu futuro fuzil. O ferreiro aqueceu uma
fita de aço carbonizado de Damasco, própria para fazer
armas de fogo, que teria o mesmo comprimento do cano da
arma. Ele enrolaria a fita em torno do mandril. Segurei o
mandril e lhe passei ferramentas enquanto Jericó colocava a
fita numa das ranhuras da bigorna apropriada e começava a
martelar para ir formando o cano. Fazia aquilo uma polegada
de cada vez, retirando o mandril enquanto o metal ainda
estava ligeiramente maleável e mergulhando o resultado do
trabalho na água. Aí, voltava a reaquecer, enrolar outra
polegada do aço, martelar e ressoldar. E assim íamos, de
polegada em polegada. Era uma faina tediosa, mas também
curiosamente apaixonante. Aquele cano seria meu novo
companheiro. A obrigação me mantinha aquecido, e o
trabalho braçal duro produzia sua própria satisfação. Eu
comia com simplicidade, dormia bem e até vim a me sentir à
vontade na singeleza devota de minhas acomodações. Meus
músculos, já tonificados pelo Egito, ficaram ainda mais rijos.
Tentei fazer que o ferreiro se abrisse. "Não és casado,
Jericó?"
"Vês alguma esposa por aqui?"
"Mas um homem próspero e bem-apanhado como tu?" "Eu
não quero saber de casar."
"Eu também não. Nunca encontrei a moça certa. Mas aí
houve essa mulher no Egito..."
"Teremos notícias dela."
"Então são só tu e tua irmã", insisti.
Ele parou de martelar, incomodado. "Já fui casado. Ela
morreu quando estava grávida do meu filho. Aconteceram
outras coisas. Eu fui para o navio britânico. E Miriam..."
Agora eu estava entendendo. "Cuida de ti, o irmão
enlutado."
O olhar dele encontrou o meu. "Assim como cuido dela."
"E se aparecer um pretendente?"
"Ela não quer saber de pretendentes."
"Mas é uma moça tão adorável! Doce. Recatada. Obediente."
"E tu tens essa mulher no Egito."
"Precisas casar", aconselhei. "E ter uns filhos para fazer-te
dar risadas. Talvez eu possa arranjar alguém para ti."
"Eu não preciso da ajuda de um estrangeiro. Ou de um
vagabundo."
"Mas, já que estou aqui, eu posso oferecê-la assim mesmo!"
Eu sorri de orelha a orelha, ele resmungou, e nós voltamos a
malhar metal. Quando o trabalho era leve, eu saía para
conhecer Jerusalém. Dependendo do bairro aonde ia,
variava ligeiramente a indumentária, procurando garimpar
informações úteis com meu conhecimento do árabe, inglês
e francês. Jerusalém estava acostumada com peregrinos, e
meus sotaques não chamavam a atenção. As confluências da
cidade eram as feiras, onde os ricos e os pobres se
misturavam e os janízaros faziam casualmente refeições com
artesãos comuns. Se os khaskiyya, ou refeitórios
beneficentes, atendiam aos desamparados, as cafeterias
atraíam homens de todos os credos para bebericar café,
fumar narguilé e debater. Com o café, o forte fumo turco e o
haxixe, o ar era inebriante. De vez em quando, eu convencia
Jericó a vir junto. Ele precisava de uma ou duas taças de
vinho para se soltar, mas, quando começava, suas relutantes
explicações sobre a terra natal se mostravam inestimáveis.
"Em Jerusalém, todo o mundo acha que está bem mais perto
do Céu que os outros", resumiu, "o que significa que, juntos,
eles criam seu próprio Inferno particular."
"Mas não é esta uma cidade desarmada, lugar de paz e
devoção?"
"Até o momento em que alguém pisa na devoção dos
outros."
Se alguém perguntava sobre minha presença ali, eu explicava
que era representante comercial dos Estados Unidos, coisa
que fora de verdade em Paris. Dizia estar esperando para
fazer negócio com o vencedor. Queria ser amigo de todos.
A cidade estava tão tomada por rumores da chegada de
Napoleão que zumbia como uma colmeia, mas não havia
consenso sobre qual lado levaria a melhor. Djezzar
dominava implacavelmente a região havia um quarto de
século. Bonaparte ainda não fora derrotado. Os ingleses
controlavam o mar, e a Palestina não passava de uma ilhota
no vasto Império Otomano. Embora xiitas e sunitas
estivessem às turras nas comunidades muçulmanas e tanto
os cristãos como os judeus fossem minorias indóceis e
desconfiadas uma da outra, não estava de maneira alguma
claro quem pegaria em armas contra quem. Aspirantes a
déspota religioso de meia dúzia de credos sonhavam em
estabelecer suas respectivas utopias puritanas. Mesmo que
Smith tivesse esperança de que eu fosse recrutar adeptos
para a causa britânica, minha pessoa não tinha nenhuma
intenção de realmente fazê-lo. Eu ainda gostava dos ideais
republicanos franceses e dos homens com os quais servira
no Egito, e não discordava necessariamente dos sonhos de
Napoleão de reformar o Oriente Próximo. Por que deveria
eu tomar o lado dos arrogantes britânicos, que haviam
combatido tão cruelmente a independência de minha
própria nação? Tudo o que eu queria de fato era ter notícias
de Astiza e descobrir se existia alguma possibilidade de que
esse legendário Livro de Tot ainda estivesse por aí após três
mil anos. E, depois, fugir daquele hospício.
Assim, descobri o que pude na cultura de café e narguilé que
tinham ali. Era uma cidade pequena, e foi inevitável que se
espalhasse a notícia sobre o infiel em indumentária árabe
que estava trabalhando na forja de um cristão; mas ali havia
muita gente com passado nebuloso que procurava um monte
de coisas. Eu era só mais um e me dedicava àquilo em que
consiste maioritariamente a vida - esperar.
- 5 –
Para passar o inverno, dei o melhor de mim para mexer com
Miriam. Na feira, eu encontrara um pedaço de âmbar, com
um inseto preservado lá dentro. Estava sendo vendido como
amuleto vistoso e brilhante, mas vi nele um objeto de
ciência. Numa ocasião em que Miriam estava depenando e
limpando um frango, cheguei de fininho por trás, esfreguei
o âmbar energicamente em minhas roupas e aí ergui a mão
por sobre as peninhas. Algumas flutuaram para a minha
palma.
Ela se voltou num átimo. "Como é que fazes isso?" "Trago
misteriosos poderes da França e da América", entoei. Miriam
fez o sinal-da-cruz. "E coisa de ímpios trazer magia para esta
casa." "Não se trata de magia - é um truque elétrico que
aprendi com meu mentor, Benjamin Franklin." Virei a
palma da mão para cima, de modo que Miriam pudesse ver o
âmbar que eu estava segurando. "Os antigos gregos já faziam
isso. Quando se esfrega o âmbar, ele atrai coisas. Damos a
essa mágica o nome de eletricidade. Eu sou um eletricista."
"Que idéia tola", disse Miriam, sem muita convicção.
"Vamos, experimenta." Peguei-lhe a mão, embora Miriam
hesitasse, e coloquei o âmbar em seus dedos, desfrutando o
pretexto para tocá-la. Os dedos eram fortes, avermelhados
pelo trabalho. Em seguida, esfreguei o âmbar em sua manga
e a segurei sobre as penas. E não deu outra coisa: algumas
levitaram para grudar-se à manga.
"E agora és também uma eletricista."
Miriam torceu o nariz e me devolveu o âmbar. "Como é que
arrumas tempo para brincadeiras inúteis?" "Mas talvez não
sejam inúteis."
"Se és tão esperto, usa o teu âmbar para depenar o próximo
frango!"
Ri e passei-lhe o âmbar pelo queixo, atraindo com ele fios de
seu lindo cabelo. "Talvez o âmbar possa servir de pente." Eu
criara um véu louro, com os desconfiados olhos de Miriam
por cima.
"És um descarado."
"Sou curioso, só isso."
"Curioso de quê?" Ela ruborizou tão logo perguntou isso.
"Ah, agora começas a me entender." Dei uma piscadela.
Mas Miriam não deixou as coisas irem, além disso. Eu tivera
a esperança de fazer o tempo ocioso passar com um ou outro
jogo de cartas, mas estava na pior cidade do mundo para
isso. Jerusalém oferecia menos diversão que um piquenique
quacre. Também não havia muita tentação carnal numa
cidade onde as mulheres estavam mais cobertas que criança
de colo numa nevasca do Maine. Assim, meu celibato de
Jafa estava sendo involuntariamente prolongado. Ah, as
mulheres me lançavam de vez em quando olhares cativantes
(eu tenho algum estilo), mas os encantos delas eram
envenenados pelas histórias lúgubres que se ouviam nas
cafeterias sobre a mutilação genital levada a efeito nos mais
galantes por pais ou irmãos furiosos. É coisa que faz mesmo
um homem pensar antes.
Com o tempo, acabei ficando tão frustrado e entediado que
busquei inspiração na brincadeira do âmbar e resolvi mexer
com eletricidade, da maneira que Franklin me ensinara. O
que parecera um esperto passatempo parisiense para
encantar os salões com um beijo elétrico (tão logo dava uma
descarga elétrica numa mulher com minhas máquinas, eu
conseguia fazer uma faísca passar entre os lábios de um
casal) adquirira caráter mais sério após minha estada no
Egito. Teria sido possível que os antigos houvessem
transformado tais mistérios em poderosa magia? Teria sido
esse o segredo de suas civilizações? A ciência era também
um modo de elevar meu status durante aquele inverno do
descontentamento em Jerusalém, pois a eletricidade
constituía novidade ali.
Com a relutante tolerância de Jericó, construí uma manivela
de fricção, com um disco de vidro para servir de gerador.
Quando eu a virava contra coxins ligados a um arame, a
carga estática se transmitia aos jarros de vidro que eu
revestira com chumbo - eram minhas garrafas de Leiden
improvisadas. Usei filamento de cobre para ligar em
seqüência essas baterias de faísca e enviar a uma corrente de
metal eletricidade o bastante para fazer os fregueses saltarem
se a tocassem, deixando seus braços e pernas dormentes por
horas. Os estudiosos da natureza humana não ficarão
surpresos em saber que homens faziam fila para levar
choque, que os fazia tremer de espanto com suas
extremidades formigando. Ganhei ainda mais fama de
feiticeiro quando eletrifiquei meus braços e usei os dedos
para atrair lascas de latão. Percebi então que me tornara um
conde Silano, um mago. Os homens começaram a cochichar
a respeito de meus poderes, e reconheço que gostei da
notoriedade. No Natal, retirei o ar de um globo de vidro,
fazendo-o girar com a manivela, e estendi a palma da mão
sobre ele. O brilho roxo que resultou iluminou o barracão e
deixou as crianças da vizinhança extasiadas, muito embora
duas velhas tenham desmaiado, um rabino tenha saído
ruidosa e furiosamente do recinto e um padre católico tenha
estendido o crucifixo em minha direção.
"É só um truque de salão", disse eu, para tranqüilizá-los. "Na
França, fazemos isso o tempo todo."
"E o que são os franceses senão infiéis e ateus?", rebateu o
padre. "Boa coisa a eletricidade não dará."
"Pelo contrário: sábios da França e da Alemanha acreditam
que choques elétricos possam curar a doença ou a loucura."
Mas, como todo o mundo sabe que os médicos matam mais
do que curam, os vizinhos de Jericó não acaram lá muito
impressionados com essa perspectiva.
Miriam também continuava ressabiada. "Parece trabalho
demais só para dar uma aguilhoada em alguém."
"Mas por que a eletricidade aguilhoa? Era isso o que Ben
Franklin queria entender."
"Ela vem quando se gira a manivela, não?"
"Mas por quê? Quando batemos leite para fazer manteiga, ou
tiramos água de um poço, nós obtemos eletricidade? Não, há
algo de especial naquilo, e Franklin achava ser a força que
anima o universo. Talvez seja a eletricidade o que anima as
nossas almas."
"Blasfêmia!"
"A eletricidade está em nossos corpos. Eletricistas vêm
tentando reanimar com a eletricidade, criminosos mortos."
"Ugh!"
"E os músculos dos mortos realmente se movem, embora o
espírito já tenha partido. E a eletricidade o que nos dá vida?
E se pudéssemos domar essa força tal qual domamos o fogo
ou os músculos de um cavalo? E se os antigos egípcios já
faziam isso? A pessoa que soubesse como fazer poderia ter
um poder inimaginável."
"E é isso que procuras, Ethan Gage? Poder inimaginável?"
"Quando vemos a pirâmide, ficamos imaginando se os
homens não tinham tal poder no passado. Por que não
podemos reaprendê-lo?"
"Talvez porque cause mais mal do que bem."
Entrementes, Jerusalém aplicava sua própria magia. Não sei
se a história humana consegue encharcar o solo como a
chuva de inverno, mas os lugares que visitei transmitiam
uma sensação palpável, inescapável e persistente do tempo.
Cada parede tinha uma lembrança; cada viela, uma história.
Jesus caiu aqui, Salomão deu as boas-vindas à rainha de Sabá
ali, os cruzados foram à carga nesta praça, Saladino retomou
a cidade do outro lado daquela muralha. O mais ex-
traordinário era o canto sudeste da cidade, que consistia
num vasto tabuleiro artificial construído no topo do monte
onde Abraão ofereceu o sacrifício de Isaac - o Monte do
Templo. Construído por Herodes, o Grande, é uma platafor-
ma pavimentada de meia milha de comprimento e trezentas
jardas de largura. Mas tudo aquilo apenas para um templo?
Por que precisara ser tão grande? Estaria a plataforma
cobrindo algo - escondendo algo - mais crucial? Isso me fez
lembrar nossas intermináveis especulações sobre o
verdadeiro propósito das pirâmides.
O Templo de Salomão ficava nesse monte até que primeiro
os babilônios e depois os romanos o destruíram. E então os
muçulmanos construíram sua mesquita dourada naquele
mesmo local. Na extremidade sul, havia outra mesquita, El-
Aqsa, cujas formas tinham sido distorcidas por anexos feitos
pelos cruzados. Cada religião tentara deixar sua marca ali,
mas o resultado geral era um vazio sereno, elevando-se
acima da cidade comercial como o próprio Céu. Ali, crianças
brincavam, e ovelhas pastavam. De vez em quando, eu subia
a passos largos pelo Portão da Corrente e passeava pelo
perímetro, observando com minha lunetinha os montes
circundantes. Os muçulmanos me deixavam em paz,
sussurrando que eu era um djinn, um gênio da garrafa, que
explorava poderes sombrios.
Apesar de minha fama, ou talvez por causa dela, deixavam-
me às vezes entrar no próprio Domo da Rocha, a mesquita
azulejada de azul. Eu tirava as botas antes de pisar em seu
tapete vermelho e verde. Talvez tivessem a esperança de me
converter ao islã. O domo era sustentado por quatro imensos
pilares e doze colunas, e seu interior era adornado com
mosaicos e escrita islâmica. Debaixo dele, ficava a rocha
sagrada, Kubbet es-Sakhra, pedra fundamental do mundo,
onde Abraão oferecera o filho em sacrifício e onde Maomé
subira para percorrer o Céu. Num dos lados da rocha havia
um poço, e constava que existiria uma pequena gruta
debaixo dele. Será que alguma coisa estava mesmo escondida
lá? Se um dia o Templo de Salomão se erguera ali, será que
algum tesouro hebraico não fora ocultado no mesmo lugar?
Mas ninguém estava autorizado a descer à gruta, e, quando
eu me demorava demais, um zelador muçulmano me tocava
para longe.
Assim, fiquei especulando, e dei duro com Jericó para
malhar ferraduras, foices, tenazes, dobradiças e todas as
diversas ferragens do cotidiano. Tive ampla oportunidade
para fazer perguntas a meu anfitrião.
"Será que nesta cidade há subterrâneos onde algo de valor
pudesse ficar oculto por um tempo longo?"
Jericó deu uma risada nada amistosa. "Subterrâneos em
Jerusalém? Todo porão leva a um labirinto de túneis
abandonados e ruas esquecidas. Não te esqueças de que esta
cidade já foi saqueada por metade das nações do mundo,
incluindo os teus cruzados. Cortaram-se tantas gargantas que
a água do subsolo deveria ser sangue. E ruína em cima de
ruína em cima de ruína, para não falar de uma mixórdia de
grutas e pedreiras. Subterrâneos? Deve haver mais Jerusalém
lá embaixo que aqui em cima!"
"Essa coisa que estou procurando foi trazida pelos antigos
israelitas."
Ele grunhiu. "Não venhas me dizer que estás à procura da
Arca da Aliança! Isso é mito de lunáticos. Ela pode ter
estado um dia no Templo de Salomão, mas não há menção
da arca desde 586 antes de Cristo, quando Nabucodonosor
destruiu Jerusalém e levou os judeus para o exílio."
"Não, não, eu não me refiro a isso..." Mas me referia, sim, ou
pelo menos nutria a esperança de que a arca me levasse ao
livro, ou de que fossem os dois a mesma coisa. Arca é caixa,
e teoricamente a Arca da Aliança era a caixa de acácia
revestida de ouro na qual os hebreus que escaparam do Egito
mantinham os Dez Mandamentos. Diziam que tinha
misteriosos poderes e que roi de ajuda na hora de derrotar os
inimigos dos hebreus. Era natural que eu perguntasse a mim
mesmo se o Livro de Tot também não seria um recipiente, já
que Astiza acreditava que Moisés o pegara. Mas não revelei
nada disso, não até aquele momento.
"Ótimo. Levarias toda a eternidade para escavar Jerusalém, e
desconfio que não terminarias com mais do que começaste.
Desce rastejando pelos buracos se quiseres, mas tudo o que
encontrarás serão cacos de louça e ossos de rato."
Embora Miriam fosse uma mulher calada, eu aos poucos
percebi que aquele silêncio era o véu de uma inteligência
aguçada, com intensa curiosidade a respeito do passado
histórico. Por diferentes que ela e Astiza fossem na
personalidade, eram gêmeas no intelecto. Nos primeiros dias
de minha estaca, ela preparava e servia nossas refeições, mas
comia à parte. Só depois que eu trabalhara um tempo com
Jericó na forja, conquistando pequeno grau de confiança, foi
que consegui induzir os dois a concordarem que ela ficasse
conosco à mesa. Afinal, não estávamos predispostos a
segregar os sexos como os muçulmanos, e a relutância dos
irmãos era curiosa. De início, Miriam falava apenas quando
se dirigiam a ela (mais uma vez, o oposto de Astiza) e parecia
ter pouca necessidade de expressar-se. Como eu já
desconfiara, ela era realmente linda (uma beleza que sempre
me fazia pensar em frutas com creme), mas relutava em tirar
o lenço dos cabelos à mesa. Quando o fazia, eles se
assemelhavam a uma cachoeira dourada, tão claros quanto
eram escuros os cabelos de Astiza. O pescoço era longo, e as
maçãs do rosto, encantadoras. Eu continuava a me orgulhar
de minha castidade (já que achar uma aventureira em
Jerusalém era como tentar achar uma virgem nos salões de
carteado de Paris, eu bem podia ficar satisfeito com minha
virtude forçada), mas fiquei assombrado com o fato de que
tal beldade ainda não tivesse sido levada embora por algum
admirador persistente. À noite, eu ouvia os sons da água
enquanto Miriam, em pé numa cuba, banhava-se
cuidadosamente. Eu não conseguia deixar de tentar imaginar
seus seios e seu ventre, a rotundidade de suas ancas, as
pernas esbeltas e fortes que meu cérebro tão frustrado
cogitava, com riachos de água e sabão a caírem em cascata
pela topografia perfeita das coxas, panturrilhas e tornozelos.
E aí eu gemia, tentando pensar em eletricidade, e acabava
recorrendo ao punho.
No jantar, Miriam desfrutava nossa conversa com olhar
rápido e animado.
Os irmãos eram pessoas que tinham visto um pouco do
mundo. Por isso, gostavam de minhas histórias sobre Paris, a
infância e juventude na América, minhas primeiras
incursões no comércio de peles nos Grandes Lagos, minhas
jornadas pelo Mississippi até Nova Orleans e as ilhas
açucareiras das Antilhas. Também estavam curiosos acerca
do Egito. Não lhes falei dos segredos da Grande Pirâmide,
mas descrevi o Nilo, as grandes batalhas terrestres e navais
do ano anterior e o templo de Dendara, que eu visitara bem
mais ao sul. Jericó me falou da Palestina, da Galiléia (por
onde Jesus caminhara), dos pontos de interesse cristãos que
eu poderia visitar no monte das Oliveiras. Após alguma
hesitação, Miriam também começou a fazer sugestões
acanhadas, indicando que ela conhecia muito mais sobre a
Jerusalém histórica do que eu teria imaginado. Conhecia
muito mais, aliás do que o irmão. Ela não apenas sabia ler
(coisa já bem rara entre as mulheres em terra islâmica),
como também lia avidamente e passava grande parte de seus
inenciosos dias, resguardada dos homens e livre de crianças,
no estudo de livros que comprava na feira ou pegava
emprestado nos conventos.
"O que estás lendo?", eu lhe perguntava.
"O passado."
Jerusalém era um lugar carregado de passado. Do lado de
fora das muralhas, eu vagava pelos montes no inverno
gelado, quando a luz projetava longas sombras sobre ruínas
anônimas. Certa vez, o vento cortante trouxe uma neve
leve, e essa manta branca foi seguida de um céu azul-claro e
um sol tão desprovido de calor quanto uma pipa. Ao
iluminar a paisagem, ele a transformava em açúcar.
Entrementes, continuava o trabalho no fuzil, e eu podia ver
que Jericó estava gostando da perícia artesanal exigida.
Quando se forjou por completo o cano, nós o alargamos no
sentido longitudinal até o diâmetro correto. Eu girava a
manivela enquanto Jericó empurrava o cano (firmado com
braçadeiras) em minha direção. Era trabalho pesado. Depois
que acabamos isso, Jericó aferiu o resultado esticando um fio
pelo furo, bem firme, e procurando sombras e rebarbas que
assinalassem imperfeições. Aquecendo e malhando o cano
com habilidade, ele ficou ainda mais reto.
A feitura das ranhuras que fariam a bala girar no cano foi
esmerada e laboriosa.
Eram sete ranhuras, cada uma delas feita por uma broca que
girava pelo cano. Já que a broca não podia cortar fundo, era
preciso girá-la à mão pelo cano - duzentas vezes para cada
ranhura.
E isso foi só o começo. Havia o polimento, o recozimento
do aço, a grande quantidade de peças de metal para a
pederneira, o gatilho, o acabamento da coronha, a vareta
etc. Minhas mãos ajudaram, mas a perícia era toda de Jericó,
cujas manoplas carnudas se mostravam capazes de produzir
resultados dignos de uma prendada donzela com a agulha.
Os momentos em que ele ficava mais feliz eram aqueles em
que podia trabalhar em silêncio.
Um dia, a donzela Miriam me surpreendeu ao pedir para
tomar as medidas de meu braço e meu ombro. Seria ela
quem entalharia a coronha, que precisa ficar ajustada ao
tamanho do atirador tal qual um casaco. A própria Miriam se
propusera para a tarefa. "Ela tem olho de artista", explicou
Jericó. "Mostra a caída e o desaprumo que queres na
coronha." O bordo era uma árvore inexistente na Palestina,
de modo que Miriam empregou a mesma madeira usada na
Arca da Aliança, a acácia do deserto - mais pesada do que eu
preferiria, mas dura, firme, resistente. Depois que fiz um
esboço tosco de como queria que a madeira diferisse do
desenho das armas de fogo árabes, Miriam traduziu minha
sugestão em curvas graciosas, que lembravam os fuzis da
Pensilvânia. Quando ela tomou minhas medidas para as
dimensões da coronha, tremi como um garoto de escola ao
toque de seus dedos.
Vede quão casto eu me tornara.
Assim eu levava a vida, despachando para Smith avaliações
políticas e militares tão vagas que teriam confundido
qualquer tolo estrategista o suficiente para dar atenção a elas.
Até que, uma noite, nosso jantar foi interrompido quando
vieram bater com força na porta de Jericó. O ferreiro foi ver
quem era e voltou com um viajante barbudo e empoeirado,
da caravana da feira do dia. "Trago notícias do Egito para o
americano", declarou o visitante.
Foi a vez de meu coração bater com força no peito.
Sentamos à mesa simples de cavaletes, e o homem foi
servido de água (era muçulmano e recusou todo e qualquer
vinho), azeitona e pão. Enquanto ele agradecia
acanhadamente nossa hospitalidade e comia como um
esfomeado, eu aguardava com apreensão, surpreso com a
enxurrada de emoções que me corriam pelas veias. Durante
aquelas semanas com Miriam, Astiza fora encolhendo em
minha lembrança. Agora, sentimentos enterrados havia
meses latejavam em minha cabeça como se Astiza ainda
estivesse em meus braços ou eu a visse balançar
desesperadamente numa corda abaixo de mim. Corei,
impaciente, sentindo a comichão da ansiedade. Miriam me
observava.
Houve o de praxe: as saudações, os votos de prosperidade, as
expressões de agradecimento ao Divino, um relatório sobre a
saúde (por conta da prevalência da gota, febre intermitente,
hidropisia, frieiras, oftalmia, dores e desfaleratos, o "Como
estás?" é uma das mais profundas indagações de minha e
uma lista das provações da viagem. Por fim, a pergunta:
"Quais são as notícias da amiga deste homem?". O
mensageiro engoliu, sacudindo da barba as migalhas de pão.
"Há rede um balão francês que se perdeu durante a revolta
de outubro no Cairo", começou. "Nada sobre o americano a
bordo; dizem que ele simplesmente desapareceu ou desertou
do exército francês. Vários relatos alegam que o americano
estaria aqui ou ali, mas não existe consenso sobre o que teria
acontecido a ele." Olhou de relance para mim e então baixou
a vista para a mesa. "Ninguém confirma vossa história."
"Mas com certeza há notícias do que aconteceu ao conde
Silano", insisti.
"O conde Alessandro Silano está igualmente desaparecido.
Consta que estava investigando a Grande Pirâmide e então
sumiu. Alguns desconfiam que ele tenha sido morto na
pirâmide. Outros acham que voltou para a Europa. Os
crédulos acreditam que o conde tenha desaparecido por
mágica."
"Não, não!", objetei. "Ele caiu do balão!"
"Não há notícia disso, efêndi. Só estou vos contando o que
dizem por lá."
"E Astiza?"
"Não achamos nem sinal dela."
Fiquei deprimido. "Nem sinal?!"
"A casa de Qelab Almani, o homem que chamais Enoque,
onde afirmais vos hospedado, ficou vazia depois que o
assassinaram e foi requisitada para servir de quartel aos
franceses. Yusuf al-Beni, que dissestes ter hospedado essa
mulher em seu harém, nega que algum dia ela tenha posto
os pés lá. Correm boatos de que uma linda mulher
acompanhou a força expedicionária do general Desaix ao
alto Egito, mas, se isso de fato aconteceu, ela também sumiu.
Do mameluco Ashraf que mencionastes, não tivemos
nenhuma notícia. Ninguém se recorda da presença de
Astiza, seja no Cairo, seja em Alexandria. A soldadesca fala
de uma mulher atraente, é verdade, mas ninguém afirma tê-
la visto ou conhecido. E quase como se ela nunca houvesse
existido."
"Mas ela também caiu no Nilo! Um pelotão inteiro viu!"
"Se assim foi, meu amigo, ela não deve nunca ter
reaparecido. Essa mulher parece ter sido uma miragem."
Eu estava abismado. A morte de Astiza, o sepultamento de
seu corpo após o afogamento, era algo para que eu me
preparara. Sua sobrevivência, mesmo como prisioneira, algo
pelo que eu nutrira esperança. Mas seu total
desaparecimento?! Será que o rio a carregara, para nunca
mais ser vista nem receber enterro decente? Que tipo de
resposta era aquela? E Silano também se fora? Isso era ainda
mais suspeito. Teria Astiza sobrevivido de algum modo e ido
embora com ele? Tal idéia me agoniava ainda mais!
"Deveis saber algo mais que isso! Deus do Céu, o exército
inteiro a conhecia! Napoleão falou dela! Importantes sábios
franceses a levaram no barco deles! E agora não se tem
notícia nenhuma?!"
O homem olhou para mim, solidário. "Sinto muito, efêndi.
Deus às vezes deixa mais perguntas do que respostas, não é
mesmo?"
Os humanos conseguem adaptar-se a tudo menos à incerteza
- os piores monstros são aqueles que ainda não
encontramos. Mas ali estava eu, ainda ouvindo as últimas
palavras de Astiza, a ressoar em minha cabeça: "Acha-o!".
Depois, ela a cortar a corda, a cair com Silano, os gritos, o sol
ofuscante enquanto o balão subia para longe... Teria sido
tudo aquilo um pesadelo? Não! Fora tão real quanto aquela
mesa.
Jericó me olhava com desalento. Solidariedade, sim, mas
também a ciência de que a egípcia me mantivera longe da
irmã dele. O olhar de Miriam era agora mais direto do que
jamais fora, e nele vi uma compreensão pesarosa. Naquele
instante, percebi que também ela perdera alguém. Por isso
não se encorajavam pretendentes, por isso o irmão
continuava a ser a companhia mais chegada. Estávamos
todos unidos pela dor.
"Eu só queria uma resposta clara...", sussurrei.
"Vossa resposta é que o que passou, passou." O visitante se
levantou. "Sinto que eu não possa ter trazido notícias
melhores, mas sou apenas o mensageiro. Os amigos de Jericó
ficarão de ouvidos atentos, é claro. Mas não tenhais
esperanças. Ela se foi."
E, tendo dito isso, ele também partiu.
- 6 -
Minha primeira reação foi querer sair de Jerusalém, do
maldito Oriente, naquela mesma hora. E para sempre.
Agora, toda a grotesca odisséia com Bonaparte - ter escapado
de Paris, zarpado de Toulon, visto a tomada de assalto de
Alexandria, conhecido Astiza etc., etc., passando por
batalhas pavorosas, pela perda de meu amigo Antoine .alma
e pelo cruel segredo da Grande Pirâmide - tinha o gosto mais
amargo possível. Aquilo não dera em nada - nem riquezas,
nem o perdão pelo crime que eu nunca cometera em Paris,
nem a filiação permanente aos estimados sarants que tinham
acompanhado a expedição napoleónica, nem o amor du-
radouro pela mulher que me arrebatara e enfeitiçara. Eu até
perdera o fuzil! Meu único motivo real para ter vindo à
Palestina fora descobrir o paradeiro de Astiza, e, agora que a
notícia era que não havia notícias (pode alguma mensagem
ser mais cruel que isso?), minha missão parecia vã. Eu não
me importava com a iminente invasão da Síria, o destino do
Açougueiro, a carreira de sir Sidney Smith, os cálculos
políticos dos drusos, judeus e todo o resto daqueles que
estavam presos em seus infindáveis ciclos de vingança e
inveja. Como é que eu fora parar naquela insana necrópole
do ódio? Já era hora de voltar para casa na América e dar
início a uma vida normal.
E, no entanto... Minha determinação de dar tudo por
encerrado e partir estava paralisada pelo simples fato de não
saber. Se Astiza parecia não estar viva, ela tampouco estava
definitivamente morta. Não havia cadáver. Se eu partisse,
seria assombrado pelo resto da vida. Eu também ainda
guardava lembranças demais de Astiza - ela ter-me mostrado
a estrela Sírio quando subíamos o Nilo, ter-me ajudado a
conter Ashraf na fúria da Batalha das Pirâmides, sua beleza
quando sentada no pátio de Enoque, sua vulnerabilidade e
seu erotismo quando acorrentada no Templo de Dendara. E,
então, ter possuído seu corpo às margens do Nilo!... Em um
ou dois séculos, talvez se consigam superar lembranças
como essas - mas não esquecê-las. Astiza assombrava meus
pensamentos.
Quanto ao Livro de Tot, podia bem ser mito (afinal, tudo o
que encontráramos na pirâmide fora um repositório vazio
para ele e, talvez, o cajado escarninho de Moisés), mas e se
não fosse e estivesse mesmo em algum lugar sob meus pés?
Jericó estava perto de completar um fuzil em cuja feitura eu
dera uma mão e que parecia destinado a ser superior ao que
eu perdera. E havia Miriam, que eu adivinhava ter sofrido
alguma perda trágica antes da minha e que era minha
parceira no pesar. Com Astiza desaparecida, a mulher cuja
morada eu compartilhava, cuja comida eu comia e cujas
mãos estavam dando forma à madeira de minha própria
arma parecia de repente ainda mai; maravilhosa. Para quem
eu precisava voltar na América? Para ninguém. Assim,
apesar da frustração, eu me vi resolvendo ficar um pouco
mais, pele menos até que a arma estivesse pronta. Eu era um
jogador, esperando por uma virada nas cartas. Talvez uma
nova carta aparecesse agora.
E estava curioso acerca do que Miriam perdera.
Ela me tratava com a mesma circunspecção decorosa de
antes, mas agora nossos olhares se encontravam por mais
tempo. Quando punha meu prato ela ficava
perceptivelmente mais perto, e seu tom de voz - estaria eu
imaginando coisas? - era mais suave, mais solidário. Jericó
vigiava a nós dois com mais atenção e, às vezes, interrompia
nossas conversas com interjeições rudes. Como é que eu
podia culpá-lo? Miriam era uma linda colaboradora, de uma
fidelidade canina, e eu era um estrangeiro folgazão, um
caçador de tesouros cujo futuro era incerto. Eu não
conseguia deixar de sonhar em possuí-la, e Jericó também
era homem - sabia o que qualquer de seus iguais desejaria.
Pior: eu poderia carregá-la para a América. Percebi que ele
começava a despender mais horas em meu fuzil. Queria
terminá-lo e ver-me indo embora.
Suportamos as chuvas do final do inverno, com Jerusalém
cinzenta e silenciosa. Chegavam notícias de que Desaix, o
melhor general de Bonaparte, relatava novos triunfos e
novas e espetaculares ruínas bem acima no Nilo. Smith
zanzava pelo mar entre Acre, Constantinopla e o bloqueio
de Alexandria, tudo para preparar-se contra a ofensiva de
primavera de Napoleão. Tropas francesas se acumulavam em
El-Arish, perto da fronteira com a Palestina. O sol ia
ganhando forças e lentamente aquecendo as pedras da
cidade, e a guerra se avizinhava. Então, numa manhã escura,
quando Miriam saiu para buscar nas feiras da cidade um
tempero que faltava para o jantar, eu, num impulso, resolvi
ir atrás dela. Queria uma oportunidade para falar-lhe longe
da presença protetora de Jericó. Em Jerusalém, homem
seguir mulher solteira era indecoroso, mas talvez se
apresentasse a chance de conversarmos. Eu estava solitário.
O que pretendia dizer a Miriam? Não sabia.
Eu a segui a distância, procurando pensar em algum motivo
plausível para abordá-la, ou uma maneira de dar a volta pela
frente para que nosso encontro parecesse coincidência.
Como é estranho que nós, os humanos, precisemos elaborar
tão tortuosamente maneiras de expressar o que nos vai no
coração! Ela, entretanto, andava rápido demais. Ladeou os
tanques de Ezequias, desceu para o longo souk que dividia a
cidade, comprou alimentos numa barraca, rejeitou os
produtos de outras duas e então pegou as vielas para as feiras
do bairro muçulmano de Bezeta, para além da residência do
paxá.
E aí Miriam desapareceu.
Num instante, ela estava descendo a Via Dolorosa, rumo ao
Portão da Escuridão, no Monte do Templo, e à torre de El-
Ghawanima. E, no instante seguinte, já sumira. Pisquei,
confuso. Será que notara que eu a seguia e tentara me evitar?
Acelerei o passo, seguindo apressadamente diante de portas
trancadas, até enfim perceber que eu já correra longe
demais. Retrocedi e então, do pátio adjacente a um
antiquíssimo arco romano que atravessava a rua, ouvi uma
fala rude e insistente. E curioso como um cheiro ou um som
conseguem chacoalhar a memória, e eu seria capaz de jurar
que havia algo de familiar naquela voz masculina.
"Para onde é que ele vai? Onde é que ele está procurando?"
O tom era ameaçador.
"Eu não sei!" A mulher parecia aterrorizada.
Depois de uma grade de ferro, adentrei um pátio escuro e
coberto de entulho, umas ruínas que às vezes eram usadas
como redil de cabras. Quatro brutos, usando capotes
franceses e botas européias, cercavam a moça, amedrontada.
Como já disse, eu estava desarmado, exceção feita à adaga
árabe que eu levava na faixa de cintura. Mas eles ainda não
tinham me visto, o que me dava a vantagem da surpresa.
Não me pareciam o tipo de homem suscetível a blefes, e por
isso olhei rapidamente em volta, à cata de alguma arma
melhor. "Ser obrigado a usar das próprias habilidades é ser
jogado no próprio colo da Fortuna", costumava dizer Ben
Franklin. É - só que ele tinha mais habilidades que a maioria.
Por fim, avistei um cupido de pedra que, largado ali, havia
muito fora desfigurado e castrado por muçulmanos ou
cristãos que procuravam obedecer às injunções referentes a
falsos ídolos e a pênis pagãos. A estátua jazia de lado no
entulho, como se fosse uma boneca esquecida ali.
Tinha um terço de minha altura - era bem pesada - e
felizmente não estava presa ao chão por nada que não fosse
o próprio peso. Mal consegui erguê-la acima de minha
cabeça. Mas eu o fiz, rezei uma prece ao Amor e arremessei.
Acertei as costas do amontoado de biltres como se fossem
pinos de boliche, e eles desabaram uns sobre os outros,
xingando.
"Corre para casa!", gritei para a meiga Miriam. Já haviam
rasgado as roupas dela.
Miriam olhou para mim, assentiu temerosamente, deu um
passo para partir e aí girou de repente quando um dos patifes
a agarrou de novo. Achei que ele talvez a puxasse para o
chão, mas, mesmo enquanto era agarrada, Miriam o chutou
nas bolas com força e com a precisão de quem dançava uma
giga. Ouvi o baque do impacto, que fez o patife congelar tal
qual flamingo em nevasca canadense. Então Miriam soltou-
se e saiu correndo pelo portão, aos pulos. Moça valente!
Tinha mais tutano, e conhecimento da anatomia masculina,
do que eu imaginara.
Agora o bando de canalhas se levantava contra mim, mas,
naquele meio-tempo, eu tornara a erguer o cupido e segurar
o querubim pela cabeça. Girei num círculo completo e soltei
a estátua. Dois dos vilões se estatelaram, e o cupido se
despedaçou. Entrementes, vizinhos tinham ouvido a
balbúrdia e estavam armando uma gritaria. Um terceiro
biltre começou a desembainhar uma espada, até então oculta
(e obviamente passada às escondidas pela polícia de
Jerusalém), e assim, antes que ele pudesse terminar de fazê-
lo, eu o atara com minha adaga árabe, enfiando-lhe a lâmina.
Apesar de todas as brigas em que me metera antes, eu nunca
apunhalara ninguém, e fiquei surpreso com quão depressa a
lâmina mergulhou nele e quão lugubremente ela roçou uma
costela nesse processo. O homem pareceu sibilar e se
desvencilhou tão violentamente que larguei o cabo da adaga.
Cambaleei. Agora, estava sem arma nenhuma.
Enquanto isso, aquele que vinha interrogando Miriam sacara
uma pistola. Ah, não era possível que ele fosse arriscar-se a
disparar na cidade santa, violando todas as leis, quando vozes
já se levantavam!
Mas a arma disparou com estrondo, sua chama como o
clarão do relâmpago, e algo me queimou o lado da cabeça.
Tropecei para longe, meio cego — era hora de bater em
retirada! Troquei pernas até a rua, mas o desgraçado vinha
atrás de mim, tenebroso, as abas de seu capote esvoaçantes
como asas, a espada desembainhada. Quem diabos era ele? O
impacto da bala me deixara tão zonzo que eu me movia com
muita dificuldade.
E então, quando me voltei na viela para confrontá-lo da
melhor maneira possível, uma estaca passou voando por
mim e acertou o desgraçado ali na fronteira da garganta com
o peito. Ele deu uma tossidela medonha e escorregou,
caindo sentado. Olhou para cima, perplexo, arquejante. Fora
Miriam quem pegara um mastro de barraca de feira e o
arremessara como uma lança! Eu tenho mesmo jeito para
achar mulheres competentes.
"Tu?!", disse o homem, quase impossibilitado de falar.
Olhava para mim não para ela. "Por que não estás morto?!"
Tampouco estás, pensei comigo mesmo, tão atônito quanto
ele. Pois, no lusco-fusco da viela calçada de pedra: reconheci
primeiro o emblema que o mastro arremessado por Miriam
fizera ficar para fora da camisa dele - o compasso e o
esquadro maçônico, com o G no centro - e depois o rosto
moreno do "fiscal de alfândega" que, no ano anterior, me
abordara na diligência para Toulon, durante minha fuga de
Paris. Ele tentara tomar-me o medalhão, e eu acabara
baleando-o com meu fuzil enquanto Sidney Smith acertava
outro bandido, este oculto. Eu o deixara ali urrando, e fiquei
imaginando se o ferimento acabara sendo fatal. Estava claro
que não. Que diabos ele fazia agora em Jerusalém, armado
até os dentes?
Mas, é claro, eu sabia, e sabia com horror que ele tinha o
mesmo propósito que eu - procurar por segredos
antiquíssimos. O francês era agente de Silano e não desistira.
Estava ali pelo Livro de Tot. E, aparentemente, por mim.
Antes que eu tivesse chance de confirmar isso, porém, ele
se ergueu com dificuldade, atentou aos berros da vizinhança
e aos gritos dos vizinhos e fugiu, ofegando.
Corremos para o outro lado.
Miriam tremia enquanto voltávamos para a casa de Jericó,
tendo meu braço ao redor dos ombros dela. Nunca
havíamos estado fisicamente próximo, mas agora nos
abraçávamos instintivamente. Peguei algumas das travessas
menos óbvias que eu descobrira em minhas andanças por
Jerusalém, com os ratos afastando-se leves e ligeiros
enquanto eu olhava para trás, verificando se nos seguiam. A
volta era uma subida íngreme (nenhuma parte da cidade é
plana, e o bairro cristão é mais elevado que o muçulmano),
de modo que depois de um tempo, paramos por um
momento na reentrância de um vão de porta, para
tomarmos fôlego e nos certificarmos de que minha cabeça
latejante estava indo mesmo pelo caminho certo. "Eu sinto
muito por aquilo disse a Miriam. "Não é atrás de ti que eles
estão. É de mim."
"Quem são aqueles homens?"
"O que atirou em mim é francês. Eu já o vi antes."
"Viste onde?"
"Na França. A bem dizer, eu o baleei."
"Ethan!"
"Ele tentava me assaltar. Uma pena que eu não o tenha
matado naquela oportunidade."
Ela olhou como se me visse pela primeira vez.
"Não era assunto de dinheiro, era coisa mais importante.
Não contei a ti e teu irmão a história completa." A boca de
Miriam estava entreaberta. "Acho que já é hora de fazê-lo."
"E aquela mulher, Astiza, era parte dessa história?" Miriam
falava em voz baixa.
"Era."
"Quem era ela?"
"Uma estudiosa dos tempos antigos. Na realidade, uma
sacerdotisa, mas de uma deusa egípcia muito, muito antiga.
Ísis, já ouvistes falar."
"A Virgem Negra." Miriam disse isso num sussurro.
"Quem?"
"Existe há muito um culto a imagens de Nossa Senhora
talhadas em pedra negra. Alguns vêem isso como
simplesmente uma variação da arte cristã, mas outros dizem
que na verdade se trata de uma continuação do culto a Ísis.
A Virgem Branca e a Negra."
Interessante. Ísis surgira repetidamente durante minha busca
no Egito. E agora essa mulher, ao que tudo indicava uma
cristã devota, sabia também alguma coisa sobre ela. Eu
nunca ouvira falar de uma deusa pagã que circulasse tanto.
"Mas por que branca e negra?" Lembrei-me do padrão
xadrez das lojas maçônicas parisienses, quando eu me
esforçara ao máximo para entender a maçonaria. E as duas
colunas, uma branca e a outra negra, que ladeavam o altar
das lojas.
"Como o dia e a noite", respondeu Miriam. "Todas as coisas
são duais, e esse é um ensinamento que vem dos tempos
mais longínquos, muito antes de Jerusalém e de Jesus.
Homem e mulher. Bem e mal. Alto e baixo. Sono e vigília.
Nossos pensamentos recônditos e nossos pensamentos
conscientes. O universo está em tensão permanente, e,
apesar disso, os opostos precisam juntar-se para fazer o
todo."
"Astiza me disse a mesma coisa."
Miriam assentiu. "O homem que atirou em ti usava uma
medalha que expressava isso, não?"
"Tu te referes ao símbolo maçônico do esquadro e do
compasso sobrepostos?"
"Eu o vi na Inglaterra. O compasso descreve o círculo, e o
esquadro de carpinteiro traça um quadrado. O dual, outra
vez. E o G significa God, em inglês, ou gnosis,
conhecimento, em grego."
"O herético Rito Egípcio teve início na Inglaterra", disse eu.
"Mas o que aqueles homens querem?"
"A mesma coisa que procuro. A mesma coisa que Astiza e
eu procurávamos. Eles podem ter querido te seqüestrar para
pedir resgate e chegar a mim."
Miriam ainda tremia. "Os dedos dele eram como garras."
Senti-me culpado por inadvertidamente tê-la arrastado para
aquilo. O que antes era brincar de caça ao tesouro se
transformara em perigosa busca. "Estamos numa corrida para
descobrir a verdade antes deles. Vou precisar de ajuda de
Jericó."
Ela me pegou pelo braço. "Então vamos tratar de consegui-
la."
"Espera." Eu a puxei de volta para o escuro. Senti que nossos
apuros nos tinham dado certo grau de intimidade emocional
e, por conseguinte, permissão para fazer uma pergunta mais
pessoal. "Também perdeste alguém, não é verdade?"
Ela se impacientou. "Por favor, precisamos nos apressar."
"Vi isso no teu olhar quando o mensageiro disse que não
havia mais traço de Astiza. Fiquei imaginando se já não foste
casada ou prometida - és bonita demais. Mas houve alguém,
não houve?"
Miriam hesitou, mas o perigo também abrira uma brecha em
seu recolhimento. "Por intermédio de Jericó, conheci um
homem, um aprendiz de ferreiro em Nazaré. Ficamos
noivos em segredo, pois meu irmão se enciumou. Jericó e eu
éramos muito unidos como órfãos, e os pretendentes o
aborrecem. Ele descobriu, e houve uma altercação, mas eu
estava decidida a casar. Antes que pudéssemos fazê-lo, meu
noivo foi recrutado à força para o exército otomano. Acabou
sendo mandado para o Egito e nunca voltou. Morreu na
Batalha das Pirâmides."
Eu, naturalmente, estivera do lado oposto na mesma batalha,
observando a eficiente matança que levou a cabo as tropas
européias. Que desperdício! "Sinto muito", disse eu,
insuficientemente.
"É a guerra. A guerra e o destino. E agora Bonaparte pode vir
para cá." Ela estremeceu. "Esse segredo que procuras... Ele
poderá ser de alguma ajuda?"
"Ajuda para quê?"
"Para pôr fim a toda a mortandade e violência. Para tornar
esta cidade outra vez santa." Bem, a questão era essa, não era
mesmo? Astiza e seus aliados nunca tinham tido certeza
sobre se poderiam usar o misterioso Livro de Tot para o bem
ou se precisavam simplesmente evitar que ele caísse em
mãos erradas e fosse empregado para o mal.
"Sei apenas que será ruim se aquele desgraçado que atirou
em nós chegar a ele primeiro."
Tendo dito isso, resolvi beijá-la.
Foi um beijo roubado, que tirava vantagem de nosso
turbilhão emocional, mas Miriam não se afastou de imediato,
muito embora eu estivesse duro contra sua coxa. Não
consegui evitar (a ação e a intimidade tinham me excitado),
e o modo pelo qual Miriam retribuiu o beijo me fez saber
que ele era recíproco, pelo menos um pouco. Quando ela de
fato se afastou, foi com um pequeno suspiro.
Para evitar que eu me comprimisse contra ela, desviou a
vista de meus olhos para minha têmpora. "Estás sangrando."
Era uma maneira de não falar o que acabáramos de fazer.
De fato, o lado da cabeça estava úmido e quente, e eu tinha
uma dor de cabeça danada. "É só um arranhão", respondi,
com mais bravura do que sentia. "Vamos lá falar com teu
irmão."
"É melhor terminarmos esse teu fuzil", disse Jericó quando
lhe contei nossa história.
"Magnífica idéia. Eu gostaria também que me forjasses um
machado de guerra como os dos índios americanos. Ai!"
Miriam estava enfaixando meu ferimento. Doía um pouco,
mas seus dedos fortes se mostravam maravilhosamente
delicados ao colocar a bandagem. Ainda que a bala de pistola
tivesse me pegado apenas de raspão, um homem fica abalado
quando a coisa é assim por um triz. Agora, verdade seja dita,
gostei de que ela cuidasse de mim. Aquela mulher e eu
havíamos nos tocado mais naquela última hora que em todos
os quatro meses anteriores. "Não existe coisa mais útil que
essas machadinhas. e perdi a minha. Precisaremos de toda
vantagem que pudermos conseguir."
"Teremos de montar guarda, para o caso de esses bandidos
aparecerem por aqui. Miriam, tu não sairás desta casa."
Ela abriu a boca, mas logo a fechou.
Jericó andava para lá e para cá. "Se esse fuzil é mesmo tão
certeiro quanto afirmas, tenho uma idéia para aprimorá-lo.
Tu dizes ser difícil mirar alvos no alcance máximo da arma,
não é?"
"Certa vez, mirei um inimigo e acertei o camelo dele."
"Bem, reparei que ficas espiando pela cidade com tua luneta.
E se a usássemos para te ajudar a mirar?"
"Mas como?"
"Prendendo-a ao cano do fuzil."
Ora, a idéia era absolutamente ridícula. Aquilo só aumentaria
o peso, deixaria o fuzil mais desajeitado e atrapalharia na
hora de colocar a pólvora e a bala. Não podia ser boa idéia, já
que ninguém a tentara antes. No entanto.. E se ajudasse
mesmo a ver de perto os alvos distantes? "Será que
funciona?" Franklin, eu sabia, ficaria fascinado com esse tipo
de improviso. O desconhecido, que assusta a maioria dos
homens, atraía-o como a uma sereia.
"Podemos tentar. E precisaremos de aliados caso aquele
bando ainda esteja na cidade. Achas que mataste um deles?"
"Eu o apunhalei. Vai saber... Baleei o líder deles na França -
e cá está ele exuberante. Parece que tenho muita dificuldade
em dar cabo das pessoas." Pensei em Silano e em Achmed
bin Sadr, no Egito, ambos continuavam vindo atrás de mim
mesmo depois de feridos diversas vezes. Eu não precisava só
do fuzil. Precisava também de prática de tiro.
Vou mandar notícias a sir Sidney", disse Jericó. "A presença
dos agentes franceses aqui pode ser importante o suficiente
para que os britânicos mandem ajuda. E Miriam diz que tudo
isso tem alguma coisa que ver com o tesouro que vives
prometendo. O que está acontecendo de fato?"
Já passara da hora de eu confiar neles. "Aqui, em Jerusalém,
pode estar enterrado algo que poderia influenciar todo o
curso da guerra. Caçamos essa coisa no Egito, mas acabamos
concluindo que ela só pode ter vindo para Israel, o problema
é que, toda vez que encontro uma escada que leva para
baixo, eu com algum tipo de beco sem saída. A cidade é um
monte de entulho. A minha busca talvez se mostre
impossível. E agora os franceses estão aqui, certamente atrás
da mesma coisa."
"Eles fizeram perguntas a teu respeito", lembrou Miriam.
"Pois é. Será que só descobriram minha presença quando
chegaram aqui? Ou será que ficaram sabendo de longe?
Jericó, essas pessoas que fizeram indagações sobre Astiza no
Egito podem ter deixado escapar que estou aqui?"
"O combinado não foi esse... Mas espera aí - achar o quê,
exatamente? Que tesouro é esse que procuras?"
Tomei fôlego. "O Livro de Tot."
"Um livro?" Jericó ficou decepcionado. "Pensei que tivesses
falado em tesouro. Passei o inverno inteiro fazendo um fuzil
em troca de um livro?!"
"Os livros têm poder, Jericó. Olha a Bíblia. Ou o Corão. E
esse livro é diferente - é um livro de sabedoria, poder e...
magia."
"Magia." Seu semblante era inexpressivo.
"Não precisas acreditar em mim. Tudo o que sei é que
atiraram em mim, jogaram serpentes em meu leito e
perseguiram-se de camelo e barco para pegar esse livro - ou
melhor, um medalhão que eu tinha e que era a pista de onde
estaria o livro. Ao fim, o medalhão era a chave para uma
porta secreta na Grande Pirâmide, porta pela qual Astiza e eu
adentramos. Descobrimos um lago subterrâneo entupido de
tesouros, um pavilhão de mármore e um repositório de ouro
para o livro."
"Mas então já tens o tesouro?"
"Não. A única maneira de escapar da pirâmide foi nadando
por um túnel. Com o peso do ouro e das jóias, eu poderia
ter-me afogado. Perdi tudo. Os judeus talvez tenham
enterrado um tesouro diferente aqui em Jerusalém."
Jericó tinha a mesma expressão cética que eu costumava ver
em madame Durrell, em Paris, quando lhe explicava o atraso
no pagamento do aluguel. "E o livro?"
"O repositório estava vazio. Tudo o que restava era um
cajado, deixado ao lado. Astiza me convenceu de que o
cajado tinha sido trazido pelo homem que furtou o livro e
que esse homem só pode ter sido..." Hesitei, sabendo o que
tudo aquilo devia parecer.
"Quem?"
"Moisés."
Por um instante, ele apenas piscou, consternado. Depois riu,
um riso vociferante e desdenhoso. "Aí está - eu venho
hospedando um demente! Será que Sidney Smith sabe que
és insano?"
"Eu não contei tudo isso a ele, e não teria contado a ti e a
Miriam se não tivéssemos visto aquele francês. Sei que
parece estranho, mas aquele patife estava aliado ao meu
maior inimigo, o conde Silano. O que significa que o tempo
é curto. Precisamos achar o livro antes dele."
"Um livro que Moisés furtou.
"E isso é assim tão impossível? Um príncipe egípcio mata
um capataz num acesso de raiva, foge do país e então volta
para libertar os escravos hebreus após ter conversado com
uma sarça ardente. Tu acreditas em tudo isso, não? E, de
repente, Moisés tem o poder de invocar pragas, dividir as
águas e manter os israelitas alimentados no deserto do Sinai.
A maioria dos homens diz que foi simplesmente milagre,
uma dádiva divina - mas e se Moisés descobriu instruções
que lhe disseram como fazer aquilo? Era nisso que Astiza
acreditava. Ele era príncipe, sabia como entrar e sair da
pirâmide, a qual não passava de despiste e marco para
proteger o livro dos indignos.
Moisés o pega, e, quando o Faraó descobre que o livro se foi,
ele persegue Moisés e os escravos hebreus com seiscentas
bigas, apenas para ser engolido pelo mar Vermelho. Mais
adiante, essa tribo de ex-cativos entra na Terra Prometida e
começa a conquistá-la aos habitantes civilizados ali
estabelecidos. Mas como? Graças a uma arca com poderes
misteriosos? Ou a um livro de sabedoria antiga? Sei que
parece improvável, mas os franceses também acreditam
nisso. Do contrário, aqueles homens não teriam seqüestrado
tua irmã. Esta é uma adversidade tão real quanto os
machucados nos braços e ombros de Miriam."
O ferreiro me fitou, tamborilando. "És mesmo louco."
Balancei a cabeça, frustrado. "Então por que estou com isto
aqui?" E enfiei a mão em meu manto para sacar os dois
serafins de ouro, cada um deles com quatro polegadas de
comprimento. Miriam ficou boquiaberta, e os olhos de
Jericó se arregalaram. Eu sabia que não era apenas o
resplendor do ouro, ainda tão vívido após milênios. Era
também o fato de que esses anjos ajoelhados, com as asas
abertas na direção um do outro, constituíam uma réplica
minúscula daqueles que outrora ornaram a tampa da Arca da
Aliança. Não era um truque barato que eu pudesse ter
arranjado numa loja de artesão - a qualidade da obra era boa
demais, e o ouro, pesado demais.
"Um velho que encontrei os chamou de bússola", continuei.
"Não sei o que ele queria dizer. Não sei quanto dessa história
é verdadeiro. Tenho 'ávido à base de ciência, fé e
especulação desde que, um ano atrás, fugi de Paris. Mas as
pirâmides parecem codificar uma matemática sofisticada que
nenhum povo primitivo teria como conhecer. E de onde
veio a civilização? No Egito, ela parece ter brotado já
totalmente constituída. Reza a lenda que : conhecimento
humano da arquitetura, escrita, medicina e astronomia veio
de um ser chamado Tot, que se tornou divindade egípcia,
predecessor do deus grego Hermes. Tot teria escrito um
livro da sabedoria, tão poderoso que poderia ser usado tanto
para o mal como para o bem. Os faraós, percebendo a força
desse livro, salvaguardaram-no sob a Grande Pirâmide. Mas,
se Moisés o furtou, o livro talvez tenha sido trazido - só
pode ter sido trazido! - para cá pelos judeus."
"Moisés nem sequer chegou à Terra Prometida", contra-
argumentou Miriam. "Ele morreu no monte Nebo, do outro
lado do rio Jordão. Deus não permitiu que ele entrasse."
"Mas seus sucessores entraram, com a arca. E se esse livro
era parte ou complemento da arca? E se ele foi escondido
sob o Templo de Salomão? E se ele sobreviveu à destruição
do Primeiro Templo pelos babilônios de Nabucodonosor e
do Segundo Templo pelos romanos de Tito? E se ainda
estiver aqui, esperando para ser redescoberto? E se for
achado primeiro por Bonaparte, que sonha em ser outro
Alexandre? Ou pelos sequazes do conde Alessandro Silano,
que têm sonhos para si próprios e para seu pervertido Rito
Egípcio da maçonaria? E se Silano sobreviveu à queda do
balão, mesmo que Astiza não o tenha conseguido? Esse livro
poderia ser decisivo no equilíbrio do poder. È preciso achá-
lo e salvaguardá-lo - ou, se o pior acontecer, destruí-lo. Tudo
o que estou dizendo é que temos de olhar em cada um dos
locais prováveis antes que aqueles franceses o façam."
"Moras na minha casa, trabalhas na minha forja, e só agora
me contas isso?" Jericó estava irritado e, no entanto, olhava
com curiosidade para meus serafins.
"Tentei deixar a ti e a Miriam fora disso. É um pesadelo, não
um privilégio. Mas agora, se conheces túneis subterrâneos,
precisas me ajudar a achá-los. Os franceses não desistirão.
Estamos numa corrida."
"Eu sou ferreiro, não explorador."
"E eu sou apenas um representante comercial que se viu
apanhado em guerras longínquas, não um soldado. As vezes
somos chamados a fazer coisas, Jericó. Tu foste chamado a
me ajudar nisto."
"A achar o livro mágico de Moisés..."
"De Moisés não. De Tot."
"Ah! Achar um livro escrito por um deus mítico, um falso
ídolo."
"Não! Impedir que as pessoas erradas - os renegados do Rito
Egípcio da maçonaria - usem o poder desse livro para o
mal." Minha frustração aumentava porque eu sabia quão
insano estava parecendo.
"O Rito Egípcio?"
"Irmão, tu te lembras dos boatos sobre eles na Inglaterra",
disse Miriam. " Uma sociedade secreta, que diziam ter
práticas malignas. Outros maçons os abominavam."
"Isso, estás certa!", disse eu, encorajando-a. "Desconfio que
o homem que atacou tua irmã seja um deles."
"Mas eu trabalho com ferro duro e fogo quente", objetou
Jericó. "Coisas tangíveis. Não sei nada da Jerusalém antiga,
nem de túneis ocultos, nem de livros perdidos ou maçons
renegados."
Fiz uma careta. Como eu conseguiria recrutado?
"Mas nós sabemos que nesta cidade há um erudito que
pesquisou os anti-caminhos", reconheceu Miriam.
"Não estás falando do agiota, estás?!"
"Ele é um estudioso do passado, irmão."
"Um historiador?", interrompi. Aquilo lembrava Enoque,
que me ajudara no Egito.
"Ele está mais para publicano mutilado, mas é fato que
ninguém conhece tanto a história de Jerusalém", admitiu
Jericó. "Miriam ficou amiga dele. Precisamos de lanternas,
picaretas, auxílio de Sidney Smith... e orientação de Haim
Farhi."
"E quem é ele?", perguntei alegremente, aliviado com o fato
de que o ferreiro agora estava ajudando.
"Alguém que sabe mais do que qualquer um sobre os
caçadores de tesouros que vieram antes de ti - os cavaleiros
cristãos que talvez tenham levado a melhor sobre ti nessa
busca."
- 7 –
Eu tinha a expectativa de que Haim Farhi exibisse algo da
circunspecção e dignidade do antiquário Enoque, uma figura
a Aristóteles que se tornara meu mentor no Egito e fora
assassinada por meus inimigos. Mas, agora, eu estava fazendo
força para não olhar embasbacado. Não era só porque faltava
a majestade de Enoque àquele judeu baixo, franzino, de
meia-idade, com cachos laterais em espiral e roupa escura e
sombria. Era principalmente porque ele fora mutilado para
transformar-se num dos homens mais horrendos que já vi.
Parte do nariz fora cortada, o que deixou uma fuça como a
dos porcos. A orelha direita estava faltando. E o olho direito
fora arrancado, restando uma órbita fechada por cicatriz.
"Deus meu, o que aconteceu com ele?!", sussurrei para Jericó
enquanto Miriam pegava o capote do homem à porta.
"Ele incorreu na ira do Açougueiro", respondeu o ferreiro,
falando baixinho. "Não demonstre pena. Ele ostenta a
sobrevivência como uma divisa de honra. É um dos mais
poderosos banqueiros da Palestina e tem a confiança de
Djezzar, pois permaneceu fiel depois da tortura."
"As pessoas o usam para fazer poupança e pedir
empréstimos?"
"O que lesaram foi seu rosto, não seu cérebro."
"O rabino Farhi é um dos mais destacados historiadores da
província", disse Miriam, em tom mais alto, enquanto ela e o
visitante se aproximavam de nós, com os dois já
adivinhando o motivo de nossos cochichos. "É também um
estudioso dos mistérios judaicos. Qualquer pessoa que
investigue o passado fará bem em consultá-lo."
"De modo que agradeço vossa ajuda", disse eu,
diplomaticamente, tentando não ficar encarando Farhi.
"Assim como agradeço vossa tolerância para com minha
desventura", respondeu ele, com voz serena. "Sei do efeito
que causo nas pessoas. Vejo a minha desfiguração refletida
no olhar de cada criança assustada. Mas o isolamento que a
mutilação causa me proporciona tempo para as lendas desta
cidade. Jericó me disse que estais procurando segredos
perdidos de importância estratégica, não?"
"Possivelmente."
"Possivelmente? Ora vamos - se quisermos avançar nesta
questão, precisaremos confiar uns nos outros, não é
mesmo?"
Eu estava aprendendo a não confiar muito em ninguém, mas
não lhe disse isso nem nada mais.
"E esses tópicos talvez tenham relação com a Arca da
Aliança", continuou Farhi, persistente. "Isso também não é
verdade?"
"É." Obviamente, ele já sabia o que eu contara a Jericó.
"Posso compreender porque viajastes para tão longe com
tanta empolgação. No entanto, é minha triste
responsabilidade avisar-vos de que talvez estejais setecentos
anos atrasado. Homens já vieram a Jerusalém para procurar
os mesmos poderes que vós."
"E ides me dizer que eles tentaram o máximo possível e não
conseguiram achá-los."
"Pelo contrário — vou dizer-vos que eles podem ter achado
justamente o que procurais. Ou que, se de fato não
conseguiram, é improvável que também consigais. Eles
procuraram durante anos. Jericó me disse que tendes no
máximo dias."
O que aquele mutilado sabia? "Achado exatamente o quê?"
"Curiosamente, os eruditos ainda debatem a esse respeito.
Um grupo de cavaleiros cristãos partiu de Jerusalém levando
poderes inexplicáveis - e, ainda assim, ficaram desamparados
quando foram traídos. Por conseguinte, descobriram ou não
alguma coisa?"
"Um conto de fadas", zombou Jericó.
"Mas um conto fundamentado na história, irmão", disse
Miriam, mansamente.
"Essas histórias de túneis são lendas bolorentas", insistiu
Jericó, dirigindo-se a Miriam.
"E o que são as lendas senão ecos da verdade?", respondeu a
irmã.
Fiquei olhando os três, de um para outro. Eles já haviam
discutido aquilo antes. "Mas, afinal, que lendas?"
"Dos nossos ancestrais, os templários", disse Miriam. "O
nome completo da ordem deles era os Cavaleiros Pobres de
Cristo e do Templo de Salomão. Nem todos os monges
guerreiros eram celibatários, e reza a tradição que o nosso
sangue descende do deles. Os templários procuravam o
mesmo que procuras, e alguns dizem que eles o acharam."
"E onde estão agora?"
"É uma história curiosa", disse Farhi. "Vivestes em Paris,
não, senhor Gage? Estais familiarizado com a região da
Champagne, a sudeste daquela capital e ao norte de Troyes?"
"Já passei por lá e gosto dos produtos locais."
"Mais de mil e trezentos anos atrás, travou-se ali uma das
mais terríveis batalhas de toda a história. Ali, Aécio, o
último dos romanos, derrotou Átila, o grande huno."
"A batalha de Chalons", disse eu, grato por Franklin ter
mencionado uma ou duas vezes esse quebra-pau da
Antiguidade. Ele era um poço de informações esdrúxulas e
lia livros de história tão grossos quanto três calços de porta
juntos, escritos por um inglês chamado Gibbon.
"Nessa batalha, Átila tinha uma misteriosa espada com
poderes místicos, que remontava a tempos muito, muito
antigos. Lendas de tal magia, mais a idéia de que neste
mundo há forças maiores do que as dos simples músculos e
aços, transmitiram-se às gerações de francos que viriam a
habitar a Champagne. Essas eram pessoas que achavam
existir mais coisas no mundo do que aquelas que podemos
facilmente ver e tocar. Bernardo de Claraval, o grande santo
e mestre, foi um dos que ouviram tais histórias."
Esse nome também despertou uma recordação. Lembrei-me
de que o sábio francês Jomard o evocara logo que escalamos
a Grande Pirâmide. "Esperai - eu já ouvi falar dele. Disse
alguma coisa sobre Deus ser altura e largura - sobre Ele ser
dimensões. Que podemos incorporar dimensões divinas em
edifícios sagrados."
"Sim. 'O que é Deus? Ele é comprimento, largura, altura e
profundidade', disse o santo. E o poderoso cavaleiro André
de Montbard, tio de Bernardo, compartilhava da idéia de que
os antigos que conhecessem tais coisas podiam ser enterrado
poderosos segredos no Oriente. Enterrado, talvez, debaixo
do Templo de Salomão - que ocupava o Monte do Templo, a
pouca distância de onde estamos."
"Os maçons acreditam nisso até hoje", comentei,
lembrando-me de meu falecido amigo jornalista, Antoine
Talma, e suas arrebatadas teorias.
"No ano de 1119", continuou Farhi, "Montbard foi um dos
nove cavaleiros que viajaram em missão especial à Terra
Santa. Jerusalém já fora tomada pelos cruzados, e esses nove
chegaram à cidade e pediram para formar uma nova ordem
militar, de monges guerreiros - os templários. Mas a
intenção deles parecia misteriosa já nos primórdios. Embora
houvessem se proposto a defender os peregrinos cristãos,
esses homens da Champagne não recrutaram seguidores de
início e fizeram pouco para patrulhar a estrada de Jafa. Em
vez disso, conseguiram do governante de Jerusalém, o rei
Balduíno II, uma autorização extraordinária para estabelecer
base na mesquita de El-Aqsa, na extremidade sul do Monte
do Templo."
"Nove recém-chegados conseguem acantonar-se no Monte
do Templo?"
Farhi assentiu, fitando-me com o olho bom. "Coisa curiosa,
não?"
"E que relação esses templários têm com Moisés e a arca?",
perguntei.
"É aí que começamos a especular", respondeu Farhi. "Os
rumores dão conta de que eles escavaram um túnel pelas
entranhas do que havia sido o Templo de Salomão e
encontraram... alguma coisa. Após a estada deles aqui,
voltaram para a Europa, receberam status especial do papa e
se tornaram os primeiros banqueiros e a mais poderosa
ordem militar do continente. Os recrutas vinham em
multidão para eles. Os templários eram agora
inimaginavelmente ricos, e reis tremiam diante deles. E
então, numa única e terrível noite - sexta-feira, 13 de
outubro de 1309 -, os líderes templários acabaram detidos
pelo rei da França num imenso expurgo. Foram torturados e
mortos às centenas. Com eles, morreram os segredos do que
tinham descoberto em Jerusalém. E assim tiveram início as
lendas - pois como pôde uma obscura ordem de cavaleiros
ficar tão rica e poderosa em tão pouco tempo?"
"Achais que eles descobriram a arca?"
"Nunca se viu nem traço dela."
"Logo depois", acrescentou Miriam, "começaram a surgir
narrativas sobre cavaleiros em busca de um Santo Graal."
"A taça da Última Ceia", disse eu.
"Essa é uma das histórias", disse Farhi. "Mas, nos diversos
relatos, o Graal tem sido também descrito como um
caldeirão, um prato, uma pedra, uma espada, uma lança, um
peixe, uma mesa - e até um livro secreto." Ele me observava
atentamente.
"O Livro de Tot!"
"Até este momento, eu não o ouvi ser chamado assim. Mas a
história que contastes a Jericó e Miriam é mesmo fascinante.
O deus Tot foi o precursor do deus grego Hermes. Já sabíeis
disso?"
"Já, aprendi isso no Egito."
"Na lenda alemã de Parzival, terminada em 1210, o herói vai
aconselhar-se com um sábio e idoso eremita chamado
Treurizent. Reconheceis o nome?"
Balancei negativamente a cabeça.
"Alguns eruditos acreditam que ele venha do francês treble
escient."
Agora, eu sentia uma onda quente de empolgação tomar
conta de mim. ""Triplamente sabedor!' Que é o que significa
o nome grego Hermes Trismegistus - Hermes, o três vezes
sabedor, mestre de todas as lidas, que por sua vez é o deus
egípcio Tot!"
"Sim. Três Vezes o Maior, a Primeira Inteligência, o
originador da civilização. Foi o primeiro grande autor,
aquele que nós, os judeus, chamamos Enoque."
"Enoque era o nome que meu mentor no Egito adotava."
"Isso não me surpreende. Pois bem, quando aprisionaram os
templários, estes foram acusados de heresia. Imputaram-lhes
rituais obscenos, o sexo com outros homens e o culto a uma
figura misteriosa que se chamava Baphomet - o Bafomé. Já
ouvistes falar dele?"
"Não."
"Bafomé tem sido retratado como um diabo com cabeça de
bode. Mas há uma curiosidade nesse nome. Se ele se
originou de Jerusalém, pode ter sido uma corruptela do
nome árabe Abufihamat, que significa 'Pai da Sabedoria'. E
quem poderia ser esse para homens que denominavam a si
próprios os Cavaleiros do Templo?"
Pensei por um momento. "O rei Salomão."
"Isto! Os elos continuam. Durante as ocupações estrangeiras,
os judeus antigos tinham também o hábito de às vezes
escrever códigos secretos usando cifras de substituição. Na
cifra Atbash, cada letra do alfabeto hebraico corresponde na
realidade a outra letra - a primeira letra se torna a última do
alfabeto; a segunda letra, a penúltima; e assim por diante. Se
escreverdes Baphomet em hebraico e depois transpuserdes
isso para a cifra Atbash, lereis sophia, que é 'sabedoria' em
grego."
"Bafomé. Salomão. Sofia. Então os cavaleiros estavam se
consagrando não a um demônio, mas à sabedoria?"
"Essa é a minha teoria", disse Farhi, com modéstia.
"Mas então por que foram perseguidos?"
"Porque o rei da França os temia e queria a riqueza deles.
Existe melhor maneira de desacreditar os nossos inimigos do
que acusá-los de blasfêmia?"
"Os cavaleiros talvez tenham se consagrado a algo mais
tangível", disse Miriam. "Não nos disseste, Ethan, que Tot,
ou Thoth, é supostamente a origem da palavra inglesa
thought?"
"Sim. 'Pensamento'."
"E assim o encadeamento é ainda mais longo. Baphomet é o
Pai da Sabedoria, é Salomão, é Sofia... mas não poderia ele
também ser o pensamento, Tot, o deus original de todo o
conhecimento?"
Eu estava atônito. Teriam os templários, os pretensos
ancestrais de minhas próprias lojas maçônicas fraternas,
sabido dessa antiga divindade egípcia? Teriam eles a
cultuado? Estaria todo esse contra-senso relacionado de
alguma maneira que ia dos maçons aos templários e destes
ao antigo Egito, passando pelos romanos, gregos e judeus?
Haveria uma história secreta que se desenrolaria por todo o
tempo do mundo, em paralelo à história comumente
conhecida?
"E como foi que Salomão se tornou tão sábio?", disse Jericó,
bem devagar. "Se esse livro fosse coisa verdadeira e o rei
estivesse de posse dele..."
"Corriam boatos sombrios de que Salomão tinha o poder de
invocar demônios", disse Miriam. "E assim as histórias se
entrelaçam - relatando que homens devotos procuravam
apenas conhecimento ou que o conhecimento corrompia,
levando à riqueza e ao mal. Será que o conhecimento é bom
ou ruim? Vede a história do Jardim do Eden e da Arvore do
Conhecimento do Bem e do Mal. As lendas e os debates
pendem de um lado para o outro."
Eu estava pasmado com as possibilidades. "Pensais que os
templários já acharam esse livro?"
"Se acharam, talvez o tenham perdido no expurgo que se
seguiu", respondeu Farhi. "Vosso Graal específico pode já
não ser nada senão cinzas ou estar em outras mãos. Só que
nenhum poder sucedeu os templários. Nenhum grupo de
cavaleiros jamais se igualou a eles, e nenhuma fraternidade
voltou a estar tão disseminada pela Europa. E, quando
Jacques de Molay, o último grão-mestre da ordem, foi
queimado na fogueira por ter-se negado a trair os segredos
dos templários, ele rogou uma terrível maldição,
prometendo que, em um ano, o rei da França e o papa o
seguiriam ao túmulo. E ambos morreram mesmo naquele
período. Assim, para começo de conversa, o livro fora de
fato encontrado? Perdeu-se? Ou foi..."
"Outra vez ocultado", completou Miriam.
"No Monte do Templo!", bradei.
"Possivelmente, mas em lugares tão profundos que não há
como redescobri-lo com facilidade. Ademais, quando
Saladino retomou Jerusalém aos cruzados, pareceu ter-se
perdido a possibilidade de penetrar no monte. Mesmo hoje,
os muçulmanos o guardam ciosamente. Eles por certo já
ouviram algumas das mesmas histórias que nós - mas não
permitem nenhuma exploração ali. Esses segredos poderiam
abalar os alicerces de todas as religiões, e o islã é inimigo da
feitiçaria."
"Quereis dizer que não temos como entrar lá?"
"Se tentarmos e formos descobertos, seremos executados. É
solo sagrado. No passado, escavações provocaram distúrbios.
Seria como se tentássemos escavar a basílica de São Pedro."
"Então por que estamos conversando?"
Olharam rapidamente uns para os outros, em mútuo
entendimento.
"Ah, compreendi - é preciso que não sejamos pegos."
"Exatamente", disse Jericó. "Farhi sugeriu uma rota possível."
"E por que ele mesmo não a seguiu?"
"Porque é encharcada, suja, perigosa, apertada e
provavelmente vã", respondeu alegremente Farhi. "Afinal,
estávamos tratando apenas de uma vaga lenda histórica até
que viestes afirmar que algo realmente extraordinário existiu
no antigo Egito e pode ter sido trazido para cá. Se eu creio
nisso? Não. Talvez sejais um mentiroso divertido, ou um
tolo crédulo. Mas quereis saber se descreio, quando a
existência desse algo pode ter representado grande poder
para meu povo? Não posso me dar a tal luxo."
"Então nos guiareis?"
"Tanto quanto for possível a um guarda-livros desfigurado."
"Por uma parcela do tesouro, imagino."
"Pela verdade e conhecimento, como teria contentado a
Tot."
"Coisas que Miriam disse poderem ser usadas para o bem e
para o mal."
"Pode-se dizer o mesmo do dinheiro, meu amigo."
Bem, toda vez que um estranho proclama seu altruísmo e
me chama de amigo, eu fico imaginando em qual de meus
bolsos ele está metendo a mão. Mas, naqueles meus meses
de pesquisa, eu não descobrira nenhuma pista, não era
mesmo? Talvez eu e ele pudéssemos usar um ao outro. "Por
onde começamos?"
"Entre o Domo da Rocha e a mesquita de El-Aqsa, fica a
fonte de El-Kas", explicou Farhi. "A água vem de
antiquíssimas cisternas pluviais que estão bem fundo no
monte do Templo. Essas cisternas são ligadas entre si por tú-
neis, para que abasteçam umas às outras. Alguns autores
especulam que são parte de um retículo de passagens que
talvez se estenda até mesmo debaixo da própria rocha
sagrada, a Kubbet es-Sakhra, onde Abraão ofereceu seu sa-
crifício a Deus - a pedra fundamental do mundo. Ademais,
essas cisternas têm necessariamente de estar ligadas também
a bicas, e não apenas a coletores da água de chuva. Por
conseguinte, uma década atrás, Djezzar me pediu que
vasculhasse os antigos registros à procura de passagens
subterrâneas para o Monte do Templo. Eu disse a ele que
não encontrara nenhuma."
"Mentistes?"
"Foi uma confissão de fracasso que me saiu muito cara -
como punição, fui mutilado. Mas o fiz porque de fato
encontrei antigos registros, relatos fragmentários, que
indicavam uma rota secreta para poderes tão grandes que
não se poderia jamais permitir que um homem como
Djezzar os tivesse. A fonte de Giom, que abastece o tanque
de Siloé, do lado de fora das muralhas da cidade, talvez
ofereça um caminho. Se assim for, os muçulmanos nunca
nos veriam."
"Pode ser que as cisternas", disse Miriam, "levem aos locais
mais profundos, onde os judeus teriam escondido a arca, o
livro e outros tesouros."
"Até essas coisas terem sido talvez descobertas pelos
templários", acrescentou Farhi. "E terem sido talvez outra
vez ocultadas depois que Jacques de Molay morreu na
fogueira. Entretanto, há mais um problema que me
desestimulou a realizar qualquer exploração ali."
"Os túneis estão bloqueados por água?" Eu tinha lúgubres
lembranças de minha fuga da Grande Pirâmide.
"Possivelmente. Mas, mesmo se não estiverem, um registro
que achei fazia referência a portas seladas - o que um dia
esteve aberto, agora talvez esteja fechado."
"Com suficiente força bruta ou pólvora, homens decididos
conseguem forçar qualquer porta", disse Jericó.
"Pólvora não!", exclamou Farhi. "Queres acordar a cidade
inteira?"
"Força bruta, então."
"E se os muçulmanos nos ouvirem fuçar lá embaixo?",
perguntei.
"Isso", respondeu o banqueiro, "seria mesmo uma grande
infelicidade."
Meu fuzil estava pronto. Para dar-lhe o ponto de mira, Jericó
colara cuidadosamente dois fios de cabelo de Miriam na
lente da luneta, e, quando fui testar a arma fora da cidade, vi
que conseguia acertar constantemente um prato a duzentas
jardas. Em comparação, um mosquete já seria impreciso após
as cinqüenta jardas. Mas, quando levei o aparato ao telhado
de nossa casa para vigiá-la contra os bandoleiros franceses,
perscrutando até a vista doer, não vi nada. Teriam eles ido
embora? Devaneei que não, que Alessandro Silano estava ali,
comandando-os secretamente, e que eu poderia capturá-lo e
interrogá-lo a respeito de Astiza.
Mas era como se aquele bando nunca tivesse existido.
Miriam usara latão brilhante para marchetar dois serafins em
cada lado da coronha, como estojos onde eu guardaria
minhas buchas. Estas, empurradas pela bala, limpam os
resíduos de pólvora a cada disparo. Os serafins se agacharam
com as asas estendidas, tal qual aqueles da Arca da Aliança.
Jericó também me fez a machadinha. Fiquei tão satisfeito
que dei ao desconfiado ferreiro algumas instruções de como
ganhar no faraó, caso algum dia topasse com esse jogo, e
comprei um pequeno crucifixo espanhol, dourado, para
Miriam. Quando a noite de nossa aventura chegou, não
fiquei de todo surpreso em ver que Miriam insistia em nos
acompanhar, apesar do costume local de enclausurar as
mulheres. "Ela conhece antigas lendas que me entediam",
reconheceu Jericó. "Vê coisas que não consigo ou não quero
ver. E não tenho a intenção de deixá-la sozinha enquanto os
ladrões franceses estiverem rondando por aí."
"Concordo", disse eu.
"Além disso, os dois vão precisar de juízo feminino", disse
ela, dirigindo-se a mim e ao irmão.
"É importante que nos desloquemos furtivamente",
acrescentou Jericó. "Miriam diz que tens habilidades de
pele-vermelha."
A bem dizer, minhas habilidades de pele-vermelha haviam
consistido primordialmente em evitar esses selvagens
sempre que pude e comprá-los com presentes quando aquilo
não mais se mostrou factível. Meus poucos entreveros com
eles tinham sido apavorantes. Mas eu exagerara para Miriam
as minhas façanhas no desbravamento da América (um mau
hábito meu), e não adiantaria pôr as coisas a limpo naquele
momento.
Farhi também veio, trajado de preto. "Minha presença talvez
seja mais importante do que eu imaginava", disse ele.
"Também existem mistérios judaicos, e, desde nossa
conversa, eu estive estudando o que os templários estu-
davam, inclusive a numerologia da cabala e dos livros do
Zohar."
"Mais livros? E esses servem para quê?"
"Alguns de nós acreditam que a Torá, ou a vossa Bíblia,
possa ser lida em dois níveis. O primeiro é o das narrativas
que todos conhecemos. O segundo seria o de outra
narrativa, um mistério, uma história sagrada - uma história
oculta nas entrelinhas, inserida num código numérico. O
Zohar é isso."
"A Bíblia é um código?"
"Cada uma das vinte e duas letras do alfabeto hebraico pode
ser representada por um número, e há mais dez números
além desses, representando as sagradas sephiroth. Está aí o
código."
"Dez o quê?"
"Sephiroth. São as seis direções da realidade - os quatro
pontos cardeais, leste, oeste, norte e sul, mais o acima e o
abaixo - e as essências do universo — o fogo, a água, o éter e
Deus. Essas dez sephiroth e vinte e duas letras representam
os trinta e dois caminhos da sabedoria, os quais, por sua vez,
apontam para os setenta e dois nomes sagrados de Deus. Será
que esse Livro de Tot pode ser lido da mesma maneira? Qual
é a chave para ele? É o que veremos."
Bem, era mais do mesmo palavrório obscuro que eu vinha
encontrando desde que ganhara o maldito medalhão egípcio
em Paris. Aparentemente, a insanidade é contagiosa. Tanta
gente parece acreditar em lendas, numerologia e prodígios
matemáticos que eu também comecei a acreditar, mesmo se
apenas raras vezes conseguia concatenar com o que as
pessoas estavam dizendo. Mas, se um banqueiro desfigurado
como Farhi estava disposto a fazer papel de bobo metendo-
se nas entranhas da terra por causa da numerologia judaica,
então isso também parecia valer meu dispêndio de tempo.
"Então, sede bem-vindo. Procurai acompanhar o nosso
passo." Eu me voltei para Jericó. "Por que estás carregando
uma saca de argamassa?"
"Para recolocar no lugar qualquer coisa que tenhamos de
quebrar. O segredo do furto é fazer parecer que ele não
aconteceu."
Era o tipo de pensamento que admiro.
Depois que escureceu, saímos de fininho pelo Portão do
Esterco. Estávamos no começo de março, e a invasão
napoleônica já tivera início. Haviam chegado notícias de
que os franceses tinham marchado de El-Arish (na fronteira
do Egito com a Palestina) em 15 de fevereiro e obtido uma
rápida vitória em Gaza, e que agora se aproximavam de Jafa.
Descemos pela encosta rochosa até o Tanque de Siloé, que é
parte dos encanamentos de Jerusalém desde os tempos do
rei Davi. Durante o percurso, eu animadamente lhes
recomendava agachar-se aqui e apressar-se ali, como se isso
fosse mesmo o fidedigno costume dos índios algonquianos.
A verdade é que fico mais à vontade nos cassinos de Paris
que nos sertões da América, mas Miriam parecia
impressionada.
Era lua nova, o que deixava a encosta às escuras, e aquela
noite de começo na primavera estava fria. Enquanto
passávamos com dificuldade por antigas minas, cães latiam
das choupanas de alguns pastores de ovelhas e cabras. Atrás
de nós, formando uma linha escura contra o céu, estavam as
muralhas que cingiam a face sul do Monte do Templo. Eu
via lá em cima os contornos da mesquita de El-Aqsa e as
paredes e abóbadas dos anexos que os templários
:construíram ali.
Estariam sentinelas muçulmanas nos perscrutando de lá?
Enquanto seguíamos lenta e furtivamente, tive a inquietante
sensação de estar sendo observado. "Há gente ali", murmurei
para Jericó.
"Onde?"
"Não sei. Eu os pressinto, mas não consigo vê-los."
Ele olhou em torno. "Não ouvi nada. Acho que afugentaste
os franceses."
Apalpei a machadinha e segurei o fuzil com ambas as mãos.
"Vós três seguis na frente. Vou ver se pego alguém atrás."
Mas a noite parecia tão vazia quanto a sacola preta dos
mágicos. Por fim, sabendo que os outros me esperavam, fui
para o Tanque de Siloé, que parecia um retângulo de breu
perto do leito do vale. Degraus de pedra gastos iam descendo
para uma plataforma (também de pedra) da qual as mulheres
podiam mergulhar seus cântaros na água. Pardais, aninhados
na paredes de pedra do tanque, faziam ruidinhos inquietos.
Só um ligeiríssimo brilho dos rostos me indicava onde meus
companheiros se apinhavam.
E nosso grupo crescera.
"Sir Sidney mandou mesmo ajuda", explicou Jericó.
"Britânicos?" Agora eu entendia aquele meu pressentimento.
"Precisaremos dos braços deles no subsolo."
"Capitão-tenente Henry Tentwhistle, da HMS Dangerous, a
vosso dispor, senhor Gage", murmurou no escuro o
comandante dos recém-chegados. "Vós vos recordareis
talvez do sucesso que tivestes em blefar melhor que eu nas
nossas partidas de brelan."
Gemi por dentro. "Fui é afortunado em face de vosso
destemor, capitão-tenente."
"Este é o segundo-tenente Potts, sobre quem levastes a
melhor no faraó. Vós lhe tirastes seis meses de soldo."
"Não pode ter sido tanto assim, pode?" Balancei
negativamente a cabeça. "Quão desesperadamente eu tenho
necessitado desse dinheiro para concluir a missão atribuída a
mim pela Coroa aqui em Jerusalém."
"E acredito igualmente que conheçais bem estes dois
camaradas."
Mesmo na escuridão de meia-noite no Tanque de Siloé, eu
conseguia reconhecer o brilho de um sorriso
inesquecivelmente largo e hostil, como teclas de piano em
barricada.
"Depois disto aqui, ainda me deves uma briga", disse o dono
do sorriso. "E o nosso dinheiro de volta."
Mas claro. Eram Big Ned e Little Tom.
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"Deverias era te sentir honrado, chefe", disse Big.
"Esta foi até hoje a única missão em que nos apresentamos
como voluntários", explicou Little Tom.
"Sir Sidney achou melhor que todos nós trabalhássemos em
conjunto."
"Foi por tua causa que a gente veio."
"Estou lisonjeado, com certeza", respondi débilmente.
"Jericó, não podias ter-me deixado a par disto?"
"Sir Sidney ensina que, com quanto menos pessoas falarmos,
melhor estaremos."
Deveras. O próprio Ben Franklin dizia que três só
conseguem guardar um segredo se dois já estão mortos.
"E então ele mandou mais quatro?"
"Calculamos que, se uma cobra como tu estava neste
negócio, era porque devia haver dinheiro em jogo", disse
alegremente Little Tom. "Quando eles nos deram picaretas,
pensamos: 'Bom, só pode ser algum tesouro escondido! E
esse ianque pode acertar as contas com o Ned aqui, do jeito
que prometeu lá no navio - ou então dar a parte dele para
nós'."
"Não somos tão simplórios quanto pensas", acrescentou Big
Ned.
"Está claro que não. Pois muito bem, companheiros", disse
eu, olhando para essa turma de oficiais e fuzileiros
indiscutivelmente pouco amistosa, tentando desconsiderar
meu instinto de que aquilo tudo ia acabar mal, "é bom
contar com aliados que tivemos o prazer de conhecer em
amistosas rodadas de jogos de azar. Agora, vede: há certo
perigo aqui, e precisamos ser silenciosos como
camundongos, mas existe também uma possibilidade real de
que façamos história. Não um tesouro, mas a possibilidade
de descobrirmos um corredor secreto até o cerne do
inimigo, caso Bonaparte venha a tomar esta cidade. É essa a
nossa missão. Minha filosofia é que o que passou, passou, e o
que vier, virá melhor para homens que se mantêm unidos.
Não sois da mesma opinião? Afinal, cada tostão que tenho
comigo vai para as necessidades da Coroa."
"Necessidades da Coroa? E o que é essa bela arma que estás
segurando?", assinalou Little Tom.
"Este fuzil?" A arma reluzia ostentosamente. "Ora, trata-se
de um exemplo capital! Ele é para vossa proteção, já que é
responsabilidade minha que nenhum de vós sofra mal
algum."
"Bem carinha essa tua arma. Tão empetecada quanto uma
vadia de luxo. Aposto que custou muito dinheiro."
"Em Jerusalém, não custou quase nada", insisti. "Sabeis como
é - manufatura oriental, nenhum conhecimento real da
feitura de armas de fogo... A bem dizer, é só um lixo
bonitinho." Evitei a encarada de Jericó. "Agora, não posso
prometer que acharemos algo de valor. Mas, se acharmos, é
claro que vós, meus companheiros, podereis ficar com
minha parte - eu me contentarei com este ou aquele
pergaminho. É nesse espírito de colaboração que eu gostaria
de começar - que tal? No escuro, todos os gatos são pardos,
como Ben Franklin gostava de dizer."
"Quem?", perguntou Tom.
"Um maldito rebelde que devia ter sido enforcado",
resmungou Big Ned. "E que diabos quer dizer essa história
dos gatos?"
"Que somos uma porcaria de saco de gatos, ou coisa assim."
"Que estaremos todos juntos até cumprirmos a missão",
corrigiu Tentwhistle.
"Pois então quem é essa rapariga?", quis saber Little Tom,
apontando para Miriam.
Ela se afastou, repugnada. "Minha irmã", grunhiu Jericó.
"Irmã?!" Tom recuou como se tivesse levado um choque
elétrico. "Trazes a irmã numa caça ao tesouro?! Para que
diabos?" "Ela vê coisas", respondi.
"Aqui, ó, que ela vê", disse Ned. "E quem é aquele ali atrás?"
"Nosso guia judeu." "Ah, um judeu também?" "Trazer
mulher dá azar", disse Tom. "E a gente não vai carregada",
acrescentou o parceiro. "Como se eu fosse deixar que
fizésseis isso...", cortou Miriam, áspera e abruptamente.
"Toma cuidado, Ned", avisei. "O joelho dela sabe onde estão
as tuas bolas." "Sabe, é?" Ele a olhou com mais interesse.
Pelo relvado da batalha de Lexington, aquilo era ou não era
um rolo e tanto?! Eu não conseguiria angu pior se convidasse
anarquistas para redigirem uma Constituição. Assim, comigo
totalmente intranquilo, entramos naquele tanque raso e,
com água pelos joelhos, vadeamo-lo até seu final. A corrente
vinha de uma abertura semelhante à gruta, fechada por um
portão de ferro.
"Construído para manter do lado fora as crianças e os
animais, não nós", disse Jericó, levantando seu pé-de-cabra.
Ele usou de força e alavancagem, ouviu-se um estalo, e a
grade enferrujada se abriu para dentro, com um rangido.
Depois que entramos, nosso ferreiro fechou o portão atrás
de nós, trancando-o com um cadeado novo que ele próprio
trouxera. "Para este eu tenho a chave."
Olhei para trás, para a longa margem do tanque. Teria
alguém se abaixado rapidamente para sumir de vista? "Vistes
alguma coisa?", sussurrei para Farhi.
"Não estou enxergando nada desde que saímos da casa de
Jericó", resmungou baixinho o banqueiro. "Não tenho o
hábito de chapinhar no escuro."
Logo a água nos chegava às coxas, fria mas não gelada. A
passagem de túnel que vadeávamos tinha a largura de meus
braços abertos e uma altura de dez a quinze pés,
apresentando a textura de rocha submetida a picaretas
antiquíssimas. Era uma canalização artificial que fora
construída para trazer água de manancial à velha cidade do
rei Davi, contou-nos Farhi. O leito era irregular, fazendo que
tropeçássemos. Quando já havíamos adentrado sufi-
cientemente o túnel para que Jericó se arriscasse a acender a
primeira lanterna, fui chapinhando até Tentwhistle. "Não há
nenhuma possibilidade de que tenhais sido seguidos até aqui,
há?", perguntei.
"Pagamos a nossos guias para que ficassem de boca fechada",
respondeu o capitão-tenente.
"É, e também não dissemos nada em Jerusalém",
intrometeu-se Ned.
"Um momento - vós quatro, da marinha inglesa, entrastes na
cidade?"
"Só para conseguir comida."
"Eu vos disse para ficar na surdina até escurecer!", sibilou
Jericó, exasperado.
"Estávamos em trajes árabes e não conversamos com
ninguém", explicou Tentwhistle, na defensiva. "Ora essa, eu
não ia vir até Jerusalém sem dar uma olhada... É uma cidade
famosa!"
"Trajes árabes?!", exclamei. "Todos vós pareceis tão árabes
quanto Papai Noel! Essas carantonhas vermelhas não teriam
dado mais na vista se tivésseis entrado marchando com a
bandeira britânica".
"Ah, então a gente devia morrer de fome até de noite e
depois cavar um buraco para vossa alteza?", rebateu Big Ned.
"Que viesses nos receber com algum grude, se querias tanto
nos deixar do lado de fora desta tua preciosa cidade."
Bem, o que se podia fazer a respeito agora? Voltei-me para
Jericó, cuja fisionomia estava sombria à luz âmbar da
lanterna. "Acho melhor nos apressarmos."
"Deixei um cadeado forte na grade. E tu, com o fuzil, és
nossa retaguarda."
De repente, Miriam gritou nas sombras. "Não me toques!"
"Desculpa - eu esbarrei?", perguntou lascivamente Little
Tom.
"Ei, boneca, vou te manter segura", acrescentou Ned.
Jericó começou a levantar a picareta, mas segurei a mão
dele. "Eu cuido disso." Enquanto eu abria caminho aos
empurrões para o fim da fila, deixei que a ponta do cano de
meu novo fuzil acertasse em cheio a virilha de Ned.
"Maldição!", disse ele, arfando.
"Oh, desculpa - como sou desajeitado!", disse eu, girando a
coronha tão abruptamente que ela raspou direitinho em uma
das faces de Tom.
"Desgraçado!"
"Tenho certeza de que, se todos mantivermos distância uns
dos outros, não ficaremos esbarrando em ninguém."
"Pois eu vou ficar onde bem entend..." Nisto, Tom deu um
berro e um pulo. "Ai! Essa cadela veio toda sorrateira por
trás!"
"Desculpa, eu esbarrei?" Miriam segurava um pé-de-cabra.
"Senhores, eu vos avisei. Mantende distância se dais valor à
vossa virilidade."
"Eu vou te castrar com as minhas próprias mãos se tocares
na minha irmã outra vez", completou Jericó.
"E eu vou fazer os dois dançarem ao som da chibata", disse
Tentwhistle. "Segundo-tenente Potts! Cuidai da disciplina!"
"Sim, senhor! Os dois aí - comportai-vos!"
"Ah, só estávamos brincando... Deus do Céu, o que foi que
aconteceu com ele?!" Farhi passara à luz da lanterna, e os
perplexos britânicos viram pela primeira vez aquele rosto
mutilado - a cratera no olho, o nariz como um focinho, a
orelha arrancada.
"Eu relei na irmã dele", respondeu o judeu, astutamente.
Os fuzileiros ficaram brancos de susto e se mantiveram o
mais longe possível de Miriam.
Se houve alguma vantagem na longa e árdua caminhada com
água pelas coxas, foi que ela tirou um pouco do vigor dos
ofegantes fuzileiros. Não estavam habituados aos ambientes
fechados nem ao trabalho em terra, e só a suposição de que
conseguiriam riquezas antigas evitou que empacassem de
vez. Para mantê-los resfolegantes, sugeri a Tentwhistle que
Ned e Tom ajudassem a carregar a saca de argamassa de
Jericó.
"Por que a gente não aproveita e carrega também um coche
cheio de tijolos?", queixou-se Ned. Mas ele continuou
forcejando como uma mula, com todos nós vadeando num
casulo formado por luz de lanterna. Em certa altura, parei
para ficar de ouvidos atentos enquanto os outros seguiam
dificultosamente e a escuridão crescia à medida que eles se
afastavam. E então... O que era aquilo? O eco de um tinido,
de um cadeado ao ser quebrado bem lá atrás? Aquela
distância, porém, era quase tão inaudível quanto a queda de
um alfinete, e não escutei mais nada. Acabei desistindo e me
apressei em alcançar os outros.
Surgiu enfim o ruído de água corrente, e o túnel começou a
ficar mais baixo à medida que nos aproximávamos dela. Logo
teríamos de rastejar.
"Estamos cada vez mais perto do manancial", disse Farhi.
"Reza a lenda que o umbigo de Jerusalém está em algum
lugar acima de nossas cabeças."
"Já eu acho que estamos é no maldito cu", resmungou Little
Tom.
Procuramos com nossas lanternas até que de fato achamos
uma fenda escura acima de nós, apertada como o fecho da
bolsa de um pão-duro. Eu não teria adivinhado que ela
levaria a algum lugar, mas, tão logo demos impulsão uns aos
outros para subir por ela, a fenda foi se abrindo, e uma
passagem (seca, dessa vez) voltava obliquamente rumo à
cidade principal. Rastejamos sobre pedras grandes caídas do
teto, com Miriam se mostrando mais ágil que qualquer um
de nós. Apareceu outro buraco estreito, e a mulher foi na
frente. Big Ned praguejava, pois mal conseguia espremer-se
por ali, empurrando a saca de argamassa; ele já estava
coberto por um suor lustroso. E então o túnel ficou
novamente regular, obra de mãos humanas. Ele subia num
gradiente constante, com o teto apenas um pé acima de nós
e o diâmetro pequeno demais para que mais de um homem
passasse facilmente. Ned vivia batendo o cocuruto e
praguejando.
"A lenda diz que esta passagem foi construída com largura
suficiente apenas para um escudo", disse Farhi. "Assim, um
único homem poderia defendê-la contra um exército de
invasores. Estamos no caminho certo."
À proporção que seguíamos, o ar ficava mais impuro, e as
lanternas, mais fracas. Eu não tinha idéia de quanto
havíamos avançado ou de que horas eram - não teria ficado
surpreso se me dissessem que havíamos caminhado,
vadeado e rastejado de volta para Paris. Em seguida,
encontramos pedra talhada, não paredes de gruta. "A
muralha de Herodes", murmurou Jericó. "Estamos passando
debaixo dela e, portanto, debaixo da própria plataforma do
monte do Templo, bem acima."
Continuamos vigorosamente, apesar das dificuldades - e,
uma vez mais, ouvi o barulho de água mais adiante. De
súbito, o túnel terminou numa grande gruta, que nossas
débeis lanternas mal abarcavam. Jericó me fez segurar sua
lanterna enquanto ele entrava cautelosamente na água
abaixo. "Está tudo certo - a água vem só até o peito e é
limpa", informou. "Achamos as cisternas. Fazei o mínimo de
ruído possível."
Do outro lado, o túnel continuava. Chegamos a outra
cisterna e depois a uma terceira, cada qual com umas dez
jardas de largura. "Numa estação mais chuvosa, todas estas
passagens estariam submersas", explicou Jericó.
Em seguida, o túnel voltou a subir para uma caverna seca, e
enfim nosso caminho terminou, abruptamente. O teto era
mais alto porque fora escavado, e as pedras tiradas dali
enchiam a câmara pela metade, elevando também o piso.
Além dali, enxergávamos o alto de um vão de porta arcado,
construído de pedra. O problema era que a porta já não
estava mais lá e o vão fora completamente tampado com
blocos de pedra e argamassa, cortando nosso caminho.
"Maldição - esta trabalheira toda para nada!", disse Ned,
ofegante.
"Será?", disse Jericó. "O que há por trás desta parede para que
seus construtores não quisessem que chegássemos lá?"
"Ou que não quisessem que saísse dali?", acrescentou
Miriam.
"Precisamos de um barril de pólvora", disse o fuzileiro,
atirando a saca de argamassa no chão.
"Não, silêncio é essencial", disse Farhi. "Tendes de cavar
antes das preces da alvorada."
"E tornar a vedar a passagem", interrompeu Miriam.
"Besteira", disse Ned.
Tentei direcionar o pateta. "O tempo perdido nunca é
reencontrado, dizia o velho Ben."
"E quem rouba nas cartas deveria devolver o que pegou, diz
o velho Ned." Ele me olhou de soslaio. "Chefe, é melhor
haver alguma coisa do outro lado desta parede, porque senão
vou te chacoalhar pelas canelas até ficares vaziozinho." Mas,
apesar da bazófia, ele e Little Tom acabaram pegando no
oesado. Nós oito formamos uma corrente, passando pedras
soltas de um para outro até formar uma vala que chegava à
base do vão emparedado. Foi preciso duas horas de trabalho
árduo até afastarmos entulho suficiente para que se visse a
entrada por inteiro: o largo portal subterrâneo estava
arrolhado como uma garrafa por pedras calcárias de
diferentes cores.
"Fazia sentido selar a entrada", aventou Tentwhistle. "Ela
poderia ser usada como ponto de entrada por exércitos
inimigos."
"Os antigos judeus construíram a arcada", conjeturou Farhi,
"e os árabes, cruzados ou templários a emparedaram. Algum
tremor de terra fez o teto aesabar, e isto ficou esquecido
desde então, sendo lembrado apenas pelas .endas."
Jericó, exausto, ergueu o pé-de-cabra. "Então, mãos à obra."
A primeira pedra é sempre a mais difícil. Não ousávamos
bater até quebrar, de modo que removemos a argamassa e
deixamos que Ned e Jericó, cada um de um lado, usassem
seus pés-de-cabra para deslocar a pedra. Os músculos dos
dois se estufaram, a pedra deslizou para fora como uma
gaveta travada e teimosa, e eles a pegaram antes que
chegasse ao chão e a deitaram sem fazer ruído. Farhi ficava
olhando para o teto, como se de algum modo pudesse ver a
reação dos guardas muçulmanos muito acima de nós.
Eu me inclinei até a baforada de ar bolorento que saía de
nosso buraco, escuridão total. Assim, trabalhamos nas pedras
adjacentes, quebrando a argamassa e alavancando-as uma a
uma. Por fim, o buraco ficou grande o bastante para que se
rastejasse por ele.
"Jericó e eu faremos o reconhecimento", expliquei aos
britânicos. "Ficai de guarda. Se houver alguma coisa lá, nós
traremos para vós."
"Mas de jeito nenhum!", reclamou Big Ned.
"Sinto muito, mas devo concordar com meu subordinado",
disse Tentwhistle, secamente. "Estamos todos numa missão
naval, senhores, e, gostemos ou não, somos todos agentes da
Coroa. Justamente por isso, qualquer bem que venha a ser
tomado pertencerá à Coroa para posterior distribuição aos
tripulantes segundo as leis do apresamento. Vossas
contribuições serão plenamente consideradas, é claro."
"Não estou mais na vossa marinha", protestou Jericó.
"Mas estás a soldo de sir Sidney Smith, não?", disse
Tentwhistle. "E Gage também é agente dele, o que significa
que ou todos atravessamos juntos este buraco, pelo rei e pela
pátria, ou não atravessa ninguém."
Pus a mão no cano de meu fuzil, que eu deixara encostado à
parede da gruta. "Fostes enviados como mão-de-obra para o
trabalho subterrâneo, não como guarnição de uma nave
apresada", ensaiei.
"E o senhor foi enviado a Jerusalém como agente da Coroa,
não como caçador de tesouros em regime privado."
Tentwhistle levou a mão à pistola, e o segundo-tenente
Potts fez o mesmo. Ned e Tom agarraram o cabo de seus
alfanjes. Jericó ergueu o pé-de-cabra como se fosse uma
lança.
Ficamos estremecendo tal qual cães rivais no açougue.
"Parai!", disse Farhi, entre dentes. "Estais loucos? Se
começarmos a lutar aqui, teremos todos os muçulmanos de
Jerusalém à nossa espera! Não podemos nos dar ao luxo de
brigar."
Hesitamos, mas depois baixamos as mãos. Ele estava certo.
Suspirei.
"Então, qual de vós quer ir primeiro? No Egito, havia
serpentes e crocodilos atrás de cada buraco."
Fez-se um silêncio apreensivo. "Parece que és o único com
experiência, chefe."
Por conseguinte, eu me retorci para passar pelo buraco,
esperei um momento para certificar-me de que nada estava
me mordendo e então puxei pela abertura uma lanterna.
Tive um sobressalto. Caveiras arreganhavam os dentes para
mim.
Não eram caveiras de verdade, só esculturas. Ainda assim,
era inquietante ver uma fileira de caveiras, com ossos
cruzados por baixo, estender-se como um friso pela junção
das paredes com o teto. Eu não vira nada parecido no Egito.
Os outros vinham rastejando atrás de mim, e, à medida que
deparavam com aquele mórbido friso, as exclamações dos
britânicos iam de um "Jesus!" ao mais esperançoso "É
tesouro de piratas!".
Farhi tinha uma explicação mais prosaica. "Piratas não, meus
senhores. Esse friso em ossada é típico dos templários, a
ordem de cavaleiros cujos líderes acabariam na fogueira.
Sabíeis, senhor Gage, que a caveira com as tíbias cruzadas
remonta no mínimo aos cavaleiros da ordem?"
"Eu também a vi associada a ritos maçônicos. E em
cemitérios de igreja."
"A mortalidade obceca a todos nós, não é mesmo?"
As caveiras ornavam um corredor, e seguimos por ele para
um recinto maior. Ali vimos outros ornatos que eu também
achava terem-se originado com os maçons. O piso estava
coberto de lajotas de mármore no conhecido padrão xadrez,
preto-e-branco, dos arquitetos dionísicos. No centro,
porém, o padrão era outro, bem curioso: as lajotas pretas
ziguezagueavam contra as brancas, em raio, Como um
enorme relâmpago. Estranho. Por que um relâmpago?
Desse lado, a entrada pela qual viéramos estava ladeada por
duas enormes colunas, uma preta e a outra branca.
Havia um nicho de cada lado, cada qual com uma estátua do
que parecia a Virgem, a primeira de alabastro, a outra de
ébano - a Virgem Branca e a Virgem Negra. A Virgem Maria
e Maria Madalena? Ou a Virgem Maria e a antiquíssima Isis,
deusa da estrela Sírio?
"Todas as coisas são duais", murmurou Miriam.
O teto era uma abóbada de berço, chã, mas robusta o
suficiente para sustentar a plataforma herodiana que ficava
em algum lugar lá em cima. Na outra ponta do recinto, havia
um altar de pedra, com um nicho escuro atrás. O resto do
recinto era totalmente despojado. Tinha as dimensões de
um refeitório, e talvez os cavaleiros se banqueteassem ali
quando não estavam ocupados cavando túneis em busca do
tesouro de Salomão. De resto, o lugar estava
decepcionantemente vazio.
Atravessamos o recinto, que tinha comprimento de
cinqüenta passos. Engastada na face do altar, via-se uma
placa ornamental dupla. De um lado, mostrava o desenho
tosco de uma igreja com cúpula. Do outro, dois cavaleiros
medievais montados num único cavalo.
"O selo dos templários!", exclamou Farhi. "Isso confirma que
foram eles a construir isso. Vede, ali está o Domo da Rocha,
exatamente como a mesquita em cima de nós, simbolizando
o local do Templo de Salomão, origem da designação
templários. E os dois cavaleiros num cavalo só? Alguns
acreditam que isso fosse uma marca da pobreza voluntária da
ordem."
"Outros argumentam que o selo significa que os dois são
aspectos do uno", disse Miriam. "Masculino e feminino.
Verso e reverso. Noite e dia."
"Aqui não há porcaria nenhuma", interrompeu Big Ned,
olhando em volta.
"Comentário sagaz", disse Tentwhistle. "Parece que tivemos
um bocado de trabalho por nada, senhor Gage."
"Nada exceto os assuntos da Coroa", rebati, acidamente.
"E, o americano nos ferrou direitinho", resmungou Little
Tom.
"Mas olhai isto aqui!", disse o segundo-tenente Potts,
chamando-nos. Ele fora examinar a Virgem Branca. "Uma
porta de serviço? Ou uma passagem secreta?"
Nós nos aglomeramos em volta. O segundo-tenente
empurrara a mão estendida dessa Nossa Senhora (erguida
como numa bênção), e a imagem deu um giro. Quando fez
isso, a pedra deslizou atrás dela, afastando-se e revelando
uma escada ascendente, circular e serpeante, com uma
abertura tão estreita que precisaríamos nos espremer de lado
para entrar. E era uma subida íngreme.
"Ela deve levar à plataforma do templo", disse Farhi. "Uma
ligação com o velho acantonamento dos templários, na
mesquita de El-Aqsa. A passagem está provavelmente
bloqueada, mas precisamos mais do que nunca fazer silêncio
- o ruído provavelmente subiria como por uma chaminé."
"Quem liga para o que eles ouvirem?", disse Ned. "Aqui não
há nada mesmo."
"Tolo - estás em solo sagrado muçulmano e judeu. Se
qualquer dos dois grupos der por nós, vão cegar-nos,
circuncidar-nos, torturar-nos pela invasão e depois
desmembrar-nos, um pedaço de cada vez."
"Ah."
"Tentemos também a Virgem Negra", disse Miriam.
Ela foi ao lado oposto do recinto, mas desta vez, não
importando com quanta força Potts empurrasse o braço, a
estátua não se moveu. O dualismo de Miriam não parecia
estar em vigor. Ficamos ali parados, sentindo a frustração.
"Onde está o tesouro do templo, Farhi?", perguntei.
"Não avisei que os templários chegaram aqui antes de vós?"
"Mas esta câmara parece européia, como algo que os
templários tenham construído, e não que tenham
descoberto. Por que eles construiriam isto? E um jeito bem
trabalhoso de conseguir um refeitório."
"Aqui embaixo não há janelas", observou Potts.
"Então isto era para cerimônias", inferiu Miriam. "Mas a
atividade para valer, a busca, só pode ter ocorrido em outra
câmara. Tem de haver outra porta."
"As paredes são nuas e sólidas", disse o irmão.
Lembrei-me de minha experiência em Dendara, no Egito, e
olhei rapidamente para o piso. As lajes pretas e brancas
formavam diagonais que se irradiavam do altar. "Acho que
Big Ned deve empurrar aquela mesa de pedra ali", disse eu.
"Com força!"
De início, nada aconteceu. Depois, veio juntar-se a ele
Jericó, e por fim Little Tom, Potts e eu, todos grunhindo
pelo esforço. Após um tempo, ouviu-se um ruído de raspar,
e o altar começou a girar sobre um pivô instalado num de
seus cantos. Quando o altar deslizou de lado pelo piso,
revelou-se um buraco embaixo. Degraus desciam para a
escuridão.
"Agora, sim, a coisa melhora de figura", disse Ned, arfando.
Descemos e nos apinhamos numa ante-sala abaixo da câmara
principal. Na outra ponta do recinto, via-se uma grandiosa
porta de ferro, rubra e negra pela ferrugem. Estava marcada
por dez discos de bronze do tamanho de pratos, verdes com
a idade. Havia um disco no alto e, abaixo, duas fileiras de
três, descendo. Entre essas duas, porém mais baixo, estava
outra fileira vertical de três. No centro de cada disco, uma
tranca. "Dez maçanetas?", perguntou Tentwhistle.
"Ou dez fechaduras", disse Jericó. "Talvez cada uma dessas
trancas gire uma lingüeta nesse batente de ferro." Tentou
uma das trancas, mas a peça não se moveu. "Não temos
ferramentas para mexer nesta porta."
"O que quer dizer que ela talvez não tenha sido aberta nem
saqueada", raciocinou Ned, com mais argúcia do que eu teria
imaginado. "Para mim, parece boa notícia. No final das
contas, o americano talvez tenha descoberto mesmo alguma
coisa. O que alguém poderia ter que fosse tão precioso que o
colocariam atrás de uma porta destas? E, para completar,
bem no fundo de uma toca de coelho como esta?"
"Dez fechaduras? Não há buracos de chave", assinalei.
E, quando Jericó e Ned empurraram e puxaram aquela porta
maciça, ela nem sequer se estremeceu. "É firme como uma
rocha", disse o ferreiro. "Talvez nem seja uma porta."
"E o tempo vai-se acabando", alertou Farhi. "Logo será a
alvorada na plataforma lá em cima, e os muçulmanos virão
para as preces. Se começarmos a bater nesse ferro, alguém
acabará nos ouvindo."
"Esperai", disse eu, recordando-me do mistério do medalhão
no Egito. "E um padrão, não achais? Dez discos, do formato
do Sol... Dez é um número sagrado. Meu palpite é que isso
significava alguma coisa para os templários."
"Mas o quê?"
"As sephiroth", disse Miriam, bem devagar. "É a Árvore."
"Árvore?"
Farhi recuou de súbito. "Sim, sim - agora estou vendo! A Etz
Hayim - a Árvore da Vida!"
"A cabala", confirmou Miriam. "O misticismo e a
numerologia judaicos." "Os templários eram judeus?!"
"Decerto que não - mas eram ecumênicos quando se tratava
de procurar antigos segredos", respondeu Farhi. "Devem ter
estudado os textos judaicos à cata de pistas de onde cavar no
monte. Textos muçulmanos também, assim como quaisquer
outros. Devem ter-se interessado por todos os símbolos que
fossem de ajuda na sua busca por conhecimento. O que
vemos aqui é o parirão das dez sephiroth, com keter, a
coroa, no alto, e depois binah, a intuição, defronte a
chokhmah, a sabedoria. E assim por diante."
"Grandeza, misericórdia, força, glória, vitória, majestade,
fundamento e soberania, ou reino", recitou Miriam. "Todos
os aspectos de um Deus que está além da compreensão. Não
conseguimos apreendê-lo, somente essas manifestações de
seu ser."
"Mas o que significa isso na porta?"
"Acho que é um quebra-cabeça", disse Farhi. Ele aproximara
a lanterna. "É, consigo ver os nomes judaicos lavrados em
hebraico. Chesed, tifered, netzach..."
"Os egípcios acreditavam que as palavras eram mágicas",
lembrei-me, "e que, enunciando-as, eles conseguiam
invocar deuses ou poderes..."
Big Ned fez o sinal-da-cruz. "Por Deus, que blasfêmia pagã!
Esses cavaleiros de que falais adotaram as coisas dos judeus?
Não admira que tenham morrido na fogueira!"
"Não as adotaram - eles apenas as usaram", explicou Jericó,
pacientemente. "Aqui em Jerusalém respeitamos outros
credos, mesmo quando brigamos com eles. Os templários
queriam dizer alguma coisa com este arranjo aqui. Talvez as
trancas devam ser giradas na ordem certa."
"Primeiro, a coroa", sugeri. "Keter, lá no alto."
"Vou tentar." Mas essa tranca, tal qual as outras, não cedeu.
"Esperai - vamos pensar", disse Farhi. "Se cometermos um
erro, talvez nenhuma das trancas vá funcionar."
"Ou talvez disparemos alguma armadilha", disse eu,
recordando os monolitos que quase acabaram comigo na
pirâmide. "Isto pode ser um teste para manter afastados os
imerecedores."
"O que um templário escolheria primeiro?", perguntou
Farhi. "Vitória? Eles eram guerreiros. Glória? Eles
encontraram a fama. Sabedoria? Se o tesouro fosse um livro.
Intuição?"
"Pensamento", disse Miriam. "Pensamento, thought, como
Tot, Thoth, como o livro que Ethan procura."
"Pensamento?"
"Se traçarmos retas de disco a disco, elas se entrecortarão
aqui no centro", apontou ele. "E esse centro não representa
para os cabalistas a incognoscível mente de Deus? Não é esse
centro o pensamento em si? A essência? Aquilo que nós, os
cristãos, talvez denominemos alma?"
"Estás certa", disse Farhi, "mas não há nenhuma tranca ali."
"E, o único lugar sem tranca é o coração." Miriam traçou
retas dos dez discos para aquele ponto central. "Só que aqui
há um pequeno círculo lavrado." E, antes que alguém
pudesse impedi-la, ela pegou o pé-de-cabra com o qual
espetara Little Tom e golpeou o ferro da porta com a ponta,
exatamente naquele círculo. Ouviu-se um estrépito surdo e
ressoante que sobressaltou a todos. Nisto, o círculo lavrado
afundou, houve um clique, e de repente todas as dez trancas
em todos os dez discos de bronze começaram a girar em
uníssono.
"Preparai-vos!" Ergui o fuzil. Tentwhistle e Potts apontaram
suas pistolas navais. Ned e Tom desembainharam os alfanjes.
"Vamos todos ficar ricos!", sussurrou Ned.
Quando as trancas pararam de girar, Jericó deu um empurrão
e, com um estrondo angustiante, a grande porta se abriu para
dentro e para baixo, como uma ponte levadiça, com a parte
de cima presa por correntes. Ela foi baixando pesadamente,
até pousar com um golpe surdo no piso empoeirado mais
além. Ergueu-se uma nuvem cinzenta, obscurecendo
momentaneamente o que jazia ali, e então vimos que a porta
servia de ponte sobre uma fenda no chão. O abismo se
estendia para a escuridão.
"Alguma falha fundamental na Terra", conjeturou Farhi,
perscrutando lá embaixo. "Esta é uma montanha sagrada
desde o início dos tempos, uma rocha que se dirige ao Céu -
mas que talvez tenha suas raízes no mundo inferior."
"Todas as coisas são duais", repetiu Miriam.
Da fenda na rocha, ar fresco foi bafejado para cima. Todos
estávamos receosos, e, de minha parte, me lembrava daquele
poço do inferno na pirâmide. Mas nossa ganância nos fez
atravessar do mesmo jeito.
A nova câmara era bem menor que o salão templário mais
acima. Ela não era muito maior que uma sala de estar, com
teto baixo e abobadado. Este era ornado com pinturas de
uma profusão de estrelas, signos zodiacais e criaturas
estranhas de alguma época primeva, um turbilhão de
simbolismo que me trouxe à lembrança o teto que eu vira
em Dendara. No vértice da abóbada, havia uma esfera que
aparentemente recebera douradura e provavelmente re-
presentava o Sol. No centro do recinto, um pedestal de
pedra que chegava à cintura de um homem, como a base de
uma estátua ou um expositor, mas que estava vazio. As
paredes exibiam escrita num alfabeto com o qual eu nunca
topara antes, nem árabe, nem hebraico, nem grego, nem
latino. Era diferente também do que eu vira no Egito.
Muitos caracteres tinham forma geométrica - quadrados,
triângulos e círculos; outros, porém, pareciam vermes
contorcidos ou labirintos minúsculos. Baús de madeira e
bronze se amontoavam pela Deriferia do recinto, secos e
corroídos pelo tempo. E dentro deles havia...
Não havia nada.
Mais uma vez, recordei-me da Grande Pirâmide, onde o
depositório do livro estivera vazio. Um castigo atrás do
outro. Primeiro, o livro que se fora. Depois, Astiza. E, agora,
aquela piada cruel...
"Maldição!" Eram Ned e Tom, dando pontapés nos baús.
Ned arremessou um deles contra a parede de pedra, e um
grande estrondo transformou o baú numa chuva de lascas.
"Não há nada aqui! Já saquearam tudo!"
Saquearam, reouveram ou transferiram. Se algum dia existira
um tesouro ali - e eu desconfiava que existira, sim -, ele já se
fora havia muito. Talvez levado pelos templários para a
Europa, ou escondido em outro lugar quando os líderes
deles foram para a fogueira. Podia ser até que o tesouro já
estivesse desaparecido desde que os hebreus foram
escravizados por Nabucodonosor.
"Silêncio, tolos!", rogou Farhi. "Precisais quebrar coisas para
que os guardas muçulmanos nos ouçam? Este Monte do
Templo é uma peneira formada de grutas e passagens!" Ele se
voltou para Tentwhistle. "Além dos vossos famosos corações
de carvalho, os marinheiros ingleses também têm cérebros
do mesmo material?"
O capitão-tenente ficou rubro.
"O que dizem as paredes?", perguntei, olhando para aqueles
curiosos caracteres. Ninguém respondeu, pois nem mesmo
Farhi sabia. Mas então Miriam, que estava contando,
apontou para uma pequena saliência ali onde as paredes se
encontravam com a abobada. Havia candeeiros esculpidos
na tela, como se para receber velas ou lâmpadas de óleo.
"Farhi, conta-os", disse ela.
O banqueiro mutilado o fez. "Setenta e dois", disse bem
devagar. "Como os setenta e dois nomes de Deus."
Jerico se aproximou. "Há óleo pingando neles!", exclamou,
admirado. "Após tantos anos, como é possível tal coisa?"
"E um mecanismo acionado pela porta", aventou Miriam.
"Vamos acendê-los", disse eu, com súbita convicção.
"Acendê-los para compreender." Supus que se tratasse de
magia templaría, alguma maneira de lançar luz sobre o
mistério que havíamos descoberto.
E então Jericó pôs fogo num pedaço de madeira de baú com
o pavio de sua lanterna e tocou o óleo do candeeiro mais
próximo. Este se acendeu, e aí um filamento de fogo se
moveu por uma canaleta de óleo para acender o candeeiro
seguinte.
Um depois do outro, os candeeiros irromperam em chamas,
inflamando-se em cadeia pelo perímetro da abobada, até o
que antes era escuro ter-se tornado um lugar que pulsava
com luz e sombra. E não era tudo. Vi que a abóbada tinha
vigas de pedras que subiam para o vértice, e em cada uma
delas havia um sulco. Agora, esses sulcos começavam a
brilhar com o calor ou a luz mais abaixo, numa cor roxa e
lúgubre semelhante ao que eu vira em experiências elétricas
com tubos de vidro dos quais se retira o ar.
"O antro de Satanás!", murmurou Little Tom.
No ponto mais alto da abóbada, a esfera de aparência solar
que eu imaginara ter apenas recebido douradura começou a
brilhar intensamente. E dela partiu um raio de luz roxa,
como o raio de eletricidade que eu invocara no Natal. Esse
raio incidiu diretamente no pedestal no centro do recinto.
Onde talvez se houvesse mantido um livro ou rolo de papel
ou pergaminho. Jericó e Miriam faziam o sinal-da-cruz.
Vi que havia um orifício no centro do pedestal, algo que
teria sido bloqueado caso um livro ou rolo estivesse pousado
ali. Sem isso, a luz de cima podia resplandecer pela
abertura...
E então se ouviu um rangido lancinante, como o de uma
engrenagem enferrujada.
Os britânicos estacaram e se puseram a escutar. Olhei para o
teto, procurando sinais de desabamento.
"E a Virgem Negra!", gritou o segundo-tenente Potts da
escada que levava de volta ao salão dos templários. "Ela está
girando!"
- 9 -
Corremos escada acima para a estátua, como se fôssemos
testemunhar um milagre. O braço, que antes estava imóvel,
agora girava sobre seu próprio eixo. A Virgem Negra estava
girando com ele, e uma porta semelhante àquela atrás da
Virgem Branca ia se abrindo. Quando a estátua parou, ela
parecia apontar para a porta recém-aberta.
"Por todos os santos!", declarou Ned. "Só pode ser o
tesouro!" Potts já sacara a pistola e inclinou-se para entrar
primeiro, subindo uma passagem íngreme e serpeante.
"Espera aí!", gritei. Se o estranho espetáculo de luz acionava
de algum modo aquela abertura, era só porque o livro não
estava no pedestal, possibilitando que o brilho penetrasse
pelo orifício. Por conseguinte, este seria mesmo uma
espécie de chave que levava a mais tesouros? Ou algum
alarme templário, disparado quando o livro fosse tirado dali?
"Não sabemos o que isto significa!"
Mas os quatro britânicos já arremetiam pela passagem, e
Jericó e eu os seguimos relutantemente, com Miriam e Farhi
formando a retaguarda. As paredes toscas da escadaria me
fizeram lembrar o acabamento do túnel de água do tanque
de Siloé: eram antigas, muito mais velhas que os templários.
Remontariam elas aos tempos de Salomão? Ou mesmo de
Abraão?
O túnel subia em espiral e terminava numa laje com uma
grande alça de ferro. "Puxa isso, Ned!", ordenou
Tentwhistle. "Puxa com toda a força, para acabarmos de vez
com este negócio! Já é quase dia!"
O fuzileiro assim fez, e, enquanto ele lentamente abria a
passagem, reparei que a outra face da porta era rocha
irregular - do outro lado, ela pareceria apenas parte da
parede de uma gruta. Teriam as pessoas lá em cima um dia
sabido que aquela passagem existia?
"Onde diabos estamos?", perguntou Potts.
Adiante, havia uma gruta mais larga - e luz. "Meu palpite é
que saímos na gruta sob a própria rocha sagrada", respondi
num sussurro. "Estamos bem debaixo da Kubbet es-Sakhra -
a raiz do mundo - e do Domo da Rocha."
"Bem debaixo do que já foi o Templo de Salomão!", disse
Farhi, empolgado e resfolegante pelo esforço de seguir nosso
grupo. "Onde talvez se guardassem os segredos do templo -
ou mesmo a própria Arca da Aliança.
"Bem onde quaisquer vigias da mesquita podem ouvir
intrusos do lado de baixo", alertou Jericó. Estava indo tudo
depressa demais.
"Queres dizer que os muçulmanos.
Os britânicos não iam esperar. "Tesouro, rapazes!" Ned e
seus companheiros irromperam no corredor. Nisto, ergueu-
se um grito em árabe, e a cabeça de Potts, coitado, explodiu.
Num instante, o segundo-tenente me puxara com louco
entusiasmo. No outro, seus miolos eram borrifados sobre
todos nós. Potts desabou como uma marionete cujos
cordões houvessem sido cortados. A fumaça de pólvora pre-
encheu a estreita passagem com seu conhecido fedor.
"Abaixai-vos!", gritei, e nos lançamos ao chão.
Então, uma trovoada de disparos e balas ressoou
furiosamente ao nosso redor.
"Allah akbar!" Deus é grande! Os muçulmanos tinham nos
ouvido bater cabeça em seu local mais sagrado e chamaram a
guarda de janízaros! E, havíamos mexido num vespeiro.
Através da fumaça, vi um amontoado de homens
recarregarem as armas.
Por isso, atirei, e ouviu-se um berro em resposta. A pistola
de Tentwhistle também disparou, acertando outro janízaro,
e agora era a vez deles de girarem aos trambolhões para
proteger-se.
"Batamos em retirada!", bradei. "Apressai-vos, pelo amor de
Deus! Voltemos por aquela porta!" Mas, assim que
começamos a empurrá-la para fechar, os janízaros
arremeteram, e uma dúzia de mãos maometanas se agarrou à
borda da porta do outro lado. Ned soltou um berro
portentoso e golpeou algumas delas com o alfanje,
decepando dedos, mas outras armas de fogo dispararam, e
Little Tom levou um tiro no braço. Ele deu um pinote para
trás, praguejando. A porta estava sendo inexoravelmente
empurrada para permanecer aberta, de modo que Ned urrou
tal qual um urso e investiu contra os janízaros, descendo o
alfanje como um louco até que os braços sumiram de vista.
Aí, ele bateu a porta, pegando um de nossos pés-de-cabra
para emperrá-la temporariamente até que os janízaros
pudessem abri-la à força. Descemos correndo a escada
serpeante até o salão vazio dos templários. Atrás e acima de
nós, ouvíamos o pesado impacto de uma marreta à medida
que os muçulmanos batiam na porta de pedra.
Se nos pegassem, eles nos massacrariam por sacrilégio.
Somente pela passagem arcada talvez ainda tivéssemos uma
chance. Lá na passagem para o manancial, dissera Farhi, um
só homem conseguiria conter um exército. Corremos pelo
corredor com o friso de caveiras, até o buraco que
escaváramos apenas uma hora antes. Eu, usando alfanje e
fuzil, ganharia tempo para os outros enquanto eles fugiam.
Que maldita bagunça!
Algo, entretanto, mudara. A abertura que fizéramos no vão
emparedado diminuíra. De algum modo, as pedras estavam
se reempilhando, e o buraco ficava pequeno demais. Que
mágica era aquela?
"Au revoir, monsieur Gage!", disse-me pelo buraco
encolhido uma voz conhecida. Mais uma vez, era a voz do
pretenso inspetor de alfândega que tentara assaltar-me na
França e com quem eu lutara em Jerusalém quando seus
capangas pegaram Miriam. Desta feita, ele falava pelo que
agora era o vazio de um único bloco de pedra! Então não era
mágica coisa nenhuma, somente a perfídia de Silano. A
pedra derradeira foi encaixada na nossa cara, prendendo-nos
ali. Os franceses certamente haviam nos seguido (como eu
temera), arrebentado o cadeado de Jericó na grade do
Tanque de Siloé e ouvido nossos gritos quando não achamos
tesouro algum. Eles então começaram a tapar nossa rota de
fuga com a saca de argamassa que Big Ned deixara ali.
Estávamos encurralados por nossa própria previdência.
"A argamassa ainda não secou!", bradou Ned. Mas ou a cal
aglomerante se solidificava depressa, ou a alvenaria estava
reforçada do outro lado com entulho e vigas, pois o fuzileiro
quicou como uma bola ao lançar-se contra ela. Ned
começou então a bater com os punhos no vão emparedado,
enquanto Little Tom cambaleava como um bêbado,
segurando o braço com a mão, de cujos dedos pingava
sangue.
"Não temos tempo para isso!", disse Tentwhistle, de modo
áspero e abrupto. "Os muçulmanos vão conseguir passar por
aquela porta de pedra lá em cima e descer pela escada da
Virgem Negra!"
"A escada da Virgem Branca!", gritou Farhi. "É nossa única
chance!"
Corremos de volta para o salão templário. Houve um
estrépito, e o eco de belicosos berros em árabe desceu pela
escadaria da estátua escura. Eles haviam passado!
Tentwhistle e eu chispamos para o pé da escadaria e
atiramos às cegas para cima. As balas ricochetearam e
impuseram alguma hesitação. Do lado oposto, Farhi se
espremeu para passar pela Virgem Branca e começou a subir
aquela escadaria. Logo atrás do judeu, Jericó empurrava a
irmã com força. Depois, o resto de nós também bateu em
retirada pelo salão dos templários, comprimindo-nos um
após o outro para subir os degraus. Por fim, Big Ned
empurrou até mesmo a mim à frente dele. "Eu cuido dessa
corja!", explicou ele. Com os músculos quase explodindo,
nosso golias pegou a Virgem Branca e a arrancou do nicho.
Agora os perseguidores estavam adentrando o salão dos
templários, olhando admirados e então berrando quando nos
avistaram no lado oposto. Virando-se de lado, Ned mal
conseguiu espremer-se pela entrada da escadaria enquanto
arrastava a Virgem pela cabeça, fazendo que o corpo de
pedra da estátua obstruísse a estreita passagem. Isso colocou
entre nós e eles um tapadouro parcial. Voltamo-nos e
subimos com dificuldade.
Uma onda de muçulmanos, correndo desnorteadamente,
arremeteu contra a obstrução e retrocedeu, urrando de raiva
e decepção. Eles começaram a puxar para soltar a Virgem.
Seguimos desesperadamente escadaria acima. Eu ouvia a
turba lá embaixo berrar de frustração enquanto investiam
contra a estátua que bloqueava nossa rota de fuga.
Dispararam-se mais tiros; as balas, porém, ricochetearam
inofensivamente nos degraus mais baixos. Deram-se
alarmes, certamente para avisar os compatriotas do Monte
do Templo de nossa iminente saída. Topamos com um
portão gradeado de ferro, que nos fechava do lado de den-
tro. Tentwhistle estourou o fecho com um disparo de pistola
e escancarou o portão, empurrando-o violentamente e
fazendo-o bater na parede. O ferro reverberou como um
gongo. Aproveitei a pausa para recarregar o fuzil. Saímos no
alto do Monte do Templo, na mesquita de El-Aqsa. Reparei
em como ela fora modificada pelos cruzados, com a fileira
de arcos e janelas elevadas fazendo do enorme espaço
interior um cruzamento arquitetônico de palácio árabe com
igreja européia. Como Farhi adivinhara, a escadaria da
Virgem Branca só podia ter sido construída para possibilitar
o acesso secreto da sede principal dos templários às câmaras
e túneis abaixo.
Corremos desabaladamente para a porta da mesquita. Na
imensa plataforma do templo, iluminada apenas pela luz
tênue do céu antes do alvorecer, pululavam centenas de
muçulmanos toscamente armados, como abelhas numa
colmeia que acabasse de ser chacoalhada. Mais além, eu
enxergava a azulejaria azul e a coroa dourada do sereno
Domo da Rocha, com sua porta fervilhando enquanto
homens entravam e saíam consternados de lá. A multidão
cantava, dava gritos de alarme, brandia porretes.
Afortunadamente, havia poucos janízaros e poucas armas de
fogo. Alguns dos muçulmanos acabaram nos vendo, e aí
aquela gente toda, com um grande urro, voltou-se em
uníssono e veio à carga.
"Mas que porcaria é estar contigo!", disse-me Ned. Então,
mirei.
À noite, a mesquita de El-Aqsa é alumiada por enormes
lâmpadas pendentes de bronze, que podem ser baixadas com
cordas brancas de algodão. Uma dessas lâmpadas - com
diversas dúzias de chamas individuais, numa base de metal
de dez pés de largura, tudo pesando bem mais de uma
tonelada - estava suspensa sobre a entrada principal. Quando
a multidão veio irrompendo por ali, eu mirei pela luneta do
fuzil, pus no retículo de fios cruzados a corda e o gancho
que a segurava no teto decorado e atirei.
A bala rompeu a corda, e a lâmpada desceu como se fosse
uma guilhotina, caindo com enorme estrondo ao sepultar o
líder da turba e dispersar o restante. Nossos perseguidores
retrocederam momentaneamente, olhando ressabiados para
cima. Foi o bastante para dar a nosso destacamento de
trogloditas sujos e cobertos de sangue os preciosos segundos
necessários para que nos retirássemos rumo à parte traseira
da mesquita.
"Eles pegaram as sagradas relíquias de Maomé!", ouvi a
multidão bradar. E, de repente, fiquei imaginando se a
viagem noturna do Profeta a Jerusalém e a ascensão dele aos
Céus seria apenas um mito ou se Maomé também estivera
verdadeiramente ali, procurando e talvez achando a
sabedoria. Teria também ele ouvido falar do Livro de Tot? O
que aprendera Jesus no Egito, ou o Buda em suas andanças?
Seriam todos os credos, mitos e narrativas um interminável
entrelaçar e exagerar de antigos textos, de sabedoria
constituída sobre a sabedoria anterior, de mistérios ocultos
por ainda mais mistérios? O que eu estava pensando era
heresia - mas ali, no centro religioso do mundo, eu não
conseguia deixar de matutar.
Corremos o máximo que podíamos pelos gastos tapetes
vermelhos que cobriam as lajes da mesquita, entrando nas
pequenas ante-salas além do grande salão, temendo
muitíssimo algum beco sem saída que nos encurralasse ali.
Mas, no ponto onde a El-Aqsa e o Monte do Templo
encontravam a muralha da periferia da cidade, havia outra
porta trancada. Big Ned correu de encontro a ela a toda a
velocidade, e desta vez a porta se arrebentou e se abriu, com
as lascas de madeira retorcida parecendo feridas novas na
madeira antiga. Olhamos para fora. A muralha acompanhava
a extremidade sul do Monte do Templo num declive,
cercando Jerusalém. Numa torre, a muralha se voltava para
oeste, cingindo a cidade lá embaixo.
"Se entrarmos naquele labirinto de ruas, conseguiremos
despistá-los", disse Farhi, arfante. Ele, Miriam e o ferido
Little Tom, os três cambaleando de exaustão, começaram a
andar em passo rápido e constante pelo parapeito da
muralha, rumo aos degraus que desciam para o Portão do
Esterco. Enquanto isso, Tentwhistle e eu recarregávamos
nossas armas no parapeito e Ned e Jericó ficavam parados,
em pé, de alfanje na mão, prontos. Quando os primeiros
dentre nossos perseguidores preencheram a porta pela qual
acabáramos de sair, nós atiramos. Nisso, Ned e Jericó
arremeteram para a fumaça, golpeando com os alfanjes.
Ouviram-se berros, os muçulmanos recuaram, e Ned cami-
nhou de volta, rápido e firme.
"Agora eles vão pensar duas vezes", disse ele, com um
sorriso de orelha a orelha, cheio de dentes.
Jericó, vendo a lâmina molhada de sangue, parecia nauseado.
"Causaste o mal", disse ele ao fuzileiro.
"Se bem me lembro, ferreiro, foram tu e a biscate da tua
irmã que mostraram o caminho."
E batemos em retirada mais uma vez.
Se a multidão estivesse mais bem armada, teríamos sido
mortos. Mas dispararam poucos tiros contra nós, embora as
balas passassem com aquele curioso chiado quente que nos
deixa paralisados se paramos para pensar no assunto. Então
descemos pela escada da muralha para uma rua de Jerusalém,
com o Portão do Esterco fechado por um subpelotão de
janízaros, tendo as cimitarras prontas para que não
pudéssemos fugir da cidade. Acima de nós, os parapeitos
estavam apinhados de muçulmanos que chispavam aos gritos
para a escada.
"Para o bairro judeu!", exortou Farhi. "É nossa única
chance!" Agora se ouviam gritos de alarme dos minaretes, e
sinos cristãos badalavam. Tínhamos acordado a cidade
inteira. Gente aos berros correu para as ruas. Cães uivavam,
ovelhas baliam. Uma cabra apavorada passou a galope por
nós, indo para o outro lado. Farhi, ofegante, conduziu-nos
morro acima para a Sinagoza de Ramban e o Portão de Jafa.
A multidão muçulmana vinha atrás, iluminada por tochas
que formavam uma cobra de fogo. Mesmo se eu conseguisse
tempo para recarregar o fuzil, o tiro único que poderia dar
não deteria em nada a fúria despertada por termos passado
por baixo do Domo da Rocha. A menos que conseguíssemos
socorro, estávamos perdidos.
"Eles querem queimar as sinagogas de Ramban e de
Yochanan ben Zakaü", berrou Farhi para os aflitos judeus
quando estes saíram correndo para as ruas. "Arranjai aliados
cristãos! Os muçulmanos estão se sublevando!"
"As sinagogas! Salvemos nossas casas sagradas!" Com isso,
tínhamos agora um escudo. Judeus se apressaram a conter a
multidão que irrompia no bairro deles. Cristãos alertavam
que o verdadeiro objetivo dos muçulmanos era a igreja do
Santo Sepulcro. Multidão colidiu com multidão. Em
instantes, criou-se o caos.
Com isso, Farhi desapareceu.
Eu instei com os outros: "Vamos nos separar! Jericó e
Miriam, vós morais aqui. Ide para casa!"
"Ouvi muçulmanos chamarem o meu nome", disse Jericó,
desalentado. "Não podemos mais ficar em Jerusalém. Fui
reconhecido." Ele me olhou feio. "Vão saquear e queimar a
minha casa."
A culpa me deu náuseas. "Então pegai o que puderdes e
escapai para o litoral. Smith está organizando a defesa de
Acre. Procurai lá a proteção dele."
"Vem conosco!", rogou Miriam.
"Não - sozinhos, provavelmente conseguireis viajar sem que
vos molestem, pois sois da terra. O resto de nós dá tanto na
vista quanto bonecos de neve no verão." Coloquei os
serafins nas mãos de Miriam, apertando-as. "Leva-os e
esconde-os até que nos reencontremos. Nós, os europeus,
podemos correr ou sumir de vista, saindo às ocultas quando
escurecer. Vamos na direção oposta, para dar-vos tempo.
Não te preocupes. Nós nos encontraremos em Acre."
"Perdi a minha casa e o meu bom nome por um subterrâneo
vazio", disse Jericó, com amargura.
"Havia alguma coisa ali", insisti. "Tu sabes que havia. A
pergunta é: onde estará esse algo agora? Em todo o caso,
quando o acharmos, seremos ricos."
Jericó me fitou com um misto de raiva, desespero e
esperança. "Vai, vai, antes que seja tarde demais para a tua
irmã!"
Ao mesmo tempo, Tentwhistle me puxou. "Vinde, antes
que seja tarde demais também para nós!"
E assim nos separamos. Enquanto corríamos, olhei para trás,
para o casal de irmãos. "Ainda haveremos de achar o que
procuramos!"
Eu e os britânicos nos dirigimos ao Portão de Sião. Olhei de
novo para trás, mas Jericó e Miriam já haviam se perdido nas
multidões tal qual restos de naufrágio no mar agitado. íamos
aos tropeções, demasiado devagar e demasiado sem
esperança. Little Tom, com o braço pegajoso de sangue, não
conseguia apressar-se, mas seguia em frente, brioso.
Entramos no bairro armênio e chegamos ao portão. Os
guardas tinham saído, provavelmente para controlar os
distúrbios ou procurar por nós - e isso era nosso primeiro
golpe de sorte em todo aquele fiasco. Desaferrolhamos as
grandes portas, empurramos com força e passamos para
campo aberto. O céu mal começava a avermelhar-se. Lá
atrás, as chamas, as tochas e a aurora que se aproximava
tinham alaranjado o céu acima das muralhas da cidade. Mais
adiante, ainda havia sombras protetoras.
À nossa direita, estavam o Monte Sião e a Tumba de Davi. À
esquerda, o Vale de Hinom, com o Tanque de Siloé em
algum lugar na escuridão lá embaixo. "Daremos a volta à
muralha da cidade até o norte e pegaremos a estrada para
Nablus", disse eu. "Se viajarmos à noite, poderemos chegar a
Acre em quatro dias e levar informações a Sidney Smith."
"Mas e o tesouro?", perguntou Tentwhistle. "Ficamos por
aquilo mesmo? Vamos desistir?"
"Vistes que ele não estava lá. Precisamos ver onde procurar
em seguida. Queira Deus que eles não tenham pegado Farhi.
Ele saberá onde tentar agora."
"Não, acho que ele está nos traindo. Por que precisava sair
de fino daquele jeito?"
Isso também me encafifava.
"A gente sempre cuida de salvar primeiro a própria pele",
disse Big Ned.
Nisto, o capitão-tenente pareceu ter um espasmo, e o som
de um disparo ecoou pelo morro acima. Depois veio outro, e
mais outro, com as balas acertando a poeira. Tentwhistle
sentou com um grunhido. E então ouvi as palavras em
francês:
"Eles estão ali! Espalhai-vos! Não os deixeis fugir!"
Era o grupo que tentara nos emparedar nos túneis, os
mesmos franceses que haviam pegado Miriam. Tinham saído
na surdina do Tanque de Siloé, ouvido o pandemônio e
esperado ao pé da muralha até que alguém aparecesse.
Eu me agachei ao lado de Tentwhistle e mirei. Minha luneta
achou um dos tocaieiros, e atirei. Ele tombou. Lindo fuzil.
Recarreguei, freneticamente.
Ned pegara a pistola de Tentwhistle e disparou também, mas
nossos agressores não estavam dentro do alcance de balas de
pistola. "Tudo o que conseguirás é atrair a mira deles com o
clarão da tua arma", eu lhe disse. "Leva Tom e o capitão-
tenente de volta pelo portão. Vou segurá-los por um
momento, e depois podemos despistá-los no bairro
armênio,"
Outra bala zuniu acima de nós. Tentwhistle tossia sangue, e
seus olhos estavam vidrados. Ele não viveria muito mais.
"Está certo, chefe - que nos faças ganhar tempo, então." Ned
começou a arrastar Tentwhistle de volta, com Tom
seguindo-os, já bem grogue. "Potts morto, dois de nós
feridos. És mesmo uma inspiração desgraçada."
Estava ficando mais claro. Balas ricocheteavam à medida que
os franceses se aproximavam em bando. Tornei a atirar e, aí,
olhei de relance para trás. Os britânicos já haviam entrado
pelo portão. Não era mais hora de recarregar - era hora de ir!
Agachado, fui de costas, e de fininho, no sentido do portão.
Vultos escuros se achegavam como lobos a rondar a presa.
Então, ouvi um rangido - o portão estava se fechando!
Chispei para lá, e, mal cheguei à muralha, o portão foi batido
com estrondo, trancando-me do lado de fora. Ouvi o baque
surdo da trava.
"Ned! Abre!" Então ouvi uma ordem em francês, e me atirei
de cara no chão antes do disparo de uma salva de balas. Elas
bateram como granizo contra o ferro do portão. Eu estava tal
qual um condenado no muro de fuzilamento. "Depressa -
eles estão chegando!"
"Acho que vamos seguir sozinhos, chefe", disse Ned em voz
alta. "Sozinhos? Pelo amor de Deus..."
"Não acho que esses franceses vão se preocupar muito com
os coitados de uns britânicos. És tu quem sabe dos segredos
do tesouro, não é verdade?"
"O quê?! Vais me deixar à mercê deles?!"
"Talvez possas liderá-los como nos lideraste, não?"
"Maldição, Ned - fiquemos juntos, como o capitão-tenente
mandou!"
"Ele está acabado, e nós também. Não compensa roubar de
marujos honestos no carteado, chefe. Acabamos perdendo
os amigos."
"Mas eu não roubei - só fui mais esperto!"
"Dá na mesma."
"Ned, abre este portão!"
Mas não havia resposta, só o portão mudo.
"Ned!" Debruçado, bati com força no ferro inflexível. "Ned!
Deixa-me entrar!"
Mas não deixou, é claro, enquanto eu fazia força para ouvir
por sobre o tumulto da cidade a retirada deles. Voltei-me. Os
franceses haviam se insinuado até poucas jardas de onde eu
estava, e vários mosquetes apontavam para mim. O mais alto
dos agressores sorriu.
"Nós nos despedimos por baixo do Monte do Templo e
agora tornamos a nos encontrar!", gritou o líder. Ele tirou o
tricornio em saudação e fez uma reverência. "Tendes
mesmo talento para estar em todo lugar, monsieur Gage. Só
que eu também tenho - ou não?" O dele era o sorriso dos
torturadores. "Imagino que ainda vos lembrais de mim, lá da
diligência de Toulon... Pierre Najac, a vosso dispor."
"Eu me lembro de ti - o inspetor de alfândega que se revelou
ladrão. Então teu verdadeiro nome é Najac?"
"Verdadeiro o bastante. O que aconteceu com vossos
amigos, monsieur?"
Eu me levantei devagar. "Saíram frustrados de um jogo de
cartas."
— 10 —
Eu soube que estava no inferno quando Najac insistiu em
mostrar seu ferimento de bala. Era o que eu lhe causara um
ano antes, rubro e coberto de crosta e cicatriz, num tronco
que certamente não via sabão nem água fazia um mês. A
pequena cratera ficava poucas polegadas abaixo do mamilo
esquerdo, mais para o mesmo flanco, confirmando que
minha pontaria não fora perfeita por pouco. Agora eu
também sabia que ele fedia.
"Abala quebrou uma costela", explicou. "Imaginai minha
satisfação quando, após a convalescença, descobri que talvez
estivésseis vivo e que eu poderia ajudar meu amo a ir em
vosso encalço. Primeiro, cometestes a estupidez de mandar
fazer perguntas no Egito. Depois, quando viemos para cá,
pegamos um tolo caduco que, tão logo o assamos o bastante,
abriu o bico e disse tudo sobre ter encontrado um franco
que levava consigo os anjos de ouro de Satanás. Foi aí que eu
soube que devíeis estar por perto. A vingança é um prato
que se come frio - e, quanto mais frio, melhor, não
concordais?"
"Saberás a resposta quando eu finalmente te matar."
Ele riu de minha piadinha, ergueu-se e me chutou a têmpora
com tanta força que a noite se dissolveu em pontos
brilhantes de luz. Caí de frente na fogueira, de mãos e pés
amarrados, e foi a lenta combustão de minhas roupas e a dor
resultante que enfim me incitaram o suficiente para me
contorcer para longe. Isso divertiu muitíssimo meus
captores, mas o fato é que eu sempre gostei mesmo de ser o
centro das atenções. Em seguida, a queimadura me manteve
febril. Era a noite subseqüente à nossa partida de Jerusalém,
e o medo e a dor eram as únicas coisas que me faziam
continuar consciente. Estava exausto, dolorido e
terrivelmente sozinho. De algum modo, o bando de Najac
inchara para dez valentes; metade deles eram franceses, e os
restantes, beduínos, tão desalinhados e sujos que pareciam
ser o rebotalho da Arábia, uns sapos, de tão feios. Ali, estava
faltando não só metade da dentição dessa turma, mas
também o francês que eu apunhalara na briga por Miriam.
Tive a esperança de havê-lo liquidado, um sinal de que eu
estaria ficando melhor em dar cabo de meus inimigos. Mas
talvez também ele estivesse convalescendo, sonhando com
o dia em que poderia igualmente me capturar e chutar.
O humor de Najac não melhorou com a descoberta de que
eu não levava nada de valor além do fuzil e da machadinha,
coisas de que, sendo ladrão, ele se apropriou. Eu confiara os
serafins a Miriam e, com toda aquela agitação, não percebera
que alguém (Big Ned ou Little Tom, segundo presumi) me
surrupiara a bolsa de moedas. Minha insistência em que não
acháramos nada no subsolo - em que Jerusalém se mostrara
uma decepção tão grande quanto o Egito - não caiu bem.
O que, perguntaram, eu estivera fazendo lá embaixo se não
havia o que descobrir?
Vendo a pedra fundamental do mundo pelo outro lado,
respondi.
Eles me espancaram, mas hesitavam em matar-me. Nessa
altura dos acontecimentos, as passagens sob o Monte do
Templo deviam estar tão agitadas quanto um formigueiro,
com os muçulmanos provavelmente sem entender o que
procuráramos. A balbúrdia acabara com qualquer chance de
que aquela quadrilha franco-árabe pudesse voltar, de modo
que eu era a única pista que tinham.
"Eu vos assaria agora mesmo se Bonaparte e o amo não vos
quisessem vivo", rosnou Najac. Ele deixou que os árabes se
entretivessem usando suas adagas para jogarem brasas em
meus braços e pernas, mas não muito mais que isso. Ainda
haveria bastante tempo para fazer-me berrar de dor.
Eu enfim apaguei numa escuridão exausta, até que, na
manhã seguinte, sacudiram-me dolorosamente para um
desjejum de água e pasta de grão-de-bico. Então
continuamos por uma trilha batida que ia desde os montes
de Jerusalém até a planície litorânea, com o horizonte já
marcado por colunas de fumaça.
O exército francês andava bem ocupado.
Apesar do cativeiro, tive uma estranha sensação de volta ao
lar quando chegamos ao acampamento de Napoleão. Eu
marchara com o exército de Bonaparte e encontrara a
divisão de Desaix em Dendara. Agora, armando tendas
brancas diante das muralhas de Jafa, estavam de novo
homens em uniformes europeus. Senti o cheiro de comida
conhecida e, mais uma vez, ouvi a sonoridade alegre e
elegante da língua francesa. À medida que passávamos
montados pelas fileiras, homens olhavam com curiosidade
para o bando de Najac, e alguns, surpresos, apontavam para
mim porque me reconheciam. Não muito antes, eu fora um
de seus savants. E agora lá estava eu, desertor e prisioneiro.
A própria Jafa me era familiar, mas desta feita via-a da
perspectiva do sitiador. Os baldaquinos e os tapetes
pendurados haviam sumido, e as fortificações exibiam as
feridas frescas das balas de canhão. De modo similar, muitas
das laranjeiras que abrigavam o exército de Napoleão haviam
sido reduzidas a lenho bruto pelo fogo de artilharia
otomano, que lhes arrancara a copa. Terra e areia frescas
estavam sendo escavadas para as obras de cerco, e longas
fileiras de animais da cavalaria francesa se agitavam
nervosamente à sombra, onde haviam sido amarrados a
estacas, relinchando e arrastando os cascos com o
canhoneio. Suas caudas espantavam as moscas como
metrônomos, e seu esterco tinha aquele cheiro adocicado
familiar.
Najac entrou no amplo pavilhão de lona de Bonaparte, e eu
fiquei sem chapéu ao sol do Mediterrâneo. Estava sedento,
zonzo e fatalista. Certa vez, eu caíra de um despenhadeiro
no rio São Lourenço, girando sem parar, e tivera aquela
mesma vaga sensação de nauseado arrependimento - até
quicar num arbusto, acima das pedras, e ir parar dentro do
rio.
E ali talvez estivesse também meu arbusto salvador.
"Gaspard!", chamei, em voz alta.
Era Monge, o célebre matemático francês, o homem que
ajudara a solucionar parte do enigma da Grande Pirâmide.
Ele era confidente de Napoleão desde os triunfos do general
na Itália e o orientara e educara tal qual teria feito com um
sobrinho genioso e cabeçudo. Agora, Monge acompanhava
o exército à Palestina.
"Gage?" Ele forçou a vista ao aproximar-se. Seu traje civil
estava cada vez mais surrado, com as calças remendadas nos
joelhos e o casaco esfarrapado. O rosto mostrava uma barba
de vários dias. O homem tinha cinqüenta e dois anos e
estava esgotado. "O que fazes aqui? Achei que te houvesse
mandado voltar para a América!"
"Eu tentei. Escuta - tens notícias de Astiza?"
"A mulher? Mas ela foi embora contigo!"
"É, mas acabaram nos apartando."
"Embarcastes os dois num balão - foi o que Conte me disse.
Ah, como ele ficou furioso com essa patuscada! Flutuastes
para longe... Como o resto de nós vos invejou!... E agora
estás de volta a este manicômio?! Por Deus, homem - eu
sabia que não eras um savant de verdade, mas pareces não
ter mesmo nenhum juízo."
"Nisso, doutor Monge, nós dois concordamos."
Ele não apenas não sabia nada do paradeiro de Astiza, como
também desconhecia nossa entrada na pirâmide, e bem
depressa resolvi que seria melhor não lhe contar. Se os
franceses porventura ficassem cientes de que havia coisas de
valor lá embaixo, eles explodiriam a edificação. Melhor
deixar que Faraó descansasse em paz.
"Astiza caiu no Nilo, e o balão acabou descendo no
Mediterrâneo", expliquei. "Nicolas também está aqui?" Eu
estava um pouco apreensivo ante a possibilidade de
encontrar Conte, o aeronauta da expedição francesa, já que
lhe furtara o balão de observação.
"Felizmente para ti, ele voltou para o sul para organizar o
embarque de nossa artilharia de sítio. Conte propôs um
plano bem brilhante - construir carroções de várias rodas
para transportar os canhões através do deserto. Só que
Napoleão não tem tempo para novas invenções, e, por isso,
estamos nos arriscando ao trazer a artilharia por mar."
Monge se interrompeu, percebendo que estava divulgando
segredos. "Mas o que fazes aqui, de mãos atadas?" Ele parecia
confuso. "Estás sujo, queimado, desamparado - meu Deus, o
que aconteceu contigo?!"
"Ele é espião inglês", respondeu Najac, saindo da tenda. "E
tu, cientista, corres o risco de também se tornar suspeito só
por falar com ele."
"Espião inglês? Não sejas ridículo. Gage é um diletante, um
parasita, um trapalhão, um errante. Ninguém o levaria a
sério como espião."
"Não? Nosso general leva."
Nisto, apareceu o próprio Bonaparte, com a lona da entrada
da tenda se enfunando grandiosamente, como se insuflada
pela eletricidade dele. Assim como todos nós, Napoleão
estava mais moreno que quando partíramos de Toulon,
quase um ano antes; e, embora ainda tivesse apenas vinte e
nove anos, o sucesso e a responsabilidade haviam conferido
uma dureza nova a seu rosto. Josefina era adúltera, os planos
de reformar o Egito com base em princípios republicanos
franceses haviam sido rechaçados e lhe valido a condenação
como infiel, e ele precisara sufocar um sangrento levante no
Cairo. O idealismo de Napoleão estava sitiado, e tinham sido
abertas brechas nas muralhas de seu romantismo. Agora, os
olhos cinzentos eram gelados; os cabelos escuros,
desgrenhados; a fisionomia, mais afalcoada; a passada,
impaciente. Marchou até mim e parou. Com cinco pés e
meio de altura, era mais baixo que eu e, ainda assim,
espichado pelo poder. Não consegui deixar de me encolher,
receoso.
"Então, és tu mesmo! Achei que tivesses morrido."
"Ele passou para os britânicos, mon general", disse Najac. O
homem parecia um dedo-duro de escola, e eu já começava a
desejar tê-lo baleado na língua.
Bonaparte se inclinou para bem junto de mim. "É verdade,
Gage? Desertaste para o inimigo? Rejeitaste o
republicanismo, o racionalismo e o reformismo em favor do
monarquismo, dos reacionários e dos turcos?"
"As circunstâncias nos obrigaram a seguir caminhos
diferentes, general. Eu venho simplesmente tentando
descobrir o paradeiro da mulher que conheci no Egito. Vós
vos lembrareis de Astiza."
"Aquela que fica atirando nas pessoas. Minha experiência é
de que o amor faz mais mal do que bem, Gage. E esperavas
achá-la em Jerusalém, onde Najac te apanhou?"
"Na qualidade de savant, eu estava procurando fazer certa
pesquisa histórica..."
Ele explodiu. "Não! Se há uma coisa que aprendi, é que não
és savant coisa nenhuma! Não me faças perder tempo com
absurdos! És um vira-casaca, um mentiroso e um hipócrita
que lutou na companhia de homens da marinha inglesa!
Talvez sejas espião de fato, como Najac diz. Isso se não
fosses tão tolo, como Monge também teve ocasião de
assinalar."
"Senhor, esse Najac aí tentou roubar meu importantíssimo
medalhão na França, quando eu já estava compromissado
com vossa expedição. O traidor é ele!"
"Foi ele quem me baleou!", disse Najac.
"Ele é capanga do conde Alessandro Silano e adepto do
herético Rito Egípcio, inimigo de todos os verdadeiros
maçons. Eu tenho convicção disso!"
"Silêncio!", interrompeu Bonaparte. "Estou bastante ciente
da tua antipatia pelo conde Silano, Gage. Eu também sei que
ele tem demonstrado admirável lealdade e perseverança
apesar da queda que sofreu nas pirâmides."
Então, pensei, Silano está vivo. As notícias não paravam de
piorar. Teria o conde fingido que caíra não do balão, mas das
pirâmides? E por que ninguém falava em Astiza?
"Se fosses tão leal quanto Silano, não terias condenado a ti
próprio como o fazes agora", continuou Bonaparte. "Por
todos os santos, Gage!
Foste acusado de homicídio, eu te dei todas as
oportunidades, e ainda assim mudas de lado, como um
pêndulo!"
"O caráter sempre se revela nas ações, mon general", disse
Najac, presunçoso. Ah, como eu queria esganá-lo!
"Estavas era procurando um tesouro, não é mesmo?", quis
saber Napoleão, peremptório. "Tudo não passou disso -
aquele comercialismo e ganância dos americanos."
"Eu buscava conhecimento", corrigi, com um quê de
verdade.
"E que conhecimento descobriste? Se dás valor à vida, sê
sincero."
"Nenhum, general, como podeis ver pela minha presente
condição. A verdade é apenas esta! Tudo o que digo é
verdade. Sou tão-somente um pesquisador americano,
apanhado numa guerra que não é a minha..."
"Napoleão, é evidente que o homem está mais para tolo que
para inconfidente", interrompeu Monge. "O pecado dele é a
incompetência, não a traição. Olha para Gage. O que poderia
ele saber?"
Procurei sorrir como um parvo (coisa nada fácil para um
homem fundamentalmente sagaz como eu), calculando que
a avaliação de Monge era um progresso em relação à de
Najac. "Posso dizer-vos que a política de Jerusalém é muito
confusa", ensaiei. "Não está claro a quem os cristãos, judeus
e drusos são realmente leais.
"Chega!" Bonaparte fez carranca para todos nós. "Gage, não
sei se mando fuzilar-te ou se te faço ir tentar a sorte com os
turcos. Eu deveria é despachar-te para dentro de Jafa e
deixar que esperasses por minhas tropas lá. Meus soldados
não têm muita paciência, não depois da resistência que o
inimigo ofereceu em El-Arish e Gaza. Ou talvez eu devesse
mandar-te para Djezzar, com um bilhete dizendo que espias
para mim."
Eu engoli em seco. "Talvez eu pudesse ajudar o doutor
Monge..."
E então se ouviu o som de disparos, cornetas e gritos de
guerra. Todos olhamos para a cidade. No lado sul, uma
coluna de infantaria otomana transbordava de Jafa contra os
franceses, enquanto os canhões turcos retumbavam.
Agitavam-se bandeiras, e homens desciam o monte, ligeiros,
rumo a uma plataforma de artilharia francesa ainda
semiconcluída.
Os clarins franceses começaram a soar em resposta.
"Maldição", resmungou Napoleão. "Najac!" "Oui, mon
general!"
"Tenho de ir repelir uma investida. Consegues descobrir o
que ele realmente sabe?"
O homem sorriu de orelha a orelha. "Ah, com certeza!"
"Então vai e traz essas informações para mim. Se ele não
tiver mesmo serventia, vou mandar fuzilá-lo."
"Napoleão, deixa que eu fale com ele...", tentou Monge mais
uma vez.
"Se voltardes a falar com ele, doutor Monge, será apenas
para ouvir suas últimas palavras." E, então Bonaparte correu
para o som dos disparos, chamando seus ajudantes-de-
ordens.
Não sou nenhum covarde, mas, quando se é pendurado de
cabeça para baixo num buraco de areia nas dunas
mediterrâneas, sob os apupos de uma quadrilha de
degoladores franco-árabes, algo me faz querer dizer a eles
qualquer coisa que queiram ouvir - só para fazer que o
maldito sangue pare de acumular-se na minha cabeça! Os
franceses tinham rechaçado a investida otomana, mas não
antes que os bravos turcos tomassem a bateria incompleta e
matassem franceses em quantidade suficiente para que o
exército de Bonaparte se enfurecesse. Quando informados
de que eu era espião inglês, vários soldados tinham se
oferecido entusiasticamente para ajudar a quadrilha de Najac
a cavar o buraco e construir a armação de tronco de
palmeira em que me dependuraram. Oficialmente, a idéia
era arrancar de mim quaisquer segredos que eu ainda não
houvesse compartilhado. Extra-oficialmente, torturar-me era
uma recompensa para o peculiar sortimento de sádicos,
tarados, lunáticos e ladrões de Najac, os quais existiam para
fazer os servicinhos sujos da invasão.
Eu já dissera a verdade uma dúzia de vezes. "Não há nada lá
embaixo!" E: "Não consegui nada!" E: "Nem sei exatamente o
que estou procurando!"
Mas, até aí, obter a verdade não é realmente a razão de ser
da tortura, já que a vítima dirá qualquer coisa para fazer a
dor parar. A tortura é para o torturador.
Assim, amarraram-me pelos calcanhares e me
dependuraram da viga sobre o buraco na areia, com os
braços livres para se agitarem. Cavaram um buraco de uns
bons dez pés antes de darem em alguma coisa dura, quando
então declararam que já estava de bom tamanho para ser
meu túmulo. E, em seguida, um dos beduínos se adiantou
com uma cesta de vime e despejou o conteúdo daquilo no
buraco. Meia dúzia de serpentes caíram no fundo do buraco
e se contorceram, sibilantes e indignadas.
"Jeito interessante de morrer, não?", perguntou
retoricamente Najac.
"Apófis", respondi, com a voz turvada pelo fato de a boca
estar onde deviam estar os pés.
"O quê?"
"Apófis!", repeti, mais alto.
Ele fingiu não entender, mas os árabes compreenderam,
sim. Encolheram-se ao ouvir a palavra, pois se tratava do
nome daquele antigo deus-cobra egípcio, venerado pelo
assassino renegado Achmed bin Sadr. É, eu já topara com
aquele mesmo bando desprezível, e, ante o fato de eu
conhecer o nome, eles se retorceram como se estivessem
trocando de pele. Isso semeou a dúvida entre eles. Mas
quanto eu - o misterioso eletricista de Jerusalém - sabia
verdadeiramente?
Fosse como fosse, Najac continuava fingindo não dar pelo
nome. "A morte por picada de cobra é terrivelmente
dolorosa e excruciantemente demorada. Nós vos mataremos
mais depressa, monsieur Gage, se nos disserdes atrás do que
estais realmente e o que realmente descobristes."
"Já recebi ofertas mais tentadoras. Vai para o inferno."
"Depois de vós, monsieur." Ele se voltou para os homens
que seguravam as cordas.
"Ide baixando - sem parar!"
A corda começou a desenrolar-se aos trancos. Minha cabeça
desceu ao nível do solo, meu corpo oscilava sobre a cova, e
tudo o que eu conseguia ver era uma fileira de botas e
sandálias cujos proprietários faziam pouco de mim. Depois,
mais corda. Puxei a cabeça para cima e para trás, recurvando
as costas de modo a olhar direto para baixo. As serpentes
continuavam lá, serpeando como elas gostam de fazer.
Aquilo me fez lembrar a morte traiçoeira de Talma, coitado,
e todos os fétidos delitos que Silano e sua corja haviam
cometido para chegar ao livro.
"Eu vos amaldiçoarei pelo nome de Tot!", berrei.
A corda parou outra vez, e teve início uma altercação em
árabe. Não consegui acompanhar a violenta enxurrada de
palavras, mas ouvi fragmentos como "Apófis", "Silano",
"feiticeiro" e "eletricidade". Então eu adquirira certa fama,
hein?! Eles estavam apreensivos.
A voz de Najac, furiosa e insistente, elevou-se acima
daquelas de seus capangas. Deixaram a corda descer mais um
pé e pararam de novo, pois a discussão continuava. De
repente, houve o estampido de um disparo de pistola, um
solavanco quando caí mais dois pés e outra estancada. Todo
o meu corpo já estava dentro do buraco, com as serpentes
quatro pés abaixo.
Um beduíno que polemizara demais com Najac jazia morto,
tendo um dos pés, calçado com sandália, virado sobre a
borda do buraco.
"O próximo que discutir comigo vai dividir a cova com o
americano!", avisou Najac. O grupo ficara silencioso. "Então,
concordais comigo agora? Ótimo - baixai-o! Devagar, para
que possa implorar!"
Ah, eu implorei mesmo, como um possesso. Não sou
orgulhoso quando se trata de evitar picada de cobra. Mas não
adiantou nada - ou quase nada, porque pelo menos me
baixaram aos pouquinhos, para que eu continuasse
oferecendo entretenimento. Eles só podiam ter achado que
eu nascera para os palcos. Gritei tudo o que achava que
pudessem querer ouvir, rogando, contorcendo-me,
transpirando, meus olhos ardendo com o suor. E então,
quando minhas abjetas lamúrias começaram a ficar tediosas,
alguém deu um empurrão para que eu balançasse de um lado
para outro. Era uma sensação vertiginosa. Muito mais
daquilo, e eu apagaria. Vi uma serpente atrás da outra, a
enrolarem-se de agitação, mas então percebi outra coisa.
"Há uma pá aqui embaixo!"
"Para tapardes vossa cova tão logo tenhais sido picado,
monsieur Gage", disse Najac, falando alto. "Não seria mais
fácil se explicásseis o que vistes sob o Monte do Templo?"
"Já te disse - nada!"
E, assim, baixaram-me mais um pé. É isso que a gente
consegue quando diz a verdade.
As serpentes, desgraçadas, estavam sibilando. Não era justo
que aqueles répteis estivessem tão bravos - afinal, não tinha
sido eu a colocá-los ali.
"Bem, talvez eu tenha visto uma coisa", corrigi-me.
"Não sou de muita paciência, monsieur Gage." A corda
tornou a descer.
"Espera, espera!" Eu estava começando a entrar realmente
em pânico. "Ergue-me, e eu te conto!" Eu pensaria em
alguma coisa! Algumas serpentes se agitavam para cima,
preparando-se para picar-me na cabeça.
O sol subira, e sua luz ia pouco a pouco cobrindo meu
túmulo. Vi de novo a pá, com serpentes se enrodilhando ao
redor, e a rocha arranhada onde meus coveiros haviam
parado de cavar. Só que, agora, eu já não achava que fosse
rocha coisa nenhuma, pois tinha o vermelho-tijolo de um
cântaro ou telha de argila. Reparei que o formato também
era regular - cilíndrico, se o arredondado da areia que cobria
aquilo servia de alguma indicação. Parecia um cano. Não!
Era um cano.
Agora que eu pensava a respeito, concluía que ele se
estendia para o mar. "Acho que podeis me contar daí
mesmo", disse Najac, perscrutando por sobre a borda do
buraco.
Estiquei para baixo meus braços oscilantes, o mais que pude.
Ainda me faltava um pé de distância para alcançar a pá
largada. Meus torturadores viram o que eu tentava fazer e
me baixaram mais algumas polegadas. Nisto, uma serpente
arremeteu no sentido de minha mão, e movi abruptamente
os braços para cima, meio retorcido - fato que arrancou
estrondosas gargalhadas. Agora, eles estavam apostando em
minha capacidade de pegar a pá antes que fosse picado por
répteis rastejantes. E lá fui eu descer mais uma polegada, e
mais outra. Ah, como meus captores estavam se divertindo!
"Se me matares, perderás o maior tesouro da Terra!", avisei.
"Então dizei onde ele está." Mais algumas polegadas para
baixo.
"Só posso levar-te a ele se poupares a minha vida!" Eu estava
de olho na pá e nas serpentes, contorcendo-me para que
pudesse balançar e passar sobre o cabo da ferramenta.
"E que tesouro é esse?"
Outra serpente investiu na minha direção, berrei, e ouviu-se
mais um coro de risadas. Se pelo menos as cortesãs
parisienses conseguissem me achar tão divertido!...
"Ele é..." A corda desceu mais; eu estiquei a mão, forçando
os dedos; as serpentes se ergueram, prontas; e aí, no que elas
arremeteram, agarrei a pá e a brandi desesperadamente.
Acertei dois dos répteis e os atirei contra as paredes de areia
do buraco, dando início a uma pequena cascata ofídica. Elas
se agitaram desesperadamente quando caíram de volta no
fundo do buraco.
"Para cima, por favor, para cima! Pelo amor de Deus, puxa-
me!"
"Qual é o tesouro, monsieur Gage? O que é ele?"
Não consegui pensar em outra coisa para fazer. Peguei a pá
com ambas as mãos, dobrei-me dolorosamente para cima o
mais que pude, fiz muita pontaria e então me deixei cair de
novo, fazendo que meu peso levasse a tosca ponta da pá
contra o cano de barro. E ele se despedaçou!
Jorrou líquido no buraco.
Ninguém ficou mais surpreso do que eu.
A corda desceu outro pé enquanto os homens lá em cima
gritavam de perplexidade, e meu cabelo estava mergulhado
num efluente que fedia a esgoto e água do mar. Seria aquilo
alguma infame descarga de Jafa? Fechei os olhos, bem
apertados, pronto para a mordida de presas em meu nariz,
minhas orelhas ou minhas pálpebras. Mas o irado sibilar
estava se esvanecendo.
Abri os olhos. As serpentes, fugindo do jorro fétido, haviam
rastejado para os cantos do buraco. Eram cobras do deserto,
tão insatisfeitas com tudo aquilo quanto eu.
Minha cabeça caiu outra vez, e agora a testa raspava nessa
fossa pegajosa. Pelo bom e velho dólar, será que eu ia
escapar da peçonha só para me afogar de cabeça para baixo?!
"O Graal!", urrei. "É o Graal!"
Com isso, Najac deu uma ordem ríspida, e eles começaram a
alçar-me.
Os árabes estavam em polvorosa, dizendo que eu era um
feiticeiro que operara alguma espécie de milagre elétrico
para tirar água da areia. Najac olhava incrédulo para a pá em
minhas mãos. Lá embaixo, o buraco continuava a encher,
com as serpentes tentando escalá-lo e voltando a cair.
E então minha cabeça subiu acima do nível do solo. Meus
calcanhares continuavam amarrados, e meu tronco girava
como um corte de carne de boi no gancho.
"O que dizíeis?!", perguntou Najac, peremptoriamente.
"O Graal", respondi, com voz entrecortada e débil. "O Santo
Graal. Agora podes, por favor, me dar um tiro?"
E é claro que ele teria gostado de fazer isso. Mas e se minha
alegação se revelasse importante para Bonaparte? Nisto, um
resmungo furioso, crescendo até transformar-se em bramido
indignado, começou a erguer-se de todo o exército que
sitiava Jafa.
— 11 —
Não podemos justificar as atrocidades, mas às vezes
podemos explicá-las. As tropas de Bonaparte vinham
lutando contra a desilusão desde o verão anterior, quando
desembarcaram no Egito. O calor, a miséria e a hostilidade
da população - tudo isso, enfim - foram um choque para os
franceses. Eles haviam tido a expectativa de ser recebidos
como salvadores republicanos que traziam as dádivas da
Ilustração. Em vez disso, precisaram enfrentar resistência
militar, foram vistos como infiéis e ateus, e os
remanescentes dos exércitos mamelucos vinham do deserto
para fazer incursões contra eles. Nas aldeias, as guarnições
viviam sob a constante ameaça do envenenamento, ou da
punhalada no escuro. A resposta de Napoleão foi
continuarem marchando adiante.
Em Gaza, a resistência se mostrou inesperadamente acirrada.
Prisioneiros turcos haviam sido libertados após terem
prometido que não voltariam à luta, mas oficiais franceses,
com lunetas, viram que as mesmas unidades guarneciam
agora as muralhas de Jafa - e aquilo violava uma norma
fundamental do modo europeu de guerrear! Mesmo isso,
porém, talvez não houvesse desencadeado os massacres que
se seguiram. O que causou a tormenta de fúria foi a decisão
do comandante otomano, o agá Abdalla, de responder à
oferta de rendição apresentada por Napoleão matando os
dois emissários franceses e enfiando as cabeças deles em
estacas.
Isso foi precipitação da parte de um muçulmano orgulhoso
cujas tropas se encontravam em inferioridade numérica de
três para um. O exército francês, como um leão provocado,
rugiu.
Agora, não poderia haver nenhuma clemência. Passados
minutos, teve início o canhoneio - uma detonação quando
ocorria o disparo, um sibilar quando os projéteis cortavam o
ar, uma erupção de poeira e fragmentos quando eles
atingiam a alvenaria da cidade. A cada impacto certeiro, as
tropas francesas davam vivas, até que o bombardeio,
desgastando constantemente as defesas de Jafa, se estendera
por horas e horas e se tornara monótono. Pelo leste e pelo
norte, cada canhão disparava de seis em seis minutos. Pelo
sul, onde a artilharia francesa apontava para a cidade por
sobre uma ravina com vegetação densa (que daria boa
cobertura para tropas que viessem tentar o assalto às
fortificações), os canhões estrondeavam de três em três
minutos, abrindo lentamente uma brecha nas muralhas. A
artilharia otomana respondia, mas com peças antigas e
pontaria enferrujada. E é claro que teria gostado de fazer
isso. Mas e se minha alegação se revelasse importante para
Bonaparte? Nisto, um resmungo furioso, crescendo até
transformar-se em bramido indignado, começou a erguer-se
de todo o exército que sitiava Jafa.
Najac se deteve para ver suas serpentes se afogarem e depois
me acorrentou a uma laranjeira enquanto observava o
bombardeio e ponderava o que eu dissera. A batalha era um
pandemônio a que ele preferiu não deixar de assistir, mas
presumo que arranjou um minutinho para informar
Napoleão de minha tagarelice sobre o Santo Graal. A noite
chegou, as fogueiras pareciam pulsar em Jafa, mas não me
deram comida nem água, só me restando o monótono bater
de tambor da artilharia. Acabei dormindo ao som desse
rufar.
O nascer do sol revelou uma grande brecha na muralha
meridional. As casas brancas, empilhadas como um bolo de
noivas, estavam marcadas por novos buracos escuros, e a
fumaça encobria Jafa. Os franceses apontaram sua artilharia
como se fossem cirurgiões, e a brecha se alargou de modo
firme e constante. Eu via dezenas de balas sólidas de canhão
jazerem no entulho da base da muralha, tal qual uvas-passas
em massa de panificação. Em seguida, duas companhias de
granadeiros, acompanhadas por sapadores que levavam
pólvora, começaram a aglomerar-se na ravina. Atrás delas,
mais tropas se aprestavam.
Najac me desacorrentou. "Aí vem Bonaparte. Provai vossa
utilidade se não quiserdes morrer."
Napoleão estava em meio a um aglomerado de oficiais. Era o
menor em estatura, o maior em personalidade, aquele que
gesticulava mais vigorosamente. Os granadeiros estavam
marchando em fila pela ravina, batendo continência para o
general ao se aproximarem da brecha na muralha de Jafa. As
balas de canhão otomanas caíam com estrépito, agitando
violentamente a folhagem como um urso ao aproximar-se da
presa. Os soldados seguiam sem deter-se pelo fogo impreciso
e pela concomitante chuva de folhas cortadas.
"Veremos agora quais cabeças acabam na estaca!", disse um
sargento em voz alta quando eles passaram com baionetas
caladas, e pisadas duras e ritmadas.
Bonaparte sorriu de modo sinistro.
Os oficiais nos ignoraram por um tempo, mas, quando as
tropas avançadas iniciaram o assalto, Napoleão voltou sua
atenção abruptamente para mim, como se quisesse ocupar os
momentos de ansiedade em que aguardaria o sucesso ou o
malogro do assalto. Ouviu-se um clangor de mosquetes
quando os granadeiros saíram do arvoredo e investiram para
a brecha, mas o general nem sequer olhou para lá. "Então,
Gage, eu soube que agora operas milagres, tirando água de
pedra e afogando serpentes."
"Eu achei uma velha tubulação."
"E, se bem entendi, o Santo Graal."
Tomei fôlego. "Trata-se da mesma coisa que eu estava
procurando nas pirâmides, general, e da mesma coisa que
buscam o conde Alessandro Silano e seu depravado Rito
Egípcio, para possível prejuízo de todos nós. O Najac, aqui
está ele próprio mancomunando com biltres que..."
"Gage, eu venho suportando tuas divagações há muitos
meses, e não me lembro de ter obtido algum benefício com
isso. Se te recordas, eu te propus uma parceria, a
oportunidade de reconstruirmos o mundo por meio dos ide-
ais de nossas duas revoluções, a francesa e a americana. Mas
preferiste desertar de balão - é ou não verdade?"
"Mas foi só por causa de Silano..."
"Tens esse Graal ou não?"
"Não."
"Sabes onde ele está?"
"Não, mas estávamos procurando quando o Najac aqui..."
"Sabes ao menos o que é esse Graal?" "Não exatamente, mas.
Bonaparte se voltou para Najac. "É evidente que ele não sabe
coisa nenhuma. Por que o tiraste da cova?" "Mas lá ele disse
que sabia!"
"E quem não diria qualquer coisa quando as tuas malditas
cobras estão lhe mordendo a cabeça? Chega de bobagens
tuas e dele! Quero que esse homem sirva de exemplo - ele é
não só inútil, mas também enfadonho! Faremos o americano
marchar diante da infantaria e ser fuzilado como o vira-
casaca que é. Estou cansado de maçons, feiticeiros, cobras,
deuses decrépitos e todos os outros tipos de lenda idiota que
ouvi desde que iniciei esta expedição. Sou membro do
Institut de France! Nossa pátria é a encarnação da ciência! O
único "Graal" é o poder de fogo!"
Nisto, uma bala de mosquete arrancou o chapéu da cabeça
do general e acertou o peito de um coronel ali atrás,
matando o homem.
Bonaparte teve um sobressalto, fitando de olhos arregalados
enquanto o oficial caía. "Mon Dieu!" Najac fez o sinal-da-
cruz, o que eu considerei o cúmulo da hipocrisia, já que sua
religiosidade cristã valia tanto quanto o dinheiro fajuto que o
Congresso Continental emitira durante nossa Guerra de
Independência. "É um sinal! Não deveis falar como falastes!"
Napoleão empalideceu momentaneamente, mas recuperou a
compostura. Franziu o cenho para o inimigo, que pululava
nas muralhas; olhou para o coronel estatelado; e apanhou o
chapéu no chão. "Foi Lambeau quem levou o tiro, não eu."
"Mas o poder do Graal!..."
"Esta é a segunda ocasião em que a estatura me salva a vida.
Se eu tivesse a altura do nosso general Kleber, já teria
morrido duas vezes. Está aí o teu milagre, Najac."
Meu captor estava paralisado pela visão do buraco no chapéu
do general. "Talvez seja um sinal de que ainda podemos
ajudar uns aos outros", ensaiei.
"E quero o americano não só amarrado, como também
amordaçado. Mais uma palavra, e eu mesmo vou fuzilá-lo."
Com isso, minha situação não melhorou em nada, e
Bonaparte se afastou a passos largos e pomposos. "Pois muito
bem, já temos uma cabeça-de-ponte! Lannes, põe naquela
brecha um dos canhões ligeiros!"
Perdi muita coisa do que aconteceu em seguida, e sou grato
por isso. As tropas otomanas resistiram com ferocidade,
tanto que um capitão dos engenheiros chamado Du Bois-
Aymé precisou descobrir um caminho pelos porões de Jafa
para surpreender o inimigo por trás - e à baioneta. Então,
soldados franceses furiosos começaram a enxamear-se pelas
vielas da cidade.
Entrementes, no lado norte de Jafa, o general Bon
transformou seu ataque diversionário num assalto pleno, que
conseguiu penetrar as defesas por aquela direção. Com as
tropas entrando em grande número, o moral dos defensores
ruiu, e os recrutas otomanos começaram a render-se. Mas a
ira francesa ante a tola decapitação dos emissários não
amainara, e a matança e os saques primeiro não foram
reprimidos e depois viraram furor coletivo. Fuzilaram-se e
baionetaram-se prisioneiros. Pilharam-se residências. Quan-
do a noite veio ocultar os resultados de uma tarde sangrenta,
soldados aos berros cambaleavam pelas ruas sob o peso do
butim. Enfiavam mosquetes pelas janelas das casas e
disparavam lá para dentro. Brandiam sabres úmidos de
sangue. Os saqueadores se negavam até a parar para ajudar
seus próprios feridos. Oficiais que procuravam deter o
massacre eram ameaçados e empurrados para o lado.
Arrancavam-se véus dos rostos das mulheres, seguindo-se as
roupas. Todo marido ou irmão que tentava impedir era
abatido a tiros, e as mulheres, estupradas à vista dos
cadáveres deles. Não se respeitaram mesquita, igreja nem
sinagoga, e muçulmanos, cristãos e judeus, indistintamente,
morreram nas chamas. Crianças jaziam aos berros por sobre
os corpos dos pais. Filhas imploravam por misericórdia
enquanto eram violadas em cima das mães moribundas.
Prisioneiros eram arremessados do alto das muralhas. Os
incêndios encurralaram os idosos, os doentes e os insanos
nos cômodos onde estes haviam-se escondido. O sangue
corria pelas sarjetas tal qual água de chuva. Em uma única e
monstruosa noite, todo o medo e toda a frustração de quase
um ano de implacável campanha militar foram descontados
numa única e impotente cidade. Um exército de
racionalistas, vindo da capital da Razão, ensandecera.
Bonaparte sabia que não devia tentar estancar esse
transbordamento; reinara a mesma anarquia em milhares de
saques anteriores, desde Tróia até as pilhagens dos cruzados
em Constantinopla e Jerusalém. "Nunca se deve proibir o
que não se tem poder para impedir", comentava ele. Ao
amanhecer, a comoção entre os soldados já se esgotara, e
eles, exaustos, esparramavam-se no chão como suas vítimas,
atônitos com o que tinham feito, mas também saciados,
como sátiros após uma orgia. Aplacara-se uma ira ávida e
demoníaca.
Na seqüência, Bonaparte se viu com mais de três mil
prisioneiros otomanos - homens macambúzios, famintos,
aterrorizados.
Napoleão não se esquivava de decisões difíceis. Apesar de
toda a sua admiração pelos poetas e artistas, ele era
fundamentalmente um homem da artilharia e da engenharia.
Estava invadindo a Palestina e a Síria - uma terra de dois
milhões e meio de habitantes - com treze mil soldados
franceses e dois mil auxiliares egípcios. Quando Jafa caiu,
algumas dessas tropas já exibiam sintomas da peste bubônica.
O extravagante objetivo de Napoleão era marchar até a
índia, tal qual Alexandre antes dele, liderando um exército
de recrutas orientais, estabelecendo um império. Mas
Horatio Nelson já destruíra a esquadra francesa e o impedira
de receber reforços; Sidney Smith estava ajudando a
organizar a defesa de Acre; e Bonaparte ainda precisava
aterrorizar o Açougueiro o bastante para que este
capitulasse. Não ousava libertar os otomanos aprisionados,
nem tinha condições de guardá-los ou alimentá-los. Assim,
resolveu executá-los.
Foi uma decisão abominável numa carreira controversa,
ainda mais porque eu era um dos prisioneiros que ele
decidiu executar. Eu não teria nem mesmo a dignidade e a
glória de, notável espião, desfilar diante dos regimentos reu-
nidos; em vez disso, Najac me enfiou na massa de
marroquinos, sudaneses e albaneses pululantes, como se eu
fosse mais um recruta otomano. Os coitados ainda não
sabiam o que estava acontecendo, já que haviam se rendido
na suposição de que suas vidas seriam poupadas. Estaria
Bonaparte fazendo-os marchar para embarcar em navios
para Constantinopla? Seriam mandados para o Egito como
mão-de-obra escrava? Ficariam tão-somente acampados do
lado de fora das muralhas fumegantes da cidade até que os
franceses seguissem adiante? Mas não - não era nada disso, e
as sombrias fileiras de granadeiros e fusiliers com os
mosquetes, em posição de descanso, logo começaram a
desencadear o rumor e o pânico. Cavalarianos franceses
haviam sido estacionados em ambas as extremidades da
praia, para assim impedir a fuga. A infantaria estava de costas
para os laranjais, e nós, de costas para o mar.
"Eles vão nos matar!", começaram a gritar alguns. "Alá nos
protegerá", asseguraram outros.
"Assim como protegeu Jafa?"
"Olha, eu ainda não achei o Graal", sussurrei para Najac,
"mas ele existe - é um livro -, e, se me matares, nunca o
acharás. Não é tarde demais para fazermos sociedade..."
Ele pressionou a ponta do sabre contra minhas costas.
"O que se está para fazer é crime!", disse eu, entre dentes. "O
mundo não esquecerá!"
"Bobagem — na guerra, não há crime."
No começo desta narrativa, já descrevi a cena subseqüente.
Um dos aspectos notáveis de quando estamos nos
preparando para ser executado é que os sentidos se aguçam.
Eu conseguia perceber as diversas camadas sobrepostas do ar
como se tivesse asas de borboleta. Conseguia distinguir os
cheiros do mar, do sangue e das laranjas. Conseguia sentir
cada grão de areia debaixo de meus pés (então descalços) e
ouvir cada estalo e rangido das armas que iam sendo
aprestadas, os arreios que iam sendo puxados por cavalos
impacientes, o zumbido dos insetos, o grasnar e o piar das
aves. Ah, quão pouco disposto a morrer eu estava! Homens
imploravam e soluçavam numa dúzia de idiomas. As preces
se avolumaram até virar zunido.
"Pelo menos eu afoguei as tuas malditas cobras", assinalei.
"Sentireis a bala entrar no corpo tal qual eu senti", rebateu
Najac. "E depois outra, e outra. Torço para que demoreis a
morrer, porque o chumbo dói muito mesmo. Ele se achata e
corta a carne. Eu teria preferido as serpentes, mas isto é
quase tão bom quanto." Quando os mosquetes foram
apontados, ele se afastou a passos largos.
"Fogo!"
Houve um estrondo, e a massa de prisioneiros oscilou. O
impacto das balas fez voar sangue e carne. Mas, então, o que
me salvou? O gigante negro, com os braços erguidos em
súplica, correu atrás de Najac como se o canalha pudesse lhe
conceder a suspensão da execução, colocando-o entre mim
e os mosquetes justamente quando se disparou a salva de
balas. Estas jogaram o negro para trás, mas ele ainda assim
constituiu um escudo temporário. Uma fileira de
prisioneiros desabou, berrando, e tanto sangue espirrou em
mim que, de início, temi que parte dele tivesse saído de meu
corpo. Dos que ainda continuavam de pé, alguns caíram de
joelhos, e alguns correram para os soldados franceses. Mas a
maioria, inclusive eu, fugiu instintivamente para a água.
"Fogo!" Outra fileira desbaratada, e mais prisioneiros que
giravam sobre si próprios tombavam, tropeçavam.
Um que estava junto a mim tossiu sangue pavorosamente.
Outro perdeu o cocuruto num jato rubro. A água era jogada
para cima em lâminas ofuscantes à medida que centenas de
nós corríamos para ela, tentando escapar a um pesadelo
demasiado medonho para parecer real. Alguns pisaram em
falso, depois ficaram rastejando e berrando nos baixios.
Outros seguravam braços e pernas feridos. Rogava-se
estridente e desesperadamente a Alá. "Fogo!"
No que as balas passaram sibilando acima de mim, mergulhei
e nadei vigorosamente, percebendo então que a maioria dos
turcos a meu redor não sabia nadar. Estavam paralisados,
com a água na altura do peito. Avancei várias jardas e olhei
para trás. O ritmo do fuzilamento se moderara, agora que os
soldados arremetiam de baionetas caladas. Os feridos e os
imobilizados pelo medo estavam sendo liquidados como
porcos no abate. Outros soldados franceses iam calmamente
recarregando as armas e mirando aqueles de nós que tinham
ido mais adiante na água; os atiradores chamavam uns aos
outros e apontavam alvos. As salvas ordenadas haviam
degenerado numa confusão generalizada de disparos.
Homens que se afogavam agarravam-se a mim. Eu os
empurrava e continuava em frente.
A cerca de cinqüenta jardas da praia, havia um recife
aplainado. As ondas rolavam sobre sua crista, deixando
baixios de um ou dois pés de profundidade. Dúzias dentre
nós alcançaram esse tablado serrilhado, subindo nele e
cambaleando para o lado do mar aberto. Com isso, atraímos
o fogo dos mosquetes; homens contorceram-se, rodopiaram
e caíram na espuma, que já ficava rósea de sangue. Atrás de
mim, o mar estava apinhado de cabeças e costas de
otomanos fuzilados ou afogados, quando então os franceses
entraram na água com seus sabres e achas.
Era uma insanidade! Eu ainda estava tão miraculosamente
incólume quanto Napoleão, que observava das dunas. O
recife terminou, e mergulhei com louca desesperança em
água mais profunda - para onde poderia ir? Fiquei à deriva,
batendo débilmente os braços, na margem externa no recife,
olhando homens se amontoarem até as balas os acharem.
Aquele que corria para cima e para baixo na areia seria
Najac, procurando freneticamente por meu cadáver? Recifes
mais altos afloravam mais perto de Jafa propriamente dita.
Será que eu conseguiria achar alguma espécie de
esconderijo?
Vi que Bonaparte, sem vontade de assistir ao massacre até o
fim, sumira de vista.
Alcancei o afloramento, ao qual homens se aferravam, tão
tristemente expostos quanto moscas em papel coberto de
cola. Os franceses já estavam saindo em pequenos barcos
para dar cabo dos sobreviventes.
Não sabendo mais o que fazer, enfiei a cabeça debaixo da
água e abri os olhos. Vi debaterem-se as pernas dos
prisioneiros que se agarravam a nosso refúgio e os tons
esmaecidos de azul à medida que o recife descia para as
profundezas. Enxerguei nele um buraco, como uma pequena
gruta subaquática. Quanto mais não fosse, aquilo parecia
venturosamente apartado do medonho tumulto na
superfície. Mergulhei, entrei e tateei. A rocha era cortante e
lodosa. E então, no que estiquei ao máximo a mão, ela se
debateu no ar livre. Eu me impulsionei para a frente e vim à
tona lá dentro.
Eu conseguia respirar! Estava num bolsão de ar da gruta
submarina, onde a única iluminação vinha de uma fenda
estreita acima de mim. Ouvi outra vez os gritos e disparos,
mas agora eles estavam abafados. Por medo de que os
franceses me achassem, não ousei anunciar em voz alta a
minha descoberta. De todo o modo, só havia espaço para
um. Assim, esperei, tremendo, enquanto cascos de madeira
davam no recife, disparos ressoavam, e os últimos prisio-
neiros, em prantos, eram passados pela espada ou
despachados a baioneta. Os soldados eram metódicos; não
queriam deixar testemunhas.
"Ali! Pegai aquele lá!"
"Olha como o rato se contorce."
"Este aqui ainda está vivo!"
Por fim, fez-se o silêncio.
Eu era o único sobrevivente.
E assim fiquei, tiritando com o frio cada vez maior, depois
que acabaram os xingamentos e rogos. O Mediterrâneo
praticamente não tem marés, de modo que eu corria pouco
risco de afogar-me. Era de manhã quando nos fizeram
marchar para a praia, e anoitecia quando juntei coragem para
emergir, com a pele tão enrugada quanto a de um cadáver,
pela longa permanência na água. Eu estava em trapos, e
meus dentes batiam uns contra os outros. E agora?
Entorpecido, mantive-me na vertical, boiando para o mar.
Um ou dois corpos passaram boiando por mim. Eu
conseguia ver que Jafa ainda estava em chamas, como brasas
empilhadas com o céu ao fundo. As estrelas brilhavam o
bastante para que a linha de vegetação ao longo da praia se
mostrasse em silhueta. Olhei para o bruxulear das fogueiras
dos acampamentos franceses e ouvi aqui e ali um disparo,
um grito, um som de risada amarga.
A meu lado, boiou alguma coisa escura que não era cadáver,
e eu me agarrei a ela - um barril de pólvora vazio, descartado
por franceses ou otomanos durante a batalha. Passaram-se
horas, com as estrelas rodando lá em cima e Jafa ficando
menos nítida. Minhas forças estavam sendo sugadas pelo
frio.
E então, na luz fraca antes do alvorecer, quase vinte e quatro
horas após o início das execuções, avistei um barco. Era uma
pequena balsa árabe, do tipo que me levara da HMS
Dangerous para Jafa. Chamei, rouquenho e tossindo, e
acenei. O barco se aproximou, com olhos arregalados me
perscrutando por sobre a beirada, como os de um animal
atento.
"Socorro." Minha voz era pouco mais que um sussurro.
Braços fortes me pegaram e me puxaram para o barco. Fiquei
deitado no meio da balsa, amolecido como uma água-viva,
exausto, piscando para o cinza do céu e não inteiramente
certo de estar vivo ou morto.
"Efêndi?"
Estremeci. Eu conhecia aquela voz. "Mohammad?" "O que
estais fazendo no meio do mar, quando eu mesmo vos deixei
em Jerusalém?"
"Quando foi que viraste marinheiro?!"
"Quando a cidade caiu. Surrupiei este barco e remei para fora
do porto. Infelizmente, não faço a menor idéia de como
velejar. Estou apenas à deriva."
Com grande dificuldade, consegui sentar. Aliviado, vi que
estávamos bem ao largo, fora do alcance de qualquer
francês. A balsa tinha um mastro e uma vela latina, e eu
conduzira embarcações não muito diferentes no Nilo. "És
uma bênção, Mohammad", disse eu, ainda bem rouco. "Eu
sei velejar. Podemos procurar um navio amigo."
"Mas o que está acontecendo em Jafa?"
"Todo o mundo morreu." Ele parecia desolado. Sem dúvida,
tinha amigos ou familiares que tinham sido apanhados pelo
cerco. "Não todo o mundo, é claro", corrigi-me. Mas eu fora
mais sincero da primeira vez.
Daqui a muitos anos, os historiadores quebrarão a cabeça
para explicar o raciocínio estratégico que levou às invasões
do Egito e da Síria por Napoleão, ao massacre de Gaza, às
marchas sem objetivo definido. O trabalho dos eruditos será
inútil. A guerra não tem nada a ver com a razão e tem tudo
que ver com a emoção. Se alguma lógica a guerra tem, é a
lógica maluca do inferno. Todos temos algum mal dentro de
nós. Na maioria de nós, é recôndito, mas alguns se entregam
a ele, que acaba universalmente liberado durante as guerras.
Para poderem liberá-lo, os homens se desinteressam de tudo
mais, destampando um caldeirão que eles mal sabem que
está em ebulição - e isso depois os persegue para sempre. Os
franceses - apesar de toda a mixórdia de ideais republicanos,
alianças com paxás remotos, estudos científicos, sonhos
reformistas - obtiveram acima de tudo uma catarse
medonha, seguida da plena consciência de que o que eles
haviam liberado acabaria certamente por consumi-los. A
guerra é a glória envenenada.
"Mas conheceis algum navio amigo?", perguntou
Mohammad.
"Talvez os britânicos, e tenho notícias que preciso levar-
lhes." E, pensei comigo mesmo, contas que quero acertar
com alguns deles. "Tens água?"
"Tenho. E pão. E umas tâmaras."
"Então já somos colegas de marinhagem, Mohammad."
Ele ficou radiante. "Alá sabe o que faz, não é mesmo? E por
acaso achastes o que procuráveis em Jerusalém?"
"Não."
"Se assim foi, penso que depois achareis." Deu-me água e
comida, tão revigorantes quanto o formigar da eletricidade.
"Estais fadado a isso, caso contrário não teríeis sobrevivido."
Que consolo seria ter tanta fé! "Ou talvez eu não devesse ter
procurado e esteja sendo punido por ter visto o que não
devia." Dei as costas ao brilho triste do litoral. "Pois bem,
ajuda-me a meter vela. Vamos estabelecer o curso para Acre
e os navios ingleses."
"Sim, efêndi - mais uma vez serei vosso guia, em meu novo
e robusto barco! Eu vos levarei aos ingleses!"
Recostei-me na pequena amurada. "Obrigado pelo resgate,
amigo." Ele assentiu. "E só vou cobrar dez xelins pelo
serviço!"
PARTE 2
— 12 —-
Eu chegaria a Acre como herói, não porque escapara à
execução em massa em Jafa, mas porque me vinguei dos
franceses dando informações providenciais aos inimigos
deles.
Mohammad e eu localizamos o esquadrão britânico no
segundo dia de nossa jornada. Os navios eram encabeçados
pelas naus de linha Tigre e Theseus, e, quando passamos a
sotavento da capitânia, saudei ninguém menos que aquele
demônio simpático, sir Sidney Smith.
"Gage, és mesmo tu?", perguntou ele, falando alto.
"Achamos que tivesses voltado para o lado dos franceses! E
agora voltas para nós?"
"Fui-me para os franceses pela traição de vossos próprios
homens, comandante!"
"Traição? Mas eles disseram que desertaste!"
Era ou não era uma mentira descarada de Big Ned e Little
Tom? Eles por certo me julgavam morto e incapaz de
contradizê-los. Era bem o tipo de distorção da verdade a que
eu mesmo poderia ter recorrido, o que me deixou ainda mais
indignado. "Muito pelo contrário! Vossos excelentes
fuzileiros me trancaram do lado de fora durante a brava
retirada deles! Vós nos deveis uma medalha. Não é mesmo,
Mohammad?"
"Os franceses tentaram nos matar", disse meu companheiro
de bordo. "Ele me deve dez xelins."
"E aqui estás, no meio do Mediterrâneo?" Smith coçou a
cabeça. "Maldição - para um homem que aparece em todo
lugar, é difícil saber qual é o teu. Bem, sobe a bordo, e
vamos esclarecer esta situação."
Assim, escalamos as cordas para subir à capitânia, a Tigre,
que fora capturada aos franceses anos antes e ainda
conservava o nome gálico. Era uma nau de setenta e quatro
canhões, parecendo um leviatã quando comparada à frágil
balsa na qual navegáramos, que foi levada a reboque. Os
oficiais britânicos revistaram Mohammad como se a
qualquer momento ele pudesse sacar uma adaga e me
lançaram olhares duros. Mas eu já estava decidido a bancar o
injustiçado e ofendido. Além disso, tinha um trunfo. Assim,
apresentei minha versão dos acontecimentos.
"...e então bateram o portão de ferro na minha cara,
justamente quando o bando de canalhas franceses e árabes já
me cercava..."
Mas, em lugar da indignação e solidariedade que eu bem
merecia, Smith e seus oficiais me encaram com ceticismo.
"Reconhece, Ethan: pareces mesmo passar com excessiva
facilidade de um lado para o outro", disse Smith. "E sair das
piores enrascadas."
"É, ele é um rebelde americano - ah, se é", interrompeu um
capitão-tenente.
"Um momento - imaginais mesmo que os franceses me
deixaram escapar de Jafa?"
"As informações dão conta de que ninguém mais conseguiu.
Termos te achado foi um tanto extraordinário."
"E quem é esse pagão?", perguntou outro oficial, apontando
para Mohammad.
"É meu amigo e meu salvador. E aposto que é mais homem
que o senhor." Agora eles se eriçaram, e eu estava
provavelmente a ponto de ser desafiado para um duelo.
Smith interveio às pressas. "Ora, ora - não há necessidade
disso. Temos o direito de fazer perguntas difíceis, e tens o
direito de responder a elas. Sinceramente, Gage, não recebi
tanta informação útil de ti em Jerusalém, apesar do
considerável investimento feito pela Coroa. Ademais, meus
comandados relatam que adquiriste um fuzil bem caro e
extravagante. Onde está ele?"
"Foi roubado por um maldito ladrão e torturador francês
chamado Najac", respondi. "Se é verdade que eu passei para
os franceses, então o que diabos estou fazendo aqui em
trapos, ferido, queimado, num barquinho com um cameleiro
muçulmano e sem arma nenhuma?" Eu estava furioso. "Se
eu passei para os franceses, por que não estou bebericando
um Bordeaux na tenda de Napoleão? É, vamos colocar as
coisas em pratos limpos. Chamai aqueles fuzileiros canalhas
agora mesmo..."
"Little Tom perdeu o braço e foi mandado para casa", disse
Smith.
Apesar da raiva que eu sentia, a notícia me fez parar para
pensar. Perder um membro era ser condenado à miséria.
"Big Ned está lotado em terra, com grande parte da
tripulação da Dangerous, para fortalecer as defesas de
Djezzar em Acre. Talvez possas discutir a questão com ele
lá. Temos uma mixórdia de homens rijos para conter Bo-
naparte - uma mistura de turcos, mamelucos, mercenários e
cafajestes, mais os nossos valentes ingleses. Temos até um
francês, Antoine de Phélippeaux, oficial monarquista de
artilharia. Ele está reforçando as fortificações."
"Estais aliados a um francês e ainda assim me questionais?"
"Ele ajudou a providenciar minha fuga da prisão do Templo,
em Paris, e é o camarada mais leal que se pode desejar.
Curioso como os homens escolhem lado em épocas
perigosas, não é verdade?" Ele me fitou atentamente. "Potts
e Tentwhistle morreram, Tom ficou aleijado, não se obteve
nada - e, ainda assim, eis-te aqui. Jericó diz igualmente ter
achado que morreste ou desertaste."
"Falastes também com Jericó?"
"Ele está em Acre, com a irmã."
Ora, boas notícias. Eu andara ocupado com meus próprios
problemas, mas senti uma onda de alívio ao saber que, por
ora, Miriam estava em segurança. Fiquei imaginando se ela
ainda estaria com meus serafins. Tomei fôlego. "Posso
garantir-vos, sir Sidney, que não quero mais nada com os
franceses. Eles me penduraram de cabeça para baixo sobre
uma cova cheia de serpentes."
"Por Deus, são uns bárbaros! Não lhes contaste nada,
contaste?" "Claro que não", menti. "Mas eles me disseram
uma coisa, e posso demonstrar minha lealdade com isso." Já
era hora de usar meu trunfo. "Disseram o quê?"
"Que a artilharia de sítio de Bonaparte está vindo por mar.
Com sorte, podemos capturá-la por completo antes que as
tropas dele cheguem a Acre."
"Deveras? Bem, isso mudaria as coisas, não?" Smith ficou
radiante. "Acha esses canhões para mim, Gage, e eu te dou
uma medalha - dou mesmo! Uma bela medalha turca - as
deles são maiores que as nossas e muito bem enfeitadinhas.
Eles as distribuem a mancheias, e podes apostar que
guardarei uma para ti se - para variar - estiveres mesmo
falando a verdade."
É claro que choveu, reduzindo nossas chances de
localizarmos a flotilha francesa, e depois veio o nevoeiro,
diminuindo ainda mais a visibilidade. A cerração logo fez os
ingleses pensarem que eu era outra vez um agente duplo,
como se eu pudesse controlar o clima. Mas, se tínhamos
dificuldade para achar os franceses, estes enfrentavam
apuros ainda piores para evadir-se a nós. O nevoeiro
também era inimigo deles.
E então os franceses toparam conosco na manhã de 18 de
março, quando o comandante deles, capitão-de-fragata
Standelet, tentava circular o cabo Carmelo e entrar na
pequena baía que tem Haífa ao sul e Acre ao norte. Três
navios, incluindo o de Standelet, escaparam. Mas outros seis
não conseguiram, e estes levavam em seus porões peças de
artilharia de sítio, que disparam balas de vinte e quatro
libras. Com um único golpe, havíamos capturado a mais
potente arma de Napoleão. Por aquela manhã de trabalho,
fui proclamado o baluarte de Acre, a raposa de Jafa, o
guardião do mar profundo. Também ganhei uma medalha
turca adornada com jóias, a Ordem do Leão, que Smith
então comprou de mim, para que eu pagasse a Mohammad e
ainda ficasse com umas moedinhas. "Se soubesses como
gastar menos do que possuis, terias a pedra filosofal",
repreendeu-me. "E, tenho lido o teu Franklin."
E assim desembarquei na velha cidade dos cruzados. Nossa
rota marítima corria paralela ao caminho terrestre das tropas
de Napoleão, cujo avanço era marcado por colunas de
fumaça. Haviam chegado relatos sobre uma série constante
de escaramuças entre os regimentos franceses e os
combatentes muçulmanos do interior, mas seria em Acre
que se decidiria a disputa.
A cidade fica numa península que se projeta para o
Mediterrâneo, na extremidade norte da baía de Haifa. Por
conseguinte, dois terços da cidade são cercados pelo mar. A
península se estende para sudoeste a partir da terra firme, e
o porto é formado por um quebra-mar. Acre era menor em
área que Jerusalém, com muralhas marítimas e terrestres
com menos de uma milha e meia de circunferência, mas era
mais próspera e quase tão populosa quanto. Na época em
que lá cheguei, os franceses já a estavam isolando do lado
que se prolongava terra adentro. Bandeiras tricolores a
tremular marcavam o arco dos acampamentos de Bonaparte.
Em tempos normais, Acre é uma linda cidade; as muralhas
marítimas confinam com recifes da cor de água-marinha, e
as terrestres, com campos verdejantes. Um antiquíssimo
aqueduto, não mais em uso, levava do fosso defensivo às
linhas francesas. A cúpula verde de cobre da mesquita
central, junto com um minarete com feitio de agulha,
interrompe um encantador horizonte urbano de telhas,
torres e toldos. Andares superiores se projetavam sobre ruas
sinuosas. Feiras sombreadas por toldos de cores brilhantes
enchiam as principais vias. O porto cheirava a sal, peixe
fresco e especiarias. Havia três grandes complexos de
hospedagem e armazenamento para visitantes marítimos: o
Khan el-Omdan, o Khan el-Efranj e o Khan a-Shawarda. Na
muralha setentrional, contrabalançando esse encanto, estava
o palácio do governante, um bloco implacável à moda dos
cruzados, com uma torre redonda em cada canto, suavizado
apenas pelo fato de que as janelas do harém davam para
jardins amenos entre a mesquita e o palácio. A sólida
fortaleza e a tortuosa cidade medieval coberta de telha me
faziam pensar num diretor de escola rígido e severo a
supervisionar uma animada classe de crianças ruivas.
A parte administrativa e religiosa ocupava o quarto nordeste
da cidade, e as muralhas terrestres têm face para o norte e o
leste, juntando-se numa torre maciça. Esta seria tão
fundamental para o cerco subseqüente que os franceses
acabariam por denominá-la la tour maudite - a torre
amaldiçoada. Mas podia Acre ser de fato defendida?
Ficava claro que muitos achavam que não. Levamos o
pequeno barco de Mohammad para terra, seguindo a
chalupa da Tigre; e, quando chegamos ao cais, a área estava
apinhada de refugiados aflitos para escapar da cidade. Smith,
Mohammad e eu passamos aos empurrões por uma multidão
que estava à beira do pânico. A maioria se constituía de
mulheres e crianças, mas não eram poucos que eram
comerciantes ricos que tinham pagado propinas exorbitantes
a Djezzar pelo direito de partir. Na guerra, dinheiro pode ser
sinônimo de sobrevivência, e histórias de massacres haviam
corrido litoral acima. Pessoas agarravam aos poucos
pertences que podiam carregar e davam lances por passagem
nos navios mercantes ao largo. Uma mulher suarenta levava
nos braços, como um bebê, seu conjunto de café de prata,
enquanto os filhos bem pequenos a seguravam com força
pelo vestido e abriam um berreiro. Um mercador de algodão
enfiara pistolas carregadas numa faixa onde se tinham
costurado moedas de ouro. Uma linda menina de dez anos,
com olhos escuros e boca trêmula, segurava um filhote de
cachorro, que se contorcia no colo. Um banqueiro usava
uma cunha de escravos africanos para abrir caminho até a
frente.
"Não ligues para esta ralé", disse Smith. "Estamos melhor
sem eles."
"Não confiam na própria guarnição deles?"
"A guarnição deles não confia em si mesma. Djezzar tem
tutano, mas os franceses arrasaram cada um dos exércitos
que já encontraram pela frente. Os teus canhões poderão
nos ajudar. Teremos peças de artilharia maiores que as de
Bonaparte e colocaremos uma bateria delas bem no portão
do Interior, ali onde as muralhas do mar e da terra se
encontravam. Mas a torre do canto será a noz onde o diabo
quebrará os dentes. É o ponto mais distante do apoio da
nossa artilharia naval, mas é também o mais forte das
muralhas. E o punho de Acre, e nosso verdadeiro segredo é
um homem que odeia Bonaparte mais até do que nós."
"Falais do Açougueiro?"
"Não, eu me refiro ao colega de turma de Napoleão na École
Royale Militaire, em Paris. Acreditas que o nosso Antoine
Le Picard de Phélippeaux dividia uma carteira de escola com
o biltre corso? Na adolescência, o aristocrata e o provinciano
viviam chutando as canelas um do outro, até ficarem roxas.
Phélippeaux sempre tirou notas mais altas que as de
Napoleão, formou-se com mais louvor e foi designado para
os melhores postos na carreira militar. Se a Revolução não
tivesse obrigado o nosso amigo monarquista a fugir da
França, ele provavelmente seria um superior de Napoleão.
Ano passado, Phélippeaux se infiltrou na França como
agente secreto e me resgatou da prisão do Templo, fingindo-
se de comissário de polícia que me transferiria para outra
cela. Ele nunca perdeu para Napoleão - e não perderá desta
vez. Vem conhecê-lo, Gage."
O "palácio" de Djezzar parecia uma Bastilha transplantada. A
torre de menagem dos cruzados fora reformada para
incorporar não graciosidade, mas intervalos de onde
canhões pudessem ser disparados das ameias, e dois terços
da artilharia do Açougueiro estavam apontadas para o
próprio povo dele, e não para os franceses. Quadrada e
impassível, a cidadela era tão implacável quando a mão de
ferro de Djezzar.
"Há o arsenal no porão, a caserna no térreo, os gabinetes
administrativos no andar de cima, o palácio de Djezzar no
seguinte e o harém no topo de tudo", explicou Smith,
apontando. Vi janelas de harém gradeadas, tal qual as gaiolas
de belas aves. Andorinhas, como se solidárias, voavam entre
essas janelas e as palmeiras embaixo. Já tendo irrompido
num harém no Egito, eu não sentia nenhuma vontade de ir
explorar esse - aquelas mulheres tinham me dado medo.
Passamos por grandes e parrudas sentinelas otomanas e uma
imensa porta de madeira guarnecida com ferro, e
adentramos o sombrio interior. Após a luz deslumbrante do
Levante, o lado de dentro da fortaleza parecia um calabouço.
Pisquei ao olhar em volta. Aquele era o andar em que se
alojava a guarda fiel de Djezzar, e havia ali uma
espartanidade militar. Tímidos, os soldados nos olhavam das
sombras, onde estavam limpando mosquetes e afiando
lâminas. Pareciam muitíssimo desanimados. Nisso, ouviram-
se passadas rápidas na escada, e um francês, ágil e mais
enérgico, desceu aos pulos. Seu uniforme branco, do
exército do Antigo Regime, estava sujo e surrado. Aquele só
podia ser Phélippeaux.
Era mais alto que Napoleão, seus movimentos eram
elegantes, e ele tinha a lânguida autoconfiança que vem do
berço nobre. Phélippeaux fez uma reverência cortês, e o
sorriso desfalecido e os olhos escuros pareciam avaliar tudo
com o cálculo característico dos oficiais de artilharia.
"Monsieur Gage, eu soube que pudestes ter salvo a nossa
cidade!"
"Muito longe disso."
"Pois eu asseguro que vossos canhões franceses serão
inestimáveis. Ah, que ironia! E um americano! Somos como
Lafayette e Washington! Que aliança internacional está se
formando aqui - britânicos, franceses, americanos,
mamelucos, judeus, otomanos, maronitas... todos contra o
meu ex-colega de classe!"
"Realmente estudastes juntos?"
"Ele colava de mim." Phélippeaux abriu um sorriso largo.
"Vinde, vamos dar uma espiada nele!"
Eu já estava gostando daquele seu estilo impetuoso.
Phélippeaux nos conduziu por uma escada serpeante até que
saímos na cobertura do castelo de Djezzar. Que vista
magnífica! Após as chuvas dos dias anteriores, o ar estava
estonteante, e o monte Carmelo, ao longe, era uma crista
azul bem do outro lado da baía. Mais perto, os franceses que
ali se concentravam estavam nítidos como soldadinhos de
chumbo. Tendas e toldos pareciam florescer, tal qual uma
grande quermesse de primavera. Pela experiência em Jafa,
eu já sabia como devia ser a vida nas linhas francesas:
comida farta, bebida importada para estimular a coragem dos
grupos de assalto, turmas de prostitutas e criadas para
cozinhar, limpar e proporcionar calor à noite, tudo a preços
absurdos, pagos alegremente por homens que sentiam haver
grande possibilidade de que estivessem prestes a morrer.
Cerca de uma milha terra adentro, erguia-se um morro de
uns trinta metros de altura, e lá eu discernia um
agrupamento de homens e cavalos em meio a estandartes
tremulantes, fora do alcance de quaisquer de nossas armas.
"Desconfio que será ali que Buonaparte estabelecerá seu
quartel-general", disse Phélippeaux, prolongando com
aristocrático desdém a pronúncia italiana. "Vede bem, eu o
conheço e sei como ele pensa. Nós dois faríamos a mesma
coisa: ele estenderá suas trincheiras até aqui e tentará minar
as nossas muralhas com sapadores. Então, já sei que ele sabe
que a torre é a chave."
Segui o movimento largo de seu dedo indicador. Canhões
estavam sendo alçados às muralhas, e logo adiante havia um
fosso defensivo seco, revestido de pedra, com uns vinte pés
de profundidade e cinqüenta de largura. "Nenhuma água no
fosso?"
"Ele não foi projetado para isso - o fundo fica acima do nível
do mar -, mas nossos engenheiros têm uma idéia. Na costa,
perto do portão do Interior, estamos construindo um
reservatório que encheremos bombeando água do mar.
Numa crise, ela poderá ser descarregada no fosso."
"Esse plano, porém, ainda está a meses de ser concluído",
disse Smith.
Eu assenti e disse: "Assim, neste meio-tempo, tendes vossa
torre". Ela era maciça, como um promontório. Imaginei que
parecesse ainda mais alta quando vista do lado francês.
"É o ponto mais forte das muralhas", disse Phélippeaux, "mas
também pode ser alvejada e assaltada dos dois lados. Se os
republicanos conseguirem submetê-la, já estarão nos jardins
e poderão espalhar-se para tomar nossas defesas por trás. Se
não conseguirem, a infantaria deles terá perecido
inutilmente."
Procurei abarcar a cena com seus olhos de artilheiro e
engenheiro. O aqueduto em ruínas se estendia dos franceses
em direção às muralhas. Tendo outrora trazido água para a
cidade, interrompia-se quase em nossa muralha, perto da
torre. Vi que os franceses cavavam trincheiras ao longo dele,
que ofereceria proteção contra o fogo de interdição. De um
lado, havia o que se assemelhava a uma lagoa seca. Dentro
dela, os franceses estavam fincando estacas de agrimensor.
"Eles esvaziaram esse reservatório aí para que tivessem uma
depressão protegida onde instalar uma bateria", explicou
Phélippeaux, como se lesse meus pensamentos. "Aquilo logo
estará repleto dos canhões mais leves, que eles trouxeram
por terra."
Olhei para baixo. O jardim era um oásis de sombra em meio
aos preparativos militares. As mulheres do harém
provavelmente estavam acostumadas a freqüentá-lo. Agora,
com tantos soldados e marinheiros guarnecendo os
parapeitos lá em cima, elas ficariam mesmo confinadas,
longe das vistas.
"Já acrescentamos quase uma centena de canhões às defesas
da cidade", disse Phélippeaux. "Agora que capturamos os
canhões franceses mais pesados, precisamos manter o
inimigo à distância."
"O que significa não deixar Djezzar desistir", emendou
Smith. "E tu, Gage, és a chave para isso."
"Eu?"
"Viste o exército de Napoleão. Quero que digas a nosso
aliado que aquela força pode ser batida - porque, se ele
acreditar, poderá mesmo. Mas primeiro tens de acreditar
nisso. E então? Acreditas?"
Pensei por um momento. "Bonaparte não é mágico. Apenas
ainda não encontrou ninguém tão combativo e obstinado
quanto ele."
"Exatamente. Então, vem conhecer o Açougueiro."
Não precisamos esperar por uma audiência. Depois do que
acontecera em Jafa, Djezzar reconhecia que a própria
sobrevivência dependia de seus novos aliados europeus.
Fomos conduzidos à sala de audiências, um recinto
belamente decorado, mas ainda assim modesto, com o teto
esculpido em estilo florido e o piso de tapetes orientais
justapostos. Aves piavam em gaiolas douradas, um
macaquinho pulava para lá e para cá numa guia de couro, e
um felino grande e sarapintado olhou-nos sonolento de uma
almofada, como se estivesse ponderando se comer-nos
justificava a trabalheira. Tive mais ou menos essa impressão
do Açougueiro, que estava sentado, ereto, com o torso idoso
ainda transmitindo a idéia de força e poder. Sentamo-nos de
pernas cruzadas diante dele, enquanto seus guarda-costas
sudaneses nos vigiavam atentamente, como se pudéssemos
ser assassinos e não aliados.
Djezzar tinha setenta e cinco anos e parecia não um avô
bondoso, mas um arofeta irascível. A barba era branca e
cerrada; os olhos, duríssimos; a boca, cruel. Uma pistola
estava enfiada na cinta, e uma adaga jazia bem perto da mão.
No entanto, o olhar traía a insegurança do fanfarrão tirânico
que se vê diante de outro - Napoleão.
"Paxá, este é o americano de quem vos falei", disse Smith,
apresentan-do-me. Djezzar me avaliou num relance - as
roupas de marinheiro emprestadas, as botas sujas, a pele
curtida pelo excesso de sol e de água do mar - e não
procurou esconder o ceticismo. Mas também estava curioso.
""Escapaste de Jafa?"
"Os franceses pretendiam me matar junto com os outros
prisioneiros", disse eu. "Nadei mar adentro e achei uma
pequena gruta nos recifes. O massacre foi horrível."
"É, mas a sobrevivência é a marca dos homens
extraordinários." Naturalmente, o próprio açougueiro era um
astuto sobrevivente. "E ajudaste a capturar a artilharia do
inimigo?"
"Pelo menos parte dela."
Ele me analisou. "És hábil e despachado, acho eu." "Como
vós, paxá. Tendes tanta habilidade e desembaraço quanto
qualquer Napoleão."
Djezzar sorriu. "Tenho mais que ele, se queres saber - já
matei mais homens e trepei com mais mulheres. Bem, então
agora temos um duelo de vontades. Um cerco. E Alá me
obriga a usar infiéis para combater infiéis. Eu não confio em
cristãos. Eles estão sempre conspirando."
Eso parecia ingratidão. "No momento, estamos conspirando
para salvar vosso pescoço."
Ele deu de ombros. "Mas fala-me desse Napoleão. É um
homem paciente?" "Nem um pouco."
"Mas ele é enérgico quando se trata de insistir no que quer",
acrescentou Phélippeaux.
"Ele virá para vossa cidade logo, com ímpeto, mesmo sem os
canhões", disse eu. "Acredita em golpes rápidos, de força
avassaladora, para quebrar o ânimo dos inimigos. Os
soldados de Napoleão são bons no que fazem, e o fogo deles
é certeiro."
Djezzar pegou uma tâmara numa taça e a examinou como se
nunca tivesse visto nenhuma antes. Em seguida, jogou-a na
boca e a mastigou de lado enquanto falava. "Então eu talvez
devesse me render. Ou fugir. As tropas dele são duas vezes
mais numerosas que a minha guarnição."
"Com os navios britânicos, sois superior a ele em artilharia.
Napoleão está a centenas de milhas de sua base no Egito e a
duas mil milhas da França."
"Então podemos derrotá-lo antes que consiga mais canhões."
"Ele quase não tem tropas para guarnecer o que quer que
capture. Seus soldados estão cansados e saudosos de casa."
"E doentes", disse Djezzar. "Correm boatos de peste."
"Já haviam surgido alguns casos no Egito", confirmei. "Ouvi
dizer que ocorreram mais em Jafa." Vi que o Açougueiro era
sagaz, e não uma nulidade otomana imposta pela Sublime
Porta. Ele reunia informações sobre seus inimigos como um
estudioso. "O ponto fraco de Napoleão é o tempo, paxá.
Quanto mais dias ele se detiver diante de Acre, mais forças o
sultão poderá enviar para cercá-lo. Napoleão não obtém
reforços nem novos suprimentos, ao passo que a marinha
britânica consegue trazer ambas as coisas para nós. O
homem está tentando realizar num único dia aquilo que
outros homens precisam de um ano para fazer, e é essa a
fraqueza dele. Está querendo conquistar a Ásia com dez mil
soldados, e ninguém sabe melhor que ele que é tudo blefe -
no instante em que seus inimigos deixarem de temê-lo,
Napoleão estará liquidado. Se conseguirdes agüentar firme.,."
"Ele irá embora", arrematou Djezzar. "Esse homenzinho que
ninguém bateu ainda."
"Nós o bateremos aqui", prometeu Smith, solene.
"A não ser que ele descubra algo mais poderoso que a
artilharia", disse outro, nas sombras.
Tive um sobressalto. Eu conhecia aquela voz! E, da
penumbra atrás do poleiro forrado de almofadas onde se
sentava Djezzar, surgiu de fato o medonho semblante de
Haim Farhi! Smith e Phélippeaux piscaram ante aquela
mutilação, mas não demonstraram repugnância. Eles já o
tinham visto antes.
"Rabino Farhi! O que fazeis em Acre?"
"Servindo o amo dele", disse Djezzar.
"Jerusalém se tornara um lugar muito desconfortável para
nós, senhor Gage. E, sem o livro, não havia motivo para
permanecer lá."
"Fostes conosco a serviço do paxá?"
"Mas é claro. Sabeis quem modificou minha aparência."
"Fiz um favor a ele", resmungou o Açougueiro. "A boa
aparência é mãe da vaidade, e a soberba é o maior dos
pecados. As cicatrizes de Farhi permitem que ele se
concentre nos números. E vá para o Céu."
Farhi se inclinou numa reverência. "Como sempre, sois a
própria generosidade, amo."
"Mas então escapastes de Jerusalém!"
"Por um triz. Deixei-vos porque o meu rosto atrai demasiada
atenção e porque eu sabia que mais averiguações se faziam
necessárias. O que os franceses sabem acerca dos nossos
segredos?"
"Que a indignação dos muçulmanos impede que se volte a
explorar os túneis. Eles não sabem nada e me ameaçaram
com serpentes para descobrir o que sei. Acho que todos
acabamos saindo de Jerusalém de mãos vazias."
"Mãos vazias do quê?", perguntou Smith.
Farhi se voltou para o oficial britânico. "Vosso aliado aqui
não foi a Jerusalém apenas para vos servir, comandante."
"Não, havia uma mulher sobre quem ele fazia perguntas, se
bem me lembro."
"E um tesouro que homens muito perigosos estão
procurando." "Tesouro?"
"Não é dinheiro", respondi, incomodado com o fato de Farhi
estar displicentemente divulgando meu segredo. "É um
livro."
"Um livro de magia", emendou o banqueiro. "Correm
rumores sobre ele há milhares de anos, e os templários o
buscavam. Quando pedimos a ajuda de vossos homens da
marinha, não estávamos procurando uma porta que
possibilitasse contornar as defesas da cidade para penetrar
em Jerusalém. Estávamos era atrás desse livro."
"Assim como os franceses", acrescentei.
"E eu", disse Djezzar. "Farhi era o meu ouvido ali."
Ele fazia bem em usar o substantivo no singular, já que o
patife cortara a outra orelha de seu auxiliar.
O olhar de Smith ia de um para outro de nós.
"Mas o livro não estava lá", disse eu. "Quase certamente, ele
nem existe."
"Apesar disso, agentes estão fazendo indagações por toda a
província da Síria", disse Farhi. "Na maioria, eles são árabes,
a serviço de alguma figura misteriosa no Egito."
Senti um arrepio. "Disseram-me que o conde Silano
continua vivo."
"Vivo. Ressuscitado. Imortal." Farhi encolheu os ombros,
denotando dúvida e resignação.
"Afinal, o que queres dizer, Haim?", perguntou Djezzar, no
tom do amo já muito impaciente com as divagações dos
subordinados.
"Que, como disse o senhor Gage, o que todos os homens
buscam talvez não exista. Se existe, porém, não temos
nenhuma maneira de procurar, isolados como estamos pelo
exército de Napoleão. O tempo é, sim, inimigo dele. Mas
também é um desafio para nós - se permanecermos sitiados
por muito tempo poderá ser tarde para acharmos primeiro o
que o conde Alessandro Silano ainda procura." Farhi
apontou para mim. "Esse homem precisa descobrir um
modo de ir outra vez atrás do segredo, antes que seja tarde
demais."
Segui o cheiro de carvão vegetal até achar Jericó. Ele estava
nas entranhas do arsenal, ali no porão do palácio. Seus
músculos eram iluminados pelo fulgor de uma forja de
ferreiro, martelando tal qual Thor os instrumentos da guerra
- espadas, chuços, baionetas, varetas de mosquete, cabos
compridos com forquilha na ponta, para empurrar as escadas
dos inimigos que tentassem escalar as muralhas. O chumbo
esfriava em moldes de balas de pistola e mosquete,
semelhantes a pérolas negras, e as sobras de metal eram
empilhadas para que Jericó as transformasse em metralha.
Miriam estava trabalhando no fole, o cabelo nas faces em
cachos suados, a camisa úmida e perturbadoramente colada
ao corpo, a transpiração a reluzir naquele vale da tentação
entre o pescoço e os seios. Dado que haviam perdido sua
casa em Jerusalém por causa do tumulto que causei, eu não
sabia como me receberiam. Mas, quando Miriam me viu,
seus olhos brilharam em animada saudação, e, na
incandescência infernal da armaria, ela disparou na minha
direção e me abraçou. Ah, como era gostoso senti-la! A
vontade de descer a mão para seu traseiro redondo era
enorme, mas, naturalmente, o irmão estava ali. Fosse como
fosse, até Jericó permitiu-se um sorriso relutante. "Nós
achamos que tinhas morrido!"
Ela me beijou a face, deixando-a em fogo. Segurei Miriam a
uma distância segura, para que, fisicamente, meu entusiasmo
por nosso reencontro não ficasse demasiado óbvio.
"E eu temi que o mesmo tivesse acontecido a vós", disse eu.
"Lamento que a nossa aventura vos tenha deixado presos em
Acre, mas eu realmente achava que encontraríamos um
tesouro. Escapei de Jafa com meu amigo Mohammad, num
barco." Olhei para Miriam, dando-me conta de quanto
sentira sua falta e quão angélicamente linda ela era. "A
notícia de que sobreviveste foi como néctar para um
homem que está morrendo de sede."
Julguei ter visto um rubor debaixo da fuligem, e eu decerto
apagara o sorriso do irmão. Mas não importava - eu não
queria largar a cintura de Miriam, e ela não queria tirar as
mãos de meus ombros.
"E, agora, eis-nos aqui, vivos", disse Jericó. "Todos os três."
Eu a soltei, finalmente, e assenti. "Com um homem
chamado Açougueiro, um judeu mutilado, um guia
muçulmano, um capitão-de-mar-e-guerra inglês meio insano
e um colega de escola de Napoleão Bonaparte que está muito
contrariado com este. Para não falar de um ferreiro parrudo,
sua douta irmã e um americano jogador, mandrião e
irresponsável. Parecemos o alegre bando de Robin Hood,
não?"
"Sem dúvida", disse Miriam. "Ethan, soubemos o que
aconteceu em Jafa. E se os franceses tomarem Acre?"
"Não tomarão", respondi, com mais confiança do que de fato
sentia. "Não precisamos batê-los — só temos de esperar até
que se vejam compelidos a retirar-se. E tenho uma idéia para
isso. Jericó, sobrou alguma corrente pesada na cidade?"
"Vi algumas por aí, usadas por navios ou empregadas para
fechar a saída do ancoradouro. Por quê?"
"Quero estendê-las nas torres para dar as boas-vindas aos
franceses."
Ele balançou a cabeça negativamente, convencido de que eu
continuava maluco como sempre. "Para dar-lhes uma mão
na hora de escalarem as nossas defesas?"
"Exatamente. E então carregar as correntes de eletricidade."
"Eletricidade?!" Jericó fez o sinal-da-cruz.
"Foi uma idéia que tive quando estava no barco com
Mohammad. Se armazenarmos bastante faísca numa bateria
de garrafas de Leiden, poderemos transmiti-la com um
arame para uma corrente suspensa. Daria o mesmo choque
que demonstrei em Jerusalém, mas, desta vez, derrubaria os
franceses no fosso, onde então poderíamos matá-los." Eu me
tornara o próprio guerreiro sanguinário.
"Estás dizendo que eles não conseguiriam segurar-se à
corrente?", perguntou Miriam.
"Tanto quanto conseguiriam se o metal estivesse
incandescente. Seria como uma barreira de fogo."
Jericó ficou curioso. "Isso poderia mesmo dar certo?"
"Se não der, o Açougueiro usará a corrente para nos
enforcar."
- 13 -
Eu precisava gerar carga elétrica numa escala com que nem
mesmo Franklin sonhara, de modo que, enquanto Jericó se
punha a coletar e juntar elos de corrente de ferro, Miriam e
eu nos púnhamos a reunir vidro, chumbo, cobre e garrafas
em quantidade suficiente para fazer uma pilha gigantesca.
Raramente desfrutei tanto um projeto. Miriam e eu não
apenas trabalhávamos juntos; éramos parceiros, de uma
maneira que reeditava a aliança que eu estabelecera com
Astiza. O acanhamento recatado com que eu topara de
início se perdera em algum lugar dos túneis de Jerusalém, e
agora Miriam exibia uma confiança vivaz que fortalecia a
coragem de todos com os quais ela trabalhava. Nenhum
homem quer ser covarde na presença de mulheres. Nós dois
trabalhávamos ombro a ombro, roçando e tocando um no
outro mais que o necessário, e eu me recordava exatamente
do ponto de minha face que seu beijo afogueara. Não há
nada mais desejável do que uma mulher que ainda não
pudemos possuir.
Dávamos duro ouvindo o eco dos canhões adversários, que
procuravam acertar o alcance de tiro à medida que as
trincheiras francesas avançavam rumo às muralhas. Até o
porão do palácio de Djezzar tremia quando uma bala de
ferro sólido acertava as muralhas externas.
Franklin dera o nome bateria às fileiras de garrafas de Leiden
porque elas o faziam lembrar uma bateria de canhões,
alinhados pelos cubos das rodas para proporcionar fogo
concentrado. Em nosso caso, cada garrafa adicional poderia
ser ligada à última para intensificar o choque potencial que
eu pretendia aplicar nos soldados franceses. Logo tínhamos
tantas garrafas que o trabalho de eletrificar todas por fricção
(usando manivela) pareceu ser uma tarefa de Sísifo,
empurrando interminavelmente morro acima uma enorme
rocha.
"Ethan, como vamos girar os teus discos de vidro por tempo
suficiente para fornecer força a este aparato imenso?",
perguntou Miriam. "Precisaremos de um exército para girar
manivelas!"
"Um exército não. Bastam ombros largos e uma mente não
muito brilhante." Eu me referia a Big Ned.
Desde que eu desembarcara em Acre, vinha aguardando
meu reencontro com esse fuzileiro avantajado, tosco e
azedo. Era necessário vingar-me daquela perfídia no portão
de Jerusalém, e, no entanto, Ned continuava a ser um
gigante perigoso, ainda ressentido com as perdas no jogo. O
xis da questão era não topar por acaso com ele quando eu
estivesse em desvantagem. Assim, planejei cuidadosamente
a lição que lhe daria. Eu soube que Ned estava informado de
minha miraculosa reaparição e andava se gabando de que
ainda me devia uma sova, coisa que ele providenciaria tão
logo eu parasse de esconder-me atrás das saias da namorada.
Quando fiquei sabendo que Ned fora designado para ajudar a
reparar o mais depressa possível a alvenaria do fosso na base
da torre mais crucial de Acre, apareci para dar uma mão na
porta de saída da fortaleza, acima de onde ele estava.
As muralhas se mostram mais fortes quando não têm fendas
que facilitem a passagem de balas de canhão, e era esse o
motivo de Smith e Phélippeaux quererem os reparos ali. Era
um serviço que exigia coragem: os peritos atiradores
britânicos trocavam disparos com seus equivalentes
franceses enquanto uns poucos voluntários, incluído Ned,
mourejavam lá embaixo, no escuro. Apesar de meus
problemas com Ned e Tom, eu viera a admirar a rija deter-
minação dos tripulantes ingleses, homens pobres e
analfabetos que tinham pouco do idealismo dos voluntários
franceses, mas que demonstravam obstinada lealdade à
Coroa e à pátria. Ned possuía esse mesmo estofo. Enquanto
mosquetes disparavam com fulgor e estrondo no escuro (ah,
que saudades de meu fuzil!), cestas de pedras, argamassa e
água eram baixadas para a turma de reparos, que lavrava,
raspava e assentava. Já perto do alvorecer, eles finalmente
correram de volta para uma escada de cordas, como se
fossem macacos apressados, com as balas ricocheteando em
volta. Meu braço ofereceu a cada um deles uma mão para
que entrassem, até que restou apenas Ned lá embaixo. Ele
deu um bom puxão na corda. A cara que Ned fez quando
aquela rota de fuga se soltou e caiu fazendo som de matraca,
até virar uma pilha de corda a seus pés, é coisa que não tem
preço. A vingança tem lá suas recompensas.
Eu me inclinei sobre a muralha. "Não é nada gostoso ficar
trancado do lado de fora, não é mesmo, Ned?"
A cabeça dele se aqueceu como uma cebola roxa quando me
reconheceu cinqüenta pés acima. "Ah, juntaste coragem
para sair do palácio do paxá, ianque lambão? Depois da lição
que te dei em Jerusalém, achei que não ficarias a menos de
cem milhas de honrados fuzileiros britânicos! E agora
pretendes me largar neste fosso e deixar que os franceses
façam o serviço por ti?" Juntou as mãos em concha e gritou:
"O americano é poltrão - ah, se é!"
"Não, não", rebati. "Só quero fazer que sintas o gostinho da
tua vil traição e ver se és homem o bastante para me
encarar, em vez de bater portão na minha cara ou se
esconder no porão do navio."
Os olhos dele saltaram como se estivessem cheios de vapor.
"Encarar-te?! Por Deus, eu vou te arrancar os braços e as
pernas, trapaceiro, se alguma vez tiveres peito de cair no
braço comigo!"
"O valentão quer sempre tirar vantagem do tamanho, Big
Ned", disse-lhe, gritando ele lá embaixo. "Duela comigo do
jeito justo, espada contra espada, como cavalheiro, e te
ensinarei uma lição de verdade."
"Com os diabos, vou mesmo! Vou lutar contigo com pistola,
com porrete, com faca, com canhão!" "Eu falei em espada."
"Deixa-me subir, então! Já que não posso te esganar, vou te
cortar ao meio!"
Assim, com o duelo marcado de modo satisfatório para mim,
baixei uma corda, alcei de novo a escada e fiz Ned voltar
para dentro de Acre, imediatamente antes que a luz do
amanhecer o transformasse em alvo.
"Estou tendo mais compaixão para contigo do que tiveste
para comigo", disse eu, passando-lhe sermão enquanto Ned
tirava argamassa das roupas e me fitava com fúria.
"E eu estou a ponto de retribuir a compaixão que
demonstraste no carteado. Vamos duelar e liquidar nossos
assuntos de uma vez por todas! Agora, eu não te deixaria
pagar para sair desta nem se tivesses dinheiro para me
devolver dez vezes o que levaste!"
"Eu te encontro nos jardins do palácio. Preferes o florete, o
sabre ou o alfanje?"
"Por Deus, o alfanje! Uma coisa que corte osso! E vou trazer
os meus camaradas para te verem sangrar!" Olhou muito feio
para os homens que estavam ali apreciando o diálogo.
"Ninguém passa a perna em Big Ned."
Minha disposição para duelar com um animal daqueles vinha
da minha capacidade de prever seus movimentos. Franklin
era sempre uma inspiração, e, enquanto trabalhava na nova
forja de Jericó, refleti que o sábio da Filadélfia usaria
engenhosidade em vez de força bruta. Assim, eu me pus a
trabalhar.
Sabotar Ned foi simples. Retirei o cabo de pano e tecido do
alfanje que ele usaria; coloquei em seu lugar um substituto
de cobre, cuidando para que Ned pudesse segurá-lo com
firmeza; poli a peça toda; e tornei a cobrir o cabo com
tecido. Os metais são condutores de eletricidade.
Meu alfanje já foi mais complicado. Abri um vão no miolo
do cabo; revesti-o de chumbo; para minha própria
segurança, coloquei uma cobertura de pano duas vezes mais
grossa, aumentando o isolamento; e, pouco antes da chegada
de meu oponente, segurei contra a ponta do cabo um arame
grosso que saía da manivela que eu construíra para gerar
eletricidade por fricção. Eu estava girando e girando sem
parar a manivela, agora acumulando eletricidade no aço de
meu alfanje, quando Ned apareceu no pátio.
Meu oponente olhou de soslaio. "E o que é isso agora,
ianque tratante de uma figa?"
"Mágica", respondi.
"Ei, eu quero uma luta justa!"
"E a terás, lâmina contra lâmina. Teu muque contra meu
miolo. Nada mais justo que isso, não?"
"Ethan, ele vai te partir como se fosses uma vareta", advertiu
Jericó, do jeito que eu pedira. "Isto é loucura. Não tens
chance contra Big Ned."
"A honra exige que nos batamos", disse, com resignação
igualmente ensaiada, "não importando o tamanho nem a
perícia dele." Imagino que não seja muito esportivo ludibriar
o touro, mas que matador não fica agitando a capa?
Dei alguns minutos até que a multidão de marujos e
fuzileiros navais reunidos fizesse apostas contra mim (com
um empréstimo do ferreiro, eu as cobri inteiramente,
calculando que poderia lucrar bastante com toda aquela
trabalheira) e então assumi uma pose de esgrimista na
passagem do jardim onde duelaríamos. Gostei de pensar que
as moças do harém estariam olhando lá de cima, e sabia que
Djezzar também estava.
"Em guarda, fanfarrão!", bradei. "Se eu perder, prometo te
dar cada xelim. Mas, se perderes, ficarás em dívida de
gratidão para comigo!"
"Se perderes, pegarei o que me deves no picadinho em que
terei te transformado." A multidão gargalhou ante tal verve,
e Ned ficou todo cheio de si. Então arremetemos um contra
o outro, brandindo os alfanjes.
Aparei o golpe.
Eu desejaria poder dizer que exibi valorosa e hábil
demonstração de esgrima ao contrapor destramente minha
capacidade atlética à força bruta de Ned. Mas não foi assim:
quando o aço bateu no aço, houve simplesmente uma chuva
de faíscas e um estampido agudo, tal qual disparo de arma de
fogo, que fez os espectadores se sobressaltarem e gritarem.
Nossas lâminas mal se tocaram, e ainda assim Ned foi atirado
para trás como se houvesse levado um coice de mula. O
alfanje do fuzileiro voou, errando por pouco um de seus
companheiros de bordo, e Ned se estatelou como Golias e
ficou lá no chão, com os olhos virados. O outro alfanje ardia
em minha mão, mas eu ficara isolado do pior do choque. O
ar cheirava a queimado. Teria Ned morrido?
Eu o toquei com a ponta de meu alfanje. Ele estremeceu
como um dos sapos das experiências de Galvani.
A multidão estava absolutamente silenciosa, abismada.
Por fim, Ned estremeceu, piscou e se encolheu, temeroso.
"Não me toques!"
"Não deverias pôr à prova quem é melhor que ti, Ned."
"Caramba! O que fizeste comigo?"
"Mágica", repeti. Apontei meu alfanje para os outros. "Venci
nas cartas limpamente e venci este duelo. Agora, quem mais
quer me desafiar?"
Eles recuaram como se eu fosse leproso. Um contramestre
se apressou a atirar para mim a bolsa com o dinheiro das
apostas. Deus abençoe os tolos instintos dos marítimos
britânicos para a jogatina.
Ned conseguiu erguer-se o suficiente para ficar sentado no
chão, grogue. "Ninguém nunca me venceu antes. Nem
mesmo o meu pai, pelo menos não depois que fiz oito ou
nove anos e já conseguia sová-lo."
"Vais finalmente me respeitar?"
Ele balançou a cabeça, para desanuviá-la. "Estou em dívida,
já disseste. Tens estranhos poderes, chefe - agora eu vejo
isso. Tu sempre sobrevives, em qualquer lado em que
estejas."
"Eu apenas uso o cérebro, Ned. Se te aliares a mim, eu te
ensinarei a fazer o mesmo."
"Certo. Quero servir contigo, não brigar." Desajeitadamente,
forcejou para colocar-se em pé e balançou de um lado para
outro. Eu conseguia imaginar o formigamento nada natural
que ele devia estar sentindo. "Todos os outros, escutai", disse
ele, em voz baixa e áspera. "Não contrarieis o americano. Se
o fizerdes, tereis de vos acertar comigo. Eu e ele agora
somos parceiros." Deu-me um abraço, tal qual um símio
gigantesco.
"Não toques na espada, homem!"
"Ah, sim." Ned se afastou às pressas.
"Bem, eu preciso da tua ajuda para fazer mais mágica, só que
desta vez contra os franceses. Preciso de alguém que consiga
fazer girar o meu aparato como o próprio capeta faria.
Consegues, Ned?"
"Se não me tocares..."
"Não, estamos quites", confirmei. "Agora, podemos ser
amigos."
Fez-se uma estranha calmaria enquanto os franceses
cavavam como formigas rumo às muralhas de Acre e
assentavam os canhões que lhes restavam. Eles cavavam, e
nós esperávamos, com aquele moroso fatalismo que vai des-
gastando os sitiados. Era a Semana Santa, de maneira que, no
espírito do feriado, Smith e Bonaparte concordaram em
fazer uma troca de prisioneiros, permutando os homens que
haviam sido capturados em incursões e escaramuças.
Djezzar andava para lá e para cá pelas muralhas, como um
gato inquieto, resmungando a respeito da danação dos
cristãos e de todos os infiéis. Depois, sentava numa grande
cadeira na torre do canto para motivar seus soldados,
fitando-os com seu olhar feroz. Eu trabalhava
exaustivamente em meu plano elétrico, mas era difícil obter
ajuda de Jericó, pois o Açougueiro, Smith e Phélippeaux lhe
mandavam constantes solicitações de armamento. No
combate aproximado nas muralhas, com pouco tempo para
recarregar bocas de fogo, o aço seria tão importante quanto a
pólvora.
O ferreiro exibia sinais do esforço excessivo. O rosto um
tanto querubínico se tornara mais seco, mais esticado, e os
olhos tinham se ensombrecido. Os canhões franceses
troavam vinte e quatro horas por dia, Jericó raramente via
sol, e ele estava intranquilo com minha crescente
proximidade de Miriam.
No entanto, era o tipo de homem que não sabia dizer não
nem permitir-se uma redução da qualidade. Trabalhava até
quando Miriam e eu, em cantos opostos do arsenal,
desabávamos num sono espasmódico e exaurido.
Por isso, foi o ferreiro a acordar-nos na escuridão anterior ao
amanhecer de 28 de março, quando se acelerou o rufar da
artilharia francesa, prenunciando o ataque iminente. Mesmo
nas profundezas do porão de Djezzar, as vigas do teto
tremeram com o bombardeio. A oscilação fez voarem
faíscas da forja.
"Os franceses estão testando as nossas defesas", conjecturei,
grogue de sono e cansaço. "Mantém a tua irmã aqui
embaixo. Ambos sois mais valiosos como ferreiros que como
alvos."
"E quanto a ti?"
"A minha corrente ainda não está pronta, mas vou ver como
poderíamos usá-la!"
Eram quatro da manhã, e as escadas e rampas estavam
alumiadas por tochas. Fui levado de roldão para cima, numa
onda de soldados turcos e de marujos e fuzileiros britânicos
que subiam as muralhas, cada um deles xingando em seu
respectivo idioma. No parapeito, o bombardeio era uma
sucessão constante de trovões, interrompida aqui e ali pelo
impacto de uma bala de canhão na muralha ou pelo sibilar
de outra que passava por cima. Nas linhas francesas, os
clarões assinalavam onde se instalara a artilharia deles.
Smith estava no parapeito, com um estranho sorriso nos
lábios, andando compassadamente atrás de um contingente
de fuzileiros navais britânicos. Phélippeaux corria como um
louco pelas muralhas, para cima e para baixo, dirigindo os
disparos dos canhões da cidade com uma confusa mistura de
francês, inglês, árabe e aflitos gestos de mão. Ao mesmo
tempo, lanternas de sinalização eram alçadas na torre do
meio para chamar apoio naval.
Perscrutei a escuridão, mas não enxerguei as tropas inimigas.
Peguei emprestado um mosquete e disparei para onde
imaginava que elas pudessem estar, na esperança de atrair
fogo que as denunciasse — mas os franceses eram
demasiado disciplinados para isso. Então, segui Phélippeaux
até a torre. Esta tremia como uma árvore que estivesse
sendo abatida.
Agora, nossos canhões começavam a disparar em resposta.
Seus clarões interrompiam o troar constante do fogo francês,
mas também proporcionavam aos artilheiros inimigos uma
referência de mira. As balas começaram a voar mais alto, e
então houve um estrondo quando uma delas passou
raspando por uma ameia e os fragmentos de rocha
resultantes se espalharam como estilhaços de granada. Um
canhão turco saiu da carreta e caiu pesadamente, e homens
cegados pela explosão berravam.
"Como posso ajudar?", perguntei a Phélippeaux, procurando
conter o tremor natural em minha voz. A coisa toda me
ferira os ouvidos. As muralhas e o fosso tendiam a ecoar e
amplificar os estrondos, e sentia-se o fedor acre e
intoxicante da pólvora queimada.
"Vai chamar Djezzar. Ele é o único homem a quem seus
soldados temem mais que Napoleão."
Fiquei grato pelo pretexto para correr de volta ao palácio, e
quase bati de encontro em Haim Farhi nos aposentos do
paxá.
"Precisamos de vosso senhor para ajudar a fortalecer o
ânimo dos soldados."
"Ele não pode ser incomodado. Está no harém."
Pelas calças de Casanova, o governante conseguia copular
num momento daqueles?! Mas então se abriu uma porta
numa escadaria que levava para cima, e apareceu o
Açougueiro, sem camisa, barbudo, os olhos brilhantes - uma
mescla de sátiro com o profeta Elias. Tinha duas pistolas
enfiadas na cinta e segurava um velho sabre prussiano. Um
escravo lhe trouxe uma malha de aço, enferrujada, e uma
camisa de feltro para ser usada por baixo. Antes que Djezzar
fechasse a porta atrás de si, eu ouvi a falação e o choro
agitados das mulheres.
"Phélippeaux precisa de vós", disse eu, sem necessidade.
"Agora os francos vão chegar perto o bastante para que eu os
mate", assegurou o paxá.
Quando voltamos para a torre, a luz pálida do amanhecer
recortava em silhueta o morrote que era o observatório de
Napoleão. Vi que navios britânicos tinham se movido mais
para perto da terra, na baía de Acre, mas que o fogo de seus
canhões não alcançava a coluna de assalto francesa. Agora,
eu distinguia lá embaixo uma massa humana em trincheiras
rasas, como uma centopeia grande e escura. Homens
carregavam escadas.
"Eles abriram uma brecha na torre, logo acima do fosso",
informou Phélippeaux. "Não é muito grande, mas, se os
franceses conseguirem entrar, os turcos fugirão em
debandada. Há muito falatório sobre o que aconteceu em
Jafa - os nossos otomanos estão angustiados demais para lutar
e apavorados demais para render-se."
Inclinei-me por sobre a muralha para olhar para o negrume
do fosso. Os franceses poderiam entrar nele até com
facilidade, mas conseguiriam sair? "Usai um barril de
pólvora", sugeri. "Ou meio barril, completando o resto com
prego e bala. Atirai isso neles quando tentarem tomar a
brecha."
O coronel monarquista sorriu de orelha a orelha. "Ah, mon
Américain sanguinaire!... Vossos instintos são de guerreiro!
Pois muito bem, iluminemos o caminho para o homem da
Córsega!"
"Napoleão!", bradou Djezzar, subindo para ficar de pé em
sua cadeira na torre, tão visível quanto uma bandeira
desfraldada. "Vem meter-te com este mameluco agora, vem!
Vou te foder como acabei de foder as minhas esposas!" Balas
sibilaram, miraculosamente sem atingi-lo. "É, vem me
abanar como fazem as minhas mulheres!"
Nós o puxamos à força para que descesse da cadeira. "Se
morrerdes, estará tudo perdido", repreendeu-o Phélippeaux.
"Eis o que eu penso da pontaria deles", disse o Açougueiro, e
cuspiu. A malha de aço balançava enquanto ele se
pavoneava de um lado para outro na torre, assegurando-se
de que seus soldados agüentariam firme. "Não penseis que
não estou de olho em vós!"
Assim que a paisagem ficou cinza-claro pela aproximação do
dia, vi quanto Bonaparte se mostrara apressado. Suas
trincheiras ainda eram rasas demais, e uma vintena de seus
homens já fora atingida. Diversos canhões franceses haviam
sido postos fora de ação na bateria do reservatório de água,
pois as fortificações de terra preparadas para eles eram
inadequadas, e o velho aqueduto ia sendo mascado por
nosso fogo, fazendo chover pedaços de alvenaria sobre as
tropas que se amontoavam ali. As escadas que elas traziam
pareciam ridiculamente curtas.
Não obstante, ouviu-se um grande urro, agitou-se a bandeira
tricolor, e os franceses arremeteram. Como sempre,
demonstravam élan.
Era a primeira vez que eu via do lado oposto a temerária
coragem deles, e foi um espetáculo assustador. Com
alarmante rapidez, a centopeia assaltou e engoliu o terreno
entre as trincheiras e o fosso. Os turcos e os fuzileiros
britânicos tentaram diminuir-lhes o ímpeto com seus
mosquetes, mas o hábil fogo francês de cobertura nos
obrigou a ficar de cabeça baixa. Acertamos só alguns. O
inimigo se derramou para o fundo do fosso. Suas escadas se
revelaram mesmo curtas demais (o trabalho francês de
reconhecimento fora feito às pressas), mas os mais
destemidos pularam para dentro do fosso e as ergueram e
seguraram para que seus camaradas descessem por elas.
Outros disparavam por sobre o fosso para a brecha que
tinham aberto, matando alguns de nossos defensores. As
tropas otomanas começaram a lamuriar-se.
"Silêncio! Estais parecendo as minhas mulheres!", esbravejou
Djezzar. "Quereis descobrir o que farei convosco se
fugirdes?"
Agora, a infantaria francesa colocava suas escadas do outro
lado do fosso. Chegavam no máximo a uma altura vários pés
abaixo da brecha - um indesculpável erro de cálculo. Esse
momento, em que os franceses se puxariam para cima, era
aquele em que eles poderiam agarrar-se a uma corrente
suspensa. Sem descarga elétrica, ela permitiria que
invadissem a cidade em torrente, e Acre teria o mesmo
destino que Jafa. Entretanto, se estivesse eletrificada...
Os turcos mais valentes se inclinaram sobre o parapeito para
disparar com as armas de fogo ou arremessar pedras para
baixo - mas, tão logo faziam isso, eram atingidos por
franceses do outro lado do fosso. Um homem berrou e
despencou lá para baixo. Eu mesmo usei um mosquete,
amaldiçoando sua falta de precisão.
Alguns otomanos começaram a largar as armas e fugir. Os
fuzileiros britânicos tentaram detê-los, mas aqueles haviam
entrado em pânico. Então, Djezzar desceu do alto da torre
para bloquear a saída deles, brandindo o sabre prussiano e
gritando. "Do que estais com medo? Olhai para eles! As
escadas que trouxeram são curtas demais! Eles não
conseguem entrar aqui!" Djezzar se inclinou por cima da
muralha, descarregou as duas pistolas e as entregou a um
turco. "Faz alguma coisa, velha medrosa - recarrega as
pistolas!"
Após esse corretivo, os otomanos voltaram a atirar. Por mais
que estivessem com medo dos temíveis franceses, eles
tinham pavor de Djezzar.
E, então, uma estrela de fogo caiu da torre.
Era o barril de pólvora que eu sugerira. Ele chegou ao chão,
quicou e explodiu.
Houve um estrondo e uma nuvem que irradiou lascas de
madeira e estilhaços de metal. Aquela aglomeração de
granadeiros oscilou abruptamente para lá e para cá, os mais
próximos despedaçados, outros gravemente feridos, outros
ainda atordoados pela explosão. Os homens de Djezzar
deram vivas e começaram a atirar para valer no
apinhamento de franceses, aumentando a devastação.
Assim, o assalto terminou antes mesmo de ter se iniciado.
Os franceses, com artilharia impossibilitada de atirar contra
alvos próximos demais das tropas de assalto, com escadas
curtas demais, com uma brecha pequena demais, com
oposição revigorada, haviam perdido o ímpeto. Napoleão
apostara na velocidade e não nos tediosos preparativos de
cerco - e perdera. Os atacantes deram meia-volta,
retornando aos trambolhões pelo caminho inverso.
"Vedes como eles correm?", gritou Djezzar para seus
homens.
E as tropas turcas começaram mesmo a bradar com
assombro. Os implacáveis francos estavam em retirada! Não
eram invencíveis afinal! E, a partir daquele momento, a
guarnição se viu tomada por renovada confiança, que lhes
serviria de esteio nas longas e sombrias semanas vindouras.
A torre se tornaria o fulcro não apenas de Acre, mas de todo
o Império Otomano.
Quando o sol enfim coroou os montes a leste e iluminou por
completo a cena, evidenciou-se a destruição: quase duzentos
soldados de Napoleão jaziam mortos ou feridos, e Djezzar se
negou a diminuir o fogo para que os franceses recolhessem
suas baixas que ainda viviam. Muitos morreriam ali, aos
berros, antes que os sobreviventes fossem finalmente
carregados para um lugar seguro na noite seguinte.
"Mostramos aos francos a hospitalidade de Acre!", tripudiou
o Açougueiro.
Phélippeaux ficou menos satisfeito. "Eu conheço o corso.
Aquilo foi apenas uma sondagem. Da próxima vez, ele virá
mais forte." Virou-se para mim. "É melhor que o vosso
pequeno experimento funcione."
O fracasso da primeira investida de Napoleão teve efeito
curioso sobre a guarnição. Os soldados otomanos
encorajaram-se com o fato de terem logrado repelir o
invasor. Pela primeira vez, cumpriam seus deveres com
determinação orgulhosa, e não mais com resignação fatalista.
Os francos podiam ser derrotados! Djezzar era invencível!
Alá atendera a nossas preces! Mas, em compensação, os
marinheiros e fuzileiros britânicos ficaram mais comedidos.
Uma longa sucessão de vitórias navais os tornara arrogantes
em face da possibilidade de enfrentar os franceses. Agora,
entretanto, davam-se conta da coragem dos soldados
inimigos. Bonaparte não se retirara. Ao contrário: suas
trincheiras de ataque estavam sendo cavadas mais
vigorosamente do que nunca. Os marítimos sentiam-se en-
curralados em terra. Os franceses usavam engodos para atrair
nosso fogo e desencavavam as balas de metal sólido que
nossos canhões lançavam, reutilizando-as contra nós.
Não ajudava que Djezzar estivesse convencido de que os
cristãos conspiravam contra ele, muito embora os franceses
que atacavam a cidade representassem uma religião que
abandonara o cristianismo. O Açougueiro colocou várias
dúzias de cristãos locais em sacos e os atirou ao mar, junto
com dois prisioneiros franceses. Nesse episódio, Smith e
Phélippeaux foram tão impotentes para deter o paxá quanto
Napoleão o fora para deter as tropas francesas no saque de
Jafa, mas muitos ingleses concluíram que aquele aliado era
um louco impossível de controlar.
A inquieta hostilidade de Djezzar não se limitava aos
seguidores da Cruz. O bei Salih, um mameluco do Cairo que
era velho arquiinimigo do paxá, fugira do Egito após a vitória
napoleónica e viera unir-se a Djezzar contra os franceses. O
paxá o acolheu calorosamente, deu-lhe uma chávena de café
envenenado e jogou o cadáver no mar meia hora após a
chegada do visitante.
Big Ned mandou seus camaradas depositarem a confiança
deles no "mágico" - eu. Ned garantia que os mesmos
artifícios que me permitiram derrotá-lo, um homem com o
dobro de meu tamanho, ajudariam-nos a triunfar sobre Na-
poleão. Assim, sob nossa direção, os marujos e fuzileiros
construíram dois toscos cabrestantes, um em cada lado da
torre. A corrente ficaria pendurada como uma grinalda
naquela fachada, tendo a elevação controlada pelos
cabrestantes. Em seguida, transferi minhas garrafas de
Leiden e minha manivela de fricção para um andar na
metade da torre, o da porta de saída de onde eu desafiara Big
Ned. As garrafas iriam se ligar a uma haste de cobre, que se
ligaria a uma corrente menor, que, por sua vez, também se
ligaria por gancho à corrente maior.
"Quando eles vierem, Ned, deves girar a manivela como
louco, sem parar."
"Chefe, eu vou acender esses francesotes como se eles
fossem fogueira de Halloween."
Miriam ajudou a montar o aparato; seus rápidos dedos eram
ideais para ligar as garrafas umas às outras. Será que os
antigos egípcios também tinham tal feitiçaria?
"Eu queria que o velho Ben estivesse aqui para ver o que
estou fazendo", comentei quando descansávamos na torre
num fim de tarde, com nossa feitiçaria metálica reluzindo a
luz débil que passava pelas seteiras.
"Quem é o velho Ben?", perguntou Miriam, num sussurro,
encostada em meu ombro enquanto estávamos sentados no
chão. Tal proximidade física já não parecia fora do comum,
embora eu sonhasse com mais.
"Benjamin Franklin, um sábio americano que ajudou a dar
início ao meu país. Era um maçom que sabia a respeito dos
templários, e alguns acham que Franklin tinha em mente as
idéias deles quando criou os Estados Unidos."
"Quais idéias?"
"Olha, eu não sei exatamente. Acho que a idéia de que um
país deve representar alguma coisa. Ter um propósito.
Acreditar em algo." "E no que acreditas, Ethan Gage?"
"É justamente a pergunta que Astiza costumava me fazer!
Será que todas as mulheres perguntam isso?... Bem, eu
acabei acreditando em Astiza - e, tão logo fiz isso, a perdi."
Miriam me olhou com tristeza. "Sentes falta dela, não?"
"Como certamente sentes falta do noivo que morreu na
guerra. Como Jericó sente falta da mulher; Big Ned, de Little
Tom; e Phélippeaux, da monarquia."
"Então, cá estamos nós, o nosso círculo de enlutados." Ela
ficou calada por um momento. Em seguida, disse: "Sabes no
que acredito, Ethan?" "Na Igreja?"
"Eu acredito no Outro que a Igreja representa." "Tu te
referes a Deus?"
"Quero dizer que, na loucura da vida, existe mais do que
apenas loucura. Eu acredito que, em todas as vidas, há raros
momentos em que percebemos aquele Outro que está em
toda a nossa volta. Durante a maior parte do tempo, ficamos
trancados, solitários e cegos no mundo, como as aves no
ovo. Mas, de vez em quando, conseguimos quebrar a casca
para dar uma espiada lá fora. Os abençoados têm muitos
desses momentos, e os ímpios não têm nenhum. Mas,
quando os temos - quando percebemos o que é
verdadeiramente real, muito mais real do que o pesadelo em
que vivemos -, tudo fica suportável. E eu acredito que, se
conseguirmos achar alguém que crê como nós, alguém que
forceja contra a casca que nos prende... Bem, aí os dois,
juntos, conseguirão quebrar a casca por inteiro. E isso é o
máximo a que podemos aspirar neste mundo."
Tremi por dentro. Seria a guerra monstruosa em que eu me
vira preso naquele último ano um sonho falso, uma casca
que me envolvia? Teriam os ingleses sabido como quebrar a
casca daquele ovo? "Não sei se já tive um único momento
assim. Isso me torna ímpio?"
"Os ímpios nunca reconhecerão sê-lo, nem mesmo para si
mesmos." A mão de Miriam apalpou meu queixo, com a
barba de vários dias. Seus olhos claros eram como o abismo
junto ao recife de Jafa. "Mas, quando este momento chegar,
precisarás aproveitá-lo, para deixar a luz entrar."
E então ela me beijou, desta vez um beijo pleno. Seu hálito
estava quente, e o corpo se comprimiu contra o meu. Os
seios se espremeram contra meu peito, e ela tremia.
Eu neste momento me apaixonei, não apenas por Miriam,
mas por todo o mundo. Será que isso parece insano? Pelo
mais fugaz dos momentos, senti-me ligado a todas as outras
almas atormentadas de nosso mundo louco, com um
estranho sentimento de comunhão que me encheu de pesar
e amor. Retribuí o beijo, agarrando-me a ela. Eu estava
finalmente esquecendo a dor de não ter Astiza, perdida
havia tanto.
"Guardei os teus anjos dourados, Ethan", murmurou Miriam,
puxando uma algibeira de veludo que trazia num cordão
entre os seios. "Aqui estão."
"Fica com eles. É um presente." Que utilidade teriam para
mim?
E então se ouviu um estrondo, cuspindo argamassa, e a torre
inteira estremeceu como se um gigante a sacudisse para que
fôssemos jogados para fora. Por uns instantes, temi que a
construção fosse desmoronar, mas aos poucos ela parou de
oscilar e acabou se assentando, com o piso ligeiramente
inclinado. Soaram clarins.
"Explodiram uma mina! Eles estão vindo!"
Era hora de testar a corrente.
- 14 -
Por uma portinhola, fui perscrutar a névoa de fumaça e
poeira. "Fica aqui", disse eu a Miriam. "Tentarei ver o que
está acontecendo." Em seguida, corri para o alto da torre.
Phélippeaux já estava lá, sem chapéu, inclinado sobre a beira
do parapeito e indiferente à sucessão de balas disparadas
pelos atiradores franceses.
"Os sapadores cavaram um túnel debaixo da torre e o
encheram de pólvora", contou-me. "Acho que erraram os
cálculos. O fosso virou entulho, mas mal se atingiu a base da
muralha - não vejo rachaduras até em cima." Ele se
impulsionou para voltar ao parapeito e me agarrou pelo
braço. "Aquela vossa diabrura está pronta?" Phélippeaux
apontou para fora. "Bonaparte está decidido."
Assim como antes, uma coluna de tropas vinha a passo
rápido junto ao aqueduto. Desta vez, porém, parecia tratar-
se de uma brigada inteira. As escadas eram agora mais
compridas, balançando enquanto os soldados avançavam. Eu
me inclinei para fora. Havia uma grande fenda na base da
torre e uma nova passarela de entulho no fosso.
"Juntai vossos melhores homens na brecha", disse eu a
Phélippeaux. "Vou deter os franceses com minha corrente.
Quando eles se aglomerarem, atirai neles com tudo o que
temos lá embaixo e aqui em cima." Voltei-me para Smith,
que estava ofegante após a rápida subida. "Sir Sidney,
preparai vossas bombas!"
Ele arfava. "Farei cair sobre eles o fogo de Zeus."
"Não hesiteis. Em algum momento, perderei força elétrica, e
eles quebrarão o meu aparato."
"Já os teremos liquidado até então."
Phélippeaux e eu saímos correndo escada abaixo, ele para a
brecha, eu para meu novo companheiro. "Agora, Ned,
agora! Vem para a nossa sala e gira a manivela com toda a
força de que for capaz! Eles já estão vindo, e a nossa bateria
de garrafas precisa estar totalmente carregada!"
"Tu baixas a corrente, chefe, e eu os faço soltar faísca."
Coloquei alguns fuzileiros em cada um dos cabrestantes,
mandando-os ficarem agachados até a hora de baixar a
corrente. Desde a explosão da mina, irrompera um duelo de
artilharia em larga escala, e o furor da batalha era de tirar o
fôlego. Disparavam-se canhões em toda a parte, obrigando-
nos a berrar por conta dos estrondos. Quando os projéteis
caíam na cidade, pedaços dos escombros eram atirados para
o ar. Às vezes se avistavam as balas da artilharia atravessarem
o céu acima de nós, e, quando elas acertavam, havia
estrépito e nuvens de poeira. Nossos próprios projéteis de
artilharia causavam grandes jorros de areia entre as posições
francesas, de quando em quando destruindo ou fazendo
tombar um canhão de campanha ou uma carroça de pólvora.
A vanguarda dos granadeiros franceses começava a correr,
carregando as escadas como lanças no rumo do fosso.
"Agora, agora!", bradei. "Baixai a corrente!" Em ambas as
extremidades, os fuzileiros começaram a soltar os cabos dos
cabrestantes. A corrente suspensa, parecendo uma
guirlanda, foi raspando e deslizando pela face da torre na
direção da base.
Quando chegou à brecha, eu os fiz parar, com a corrente
atravessada no buraco da torre, como se fosse um
improvável cordão para coibir a entrada. Os franceses
certamente pensaram que tínhamos enlouquecido.
Companhias inteiras deles estavam disparando salvas de
mosquete contra nossas cabeças, no alto da muralha, e
retribuíamos o cumprimento com metralha de canhão.
Metal rangia. Homens berravam ou abriam a boca num esgar
ao ser atingidos, e os parapeitos já ficavam escorregadios por
causa do sangue.
Djezzar apareceu, ainda usando a velha malha de aço tal qual
um sarraceno ensandecido, caminhando para lá e para cá, a
passos largos, entre seus soldados agachados ou estirados no
chão, alheio ao fogo inimigo. "Atirai, atirai! Eles se darão por
vencidos quando perceberem que não vamos fugir! A mina
não funcionou - vede, a torre continua de pé!"
Desci com toda pressa a escada da torre, até a sala onde
estavam meus companheiros. Ned, sem camisa e com o
tronco reluzindo de suor, acionava freneticamente a
manivela. O disco de vidro girava como uma roda de carroça
a galope, fazendo o aparato zumbir como colméia. "Pronto,
chefe!"
"Esperemos até eles chegarem à corrente."
"Eles vêm vindo", disse Miriam, espiando por uma seteira.
Correndo furiosamente, apesar do fogo arrasador que lhes
dizimava as fileiras, os granadeiros da dianteira (um deles
carregando o pendão tricolor) arremeteram-se através da
passarela de entulho que enchera pela metade o fosso e
começaram a subir com dificuldade para o buraco que a
mina abrira. Ouvi Phélippeaux gritar uma ordem, e seguiu-se
um estrondo quando nossos homens na base da torre
dispararam uma salva de mosquete e pistola. A vanguarda
dos atacantes oscilou para trás, e a bandeira caiu. Outros
atacantes passaram arduamente sobre esses corpos, atirando
para dentro da brecha, e a bandeira foi de novo levantada.
Escutei o baque já familiar de quando o chumbo atingia
carne, mais os grunhidos e berros de homens feridos.
"Está quase na hora, Ned."
"Eu pus todo o meu muque nestas garrafas", disse ele,
arfante. Os atacantes alcançaram minha guirlanda de ferro e
a agarraram. Longe de ser uma barreira, ela estava mais para
uma ajuda na escalada, à medida que os franceses esticavam
os braços para trás para alçar seus outros camaradas. Num
átimo, a corrente estava apinhada de soldados, como vespas
num fio de melaço.
"Vamos! Agora!", gritou Miriam.
"Reza a Franklin", murmurei. Empurrei uma chave de
madeira, que fez a haste de cobre da bateria ir de encontro à
pequena corrente que estava ligada à grande. Houve um
clarão e um estalo.
O efeito foi instantâneo - um berro, faíscas, e os granadeiros
voaram da corrente como se houvessem levado coices.
Alguns não conseguiram soltar-se, gritando enquanto
queimavam e depois pendendo tremulamente da corrente,
com os músculos geleificados. Senti o cheiro de sua carne.
Era pavoroso. Na mesma hora, instalou-se a confusão.
"Fogo!", gritou Phélippeaux lá de baixo. Mais disparos foram
feitos de nossa torre, e mais atacantes tombaram.
"Aquela corrente tem um calor esquisito!", bradavam os
granadeiros. Homens a tocavam com as baionetas e
retrocediam. Soldados tentavam levantá-la ou puxá-la e
caíam como bois atordoados.
O aparato ia funcionando, mas quanto tempo a carga elétrica
poderia se manter? Ned respirava ruidosa e dificultosamente.
Em algum momento, os atacantes perceberiam como a
corrente estava suspensa e a arrebentariam, mas agora
zanzavam sem saber o que fazer, mesmo com mais tropas
afluindo para o fosso atrás deles. À medida que se
aglomeravam, mais eram derrubados a tiros.
De súbito, notei uma ausência e olhei desesperadamente em
volta. "Onde está Miriam?"
"Foi levar pólvora para Phélippeaux lá embaixo", respondeu
Ned, sentindo o esforço.
"Não! Preciso dela aqui!" A brecha devia estar parecendo um
abatedouro. Corri para a porta. "Continua girando a
manivela!" Ele estremeceu. "Certo."
Dois andares abaixo, eu me vi no pleno furor da batalha.
Phélippeaux e seu bando de turcos e britânicos, de baionetas
caladas, apinhavam-se na base da torre, disparando e
esgrimindo pela brecha, enquanto os granadeiros franceses
tentavam passar por baixo ou por cima da corrente. Ambos
os lados já haviam arremessado granadas, e pelo menos
metade dos nossos estava morta ou ferida. Entre os
franceses, os mortos se empilhavam. De onde eu estava, a
brecha parecia uma caverna escancarada para todo o
exército francês, um medonho buraco de luz e fumaça.
Avistei Miriam bem lá na frente, onde ela tentava arrastar
um dos feridos para que não fosse liquidado pelas baionetas
francesas. "Miriam, preciso de ti lá em cima!"
Ela assentiu. O vestido estava rasgado e ensangüentado; o
cabelo, emaranhadíssimo; as mãos, rubras de sangue. Mais
tropas francesas chegaram impetuosamente, tocaram a
corrente, berraram e foram arremessadas para trás. Continua
girando, Ned, continua girando, pedi numa prece sussurrada.
Eu sabia que a carga elétrica iria se esgotar.
Phélippeaux dava golpes e mais golpes de espada. Atravessou
o peito de um tenente e talhou a cabeça de outro. "Malditos
republicanos!"
Uma pistola disparou, errando por pouco o rosto de
Phélippeaux. Ouviu-se um grito de mulher, e Miriam ia
sendo arrastada para longe de nós - um soldado rastejara por
baixo e a pegara pelas pernas. Ele começou a carregá-la de
volta consigo, como se pretendesse atirá-la em meu
dispositivo. Miriam fritaria!
"Ned, pára de girar a manivela!", berrei. "Puxa a haste de
cobre para que não encoste mais na corrente!" Mas não
havia como ele me ouvir. Arremeti atrás de Miriam.
Foi uma investida contra os franceses que tinham rastejado
por baixo da corrente. Peguei um mosquete caído e o brandi
com fúria, derrubando homens como se fossem pinos de
boliche, até que a arma se quebrou na parte mais estreita da
coronha. Por fim, segurei o captor de Miriam, e nós três nos
debatemos, com ela unhando os olhos do homem.
Tropeçamos nos escombros enquanto éramos agarrados por
mãos de ambos os lados em luta. Então, recebi um golpe, e
Miriam foi puxada de mim e atirada contra a corrente.
Preparei-me para o pior, na expectativa de que minha
bruxaria matasse quem eu amava.
Mas nada aconteceu. O metal se descarregara.
Houve uma grande aclamação, e os franceses se lançaram
para a frente. Cortaram a corrente nas pontas, e ela caiu.
Uma dúzia de homens a arrastou para longe, olhando-a à
cata da fonte daqueles misteriosos poderes.
Miriam caíra com a corrente. Tentei rastejar em meio ao
assalto dos granadeiros, mas fui simplesmente pisoteado.
Agarrei a bainha de seu vestido enquanto as botas
avançavam e tropeçavam em nós. Ouvi disparos, além de
gritos em pelo menos três línguas. Homens bufavam e
tombavam.
E então veio outro estrondo, desta vez ainda mais ruidoso
que a mina, pois não se limitara ao subsolo. Uma imensa
bomba, elaborada com barris de pólvora, fora enfim jogada
do alto da torre por Sidney Smith. Ela caiu sobre a massa de
franceses que haviam se juntado diante da corrente e
explodiu, com força redobrada pelo fosso e pela torre, que a
confinaram. Abracei-me ao entulho quando o mundo se
dissolveu em chamas e fumo. Braços, pernas e cabeças
voaram tal qual palha miúda e quebrada. Os homens que
antes nos pisoteavam se transformaram num escudo
sanguinolento, pois seus corpos caíram sobre nós como
vigas. Fiquei momentaneamente surdo.
E então mãos vieram nos arrastar para trás. Phélippeaux
estava dizendo alguma coisa, que eu não conseguia ouvir, e
apontando.
Mais uma vez, os franceses batiam em retirada, tendo
sofrido baixas muito mais pesadas que antes.
Eu me voltei, dando um grito que tampouco consegui ouvir.
"Miriam! Estás viva?"
Ela jazia ali, flácida e calada.
Eu a carreguei dos destroços para os jardins do paxá,
atravessando a torre. Meus ouvidos zumbiam, mas a audição
começava a melhorar. Lá atrás, Phélippeaux berrava ordens
a sapadores e operários para que iniciassem os reparos na
brecha. O ar do jardim estava fumarento. Cinzas caíam
como se tivessem passado por uma peneira.
Deitei minha colaboradora no banco junto a uma fonte e
levei o ouvido em seus lábios. Sim - um murmúrio de
trêmula respiração! Miriam estava inconsciente, não morta!
Molhei um lenço na água, que estava rósea de sangue, e
limpei aquele rosto - tão macio e tão liso por baixo da
fuligem! O frescor acabou por fazer que ela se recobrasse.
Piscou, tiritando um pouco, e então se ergueu,
abruptamente. "O que aconteceu?" Ela agora tremia.
"Funcionou. Eles se retiraram."
Miriam pôs os braços ao redor de meu pescoço e se agarrou
a mim. "É tão horrível, Ethan!"
"Talvez eles não voltem mais."
Ela balançou negativamente a cabeça. "Tu me disseste que
Bonaparte é implacável."
Eu sabia que, para derrotar Napoleão, seria necessário mais
do que uma corrente eletrificada. Miriam olhou para si
mesma. "Estou parecendo um açougueiro."
"Estás linda. Linda e coberta de sangue." Era verdade.
"Vamos entrar." Eu a ajudei a subir, e ela se recostou em
mim, cingindo meu ombro com o braço para apoiar-se. Eu
não sabia ao certo para onde levá-la, mas queria ficar longe
tanto de Jericó e sua forja quanto da muralha e seus
combates. Comecei a nos levar na direção da mesquita.
Nisto, apareceu Jericó, conduzido por um Ned aflito. "Meu
Deus, o que aconteceu?!", perguntou o ferreiro.
"Miriam foi apanhada na luta pela brecha. Ela se portou
como uma amazona."
"Eu estou bem, irmão."
O tom dele era acusador. "Disseste que ela viria apenas
ajudar na tua feitiçaria, e não participar."
Ela intercedeu. "Os homens precisavam de munição, Jericó."
"Eu poderia ter-te perdido."
E aí se fez silêncio, e houve a tensão entre dois homens que
queriam a mesma mulher por motivos diferentes. Ned ficou
de lado, mudo, constrangido, como se aquilo fosse culpa
dele.
"Pois bem, voltemos para a forja", disse Jericó, severo.
"Nenhuma bala de canhão poderá nos atingir lá." "Eu vou
com Ethan." "Vai? Aonde?"
Ambos olharam para mim, como se eu soubesse.
"Vamos", respondi, "para onde ela possa descansar. Tua forja
é tão barulhenta quanto uma fábrica, Jericó. E é abafada e
suja."
"Não te quero com ela." A voz do ferreiro era categórica.
"Estou com Ethan, irmão." O tom de Miriam era suave, mas
insistente.
E assim fomos, ela recostando-se em mim, o ferreiro lá no
jardim, frustrado, com os punhos fechando-se no nada.
Atrás de nós, a artilharia ressoava como tambores distantes.
Meu amigo Mohammad, em vez de partir de barco e nos
deixar para Napoleão, alojara-se no Khan el-Omdan (em
árabe, a Estalagem dos Pilares). Na empolgação do trabalho
na corrente, eu me esquecera dele; agora, entretanto, fui
procurá-lo. Eu pusera um capote em Miriam, mas, quando
aparecemos no cômodo de Mohammad, parecíamos dois
refugiados - cheirando a fumaça, sujos, andrajosos.
"Mohammad, precisamos de um lugar para descansar."
"Todos os quartos estão ocupados, efêndi!"
"Mas com certeza.
"Pagando um precinho, sempre se acha alguma coisa."
Dei um sorriso irônico. "Será que poderíamos dividir este
quarto contigo?"
Ele balançou negativamente a cabeça. "As paredes são finas,
e a água é pouca. Não é lugar para uma senhora. Vós, efêndi,
não mereceis coisa melhor - mas ela, sim. Dai-me o resto do
dinheiro que sir Sidney pagou pela medalha, mais o que
ganhaste no duelo." Mohammad estendeu a mão.
Hesitei.
"Vamos lá - sabeis que não pretendo vos lograr. Para que
serve o dinheiro se não o usamos?"
Assim, passei-lhe a bolsa, e Mohammad sumiu. Meia hora
depois, ele estava de volta, e minha bolsa, vazia. "Vinde. Um
mercador fugiu da cidade, e um jovem médico está usando a
casa dele para dormir, mas raramente aparece por lá. Ele me
alugou as chaves."
A casa estava às escuras, com os postigos fechados e a
mobília coberta e empurrada contra a parede. A fuga do
proprietário deixara um ar de desolação, e mal se podia dizer
que o médico estava aboletado ali. Era um cristão levantino,
de Tiro, chamado Zawani. Trocamos um aperto de mão, e
ele olhou para Miriam com curiosidade. "Usarei o dinheiro
para comprar bandagens e ervas medicinais." Estávamos a
uma distância suficiente das muralhas para que o som dos
canhões fosse abafado. "Há um banho lá em cima.
Descansai. Só volto amanhã." Era um homem bem-
apessoado, de olhos gentis, mas já encovados pela exaustão.
"Esta senhora precisa descansar..."
"Não é necessário explicar. Sou médico."
Fomos deixados a sós. O andar superior tinha um quarto de
banho, com abóbada de alvenaria branca, atravessada por
grossas vidraças coloridas, sobre uma pequena piscina. A luz
entrava em feixes multicoloridos, como um arco-íris
prismado. Havia lenha para aquecer a água, de modo que pus
as mãos à obra enquanto Miriam cochilava. O quarto estava
cheio de vapor quando a acordei. "Preparei um banho." Fiz
menção de sair, mas ela me deteve e nos despiu. Seus seios
eram pequenos, mas perfeitos, firmes, de mamilos rosados.
O ventre descia para pêlos claros. Era uma Madona, virginal,
e esfregou a nós dois para tirar o encardido do combate, até
que ela voltou a ter cor de alabastro.
O colchão do mercador chegava à altura de minha cintura,
numa cama rebuscadamente entalhada, com gaveteiro e
dossel. Miriam subiu primeiro e deitou de costas, de maneira
que eu pudesse vê-la à luz pálida. Não há espetáculo mais
lindo que uma mulher que nos quer. Sua doçura nos engolfa
como o abraço do mar cálido. A topografia do corpo de
Miriam era uma serra nevada, misteriosa e inexplorada. Será
que eu ainda me lembrava de como se fazia? Parecia já ter se
passado um milênio desde a última vez. Intrometeu-se então
uma estranha e súbita lembrança de Astiza - uma facada no
coração. Mas então Miriam disse:
"Este é um daqueles momentos de que te falei, Ethan".
E eu a possuí, vagarosa e delicadamente. Ela chorou na
primeira vez e se agarrou ardentemente a mim, gritando na
segunda. Eu também me agarrei a ela, tremendo e arfando
no final, com os olhos umedecendo quando pensei primeiro
em Astiza, depois em Napoleão, depois em Miriam e em
quanto tempo levaria para que os franceses voltassem, agora
tão furiosos quanto haviam se mostrado em Jafa. Se
conseguissem entrar em Acre, eles matariam a todos nós.
Virei a cabeça para que Miriam não visse lágrimas nem
preocupações, e adormecemos. Por volta de meia-noite,
acordei ao me sacudirem. Agarrei uma pistola, mas então vi
que era Mohammad.
"Mas que diabos?...", sussurrei de péssimo humor. "Será que
não se pode ter um mínimo de privacidade?"
Ele levou o dedo aos lábios e me fez sinal para que o
seguisse.
"Agora?"
Assentiu enfaticamente. Suspirando, desci da cama. O piso
estava gelado. Fui atrás dele até outro cômodo naquele
andar.
"O que fazes aqui?", resmunguei, segurando um cobertor em
volta de mim como se fosse uma toga. A cidade parecia
silenciosa, com os canhões descansando.
"Peço desculpas, efêndi, mas sir Sidney e Phélippeaux
disseram que a situação não podia esperar. Os franceses
usaram uma flecha para passar isto por sobre a muralha.
Vosso nome está escrito aqui."
"Flecha? Por Isaac Newton, em que século estamos?!"
Um pequeno pedaço de aniagem estava amarrado à flecha.
E, de fato, o nome do destinatário fora escrito com bela
caligrafia numa etiqueta: "Ethan Gage". Franklin teria
admirado aquela eficiência postal.
"Como é que eles sabem que estou aqui?"
"A corrente eletrificada é como um estandarte a anunciar
vossa presença. Imagino que a província inteira esteja
falando dela."
Deveras, mas o que nossos inimigos poderiam estar me
enviando que fosse tão pequeno?
Desembrulhei o que estava envolto na aniagem. Fiz que o
conteúdo rolasse para a palma de minha mão.
Era um anel de rubi, com a pedra do tamanho de uma
cereja. A ele fora amarrada uma mensagem que dizia apenas:
"Ela precisa dos anjos. Monge". Fiquei atordoado.
A última vez que eu vira aquela jóia, ela estava no dedo de
Astiza.
- 15 –
Mohammad me observava atentamente. "Esse anel significa
alguma coisa para vós?"
"É só isto? Não há outra mensagem?" Monge era
indiscutivelmente Gaspard Monge, o matemático francês
que eu reencontrara em Jafa.
"E vossa surpresa não é apenas do tamanho da pedra, é?",
insistiu Mohammad.
Eu me deixei sentar, pesadamente. "Conheci a mulher que
usava o anel." Astiza estava viva!
"E por qual razão, exatamente, o exército francês mandaria
assim o anel dela?"
É, por qual razão? Virei o anel nos dedos, recordando sua
origem. Apesar dos protestos de Astiza, que dizia que
aquelas riquezas estavam amaldiçoadas, eu insistira em que
ela o pegasse no tesouro subterrâneo que descobríramos sob
a Grande Pirâmide. Depois, nós nos esquecemos
brevemente dele, até que Astiza tentou escalar a corda do
balão desembestado de Conte para chegar à cesta, onde eu
estava. Naquele momento, um desesperado conde Silano se
agarrava aos calcanhares de Astiza. Ela lembrou a maldição e
rogou que eu lhe tirasse o anel do dedo, mas não consegui.
Por isso, em vez de arrastar-me para baixo até ficarmos ao
alcance dos soldados franceses, Astiza cortou a corda e
despencou com Silano, aos berros, no Nilo. O balão chispou
para cima de modo tão abrupto e violento que não vi como
os dois chegaram ao rio. As tropas francesas dispararam uma
salva de mosquete contra mim, e, quando enfim pude
perscrutar as águas cobertas pelos reflexos ofuscantes do sol,
não havia mais nada para ver. Era como se Astiza tivesse
sumido da face da Terra. Até esse momento em Acre.
E que anjos eram aqueles? Eram os dois serafins que
encontráramos. Eu teria de pegá-los de volta com Miriam.
"Querem que eu vá lá."
"Então é armadilha!", disse meu companheiro. "Eles temem
a vós e vossa magia elétrica."
"Não, não acho que seja armadilha." Eu não me convencia
da lisonjeira idéia de que me considerassem um inimigo tão
temível que precisariam atrair-me para fora das muralhas,
sob falso pretexto, apenas para que pudessem atirar em mim.
Eu desconfiava, isto sim, de que não tinham desistido de
nossa busca em comum pelo Livro de Tot. Se havia uma
maneira de tornarem a conseguir minha atenção, era a
perspectiva de rever Astiza. "Eles simplesmente sabem que
estou vivo, por causa da eletricidade, e descobriram alguma
coisa em que posso ser útil. O meu palpite é que isso diga
respeito ao que eu estava procurando em Jerusalém. E sabem
que a única coisa que me faria voltar para eles são notícias
dessa mulher."
"Efêndi, não é possível que estejais pensando em sair destas
muralhas!"
Olhei de relance para onde Miriam dormia. "Eu preciso."
Mohammad estava atônito. "Por causa de uma mulher?!
Tendes uma bem aqui!"
"Vou porque por aí há algo que está esperando para ser
redescoberto e porque a maneira pela qual esse algo será
usado influenciará os destinos do mundo para melhor ou
para pior." Eu me pus a pensar. "Quero ajudar os franceses a
achar o que procuramos - e depois furtar isso a eles. Para
tanto, preciso de ajuda, Mohammad. Uma vez que eu tenha
Astiza e o que buscamos, precisarei fugir pela Palestina.
Alguém com conhecimento local..."
Ele empalideceu. "Mal consegui escapar de Jafa, efêndi!
Enfiar-me agora entre os demônios francos..."
"...pode render-te parte do maior tesouro do mundo",
completei, sem emoção.
"Maior tesouro?"
"Nada está garantido, é claro."
Mohammad ponderou a questão. "E qual seria a minha
parte?"
"Bem, cinco por centro parece justo, não achas?"
"Para conduzir-vos pelos ermos da Palestina?! Um quinto,
no mínimo!"
"Pretendo solicitar também a ajuda de outrem. Sete por
cento é o máximo que tenho condições de oferecer."
Ele fez uma reverência. "Nesse caso, um décimo será
absolutamente razoável. Mais uma pequena gratificação se
obtivermos auxílio de meus primos, irmãos e tios. E as
despesas com cavalos e camelos. Comida. Armas de fogo.
Uma ninharia, se esse é mesmo o maior dos tesouros."
Suspirei. "Primeiro vamos ver se conseguimos chegar a
Monge sem levarmos nenhum tiro - está bem?"
Ao iniciarmos nosso urgente e animado planejamento,
havia, claro, uma questão pendente. Eu acabara de dormir
com a mulher mais doce que já conheci e estava
pretendendo pegar meus serafins e sair de fininho para
descobrir a verdade sobre Astiza sem dizer nenhuma palavra
à coitada. Senti-me um canalha, e não tinha a mínima idéia
de como explicar-me sem parecer canalha também. Não que
eu estivesse sendo desleal para com Miriam. É que eu estava
sendo leal à memória da primeira mulher e amava ambas, só
que de maneiras diferentes. Astiza se tornara a essência do
Egito, dos mistérios de antanho, uma beldade cuja busca pela
sabedoria antiga era agora também minha. Nós nos
conhecêramos quando ela ajudou na tentativa de me matar,
com o próprio Napoleão vindo a comandar a pequena
investida que a capturou. Depois, Astiza salvara minha vida
mais de uma vez e dera propósito à minha natureza vazia.
Não fôramos apenas amantes - nós nos transformamos em
parceiros numa busca e quase morremos na Grande
Pirâmide. Era perfeitamente compreensível sair procurando
por Astiza - o anel acendera memórias tal qual fogo num
rastilho —, mas estava um pouquinho embaraçoso explicar
isso a Miriam. As mulheres podem ficar ranzinzas com tais
coisas. Assim, eu sairia para descobrir o significado do anel
de Astiza, resgatá-la e então...
E então o quê? Bem, é mesmo formidável como essas coisas
se resolvem, garantira-me Sidney Smith. "É tão cômodo
sermos criaturas racionais, pois isso possibilita que façamos
tudo o que de antemão já pretendíamos fazer", dissera
Benjamin Franklin. O velho Ben freqüentava bastante as
senhoras, enquanto a esposa se afligia lá na Filadélfia.
"Devemos acordar vossa amiga?", perguntou Mohammad.
"Ah, não."
Quando pedi a Big Ned que nos acompanhasse, ele se
mostrou tão difícil de convencer quanto um cão cujo dono
chamasse para passear. Ned era um desses homens que não
conhecem meio-termo - era ou o meu mais implacável dos
inimigos, ou o meu mais fiel dos servidores. Convencera-se
de que eu não só era um feiticeiro de raro poder, mas
também estava apenas esperando o momento certo para sair
distribuindo a riqueza de Salomão.
Jericó, ao contrário, desistira havia muito de todas as idéias
de tesouro. Ficou interessado quando o acordei para explicar
que o anel de rubi pertencera a Astiza, mas esse interesse era
só porque aquela mudança de rumo talvez me mantivesse
longe da irmã.
"Portanto cuida de Miriam enquanto eu estiver fora",
ordenei, procurando assim enganar a consciência. Ele
pareceu tão satisfeito que, por um momento, fiquei
imaginando se não teria sido ele a enviar-me o anel.
Mas então Jericó piscou e balançou negativamente a cabeça.
"Não posso deixar-te ir sozinho."
"Não estarei sozinho - Mohammad e Ned virão comigo."
"Um pagão e um pateta? Será uma disputa para ver qual dos
três causará um desastre primeiro. Não, precisas de alguém
sensato."
"E esse alguém será Astiza, se estiver viva. Smith,
Phélippeaux e o resto da guarnição precisam mais de ti do
que eu, Jericó. Defende a cidade e Miriam, que eu ainda te
darei uma parte quando acharmos o tesouro." Não se pode
tentar um homem com a riqueza e depois deixar de fazer
que ele anseie por essa perspectiva, ainda que dúbia.
Ele olhou para mim com um respeito que antes não tinha.
"Atravessar as linhas francesas é coisa arriscada. Talvez
tenhas mesmo estofo, Ethan Gage."
"Tua irmã também pensa assim." E, antes que pudéssemos
nos estranhar por causa daquele assunto, parti com
Mohammad e Ned. Seríamos pegos no fogo cruzado se
simplesmente saíssemos andando das muralhas, e por isso
fomos no barco em que Mohammad fugira de Jafa. Acre não
era mais que uma silhueta escura contra as estrelas, para que
os franceses tivessem tão poucos alvos quanto possível; já a
incandescência das fogueiras inimigas produzia uma aurora
atrás das trincheiras. A fosforescência na esteira do barco era
prateada. Descemos na praia de areia atrás do semicírculo
das linhas francesas e nos esgueiramos para o acampamento
deles pela retaguarda, cruzando os sulcos de carroça e as
lavouras pisoteadas que a guerra produz.
É mais fácil do que se poderia imaginar ir adentrando a pé
num exército pela retaguarda, que é o lugar dos carroceiros,
vivandeiros e outros paisanos e de todos os soldados que se
fazem de doentes e não estão lá muito acostumados com o
sacar das armas. Mandei meus companheiros esperarem
numa moita à beira de um riacho de águas tépidas e segui a
passos largos e ritmados, com o ar de superioridade dos
savants, esses homens que têm opiniões sobre tudo e não
têm realizações em nada. "Trago mensagem para Gaspard
Monge de seus colegas acadêmicos no Cairo", disse eu a uma
sentinela.
"Ele está ajudando no hospital." O soldado apontou para lá.
"Visitai-o por vossa conta e risco."
Será que já havíamos ferido tantos franceses assim? O céu
começava a clarear para leste quando achei as tendas do
hospital, costuradas umas às outras como uma imensa lona
de circo. Monge estava dormindo num catre e parecia ele
próprio doente, um cientista e aventureiro de meia-idade
que a expedição ia transformando em idoso. Estava pálido,
apesar do sol, e mais magro, encovado pela enfermidade.
Hesitei em acordá-lo.
Olhei rapidamente em volta. Soldados, gemendo baixinho,
jaziam em fileiras paralelas que sumiam na penumbra. Eles
pareciam estar ali em número excessivo para as baixas que
infligíramos. Inclinei-me para olhar um deles, que tremia
espasmodicamente, e recuei, assustado: havia pústulas no
rosto e, quando levantei-o lençol, um inchaço funesto na
virilha.
A peste.
Retrocedi às pressas, suando. Já corriam rumores de que a
coisa vinha se agravando, mas a confirmação despertou um
pavor secular. As doenças são a sombra dos exércitos, e a
peste é a subalterna dos cercos, raramente estando limitada a
só um dos lados em conflito. E se agora ela atravessasse as
muralhas?
Por outro lado, a doença impunha a Napoleão prazos
apertados. Ele precisava vencer antes que a peste lhe
dizimasse o exército. Não admirava que houvesse atacado
tão impetuosamente.
"És tu, Ethan?"
Eu me voltei. Monge estava se erguendo o suficiente para
sentar, desgrenhado e exausto, piscando. Tal qual já ocorrera
antes, seu rosto me lembrou um cão velho e sábio. "Venho
mais uma vez consultar-te, Gaspard."
Ele sorriu. "Primeiro pensamos que tinhas morrido, depois
imaginamos que fosses o eletricista louco de Acre, e agora te
materializas ao meu chamado. Talvez sejas mesmo um mago
- ou o homem mais confuso de ambos os exércitos, sem
nunca saber de que lado está."
"Eu estava bem contente do outro lado, Gaspard."
"Com um paxá tirânico, um inglês lunático e um
monarquista francês invejoso? Bobagem! Não acredito. És
mais racional do que demonstras ser."
"Phélippeaux diz que, na escola, o invejoso era Bonaparte,
não ele."
"Phélippeaux está do lado errado da história, assim como
todos os homens que se encontram atrás daquelas muralhas.
A revolução vai refazendo o homem após séculos de
superstição e tirania. O racionalismo sempre triunfará sobre
a superstição. Nosso exército carreia a liberdade."
"Junto com a guilhotina, os massacres e a peste."
Monge franziu o cenho para mim, decepcionado com
minha intransigência. Depois, os cantos de sua boca se
contraíram, e, por fim, ele riu. "Belos filósofos somos nós,
aqui no fim do mundo!"
"O centro do mundo, diriam os judeus."
"É. Todo exército acaba marchando pela Palestina, a
encruzilhada de três continentes."
"Gaspard, onde conseguiste este anel?" Estendi a jóia, cuja
pedra parecia uma bolha de sangue à luz pálida. "Astiza o
usava quando a vi pela última vez, caindo no Nilo."
"Bonaparte ordenou que se enviasse aquela mensagem na
flecha."
"Mas por quê?"
"Bem, para começo de conversa, Astiza não morreu." Meu
coração disparou. "E como ela está?"
"Não a vi, mas tive notícias. Esteve em coma, sob os
cuidados do conde Silano, por um mês. Disseram-me que
Astiza se recuperou melhor do que ele. Desconfio que
Silano bateu na água primeiro, com Astiza por cima, de
modo que sentiu o grosso do impacto e atenuou a queda
dela. Ele quebrou o quadril e mancará pelo resto da vida."
As batidas de meu coração eram como tambores em meus
ouvidos. Ah, saber que...
"Agora Astiza se desvela por ele", continuou Monge.
Aquilo foi uma bofetada. "Só podes estar brincando."
"O que eu quero dizer é que ela cuida do conde. Astiza não
desistiu dessa curiosa busca em que todos vós pareceis estar.
Os dois ficaram furiosos ao saber que foste condenado em
Jafa - aquilo foi obra do palhaço do Najac; não sei por que
Napoleão não quis me escutar - e horrorizados com a notícia
de que te executaram. Tu sabes algo de que eles precisam...
Depois correram os boatos de que não morreras, e ela
enviou o anel. Vimos o teu truque com a eletricidade. Astiza
me instruiu a perguntar por uns anjos. Sabes a que ela se
refere?"
Mais uma vez, eu sentia os serafins comprimidos contra a
pele. "Talvez. Eu preciso vê-la."
"Astiza não está aqui. Ela e Silano foram para o monte
Nebo." "Monte o quê?"
"A leste de Jerusalém, do outro lado do Jordão. Lá onde
Moisés enfim avistou a Terra Prometida e onde ele morreu
antes de poder adentrá-la. Agora, Ethan Gage, por que eles
estão assim tão interessados em Moisés?" Monge me
observava atentamente.
Ah, então ele, e provavelmente Bonaparte, não estavam à
par de tudo. O que Silano e Astiza estariam tramando? "Nem
faço idéia", menti.
"E o que sabes desses teus anjos que deixa Astiza e Silano tão
ansiosos por achar-te quanto tu por achá-los?"
"Disso faço menos idéia ainda", respondi, com sinceridade.
"Vieste sozinho?"
"Tenho comigo alguns amigos, que me aguardam em lugar
seguro."
"Não há lugar seguro na Palestina - esta é uma terra
pestilenta. Nosso amigo Conte concebeu complexos
carroções para trazer mais artilharia de sítio do Egito - já que
os pérfidos britânicos capturaram nossos canhões no mar -,
mas tem sido um combate contínuo para fazê-los chegar
aqui. Essa gente não sabe reconhecer que perdeu."
Monge se referia aos combatentes muçulmanos que
fustigavam as linhas de suprimento de Napoleão. Se este
estava esperando canhões pesados, o tempo era curto. "O
que acontece no monte Nebo?"
Monge deu de ombros. "Se te confidenciasses com teus
colegas savants, Gage, talvez pudéssemos determinar teu
futuro com mais exatidão. Mas vais pelo que te dá na telha e
acabas metido em confusão. É como aquela busca inútil por
conta do triângulo de Pascal que estava inscrito no teu
medalhão - aliás, tu afinal te livraste desse brinquedo velho?"
"Ah, sim." Monge se convencera de que meu medalhão do
Egito era uma fraude moderna. Astiza, quando Monge não
podia ouvi-la, chamara-o de tolo. Ele não era tolo, mas
carregava o ônus das certezas que vêm com o excesso de
instrução (a correlação entre escolaridade e bom senso é
extremamente limitada). "Não tenho nada para confidenciar.
Eu estava simplesmente realizando experimentos com
eletricidade quando mandaste este anel por cima das
muralhas."
"Experimentos que mataram os meus homens."
A voz me fez ter um sobressalto. Era Bonaparte, saindo das
sombras! Ele parecia estar em toda a parte, o tempo inteiro.
Será que não dormia? Estava amarelo, agitado, e seus olhos
cinzentos se impunham friamente, tal qual fazia a tantos
homens - como um cavaleiro a seu corcel. Fiquei
novamente admirado com sua habilidade para parecer maior
do que era e com a maneira pela qual transmitia a sensação
de sedutora energia. "Monge está certo, Gage: o teu lugar é
do lado da ciência e da razão - o lado da revolução."
Precisei lembrar a mim mesmo de que nós dois éramos
inimigos. "Tentareis me fuzilar outra vez?"
"Era isso o que o meu exército tentava fazer ontem, não?",
disse ele, com suavidade. "E tu e a tua feitiçaria elétrica
ajudaram para que levassem a melhor sobre nós."
"Depois que, seguindo as recomendações do louco do Najac,
procurastes me fuzilar ou afogar em jafa. Lá estava eu,
encarando a eternidade, e, quando olho para cima, vos vejo
a ler romances baratos!"
"Os meus romances não são baratos, e tenho interesse não
só pela ciência, mas também pela literatura. Acaso sabias que
escrevi ficção quando era mocinho? Eu sonhava em vê-la
publicada."
Fiquei curioso, contra a vontade. "Histórias de amor ou de
guerra?"
"De guerra, é claro - e de passionalidade. Uma das minhas
favoritas se chamava O profeta mascarado. Era sobre um
fanático muçulmano do século viu que se acha o Mádi e vai
à guerra contra o califa. O cenário é profético, não?"
"E o que acontece?"
"Os sonhos do herói são fadados ao fracasso depois que ele
perde a visão em batalha. Todavia, para manter em segredo
essa desgraça, esconde o rosto com uma máscara de prata
reluzente. Ele diz a seus homens que precisa cobrir o rosto
para que a radiância do Mádi não cegue aqueles que o
contemplem. Acreditam nele. Mas o herói não tem como
vencer, e a soberba não deixa que ele se renda. Assim,
ordena aos seguidores que cavem uma gigantesca vala para
destruir a investida inimiga. Depois, convida-os a um
banquete e envenena a todos. Ele então arrasta os corpos
para a vala, põe fogo aos cadáveres e lança-se também às
chamas. Melodramático, eu reconheço. A morbidez da
adolescência."
Era essa a imaginação que agora atuava na Terra Santa? "Que
mal vos pergunte, o que pretendíeis dizer com essa
história?"
"'Vede os extremos a que a obsessão pela fama pode levar
um homem!...', era esse o desfecho." Ele sorriu.
"Profético também."
"Achas que a história era autobiográfica? Só que não sou
cego, Ethan Gage. De fato, fui amaldiçoado com a
capacidade de enxergar bem demais. E uma coisa que estou
vendo é que agora estás no teu devido lugar, do lado da
ciência que nunca devias ter abandonado. Tu te julgas
diferente do conde Silano, mas os dois buscam o
conhecimento - nesse sentido, sois, portanto idênticos. O
mesmo vale para a mulher pela qual sois ambos atraídos,
tendo os três uma curiosidade de gato. Eu poderia mandar
fuzilar-te, mas é mais saboroso deixar que os três resolvam
vosso mistério, não achas?"
Suspirei. "Pelo menos pareceis mais afável que da última vez
que nos encontramos, general."
"Estou agora com uma visão mais clara do rumo que devo
tomar, o que sempre acalma nossos ânimos. Não desisti de
persuadir-te, americano. Ainda tenho esperanças de que
reconstruamos o mundo para melhor."
"Melhor como a matança de Jafa?"
"Momentos de crueldade podem salvar milhões, Gage. Se
deixei claro para os otomanos os riscos que a resistência
acarreta, foi para que esta guerra acabasse rápido. Não
fossem fanáticos como Smith e Phélippeaux - um traidor da
própria pátria -, eles já teriam se rendido, e nenhum sangue
teria sido derramado. Não te deixes encurralar em Acre pela
insensatez desses homens. Vai, descobre o que puder com
Silano e Astiza e toma uma decisão de cientista acerca do
que fazer com isso. Lembra-te: sou membro do Institut de
France. Eu irei me sujeitar aos ditames da ciência - não é
verdade, doutor Monge?"
O matemático deu um leve sorriso. "Ninguém fez mais do
que tu, Napoleão, para unir a ciência à política e à tecnologia
militar."
"E ninguém trabalhou mais pela França do que o nosso
doutor Monge, a quem eu mesmo tenho servido de
enfermeiro nas doenças que lhe sobrevêm. O doutor Monge
é inquebrantável! Aprende com ele, Gage!... Agora, dado o
teu estranho histórico, haverás de entender que preciso
designar uma escolta para acompanhar-te. Creio que tendes
interesse em ficar de olho um no outro."
E das sombras surgiu Pierre Najac, parecendo tão
desalinhado e homicida quanto da última vez em que nos
víramos. "Só podeis estar brincando."
"Muito pelo contrário - guardar-te é o castigo dele por não
ter lidado mais inteligentemente contigo antes", disse
Bonaparte. "É ou não é, Pierre?" "Eu o levarei até Silano",
resmungou o homem.
Eu não me esquecera das queimaduras e sovas. "Esse
torturador não passa de um ladrão. Não preciso que ele me
escolte."
"Mas eu preciso", retrucou Napoleão. "Estou cansado de ver-
te zanzando em todas as direções. Ou vais com Najac, ou
não vais de jeito nenhum. Ele é tua passagem para aquela
mulher, Gage."
Najac cuspiu. "Não te preocupes. Depois que acharmos o
que quer que estejamos procurando, terás sua chance de
matar-me - assim como terei a minha de acabar contigo."
Olhei para o que Najac estava carregando. "Com o meu fuzil,
não terás, não."
Napoleão estava confuso. "Teu fuzil?"
"Eu ajudei a fazê-lo em Jerusalém, e então esse bandido o
roubou." "Eu te desarmei - eras meu prisioneiro!" "E agora
sou teu aliado, quer eu goste, quer não. Devolve." "Pode
esquecer!"
"Não vou ajudar se não devolveres."
Bonaparte parecia estar se divertindo com aquilo. "Vais, sim,
Gage. Tu o farás pela mulher - e o farás também porque não
consegues desistir desse mistério, tanto quanto não
conseguirias desistir de um joguinho de cartas promissor.
Najac te capturou, e ele está certo - teu fuzil é presa de
guerra."
"A arma nem é tão boa", acrescentou o biltre. "Atira tal qual
um bacamarte." "A precisão de uma arma depende do
homem que a usa", repliquei. Eu sabia que o fuzil atirava
bem como o diabo. "O que achaste da luneta?" "Uma idéia
estúpida. Eu a removi."
"Eu a ganhei de presente. Se estamos procurando um
tesouro, eu preciso de luneta."
"É justo", arbitrou Napoleão. "Dá a luneta a ele." Najac
obedeceu, de má vontade.
"E a minha machadinha." Eu sabia que ele certamente estaria
com ela. "É perigoso deixar o americano armado", avisou
Najac. "A machadinha não é arma, é ferramenta."
"Entrega a ele, Pierre. Se não consegues controlar o
americano com uma dúzia de homens, quando tudo o que
ele tem é uma machadinha, então talvez eu deva mandar-te
de volta para o trabalho de polícia."
O homem fez careta, mas entregou a machadinha. "Isso aí é
instrumento de selvagens, não de savants. Pareces um
campônio carregando tal coisa por aí."
Avaliei o peso gratificante da machadinha. "E tu pareces um
ladrão brandindo o meu fuzil."
"Tão logo descubramos esse maldito segredo, Gage, nós dois
vamos mesmo acertar as contas de uma vez por todas."
"Deveras." Meu fuzil já estava arranhado e marcado (Najac
tinha com as armas o mesmo desleixo que com as roupas),
mas ainda parecia tão grácil e liso quanto uma perna de
donzela. Eu ansiava por ele. "Faze-me um favor, Najac:
escolta-me de uma distância da qual eu não precise sentir o
teu fedor."
"Garanto que o farei de uma distância muito boa para o
fuzil."
"As alianças raramente são tranqüilas", gracejou Bonaparte.
"Mas, agora, Najac tem o fuzil, e Gage, a luneta - podeis
mirar juntos!"
A brincadeira irritante me fez querer embaraçar o general.
"E imagino que desejais que eu me apresse?" Fiz um gesto
em direção aos enfermos.
"Apressar-te?"
"A peste. Ela deve estar deixando vossas tropas em pânico."
Mas eu nunca conseguiria vexá-lo. "A doença os faz sentir a
urgência. Então, sim, apressa-te. Mas não te preocupes
demasiadamente com os prazos de minha campanha. Estão
em ação coisas maiores do que conheces. Tua busca diz
respeito não só à Síria, mas à Europa. A França me aguarda."
- 16 -
Eu presumira que viajaríamos direto para o monte Nebo
com o bando de degoladores de Najac, mas ele riu quando
mencionei isso. "Teríamos de cortar caminho pelo exército
otomano!"
Desde que Napoleão invadira a Palestina, a Sublime Porta
vinha reunindo tropas para deter os franceses. A Galiléia,
informou-me Najac, pululava de cavalaria turca e mameluca.
A libertação trazida pelos franceses não estava sendo
recebida com mais entusiasmo na Terra Santa do que o fora
no Egito. Agora, o general Jean-Baptiste Kléber, que
desembarcara com Bonaparte na praia em Alexandria quase
um ano antes, levaria sua divisão para varrer esses
muçulmanos. Meus companheiros e eu acompanharíamos as
tropas de Kléber para leste, até o rio Jordão (que corre no
sentido sul, do mar da Galileia para o mar Morto). Em
seguida, iríamos para o sul por conta própria, acompanhando
o legendário Jordão até que ele passasse junto ao sopé do
monte Nebo.
Mohammad e Ned não ficaram satisfeitos por ter de viajar
com os franceses. Kléber era um comandante popular, mas
também podia mostrar-se irascível e impulsivo. Porém, não
tínhamos opção. Os otomanos estavam diretamente em
nossa rota e sem nenhuma vontade de diferenciar entre um
e outro grupo de europeus. Dependeríamos de Kléber para
abrir caminho na marra.
"O monte Nebo?!", exclamou Mohammad. "Aquilo é para
cabras e fantasmas!"
"Acho que para tesouros também", disse Ned, com argúcia.
"Por que mais o nosso mágico iria se alistar com os franceses
outra vez? E então, chefe - vamos atrás das riquezas de
Moisés?"
Para um palerma, ele estava adivinhando as coisas certo
demais. "Trata-se de um encontro de estudiosos da
Antiguidade", respondi. "Uma mulher que conheci no Egito
está viva e me espera lá. Ela irá me ajudar a solucionar o
mistério que tentamos desvendar nos túneis de Jerusalém."
"É, mas eu soube que já tens outro brinquedo bonito", disse
Ned.
Lancei um olhar de desagrado a Mohammad, que deu de
ombros. "O fuzileiro queria saber o que ocasionou a nossa
expedição, efêndi."
Tirei o anel do bolso. "Então ficai sabendo que isto dá azar.
Veio da tumba de um faraó, e esse tipo de despojo é sempre
amaldiçoado."
"Amaldiçoado?!", admirou-se Ned. "Isso aí equivale aos
soldos de uma vida inteira!"
"Mas não me viste usando o anel, viste?"
"É, não combina com a tua tez", concordou Ned.
"Espalhafatoso demais."
"Pois bem, marcharemos com os franceses até que possamos
fugir. Provavelmente estaremos em um ou dois arranca-
rabos. Ainda estais dispostos?"
"Entrar em briga sem nenhum ferro e nenhum pau-de-fogo,
só com esse teu machado de cortar lingüiça...", comentou
Ned. "E escolhes mesmo muito mal as escoltas, chefe. Esse
tal de Najac tem jeito de quem cozinharia os próprios filhos
se lhe pagassem uma pataca pelo ensopado... Mesmo assim,
estou gostando de estar do lado de fora das muralhas. Lá eu
me sentia preso."
"E agora conhecereis a verdadeira Palestina", garantiu
Mohammad. "O mundo inteiro quer possuí-la."
Pelo que eu podia ver, era justamente esse o problema.
Éramos aliados dos franceses? Ou seus prisioneiros? Exceção
feita à minha machadinha, estávamos desarmados. Não
tínhamos liberdade de movimentos, estando guardados
tanto pelo bando de Najac quanto pelos batedores de Kléber.
Mas este nos mandou uma garrafa de vinho e seus
cumprimentos, e nos deram boas montarias e nos trataram
como convidados da expedição, deixando-nos cavalgar à
frente da coluna para escapar à poeira mais densa. Éramos
como cães caros mantidos na coleira.
Ned e Najac não gostaram um do outro logo de cara. O
fuzileiro se lembrava da emboscada que resultara na morte
de Tentwhistle, e o francês se ressabiava com a força do
gigante. Quando o patife se aproximava de nós, sempre abria
bem o casaco, para mostrar as duas pistolas enfiadas na faixa
de cintura, alertando-nos de que não estava para
brincadeiras. Já Ned bradou que não via uma rã tão feia
desde que topara com certa perereca mutante no tanque
atrás do bordel mais sujo e vagabundo da base naval de
Portsmouth.
"Se o teu cérebro tivesse a metade do tamanho do teu
muque, eu talvez me interessasse pelo que tens a dizer",
respondeu Najac.
"E, se o teu pinto tivesse pelo menos metade do tamanho
dessa tua língua solta, não precisarias ficar procurando tanto
por ele toda vez que baixas as calças", rebateu Ned.
Apesar das altercações, eu também estava gostando de
termos podido sair de Acre. A Terra Santa desperta uma
paixão incomum. No norte, é bem irrigada e ostenta o verde
da primavera. O trigo e a cevada crescem como capim, e as
papoulas e mostardeiras acrescentavam a isso largas
pinceladas de vermelho e amarelo. Havia ainda o arroxeado
do linho, o dourado dos crisântemos em buquês naturais de
caules entrelaçados, o branco dos lírios. Seria aquele o
jardim de Deus? Longe do mar, o céu tinha o azul do manto
da Virgem, e a luz realçava a mica e o quartzo como se estes
fossem minúsculas jóias.
"Vede, uma escrevedeira-amarela", disse Mohammad. "Esse
pássaro é sinal de que o verão está chegando."
A divisão de Kléber era uma cobra azul a serpear pelo Éden,
com a bandeira tricolor anunciando nosso fantástico
irromper no Império Otomano. Os rebanhos de ovelhas se
abriam como um mar para que passássemos. Peças de
artilharia ligeira sacolejavam ao sol, e seu bronze parecia
piscar como se transmitisse alguma mensagem militar.
Carroções cobertos de lona branca moviam-se a balançar.
Em algum lugar a nordeste, ficava Damasco; e, ao sul,
Jerusalém. Os soldados estavam animados, satisfeitos em
escapar do tedioso trabalho de cerco, e a divisão dispunha de
dinheiro suficiente (apresado em Jafa) para comer bem e não
precisar saquear pelo caminho. Ao final do segundo dia,
subimos uma derradeira serra, e avistei o mar da Galiléia,
uma sopa azul numa imensa tigela verde e castanha, lá
longe, lá embaixo. Era um vasto lago, enevoado e sagrado,
abaixo do nível do mar. Não descemos. Em vez disso,
seguimos por espinhaços para o sul, rumo a célebre Nazaré.
O lar do Salvador é um lugar poeirento e desanimado. A rua
principal é uma trilha de carroças, sem pavimentação, onde
o tráfego consiste, sobretudo, de cabras. Uma mesquita e um
mosteiro franciscano ficam bem de frente um para o outro,
como se vigiassem um ao outro. Pegamos água no poço de
Maria e visitamos a igreja da Anunciação, uma gruta
ortodoxa com o tipo de quinquilharia que provoca
indigestão nos protestantes. Em seguida, marchamos
novamente para o sul, até o rico e indolente Vale de Jezreel,
celeiro da antiga Israel e via de passagem para exércitos
durante três mil anos. O gado pastava em morrotes cobertos
de capim que outrora eram grandes fortalezas. Carroças
seguiam com estrépito por estradas que as legiões romanas
haviam percorrido. Meus companheiros se impacientavam
com aquele sinuoso trajeto militar, mas eu sabia que estava
vivenciando o que poucos americanos podem ter esperanças
de um dia ver - a Terra Santa! Ali, segundo a opinião geral,
os homens se aproximavam de Deus. Apesar do ateísmo
oficial da revolução, alguns dos soldados faziam o sinal-da-
cruz ou murmuravam preces nos lugares santos. Entretanto,
quando a noite caía, eles afiavam as baionetas, com um
ruído tão familiar quanto o de grilos quando íamos dormir.
Por mais ansioso que estivesse em ver Astiza, eu também
me sentia apreensivo. Afinal, não conseguira salvá-la. Ela
estava mais uma vez enredada com o ocultista Silano.
Minhas alianças políticas eram agora mais confusas do que
nunca, e Miriam me esperava em Acre. Ensaiei o que dizer a
todo mundo, mas as falas soavam banais.
Entrementes, Mohammad avisava que aqueles três mil
soldados de Kléber não seriam suficientes. "Em todas as
aldeias, correm rumores de que os turcos estão se
concentrando contra nós, com mais homens do que o
número de estrelas no céu. Há as tropas de Damasco e
Constantinopla, os mamelucos sobreviventes do bei Ibrahim
e os combatentes dos montes da Samaria. Os xiitas estão se
unindo aos sunitas. Chegam mercenários de toda a parte,
desde o Marrocos até a Armênia. É loucura ficarmos com
estes franceses — eles estão condenados."
Gesticulei na direção dos canalhas de Najac. "Não temos
escolha."
O general Kléber, é claro, tentava achar a tal hoste turca,
não fugir a ela, e esperava flanqueá-la descendo das
elevações nazarenas. "A passionalidade governa, e nunca
governa com sabedoria", gostava de dizer o velho Ben. E
Kléber, competente para um general, irritara-se um ano
inteiro como subordinado de Napoleão. Embora Kléber
fosse o mais velho, o mais alto, o mais forte e o mais
experiente, os louros da campanha egípcia haviam sido
conquistados pelo corso. Era Bonaparte quem tinha destaque
nos comunicados que se enviavam para a França, Bonaparte
quem ia enriquecendo com o butim, Bonaparte quem
possibilitava grandes descobertas arqueológicas, Bonaparte
quem regia a moral do exército. Pior: durante a batalha de
El-Arish, no início da campanha palestina, a divisão de
Kléber tivera desempenho não mais que mediano, ao passo
que Reynier, rival de Kléber, ganhara elogios de Napoleão.
Não importava que Kléber ostentasse a estatura, o porte e a
cabeleira cacheada de herói militar que faltavam a
Bonaparte, nem importava que ele atirasse e montasse
melhor, pois seus colegas se submetiam mesmo era ao
arrivista. Nenhum dos generais reconheceria isto, mas
Bonaparte, apesar de todos os defeitos, era o superior
intelectual deles, o astro solar em redor do qual orbitavam
instintivamente. Aquela incursão independente para destruir
os reforços otomanos era, portanto, a chance de Kléber para
brilhar. Assim como Bonaparte levantara acampamento no
meio da noite para atacar os mamelucos nas Pirâmides antes
que estes estivessem plenamente preparados, também
Kléber resolveu partir no escuro para surpreender os turcos.
"Loucura!", disse Mohammad. "Estamos longe demais para
pegá-los de surpresa. Encontraremos os turcos justamente
quando o sol estiver se levantando e nos ofuscando."
De fato, a marcha em torno do monte Tabor se mostrou
muito mais longa do que Kléber previra. Em vez de
atacarem às duas da manhã como planejado, os franceses
toparam com as guardas avançadas turcas só na alvorada.
Quando formamos fileiras para o assalto, nossa presa já tivera
tempo de tomar o desjejum. Logo se viram enxames de
cavalaria turca correndo para lá e para cá, e a ambição de
Kléber começou a ser moderada pelo bom senso. O sol
nascente revelou que ele conduzira três mil homens para
atacarem vinte e cinco mil. Eu realmente tenho talento para
escolher o lado errado.
"Então o anel dá azar mesmo", resmungou Mohammad.
"Será que Napoleão ainda está tentando executar-vos, efêndi,
só que agora de um jeito mais complicado?"
Nós três ficamos de boca aberta ante a gigantesca e
ameaçadora horda de cavalaria, cujos animais eram meio
engolfados pelo trigo alto da primavera enquanto seus
ginetes disparavam inutilmente mosquetes e pistolas para o
ar. A única coisa que impediu que fôssemos aniquilados de
pronto foi a confusão do inimigo - lá, ninguém parecia estar
no comando. O exército turco era uma colcha de retalhos
vindos de cantos demais do império. Víamos a gama
policromática dos diversos regimentos otomanos, com
grandes comboios de carroções atrás deles, e ainda tendas
coloridas como numa grande quermesse. Se queres um
espetáculo vistoso, vê a guerra antes que se iniciem os
combates.
"Parece uma repetição da Batalha das Pirâmides", disse eu,
tentando tranqüilizá-los. "Vede a desordem entre eles. Há
tantos soldados que não conseguem se organizar."
"Eles não precisam de organização", grunhiu Big Ned. "Só
precisam vir em bando e nos pisotear. Ah, como eu queria
estar numa fragata! E lá é mais limpo, hein?"
Mas, embora Kléber tivesse se precipitado ao subestimar
seus oponentes, ele era um tático hábil. Fez-nos retroceder
para um monte chamado Djebel-el-Dahy, de modo que
estivéssemos no terreno mais elevado. Perto do cume, havia
um castelo em ruínas, do tempo dos cruzados, sobranceiro
ao largo vale. O general francês pôs cem de seus homens
para guarnecer o que restava das muralhas; os restantes
formaram dois quadrados de infantaria, um comandado pelo
próprio Kléber e o outro pelo general Jean-Andoche Junot.
Esses quadrados eram como fortins humanos, com cada
soldado voltando-se para um lado e as fileiras cobrindo as
quatro direções, de modo que era impossível flanqueá-los.
Os sargentos com os soldados veteranos se punham atrás das
tropas mais inexperientes, para impedir que elas recuassem e
pusessem a formação a perder. Essa tática desconcertara os
mamelucos no Egito e estava prestes a fazer o mesmo com
os otomanos: de qualquer lado que atacassem, deparavam
com uma linha firme de mosquetes e baionetas. Nosso
comboio de abastecimento e meu trio, com os homens de
Najac, estavam no centro.
Os turcos, ridiculamente, deram a Kléber tempo para formar
fileiras e depois realizaram cargas de sondagem, galopando
até perto de nossos homens ao mesmo tempo que davam
gritos de guerra e brandiam espadas. Os franceses
permaneceram absolutamente quietos até que soou a ordem:
"Fogo!" Fez-se um clarão e um estrondo de disparos, com
uma grande nuvem de fumaça branca, e os cavalarianos
inimigos mais próximos foram derrubados das montarias. Os
outros se afastaram para longe.
"Com a breca! Eles têm mais peito do que juízo!", disse Ned,
forçando a vista. O sol continuava subindo. Cada vez mais
cavaleiros otomanos afluíam para o ameno vale abaixo de
nós, ululando e agitando lanças. Periodicamente, algumas
centenas investiam contra nossos quadrados. Então,
disparava-se outra salva de mosquete, e os resultados eram
os mesmos. Logo se formou um semicírculo de mortos à
nossa volta, com seus trajes coloridos a lembrar flores
ceifadas.
"Que diabos eles estão fazendo?", resmungou Ned. "Por que
não atacam de verdade?"
"Talvez estejam só esperando que fiquemos sem água e sem
munição", disse Mohammad.
"E pretendem fazer isso levando todo o nosso chumbo no
bucho?!"
Acho que os otomanos estavam aguardando que saíssemos
de formação e debandássemos (seus adversários anteriores
certamente haviam sido menos resolutos). Mas os franceses
não tremeram; eriçaram-se como um porco-espinho, e os
turcos não conseguiam fazer que seus cavalos se
achegassem.
Kléber continuava montado, não dando atenção ao silvo das
balas, cavalgando lentamente para cima e para baixo entre as
fileiras e encorajando os homens. "Agüentai firme", instruía
ele. "Chegará ajuda."
Ajuda? Bonaparte estava muito longe, em Acre. Aquilo seria
mesmo alguma espécie de ardil otomano, deixando-nos suar
e ficar aflitos até que eles viessem à carga para valer?
No entanto, quando olhei pela luneta que sir Sidney me
dera, comecei a duvidar que tal ataque ainda ocorresse.
Muitos turcos se detinham, incitando outros a virem nos
enfrentar primeiro. Alguns se esparramavam no capim para
comer, e outros dormiam - no auge da batalha!
Mas, à medida que o dia avançou, nossa resistência foi se
minando, e a confiança deles, aumentando. A pólvora
escasseava. Começamos a refrear nossas salvas até o último
segundo, procurando garantir ao máximo que as preciosas
balas atingissem de fato os alvos. Os turcos perceberam
nossa apreensão. Davam um grande urro, esporeavam, e
ondas de cavalaria vinham contra nós como a rebentação na
praia. "Agüentai... Agüentai... Deixai que venham... Fogo!
Agora, a fileira de trás - fogo!" Cavalos davam relinchos
lancinantes e desabavam. Janízaros de coloridíssima
indumentária tombavam em meio a nuvens de terra. Os
ginetes mais destemidos continuavam esporeando, contor-
nando os camaradas caídos - mas, quando chegavam à linha
de baionetas, suas montarias se empinavam, sem intenção de
seguir adiante. Pistolas e mosquetes produziam lacunas em
nossas fileiras, mas a mortandade era muito pior no lado
turco. Tantos cavalos mortos já atulhavam os campos que os
turcos estavam tendo dificuldade em arremeter através deles
para chegar a nós. Ned, Mohammad e eu ajudávamos a
arrastar os franceses feridos para o centro do quadrado.
Agora era meio-dia. Os feridos gemiam pedindo água, e o
resto de nós ansiava pela mesma coisa. A elevação em que
estávamos parecia tão seca quanto uma tumba egípcia. O sol
interrompera no ápice sua trajetória pelo céu, parecendo que
nos castigaria para sempre, e os turcos escarneciam uns dos
outros para atiçar os companheiros a nos atacarem. Uma
centena de franceses já caíra, e Kléber ordenou que os dois
quadrados se unissem num só, engrossando as fileiras e
dando aos homens uma confiança renovada e extremamente
necessária, pois parecia que todos os muçulmanos do mundo
haviam se juntado contra nós. Os campos tinham sido
pisoteados até ficar apenas terra, e levantavam-se grandes
colunas de poeira. Os turcos tentaram tomar de assalto o
cume do Djebel-el-Dahy e vir sobre nós da parte de cima,
mas os chasseurs (infantaria ligeira) e carabiniers (infantaria
montada) que estavam no velho castelo os obrigaram a
dispersar-se, e o inimigo desceu inutilmente em ambos os
lados de nossa formação, ainda deixando que lhe
diminuíssemos o contingente ao atirarmos contra seus
flancos.
"Agora!" Disparava-se uma salva, fazendo estrondo; ela era
ofuscante e acre, por causa da fumaça, com pedacinhos de
bucha esvoaçando como neve. Montarias relinchavam
desesperadamente, sem cavaleiros, e galopavam para longe.
Depois dentes rasgavam o papel dos cartuchos para despejar
a valiosa pólvora nos canos dos mosquetes. O chão ficara
branco por tanto papel descartado.
Pelo meio da tarde, minha boca estava absolutamente seca.
Moscas zuniam sobre os mortos.
Alguns soldados desmaiaram por terem ficado tempo demais
em pé no mesmo lugar. Embora os otomanos parecessem
inoperantes, não podíamos ir a lugar nenhum. Presumi que
a coisa terminaria quando todos morrêssemos de sede.
"Mohammad, quando eles enfim nos atropelarem, finge-te
de morto até tudo acabar. Assim, poderás ressurgir como
muçulmano, mais um dentre eles. Não há necessidade de
teres o mesmo destino que europeus malucos."
"Alá não manda um homem abandonar os amigos", retrucou
ele, grave.
Nisso, ergueu-se um brado novo - homens diziam ter
avistado o brilho de baionetas no vale a oeste. "Lá vem o
Pequeno Caporal!"
Kléber se mostrava incrédulo. "Como Bonaparte conseguiria
chegar aqui tão depressa?" Fez um gesto para mim. "Vinde.
Trazei vossa luneta naval." Meu telescópio inglês se revelara
capaz de oferecer uma mirada mais nítida que a das lunetas-
padrão do exército francês.
Segui Kléber para fora do aconchego do quadrado, até a
encosta exposta do monte. Passamos por uma roda de
muçulmanos caídos, alguns ainda gemendo, seu sangue era
uma mácula no trigo verde.
As ruínas do castelo dos cruzados proporcionavam uma vista
panorâmica. Para indignação, os turcos pareciam ainda mais
numerosos agora que eu enxergava mais longe por sobre
suas fileiras. Milhares trotavam para cima e para baixo,
gesticulando como se discutissem acaloradamente o que
fazer. Centenas de seus companheiros de armas já cobriam o
monte abaixo de nós. Na distância, viam-se suas tendas,
suprimentos e milhares de vivandeiros e outros paisanos.
Éramos como uma rocha azul num mar do vermelho,
branco e verde otomanos. Com certeza, bastaria uma única e
enérgica carga de cavalaria para romper nossa formação! Os
homens então debandariam, e seria o fim.
Só que isso ainda não acontecera. "Lá", apontou Kléber.
"Vedes baionetas francesas?"
Forcei a vista até os olhos doerem. A oeste, o capim alto
formava ondas, mas eu não sabia se isso se devia ao vento ou
à passagem de alguma infantaria - a terra verdejante engolira
as manobras dos exércitos. "Pode ser uma coluna francesa,
pois o capim está se movendo. Mas, como já dissestes, de
que maneira ela poderia ter chegado tão depressa?"
"Morreremos de sede se permanecermos aqui", disse Kléber.
"Ou homens desertarão e acabarão degolados. Não sei se há
reforços vindo para cá, mas vamos descobrir." Ele desceu
trotando para o quadrado, comigo atrás.
"Junot, começa a formar colunas. Partamos ao encontro
daqueles que vêm nos render!" Os homens deram vivas,
torcendo (contra as probabilidades) para que não estivessem
apenas se abrindo para serem dominados pela cavalaria
turca. Esta, quando viu o quadrado dissolver-se em duas
colunas, ficou mais animada: ali estava a chance de
precipitarem-se sobre nossos flancos e nossa retaguarda.
Ouvíamos seus brados e a força de suas cornetas.
"Em frente!" Começamos a marchar morro abaixo.
Brandiram-se e agitaram-se lanças turcas.
E então um canhão foi disparado ao longe. As diversas peças
de artilharia têm sons muito distintos, e aquele estrondo
eficiente era tão francês quanto um pedido feito aos gritos
num restaurante parisiense. Olhamos e vimos uma coluna de
fumaça ser carregada pelo ar. Homens choraram de alívio -
o socorro estava mesmo chegando! Os franceses começaram
a dar vivas e até cantar.
A cavalaria inimiga hesitou, perscrutando o oeste.
As tricolores se agitavam ao descermos com passo pesado e
firme o Djebel-el-Dahy, como se estivéssemos em parada.
E então começou a subir fumaça do campo inimigo.
Ouviram-se disparos, berros abafados e o soar triunfante dos
clarins franceses. A cavalaria de Napoleão irrompera na
retaguarda turca e estava semeando o pânico. Suprimentos
preciosos começavam a ser consumidos pelas chamas. E,
com um estrondo, a munição armazenada explodiu.
"Calma!", disse Kléber a seus homens. "Não saiais de
formação!"
"Quando eles vierem contra nós, abaixai-vos e disparai só
quando receberdes a ordem!", acrescentou Junot.
Vimos uma lagoa junto à aldeia de Fula. Nossa empolgação
aumentou: havia ali um regimento otomano, parecendo
irresoluto. Agora nossos oficiais galopavam para cima e para
baixo pelas colunas, dando ordens para que se preparasse
uma investida.
"Atacar!" Dando vivas, os franceses, atiçados, correram o
resto do caminho morro abaixo, na direção da infantaria da
Samaria que guarnecia a aldeia. Houve disparos, baionetas e
coronhadas, e então o inimigo se pôs a correr em
debandada. Entrementes, turcos fugiam também do que
quer que houvesse surgido do oeste. Em minutos,
miraculosamente, um exército de vinte e cinco mil homens
ruía em pânico, tendo de escapar para leste por causa de
alguns milhares de franceses. A cavalaria de Bonaparte
passou galopando por nós, perseguindo o inimigo rumo ao
Vale do Jordão. Otomanos foram caçados e mortos por todo
o caminho até o rio.
Mergulhamos na lagoa de Fula, matando a sede, e depois
ficamos encharcados e pingando como bêbados, com as
bolsas de cartuchos já vazias. Napoleão chegou a galope,
radiante como o salvador que de fato era, com os calções
pardos de poeira.
"Eu já desconfiava que fosses te meter em confusão,
Kléber!", gritou. "Parti para cá ontem, depois de ter lido os
relatórios!" Sorriu. "Eles fugiram só de ouvir um tiro de
canhão!"
- 17 -
Com seus instintos para a política, Bonaparte de imediato
batizou nosso quase desastre como Batalha do Monte Tabor
(um pico muito mais imponente e pronunciável que o
modestamente ascendente Djebel-el-Dahy, ainda que
distantes várias milhas um do outro) e o proclamou "uma das
vitórias mais desproporcionais da história militar - quero que
todos os detalhes sejam transmitidos a Paris o mais depressa
possível".
Eu tinha certeza de que ele não se mostrara tão rápido para
dar a notícia do massacre de Jafa.
"Mais algumas divisões, e poderemos marchar para
Damasco", disse Kleber, inebriado com a inacreditável
vitória. Em vez de sentir inveja, ele agora parecia
deslumbrado com o resgate providencial que seu
comandante levara a efeito. Bonaparte operava milagres.
"Mais algumas divisões, general, e poderíamos marchar para
Bagdá e Constantinopla", emendou Napoleão. "Maldito
Nelson! Se ele não tivesse destruído a minha esquadra, eu
seria senhor da Ásia!"
Kléber assentiu. "E se Alexandre não tivesse morrido na
Babilônia, nem César sido apunhalado, nem Rolando se
adiantado tanto..."
"Por falta de um cravo de ferradura, perdeu-se a batalha...",
comecei.
"O quê?"
"Só uma coisinha que meu mentor, Benjamin Franklin,
costumava dizer - ou seja, que o que nos derruba são as
pequenas coisas. Ele acreditava em não se descuidar dos
detalhes."
"Franklin era sábio", disse Napoleão. "A escrupulosa atenção
aos detalhes é essencial aos soldados. E teu mentor era um
verdadeiro savant. Ele ficaria ansioso em solucionar
mistérios antigos, não em proveito próprio, mas para o bem
da ciência. Razão pela qual vais agora encontrar Silano, não é
mesmo, Gage?"
"Parece que tirastes toda a oposição do caminho, general",
respondi cordialmente. Bonaparte devastava exércitos tal
qual Moisés dividia as águas. "Todavia, continuamos na orla
da Ásia, a milhares de milhas da Índia e de vosso aliado lá,
Tippu Sahib. Ainda não tomastes nem Acre. Com tão
poucos homens, como pretendeis imitar Alexandre?"
Bonaparte franziu o cenho. Não gostava de que duvidassem.
"Os macedônios não eram muito mais numerosos. E
Alexandre teve também de fazer um cerco, em Tiro."
Pareceu pensativo. "Mas o nosso mundo é maior do que era
o deles, e desenrolam-se acontecimentos na França. Tenho
muitas coisas a exigir minha atenção, e tuas descobertas
talvez sejam mais importantes em Paris do que aqui."
"Na França?", perguntou Kléber. "Pensas em Paris quando
ainda estamos lutando nesta cloaca?"
"Eu procuro pensar em tudo, sempre - motivo pelo qual
pensei em trazer socorro à tua expedição antes mesmo que
precisaste disso, Kléber", retrucou Bonaparte, secamente.
Deu um tapa no ombro do general que, com sua cabeleira,
avultava-se acima dele. "Fica tranqüilo, pois o que estamos
fazendo tem um propósito. Cumpre tua obrigação, que nós
dois ascenderemos juntos!"
Kléber olhou para ele com desconfiança. "Nossa obrigação é
aqui, não na França. É ou não é assim?"
"E a obrigação desse americano é terminar enfim aquilo para
que o trouxemos - solucionar o mistério das pirâmides e dos
antigos com o conde Alessandro Silano! Cavalga sem
descanso, Gage, porque o tempo urge para todos nós."
"Estou mais ansioso do que qualquer um para voltar para
casa", respondi.
"Então acha esse teu livro." Ele me deu as costas e saiu a
passos largos e pomposos com seu estado-maior, batendo o
dedo em riste enquanto disparava ordens. Quanto a mim,
senti um desânimo: era a primeira vez que eu o via
mencionar o livro. Os franceses, obviamente, sabiam mais
do que eu tinha esperança que soubessem.
E Astiza lhes contara mais do que eu desejara.
Assim, lá estávamos nós, instrumentos de Silano e seu
desonrado Rito Egípcio. Os templários tinham descoberto
alguma coisa e sido mortos na fogueira por torturadores que
ansiavam saber o que era aquele segredo. Eu só esperava que
meu destino fosse mais benigno. Não queria levar meus
companheiros à destruição.
Jantamos carnes e pastéis turcos capturados, procurando
ignorar o fedor que já emanava do escuro campo de batalha.
"Bem, então é isso", comentou Big Ned, sombrio. "Se uma
horda como aquela não agüenta uns poucos franceses, que
chance têm os meus camaradas lá em Acre? Vai ser outro
maldito massacre, igual a Jafa."
"Só que Acre tem o Açougueiro", disse eu. "Ele não deixará
ninguém correr nem render-se."
"E tem canhões, Phélippeaux e Sidney Smith", completou
Mohammad. "Não te preocupes, fuzileiro. A cidade
agüentará até voltarmos."
"Bem a tempo da pilhagem pelos franceses." Ned olhou para
mim maliciosamente.
Eu sabia o que se passava pela cabeça do fuzileiro: achar o
tesouro e fugir. Não posso dizer que eu discordava de todo.
A cavalaria francesa ainda estava perseguindo os
remanescentes do desbaratado exército otomano quando
nos pusemos a acompanhar seu rastro de terra e vegetação
pisoteadas e descemos ao Vale do Jordão. Agora estávamos
além dos campos, em território seco que só sustentava
cabras, com exceção dos pomares e prados ao longo do rio.
Grande quantidade de santos seguira aquele curso de rio, e
João Batista atuara em algum lugar daquelas margens
legendárias, mas cavalgávamos como uma quadrilha. A dúzia
de árabes de Najac ia armada até os dentes, com fuzis,
mosquetes, pistolas e espadas. Havia ainda outros
malfeitores, e avistamos dois bandos diferentes que se
retiravam furtivamente, como lobos decepcionados, após
terem olhado nosso armamento. No rio, também
encontramos corpos de soldados otomanos afogados ou
baleados, inchados como balões de pano. Ficamos bem
longe deles, para evitar a fedentina, e cuidamos de só pegar
água nas bicas.
À medida que avançávamos para o sul, o vale se tornava
cada vez mais árido, e os navios britânicos que Ned chamava
de lar pareciam estar a dez mil milhas dali. Certa noite, o
fuzileiro veio rastejando para cochichar comigo.
"Chefe, vamos largar esses bandidos e continuar por conta
própria", instou-me. "Esse Najac fica de olho em ti tal qual o
corvo esperando para bicar o olho do defunto. A gente
poderia vestir esses patifes de coroinhas que eles ainda assim
assustariam a catedral inteira."
"É, eles têm a moralidade de deputados e a higiene de
escravos das galés - mas precisamos deles para nos conduzir
à mulher que usava o anel de rubi, lembra-te?" Ned
resmungou, de modo que tive de tranqüilizá-lo. "Não penses
que já não possuo poderes elétricos. Conseguiremos o que
viemos buscar e daremos o troco a essa corja."
"Não vejo a hora de poder arrebentá-los. Odeio franceses.
Árabes também, exceção feita ao Mohammad."
"Eles não perdem por esperar, Ned. Não perdem mesmo."
Passamos a trote por uma trilha que Najac afirmou levar a
Jericó. Não vi nada dessa aldeia, e a região era tão estéril que
ficava difícil acreditar que algum dia houvessem construído
ali uma cidade de imensas muralhas. Lembrei-me do ferreiro
e senti outra vez culpa por ter abandonado Miriam. Ela
merecia coisa melhor.
O mar Morto era o que se deduz do nome: uma margem
incrustada de sal e uma água salobra, de um azul brilhante,
que se estendia até o horizonte. Nenhuma espécie de ave se
juntava nos baixios, e nenhum peixe vinha à tona. O ar do
deserto era denso, nevoento, quente e úmido, como se em
dois dias houvéssemos avançado dois meses, passando da
primavera ao verão. Eu compartilhava do desassossego de
Ned. Aquela era uma terra estranha e irreal, que gerava
profetas e loucos em demasia.
"Jerusalém fica para lá", disse Mohammad, apontando para
oeste. Depois, girando o braço na direção oposta, explicou:
"Lá está o monte Nebo".
Montanhas se erguiam precipitadamente da margem do mar
Morto, como se tivessem pressa em fugir à salmoura. A mais
alta estava tanto para pico como para serra, salpicada de
pinheiros-de-alepo. Em ravinas rochosas, que veriam água
só nas chuvas, florescia o rosa dos oleandros.
Najac, que pouco falara durante a jornada, fez sinais com um
espelhinho, que reluziu ao sol da manhã. Aguardamos, mas
nada aconteceu.
"Esse ladrão desgraçado fez que a gente se perdesse",
queixou-se Ned.
"Sejas paciente, cabeça-dura", rebateu o francês, que usou o
espelhinho mais uma vez.
Nisto, uma coluna de sinal de fumaça se ergueu do Nebo.
"Lá!", exclamou aquele que nos escoltava. "A morada final
de Moisés!" Esporeamos e começamos a subir.
Era um alívio sair do Vale do Jordão para ares menos
enfasteantes. Sentimos a refrescância, e a encosta começou a
recender a pinheiro-de-alepo. Tendas beduínas haviam sido
armadas nos terraços da montanha, e eu via meninos árabes
de manto preto pastorearem rebanhos de cabras que
zanzavam para lá e para cá. Subimos por uma trilha de
caravana, com os cascos fazendo chape na terra macia e os
cavalos bufando ao passarem por esterco de camelo.
Passaram-se quatro horas, mas enfim alcançamos o topo. A
nossas costas, do outro lado do Jordão, avistávamos de fato a
Terra Prometida, que dali parecia parda e brumosa, sem em
nada evocar leite e mel. O mar Morto era um espelho azul.
Adiante, não vi nenhuma caverna que pressagiasse tesouros.
Havia, sim, uma tenda francesa num rebaixo, com a relva
verde ao lado dele indicando uma fonte. Ali perto, estavam
as ruínas baixas de alguma coisa, talvez uma antiga igreja.
Vários homens nos esperavam junto a um fio de fumaça de
fogueira, os resquícios do fogo que se acendera para sinalizar
para nós. Estaria Silano entre aqueles homens? Antes que eu
pudesse verificar isso, avistei uma pessoa sentada num
afloramento rochoso abaixo das ruínas, longe dos homens.
Saí com meu cavalo da fila que formáramos e desmontei.
Era uma mulher, trajada de branco, que vinha observando
nossa chegada.
Quando me aproximei, ela se pôs de pé, com as tranças
longas e negras tal qual eu me recordava, um lenço branco
caído, protegendo-a do sol. Tecido e cabelo eram soprados
de leve pela brisa da montanha. A beleza daquela mulher,
vívida à luz do cume, mostrava-se mais tangível do que me
preparara para encontrar. Eu transformara Astiza num
fantasma, e agora lá estava ela, em carne e osso. Tendo-a
talvez idealizado na lembrança, eu viera contando com a
possibilidade da decepção, mas não: o que eu imaginava
continuava lá, a esbeltez grácil e equilibrada, os lábios e
maçãs dignos de uma Cleópatra, os lustrosos olhos escuros.
As mulheres são flores, trazendo encanto ao mundo, e
Astiza era um lótus.
Ela, entretanto, envelhecera. Não envelhecera mal (é
equívoco achar que a idade seja um insulto às mulheres, pois
a beleza delas simplesmente adquire mais caráter), mas os
olhos estavam mais fundos, como se Astiza tivesse visto ou
sentido coisas que preferiria não ter encarado. Será que eu
mudara da mesma maneira? Qual a última vez que eu me
olhara no espelho? Levei a mão ao rosto e senti a barba de
vários dias, e, de repente, fiquei cônscio de minhas roupas,
sujas da viagem. O vestido estava sujo de poeira e repartido
para que ela pudesse cavalgar. Astiza usava botas de
cavalaria, tão pequenas que talvez tivessem sido tomadas
emprestadas a algum garoto tamborileiro do exército de
Bonaparte. Estava ainda mais esguia, com corpo de bailarina
- mas todos nós havíamos emagrecido. A cintura era cingida
por uma corda de seda, que mostrava uma pequena adaga
curva e uma bolsa de couro. Sobre a pedra onde se sentara,
via-se um odre.
Hesitei, esquecendo o que ensaiara dizer. Era como se ela
tivesse ressuscitado. Acabei dizendo: "Mandei perguntarem
por ti". Parecia um pedido de desculpas, canhestro e nada
eloqüente - mas eu estava mesmo constrangido, tendo
flutuado para longe no balão quando ela não pudera fazer o
mesmo. "Disseram-me que desapareceras."
"Trouxeste o meu anel?"
Era um jeito frio de iniciar a conversa. Saquei a jóia, cujo
rubi brilhava. Astiza o arrebatou e o enfiou rápido na bolsa
de couro da cintura, como se o anel estivesse pelando. Ela
ainda o acha amaldiçoado, pensei.
"Eu o usarei numa oferenda", explicou.
"A Ísis?"
"A todos Eles, inclusive Tot."
"Temi que tivesses morrido. É como um milagre - pareces
um anjo ou espírito."
"Estás com os serafins?"
Sua frieza era desconcertante. "Vivi um inferno para achar-
te, e só queres saber de jóias?"
"Nós precisamos deles."
Percebi que Astiza estava fazendo grande esforço para não
demonstrar emoção. "Nós quem?"
"Ethan, foi Alessandro quem me salvou."
Bem, aquilo doeu, e doeu muito. Astiza se dependurara no
cabo do balão, e Silano se agarrara a seu corpo para que ela
não pudesse subir à cesta. Então, Astiza cortara o cabo com
minha machadinha, de maneira que o balão subisse para
longe do alcance dos mosquetes. Eu fracassara em puxá-la
para a cesta - e em livrar-me do feiticeiro aristocrata que
antes fora seu amante. E agora estavam juntos de novo? Em
caso afirmativo, eu não conseguia atinar por que diabos
tinham mandado me buscar. Se tudo o que queriam eram
quinquilharias de ouro, eu podia tê-las mandado por correio.
"Aquele desgraçado quase te matou. A única razão pela qual
não conseguiste escapar comigo foi que ele não deixou."
Astiza desviou o olhar para longe, para o vale, e seu tom se
mantinha inexpressivo. "Não me lembro do impacto, só da
queda. A última coisa de que me recordo é do teu rosto,
olhando para baixo da beira da cesta. Foi a coisa mais terrível
que tive de fazer na vida. Quando cortei o cabo, vi uma
centena de emoções em teus olhos."
"O horror era uma delas, se bem me lembro."
"Medo, vergonha, arrependimento, raiva, saudade, pesar... e
alívio."
Eu ia objetar. Em vez disso, enrubesci, porque era verdade.
"Quando usei aquela machadinha, Ethan, eu te libertei do
ônus que te impuseram - a carga de salvaguardar o Livro de
Tot. Eu te libertei de mim. Mesmo assim, não voltaste para a
América."
"Astiza, não podes cortar com machadinha a corda que nos
une."
Então ela se voltou e me encarou de novo, com olhar
ardente e corpo trêmulo, e eu soube que Astiza forcejava
para não correr para meus braços. Por que ela hesitava em
fazê-lo? De novo, eu não estava entendendo nada. E não
podia tentar o contato, pois primeiro havia um muro
invisível, de obrigação e arrependimento, que precisávamos
derrubar. Não podíamos começar direito porque tínhamos
coisas demais a dizer.
"Quando acordei, passara-se um mês, e eu estava com
Silano, sendo tratada em segredo. Os sábios franceses tinham
lhe dado instalações de estudo no Cairo. Enquanto ia
convalescendo do quadril fraturado, Silano continuava lendo
todo e qualquer fragmento de escrita antiga que
conseguissem achar para ele. Reuniu baús e mais baús de
livros. Eu até o vi vasculhar manuscritos enegrecidos que só
podem ter vindo da biblioteca queimada de Enoque. Silano
não desistira, nem por um momento sequer. Sabia que não
saíramos da pirâmide com algo de útil e desconfiava que
houvessem levado o livro para outro lugar. Por isso, mais
uma vez me aliei a ele, para usá-lo de modo que eu pudesse
alcançar-te de novo. Eu tinha esperança de que ainda
estivesses no Egito ou em algum lugar próximo."
"Disseste que presumias que eu fosse para a América."
"Reconheço que fui assaltada pela dúvida - eu sabia que
talvez fugisses. Depois ouvi que andavam fazendo perguntas,
e o meu coração acelerou. Silano fez Bonaparte encarcerar o
verdadeiro mensageiro e mandar um dos próprios homens a
Jerusalém para desestimular-te. Mas isso não funcionou. E,
quando o conde começou a elaborar outro plano e Najac
partiu para espionar-te, percebi que o destino conspirava
para nos reunir outra vez. Solucionaremos este mistério,
Ethan, e acharemos o livro."
"Para quê? Não pretendes apenas reenterrá-lo?"
"Ele também pode ser usado para o bem. O Egito foi outrora
um paraíso de paz e conhecimento. O mundo pode voltar a
ser assim."
"Astiza, já conheces o mundo em que vivemos. Será que a
queda te fez perder todo o juízo?"
"No aclive logo acima de nós, há uma igreja, hoje em ruínas.
Ela assinala o lugar onde Moisés talvez tenha um dia se
assentado, contemplando a Terra Prometida e sabendo que,
apesar de todo o sacrifício que fizera, jamais poderia
adentrá-la - o velho deus da tua cultura era cruel. A
construção em si remonta aos tempos bizantinos. Achamos
ali a tumba de um cavaleiro templário, tal qual os estudos de
Silano indicaram. Nessa tumba, havia ossos e, escondido
num fêmur, um mapa medieval."
"Vós despedaçastes os ossos de um morto?"
"Silano encontrara menção dessa possibilidade quando
estudou em Constantinopla. Após a destruição dos
templários na Europa, alguns fugiram para esta parte do
mundo, Ethan. Haviam descoberto algo em Jerusalém e o
esconderam numa estranha cidade que aquele mapa
descreve. Silano também descobriu algo mais, uma coisa que
pode estar relacionada à eletricidade e ao teu mentor
Franklin. Depois soubemos que foras executado em Jafa, mas
que o teu corpo sumira. Em desespero de causa, dei o anel a
Monge, querendo saber se ele toparia contigo. E agora..."
"Algum dia amaste Alessandro Silano?"
Astiza hesitou apenas um momento antes de responder.
"Não."
Fiquei ali em pé, ansioso por ouvir mais antes de ousar fazer
a pergunta seguinte, esta mais lógica.
"Não me orgulho disso", continuou. "Ele me amava - ama
ainda. Os homens se apaixonam facilmente, mas as mulheres
precisam ser cuidadosas. Fomos amantes, mas para mim
seria difícil amá-lo."
"Astiza, não precisavas de mim aqui para trazer dois anjos
dourados."
"Ainda me amas, Ethan, como disseste no Nilo?"
Claro que eu a amava. Mas também a temia. Do que mesmo
o pobre Talma chamara Astiza? Bruxa? Feiticeira? Eu temia o
poder que ela teria novamente sobre mim quando eu
admitisse minha fascinação. E quanto a Miriam, coitada,
ainda sitiada em Acre?
Todavia, nada disso importava. Todas as antigas emoções
estavam voltando em torrente. "Eu te amo desde o
momento em que te tirei dos escombros em Alexandria",
acabei confirmando, afobado. "Eu te amei quando estávamos
subindo o Nilo naquele veleiro... E eu te amei na casa de
Enoque... E eu te amei até quando, por um instante, achei
que me traíras no templo de Dendara... E eu te amei quando
achei que já estávamos condenados na Grande Pirâmide...
Eu te amei a ponto de me juntar aos malditos britânicos só
pela esperança de recuperar-te - e te amei a ponto de agora,
segundo parece, me juntar novamente aos malditos
franceses. Amei até a esperança de ver-te quando eu estava
no vale lá embaixo, e durante toda essa longa cavalgada
montanha acima, mesmo não tendo idéia do que te diria, ou
de que aparência terias, ou de como te sentirias." Eu estava
perdendo todo o controle, não? As mulheres fazem um
homem perder o juízo mais rápido do que o uísque do
Kentucky consegue. E agora, sem fôlego, no limite, fiquei à
espera de que ela me dispensasse com uma palavra. Ali, eu
oferecera o peito aos mosquetes, o pescoço à lâmina do
carrasco.
Astiza deu um sorriso triste. "Eu teria dificuldade para amar
Alessandro, mas não tive dificuldade para me apaixonar por
ti."
Cheguei mesmo a cambalear ligeiramente, zonzo de euforia.
"Então partamos agora - hoje à noite."
Com olhos úmidos, ela balançou negativamente a cabeça.
"Não, Ethan. Silano sabe demais. Não podemos ir embora e
deixá-lo concluir a busca.
Precisamos acompanhar tudo e pegar o livro no momento
certo. Temos de trabalhar com ele e então traí-lo. Esse é o
meu destino desde que conheci Alessandro no Cairo, e é o
teu desde que ganhaste o medalhão em Paris. Tudo vem
conduzindo a este cume e às montanhas mais além.
Acharemos o livro - e aí, sim, partiremos."
"Espera lá - que montanhas além?"
"A Cidade dos Espíritos."
"A o quê?"
"É um lugar sagrado, mítico. Creio que nenhum europeu
jamais esteve ali desde os templários. Nossa jornada ainda
não se encerrou." Gemi. "Ah, pela ganância de Benedict
Arnold!..."
"Agora, para enganá-lo, eu e tu precisamos parecer brigados.
Tu te farás de furioso porque voltei a unir-me a Alessandro,
e nós dois viajaremos como ex-amantes ressentidos. Até
tudo terminar, é necessário que pensem que somos
inimigos."
"Inimigos?"
E então ela girou e me esbofeteou, com toda a força de que
foi capaz.
O ruído foi de disparo de fuzil. Olhei de relance para trás. Os
outros nos observavam mais acima da encosta. Alessandro
Silano, alto, de porte aristocrático, o fazia com a máxima
atenção.
Silano não era mais o espadachim ágil de que eu me
lembrava. Mancava, e a dor endurecera sua bela estampa,
fazendo que ele se transformasse de Pã num sátiro mais
sombrio, de ambição frustrada. Perdera a flexibilidade por
causa da queda do balão, e a mirada não era mais cativante,
apenas obstinada. Havia escuridão no olhar e severidade na
boca. Fez um esgar ao descer uma trilha de cabras desde a
igreja bizantina, e não estendeu a mão nem ofereceu
nenhum cumprimento. Para quê? Éramos rivais, e a bofetada
de Astiza ainda doía em meu rosto. Desconfiei de que
Monge ou nossos outros médicos lhe houvessem dado
drogas contra a dor.
"E então?", perguntou Silano. "Ele os trouxe?"
"Não quis dizer", respondeu Astiza. "Não está convencido de
que deveria nos ajudar."
"E resolveste convencê-lo a bofetadas?"
Ela deu de ombros. "Eu e ele temos contas para acertar."
Silano se voltou para mim. "Parece que não conseguimos
mesmo escapar um ao outro, não é, Gage?"
"Eu estava bastante bem até que tu e Astiza me chamastes
com o anel."
"E vieste atrás dela, como já fizeste antes. Espero que Astiza
aprenda a dar valor a tal coisa antes que te canses disso. Não
é uma mulher fácil de amar, americano." Olhou de relance
para Astiza, não mais seguro que eu de quanto podia confiar
na parceira. Vi que ela o desconcertava. Eram aliados, não
amantes. Não é fácil vivermos com algo que não podemos
ter, e Silano não era do tipo que tolera a frustração. Teríamos
todos de ficar de olho um no outro.
"Astiza me disse que trarias dois anjinhos de metal que vós
dois achastes na Grande Pirâmide. Trouxeste?"
Hesitei, só para aborrecê-lo. Em seguida, falei: "Trouxe, sim.
Mas isso não quer dizer que vá usá-los para ajudar-te". Eu
queria verificar quão hostil ele estava. Silano poderia, é
claro, mandar matar-me. "Ficarão em lugar seguro até que
tenhamos conversado. Dado o nosso histórico, haverás de
me perdoar se eu disser que não confio plenamente em ti."
Ele fez uma reverência. "Digo o mesmo, naturalmente. Mas
sócios não precisam ser amigos. De fato, às vezes é melhor
que não sejam - dessa maneira, é-se mais sincero, não
concordas? Vem, tenho certeza de que estás faminto após a
viagem. Comamos, e te contarei uma história. Depois
poderás decidir se queres ajudar."
"E se eu não quiser?"
"Aí poderás voltar para Acre. E Astiza poderá seguir-te ou
permanecer - dependerá apenas da vontade dela." Silano
começou a subir a trilha mancando, quando então se voltou.
"Mas sei o que ambos decidireis."
Olhei de relance para Astiza, procurando restabelecer a
certeza de que ela desprezava aquele homem, aquele
diplomata, duelista, mago, erudito e maquinador. Contudo o
olhar de Astiza era não de desdém, mas de tristeza. Ela
entendia quanto somos prisioneiros de nossos desejos e
nossas frustrações. Éramos sonhadores num pesadelo que
nós mesmos criáramos.
Subimos a trilha a pé para a igreja sem teto, na qual a luz do
dia brilhava no entulho.
Viam-se montículos e buracos de escavação. Astiza me
mostrou o sarcófago, escondido sob o piso, onde
evidentemente haviam sido descobertos os ossos do
templário.
"Silano encontrou referências a este túmulo no Vaticano e
nas bibliotecas de Constantinopla", disse ela. "O cavaleiro era
Michel de Troyes, que fugiu ao encarceramento dos
templários em Paris e partiu para a Terra Santa."
"Uma carta dizia que ele repousara seus ossos com Moisés",
disse Silano, "e enterrara em si próprio o segredo. Levei
algum tempo para perceber que a referência só podia ser ao
monte Nebo, muito embora nunca se tenha encontrado a
sepultura de Moisés. Eu tinha a esperança de simplesmente
achar o documento no túmulo do cavaleiro, mas não o
encontrei."
"Golpeaste os ossos com impaciência", disse Astiza.
"Golpeei." Ele relutou em admitir que se portara de modo
passional. "E uma rachadura no fêmur mostrou um quê de
ouro. Haviam inserido ali um tubo fino - devem ter cortado
a perna e esvaziado o osso após a morte do cavaleiro. Dentro
desse tubo, estava um mapa medieval, com os nomes em
latim. O mapa assinalava o próximo passo. Foi então que
mandamos buscar-te."
"Por quê?"
"Porque és seguidor de Franklin. Um eletricista." "O quê?
Eletricidade?"
"Ela é a chave. Explicarei tudo depois do jantar."
Nesse momento, já éramos mais de vinte — os homens de
Najac, meu próprio trio, Silano, Astiza e vários guarda-costas
com que Silano viajava. A noite caíra. Aqueles serviçais
fizeram uma fogueira num canto da igreja em ruínas e
depois deixaram a sós os membros mais importantes da
expedição. Najac sentou conosco, para meu desprazer, de
modo que insisti que Ned e Mohammad também comessem
em nossa companhia. Astiza se ajoelhou, acanhada, numa
atitude nada semelhante à sua habitual, e Silano ocupou a
posição central. Sentamos na areia que se acumulara sobre
antigos mosaicos de cenas de caça romanas, com animais
que se empinavam ante os dardos arremessados por nobres
numa floresta.
"Então, eis-nos finalmente juntos", iniciou Silano, com o
calor da fogueira criando um casulo contra o gelado céu do
deserto. Faíscas subiam voando para misturar-se às estrelas.
"Será que Tot pretendeu que se estabelecessem uniões como
esta para desvendar os enigmas que ele deixou para nós? Será
que, sem percebermos, estamos seguindo os deuses o tempo
todo?"
"Eu acredito num Deus único e verdadeiro", murmurou
Mohammad. "É", concordou Ned, "ainda que tenhas
escolhido o errado, companheiro. Sem ofensa."
"Assim como acredito no Uno",.disse Silano, "de cujo
mistério todas as coisas, todos os seres e todas as crenças são
manifestações. Segui um milhão de trilhas por bibliotecas,
mosteiros e túmulos do mundo, e todas levavam ao mesmo
centro. Esse centro, meus relutantes aliados, é o que
procuramos."
"Que centro, mestre?" perguntou Najac, dando a deixa como
cão adestrado que era. Silano pegou um grão de areia.
"E se eu vos dissesse que isto é o universo?"
"Eu diria que podes ficar com ele e deixar o resto para nós",
replicou Ned.
O conde sorriu secamente, jogou o grão para cima e o
apanhou. "E se eu vos dissesse que o mundo à nossa volta é
algo diáfano, tão insubstancial quanto os espaços numa teia
de aranha, e que tudo o que sustém essa ilusão são energias
misteriosas que não compreendemos? E se eu vos dissesse
que essas energias talvez não sejam nada mais que o
pensamento? Ou que a... eletricidade?"
"Eu responderia que o Nilo no qual caíste não era nenhuma
teia de aranha, e sim algo substancial o bastante para que
quebrasses o quadril", disse eu.
"Ilusão e mais ilusão - é o que afirmam alguns dos escritos
sagrados, todos inspirados por Tot."
"O ouro não passa de fio de aranha? O poder não arrebata
nada senão vácuo?"
"Ah, não - embora sejamos apenas sonho, o sonho é nossa
realidade. Mas aí está o segredo. Suponhamos que as coisas
mais sólidas - as pedras desta igreja, por exemplo - sejam
matrizes de quase nada... Que a queda de uma rocha ou de
uma estrela seja uma simples regra matemática... Que uma
construção possa abranger o divino... Que um formato possa
ser sagrado... Que uma mente possa apreender energias
invisíveis... O que é feito dos seres que se dão conta dessas
coisas? Se as montanhas são apenas teia, não podem ser
movidas? Se o mar não passa do mais ralo vapor, não podem
suas águas serem partidas? Pode o Nilo virar sangue ou uma
praga de sapos ser engendrada? Quão difícil seria derrubar as
muralhas de Jericó se elas não são mais que um tapume
vazado? Quão difícil seria transmutar chumbo em ouro se
ambos são essencialmente pó?"
"Estás louco", disse Mohammad. "O que dizes é a fala de
Satã."
"Não. Sou um erudito!" E agora Silano se punha
dificultosamente em pé, com Najac dando-lhe uma mão de
que ele se livrou tão logo pôde. "Tu, Ethan Gage, negaste-me
esse título uma vez, num banquete diante de Napoleão.
Insultaste meu renome para me fazer parecer banal." Mesmo
sem querer, enrubesci. O homem não esquecia nada.
"Investigo tais enigmas há vinte anos. Vim para o Cairo
quando a cidade ainda estava sob o domínio dos mamelucos
e explorei antigos mistérios enquanto tu ainda estavas
desperdiçando a vida. Eu seguia o rastro dos antigos
enquanto vendias teu oportunismo aos franceses. Procurei
entender as pistas misteriosas que foram deixadas para nós
enquanto o resto de vós se debatia na lama." Ele tampouco
perdera o elevado conceito que fazia de si próprio. "E agora
compreendo o que estamos procurando e o que precisamos
utilizar para encontrar isso: temos de capturar o relâmpago!"
"Capturar o quê?", perguntou Ned, ressabiado.
"Gage, soube que lograste usar a eletricidade como arma
contra as tropas francesas."
"Foi uma necessidade bélica."
"Creio que precisaremos do conhecimento de Franklin
quando estivermos próximos do Livro de Tot. És eletricista
bom o bastante?"
"Sou um homem da ciência, mas não estou entendendo
patavina do que dizes."
"É por isso que precisamos dos serafins, Ethan", interveio
Astiza, com mais suavidade. "Acreditamos que, de algum
modo, eles apontarão para o derradeiro esconderijo que os
templários usaram após a destruição de sua ordem. Eles
trouxeram para o deserto o que haviam descoberto nos
subterrâneos de Jerusalém e ocultaram isso na Cidade dos
Espíritos. Os documentos são obscuros, mas Alessandro e eu
acreditamos que Tot também conhecia a eletricidade e que
os templários a estabeleceram como teste para que se ache o
livro. Precisamos atrair o relâmpago como Franklin fazia."
"Então vou concordar com Mohammad - estais ambos
loucos."
"Nas galerias subterrâneas de Jerusalém", disse Silano,
"encontraste um piso curioso, com a configuração do raio. E
uma porta estranha. Não foi assim?"
"Como sabes disso?", perguntei. Najac, eu tinha certeza,
nunca adentrara os recintos que eu explorara, e ele, portanto
não vira aquela porta de ornamentação esquisita.
"Como já disse, eu venho estudando. E, nessa porta
templária, deparaste com um arranjo judaico, não? As dez
sephiroth da cabala." "O que isso tem que ver com
relâmpagos?"
"Observa." Curvando-se para a poeira no chão junto à
fogueira, Silano traçou dois círculos, unidos pelas margens.
"Todas as coisas são duais", murmurou Astiza.
"E, no entanto, unidas", disse o conde. Ele traçou outro
círculo, tão grande quanto os dois primeiros, sobrepondo-se
a ambos. E depois círculos sobre esses círculos, mais e mais,
num padrão cada vez mais complexo. "Os profetas
conheciam isto", disse ele. "Talvez Jesus também. E os
templários o reaprenderam." Onde os círculos se cruzavam,
Silano começou a traçar retas, formando configurações -
tanto uma estrela de cinco pontas como uma de seis. "Uma é
egípcia, e a outra, judaica", explicou. "As duas são
igualmente sagradas. A estrela egípcia é usada na nova
bandeira do teu país, Gage - não achas que era esse o
propósito dos maçons que ajudaram a fundar os Estados
Unidos?" Por fim, nos interstícios, ele cravou dez pontos,
que constituíram o mesmo padrão distintivo que tínhamos
visto no salão templário em Jerusalém - as sephiroth, às
quais Haim Farhi nos apresentara antes de Silano. Mais uma
vez, todos pareciam estar falando línguas antigas que eu
desconhecia e descobrindo significados no que eu teria
considerado mera ornamentação.
"Reconheces isto?", quis saber Silano. "Qual parte disto?",
perguntei, cauteloso.
"Os templários traçaram outra configuração com base neste
formato", disse ele.
Unindo os pontos, o conde desenhou uma linha em
ziguezague. "Aí está - um relâmpago. Tão surpreendente
que chega a dar medo, não?"
"Talvez."
"Nada de talvez. As pistas deixadas pelos templários nos
mandam usar o céu se quisermos descobrir onde está o livro.
O símbolo do relâmpago está no mapa que achamos aqui - e
ainda há o poema."
"Poema?"
"Duas estrofes. É bem eloqüente." Ele recitou:
Aether cum radiis solis fulgore relucet
Angelus et pinnis indicat ore Dei,
Cum region deserta bibens ex murice torto
Siccatis labris arida sorbet aquas
Tum demum partem quandam lux clara revelat
Quae prius ignota est nec repute tibi
Opperiens cunctatur eum dea cândida Veri
Floribus insanum qui furit atque fide
"Isso para mim é grego, Silano."
"Latim. Eles não ensinam os clássicos nos sertões da
América, Gage?"
"Nos sertões, os clássicos são bons para acender fogueira."
"Encontrei esse documento durante minhas viagens, e a
tradução explica por que eu estava ansioso para que nos
reencontrássemos."
Quando o céu fulgura com o relâmpago dos raios do sol
E com as plumas o anjo aponta ao comando de Deus;
Quando o deserto, bebendo da concha retorcida do caracol,
Sedento suga água com lábios secos.
E então a clara luz enfim revela certa parte
Que antes era ignota e irreconhecida por teu espírito.
Prolongando-se, a Verdade brilhante e divina espera aquele,
Tolo louco por flores, que também confia por fé.
O que diabos significava aquilo? O mundo evitaria um
bocado de confusão se todos se limitassem a dizer as coisas
às claras, mas isso não parece ser nosso hábito... Entretanto,
havia naquelas palavras algo que despertava uma lembrança,
uma coisa que eu nunca compartilhara com Astiza nem com
Silano. Senti um arrepio de reconhecimento.
"Precisamos ir a um lugar especial na Cidade dos Espíritos",
disse Silano, "e invocar as chamas da tempestade, o
relâmpago, da mesma maneira que teu mentor Franklin fez
na Filadélfia. Chamar o relâmpago para os serafins e ver para
qual parte eles apontam."
"Qual parte do quê?"
"Meu palpite é que seja de uma construção ou uma gruta.
Teremos a resposta se o procedimento der certo."
"E o deserto bebe de uma concha de caracol?"
"De um temporal com relâmpago. Desconfio que seja
referência a alguma taça sagrada."
Ou a outra coisa, pensei com meus botões. "E quanto às
flores e à fé?" "Minha teoria é que se trate de uma referência
aos próprios templários e à Ordem Rosa-cruz. As conjeturas
sobre a origem dos rosa-cruzes variam, mas uma delas diz
que o sábio alexandrino Ormo foi convertido ao cristianismo
pelo apóstolo Marcos, no ano 46, e fundiu os ensinamentos
de Jesus com os do Egito antigo, criando um credo gnóstico,
ou a crença no conhecimento." Silano me encarou para
certificar-se de que eu fizesse a correlação com o Livro de
Tot. "As correntes de pensamento vão surgindo e
desaparecendo na história do mundo, mas o símbolo da cruz
e da rosa é muitíssimo antigo, simbolizando morte e vida, ou
desespero e esperança. A Ressurreição, se preferes."
"E masculino e feminino", acrescentou Astiza. "A cruz fálica
e a flor vulvar."
"Flor e fé simbolizam o caráter que se exige daqueles que
querem descobrir o segredo", disse Silano.
"Uma mulher?"
"Talvez, sendo esse um dos motivos para termos uma
conosco."
Resolvi guardar minhas suspeitas para mim mesmo. "Então
pretendes atrair um raio para os meus serafins e ver o que
acontece?"
"Sim, no lugar determinado pelos documentos que
encontramos."
Ponderei. "Estás falando é de um pára-raios - ou melhor,
dois, já que temos dois serafins. Creio que precisaremos de
metal para conduzir a energia para o solo."
"E é por isso que as estacas de nossa tenda são de metal, para
que possamos montar os teus anjos. Venho planejando isto
há meses. Precisarás de nossa ajuda para achar a cidade, e
precisaremos da tua para achar o esconderijo lá."
"E depois? Dividiremos o livro ao meio?"
"Não", respondeu Silano. "Não precisamos de um Salomão
para resolver nossa rivalidade. Nós o usaremos juntos, para o
bem da humanidade, exatamente como faziam os antigos."
"Juntos?!"
"Por que não, se teremos poder ilimitado para fazer o bem?
Se o mundo é como um tecido diáfano, podemos fiar e
torcer a matéria. É isso o que o livro aparentemente nos diz
como fazer. E, se todas as coisas são possíveis, então
podemos deslocar rochas, prolongar vidas, reconciliar
inimigos e curar feridas." Os olhos de Silano luziam.
Olhei para o quadril dele. "Tendo tu recuperado a
juventude."
"Precisamente, e no comando de um mundo enfim regido
pela razão." "A razão de Bonaparte?"
Silano olhou de relance para Najac. "Sou fiel ao governo que
me empregou. Todavia, os políticos e os generais só
compreendem até certo ponto. Os sábios é que governarão o
futuro, Gage. O mundo anterior era brinquedo de príncipes
e clérigos. O novo será responsabilidade dos cientistas.
Quando a razão e o oculto se unirem, terá início uma idade
de ouro. Os sacerdotes desempenharam esse papel no
Egito. Nós seremos os sacerdotes do futuro."
"Mas estamos em lados opostos!"
"Não estamos, não. Todas as coisas são duais. E estamos
ligados por Astiza." O sorriso de Silano se pretendia sedutor.
Que trindade ímpia! Mas eu não conseguiria nada se não
cooperasse, não era mesmo? Olhei para Astiza. Ela estava
sentada junto a Silano, não a mim.
"Ela nem me perdoou", menti.
"Perdoarei se nos ajudares, Ethan", replicou Astiza.
"Precisamos de ti para chamar o fogo celeste. Precisamos de
ti para submeter o céu, tal qual Benjamin Franklin."
- 18 -
A entrada da Cidade dos Espíritos era um canyon de arenito,
apertado e rosado como uma virgem. Na base, a sinuosa
passagem não era mais larga que alguns passos, e o céu era
uma distante risca azul lá em cima. Os paredões se elevavam
a seiscentos pés, por vezes se inclinando como um teto,
como fresta a fechar-se num terremoto. Enquanto
caminhávamos levando bornais pelo leito ensombrecido do
canyon, esse abraço rochoso se mostrava inquietante. Mas,
se a pedra pode mesmo ser voluptuosa, então aquela fenda
amuralhada, rosa e azul, era um serralho de carne ondulada,
talhada pela água em mil formas sensuais, tão agradáveis aos
olhos quanto a favorita de um sultão. Grande parte era
listrada em camadas de coral, cinza, branco e alfazema. A
rocha aqui pingava como melado congelado, ali se
intumescia como glacê, acolá se assemelhava a uma cortina
de renda. O leito, de areia e pedra, formava uma estrada
tosca que descia rumo a nosso destino, como passadiço para
algum mundo inferior num sonho de sátiro.
E, quando olhei com atenção, vi que a natureza não era a
única escultora ali. Aquilo fora um portão de caravana, e
tinham escavado no paredão uma calha, com manchas
escuras que deixavam claro que ela, um dia, servira de
aqueduto para a antiga cidade. Passamos sob o desgastado
arco romano que marcava a entrada superior do canyon e
seguimos silenciosa e energicamente, com um misto de
temor e admiração, por nichos nos paredões que abrigavam
deuses e entalhes geométricos. Camelos de arenito, duas
vezes maiores que o tamanho natural, sacaroteavam conosco
em baixo-relevo. Era como se os mortos tivessem sido
transformados em pedra, e, quando viramos a derradeira
quina do canyon, esse efeito fantasmagórico se intensificou
muito. Ficamos boquiabertos.
"Vede!", proferiu Silano. "Eis o que se torna possível quando
os homens sonham!"
É, o livro só podia estar ali.
Tendo partido de Nebo, estávamos havia vários dias em
jornada para aquele lugar. Nossa comitiva seguira as
elevações do Jordão, contornando verdes pastagens no
planalto e passando pelas sorumbáticas ruínas de castelos
que os cruzados construíram, lugares tão esquecidos quanto
os templários. De quando em quando, descíamos a canyons
profundos e escaldantes, que se abriam para o deserto de
areias amarelas a oeste. Regatos minúsculos eram engolidos
pela aridez. Depois subíamos para o outro lado e
continuávamos no rumo sul, com falcões a girar no ar
ascendente e seco, e beduínos a tocar suas cabras para uádis
laterais, vigiando-nos silenciosamente, de uma distância
segura, até terminarmos de passar. O cerco de Acre parecia
estar a um planeta de distância.
No percurso, eu tivera tempo mais que suficiente para
pensar nos versos latinos de Silano. Aquilo de os anjos
apontarem me parecia plausível até certo ponto, embora eu
nem imaginasse que forças poderiam estar em operação ali.
Mas o que me instigara a memória foram as referências à
concha de caracol e flor. As mesmas imagens tinham sido
usadas pelo sábio francês Edme-François Jomard, amigo
meu, quando escalamos a Grande Pirâmide.
Ele dissera que as dimensões da pirâmide codificavam um
"número áureo" (1,618, se eu bem me lembrava), que, por
sua vez, era a representação geométrica de uma progressão
numérica chamada seqüência de Fibonacci. Essa progressão
podia ser simbolizada por uma série interligada de retângulos
e quadrados cada vez maiores, e um arco ao redor dos
retângulos gerava o tipo de espiral vista numa concha de
náutilo ou, afirmava Jomard, na disposição das pétalas nas
flores. Meu amigo Talma concluíra que o jovem cientista era
meio maluco, mas eu fora tomado de curiosidade. Será que a
pirâmide traduzia de fato alguma verdade fundamental sobre
a natureza? E como isso se relacionava (se é que relacionava
mesmo) ao lugar para onde estávamos indo agora?
Tentei pensar como Monge e Jomard, os matemáticos. "E
então a clara luz enfim revela certa parte que antes era
ignota e irreconhecida por teu espírito", haviam escrito os
templários. Aquilo parecia não significar nada, mas, ainda
assim, deu-me uma idéia extravagante. Teria eu uma pista
que me possibilitaria arrebatar o Livro de Tot bem debaixo
do nariz de Silano?
Acampávamos nos lugares mais defensáveis que achávamos
e, em certo entardecer, subimos um morro para pernoitar
nos restos de um castelo que os cruzados haviam construído
com arenito e sobre cujas torres destruídas as andorinhas
voavam em círculos. Ao poente, as ruínas eram amarelas,
com mato crescendo entre as pedras. Subimos cavalgando
através de um prado de flores silvestres que balançavam ao
vento da primavera. Era como se as flores assentissem para
minha suposição. Fibonacci, sussurravam elas.
Quando nos aglomeramos no portão semi-ruído para levar
nossos cavalos ao pátio abandonado do castelo, dei um jeito
de cochichar para Astiza: "Encontra-me ao luar, nas ameias,
o mais longe possível de onde dormirmos".
Ela aquiesceu de modo quase imperceptível e então, agindo
como se estivesse irritada, incitou seu cavalo adiante para
cortar o caminho do meu. Para os outros, éramos ex-
amantes ressentidos.
Eu, Ned e Mohammad tínhamos estabelecido o hábito de
dormirmos um pouco apartados do bando de degoladores de
Najac, e, quando Ned já estava mergulhado em seu vigoroso
ronco, saí de fininho e aguardei nas sombras. Astiza veio
como um fantasma, envolta num branco luminoso e
diáfano. Levantei-me e puxei-a para uma guarita longe dos
olhares de quaisquer outras pessoas, com o luar leitoso
entrando pela seteira. Eu a beijei pela primeira vez desde
nosso reencontro; seus lábios estavam gelados pelo frio
noturno, e seus dedos se entrelaçaram aos meus para
controlar minhas mãos.
"Não temos tempo", sussurrou Astiza. "Najac está acordado e
pensa que saí para as necessidades. Ele deve estar contando
os minutos."
"Deixa o desgraçado contar." Tentei abraçá-la.
"Ethan, se não nos contivermos agora, vamos estragar tudo!"
"Se nos contivermos, eu vou explodir."
"Não." Ela me empurrou para longe. "Sejas paciente!
Estamos quase lá!"
Maldição! Desde que eu saíra de Paris, estava difícil
conseguir sossegar o facho - era exercício demais e mulher
de menos. Respirei fundo. "Muito bem, mas escuta. Se esse
truque do raio funcionar mesmo, tu precisarás me ajudar a
ficar longe de Silano. Necessitarei de tempo para tentar uma
coisa, sozinho. Combinaremos como nos encontrarmos
depois."
"Sabes algo que não nos contaste, não é mesmo?"
"Talvez. É uma aposta."
"E és apostador." Astiza pensou por um momento. "Depois
que atrairmos o raio, diz a Alessandro que trocarás tua parte
no livro por mim. Eu então fingirei trair-te e irei com ele.
Nós te abandonaremos. Faze-te de frustrado."
"Não será difícil. Posso confiar em ti?"
Ela sorriu. "A confiança precisa vir do íntimo."
Tendo dito isso, afastou-se na surdina. No resto do tempo,
tomamos o cuidado de parecer tão eriçados um com o outro
quanto porcos-espinhos brigados. Minha esperança era que
se tratasse realmente de um ardil de Astiza.
Seguíamos pelas velhas trilhas de caravana. Eu temia as
patrulhas otomanas, mas era como se o confronto no monte
Tabor tivesse feito as forças turcas desaparecerem
temporariamente. O mundo parecia vazio, primevo. Em
certa altura, vieram em nosso encalço membros de tribos
locais, uns homenzinhos rijos e mal-encarados, montados
em camelos; mas nossa comitiva também parecia rija e mal-
encarada, além de pobre, não dando a impressão de valer a
pena nos assaltar. Najac se afastou a cavalo para conversar
com eles, levando seus próprios bandoleiros, e os nativos
acabaram sumindo.
Quando chegamos à cidade do mapa templário, ninguém
mais nos seguia.
Viramos para oeste e descemos da beira do planalto central
para o distante deserto. Entre nós e aquele ermo, erguia-se a
mais estranha formação geológica que eu já vi. Havia uma
sucessão de montanhas de aspecto lunar, recortadas e
severas - e, em frente a elas, um furúnculo de arenito
marrom, arredondado e cheio de protuberâncias.
Assemelhava-se a um ensopado que fora congelado com
bolhas castanhas e tudo, ou a um pão que crescera
desmesuradamente. Parecia não existir passagem naquela
formação, nem ao redor - mas, quando nos aproximamos,
vimos nela cavernas, como uma varíola arenítica, um
monstro de cem olhos. Percebi que a região estava salpicada
desses afloramentos. Neles começaram a surgir pilares e
degraus talhados. Acampamos num uádi seco, com as
estrelas reluzentes e geladas.
Silano disse que as trilhas que percorreríamos na manhã
seguinte eram demasiadamente estreitas e íngremes para
montarias, de modo que, quando clareou, nós as amarramos
a estacas na entrada do canyon, deixando de guarda alguns
dos árabes de Najac. Notei que os cavalos estavam
estranhamente nervosos, relinchando e batendo os cascos, e
temiam um carroção que surgira à beira de nosso
acampamento em alguma hora da noite. O carroção era
aquadradado e estava coberto de oleados, e Silano explicou
que, entre os suprimentos guardados ali, o cheiro da carne
deixava os animais nervosos. Eu quis investigar, mas então o
sol da manhã iluminou a escarpa e realçou o canyon e o
convidativo arco romano. Entramos a pé e, poucas jardas
depois, não enxergávamos mais nada do mundo lá atrás.
Desapareceram todos os sons, menos o de nossos passos
arrastados à medida que descíamos pelo leito.
"Tempestades varreram pedras para o que foi uma estrada da
Antiguidade", esclareceu Silano. "Aqui, segundo os registros,
as enchentes repentinas e violentas ocorrem com mais
freqüência nesta época do ano, depois de trovões e
relâmpagos. Os templários sabiam disso e se valeram de tal
informação. Nós faremos o mesmo."
E então, como já descrevi, chegamos à outra extremidade do
canyon após uma milha de caminhada e ficamos
boquiabertos. Diante de nós, havia outro canyon,
perpendicular ao primeiro e tão imponente quanto aquele,
mas não foi isso o que nos deixou assombrados - e sim o fato
de que, no paredão oposto, estava o mais inesperado
monumento que eu já encontrara, o primeiro a rivalizar em
esplendor com a imensidão das pirâmides.
Era um templo talhado na rocha viva.
Imaginai um desfiladeiro vertical com centenas de pés de
altura, tão róseo quanto as faces de uma donzela. Cinzelado
nele e dele (não era simples coisa sobreposta ao paredão),
um complexo edifício pagão com colunas, frontões e
cúpulas mais altos que uma agulha de campanário da
Filadélfia. Águias esculpidas do tamanho de bisões se
encarapitavam na cornija, e os vãos entre as colunas
abrigavam figuras de pedra com asas de anjo. Todavia, o que
atraiu meu olhar não foram esses querubins ou demônios,
mas a figura central bem acima da escura porta do templo.
Era uma mulher, de seios desnudos e erodidos, a roupa
pétrea num drapejado romano sobre os quadris, a cabeça
erguida e atenta. Eu vira aquele mesmo arranjo visual nos
recintos sagrados do Egito antigo. Aninhada no braço, uma
cornucópia. Na cabeça, os resquícios de uma coroa
constituída de um disco solar entre chifres de touro. Senti
um calafrio ante aquela estranha recorrência de uma deusa
que vinha me assombrando desde Paris, onde os romanos
haviam construído um templo para a mesma divindade no
que agora era o terreno da Catedral de Notre-Dame.
"Ísis!", exclamou Astiza. "Ela é uma estrela a guiar-nos até o
livro!"
Silano sorriu. "Os árabes dão a este templo o nome Khazneh,
que significa Erário ou Tesouro, porque as lendas locais
alegam que o Faraó escondeu sua riqueza aqui."
"Estás dizendo que o livro se encontra lá?", perguntei.
"Não. Os recintos estão vazios e são pouco profundos. O
livro está em algum lugar aqui perto."
Fomos até a entrada do Khazneh, chapinhando ao atravessar
o regato que corria pelo centro dessa nova fenda na terra. A
nossa direita, o canyon dava uma guinada para longe. Uma
larga escadaria levava à escura entrada com colunas. Ficamos
um momento em pé no frescor do pórtico, olhando para a
rocha vermelha lá fora, e então adentramos o templo.
Como Silano já dissera, o lugar estava decepcionantemente
desguarnecido, tão sem traços característicos quanto a
câmara que continha o sarcófago vazio na Grande Pirâmide.
O desfiladeiro fora cavoucado para dar origem a câmaras
retas e perpendiculares, semelhantes a caixotes. Alguns
minutos de verificação confirmaram que não existiam portas
ocultas. O templo era tão nu quanto um armazém vazio.
"A menos que tenham concebido algum truque para este
lugar - suas dimensões matemáticas, por exemplo -, não há
nada aqui", disse eu. "Ele serve para quê?" Parecia grande
demais para uma moradia, mas não grande e luminoso o
bastante para um templo.
Silano deu de ombros. "Não importa. Ainda vamos descobrir
o Lugar do Alto Sacrifício, de que falam os documentos. Se
há uma coisa que podemos confirmar, a respeito disto aqui,
é que o lugar não é elevado."
"Mas é sublime", murmurou Astiza.
"E uma ilusão, como tudo mais", rebateu Silano. "Só a mente
é real. É por isso que a crueldade não constitui pecado."
Saímos, e o canyon estava em parte ao sol, em parte nas
sombras. O dia se enevoava. "Estamos com sorte", disse
Silano. "O ar está pesado, e o cheiro é de temporal. Não
teremos de esperar, mas precisamos agir antes que se
desencadeie a tempestade."
O novo canyon se alargava lentamente à medida que
seguíamos por ele, proporcionando-nos vislumbres cada vez
melhores do labirinto de montanhas que penetráramos. Os
escarpamentos pareciam disparar para o céu em camadas de
bolo, em pães arredondados, em castelos de massa de
panificação. O oleandro florescia para refletir aquela
estranha rocha. Por toda a parte, os paredões estavam
perfurados de cavernas, mas estas não eram naturais.
Tinham o formato retangular de portas humanas, indicando
que pessoas haviam escavado-as. Era uma cidade construída
não sobre a terra, mas da terra. Passamos por um grandioso
teatro romano em semicírculo, com suas fileiras de assentos
também talhadas no próprio desfiladeiro. Por fim, demos
numa larga cavidade cercada por montanhas íngremes,
como um vasto pátio rodeado de muros. Era o esconderijo
perfeito para uma cidade, acessível apenas por canyons
estreitos e facilmente defendidos. E, no entanto, havia ali
espaço suficiente para comportar toda a Boston. Colunas,
que já não tinham o que sustentar, elevavam-se da terra.
Templos sem teto se erguiam do entulho.
"Pelo amor de Isis", sussurrou Astiza, "quem sonhava aqui?!"
Um dos paredões era um espetáculo que rivalizava com o
Khazneh. Fora talhado de modo a ser a fachada de uma
cidade fabulosa, uma profusão de escadarias, colunas,
pedimentos, plataformas, janelas e portas, conduzindo a uma
verdadeira colméia de câmaras lá dentro. Comecei a contar
as entradas e desisti. Eram centenas. Não, milhares.
"Este lugar é imenso", disse eu. "Faz as pirâmides parecerem
uma caixa de correio. É para acharmos um livro aqui?!"
"E para tu achares. Tu e os teus serafins." Silano sacara seu
mapa templário e agora o examinava. Depois, apontou. "Lá
em cima."
Atrás de nós, uma montanha que se erguia acima do antigo
anfiteatro fora escavada para criar parapeitos, mas parecia ser
plana no topo. Trilhas de cabra conduziam até lá. "Lá em
cima? Mas onde?"
"No Lugar do Alto Sacrifício."
Uma senda fora construída de degraus toscos talhados no
arenito. O ar estava quente e úmido, e suávamos.
Entretanto, à proporção que subíamos, a vista se alargava, e
surgiam cada vez mais desfiladeiros salpicados de portas e
janelas. Não vimos gente em parte alguma. A cidade
abandonada estava muda, sem as lamentações de almas
penadas. A luz se arroxeava.
Chegando ao topo, nós nos vimos numa meseta de arenito
com uma vista magnífica. Bem lá embaixo, estava a cavidade
poeirenta de muros descaídos e colunas tombadas, encerrada
pelos desfiladeiros. Mais além, outras montanhas escarpadas
sem nenhum sinal de verde, como se fossem esqueletos. O
sol ia baixando na direção das cabeças de trovoada que,
assomando, aproximavam-se rapidamente de nós como
negras belonaves. Uma brisa tórrida e úmida apanhava funis
de poeira e os fazia girar ainda mais, como piões. Até a
meseta onde estávamos fora aplainada com muita precisão
por antiqüíssimas talhadeiras. No centro, haviam recortado
um retângulo do tamanho de um salão de baile, como uma
piscina seca e muito rasa. Silano consultou uma bússola. "É,
o retângulo está mesmo no sentido norte-sul", sentenciou,
como se já esperasse por aquilo. Para oeste, de onde vinha a
tempestade, quatro degraus levavam a uma plataforma
elevada que parecia ser alguma espécie de altar. Nela, via-se
uma pia redonda com calha.
"Para o sangue", contou-nos Silano. O capote dele se agitava
ao vento.
"Não vejo nenhum lugar onde esconder um livro", disse eu.
O conde fez um gesto para a cidade lá embaixo, com aqueles
dez mil buracos que marcavam o arenito como se fossem
uma absurda colméia. "E eu vejo o infinito. Chegou a hora
de usar os teus serafins, Ethan Gage. Eles são feitos de um
metal mais sagrado que o ouro."
"E que metal é esse?"
"Os egípcios o chamavam Ra-ezhri, as lágrimas de Rá, o Sol.
O deus vai tocar o metal e então apontar para onde devemos
ir. Invocaremos o dedo de Tot! A essência do universo irá
nos dar um sinal!"
Ele estava totalmente maluco, mas imagino que o velho Ben
também estivesse quando se propôs a empinar papagaio
numa tempestade. Os savants são um bando de adoidados.
"Espera aí - o que acontecerá quando pegarmos o livro?"
"Nós o estudaremos", respondeu Silano, abrupto.
"Nem sabemos se conseguiremos decifrá-lo", acrescentou
Astiza.
"Eu me refiro a saber quem fica com o livro", insisti.
"Alguém precisará ser o guardião dele. Parece que os meus
serafins são o instrumento fundamental e que a minha
habilidade em instalá-los é a chave de tudo. E não estou
realmente nem do lado francês nem do britânico - sou
neutro. Tu deverias confiá-lo a mim."
"Não terias achado este lugar por conta própria nem em mil
anos", resmungou Najac. "És incapaz de cuidar de uma lista
de compras no armazém."
"E não conseguirias achar a tua orelha direita nem se ela
estivesse amarrada às tuas bolas por um barbante", retruquei,
irritadamente.
"Gage, por certo que a situação já está bem clara nesta altura
das coisas, não?", disse Silano com impaciência. "Tu te juntas
a mim, no Rito Egípcio, e ganhas uma fatia do poder."
"Juntar-me ao homem que, no Egito, mandou-me a cabeça
de meu amigo?"
Silano deu um suspiro. "Ou podes ficar sem nada." "E qual
seria o teu título de posse do livro?" Eu precisava
desempenhar meu papel.
Ele olhou em volta, divertindo-se. "Ora, o fato de ter todas
as armas de fogo, a maior parte das provisões e a única
esperança de decifrarmos o que estamos prestes a achar." Os
homens de Najac apontaram os canos de suas armas. Irritou-
me sobremaneira ter de olhar para a boca de meu próprio
fuzil, ali nas mãos sebosas de Najac. "Realmente não
entendo o que Franklin viu em ti, Ethan. Tens tanta
dificuldade para enxergar o óbvio!..."
Apontei para as nuvens, que se acumulavam. "A coisa não
funcionará sem mim, Silano."
"Não sejas tolo. Se não ajudares, ninguém conseguirá o livro,
e ficarás sem nada. Ademais, estás tão curioso quanto eu."
Olhei para Astiza. "Pois eis minhas condições. Eu te ajudarei
a aprestar os serafins. Se der certo, acharás o livro. Pega-o, e
não se fala mais nisso."
"Chefe!", exclamou Ned.
"Mas quero Astiza no lugar do livro."
"Ela não é minha para que eu possa dá-la."
"Quero que nos deixes ir embora, sem nos causar mal nem
interferir conosco."
Silano olhou de relance para ela. Astiza evitou tanto o olhar
dele como o meu. "E tu ajudarás se eu concordar?"
Assenti e disse: "É melhor nos apressarmos".
"Mas a escolha é dela, não minha", alertou Silano. A
fisionomia de Astiza era uma máscara sem expressão.
"Sim, a escolha é dela", confirmei, cheio de confiança. "Não
tua. É tudo o que peço."
"Feito." Ele sorriu, um sorriso tão frio quanto uma armadilha
para castor num riacho canadense. "Agora, ajuda-nos a
preparar os serafins."
Respirei fundo. Será que eu podia mesmo confiar nela?
Aquilo daria certo afinal? Eu estava apostando tudo numa
charada latina. Enfiei a mão nas ceroulas para tirar dali meus
suvenires das pirâmides e vi os olhos do feiticeiro brilharem
quando ele os pegou. "Usa os encaixes que os prendiam ao
cajado de Moisés para montá-los no alto das tuas estacas de
metal", instruí. "Vamos fazer um pára-raios de Franklin."
Notei dois furos no chão da meseta, e Silano confirmou que
eles eram mencionados nos documentos templários. Assim,
inserimos as estacas ali. Não havia, porém, nenhuma junção
entre os furos.
Examinei aquela superfície plana. O arenito exibia ranhuras,
formando uma estrela de seis pontas. As estacas estavam em
pontos opostos.
"Precisamos ligar as estacas", disse eu, "com fita ou fio
metálicos, para conduzir a eletricidade. Trouxeste algum?"
Claro que não - ali estava o alardeado trabalho de pesquisa de
Silano! Ia ficando escuro, e os trovões ribombavam à medida
que as nuvens inchavam. Funis de poeira se moviam ligeiros
pelo leito do vale, ziguezagueando e oscilando como ébrios.
"Não entendo o que as hastes poderão fazer se ficarem
isoladas uma da outra", avisei.
"Os templários afirmaram que funcionará. Meus estudos são
infalíveis."
O homem tinha um ego tão grande quanto o de Aaron Burr.
Bem, pensei no que poderia substituir o metal (pois aqueles
meus inimigos tinham razão: eu estava tão curioso quanto
qualquer um). "Najac, faz alguma coisa além da cara feia",
acabei dizendo. "Usa o teu odre para encher essas ranhuras
com água e acrescenta sal."
"Água?"
"Ben dizia que ela ajuda a conduzir eletricidade."
A água preencheu as ranhuras até que a estrela fulgurou à
luz densa e verde-arroxeada. O sol sumiu, e a temperatura
baixou. Senti arrepios. Mais trovões, e eu via os primeiros
feixes de chuva descerem em espiral, como plumas,
evaporando-se antes de chegarem ao chão. Relâmpagos
golpeavam o céu a oeste. Recuei para a beira da meseta. Ned
e Mohammad me acompanharam, mas ninguém mais
parecia assustado. Até Astiza aguardava esperançosamente,
com o cabelo em torvelinho pela ventania e os olhos no
céu, e não em mim.
A tempestade caiu sobre nós como uma carga de cavalaria.
Veio um de pé-de-vento atirando pedriscos e terra grossa, e
fomos atropelados pelas nuvens, grandes sacas de chuva e
trovão que adquiriam intenso brilho prateado ao avolumar-
se e inflar. Raios lampejavam e atingiam os picos ao nosso
redor, cada vez mais perto, com os trovões soando como
uma artilharia. Caíram gotas grossas, que eram muito
quentes e pesadas, mais parecendo chumbo derretido que
água. Nossas roupas tremulavam, e o silvo do vento se
tornou um grito agudo. E aí houve um clarão ofuscante, um
estrondo imediato, e a montanha estremeceu - um dos pára-
raios fora atingido! Senti as pernas bambas. Voaram faíscas, e
uma luz azul brilhante foi de estaca a estaca pelas ranhuras
molhadas da estrela e depois formou um arco no ar entre os
dois anjos. Os serafins ficaram de um branco incandescente.
As estacas de ferro giraram, e as asas deles apontaram para
nordeste, enviesando-se umas para as outras de modo que
retas traçadas de cada um dos anjos se interceptavam umas
vinte jardas adiante. O relâmpago já passara, mas as estacas
retinham força elétrica, banhando tudo com um fulgor roxo
que não era muito diferente daquele que havíamos
testemunhado na câmara sob o Monte do Templo. E então
raios de luz emanaram das asas dos serafins, encontraram-se
em pleno ar, e o raio único resultante riscou o espaço como
uma bala de fuzil, indo atingir um grandioso vão da entrada
com colunas, em outro templo do paredão de rocha, a duas
milhas de onde estávamos. Voavam faíscas para todos os
lados, como numa fonte.
"Isso!", exclamaram os capangas de Silano.
O raio se manteve por um momento, como uma
momentânea espiada do sol numa caverna sombria, e depois
se desvaneceu. O alto da montanha escureceu.
Deslumbrado, olhei para nossas estacas de metal. Os serafins
tinham derretido e se achatado, lembrando cogumelos na
ponta das estacas. Silano erguera os braços para o ar, em
triunfo. Astiza estava rígida, o vestido ensopado, a água
pingando dos anéis de cabelo colados às faces. A tempestade
se deslocava para leste, mas, atrás de sua rabeira flamejante,
vinha mais chuva, agora mais fresca, tirando o cheiro de
temporal do ar. Era um aguaceiro. Todos sentíamos a
eletricidade no ar, e nossos cabelos dançavam por ela. No
alto dos desfiladeiros, a água corria a cântaros por toda a
parte.
"Alguém marcou onde incidiu aquele raio?", perguntou
Silano.
"Eu conseguiria achar o lugar de olhos fechados", garantiu
Najac, com uma ponta de cobiça na voz.
"Foi obra do capeta", murmurou Big Ned.
"Não, obra de Moisés!", replicou Silano. "E dos templários e
de todos os que buscam a verdade. Senhores, estamos vendo
a obra de Deus. E não importa se esse deus é Tot, Jeová ou
Alá, pois sua conformação é a mesma - o conhecimento." Os
olhos do conde se acendiam de energia, como se parte do
raio o tivesse permeado.
Não tenho nada contra o conhecimento - afinal, estive
numa expedição de savants - mas as palavras e o aspecto de
Silano me inquietaram. Recordei sermões, ouvidos na
infância, em que Satã era uma serpente que prometia o
conhecimento a Adão e Eva. Com que fogo estávamos
brincando ali? Ao mesmo tempo, como podíamos deixar
que um fruto tão tentador ficasse sem ser colhido?
Olhei para Astiza, minha bússola moral. Mas ela precisava
evitar meu olhar, não era mesmo? Astiza parecia estupefata -
realmente ocorrera alguma coisa - e preocupada.
"Creio, senhores, que estamos prestes a fazer história",
proclamou Silano. "Desçamos antes que anoiteça.
Acamparemos em frente ao templo que foi iluminado e
iremos vasculhá-lo à primeira luz da manhã."
"Ou com tochas, hoje à noite mesmo", disse o ansioso Najac.
"Entendo tua impaciência, Pierre, mas acho que, após mil
anos, nosso objetivo não vai a lugar nenhum. Gage, tua
companhia foi fascinante como sempre, mas ouso dizer que
nenhum de nós dois lamentará muito a perspectiva de
seguirmos caminhos diferentes. Fizeste teu acordo, de
maneira que agora posso dizer-te adieu, sertanejo da
América." Ele se inclinou numa reverência.
"Astiza", disse eu, "agora podes vir comigo."
Ela ficou longo tempo calada, até dizer: "Mas não vou,
Ethan."
"Hein?"
"Ficarei com Alessandro."
"Mas eu vim por tua causa! Saí de Acre por ti!" Ostentei mais
indignação que um advogado ao encarar provas irrefutáveis
contra seu cliente.
"Não posso deixar Alessandro ter o livro apenas para si,
Ethan. Não posso me afastar do livro depois de todo este
sofrimento. Isis me conduziu a este lugar para que eu
concluísse o que comecei."
"Mas Silano é louco! Vê quem são seus companheiros. Eles
são cria do diabo! Vem conosco - vem comigo para a
América."
Astiza balançou negativamente a cabeça. "Adeus, Ethan."
Silano sorria. Ele já esperava aquilo.
"Não!"
"Ela já escolheu, Gage."
"Só ajudei com o raio para ficar contigo!"
"Sinto muito, Ethan. O livro é mais importante do que tu.
Mais importante do que nós. Volta para os ingleses. Eu vou
com Alessandro." "Tu me usaste!"
"Nós te usamos para achar o livro — de uma vez por todas,
espero."
Com fingida frustração, arranquei uma das estacas de ferro
para usá-la como arma, mas o bando de Najac apontou os
mosquetes em minha direção. Astiza, envolvendo a cabeça
com o lenço, não quis olhar para mim enquanto Silano a
conduzia para fora da meseta.
"Muito em breve, Gage, perceberás o que acabas de jogar
fora", disse Silano, em tom mais alto, para mim. "Ah, o que o
Rito Egípcio poderia ter-te proporcionado!... Amaldiçoarás o
trato que quiseste fazer!"
"É", resmungou Najac, empunhando a pistola com firmeza.
"Então, que voltes para Acre e morras."
Deixei a estaca cair com um tinido. Nossa encenação dera
certo - se é que Astiza estava mesmo fingindo. "Se é assim,
ide embora da minha montanha!", ordenei, com voz
trêmula.
Dando sorrisos zombeteiros, desceram a trilha em fila,
levando com eles as estacas e os serafins derretidos. No
caminho, Astiza só relanceou para trás uma vez.
Quando eles já estavam a uma distância suficiente para não
nos ouvirem, Big Ned finalmente explodiu.
"Por todos os santos, chefe, vamos deixar aquele carcamano
patife roubar o tesouro que é nosso por direito?! Achei que
tivesses mais peito!"
"Miolo, Ned, miolo. Lembras como te superei no duelo?"
Ele ficou com cara de quem falara bobagem e aceitava a
repreensão. "Lembro."
"Pois aquilo foi com miolo, não muque. Silano não sabe
tanto quanto imagina, e isso quer dizer que agora temos
nossa chance. Vamos achar uma trilha pela parte de trás
desta montanha e fazer nossas próprias explorações, bem
longe daquela súcia de degoladores."
"Longe? Mas eles sabem onde está esse teu livro!"
"Sabem onde o raio lançou a luz. Só que não acho que os
templários seriam assim tão óbvios. A minha esperança é
que eles tenham sido estudiosos da Grande Pirâmide."
Ned não entendeu nada. "Estás falando de quê, chefe?"
"A minha aposta é que o que acabamos de testemunhar foi
uma tentativa de levar os outros a equivocarem-se. Sou um
apostador, Ned. E a Grande Pirâmide incorpora uma
sucessão de números conhecida como seqüência de
Fibonacci. Tu já deves ter ouvido falar disso, não?"
"Com a breca! Não ouvi, não."
"Os franceses me ensinaram isso no Egito. A tal seqüência é
uma representação de certos processos básicos da natureza.
É algo sagrado, se preferes essa palavra. Bem o tipo de coisa
em que os templários estariam interessados."
"Desculpa, chefe, mas eu achava que tudo isso tinha a ver
com tesouros antigos e poderes secretos, não com números
e templários."
"São todas essas coisas juntas, Ned. Pois bem, existe uma
razão numérica que aparece em qualquer representação
geométrica da seqüência, uma proporção aprazível entre
uma reta mais longa e uma mais curta. Essa proporção
corresponde ao número 1,61 e uns quebrados e é
denominada número áureo. Os gregos, os construtores das
catedrais góticas e os pintores renascentistas a conheciam, e
ela foi incorporada nas dimensões da Grande Pirâmide."
"Áureo?" Ned me olhava como se eu fosse maluco, o que
talvez fosse mesmo verdade.
Tracei retas no chão. "Isso significa que o livro talvez esteja
em ângulo com aquilo que vimos aqui. Pelo menos, é nisso
que estou apostando. Vejamos... Vamos supor que a base da
pirâmide seja representada pela reta que vimos disparar
através do vale." Esbocei uma reta para as ruínas a que Silano
e sua turma se dirigiam naquele momento. "Tracemos uma
perpendicular que vai do ponto de origem daquela reta mais
ou menos para oeste." Apontei a serra escarpada de onde
viera a tempestade. "Em alguma interseção dessa nova reta,
há um ponto que seria representado se, para completarmos
um triângulo retângulo, traçássemos o cateto oposto entre o
lugar para onde foi Silano e a reta que imaginei para oeste."
"Um ponto onde?..."
"Exatamente. Precisaríamos saber o comprimento desse
cateto oposto. Imaginemos que ele tenha aproximadamente
1,61 vezes o comprimento do cateto que vai daqui ao
templo de Silano - a razão áurea, que é a representação física
da seqüência de Fibonacci e da própria constante natural,
como vemos na inclinação da Grande Pirâmide. É difícil
estimar distâncias, mas, se supormos que o templo está a
duas milhas, então o cateto oposto teria um pouco mais de
três..."
Ned forçou a vista, acompanhando meu braço enquanto este
partia do templo e ia do norte para o oeste. "Meu palpite é
que ele interceptaria minha linha imaginária para oeste mais
ou menos ali onde está aquela imponente ruína.
Olhamos fixamente para lá. No leito do vale, havia um
antigo edifício que dava a impressão de ter sido castigado
por artilharia durante uns cem anos.
Na realidade, aquilo era apenas obra do tempo e da
deterioração. Ainda assim, o edifício se erguia mais alto que
todo o entulho ao redor. Uma fileira de colunas, sustentando
nada, projetava-se do chão ao longo do que parecia ser um
antigo passadiço ou corredor.
"Vistes esse ângulo onde mesmo, efêndi?", perguntou
Mohammad, procurando entender.
"Na inclinação da Grande Pirâmide. Foi meu amigo Jomard
quem me explicou."
"Quereis então dizer que o conde Diabo está indo para o
templo errado?"
"E só palpite, mas é a única chance que tenho. Amigos,
estais dispostos a dar uma olhada e torcer para que os
templários tenham dado a esse jogo dos números a mesma
importância que os antigos egípcios davam?"
"Aprendi a ter fé em vós, efêndi."
"E, caramba, que piada seria descobrirmos o maldito livro
antes deles!", riu Ned. "E aposto que vamos achar ouro
também..."
- 19 -
Fingimos descer como se estivéssemos indo à entrada do
canyon para sair da Cidade dos Espíritos. Mas, após termos
avançado com cautela por entre algumas pedras, longe dos
olhos de Silano, encontramos uma descida difícil por uma
ravina, bela e encharcada, na face oeste da montanha.
Passamos por mais cavernas e túmulos em ruínas, junto a
cascatas criadas pela chuva (o deserto estava mesmo
sedento, sugando a água tal qual os templários haviam
profetizado), até que chegamos ao leito da cidade. Era a hora
do lusco-fusco, e a chuva terminara. Usando uns morrotes
como cobertura para ficar fora das vistas dos outros,
alcançamos bem ao escurecer o grande templo que
tínhamos visto. Estava fresco após a tempestade, e estrelas
começavam a salpicar o céu.
Essa estrutura estava em pior estado que o templo que eu
explorara em Dendara, no Egito, e era muito menos
imponente. O teto se fora, e o que restava parecia um
cercado de entulho sem janelas e com ornamentação
mínima. O templo era enorme (as paredes pareciam ter cem
pés de altura, com um arco de altura suficiente para que uma
fragata passasse por ali), mas despojado.
Não foi difícil achar um túnel que conduzia para baixo. Num
dos cantos do interior do templo, havia uma cratera no
entulho, como se alguém tivesse escavado à procura de
tesouro; e, no fundo dessa cratera, viam-se tábuas brutas
seguras por grandes pedras. "Então está aqui!", exultou Ned,
falando baixinho. Atiramos as tábuas para o lado e
deparamo-nos com degraus de arenito. Usando arbustos
secos para fazer tochas toscas, acendemos uma (atritando
aço com pederneira) e descemos. Logo, porém, ficamos
desapontados: após trinta degraus, a escadaria se
interrompeu abruptamente, e a continuação assemelhava-se
a um poço, de paredes de arenito liso. Peguei uma rocha e a
deixei cair ali. Passaram-se longos segundos, e então se
ouviu uma pancada na água. Eu ouvia uma correnteza lá
embaixo.
"Um velho poço", disse eu. "Os beduínos o fecharam para
que as cabras e as crianças não caíssem nele."
Frustrados, voltamos para fora para explorar o perímetro,
mas não achamos nada de interesse. Lá na frente, velhas
colunas que já não sustinham nada se enfileiravam num
passadiço abandonado. Mais montes de alvenaria quebrada
marcavam velhíssimas construções, ruídas havia muito.
Todos eles davam a impressão de ter sido remexidos, com
fragmentos de cerâmica por toda a parte. Eu vos direi o que
é a história: são cacos e ossos esquecidos; é um milhão de
habitantes achando que o momento em que vivem é o mais
importante, todos reduzidos a pó. Dos desfiladeiros em
volta, as cavernas pareciam bocas caladas. Sentamos,
exaustos.
"Parece que a tua teoria não funcionou, chefe", disse Ned,
desalentado.
"Ainda não, Ned. Ainda não."
"Onde estão os espíritos, então?" Ele olhou ao redor,
forçando a vista.
"Cuidando dos próprios assuntos, espero. Acreditas em
fantasmas?"
"Acredito - eu já os vi. Companheiros perdidos rondam o
convés nas nossas vigílias mais escuras. Mais algumas almas
penadas, de naufrágios desconhecidos, ficam chamando lá
das ondas. É, isso gela o sangue da marujada, podes ter
certeza. E, numa casa de cômodos onde morei em
Portsmouth, tinha morrido um bebê, e a gente costumava
ouvir o choro quando.
"Isso é conversa demoníaca", interrompeu Mohammad. "É
errado ficar a lucubrar os mortos."
"Sim, amigos, pensemos em nosso objetivo. Precisamos
achar uma maneira de descer. Se há uma coisa que não falta
em caça ao tesouro, é enfiar-se pela terra."
"Deveríamos receber salário de mineiro, sim, senhor!",
concordou Ned.
"De manhã, Silano entrará no templo que o raio atingiu, e
ele ou achará alguma coisa, ou não achará nada. Estou
apostando nessa segunda opção - mas precisamos descobrir
o tesouro e já estarmos bem longe antes disso."
"E a mulher?", perguntou Ned. "Estás desistindo dela,
chefe?"
"O combinado é que ela saia às escondidas e venha ao nosso
encontro."
"Ah, apostaste também nela? Bem, as mulheres não são boa
aposta."
Dei de ombros. "A vida nada mais é que uma aposta depois
da outra."
"Eu gosto do som do córrego", comentou Mohammad, para
mudar de assunto. Eu sabia que ele também considerava a
jogatina um ardil do diabo. "É raro que possamos ouvi-lo no
deserto."
Prestamos atenção. De fato, um riacho corria por um canal
junto ao passadiço, parecendo rir ao bater água.
"Foi a tempestade. Acho que, na maioria dos dias, este lugar
não tem como ser mais seco", disse Ned.
"Mas para onde será que vai a água?", continuou
Mohammad. "Estamos numa cavidade natural."
Levantei-me. É, para onde? O deserto, sedento, suga água
com lábios secos. Repentinamente empolgado, desci com
dificuldade os degraus quebrados do templo até o passadiço e
o atravessei para chegar ao riacho temporário, que agora
cintilava à luz das estrelas. Ele corria para oeste, no rumo das
montanhas, e então... sumia!
Uma coluna jazia tal qual tronco abatido e atravessado sobre
o riacho, e, debaixo dela, a água desaparecia abruptamente.
De um lado, o curso de água sussurrante. Do outro, seixos e
areia secos. Entrei na água fresca, sentindo-a correr contra
minhas panturrilhas, e espiei sob a coluna. Havia na terra
uma fenda horizontal, como a pálpebra de um gigante
sonolento, e era nela que a água se derramava. Eu conseguia
ouvir o eco. Ah, não o olho de um gigante, mas a boca! Suga
com lábios secos.
"Creio que achei o nosso buraco!", berrei para os outros.
Ned saltou para a água, ao meu lado. "Se escorregarmos para
aquela fenda, chefe, podemos ser varridos para o inferno."
Deveras. Mas, e se por algum milagre eu adivinhara certo e
aquilo era uma pista de onde os templários tinham
realmente ocultado seu segredo de Jerusalém? Parecia ser
mesmo a solução. Saí da parte de baixo da coluna e olhei em
volta. Aquela era a única que caíra por sobre o riacho. Qual a
probabilidade de que essa coluna tivesse rolado justamente
para onde uma caverna conduzia ao subsolo? Uma caverna,
ademais, cuja presença só se fez conhecer após uma grande
tempestade com raios e trovões?
Segui o fuste da coluna até a encosta oposta ao templo. Ela
cindia-se da base como num terremoto, e o que restava do
pé ressaltava do solo tal qual um dente quebrado. Muito
curiosamente, essa base parecia mais livre de entulho que a
paisagem circundante. Alguém (séculos antes? Ou naquele
momento mesmo?) limpara o chão, talvez após ter tirado a
armadura medieval de malha e a túnica branca com uma
cruz vermelha.
"Ned, ajuda-me a cavar. Mohammad, pega mais arbustos
para fazermos tochas."
O fuzileiro resmungou. "De novo, chefe?" "Ainda queres o
tesouro?"
Logo revelamos sob a base da coluna uma plataforma de
mármore gasto. Por um momento, consegui visualizar o que
a cidade devia ter sido no auge, com as colunas formando
uma arcada umbrosa em ambos os lados do passadiço
central, apinhado de comércios e tavernas pitorescos; com a
água fresca jorrando de fontes azuis; e com os camelos,
enfeitados com borlas, o lombo carregado de mercadorias,
balançando em passo majestoso ao chegar da Arábia.
Também haveria estandartes, trombetas, pomares...
Ali - uma configuração no mármore! Triângulos entalhados
sobressaíam-se da base quadrada da coluna. Percebi que, na
realidade, eram duas camadas de calço, e uma delas era uma
polegada mais alta e justapunha-se à outra.
"Procurai um símbolo nesta cantaria", ordenei a meus
companheiros. "Algo como o emblema dos pedreiros-livres
- o compasso e o esquadro da maçonaria."
Esquadrinhamos tudo. "Nada de nada", sentenciou Ned.
Ora, os templários eram monges guerreiros, não pedreiros.
"E nenhuma cruz? Nenhuma espada? Nenhuma das
sephiroth?"
"Efêndi, é só uma coluna quebrada."
"Não, não - há alguma coisa aqui. Alguma coisa com flor e
fé, como dizia o poema. É uma porta fechada, e a chave é...
Temos um quadrado dentro de um quadrado. Quatro
ângulos mais quatro ângulos? Dão oito. Um número sagrado?
O oito está na seqüência de Fibonacci."
Os dois olharam para mim, sem entender nada.
"Mas são dois triângulos também - três mais três. Seis. Não,
não é isso. Oito mais seis são catorze, mas também não é
isso. Maldição! Será que errei totalmente de rumo?" Senti
que minhas tentativas eram contraproducentes. Eu precisava
de Monge, ou de Astiza.
"Se sobrepuserdes os triângulos, efêndi, tereis a estrela
judaica."
Claro! Seria tão simples assim? "Ned, ajuda a puxar esta base
de coluna. Vejamos se os triângulos deste piso deslizam um
sobre o outro."
"Como é?" Mais uma vez, ele fez cara de quem me achava
um lunático.
"Puxa! Tal qual fizeste naquele altar nos subterrâneos de
Jerusalém!"
Parecendo estar apenas confirmando a própria danação, o
fuzileiro se juntou a mim. Não creio que, sozinho, eu teria
conseguido mover aquela cantaria intransigente, mas os
músculos de Ned se incharam até quase explodir.
Mohammad também ajudou. Com extrema relutância, a base
começou mesmo a mover-se, e os mármores começaram a
justapor-se. Quando os triângulos se cruzaram, eles foram
mais e mais constituindo uma estrela-de-davi.
"Puxa, Ned, puxa!"
"Vais é atrair outro raio, chefe."
Mas isso não aconteceu. Quanto mais os triângulos se
sobrepunham, mais facilmente eles deslizavam. Quando
enfim formaram a estrela, ouviu-se um estalido, e
repentinamente a base se moveu sem entraves, girando
sobre um pivô numa das quinas. O aparato inteiro se tornara
algo desprovido de peso - e, à medida que a base girava, a
estrela-de-davi começava a afundar na terra.
Ficamos pasmados.
"Pulai, pulai - antes que se feche!" Saltei e pousei no
mármore que descia. Após um momento de hesitação, Ned
e Mohammad fizeram o mesmo, com o árabe segurando as
tochas improvisadas. Ouvíamos o ranger de antiqüíssimos
mecanismos enquanto descíamos.
"Estamos indo para o inferno!", lamuriou-se Mohammad.
"Não, homens - estamos indo é para o livro e o tesouro!"
Agora o ruído de água era mais alto, ecoando na câmara
subterrânea para onde estávamos descendo, qualquer que
fosse ela. Afundávamos por um poço em forma de estrela,
sendo nossa plataforma aquele signo-de-salomão, que então
deu um solavanco e parou no fundo. Olhei para cima. O
poço era demasiado alto para que conseguíssemos escalado e
sair. Tudo o que eu enxergava eram umas poucas estrelas.
"Como é que vamos subir de novo?", quis saber Ned, com
razão.
"Hum... Será que devíamos ter deixado um de nós lá em
cima? Vinde, amigos, agora é tarde demais. O livro irá nos
dizer como sair." Eu disse isso com mais confiança do que
de fato sentia.
Uma passagem horizontal baixa saía de nosso curioso poço
na direção do som da água. Nós nos agachamos e a
seguimos. Mais ou menos na metade do comprimento da
coluna caída lá em cima, demos numa gruta. A água, em
algum lugar, fazia um ruído possante.
"Acendamos uma tocha", disse eu. "Mas uma só - podemos
precisar das outras."
A luz amarela fulgurou. Fiquei boquiaberto. O riacho criado
pela tempestade se despejava da fenda que eu vira lá em
cima - o deserto realmente sugava a água. Mas não foi isso
que atraiu minha atenção. A gruta onde estávamos era
artificial e tinha formato de cornucópia ou funil
descendente, estreitando-se à proporção que baixava. Pela
periferia da gruta, havia uma saliência de pedra, com largura
suficiente para o andar de um homem. Estávamos
aglomerados no alto do funil. A saliência se espiralava ao
descer, e seu padrão me lembrou a concha de náutilo que
Jomard me mostrara na Grande Pirâmide, aquela inspirada
na seqüência de Fibonacci. Tolo louco por flores, que
também confia por fé. Na saída do funil, a água era uma
lagoa turbulenta e voraginosa.
"Um sorvedouro", murmurou Ned. "Não é do tipo de que a
gente consegue sair."
"Não, Ned — trata-se de outro símbolo. De alguma maneira,
o universo é constituído de números, e os templários, ou as
pessoas que construíram esta cidade, estavam tentando
imortalizar isso em pedra. Exatamente como os egípcios.
Meu palpite é que o livro é sobre isso."
"Subterrâneos construídos por loucos?"
"Não, sobre o que está por trás do mundo comum, trivial."
Ele balançou negativamente a cabeça. "É só uma entrada de
esgoto, chefe."
"Não - é um portal." Que também confia por fé. "Diacho,
como foi que eu acabei metido contigo?!" "Deveras, efêndi -
estamos num lugar maligno."
"Não, este é um lugar sagrado. Vós podeis esperar aqui.
Aposto que não teriam construído tudo isto se não houvesse
alguma coisa lá embaixo. Ou achais que teriam?"
Olharam-me como se pensassem que meu lugar era no
manicômio, o que não estava longe da verdade. Éramos
todos absolutamente malucos, procurando um atalho para a
felicidade. Mas eu sabia que matara a charada. Sabia que os
loucos templários e seu relâmpago haviam colocado o
segredo ali, não onde estava Silano; e que, se Astiza viesse
nos encontrar como prometido, eu enfim teria tudo -
conhecimento, tesouro e mulher. Bem, duas mulheres, mas
isso se resolveria no devido tempo. Mais uma vez, senti-me
culpado por causa de Miriam, o que se combinava com a
doce lembrança de seu corpo e com não pouca apreensão a
respeito de sua mágoa. Engraçadas as coisas em que
pensamos quando estamos em apuros.
Acendi outra tocha e desci, movendo-me lentamente pela
saliência em espiral como um caramujo cauteloso. Meus
companheiros ficaram lá em cima, olhando para mim.
Quando cheguei aonde a água caía no breu da voragem,
minha tocha crepitou no ar encharcado. Quão profundo era
o poço? Demasiado fundo para que se recuperasse o que
quer que os templários atiraram ali? Sim, porque eu não
tinha nenhuma dúvida de que eles haviam lançado seu
tesouro de Jerusalém por aquele funil, confiando que os
membros sobreviventes voltariam um dia e reconstituiriam a
ordem daqueles monges guerreiros.
Tomei coragem. A água, eu já disse, era absolutamente
escura, rodopiando como num ralo, com espuma verde a
boiar na superfície como coalhos. Havia um bolor de caixão.
Mas já não podíamos sair pelo mesmo caminho que
entráramos, podíamos? Assim, colocando a tocha de lado
(no que ela se apagou de imediato; agora, a única luz era a
tocha débil de Ned e Mohammad lá no alto), respirei fundo,
rezei a todos os deuses que consegui lembrar e mergulhei.
A água estava gelada, mas não imunda. Submergi na
escuridão. Lençóis macios e fibrosos de algas, o lodo de
séculos, roçavam em mim. Talvez houvesse ali umas coisas a
nadar, brancas e flácidas no negrume (eu até as imaginei,
estivessem ou não lá), mas eu simplesmente fui tateando e
mergulhando direto para baixo. Tinha dois minutos para
achar o que procurava ou me afogar.
A correnteza já me preocupava. Comecei a entrar em
pânico, porque estava cada vez mais evidente que forcejar
para voltar à superfície custaria mais tempo e fôlego do que
eu tinha. Eu não podia retroceder e estava sendo arrastado
para baixo e para adiante.
Notei uma claridade esquisita, vinda da frente. Não era
brilhante, mas se mostrava bastante bem-vinda após longos
segundos de escuridão absoluta. Enxerguei um fundo, e ele
era tranquilizadoramente branco, como areia limpa. Mas
então vi a verdadeira fonte do brancor e quase engoli água: o
fundo não era areia, mas osso.
Eu vira o friso de caveiras na câmara templária de Jerusalém,
mas agora era cem vezes pior - um ossário dos condenados
ao inferno. Desta vez eram caveiras de verdade, lívidas,
porém suficientemente reconhecíveis, em medonha mistura
de braços, pernas e costelas. Era um recife ósseo e alvejado,
com dentes tão longos quanto dedos indicadores, e órbitas
tão vazias quanto covas funerárias. O todo estava envolto em
pedras e em correntes de metal cobertas de filamento.
Aquilo fora um poço sacrificial ou uma câmara de
execuções.
A correnteza me levou por sobre esse cemitério,
empurrando-me para uma luz cada vez mais larga. Estaria eu
tendo alucinações com a falta de ar? Não, era luz de verdade,
e passei por um túnel curto e a vi ainda mais brilhante acima
de mim. Embora a correnteza quisesse me arrastar para onde
quer que o rio fosse, bati freneticamente as pernas para
cima.
Vim à tona com meu derradeiro fôlego, arfando - o horror
daqueles ossos! Avistei uma saliência arenítica e me debati
furiosamente para chegar lá. Agarrei-me a ela, tomei
impulso e me deixei cair na beira daquilo como um peixe
exausto. Por um tempo, fiquei apenas deitado, ofegante.
Enfim, tomei fôlego o bastante para levantar meu tronco e
olhar em volta. Eu estava no fundo de um poço de arenito.
Bem acima, muito além de meu alcance, estava a fonte
daquela luz débil. A correnteza subterrânea da qual eu
escapara passava pela saliência e se derramava em outro
túnel. Estremeci: haveria ainda mais ossos a jusante, aos
quais se juntariam os meus?
Ergui a vista para examinar a luz pálida e prateada da lua e
das estrelas. Não consegui ver o céu, de modo que presumi
que alguma coisa estivesse refletindo para baixo a luz celeste.
A iluminação era muito fraca, mas suficiente para que eu
verificasse que as paredes do poço eram lisas, sem frestas e
sem pontos de apoio para os pés e mãos; além disso, o poço
era demasiadamente largo para que eu pudesse subir pondo
um pé e uma mão em cada lado. Não havia mesmo
nenhuma possibilidade de sair escalando-o.
E o que mais?
Homens a observar.
Pingando, levantei-me lentamente e me voltei àquela
câmara sombria. Percebi que estava rodeado de homens,
imensos, barbados e sorumbáticos, ataviados com armaduras
medievais. Tinham elmo, polainas de ferro e (apoiado no
chão junto a estas) escudo em forma de pipa de empinar.
Não eram, porém, homens de verdade, e sim estátuas de
arenito, talhadas nas paredes do poço para formar um
círculo de sentinelas eternas - templários. Talvez fossem
representações de grão-mestres da ordem. Eram muito
maiores que o tamanho natural, com uns bons nove pés de
altura, e seu olhar era severo. Ainda assim, havia algo de
reconfortante nesses meus novos companheiros, que nunca
baixariam a guarda e, no entanto, ficavam de costas contra as
paredes daquela câmara de pedra como se já esperassem que
um dia seria encontrado o que eles guardavam.
E o que guardavam eles? Um sarcófago, mas não um
desprovido de tampa como o que eu vira na câmara régia da
Grande Pirâmide. Esse agora seguia o estilo adotado nas
igrejas européias, tendo na tampa a figura esculpida de um
cavaleiro medieval. O sarcófago era de pedra calcária, e
conjeturei que o templário fosse o primeiro deles -
Montbard, tio de São Bernardo. Um guardião por toda a
eternidade.
A tampa era pesada e, a princípio, pareceu firmemente
assentada. Mas, quando lhe dei um empurrão mais forte, ela
se deslocou ligeiramente, com ruído de raspagem,
levantando poeira das bordas. Fazendo muita força,
empurrei e empurrei, até que deixei o sarcófago entreaberto
e depois consegui baixar uma das beiradas da tampa até o
chão. Em seguida, espiei lá dentro. Era uma caixa dentro de
outra.
O caixão que lá estava era de acácia, extraordinariamente
bem conservada. Ainda que a idéia de abri-lo me fizesse
parar para pensar, eu já viera longe demais para não fazê-lo.
Levantei a tampa com um puxão. Dentro, estava o esqueleto
de um homem, nada horripilante - ali, derradeiramente
exposto, ele só parecia pequeno e nu. As carnes tinham se
decomposto havia muito, e as roupas não passavam de
pequenos fragmentos. O espadão se reduzira a uma sombra
estreita e enferrujada da antiga potência. Mas a mão
esqueletal ainda segurava um prodígio que não se corroera e
continuava tão lustroso e intricadamente ornado quanto no
dia em que o forjaram. Era um cilindro de ouro, largo como
uma aljava e comprido como um rolo de pergaminho. Sua
superfície mostrava uma profusão de figuras míticas, touros,
falcões, peixes, escaravelhos e criaturas tão esquisitas e
extranaturais que tenho enorme dificuldade para descrevê-
las, tão diferentes eram de tudo o que eu vira antes. Havia
ranhuras e arabescos, mais estrelas e formas geométricas, e o
ouro era tão liso que meus dedos não resistiram a acariciar
sua sensualidade. O metal parecia quente. Pelo peso, valeria
o suficiente para uma vida inteira de riqueza. Pela
concepção, não podia ter preço.
O Livro de Tot só podia estar ali dentro. Mas, quando puxei
o cilindro para tirá-lo do caixão, o esqueleto puxou na
direção contrária!
Fiquei tão assustado que larguei, e o cilindro se deslocou de
leve, assentando-se mais profundamente na ossada. Então
percebi que eu apenas me surpreendera com o peso do
objeto. Levantei-o de novo, e o cilindro soltou-se, ameno,
liso, pesado. Não houve nenhum fulgor de relâmpago,
nenhum estrondo de trovão. Eu prendera o fôlego sem
perceber, e agora o soltava. Ali no escuro era simplesmente
eu, segurando aquilo que se dizia que homens haviam
procurado durante mais de cinco mil anos, chegando a lutar
e morrer por isso. Estaria também aquele cilindro
amaldiçoado? Ou seria ele o meu guia para um mundo
melhor? E como abri-lo?
Quando examinei o cilindro com mais vagar, tive um estalo
- eu já vira alguns daqueles símbolos. Não todos, mas alguns
estavam no teto do templo de Dendara, e outros, no
dispositivo calendário que eu estudara no porão do L'Orient
antes dessa capitânia francesa explodir na batalha naval do
Nilo. Havia um círculo sobreposto a uma reta, exatamente
como no calendário, e todas as outras coisas - animais,
estrelas, uma pirâmide e o signo de Touro, a era astrológica
em que se construíra a Grande Pirâmide. Lá estava não
apenas a pirâmide, mas também a pequena representação de
um templo com colunas. Vi que o cilindro tinha um eixo
móvel, para que se pudesse deslocar e alinhar os símbolos,
de maneira semelhante à dos círculos daquele calendário.
Assim, experimentei mais uma vez o que eu já conhecia: o
touro, a estrela de cinco pontas e o símbolo do solstício de
verão, tal qual eu fizera no navio. Mas não foi suficiente, e
por isso acrescentei a pirâmide e o templo.
Talvez eu tenha sido inteligente. Talvez eu tenha sido
sortudo. Talvez existisse uma centena de combinações que
também abririam o cilindro. Não sei. Sei apenas que ouvi um
estalido e que o objeto se dividiu entre a pirâmide e o
templo, como um salsichão cortado ao meio. E, quando
puxei para lados opostos as duas metades douradas, surgiu o
que eu esperava achar lá dentro: um rolo, o antigo formato
dos livros.
Eu o desenrolei, com os dedos trêmulos de empolgação. O
papiro, se é que era esse mesmo o material, não se parecia
com nenhum outro que eu vira ou manuseara antes. Era
mais lustroso, mais resistente, mais maleável, e tremeluzia
de um jeito inusitado. Não era couro, papel nem metal. O
que seria? A escrita era ainda mais estranha. Não eram os
pictogramas ou hieróglifos que eu encontrara no Egito, era
mais abstrata. Era angular e vagamente geométrica, numa
profusão de formas, barras diagonais, curvas irregulares,
anéis e complexos caracteres. A crer nos lunáticos que
vinham caçando aquela coisa, eu descobrira o segredo da
vida, do universo ou da imortalidade - e não conseguia 1er
nem uma palavra!
Em algum lugar, Tot decerto estava dando gargalhadas. Bem,
eu já matara charadas antes. E, mesmo se o rolo se mostrasse
indecifrável, o recipiente já garantiria uma vida de rei. Eu
estava rico, de novo. Se conseguisse sair daquele buraco de
rato.
Ponderei as coisas. Voltar nadando contra a correnteza era
impossível, e, mesmo se eu lograsse fazê-lo, só retornaria a
um poço que não tínhamos meios de escalar. Já seguir a
correnteza iria me sugar numa tubulação subterrânea sem
nenhuma garantia de que encontraria ar. Eu mal sobrevivera
a coisa parecida na Grande Pirâmide e não me atrevia a
tentar de novo. Eu não vira nenhum sinal de que aquele rio
temporário emergisse em algum lugar.
O que Benjamin Franklin faria na mesma situação?
Eu me cansara totalmente dos aforismos dele quando tinha
de ouvi-los todo santo dia, mas agora sentia falta de Ben. "O
homem sensato não precisa de conselhos, e o tolo não os
aceita." De fato, mas isso não ajudava muito naquele
momento. "Esforço e perseverança conquistam tudo." Que
perseverança? Cavar um túnel como fazem os mineiros?
Vistoriei a câmara mais detidamente. Ao contrário das
Virgens giratórias do Monte do Templo, as estátuas dos
templários eram rígidas e inamovíveis. Não havia nenhuma
inscrição nas paredes, nenhuma fresta, porta ou buraco onde
inserir o cilindro de ouro na esperança de que ele pudesse
servir como alguma espécie de chave. Bati de leve nas
paredes do poço, mas não identifiquei espaço oco algum.
Berrei, mas o eco não adiantou de nada. Golpeei as paredes,
só para ver se algo cedia, mas não. Como diabos os
templários chegavam ali? No intervalo das tempestades, o
túnel ficava seco. Deveria eu esperar? Não, ouviam-se mais
trovões, e um riacho como aquele poderia correr por dias e
dias. Chutei, puxei e urrei, mas nada saiu do lugar. "Nunca
confundas agitação com ação", recomendara Ben.
O que mais ele dissera? "O bem-feito é melhor que o bem
dito." É, até onde eu sabia, tal máxima não chegava a ser
propriamente útil naquele meu aperto. "Todos desejam a
longevidade, mas ninguém quer ser velho." Nas
circunstâncias, até a velhice parecia preferível à morte. "Nos
rios e nos maus governos, o que vem à tona é a escória."
Bem, esse pelo menos falava de rio...
Vem à tona...
Olhei para cima. Se a luz descia, tinha de haver uma saída!
Era impossível escalar sem corda, sem escada, sem ponto de
apoio. Se ao menos eu tivesse um dos balões de... Vem à
tona.
Diferentemente de quase todos nós, o que Ben fazia era
pensar e só então agir. Por que isso é tão difícil? Fosse como
fosse, tive finalmente uma idéia - uma idéia desesperada. E,
tão importante quanto isso, eu não tinha nenhuma
alternativa factível. Peguei a tampa do sarcófago, que estava
encostada àquele caixote de pedra, e a arrastei, provocando
um grande ruído agudo de raspagem, até a beira da água.
Arfando, eu a coloquei de pé como uma porta, equilibrando-
se numa das quinas e balançando sobre o rio subterrâneo.
Mirei o melhor que pude o buraco escuro onde o rio
desaparecia a jusante - e então, com um grunhido, empurrei
a tampa para a água! A força da correnteza a lançou contra a
boca do túnel, interrompendo o fluxo por ali.
No mesmo instante, a água represada começou a subir.
Ela transbordou para a plataforma de arenito, cobrindo os
pés das estátuas dos templários. Era bom que aquilo
funcionasse! "Mil desculpas, Montbard ou quem quer que
sejas." Ergui o caixão de acácia até a beira do sarcófago e
despejei os ossos ali dentro. Eles chacoalharam no sarcófago
de pedra calcária, produzindo uma misturada sacrílega, e a
caveira me olhava com o que sou capaz de jurar que era
reprovação - pois é, agora eu estava mesmo amaldiçoado.
Equilibrei o caixão atravessando-o sobre o sarcófago, enfiei
sob a camisa o cilindro dourado e entrei naquele esquife
como se ele fosse uma banheira. A água subia depressa,
quase um pé por minuto. Ela ultrapassou os joelhos dos
templários, alcançou o alto do sarcófago, derramou-se lá
dentro até enchê-lo - e então me fez flutuar. Roguei ao Deus
cristão, roguei ao Deus judaico, roguei aos deuses egípcios.
Aleluia, aleluia!
Minha arca se elevou. Eu sabia que, à medida que o poço se
enchesse e a coluna de água ficasse mais pesada, aumentaria
a pressão sobre a tampa do sarcófago lá embaixo. Assim, só
me restava a esperança de que ele agüentasse tempo
suficiente. "Quem vive de esperança morre em jejum." Bem,
meu conselho é escolher os aforismos que nos sejam mais
convenientes, de maneira que, naquele momento, eu só fiz
ter esperança e mais esperança. Fui subindo, um precioso
palmo de cada vez. Dei-me conta de que meu plano também
faria a água refluir para a câmara em espiral lá atrás, na
direção de Ned e Mohammad.
Desejei que soubessem nadar.
A luz tênue se intensificava à proporção que eu subia, e
estrelas se refletiam no breu da água. Encontrei uma ou duas
costelas que não haviam sido despejadas no sarcófago e, sem
nenhuma cerimônia, atirei-as para fora, ponderando que eu
não me importaria com o que fizessem com meus ossos
depois que eles já não me fossem necessários. O caixão subia
e subia, até que vi um disco prateado, reflexo da luz de um
poço enviesado mais acima - e, nesse poço, havia degraus de
arenito! Eu me pus de pé em meu esquife oscilante, estiquei
os braços até segurar-me ao primeiro degrau e tomei
impulso. Era rocha sólida! Atrás de mim, a água ainda se
elevava.
Mas aí ouvi um baque, e a água pareceu arrotar e, com um
ruído de sorvedouro, começou a desabar, levando meu
caixão numa espiral - a tampa do sarcófago cedera à pressão.
A água voltava a fluir por aquele ralo, mas eu não tinha
tempo para isso. Subi os degraus, percebendo que se tratava
do mesmo poço que encontráramos no templo em ruínas.
Se não tivéssemos afastado aquelas tábuas, eu agora não teria
nenhuma iluminação ali. Saí entre as paredes de pedra,
passei com dificuldade sobre o entulho e atravessei correndo
o passadiço para voltar à base de coluna por onde
descêramos. "Ned! Mohammad! Ainda estais vivos?"
"Por um triz, chefe, por um triz! O funil inteiro se encheu
de água, e eu e Mohammad estávamos prestes a nos afogar
feito ratos! Mas aí a água baixou!"
"Como chegastes aí em cima, efêndi? O que acontece?"
"Ora, eu só queria dar-vos um banho, rapazes." "Mas como
saístes?"
"Peguei uma balsa." Eu podia ver seus rostos, virados para
cima como duas pequenas luas. "Esperai, que tenho uma
idéia para tentar trazer-vos para cima." A base da coluna
caída, vós vos lembrareis, afastara-se do piso em forma de
estrela para que a plataforma começasse a descer. Então eu a
empurrei de volta para o lugar de origem, houve um estalo,
e a plataforma lá embaixo começou a subir pelo poço de
seção estrelada, com Ned e Mohammad gritando de alegria
como dois insanos.
Quando saíram dali, fiz que me ajudassem a empurrar a base
de novo para o lugar de direito, selando novamente a
entrada. E então Ned me abraçou como se eu fosse a mãe
dele. "Com mil demônios, chefe, és mesmo um mago!
Sempre te safas como um gato! E achaste o tesouro?"
"Receio que não haja nenhum tesouro." Os dois agora eram
o retrato da decepção. "Acreditai, eu procurei mesmo. Era só
um túmulo templário, meus amigos. Ah, mas encontrei
isto."
Tal qual mágico, saquei o cilindro dourado. Ficaram
boquiabertos. "Aqui, vinde sentir o peso." Deixei que o
segurassem. "É ouro suficiente para que nós três nos
estabeleçamos de maneira condigna."
"Mas, efêndi", disse Mohammad, "e vosso livro? Ele está
aqui? Está repleto de segredos mágicos?"
"Está aqui, sim, e é a coisa mais esquisita que já vi. Tenho
certeza de que faremos um favor ao mundo se o
mantivermos longe de Silano. Talvez uma pessoa de
erudição consiga algum dia entender o que está escrito ali."
"Uma pessoa de erudição?"
"Eu finalmente acho o livro - um trabalho de Hércules - e
não consigo ler nem uma palavra!..."
Eles me olharam consternados. "Busquemos Astiza."
— 20 —
A saída mais direta da Cidade dos Espíritos nos faria passar
pelo acampamento de Silano, coisa que eu não me atrevia a
fazer. Em vez disso, enquanto as estrelas se apagavam e o
céu enrubescia, primeiro recolocamos as tábuas do poço no
lugar, lá no templo (eu não queria a queda de uma criança
pesando na minha consciência) e então fizemos o caminho
inverso pela laboriosa rota que subia ao Lugar do Alto
Sacrifício e depois descia. No trajeto, paramos só por
insistência de Ned, para deixá-lo arrancar do chão um
pinheirinho murcho. "Pelo menos já é um porrete",
explicou. "Um convento de freiras tem mais poder de fogo
que a gente." Enquanto seguíamos adiante, ele ia arrancando
os galhos com as manoplas, qual Sansão, para dar forma ao
porrete. Subimos, passamos pela meseta e dali descemos, já
ofegantes e exaustos quando alcançamos o leito do canyon
no anfiteatro romano em ruínas. Uma milha ou mais atrás de
nós, eu via o brilho de uma fogueira lá onde Silano
acampara. Se Astiza saíra de mansinho, demoraria quanto
até que percebessem sua ausência? Para leste, o céu
fulgurava. Os picos mais altos já estavam iluminados.
Nós nos apressamos de volta pelo canyon principal da
cidade, rumo à estreita e sinuosa entrada, e demos outra
vez na fachada do Khazneh, o primeiro grande templo que
víramos. Enquanto os outros se ajoelhavam no riachinho
para beber, eu subi os degraus aos pulos e adentrei o escuro
templo.
"Astiza?"
Silêncio. Combináramos nos encontrar ali, não?
"Astiza!" O nome ecoou como se zombasse de mim.
Maldição. Teria eu novamente me equivocado com aquela
mulher? Teria Silano atinado com o que pretendíamos e
feito-a prisioneira? Ou estaria ela simplesmente atrasada ou
perdida?
Corri para fora. O céu clareava, do cinza ao azul, e o alto dos
desfiladeiros começava a brilhar. Tínhamos de partir antes
que o conde visse que eu o conduzira a um buraco vazio!
Mas eu não ia preferir à mulher que amava a um texto que
não conseguia ler. Se fôssemos embora sem ela, eu voltaria a
ser torturado pelo arrependimento. Se ficássemos tempo
demais, meus amigos poderiam ser mortos.
"Ela não está aqui", informei, preocupado.
"Então precisamos ir embora", disse Mohammad. "Cada
milha que colocamos entre nós e aqueles infiéis francos
dobra nossas chances de escapar." "Mas eu pressinto que ela
está vindo." "Chefe, não podemos esperar."
Ned tinha razão. Eu já ouvia débeis chamados do grupo de
Silano ecoarem pelo canyon, mesmo que ainda não soubesse
se eram de empolgação ou de indignação. "Só mais alguns
minutos", insisti.
"Será que a mulher vos enfeitiçou? Ela fará que sejamos
todos apanhados - junto com vosso livro!"
"Se necessário, podemos usar o livro numa troca."
"Mas então por que raios viemos aqui?"
De repente, Astiza surgiu na curva do canyon, espremendo-
se contra a rocha para minimizar a probabilidade de ser
vista. Estava pálida, ofegante pela corrida, com negras
madeixas por sobre os olhos. Voltei correndo até ela.
"Por que demoraste tanto?"
"Eles estavam tão entusiasmados que não conseguiam
dormir. Fui a primeira a deitar, e que agonia esperar a noite
toda até que ficassem quietos! Aí tive de rastejar umas cem
jardas ou mais pelo leito do canyon, até passar por uma
sentinela adormecida." Seu vestido estava imundo. "Acho
que já perceberam que sumi."
"Consegues correr?"
"Se não achaste o livro, eu nem quero fugir." Os olhos dela
brilhavam, inquiridores.
"Sim, eu o achei."
Astiza me agarrou os braços, um sorriso aberto como o de
criança a esperar um presente. Ela sonhara com o livro
muito, muito mais tempo do que eu. Tirei o cilindro da
camisa. Astiza ficou quase em fôlego.
"Sente o peso disto", eu lhe disse.
Seus dedos exploraram o cilindro tal qual um cego o faria.
"Ele está mesmo aí dentro?"
"Está. Mas não consigo lê-lo."
"Por Alá, efêndi, precisamos ir!", disse Mohammad,
chamando-me.
Não lhe dei atenção, girei o cilindro para abri-lo e desenrolei
parte do livro. Mais uma vez, impressionou-me quão
estranhos pareciam aqueles caracteres. Astiza segurou o
livro com ambas as mãos, espantada, mas relutando em
devolvê-lo. "Onde estava?"
"No fundo da tumba de um templário. Resolvi apostar que
havia um ardil nas pistas que deixaram - os templários
exigiriam que os que buscassem o livro usassem a
matemática das pirâmides para demonstrar que tinham o
conhecimento necessário."
"Isto mudará o mundo, Ethan."
"Para melhor, espero. Do meu ponto de vista, as coisas não
têm mesmo como ficar muito piores."
"Chefe!" O berro de Ned nos tirou de nosso transe mútuo.
Ele levara a mão ao ouvido, apontando. Era o eco de um
disparo de arma de fogo.
Arranquei o livro de Astiza e girei o cilindro para fechá-lo.
Eu o enfiei de novo por baixo da camisa e corri para onde o
fuzileiro olhava. A luz do sol começava a cobrir a fachada do
templo, fazendo que o desfiladeiro e a rocha talhada
adquirissem um tom róseo brilhante. Mas Ned apontava para
o lado de onde viéramos, na direção do acampamento de
Silano. Um espelho parecia piscar ali.
"Estão sinalizando para alguém." Ned apontou para a meseta
arenítica que a entrada do canyon cortava em duas partes. "É
para algum diabo que está lá em cima, pronto a fazer rolar
uma pedra grande."
"Efêndi, os homens de Silano estão vindo!"
"Então temos que tirar dos árabes aqueles cavalos lá na
entrada. Estais preparados para tanto, marujos?" Parecia o
tipo de conclamação que Nelson ou Smith usariam.
"Vamos para casa! Vamos para a Inglaterra!", bradou Ned.
E aí corremos, sendo engolidos num átimo pela estreita
entrada do canyon e totalmente cegados por aquelas muitas
curvas. Nossos passos ressoavam enquanto arremetíamos
terreno acima. Os braços de Ned pulsavam com o esforço de
segurar o porrete. Os cabelos de Astiza esvoaçavam.
Ouvimos berros bem lá em cima e, então, estampidos.
Olhamos de relance: uma pedra do tamanho de um barril de
pólvora estava ricocheteando entre os paredões ao cair pela
fenda, com pedaços voando como metralha.
"Mais depressa!" Corremos muito, ficando à frente da pedra
cadente antes que ela atingisse com estrondo o leito do
canyon. Da beira da meseta, gritavam em árabe.
Continuamos correndo, agora mais lentamente. Nisso,
houve um clarão e um estrépito - os desgraçados tinham
minado o canyon inteiro! Silano devia ter adivinhado que
pretendíamos passar a perna nele e quis cortar nossa rota de
fuga. Uma avalanche de pedras foi pelos ares após uma
detonação de pólvora, e desta vez empurrei meus
companheiros para trás; então nos encolhemos debaixo de
uma saliência rochosa. A avalanche veio, tonitruante,
fazendo tremer o leito do canyon, e então já estávamos
correndo de novo, movendo-nos com dificuldade sobre o
entulho recém-criado, através da nuvem de poeira, que,
aliás, vinha nos ocultar.
Balas sibilaram inutilmente, pois estávamos invisíveis.
"Apressai-vos, antes que estourem outra carga!" Houve mais
uma explosão, mais um dilúvio de pedra, mas desta vez as
pedras caíram atrás de nós, o que atrasaria a perseguição por
Silano. Calculei que já houvéssemos percorrido mais de
metade daquele buraco de cobra, e, se todos os árabes
estivessem lá em cima detonando pólvora, não teria ficado
nenhum para guardar os cavalos. Nós, uma vez montados,
afugentaríamos os cavalos restantes e...
Sem fôlego, dobramos outra curva do canyon e vimos que
nosso caminho estava bloqueado por um carroção. Era uma
dessas jaulas volantes que eu vira ser usadas no transporte de
escravos, e depreendi que se tratasse daquele carroção
coberto de oleados que, perto do acampamento, assustara os
cavalos. Havia um único árabe junto a ele, apontando um
mosquete para nós.
"Eu cuido disto", bradou Ned, erguendo o porrete.
"Ned, não facilites o disparo dele!"
No instante em que o fuzileiro arremeteu, porém, houve um
silvo, e uma pedra cortou o ar perto de nossos ouvidos.
Quase com a velocidade de uma bala, ela acertou o árabe na
testa, justamente quando ele disparara o mosquete. O
projétil passou longe. Olhei para trás: Mohammad tirara o
turbante e o utilizara para improvisar uma funda. "Quando
era menino, eu tinha de manter os cães e chacais longe das
ovelhas", explicou.
Corremos a dominar o atordoado árabe e passar pelo
carroção, com Ned na dianteira e Astiza atrás dele. Mas, no
que o homem foi caindo como se estivesse grogue, ele
acionou uma alavanca, e a rampa traseira da jaula se abriu,
batendo com estrondo no chão. Uma coisa sombria e
imensa levantou e se aprestou.
"Ned!", gritei.
A coisa saltou como se lançada por catapulta, e não
impulsionada pelas próprias patas traseiras. Tive um
vislumbre apavorante - a juba marrom, os dentes brancos, o
rosado recôndito da bocarra. Astiza berrou. Ned e o leão
urraram em uníssono e colidiram um com o outro. O
porrete foi deitando pancadas mesmo quando as mandíbulas
do predador se fecharam e mastigaram o antebraço esquerdo
do fuzileiro.
Ned bramiu de agonia e raiva, mas também ouvi as costelas
do leão se quebrarem quando o porrete de pinheiro golpeou
seguidamente o flanco do animal, com tanta velocidade e
ímpeto que fez o leão cair de lado, levando Ned junto pelo
braço. Os dois rolaram, o humano gritando e o felino
rosnando, numa confusão de pêlo e poeira. O fuzileiro se
levantou, e o porrete bateu de novo e de novo, mesmo
enquanto Ned era atingido pelas garras. Suas roupas estavam
sendo rasgadas, e sua carne, dilacerada. Foi nauseante.
Saquei minha machadinha, tão insignificante quanto uma
colher de chá, mas, antes que eu pudesse ter ponderado as
coisas e fugido como qualquer homem sensato, também eu
investi contra o bicho.
"Ethan!", ouvi Astiza chamar, como se ela estivesse muito
longe.
Outra pedrada de Mohammad passou sibilando por mim e
acertou o leão, fazendo a cabeça dele virar depressa. Essa
distração foi tão oportuna que pude sair daquele corpo-a-
corpo e golpear a cabeça do animal. Eu o acertei acima de
um dos olhos, e o felino largou o braço de Ned e rugiu de
dor e fúria, movendo violentamente a cauda e batendo o
traseiro na terra. Agora Astiza também atacava, erguendo
bem acima da cabeça uma pedra pesada, que ela arremessou
como uma atleta, direto na fuça ensangüentada do leão.
Nossa tresloucada arremetida o deixou confuso. Contra todas
as expectativas, ele fugiu, passando aos saltos pela jaula
volante que o trouxera. Subiu o canyon em disparada e,
nisto, atacou os árabes de Najac que vinham tentar nos
deter. Eles, berrando ante aquela reversão do que se
esperava de sua arma secreta, deram meia-volta e correram.
O leão, ensangüentado, derrubou um, fez uma pausa para
quebrar-lhe o pescoço, e depois partiu atrás dos outros e da
liberdade nas montanhas mais além.
Os cavalos que puxavam o carroção relinchavam de pavor.
Estávamos em choque, com o coração disparado. Sangue e
pêlo se grudavam ao fio de minha machadinha. Astiza se
dobrara para a frente, com o peito arfante. Espantosamente,
estávamos todos, à exceção de Ned, incólumes. Eu ainda
sentia o fedor do felino, aquele cheiro râncido de mijo,
carne e sangue, e minha voz tremia quando me ajoelhei
junto ao gigantesco fuzileiro. A arremetida de Ned contra as
mandíbulas do leão foi a coisa mais corajosa que eu já vira.
"Ned, Ned! Precisamos seguir em frente!" Eu resfolegava.
"Silano ainda está vindo atrás, mas acho que o leão limpou
caminho para nós."
"Não dá mais, chefe." Ele falava com dificuldade, entre
dentes.
Ned sangrava como um açoitado. O sangue, vívido, brilhava.
Mohammad enrolava o pano do turbante no braço lacerado
do gigante, mas era inútil - o antebraço parecia ter sido
retalhado por uma máquina. "Tereis de continuar sem mim."
"Nós te carregaremos!"
Ele riu. Ou melhor, arfou, um casquinar espirrado, com os
dentes cerrados e os olhos arregalados por já ter ciência do
próprio destino. "Ah, claro..."
Estendemos os braços para tentar erguê-lo mesmo assim,
mas Ned gritou de dor e nos empurrou para que nos
afastássemos. "Deixai-me - todos sabemos que não vou
conseguir voltar para a Inglaterra!" Gemeu, e lágrimas lhe
marcavam as faces. "O bicho me esfolou até as costelas, a
perna parece que quebrou ou saiu do lugar, e eu peso mais
que o rei Jorge com a banheira dele. Correi, correi como
loucos, enquanto ainda vale a pena." Os nós de seus dedos
estavam brancos, ali onde se agarrava ao porrete.
"Mas de jeito nenhum eu vou te deixar, Ned! Não depois
disto tudo!"
"E morrerás se não o fizeres, e o teu livro do tesouro vai
acabar na mão daquele conde doido e seu capanga lunático.
Diacho, faze a minha vida ter valido alguma coisa - vive! Eu
posso me arrastar de volta para aquele monte de entulho e
pegá-los quando passarem."
"Eles vão te liquidar!"
"Será uma caridade, chefe... Uma caridade..." Ele fez uma
careta de dor. "Eu já tinha o pressentimento de que não
tornaria a ver a Inglaterra se viesse contigo. Mas és uma
companhia danada de interessante, Ethan Gage. És mais que
apenas um ianque batoteiro - ah, se és!..."
Por que será que nossos piores inimigos às vezes se
transformam em nossos melhores amigos?
"Ned..."
"Correi, diacho! Correi - e, se por acaso achares a minha
mãezinha, dá um pouco daquele ouro para ela." E, afastando-
nos, ele se levantou com obstinação, primeiro ajoelhando,
depois se pondo de pé. Começou então a cambalear de volta
pelo caminho que fizéramos, seu flanco era uma superfície
sanguinolenta. "Jesus, que sede me deu!"
Fiquei paralisado, mas Mohammad me puxou. "Precisamos
ir, efêndi, agora!"
Fugimos. Não me orgulho dessa decisão, mas, se tivéssemos
ficado para enfrentar os franceses armados de Silano,
levaríamos com certeza a pior - e para quê? Assim, passamos
correndo pelo árabe esparramado junto ao carroção,
pulamos por sobre aquele que o leão mastigara e subimos
sem parar o aclive do canyon, arquejando, já meio
esperando a cada curva que o felino enlouquecido saltasse
sobre nós. O leão, entretanto, se fora. Quando chegamos à
entrada do canyon, ouvimos o eco de gritos e depois
disparos atrás de nós. Ressoou um berro, o grito tonitruante
que um homem grande poderia dar quando submetido à dor
insuportável. Ned ainda tentava ganhar tempo para nós, mas
o preço era a agonia do fuzileiro.
Os cavalos estavam amarrados onde os havíamos deixado
um dia antes, mas agora batiam os cascos, davam relinchos
agudos e reviravam os olhos. Selamos os três melhores,
puxamos a corda com os outros e começamos a galopar por
onde chegáramos ao canyon. Apesar de escutarmos mais
disparos, já estávamos bem fora de alcance.
Quando subíamos para o planalto, olhamos para trás. O
grupo de Silano surgira do canyon e nos encalçava com
tenacidade, mas a pé. A distância entre nós e ele aumentava.
Não tínhamos como manejar tantos cavalos, de modo que
soltamos os outros, menos três para muda. Nossos
perseguidores precisariam de certo tempo para recapturá-los.
E então, chorosos e totalmente exauridos, pegamos o rumo
norte para Acre.
Ao entardecer, alcançamos o castelo dos cruzados onde já
acampáramos. Embora eu imaginasse que deveríamos ter
seguido mais adiante, Mohammad e eu, após termos perdido
uma noite de sono pegando o livro e fugindo pelos canyons,
estávamos bambos na sela. Astiza não se encontrava muito
melhor que nós. Sou um apostador, e apostei que Silano e
Najac não recuperariam os cavalos tão cedo. Por
conseguinte, paramos. As pedras do castelo se alaranjaram
fugazmente à medida que o sol se punha, e achamos parcas
rações de pão e tâmara nos alforjes. Não ousamos acender
fogueira.
"Vós dois dormireis primeiro", disse Mohammad. "Eu ficarei
de vigia. Mesmo que os franceses e árabes estejam a pé e não
tenham como chegar aqui logo, ainda há salteadores por
estas bandas."
"Estás tão exausto quanto nós, Mohammad."
"E é por isso que precisais substituir-me em poucas horas.
Naquele canto, há relva para servir-vos de leito, e a pedra
ainda estará quente do calor do sol. Ficarei no alto da torre
em ruína."
Mohammad, ainda meu guia e guardião, sumiu por ali.
"Ele está nos deixando a sós de propósito", disse Astiza.
"É, eu sei."
"Vem. Estou tiritando."
Naquela época do ano, a relva ainda estava verde e macia.
Quando a noite veio lançar sua sombra, um lagarto se enfiou
leve e rapidamente num buraco. Deitamos juntos ao lado da
rocha cálida - nossa primeira oportunidade de estarmos
verdadeiramente próximos desde que Astiza me esbofeteara
na frente de Silano. Ela se achegou para que eu lhe desse
calor e a confortasse. Estava trêmula, com as faces molhadas.
"É sempre tão difícil!..."
"Ned não era mau sujeito. Fui eu que trouxe a desgraça para
ele." "Quem pôs o leão lá foi Najac, não tu."
Mas eu trouxera mesmo Ned, e Astiza trouxera o anel.
Lembrei-me subitamente dele e o tirei de sua pequena bolsa.
"Tu o conservaste, mesmo tendo dito que era amaldiçoado."
"Era tudo o que eu tinha de ti, Ethan. Eu pretendia devolvê-
lo em oferenda."
"Os deuses tinham algum objetivo ao deixar que o
achássemos?"
"Não sei... Não sei..." Ela se agarrou ainda mais a mim.
"Talvez ele traga boa sorte. Afinal, estamos com o livro - e
estamos juntos de novo."
Ela me olhou com espanto. "Caçados... Incapazes de ler o
livro... Um companheiro já morreu..." Estendeu a mão. "Dá-
me o anel."
Quando o fiz, ela ergueu o torso e atirou o anel no canto
oposto do pátio em ruínas. Ainda ouvi o tinido. Um rubi,
grande o bastante para que um homem pudesse viver com
conforto o resto da vida, perdera-se. "O livro já basta. Chega,
chega!" E então ela voltou a deitar, com olhar arrebatado, e
me beijou, com um ardor elétrico.
Um dia talvez ainda tenhamos uma cama de verdade, mas,
assim como no Egito, tivemos de aproveitar o lugar e o
momento disponíveis. O ato foi urgente, atrapalhado, nós
apenas semidespidos, um desejo não tanto pelo corpo um do
outro quanto pela união tranqüilizadora contra um mundo
frio, traiçoeiro, implacável. Ofegamos ao copular, forcejando
como animais, Astiza dando um grito abafado, e depois nos
deixamos cair juntos numa inconsciência quase imediata,
tendo nossas roupas de baixo emaranhadas como uma
concha em torno de nós. Eu me comprometi vagamente a
substituir Mohammad tal qual combinado.
Ele nos acordou ao amanhecer.
"Sinto muito, Mohammad!" Batalhávamos para nos vestir tão
decorosamente quanto possível.
"Está tudo bem, efêndi. Eu mesmo adormeci,
provavelmente minutos depois que vos deixei. Já perscrutei
o horizonte - ninguém se aproxima. Mas precisamos seguir
viagem logo, pois quem sabe quando o inimigo recuperará
os cavalos?"
"Sim. E, com os franceses dominando a Palestina, resta
apenas um lugar onde estaremos seguros - Acre. E eles
sabem disso."
"Como é que passaremos pelo exército de Napoleão?",
perguntou Astiza, com denodo, e não preocupação. Parecia
rejuvenescida à luz cada vez mais forte; ela brilhava, seus
olhos cintilavam, seus cabelos estavam magnificamente
despenteados. Eu também me sentia revivido. Foi bom
termos nos livrado do anel do faraó.
"Cortaremos para o litoral, acharemos um barco e
navegaremos para lá", respondi, subitamente confiante. Eu
tinha o livro, eu tinha Astiza... e, claro, eu tinha Miriam,
detalhe que eu cuidara não de dizer a Astiza. Bem, primeiro
as prioridades.
Montamos e descemos a galope o morro do castelo.
Não nos atrevemos a parar para a segunda noite. Cavalgamos
tão celeremente quanto os cavalos agüentaram, fazendo o
caminho inverso para o monte Nebo e depois descendo para
o mar Morto e o Jordão, a levantarmos nuvens de poeira.
Imaginamos que os montes de Jerusalém ainda pululassem
de combatentes irregulares da Samaria, os quais podiam ou
não nos considerar aliados. Por isso, continuamos no rumo
norte pelo Jordão e voltamos ao vale de Jezreel, ficando bem
longe do campo de batalha de Kleber. Abutres orbitavam o
morro onde resistíramos às investidas otomanas. A não ser
pela machadinha, meu grupo ainda estava desarmado. Em
certa ocasião, vimos uma patrulha de cavalaria francesa e
desmontamos para nos esconder num olivedo enquanto
passavam a uma milha de nós. Duas outras vezes, avistamos
cavaleiros otomanos e nos ocultamos também deles.
"Arremeteremos para o litoral perto de Haifa", disse eu a
meus companheiros. "Ali há pouca guarnição francesa. Se
conseguirmos furtar um barco e chegar aos britânicos,
estaremos a salvo."
E assim cavalgamos pelo trigo alto, dividindo-o a nossa
passagem como se fôssemos Moisés. A Cidade dos Espíritos
era agora tão irreal quanto um sonho, e a grotesca morte de
Ned, um pesadelo incompreensível. Astiza e eu
readquirimos aquele companheirismo fácil dos casais, e
Mohammad era nosso fiel acompanhante e parceiro. Desde
nossa fuga, ele não mencionara dinheiro nem uma única
vez.
Estávamos todos mudados.
A salvação parecia próxima, mas, quando fomos para
nordeste rumo às elevações do litoral e ao monte Carmelo
(que cingiam Haifa), vimos uma fileira de cavaleiros
esperando mais adiante.
Escalei um pinheiro para olhar com minha luneta, sentindo
o pavor chegar quando focalizei uma figura e depois outra.
Como era possível?!
Eram Silano e Najac. Eles haviam não apenas nos alcançado,
mas também estabelecido aquela guarda avançada para nos
apanhar em armadilha.
Talvez pudéssemos nos esgueirar, contornando-os.
Mas não: quando fugimos para o norte, demos em campos
abertos que não era possível evitar, e o grupo de Silano, com
um grito, avistou-nos. A perseguição continuava! Eles
tomaram o cuidado de manter-se sempre entre nós e o
litoral.
"Por que não nos apanham?", quis saber Astiza.
"Estão nos conduzindo para Napoleão."
Tentamos nos desviar para o Mediterrâneo naquela noite,
mas uma salva de tiros noz fez voltar correndo. Desconfiei
que os árabes de Najac fossem peritos rastreadores e
tivessem adivinhado para onde íamos. Agora, não tínhamos
como nos livrar. Exigimos muito das montarias, o bastante
para mantê-los a distância, mas ficávamos desamparados sem
armas. Eles não pressionavam, sabendo que nos tinham
encurralados.
"Efêndi, podemos voltar para o interior, na direção de
Nazaré ou do mar da Galiléia", sugeriu Mohammad.
"Podemos até buscar refúgio com o exército turco em
Damasco."
"E perder tudo o que conseguimos?", respondi, com
gravidade. "Nós dois sabemos que os otomanos se
apoderariam do cilindro num instante." Olhei para trás.
"Bem, o plano é este: vamos em disparada para as linhas
francesas, como se quiséssemos nos render a Napoleão, mas
aí continuamos em frente, direto pelo acampamento, e
corremos para as muralhas de Acre. Caso Silano ou os
franceses nos sigam, darão com o fogo dos ingleses e de
Djezzar."
"E depois, efêndi?"
"Torço para que nossos amigos não atirem em nós." E
esporeamos para cobrir as derradeiras milhas.
— 21 —
Estávamos na planície litorânea quando o sol se levantou. O
Mediterrâneo era uma tentadora travessa de prata cujo
acesso, entretanto, nos era negado por nossos inimigos.
Quando galopávamos, eles, que vinham poupando os
animais, partiam também para o galope. Eu os observava
pela luneta e reconheci alguns cavalos, daqueles que nossos
perseguidores tinham recapturado. Também havia novas
montarias. Silano por certo as forçara brutalmente. Nosso
descanso no castelo dos cruzados custara muito caro.
Nossa única esperança era o elemento surpresa. "Astiza!
Quando nos aproximarmos do campo, agita o teu lenço
como uma bandeira branca! Temos de confundi-los!"
Ela assentiu, inclinando-se concentradamente sobre o
pescoço de seu cavalo, a pleno galope. Ouvimos tiros atrás
de nós. Olhei para trás: os homens de Silano estavam muito
fora de alcance, mas tentavam alertar as sentinelas francesas
de que devíamos ser capturados. Eu estava apostando na
confusão, reforçada pelo fato de termos uma mulher
conosco.
A milha final foi uma corrida de vida ou morte, com nossas
montarias espumando, as ilhargas arfantes, nós de cabeça
baixa porque continuavam a disparar atrás de nós. As
sentinelas já estavam alertas, com os mosquetes aprestados e
as baionetas caladas, mas se mostravam indecisas.
"Agora! Agita o lenço agora!"
Astiza fez isso, erguendo um dos braços com o lenço a
tremular atrás de si e endireitando-se o bastante para que
vissem seu tronco feminino, com o vento comprimindo o
vestido contra o busto. Os guardas baixaram as armas.
Passamos em tropel. "São bandidos e irregulares atrás de
nós!", bradei. O bando de Najac parecia mesmo uma turma
de salteadores. Agora os guardas estavam apontando sem
muita convicção para nossos perseguidores.
"Não afrouxeis!", berrei para Astiza e Mohammad. Passamos
num átimo pelas tendas do hospital e saltamos as hastes das
carroças. Aqueles ali não eram Monge e o boticário
Berthollet? E não era Bonaparte a sair correndo da tenda?
Disparamos através do círculo de soldados junto a uma
fogueira, com homens se espalhando e brasas voando. Por
toda a parte, militares se levantavam do desjejum,
exclamavam e apontavam. Seus mosquetes descansavam em
pequenas pirâmides bem ordenadas, tendo por base as
coronhas e por ápice o encontro das bocas dos canos, com
as baionetas a cintilar. Seguimos pelo corredor entre as
tendas de um regimento, num espaço que se assemelhava a
uma alameda, levantando poeira. Atrás de nós, eu ouvi
gritaria e altercação quando o grupo de Silano, apontando
furiosamente, teve de parar ante os guardas.
Talvez conseguíssemos mesmo.
Um sargento apontou uma pistola, mas dei uma guinada, e o
homem foi jogado de lado pela parte dianteira de meu
cavalo, com a arma disparando inofensivamente.
Mohammad, sagaz, apanhou uma bandeira tricolor e a levou
consigo, como se estivéssemos lançando uma investida
contra Acre. Mas não adiantou: agora uma cerca viva, de
infantaria francesa, estava se formando entre nós e as
muralhas da cidade, que ainda se encontrava a uma milha de
distância. Por isso, avançamos dando voltas entre as linhas,
saltando um dique de areia. Começaram a atirar, e as balas
passaram sibilando como vespas insistentes.
Lá nas muralhas de Acre, soavam trombetas. O que pensaria
Smith, depois que eu desertara sem dizer uma palavra?
Ali! Uma cantina de campanha, com os homens desarmados
e ocupados em cozinhar. Virei com o cavalo e chispei por
eles, dispersando-os. O fato de estarem ali em bom número
e poderem ser alvejados nos protegeu de mais disparos.
Então saltei uma trincheira, galopando ao longo do velho
aqueduto rumo à cidade...
E então voei.
Por um momento, não entendi o que acontecera e pensei
que talvez meu cavalo tivesse levado um tiro ou
repentinamente estourado o coração. Caí em terra fofa e fui
parar adiante dos trambolhões, meio cego pela poeira. Mas,
enquanto rolava, percebi que Mohammad e Astiza também
haviam sido derrubados, com seus cavalos relinchando
quando as patas estalaram, e vi a corda que às pressas fora
esticada para nos fazer cair. Um cozinheiro deu um grito de
triunfo - havíamos sido abatidos quando nossa meta já estava
diante de nossos olhos!
Levantei-me, com as mãos em carne viva, e corri de volta
para os outros dois. Mais disparos, e balas passaram zunindo.
"Efêndi, o aqueduto! Podemos usá-lo como proteção!"
Assenti, puxando impiedosamente Astiza para que ela não
afrouxasse o ritmo. Com o tornozelo torcido, sua expressão
era de dor, mas também de tenacidade.
Flavia uma pilha de escadas, reunidas ali para a investida
seguinte dos franceses. Eu e Mohammad pegamos uma e a
jogamos contra uma das colunas do aqueduto romano.
Empurrei Astiza escada acima, fazendo-a rolar por sobre a
borda do aqueduto, de modo que pudéssemos nos deixar cair
na calha por onde a água costumava correr. Era um fiapo de
proteção. Balas ricocheteavam na pedra. "Ficai abaixados e
segui pela calha até que estejamos sob as armas dos
britânicos", disse eu. "Astiza, vai na frente, para sinalizar
para eles." Aquela brava mulher se aferrara ao lenço mesmo
após ter caído da montaria.
Ela o empurrou para mim."Não, é a ti que eles conhecem.
Corre e consegue socorro. Vou seguir-te o mais depressa
que puder."
"Ficarei com ela", prometeu Mohammad.
Olhei por sobre a beira do aqueduto. O acampamento
francês inteiro estava em polvorosa. Silano conseguira entrar
lá e estava agora apontando. Najac parecia estar municiando
meu fuzil.
Não era hora para delongas.
Com as balas zunindo e ricocheteando, corri pela calha, que
tinha menos de três pés de profundidade. Astiza e
Mohammad me seguiram com dificuldade, agachados. Dou
graças a Tot que os mosquetes sejam armas sem precisão
nenhuma! Adiante, mais soldados franceses, em trincheiras
avançadas, estavam se voltando para toda aquela agitação e
apontando seus mosquetes e pistolas.
Mas então um canhão inglês trovejou de Acre, levantando
uma nuvem de terra, e os franceses se abaixaram
instintivamente nas trincheiras. Houve outro disparo de
artilharia, e mais outro. Os defensores por certo não faziam
idéia de quem estava se beneficiando com os disparos deles,
mas haviam decidido que qualquer inimigo dos franceses só
podia ser amigo seu.
Outro estrondo, um grito, e as colunas do aqueduto foram
atingidas por um projétil pesado - a artilharia francesa! A
estrutura toda tremeu.
"Depressa", berrei para os dois atrás de mim. Corri agachado,
agitando o lenço como um louco e pondo todas as minhas
esperanças num milagre.
Mais fumaça de uma bateria francesa, e mais silvos quando
passaram os projéteis, alguns deles atingindo as próprias
trincheiras do exército sitiante. Outro impacto certeiro, e o
aqueduto tremeu de novo, e de novo. Uma bala de canhão
acertou a beirada superior, fazendo fragmentos de pedra
choverem sobre mim. Pisquei e olhei para trás. Astiza
mancava, mas continuava determinada; Mohammad vinha
logo atrás dela. Mais cem jardas! Empenhava-se a artilharia
de ambos os lados, uma batalha inteira por nosso pequeno
trio.
E nesse momento Astiza deu um grito. Eu me voltei.
Mohammad se ergueu abruptamente, teso, a boca aberta
numa expressão de surpresa. Seu peito ficou escarlate, e ele
tombou. Olhei na direção dos franceses. Najac estava
justamente baixando meu fuzil.
Tudo o que eu queria era voltar correndo para matar o
desgraçado. Em vez disso, porém, gritei para Astiza: "Deixa-
o!" Agora eu esperaria por ela. Mas, nisto, o aqueduto
explodiu entre nós.
Foi um tiro perfeito de algum canhão grande. Os franceses
certamente haviam trazido novas peças de artilharia de sítio
para substituir aquelas que capturáramos no mar. O aqueduto
pareceu levantar-se, e pedras explodiram em todas as
direções. Voou poeira, e então uma brecha se escancarou
entre as colunas - de repente, Astiza e eu estávamos em
lados opostos de um abismo.
"Pula para baixo, que eu te puxo para cima!"
"Não, não - continua sozinho!", berrou. "Ele não me matará!
Vou ganhar tempo para ti!" Ela rasgou parte do vestido e
começou a voltar, mancando e agitando freneticamente o
pano em sinal de rendição. O fogo francês diminuiu.
Xinguei, mas não tinha como detê-la. Desolado, virei e corri
a toda para Acre, agora completamente ereto, apostando que
a velocidade iria me tornar alvo difícil.
Se fosse fácil recarregar um fuzil como o meu, Najac ainda
poderia ter-me acertado. Mas ele levaria um minuto inteiro
para conseguir dar outro tiro, e os disparos dos demais não
tinham precisão alguma. Eu agora já estava além das
avançadas trincheiras francesas, no ponto onde o aqueduto
terminava em entulho antes de chegar às muralhas de Acre,
e, enquanto prosseguia o duelo de artilharia, eu desci para o
chão, levantando poeira com as botas.
Ouvi o ressoar de cascos e me voltei. Os árabes de Najac
vinham galopando junto ao aqueduto, querendo pegar-me,
curvados sobre o pescoço de suas montarias e indiferentes
ao fogo inglês.
Corri para o fosso. Ele estava a cinqüenta jardas, e a
estratégica torre se avultava como um monólito. Na muralha
de Acre, soldados apontavam o dedo para mim. Se eu
conseguisse, seria por um triz. Com as pernas latejando,
corri como nunca antes, ouvindo os cavaleiros que me
perseguiam diminuírem a distância. Agora, homens por toda
a muralha estavam atirando por sobre minha cabeça, e
escutei cavalos relincharem e tombarem, pois alguns deviam
ter sido atingidos.
No que alcancei o fosso, deslizei sobre sua beirada como
uma lontra-marinha num banco de neve, rolando para o
fundo seco. O fedor era nauseante. Viam-se corpos em
decomposição, escadas quebradas e as armas abandonadas
que constituem o detrito das guerras. A brecha na torre fora
fechada, e não havia jeito de escalar a muralha. Lá de cima,
homens forçavam a vista para olhar-me, mas nenhum
parecia ter percebido ainda quem eu era. Não me
ofereceram corda nenhuma. Sem saber mais o que fazer,
corri pelo fundo poeirento do fosso até o ponto em que ele
encontrava o Mediterrâneo. Consegui ver os mastros de
navios britânicos, e canhões continuavam a disparar acima
de mim. Phélippeaux não dissera que estavam construindo
um reservatório de água do mar na extremidade do fosso?
Mais gritos. Olhei para trás: aqueles árabes abusados tinham
entrado no fosso com cavalo e tudo e agora galopavam pelo
fundo, decididos a pegar-me sem ligar para os soldados que
tentavam baleá-los da muralha - Silano obviamente sabia que
eu estava com o livro! Mais adiante, estava a rampa sobre o
fosso, junto ao chamado portão do Interior. Mais além, o
molhe negro e úmido do novo reservatório. Eu estava
encurralado!
E aí houve outra explosão, bem à frente. Escutou-se um
estrondo, fragmentos voaram, e o molhe negro se dissolveu
diante de meus olhos. A detonação me jogou para trás, e,
estupefato, vi uma parede verde de água marinha virar
espuma e começar a rugir pelo fosso, dirigindo-se a mim e a
meus perseguidores. Consegui pôr-me de joelhos, e
exatamente então a enxurrada me atingiu. Ela me arrastou
pelo caminho inverso do que eu fizera, levando-me como
folha na sarjeta.
Eu estava num caos de espuma, sem poder respirar direito,
sem saber se estava virado para cima ou para baixo. Fui
dando cambalhotas. A água me carreou de roldão junto com
meus perseguidores, e fui atingido por uma coisa grande.
Imaginei ter sido um cavalo, que por acaso me atirou para o
ar. Estávamos sendo varridos ao longo do fosso, rumo à torre
central, todos nós de cambulhada com os cadáveres pútridos
e o lixo acumulado de um cerco. Debati-me, tossindo.
Foi quando vi minha corrente - ou, pelo menos, uma
corrente que pendia da fachada da torre como uma
guirlanda. E, quando fomos arrastados por ali, eu me agarrei
a ela.
Ela me puxou para fora da água como se eu fosse um balde
de poço e começou a me arrastar para cima junto à áspera
fachada da torre, que raspava tal qual lixa.
"Segura firme, Gage. Estás quase em casa!" Era Jericó.
Agora balas de mosquete atingiam a muralha a meu redor, e
percebi que eu era um alvo suspenso para o exército francês
inteiro. Bastaria um tiro certeiro para que eu despencasse.
Contraí-me até parecer uma bola. Se eu tivesse conseguido
encolher mais, teria simplesmente desaparecido.
Troavam canhões, e um projétil que parecia grande como
uma casa atingiu a cantaria a algumas jardas de onde eu
estava, dissolvendo-se em estilhaços. A torre inteira
estremeceu e balançou como uma conta num colar de
barbante. Eu me segurei desesperadamente. Outro impacto,
e mais outro. Em cada uma das vezes, a torre tremeu e a
corrente oscilou, comigo dependurado. Aquilo não ia acabar
nunca?
Olhei para baixo. O fluxo de água estava desacelerando, mas
os ginetes árabes haviam sumido, arrastados para sabe-se lá
onde. Destroços coalhavam a superfície da água. Um
homem boiava de barriga para cima, como se fosse um peixe
morto.
"Alçai!", gritou Jericó.
E depois mãos fortes me agarraram, e fui arrastado, ofegante,
por sobre as ameias, meio afogado, ralado, queimado,
talhado, contundido, desolado por causa do amor e dos
companheiros que perdera. Ainda assim, não apresentava,
miraculosamente, nenhum furo - eu tinha as vidas, mais o
aspecto molhado, sofrido e sujo, de um gato de rua.
Eu me esparramei de costas no chão, arfante, incapaz de
ficar de pé. Juntou-se gente ao redor - Jericó, Djezzar,
Smith, Phélippeaux.
"Que diabo, Ethan!", saudou-me Smith. "De que lado estás
agora?"
Mas olhei para além deles, para a única pessoa que atraíra
instintivamente meu olhar, com seus cabelos dourados, seus
olhos arregalados e atônitos, seu vestido coberto de pólvora
e fuligem.
"Olá, Miriam", falei, com voz baixa e arranhada.
E aí os franceses começaram a atirar para valer.
A experiência me ensina que, quando mais precisamos
ponderar cuidadosamente as coisas, mais coisas vêm nos
atrapalhar o raciocínio. No caso em questão, tratava-se de
uma centena de canhões franceses, os quais desabafavam o
quanto estavam decepcionados com minha sobrevivência.
Eu me levantei e, trêmulo, olhei para fora. Havia muita
atividade nos bivaques de Napoleão, com unidades entrando
em formação e dirigindo-se para as trincheiras. Parecia que
eu estava com algo que Bonaparte queria de volta. E queria
muito.
A muralha tremia sob nossos pés.
Miriam me olhava com uma expressão que era misto de
espanto e alívio, combinados com uma maré crescente de
indignação, um afluente de confusão, um açude de
compaixão e uma moringa de desconfiança. "Foste embora
sem dizer nada?", conseguiu finalmente articular.
Do jeito que ela expressara, a coisa parecia pior. "Era difícil
explicar a razão."
"Do que o cristão estava correndo?", quis saber Djezzar.
"Parece que de todo o exército francês", comentou
serenamente Phélippeaux. "Eles não parecem gostar muito
de ti, Gage. E estávamos pensando em fuzilar-te, por
deserção e traição. Será que tens algum amigo no mundo?"
"Foi por causa daquela mulher, não?" Miriam adquirira jeito
para ir direto ao ponto. "Ela não morreu, e foste procurá-la."
Olhei para trás. Astiza ainda estaria viva? Eu acabara de ver
meu amigo muçulmano ser morto por minha própria arma e
Astiza voltar rumo ao desprezível Silano. "Precisei pegar
uma coisa antes que Napoleão o fizesse", expliquei a eles.
"E conseguiste?", perguntou Smith.
Apontei para as tropas que se acumulavam nas linhas
francesas. "Ele acha que sim - e está vindo pegar."
Percebendo que um ataque talvez fosse iminente, os líderes
de nossa guarnição começaram a gritar ordens, com os
clarins soando por sobre o estrondo da artilharia.
Eu me dirigi a Miriam. "Os franceses me enviaram um sinal
de que ela podia estar viva. Tive de descobrir, mas não sabia
como dizer-te - não depois da noite que passamos. E ela
estava mesmo viva. Agora, ambos estávamos vindo para cá,
juntos, mas ela foi recapturada, eu acho."
"Será que eu signifiquei alguma coisa para ti?"
"Mas é claro que sim! Eu me apaixonei por ti! É só que..."
"E só o quê?"
"Eu nunca deixei de amar Astiza." "Que te danes."
Era a primeira imprecação que eu ouvia de Miriam, e aquilo
me surpreendeu e atingiu mais que uma enfiada de ofensas
de alguém como Djezzar. Eu procurava uma maneira de
explicar, deixando claro que estavam em jogo causas mais
elevadas. Entretanto, toda vez que iniciava uma frase, esta
parecia insincera e oportunista, até mesmo a mim. Naquela
noite, após a defesa da torre, eu e Miriam cedêramos à
emoção, e aí o destino e um anel me desviaram de um modo
que não antevi. Qual fora o erro nisso? Ademais, eu trazia
sob a camisa um cilindro de ouro de valor incalculável. Mas
nada disso era fácil de explicar quando o exército francês
estava vindo contra nós.
"Miriam, há sempre mais do que apenas nós dois. Tu sabes
disso."
"Não. Decisões magoam pessoas - é simples assim."
"Bem, perdi Astiza outra vez."
"Perdeu a mim também."
Mas eu podia reconquistá-la, não? É, os homens são uns
cachorros, mas as mulheres têm certa satisfação felina em
nos açoitar com palavras e lágrimas. Há amor e crueldade de
ambos os lados, não é mesmo? Portanto eu suportaria o
desdém de Miriam, batalharia contra os franceses e, se
sobrevivêssemos, planejaria uma estratégia para apagar o
passado e cativá-la de novo.
"Eles estão vindo!"
Grato por ter de encarar apenas as divisões de Napoleão, e
não a mágoa de Miriam, subi com os outros para o alto da
grande torre. Lá embaixo, a planura ganhara vida. Cada
trincheira era uma lagarta de homens apressados, com seu
avanço obscurecido pela fumaça do terrível canhoneio.
Outras tropas arrastavam peças de artilharia mais leve para a
frente de combate, a fim de confrontar nossas forças dentro
da fortaleza caso conseguissem uma brecha na muralha.
Escadas balançavam à medida que granadeiros cruzavam o
terreno irregular, e turmas de trabalho a galope traziam mais
pólvora e balas de canhão para as baterias. Um grupo de
homens em trajes árabes se aglomerara perto do aqueduto
semidestruído.
Saquei a luneta. Ao que parecia, eram os sobreviventes do
bando de Najac. Não vi Silano nem Astiza.
Smith me puxou pelo ombro e apontou. "Que diabos é
aquilo?"
Girei a luneta para o que ele indicava. Uma tora se movia
lentamente em nossa direção. Era um enorme cedro, que
transbordava da carreta de doze rodas onde o haviam
colocado de comprido. Soldados empurravam a carreta por
trás e pelos lados. A ponta da tora estava inchada, como se o
cedro fosse um falo gigantesco, e vinha recoberta, presumi,
com alguma espécie de blindagem. A pergunta realmente se
justificava - que diabos era aquilo? Parecia um aríete
medieval. Bonaparte por certo não achava que podia
começar a martelar contra nossas muralhas com armas que
estavam ultrapassadas havia séculos. Ainda assim, os
soldados que empurravam o dispositivo avançavam cheios
de confiança.
Teria Napoleão enlouquecido?
Aquilo me fez lembrar o tipo de aparato improvisado que
poderia ter encantado Benjamin Franklin ou meu
compatriota Robert Fulton, o qual zanzava por Paris com
idéias amalucadas de coisas que ele denominava submarinos
e barcos a vapor. E qual outro conhecido meu era um
experimentador inveterado? Nicolas-Jacques Conte, é claro,
o homem cujo balão Astiza e eu furtáramos no Cairo.
Monge dissera que Conte inventara uma carreta reforçada
para fazer que canhões pesados chegassem a Acre. Aquela
tora tinha todas as características da engenhosidade e
capacidade de improvisação de Conte. Mas um aríete?
Parecia coisa tão antiquada para um modernista como ele. A
não ser que...
"É uma bomba!", gritei de repente. "Atirai naquela ponta!
Depressa! Atirai naquela ponta!"
O petardo chegara a um ligeiro declive que levava ao fosso e
estava começando a acelerar.
"O quê?", perguntou Phélippeaux.
"Há pólvora na ponta daquela tora! Precisamos detoná-la!"
Peguei um mosquete e atirei, mas, se porventura acertei
mesmo o tiro, minha bala deve ter ricocheteado sem
nenhum efeito no revestimento metálico. Embora outros
também disparassem, os soldados turcos e fuzileiros navais
britânicos ainda estavam mirando os homens que, junto às
rodas, empurravam a carreta. Um ou dois foram atingidos,
mas o monstro simplesmente os atropelou ao caírem, e o
petardo ganhou velocidade.
"Acertai-o com a artilharia!"
"Tarde demais, Gage", disse calmamente Smith. "Não temos
como inclinar os canhões o suficiente."
Por isso, agarrei Miriam, passando de raspão pelo atônito
Jericó, e, antes que ela pudesse reclamar, a empurrei para os
fundos da torre.
"Ide para trás, porque a bomba pode funcionar!"
Smith também estava recuando, e Djezzar já saíra dali para
pavonear-se pelas muralhas e intimidar seus homens. Mas
Phélippeaux se deixou ficar, corajosamente tentando
diminuir a velocidade do aparato de Conte com uma pistola
bem mirada. Era loucura.
Então, o aríete atingiu a beira do fosso e voou direto através
dele, com sua ponta se chocando contra a base da torre.
Os soldados que vinham empurrando a carreta se afastaram
correndo, mas um deles parou tempo suficiente para puxar
uma corda de disparo. Houve um clarão de estopim.
Mais alguns segundos, e o dispositivo explodiu com estrondo
tão cacofônico que apagou minha audição. O ar irrompeu
em fumaça e chamas, e grandes pedaços de pedra voaram
acima do alto da torre e, depois, balançaram
preguiçosamente na queda.
A construção tremera em ataques anteriores, mas desta vez
ela oscilou como um bebum encharcado de gim. Caí com
Miriam enquanto eu a agarrava. Sir Sidney segurou-se nas
ameias da parte de trás da torre. E a frente do edifício se
dissolveu ante meus olhos, destacando-se e deslizando para
um abismo infernal. Phélippeaux e Jericó despencaram junto
com ela.
"Irmão!", berrou Miriam, ou pelo menos foi esse o som que
interpretei pelo movimento de seus lábios. Tudo o que eu
conseguia ouvir era um zumbido.
Miriam correu para a beira da torre, até que a apanhei e
derrubei.
Rastejando sobre seu corpo, que se contorcia numa
plataforma que agora já se fora pela metade e inclinava-se
perigosamente, olhei para os escombros lá embaixo, os quais
cuspiam fumo como a garganta de um vulcão. O terço
frontal daquela que era a torre mais rija simplesmente se
descascara, e o resto ficara exposto como um oco de árvore,
que se mantinha graças a pavimentos semidestruídos. Era
como se as roupas nos tivessem sido arrancadas,
desnudando-nos. Na base, corpos se misturavam à pedra no
entulho, com o fosso cheio de destroços até a borda. Outro
som veio afetar meus maltratados ouvidos, e percebi que se
tratava de milhares de homens a dar vivas, de uma maneira
que eu, na confusão em que me encontrava, mal discernia:
os franceses estavam arremetendo-se para a brecha que
haviam aberto.
Eu apostava que Najac estaria com eles, procurando por
mim.
Smith recobrara o equilíbrio e desembainhara o sabre.
Bradava algo que o zumbido em meus ouvidos tornava
inaudível, mas depreendi que estivesse convocando homens
para irem à brecha. Fui coleando para trás e puxei Miriam
comigo. "O resto da torre pode desabar!", gritei.
"O quê?"
"Temos que sair desta torre!"
Ela tampouco conseguia ouvir. Assentiu, voltou-se para a
vanguarda francesa e, antes que eu pudesse detê-la, saltou da
beirada de onde eu acabara de me afastar. Lancei-me à
frente, tentando agarrá-la, e escorreguei para a borda.
Miriam caíra como um gato para as vigas que se projetavam
do piso abaixo e estava descendo pelas beiradas do
desabamento até Jericó. Eu, praguejando sem som comigo
mesmo, comecei a seguida, certo de que a construção inteira
ruiria a qualquer minuto e nos sepultaria num túmulo de
pedra. Entrementes, balas de mosquete ricocheteavam,
projéteis de artilharia troavam em ambas as direções, e
escadas portáteis eram colocadas como garras a estender-se
para cima.
Meio correndo, meio saltando, Smith e um contingente de
fuzileiros navais haviam descido a escada da torre,
parcialmente destruída atrás de nós, e chegaram à brecha ao
mesmo tempo que nós. Colidiram com as tropas francesas
que irrompiam pelo entulho do fosso, e houve um estrondo
de mosquetes dos dois lados, com homens aos berros.
Depois, atiraram-se uns contra os outros, usando baioneta,
alfanje e coronha de mosquete. Louis Bon, o comandante da
divisão francesa, tombou fatalmente ferido. Croisier, o
ajudante-de-ordens, humilhado por Napoleão no ano
anterior (quando não conseguira apanhar alguns
escaramuçadores), veio correndo para a refrega. Miriam caiu
naquele inferno gritando freneticamente por Jericó. Por
isso, eu também caí, perplexo, quase desarmado, enegrecido
pelo fumo de pólvora, cara a cara com todo o exército
francês.
Com suas barretinas e quepes altos e seus talabartes
cruzados, eles pareciam ter a altura de dois homens.
Investiam contra nós com a fúria e a frustração que advêm
de semanas de trabalho infrutífero de cerco - lá estava a
oportunidade de acabar com tudo de uma vez por todas,
como haviam feito em Jafa! Urravam como as ondas numa
borrasca, avançando aos trambolhões sobre um amontoado
de cadáveres, com a ponta do cedro estraçalhado a abrir-se
para a frente tal qual uma flor desabrochada. Mas, ao mesmo
tempo que iam à carga, eles sofriam com o dilúvio de pedra,
ferro e granada dos otomanos de Djezzar mais acima, que
deixavam essas coisas cair como se estivessem semeando
trigo. Se os franceses eram obstinados, nós estávamos
desesperados: caso eles penetrassem pela torre, Acre estaria
perdida, e todos certamente morreríamos. Fuzileiros navais
britânicos corriam de encontro a eles, gritando, disparando e
dando golpes de sabre e alfanje, e o vermelho das túnicas
inglesas formava com o azul das francesas um mosaico de
cores em conflito.
Foi a luta mais feroz de que eu já participara, tão corpo a
corpo quanto os embates de gregos e troianos, sem que se
desse ou se pedisse quartel. Homens grunhiam e xingavam
ao ser espetados, esganados, chutados ou cegados.
Arrojavam-se e lutavam como touros. Croisier submergiu no
tumulto, baleado e espetado numa dúzia de lugares. Não
enxergávamos nada da batalha mais ampla, só aquela peleja
num morrote de entulho, com a torre prestes a cair sobre
nós. Vi Phélippeaux, semi-enterrado, com a coluna
provavelmente quebrada, conseguir de algum modo puxar
uma pistola que estava debaixo de si e dispará-la contra seus
inimigos revolucionários. Em resposta, cravou-se nele uma
meia dúzia de baionetas.
Jericó não apenas sobrevivera à queda, como também
rastejara para fora dos destroços. Suas roupas estavam meio
queimadas e retalhadas, e sua pele se acinzentara de pó de
pedra, mas ele encontrara uma barra de ferro, ligeiramente
torcida, e, tal qual Sansão, foi a passos largos enfrentar os
franceses que chegavam. Homens recuavam ante a energia
insana com que ele brandia o ferro. Um fusilier veio por trás
mirando o mosquete, mas Miriam encontrara em algum
lugar uma pistola de oficial, que ela segurou com ambas as
mãos e disparou à queima-roupa. Metade da cabeça do
francês voou pelos ares. Um granadeiro se aproximava da
direção oposta. Lembrei-me de minha machadinha e a
arremessei, observando-a girar até fincar-se no pescoço do
soldado. Ele caiu como uma árvore abatida, e fui lá arrancar
a machadinha. Então eu e Miriam demos um jeito de agarrar
Jericó pelos braços e puxá-lo um ou dois passos para trás,
fora do alcance das baionetas que ele parecia desesperado
caso visse serem enterradas em seu corpo. No que fizemos
isso, tropas de Djezzar passaram correndo por nós e foram
enfrentar os franceses. Estava se formando uma sebe de
cadáveres. Smith, sem chapéu, a cabeça ensangüentada,
usava o sabre como um possesso, talhando e talhando. Balas
zuniam e ricocheteavam - ou faziam um ruído surdo quando
topavam com carne, e então mais alguém grunhia e
tombava.
Minha audição voltara, ainda muito ruim, e berrei para
Jericó e Miriam: "Temos de voltar para nossas linhas!
Seremos de mais ajuda se estivermos lá em cima!"
Nisto, alguma coisa passou sibilando junto a meu ouvido, tão
perto quanto uma vespa que viesse me advertir antes da
picada, e Jericó levou um tiro no ombro e girou qual pião.
Voltei-me e vi minha nêmesis. Najac praguejava, com meu
fuzil plantado pela coronha no entulho enquanto o patife
começava a recarregar e seus capangas se mantinham fora
do verdadeiro combate, dando, porém, tiros e mais tiros por
sobre as cabeças dos granadeiros que constituíam a
vanguarda. Aquele disparo se destinara a mim! Tinham
vindo para me matar, disso não havia mais dúvida - pois
sabiam o que provavelmente estava enfiado sob minha
camisa. E assim me vi também tomado pela fúria de
combate, sentindo uma ira e uma sede de vingança que me
fizeram sentir os músculos e veias latejarem e os olhos se
tornarem subitamente capazes de enxergar detalhes com
precisão sobrenatural. Eu percebera o clarão rubro no dedo
do desgraçado - ele estava usando o anel de rubi de Astiza!
Entendi num átimo o que acontecera. Mohammad não
resistira à tentação da jóia amaldiçoada que Astiza jogara para
longe no pátio do castelo dos cruzados. Enquanto
dormíamos, ele se apropriara do anel, pondo fim aos
periódicos pedidos de mais dinheiro. E Mohammad, não eu,
fora quem acabara morto pelo fuzil de Najac ao corrermos
no aqueduto. O bandoleiro francês depois fora verificar se o
guia mulçumano estava mesmo morto e se apossara do rubi,
sem conhecer a história da jóia. Agora, eu pegava a barra de
ferro de Jericó e partia para cima de Najac, contando os
segundos. Ele levaria um minuto inteiro para recarregar a
arma, e já se haviam passado dez segundos. Precisei lutar
através de um feixe de franceses para chegar a ele.
A barra reverberava quando, possesso como um templário a
lutar por Cristo, eu a brandia num arco largo. Isto é por
Mohammad e Ned, desgraçados! Eu me sentia invulnerável a
balas, sem saber o que era o medo. O tempo desacelerou, o
ruído se abafou, a visão se aguçou e se concentrou - tudo o
que eu via era Najac, com suas mãos trêmulas a colocar uma
medida de pólvora no cano do fuzil.
Vinte segundos.
Minha barra vibrava para lá e para cá naquele espinheiro de
baionetas, tal qual uma foice a abrir uma trilha. Metal retinia
quando eu o golpeava para que saísse do caminho. Soldados
da infantaria se afastavam em face de meu desvario.
Trinta segundos. A bala de fuzil estava envolta na bucha e,
com a vareta, era apreensivamente enfiada na boca da arma.
Os franceses e árabes de Najac berravam e atiravam, mas eu
não sentia nada senão o vento. Enxergava as ondulações no
ar fumarento à medida que as balas aceleravam, o brilho de
olhares frenéticos, o branco de dentes arreganhados, o
sangue a jorrar de algum lugar obliquamente ao rosto de um
jovem oficial. A barra acertou as costelas de um granadeiro
imenso, e ele se vergou de lado.
Quarenta segundos. A bala, teimosa, ia sendo socada no
cano.
Saltei sobre mortos e moribundos, usando seus corpos como
pedras num riacho, com o perfeito equilíbrio de uma
aranha. Ao redor, minha barra de ferro continuava
reverberando, e homens fugiam atabalhoadamente como o
haviam feito ante o ferreiro Jericó. Smith corria com seu
sabre atrás de um chasseur, um fuzileiro britânico morria, e
dois outros espetavam sua presa a baionetadas. Continuavam
a chover escombros das muralhas, e vi as detonações atrás
de Najac quando explodiram granadas e projéteis de
artilharia. Ao mesmo tempo que eu me impelia à frente,
reforços otomanos e ingleses irrompiam a minhas costas,
tapando a brecha com seu efetivo e seu sangue. Uma
bandeira tricolor tremulou, caiu e tornou a subir, balançando
para trás e para adiante.
Cinqüenta segundos. Najac nem perdeu tempo retirando a
vareta; ele agora se atrapalhava para aprestar e puxar o
mecanismo de disparo. Tinha medo no olhar - medo e
desespero, mas também ódio. Eu já quase o alcançara
quando um de seus bandidos surgiu diante de mim,
empunhando uma cimitarra acima da cabeça, com as duas
mãos, e tendo a fisionomia distorcida pelo urro que dava, até
que minha barra de ferro o atingiu na têmpora e seu crânio
explodiu, com sangue respingando em todas as direções.
Senti seu gosto nos dentes.
E agora, no que eu erguia o braço para o golpe final, com os
olhos de Najac arregalados de pavor, houve um clarão no
mecanismo de disparo, um estrondo, uma carga de calor e
fumaça, e o fuzil, ainda com a vareta no cano, disparou
direto contra meu peito.
Cai sentado, lançado para trás com violência. Mas, antes de
morrer, girei o braço e minha barra acertou aquele ladrão
nos calcanhares, arrebentando-os. Ele também caiu,
enquanto tropas arremetiam sobre nós, e eu, percebendo
que ainda não morrera, rastejei para a frente, resfolegando, e
o agarrei pela garganta, sufocando seus gritos agudos de dor.
Eu o esganei com tanta força que os tendões de meu
pescoço latejaram pelo esforço.
O olhar de Najac expressava um ódio impotente. Seus braços
se debatiam, procurando a arma. Sua língua se inchou de
modo obsceno.
Pensei: Isto é por Ned, e Mohammad, e Jericó, e todos os
outros homens bons que trucidaste, verme, nessa tua vida
desprezível. E continuei a esganá-lo enquanto ele ficava
roxo e meu sangue pingava sobre minha vítima, que se
contorcia. Eu via a vareta projetar-se de meu peito. O que
estava acontecendo?
Nisto, senti as mãos de Najac em minha cintura e um puxão
quando ele agarrou a minha machadinha. O patife, não
tendo conseguido dar cabo de mim com meu próprio fuzil,
agora queria me acertar na têmpora com meu próprio
machado de guerra!
Sem pensar muito, inclinei-me para a frente, de maneira que
a vareta que ele disparara estivesse contra seu peito e seu
coração. A ponta da vareta se quebrara e agora estava afiada
como uma agulha de tricô, e finalmente me dei conta do
que devia ter ocorrido: quando Najac atirara, aquele projétil
em forma de seta me atingira, sim, senhor, mas o fizera
exatamente onde estava o cilindro com o Livro de Tot. A
cabeça da vareta se cravara no ouro macio, jogando-me para
trás sem, entretanto, penetrar-me a carne. Agora, enquanto
Najac se desembaraçava e preparava o golpe com a
machadinha, eu me debruçava sobre ele e empurrava a
vareta com o cilindro, diretamente em seu peito. O esforço
doeu para diabo, mas a vareta rompeu o esterno do
desgraçado e então penetrou quase como faca na manteiga.
Os olhos de Najac se arregalaram ao nos abraçarmos, e
perfurei seu coração.
O sangue jorrou tal qual num poço, formando uma lagoa
cada vez maior. E Najac, sibilando como a víbora que era,
morreu com meu nome numa bolha rubra em seus lábios.
Escutei vivas, mas desta feita em inglês. Olhei para cima. O
assalto francês estava malogrando.
Arranquei abruptamente a vareta, pus-me de pé e -
finalmente! - recuperei meu fuzil confeccionado sob
medida. A batalha fora a pior carnificina até aquele
momento, uma medonha confusão de braços, pernas e
troncos de homens que tinham morrido atracados uns com
os outros. Havia centenas de corpos na brecha, e dezenas
em ambos os lados do fosso encharcado, com escadas de
assalto despedaçadas e as muralhas de Acre lascadas e
fendidas. Mas os franceses estavam em retirada. Os turcos
também festejavam, e seus canhões troavam num adeus às
tropas de Bonaparte.
Os homens de Smith e Djezzar não ousaram sair em
perseguição aos franceses. Agacharam-se, aturdidos com o
próprio sucesso, e depois recarregaram apressadamente as
armas, para a possibilidade de que o inimigo voltasse.
Sargentos começaram a dar ordens para que se erguesse uma
tosca barricada na base da torre.
O próprio Smith me avistou e veio a passos largos até mim,
com os cadáveres se comprimindo ligeiramente à proporção
que o inglês caminhava por eles. "Gage! Isso foi a coisa mais
por um triz que já vi na vida! Meu Deus, a torre - parece que
ela podia ter desabado a qualquer momento!"
"Bonaparte deve ter pensado o mesmo, sir Sidney", disse-
lhe. Eu estava arfando, tremendo com todos os músculos,
mais fatigado do que jamais estivera. A emoção me exaurira
por completo. Parecia que eu não tomava fôlego havia um
século e não dormia havia um milênio.
"Ao amanhecer, se a engenharia britânica tiver chance,
Bonaparte encontrará a torre reconstruída e mais reforçada
do que nunca", disse o capitão-de-mar-e-guerra, com uma
veemência feroz. "Por Deus, nós o superamos, Ethan! Ele
disparará contra nós todos os canhões que tiver, mas não
voltará depois dessa surra. Seus homens não o permitirão -
eles se recusarão a avançar." Afirmou isso com um gesto de
assentimento consigo mesmo.
Como Smith podia ter tanta certeza? E, no entanto,
estávamos prestes a ver que ele tinha mesmo razão.
"Mas onde está Phélippeaux?", perguntou. "Eu o vi liderar a
carga direto contra eles - por Deus, aquilo que era coragem
monarquista!"
Balancei negativamente a cabeça. "Receio que ele já não
tenha mais como combatê-los, sir Sidney."
Voltamos olhando cuidadosamente onde pisávamos. Dois
corpos jaziam sobre o de Phélippeaux, e por isso os
arrastamos para o lado. Milagre dos milagres: o monarquista
ainda respirava, muito embora eu tivesse visto meia dúzia de
baionetas o trespassarem como se fosse um quarto de boi.
Smith o puxou ligeiramente para cima, fazendo a cabeça do
moribundo descansar em seu colo. "Antoine, nós os
rechaçamos!", disse. "O corso está liquidado!"
"Quê?... Recuaram?" Embora seus olhos estivessem abertos,
Phélippeaux estava cego.
"Ele agora está lá naquele morrote, olhando feio para nós,
com suas melhores tropas trucidadas ou postas para correr.
Teu nome conhecerá a glória, meu amigo, porque Bonaparte
não tomará Acre. O tirano republicano foi detido, e generais
politiqueiros como ele não resistem a uma derrota séria."
Smith me fitou com olhos brilhantes. "Guarda minhas
palavras, Gage: nunca mais irá se ouvir muito o nome de
Napoleão Bonaparte."
— 22 —
Então o coronel Phélippeaux morreu. Teria ele realmente
compreendido sua vitória quando a vida se esvaía de seu
corpo? Não sei. Mas talvez Phélippeaux tenha tido um
vislumbre de que não foi em vão e de que, na violenta
insanidade do último e pior dia do cerco, conquistara-se algo
de fundamental.
Retornei ao corpo de Najac, inclinei-me e peguei meu fuzil,
minha machadinha e o anel. Depois caminhei de volta
através do entulho da torre semi-destruída. Engenheiros
militares aos berros já começavam a alavancar pedras,
aprestar vigas e misturar argamassa. A torre seria novamente
remendada.
Saí atrás de Jericó e Miriam.
Não vi - ainda bem! - o corpo do ferreiro entre as longas
fileiras de defensores caídos que, pesarosa e
temporariamente, eram depositados nos jardins do paxá.
Olhei para cima. Com a cacofonia da batalha, as aves tinham
desaparecido, mas as mulheres do harém, com seus olhos
cobertos por véu, nos contemplavam das janelas gradeadas.
A luta arrancara lascas do madeiramento, deixando rasgos
amarelos no padrão escuro. O paxá andava pomposamente
pela muralha, para lá e para cá, como um pavão, dando tapas
nas costas de seus homens exaustos e berrando para os
franceses. "O quê? Não apreciastes a minha hospitalidade?
Ora, voltai e desfrutai um pouco mais!"
Bebi água na fonte da mesquita e depois caminhei
pesadamente pela cidade, sujo de sangue e fumo de pólvora,
enquanto civis aglomerados me olhavam com receio.
Imaginei que meus olhos brilhassem no negror do rosto,
mas minha mirada se fixava em algo a mil milhas dali. Andei
até chegar ao molhe do farol, onde o Mediterrâneo parecia
tão limpo após a sordidez da batalha. Olhei para trás.
Canhões ainda ribombavam, e a fumaça e a poeira haviam
criado naquela direção uma cortina, que o sol declinante
iluminava por trás, transformando-a numa escuridão
tormentosa.
Como podia ter-se passado tanto tempo? Ainda pela manhã,
Astiza, Mohammad e eu havíamos chispado para a muralha.
Peguei o anel do faraó, anel que trouxera desgraça para toda
pessoa que o tocara. Será que existem mesmo maldições? O
racionalista Franklin duvidaria disso. Mas eu já sabia o
suficiente para não encostar os dedos no rubi enquanto
entrava no mar gelado, tendo água até os joelhos e depois a
cintura, com o frio me tomando a virilha e a seguir o peito.
Curvei-me e submergi, abrindo os olhos na penumbra
verde, deixando o mar lavar um pouco da poeira e fuligem.
Prendi a respiração o máximo que pude, certificando-me de
que estava finalmente pronto para fazer o que precisava ser
feito. E então vim à tona, sacudindo a água de meu cabelo
encharcado e comprido. Preparei o braço e arremessei. Foi
como uma estrela cadente vermelha, dirigindo-se ao azul-
cobalto que indicava a água profunda. Ouvi um chape, e o
anel se foi. Simples assim.
Tive um arrepio de alívio.
Achei Miriam no hospital da cidade, cujos recintos estavam
apinhados com os feridos recentes. Os lençóis estavam
rubros, e a água dos recipientes, rósea. Bacias continham
nacos de carne amputada. Moscas zumbiam, banqueteando-
se, e havia cheiro não só de sangue, mas também de
gangrena, lixívia e carvão vegetal, dos braseiros onde os
instrumentos cirúrgicos de corte eram aquecidos antes do
uso. Periodicamente, o ar era cortado por berros.
O edifício tremia pelo canhoneio incessante. Conforme
Smith previra, Napoleão parecia estar disparando contra nós
tudo o que tinha, num último acesso de frustração. Talvez
ele esperasse simplesmente arrasar o que não podia capturar.
Serras chacoalhavam nas mesas. Poeira descia das telhas para
os olhos dos feridos.
Fiquei aliviado ao ver que Miriam estava cuidando de um
irmão ainda vivo. Jericó estava sem camisa, pálido, com o
cabelo empastado e a parte superior do tronco envolta em
bandagens manchadas. Mas ele se mostrava alerta e enérgico
o bastante para me dirigir uma encarada cética quando fui
até seu catre.
"Será que nada consegue te matar?"
"Peguei o homem que te baleou, Jericó." Por conta da
exaustão emocional, minha fala estava embotada.
"Conseguimos defender a brecha. Tu, eu, Miriam, todos nós.
Conseguimos."
"Mas aonde foste quando saíste da cidade?"
"E uma história comprida. Sabes aquela coisa que estávamos
procurando em Jerusalém? Eu a achei."
Ambos me fitaram. "O tesouro?"
"É, mais ou menos." Enfiei a mão debaixo da camisa e tirei o
cilindro de ouro. Ele estava mesmo lascado e quase
perfurado onde a vareta do fuzil acertara. Meu peito tinha
uma equimose do tamanho de um prato. Mas tanto o
invólucro do livro quanto meu corpo estavam intactos.
Miriam e Jericó arregalaram os olhos ante o brilho do metal,
que escondi da vista das outras pessoas no hospital. "É
pesado, Jericó. Pesado o suficiente para construir duas vezes
a casa, e duas vezes a forja, que deixaste em Jerusalém.
Quando a guerra acabar, estarás rico."
"Eu?"
"Estou te dando. Tenho tido azar com tesouros. Só pretendo
ficar com o livro que está dentro do cilindro. Não consigo
ler palavra do que está escrito ali, mas estou ficando
sentimental."
"Estás me dando o ouro todo?" "Estou dando para ti e para
Miriam."
Agora ele me fazia uma carranca. "Como é que é? Achas que
podes compensar-me?"
"Compensar-te?"
"Por teres irrompido em nossas vidas e levado não só a nossa
casa e o nosso ganha-pão, mas também a pureza de minha
irmã."
"Não se trata de compensação! Isto aqui não é pagamento
nenhum! Por Deus, ela não..." Sensatamente, não concluí a
frase. "Não é compensação, nem mesmo agradecimento. É
só o que é justo, pura e simplesmente. Tu me farás um favor
aceitando."
"Tu a seduzes, a possuis, vais embora sem dizer nada e
depois vens me trazendo isso?!" Jericó estava ficando mais
bravo, não mais calmo. "Eu cuspo no teu presente!"
Era óbvio que ele não estava entendendo. "Pois então cospes
no humilde pedido de desculpas do teu futuro cunhado."
"Como é?!", disseram os dois, juntos. Miriam me olhava sem
conseguir acreditar. "Eu me envergonho de ter ido embora
sem me explicar e vos deixado na ignorância nessas últimas
semanas", respondi. "Sei que o que fiz parece mais baixo que
cobra na sarjeta. Mas tive uma chance de concluir nossa
busca, e foi o que fiz, mantendo este objeto longe dos
franceses, que fariam mau uso dele. Agora, nunca mais
pegarão o livro, porque, mesmo se passarem pelas nossas
defesas, eu conseguirei retirá-lo por mar nos navios de
Smith. Terminei o que comecei, e agora volto para terminar
o resto. Quero casar com a tua irmã, Jericó, e peço a tua
permissão."
O rosto dele se contorcia de incredulidade. "Perdeste
totalmente o juízo?!"
"Nunca estive mais são." Percebi que a resposta estivera
debaixo de meu nariz. Um ou outro deus estava me
mostrando o caminho certo ao levar Astiza para longe de
mim - eu e ela éramos veneno um para o outro, como fogo e
gelo, que acabavam em perigo sempre que se juntavam. A
egípcia, coitada, estaria melhor sem mim. Por certo, meu
coração não suportaria perdê-la outra vez. E ali estava a
meiga Miriam, uma boa mulher que aprendera a estourar a
cabeça de um homem com pistola e, ainda assim, era um
exemplo de vida reta e tranqüila. Havia sido isso que eu
encontrara de fato na Terra Santa, e não aquele livro bobo!
Por conseguinte, eu agora casaria com uma moça correta,
tomaria jeito, esqueceria o pesar que a ausência de Astiza me
causava e nunca mais teria nada a ver nem com batalhas,
nem com Bonaparte. É, o caminho era aquele mesmo.
"Mas e Astiza?", perguntou Miriam, admirada.
"Não vou mentir para ti. Eu a amei. Ainda a amo. Mas ela se
foi, Miriam. Eu a resgatei como já fiz antes - e a perdi como
também já aconteceu antes. Não sei por que, mas eu e ela
não fomos feitos para ficar juntos. Essas últimas horas de
inferno me abriram os olhos para mil coisas. Uma delas é o
quanto te amo, e quão maravilhosa serás para mim, e quão
bom, espero, eu serei para ti. Quero mesmo casar com
Miriam, Jericó, e eu gostaria de ter a tua bênção."
Ele me encarou fixamente durante um bom tempo, com
fisionomia inescrutável. E, então, seu rosto se contorceu de
modo estranho.
"Jericó?"
O rosto se enrugou, e aí o ferreiro caiu na gargalhada. Riu
até não mais poder, com lágrimas a correr-lhe pelas faces, e
Miriam também começou a rir, olhando-me com algo
perturbadoramente próximo do sentimento de pena.
O que raios estava acontecendo?
"A minha bênção?!" Era uma gargalhada estrondosa. "Como
se eu fosse mesmo dar!" Nisto, ele teve um esgar de dor, que
o lembrava do buraco em seu ombro.
"Mas, vê bem, eu me corrigi..."
"Ethan..." Miriam esticou o braço e tocou minha mão com a
dela. "Tu achas mesmo que o mundo fica parado enquanto
sais nessas tuas aventuras?"
"Ora, não, é claro que não." Eu estava cada vez mais
confuso.
Jericó recuperou o autocontrole, arfando e produzindo um
chiado ao respirar. "Gage, o teu senso de oportunidade é
horrível."
"Do que estás falando?" Olhei para um e depois para o outro.
"Será que terei de esperar a guerra acabar para que possa
casar?"
"Ethan", disse Miriam, suspirando, "lembra-te de onde me
deixaste quando foste procurar Astiza?"
"Lembro. Foi numa casa aqui em Acre."
"Era a casa de um médico. Um médico que trabalha neste
hospital." Ela abriu os olhos, fitando algo para além de mim.
"Um homem que, chegando em casa para conseguir algumas
horas de sono, me encontrou em lágrimas, confusa, com
raiva de mim mesma."
Eu me virei, devagar. Atrás de mim, estava o cirurgião
levantino, trigueiro, jovem, bem-apessoado e, considerando
tudo, mais respeitável (apesar das mãos sujas de sangue) que
um batoteiro e mandrião como eu. Com a breca, eu bancara
o bobo outra vez! Quando a cigana Sarylla lera o taro e me
dera a carta do Louco, ela bem sabia o tolo que eu era.
"Ethan, quero te apresentar o meu novo noivo."
"Dr. Hiram Zawani a vosso dispor, senhor Gage", disse o
homem, com o tipo de entonação culta que sempre invejei.
Ela os faz parecer três vezes mais inteligentes do que nós,
mesmo quando são umas cavalgaduras. "Haim Farhi diz que
não sois bem o finório que aparentas ser."
"Ethan, o doutor Zawani fez de mim uma mulher honrada.
Eu antes estava mentindo para mim mesma acerca do que eu
queria e precisava."
"Ele é o tipo de homem de que minha irmã necessita", disse
Jericó. "Ninguém sabe disso melhor que tu - e foste tu a
reuni-los! És um ser humano frívolo e confuso, Ethan Gage,
mas pelo menos uma vez fizeste alguma coisa direito."
Sorriram enquanto eu tentava adivinhar se ele me
cumprimentara ou insultara.
"Mas..." Eu quis dizer que Miriam estava apaixonada por
mim, que por certo ela devia ter esperado, que eu tinha duas
mulheres me disputando a atenção e meu problema era
escolher entre as duas...
Na metade de um dia, eu passara de duas a nenhuma. O rubi
e o ouro também se foram.
Bem, ao diabo com tudo.
E foi uma libertação. Eu não ia a um bom bordel desde que
fugira de Paris, e lá estava a oportunidade de ser solteirão
outra vez. A experiência estava sendo humilhante? Estava.
Mas foi um alívio? Foi, e eu me surpreendi com o quanto
fora. "E mesmo formidável como essas coisas se resolvem",
dissera Smith. Solidão? Às vezes. Mas também menos
responsabilidade.
Eu embarcaria para casa, daria o livro à Library Company
para que eles quebrassem a cabeça tentando entendê-lo e
tocaria minha vida. Talvez John Jacob Astor, o maioral do
comércio de peles, precisasse de ajuda em seu negócio. E
estavam construindo para o país uma nova capital lá nos
brejos da Virgínia, longe das vistas dos americanos honestos.
Parecia justamente o tipo de antro de oportunismo, embuste
e velhacaria para um homem com meus talentos.
"Parabéns", consegui dizer, com voz aguda e embaraçada.
"Eu ainda devia partir-te ao meio", disse Jericó. "Mas, em
vista do que aconteceu, acho que só vou te deixar nos ajudar
a penhorar isso que está aí contigo." E deixou Zawani dar
uma espiada no ouro.
Um dia depois, os franceses, tendo esgotado grande parte de
sua munição num derradeiro e feroz bombardeio que não
mudou em nada os apuros estratégicos em que se
encontravam, começaram a bater em retirada. Bonaparte
dependia do ímpeto e da velocidade. Não tendo conseguido
utilizá-los para que seus inimigos se desequilibrassem e
perdessem o pé, ele agora se via em irremediável
inferioridade numérica. Acre o detivera. Sua única opção era
voltar para o Egito e proclamar a vitória, mencionando as
batalhas que vencera e omitindo as que perdera.
Com minha luneta, eu os observei enquanto saíam de
fininho. Centenas de homens, os doentes e feridos que não
conseguiam andar, estavam sentados ou estirados em
carroças ou curvados sobre montarias. Se ficassem para trás,
estariam condenados, de modo que vi até Bonaparte a pé,
puxando pela correia um cavalo que carregava um soldado
com ataduras. Atearam fogo aos suprimentos que não
tinham como levar, e grandes colunas de fumaça se
ergueram no ar da primavera. Também explodiram as pontes
dos rios Na'aman e Kishon. A escassez de forragem e
transporte animal era tão grande entre os franceses que eles
abandonaram duas dúzias de canhões. Abandonadas ficaram
também multidões de judeus e cristãos que haviam tomado
o partido dos franceses na esperança de libertar-se dos
muçulmanos. Agora, lamuriavam-se como crianças perdidas,
pois só podiam esperar de Djezzar uma cruel desforra.
Os franceses começaram a queimar vingativamente fazendas
e aldeias ao longo da rota de sua retirada pelo litoral, para
retardarem uma perseguição que nunca viria - nossa
entorpecida guarnição não estava em condições de realizá-
la. O cerco durara sessenta e dois dias, de 19 de março a 21
de maio. Em ambos os lados, as baixas haviam sido pesadas.
A peste que se propagara pelo exército de Napoleão
atravessara as muralhas para adentrar a cidade, e a
preocupação imediata era remover os mortos. Fazia muito
calor, e Acre estava fétida.
Eu me deslocava com cansaço e aturdimento. Astiza se fora
de novo, cativa ou morta. Coloquei o livro num bornal de
couro e o escondi no alojamento em que me hospedei na
Estalagem do Mercador, o Khan a-Shawarda. Eu apostava
que podia tê-lo largado numa feira de rua que ninguém o
pegaria, tão esquisita era sua escrita. Aos poucos, chegavam
relatos da retirada de Napoleão. Uma semana após ter
deixado Acre, ele abandonou Jafa, conquistada a preço tão
terrível. Aos franceses mais acometidos pela peste, deu-se
ópio e veneno, para apressar a morte e evitar que caíssem
nas mãos dos combatentes irregulares muçulmanos vindos
de Nablus, na Samaria. Em 2 de junho, os derrotados
soldados chegaram exauridos a El-Arish, no Egito,
reforçando a guarnição local. Depois, o grosso do exército
seguiu para o Cairo. Um termômetro colocado na areia do
deserto registrou uma temperatura de cinqüenta e seis graus
centígrados. Quando chegaram ao Nilo, a marcha se
interrompeu para que os homens descansassem e se
recompusessem - Napoleão não podia dar-se ao luxo de
apresentar um exército derrotado. Tornou a entrar no Cairo
em 14 de junho, com estandartes capturados ao inimigo,
alardeando a vitória, mas essa alegação tinha sabor amargo.
Eu soube que Caffarelli, o general de artilharia perneta,
tivera um braço despedaçado por uma bala de canhão turca e
morrera de infecção junto a Acre; que o físico Étienne-
Louis Malus contraíra a peste em Jafa e tivera de ser
evacuado; e que tanto Monge quanto seu amigo boticário
Berthollet pegaram disenteria e estavam entre os enfermos
evacuados por carroção. A aventura de Napoleão estava se
transformando em desastre para todos os que eu conhecia.
Entrementes, Smith se mostrava ansioso para dar cabo do
arquiinimigo. Os reforços turcos de Constantinopla não
tinham vindo depressa o bastante para ajudar Acre, mas, no
começo de julho, chegou uma esquadra com quase doze mil
soldados otomanos, pronta para continuar para a baía de
Abukir e recuperar o Egito. Smith oferecera seu esquadrão
para apoiar o ataque. Não tive interesse em alistar-me nessa
expedição, que eu duvidava que pudesse derrotar o principal
exército francês. Eu ainda fazia planos de voltar para a
América. Em 7 de julho, porém, um barco mercante me
trouxe uma missiva do Egito. Vinha selada em cera
vermelha com um sinete que mostrava a imagem de Tot, o
deus provido de bico, e estava endereçada a mim em
caligrafia feminina. Meu coração disparou.
Quando abri, encontrei não a letra de Astiza, mas fortes
garranchos masculinos. O recado era simples.
Eu consigo lê-lo, e ela está esperando.
A chave está em Roseta.
Silano
Parte 3
- 23 -
Cheguei de volta ao Egito em 14 de julho de 1799, um ano e
duas semanas depois que desembarcara ali com Napoleão.
Agora, eu estava com o exército turco, não com o francês.
Smith se mostrava entusiasmado por essa contra-ofensiva,
proclamando que ela acabaria de vez com Bonaparte. Não
pude deixar de notar, porém, que o inglês permaneceu ao
largo com seu esquadrão de navios. E era difícil dizer quem
tinha menos confiança no sucesso daquela invasão, se eu ou
seu idoso comandante, o paxá Mustafá - que, com suas
barbas brancas, limitou o avanço a ocupar a minúscula
península que formava um dos lados da baía de Abukir. As
tropas de Mustafá desembarcaram, tomaram um reduto
francês a leste do vilarejo de Abukir, massacraram os
trezentos defensores, forçaram a rendição de outro posto
avançado francês na extremidade da península e pararam.
Ali onde a língua de terra da península se juntava ao
continente, Mustafá começou a erigir três linhas de
fortificações, antevendo o inevitável contra-ataque de
Bonaparte. Apesar da exitosa defesa de Acre, os otomanos
ainda receavam confrontar Napoleão em campo aberto.
Após a vitória ridiculamente desigual do corso na batalha do
Monte Tabor, os paxás encaravam qualquer iniciativa própria
como um desastre em formação. Por isso, invadiram e
cavaram com frenesi, na esperança de que os franceses
tivessem a cortesia de esticar as canelas ante as novas
trincheiras. Forças de Bonaparte rapidamente se reuniam
para cortar nosso acesso ao interior, e já víamos os primeiros
batedores franceses nos espiarem das dunas além da
península.
Sem que me tivessem pedido, eu sugeri polidamente a
Mustafá que ele arremetesse para o sul e tentasse unir-se
com a resistência mameluca à qual meu amigo Ashraf se
juntara, um contingente de cavalaria ligeira sob o comando
do bei Murad. Corria o rumor de que Murad ousara ir à
Grande Pirâmide, escalando-a até o topo e usando um
espelho para sinalizar para a esposa, que mantinham cativa
no Cairo. Era um gesto de comandante audaz, e eu achava
que aqueles turcos estariam melhor sob o sagaz Murad do
que sob o cauteloso Mustafá. Mas o paxá não confiava nos
arrogantes mamelucos, não queria compartilhar o comando
e ficava apavorado com a idéia de sair da proteção de suas
fortificações e canhoneiras. Assim como Bonaparte se
mostrara impaciente em Acre, também os otomanos haviam
desembarcado demasiadamente rápido, com forças
demasiadamente pequenas, no Egito.
As coisas, entretanto, estavam em constante mudança. Sim,
o grandioso projeto estratégico original de Napoleão já
fracassara. A esquadra que viera com o corso fora destruída
pelo almirante Nelson no ano anterior, o avanço para a Ásia
acabara detido em Acre, e Smith acabava de receber a
informação de que Tippu Sahib, o sultão indiano com quem
Bonaparte nutria esperanças de unir forças, fora morto no
cerco de Seringapatam, na Índia, pelo general inglês
Wellesley. Porém, no momento em que Mustafá
desembarcava, uma esquadra franco-espanhola adentrara o
Mediterrâneo para opor-se à supremacia naval britânica.
Estava ficando complicado calcular quem levaria a melhor.
Resolvi que minha melhor aposta seria fazer negócio com
Silano em Roseta, um porto na foz do Nilo, tão depressa
quanto possível. Depois, voltaria correndo para o enclave
turco antes que tal cabeça-de-praia sumisse e pegaria um
barco que fosse para qualquer lugar, menos o próprio Egito.
Se eu tivesse sucesso, Astiza talvez voltasse comigo. Mas e o
livro?
Tanto Bonaparte como Silano tinham razão - eu estava mais
curioso ainda em saber o que significava aquela escrita
misteriosa. Será que o velho Franklin teria feito diferente?
"O que torna tão difícil para as pessoas resistir à tentação é
que elas não querem desencorajá-la por completo",
escrevera ele. De algum modo, eu precisava obter a "chave"
de Silano, resgatar outra vez Astiza e então resolver por mim
mesmo o que fazer com o segredo. A única coisa de que
tinha certeza era que, se o texto prometia a imortalidade, eu
não queria ter nada a ver com ele neste mundo. A vida já é
dura o bastante sem que precisemos suportá-la para sempre.
Enquanto os turcos se entrincheiravam no calor opressivo
do verão, com suas tendas num carnaval de cores, aluguei
um falucho para que me levasse a Roseta, na parte oeste da
foz do Nilo. Passáramos navegando por lá um ano antes,
durante minha primeira estada no Egito, mas não me
parecera um lugar que chamasse particularmente a atenção.
Embora a localização conferisse algum valor estratégico a
Roseta, era um mistério o porquê de Silano querer
encontrar-se comigo ali. Minha comodidade seria a última
coisa que passaria pela cabeça do feiticeiro; a explicação mais
provável era que a mensagem de Silano fosse mentirosa e
traiçoeira, mas havia iscas suficientes - a mulher e a tradução
- para me fazer enfiar a cabeça na arapuca.
Por conseguinte, mandei Abdul, o barqueiro, içar a vela a
meio mastro para que eu pudesse fazer nela uma importante
modificação - coisa que ele aceitou como prova
incontestável da maluquice de todos os estrangeiros. Com o
estímulo de algumas moedas, eu o fiz jurar segredo. E então
passamos uma vez mais do mar azul para a língua marrom
do grande rio africano.
Logo fomos interceptados por um barco de patrulha francês,
um chebek, mas Silano enviara a senha para que me
deixassem passar. O tenente no chebek reconheceu meu
nome (aparentemente, minhas aventuras e mudanças de
lado tinham me conferido certa má fama) e convidou-me
para ir a bordo. Respondi que preferia ficar em minha
própria embarcação e segui-lo.
Ele consultou o papel que trazia consigo. "Neste caso,
monsieur, tenho ordens de confiscar vossa bagagem até o
momento em que venha a encontrar-vos com o conde
Alessandro Silano. Este documento diz que isso se faz
necessário para a segurança do Estado."
"A minha bagagem é o que estou vestindo, dado que as
minhas façanhas me deixaram sem tostão e sem aliados.
Com certeza não pretendeis que eu desembarque nu - ou
estou enganado?"
"Mas carregais um bornal."
"Deveras. E ele está pesado, pois traz uma pedra grande."
Estendi o bornal por sobre a beira do barco. "Caso tenteis
me tomar estes parcos pertences, eu os deixarei cair no Nilo.
Se isso acontecer, tenente, posso garantir-vos de que o
conde fará que, na melhor das hipóteses, sejais levado à
corte marcial - ou que, na pior delas, sofrais algum feitiço
antigo, assaz incômodo. Deixai-nos, portanto, seguir viagem.
Estou aqui de livre e espontânea vontade e sou apenas um
americano desacompanhado numa colônia francesa."
"Tendes também um fuzil", retrucou ele.
"O qual não tenho nenhuma intenção de disparar a menos
que alguém tente tomá-lo de mim. O último homem que
procurou fazê-lo morreu. Silano, acreditai, há de aprovar o
que vos proponho."
Ele resmungou e olhou mais algumas vezes para seu
documento. No entanto, já que eu me postara na amurada
com o fuzil numa das mãos e a outra estendida sobre o rio, o
confisco não se mostrava factível. Assim, fomos em frente,
com o chebek nos pastoreando como cão de guarda, e
aportamos em Roseta. Tratava-se de um vilarejo agrícola
bem irrigado, no delta do Nilo. Suas construções, à sombra
das palmeiras, eram todas de adobe marrom, exceção feita à
mesquita, que tinha um único minarete e fora construída de
pedra calcária. Deixei instruções com meu barqueiro e fui
por caminhos sinuosos rumo a uma fortificação francesa
ainda inacabada, chamada Fort Julian, com a bandeira
tricolor tremulando acima das muralhas de adobe e uma
multidão de meninos de rua curiosos me seguindo. No
portão, eles foram detidos por sentinelas com chapéus
bicornes pretos e bigodes enormes. Minha má fama se
confirmou quando esses soldados me reconheceram com
clara expressão de repugnância. O eletricista inofensivo se
tornara algo entre incômodo e perigoso, e eles me olharam
como se eu fosse bruxo. Histórias de Acre haviam
certamente chegado ali. "Não podeis entrar com esse fuzil."
"Então não entro de jeito nenhum. Estou aqui porque fui
convidado, e não porque me tivessem ordenado que viesse."
"Nós o guardaremos para vós."
"Infelizmente, vós, os franceses, tendes o hábito de pegar
emprestado e não devolver."
"O conde não fará objeções", disse uma voz feminina,
interrompendo-nos. E Astiza surgiu, trajada recatadamente
num vestido que lhe cobria os pés. Estava de lenço na
cabeça, e ele ia amarrado ao pescoço, de modo que o rosto
lindo, mas preocupado, lembrava uma lua. "Ele veio como
savant, não como espião."
Aparentemente, Astiza expressava em alguma medida a
autoridade de Silano. Os soldados, relutantes, deixaram-me
passar para o pátio, e o portão principal, com um estalido,
fechou-se atrás de mim. Construções de tijolo e tábua
recobriam as faces internas das muralhas daquele forte
aquadradado e simples.
"Eu garanti a Alessandro que virias", disse Astiza, baixinho.
Um sol escaldante castigava a praça de armas, e ele, mais o
perfume de Astiza (uma fragrância de flores e especiarias),
deixaram-me zonzo.
"E irei embora contigo."
"Não te enganes, Ethan - somos ambos prisioneiros, com ou
sem o teu fuzil. Mais uma vez, precisamos estabelecer uma
sociedade de conveniência com Alessandro." Indicou com
um gesto de cabeça as muralhas, e vi mais sentinelas a
vigiar-nos. "Precisamos descobrir se essa lenda contém
alguma verdade e, depois, planejar o que fazer."
"Foi Silano quem te mandou dizer isso?"
Ela pareceu decepcionada. "Por que não consegues acreditar
que te amo? Cavalguei contigo todo o caminho para Acre, e
o que nos separou foi uma bala de canhão, e não uma
escolha minha. E foi o destino que nos reuniu outra vez. Só
peço que tenhas fé por um pouco mais de tempo."
"Tu falas como Napoleão - 'Já fiz todos os cálculos. O destino
irá se encarregar do resto'."
"Bonaparte tem lá sua sabedoria."
Nisso, chegamos à construção principal, uma estrutura térrea
rebocada, com cobertura de telhas e varanda de sapé (ou
melhor, folha de palmeira). Dentro, estava fresco e escuro.
Quando meus olhos se ajustaram à falta da luz ofuscante lá
de fora, vi Silano, que esperava em uma mesa simples com
dois oficiais. O mais velho, eu conhecia desde o
desembarque francês em Alexandria: o general Jacques de
Menou lutara com bravura e depois, segundo constava, se
convertera ao islamismo. Era fascinado pela cultura egípcia,
mas, com a calva, a cara redonda de contador e o bigode
fininho, não se tratava de um oficial de presença
particularmente imponente. O outro, um capitão bem-
apessoado, eu não conhecia. Em ambos os lados do recinto,
havia portas fechadas e, eu descobriria, trancadas.
Silano se levantou. "Estás sempre tentando escapar de mim,
Gage — mas nossos caminhos sempre se cruzam!" Fez uma
ligeira reverência, muito polida. "Já deves com certeza
reconhecer que se trata do destino - quem sabe estejamos
fadados a ser amigos, e não inimigos?"
"Eu ficaria mais convencido disso se os teus outros amigos
não vivessem atirando em mim."
"Até os melhores amigos têm suas discussões." Fez um gesto
em direção ao oficial mais velho. "Conheces o general De
Menou, não?"
"Conheço."
"Não esperava ver-te de novo, Américain. Ah, como o
coitado do Nicolas ficou bravo quando roubaste o balão
dele!"
"Foi em decorrência do hábito de atirarem em mim",
respondi ao general.
"E este é o capitão Pierre-François Bouchard", continuou
Silano. "Ele estava encarregado da construção deste forte
quando seus homens escavaram um pedaço de entulho.
Felizmente, o capitão Bouchard percebeu depressa a
importância daquilo. Creio que essa pedra de Roseta pode
mudar o mundo."
"Pedra?"
"Vem comigo. Eu te mostrarei."
Silano nos conduziu à porta da esquerda, destrancou-a e nos
introduziu no recinto. Estava bastante escuro; a janela, uma
fenda vertical estreita que dava para o pátio, fora coberta
com pano para manter a privacidade. A primeira coisa que
me atraiu a atenção foi o esquife de madeira de uma múmia.
Pintado em cores vivas e extraordinariamente bem
conservado, ostentava pinturas que pareciam uma descrição
da jornada de uma alma pela terra dos mortos.
"Há algum corpo aí dentro?"
"O de Omar, nossa sentinela", brincou Menou. "Ele não se
cansa nunca." "Sentinela?"
"Eu o trouxe rio abaixo, mas disse aos soldados que o
achamos aqui no local do forte", disse Silano. "Tais múmias
provocam medo, e esta tem agora a fama de assombrar
Roseta. Quando se trata de manter os curiosos longe deste
recinto, ela é melhor que uma naja."
Toquei a tampa do esquife. "Impressionante o brilho das
cores."
"E mágico, talvez. Hoje não conseguiríamos fazer igual, do
mesmíssimo modo que perdemos a fórmula dos vitrais
medievais. Não conseguimos igualar a beleza nem de uma
coisa, nem de outra." Apontou para alguns frascos de tinta
num dos cantos da sala. "Estou fazendo experiências. Talvez
o nosso Omar me dê alguma dica uma noite dessas."
"E tu? Não acreditas em maldições?"
"Acredito que eu esteja prestes a ser capaz de controlá-las.
Com isto." Junto ao esquife de madeira, uma coisa volumosa,
de aproximadamente cinco pés de altura e um pouco menos
de três de largura, estava envolta num oleado. Com um gesto
dramático, Silano arrancou essa cobertura. Eu me curvei,
forçando a vista na luz ruim. Viam-se escritas de diferentes
idiomas. Não sou nenhum lingüista, mas um grupo de
palavras parecia grego, e outro, a escrita que eu já encontrara
em templos egípcios. Uma terceira não consegui identificar
- e a quarta, no alto, logo acima da escrita dos templos, fez
meu coração disparar. Eram os mesmos símbolos curiosos
que estavam no rolo de texto que eu achara na Cidade dos
Espíritos. Entendi o que Silano quisera dizer com aquela
mensagem misteriosa - ele podia comparar as palavras gregas
com as palavras secretas de Tot e possivelmente desvendar
essa linguagem!
"O que é este texto aqui?", perguntei, apontando para a
escrita que eu não reconhecia.
"E demótico, a escrita egípcia que se seguiu aos hieróglifos",
respondeu Silano. "O meu palpite é que as escritas estão
numa ordem cronológica - com a mais antiga, a de Tot, no
alto e a mais recente, a dos gregos, na base."
"Quando Alessandro me trouxe para cá, eu reconheci o que
tínhamos visto no rolo de texto, Ethan", disse Astiza. "Vês?
Eu estava mesmo destinada a ser recapturada."
"E agora quereis que eu vos ajude a decifrado", resumi.
"Queremos que nos dês o livro para que nós te ajudemos a
decifrado", corrigiu Silano.
"E ganho o que com isso?"
"A mesma coisa que te ofereci antes." Silano suspirou, como
se eu fosse uma criança particularmente obtusa. "Parceria,
poder e imortalidade, se a quiseres. Talvez os segredos do
universo. O sentido da vida, o rosto de Deus, o mundo na
palma da tua mão... Ou nada, se preferires não colaborar."
"Mas, se eu não colaborar, não tereis o livro - é ou não é?"
Vi Menou fazer um pequeno gesto. O capitão Bouchard se
moveu para trás de mim, e reparei que ele tinha uma pistola
enfiada no cinto.
"Pelo contrário, Gage", disse Silano. Sinalizou com a cabeça,
e meu bornal me foi arrancado do ombro e aberto
bruscamente.
"Merdei", exclamou Bouchard. Virou de cabeça para baixo
aquela sacola de couro, e um rolo de pastel caiu lá de dentro,
fazendo uma marca no chão de terra batida. O general e o
capitão olharam sem entender, e Astiza abafou uma risada.
A fisionomia de Silano se ensombreceu.
"Não achaste realmente que eu te entregaria o livro tal qual
um bom carteiro, achaste?"
"Revistai-o!"
Mas não havia rolo nenhum. Espiaram até no cano de meu
fuzil, como se eu o tivesse de alguma maneira enfiado ali.
Entreabriram as solas de minhas botas, verificaram as solas
de meus pés, apalparam-me rudemente em lugares que me
deixaram indignado.
"Olhareis também dentro dos ouvidos?"
"Onde é que está?" A frustração de Silano era evidente.
"Escondido, até que estabeleçamos uma sociedade de
verdade. Nós, os americanos e franceses, não representamos
a liberdade e a razão? Pois então, que o livro seja traduzido
para toda a humanidade, e não para os maçons renegados do
Rito Egípcio. Ou para generais ambiciosos como Napoleão
Bonaparte. Quero dar a tradução aos savants do Institut
d'Egypte, no Cairo - e à Royal Society, em Londres -, para
que seja difundida ao mundo. E quero Astiza de uma vez por
todas. Quero que desistas dela, Silano, para trocá-la pelo
livro, não importando quanto poder tenhas sobre nós. E
quero que ela prometa vir comigo para onde eu escolher -
agora e para sempre. Quero que Bonaparte saiba que estamos
todos aqui, trabalhando juntos por ele, para que nenhum de
nós venha convenientemente a desaparecer. E quero o fim
do derramamento de sangue. Ambos perdemos amigos.
Promete-me tudo isso, que trarei o livro a tu. Nós dois
temos sonhos."
"Trazê-lo de onde? Acre?"
"Poderás tê-lo em menos de uma hora."
Ele mordeu o lábio. "Já revistamos o teu falucho e o maldito
barqueiro. Até ergueram o barco para procurar na quilha - e
nada!" Mais uma vez, irrompeu de sua máscara de
urbanidade um pouco daquela frustração impaciente que eu
vislumbrara no Egito no ano anterior.
Eu sorri. "Quanta confiança, conde Silano..."
Ele se voltou para Astiza. "Concordas com aquela condição
dele?"
Percebi que era a segunda vez que eu pedia os afetos de
Astiza em um mês. Nenhum dos dois pedidos fora
terrivelmente romântico, mas ainda assim... Eu devia estar
ficando velho, para querer assim compromisso de uma
mulher - o que implicava que eu me comprometesse.
"Concordo", respondeu ela. Astiza me olhava
esperançosamente. Eu me sentia feliz e apavorado ao
mesmo tempo.
"Pois então, Gage, onde está o livro?"
"Mas e tu, Silano? Concordas com minhas condições?"
"Sim, sim." Ele fez um gesto de alguma impaciência com a
mão.
"Dá-me tua palavra de nobre e de savant? Estes soldados são
tuas testemunhas."
"E, dou minha palavra - a um americano com mais perfídias
do que consigo contar. O importante é decifrar o código
lingüístico e traduzir o livro. Esclareceremos e instruiremos
o mundo inteiro! Mas não poderemos fazê-lo se não
estiveres com o livro."
"Ele ficou no barco."
"Impossível", retrucou Bouchard. "Os meus homens
revistaram cada polegada daquele falucho."
"Mas eles não içaram a vela."
Saímos do forte até o Nilo, comigo à frente. O sol baixava, e
uma luz cálida se derramava através das tamareiras, que
ondulavam à brisa tórrida. A água, verde, parecia densa, e
pequenas garças estavam de pé nos baixios. Meu barqueiro
se acuara num canto de seu falucho (que fora puxado para a
terra), parecendo esperar a própria execução a qualquer
instante. Eu não podia culpá-lo: tenho talento para levar azar
à meus companheiros.
Dei uma ordem ríspida, e a vela, limitada em cima e
embaixo por suas hastes de madeira, foi içada até enfunar-se.
"Lá - vede?"
Olharam de perto. A uma luz horizontal, discernia-se com
dificuldade uma tira que, apresentando caracteres estranhos
e indistintos, ia da base ao topo da vela.
"Ele costurou essa coisa no pano...", disse Menou, com certa
admiração. "O livro ficou exposto durante todo o percurso
rio acima", proclamei. "Absolutamente ninguém notou."
- 24 -
Tínhamos duas tarefas pela frente. Uma era usar a pedra de
Roseta a fim de traduzir para o francês os símbolos do texto
de Tot. A outra, ainda mais demorada e laboriosa, era
traduzir e entender realmente o livro.
Agora que tinha, nas mãos um texto que procurava havia
anos, Silano exibia um pouco daquele encanto fidalgo com
que seduzira as damas de Paris. Sumiram-lhe rugas do rosto,
o coxear ficou menos doloroso, e o conde se mostrava
animado e ansioso ao começar a tabular símbolos e tentar
achar nexos. Silano tinha charme, e principiei a entender o
que Astiza vira nele. Sua aristocrática energia intelectual era
sedutora. Melhor ainda: parecia conformado em ceder-me
Astiza (muito embora eu às vezes o pegasse olhando
ardentemente para ela). Astiza também parecia aceitar nosso
acordo. Que estranho triunvirato de pesquisadores nos
tornáramos! Eu não esquecera a morte de meus amigos nas
mãos de Silano, mas admirava seu empenho e seu zelo. O
conde trouxera baús cheios de livros embolorados, e cada
conjetura mais abalizada levava algum de nós a consultar
este ou aquele volume para verificar se uma construção era
gramaticalmente plausível ou se uma referência tinha
mesmo sentido. Aos poucos, ia-se iluminando a pré-história
obscura em que o Livro de Tot fora supostamente escrito.
Penosamente, decifrávamos títulos de capítulos do rolo de
texto.
Um deles era "Da natura diáfana da realidade, e do poder de
manipulá-la segundo nossa vontade". Mesmo a contragosto,
aquela perspectiva me empolgava.
"Da liberdade pessoal e do destino inelutável", dizia outro.
Bem, aquele era um problema e tanto, não?
"Da união de forças entre a mente, o corpo e a alma."
"Do poder de fazer o maná cair dos céus." Teria Moisés lido
aquilo? Não vi nenhum tópico sobre como dividir as águas
do mar.
"Da vida eterna, em suas diversas formas." Por que isso não
funcionara para Moisés?
"Do mundo inferior, e do mundo superior." O Inferno e o
Céu? "Do poder de manipular as mentes humanas segundo
nossa vontade." Ah, dessa Bonaparte ia gostar.
"Da eliminação das doenças, e da cura da dor."
"Do poder de conquistar o coração de quem amamos." Seria
sucesso de vendas.
"Dos quarenta e dois textos sagrados."
Isso já bastou para me fazer gemer. Aparentemente, aquele
era apenas o primeiro de quarenta e dois rolos de texto, os
quais Enoque, meu mentor egípcio, afirmara serem apenas
uma amostra de trinta e seis mil, quinhentos e trinta e cinco
rolos - uma centena para cada dia do ano - espalhados pela
Terra. Seriam encontrados apenas pelos justos, no tempo
certo. Eu dava graças por não ser particularmente digno
disso - ter conseguido aquele primeiro já quase me matara!
Silano, entretanto, sonhava com novas buscas.
"É assombroso! Estou supondo que este livro seja um
sumário, uma lista de tópicos e postulados, e que o
conhecimento e o mistério se aprofundem a cada volume.
Podeis imaginar tê-los todos?!"
"Os faraós acharam que mesmo esse nosso único rolo
precisava ser mantido bem oculto", lembrei.
"Os faraós eram homens primitivos que não dispunham nem
da ciência nem da alquimia modernas. Todo o progresso
humano, Gage, advém do conhecimento. Desde o fogo e a
roda, o nosso mundo é a culminância de um milhão de
idéias compartilhadas e registradas. O que temos aqui são mil
anos de avanço científico, legados por alguém - uma
divindade, um mago ou algum ser excelso de sabe-se lá
onde, talvez da Atlântida, ou da Lua - que fundou a
civilização e agora é capaz de renová-la. A maior das
bibliotecas ficou perdida por cinco milênios, e agora foi
redescoberta. Este rolo de texto irá nos conduzir aos outros.
E os homens mais sábios - eu, por exemplo - poderão
governar e colocar as coisas em ordem. Ao contrário dos
reis e tiranos, decidirei tudo com perfeito conhecimento de
causa!"
Ninguém acusaria Silano de humildade. Privado da fortuna
pessoal pela revolução, obrigado a rastejar para voltar a cair
nas graças do poder, adulando democratas que antes haviam
sido reles advogados e panfletários, o conde era um homem
movido pela frustração. A feitiçaria e o oculto
reconquistariam o que o republicanismo lhe tomara.
Embora já tivéssemos alguns títulos de capítulo, atinar com
o texto em si estava se mostrando fatigante. Sua construção
era em tudo estranha, e simplesmente identificar as palavras
não esclarecia o sentido.
"Isto é trabalho para universidades inteiras", disse eu a
Silano. "Passaremos o resto de nossas vidas tentando
deslindar o texto aqui em Roseta. Vamos dar o trabalho ao
Institut de France ou à Royal Society."
"És um completo tolo, Gage? Deixar um savant comum
meter-se com isto é como guardar pólvora em loja de vela.
Achei que eras tu a temer o mau uso do livro... Durante
décadas, estudei as tradições referentes a essas palavras.
Astiza e eu labutamos muito, desde longa data, para sermos
dignos da tarefa."
"E quanto a mim?"
"Estranhamente, foste necessário para que se achasse o livro.
O porquê disso, só Tot sabe."
"Certa vez, uma cigana leu o meu taro e me disse que eu era
o Louco. Um tolo a procurar tolices."
"E a primeira vez que ouço esses charlatães dizerem uma
verdade."
E naquela noite, como se querendo demonstrar seu
argumento, ele mandou me envenenarem.
Não sou o mais bondoso nem o mais contemplativo dos
homens, e em geral só penso nas outras criaturas do Senhor
quando se trata de caçá-las, apanhá-las em armadilha ou usá-
las como montaria ou animal de tiro. Mas houve cães de
caça a que me afeiçoei, ou gatos a que dei valor por pegarem
ratos, ou aves cuja plumagem me deslumbrou. Foi por isso
que alimentei o rato.
Fiquei acordado com o livro até mais tarde que Silano e
Astiza, procurando ver se esta ou aquela palavra encadeava-
se a outra e se tinham algum sentido esquisitices como "Em
vosso mundo, o acaso é o alicerce da predeterminação
fatalista". Acabei fazendo uma pausa rápida em nossa
varanda, tendo a abundância de estrelas no breu úmido e
compacto do céu de verão, e pedi a um ordenança que me
trouxesse comida. Embora tenham demorado demais, veio
enfim um prato, e tornei a entrar para sentar a nossa mesa e
ir beliscando o fui medames, receita egípcia que consiste em
fava cozida e parcialmente macerada, com tomate e cebola.
Num canto do recinto, avistei um visitante periódico que já
me divertira antes: um rato-espinhoso-do-cairo, assim
chamado porque seus pêlos espetam a boca de qualquer
predador. Sentindo-me sociável naquela noite silenciosa, eu
lhe joguei um pouquinho de fui, ainda que a presença de tais
roedores fosse uma das razões para que tivéssemos colocado
o livro num cofre.
Depois, voltei ao trabalho. Eram tantas opções! Eu me
maravilhava com os símbolos, de repente notando como
eles pareciam mudar e deslizar, girar e dar cambalhotas.
Pisquei, com as letras borrando-se — eu parecia estar mais
cansado do que me dera conta! Mas, se conseguisse decifrar
onde a frase terminava, ou ver que Tot usava mesmo frases
na acepção moderna do termo...
Agora, o rolo de texto tremulava. O que acontecia? Olhei
para o canto. O rato, tão grande quanto uma pequena
ratazana americana, caíra de lado e tiritava, com olhos
arregalados de pavor. Ele espumava.
Empurrei o prato para longe e me levantei.
"Astiza!", tentei gritar, mas minha língua, inchada, produziu
apenas um murmúrio, que apenas eu ouvi. Dei um passo
trôpego. Silano, aquele desgraçado! Ele concluíra que não
precisava mais de mim! Lembrei-me de sua ameaça de
envenenamento no Cairo, durante o ano anterior. Em
seguida, eu me senti caindo, sem nem mesmo ter certeza do
que acontecera a minhas pernas, e bati no chão com tanta
força que luzes dançaram diante de meus olhos. Com
percepção enevoada, vi o rato morrer.
Homens entraram na ponta dos pés para me levarem dali.
Mas como Silano explicaria o homicídio a Astiza? Ou
pretendia ele assassiná-la também? Não, o conde ainda a
queria. Ergueram-me, gemendo os dois com o esforço, e me
carregaram como uma saca de farinha. Eu estava tonto, mas
consciente - provavelmente porque mal provara da comida.
Eles, entretanto, presumiram que eu já estivesse morto.
Saímos do forte por um pequeno portão lateral e descemos
no rumo do rio e da latrina da guarnição, junto a um
córrego. Para além dele, uma lagoinha do grande rio, a qual
exalava o odor de lótus e merda. Balançando-me,
arremessaram para lá o meu corpo, desamparado como um
bebê.
Com um ruído de queda na água, submergi. Será que
queriam que parecesse afogamento?
Alas o impacto me despertou um pouco mais, e o pânico
deu algum movimento a meus braços e pernas. Consegui
sacudir-me para voltar à superfície e tomar ar, boiando na
vertical. O efeito da pequena dose de veneno já estava
passando. Os dois aspirantes a carrascos apenas observavam,
sem curiosamente parecerem muito preocupados com meu
poder de recuperação. Não perceberam que eu não tomara
veneno suficiente? Não se mexeram para atirar em mim,
nem para entrar na água e me liquidar a golpes de espada ou
de machado.
Talvez eu pudesse nadar de cachorrinho e conseguir
socorro...
Foi então que ouvi um grande espirrar de água atrás de mim.
Virei-me. Havia na lagoinha um cais baixo, e uma corrente
estava se desenrolando com ruído de matraca. Os elos agora
serpeavam em minha direção. Que diabos...?
Meus acompanhantes riram.
No escuro, vinham em minha direção as narinas salientes e
os olhos reptilianos da mais asquerosa e medonha de todas as
feras - o crocodilo-do-nilo. Esse pesadelo pré-histórico, da
grossura de uma tora, blindado com escamas, é um projétil
de músculos e consegue entrar na água e sair com espantosa
rapidez. E tão antigo quanto os dragões, e tão insensível
quanto uma máquina.
Mesmo tonto como eu estava, entendi o que tramaram. Os
canalhas de Silano haviam acorrentado o predador na
lagoinha para que ele me despachasse. Eu já ouvia a história
que Silano contaria: o americano usou a latrina, foi até o Nilo
para lavar-se ou admirar a noite, e aí o crocodilo saiu da água
e (coisa que já acontecera no Egito milhares de vezes) lhe
papou. Xeque-mate: o conde ficaria com a pedra, o livro e a
mulher!
Eu mal acabara de visualizar esse roteiro desagradável,
reconhecendo com abobalhada admiração a engenhosa
perfídia daquilo, quando o animal deu o bote. Ele me pegou
por baixo, abocanhando minha perna sem mastigá-la ainda,
e nos fez rolar, seguindo o costume ancestral de afogar a
presa. O absoluto horror daquela pegada, firme como um
torno, os dentes justapostos na longa boca, as escamas
musgosas, o vazio obtuso da expressão do animal - tudo isso
se registrou em minha mente, e o choque me impeliu à ação
apesar da dor e do veneno. Enquanto girávamos na água,
tirei a machadinha do cinto e acertei o bicho no focinho,
sem dúvida surpreendendo-o com essa minha picadinha
tanto quanto ele me surpreendera. Suas mandíbulas se
abriram num átimo, como se acionadas por mola, soltando
minha perna, e eu o golpeei de novo, atingindo-o no céu da
boca, onde a machadinha se fincou e ficou. A lagoa parecia
explodir enquanto o crocodilo se contorcia, e, nisto, senti
sua corrente resvalar em mim. Inconscientemente, eu me
agarrei a ela. O crocodilo e sua corrente me carregaram para
cima, minha cabeça veio à tona, e tomei fôlego. Tornamos a
mergulhar, e o animal tentava virar-se para me morder,
ainda que cada mordida sua só pudesse fazer a machadinha
enterrar-se dolorosamente mais fundo. Não ousei deixar que
sua boca chegasse perto. Puxei-me freneticamente para
adiante na corrente, até que cheguei aonde ela formava uma
coleira no pescoço do monstro, logo após as patas dianteiras.
Eu me segurei ali com a máxima firmeza - por mais que o
bicho se retorcia, ele não era mais capaz de me morder.
Mergulhávamos, de modo que lhe bati repetidamente nos
olhos. Agora, ele se agitava como cavalo chucro, e eu mal
conseguia me segurar. Viemos de novo à tona,
submergimos, nadamos no lodo do fundo raso da lagoinha e
subimos outra vez. Enquanto a fera puxava e sacudia com
fúria a corrente, eu podia ouvir o cais estalar e ranger atrás
de nós. Meus captores tinham parado de rir. Minha perna
sangrava, e o cheiro do sangue fazia o crocodilo debater-se
de maneira ainda mais frenética. Eu não tinha por onde
matá-lo.
Assim, quando nossa agitação nos trouxe para perto do cais,
larguei a corrente e nadei para lá. Homem nenhum já saiu da
água com tanta rapidez - tendo alcançado a estrutura de
madeira, eu me pus em pé voando.
O crocodilo se voltou, enrolado na própria corrente, e veio
atrás de mim. Seu focinho se chocou com estrondo no cais
irregular. A fera mordeu a madeira, partindo tábuas ao meio
e grunhindo com a dor que minha machadinha tornava a
lhe causar. O cais começou a afundar rumo ao focinho do
bicho, e eu me arrastava para subir pelas tábuas inclinadas.
Ouvi gritos confusos dos homens que haviam me atirado na
lagoinha. Avistei então a estaca onde tinham enrolado a
corrente e, quando outra arremetida do crocodilo relaxou a
tensão nos elos, levantei a laçada para soltar o animal,
esperando que ele nadasse Nilo acima.
Em vez disso, o crocodilo irrompeu com metade do corpo
para fora da água, e a corrente solta zuniu como um chicote.
Eu me agachei quando ela sibilou pertinho de mim. O bicho
caiu de novo na lagoa, percebendo que estava livre - e, de
repente, arremeteu a toda a velocidade, mas não contra
mim. Seus olhos angustiados tinham avistado os homens
que, da margem, acompanhavam nossa luta. O crocodilo
saiu da água para persegui-los, com as grandes patas
espalmadas ao avançar, fazendo voar água. Eles fugiram aos
berros.
Os crocodilos conseguem correr distâncias curtas com a
mesma velocidade que um cavalo a galope. O réptil pegou
um de meus algozes e, com um furioso fechar de
mandíbulas, quase o partiu ao meio. Em seguida, deixou-o
cair e foi atrás do outro, direto para o forte. O homem
gritava para alertar a guarnição.
Eu não tinha muito tempo.
De jeito nenhum eu deixaria tudo para Silano. Se fosse
possível, o mataria. Se não fosse, o atormentaria com o que
ele estava para perder - eu pegaria o livro e o jogaria no lugar
mais fundo do Mediterrâneo. Ferido pelos dentes do
crocodilo, pingando sangue, subi o caminho mancando,
seguindo o rastro de areia que a cauda do crocodilo varrera
ao bater de um lado para outro. Com cautela, parei no
portãozinho lateral por onde havíamos saído. O crocodilo
irrompera direto por ali e estava no pátio. Homens
começavam a atirar, e um canhão disparou dando o alarme.
Entrei, mas fiquei nas sombras, esgueirando-me pelo
perímetro do forte até meus aposentos. Ali, peguei o fuzil e
espiei pela porta. O crocodilo estava ferido, com uma
centena de homens abrindo todo o fogo que podiam contra
ele; pedaços de outro humano já estavam presos em suas
mandíbulas colossais. Mirei, mas não a fera: visei uma
lanterna nos estábulos do outro lado do pátio, os quais, por
sua vez, não ficavam longe do paiol.
Eu ia pôr fogo no forte.
Foi um dos melhores tiros que já dei, segurando o fôlego e
puxando o gatilho com dedo firme. Tive de disparar por
sobre todo o comprimento da praça de armas para, através
de uma janela aberta, derrubar a lanterna sem apagar a
mecha. A lanterna caiu e se quebrou, e as chamas
começaram a dançar no feno. Uma luz estranha começou a
iluminar as escamas e os dentes (semelhantes a sabre) do
crocodilo, e nisso os homens começaram a berrar:
"Incêndio! Fogo, fogo!" Cavalos relinchavam
desesperadamente.
Ninguém olhava para mim.
Assim, tornei a sair, mancando, e fui para a sala onde haviam
me envenenado. No caminho, peguei uma das picaretas que
estavam usando na construção do forte.
Maldição - o livro sumira!
Lancei um olhar para fora. As chamas disparavam, mais
altas, e os cavalos relinchavam e saíam em pânico do
estábulo, aumentando o caos. Ouvi oficiais gritarem: "O
paiol! Jogai água no paiol!" Recarreguei e tornei a atirar,
acertando alguém que tentava organizar uma corrente de
baldes desde o poço do forte. Quando esse homem caiu, a
turma dos baldes se dispersou, confusa, sem saber o que
acontecia. Houve mais disparos, pois sentinelas atiravam
para todos os lados.
Astiza apareceu correndo, de camisola, o cabelo solto e
despenteado, os olhos arregalados de perplexidade. Viu
minha perna a sangrar, minhas roupas encharcadas, a mesa
vazia onde estivera o livro.
"Ethan, o que fizeste?!"
"Eu?! O teu ex-namorado, isto sim! Silano me envenenou e
tentou me dar de comer àquele réptil lá fora! Tu achas que
não terias sido a próxima, depois que ele tivesse te possuído
e se cansado de ti? Ele quer o livro só para si. Não para a
ciência, não para Bonaparte - e certamente não para nós. O
livro o levou à loucura!"
"Eu o vi correr para a torre de vigia com Bouchard. Bateram
a porta e se trancaram lá dentro."
"Ele vai esperar e deixar que a guarnição dê cabo de mim - e
talvez de ti." Escutaram-se mais gritos, e agora balas
começavam a atingir a construção onde estávamos
encolhidos.
"Não podemos permitir que Alessandro desapareça levando
o livro!", disse ela.
"Mas então por que é que fomos atrás daquilo? Não teria sido
melhor deixar o livro onde estava?"
"Por que é que as pessoas querem aprender o que quer que
seja? E da nossa natureza!"
"Não da minha." Agarrei Astiza. "Estás do meu lado?"
"É claro."
"Pois então, se não podemos ter o livro, vamos destruir a
cifra que o traduz e deixar Silano com um livro inútil. Há
alguma saída desta ratoeira?"
"Atrás daquela outra porta, há uma armaria para os oficiais,
com alguma pólvora."
"Achas que temos como encarar a guarnição inteira?"
"Podemos usar a pólvora para abrir um buraco na muralha
dos fundos."
Eu sorri. "Céus, tu ficas linda sob pressão!"
Era uma porta pesada e trancada, mas atirei uma vez e depois
a golpeei com a picareta. A porta cedeu. Aquilo não era o
paiol principal, só o lugar onde se guardavam as armas dos
oficiais, mas - por Tot! - lá estavam dois barris de pólvora.
Desarrolhei um deles e deitei um rastilho até o recinto
principal. Depois, encostei ambos os barris contra a parede
que dava para fora do forte. "Agora, peguemos a pedra para
nós."
"Não conseguirás levada! É pesada demais."
Ergui aquele rolo de pastel que eu colocara no bornal para
lograr Silano e seus comparsas e sorri de orelha a orelha.
"Benjamin Franklin garante que consigo."
O negócio editorial sempre me pareceu uma barafunda, mas
Franklin afirmava que era tão lucrativo quanto imprimir
dinheiro. Pus o fuzil a tiracolo e fui mancando para o recinto
onde estava a pedra de Roseta, enquanto lá fora as chamas,
lúgubres, projetavam sombras. No pátio, soldados haviam
formado uma longa corrente que ia até o rio, e os baldes iam
sendo passados por sobre o rabo do crocodilo morto. O
tiroteio era agora menos intenso.
Tirei dos frascos as tintas experimentais de Silano e usei um
pouco delas para besuntar meu rolo de pastel. Em seguida,
eu o passei sobre a parte superior da pedra de Roseta,
cobrindo sua superfície com o pigmento, mas deixando sem
tinta os símbolos ali talhados. Fiz a mesma coisa com o texto
grego.
"Por favor, desnuda-te até a cintura."
"Ethan!"
"Eu preciso da tua pele."
"Pelo amor de Ísis - esses homens! É tudo em que consegues
pensar numa hora des...?"
Segurei sua camisola pelos ombros e puxei, rasgando-a pelas
costas enquanto Astiza dava um grito agudo. "Desculpa-me.
É que és mais lisa que eu..." Então a beijei, com seus trapos
contra os seios, e a empurrei para a pedra.
Astiza se contraiu. "O que estás fazendo?"
"Transformando-te em biblioteca." Eu a puxei e fui olhar.
Não ficara perfeito, pois alguns símbolos se perderam na
cavidade da coluna dorsal. Ainda assim, estampara-se ali uma
imagem idêntica à da pedra. Comprimi Astiza outra vez,
agora contra o texto grego, e parte dele chegou ao alto das
nádegas. Foi estranhamente erótico, mas as mulheres
realmente têm costas lindas, e eu gostei mesmo da maneira
que o pano da camisola parecia dilatar-se ao drapejar em suas
ancas...
Hora de trabalhar! Enquanto Astiza ficava ali de pé, atônita
demais para já ficar brava, eu investi contra o monumento,
não para desfigurá-lo, mas para trincá-lo. Tive de mirar no
meio dos hieróglifos, torcendo para que algum savant não
me amaldiçoasse anos depois. Um golpe de picareta, dois,
três, e o granito começou a fender-se! Mirei pela última vez
e usei a picareta com toda a força de que fui capaz, e então o
quarto superior da pedra de Roseta soltou-se, levando
consigo toda a escrita de Tot e parte dos hieróglifos. O
fragmento caiu no chão com estrondo.
"Ajuda-me a arrastar isto."
"Ficaste completamente louco?!"
"Agora temos a cifra no teu corpo. Vamos destruir este
pedaço da pedra. Não dá para levar a pedra inteira, mas
podemos colocá-lo na armaria." "E depois?"
"Explodi-lo ao mesmo tempo que abrimos um buraco na
parede. Isso fará que o livro permaneça inútil enquanto não
conseguirmos recuperá-lo!"
O fragmento era pesado, mas demos um jeito de puxá-lo,
empurrá-lo e arrastá-lo pelo recinto de entrada até a armaria.
Eu o calcei contra os barris de pólvora, calculando que ele
ajudaria a direcionar a explosão para a parede.
Em seguida, eu me retirei, peguei uma vela e acendi o
rastilho. Olhei rapidamente para trás. Astiza estava agachada
junto à janela, olhando para fora. Homens bradavam e
corriam. As chamas se avivavam.
"Ethan!", gritou ela. E então o mundo inteiro explodiu.
Primeiro foi a vez do paiol do Fort Julian, uma detonação
atroadora que lançou destroços flamejantes para o ar,
centenas de pés acima de nós. Mesmo abrigados como
estávamos, a concussão nos deixou estatelados no chão. Um
instante depois, houve outro estrondo, desta vez na armaria,
e também de lá choveram destroços sobre nós. Pedaços da
pedra de Roseta voaram como metralha - agora, o lindo
torso de Astiza passava a ser o único registro daquele escrito
de Tot. Eu a toquei.
"A tinta já secou." Eu sorri. "És um livro, Astiza - o segredo
da vida!"
"Pois trata de arranjar capa para este livro. Não vou zanzar
nua pelo Egito."
Fui buscar um capote de oficial. A machadinha, eu tivera de
deixar no crocodilo morto. Levando meu fuzil, abrimos
caminho em meio à destruição da armaria. A muralha de
adobe do forte se rompera, e escalamos seu entulho para dar
nas ruas de Roseta. No fim da viela, haviam pendurado
roupa para secar junto a uma carroça de burro, não muito
longe do bicho, que, muito apavorado, estava num curral.
- 25 -
Fugir a passo de carroça de burro não é a maneira mais
célere de escapar aos inimigos, mas leva a vantagem de ser
tão ridículo que as pessoas não tomam conhecimento. Após
termos requisitado sem conhecimento do dono aquela roupa
lavada, estávamos mais ou menos em trajes egípcios, e agora
minha perna, embora latejasse, estava bem enfaixada. Minha
esperança era de que, na confusão causada por um crocodilo
alucinado, por cavalos em disparada e por um paiol
detonado, talvez conseguíssemos nos safar. Com alguma
sorte, o pérfido Silano talvez presumisse que eu estava na
barriga daquele seu réptil gigantesco, pelo menos até que
alguém pensasse em abri-la. Ou então ele poderia concluir
que fugíamos pelo Nilo, tentando passar pelos barcos de
patrulha. Meu plano era vago: eu pretendia me esgueirar
entre os franceses até as linhas otomanas; ir ao encontro do
esquadrão de Smith, que estava ao largo; e regatear com
Silano de algum lugar seguro. Se perdêramos o livro, ele
perdera a possibilidade de continuar a decifrá-lo.
O sucesso desse esquema começou a diminuir à medida que
o sol se levantou e o dia foi ficando mais quente. No que
deixamos a verde planície aluvial do Nilo para adentrar o
deserto vermelho que se estendia até Abukir, começou a
fazer-se ouvir um ruído como o de trovão. Com o céu tão
límpido, só podia ser o troar de canhões. Travava-se alguma
batalha, e isso significava que, a menos que os turcos
vencessem e os franceses se desbaratassem, todo o exército
de Bonaparte estava em nosso caminho. Era o dia 25 de
julho de 1799.
"Não podemos voltar", disse Astiza. "Silano iria nos
localizar."
"E batalhas criam confusão - talvez esta apresente alguma
saída para nós."
Deixamos a carroça e o burro ao abrigo de uma duna alta e a
subimos para olhar a baía mais além. O panorama era
desolador. Mais uma vez, evidenciava-se a atrofia do poder
militar otomano. Não havia nada de errado com a coragem
dos homens do paxá Mustafá. O que lhes faltava era poder
de fogo e bom senso tático. Os turcos ficaram esperando
como uma lebre paralisada; os franceses então os
bombardearam e depois os atacaram com a cavalaria. Éramos
espectadores de um desastre, assistindo enquanto uma carga
frontal dos cavalarianos de Joachim Murat não apenas
rompia a primeira linha otomana, mas também atravessava a
segunda e a terceira. Os corcéis avançavam correndo por
todo o comprimento da península de Abukir, fazendo que
os defensores se esparramassem em pânico para fora de suas
trincheiras e as tendas murchassem ao terem as cordas
cortadas. Soubemos depois que Murat em pessoa capturou o
comandante-chefe turco em feroz combate corpo-a-corpo,
sendo atingido no maxilar por um tiro de raspão da pistola
de Mustafá, e então decepando alguns dedos do paxá a golpe
de espada. Bonaparte usou o próprio lenço para improvisar
uma bandagem na mão do homem. Em 1799, ainda havia
fidalguia.
O resto, tão logo as linhas turcas se romperam, foi uma
matança. Mais de dois mil dos guerreiros muçulmanos foram
ceifados em terra, e o dobro desse número se afogou ao
mergulhar no mar para tentar chegar a seus navios. A
guarnição do forte que ficava na extremidade da península
agüentou teimosamente, mas acabou bombardeada e privada
de alimento até render-se. Ao preço de mil baixas, das quais
três quartos eram feridos, Bonaparte destruíra outro exército
otomano. Era exatamente o triunfo de que ele precisava para
restaurar sua boa fama após a batalha de Acre. Escrevendo a
um colega, disse que fora "uma das batalhas mais lindas que
já vi". Escrevendo ao Diretório (a junta que, de Paris, então
governava a França revolucionária), ele a pintou como "uma
das mais terríveis". Ambas as qualificações eram verdadeiras.
O sangue o ressuscitara.
Por conseguinte, Astiza e eu tínhamos, atrás de nós, um
monte de franceses furiosos em Roseta e, à nossa frente, um
exército francês vitorioso a saquear os restos de nossos
aliados. Eu fugira das mandíbulas de crocodilo para me ver
cercado por militares.
"Ethan, o que achas que devemos fazer?" Imagino ser
lisonjeiro que as mulheres nos façam perguntas desse tipo
em meio ao perigo marcial, mas eu não me importaria se, de
vez em quando, elas apresentassem suas próprias idéias.
"Continuar fugindo, acho eu. Só não sei para onde."
E assim Astiza, moça valorosa, deu mesmo uma sugestão.
"Lembra-te do oásis de Siwah, onde Alexandre, o Grande,
foi declarado filho de Zeus e Amon? Pois bem, Napoleão
não domina o oásis - vamos para lá."
Engoli em seco. "Isso não fica depois de cem milhas de
completo deserto?"
"Nesse caso, é melhor não perdermos mais tempo."
Acabaríamos ambos mumificados pelo calor e pela sede, mas
para onde mais poderíamos ir? Agora, Silano certamente nos
mataria. Napoleão faria a mesma coisa. "Eu queria que o
nosso burro não parecesse tão famélico e zonzo", comentei.
"Se tivéssemos tido tempo, eu teria procurado um melhor."
Mas não tinha importância: uma patrulha francesa estava à
nossa espera quando descemos da duna.
Napoleão, previsivelmente, estava de bom humor naquela
noite. Nada como a vitória para sossegá-lo. Informes seriam
enviados à Franca para descrever com detalhes fulgurantes
sua nova vitória. Estandartes capturados aos turcos já
estavam sendo preparados para embarque e exposição em
Paris. E eu, o irritante moscardo do general, estava agora
bem agrilhoado, com a perna mastigada por um crocodilo
esfomeado, a amada amarrada, o fuzil apreendido e o burro
voltando para o legítimo dono.
"Venho tentando salvar-vos da feitiçaria, general", ensaiei
dizer, sem muita convicção.
Ele desarrolhou uma garrafa de Bordeaux, parte da reserva
pessoal que o irmão trouxera da França. "E estavas tentando
fazer isso agora? Com a tua bela víbora do lado?"
"Silano procura poderes malignos que vos
desencaminharão."
"Então, Gage, só posso dar graças a Deus por teres mandado
metade do meu forte pelos ares, não é mesmo?" Bonaparte
tomou um gole de vinho.
Realmente, quando colocada naqueles termos, a coisa não
parecia nada boa. "Mas foi só para despistar...", respondi. Sei
que teria sido mais corajoso ser insolente e mal-educado; eu,
porém, estava tentando salvar nossas vidas.
O conde Silano chegara boquiaberto, como se eu houvesse
ressuscitado após os bíblicos três dias. Agora, ele dizia: "Já
estou farto de tentar te matar, Gage".
Eu sorri para ambos. "Eu também estou farto disso."
"E quanto àquele pedaço de pedra que destruíste?",
perguntou Bonaparte. "Era a chave para traduzir um livro da
Antiguidade?" Por sorte, ainda havia dignidade suficiente
para que ninguém tivesse pensado em desnudar Astiza.
"Era, general."
"E o que esse livro nos revelaria exatamente?" "A magia",
respondeu Silano. "Ainda existe isso?"
"Poderemos fazer que exista. Magia é apenas ciência
avançada. A magia e a imortalidade." "Imortalidade?!"
Bonaparte riu. "Fugir ao destino final?!
Eu já sobrevivi quando tantos morreram, e a minha
imortalidade não será esquecida. O que deixamos é a
lembrança."
"Acreditamos que o livro poderá vos ajudar a obter
imortalidade de maneira mais literal", explicou o conde. "Ele
ajudará a vós e a todos aqueles que ascenderem convosco."
"Vós, por exemplo, conde?" Ele passou a garrafa. "Então,
meu amigo, tendes o incentivo!" Napoleão se voltou para
mim. "É um aborrecimento que tenhas quebrado a pedra,
Gage, mas Silano já decifrou alguns dos símbolos. Talvez ele
desvende o resto. E o que restou da pedra possibilitará que
os savants se concentrem nos hieróglifos. Dependendo de
quem acabe por vencer aqui no Egito, ela um dia irá para
Paris ou Londres. Multidões irão veda sem saber que havia
um quarto texto."
"Eu poderia ficar por aí para contar a elas."
"Receio que não." Bonaparte enfiou a mão numa pasta de
couro e retirou dali um maço de jornais velhos. "Smith me
mandou isto como presente quando deixei os turcos
recolherem seus feridos. Parece que, embora tenhamos
alcançado a glória no Egito, os acontecimentos na Europa
vão se desenrolando depressa - e a França está outra vez em
perigo."
Foi então que pude confirmar que ele claramente
abandonara um propósito, a conquista da Ásia, e adotara
outro, o retorno a Paris. Napoleão já ganhara o que pudera, e
descobríramos o que ele mais queria encontrar - o poder, de
um jeito ou de outro.
"A França e a Áustria estão em guerra desde março, e fomos
expulsos da Alemanha e da Itália. Tippu Sahib morreu na
Índia ao mesmo tempo que éramos rechaçados em Acre. O
Diretório está uma bagunça, e meu irmão Lucien está em
Paris tentando reformar aquela nossa Assembléia imbecil. A
esquadra britânica logo terá de afrouxar o bloqueio para que
possa reabastecer os britânicos em Chipre. Será assim que
poderei regressar à França para endireitar as coisas. O dever
me chama."
Aquilo parecia muito descaramento. "O dever? E abandonar
vossas tropas?"
"Para preparar o caminho. Kléber sonha com o comando
desde que desembarcamos aqui. Pois agora o terá - eu o
surpreenderei com uma carta. Entrementes, assumirei o
risco de escapar à esquadra britânica."
Risco?! O risco estava em ficar com um exército ilhado no
Egito. O desgraçado estava abandonando os próprios
homens pela política parisiense! Mas, verdade seja dita, eu
sentia relutante admiração pelo safado tinhoso. Em algumas
coisas, éramos iguais - oportunistas, apostadores e
sobrevivem tes. Éramos fatalistas, sempre atrás da maior
chance. Ambos também gostávamos de mulheres bonitas.
E de grandes aventuras, quando se tratava de fugir ao tédio.
Foi como se ele tivesse lido meus pensamentos. "A guerra e
a política impõem necessidades", disse. "É uma pena que
tenhamos de matar, mas é isso aí."
"É isso aí o quê?!"
"Sinto que estou sendo conduzido a um objetivo
desconhecido e que tu, Ethan Gage, representas agora um
obstáculo tão perigoso quanto foste útil quando te trouxe
para o Egito. Nenhum de nós pretendeu que acabasses com
os malditos ingleses, mas lá estavas com a tua eletricidade
em Acre. E agora atacaste Roseta."
"Só por causa de Silano. Ele que arranjou o crocodilo..."
"Au revoir, Gage", interrompeu-me Bonaparte. "Em outras
circunstâncias, poderíamos ter sido sólidos companheiros.
Mas traíste a França pela última vez. Demonstraste ser um
estorvo grande demais, e um inimigo demasiado capaz. Só
que até os gatos não têm mais que sete vidas. Nesta altura, já
gastaste as tuas, não?"
"Tereis de tirar a prova", retruquei, de péssimo humor.
"Deixarei que Silano seja criativo contigo e com a tua
amante. Aquela que, tanto tempo atrás, atirou em mim em
Alexandria."
"Não, general, ela atirou foi em mim!"
"Pois é. Por que será que justamente as malvadas são tão
lindas? Bem, o destino nos aguarda." E, tendo se
desembaraçado de nós, saiu em passo de marcha, com a
cabeça já no projeto seguinte.
Um homem honrado teria simplesmente atirado em nós,
mas Silano era cientista. Astiza e eu o lográramos o
suficiente para que concluísse que merecíamos alguma dor,
e ele tinha curiosidade em usar o ambiente local. "Sabeis que
a areia já basta para mumificar um cadáver?"
"Quanta erudição."
Assim, fomos enterrados após a meia-noite, mas só até o
pescoço.
"O que me agrada nisto é que podeis olhar um para o outro
enquanto queimam e choram", explicou, quando seus
capangas terminavam de colocar e bater areia ao redor de
nossos corpos. Tínhamos as mãos atadas às costas, e os pés
também amarrados. Estávamos sem chapéu, e já sentíamos
sede. "O tormento aumentará devagar, à medida que o sol
levantar-se. Vossa pele fritará e acabará rachando. Aos
poucos, a poeira e a luz refletida induzirão a cegueira, e
enlouquecereis gradualmente, fitando um ao outro. A areia
escaldante sugará qualquer líquido que retiverdes, e vossas
línguas incharão tanto que tereis dificuldade para respirar.
Aí, rezareis para que as serpentes ou os escorpiões venham
apressar as coisas." Silano se inclinou e me deu tapinhas
amigáveis no alto da cabeça, como se eu fosse uma criança
ou um cão. "Escorpião gosta de ir direto para os olhos, e
formiga sobe pelas narinas para alimentar-se. Os abutres
torcerão para pegar-vos antes que sejais comidos por
completo. Mas o que causa mais dor são as serpentes."
"Pareces entender um bocado do assunto."
"Sou naturalista. Estudo a tortura há muitos anos. É uma
ciência requintada, que nos dá muito prazer quando
entendemos seus refinamentos. Não é fácil fazer que um
homem sinta dor excruciante e, ao mesmo tempo, se
mantenha coerente o bastante para nos revelar algo de útil.
No presente caso, o interessante é que o corpo abaixo do
pescoço assará até ficar seco e preservado. Suponho que
tenha sido com base nesse processo natural que os antigos
egípcios tiveram a idéia da mumificação. Tu sabias, Gage,
que o rei persa Cambises perdeu um exército inteiro numa
tempestade de areia?"
"Eu não diria que estou muito interessado."
"Eu estudo a história para não repeti-la." Voltou-se para
Astiza, cujos cabelos negros pareciam um leque aberto sobre
a areia. "Tu sabes que te amei."
"Nunca amaste ninguém que não fosse tu mesmo."
"Benjamin Franklin disse que o homem que ama a si mesmo
não terá rivais no amor", disse eu, intrometendo-me na
conversa.
"Ah, aquele monsieur Franklin, tão divertido! Eu por certo
fui mais fiel a mim mesmo do que qualquer um de vós foi a
mim! Quantas oportunidades de parceria eu te dei, Gage?
Quantos avisos e advertências? E ainda assim me traíste,
muitas e muitas vezes." "Nem imagino o porquê disso."
"Eu gostaria de ver-te implorar antes que o teu fim
chegasse." E eu imploraria mesmo, se achasse que poderia
adiantar alguma coisa. "Mas receio que o destino também
esteja me chamando. Voltarei com Bonaparte para a França,
onde posso estudar mais profundamente o livro, e o general
não é do tipo que fica esperando. Também não é seguro
afastar-se do corpo principal do exército. Creio que não
tornaremos a nos encontrar, Gage."
"Acreditas em fantasmas, Silano?"
"Acho que o meu interesse pelo sobrenatural não se estende
à superstição." "Mas acreditarás, quando eu for atrás de ti."
Ele riu. "E, depois que me deres um bom susto, talvez
joguemos um carteado, não? Até lá, eu os deixo para que
possam olhar um para o outro — e virar múmias. Quem sabe
não mando alguém vir escavar-vos daqui a algumas semanas,
para que eu possa encostar-vos num canto como fizemos
com o nosso amigo Omar?"
"Alessandro, não merecemos isto!", gritou Astiza.
Fez-se um longo silêncio. Não conseguíamos ver o rosto
dele. E então Silano disse, baixinho: "Tu mereces, sim.
Partiste o meu coração." E aí nos deixaram, para que
fritássemos.
Astiza e eu nos encarávamos, ela voltada para o norte, e eu
para o sul, de modo que nossas bochechas grelhassem por
igual entre a alvorada e o crepúsculo. O deserto é gelado à
noite, e, durante os primeiros minutos depois que o sol
surgiu no horizonte, a calidez não foi desagradável. Mas
depois, quando o céu perdeu o rosado para ganhar a cor
leitosa do verão, a temperatura começou a subir, sendo
acentuada pela areia, que refletia a luz. Minha orelha
começou a queimar. Ouvi os primeiros sussurros de inseto.
"Estou com medo, Ethan", murmurou Astiza, a uns dez
palmos de mim.
"Vamos acabar apagando, e ponto", garanti-lhe, sem
convicção.
"Ísis, socorrei-nos! Chamai nossos amigos!"
Ísis não respondeu. "Depois de um tempo, não doerá mais",
disse eu.
Mas a dor, ao contrário, aumentou. Minha cabeça logo
latejava, e a língua inchou. Astiza gemia baixinho. Mesmo
nas melhores circunstâncias, o sol do verão egípcio nos
martela a moleira. Agora, eu me sentia como a bigorna de
Jericó. Com indesejada nitidez, lembrei-me da fuga que, um
ano antes, Ashraf e eu havíamos empreendido para o
deserto. Daquela vez, pelo menos, estávamos montados, e
esse meu amigo mameluco sabia achar água.
A areia ficou mais quente. Embora cada polegada de pele
sentisse o calor crescente, eu não podia me sacudir nem me
abanar. Sentia picadas agudas, como mordidas, mas não
tinha como saber se algo já estava me comendo ou se era
apenas o calor a roer minhas percepções. O cérebro tem um
jeito de fazer o pavor ampliar o medo.
Será que já mencionei que a jogatina é um vício?
O suor já me deixara meio cego, ardendo nos olhos, mas
logo secou, ficando o sal. Minha cabeça inteira parecia estar
inchando. A vista se turvava com a luz forte e ofuscante, e a
cabeça de Astiza se assemelhava mais a um ponto pequeno e
distante do que a alguém reconhecível.
Já seria pelo menos meio-dia? Achei que não. Escutei o eco
desfalecido de um estrondo.
Estariam os combates recomeçando? Aquilo talvez fosse
prenúncio de chuva, como na Cidade dos Espíritos.
Não, o calor aumentou, em grandes ondas tremeluzentes.
Astiza chorou por um tempo, mas depois ficou silenciosa.
Rezei para que ela houvesse desfalecido. E aguardava que me
acontecesse o mesmo, aquele lento resvalar para a
inconsciência e a morte. O deserto, porém, queria punir-me.
A temperatura subia sem parar. Meu queixo pegava fogo.
Meus dentes fritavam nas gengivas. Minhas pálpebras já
inchavam a ponto de fechar-se.
E então vi uma coisa passar rápido ao lado.
Era preta, e gemi por dentro. Soldados tinham me dito que
as picadas de escorpião eram especialmente dolorosas. "São
como uma centena de abelhas de uma vez só", contara um
deles. "Não, não - é como segurar carvão em brasa contra a
pele!", afirmara outro. "Parece mais é ácido no olho!",
sugerira outro ainda. "Ou martelada no dedo!"
Mais movimentos rápidos. Outro escorpião. Eles se
aproximavam de nós e então recuavam. Não ouvi nenhuma
troca de sinais, mas pareciam juntar-se em bandos, como
lobos.
Nutri a esperança de que o ataque deles não despertasse
Astiza. Prometi a mim mesmo que faria toda a força para
não berrar. O ribombar ia ficando mais alto.
Agora se aproximava um escorpião, que, a meus olhos
devastados, afigurava-se um monstro, tão descomunal
quanto o crocodilo do Fort Julian quando visto daquela
perspectiva. Ele parecia contemplar-me com o calculismo
frio, obtuso e instintivo de seu minúsculo cérebro. A cauda,
erguida, fez um movimento brusco, como se mirando. E aí...
Pum! Contorci-me o máximo que minha prisão permitia.
Uma bota empoeirada esmagara a criatura. A bota pisou e
repisou, fazendo que o escorpião triturado se misturasse à
areia, e ouvi uma voz conhecida.
"Pelas barbas do Profeta, será que nunca consegues cuidar de
ti mesmo, Ethan?!"
"Ashraf?" Minha voz era um murmúrio de perplexidade.
"Eu vinha esperando que vossos algozes se afastassem o
suficiente. Digo uma coisa - faz um calor danado quando se
fica parado no deserto! E cá estais vós dois, em situação
ainda pior do que aquela em que nos separamos no verão
passado. Será que não aprendes nada, americano?"
Aquilo era mesmo possível?! O mameluco Ashraf fora
primeiro meu prisioneiro e depois meu camarada, quando
fugimos do Cairo e fomos resgatar Astiza. Ele tornara a nos
salvar numa margem do rio, dera-nos um cavalo e então se
despedira, para juntar-se às forças de resistência do bei
Murad. E agora ele reaparecia?! Tot estava mesmo em ação.
"Eu venho te seguindo há dias, primeiro até Roseta e depois
na volta de lá. Não entendo por que estavas disfarçado de
felá numa carroça de burro. E os teus amigos francos ainda
resolveram enterrar-te vivo? Precisas de companhias
melhores, Ethan."
"Amém", consegui dizer.
E ouvi o bendito raspar de uma pá, escavando-me.
Lembro apenas vagamente o que aconteceu em seguida.
Uma aglomeração de mamelucos bem armados, o que
explicava o ruído que eu ouvira. A água, dolorosamente
úmida quando a sugamos para nossas gargantas inchadas.
Um camelo se ajoelhou, e fomos amarrados em seu dorso.
Depois seguimos montados rumo ao pôr-do-sol. Dormimos
sob um arremedo de tenda num oásis, recuperando os
sentidos. Tínhamos a cabeça vermelha e coberta de bolhas,
os lábios rachados, os olhos não mais que ranhuras.
Estávamos indefesos, incapazes de cuidar de nós mesmos.
Assim, acabamos sendo amarrados de novo ao camelo e
conduzidos ainda mais profundamente no deserto, primeiro
para o sul e o oeste, depois para o leste, até um
acampamento secreto de Murad. Mulheres passaram
ungüento em nossa pele queimada, e a alimentação fez que
lentamente nos restabelecêssemos. O tempo ainda
transcorria de modo indistinto. Se subíssemos ao topo de
uma duna próxima, poderíamos discernir a ponta das
pirâmides. O Cairo estava além, invisível.
"Como conseguiste nos achar?", perguntei a Ashraf. Ele já
me relatara as escaramuças e batalhas com que vinha
desgastando as forças francesas.
"Primeiro, soubemos que um ferreiro estava fazendo
indagações sobre Astiza lá da longínqua Jerusalém",
respondeu. "Era uma notícia estranha, mas eu sabia que
desapareceras e fiquei desconfiado. Depois, o bei Ibrahim
informou que o conde Silano rumara por terra para o norte e
sumira em algum lugar da Síria. O que podia estar
acontecendo? Napoleão foi repelido em Acre, mas não
voltaste para o Cairo com ele. Então achei que te juntaras
aos ingleses e ordenei que procurassem por ti na força de
invasão otomana. E, sim, vimos chamas em Roseta, e avistei
a vós dois na carroça de burro, mas a cavalaria francesa
estava demasiado perto. Assim, esperei até que tivessem vos
enterrado e os franceses tivessem se afastado. Estou sempre
tendo de salvar-te, meu amigo americano."
"E estou sempre em dívida para contigo."
"Não se fizeres o que desconfio que precisas fazer."
"E o que seria isso?"
"Acaba de chegar a notícia de que Napoleão zarpou e levou
consigo o conde Silano. Terás, Ethan, de detê-los na França.
As criadas me disseram dos misteriosos sinais nas costas da
tua dama. O que são eles?"
"Uma escrita antiga, para decifrarmos o que Silano roubou."
"A tinta está descascando, mas há jeito de fazer os sinais
permanecerem lá por mais tempo. Mandei as mulheres
prepararem hena." A hena é uma tintura que se usa para
enfeitar as árabes com intricados arabescos castanhos, como
tatuagens efêmeras.
Quando terminaram, as costas de Astiza estavam ainda mais
estranhamente belas. "Será que esse livro é mesmo para ser
lido?", perguntou Ashraf quando nos preparávamos para
partir.
"Se não é, então o segredo dele morrerá comigo", respondeu
Astiza. "Sou a chave de Roseta."
- 26 -
Ustiza e eu desembarcamos no litoral sul da França em 11 de
outubro de 1799, dois dias após Napoleão Bonaparte e
Alessandro Silano terem feito o mesmo. Tanto para ele
quanto para nós, a viagem fora longa. Bonaparte, depois de
ter dado um tapinha no traseiro da amante Pauline Fourès,
despedindo-se assim dela, e deixado recado para Kleber,
informando-o de que este agora estava no comando
(preferira não encarar pessoalmente o general), partira com
Monge, Berthollet e alguns outros savants como Silano e
navegara bem próximo ao litoral norte-africano, de
freqüentes calmarias, para evitar a Marinha britânica. O
trajeto escolhido fez que uma viagem de rotina tomasse
quarenta e dois tediosos dias. Enquanto Bonaparte seguia
vagarosamente para casa, a política francesa ficava mais
caótica à medida que, em Paris, ferviam em banho-maria
conspirações e contraconspirações. Era o ambiente perfeito
para um general ambicioso, e a notícia da arrasadora vitória
de Napoleão em Abukir chegou à capital três dias antes. O
percurso dele para o norte foi marcado por multidões a
aclamá-lo.
Nossa viagem também foi demorada, mas por motivo
diferente. Encorajados por Smith, embarcamos numa fragata
britânica uma semana após Bonaparte ter deixado o Egito e,
a fim de interceptá-lo, partimos diretamente para a França.
A lentidão o salvou. Já estávamos ao largo da Córsega e de
Toulon duas semanas antes da chegada de Napoleão à França
e, descobrindo que não havia notícias dele por lá, fizemos
rapidamente o caminho de volta. Entretanto, mesmo do alto
do mastro, avistam-se apenas algumas milhas quadradas de
mar, e o Mediterrâneo é bem grande. Quão perto estivemos
de Napoleão, isso eu não sei. Por fim, um barco-patrulha
trouxe a informação de que ele descera primeiro na terra
natal, a Córsega, e depois na França. Quando fomos em seu
encalço, o homem já estava muito à nossa frente.
Caso Silano não o houvesse acompanhado, eu teria ficado
satisfeito em deixar Napoleão ir-se embora. Não era
obrigação minha perseguir insistentemente generais
ambiciosos. Mas tínhamos contas a acertar com o conde, e o
livro era perigoso nas mãos dele e potencialmente útil nas
nossas. Quanto Silano já saberia? Quanto poderíamos
decifrar com a chave de Astiza?
Se nossa caçada por mar foi aflitiva e desanimadora, o tempo
que ela tomou não foi. Astiza e eu raramente tivéramos
oportunidade de respirar juntos: havia sempre campanhas
militares, caças ao tesouro, fugas cheias de perigo. Agora,
compartilhávamos a cabine de um capitão-tenente (nossa
intimidade causava certa inveja entre os solitários oficiais e
praças) e tínhamos tempo de nos conhecer com vagar,
como marido e mulher. Em outras palavras, tempo
suficiente para apavorar qualquer homem que visse a
intimidade com um pé atrás.
Só que gostei. Decerto já fôramos parceiros na aventura - e
amantes. Agora, éramos também amigos. Com o descanso e
a alimentação, Astiza se encorpou, sua pele recuperou o
viço, e seus cabelos, o lustro. Eu adorava simplesmente olhar
para ela, lendo em nossa cabine ou olhando da amurada o
mar brilhante. Adorava como seus cabelos se esvoaçavam à
brisa. Adorava como as roupas lhe caíam em dobras - e,
claro, melhor ainda era despi-la lentamente. Mas nossas
provações a tornaram mais triste, e sua beleza se afigurava
agridoce. E, quando nos uníamos em nosso apertado
alojamento, às vezes com pressa, às vezes com gentil
cuidado, procurando fazer silêncio naquele navio de paredes
finas, eu me enlevava. Admirava-me com o fato de que eu,
o americano oportunista e inconstante, e ela, a egípcia
mística, nos déssemos. Mas realmente nos
complementávamos, já sendo capazes de saber o que o outro
pensava. Comecei a antever uma vida normal.
Eu quis que pudéssemos navegar para sempre - e não achar
Napoleão de jeito nenhum.
Algumas vezes, porém, eu perdia o vínculo com Astiza, e
seu olhar era de preocupação, enxergando coisas sombrias
no passado ou no futuro. Era aí que eu temia perdê-la outra
vez. O destino a exigia tanto quanto eu.
"Ethan, pensa nisto: Bonaparte com o poder de Moisés... A
França com o conhecimento secreto dos templários... Silano
vivendo para sempre e, a cada ano, dominando mais
fórmulas arcanas e arrebanhando mais seguidores... Nossa
missão não estará concluída até que recuperemos aquele
livro."
Assim, desembarcamos na França. Naturalmente, não
pudemos aportar no cais de Toulon.
Astiza conferenciou com o comandante da fragata, estudou
as cartas náuticas e, insistentemente, indicou-nos uma angra
obscura, cercada por encostas íngremes e habitada apenas
por um ou outro pastor de cabras. Como conhecia ela o
litoral da França? Numa noite sem luar, trouxeram-nos num
barco a remo para uma praia de seixos e nos deixaram
sozinhos ali. Por fim, ouviu-se um assobio, e Astiza acendeu
uma vela, protegendo-a com o manto.
"E não é que voltou o tolo?", disse dos arbustos uma voz
familiar. "Aquele que descobriu o Louco, pai de todo o
pensamento, originador da civilização, bênção e maldição
dos reis." Surgiram homens, morenos, de botas e chapéu
largo, tendo na cintura faixas de cores vivas onde se viam
facas prateadas. O líder deles fez uma reverência.
"Bem-vindo de volta ao roma", disse Stefan, o cigano.
Fiquei agradavelmente espantado com o reencontro. Eu
conhecera aqueles roma, ou ciganos (ou ainda "egípcios",
como alguns europeus chamavam aqueles andarilhos, que
supostamente descendiam dos antigos), no ano anterior,
quando eu e meu amigo Talma fugíramos de Paris para nos
juntarmos à expedição de Napoleão. Depois que Najac e seus
ratos de sarjeta nos emboscaram na diligência para Toulon,
eu escapara para as matas e achara refúgio com o bando de
Stefan. Foi lá que conheci Sidney Smith e, fato mais
aprazível, a bela Sarylla, que leu minha sorte, disse ser eu o
tolo a procurar o Louco (outro nome de Tot) e me instruiu
nas técnicas amorosas da Antiguidade. Fora uma maneira
agradável de completar a viagem para Toulon, encerrado
num carroção cigano, a salvo daqueles que estavam atrás de
meu medalhão sagrado. E agora, tal qual um coelho a
despontar da toca, eis que meus salvadores ciganos estavam
ali outra vez.
"Pelas cartas do taro, o que fazes aqui?!", perguntei.
"Ora, esperando por ti, é claro."
"Eu já mandara avisá-los por um cúter inglês", explicou
Astiza.
Ah. Não tinham aqueles mesmos ciganos avisado com
antecedência do medalhão e de minha chegada ao Egito?
Coisa que quase fizera minha cabeça ser estourada pelo
antigo senhor de Astiza, o que não fora a mais amena das
apresentações.
"Bonaparte chegou antes de vós dois, e a notícia das mais
recentes vitórias no Egito já chegara antes dele", disse
Stefan. "A viagem do general para Paris vem sendo uma
marcha triunfal. Os homens têm esperança de que o
conquistador do Egito possa ser o salvador da França. Basta
uma ajudinha de Alessandro Silano para que ele alcance tudo
o que deseja, e o desejo é algo perigoso. Precisais separar
Bonaparte do livro e salvaguardar o texto. O esconderijo
templário durou quase cinco séculos. Tomara que o vosso
dure cinco milênios - ou mais."
"Primeiro temos de alcançar Bonaparte."
"É, devemos nos apressar. Coisas momentosas estão para
acontecer."
"Stefan, estou encantado e espantado em ver-te, mas
apressar-se é a última coisa que pensei que os ciganos fossem
capazes de fazer. Se bem te lembras, viajamos para Toulon a
passo de tartaruga, e esses teus cavalinhos não conseguem
puxar os carroções muito mais depressa."
"É verdade. Mas os roma têm talento para pegar as coisas
emprestadas. Acharemos uma carruagem e duas parelhas
rápidas e te conduziremos como um raio a Paris. Faremos de
conta que tu sejas algum deputado. Eu serei, digamos, um
capitão de polícia, e o André aqui, teu cocheiro. Carlo será
teu lacaio, e tua dama será tua senhora..."
"A primeira coisa que fazemos ao voltar para a França é
furtar uma carruagem e quatro cavalos?!"
"Se te comportares como se os merecesses, não parecerá
furto."
"Mas nem sequer estamos legalmente na França!... E
continuo acusado de matar uma prostituta. Meus inimigos
poderiam usar o furto contra mim."
"Eles já não te matarão de qualquer jeito?"
"Bem, isso lá é verdade."
"Pois então? Mas vamos. Perguntaremos a Sarylla o que
fazer."
A cartomante cigana que me mostrara mais que meu futuro
(Céus, com que carinho eu me recordava de seus ganidos!)
permanecia tão linda quanto dela me lembrava, morena e
misteriosa, com os anéis a reluzir nos dedos e os brincos de
argola a refletir a luz do fogo. Eu não estava de todo
satisfeito em topar com uma ex-amante tendo Astiza a
tiracolo, e as duas se eriçaram silenciosamente, à maneira
das mulheres, como gatas desconfiadas. Astiza, porém, ficou
calada e sentada junto a mim enquanto a cigana manejava as
cartas de taro.
"A sorte vos apressa", entoou Sarylla quando virou a carta do
Carro. "Não teremos problema em requisitar uma carruagem
para teus propósitos." "Estás vendo?", disse Stefan, contente.
Eu gosto do taro - ele consegue nos dizer qualquer coisa que
queiramos ouvir.
Sarylla virou mais cartas. "Mas conhecerás uma mulher em
circunstâncias de muita pressa. Teu trajeto irá se tornar
tortuoso." Outra mulher? "E ainda teremos êxito?"
Ela virou mais cartas. Vi a Torre, o Mago, o Louco e o
Imperador. "Qualquer que seja o desfecho, será por um triz."
Outra carta. Os Enamorados. Sarylla olhou para nós.
"Precisais trabalhar juntos."
Astiza pegou minha mão e sorriu. Sarylla virou outra carta.
A Morte. "Não sei para quem seria esta carta. Para o Mago?
O Louco? O Imperador? Os Enamorados? Vosso caminho é
perigoso."
"Mas pelo menos será factível a tarefa?" A Morte era para
Silano, com certeza. E talvez eu também devesse assassinar
Bonaparte.
Outra carta. A Roda da Fortuna. "És apostador, não?"
"Quando preciso."
Mais uma carta. O Mundo. "Não tens escolha." Sarylla olhou
para nós com aqueles seus olhos escuros e grandes.
"Encontrareis estranhos aliados e estranhos inimigos."
Fiz careta. "Então está tudo dentro da normalidade."
Ela balançou negativamente a cabeça, desconcertada.
"Espera para ver quem é o quê." Fitou as cartas e depois
Astiza. "Há perigo para a tua nova dama, Ethan Gage.
Grande perigo, e acho que alguma coisa ainda mais
profunda que isso - o pesar."
Lá estava a tal rivalidade. "O que queres dizer?"
"Só o que as cartas dizem. Nada mais."
Isso me deixou aflito. Caso a primeira leitura que Sarylla
fizera de minha sorte não tivesse se mostrado verdadeira, eu
não teria dado atenção àquela nova. Afinal, sou um homem
à moda de Franklin, um savant. Entretanto, por mais que eu
pudesse fazer pouco do taro, o poder dele tinha algo de
lúgubre. Temi muito pela mulher a meu lado.
"Talvez haja luta", disse eu a Astiza. "Podes me esperar no
navio inglês. Ainda não é tarde demais para sinalizarmos
para eles."
Astiza ponderou as cartas e a cigana por algum tempo, e
então meneou a cabeça, discordando. "Tenho minha própria
magia, e já chegamos até aqui", disse ela, puxando o manto
em torno de si, desacostumada que estava com a friagem
européia de outubro, a qual já alcançava o sul. "O verdadeiro
perigo para nós é o tempo. Precisamos nos apressar."
Sarylla pareceu solidária e deu a Astiza a carta da Estrela.
"Guardai isto, minha senhora. É para meditação e
esclarecimento. Que a fé esteja convosco."
Astiza se mostrou surpresa - e comovida. "E convosco."
Assim, nós nos esgueiramos até a casa de um magistrado,
tomamos "emprestados" a carruagem e os cavalos dele e
partimos para Paris. Depois da estada no Egito e na Síria,
fiquei embasbacado com o exuberante verde-dourado da
região campestre. As derradeiras uvas, rotundas e gordas,
pendiam das parreiras. Os campos estavam repletos de
montes amarelos de feno. As frutas remanescentes
conferiam ao ar uma fragrância de maduro, de fermentado.
Carroções sobrecarregados com as hortaliças do outono nos
abriam passagem quando os homens de Stefan gritavam
ordens e estalavam o chicote, como se fôssemos mesmo
importantes representantes da República. Até as moças de
fazenda pareciam suculentas; após as roupas do deserto, que
tudo cobriam, essas raparigas davam a impressão de estar
seminuas, com. os seios lembrando melões, os quadris um
alegre tonel, as panturrilhas tingidas pelo sumo das uvas.
Seus lábios eram rubros e cheios pelas ameixas que
chupavam.
"Não é bonito, Astiza?"
Ela se mostrava mais preocupada com os céus enevoados, as
folhas a girar no chão, as árvores a formar pérgulas indóceis
por sobre as estradas. "Não estou vendo", respondeu.
Passamos várias vezes por localidades ornamentadas com
bandeirolas nas três cores nacionais, de aspecto já gasto,
mais pétalas secas nos caminhos e garrafas de vinho vazias e
jogadas nas valas. Tudo aquilo era prova da passagem de
Napoleão.
"O pequeno general?", disse um taberneiro. "Um verdadeiro
galo!"
"Bonito como o diabo", acrescentou sua esposa. "Cachos
negros, olhos cinzentos e fogosos. Dizem que ele
conquistou metade da Ásia!"
"Dizem também que o tesouro dos antigos está chegando
logo depois dele!"
"Assim como seus bravos soldados!"
Seguíamos viagem noite adentro e nos levantávamos antes
do amanhecer, mas o trajeto para Paris toma vários dias. À
medida que íamos para o norte, o céu ficava mais cinza, e o
outono avançava. A carruagem chispava, desfazendo o
tapete de folhas caídas na estrada. Os cavalos fumegavam
quando parávamos para que bebessem água. E assim
tropeliávamos adiante no anoitecer do quarto dia, com Paris
a poucas horas de distância, quando outra bela carruagem
com bons cavalos surgiu repentinamente de uma vereda à
esquerda e deu uma guinada bem à frente de nós. Os animais
relincharam e foram de encontro uns aos outros,
derrubando-se mutuamente. Nossa carruagem se inclinou,
equilibrou-se sobre duas rodas e então derrapou para uma
vala, capotando lentamente. Astiza e eu caímos para um dos
lados. Os ciganos pularam para longe.
"Imbecis!", gritou uma mulher. "O meu marido pode mandar
fuzilar-vos!"
Trêmulos, saímos nos erguendo pela porta que, agora, dava
para o alto. O eixo da frente se quebrara, tal qual as pernas
de dois de nossos cavalos, que relinchavam
desesperadamente. Cavalarianos que escoltavam quem quer
que fosse com que colidíramos haviam desmontado e
estavam indo de pistola na mão sacrificar os animais feridos
e soltar os outros. Berrando conosco da janela de sua
carruagem, via-se uma mulher extraordinariamente elegante
(suas roupas teriam custado o suficiente para levar um
banqueiro à ruína). De olhar frenético, tinha a altivez dos
parisienses, mas não a reconheci de imediato. Eu era um
americano que voltava ilegalmente para a França, sendo até
onde sabia ainda procurado por homicídio e não tendo
sequer cumprido a quarentena que, para evitar epidemias,
era imposta a todos os que chegavam do Oriente.
(Bonaparte, aliás, também não se submetera a ela.) Agora, lá
estavam soldados, e perguntas seriam feitas, muito embora a
culpa tivesse sido da carruagem da mulher. Pressenti que
estar com a razão não seria de muita valia naquele momento.
"Meus assuntos são de suprema importância para o Estado!",
gritou a estranha, em pânico. "Afastai vossos cavalos dos
meus!"
"Mas foste tu que atravessaste nosso caminho!", retrucou
Astiza, com evidente sotaque. "És tão mal-educada quanto
incompetente!"
"Devagar", disse eu, alertando-a. "Ela está com soldados."
Era tarde demais. "E és tão insolente quanto desastrada!",
rebateu a outra, com voz aguda e histérica. "Por acaso sabes
quem sou? Posso mandar prender-te!"
Avancei para evitar uma briga de mulher, propondo uma
oferta fajuta de ressarcimento posterior, só para tirar a
megera de nosso caminho. Nossos ciganos haviam
sensatamente se escondido na mata. Dispararam-se dois tiros
de pistola, silenciando os relinchos mais excruciantes, e aí os
cavalarianos se voltaram para nós com as mãos no punho da
espada.
"Por favor, madame, foi só um acidente", argumentei,
sorrindo com meu encanto afável de sempre. "Mais um
minuto, e já iremos embora. A propósito, vais para onde?"
"Para onde estiver meu marido, se eu conseguir achá-lo! Ah,
isto é uma catástrofe! Pegamos o caminho errado, e acabei
perdendo a oportunidade de encontrá-lo na estrada. Agora,
os irmãos vão chegar a ele primeiro e contar mentiras sobre
mim. Se vós me atrasastes demais, respondereis por isso!"
Eu achava que a guilhotina houvesse liquidado esse tipo de
arrogância, mas aparentemente ela não cuidara de todos os
casos. "Mas Paris fica para lá", apontei.
"Eu queria vir ao encontro de meu marido! Só que ele se
adiantou a nós, e pegamos aquele caminho para dar a volta e
retornar. Agora ele já deve estar em casa, e o fato de não me
encontrar lá vai apenas confirmar o pior!"
"Pior como?"
"Que sou infiel!" E ela irrompeu em lágrimas.
Foi aí que reconheci seus traços, um tanto famosos nos
círculos sociais parisienses cuja periferia eu freqüentara. Era
ninguém menos que Josefina, a esposa de Napoleão! O que
diabos ela fazia numa estrada sombria quando a noite já caía?
E é claro que as lágrimas despertaram compaixão. Sou antes
de tudo um galante, e o choro desarma qualquer cavalheiro.
"É a mulher de Bonaparte", cochichei para Astiza. "Na
véspera da Batalha das Pirâmides, quando soube que ela o
traía, o general quase ficou louco."
"É por isso que ela está apavorada?"
"Nós dois sabemos como Bonaparte é volúvel. Ele poderia
colocá-la diante do pelotão de fuzilamento."
Astiza ponderou o assunto e então se moveu rápido até a
porta da carruagem. "Madame, conhecemos vosso esposo."
"Como é?!" Eu agora via que se tratava de uma mulher
pequena. Era esbelta, não sendo nem feia nem
particularmente bonita. Tinha tez cálida, nariz retilíneo,
lábios carnudos, olhos agradavelmente escuros, grandes e,
mesmo no desespero, inteligentes. Os cabelos eram escuros,
e as orelhas, belamente esculpidas, mas a pele estava
manchada de rubro pelo choro. "Como é que podeis
conhecê-lo?"
"Servimos com Bonaparte no Egito. Nós mesmos estamos
correndo para avisá-lo de um perigo terrível."
"Vós o conheceis?! Que perigo? Um atentado?"
"Um acompanhante, Alessandro Silano, pretende traí-lo."
"O conde Silano? Eu soube que ele está vindo com meu
marido. Consta que é confidente e conselheiro."
"Ele enfeitiçou Napoleão e vem tentando voltá-lo contra
vós. Mas podemos ajudar. A senhora e vosso esposo tentam
a reconciliação?"
Josefina, com os olhos marejados, baixou a cabeça. "Foi uma
surpresa tão grande! Não tivemos nenhum aviso de que ele
estava vindo. Saí correndo da casa de meu amigo mais
querido para encontrá-lo. Mas esses idiotas pegaram o
caminho errado!" Ela se inclinou para fora da janela e
agarrou Astiza pelos braços. "Precisais dizer a ele que, apesar
de tudo, eu ainda o amo! Se ele se divorciar de mim,
perderei tudo! Meus filhos ficarão na miséria! Eu tenho lá
culpa se ele some por meses e anos?!"
"Pois então os deuses devem ter providenciado este
acidente, não achais?", disse Astiza.
"Os deuses?!"
Puxei minha companheira para trás. "O que estás fazendo?",
disse-lhe, entre dentes.
"Eis a chave para chegarmos a Bonaparte!", respondeu Astiza
num sussurro. "Ele estará rodeado de soldados. De que outro
modo teremos acesso a ele a não ser pela esposa? Josefina
não tem sido fiel, ou coisa assim, o que significa que ela se
aliará a qualquer um que lhe convenha. Isso quer dizer que
precisamos trazê-la para o nosso lado. Ela poderá descobrir
onde está o Livro de Tot quando tiver relações com o
marido, naquele momento em que os homens perdem o
pouco juízo que têm - e, aí, poderemos surrupiar o livro!"
"O que estais cochichando aí?" perguntou Josefina,
chamando-nos.
Astiza sorriu. "Madame, nossa carruagem está destruída, mas
é imperativo que cheguemos a vosso esposo. Creio que
podemos nos ajudar mutuamente. Se nos fizerdes o favor de
deixar que sigamos caminho convosco, poderemos auxiliar
na vossa reconciliação."
"Como?"
"Meu companheiro é um sábio maçom. Temos a chave para
um livro sagrado que poderá proporcionar grande poder a
Napoleão."
"Maçom?" Ela me olhou com desconfiança, forçando a vista.
"O padre Barruel, naquele famoso livro, disse que os maçons
estavam por trás da revolução - os jacobinos, todos eles, não
passariam de um complô maçom. Por outro lado, no Journal
des Hommes Libres, os jacobinos vivem dizendo que os
maçons são na realidade monarquistas, conspirando pela
volta do trono. Assim, que maçons sois vós?"
"Madame, eu vejo que o futuro está com vosso marido",
menti.
Josefina ficou interessada em pesar os prós e contras. "Livro
sagrado?"
"Do Egito", respondeu Astiza. "Se seguirmos viagem,
chegaremos a Paris ao amanhecer."
De modo um tanto surpreendente, Josefina concordou. Tão
aturdida estava com o reaparecimento de Napoleão, e a
indubitável fúria dele ante seus hábitos adúlteros, que se
mostrava ansiosa por qualquer ajuda, não importando quão
inverossímil. Assim, largamos os destroços de nossa
carruagem roubada, com metade dos cavalos sacrificados e
os ciganos escondidos, e pegamos a dela para Paris.
"Agora, deveis contar-me o que sabes, ou vos porei para
fora", advertiu Josefina.
Era uma aposta que tínhamos de fazer. "Descobri um livro
que transmite grandes poderes...", principiei. "Que tipo de
poder?"
"O poder de convencer... De enfeitiçar... De ter vida
inaturalmente longa, talvez eterna... De transmutar
objetos..." Os olhos de Josefina se arregalaram, cobiçosos. "O
conde Silano roubou esse livro e se grudou a Bonaparte
como uma sanguessuga, exaurindo-lhe o espírito. Mas o
livro ainda não foi traduzido - só nós podemos fazê-lo. Se a
esposa do general puder oferecer-lhe a cifra sob a condição
de que Silano seja afastado, então recuperareis vosso
matrimônio. Eu proponho uma aliança: com nosso segredo,
conseguireis voltar aos aposentos de vosso esposo; com
vossa influência, conseguiremos recuperar nosso livro,
livrar-nos de Silano e ajudar Napoleão."
Ela estava desconfiada. "Que cifra é essa?"
"A chave para um idioma estranho e antigo, há muito
perdido." Astiza se virou no assento da carruagem de
Josefina e desatou o laço na parte de trás do vestido. O
tecido se abriu, revelando aquele intricado alfabeto inscrito
em hena.
A francesa ficou boquiaberta. "Parece a escrita de Satanás!"
"Ou de Deus."
Josefina refletiu. "Bem, se vencermos, quem vai querer saber
de qual deles ela é?"
Estaria Tot enfim sorrindo para nós? Chispamos para a casa
de Bonaparte, na recém-rebatizada rue de la Victoire,
homenagem às vitórias dele na campanha da Itália. E, sem
plano, sem aliados e sem armas, confiamos naquela arrivista.
O que sabíamos sobre Josefina? O tipo de mexerico de que
Paris se nutria. Ela crescera na Martinica, tinha meia dúzia
de anos mais e duas polegadas menos que Napoleão e era
uma sobrevivente obstinada. Casara com um jovem e rico
oficial do exército, Alexandre de Beauharnais, mas ele ficara
tão envergonhado dos modos provincianos da esposa que se
recusara a apresentá-la à corte de Maria Antonieta. Josefina
separou-se, voltou para as Antilhas, fugiu de uma revolta de
escravos para regressar a Paris no auge da revolução, perdeu
o marido na guilhotina em 1794 e acabou ela própria na
prisão. Só o golpe de Estado que pôs fim ao Terror salvou-
lhe a cabeça. Quando um jovem oficial chamado Bonaparte
viera visitá-la para louvar a conduta do filho, Eugène de
Beauharnais (que pedira ajuda para recuperar a espada do
pai), ela o seduziu. Desesperada, apostou suas fichas naquele
corso em ascensão e o desposou, mas depois dormiu com
todo o mundo que lhe aparecesse pela frente enquanto ele
estava na Itália e no Egito. Alguns, à boca pequena, diziam
que era ninfomaníaca. Estava vivendo com um ex-oficial
chamado Hippolyte Charles, agora homem de negócios,
quando chegou a notícia alarmante do retorno do marido. Já
que a revolução instituíra o divórcio, Josefina corria o risco
de perder tudo justamente no momento em que Bonaparte
buscava o poder supremo. Aos trinta e seis anos, com os
dentes manchados, ela podia não ter outra chance.
Seus olhos se arregalaram com a explicação de Astiza sobre
os poderes sobrenaturais. Oriunda que era das ilhas
açucareiras das Antilhas, as histórias de magia não lhe eram
estranhas.
"Esse livro é capaz de destruir os homens que o possuem",
disse Astiza, "e devastar as nações onde o usem. Os antigos
sabiam disso e o esconderam, mas o conde Silano provocou
o destino ao roubá-lo. Silano enfeitiçou vosso esposo com
sonhos de poder ilimitado. Isso poderia levar Napoleão à
insanidade. Precisais ajudar-nos a pegar o livro de volta."
"Mas de que jeito?"
"Se nos derdes o livro, poderemos salvaguardá-lo. Vosso
conhecimento sobre ele vos dará enorme influência sobre
vosso marido." "Mas quem sois vós?"
"Eu me chamo Astiza, e este é Ethan Gage, um americano."
"Gage? O eletricista? O assistente de Franklin?"
"Madame, fico honrado em conhecer-vos e lisonjeado em
saber que já ouvistes falar de mim." Peguei-lhe a mão.
"Espero que possamos ser aliados."
Josefina tirou bruscamente a mão. "Mas sois um assassino!"
Olhou-me cheia de dúvidas. "Matastes uma aventureira
barata! Ou não o fizestes?"
"Eis um exemplo perfeito das mentiras de Silano, bem do
tipo que pode ludibriar o general e pôr a perder os sonhos
dele. Fui vítima de uma acusação injusta. Ajudemos a afastar
de vosso marido esse veneno, para que vosso idílio
matrimonial retorne!"
"Sim! É tudo culpa de Silano, não minha! Dissestes que esse
livro contém um poder terrível?"
"Um poder do tipo que escraviza almas."
Ela pensou bem. Por fim, reclinou-se e sorriu. "Tendes
razão. Deus veio à minha procura."
A casa de Bonaparte, comprada por Josefina antes do
segundo casamento, ficava na parte elegante de Paris que era
conhecida como Chaussée d'Antin, uma região antes
pantanosa onde os ricos haviam construído residências
encantadoras, chamadas folies (extravagâncias), no decorrer
daquele século. Era uma moradia modesta, de dois
pavimentos, com um roseiral no fim da floração e um
terraço que Josefina cobrira com teto de madeira e decorara
com bandeiras e tapeçarias; um lar respeitável para aplicados
servidores públicos de médio escalão. A carruagem parou
numa entrada de cascalho, sob tílias, e Josefina saiu, ansiosa
e agitada, passando os dedos nas faces. "Como estou?"
"Estais como uma mulher que tem um segredo", respondeu
Astiza. "Pareceis no controle da situação."
Josefina deu um sorriso lânguido e tomou fôlego. Em
seguida, entramos.
Os cômodos eram uma curiosa mistura do feminino com o
masculino, tendo suntuoso papel de parede e cortinado de
renda, mas ostentando mapas e plantas urbanas nas paredes.
Lá estavam as flores da patroa e os livros do patrão, pilhas e
pilhas deles, alguns recém-desencaixotadas do Egito. O
asseio e o capricho de Josefina eram evidentes, ainda que as
botas de Napoleão estivessem jogadas na sala de jantar e o
capote dele tivesse sido largado numa cadeira. Uma escada
conduzia ao andar superior.
"O general está no quarto dele", sussurrou ela.
"Ide até ele."
"Os irmãos já devem ter-lhe contado tudo. Ele vai me odiar!
Não presto, sou uma mulher infiel. Não consigo evitar - eu
gosto tanto do amor! E achava que ele seria morto!"
"Sois humana, assim como ele", disse eu, confortando-a. "E,
acreditai, ele também não é nenhum santo. Ide, pedi perdão
e dizei a ele que estivestes empenhada em recrutar aliados.
Explicai que nos persuadistes a ajudá-lo e que o futuro dele
depende de nós três."
Eu não confiava em Josefina, mas de que outra arma
dispúnhamos? Preocupava-me que Silano pudesse estar
espreitando por ali. Josefina, juntando coragem, subiu os
vinte degraus até o andar de cima e bateu na porta do
marido. "Querido general?..."
Por um momento, fez-se silêncio, e escutamos pisadas e
batidas duras, e depois soluços, e pedidos lacrimosos de
perdão. Ele já se decidira pelo divórcio. Através da madeira
do piso, ouvíamos a mulher implorar. Aí, a gritaria
diminuiu, e houve conversa em tom mais baixo. Em certa
altura, pensei ter ouvido o estalido de uma fechadura a
trancar-se. Depois, o silêncio. Desci a escada que levava à
cozinha, no porão, e uma empregada nos arranjou pão e
queijo. A criadagem se aglomerou como camundongos,
aguardando o desfecho da tormenta que desabava lá em
cima. Cansados que estávamos, cochilamos.
Perto do amanhecer, uma empregada nos acordou. "A
patroa quer ver-vos", sussurrou.
Fomos conduzidos escada acima. A empregada bateu, e a
voz de Josefina respondeu "Entrai", com uma
despreocupação que eu não ouvira antes.
Adentramos o quarto, e o vencedor de Abukir e sua esposa,
recém-readmitida à fidelidade, estavam deitados lado a lado
na cama, cobertos até o queixo, ambos parecendo tão
satisfeitos quanto gatos a beber leite à vontade.
"Por Deus, Gage", saudou-me Napoleão, "ainda não estás
morto?! Se meus soldados conseguissem sobreviver como tu,
eu conquistaria o mundo."
"Só estamos tentando salvar este mesmo mundo, general."
"Mas Silano disse que vos deixou enterrados! E minha
mulher estava me contando as vossas historinhas."
"Queremos apenas o que é melhor para a França e para vós,
general."
"Vós dois quereis o livro. Todo o mundo o quer. Mas
ninguém consegue lê-lo."
"Nós conseguimos."
"E o que minha mulher me diz, alegando que tendes um
registro do que ajudastes a destruir. Admiro a esperteza de
vós dois. Bem, podeis ter certeza de que uma coisa boa
resultou dessa vossa longa noite: ajudastes a fazer que eu e
Josefina nos reconciliássemos, e, por isso, estou com ânimo
generoso."
Eu também me animei muito. Talvez aquilo tudo viesse
mesmo a dar certo. Comecei a olhar em volta, de relance,
procurando o livro.
Nisso, ouvi passos pesados atrás de nós, e me voltei. Um
destacamento de gendarmes subia a escada. Quando tornei a
olhar para a frente, Napoleão empunhava uma pistola.
"Minha mulher me convenceu de que, em vez de
simplesmente fuzilar-vos, seria melhor prender-vos na
Prisão do Templo. Tua execução, Gage, poderá esperar até
que sejas julgado pela morte daquela rameira." Ele sorriu.
"Devo dizer que minha Josefina se mostrou incansável em
teu favor." Apontou para Astiza. "Quanto a ti, vais desnudar-
te no toucador de minha mulher, enquanto ela e as criadas
vigiam. Já convoquei secretários para que venham copiar teu
segredo."
- 27 -
É irônico ser encarcerado num "templo" que
originariamente foi construído como sede dos templários,
depois usado como calabouço para Luís XVI e Maria
Antonieta antes da execução e por fim empregado como
ineficaz cadeia para Sidney Smith. Se o oficial da marinha
britânica conseguira escapar, isso em parte se devia ao fato
de ter feito sinal pelas janelas da prisão para uma dama com a
qual já dormira - ato que representava um desembaraço e
uma engenhosidade bem ao meu gosto. Agora, dezoito
meses depois, Astiza e eu experimentávamos nós mesmos
aquelas acomodações, sendo nosso senhorio o corpulento,
encardido, servil, intrometido, obtuso, mas interessante
carcereiro Jacques Boniface, que distraíra sir Sidney
contando-lhe lendas dos templários.
Fomos conduzidos para lá na carroça gradeada da prisão,
observando Paris através das barras de ferro. Em outubro, a
cidade parecia sem cor, estando as pessoas apreensivas e os
céus cinzentos. Éramos também observados, como animais,
e essa foi uma maneira deprimente de apresentar Astiza a
uma cidade grandiosa. Para minha companheira, tudo era
estranho: as grandes agulhas da catedral, o alarido das feiras
de couro, pano e frutas, a cacofonia dos relinchos no
trânsito e dos ambulantes nas calçadas, a ousadia das
mulheres trajadas de peles e veludo, estrategicamente
abertos para oferecer um vislumbre dos seios e tornozelos.
Astiza se vira humilhada quando a obrigaram a despir-se
para copiarem a cifra, e agora não estava falando. Quando
entramos e descemos junto à torre dianteira, num pátio frio
e desprovido de árvores, algo atraiu meu olhar para o portão
principal. Do lado de fora, pessoas fitavam pelas grades,
sempre ansiosas por ver infelizes ainda mais desafortunados
que elas, e tive um sobressalto ao avistar uma cabeça de
cabelo seco e muito ruivo, tão familiar quanto uma dívida de
aluguel e tão irritante quanto uma lembrança desagradável.
Seria possível que...? Não, claro que não.
A Prisão do Templo, que data do século XIII, era um castelo
estreito e feio que se erguia duzentos pés até o pico de seu
telhado piramidal. As celas em suas torres eram iluminadas
por janelas apertadas e providas de barras. Do lado de
dentro, davam para galerias ao redor de um átrio central. O
fato de que a prisão estava basicamente vazia dizia algo da
eficiência do Terror: os detentos monarquistas já haviam
sido todos guilhotinados.
Eu já vira cárceres piores. Astiza e eu estávamos autorizados
a passear pelo parapeito ao redor do telhado (ele era
demasiado alto para que se tentasse pular de lá ou descer
pelas paredes), e a comida era melhor que em alguns dos
khans que eu conhecera perto de Jerusalém. Afinal,
estávamos na França. Não fosse estarmos bem trancafiados e
Bonaparte e Silano parecerem determinados a dominar o
mundo, eu teria encarado de bom grado aquele descanso.
Nada como caças ao tesouro, lendas antigas e batalhas
contemporâneas para nos fazer dar valor a uma boa soneca.
Mas o Livro de Tot nos arrastava para si, e Boniface era um
fofoqueiro que gostava de relatar as intrigas de uma cidade
em pé de guerra e sob pressão. Complôs e conspirações
sucediam-se com rapidez, e todo grupo de conjurados
procurava "uma espada" que lhes proporcionasse a
necessária força militar para tomarem o poder. A
composição do Diretório, formado de cinco líderes
políticos, vivia sendo modificada pelo Conselho dos Anciãos
e pelo Conselho dos Quinhentos. Essas duas câmaras
legislativas eram barulhentas e empoladas; nelas se usavam
togas romanas, praticava-se uma corrupção descarada e
tinha-se orquestra à mão para marcar a legislatura com
canções patrióticas. A economia estava em frangalhos, o
exército penava na indigência de suprimentos, metade da
França ocidental vivia uma revolta alimentada pelo ouro
inglês, e a maioria dos generais tinha um olho no campo de
batalha e o outro em Paris.
"Precisamos de um líder", disse nosso carcereiro. "Estamos
todos cansados da democracia. Tens sorte de estar aqui,
Gage, longe da barafunda. Quando ando pela cidade, nunca
me sinto seguro." Inste isso.
"Só que as pessoas não querem um ditador. Pouca gente
deseja a volta da monarquia. Precisamos conservar a
república, mas como alguém conseguiria tomar as rédeas
dessa nossa Assembléia cheia de rixas? É como tentar
controlar os gatos de Paris. Precisamos da sabedoria de
Salomão."
"Precisas dela agora?" Estávamos jantando juntos em minha
cela.
Boniface fizera o mesmo com Smith, porque o carcereiro
sentia o tédio e não tinha amigos. Imagino que a companhia
dele se destinasse a ser parte de nossa tortura, mas eu
adquirira um estranho apreço por ele. Boniface se mostrava
mais tolerante com seus prisioneiros do que alguns anfitriões
com os convidados, e ainda prestava mais atenção. Do ponto
de vista dele, não chegava a atrapalhar que Astiza
continuasse bem agradável aos olhos e que eu, claro, fosse
uma companhia extraordinariamente boa.
Boniface assentiu. "Bonaparte quer ser um George
Washington, aceitando com relutância a condução da pátria,
mas não tem a mesma circunspecção. É, Gage, andei
estudando Washington, e aquela estóica modéstia honra à
tua jovem nação. O corso voltou achando que seria alçado
ao Diretório pelo clamor popular, mas os superiores dele o
receberam com frieza. O que pretendia retornando do Egito
sem ter recebido ordens para tanto? Vós dois têm lido Le
Messager?"
"Se recordais, monsieur Boniface, estamos confinados a esta
torre", disse Astiza, em tom baixo e delicado.
"Ah, sim, claro... Bem, aquele bravo periódico atacou
abertamente a campanha do Egito! Zombou dela! Um
exército abandonado! Soldados atirados inutilmente às
muralhas de Acre! Bonaparte humilhado por sir Sidney
Smith, homem que já esteve preso aqui! Os jornais, vós
sabeis, são uma voz da Assembléia. Napoleão está liquidado."
Taima me contara que Bonaparte tinha mais medo da
imprensa hostil que das baionetas. Mas o que ninguém sabia
era que Napoleão estava com o livro e que Silano outra vez
dispunha da cifra completa para lê-lo. Era nisso que dava
negociar com Josefina, aquela vadia intriguenta. A mulher
seria capaz de seduzir o papa e, na mesma toada, levá-lo à
miséria.
Quando perguntei a Boniface sobre os templários que
haviam construído aquele lugar, foi como ter posto para
funcionar uma bomba de água - fatos e teorias vieram em
borbotão. "O próprio Jacques de Molay foi grão-mestre aqui
- e aqui torturado! Temos fantasmas, meus jovens, espíritos
que ouço soltarem gritos lancinantes nas noites de
tempestade. Os templários foram tratados a queimaduras e
pancadas até confessarem a pior espécie de abominação e
adoração do diabo; depois, foram mandados para a fogueira.
No entanto, onde foi parar o tesouro deles? Acreditava-se
que os recintos em que estais confinados estivessem
atulhados de riquezas, mas, quando o rei chegou para pilhá-
las, encontrou tudo vazio. E onde foi parar aquilo que
diziam ser a fonte do poder dos templários? De Molay não
revelou nada e só falou quando foi para a fogueira. Lá,
profetizou que o rei e o papa morreriam no espaço de um
ano. Ah, o calafrio que a multidão sentiu quando ele
augurou isso! E era verdade! Meus amigos, aqueles
templários não eram apenas monges guerreiros - eram
magos. Em Jerusalém, haviam descoberto algo que lhes dera
estranhos poderes."
"Imaginai como seria se tal poder fosse redescoberto...",
murmurou Astiza.
"Um homem como Bonaparte se apoderaria do Estado num
instante. Bem, estamos prestes a ver mudanças - e, eu vos
digo, mudanças para melhor e para pior."
"Tu falas de nosso julgamento?", perguntei.
"Não, aí já estaríamos falando de quando fordes
guilhotinados." Ele deu de ombros, à francesa.
O carcereiro ansiava por ouvir nossas aventuras, cuja
descrição modificamos prudentemente. Estivéramos dentro
da Grande Pirâmide? Ah, sim. Não havia nada para ver lá.
E o Monte do Templo, em Jerusalém?
Era agora um local sagrado dos muçulmanos, e a entrada de
cristãos estava proibida.
E as histórias sobre cidades perdidas no deserto?
Se estavam perdidas, como poderíamos nós tê-las achado?
Boniface insistia em que os antigos não teriam tido como
erigir seus grandes monumentos sem usarem de segredos
espantosos. A magia se perdera com os sacerdotes de
antanho. Nossa era moderna se mostrava desinteressante,
mecânica, cética, privada de maravilhas. A ciência vinha
subjugando o mistério, e o racionalismo passava por cima
dos prodígios. Isso em nada se parecia com o Egito!
"Mas e se aquilo tudo fosse redescoberto?", sugeri.
"Estás a par de alguma coisa, não, Américain? Não, não
adianta balançar a cabeça! Sabes de alguma coisa, e eu,
Boniface, vou fazer-te desembuchar!"
Em 26 de outubro, nosso carcereiro trouxe uma notícia
eletrizante: Lucien Bonaparte, aos vinte e dois anos, acabava
de ser eleito presidente do Conselho dos Quinhentos!
Eu sabia que Lucien, muito antes de Napoleão ter deixado o
Egito, vinha trabalhando em prol do irmão em Paris. Era
político talentoso, mas presidente da mais poderosa câmara
legislativa da França?! "Pensei que fosse preciso ter no
mínimo trinta anos para ocupar o cargo."
"É justamente por isso que Paris está em polvorosa! Ele
mentiu sobre a idade - tinha de mentir, é claro, para cumprir
o que diz a Constituição. O fato, porém, é que todo o mundo
sabe que mentiu, e o elegeram do mesmo jeito! De algum
modo, é coisa de Napoleão. Os deputados estão apavorados,
ou enfeitiçados."
Seguiram-se mais notícias muito curiosas. Napoleão
Bonaparte, antes esnobado pelo Diretório, agora seria
homenageado com um banquete. Estaria a opinião pública
mudando e o general cativando os políticos da cidade para
que tomassem seu partido?
Em 9 de novembro de 1799 (ou 18 de brumário do ano viu,
no calendário revolucionário francês), Boniface veio até nós
de olhos muito arregalados. O homem era um jornal
ambulante. "Não dá para acreditar!", exclamou. "Foi como se
os nossos parlamentares tivessem sido mesmerizados! Às
quatro e meia da manhã, tiraram o Conselho dos Anciãos da
cama, e eles, ainda sonolentos, foram reunidos nas
Tulherias. Lá, votaram por retirar-se para o château de Saint-
Cloud, nos subúrbios de Paris, a fim de deliberarem lá. Foi
uma insanidade, que impedirá que convoquem o apoio do
populacho, se necessário. Fizeram isso de livre e espontânea
vontade, e o Conselho dos Quinhentos vai imitá-los!
Continua tudo muito confuso, e não faltam especulações -
mas há mais do que isso para que Paris esteja vivendo em
suspense."
"E o que seria?"
"Napoleão recebeu o comando da guarnição da cidade,
tendo sido destituído o general Moreau! Agora, tropas se
deslocam para Saint-Cloud, e outras formam barricadas. Há
baionetas por toda a parte."
"O comando da guarnição? São dez mil homens. O exército
de Paris era o que mantinha todos, inclusive Napoleão, na
linha."
"Justamente! Por que os parlamentares permitiriam uma
coisa dessas? Está acontecendo alguma coisa esquisita, algo
que os leva a votar o oposto do que afirmavam dias ou
mesmo horas antes. Mas o que poderia ser?"
Eu, naturalmente, sabia. Silano progredira na tradução do
Livro de Tot. Encantamentos estavam sendo elaborados e
usados, e mentes, toldadas. Enfeitiçadas era de fato a
palavra! A cidade inteira estava enfeitiçada. Astiza e eu nos
olhamos: não havia tempo a perder. "Mistérios do
Oriente...", disse eu, de súbito.
"Hein?"
"Monsieur Boniface, já ouvistes falar do Livro de Tot?",
perguntou Astiza.
Boniface pareceu surpreso. "Mas é claro - todos os
estudiosos do passado sabem do Três Vezes o Maior,
ancestral de Salomão, pai de todo o conhecimento, o
Caminho e o Verbo." Sua voz se reduzira a um murmúrio.
"Alguns dizem que Tot criou um paraíso terrestre que nos
esquecemos de como conservar, mas outros afirmam que ele
é o próprio arcanjo negro, com suas mil aparências - Baal,
Belzebu, Bafomé!..."
"Esse livro está perdido há milhares de anos, não?"
Agora ela parecia furtivo. "Talvez. Correm histórias de que
os templários.
"Tais histórias, Jacques Boniface, são verdadeiras", disse eu,
levantando-me da mesa tosca aonde dividíamos uma jarra de
vinho barato. Meu tom de voz ficava mais grave. "Quais as
acusações que se fazem a Astiza e a mim?"
"Acusações? Nenhuma, ora! Não precisamos de acusações
para manter-vos na prisão do Templo."
"Ainda assim, não estranhas que Bonaparte nos tenha
confinado aqui? Podes ver que estamos desamparados, sem
amigos. Ele nos confinou, mas ainda não nos matou, pois
talvez possamos ser úteis outra vez. Afinal, o que uma dupla
esdrúxula como nós estaria fazendo em Paris? E o que
poderíamos saber que fosse tão perigoso para o Estado?"
Boniface olhou para nós, desconfiado. "É, tenho estranhado
isso, sim."
"Considera a possibilidade, Boniface, de que saibamos o
paradeiro de um tesouro - o maior do mundo." Eu me
inclinei para a frente, por sobre a mesa.
"Tesouro?" A voz do carcereiro saiu num gritinho, agudo e
curto.
"Dos templários, escondido desde aquela sexta-feira 13 de
1309, quando eles foram aprisionados e torturados pelo
louco rei da França. Estás, guardião deste cárcere, tão preso
quanto nós. Quanto tempo mais desejas ficar aqui?"
"Pelo tempo que os meus senhores..."
"Mas poderias ser um senhor, Jacques Boniface. O senhor de
Tot. Tu e nós, que somos os verdadeiros estudiosos do
passado - pois, ao contrário do que faz o conde Alessandro
Silano, não daríamos segredos sagrados a tiranos ambiciosos
como Bonaparte. Nós os preservaríamos para toda a
humanidade - ou não?"
Ele coçou a cabeça. "Acho que sim."
"Mas, para tanto, precisamos agir - e logo. Creio que o golpe
de Napoleão será hoje à noite. E esse golpe dependerá de
quem estiver com um livro que, outrora perdido, foi
redescoberto. Sim, os templários esconderam mesmo sua
riqueza, num lugar onde calcularam que homem algum
ousaria procurar", arrematei, mentindo.
"Onde?", perguntou Boniface, a respiração contida.
"Sob o Templo da Razão, construído na Île de la Cite no
local exato onde os romanos ergueram seu templo a Ísis,
deusa do Egito. No entanto, só o livro irá nos dizer onde
precisamente está o tesouro."
Boniface arregalou os olhos. "Na Notre-Dame?!" A pobreza
nos faz acreditar em qualquer coisa, e o salário de carcereiro
é mesmo vergonhoso.
"Precisarás de picareta e de coragem, Boniface - a coragem
de tornar-te o homem mais rico e poderoso do mundo! Mas
isso apenas se te dispuseres a cavar! E só um homem poderá
conduzir-nos ao local exato! Silano vive tão-somente para
sua própria cobiça, e temos de capturá-lo e fazer o que é
certo, pela maçonaria, pela tradição dos templários e pelos
mistérios dos antigos! Estás comigo?"
"Será perigoso?"
"Leva-nos aos aposentos de Silano, só isso. Poderás então
esconder-te na cripta da Notre-Dame enquanto decifrarmos
o segredo. Aí, juntos, mudaremos a história do mundo!"
Em tempos menos intranqüilos, eu talvez não tivesse
conseguido convencê-lo. Mas, com Paris à beira de um
golpe, com tropas erguendo barricadas, com a Assembléia
em pânico, com generais apinhando-se em reluzentes
uniformes na casa de Napoleão, com a cidade escura e
apreensiva... Nessas circunstâncias, tudo podia acontecer. E
o que era mais importante: o sacerdócio católico fora
encerrado pela revolução, e a Notre-Dame se tornara um
grandioso fantasma, sendo usada apenas por velhas devotas e
varrida pelos pobres em troca de assistência. O carcereiro
conseguiria entrar na cripta com bastante facilidade.
Enquanto Bonaparte se dirigia a milhares de soldados no
Jardim das Tulherias, Boniface reunia ferramentas de sapa.
Deixar que saíssemos era, claro, flagrante descumprimento
de suas obrigações. Mas o advertimos de que nunca
conseguiria achar nem ler o livro sem a nossa ajuda e de
que, do contrário, passaria o resto de seus dias como
encarregado na Prisão do Templo, trocando mexericos com
os condenados em vez de herdar a riqueza e o poder dos
templários. À noitinha, Boniface informou que Bonaparte
tomara de assalto o Conselho dos Anciãos quando eles
rechaçaram sua exigência de que dissolvessem o Diretório e
o nomeassem primeiro-cônsul. Segundo todos os relatos, o
discurso de Napoleão foi torrencial e disparatado, tanto que
seus próprios auxiliares o afastaram dali - ele estava berrando
um palavrório sem sentido! Tudo parecia perdido. Ainda
assim, os deputados não ordenaram a prisão dele nem se
recusaram a reunir-se. Pelo contrário: pareciam propensos a
atender ao que o general demandava. Por quê? Naquela
noite, depois que as tropas mesmerizadas de Napoleão
haviam limpado do Conselho dos Quinhentos o château de
Saint-Cloud (com alguns dos deputados pulando das janelas
para safar-se), os Anciãos passaram um decreto que
determinava que um "comitê executivo temporário" dirigido
por Bonaparte substituiria o Diretório.
"Uma dúzia de vezes, tudo pareceu perdido para os
conspiradores de Napoleão, e, apesar disso, os homens
submeteram-se à vontade dele", contou o carcereiro.
"Agora, alguns dos Quinhentos estão sendo detidos para
fazer o mesmo. Depois da meia-noite, os conjurados farão o
juramento de posse!"
Posteriormente, poderia ser dito que tudo foi resultado de
baioneta, blefe e pânico. Mas fiquei imaginando se o
discurso sem sentido de Napoleão não teria contido palavras
mágicas que não eram pronunciadas havia quase cinco mil
anos, palavras de um livro antiqüíssimo que fora enterrado
com um templário na Cidade dos Espíritos. Fiquei
imaginando, enfim, se o Livro de Tot já não estaria em ação.
Caso os feitiços do livro tivessem poder, então Bonaparte,
novo senhor do país mais poderoso da Terra, logo seria
senhor do planeta - e, com ele, o Rito Egípcio de Silano.
Teria início um domínio de megalômanos ocultistas, e a
história humana assistiria não a uma nova aurora, mas a uma
longa era das trevas.
Precisávamos agir.
"Já descobriste, Boniface, onde Alessandro Silano se
encontra?"
"Ele vem realizando experiências nas Tulherias, sob a
proteção de Bonaparte. Mas consta que saiu esta noite, para
ajudar os conspiradores a tomar o governo. Felizmente, a
maioria das tropas marchou para Saint-Cloud. Há alguns
guardas nas Tulherias, mas o velho palácio está basicamente
vazio. Conseguireis ir aos aposentos de Silano e pegar esse
vosso livro." Boniface olhou para nós. "Tendes certeza de
que Silano está com o segredo? Se falharmos, o castigo
poderá ser a guilhotina!"
"Tão logo tenhas o livro e o tesouro, poderás controlar a
guilhotina - e tudo mais."
Ele assentiu, sem muita convicção e com as manchas de
meia dúzia de jantares anteriores a salpicar-lhe a camisa. "É
só que isto tudo é arriscado... Não estou certo de que seja a
coisa certa..."
"Todas as coisas grandiosas são difíceis - ou não seriam
grandiosas!" Parecia algo que o próprio Bonaparte diria, e os
franceses gostam desse tipo de conversa. "Nós iremos para
os aposentos de Silano e assumiremos o risco enquanto
segues na frente para a Notre-Dame."
"Mas sou vosso carcereiro! Não posso deixar-vos a sós!"
"Crês que partilharmos o maior tesouro do mundo não nos
unirá mais firmemente que a mais forte das correntes? De
uma coisa podes ter certeza, Jacques Boniface: não
conseguirás livrar-te de nós!"
Nosso trajeto por Paris era coisa de uma milha e meia, e
fomos a pé para que pudéssemos contornar os postos de
controle militar instalados pela cidade. A capital parecia em
suspense. Viam-se poucas luzes, e as pessoas que estavam na
rua formavam grupos, trocando rumores sobre a tentativa de
golpe. Bonaparte agora era rei. Bonaparte fora preso.
Bonaparte estava em Saint-Cloud, ou no palácio de
Luxembourg, ou até em Versalhes. Os deputados reuniriam
o populacho. Os deputados haviam se unido a Bonaparte. Os
deputados haviam fugido. Era uma falação impotente.
Passamos pelo Hotel de Ville (a prefeitura), para chegar à
margem norte do Sena, e por teatros que, em vez de
animados, estavam às escuras. (Eu tinha gratas lembranças
de seus saguões repletos de cortesãs a cortejar negócios.)
Depois, seguimos o rio para leste, passando pelo Louvre. As
grandes agulhas e arcobotantes da catedral na Île de la Cite
se erguiam contra um céu cinzento, iluminado por uma lua
encoberta. "E ali que deves preparar o caminho para nós",
disse eu a Boniface, apontando a Notre-Dame. "Voltaremos
com o livro e um Silano já prisioneiro."
Ele assentiu. Nós nos agachamos num vão de entrada
quando um esquadrão de cavalaria passou em tropel.
Em certa altura, percebi que uma figura nos seguia e me
voltei rapidamente para ela, mas só vislumbrei uma saia que
desaparecia num vão de porta. De novo, o clarão ruivo.
Teria eu apenas imaginado aquela mulher? Desejei estar com
meu fuzil, ou qualquer outra coisa que servisse, mas
poderíamos ir para a cadeia se fôssemos parados levando
armas de fogo. Elas estavam proibidas na cidade. "Viste uma
mulher esquisita?", perguntei a Astiza.
"Em Paris, todos me parecem esquisitos."
Passamos pelo Louvre. O rio estava escuro e espesso, e, no
Jardim das Tulherias, viramos e acompanhamos a grandiosa
fachada do Palácio das Tulherias, encomendado por Catarina
de Medici mais de dois séculos antes. Assim como muitos
palácios europeus, era uma coisa enorme, oito vezes maior
do que qualquer necessidade racional exigiria. Como se não
bastasse, ainda ficara essencialmente abandonado após a
construção de Versalhes. Luís XVI e Maria Antonieta,
coitados, tinham sido obrigados a mudar-se para lá durante a
revolução. Depois, o edifício fora tomado de assalto pela
turba e, desde então, era quase uma ruína. Tinha um ar
espectral de abandono. Boniface arranjara um passe da
polícia para que pudéssemos passar por uma sentinela
entediada e sonolenta numa entrada lateral. Explicamos que
tínhamos assuntos urgentes a tratar ali. Naqueles dias
agitados, quem não tinha?
"Eu não subiria com a mulher", aconselhou o soldado, dando
uma olhadela em Astiza. "Ninguém mais vai lá em cima. O
lugar é guardado por um fantasma."
"Fantasma?", perguntou Boniface, empalidecendo. "Já se
ouviram coisas na noite." "Tu te referes ao conde?"
"Algo fica se mexendo lá em cima quando ele sai." A
sentinela sorriu de orelha a orelha, com seus dentes
amarelos. "Podeis deixar a moça comigo." "Eu gosto de
fantasmas", retrucou Astiza.
Subimos a escada para o primeiro andar. Nossos passos
ecoavam. A opulência arquitetônica das Tulherias ainda
estava lá: vastos salões que se abriam uns para os outros num
longo encadeamento, tetos abobadados que eram
intricadamente entalhados, parques de madeira de lei que
pareciam mosaicos, lareiras que tinham futilidades
suficientes para ornamentar metade da Filadélfia. Mas a
pintura estava encardida, o papel de parede se descolava, e o
piso fora rachado e estragado por um canhão que, em 1792,
o populacho arrastara por ali para confrontar Luís XVI.
Algumas das grandiosas janelas ainda estavam quebradas e
cobertas por tábuas. A maior parte das obras de arte já
desaparecera.
Seguimos em frente, recinto após recinto, como num lugar
que fosse visto interminavelmente graças a espelhos que se
refletissem uns nos outros. Por fim, o carcereiro parou
diante de uma porta. "Estes são os aposentos de Silano",
explicou Boniface. "Ele não deixa que as sentinelas cheguem
perto daqui. Precisamos nos apressar, pois ele pode voltar a
qualquer minuto." Olhou em volta. "Onde está esse
fantasma?"
"Na tua imaginação", respondi.
"Bem, o fato é que alguma coisa mantém os curiosos, longe."
"Sim - a credulidade que os faz dar ouvidos a historinhas
tolas."
A fechadura da porta foi aberta com facilidade - nosso
carcereiro tivera tempo de sobra para aprender com os
criminosos que hospedava.
"Belo trabalho", eu lhe disse. "És o homem certo para
penetrar a cripta. Nós te encontraremos lá."
"Acaso me tomas por algum tolo, Gage? Não vos deixarei até
ter certeza de que esse conde tem mesmo algo que valha a
pena procurar. Desde que nos apressemos..." Ele olhou por
sobre o ombro.
Assim, atravessamos juntos uma ante-sala e adentramos uma
câmara maior, sombria. Ali paramos, indecisos. Silano
andara ocupado.
A primeira coisa que atraía o olhar era uma mesa central.
Jazia nela um cão morto, com os lábios retorcidos num
rosnar congelado de dor, o pêlo borrado de tinta ou tosado
para deixar a pele à mostra. Alfinetes unidos por filamentos
de metal sobressaíam do cadáver.
"Mon Dieu, o que é aquilo?!", sussurrou Boniface.
"Uma experiência, acho eu", disse Astiza. "Silano está
mexendo com a idéia da ressurreição."
Nosso carcereiro fez o sinal-da-cruz.
As estantes estavam apinhadas de livros e rolos de texto que
Silano devia ter despachado do Egito. Havia também dúzias
e dúzias de frascos com conservante, e seu líquido, amarelo
como a bile, estava repleto de organismos: peixes de olhos
enormes e redondos, enguias viscosas, aves com o bico
enfiado na plumagem encharcada, mamíferos flutuantes e
partes de coisas que não identifiquei por completo. Havia
braços e pernas de bebês e cérebros, línguas e outros órgãos
de adultos. Num recipiente, olhos que se assemelhavam a
azeitonas ou bolas de gude e pareciam perturbadoramente
humanos. Via-se uma prateleira de caveiras e o esqueleto
montado de uma criatura grande que não consegui sequer
reconhecer. Das sombras, éramos observados por aves e
roedores empalhados ou mumificados, com olhos de vidro.
Perto da ponta, pintara-se no chão um pentagrama, inscrito
com estranhos símbolos do livro. Pergaminhos e placas com
símbolos variados pendiam das paredes, junto com velhos
mapas e diagramas das pirâmides. Avistei o padrão
cabalístico que víramos nos subterrâneos de Jerusalém, mais
outras mixórdias de números, traços e símbolos de fontes
arcanas, como uma cruz invertida e distorcida. Tudo era
iluminado por velas que já haviam queimado além da
metade - Silano saíra fazia algum tempo, mas era óbvio que
esperava voltar ainda naquela noite. Sobre uma segunda
mesa, um mar de folhas de papel, repletos com os caracteres
do Livro de Tot e as tentativas do conde de traduzir o texto
para o francês. Metade estava riscada e respingada de tinta.
Mais frascos continham líquidos perigosos, e havia caixas de
latão com muito pó químico. A sala tinha um cheiro
esquisito de tinta, conservante, limalha e certa podridão
subjacente.
"Este lugar é maligno", sussurrou Boniface. Sua fisionomia
era a de quem acaba de descobrir que fez um pacto com o
diabo.
"É por isso que precisamos tirar o livro de Silano",
respondeu Astiza. "Se estás com medo, vai agora", incitei-o.
"Não. Quero ver esse livro."
A maior parte do piso estava coberta por um enorme tapete
de lã, manchado e gasto, mas indubitavelmente deixado
pelos Bourbon. Ele terminava numa sacada que dava para
um espaço às escuras. Lá embaixo, o andar térreo era
pavimentado de pedra e tinha grandes portas duplas que se
abriam para fora, como um galpão de fazenda. Uma
carruagem e três carretas se comprimiam lá dentro, e as
carretas estavam repletas de caixotes. Silano, portanto, ainda
não desfizera toda a bagagem. Uma escada de madeira levava
aonde estávamos, explicando por que se escolhera aquele
apartamento específico - era o mais cômodo para a entrada e
saída de cargas.
Por exemplo, um esquife de madeira.
O caixão de Roseta estivera oculto nas sombras, mas agora
eu o via, encostado verticalmente à parede da sala. A luz
fraca, os traços rendilhados da decoração antiqüíssima
estavam cinzentos, mas já me eram familiares. Ainda assim,
havia algo de estranhamente repulsivo naquele esquife.
"É a múmia", disse eu. "Aposto que o conde espalhou a
notícia. Esse é o fantasma de que a sentinela estava falando,
a coisa que evita que os homens fiquem xeretando aqui."
"Há um defunto ali dentro?"
"Defunto de milhares de anos, Boniface. Dá uma espiada.
Um dia, ficaremos todos daquele jeito."
"Abrir aquilo?! Mas não mesmo! O guarda diz que a coisa
ganha vida!"
"Desconfio que não sem o livro, e ainda não o temos. A
chave para a fortuna que se encontra debaixo da Notre-
Dame pode estar naquele esquife. Já mandaste homens para
a execução, meu carcereiro. Estás com medo de uma caixa
de madeira?"
"Caixa, não - caixão."
"Que Silano trouxe lá do Egito sem problema nenhum."
Instigado, Boniface então juntou coragem, foi a passos largos
até lá e escancarou o tampo do esquife. E Omar, a múmia-
guardiã, de rosto quase negro, órbitas vazias e fechadas e
dentes arreganhados, inclinou-se lentamente para fora e caiu
nos braços dele.
Boniface deu um grito curto e agudo. Bandagens milenares
se agitaram junto a seu rosto, e poeira bolorenta caiu-lhe nos
olhos. Ele largou Omar como se a múmia estivesse pegando
fogo. "Está vivo!"
O problema de pagar salários de fome ao funcionalismo
público é que não se consegue atrair o que há de melhor.
"Acalma-te", disse eu. "Ele está bem morto, e isso há vários
milênios. Vês? Nós o chamamos de Omar."
O carcereiro tornou a fazer o sinal-da-cruz, não obstante a
animosidade jacobina à religião. "O que estamos fazendo é
errado. Ficaremos amaldiçoados por isso."
"Só se perdermos a coragem. Escuta, está ficando tarde.
Quanto risco és capaz de encarar? Vai para a catedral, dá um
jeito nos cadeados para entrar e esconde as nossas
ferramentas. Esconde-as e espera por nós."
"Mas quando vireis?"
"Tão logo consigamos o livro e respostas do conde. Quanto a
ti, já começa a bater de leve no piso da cripta - deve haver
uma parte oca em algum lugar.
Ele assentiu, recobrando parte da ganância. "E vós dois
prometeis vir?" "Só serei rico se eu for até lá, não é
verdade?"
Isso o satisfez, e, para nosso alívio, ele fugiu. Eu esperava
que fosse a última vez que o víamos, já que, até onde eu
sabia, não existia tesouro nenhum debaixo da Notre-Dame e
eu não tinha nenhuma intenção de ir até lá. Omar nos fizera
um favor.
Olhei com cautela para o cadáver - a múmia ficaria mesmo
imóvel, não?
"Temos de achar o livro depressa", disse eu a Astiza. O
negócio era terminar antes que o conde voltasse. "Tu ficas
com as estantes daquele lado, e eu, com as deste."
Percorremos os livros rapidamente, jogando-os no chão,
procurando em algum lugar atrás deles o rolo de texto de
Tot. Havia tomos sobre alquimia, feitiçaria, Zoroastro, Mitra,
a Atlântica e a Última Tule. Também álbuns de imagística
maçônica, desenhos de hieróglifos egípcios, a hierarquia dos
templários, teorias acerca dos rosa-cruzes e do mistério do
Graal. Silano tinha tratados sobre eletricidade, longevidade,
afrodisíacos, curas herbóreas, a origem das doenças e a idade
da Terra. A gama das especulações a que ele se dedicava era
infinita, mas não achamos o que buscávamos. "Talvez ele
tenha levado o livro consigo", aventei.
"Não se atreveria fazê-lo, não nas ruas de Paris. Ele o
escondeu onde não cogitaríamos - ou não ousaríamos -
olhar."
Ousar olhar? Em Roseta, Omar servira de sentinela. Pensei
na pobre múmia, tombada com o carcomido nariz no chão.
Seria possível?
Eu a virei de frente. Omar tinha uma fresta nas bandagens, e
reparei que o tronco era oco, tendo sido removidos os
órgãos vitais. Com uma careta de repugnância, enfiei a mão
lá dentro.
E senti o livro, liso e bem enrolado. Esconderijo engenhoso.
"Ah, então o rato descobriu o queijo", disse uma voz da
porta dos aposentos. Voltei-me, desolado por termos sido
pegos de surpresa. Era Alessandro Silano, que vinha a passos
largos em nossa direção. Estava aprumado e jovem, tendo
remoçado anos, e um espadim lhe tremeluzia na mão, para a
frente e para trás, enquanto avançava. O coxear sumira, e o
olhar do conde era homicida. "És um homem difícil de
matar, Ethan Gage, e por isso não repetirei o engano
negligente que cometi no Egito. Embora eu houvesse
desejado desencavar o teu corpo mumificado e pô-lo para
queimar no fogo de meu futuro palácio, também nutri a
esperança de que um dia eu tivesse a chance que tenho
agora - a chance de trespassar a vós dois, coisa que farei
agora mesmo."
- 28 -
Tanto eu quanto Astiza estávamos desarmados. Ela, na falta
de coisa melhor, pegou uma caveira. Motivado por pouco
mais que a vontade de segurar o que viéramos buscar,
levantei e agarrei Omar, com seu eterno sorriso arreganhado
e o Livro de Tot ainda dentro de si. A múmia era leve e
frágil. As bandagens pareciam papel velho, ásperas e
esfarelentas.
"Que adequado que estejamos de volta a Paris, onde tudo
começou, não é mesmo?", disse o conde. Seu espadim se
assemelhava a um varinha, só que letal, fazendo
movimentos bruscos como a língua de uma cobra. Com a
mão livre, Silano desfez o laço no pescoço para deixar a capa
cair. "Já te perguntaste, Gage, quão diferente seria a tua vida
se simplesmente me tivesses vendido o medalhão naquela
primeira noite, aqui em Paris?" "Claro. Eu não teria
conhecido Astiza nem a tirado de ti."
Silano lançou um rápido olhar para ela, cujo braço estava
preparado para arremessar a caveira. "Pensei melhor, e agora
a terei de volta para fazer o que eu quiser - logo, logo."
Astiza então jogou a caveira. Ele a desviou para longe com o
cabo do espadim. Os lábios do conde sorriram de sarcasmo,
a caveira fez estrépito ao bater no piso - e Silano continuava
a vir em minha direção, passando pelas mesas.
O conde dava mesmo a impressão de estar mais moço - o
livro fizera alguma coisa para ele -, mas era uma juventude
estranha, como se a pele tivesse sido esticada. Ela estava tesa
e amarelada, e os olhos, embora brilhantes, eram nublados
pela fatiga. Parecia um homem que estava sem dormir havia
semanas - e que talvez nunca mais dormisse. Por isso, seu
olhar exibia um quê de insano.
Havia algo terrivelmente errado com aquele rolo de texto
que descobríramos.
"A tua sala de estudos fede como o inferno, Alessandro",
disse eu. "De qual deus és aprendiz?"
"E simplesmente uma antevisão do lugar para onde estás
indo, Gage. E indo agora mesmo!" Nisto, ele arremeteu.
E eu ergui meu macabro escudo. Omar foi perfurado, mas a
múmia deteve a ponta do espadim. Senti remorso por fazer
o velho passar por tudo aquilo, mas ele já não ligava mais,
não era mesmo? Empurrei a múmia contra Silano, torcendo
o punho do conde. Porém, nesse momento o espadim
atravessou Omar por completo e cortou meu flanco de
raspão. Diabos, como doeu! O espadim era como uma
navalha.
Silano xingou, girou o braço livre (ele recuperara a antiga
flexibilidade) e me acertou um murro, jogando-me para trás
e afastando de mim, às turras, o cadáver egípcio. Cambaleou
para um lado, com o espadim ainda preso, mas tateou dentro
da cavidade da múmia e, triunfante, arrancou de lá o rolo.
Agora eu não tinha mais escudo nenhum. Silano levantou o
livro acima da cabeça, desafiando-me a dar o bote para que
pudesse espetar-me. Astiza se agachara, esperando uma
oportunidade.
Olhei freneticamente em volta. O esquife! Ele já estava
encostado na vertical, de maneira que o agarrei e forcejei
para virar aquela caixa desajeitada e usá-la como proteção.
Silano, que já estava com a espada livre (Omar, coitado,
quase se partira ao meio), enfiou o livro debaixo da camisa e
investiu contra mim outra vez. Aparei o golpe com o
esquife, deixando o espadim perfurar a madeira antiga, mas
torcendo aquele trambolho, atirando Silano para trás e
quebrando a lâmina ao meio. O conde chutou raivosamente
o esquife, arrebentando o lenho decrépito, e, quando aquilo
caiu aos pedaços, soltou-se algo que estivera preso lá dentro.
Meu fuzil!
Mergulhei para pegá-lo, mas, quando estendi o braço, o
espadim quebrado cortou-me os nós dos dedos como uma
picada de cobra, tão dolorosamente que não consegui
segurar o fuzil. Rolei para longe enquanto Silano chutava
para o lado a madeira estourada, tentando chegar até mim.
Ele sacara uma pistola, e seu rosto se contorcia de ira e
aversão. Joguei-me de costas contra a estante justamente
quando a pistola disparou, e senti o vento da bala a passar.
Ela atingiu um dos recipientes de vidro na extremidade da
sala, e o recipiente se estilhaçou. O líquido se esparramou
com ruído junto à sacada, e uma coisa pálida e medonha
deslizou no chão. Surgiu um cheiro tóxico, um fedor de
vapores combustíveis, que se misturou ao da pólvora.
"Maldito sejas!" Silano recarregava atrapalhadamente a
pistola.
E então o velho Ben veio em meu socorro. "Energia e
persistência tudo conquistam", relembrei. Energia!
Astiza se encontrava debaixo de uma das mesas, rastejando-
se até o conde. Tirei o casaco e o atirei em Silano para
distraí-lo. Em seguida, arranquei a camisa. Silano me olhou
como se eu fosse um lunático, mas eu precisava de pele nua
e seca - não existe nada melhor para criar fricção. Dei dois
passos e mergulhei rumo ao vidro que se quebrara, batendo
no tapete de lã tal qual um nadador e escorregando sobre o
torso. A ardência da abrasão me fez ranger os dentes.
Vede que a eletricidade é gerada por fricção e que o sal em
nosso sangue nos transforma em baterias temporárias. Ao
deslizar até a ponta da sala, acumulei carga elétrica.
O recipiente quebrado tinha base metálica. Enquanto eu
escorregava pelo tapete, estiquei o braço e o dedo, como o
Deus de Michelangelo a quase tocar Adão. E, quando me
aproximei, a energia que se acumulara em mim saltou, com
um choque, para o metal. Produziu-se uma faísca, e a sala
explodiu.
Os vapores do preparado de bruxo de Silano se tornaram
uma bola de fogo, expandindo-se num átimo sobre meu
corpo encolhido, indo em direção ao conde e Astiza e
descendo para a carruagem, as carretas e os caixotes lá
embaixo, onde o líquido conservante já pingara. A explosão
fez os papéis sobre a mesa remoinharem no ar,
chamuscando alguns, enquanto o depósito das carretas
pegava fogo. Levantei-me com muita dificuldade, tendo o
cabelo crestado e os flancos a queimar (um deles pelo corte
do espadim, o outro pela escorregada no tapete), e vi o fuzil.
Eu tinha líquido conservante nas roupas que me restavam, e
apaguei a tapas um comecinho de incêndio nos calções.
Uma névoa baça e fumarenta encheu a sala. Vi que Silano
caíra, mas agora ele também forcejava para colocar-se em
pé, parecendo atordoado, porém tateando outra vez em
busca da pistola. Foi quando Astiza se levantou por trás dele
e lhe enrolou alguma coisa no pescoço, para esganá-lo.
Era parte das bandagens de Omar!
Rastejei para meu fuzil.
Silano, debatendo-se, ergueu-a até que Astiza ficou suspensa
no ar, mas ela se aferrou às costas dele. Enquanto os dois
dançavam desajeitadamente, a pavorosa múmia pulava com
eles, num grotesco ménage à trois. Cheguei ao fuzil e
disparei, mas houve apenas um estalido seco.
"Ethan, depressa!"
O chifre de pólvora e a bolsa de balas estavam lá, e comecei
a carregar a arma, amaldiçoando pela primeira vez o
trabalhoso ato de socar a munição no cano.
Pólvora, bucha, bala. Minha mão tremia. Astiza e Silano
giraram junto a mim. O conde estava ficando vermelho pela
asfixia, mas segurava Astiza pelos cabelos e se contorcia para
pegá-la. Soquei a munição com a vareta... maldição! Astiza e
Silano bateram com força contra o corrimão da sacada,
fazendo parte dele despencar. O fogo subia lá de baixo. A
múmia, presa ao par, continuava sua dança. O conde enfim
conseguiu colocar Astiza à sua frente, escudando-se nela ao
ver meu fuzil, e lutou para levantar e apontar a pistola. A
fumaça ficou mais densa no teto da sala. Meu tiro precisava
ser perfeito! Silano removera a bandagem do pescoço e
agora estava estrangulando Astiza com ela. Ergueu a pistola.
Retirei a vareta do cano às pressas, coloquei uma pitada de
pólvora no mecanismo de disparo e comecei a apontar.
Silano atirou, mas sua mira foi arruinada por Astiza, que se
retorcia por ser lançada às chamas.
"Ele vai me queimar!"
Atirei.
A bala acertou-lhe a garganta.
O berro de Silano foi um gargarejo sanguinolento. Seus
olhos se arregalaram de espanto e dor.
E então ele desabou pelo corrimão quebrado, rumo às
chamas abaixo, levando minha amada consigo.
"Astiza!"
Era uma reprise da queda do balão. Astiza deu um grito e se
foi.
Corri até a ponta da sala e perscrutei lá embaixo, já na
expectativa de ver Astiza em chamas. Mas não: a múmia,
com a caixa torácica e os músculos ressecados ainda firmes
após milênios, ficara presa. Astiza se aferrara às bandagens
de linho, de onde agora pendia, com os pés a debater-se
sobre o incêndio.
O conde Silano ia sumindo no fogaréu, contorcendo-se na
pira improvisada. O Livro de Tot estava junto a seu peito.
Ao inferno com o maldito livro!
Agarrei e puxei as bandagens, peguei o braço de Astiza e a
alcei - não ia deixá-la despencar com Silano outra vez!
Quando a arrastei pela beira da sacada, Omar soltou-se e
caiu, transformando-se em tocha quando o pano foi atingido
pelas chamas. A múmia crepitou ao queimar com o amo.
Olhei para lá. Os braços e as pernas de Omar, quebrados,
moviam-se como se ele agonizasse! Estaria a múmia viva de
algum modo? Ou seria aquilo uma ilusão criada pelo calor?
Omar fora não uma maldição, mas um salvador. Finalmente,
Tot sorrira para nós. E o livro? Enquanto as roupas de Silano
se incineravam, vi o rolo torcer-se e espiralar-se no peito
dissolvente do conde. As chamas se avivavam à medida que
a carne de Silano borbulhava, e recuei, repugnado.
Astiza e eu nos agarramos um ao outro. Ouviram-se sinos de
igreja, brados, o fragor de carroções: os bombeiros de Paris
logo estariam ali. Quando chegassem, os segredos que
homens haviam cobiçado durante milhares de anos já teriam
virado cinza.
"Consegues andar?", perguntei a Astiza. "Não temos muito
tempo - precisamos fugir."
"E o livro?!"
"Foi-se com Silano."
Ela estava soluçando. Pelo quê, disso eu não tinha certeza.
Ouvi as portas de carruagem serem abertas e a água ser
bombeada lá embaixo.
Fomos lenta e claudicantemente para a porta pela qual
entráramos. Estávamos chamuscados e ensangüentados e
pisávamos sobre uma bagunça de vidro, fluido, osso, livro e
papel estragado.
O corredor estava enfumaçado. Por um instante, tive a
esperança de que o incêndio afastasse qualquer perseguidor
até que conseguíssemos escapar.
Não seria assim: um pelotão de gendarmes já vinha
pesadamente pelo corredor.
"É ele! É aquele ali!" Tratava-se de uma voz irritantemente
familiar, que eu não escutava havia um ano e meio. "Ele me
deve o aluguel!"
Madame Durrell! Minha ex-senhoria em Paris, de quem eu
fugira em circunstâncias vexatórias, era a ruiva misteriosa
que me assombrava desde que eu voltara para a cidade. Ela
nunca pusera fé em meu caráter e, quando nos
despedíramos, acusara-me de tentativa de estupro. Eu o
negaria, mas, francamente, nem era preciso, pois bastava
olhar para madame Durrell. As pirâmides são mais novas que
ela - e estão em melhor estado.
"Será que nunca me verei livre de vós?", disse eu, gemendo.
"Estarás livre quando pagares o que me deves!"
"Os credores têm memória melhor que a dos devedores",
gostava de dizer Benjamin Franklin.
Por experiência própria, eu sabia que ele tinha razão. "E
tendes me seguido como um dos secretas de Fouché?"
"Eu te avistei na carroça da prisão, que é o teu lugar, mas já
estava convencida de que sairias de algum jeito - e para
aprontar alguma! Oui, podes ter certeza de que fiquei de
olho na Prisão do Templo! Quando te vi entrar no palácio
com aquele carcereiro corrupto, corri a pedir ajuda. O conde
Silano disse que ele mesmo cuidaria de ti! Mas, quando
voltei, o lugar inteiro estava em chamas!" Ela se virou para
os soldados. "Isto é típico do americano. Ele vive como um
selvagem daqueles sertões - experimentai tentar fazê-lo
pagar uma dívida!"
Suspirei. "Madame Durrell, receio que eu haja perdido tudo
outra vez. Não tenho condições de pagar-vos, não
importando quantos policiais tragais."
Ela forçou a vista, desconfiada. "E essa arma aí? Não é aquela
que furtaste do meu apartamento, aquela com que tentaste
atirar em mim?"
"Eu não a furtei, ela era minha, e atirei na fechadura, não em
vós. Nem sequer é o mesmo fu..." Mas Astiza pôs a mão em
meu braço e olhou para além de minha antiga senhoria.
Bonaparte se aproximava pelo corredor com um enxame de
generais e auxiliares. Seus olhos cinzentos estavam gelados,
e sua fisionomia, irada. A última ocasião em que eu o vira
tão furioso foi quando ele soube das infidelidades de Josefina
e aniquilou os mamelucos na Batalha das Pirâmides.
Preparei-me para o pior. O domínio que Bonaparte tinha das
broncas militares recheadas de imprecações era legendário.
Mas, após ter feito carranca, ele balançou negativamente a
cabeça, exibindo um espanto relutante. "Eu devia ter
adivinhado... Será possível, Gage, que tenhas mesmo
descoberto o segredo da imortalidade?
"Sou apenas persistente."
"Então me segues por duas mil milhas, pões fogo num
palácio régio e fazes que meus bombeiros encontrem dois
corpos nas cinzas?"
"Garanto-vos que estávamos impedindo que acontecesse
coisa pior."
"General, ele me deve aluguel!", disse madame Durrell,
intrometendo-se.
"Madame, eu preferiria que vos referísseis a mim como
primeiro-cônsul, cargo para o qual fui eleito às duas horas
desta manhã. E quanto ele vos deve?"
Dava para ver a feitura dos cálculos na cabeça da senhoria,
que ponderava até onde poderia inflacionar o verdadeiro
total. "Cem libras francesas", tentou por fim. Quando
ninguém explodiu em face daquele absurdo, ela acrescentou:
"Mais cinqüenta de juros".
"Madame, fostes vós quem soou o alarme?"
Ela se inchou de orgulho. "Eu mesma."
"Nesse caso, outras cinqüenta libras como recompensa - um
presente do governo." Ele se voltou. "Berthier, paga
duzentas libras a esta brava mulher."
"Sim, meu general. Quero dizer, cônsul."
Madame Durrell não cabia em si de contentamento.
"Mas não deveis jamais dizer palavra sobre o que aconteceu
aqui", disse-lhe Bonaparte, em tom de sermão. "Isso diz
respeito à segurança da França, e os destinos de nossa nação
dependem de vossa discrição e coragem. Consegues arcar
com tal ônus, madame?"
"Por duzentas libras, eu consigo."
"Excelente. Sois uma verdadeira patriota." O auxiliar a puxou
para longe, a fim de contarem o dinheiro, e o novo
governante da França se voltou outra vez para mim. "Os
corpos queimaram de modo tal que não há como
reconhecê-los. Podes identificá-los para mim, Gage?"
"Um é o conde Silano. Parece que eu e ele não pudemos
renovar sociedade."
"Entendo." Napoleão pôs-se a bater o pé de leve no chão. "E
o outro?" "Um velho amigo egípcio, chamado Omar.
Acredito que ele tenha salvado nossas vidas."
Bonaparte suspirou. "E o livro?"
"Temo que tenha sido vítima do mesmo incêndio."
"Foi, é? Revistai-os", ordenou a seus homens. E eles o
fizeram, grosseiramente, mas não havia nada para acharem.
Um soldado tornou a confiscar meu fuzil.
"Então me traíste até o final, Gage." Franzindo o cenho
como um senhorio ao ver uma goteira, ele perscrutou a
fumaça, que começava a dissipar-se. "Bem, não tenho mais
necessidade do livro, já que agora tenho a França. Deverias
olhar bem o que farei com ela."
"Tenho certeza de que não ficareis na inação."
"Lamentavelmente, teu fuzilamento já está mais do que
atrasado, e a França ficará mais segura quando ele acontecer.
Tendo deixado essa providência a cargo de outros antes
desta noite, sem sucesso algum, penso que cuidarei dela eu
mesmo. Para isso, o Jardim das Tulherias é um lugar tão bom
quanto qualquer outro."
"Napoleão!", rogou Astiza.
"Não sentirás a falta dele, pois vou fuzilar também a ti - e ao
carcereiro dos dois, se eu conseguir encontrá-lo."
"Acho que ele está procurando por um tesouro na cripta da
Notre-Dame", disse eu. "Não o culpeis. É um simplório com
imaginação fértil, o único carcereiro de quem já gostei."
"Aquele idiota também deixou Sidney Smith escapar da
Prisão do Templo", resmungou Napoleão, muito irritado. "O
mesmo Smith que depois precisei enfrentar em Acre."
"E verdade, general. Mas as histórias de Boniface nos
estimularam a continuar procurando pelo vosso livro."
"Neste caso, pouparei o carcereiro, eu vos fuzilarei duas
vezes, para compensar."
Fomos conduzidos ao lado de fora. Tufos de fumaça se
elevavam no céu cinzento de antes da alvorada. Mais uma
vez, eu estava muito arrebentado - exausto, cortado por
espadim, ralado pela necessidade de produzir fricção, com o
sono muito atrasado. Se tenho mesmo uma sorte do diabo,
então eu sinto muita pena dele.
Bonaparte nos fez ficar de pé contra um muro decorativo no
jardim. O outono já fizera sumir a maioria das flores. Seria
ali, numa agourenta manhã de novembro, que minha
história deveria terminar: Napoleão senhor de tudo, o livro
perdido, meu amor condenado. Estávamos fatigados demais
até para implorar. Apontaram-se e prepararam-se os
mosquetes.
Lá vou eu outra vez, pensei.
E então veio uma ordem abrupta: "Esperai".
Eu fechara os olhos (em Jafa, já encarara bocas de mosquete
mais que suficientes) e ouvi o caminhar ruidoso de botas no
cascalhinho quando Napoleão veio até nós. O que era agora?
Abri cautelosamente os olhos.
"Estás dizendo a verdade sobre o livro, não, Gage?"
"Ele não existe mais, general. Quero dizer, primeiro-cônsul.
Pegou fogo."
"Ele funcionava, se queres saber. Parte dele, pelo menos. É
possível enfeitiçar homens e fazê-los concordar com coisas
extraordinárias. O que fizeste foi um desperdício
vergonhoso, Américain."
"Homem nenhum deveria ser capaz de lançar feitiços sobre
outro."
"Eu te desprezo, Gage, mas fico bem impressionado contigo.
És um sobrevivente, como eu. Um oportunista, como eu. E,
a teu modo esquisito, até mesmo um intelectual, como eu.
Não preciso de magia quando tenho o Estado. Assim, o que
farias se eu te deixasse ir?"
"Deixar-me ir? Vós me desculpareis se ainda não estou
conseguindo pensar bem nisso."
"Minha posição se modificou. Eu sou a França. Não posso
ceder a vinganças mesquinhas - preciso pensar em milhões.
Ano que vem, haverá eleição nos Estados Unidos, e
necessitarei de ajuda para melhorar as relações com o teu
país. Estás ciente do fato de que as nossas duas nações vêm
duelando no mar?"
"Que infelicidade."
"Gage, preciso de um enviado às Américas que pense e saiba
desembaraçar-se com rapidez. A França possui interesses
nas Antilhas e na Louisiana, e ainda temos esperança de
recuperar o Canadá. Há estranhos relatos de artefatos no
Oeste que talvez interessem a um pioneiro como tu. As
nossas nações podem ser inimigas, ou podem ajudar-se
mutuamente, como fizemos durante a vossa revolução. Tu
me conheces tão bem quanto qualquer outro. Quero que vás
para a vossa nova capital, aquela que denominam
Washington, ou Columbia, e examines algumas idéias para
mim."
Olhei para a fileira de carrascos atrás dele. "Ser um enviado?"
"Tal qual Franklin, explicando uma nação à outra."
Os soldados pousaram a coronha dos mosquetes no chão.
"Sem dúvida, estou encantado com essa perspectiva." Eu
tossi.
"Desistiremos da acusação de homicídio contra ti e
relevaremos este fiasco entre ti e Silano. Homem fascinante,
mas nunca confiei nele. Nunca."
Não era o que eu lembrava, mas há limite para o que se pode
discutir com Napoleão. Senti a vida retornar a minhas
extremidades. "E?" Fiz um gesto com a cabeça em direção a
Astiza.
"Sim, sim, estás tão enfeitiçado por ela quanto eu por minha
Josefina. Qualquer um vê isso, e que Deus tenha piedade de
nós! Vai com Astiza, vê o que consegues aprender e
descobrir e lembra-te: tu me deves duzentas de nossas
libras!"
Sorri com tanta afabilidade quanto possível. "Se eu puder ter
o meu fuzil de volta."
"Feito. Mas acho melhor confiscar a tua munição até que eu
esteja bem fora de alcance." Quando me restituíram o fuzil
(descarregado), Napoleão se voltou e contemplou o palácio.
"O meu governo começará no Luxembourg, é claro. Mas
estou disposto a fazer daqui o meu lar. O teu incêndio é o
pretexto para começar a reforma - esta manhã mesmo!"
"Que bom que eu pude ser de alguma ajuda."
"Percebes que, já que o teu caráter é tão vazio, não vale a
pena gastar as balas para matar-te?"
"Penso exatamente assim."
"E que a França e os Estados Unidos compartilham os
mesmos interesses contra a pérfida Albion?"
"É, a Inglaterra pode ser bem arrogante às vezes."
"Tampouco confio em ti, Gage. És um velhaco. Mas trabalha
comigo que alguma coisa poderá resultar disso - ainda não
fizeste fortuna, não é mesmo?"
"Estou bem ciente disso, primeiro-cônsul. Depois de quase
dois anos de aventura, não tenho um tostão."
"Eu sou generoso com os amigos. Pois bem, é isso. Meus
auxiliares acharão um hotel para ti, longe daquela senhoria
medonha - mon Dieu, que medusa! Vou começar dando-te
um pequeno estipêndio e confiar que não vás arriscá-lo nas
cartas. Faremos algumas deduções até que eu receba minhas
duzentas libras, é claro."
Suspirei. "É claro."
"E quanto a ti, moça?", perguntou ele a Astiza. "Estás pronta
para conhecer a América?"
Ela parecera preocupada enquanto Napoleão e eu
conversávamos. Agora, hesitou e então balançou
negativamente a cabeça, com vagar e tristeza. "Não, cônsul."
"Não?"
"Nestes dias longos e sombrios, fiz um exame de consciência
e me dei conta de que o meu lugar é o Egito, tanto quanto
não o é para Ethan. Vosso país é belo, mas frio, e as florestas
daqui ensombrecem a alma. As terras agrestes da América
me seriam ainda piores. Este não é o meu lugar - e não creio
que já tenhamos descoberto os derradeiros vestígios de Tot
ou dos templários. Enviai Ethan em vossa missão, mas
compreendei por que preciso voltar para o Cairo e o Institut
d'Egypte, com vossos savants."
"Não posso garantir tua segurança no Egito - não sei se
conseguirei resgatar meu exército lá."
"Isis tem uma função para mim, e não é do outro lado do
oceano." Ela se virou. "Sinto muito, Ethan. Eu te amo, tanto
quanto tens me amado. Mas minha busca ainda não está de
todo concluída. Ainda não chegou a hora de ficarmos
juntos. Ela talvez ainda chegue... Não: ela chegará."
Com a breca! Será que eu nunca posso dar sorte com as
mulheres? Atravesso o Inferno de Dante, consigo
finalmente eliminar o ex-amante dela, arrumo um emprego
respeitável no novo governo da França - e agora ela quer ir
embora? Que insanidade!
Mas seria mesmo? Eu ainda não estava com nenhuma
vontade de estabelecer casa, e realmente não fazia idéia de
onde aquela nova aventura poderia levar-me. Astiza
tampouco era o tipo de mulher que me seguiria docilmente.
E eu estava muito interessado em saber mais sobre o antigo
Egito, de modo que ela poderia já ir tomando aquele
caminho enquanto eu cumpria as tarefas de Napoleão na
América. Alguns almoços diplomáticos aqui, uma rápida
olhada em uma ou duas ilhas açucareiras ali, e eu estaria livre
do homem e pronto para planejar nosso futuro.
"Não vais sentir minha falta?", arrisquei perguntar.
Astiza deu um sorriso triste. "Ah, vou. A vida é pesar. Mas
ela também é destino, Ethan, e esta suspensão de nossa
execução é sinal de que devemos abrir a próxima porta e
seguir o próximo caminho."
"Como é que vou saber se nos veremos outra vez?"
Ela deu outro sorriso, triste, pesaroso, mas doce, e me beijou
na face. E então sussurrou: "Tu podes apostar nisso, Ethan
Gage. Tu podes apostar".
— Nota Histórica —
Se de fato aprendemos mais com os erros que com os
acertos, então a campanha de Bonaparte na Terra Santa, em
1799, foi mesmo educativa ao extremo. Em Acre, os ataques
de Napoleão foram fruto de impaciência e se revelaram mal
preparados. O general francês provocou a hostilidade da
maioria da população local. O saque e o subseqüente
massacre dos prisioneiros em Jafa atingiriam a reputação dele
pelo resto da vida. Também não se mostraram muito
melhores os relatos de que Napoleão era culpado de praticar
a eutanásia entre suas próprias tropas, ao distribuir ópio e
veneno aos moribundos da peste. Ele não conheceria outro
revés político-militar tão embaraçoso até a invasão da Rússia,
em 1812.
E ainda assim, ao encerrar-se o ano de 1799, o corso não
apenas sobrevivera a uma debacle militar, mas também
manipulara tão habilmente a opinião pública francesa que se
viu no cargo de primeiro-cônsul de sua pátria adotiva, a
caminho de tornar-se imperador. Os políticos modernos que
parecem revestidos de Teflon (no sentido de que nada de
realmente negativo se cola a eles) nem se comparam a
Napoleão Bonaparte em lábia e astúcia. Como foi que ele
conseguiu tal reviravolta após um desastre como aquele? É
esse o mistério manhoso que está no cerne deste livro.
Os leitores de ficção que têm curiosidade por tais coisas
gostarão de saber que grande parte deste romance é fato. A
tragédia de Jafa, a Batalha do Monte Tabor e o cerco de Acre
ocorreram em larga medida como se descreve, embora eu
tenha tomado liberdades com os detalhes. Ethan Gage e sua
corrente de metal eletrificado constituem invenções, do
mesmo modo que o torpedo-aríete de Napoleão. Mas sir
Sidney Smith, Antoine de Phélippeaux, Haim Farhi e
Djezzar são personagens históricas. (Na realidade,
Phélippeaux morreu de exaustão ou insolação durante o
cerco, e não a baionetadas.) Acre e Jafa (que hoje é subúrbio
de Tel Aviv) conservam parte da atmosfera arquitetônica de
1799, e ali não fica difícil imaginar a estada de Gage na Terra
Santa. Ainda que a estratégica torre e as muralhas do cerco
de Acre não existam mais (em razão dos pesados danos
sofridos por elas, Djezzar as substituiu por novas depois da
batalha), sobra ar romanesco quando caminhamos pelas
fortificações dessa linda localidade mediterrânea. À leste,
uma rodovia para a Galiléia passa junto ao pé do morrote em
que Napoleão instalou seu quartel-general durante o cerco.
Aos leitores interessados na história da campanha síria de
Bonaparte, eu recomendo Nathan Shur, Napoleón in the
Holy Lanã, e J. Christopher Herold, Bonaparte in Egypt. As
evocativas aquarelas documentais pintadas em 1839 pelo
artista inglês David Roberts estão reunidas em diversos livros
de arte.
Muito embora eu tenha imaginado algumas das galerias
subterrâneas do Monte do Templo (uma necessidade, pois
mesmo espaços que antes puderam ser visitados durante
longo tempo, como os Estábulos de Salomão, foram
fechados à visitação pelas autoridades muçulmanas),
Jerusalém está repleta de grutas e túneis. Entre esses locais,
inclui-se um escuro canal subterrâneo que sai do mais baixo
dos tanques de Siloé e que este autor, com água pela altura
das coxas, percorreu zelosamente para captar um quê da
aventura subterrânea que descrevo. Existem portões
subterrâneos para túneis, durante longo tempo secretos,
debaixo do Monte do Templo, e pode-se ver pelo menos um
como turista. O monte está interditado aos arqueólogos por
medo de que descobertas desencadeiem confrontos
religiosos. No passado, pesquisadores já foram postos para
correr de lá por multidões furiosas - mas não é justamente
isso que dá embasamento à idéia de que ainda possa haver
revelações ali? Só não apareça no Monte do Templo com
uma pá: você poderá provocar uma guerra santa.
Alguns leitores perceberão que a "Cidade dos Espíritos" são
na realidade as deslumbrantes ruínas jordanianas de Petra,
cidade que foi construída pelos árabes nabateus pouco antes
de Cristo e acabou sendo administrada pelos romanos. A
época da visita de Gage, tratava-se mesmo de uma cidade
perdida, a qual deixaria pasmados os primeiros europeus a
visitá-la, no século XIX. Não obstante eu ter tomado algumas
liberdades evidentes, muito do que descrevo está lá. Há de
fato um Lugar do Alto Sacrifício.
Em Paris, o Palácio das Tulherias foi iniciado em 1564 e
destruído pelo fogo em 1871. Serviu de residência oficial
para Napoleão e Josefina a partir de fevereiro de 1800, três
meses após o general ter tomado o poder. A Prisão do
Templo também existia, mas foi posteriormente demolida.
E, sim, construíram a Catedral de Notre-Dame no local de
um templo romano dedicado a Isis.
As narrativas tradicionais acerca dos templários, o
simbolismo da cabala e a idéia do Livro de Tot são reais.
Sobre Tot, encontram-se mais informações em As pirâmides
de Napoleão, o romance que antecede este. Minha
afirmação de que o Livro de Tot foi descoberto pelos
templários é coisa que inventei - mas qual a causa da
espantosamente rápida e avassaladora ascensão daquela
ordem ao poder depois que seus cavaleiros fizeram
escavações sob o Monte do Templo? O que, afinal, eles
acharam ali? Onde está a Arca da Aliança? Que segredos
adquiriram as sociedades antigas? Sempre há mais mistério.
Devo sarcasticamente observar que pode ser surpresa para o
Museu Britânico o fato de que a Pedra de Roseta, exposta
com orgulho ali desde que as tropas britânicas a confiscaram
aos franceses (1801), está desprovida da parte superior, a
mais importante. Após lerem este livro, os conservadores
daquele museu talvez queiram colocar um pequeno aviso na
caixa de vidro que protege a pedra, desculpando-se pela
omissão e garantindo que estão se envidando todos os
esforços para localizar o fragmento que um americano
renegado mandou pelos ares em 1799. Mas trata-se apenas
de sugestão, assim como a idéia de que os arqueólogos
fiquem de olho nos outros trinta e seis mil, quinhentos e
trinta e quatro Livros de Tot.
Isso, é claro, se eles forem dignos de achá-los.
— Agradecimentos —
Para elaborar esta narrativa, o autor se baseou na erudição
conscienciosa de uma multidão de historiadores, bem como
no evocativo trabalho de conservação arqueológica que faz
de Israel e da Jordânia lugares tão gratificantes para quem os
visita. Em especial, agradeço a Paule Rakower e ao professor
Dan Bahat, meus guias em Israel, e a Mohammed Helalat,
meu guia na Jordânia. Diane Johnson, da Western
Washington University, providenciou o latim do epigrama
dos templários, e Nancy Pearl trouxe à minha atenção a
história de que Napoleão rasgava as páginas dos romances e
as passava a seus oficiais. Na HarperCollins, meus especiais
agradecimentos a meu editor, Rakesh Satyal; à copidesque
Martha Cameron; ao editor de produção David Koral; ao
assistente editorial Rob Crawford; à agente de comunicação
Heather Drucker, pelo trabalho duro que realizou para
divulgar o livro; e aos muitos outros que tornaram a
publicação possível. Minhas máximas congratulações, é
claro, a Andrew Stuart, o agente literário que me mantém
no mercado. E, como sempre, obrigado a Holly, minha
primeira leitora.
Galvani pensou que este fenômeno de contração muscular era devido a uma
"eletricidade animal". Opinião contrária teve Alessandro Volta, para quem uma fonte de
eletricidade era o conjunto das duas peças de metal. Foi esta teoria que lhe permitiu
construir a pilha de Volta. As observações de Galvani conduziram muitos fisiologistas a
debruçarem-se sobre as relações entre eletricidade e fisiologia (eletrofisiologia), à custa
do sacrifício de milhões de rãs. Em 1786, Luigi Galvani fez experiências com pernas de
rãs. Unindo dois metais diferentes de um lado e tocando com as outras extremidades em
certos pontos do corpo da rã, as pernas agitam-se bruscamente como se o animal
estivesse vivo.
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