segunda-feira, 10 de outubro de 2011 By: Fred

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O Sequestro
Patricia Potter
Clássicos da Literatura Romântica
Copyright (c) 1991 by Patrícia Potter
Publicado originalmente em 1991 pela
Harlequin Books, Toronto, Canadá.
Título original: The abduction
Tradução: Flora Sellers
Copyright para a língua portuguesa: 1992
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 - 3º andar
CEP 01452 - São Paulo - SP - Brasil
Caixa Postal 2372
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.
Impressão e acabamento no Círculo do Livro S.A.
PROJETO REVISORAS
Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.
Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.
Disponibilização do livro: Rosangela
Digitalização: Palas Atenéia
Revisão: Cris Andrade
FRONTEIRA DA ESCÓCIA, 1550
Um estranho sentimento assaltou Elsbeth, a chefe do clã escocês. O prisioneiro tinha os olhos cinzentos como o céu em dia de chuva, o rosto atraente e altivo como
se nada pudesse atingi-lo. Pela primeira vez desde que se arrojara neste ousado plano de vingança contra os ingleses, perguntava-se se o seqüestro do conde Alexander
Carey não acabaria revertendo numa perigosa armadilha.
O conde refreava a imensa raiva que o consumia. Mal havia chegado a seu condado com a intenção de promover a paz na fronteira e via-se presa dos malditos escoceses.
E liderados por uma mulher! Bela, fria, calculista. Apesar do desespero, uma idéia delineou-se em sua mente. Essa mulher linda seria tão fria na cama com um homem?
Ele obteria a resposta, e sua vingança!
Prólogo
Fronteira Escócia-Inglaterra, 1552
O ar pairava tenso e sombrio entre os dois homens, que eram há um tempo aliados e inimigos.
E, por se conhecerem bem, um não confiava no outro, embora estivessem unidos por um mesmo empreendimento, de interesse mútuo. Eram oportunistas, um consciente
dos pendores traiçoeiros do outro. Dentro de um mês, talvez um ano, estariam certamente combatendo em campos opostos.
Mas por ora ambos tinham um único objetivo: livrar-se de quem se interpunha entre eles e títulos, terras e poder. De comum acordo, haviam chegado à conclusão
de que a melhor forma de obter tudo isso seria fazer com que dois grandes obstáculos se tornassem inimigos entre si.
Na calada da noite escura, os dois cavalgavam em silêncio, sem a companhia de servos nem criados. Não tinham dúvida de que seriam mortos sem piedade caso fossem
descobertos.
Mas achavam que valia a pena correr esse risco.
As patas dos cavalos enterravam-se com um ruído abafado na terra úmida. A densa neblina protegia-os com seu manto esfumaçado, tornando-os quase invisíveis.
- Cumpri minha parte - disse um deles. - Agora quero ação de você, e não palavras vazias.
- Nada posso fazer sem o consentimento dela - foi à resposta, ciciada como o vento.
- Então trate de consegui-lo, com todos os diabos!
- Ela é teimosa, e não gosta de ser pressionada.
- Talvez você não seja homem bastante para ela - retrucou o outro, com voz manhosamente cínica. - Talvez eu devesse tomá-la para mim, mostrar a ela o que é um
homem.
- Você? Em menos de dois dias ela enterraria um punhal em seu ventre. Você é um Carey!
- Bem, de qualquer modo ela está precisando de homem. O mais alto olhou para o companheiro com frio desdém.
- Se acontecer qualquer coisa com ela, não haverá lugar neste mundo onde você possa se esconder.
- Nem para você, meu amigo escocês, se souberem que andou tramando uma ou duas comigo.
- Isso serve para você também. Embora seu irmão tenha se ausentado por oito anos, ele agora é o conde, senhor daqui. E tem um batalhão à disposição.
O outro escarrou no chão.
- É um moleirão. Desde que chegou não faz outra coisa senão falar em paz, paz, paz. E em cortar despesas. Imbecil é o que ele é! Paz! De modo que você não está
nem um pouco melhor que eu, está sabendo?
- Não estou mesmo - concordou o mais alto.
Ele fizera fortuna nos últimos cinco anos roubando dos ingleses. Exatamente como seu companheiro roubava dos escoceses.
- Vamos ao nosso negócio, então. Qual é o melhor lugar para pegarmos Huntington?
- No lago. Ele vai nadar lá todos os dias, logo depois da aurora. Sozinho.
O outro ficou surpreso.
- E como ainda não apanhou malária ou pneumonia?
- Vaso ruim não quebra.
- Que idéia! Tomar banho no lago todos os dias...
- Ele diz que pegou o hábito no continente. Parece que por lá todo o mundo toma banho.
- Mas é todo o dia mesmo? Ele vai estar lá pela manhã?
- Vai, homem, sossegue.
- Não sei se ela está pronta para isso. Ainda está guardando luto, você sabe.
- Deixe comigo. Vou pôr fogo em mais alguns campos dela, amanhã.
Houve uma ligeira pausa cheia de hesitação, mas finalmente o homem concordou, com alguma relutância:
- Será feito.
- Ótimo! - exclamou o outro, com uma risada desagradável.
Capítulo I
Elsbeth Ker arremessou a taça de estanho no chão, tomada de fúria.
Os dois homens, confortavelmente reclinados em poltronas de fino veludo, endireitaram-se imediatamente. Havia divertimento na expressão de um e belicosidade
ria do outro.
- Pelo sangue de Jesus! - blasfemou ela. - É o cúmulo da ousadia! Como ousam aqueles patifes?
- Os Carey se atrevem a tudo - respondeu Ian Ker. - Julgam-se protegidos pelo administrador do condado e pensam que você está vulnerável agora, porque não temos
mais chefe.
- Claro que temos! Sou eu a chefe do clã agora. E tomo Deus por testemunha, eles não se safarão dessa com facilidade!
Ian voltou a se recostar na poltrona, fixando a prima. Seus cabelos ruivos caíam em massa solta pelas costas, até a cintura, refletiam o brilho cintilante do
cobre a cada movimento que fazia. Os olhos castanhos também tinham um brilho in-comum, principalmente quando ela se encolerizava. E isso não era raro em se tratando
de Elsbeth Ker.
Sim, essa priminha era realmente adorável aos olhos de Ian. E de Patrick, outro primo dela. Ambos faziam parte de uma corte interminável de preten-dentes à mão
de Elsbeth, isto é, a mão e ao título, que seria transferido para o felizardo que caísse nas boas graças da prima.
Desde criança, Elsbeth se revelara cheia de entusiasmo e energia. Seus movimentos, embora femininos e graciosos, transbordavam vitalidade. Era a melhor amazona
do condado e conhecia a arte da esgrima, embora não fosse capaz de manejar as pesadas espadas que ele e Patrick usavam. Os dois haviam-na presenteado com uma espada
mais leve, de lâmina delgada e cortante, e Elsbeth logo aprendera a manejá-la com perícia, assombrando a quantos a viam empunhá-la.
Não obstante, Ian e Patrick preocupavam-se por tê-la como chefe da família Ker, pois, fosse como fosse, Elsbeth era uma mulher.
Ian observou Patrick. Em tudo eles eram diferentes; os cabelos e os olhos do primo eram escuros, quase pretos, enquanto os seus eram claros. Patrick tinha uma
expressão severa e raramente ria; ele, ao contrário, vivia explodindo em gargalhadas e gostava de se misturar à criadagem, contando e ouvindo piadas obscenas. Os
três haviam sido criados juntos, embora Elsbeth fosse à única herdeira legítima do condado. Patrick e Ian eram bastardos e teriam de se contentar com a simples tolerância
da família.
Havia já algum tempo que Ian aprendera a se contentar com o pouco que recebia, mas Patrick nunca se conformara com a situação.
Com o correr do tempo, ambos haviam se tornado indispensáveis ao velho proprietário, Robert Ker, mas este morrera havia seis meses, durante um ataque do clã
Carey.
E agora esse maldito clã havia atacado de novo, queimando os campos de cultivo dos colonos que viviam sob a proteção de Elsbeth.
Os homens da família Ker queriam vingar a morte do velho chefe e propuseram inúmeras vezes um ataque de revide no campo dos Carey, mas Elsbeth, estando de luto,
julgara inadequada essa atitude. O conde de Huntington, patriarca dos Carey, e seu primogênito haviam perecido de uma febre estranha; Elsbeth tivera então esperanças
de que tudo se acomodaria em seus devidos lugares. Agora, porém, essa nova afronta ao clã Ker mostrava claramente que nada havia mudado. Elsbeth sabia que se não
fizesse alguma coisa perderia a autoridade e o respeito de seu clã. Havia ainda a questão do casamento, mas nesse ponto ela se mostrara irredutível. Em vão Ian e
Patrick tentaram persuadi-la de que a melhor coisa a fazer seria casar-se e passar o título a um homem; Elsbeth crescera em meio a um casamento infeliz e não queria
nem ouvir falar em noivados de conveniência. Tinha seus princípios, e achava que só poderia se casar se estivesse realmente apaixonada. Mesmo quando a própria rainha
regente, preocupada em manter a estabilidade na região, pedira-lhe que se casasse logo, Elsbeth fincara o pé obstinadamente. Só se casaria por amor.
Ela sabia que os dois primos disputavam seus favores, mas encarava-os mais como irmãos do que pretendentes, e não podia se imaginar na cama com um deles, embora
fossem atraentes: Ian com sua natureza alegre e descuidada, Patrick com sua constante e severa vigilância. Gostava de ambos mas... casamento?
Não, melhor seria esperar. Entretanto, tinha de mostrar ao clã que era uma mulher forte e decidida, pronta a defender e proteger sua família.
- O novo conde já chegou?
- Foi o que ouvimos dizer - respondeu Ian, em tom neutro.
- Então é ele o responsável pela última queimada?
- Acho que sim.
Elsbeth virou-se para Patrick.
- Qual é sua opinião sobre esse homem? Ele deu de ombros.
- Pouco sabemos. Anos atrás, ele costumava participar de batalhas nas fronteiras, mas depois desapareceu. Todo o mundo achava que ele tinha morrido.
- Estranho. O irmão caçula, John, não deve ter gostado muito de vê-lo de volta.
- Com certeza. John achava que Huntington e o título já lhe pertenciam.
- Nunca vi homem mais ganancioso em toda a minha vida! - explodiu Elsbeth. - O irmão com certeza ainda é pior. Tudo farinha do mesmo saco.
- Ouvi dizer que o novo conde tem boas relações com Nor-thumberland - acrescentou Ian, referindo-se ao homem mais poderoso da Inglaterra, John Dudley, tutor
e protetor do menino-rei, Edward VI.
- Malditos cães ingleses! - praguejou Elsbeth, sem se importar com a linguagem, bem pouco apropriada para uma rica e nobre dama. - Bem, acho que está na hora
de ensinarmos uma boa lição a esse conde de meia-tigela. A ele e a todos os Carey, malditos sejam!
Culpava-se intimamente por não ter atacado os Carey antes, mas quando o velho conde de Huntington morrera, alimentara a esperança de que a paz voltasse à região.
Naquele canto do mundo as brigas e ataques sucediam-se uns aos outros, o que prejudicava em muito os colonos e suas colheitas. Elsbeth tentara passar por cima do
fato de que os Carey haviam violado a mais sagrada lei das guerrilhas de fronteira: um guerreiro jamais podia matar um inimigo em suas terras, principalmente em
emboscadas. O resultado foi que os escoceses agora julgavam-se livres para revidar como quisessem, mesmo que isso significasse a morte para alguns.
- É - disse Elsbeth -, acho que temos de ensinar aos Carey uma lição da qual nunca mais se esquecerão, principalmente àquele inglês filho de uma cadela, que
tem o topete de se intitular conde.
Patrick franziu a testa ao ouvir o palavrão, mas Ian limitou-se a dar um breve sorriso irônico. Essa era a Elsbeth que conhecia desde pequena, não a garotinha
insegura que chorara tão sentidamente a morte do pai.
- Soubemos que o novo conde tem hábitos bastante peculiares - disse Ian. - Toda a manhã ele costuma tomar banho no lago perto da fronteira.
- Acompanhado de um batalhão de guarda-costas, no mínimo - ironizou Elsbeth.
- Não, ele vai sozinho.
- Então é doido varrido. Patrick interveio pela primeira vez:
- Não é doido nem covarde, prima. Já tive oportunidade de me bater com ele, há oito anos. É uma raposa astuta, e muito hábil com a espada.
Elsbeth fixou os olhos na taça de estanho que jazia amassada no chão, pensando rápido. Patrick e Ian obedeceriam sem pestanejar a qualquer ordem sua; se quisesse,
poderia mandar matar o novo conde de Huntington naquele instante. Mas essa idéia repugnava-a.
Entretanto, outra idéia ia tomando forma em sua mente. Se raptassem o conde, poderiam negociar, com vantagem, seu resgate.
Humilharia aquele arrogante, aplicar-lhe-ia um belo castigo, e ainda arrancaria dos Carey uma boa soma para ressarcir os prejuízos de seus colonos. Seria uma
doce vingança ter um Carey nas mãos... e uma ótima oportunidade para aliviar um pouco a imensa raiva que fervia em seu sangue desde que o pai fora assassinado.
Sabia que o conde não era responsável direto pela morte do pai, pois a emboscada acontecera havia seis meses, enquanto Alexander Carey ainda se encontrava no
exterior. De qualquer modo, ele era um Carey, e mais precisamente, o chefe do malfadado clã. Portanto, teria de responder pelos outros. Além do mais, a queimada
da véspera indicava claramente que o recém-chegado não era melhor que os outros membros da família.
- Vamos raptar o homem - anunciou, com calma.
Os primos fitaram-na, atônitos. Patrick passou as mãos nos cabelos e não escondeu o nervosismo.
- É melhor matá-lo de uma vez.
Elsbeth sorriu. Sabia que Patrick tinha muita afeição pelo velho Robert Ker, e não via a hora de vingá-lo.
- Não. Precisamos de dinheiro, e ele será nosso refém. Vamos planejar uma recepção especial para esse conde de araque, garanto-lhe! Quando ele sair daqui, nunca
mais vai querer ouvir falar em família Ker.
- Não vai ser muito fácil apanhar o peixe vivo - falou Ian.
- Verdade - aquiesceu Patrick, com um brilho nos olhos escuros, que não passou despercebido a Elsbeth.
- Eu vou com vocês - declarou ela.
- Não pode! - protestaram os dois, em uníssono.
Os Carey adorariam, se você caísse nas mãos deles! - exclamou Ian.
- E, e exigiriam até nossa pele como resgate - completou o outro.
- Bom Deus, mas isso é uma loucura rematada, Elsbeth! Nosso plano pode fracassar, se você for. Vamos correr um Perigo e tanto!
Mas Elsbeth não lhes deu ouvidos. Por mais que gostasse dos primos, não confiava muito neles; estava quase certa de que acabariam matando o conde de Huntington,
principal cabeça da odiada família Carey.
- Querem fazer o favor de me escutar, vocês dois? Primeiro, eu monto muito bem. Segundo, sei lutar também. Papai me ensinou a manejar a espada melhor que ninguém.
- Sim, em provas e competições, prima. Isto é muito diferente, não vê? Não vai ser nenhum esporte!
- Para mim, vai - revidou ela, piscando muito os grandes olhos inocentes. - Será um ótimo esporte pescar um Carey! E tenciono estar presente para receber meu
prêmio.
Ian suspirou.
- Não adianta, Patrick, ela empacou. Você conhece bem a prima.
O outro ergueu os braços.
- Está bem, faça-se a sua vontade. Vamos aos planos. Serviram-se de vinho e sentaram-se para discutir o assunto.
Uma vez decidido o curso da ação, puseram-se a confabular sobre o que fariam com o conde. Nem por um momento consideraram a probabilidade de fracassar.
- Este castelo seria muito mais completo se tivesse masmorras ou calabouços - falou Ian.
- Talvez não seja necessário - ponderou Patrick. - Mandam os bons costumes que os reféns empenhem sua palavra de que se portarão bem.
- Nada disso - interveio Elsbeth. - Os Carey são manhosos e traiçoeiros. Não vou confiar na palavra de um deles, nunca.
Pensou algum tempo, de testa franzida, alheia à impaciência dos primos. Então teve uma idéia:
- E aquela cela abandonada, no alto da torre? Posso pedir ao ferreiro que faça uma grade bem forte para chumbar na janela.
- Seria uma boa idéia, mas a torre fica bem no meio do castelo. O conde pode ouvir coisas demais, nossos planos, nossas estratégias de ataque, nossos pontos
fracos. Ele é astuto como uma raposa, já falei.
- Tem razão - Elsbeth disse, pensativa. - Mas não há outra escolha. Não temos outro lugar seguro, a não ser essa cela.
- E quando ele tiver de sair para... para...
- Fazer as necessidades? Ora, é simples. Vendamos os olhos dele, para que não fique muito familiarizado com nosso castelo. Patrick grunhiu.
- Tanto trabalho por um inglês, e, ainda por cima, da família Carey. Sou mais pela morte dele.
- Nada disso, precisamos do dinheiro. Vamos fazer exatamente como planejamos, assim que a cela estiver preparada.
Alexander Carey precisou se controlar para não esmurrar o irmão caçula.
- Eu disse que não queria mais saber desses ataques!
- Mas eles roubaram alguns carneiros de nosso rebanho - rebateu John, vermelho de cólera. - Era uma questão de retaliação, meu caro. Olho por olho, dente por
dente.
- Sim, e agora eles é que vão queimar nossas terras. Demônios, John, esses conflitos não têm mais fim?
- Não. Os Ker têm sido nossos inimigos há séculos. Alex contraiu os lábios, cerrando os punhos.
- Nunca mais, está ouvindo, John? Nunca mais saia com meus homens sem meu consentimento. Fui claro?
John, mais baixo e atarracado que Alex, postou-se na frente do outro, abrindo as pernas e pondo as mãos na cintura.
- Esses homens eram meus há dois meses. Durante oito anos você se meteu não sei onde, longe da família. Não fez parte dela nesse tempo, não conhece nossos problemas.
Queria dizer mais, mas segurou a língua em tempo. Se tudo corresse bem, o irmão não passaria de um breve incômodo em sua vida.
Alex inalou profundamente, examinando o irmão. Desde que chegara, havia percebido despeito e ressentimento em John, o que o perturbava profundamente. Os dois
eram tudo o que restava de uma alegre família: mãe, pai e outro irmão, todos já se haviam ido.
Pensou em Nadine, a meiga Nadine, que tanto lhe ensinara sobre coragem e sacrifício. Impossível deixar de compará-la com seu irmão egoísta e mesquinho.
Enquanto prisioneiro das galés, onde fora escravo por três intermináveis anos, Alex só conseguia pensar em sua casa, nas verdes florestas de Huntington. Mal
havia sido solto quando soube que o pai e o irmão mais velho tinham morrido de uma febre estranha e desconhecida. Soubera também que John, acreditando-o morto, assumira
o título.
Resolvera então voltar o quanto antes, mas tão logo batera os olhos no irmão, percebera o quanto este ficara decepcionado e aborrecido com sua chegada. Embora
tivesse ficado desapontado, Alex não se surpreendera. A mãe morrera havia muito, e o pai acostumara-se a incitar a rivalidade entre os irmãos. Essa fora uma das
razões que haviam levado Alex a partir em busca de fortuna ou, talvez, de um lar. Contudo, nas terríveis galés francesas, Alex se permitira esquecer as agruras da
infância, e só tivera boas lembranças dos campos de Huntington, suas extensas pradarias e seu céu límpido e crista-lino.
Assim que chegara, Alex não gostara do que vira. John cobrava pesados impostos dos colonos, deixando-os muito próximos da penúria. Os campos, outrora verdejantes,
achavam-se ressequidos e legados ao esquecimento; John convocava constantemente os colonos para batalhar na fronteira. Alex ficara particularmente aborrecido quando
soubera que o pai havia preparado uma emboscada para Robert Ker, o que só servira para exaltar os ânimos já exacerbados dos dois clãs.
Alex estava cansado de aventuras, roubos e saques; acima de tudo, queria paz. Almejava administrar um condado próspero e feliz, rodear-se de filhos e viver tranqüilamente.
Contudo, logo vira-se cercado de hostilidade e desconfiança, que culminava numa guerra particular que ele não começara.
Não que fosse homem de evitar perigos ou lutas. Na verdade, tivera um bom quinhão disso, tanto como menino como mais tarde, quando abraçara a causa protestante
na França, tendo ajudado a quanto podia. Numa dessas ocasiões, fora feito prisioneiro e levado para as galés francesas. Julgara que terminaria seus dias prisioneiro,
mas John Knox, também escravo das galés, conseguira ser solto. E ele fora contar a John Dudley, duque de Northumberland e tutor do rei, que Alexander Carey estava
vivo.
Naqueles anos tenebrosos, o lar passara a significai luz para Alex. Sonhava com o sol brilhante, seus raios irisando a pequena lagoa das montanhas, atravessando
as folhagens das árvores.
E liberdade. A maior de todas as luzes.
Desde sua chegada, Alex tentara trabalhar junto com o irmão, fazendo o possível e o impossível para atenuar os ciúmes de John. Chegara mesmo a pensar em abandonar
Huntington e voltar à corte, mas o lamentável estado das terras pedia sua presença. Sentia que devia ficar para ajudar os colonos, embora estes o olhassem com visível
desconfiança. Alex ficara fora por muito tempo, e além disso os moradores haviam sofrido muito nas mãos do pai e do irmão.
Na verdade, não tinha muita vontade de retornar à corte. Desde a morte de Henrique VIII, Londres se transformara num emaranhado de intrigas e conspirações, os
nobres se engalfinhando para conseguir as graças do doentio menino-rei. O menino era o único filho varão de Henrique VIII, e Alex achava que ele não viveria por
muito tempo.
A dor da solidão chegou aos poucos, silenciosa, enquanto ele escutava o irmão se vangloriar de como havia saqueado as terras dos Ker.
- Chega, não quero ouvir mais nenhuma palavra! - gritou, dando um soco na mesa.
John recuou piscando, surpreendido pela súbita ira do irmão.
- Goste ou não goste, o conde de Huntington agora sou eu. Não haverá mais saque nenhum, queimada nenhuma, ataque nenhum. Esta é minha última palavra!
E Alex se retirou do aposento, lutando consigo mesmo para manter a calma e não pular no pescoço de John.
Dirigiu-se ao estábulo, onde mandou selar seu cavalo predileto. Era um magnífico garanhão, negro como a noite, de crina longa e reluzente. Enquanto esperava,
pensou com amargura que naquele imenso condado não havia um só homem em quem pudesse confiar. Todos os moradores tinham trabalhado para seu pai, e depois para John;
estavam já acostumados com a servidão que lhes fora imposta pelos dois. Além disso, sempre conseguiam auferir algum lucro quando atacavam o outro lado da fronteira,
e certamente estavam ressentidos porque Alex proibira essas incursões.
Apenas uma pessoa, com quem muito brincara na infância, parecia compreendê-lo um pouco mais: David Garrick. Ao que soubera, David tornara-se um excelente treinador
de soldados e conhecia melhor que ninguém as estratégias da esgrima e da guerra. Por essa razão, era constantemente emprestado a outros castelos, onde ministrava
aulas de estratégia e de esgrima. Esse "empréstimo" era regiamente pago, mas a maior parte do dinheiro ia para o bolso de John, e não para Garrick.
Quando Alex chegara a Huntington, David achava-se justamente num desses castelos, onde permanecera até a véspera. Mal haviam se cumprimentado ainda, mas pareceu
a Alex que os olhos leais e sinceros de Garrick transmitiam compreensão e amizade.
Desanimado e aborrecido ainda, Alex decidiu-se a ir procurá-lo. Esperava, do fundo do coração, que David não tivesse mudado muito; lembrava-se com carinho do
antigo companheiro de brincadeiras, sempre risonho e disposto a ajudá-lo.
Informou-se com o cocheiro sobre a casa dele e cavalgou para lá imediatamente. Assim que chegou, desmontou, amarrou Gideon numa árvore e bateu com decisão à
pesada porta de carvalho.
David não havia mudado quase nada, pelo menos aparentemente. Eram os mesmos olhos claros e azuis, o mesmo rosto sardento, encimado por um topete de cabelos cor
de areia. Mas a expressão endurecera conside-ravelmente. Um profundo vinco marcava-lhe os cantos da boca.
- Milord, é um prazer vê-lo de volta em nossa rica terrinha. Vamos entrar?
Alex hesitou quando viu uma mulher levantando-se da cadeira.
- Davey, não quero interromper nada.
- Não, o senhor será sempre bem-vindo. Venha, quero que conheça minha mulher, Judith.
A mulher inclinou-se respeitosamente. Era alta e loira, de feições vagamente familiares a Alex.
- Judith! É filha de Millie, não é?
O rosto dela se iluminou de gratidão por ter sido lembrada. Tinha um sorriso doce e meigo. Alex se lembrava bem da garotinha com quem também brincara às vezes;
era filha de um dos colonos.
- É um homem de sorte, Davey.
O homem sorriu, agradecido por ter sido chamado pelo apelido. Isso bastou para dissolver a tensão cerimoniosa que se formara com a visita inesperada do ex-morgado.
- O senhor aceita jantar conosco? - perguntou Judith, timidamente. - É tudo muito simples, mas oferecido de coração.
- Com muito prazer, Judith - respondeu Alex, tirando o casaco e colocando-o no espaldar da cadeira. - Nada mais simpático que esse convite, obrigado.
David ficou de pé até que Alex se sentou e convidou-o para sentar-se também.
- Agora sou conde, mas ainda não me acostumei a isso - disse, dando uma risada. - Sempre me esqueço que ninguém se senta sem minha permissão, desculpe. É o tipo
de coisa que estranho bastante.
Sua memória trouxe-lhe as galés, onde a única atenção que recebia eram chicotadas e pragas. E cuspidelas no rosto.
- Acreditávamos que milord havia... estava morto.
- É, deu para perceber - retrucou Alex, pensando em John, que quase lhe usurpara o título. .
- O senhor saiu daqui sem avisar ninguém, sem deixar nem uma nota...
- Estive a serviço da França, meu bom Davey. Alex sorriu, irônico. Belo serviço prestara à França! Garrick percebeu, pelo olhar sombrio do conde, que seria melhor
não fazer mais perguntas. A resposta de Alex não fora nada clara, uma vez que França e Escócia eram aliadas contra a Inglaterra. Mas absteve-se de qualquer comentário.
O jantar, servido em terrinas de madeira, era realmente simples, mas delicioso. Alex comeu com satisfação, saboreando cada garfada. Desde que deixara Londres,
ainda não havia comido com tanto apetite. Na verdade, detestava sentar-se à mesa com o carrancudo John.
A refeição terminou, e Alex, relutante, preparou-se para sair. Notara os olhares apaixonados trocados entre os dois anfitriões, e não queria atrapalhá-los mais.
David acompanhou-o até a porta:
- Estou contente com sua volta, milord.
- E o único, no condado inteiro - falou ele, com amargura.
- Isso vai mudar, pode crer. A redução dos impostos melhorou um pouco nossa situação, mas depois de anos de maus-tratos a confiança não vem de uma vez.
Subitamente, David deu-se conta do que acabara de dizer e empalideceu. Judith começou a tremer e correu para Alex, de mãos postas.
- Milord, ele não falou por querer. Falou sem pensar, ele não quis dizer o que disse.
- Davey quis dizer o que disse - retrucou Alex, olhando gravemente para os dois. - E fiquem sabendo que eu jamais puniria alguém por falar a verdade. Antes eu
nada podia fazer, e foi por isso que deixei o condado. Mas agora eu posso, Davey. E juro-lhe que haverá muitas mudanças por aqui.
Um sorriso embaraçado, mas cheio de esperança, iluminou o rosto de David.
- Será uma honra para mim ajudá-lo, milord.
- A honra é minha, de poder contar com pessoa tão valorosa. Amanhã bem cedo teremos uma bela conversa a dois.
- Sim, milord.
- Antes você me chamava de Alex.
- Isso foi há muito tempo, meu senhor...
- É verdade. Há séculos. Mas, para você, sempre serei Alex.
David não pôde falar, comovido. Mas ficou acenando da soleira, até que Alex se tornou um pontinho preto na estrada. E quando entrou, pensativo, imaginava se
um dia poderia esquecer o tom amargo e nostálgico do conde.
Alex subiu para o quarto, a mente trabalhando inquieta. Havia incontáveis problemas para resolver e enfrentar. Ainda não tinha se apossado do aposento principal
da casa; ficara com o mesmo que sempre ocupara, na qualidade de segundo filho do conde. Já havia tanto ciúme da parte de John, que Alex julgara prudente não reclamar
seu quarto, por direito. E, por outro lado, o irmão não lhe oferecera o aposento, como seria seu dever.
As velas estavam acesas e iluminavam fracamente o austero ambiente, tão austero quanto as roupas de Alex. Um simples estrado de cama, um colchão fininho - porque
depois de tantos anos dormindo em catres de madeira, Alex não suportava dormir em colchões muito macios -, uma mesa com jarra e bacia de louça branca, uma cadeira.
O tapete, de cores ricas e quentes, era a única peça a quebrar a rigidez.
Alex tirou o gibão grosseiro e fora de moda, afrouxou a camisa e sentou-se para descalçar as botas de fino couro espanhol. Então, completamente nu, caminhou
até a janela. Aquelas terras maltratadas agora lhe pertenciam. Era sua obrigação protegê-las, fazer com que prosperassem. Alex suspirou, imaginando a gigantesca
tarefa que tinha pela frente. Nunca sonhara que um dia herdaria a propriedade, uma vez que tinha irmão mais velho e casado. A fatalidade levara a cunhada a abortar
duas vezes; e na terceira tentativa ela própria morrera, juntamente com o bebê. Agora, a Coroa esperava que ele cuidasse daquela agitada região fronteiriça, transformando-a
num reino de paz.
Também a monarquia escocesa tentava em vão controlar as brigas devastadoras; chegara ao ponto de mandar enforcar um dos mais populares líderes escoceses. Mas
as lutas acirraram-se depois disso.
Alex fora encarregado pelo próprio John Dudley, tutor do menino-rei, de fazer o que pudesse para pôr um fim nas brigas. E, quando chegara, cheio de planos entusiasmados,
tivera a dolorosa surpresa de encontrar no próprio irmão um dos mais ativos saqueadores da região.
Os Ker certamente estariam furiosos com o último ataque, e seguramente tramavam agora um violento revide. Alex sabia que ele mesmo não era de todo inocente;
com efeito, anos atrás, havia tomado parte de inúmeras investidas contra o clã Ker. Mas o tempo se encarregara de fazê-lo pensar melhor, e ele começara a questionar
seriamente essa prática que enriquecia os senhores e empobrecia os colonos, cujas terras eram constantemente queimadas. Quando tentara conversar com o pai sobre
isso, recebera risadas domo resposta. Partira então para Londres, onde conhecera Nadine, filha de um huguenote francês dos mais ativos. Seu idealismo levara-o à
França, onde, ao lado de Nadine, dedicara-se a ajudar os perseguidos huguenotes. Algum tempo depois, foram todos apanhados.
Nadine e o pai condenados à fogueira, enquanto ele, por ser inglês, havia sido poupado, mas condenado às galés.
Todo o seu idealismo esvaíra-se em meio a chicotadas e torturas, mas depois de algum tempo conhecera John Knox. John era pregador religioso, inteligente e de
espírito inquebrantável. Ajudando-se mutuamente, recuperaram a auto-estima e a vontade de viver. Por fim, Knox fora libertado e, por seu turno, conseguira a libertação
de Alex junto a Dudley,
Na verdade, Alex nunca compartilhara as idéias religiosas de John Knox. Acreditava que qualquer religião podia ser boa, desde que não fosse levada ao fanatismo;
nauseava-o ver a estupidez de católicos e protestantes se agredindo em nome de Deus.
Contudo, mais por necessidade de sobrevivência, fizera amizade com Knox. Fome, dor e miséria eram o que os dois tinham em comum, e fora isso justamente o que
os aproximara. Acostumaram-se a conversar e discutir nas horas em que os remos estavam parados; o pregador conseguira despertar em Alex uma fome de conhecimentos
e de sabedoria que nunca mais fora aplacada.
Agora, porém, Alex tinha outros problemas para enfrentar. Pensou em procurar os Ker, tentar um diálogo franco e direto com eles, oferecer-lhes algum tipo de
reparação pelos danos da véspera. Mas receou perder, com essa atitude, a lealdade de seus homens. A rivalidade entre as duas famílias havia ido longe demais; certamente
não haveria diálogo capaz de amainá-la.
Alex estirou-se na cama, suspirando mais uma vez. No dia seguinte teria uma conversa com Garrick; este poderia indicar-lhe um grupo de homens em quem pudesse
confiar. Com eles, tentaria iniciar uma campanha para desfazer a violência e o ódio entre ingleses e escoceses.
Fechou os olhos, pensando nessa difícil tarefa.
Capítulo II
Elsbeth deixou que Ian a ajudasse a montar, ajeitou o selim e arrumou a saia em volta das pernas. O pesado manto que usava para proteger-se do sereno escondia
um punhal, encaixado na bainha da cintura. No peito, trazia atravessada a faixa de lã xadrez verde e vermelha, símbolo do clã Ker.
Ian e Patrick haviam feito nova tentativa de dissuadi-la do intento de acompanhá-los, mas ela se mostrara irredutível. Tratava-se de seu clã, de sua obrigação.
Cavalgaram devagar, atravessando a fronteira por caminhos que poucos conheciam. A lua cheia clareava as trilhas, ajudando-os a identificá-las. Patrick, que tinha
olhos de águia, guiava a comitiva de vinte homens e uma mulher. Sua expressão severa e sombria não escondia, ao menos para Elsbeth, uma fremente excitação. Como
qualquer outro habitante da região, Patrick apreciava participar de ataques noturnos, das renovadas promessas de perigo e aventura.
Mas com ela sucedia o inverso. Embora soubesse que estava agindo dessa forma para proteger os Ker, sentia-se bastante preocupada com o rumo perigoso que tomava
essa briga insana.
Assim como acontecia na Inglaterra, havia um vácuo no reinado escocês. Neste, uma garotinha era a rainha; naquele, a coroa pesava sobre a cabeça de um menino
fraco e doentio. Ambas as crianças achavam-se à mercê de parentes ambiciosos, que lutavam entre si para reter o poder nas mãos, enquanto os dois reinos se desintegravam
por causa de brigas religiosas e feudais. Pouca ou nenhuma ordem existia nos dois países. Ninguém conse-guiria deter a guerra entre os Ker e os Carey, disso Elsbeth
tinha certeza. Estremeceu ao pensar na quantidade de sangue inocente que seria derramado, nas casas incendiadas, nos campos devastados. Embora nada tivesse de covarde,
Elsbeth temia o futuro de seu povo, de seus colonos.
Fazia frio naquela manhã e ela imaginou por que razão alguém iria nadar no lago num tempo assim. Gostava de banhos, mas apenas com água aquecida, e dentro da
grande banheira de madeira que tinha ao lado do quarto. A idéia de banhar-se num lago gelado lhe era incompreensível.
Rebuscou na memória a lembrança do novo conde de Huntington, pois tinha certeza de tê-lo avistado algumas vezes, quando criança. Com certeza o vira nos dias
de justa, quando a região se engalanava festivamente e ocorriam as disputas esportivas. Mas só conseguia se lembrar de John e de William, o morgado que morrera de
uma doença misteriosa. Tanto John quanto William eram antipáticos, feios e mal-educados. Esse tal de Alexander não seria diferente, talvez até pior.
Bem, ao menos esse perigo seria logo afastado. O pateta seria preso e trancafiado, e os Carey sem dúvida aceitariam qualquer condição para libertá-lo. Sim, talvez
fosse esse o caminho.
O pensamento animou-a. Incitou o cavalo e emparelhou com Ian, cujos olhos também brilhavam de ansiosa expectativa. O primo usava uma jaqueta reforçada com cota
de malha e capacete de aço; carregava uma espada enorme, que só podia ser manejada com as duas mãos, e uma pistola do último tipo. Alguns membros da comitiva portavam
longos chuços, que erguiam sobre as cabeças quando tinham de atravessar riachos e pequenas lagoas. Outros serviam-se de machadinhas para cortar folhagens e abrir
novas picadas.
Esperavam alcançar o vale, onde o conde costumava nadar, várias horas antes da aurora. Elsbeth olhou para Ian:
- Acho que até vai ser divertida essa caçada.
- É, vamos pegar o javali mais bravio da região.
Quando chegaram perto do lago, já em pleno território inimigo, Elsbeth mandou que todos se espalhassem na floresta e se ocultassem. Alguns subiram ágil e silenciosamente
pelos galhos, outros puseram-se de bruços sobre a terra. Os cavalos foram levados para um lugar afastado, longe do alcance dos ouvidos.
Como haviam decidido esperar até que o conde estivesse desarmado e despido, Elsbeth foi persuadida a acompanhar os cavalos, a fim de não pôr em risco toda a
comitiva, e também porque não era decente para uma dama encontrar-se com o inimigo nu. Relutantemente, ela acedeu, mas insistiu que o conde deveria ser capturado
vivo. Quando dessem um sinal, ela viria. N
Foi uma espera longa e difícil. A noite parecia não terminar nunca para Elsbeth, que aturou os mosquitos insistentes e as lamúrias do cavaleiro designado para
escoltá-la. O homem praguejava sem cessar, reclamando que perderia a parte mais divertida da missão.
Os primeiros e tímidos raios surgiram por entre a folhagem e o canto madrugador dos pássaros começou a coar-se no ar. Elsbeth ressentia-se de não estar com Patrick
e Ian; ressentia-se de não ser a primeira a humilhar o inimigo. Pensou em voltar ao lago, mas refreou a vontade, cônscia de que poderia prejudicar toda a missão.
Esperou, pois, tentando conversar com o mal-humorado acompanhante, afagando seu cavalo e admirando a bela paisagem inimiga. Quando o céu ficou mais claro, Elsbeth
viu um bando de faisões assustados correndo sem rumo, e percebeu que o inglês devia estar a caminho.
Tensa e silenciosa, voltou a montar. O cavalo sentiu a ansiedade da dona e começou a patear para o lado, negaceando. Elsbeth conseguiu acalmá-lo a custo, murmurando
palavras carinhosas. Finalmente, ouviu o tão esperado tiro, seguido do brado de vitória dos Ker. Tomada de excitamento, esporeou o cavalo e partiu em disparada.
Alex vinha absorto em pensamentos desencontrados. Passara os dois últimos meses visitando suas terras, e reconhecera que era um homem rico. Contudo, essa riqueza
pouco significava, uma vez que não podia comprar paz nem aliviar sua imensa solidão. A perspectiva de enfrentar longas e tediosas brigas com o irmão ou com os Ker
enchiam-no de melancolia. Estaria fadado a levar uma vida insossa e medíocre?
Mergulhado nessas divagações, negligenciara as precauções que habitualmente tomava quando vinha ao lago. Sentia-se bem e seguro naquele recanto familiar e acolhedor;
além disso, nunca contara a ninguém que costumava nadar no lago, embora todos soubessem que era seu hábito montar todas as manhãs. Mas duvidava que alguém conhecesse
o lugar onde
gostava de se refugiar, exceto John, com quem viera nadar diversas vezes na juventude. O lago ficava numa pequena clareira, totalmente escondido pela densa floresta.
Nessa parte da floresta havia muito poucos visitantes, exceto caçadores; de qualquer modo, não era estação de caça. Quanto aos Ker, Alex estava tranqüilo. Eles gostavam
de atacar apenas à noite. Como os chacais, pensou.
À medida que se despia, Alex ia antecipando o prazer de mergulhar. Em dias de muito sol esse banho era refrescante, mas numa manhã de primavera, fria como aquela,
o banho tinha o poder de revigorar cada fibra de seu corpo. Quando nas galés, suado e imundo, Alex se prometera que tomaria banho todos os dias. Era como se ele
se renovasse a cada manhã, como se desper-tasse para a vida.
Respirou fundo e mergulhou, quase perdendo o fôlego pelo impacto da água gelada em seu corpo ainda quente da cama. Começou a dar braçadas vigorosas, reanimado
com a pronta resposta dos músculos firmes. Quando sentiu a temperatura do corpo ajustada à da água, virou-se de costas e deixou-se boiar, fechando os olhos de prazer.
Depois de mais algumas braçadas, saiu da água e encaminhou-se para onde deixara as roupas. No mesmo instante sentiu que havia alguma coisa errada. Alguém mexera
nas roupas e, pior que isso, roubara sua arma. Alex perscrutou a floresta, mas nada viu nem ouviu. Vestiu depressa as calças, perguntando-se quem poderia pregar-lhe
semelhante peça. John, talvez?
"Bom Deus, por que não fui mais cauteloso?", indagou-se, algo preocupado.
Houve um movimento nas árvores e um homem pulou a sua frente. Tomado de surpresa, Alex voltou-se para o outro lado, apenas para topar com outro homem de expressão
feroz. E veio outro, mais outro, até que se viu totalmente cercado. Reconheceu as cores da faixa de lã: os Ker! Fora um louco de vir sozinho ao lago, sabia agora.
Sua mão foi automaticamente para a cinta, onde costumava levar um punhal, mas encontrou a bainha vazia. Ouviu um tiro, mas ninguém se moveu. Alex sabia que se fizesse
um só movimento seria morto. Um homem alto, de cabelos negros, adiantou-se e plantou a ponta do punhal no peito nu de Alex, rasgando-o levemente. Um filete de sangue
brilhante escorreu do ferimento.
De repente, todas as cabeças se voltaram. Curioso, Alex também olhou para o mesmo ponto. Estupefato, viu uma mulher se aproximar devagar, montada num soberbo
cavalo. Orgulhosa e altiva, a mulher veio sem pressa até ficar a poucos centímetros dele.
Se Alex ficara antes sem ação, agora estava petrificado. Aquela cavaleira era a mulher mais impressionante que jamais vira. Os cabelos ruivos, magníficos, brilhavam
como fogo sob os raios nascentes; os olhos, vivos e inteligentes, combinavam tons de castanho e ouro. Seu corpo estava coberto por um manto, mas era possível adivinhá-lo
esbelto, pelo modo gracioso com que ela se mantinha na sela.
Os olhos dourados fitaram-no de alto a baixo. Alex julgou ter sentido surpresa neles, mas logo o olhar encheu-se de desdém. - Levem-no - disse ela.
Com a rapidez de um raio, Alex deu um tapa na espada que o ameaçava, fazendo-a girar no ar, e com o ombro atingiu um escocês no estômago. O homem desabou, abrindo
uma brecha no círculo de captores, através da qual Alex passou como flecha, sem dar tempo de ninguém detê-lo. Embrenhou-se na floresta, correndo com quantas pernas
tinha, em busca de Gideon. Mas um escocês, escondido na copa de uma árvore, caiu como um saco de areia sobre ele, derrubando-o. E logo Alex se viu novamente cercado
por um punhado de escoceses, que conseguiram imobilizá-lo com relativa facilidade, forçando-o a permanecer deitado sobre a grama orvalhada. Mãos fortes e ásperas
ataram-lhe os pulsos atrás das costas, e depois obrigaram-no a ficar de pé.
Alex sacudiu os braços presos como fera enfurecida, aprumou o corpo flexível e ficou ereto, fixando os olhos na estranha amazona que se aproximava outra vez.
Ela agora estudava o prisioneiro com profundo interesse.
Reunindo toda a dignidade que podia encontrar naquelas circunstâncias, Alex inclinou levemente a cabeça.
- É a sra. Ker?
-Conde Huntington - respondeu ela, devolvendo o ligeiro cumpri-mento.
- Parece que estou a seus serviços - volveu Alex, com um sorriso irônico.
Elsbeth teve que se conter para não sorrir diante do prisioneiro. A cortesia zombeteira deixou-a intrigada e aborrecida ao mesmo tempo. O que mais a irritava
era não conseguir tirar os olhos de cima do lendário conde. Alto, de corpo musculoso e bem-feito, tinha os olhos cinzentos e atormentados como um dia de tempestade.
Incomparavelmente mais bonito que os irmãos, sem dúvida nenhuma. E não usava barba nem bigode, como a maioria dos nobres que conhecia. Não obstante a aparência impressionante,
tratava-se de um Carey, e devia ter o coração mais negro que os cabelos.
- Façam-no montar - ordenou ela. - Mas antes vendem-lhe os olhos.
O homem alto e moreno que havia ameaçado Alex com a espada adiantou-se. Destacava-se dos outros, que eram todos loiros ou ruivos. E tinha uma expressão particularmente
feroz e sombria.
Involuntariamente, Alex recuou um passo. Não gostava da idéia de ser vendado, muito menos de ser privado novamente do controle da vida e da liberdade.
Foi empurrado para frente com rudeza e grosseria, enquanto uma venda preta era atada firmemente em seus olhos. Forçaram-no a andar por algum tempo, e então
atiraram-no como um saco de aveia sobre uma sela, onde o prenderam.
A sela, de couro áspero, feria-lhe o estômago a cada passo que o cavalo dava. Sua cabeça pendia para baixo, bem como seus pés. Se o seu destino fosse a torre
do castelo Ker, como julgava, suspeitava que a viagem fosse infernal. E alguma coisa lhe dizia que era precisamente essa a intenção dos raptores.
Alex tinha aprendido, havia anos, não só a suportar a dor, como a aparentar indiferença ao que lhe acontecesse; era o que procurava fazer agora, embora sentisse
uma raiva enorme e surda apossar-se dele. Tinha sido um imbecil negligente ao aventurar-se tão perto da fronteira com a Escócia. Embora ainda dentro de seus domínios,
o lago ficava por demais perto do inimigo.
Tentou mover-se, mas a única coisa que conseguiu foi apertar as cordas que o prendiam pelos pulsos, cintura e pés. Os captores, sem dúvida, sabiam como amarrar
prisioneiros. A esperança de cair do cavalo e se safar de alguma maneira foi se desvanecendo aos poucos.
Pelo jeito, os Ker pretendiam fazer dele prisioneiro, pois de outro modo já estaria morto. Na certa pediriam um resgate. Por outro lado, ninguém lhe pedira que
desse sua palavra de que se portaria como refém, conforme era costume por ali. Não lhe pediram porque não confiavam nele? Alex desconfiava seriamente de que, uma
vez na torre, sofreria um tratamento pior que no momento.
Se sua posição não fosse tão dolorosa, Alex poderia até rir dos inimigos. Caso os Ker pretendessem um resgate, teriam uma bela surpresa! John se deliciaria com
a ausência do irmão, e nem pensaria em pagar resgate nenhum. De sua parte, estava em maus lençóis. Quando vissem frustrado seu intento, os Ker não hesitariam em
matá-lo.
A menos que conseguisse escapar.
Sua mente afastou-se com determinação da dor e concentrou-se nessa opção. E sua maior esperança, por incrível que fosse, repousava na amazona.
Nessa área ele tinha experiência... e habilidade. Antes dos três anos de confinamento, Alex desfrutara de sucesso entre as mulheres, tanto na corte francesa
quanto na inglesa. Depois de Nadine, entretanto, essas aventuras passaram a interessá-lo muito pouco. E quando voltara a Londres, sua frieza e distância pareceram
atiçar ainda mais as moças.
Sim, lady Ker parecia ser seu melhor álibi. Mas Alex teria de controlar primeiro o gênio, tratar de esconder a tremenda raiva que sentia. E tentar reaviver seu
velho charme.
A idéia de seduzir a mulher foi-lhe inesperadamente atraente. Lembrou-se dos olhos de um dourado inusitado, cheios de frieza e desdém. Seria ela fria por dentro?
Estava aí uma pergunta interessante. E instigante.
O pensamento de Elsbeth concentrava-se mais no prisioneiro que nos perigos da viagem de volta.
Tudo havia saído de acordo com os planos, exceto o estranho sentimento que experimentara quando vira o conde pela primeira vez. Que aparência magnífica:
Os olhos cinzentos como o céu em dia de chuva, os cabelos negros como a noite sem luar. O rosto dele, gotejando água, mostrara-se severo e altivo, quase indiferente
à evidente condição de inferioridade em que se achava. O tórax nu, coberto de pelos longos, alisados pela água, era forte, musculoso e atraente em sua pujança masculina.
E o prisioneiro mal se mostrara aborrecido com a emboscada, pensou irritada. Ele havia se portado com extrema bravura e rapidez ao tentar escapar. Fazia um contraste
gritante com John Carey, cujos olhos aguados revelavam fraqueza de caráter e crueldade. John, com aquela boca cheia de dentes mal-cuidados e aquelas roupas de janota,
mais parecia um bobo da corte. Um bobo perigoso, porém.
Elsbeth sabia que o inglês devia estar sofrendo o inferno naquela posição, e sentiu-se meio culpada por ter querido que fosse assim. Poderia ter mandado amarrá-lo
em posição mais confortável, mas havia planejado essa pequena humilhação adicional. Só para provocá-lo.
É um Carey. Ele merece tudo isso, pensou. Esse inglês havia queimado campos, destruído lavouras. Uma criancinha de meses havia perecido no fogo. Não, ele não
merecia nem um pingo de piedade. Tinha mais é de dar graças a Deus por não ter sido morto no lago.
Todavia, alguma coisa ainda a incomodava. Bem no fundo, Elsbeth se indagava como uma pessoa tão vil e mesquinha podia se mostrar indomável e corajosa. Lembrou-se
de como o olhar cinzento sustentara o seu com firmeza, de como ele se mantivera ereto e digno, mesmo tendo as mãos atadas. Elsbeth também adivinhava que tinha nas
mãos um prisioneiro muito mais perigoso do que imaginara. Talvez nem a torre pudesse segurá-lo por muitos dias.
Quanto tempo levaria até que pagassem o resgate? Que não levasse muito, era o que pedia aos céus. Enviaria imediatamente um mensageiro a John com o pedido de
resgate, e tomaria providências para que a mensagem fosse entregue na frente de outros, a fim de obrigar o inimigo a tomar uma atitude. Nem mesmo um Carey ousaria
deixar um conde morrer, especialmente um que recebesse os favores da corte inglesa. Elisbeth sentiu um arrepio de maus pressentimentos. Se a missão não desse certo,
se o resgate não fosse pago, o clã exigiria a morte do conde, em troca da vida de Robert Ker. Virou-se para olhar o prisioneiro, que sacolejava a cada passo do cavalo.
O inglês devia estar com frio, pois só trajava um par de calças. As demais peças de roupa seriam entregues a ele logo que chegassem ao castelo. Pretendia manter
vivo o prisioneiro, pois morto ele de nada serviria.
A montaria do conde tropeçou numa pedra, e Elsbeth viu os músculos do torso nu se retesarem, provavelmente de dor. Mas não ouviu um só gemido, nenhuma queixa.
De repente, ela se sentiu má e cruel por ter não só permitido, como planejado, essa tortura desnecessária.
Mas conhecia bem seu clã. Sabia que não podia demonstrar nenhum sinal de fraqueza. Endireitou os ombros e ordenou a Patrick que apressassem o passo.
Após um tempo que a ela pareceu interminável, chegaram ao castelo, margeando as altas ameias antes de entrar no está-bulo. Elsbeth observou impassível seus homens
cortarem as amarras do inglês, que escorregou para o chão produzindo um baque surdo. Sob o riso escarninho dos escoceses, o conde deixou-se ficar deitado por algum
tempo, com os pulsos ainda atados nas costas e a venda nos olhos. Finalmente, conseguiu levantar-se sozinho, ainda meio trôpego.
Ela não podia ver-lhe os olhos, mas os cabelos escuros grudados no rosto suado e a boca curvada num rito amargo diziam-lhe que o prisioneiro estava extenuado.
Aproximou-se dele, observando-o. Havia uma grande cicatriz no ombro, além das marcas que as cordas tinham deixado. As espáduas largas afunilavam-se no ventre
liso, agora maltratado pelas constantes batidas que recebera durante a viagem. As calças rasgadas deixavam entrever pernas musculosas e fortes, acostumadas a correr
e a cavalgar. De repente, Elsbeth percebeu que o prisioneiro adivinhava que estava sendo examinado.
- Levem-no daqui - gritou depressa, sentindo as faces queimar.
O inglês deixou-se conduzir documente, mas de repente parou, no meio do pátio. Virou-se, caminhou até onde achava que estava Elsbeth, antes que alguém pudesse
segurá-lo, e fez mia reverência tão perfeita quanto as que são feitas na corte, diante do rei.
- Minha senhora! - disse ele, em voz alta e irônica.
Imediatamente agarraram-no e empurraram-no para a entrada da torre. Elsbeth ficou paralisada e atônita, um fluxo de calor percorrendo-lhe a espinha. Sentindo-se
infeliz e solitária, deixou que o conde fosse arrastado pela ponte levadiça até sumir de vista.
"Estou cansada, é isso", tentou se convencer, enquanto desmontava.
Encaminhou-se para o cavalo do prisioneiro, que tinham encontrado amarrado a uma árvore, não muito longe do lago. Era um belo animal, de pêlos tão pretos quanto
os cabelos do dono.
Entrou, começando a sentir os efeitos de uma noite e dois dias sem dormir. Annie, a governanta, esperava solícita ao lado da porta.
- Bem-vinda, senhora! Vossa mesa está pronta, com fatias frias de faisão e pão fresquinho. Escolhi um vinho especial da aldeia, e a água está fervendo, pronta
para vosso banho.
Elsbeth sorriu. Annie sempre a mimara com atenções e cuidados exagerados.
- Vi o conde, senhora. Que homem bonito!
- Para um Carey, até que é - respondeu Elsbeth, exagerando o tom indiferente.
Annie olhou para a patroa com expressão intrigada. Conhecia Elsbeth bem demais para se deixar enganar. Ao longo dos anos tornara-se amiga e confidente da castelã
e aprendera a não temê-la; contudo, sabia muito bem quando devia se calar. Foi o que fez, ao perceber o ar teimoso e obstinado de Elsbeth.
- Quereis o banho agora?
-Quero, Annie. Mas antes preciso enviar uma correspondência urgente. Não pretendo manter nosso hóspede aqui mais tempo do que o necessário.
- É, esse moço tem cara de ser difícil de tratar. Não me pareceu nada estúpido, como aquele irmão janota.
- É exatamente por isso que quero devolvê-lo o mais rápido possível.
- Então sua missão foi difícil, minha fada?
Annie sempre tratara Elsbeth por esse epíteto carinhoso. E não era por bajulação; a boa velha era sincera e espontânea.
- Difícil? Não muito. Mas estou cansada, muito cansada.
- É, dá para se perceber.
Para Annie, Elsbeth não estava nada cansada. O que a patroa precisava, com urgência, era de um marido. Mas essas coisas só poderiam ser ditas em ocasiões especiais.
E esta, estava longe de ser uma delas.
- Vosso banho ficará pronto num instante.
Ian e Patrick vieram ter com Elsbeth no saguão principal. Patrick havia instalado o conde na torre, enquanto Ian cuidara para que a guarda prevista fosse duplicada.
- Pretendo enviar o pedido de resgate agora - anunciou ela.
- Não concordo, prima - disse Patrick. - É melhor deixar a turma de lá ganir um pouco.
- Ora, quem diria! - riu Ian. - Uma que outra vez meu primo tem idéias boas. Eu estou de acordo com ele.
Elsbeth olhou para Patrick.
- Nosso conde deu trabalho?
Os olhos de Patrick tornaram-se mais negros.
- Ele não teve chance de me dar trabalho. Cuidei disso pessoalmente. Mas o bastardo insolente atreveu-se a me pedir para falar com você. Que audácia!
- Muita, realmente - volveu Elsbeth. - Não tenho a menor intenção de ver o inglês outra vez, a não ser na hora de libertá-lo. E a guarda, foi duplicada?
- Sim, resolvemos não deixar o homem sozinho nunca, nem na hora de... de...
- Se aliviar. Continue.
- Para tanto, tivemos de dobrar a guarda. Ou seja, ele ficará com um vigia o tempo todo, vinte e quatro horas por dia.
- Um só?
Prima, nós havíamos pensado em um vigia só, e apenas de dia, lembra-se? Agora temos dia a noite. É mais que suficiente. Dois seriam demais. Lembre-se, para esse
herói de araque escapar, seria necessário descer cinco lances de escada e ainda passar pelo clã inteiro.
- E a roupa dele?
Patrick fitou-a, aborrecido.
- Fiz como você ordenou. Mas continuo achando que ele devia ficar nu. Isso dificultaria qualquer tentativa de fuga, sabe bem disso.
- Refém morto nada vale.
- Pois para mim teria mais valor que vivo - teimou
Patrick.
- Puxa vida, primo, quanta sede de sangue! - interveio Ian, zombeteiro. - Calma, senhor vampiro!
- Ele é um Carey. Para mim, é o quanto basta. Elsbeth assistiu a essa breve discussão sem intervir. Enquanto
Patrick andava de cá para lá agitado, Ian achava-se refestelado numa poltrona, uma das pernas balançando preguiçosamente no ar. Era muito bom poder contar com
eles, tão diferentes entre si, mas sempre tão dedicados a ela. Podia se considerar uma mulher de sorte.
- Bem, primos, concordo em não enviar já o pedido de resgate; vocês parecem ter razão. A pergunta agora é: quando?
- Dentro de dois dias - respondeu Ian de pronto. - Mandei dois homens apagarem todo e qualquer prestígio de nossa presença naquele lugar. Eles podem desconfiar
que fomos nós, mas ficarão nisso.
- Dois dias... Sim, parece razoável. Na verdade, precisamos desse tempo para reforçar nossas defesas, caso os Carey decidam nos atacar.
- Exatamente.
Elsbeth bateu com a mão no joelho.
- Muito bem, assim será.
Seu sorriso era meio apreensivo, meio triunfante. A sorte estava lançada; restava-lhes esperar.
Quando subiu, Elsbeth encontrou a banheira cheia de água quente e convidativa. Mergulhou nela com deleite, pensando ainda no conde, aprisionado quatro andares
acima, numa cela mais austera e fria que a do mais humilde convento. Uma grade forte fora chumbada na janela, por onde o prisioneiro poderia enxergar apenas uma
fresta da floresta. E,uma abertura fora feita na porta, também gradeada, para que ele pudesse ser observado todo o tempo.
A despeito da água quente, um friozinho gostoso a fez arrepiar-se toda ao lembrar-se do modo altivo com que o conde a olhara. Sentiu uma estranha compulsão de
vê-lo, novamente verificar se aqueles olhos cinzentos eram mesmo tão turbulentos e vivos como julgara. Gostaria que ele tivesse gritado, esperneado, implorado. Mas,
em lugar disso, o conde enfrentara a situação com charmosa placidez. Que homem estranho!
Relutante, saiu da água e tomou sozinha a refeição. Annie tentou fazer-lhe companhia e puxar assunto, mas bastou-lhe ver a expressão preocupada da patroa para
se retirar silenciosamente.
O cansaço por fim venceu-a. Elsbeth desabou no macio colchão de plumas, certa de que adormeceria no mesmo instante. Mas os minutos foram se passando, e o desassossego
aumentando. Era uma sensação nova para ela, exasperante e cansativa.
Bom Deus, como gostaria de tirar esse homem da cabeça!
Bom Deus, como gostaria de poder pensar direito!
Alex ajeitara-se como pudera no estreito catre, que parecia ter sido feito para um anãozinho. Recebera alguns cobertores velhos e grosseiros e, de mobília, apenas
aquele estrado de madeira, perto da lareira sem lenha. Em vão Alex vasculhara a cela, em busca de uma possível arma; tudo o que encontrara fora uma bacia de estanho,
escolhida a dedo pelos carcereiros, pois era tão leve que mal daria para abater um franguinho novo.
Podia ainda sentir nas costas a rudeza dos homens que o empurraram pela interminável escada em caracol. Quando chegaram, Alex vira-se lançado ao chão com brutalidade,
e só então tivera os pulsos livres das cordas. Enquanto tentava desatar a venda, ouviu a porta bater e a tranca ser corrida com rapidez. Tudo fora muito eficiente.
Seus olhos levaram algum tempo para se ajustar à claridade que se filtrava através das barras de ferro de uma janela alta. Assim que fez um breve reconhecimento
da cela, Alex mediu com as mãos a pequena abertura da porta. A grade era tão estreita que cada quadradinho mal dava para deixar passar dois dedos. Mas podia ver
o que se passava fora da cela, tanto quanto os carcereiros podiam observá-lo à vontade.
Um dos homens, o moreno de olhos sinistros, aproximou-se da abertura,
- Confortável, milorde?
Sua voz era baixa e provocante, como o rosnar de um cão diante da caça.
- Nem tanto - retrucou Alex. - Mas já conheci lugares piores.
Só Deus sabia como isso era verdade. Contudo, não pretendia deixar que soubessem de seu passado. Não lhes daria esse gostinho.
O sorriso grotesco do homem se evaporou.
- Carey filho de uma cadela.
Alex- forçou-se a fingir descaso, conforme aprendera a agir diante de insultos e chicotadas. Sabia como aguardar sua oportunidade.
- A moça. Quero falar com ela.
A frase soou mais como ordem que como pedido, o que irritou Patrick.
- Acha que ela se dignaria a vir até aqui para falar com um Carey bastardo?
O conde dirigiu-lhe um olhar cortante.
- É para o bem dela mesma. E, naturalmente, para o meu também.
- Sabe falar grosso, milord, mesmo nessa situação.
- Nem mesmo sei o que querem de mim.
- Ainda não adivinhou, pateta? Queremos saber o quanto você vale para seu rico irmãozinho.
Alex deu uma risada amarga e irônica.
- Entendo. Mandem então o pedido de resgate. Eu ficaria muito grato se o fizessem o mais depressa possível.
- Não precisamos da gratidão de nenhum inglês, muito menos de um Carey - retrucou o escocês com secura, virando-se para descer.
- Ao menos um pouco de água.
Patrick hesitou. Elsbeth havia ordenado que o prisioneiro fosse alimentado e tratado com o cuidado suficiente para não morrer em cativeiro.
- Está bem - respondeu de má vontade. - Desde que mantenha essa maldita boca inglesa fechada.
Alex observou Patrick dar uma ordem curta, em voz baixa, aos dois homens que o acompanhavam. Um deles desapareceu escada abaixo, enquanto Patrick permaneceu
ao lado do terceiro. Então ele não se enganara; o morenão era dos líderes.
Avaliou a força do inimigo. Era alto, não tanto quanto Alex, mas tinha compleição bem forte. Parecia perigoso, tanto quanto um escocês poderia ser, o que não
era dizer pouco. Seus olhos eram esquivos, quase negros.
Alex tentou sondá-lo. Perguntou de chofre:
- Como é seu nome?
Novamente a pergunta soou como ordem, e Patrick empertigou-se.
- Sou um Ker, se quer saber. E chega de perguntas.
Alex ficou pensativo. Sabia que lady Elsbeth Ker era solteira, e as fofocas da corte contavam que ela não queria nem ouvir falar em noivo. O morenão não podia
ser irmão, pois nesse caso teria herdado o título. Quem era ele, afinal? Tutor? Secretário? Assistente? A resposta poderia ser de extrema importância.
Mas de momento nada mais conseguiria. O homem fechara a carranca e deixara bem claro que não gostara das perguntas de Alex. Teria muita sorte se a água viesse
sem maiores problemas.
Quando a água chegou, Alex pôde ver que tudo fora cuidadosamente planejado de forma a restringir-lhe qualquer chance de fuga. Mandaram-lhe que se virasse contra
a parede, bem em frente à porta. Só então abriram a porta e depositaram uma vasilha no chão, para quase imediatamente depois fecharem-na e correrem a pesada tranca.
Quando espiou pela abertura, o moreno já sumira de vista, juntamente com um dos guardas. O outro permanecia de pé, hirto como estátua, bem diante dele.
Alex apanhou a vasilha e levou-a ao catre. Somente quando deu o primeiro gole refrescante é que foi perceber como estava sedento e o quanto a incômoda viagem
o esgotara. Bebeu devagar, saboreando cada gole, tratando de economizar o mais possível, pois não sabia se receberia mais. Devia esse hábito ao tempo das galés.
Revolveu na cabeça inúmeras vezes cada imagem do que acontecera naquela manhã, e uma idéia fixou-se sinistra seu cérebro. Para capturá-lo com tanta facilidade,
os Ker forçosamente haviam sido informados sobre onde o encontrariam; não havia dúvida de que conheciam muito bem a exata localização do lago. Ninguém em Huntington
sabia aonde o conde ia todas as manhãs, nem sequer sonhava que ele se banhava no lago. Exceto John.
Resgate?
Alex soltou uma gargalhada torturada. Só não entendia como ainda estava vivo. Porque, estava certo, o irmão havia mandado matá-lo.
Se o resgate não fosse pago, sua chance de sobreviver diminuiria bastante. Podia perceber o ódio por sua família transpirando pelas paredes do castelo.
Bem, ainda restava Garrick.
E Lord John Dudley, protetor do menino-rei. Mas como se comunicar com ele? Se é que conhecia bem John, este nem pensaria em pagar resgate nenhum, e poria a culpa
de sua morte nos Ker. E isso seria um novo pretexto para novas brigas, novas queimadas, nova dizimação.
Por Deus, aquela mulher precisava vir até ali!
A claridade foi diminuindo, até quase sumir. Já era fim de tarde. Alex pensou em Garrick, esperando fervorosamente que ele desconfiasse de alguma coisa. Afinal,
tinham combinado se encontrar naquela manhã.
A grade da vigia foi aberta, e por ela foi passado um prato. Alex atirou-se com apetite à comida, aproveitando-a ao máximo, mastigando inúmeras vezes cada bocado.
Precisava manter todas as energias e o espírito tinha de ficar em permanente alerta. Não estava tão ruim quanto o mingau de água e farinha que era obrigado a ingerir
nas galés: um bom pedaço de carne seca, queijo embolorado e um naco de pão amanhecido. Nada mau, considerando-se o que padecera pela manhã.
Junto com a comida vieram suas roupas, e Alex se vestiu todo, deixando as botas encostadas na parede. A noite se prenunciava gelada e longa, lembrando-lhe a
lareira que tinha no quarto em Huntington, grande e acolhedora.
Não havia velas na cela; a única iluminação com que podia contar era a fraca chama de uma tocha que ficava ao alto da escada, ao lado do carcereiro. Habituado
que fora ao exercício do faz-de-conta, Alex imaginou-se em seu leito, ao lado da lareira.
No dia seguinte tentaria novamente falar com a Ker.
E adormeceu, enterrando fundo as dores do corpo e as perguntas da mente.
Capítulo III
Os dois homens encontraram-se na fronteira, cheios de hostilidade e desconfiança. Um mantinha a mão na espada, pronto a desembainhá-la; o outro segurava um punhal.
- Não foi esse o trato. Ele tinha de estar morto.
- Ela não deixou. Não consegui convencê-la. Decidiu que quer receber o dinheiro do resgate, para ajudar os colonos.
O homem que acabara de falar cuspiu com desprezo.
- Parece que você fez um servicinho bem-feito demais com a última queimada.
- Não haverá pagamento de resgate.
- E que desculpa vai ser dada à corte inglesa? O homem tem influência por lá, que eu sei.
O olhar do inglês dardejou na escuridão.
- Se você está tentando me enrolar, vai virar picadinho assado.
- Tanto quanto você.
Ambos rosnavam agora, presos na armadilha criada por eles mesmos. O plano fora acabar com a vida do novo conde; esse rapto inesperado transformara-se de repente
numa teia de problemas.
O escocês sabia que pisava em terreno movediço desde que resolvera se aliar àquele inglês bastardo. Mas merecia a chefia do clã, por direito de sangue. E, com
todos os diabos, haveria de consegui-la, juntamente com a mão de Elsbeth, mesmo que tivesse de vender a própria alma. Ainda sentia um longínquo remorso pela morte
do velho Robert Ker, mas julgara que essa morte apressaria o casamento de Elsbeth. Não tinha dúvida de que seria escolhido por ela, pois era jovem, forte e vigoroso.
Daria um excelente chefe de clã, muito melhor que aquele velhote piegas, que acabara abraçando ridículas idéias de paz. A paz não tinha lugar naquelas fronteiras.
Atacar os
ingleses era uma tradição antiga e muito apreciada na Escócia. As brigas serviam para manter o clã forte e preparado para as investidas, inglesas.
E seu clã conheceria a glória de outrora, mesmo que tivesse de tratar com o diabo em pessoa. Que, aliás, era exatamente o que estava fazendo.
O inglês ficou em silêncio durante longos minutos.
- A corte não pode saber, nem meus homens, que houve um pedido de resgate. Todos têm de pensar que ele foi assassinado antes que se pudesse pagar o resgate.
- E aí você terá um belo pretexto para exterminar os Ker, não é assim, seu espertalhão?
Suspeita e desconfiança adensavam-se entre os dois vultos, enchendo o ar de malignos presságios.
- Um dia, talvez. Mas no momento temos interesses em comum.
- E eu devo confiar num patife que trai o próprio irmão.
- Da mesma forma como você traiu Robert Ker.
As mãos crisparam-se em cada arma, a violência pronta a explodir. Mas foi o inglês quem primeiro relaxou. Teria muito a perder se desse livre curso ao ódio que
sentia. Em vez de reduzir o outro a um monte de carne sangrenta, como era sua vontade, soltou um risinho rouco.
- Vamos voltar ao problema de meu... irmão. O escocês nada respondeu.
- Se ele escapar da torre...
- ... e for morto durante a fuga! - o escocês captou a idéia no ar, mais animado. - Sim, pode ser esse o caminho.
- Depois de matá-lo, jogamos o corpo num rio de correnteza forte. Todos dirão que ele morreu afogado, tentando escapar da torre.
- Não vai ser fácil. Você não me contou como ele é corajoso e forte.
O inglês deu de ombros.
- Não sei como ele combate. Faz oito anos que não o vejo numa boa briga. Mas isso não tem importância, sei muito bem o caminho que ele tomará. Posso preparar
uma emboscada e cuidar dessa parte. Cabe a você dar um jeito para que de fuja.
- Você, matar aquele tigre? Sozinho? Ha!
- Tenho alguém de confiança para me ajudar. Serão dois contra um.
- E os mensageiros que irão levar o pedido de resgate?
- Têm de morrer.
- Mas são homens de meu clã!
Fez-se um silêncio pesado. Finalmente, o escocês aquiesceu, de má vontade.
- Quando perceberem que o resgate não foi pago e que seu belo prisioneiro fugiu, o clã vai exigir que a mulher se case logo - falou o inglês, em tom persuasivo
e aliciante. - Já que você não consegue conquistar a moça com seus próprios encantos, esse empurrãozinho vem a calhar, não é mesmo?
Apesar do forçado tom de brincadeira, o inglês tinha seus planos bem formados. Usaria o rapto de Alex como pretexto para atacar os Ker; com um pouco de sorte,
conseguiria até o auxílio da Coroa. Contudo, antes teria de se livrar daquele escocês maldito, que certamente daria com a língua nos dentes.
De sua parte, o escocês sabia quais eram as intenções do oponente, e também tinha seus planos. Aquele inglês estúpido nem de longe desconfiava que ele também
conhecia muito bem o caminho que o conde tomaria para fugir. Depois que John preparasse a tocaia para o irmão e o matasse, ele próprio se encarregaria de preparar
outra emboscada. Para pegar John. E daria cabo daquele maldito inglês, destruindo todas as provas da perigosa aliança.
- Muito bem, estamos de acordo.
- O pacto está feito.
Não apertaram as mãos; limitaram-se a caminhar até os respectivos cavalos, vigiando-se mutuamente.
- Com mil demônios! - explodiu Elsbeth, andando nervosa de um lado para outro, sozinha na grande biblioteca.
O segundo mensageiro que enviara com o pedido de resgate também não regressara. Já dois dias haviam se passado desde que ele partira.
Só podia haver uma única explicação. Os Carey haviam matado os dois mensageiros. E isso queria dizer que eles não tinham intenção de pagar nenhum resgate.
Também queria dizer que ela estava mantendo um refém de valor muito próximo a zero, cuja morte seria exigida, sem dúvida, pelo clã em peso. Já soubera de muitos
murmúrios descontentes de gente que queria ver o conde enforcado, em troca da vida de Robert Ker. Os Carey tinham atacado primeiro, e pelas leis tácitas da fronteira,
esse tipo de vingança era admissível, uma vez que a importância do conde era igual à do velho castelão. Esse pensamento angustiava-a mais do que imaginava. Nunca
pensara que um dia se preocuparia com a vida de um Carey.
Mas não conseguia apagar da mente a lembrança daqueles olhos cinzentos.
O conde achava-se prisioneiro na torre havia quase uma semana, e todos os dias pedia para falar com ela. Mas Elsbeth recusara-se todas as vezes, principalmente
por causa do impacto que aqueles olhos poderiam causar em sua já mente tumultuada. Muitas vezes ouvira da boca de amigas e parentes descrições apimentadas sobre
os prazeres da cama, mas nunca se deixara impressionar por elas. Ao contrário, quando via um garanhão montar uma égua, e ouvia os relinchos que mais pareciam ganidos
de dor, tinha sempre a impressão de que o ato de amor devia ser um aborrecimento doloroso, embora necessário.
Só que nos últimos dias vinha pensando demais nisso. Pior ainda, andava relacionando sem querer o conde prisioneiro com o ato de amor. O mesmo ato que antes
era objeto de escárnio e desconsideração causava-lhe agora ondas de calor e aguçava-lhe o sentimento de solidão de um modo que não conseguia compreender. A imagem
imponente e máscula do conde de Huntington atormentava-a incessantemente, em especial a noite, quando perdia o sono e seu corpo todo tremia, clamando por algo que
não sabia direito o que era.
E agora via-se às voltas com o problema de dispensar o prisioneiro.
Patrick, como era de esperar, reclamava a morte do conde; Por seu turno, Ian aconselhava-a a ter um pouco mais de paciência.
Os primos tinham saído naquela noite. Patrick fora caçar, e Ian informara que iria verificar os guardas. Todos os outros membros do clã estavam recolhidos, e
Elsbeth vira-se só com seus pensamentos. No castelo, além de Annie e duas criadas, viviam também a mãe de Patrick, Joan, e uma prima apagada e tímida, Louisa. Elsbeth
gostava de Louisa, que era órfã como ela, mas detestava a mãe de Patrick, a quem considerava ambiciosa e intrigante.
Cansada de rodar no vazio, sem saber o que fazer, Elsbeth pegou um livro para ler. Diferentemente da grande maioria dos nobres, que se vangloriavam de ser bons
guerreiros e analfabetos, Robert Ker havia aprendido latim, grego e inglês desde criança. Imbuído da idéia de que a cultura significava mais que a fortuna, ministrara
aulas à filha, que logo se afeiçoara às letras. Entusiasmado com a pronta resposta de Elsbeth, o velho aumentara consideravelmente sua biblioteca, composta de livros
escritos a bico de pena, belamente ilustrados. Havia também alguns impressos, adquiridos logo que a novidade surgira na Escócia, em 1501.
Contudo, as letras se embaralhavam diante de Elsbeth, que não conseguia tirar o pensamento daqueles olhos cor de cinza-chumbo. Era preciso tomar uma decisão
depressa; agora até os criados reclamavam, dizendo que era um desperdício gastar comida com um Carey. Ficara sabendo desses falatórios pela fiel Annie. Por outro
lado, havia a curiosidade de saber por que razão o conde insistia tanto em falar com ela. Talvez fosse uma questão de dignidade ir vê-lo e comunicar-lhe o que decidira
sobre o destino que lhe daria.
Ainda bem que nenhum dos primos estava na torre; se estivessem, certamente exigiriam ouvir a conversa toda, o que estava dentro do direito dos dois. Elsbeth
se perguntou qual seria a melhor estratégia para enfrentar Huntington, pois desde o primeiro encontro adivinhara que o homem poderia ser bastante perigoso. Não sabia
se seria melhor subir até a cela ou se mandava o homem descer. Nesta última hipótese, que lhe pareceu a melhor, escolheria a biblioteca, onde não havia janelas;
a única saída era uma pesada porta de carvalho, onde poderiam ficar duas sentinelas.
Sim, mas e se ele a subjugasse a fim de trocá-la por sua liberdade? Qualquer inglês faria isso, ainda mais um Carey! Ainda assim, hesitava ante a idéia de conversar
com ele através da abertura gradeada; pior ainda seria manter a conversa diante de um guarda. Precisava saber mais sobre o conde, que espécie de homem ele era, e
só obteria informações se estivessem sozinhos. Elsbeth orgulhava-se de saber manejar os homens tão bem quanto süa espada.
Não conseguia se resolver. Não confiava no prisioneiro, e tinha de se proteger de alguma forma. Finalmente, mandou chamar dois guardas. Quando eles chegaram,
curvaram-se diante dela.
- Estão armados?
- Sim, milady - respondeu um deles, apontando para as pistolas que traziam à cintura.
- Prestem atenção e obedeçam com rigor ao que vou lhes dizer. Amarrem bem o prisioneiro, ponham-lhe a venda e tragam-no para a biblioteca. Estarei esperando
lá. De forma alguma conversem com ele, entenderam?
Os dois se inclinaram e saíram, intrigados.
Enquanto esperava, Elsbeth tentou ler um pouco, mas foi em vão. Levantou-se, andou um pouco, sentou-se de novo. E outra vez se levantou, furiosa com o próprio
nervosismo. Não tinha certeza do que esperava, exceto que desejava rever Carey e descobrir mais sobre seu caráter. Tinha a esperança de logo se convencer de que
o homem era mesquinho, não merecendo tanto interesse de sua parte. Isso facilitaria sua tarefa e acalmaria sua consciência. Iria entregá-lo a Patrick, e que Deus
se apiedasse de sua alma.
O ruído de botas a fez levantar-se num salto. Virou-se para a porta no momento em que o inglês entrava, acompanhado pelos dois guardas. Mais uma vez, impressionou-se
com a postura calma e digna do conde, mesmo tendo as mãos atadas e os olhos vendados. Os ombros, largos e fortes, estavam cobertos por uma camisa fina, que mal escondia
a estupenda musculatura do tórax. Elsbeth se surpreendeu pela modéstia da camisa, de tecido simples e corte reto, sem adornos.
Podem tirar-lhe a venda - comandou - e esperar lá fora.
O guarda arregalou os olhos. - Milady, eu não creio...
- Tenham a bondade de sair - ordenou ela com a autoridade que aprendera com o pai.
Os dois não ousaram discutir mais, embora demonstrassem preocupação e desgosto. Ao sair, deixaram escapar entre os dentes:
- Master Patrick não vai gostar disso...
Alexander Carey piscou várias vezes, desacostumado à intensa luminosidade dos inúmeros candelabros espalhados pela sala. Quando seus olhos se adaptaram, fixou-os
nela com tranqüilidade. Depois, com a mesma calma, percorreram as estantes, a lareira acesa, o vinho sobre a mesa.
Alex inclinou-se profundamente, da mesma forma como fizera antes; porém, em vez da esperada ironia, Elsbeth sentiu forte tensão no ar. Na verdade, o conde passara
os dias perdendo as esperanças e deixara-se vencer pela raiva e desdém que sentia por todos os moradores daquele maldito castelo. Principalmente pela mulher que
ignorara todos os seus apelos, recusando-se sistematicamente a atendê-lo. Nada sabia quanto ao resgate, mas percebia que os carcereiros se tornavam cada vez mais
grosseiros e rabugentos. A única explicação que tinha para isso é que o irmão se recusara a pagar o resgate, coisa que já esperava, mas cuja constatação o entristecera
bastante.
Depois de esperar vários minutos que ela lhe dirigisse a palavra primeiro, como mandava o protocolo da corte, Alex chegou à conclusão de que aquela bela selvagem
nada sabia sobre protocolos.
- Milady queria falar comigo?
A pergunta foi feita com arrogância astutamente mesclada com polidez, o que exasperou Elsbeth. Ela o fitou, percebendo a raiva que o consumia.
- Não. Nunca quis falar com cães ingleses. Contudo, você pediu uma audiência, e eu a estou concedendo antes de mandar enforcá-lo.
- Então não houve resgate - disse ele baixinho.
Os olhos cinzentos ganharam o brilho e a dureza do aço.
- Pelo visto, seu pessoal não o tem em grande conta. Exatamente como se passa aqui.
O coração de Elsbeth apertou-se quando percebeu o sorriso amargo e torturado nascer novamente na boca vincada. Não havia mais arrogância nem ironia no rosto
do conde; apenas um breve toque de tristeza que lhe causou uma grande pena. Contudo, a expressão toque sumiu num instante, e ela se perguntou se não estaria imaginando
coisas. De qualquer modo, não estava imaginando os próprios sentimentos. Nem o súbito desejo que teve de tocá-lo. Esses não só existiam como permaneciam. E eram
torturantes.
"Cuidado, menina. Você está tratando com um Carey, um chacal sem escrúpulos. A família dele matou seu pai. E gente que trabalhava para você pereceu nas mãos
desse bruto."
Mas quanto mais o olhava, menos se convencia de que estava diante de um bruto, não obstante a barba escura que sombreava o rosto cansado, dando-lhe a aparência
de um bandido. A boca era firme, mas não cruel; os olhos estavam toldados pela raiva, mas não pela maldade; e o rosto era fechado, mas não insensível. Não, decididamente
esse não era nem um pouco parecido com John Carey. Elsbeth não podia dizer como adivinhara tudo isso; apenas intuíra.
Andou até a mesa e despejou um pouco de vinho numa taça, consciente de estar sendo observada. Sentia no conde uma força poderosa acompanhada de raiva, ambas
contidas a custo. Sabia que ele queria falar alguma coisa importante e urgente.
Mesmo assim, tamanho era seu autocontrole, que ele nada dizia, desafiando-a a tomar a iniciativa. Apenas seus olhos falavam, chamando-a, Elsbeth não sabia bem
para quê. De repente, sem qualquer aviso, os olhares se encontraram. Foi como se um hausto de ar quente os absorvesse juntos, unindo-os em meio a uma chuva de faíscas
elétricas. Ela adivinhou a surpresa alarmada nos olhos cinzentos, e tinha certeza de que também ele tivera a mesma sensação de atração eletrizada.
- Por que queria falar comigo? - falou por fim, lutando para permanecer distante.
- Para alertá-la, milady - respondeu Alex num tom baixo, quase acariciante.
Elsbeth se pôs de sobreaviso. Precisava tomar cuidado com aquele homem, que se mostrava cada vez mais perigoso. Que tipo de truque ele estava tramando?
- Me alertar sobre o quê? Só se for sobre os Carey. Esses sim, são perigosos.
- Não percebe que meu irmão está contente com esse seqüestro? John não derramará uma lágrima por mim, e minha morte será o melhor pretexto para ele pegar em
armas e aliciar até a Coroa para vir atacar vocês.
- E desde quando você se interessa pelos Ker?
Alex fitou-a com intensidade crescente. Sabia que ela não acreditaria em nada do que dissesse, mas valia a pena tentar. Que bela e voluntariosa mulher!
- A Coroa deseja a paz nestas fronteiras. Ela deu uma risada amarga.
- Sim, deu para perceber. Tanto que vocês queimaram nossas terras na semana passada. Mataram minha gente e devastaram as colheitas! E tudo, senhor conde de Huntington,
sob suas ordens! Ainda quer falar de paz?
Carey apertou os lábios. De nada serviria pôr a culpa no irmão; além disso, não era de seu feitio implorar.
- Vocês não podem nos vencer - insistiu, tentando nova abordagem. - Meu irmão não pagará o resgate, e se eu for morto a Inglaterra enviará tropas que dizimarão
estas terras.
- Acredita ser tão importante assim, milord?
- Não - respondeu Alexander com calma, sustentando o olhar zombe-teiro. - Eu não. Mas Northumberland quer a paz aqui, a qualquer custo. Minha morte será um pretexto
mais que razoável para a Inglaterra invadir a Escócia. Exatamente como sucedeu com Somerset.
- Saberemos nos defender.
- E muitos morrerão. É o que quer?
- Quero que os Carey paguem pela morte de meu pai.
Alex contemplou-a por uns instantes. Alta, orgulhosa e desafiadora, incrivelmente bonita. Amaldiçoou as cordas que o impediam de tomá-la nos braços e mergulhar
os dedos naquela massa de cabelos rebeldes.
- Nada pagarão enquanto você me detiver aqui.
- Talvez não com dinheiro. Mas pagarão com sangue.
- E depois um Ker será morto, para me vingar. Não acha que essas brigas precisam ter um fim?
Elsbeth não respondeu logo. Tinha a mente confusa e desordenada. Que estranho poder tinha esse homem de deixá-la assim?
- Jamais acreditaria num Carey, mesmo que minha vida dependesse disso. E numa luta justa, acredito que possamos vencer. Sem emboscadas, sem traições. É o que
teremos com a Inglaterra, espero.
- A Inglaterra, sem dúvida. Mas acredita que meu irmão lutaria com honestidade? A primeira coisa que ele faria seria arrasar este castelo e enforcar todos os
seus habitantes.
- Muito bem, e o que o poderoso conde pode sugerir então? Oh, não precisa responder, que eu já sei o que vai dizer. Basta soltá-lo, não é? Desse modo os Ker
terão o desprezo de toda a região!
- Não é preciso me soltar. Deixe-me fugir.
Elsbeth encarou-o, absolutamente atônita.
- Sempre ouvi dizer que os ingleses gostavam de se fazer-se de bobos. Mas você é o campeão! Ora, que audácia!
Raivosa, Elsbeth sorveu um largo grande do vinho. Tinha vontade de atirar o conteúdo da taça naquele rosto calmo e impassível.
- Milady não quer me desamarrar? Mesmo que eu dê minha palavra de honra que não tentarei fugir?
- Sua audácia cresce a cada momento, conde. Está maluco?
- Talvez - respondeu Alex, sorrindo. - Mas também estou com muita sede.
Elsbeth recuou ao impacto daquele sorriso inesperado. Se a sala toda não estivesse aquecida pela lareira, certamente o conde conseguiria esquentá-la apenas com
seu charme arrasador.
Aborrecida com o curso que a conversa ia tomando, Elsbeth dirigiu-se para a porta.
- Se isso é tudo o que tinha para me dizer...
- Não, milady, há mais - interrompeu Alex, em tom de imperioso comando.
Elsbeth se voltou e notou que o sorriso sumira. A chama de vida que dançara por alguns instantes nos olhos cinzentos tora engolida pelas mesmas nuvens ameaçadoras
que vira naquele dia, na margem do lago. Determinada a não deixar-se intimidar, a castelã ergueu o queixo.
- Estou ouvindo.
- Que foi que meu irmão respondeu ao pedido de resgate?
- Nada. Mandei dois de meus melhores mensageiros, em dias diferen-tes, e nenhum deles voltou. Se estiverem mortos, é mais uma razão para eu mandar enforcá-lo.
- Talvez nenhum dos dois tenha chegado ao destino, milady.
Elsbeth piscou, surpreendida. Mas nada disse, preferindo não externar sua opinião no momento.
- Alguém mais, que não seja de seu clã, sabe que fui raptado?
Ela não respondeu, franzindo a testa. Esse conde estava tramando alguma coisa!
- Sabe ou não sabe? Responda, por favor.
- Não creio - respondeu ela, depois de considerar a pergunta por algum tempo.
- Então ninguém sabe também que meu irmão se recusou a pagar um resgate... porque os mensageiros jamais conseguiram chegar em Huntington.
Os olhos dela se alargaram, assustados. Ninguém fora de seu próprio clã sabia da existência dos mensageiros, muito menos do conteúdo da mensa-gem. Se era verdade
o que o conde insinuava, então alguém de seu clã havia impedido a chegada dos mensageiros.
- Não! - gemeu, baixinho.
Ele atravessou a sala, chegando mais perto da castelã.
- Asseguro-lhe, milady, que a Coroa ficaria muito zangada com meu irmão se soubesse que ele se recusou a pagar meu resgate. John poderia até ter matado o primeiro
mensageiro, por um golpe de sorte, antes que alguém o tivesse visto. Mas o segundo... É muita coincidência, não acha?
- Não sei o que quer insinuar, conde.
- Acho que sabe, milady.
- Não temos traidores aqui!
- John é meu próprio irmão, e ele me traiu.
- Vocês são ingleses! - explodiu ela, como se isso explicasse tudo.
Diante da simplicidade da acusação, Alex se permitiu sorrir mais uma vez.
- Quer dizer que não existe traição entre escoceses? Basta olhar para trás e estudar um pouco da história de sua pátria, milady. Tudo o que lhe peço é que pense
no que lhe disse.
- Não, não é tudo. Você me pediu mais que isso!
- Quero a paz - retorquiu ele, com voz subitamente cansada. - Quero gado gordo, campos floridos, colheitas fartas. E colonos felizes.
- Não, você quer gado dos Ker, campos dos Ker, e todos os escoceses longe daqui, para não dizer no fundo do inferno. Essa sua conversa fiada não me engana!
Alex não sabia, mas Elsbeth estava a ponto de explodir em lágrimas. Por mais que fizesse, ela não conseguia se esquivar da instigadora magia daquelas palavras,
daqueles olhos cinzentos e atormentados. Já nem sabia mais de que lado estava a verdade. Para ela, chegava.
Elsbeth abriu a porta.
- Podem levar o cão inglês de volta para a cela. E depressa.
Mas Alex não se deu por vencido. Recuando um pouco, perguntou, com um sorriso quase irresistível, onde nada havia de humildade:
- Será que este pobre cão inglês poderia ser agraciado com uma lampa-rina em seu canil?
- E um livro, sem dúvida? - redargüiu ela, com zombeteira superi-oridade.
Era sua intenção humilhá-lo um pouco. Eram muito poucos os nobres que sabiam ler, ingleses ou escoceses. Para sua surpresa, ele ficou muito sério.
- Eu ficaria duplamente agradecido, milady.
- Seria melhor rezar, em vez de ler.
- Mas, de acordo com o que me disse, isso seria uma perda de tempo.
A chama de divertimento brincava novamente no fundo da tempestade cinza. Elsbeth se indagou se isso acontecia com freqüência; a verdade é que aquela centelha
suavizava bastante sua expressão endurecida.
- O conde sabe ler, então?
- Sim, minha senhora. Também respiro. Sinto dor. E até rio, se bem que mais raramente.
Elsbeth mordeu o lábio. Ele estava ironizando outra vez,mas não tinha como se sentir ofendida, uma vez que o conde fazia ironias a seu próprio respeito. Existia,
todavia, uma estranha seriedade por trás daquela ironia, como se o simples exercício de ler fosse, para ele, algo realmente importante. E necessário.
- Estudarei seu pedido, conde.
- Com um livro ficarei manso como um cordeiro, milady. Prometo não fazer mais nenhuma travessura!
Dessa vez ela não pôde deixar de sorrir. Não faltava petulância nem presença de espírito no conde. Mas honra? Essa era outro assunto.
Elsbeth acenou para os guardas, que se aproximaram e começaram a vendá-lo.
- Um pouco de vinho também não me faria mal nenhum, milady.
Elsbeth levou a mão à boca, forçando-se a esconder o sorriso.
- Levem esse homem daqui, antes que eu mesma o enforque agora!
Bom Deus, que mulher extraordinária!
Durante a penosa semana que se passara, muitas vezes Alex se indagara se ela era realmente tão bela quanto sua memória o levava a crer. Tivera pouco tempo para
olhá-la, entre a tentativa de escapar e a venda nos olhos, mas a imagem que havia gravado em sua retina era a de uma deusa de olhos dourados e cabelos da cor de
sol poente. Julgava que fora levado pela fantasia, mas agora sabia que não.
Lady Ker era ainda mais bonita quando tentava dissimular o sorriso e mostrar-se zangada.
Esfregou os pulsos doloridos e aproximou-se da janela, pondo-se na ponta dos pés para poder ver alguma coisa. Mesmo assim, mal conseguia divisar algumas fogueiras
espalhadas na floresta escura, certamente gente do clã acampada. Nada para lhe dar uma única pista; nem mesmo as outras torres podia enxergar dali. Os Ker tinham
escolhido a dedo sua prisão.
Havia uma fatia de lua no céu, logo encoberta pela renda das nuvens. Vagarosamente deixou-se escorregar para o chão, pensando na conversa que tivera. E na bela
interlocutora que tanto o intrigava.
Não se enganara quanto ao corpo da lady; neste dia pudera apreciá-lo livre daquele manto escuro. Alex era um apreciador da arte, e o corpo feminino, para ele,
era a mais suprema de todas elas. Elsbeth apresentara-se com um vestido que logo lhe chamara a atenção pela simplicidade elegante, qualidade rara até mesmo ha corte.
Era de veludo verde, muito bem talhado e ajustado na cintura fina, de onde pendia uma banda com a típica faixa escocesa verde e vermelha; o corpete, decotado o suficiente
para deixar entrever a pele acetinada, contrastava magnificamente com o pequeno debrum de pérolas. E, acima de tudo, fazia um jogo de cores fascinante com os cabelos,
soltos e livres, que cascateavam-lhe pelas costas em glorioso abandono. No conjunto, a figura de Elsbeth era soberba.
Mas o que lhe tirara o fôlego, deixando-o em perdida fascinação, foram os olhos, de ouro e avelã, cheios de espírito e inteligência.
E que rapidez de raciocínio! Pegara no ar tudo o que Alex tentara dizer, fosse nas entrelinhas, fosse diretamente. Mesmo não tendo acreditado em nada do que
ele dissera, sua inteligência aguda certamente a obrigaria a estudar com mais atenção as palavras de Alex. Quanto a isso, ele estava absolutamente tranqüilo.
Alexander acostumara-se a exercitar a paciência e aprendera a fazer da própria raiva sua grande aliada; sabia deixá-la explodir somente na hora apropriada, e
na medida certa. De momento, raiva e paciência concentravam-se num único alvo: seu irmão John. Não os Ker; esses tinham sua parte de razão.
Se ao menos pudesse fugir dali, bom Deus.
Como de costume, desviou a atenção dos problemas menores - descon-forto, fome, sede, pequenos ferimentos que ainda o incomodavam - para concentrá-la no único
e imediato problema que tinha pela frente: fugir.
Ninguém ali parecia disposto a lhe dar uma trégua. Sempre havia um guarda em frente à porta, observando-o com desconfiança de minuto em minuto. Quando descera
para falar com Elsbeth, sentira a presença de um considerável número de pessoas, embora todos tivessem feito silêncio quando ele passara. Um silêncio sinistro e
hostil.
Todavia, era preciso tentar. Adivinhara que o fato de seu resgate não ter sido pago transformara-se num dilema para a lady, e tencionava tirar partido disso
de alguma maneira. Mas como?
Apesar das palavras cortantes de ameaça que ela lhe dirigira, Alex tinha absoluta certeza de que Elsbeth jamais o mandaria matar por vontade própria. Contudo,
não sabia até que ponto ela conseguiria controlar a ira e a sede de vingança do clã.
De momento, só lhe restava a esperança de que suas palavras encontrassem terreno fértil. Ele mesmo não tinha dúvida de que a castelã estava sendo traída, e por
alguém importante do clã. Também não tinha dúvida de que essa verdade só seria aceita e digerida com muita dificuldade. Isso levaria tempo, e Alex desconfiava que
não dispunha de quase nenhum.
Era um tênue fio de esperança, mas melhor que nada. Encontrava-se totalmente à mercê da estonteante castelã, chefe do poderoso clã Ker. Bom Deus, que mulher
bonita.
Era a primeira que conseguia despertar seu corpo, desde que Nadine se fora. Nadine, com sua beleza calma e coragem resoluta, ensinara-o a respeitar o amor. Durante
os últimos anos, o coração de Alex fechara-se em luto obstinado, insensível aos apelos das mulheres mais bonitas da corte. Agora, porém, tinha os nervos à flor da
pele; sentia excitamento fervendo no sangue, suas virilhas estavam constantemente tensas, e o desejo, que julgava morto para sempre, voltara a atormentá-lo nas noites
solitárias.
Riu baixinho. Sempre gostara de remar contra a maré; seu maior prazer era conquistar o inconquistável. Essa, entretanto, era a mais maluca de todas as empresas
que jamais imaginara. Ficara totalmente atraído pela mais proibida de todas as mulheres do mundo.
Lady Elsbeth Ker era a cabeça do clã que jurara destruir a ele e à sua família. E achava-se nas mãos dela.
Deus o ajudasse.
Elsbeth, sentada em frente à aconchegante lareira do quarto, escovava os cabelos, alheia às chamas que crepitavam e dançavam alegres.
Alexander Carey, conde de Huntington, era um enigma incompre-ensível. E ela sempre fora muito boa para decifrar enigmas.
Seus modos inconstantes, suas mudanças bruscas de gênio, de idéias, de pensamentos, punham-lhe a cabeça confusa e dolorida. A idéia maluca de ajudá-lo a escapar
da torre fora brevemente mencionada e imediatamente posta de lado, bem como a insinuação terrível de que alguém do clã a estava traindo.
Foram frases soltas, ditas na medida apenas suficiente para despertar-lhe a curiosidade, sem dar chance de serem discutidas e rejeitadas. Mas haviam surtido
o efeito esperado, pois não cessavam de martelar-lhe o espírito.
Soltou uma praga, daquelas que aborreceriam Patrick e divertiriam Ian. O lorde inglês era muito mais esperto do que imaginava, que a peste o levasse!
De roupas amassadas, cabelo despenteado e barba mal crescida, Alex tinha mais a aparência de um salteador ou bandoleiro; porém nos modos, na fala e na maneira
de pensar portara-se como verdadeiro lorde. E, para piorar as coisas, tinha tremenda consciência do próprio charme!
Lembrou-se do sorriso brincalhão que acompanhou seu pedido de luz para o "canil". E do descarado pedido de vinho. A arrogância desse inglês parecia não ter limites,
mas havia alguma coisa por trás dela. Elsbeth sentira uma nostalgia melancólica, uma espécie de vulnerabilidade na forma, aparentemente descuidada, com que ele formulara
os pedidos. E quando mencionara a paz. Contudo, o conde não se defendera quando ela o acusara de ter atacado e devastado seus domínios.
Comparou-o aos perigosos terrenos que bordejavam as fronteiras da Escócia e da Inglaterra, os célebres marches. Ai de quem não os conhecesse bem! O que parecia
solo firme muitas vezes vinha a ser areia movediça.
Mas alguma coisa naqueles olhos cinzentos havia atingido em cheio seu ser e começava a criar raízes. Elsbeth não compreendia o que era, mas tinha a devastadora
sensação de ter começado algo que não mais podia deter.
Capítulo IV
Elsbeth não se esquecia das palavras do prisioneiro. Mas quanto mais pensava nas terríveis acusações implícitas, mais furiosa ficava. Ele que se recolhesse à
sua insignificância inglesa. Que guardasse suas maldosas insinuações para si. O clã Ker era-lhe leal, tanto quanto o fora para seu pai.
Patrick e Ian logo souberam da entrevista, e como era de esperar, nenhum dos dois gostou da notícia. Tão logo tomaram conhecimento do fato, haviam ido tomar
satisfação da prima.
- Mas por quê, com todos os diabos?!
Elsbeth conhecia a arte da arrogância, mas não gostava muito de usá-la, reservando-a para ocasiões especiais.
- Fiquei com vontade de me enfrentar com um Carey -declarou, os olhos dourados desafiando-os.
Ian intimidou-se. Elsbeth podia ser arrasadora, se quisesse. Arriscou:
- Acha que agiu certo, prima?
- Ele estava de olhos vendados.
- Se tivermos de matá-lo - interveio Patrick -, assim vai ser mais difícil para você.
Ela deu-lhes as costas.
- Sei cuidar de mim.
Ian fez uma careta.
- Não tenho dúvida disso, priminha. E o que achou de nosso honrado hóspede?
Elsbeth não tinha resposta a essa pergunta. Na verdade, ainda não sabia o que pensar de Alexander Carey, conde de Huntington.
- Parece igual aos outros, bastante versado em traições. Mas vamos ao que interessa. Alguma notícia dos mensageiros?
Ian fez-se grave:
- Nada. E não temos gente mais leal e dedicada que Robine Will.
- Não sei como vamos dar a notícia a Cara - resmungou Patrick -, se bem que a esta altura ela já deve estar desconfiada.
Elsbeth mordeu o lábio. Cara era filha de Robin, uma garota linda, terna e meiga.
- Bem, Cara poderá vir morar conosco, e será muito bem-vinda. Annie vai gostar de uma ajudante. Mas não poderemos dar-lhe um salário muito alto.
Patrick franziu o cenho, os olhos muito escuros.
- Isso não basta. Alguém tem de pagar pela perda de nossos dois melhores mensageiros, prima.
Elsbeth fitou-o com firmeza.
- Alguém pagará.
- Nosso conde?
- Talvez. Mas eu preferiria encontrar o verdadeiro assassino.
- Se não foi ele, foi o irmão - interveio Ian, com desusada amargura.
- Afinal, Elsbeth - inquiriu Patrick - que, diabos vamos fazer com o homem lá em cima? Não podemos ficar com ele eternamente!
- Não mesmo? - redargüiu ela, com os olhos dourados brilhando intensamente. - Não vejo por quê.
Patrick ficou mais sombrio ainda, quase sinistro.
- E um homem perigoso e astuto, que só pode nos causar mal enquanto ficar lá em cima. E está mais do que claro que o maldito irmão nem quer ouvir falar em resgate.
- Precisamente por isso é que devemos ficar com ele - retorquiu Elsbeth. - Encarcerado, nosso conde fica totalmente sem ação. E John Carey não poderá mover um
dedo para obter o título enquanto não tiver certeza de que o irmão está morto. Para que iríamos dar-lhe esse presente?
Os primos olharam-na pasmos, Ian com um sorriso crescente, Patrick apertando os lábios.
- Repito, não podemos mantê-lo aqui para sempre - disse Patrick.
Mas Elsbeth notou um toque de dúvida que não existia antes.
- Podemos. Basta-nos continuar vigiando com o mesmo cuidado.
Ian deu uma risadinha satisfeita.
- John Carey vai ficar uma fera!
- Não poderá reivindicar o título... - começou Patrick, menos carrancudo.
- ...nem arrebanhar os homens, que ainda são do conde... - continuou Ian.
- ...a menos que saiba com certeza que Alexander Carey está morto! - completou Patrick, admirado.
Ambos encararam Elsbeth com respeito renovado.
Alex contava os dias religiosamente. Todas as manhãs fazia uma peque-na marca com as unhas no catre de madeira. Desde sua humilhante captura já haviam se passado
quinze dias. E ainda sentia na pele a vergonha de ter-se deixado apanhar, porque sabia que a culpa fora dele mesmo. Negligenciara as mais elementares regras de precaução,
principalmente numa região belicosa como aquela.
Por uma terrível ironia, fora a liberdade, tão preciosa para ele, que o conduzira de volta ao cativeiro. Gostava tanto daqueles momentos livres e solitários
na floresta, da água fresca e revigorante do lago, que simplesmente havia ignorado os perigos da fronteira.
Para ele também era um estranho paradoxo essa rixa interminável entre escoceses e ingleses. Tanto um povo quanto o outro tinham muita coisa em comum: amor pelas
terras, paixão pelo esporte. O escocês adorava uma boa piada, tanto quanto o inglês. E ambos tinham coração generoso. Então, por que toda aquela loucura?
Naquele dia, Alex estava particularmente entediado. Percorreu a cela diversas vezes, como um lobo enjaulado, bufando de impaciência. Nas galés, pelo menos, o
trabalho estafante levava-o a despencar na cama quando era dado o toque de recolher. Conseguia dormir a noite toda, e não havia sonho mau nem preocupação capaz de
acordá-lo. Ali, porém, não conseguia dormir, pois nada fazia durante o dia, exceto pensar.
Sua mente ocupava-se basicamente de duas coisas, embora ele preferisse ficar com uma só. A principal era a fuga. A outra, Elsbeth. Quanto mais se esforçava para
não pensar na lady, mais a danada se insinuava em seus pensamentos. Já se passara uma semana desde a entrevista, e Alex começava a acreditar que ela de nada valera.
Apesar de Elsbeth ter dito que estudaria seu pedido de leitura, nada lhe fora concedido. Tivera de contenfar-se em pensar e em devorar as espartanas refeições que
recebia, duas vezes por dia. E em aturar as grosserias dos carcereiros, que a cada minuto espiavam por trás das grossas barras.
Para se certificar de que ele ainda estava ali? Quanta ironia! Ah, se fosse um pássaro...
Foi para perto da janela, em busca do céu azul. Pelo menos isso ele tinha. Nos três anos de galés vira o céu apenas três vezes, incluindo o dia em que chegara
e o dia em que fora libertado. A única vez que subira ao convés durante o cativeiro fora para presenciar o enforcamento de um dos companheiros.
Alex preferia não pensar muito nessa época, cuja lembrança trazia-lhe dolorosas lembranças. Depois de liberto, conseguira afastá-las da cabeça à custa de muito
esforço. Até as cicatrizes estavam diminuindo. Olhou para os tornozelos, onde as pesadas correntes se fixavam, prendendo-o ao banco do navio. Sim, estavam quase
invisíveis agora. A do ombro ficara, por ser muito maior. Ganhara-a tentando defender um companheiro, e quase fora enforcado por isso.
E Nadine. A lembrança dela começava a diluir-se, e isso o assustava um pouco. Porque sabia muito bem a causa. Elsbeth, sempre Elsbeth.
Ouviu um barulho na porta. Um par de olhos fitavam-no por trás das grades. Alex odiava aquilo, odiava sua total falta de privacidade. E então a porta se abriu
para dar passagem àquela que lhe roubava o sono há dias.
Talvez fosse o sol, cujos raios batiam exatamente no ponto em que ela se achava. Talvez fosse apenas porque ele estava infernalmente entediado e aborrecido naquele
dia. Alex não sabia a causa; mas Elsbeth pareceu-lhe mais esplendorosa que nunca.
Levantou-se, fitando-a com olhos cansados, embora sua boca se curvasse num sorriso cheio de charmosa simpatia. Acabara de ver que a lady não entrava de mãos
abanando. Sem poder se conter, correu para ela, recebendo os ambicionados presentes com sincero alívio: uma vela, acompanhada da pedra-de-fogo para acendê-la, um
livro e um recipiente de couro, que parecia conter algum líquido. Alex estava ardendo de vontade de examinar tudo, mas não se esqueceu do protocolo. Colocou tudo
no chão e fez uma profunda reverência.
- Obrigado, minha senhora. É muito atenciosa e gentil... ou devo encarar esses presentes como o atendimento ao último desejo de um condenado?
Os olhos dourados fixaram-se nele. Alex jamais se cansaria de admirar a corrente de vida que eles transmitiam, reflexos de luz num riacho cristalino correndo
sobre a terra castanha. Não havia sinal de hostilidade; eram olhos apenas francos e diretos. A única coisa que faltava neles, pensou Alex, era o medo.
A moça era mesmo corajosa, vindo sozinha, e ele estando de mãos livres. Não lhe seria difícil agarrá-la pelo pescoço e exigir a liberdade em troca da vida dela.
Entrefitaram-se, um sabendo exatamente o que o outro pensava. Houve um breve momento de tensão, que logo se dissipou. A admiração de Alex aumentou quando Elsbeth
virou-se para a porta, que ainda estava aberta, e ordenou ao guarda que a acompanhara:
- Tranque a porta e espere por mim aí fora.
O guarda atendeu-a sem ousar piscar, embora estivesse de evidente má vontade. Quando ficaram sozinhos, Alex perguntou, com delicadeza:
- Não tem medo de mim, milady?
- Por quê? Acha que eu deveria?
- Da outra vez foi essa a impressão que tive. Milady deixou-me de mãos atadas.
- Os guardas têm ordens. Se você puser um dedo em mim, deverão matá-lo. Mesmo que eu morra junto.
- Dá tão pouco valor assim à sua vida?
- A honra vale mais que ela.
- Sim. Também penso assim.
- O que sabe um Carey sobre honra?
- Por que um Ker perguntaria isso, se obviamente pensa que já sabe a resposta?
- Pura curiosidade.
Alex perscrutou-lhe o olhar, mas só encontrou sinceridade e franqueza. Tentou provocá-la.
- Curiosidade por um cão inglês, milady? Ela corou, lembrando-se da última conversa.
- Pode ser.
Alexander encostou-se na parede, procurando aparentar uma fisionomia relaxada, embora cada músculo do corpo estivesse tenso. Queria fazer o possível para não
assustá-la.
- Já decidiu qual vai ser meu destino?
- Você ficará aqui ainda por algum tempo.
- Ah, o período da graça - disse ele, referindo-se ao período em que os condenados à morte desfrutavam alguns direitos especiais, como era costume na Escócia.
- Não pensei nisso, conde - respondeu ela, sorrindo pela primeira vez.
- Porque os ingleses não têm esse costume.
- É um belo costume.
- Mas temos outros, tão bonitos como esse. Por exemplo, quando um inglês recebe uma visita inesperada.
Dizendo isso, Alex curvou-se profundamente, levando o braço direito para a frente, sem contudo se aproximar muito. Queria evitar qualquer possibilidade de mal-entendido.
- Permita-me dar-lhe as boas vindas, milady, em minha humilde casa.
Havia um toque .muito leve de humor na voz do conde.
Elsbeth olhou em volta e viu as paredes de pedra, nuas e frias, o teto pouco acolhedor e o catre minúsculo, sem poder evitar um sentimento de pena. Como seria
viver dias e dias num ambiente daqueles? Certamente não suportaria nem um só dia. Os olhos dourados buscaram os dele.
Gostaria de ler-lhe o pensamento. Mas os olhos de Alex eram um mistério cinzento, que nada revelavam além do que ele queria revelar. Neles não havia nem a raiva
nem a arrogância do outro dia. Apenas um desafio, que ela sabia muito bem qual era.
Como esse homem conseguia afetá-la tanto? Era seu prisioneiro, que a praga o levasse! Contudo, naquele momento, parecia-lhe que os papéis haviam sido invertidos.
Não conseguia pensar direito quando estava a seu lado, porque seria capaz de jurar que o maldito inglês saberia exatamente tudo o que se passasse em sua cabeça.
Alex sorriu e desviou o olhar para as coisas que ela trouxera. Com calma quase preguiçosa, abaixou-se e apanhou o livro, abrindo-o. Foi uma surpresa agradável
quando percebeu que se tratava da tradução da Ilíada, de Homero. E em latim, sua língua predileta para leitura.
Assombrou-se com a escolha sagaz de Elsbeth. Era exatamente a leitura que lhe faria bem agora, mas como poderia ela saber? Só se tivesse uma alma muito, muito
sensível. Além do mais, ela lhe dava uma prova irrefutável de confiança. Qualquer livro custava uma fortuna, principalmente naquela região, por serem raros e difíceis
de encontrar. Quando fora à biblioteca, ficara pasmo com a quantidade de livros, e cobiçara ardentemente ler um deles, qualquer um.
Olhou-a, entre boquiaberto e maravilhado. Poucas pessoas na Escócia, ou na Inglaterra, eram capazes de ler e escrever, embora o parlamento escocês tivesse decretado,
cinqüenta anos antes, que todos os morgados - isto é, os filhos mais velhos e herdeiros - aprendessem latim e estudassem Direito. Mesmo com esse decreto, o pessoal
da fronteira nem pensava em letras ou em leis. Era mesmo assombroso que nesses confins de mundo houvesse semelhante tesouro em livros. Mais assombroso ainda o fato
de que sua maior inimiga podia lê-los. E emprestá-los ao inimigo.
A família de Alex jamais se dedicara aos estudos; o pai não sabia nem assinar, assim como os irmãos. Ele próprio fora criado pensando que apenas os maricás se
prestavam ao estudo. Nadine, porém, abrira-lhe os olhos para o bem mais precioso do mundo, a cultura. E, com paciência e dedicação, ensinara-lhe tudo o que hoje
ele sabia.
Finalmente a máscara misteriosa escorregou dos olhos cinzentos, deixando entrever um brilho de prazer agradecido.
- Meu mais sincero obrigado, milady.
Mais uma vez Elsbeth foi assaltada por emoções conflitantes. O conde não fingia interesse; tinha certeza de que ele era genuíno, o que surpreendeu em parte.
Escolhera o livro a dedo, perguntando-se se era mesmo verdade que Huntington podia ler. Quando muito, talvez lesse um pouco em inglês. Mas agora via que aquele homem
estranho ainda podia causar-lhe muitas e inesperadas surpresas.
Ninguém mais de seu clã se interessara pela leitura. Nem mesmo um só de seus conhecidos podia ler. Ninguém.
Exceto um inglês. E, ainda por cima, Carey! Era uma descoberta no mínimo desconcertante.
Elsbeth sabia que a decência e o decoro mandavam-na sair agora, mas não se resolvia. Era como se estivesse acorrentada ao chão. Observou-o estudar o livro, uma
mecha dos cabelos pretos caída sobre a testa franzida. A barba havia crescido bastante e cobria-lhe todo o rosto, tornando suas feições a um tempo mais rudes e atraentes.
Pela camisa entreaberta, podia ver os pêlos negros do peito bronzeado, o que a fez lembrar-se de como ele lhe parecera forte e potente no lago, a água pingando dos
pêlos em gotinhas reluzentes.
As mãos de Alex pareciam acariciar suavemente o livro. Por um breve e louco momento, Elsbeth imaginou-se no lugar do livro. Teve uma súbita vontade de trazer
mais livros, muitos mais, só para ver de novo aquele fugaz brilho de alegria nos olhos cinzentos e torturados. Pensou na lenda das sereias, que atraíam os marinheiros
para as profundezas do mar. Era exatamente como se sentia agora. Irresistivelmente atraída, seduzida, enfeitiçada.
Desprezava-se por ter esses pensamentos. E começou a detestar Alexander Carey, por deixá-la em tal estado de confusão. Tinha de livrar-se daquele homem, o quanto
antes.
Sem dizer uma palavra, Elsbeth virou-se para sair, mas a voz de Alex paralisou-a.
- Pensou no que eu lhe disse, milady?
Ela se voltou, contente por usar saias. Pelo menos ele não veria suas pernas tremendo como geléia.
- O conde disse muita coisa naquele dia. A maior parte era pura bobagem.
- Maior parte? Então alguma coisa fez sentido.
- Sim, fez.
- Por exemplo?
- Que seu irmão quer traí-lo.
- Nada mais?
- O resto foi invenção de sua cabeça, conde. Para me deixar confusa.
Ele nada disse, mas fitou-a com tamanha intensidade que Elsbeth pensou que teria de recuar.
- Eu preciso ir agora.
Mas, para sua irritação, não despregou os pés do chão. Não entendia o que se passava com ela, mas sabia que era algo que a assustava. E muito.
- Tenho mais um pedido para fazer, milady.
- São pedidos demais, para alguém na sua condição. A expressão do conde voltou a ser impenetrável.
- Não custa tentar, uma vez que pouco tenho a perder.
- Seu tempo, talvez. Ele poderá ser abreviado, se continuar a me aborrecer desse modo.
- Devo, então, o prolongamento de minha vida a milady?
- Meu clã tem menos paciência que eu. Mas previno-o que a minha também está se esgotando.
Ele deu alguns passos na direção de Elsbeth, que teve de fazer enorme esforço para sustentar-lhe o olhar. Alex tinha um físico impressionante. Mais alto que
qualquer homem do clã e tão forte quanto o mais truculento de seus guerreiros. Contudo, eram os olhos o que mais a assustava. Não que se mostrassem ameaçadores;
mas a intensidade com que a encarava deixava-a fraca, quase sem vontade própria. Nessas horas, Elsbeth julgava-se capaz de fazer absolutamente tudo o que ele quisesse.
E isso a apavorava mil vezes mais que um ataque físico.
- Se milady puder atender ao pedido que vou fazer, nós dois sairemos ganhando bastante.
- Sim? E como aconteceria esse milagre?
- Milady prefere receber o resgate a ordenar minha morte, não é assim?
Elsbeth considerou a pergunta por alguns instantes.
- Prefiro. Os Carey causaram pesadas perdas ao meu clã. O pagamento do resgate ajudaria a recuperar um pouco do que vocês roubaram de nós.
A castelã notou que a veia das têmporas de Alex latejavam. Foi esse, porém, o único e breve sinal de tensão que conseguiu captar no rosto do conde. Mais uma
vez, teve a sensação de que Alex Carey possuía um invejável autocontrole.
- Há um homem em Huntington, em quem confio inteiramente. Chama-se David Garrick. Ele poderá fazer com que a Coroa fique sabendo de tudo o que está se passando
aqui nas fronteiras. John será obrigado a pagar o resgate; não ousará dar outro passo, para não cair em desgraça na corte.
Elsbeth relaxou um pouco. Afinal, o objetivo de ambos era muito parecido; o conde queria a liberdade, e ela queria se ver livre do incômodo prisioneiro.
De qualquer modo, não gostava da idéia de entregar o comando da situação para Alex. Desconfiava que estava acontecendo exatamente isso, coisa que a aborrecia
profundamente. Foi, pois, em tom cáustico que perguntou:
- Mais alguma coisa, milorde?
- Passe a mensagem a quem confie inteiramente, sem mais explicações. E não conte a mais ninguém.
Elsbeth corou de raiva. Mais uma vez aquele arrogante se atrevia a insinuar traição em seu clã.
- Não gosto do que está insinuando, conde. Nós, os Ker, não somos traiçoeiros como os Carey.
- Então será uma ótima ocasião para me provar o quanto estou errado, milady.
- Não tenho de lhe provar nada. Milord parece se esquecer constan-temente de que é meu prisioneiro e está sujeito à minha vontade.
- Nunca, milady - respondeu ele, num sussurro que mais parecia o rosnado de um tigre bravio. - Não me esqueço de nada. Sei quem sou e o que estou fazendo aqui.
- Então tenha cuidado com essa língua afiada.
- No momento, ela é a única arma de que disponho.
- Também pode ser sua maior fraqueza.
- E qual seria a sua fraqueza, minha senhora... Elsbeth? Recusar-se a acreditar na evidência?
- Nunca lhe dei permissão para me chamar pelo nome.
- Milady fugiu a minha pergunta.
- Confio em meus homens, lord Huntington. Não preciso testá-los.
Ele se encostou novamente na parede, os olhos cinzentos e profundos desafiando-a sem insolência, mas com firmeza.
Outra vez a imagem de um tigre veio à cabeça de Elsbeth. A fera esperava pela presa, forçando-se a economizar os músculos poderosos e fortes. Os lábios de Elsbeth
tremeram um pouco, apesar do esforço que fazia para não dar nenhum sinal de fraqueza diante do conde.
- Milady, só lhe peço que entregue a mensagem para uma única pessoa. E que nenhuma outra saiba dessa missão.
- E se meu mensageiro também não voltar? Quanto a esse homem de quem me falou, Garrick, e se ele não for tão leal quanto pensa?
- Estou disposto a arriscar minha vida. E a senhora?
- Não é a minha que arrisco, é a do mensageiro. Permita-me lembrá-lo, conde, que sua vida já está algo... comprometida, por assim dizer.
- Milady quer o resgate, e para isso precisa correr algum risco.
Elsbeth tinha plena consciência de que o conde sabia que ela não resistiria a mais esse desafio, lançado com perícia e precisão. Que demônio! Mas não quis entregar-lhe
a vitória com muita facilidade.
- Estudarei sua proposta, conde.
Alex disfarçou um sorriso. Tinha alcançado seu objetivo maior, e isso era o que mais importava. Se alguém alcançasse David, entregasse a mensagem e conseguisse
voltar, certamente viria com a notícia de que nenhum pedido de resgate havia sido feito a Huntington. E a sólida fé que Elsbeth tinha no clã seria minada.
- Foram os Carey que mataram meus dois mensageiros - tornou ela, teimosamente. - Os Carey têm a merecida fama de assassinos.
Um músculo tremeu quase imperceptivelmente no rosto de Alex, bem abaixo do olho esquerdo. Elsbeth não sabia se era sinal de impaciência ou desagrado pelas palavras
que acabara de proferir, mas estava satisfeita de ter atingido o alvo de alguma maneira.
Alex forçou-se a não cerrar os punhos e a não demonstrar sua crescente impaciência. A moça se recusava a ouvir as possibilidades que ele lhe apon-tava, e que
agora já haviam passado para probabilidades.
Adiantou-se um pouco, sem intenção de tocá-la. Mas sentia uma neces-sidade imperiosa de se aproximar dela, tentar diminuir o abismo de desconfiança que se interpunha
entre os dois.
Havia ainda uma outra razão para chegar mais perto da voluntariosa castelã. "Com o petulante queixo erguido, olhos de fogo abrasador, rosto corado de raiva e
indignação, Elsbeth ficava encantadora. Alex surpreendeu-se com a força quase imbatível que o compelia a tomá-la nos braços ali mesmo. Imaginou-se mordendo aqueles
lábios de maçã, e essa idéia deixou-o excitado.
Notou um leve tremor nas mãos de Elsbeth, e adivinhou que ela fingia uma indiferença que estava longe de sentir. Os olhos dos dois se encontra-ram, num breve
instante de ardente desejo, quase palpável. Que logo morreu, quando ela recuou.
O leve corado de Elsbeth tornou-se mais forte, e os olhos dourados pareciam agora cheios de confusão. As mãos dela cruzaram-se sobre a saia, num movimento instintivo
de proteção, que lembrou a Alex um coelhinho assustado. Mas Elsbeth não era nenhum coelho assustado. Não com toda aquela energia.
- Conte-me como seu pai morreu - pediu ele por fim, escondendo os punhos cerrados atrás das costas.
Era uma pergunta arriscada, sabia. Mas ele queria saber. Tinha de saber tudo.
A lady ficou paralisada, fitando-o com ódio e repulsa. Alex teve medo de que ela mudasse de idéia ali mesmo e mandasse enforcá-lo naquele instante.
Depois de tensos e penosos segundos, ela começou a falar. O ódio e a repulsa deram lugar a intensa melancolia.
- Ele estava caçando. Prepararam uma emboscada, e das mais traiçoeiras, pois papai nem sonhava em atacar algum de vocês. Só um dos homens conseguiu escapar,
fingindo-se de morto. Mas estava mortalmente ferido quando chegou aqui. Mal teve tempo de nos contar tudo.
- Uma emboscada...
- Eram vinte dos seus, contra cinco nossos.
- E como é que os... os Carey sabiam onde seu pai se encontrava? Como acertaram o lugar com tanta precisão?
Os olhos dourados ensombreceram-se. Elsbeth sabia que o conde tenta-va, mais uma vez, fazê-la pensar em traição. Os Carey haviam matado Robert Ker, e um deles
agora tentava jogar a culpa no seu próprio clã! Sem se dignar responder, virou-se para a porta.
-Espere, por favor - pediu ele, com doçura inesperada.
A despeito de não querer, Elsbeth teve de parar. De novo seus pés pareciam colados no chão.
Alex foi até a porta e olhou cautelosamente para fora. Os guardas não estavam muito perto, em obediência às ordens da castelã. Então voltou os olhos cinzentos
para ela, quase numa súplica.
- Ao menos considere minha pergunta. Não foi meu desejo ofendê-la.
E, tal como fizera na primeira entrevista, Alex mudou bruscamente de assunto. Acabara de plantar uma sementinha na cabeça de Elsbeth, e tinha de esperar para
vê-la criar raízes. Se tentasse regá-la muito, poderia afogá-la antes que tivesse tempo de germinar.
- E meu cavalo, como está se saindo aqui?
- Não é mais seu, conde.
- Gideon não se dá bem com maus cavaleiros - respondeu ele, parecendo não ter ouvido a frase, cortante. Quando tentei domá-lo, acabei no chão um bom par de vezes.
Que cavalo genioso! Mas é preciso tomar cuidado com ele, milady. Ainda é semi-selvagem, e detesta ser esporeado.
- Patrick monta qualquer cavalo.
- Patrick, aquele moreno, mais alto?
- Exato.
Alex lembrou-se dos olhos negros e sombrios. Bem que o homem lhe parecera um dos líderes, no dia da captura. Mas ainda não entendia qual seria a relação entre
ele e a jovem castelã, e de nada adiantaria perguntar. Eles o mantinham de propósito na ignorância.
- Ele é meu primo - disse Elsbeth, furiosa consigo mesma. Havia visto pergunta nos olhos do conde, e não conseguir evitar a resposta. Esse homem era um demônio.
- É o líder do clã? - perguntou Alexander, para acrescentar depressa: - Abaixo de milady, é claro.
- Ele e Ian comandam os homens - anuiu Elsbeth, exasperada por não conseguir ficar calada.
- Ian? Quem é Ian?
- Outro primo.
Alex percebeu que os olhos dourados se adoçaram um "pouco, e imediatamente sentiu uma pontada de ciúmes.
- Patrick e Ian. O que eles querem fazer de mim?
- Isso faz pouca diferença - respondeu Elsbeth, erguendo o queixo e fitando-o de frente. - Eu tomo todas as decisões mais importantes.
- Fale um pouco sobre seu pai.
A pergunta apanhou-a de surpresa, e a resposta veio automática.
- Era um erudito, conde. Um homem bom. Mas também muito valente com a espada.
- Gostava muito dele, não?
- Demais.
Levada pelo forte apelo dos olhos cinzentos, ela ia respondendo documente.
"Mariposas também fazem o mesmo", pensou, amargurada. "Voam tontas e atraídas em direção da luz, onde encontram a morte."
Pondo-se na defensiva, Elsbeth deixou a ira sobrepujar os outros senti-mentos. O patife lançava mão de todas as artimanhas para engabelá-la. Usava sem cerimônia
o sorriso charmoso, os olhos atormentados, o corpo de gladiador romano, a voz baixa e rouca. E, ainda por cima, conseguira deixá-la emocionada, puxando o assunto
que lhe era mais doloroso - a morte do pai. Sua raiva não teve limites quando percebeu que tinha os olhos cheios de lágrimas. Até isso o tratante conseguira.
Envergonhada com a própria fraqueza, Elsbeth recuou para a porta, sabendo que ameaçara ir embora dali, sem sucesso, diversas vezes. A voz do conde, porém, puxou-a
de volta.
- Não vá.
Havia um tom de súplica inédito aos ouvidos dela, que efetivamente a fez parar. Seria impossível não atender a esse grito de socorro, tenso e angustiado. Alguma
coisa tocou em seu coração quando escutou aquelas duas palavrinhas, aparentemente tão sem importância.
Quando se virou, esperava encontrar mofa e zombaria no rosto moreno, mas se enganou. A atitude despreocupada e relaxada do conde cedera lugar a uma postura cheia
de ansiedade e tensão. Elsbeth quase podia sentir na pele a desesperada vontade que Alex sentia de tocá-la. Porque desejava a mesma coisa, embora não tivesse compreendido
os apelos do próprio coração. Agora sabia que desejava passar as mãos naquela barba mal feita, naqueles cabelos fartos e rebeldes. Queria atenuar a dor que se espelhava
nos atormentados olhos cinzentos.
Fitaram-se em silêncio. Por um momento, Elsbeth julgou entender tudo.
Havia algo no rosto do conde, uma angústia sepulcral e profunda, uma solidão que não conhecia limites. Eram sentimentos que ela própria experi-mentava desde
a morte do pai. Mas Elsbeth sabia que sua solidão não se comparava com a do prisioneiro. A dor dela limitava-se à perda de alguém que amara muito. Essa perda fizera-a
sofrer, mas em sua vida houvera momentos felizes e boas lembranças. A dor do conde pareceu-lhe infinitamente mais pesada e antiga. Era a dor de alguém que nunca
conhecera a felicidade.
Esse instante de compreensão mágica desfez-se, porém, quando a boca do inglês se curvou num sorriso descuidado e os olhos cinzentos assumiram novamente uma expressão
enigmática. Elsbeth julgou que estava louca ao pensar por um só momento que esse homem poderia ser vulnerável.
Era, apesar de tudo, inglês. Um Carey traidor, igual aos irmãos. Aprendera a seduzir mulheres aos milhares, e a tática seria provavelmente igual à que usava
agora. Uma tática eficiente, tinha de admitir. O conde devia ter espalhado um monte de crianças pelo mundo afora. Por isso passara oito anos longe de Huntington.
Para seduzir mulheres e se divertir depois com os farrapos humanos que deixava pelo caminho.
Desta vez, Elsbeth decidiu sair da cela sem mais humilhações. Tinha conseguido se livrar da teia de seda cinzenta... pelo menos por ora.
Resoluta, chamou os guardas e saiu, sem olhar para trás. A porta se fechou com um rangido triste, que ficou ecoando em sua mente enquanto ela descia a longa
escada em caracol.
Então, intrigada, lembrou-se que ele nada havia dito depois daquele triste "não vá". Nem ela. Uma dorzinha incômoda começou a martelar-lhe a cabeça.
Tinha conseguido salvar a vida do conde por mais algum tempo, mas não sabia como controlaria os homens do clã que exigiam a morte imediata do prisioneiro, em
vingança da alma de Robert Ker. Por quanto tempo seria possível adiar esse dia fatal?
Quanto tempo?
Capítulo V
Jesus Cristo, por que não contivera a maldita língua?
Todo o tempo tomara cuidado para desarmá-la, confundi-la, e quase conseguira. Como fora por esse deslize quase inacreditável desnudara sua vulnerabilidade diante
da castelã.
Não vá. Quanto mais pensava, mais se irritava. O que o fizera baixar a guarda assim de repente? Essas duas palavras saíram de sua boca quase sem que ele percebesse.
Como se tivessem vida própria. Acharam uma brecha e escaparam, sem lhe dar tempo de detê-las a caminho. Logo ele, um mestre em autocontrole! Estava ficando velho,
sem dúvida.
Magoado, lembrou-se do frio desdém com que ela o olhara. Deus, como se arrependia!
Contudo, aquilo fora um grito de alguém desesperadamente só.
E nos últimos dias tinha-se dado conta da magnitude de sua imensa, desoladora solidão.
Depois de oito anos de ausência, tivera esperança de que seria bem recebido quando voltasse a Huntington, mas bastara-lhe pôr um pé em casa para perceber o absurdo
da idéia. John nem se dera ao trabalho de disfarçar a raiva e o despeito; os oficiais mais próximos receberam-no com desconfiança, e os colonos, com amarga distância.
Ainda assim, naqueles dois meses Alex fizera planos, que o ajudaram a sustentar a esperança de uma vida melhor.
Agora era obrigado a admitir que o próprio irmão queria vê-lo no fundo do inferno, e que provavelmente ninguém no condado ergueria um só dedo para ajudá-lo,
exceto, talvez, Garrick, Mesmo isso era duvidoso; David tinha de pensar no futuro, e não gostaria de arriscar muito.
Era realmente uma verdade difícil de digerir. A ninguém mesmo interessava saber se ele estava vivo ou morto. Sua morte não causaria tristeza nem alegria. Seria
recebido com indiferença. Por isso aqueles poucos momentos com Elsbeth Ker lhe pareciam dádivas do céu.
Ela se importava com ele. Apesar da aparente indiferença com que o tratava, Alex sabia que ela se importava. Não saberia dizer se era apenas porque a idéia da
morte a desagradava, ou se porque alguma afeição por ele.
Houvera momentos mágicos entre os dois, não poderia negar. Quando os olhares se cruzavam, não havia como ignorar a energia que fluía, rápida e eletrizante, entre
eles, desafiando anos e anos de brigas feudais. Nessas horas, Alex tivera de lançar mão de toda a capacidade de autocontrole para não arrebatá-la entre os braços,
principalmente quando sentira, adivinhara que Elsbeth experimentara o mesmo desejo. Mas percebera que se tentasse qualquer coisa nesse sentido, a castelã fugiria
na mesma hora; por isso nada fizera. Ainda não havia chegado a hora. Estava agora quase exausto pelo esforço e tensão de se refrear durante o tempo todo. Talvez
fosse sua sina vigiar eternamente a fera que se revolvia em seu íntimo. Até mesmo com Nadine tivera de se vigiar, embora com menos intensidade.
Lembrou-se de como aprendera, nas galés, a dominar a fúria quase indomável de seu caráter quando era maltratado, quando lhe negavam a comida, quando era obrigado
a remar num ritmo alucinante só porque o feitor estava de mau humor. No começo fora muito duro; mas sabia que se pulasse no pescoço do feitor perderia não só a vida,
como aquela luta fascinante contra o próprio gênio.
E Nadine? Com ela não fora tão difícil se controlar devido à presença constante do pai, a quem, aliás, respeitava e amava. Nadine confessara-lhe que o amava,
mas nunca dera qualquer sinal de paixão sensual, nem mesmo um olhar que revelasse desejo carnal. Concentrara todas as suas energias na causa que abraçara e ficara
exaurida de paixões terrenas, pelo menos aparentemente. Elsbeth, a terrível escocesinha, era o oposto de Nadine. Tudo nela evocava uma sensualidade animal, desde
o brilho ardente dos olhos até a graça felina com que se movia. Comparando seus sentimentos pelas duas moças, Alex agora se perguntava se o que havia experimentado
por Nadine não fora mero respeito ou admiração.
Irritado, o conde deitou-se de bruços na pedra fria. Precisava acalmar seu corpo de alguma maneira. Soergueu-se, pousando todo o peso do corpo nos braços, cujos
músculos tensionados saltaram plenos de energia e vitalidade. Foi contando mentalmente as flexões, enquanto inspirava e expirava ruidosamente, como se quisesse expelir
os eflúvios perfumados que absorvera durante a conversa com a escocesa.
Lady Elsbeth Ker devia ser encarada apenas como uma peça inimiga, que devia levar o xeque-mate depois de alguns lances bem planejados. Nada mais que isso. Nada
de sério poderia existir entre os dois, com aquele mar de sangue separando-os.
Finalmente mais relaxado, ergueu-se e pegou o livro. Ler poderia ajudá-lo a esquecer um certo par de olhos mutantes de reflexos dourados. Abriu, quase com reverência,
a capa de couro flexível e estudou a delicada iluminura xilografada. Imaginou Helena de Tróia de cabelos ruivos e olhos cor de avelã, dentro de um vestido de veludo
verde debruado de pérolas...
Pelo sangue de Jesus, precisava sair logo dali, ou acabaria absolutamente louco.
No dia seguinte ao da visita de Alexander Carey, David Garrick esperara ansiosamente a prometida conversa com o amo. Quando, porém, a noite desceu, David teve
certeza de que alguma coisa não estava correndo bem.
Conhecia bem o patrão, e sabia que ele havia mudado muito pouco; Alex jamais faltaria com sua palavra. Era o oposto dos outros nobres que conhecia, arrogantes
e pretensiosos. O pai de David trabalhara como mercenário para o condado; era um grau acima dos servidores comuns, mas estava longe de ser considerado "da casa".
Anos atrás, William Carey, o morgado, gostava de brincar de guerra com David e outras crianças do condado. Mas seu temperamento belicoso e autoritário tornava-o
temido pelos companheiros, pois na qualidade de filho mais velho e herdeiro do conde, usava e abusava da autoridade. Não poucas vezes se divertira lanhando as costas
dos amiguinhos com um chicote de pontas de chumbo. Numa dessas vezes, David Garrick, indignado, investira contra o morgado e engalfinhara-se com ele, dando-lhe uma
tremenda surra. Quando o conde soubera, mandara chamar David em praça pública e aplicara-lhe uma dúzia de chicotadas, em castigo por ter ousado tocar em seu filho.
Depois desse incidente, David passara a evitar toda a família do conde, incluindo o pequeno Alexander.
Quando seu pai morreu, a miséria se instalou na casa de David, que vivia com a mãe e o irmãozinho menor. Tudo o que ficara para eles havia sido a humilde casa,
pouco maior que um ovo. Um dia, vendo o irmão chorar de fome, David arriscou-se a caçar um coelho, mesmo sabendo que seria severamente punido, caso fosse descoberto.
Já voltava para casa com a preciosa caça nos ombros, quando Alex o surpreendeu no meio do caminho. Apavorado pela idéia de ser chicoteado outra vez, David perdeu
a cabeça e arremessou-se de encontro ao filho do conde, disposto a calar sua boca. Nem se deu ao trabalho de pensar que, diante dessa nova e muito maior ofensa,
seria enforcado, em vez de chicoteado. O instinto de autopreservação foi mais forte.
Alex era mais novo e menor que ele, mas David logo percebeu que o adversário era ligeiro e esperto. Travou-se uma luta séria entre os dois.
David nunca soube quanto tempo durou a briga, mas para ele durou toda uma eternidade, até que ambos ficaram quase prostrados de exaustão. Ainda assim, David
não se rendia, apesar dos insistentes apelos de Alex.
Até que, não conseguiram mais lutar. Um e outro tombaram extenuados, cobertos de arranhões e contusões. Alexander foi o primeiro a conseguir falar, ofegando
ruidosamente em meio às palavras.
- Rapaz, que luta! Você... você luta como um leão, sabia?
David soergueu-se, um olho roxo e semifechado pelo inchaço. O outro olho espelhava estupefação. Esperara ouvir gritos e ameaças, e em vez disso o outro lhe sorria
com os lábios inchados e cortados.
- Foi preciso, porque também encontrei um leão pela frente.
- Por que diabos você me atacou desse jeito? Eu não tinha feito nada.
David deitou-se de novo, exausto.
- Ué, porque eu tinha caçado um coelho.
- É, eu já tinha visto.
David olhou-o com incredulidade.
- É proibido caçar coelhos por aqui. Para nós, quero dizer. Alex deu de ombros e começou a sacudir a terra da roupa.
- Aqui tem coelho aos montes. Não me importo em perder um ou dois.
David encarou o outro, mal podendo acreditar no que ouvia. O pai de Alex mandava castigar impiedosamente qualquer caçador furtivo, ainda mais se vivesse no condado.
Os colonos detestavam-no por isso e por muitas outras razões.
- Não sou como meu pai - disse Alexander, com simplicidade.
Trôpegos, amparando-se um no outro, voltaram para suas casas, o coelho pendurado nas costas de David.
No dia seguinte David foi chamado ao castelo. Ele atendeu, mas estava trêmulo e assustado, imaginando o tamanho do castigo que sofreria. Pensara em fugir na
véspera, mas não tinha como, nem para onde ir. Assim, dirigiu-se ao castelo, rezando para Deus ter piedade de sua mãe e do irmãozinho. Contava onze anos então.
Alex achava-se ao lado do conde, cujos olhos frios pareciam perfurar David até o fundo da alma. Contudo, a esperada sentença nunca veio. Os olhos frios e antipáticos
varreram-no de alto a baixo.
- Você é filho de Eric Garrick?
- Sim, meu senhor - respondeu, inclinando-se. Suas perninhas finas tremiam como pudim.
- Era um homem valoroso - comentou o conde, bocejando.
David não sabia o que dizer. Limitou-se a ficar rodando o boné nas mãos, perguntando-se por que fora chamado.
- Meu filho Alexander, aqui, me disse que você também tem jeito para lutar.
David olhou para Alex, que lhe dirigiu uma careta brincalhona.
- Ele quer um escudeiro, e escolheu você. Os dois aprenderão juntos todas as táticas guerreiras.
Escudeiro? David sabia bem que esse era um nome bonito para o que ele realmente seria. Criado. A idéia não era de todo má, pois sempre tivera vontade de seguir
a carreira do pai, só que não sabia como começar. A resposta talvez estivesse aí. Talvez fosse armado cavaleiro mais tarde. Como o pai. Perguntou, timidamente:
- Mamãe e meu irmãozinho?
- Você receberá um salário. Isso ajudará a viúva - respondeu o conde, dando outro bocejo. - Pode ir agora.
David não podia acreditar na súbita reviravolta do destino. E tudo porque atacara Alexander Carey!
Mais tarde, soube que era um criado apenas no nome, pois Alex tratava-o de igual para igual. Também soube que o jovem amo não era tão digno de inveja como pensava
antes. Num instante percebeu o abismo que separava Alexander do pai, e nos sete anos seguintes passou a entender, cada vez mais, a ojeriza de Alex em pedir qualquer
coisa ao velho e rabugento conde. Nas raras vezes em que isso acontecia, era sempre para diminuir uma pena ou amenizar a prisão de um ou outro colono.
Alex ia para os célebres ataques noturnos na fronteira, mas voltava sempre cabisbaixo e de mau humor. Em vão David tentava reanimá-lo; o amo se afastava e ia
beber vinho até se embriagar. O relacionamento dos dois se transformara em amizade, especialmente quando David foi nomeado cavaleiro de honra do condado. Ninguém
o superava no manejo da espada e nas táticas guerrilheiras.
Até que um dia, depois de um ataque particularmente agressivo, quando muitas mulheres foram estupradas e torturadas, Alexander Carey rebelou-se contra o pai.
Houve uma violenta discussão, após a qual o rapaz resolveu partir para Londres. David, que para todos os efeitos era empregado de Huntington, teve de ficar, muito
a contragosto. Não que tivesse muita escolha; nem ele nem Alex tinham dinheiro suficiente para pagar mais uma viagem à corte, e além disso havia a velha viúva e
o irmão menor, que certamente sofreriam nas mãos do velho, caso David o desobedecesse.
Logo depois da partida de Alex, porém, David depressa se consolou. Apaixonou-se por uma moça da região e casou-se assim que pôde.
No curso dos oito anos que se seguiram, Garrick continuou a sentir falta de Alex. Mas este jamais enviara uma linha a ninguém, nem mesmo ao pai. Quando o velho
Huntington morreu, Alex também não deu sinal de vida, o que acabou por convencer David de que ele tinha morrido.
Qual não fora sua surpresa quando soubera que Alexander Carey estava de volta! David, na ocasião, achava-se em outro condado, "emprestado", como John gostava
de dizer eufemisticamente. Quando voltara ao condado, pensara em ir visitar o amigo, mas abstivera-se, receoso de encontrar pela frente um novo homem, menos humano,
menos amigo.
O próprio Alex se encarregara de vir bater à sua porta, e nessa ocasião David teve oportunidade de ver que o amigo em nada mudara. Exceto, talvez, na infinita
tristeza que pôde detectar em seu olhar. O novo conde de Huntington parecia carregar consigo o peso de toda a solidão do mundo, apesar de ter se apresentado sorridente
e amigável.
E, depois disso, desaparecera inexplicavelmente.
David sabia que era o único a se preocupar com a ausência do conde. Quase todos os colonos eram novos; dos antigos, poucos haviam se sujeitado à crescente tirania
do velho Huntington. Por outro lado, Alex havia proibido os ataques, e isso desgostava profundamente a maioria dos oficiais, habituados a receber um soldo extra
a cada ataque. Desse modo, a falta do conde fora recebida até com certo alívio por todo o condado.
Inclusive John. Esse era o que menos se importava com a sorte do irmão. E David se preocupara mais ainda, ao ver a cara alegre de John naquele dia. Era uma alegria
malévola, cheia de maus presságios.
A apreensão de David aumentava a cada hora. Sabia que Alex não deixaria Huntington sem ao menos deixar-lhe um bilhete informando-o. Não depois da conversa que
haviam tido. Alguma coisa tinha acontecido ao querido amigo, e David podia jurar que John Carey estava por trás disso.
Em silêncio, fez um juramento. Se Alexander ainda estivesse vivo, haveria de encontrá-lo. A qualquer custo.
Se ainda estivesse vivo...
Um homem em quem você confie. E não conte para mais ninguém.
Por que aquelas palavras continuavam em sua cabeça?
Estaria o conde apenas tentando confundi-la, como pensara a princípio?
Mas por quê? Que ganharia ele com isso? Retardar a morte, talvez. Ou ganhar tempo para planejar melhor a fuga?
Era uma possibilidade, claro. Qualquer coisa era possível, em se tratando de um Carey. Contudo, quanto mais Elsbeth revolvia na mente as palavras do prisioneiro,
mais elas fermentavam e faziam o bolo crescer.
O clã mantivera o seqüestro em segredo, a fim de aumentar a possibilidade de receberem o dinheiro do resgate. Não era intenção dos Ker provocar nenhuma outra
família fronteiriça, e isso poderia suceder, caso soubessem do rapto. Agora Elsbeth se questionava se essa fora uma idéia sensata.
Pensou com amargura nos administradores da região. Eram dois, um escocês e um inglês, ambos incumbidos pelas duas coroas para tudo fazer a fim de manter a paz
e a ordem nas fronteiras. Eram ambiciosos e pouco se importavam em cumprir a penosa tarefa de reaproximar os inimigos. Ao contrário, recebiam gordas propinas dos
dois lados, e deixavam tudo ficar na mesma. Quando ela fora reclamar da morte do pai, o administrador inglês limitara-se a dizer que não dispunha de provas conclusivas.
O escocês recusara-se a admitir que os Carey tinham preparado a emboscada, alegando que podia ter sido um caçador furtivo.
Raptando o conde de Huntington, os Ker haviam arriscado receber severas censuras dos dois lados. Talvez a administração escocesa chegasse ao ponto de exigir
que soltassem o prisioneiro. Por outro lado, os outros clãs esperavam que o conde de Huntington fosse morto, a fim de vingar a morte de Robert Ker. Os Ker perderiam
todo o apoio e respeito se agissem de outro modo. Dessa forma, as perspectivas para seu clã eram as mais sombrias.
Elsbeth achava-se presa numa armadilha. Tão fechada e segura quanto a cela do conde.
Finalmente, tomou uma decisão.
Nada diria a Patrick, nem a Ian, pois nenhum deles a apoiaria. Na verdade, Elsbeth sabia que tanto um quanto outro tentariam dissuadi-la. Resolveu-se então a
procurar a única pessoa em quem confiava inteiramente, um homem que se mostrara leal ao pai até o fim, mas finalmente se aposentara das intermináveis brigas. Seu
nome era Hugh, do clã Armstrong. Casara-se com uma Ker, e depois voltara para suas terras. Mas depois que o rei James mandou enforcar Johnny Armstrong e outros membros
da família, Hugh voltara para os Ker e passara a ser o mais ativo e procurado conselheiro do clã. De vez em quando ainda cavalgava, mas as velhas feridas que ganhara
em inúmeras batalhas impediam-no de fazê-lo freqüentemente. Agora vivia numa casa perto do castelo, em companhia da mulher e dos três filhos menores. Dos oito que
tivera, três haviam voltado para o clã Armstrong e dois tinham perecido em batalha.
Elsbeth hesitava ainda. Não queria sobrecarregá-lo com mais essa missão, mas era o único em quem realmente confiava. Além do mais, gostaria de ouvir um conselho
dele.
Sim, o velho poderia ajudá-la.
Finalmente decidida, ordenou que arreassem seu cavalo, e partiu o quanto antes. A casa de Hugh não ficava muito longe, o que serviu para reforçar sua recusa
de ser escoltada. Queria ir só, longe de ouvidos indiscretos.
Uma vez na floresta, deleitou-se com a inesperada liberdade que sentia, com a aspereza do ar frio contra o rosto. A certa altura, virou-se na sela e olhou para
cima. Lá estava ela, a janela gradeada, guardando Alexander Carey. Sacudiu a cabeça para enxotar a imagem dos olhos cinzentos. Não era hora disso, não agora.
Hugh estava sentado numa poltrona polindo sua enorme coleção de espadas, a perna esticada em frente à lareira, enquanto a mulher, uma dama de ar doentio, amassava
pão num grande alguidar. Ambos receberam-na com amabilidade e cortesia. O homem, entretanto, percebeu que Elsbeth desejava falar-lhe a sós, e fez um sinal discreto
para a mulher, que desapareceu na cozinha.
- Que foi, minha pequena?
- Não tivemos nenhuma notícia de Robin, nem de Will.
E John Carey nada nos respondeu.
Ele ficou quieto, fitando-a com os olhos vivos. Elsbeth era a chefe do clã. Cabia a ela qualquer decisão.
- Acha que John Carey não se importa mesmo com a morte do irmão?
- Sem sombra de dúvida, pequena. Vou mais longe ainda: é precisa-mente o que ele quer.
- Mas... e os oficiais, os colonos...
- O conde esteve fora tempo demais. Ninguém o conhece por lá. Todos os velhos empregados deixaram o condado, ficaram só os novos.
- Esse rapto foi um erro, Hugh.
- Não, se vocês queriam vingança. Sim, se a idéia era receber um resgate por ele.
- Vingança não enche a barriga de meus homens. Nem re-constrói campos.
Elsbeth pôs-se a passear nervosamente, aguardando a resposta de Hugh. Devia ter vindo em busca de conselho antes do rapto, mas fora orgulhosa demais. Acreditara
na própria força e competência. E tinha recebido o apoio integral de Patrick e Ian.
- O conde é um homem corajoso - falou Armstrong. - E bonito.
- Você o conhece?
-Vi-o combatendo nas justas. Era o melhor de todos, pelo menos naquele tempo.
Elsbeth calou-se, pensando na figura imponente e poderosa do conde. Sua mente saltou para as palavras do prisioneiro, para as idéias que ele plantara em sua
cabeça.
- Hugh, o que você sabe sobre a morte de meu pai? - perguntou de chofre.
- Foi uma patifaria. Nunca teria acontecido se eu estivesse ao lado dele, pequena.
- Acha que... acredita que seja possível... que um dos nossos o tenha traído?
O homem ficou quieto por um tempo, escolhendo as palavras.
- Não é impossível, pequena. Ultimamente andei me perguntando como é que o inimigo sabia tão bem onde seu pai estava. Não é fácil se mover naquele ponto da floresta,
como sabe.
- Então... então não foi por acaso que os Carey o encontraram?
- Não, impossível. Foi uma emboscada muito bem preparada.
- Por quê, meu Deus?
- Seu pai andava alimentando idéias de paz, pequena. Muita gente estava desgostosa com isso.
Uma dor pungente atingiu-a na boca do estômago. Seu povo. Seus amigos. Amigos de seu pai.
- Não acredito nisso, Hugh!
Os olhos do guerreiro ficaram mais doces.
- É duro de admitir, minha pequena, eu sei. Mas você deve se cercar de todo o cuidado e ficar alerta.
- Por que não me disse tudo isso antes? A resposta foi franca e direta:
- Porque você não acreditaria em mim.
- Quem? Por favor, quem?
-Se eu soubesse, ele já estaria morto. Quem lhe abriu os olhos, pequena?
Elsbeth vacilou. Relutava em revelar a verdade até para si mesma. Mas viera em busca de Hugh porque confiava nele. Tinha de ir até o fim. Timidamente, balbuciou:
- O prisioneiro.
Hugh franziu o sobrolho, pensativo.
- O homem é mais esperto do que pensei.
- Foi ele quem me disse, logo no começo, que o irmão jamais pagaria o resgate.
- Claro. Por que pagaria, se os Ker podem fazer o servicinho sujo no lugar dele?
- Céus, eu... estou perdida, Hugh. Não sei o que fazer. Não quero que o matem. Já houve mortes demais, tristezas demais. Chega!
- Concordo, pequena.
Armstrong esticou o braço e apanhou uma moedeira que estava em cima da mesa, brincando com ela em silêncio. Depois fez uma pergunta à queima-roupa:
- O que esse Carey quer? Que foi que ele lhe pediu?
- Como... como sabe? Hugh sorriu.
- Ele jamais teria lançado a idéia de traição na sua cabeça, a menos que quisesse alguma coisa.
- Ele me pediu que enviasse alguém para falar com um homem da confiança dele, em Huntington. Disse que esse homem se encarregaria de transmitir a mensagem a
Londres. Falou que nem John Carey teria coragem de desafiar Northumberland.
- E tem razão. Mas o homem pode chegar lá tarde demais.
- Ele também... - começou Elsbeth, detendo-se em seguida.
- Diga, pequena. Esta casa é sua amiga.
- Ele me sugeriu que o deixasse fugir. Armstrong mal conteve uma gargalhada.
- Pelas barbas do profeta! Eu até que poderia gostar desse homem, não fosse o sobrenome!
- Hugh! - exclamou Elsbeth, escandalizada. - Ele é inglês!
- Minha querida, depois de cinqüenta anos bem vividos, aprendi que há gente boa e má dos dois lados da fronteira. E nosso conde parece ser dos bons, por Deus!
Era uma idéia nova para Elsbeth, que desde pequenina julgava que só os escoceses eram bons. Os ingleses encarnavam o diabo.
- Não fique tão admirada, pequena. É verdade o que digo, o tempo lhe dirá. Veja por exemplo a traição daquele reizinho de araque, o velho James. Um escocês da
gema. Não teve dúvida em enforcar meu tio, proprietário de Gillnockie, junto com a comitiva inteira, quando todos vinham desarmados para dar-lhe as boas vindas.
E tudo porque nosso clã havia atacado os ingleses, em revide ao terrível ataque anterior.
Elsbeth já ouvira essa história uma dezena de vezes. A infâmia tornara-se lenda nas fronteiras. Johnny Armstrong, o mais popular senhor da região, fora perecer
nas mãos do próprio rei escocês. No dia da execução, Johnny encarara o rei diretamente nos olhos, dizendo-lhe: "Não pedirei a graça de vossa clemência. Mesmo porque
seria besteira pedir graça a quem não tem graça nenhuma", A frase correra o mundo.
- Mas nosso clã é... é fiel!
- Também nele existem homens ciumentos e cobiçosos, pequena, não se iluda. Já está na hora de aprender essas coisas.
Ela curvou os ombros, vencida. A lealdade do clã sempre lhe parecera algo intocável. Naquelas fronteiras devastadas por morte e sofrimento, essa lealdade significava
tudo. Ficava doente só de imaginar que abrigava um traidor entre os seus. Essa idéia ainda lhe era inconcebível.
- Levarei a mensagem do conde de Huntington ao homem dele, pequena. Fique tranqüila.
- Mas suas pernas...
- Ainda doem um pouco. Mas eu estou precisando sacudir esta velha carcaça.
- Eu não suportaria... perder você, Hugh.
- Qual! Nenhum Carey perderia tempo com um velho mascate. Fale com seu Carey, minha pequena, e traga a mensagem para mim ainda hoje, logo depois do jantar. Planejo
voltar em três dias, não mais que isso.
- Ele não é meu Carey. Quando este pesadelo terminar, pretendo nunca mais pôr os olhos em cima dele.
- Bem, por enquanto ainda é seu, não é? - provocou o velho, os olhi-nhos astutos e sorridentes.
Armstrong notara a luz nova que brilhava no fundo dos olhos da bela castelã. Era muita coincidência essa luz ter nascido quando o conde se tornara prisioneiro
da torre.
- Por favor, Hugh, prometa que tomará todo o cuidado possível. Não quero vê-lo machucado.
- Seu desejo será cumprido, milady - brincou ele. - Mesmo porque tenciono ainda botar três ou quatro Hughs neste mundo de Deus. Para perpetuar minha raça, sabe
como é?
Elsbeth sorriu. Hugh Armstrong era conhecido em toda a Escócia pelo número de filhos que tinha, tanto legítimos quanto bastardos.
- Eh, cuidado, Hugh! - revidou ela. - Não queremos superpopulação por aqui.
- Por que não? Quanto maior o clã, mais forte ele fica. Mas chega de conversa fiada, e dê o fora daqui depressa. Tenho de discutir muito com minha velha. Vai
ser um arranca-rabo dos diabos. Mas ela acabará concordando.
- Como sempre - adicionou Elsbeth, sorrindo.
- É, como sempre.
Ela ficou séria e estendeu-lhe a mão.
- Obrigada, Hugh.
Armstrong apenas sorriu, assentindo abanando a cabeça. Quando a castelã se foi, porém, o sorriso cedeu lugar a um ar preocupado. Elsbeth era corajosa e enérgica,
mas precisava urgentemente de um marido. Um homem forte e corajoso que com ela, para manter o casamento equilibrado.
Foi difícil para ela agüentar o almoço naquele dia. Essa era sempre a refeição mais longa e importante, composta de inúmeros pratos regados com muito vinho,
e dessa vez quase todo o clã estava sentado à mesa. Como de costume, Elsbeth sentou-se à cabeceira, ladeada por Patrick e Ian. Os dois tinham lugar cativo a seu
lado, a menos que houvesse algum convidado muito importante. Joan e Louisa vinham a seguir, e depois os demais membros do clã, de acordo com a importância de cada
um.
Antes da morte do pai, Elsbeth adorava essa refeição; agora, porém, achava-a entendiante, principalmente por causa de Joan Ker, mãe de Patrick. Era uma mulher
amarga e infeliz, sempre insatisfeita com a posição inferior que o filho ocupava no castelo. Para ela, tudo o que era dito transformava-se em afronta. Além disso,
achava que Elsbeth usurpara de seu rebento o direito de ser chefe do clã.
Joan começou, naquele dia, a reclamar do prisioneiro.
- Não entendo como é que o bastardo ainda está vivo. Elsbeth ignorou-a, como sempre fazia. Não estava para discutir com ninguém esse assunto, muito menos com
Joan.
- Ouvi dizer que é um bonitão - grasnou a velha, em meio a fartos bocados de caça.
Tinha cabelos pretos, como o filho. O rosto era comprido e adunco, lembrando a cabeça de uma ave; muitas vezes Elsbeth se perguntara como é que seu tio, famoso
por suas façanhas amorosas, pudera tomá-la como amante.
- Desde que você goste de ingleses. E dos Carey - disse Elsbeth, dês-gostosa por ter intervindo.
Era sempre assim; Joan conseguia exasperá-la depois de duas ou três frases fanhosas e amargas. A gralha não se deu por vencida.
- Acho que você está meio amolecida com esse Carey. A frase caiu como um balde de água fria na mesa. Fez-se um silêncio pesado, e todos os olhares fixaram-se
em Elsbeth. Esta sentia o clã dividido entre os que queriam a morte de Alexander Carey e os que concordavam com ela. Depois de um breve instante, Elsbeth falou com
voz perigosamente calma:
- Não há ninguém aqui com mais razão que eu para ter ódio dos Carey.
Trinta cabeças balançaram afirmativamente.
- É preciso que se faça justiça - continuou, no mesmo tom.
De novo todos anuíram.
- Alguém aqui ainda duvida disso?
Era um desafio lançado à velha gralha, que começou a cacarejar um risinho desconcertado.
- Os Carey não escaparão de nossa vingança, e pagarão muito caro. É uma promessa que lhes faço - concluiu Elsbeth, lançando um olhar duro para Joan. - E agora,
vamos tomar mais vinho.
Não se mencionou mais o prisioneiro, e Ian dirigiu-lhe uma careta de aprovação. A expressão de Patrick permaneceu impenetrável.
Os primos foram vê-la na biblioteca, depois do almoço.
- O que você planeja fazer? - perguntou Patrick.
Pela primeira vez na vida, Elsbeth olhou para eles com alguma desconfiança. Haveria ali um traidor? Se houvesse, qual dos dois?
Era um pensamento doloroso demais. Amava-os como a dois irmãos, Ian com seu eterno bom humor, e Patrick, sempre fechado e rabugento, mas sempre pronto a ajudá-la.
Ambos tinham servido a seu pai com aplicação e boa vontade. Elsbeth sentiu um desejo quase irrefreável de pôr tudo em pratos limpos ali mesmo, naquela hora. Mas
sabia que não podia fazer isso, pois se um deles fosse realmente um traidor Judas, passaria a ser muito mais cauteloso. E perigoso, conseqüentemente.
Seriam ambos?
Não, quase impossível. Os primos se davam bem justamente porque um possuía qualidades que o outro não tinha. Embora quase nunca brigassem, davam provas de grande
amizade. Na verdade, ambos apenas se toleravam. Antes, costumava atribuir isso à eterna competição pelos favores da prima, mas agora começava a se perguntar se seria
essa a única razão. Sem responder para Patrick, Elsbeth virou-se para Ian:
- Seus espiões, que é que eles dizem de novo? Mas foi Patrick quem respondeu.
- Nada, prima. Apenas sabem que o conde sumiu sem deixar rastro.
- Ian?
O outro encolheu os ombros.
- Tudo indica que esse resgate não vai ser pago. Agora você tem de resolver o que vai fazer.
- Não foi o conde de Huntington que matou meu pai. Os olhos azuis de Ian estudaram-na por um momento.
- É o filho de quem matou, prima. A honra exige uma vida pela outra.
Elsbeth olhou para o fogo da lareira. Patrick fora o primeiro a exigir a morte do conde, mas agora parecia concordar com a espera. Ian, por outro lado, começara
aconselhando-a a ter paciência, mas no momento parecia ter mudado de idéia. Que significaria essa mudança?
Então resolveu: tinha de se livrar dos dois por alguns dias.
- Ian, quero que vá entregar uma mensagem ao clã Douglas. E você, Patrick, ao clã Homes.
- Pretende contar tudo a eles, prima? - perguntou Ian.
- Não. Apenas pedirei às duas famílias que fiquem de sobreaviso, pois poderemos precisar da ajuda delas. Não direi mais nada.
Patrick adiantou-se.
- Não acho uma boa idéia irmos os dois ao mesmo tempo. E se os Carey atacarem?
- Tenho Hugh Armstrong para me ajudar. De qualquer modo, o apoio de vocês é muito forte, mas não o suficiente. Preciso ter certeza de que os Homes e os Douglas
nos ajudarão.
- Está tudo muito bem, muito bonito. Mas se os Douglas me pergun-tarem por quê?
- A pergunta vale também para mim - juntou Patrick.
- Respondam que, como sempre, estamos tendo problemas com os Carey. Não estarão mentindo.
- Quando é que devemos ir? - perguntou Patrick.
- Hoje à tarde. Desse modo voltarão para casa em quatro dias.
Ian começou a protestar, mas parou ante a expressão de Elsbeth.
- Hoje, primo. Podem começar a se preparar.
Capítulo VI
Os raios oblíquos do sol indicaram o fim de tarde para Alex. Sua cela estava voltada para o Leste, uma vez que de manhã a claridade era mais intensa. Logo viria
a noite, e com ela a insônia e a preocupação. Economizava a preciosa vela o mais que podia, mas esta já se reduzira pela metade. Examinou o saco de couro; também
lhe restava metade do vinho. Tomou um gole, mantendo-o na boca por algum tempo antes de engolir. Era suave e de boa safra.
Tinha conseguido passar o dia graças ao livro, que aliás também economizava, lendo e saboreando palavra por palavra. Naquele momento, daria o braço direito para
se ver livre, cavalgando na floresta, sentindo o vento nos cabelos, ouvindo o murmúrio dos riachos, o cantar dos passarinhos.
Era preciso sair dali, bom Deus, pelo menos para desenferrujar os membros, ávidos de exercício. Alimentara alguma esperança depois da visita de Elsbeth Ker,
mas a cada instante tornava-se evidente que nada conseguira. Dois dias já se tinham passado, fato que por si só já era bastante eloqüente. A castelã afastara-se
e certamente não voltaria mais.
Em parte, dava-lhe razão. Afinal, havia dois séculos de brigas e ódios entre suas famílias. Por que haveria ela de confiar num Carey? Bem que tentara despertar-lhe
a confiança, mas, pelo visto, falhara.
Teria, então, de contar apenas consigo próprio, com sua força - mesmo que isso significasse matar gente do castelo, talvez até um Ker. Era uma idéia desagradável.
Contudo, não poderia - e não queria - esperar que fosse abatido como um cordeirinho.
Lembrou-se dos olhos cor de avelã, cheios de raiva. E dos lábios de maçã curvados para baixo, numa expressão de desdém e superioridade. Era uma pena, mas o desdém
e a raiva iriam aumentar e alargar o grande fosso que já os separava.
Mas faria o que pudesse para sair dali, nem que isso lhe custasse o desprezo eterno da bela inimiga. Jurara a si mesmo que nunca mais seria escravo de ninguém.
E tinha de ajustar umas contas com seu irmão John.
Correu os olhos em volta em busca de alguma coisa que lhe desse esperança. Seus olhos caíram no livro, o objeto mais pesado que possuía.
E o mais querido.
Seu pensamento voou para as tardes que costumava passar com Henri e Nadine antes que os três fossem presos. Tinha vinte e três anos quando fora pela primeira
vez à França, levando na bagagem um imenso desejo de fazer alguma coisa proveitosa na vida, algo diferente dos anos vazios e fúteis que passara na corte da Inglaterra.
Nesse país, a única coisa boa que lhe acontecera fora travar amizade com o poderoso John Dudley, conde de Warwick, um protestante simpático e inteligente.
Alex também era protestante, embora o fosse apenas por conveniência. Seria pouco inteligente pertencer a outra religião na Inglaterra de Henrique VIII, mas,
ao contrário de Warwick, pouco se interessava pelo protestantismo. Costumava dizer que a decisão de Henrique VIII de romper com a igreja católica tivera muito mais
que ver com seus interesses que com sua bravura; esta sempre lhe pareceu discutível.
Até que conheceu Nadine.
Alex nunca se esqueceria daquele dia. Caçava com Warwick nos arredores do castelo, e quando voltaram à noitinha encontraram Henri Marchand e a filha à espera
do conde. Sentiu-se como um colegial quando a viu pela primeira vez, os cabelos loiros atados em duas trancas bem comportadas, os olhos azuis cheios de fervor.
Ficou enfeitiçado pela meiga francesinha, de voz suave e beleza calma. Até o mundano Warwick, dono de numerosos corações femininos na corte inglesa, mostrou-se
atraído por Nadine. E quando ela lhe contou sobre a cruel e sangrenta perseguição movida na França contra os amigos e a família, o poderoso lorde prometera dar-lhe
todo o apoio possível. No momento, Nadine e o pai necessitavam de dinheiro para contrabandear os protestantes da França para a Inglaterra, onde esperavam começar
nova vida.
Em pouco tempo, ajudada por Warwick, Nadine conseguira uma bela soma. Até Henrique VIII, lendariamente avarento, havia contribuído com algumas moedas de ouro,
uma vez que o gordo rei era incapaz de resistir a um lindo rosto ou a mais uma oportunidade de passar a perna nos odiados franceses. Alex oferecera-se então para
escoltar filha e pai na viagem de volta à França, e, lá chegando, encantara-se com o país e com a causa protestante, entregando-se de corpo e alma ao trabalho. Fazendo-se
passar por inglês católico, fora aceito na corte e logo aprendera a caçar informações preciosas sobre onde e quando novas levas de huguenotes seriam presas. Passava
as informações para os Marchand, que então cuidavam das passagens e do transporte para a Inglaterra. Muitas vezes ele próprio acompanhara os embarques e conseguira
a ajuda de vários almirantes da esquadra inglesa. Fora uma aventura excitante que vivera naqueles anos, os mais felizes de sua vida.
Em períodos mais calmos, gostava de estar a sós com Henri e Nadine; com eles conhecera, pela primeira vez, o aconchego de um verdadeiro lar. Gostava profundamente
de Nadine, de seu riso tranqüilo, de seu sotaque afrancesado. Costumavam passear juntos, discutir literatura, idéias, esperan-ças, Como era a primeira vez que se
afeiçoava a alguém, Alex confundira essa aproximação com amor, passando a alimentá-lo e a cultivá-lo com afinco, no receio de perdê-lo.
Além disso, adorava enfrentar o perigo. Acreditava-se esperto e invulne-rável, especialmente depois de ter sobrevivido a uma rápida invasão inglesa, quando o
pequeno porto de Bolonha havia sido confiscado. Ao recuperarem o porto, os franceses atiraram-se com ódio renovado sobre os ingleses e, nessa ocasião, fora seu irresistível
charme que o livrara da sorte de inúmeros outros ingleses, todos mortos sem piedade.
A sorte e a fortuna acompanharam-no mais um ano. E deixaram-no subitamente numa bela tarde de maio, quando tropas francesas invadiram a casa de Henri e prenderam
todos, acusando-os de hereges.
Nunca se esqueceria do rosto pálido, mas calmo, de Nadine quando os guardas arrancaram-na com brutalidade de seus braços. "Tenha fé, Alex", dissera baixinho,
deixando-se acorrentar. Alexander investira como um touro contra os soldados, mas estes eram muitos. Dentro em pouco, vira-se jogado numa prisão imunda, em meio
a ratos e poças de água podre. Nunca mais vira Nadine.
O barulho do ferrolho arrancou-o das memórias, sobressaltando-o. Levantou-se do catre, imaginando que poderia ser sua refeição. Nos últimos dias os guardas traziam-lhe
a comida e, em vez de passar o prato pela abertura da porta, abriam a porta e colocavam-no no chão com uma caneca de água.
Tomou a decisão de pronto. Não iria mais ficar sentado e bem-comportado, esperando a hora da execução. Os guardas haviam relaxado as precauções dos primeiros
dias; Alex havia-os conquistado mostrando-se dócil e bem-educado. Nunca mais lhe pediram que se encostasse à parede no momento de abrir a porta; mesmo quando tinham
de escoltá-lo à casinha, muitas vezes iam rindo e conversando, sem empunhar as armas. O conde desconfiava que eles o julgavam covarde. Tanto melhor.
Encostou-se na parede, tenso e atento. Seus olhos brilhavam mais do que de costume, mas os guardas não tinham sensibilidade para percebê-lo.
Quando um deles se abaixou para colocar a gamela no chão, Alexander decidiu agir.
Os quilos que havia perdido nas galés tinham sido substituídos, com vantagem, pelos músculos poderosos que adquirira nos três anos de remotorçado. Alex possuía
a força de um leão, e sabia quando devia tirar partido disso. Calculando bem o bote, tomou impulso e saltou maciamente sobre o guarda agachado, que, desavisado,
desabou nas pernas do compa-nheiro. Este perdeu o equilíbrio e tentou se aprumar, mas foi atingido por um potente soco no queixo, seguido de um pontapé nas virilhas.
Perdeu os sentidos e caiu com um som abafado. Enquanto o outro tentava se erguer, meio tonto ainda, Alex apanhou a espada do primeiro e firmou a ponta da arma no
pescoço do escocês.
- Fique quietinho e trate de me obedecer - falou, escandindo ameaça-doramente cada sílaba.
- Você não vai conseguir...
- Pode ser. Mas juro-lhe que você morrerá primeiro, se não for neste minuto para o fundo da cela. E arraste seu companheiro para lá.
O guarda ainda hesitou, avaliando o inglês com os olhos miúdos. Menosprezara o maldito Carey, que afinal não era tão covarde quanto pensavam ele e o companheiro.
A ponta da espada afundou-se um pouco em sua pele, e o escocês sentiu um fiozinho quente descer-lhe pelo pescoço.
- Está bem, eu obedeço.
A espada se afastou alguns milímetros, pronta a ser usada caso fosse necessário. O homem apanhou o companheiro pelos ombros e puxou-o para perto da janela.
- Agora vire-se de costas e encoste na parede. Exatamente como você fazia comigo.
O escocês hesitou novamente. Alex sabia que ele considerava a hipótese de atacar.
- Nem sonhe com isso - disse o inglês, num tom que não deixava dúvida. - Vire-se.
O homem obedeceu, fechando os olhos. Esperava ser atravessado pelas costas, mas em lugar disso sentiu uma dor aguda atingi-lo na nuca. E depois veio a escuridão.
Alex examinou os dois homens estendidos. Ambos sangravam, mas estavam bem vivos. Na manhã seguinte acordariam com uma terrível dor de cabeça.
Despiu a jaqueta de um deles, reforçada com cota de malha e ornada com a faixa verde e vermelha do clã Ker, vestindo-a rapidamente. Tirou a cinta com espada
do outro e também passou-a em volta da cintura; com um pouco de sorte, passaria por um homem do clã. Mas havia alguns problemas, como seus cabelos, por exemplo.
Os Ker eram, quase todos, ruivos; apenas o tal de Patrick tinha cabelos pretos como os seus. Para piorar a situação, havia a barba. Os oficiais do clã traziam uma
barbicha rala e vermelha, ou, no mais das vezes, tinham o rosto escanhoado.
Alex abaixou-se mais uma vez, para se apoderar dos punhais. Sem esforço, ergueu um dos guardas nos braços e depositou-o sobre o catre, cobrindo-o com um cobertor.
O outro foi arrastado para um canto, onde não seria notado muito depressa. Estava tudo pronto, mas era preciso pensar mais um pouco. Primeiro teria de encontrar
um lugar onde pudesse fazer a barba, senão não conseguiria fugir. Se a torre fosse igual às que conhecia por ali, Alex encontraria sólidas paredes duplas e duas
portas de madeira maciça. Sua única chance era usar de astúcia e se disfarçar um pouco. Assim mesmo, era uma chance em mil.
Saiu cautelosamente, fechou a porta sem ruído e desceu as escadas, felicitando-se por estar com as macias botas de couro espanhol, que pouco barulho faziam.
Toda a vez que subira ou descera aquela escada estivera vendado, mas lembrava-se de que contara cinco patamares, o que provavelmente queria dizer que tinha pela
frente cinco andares para descer. Em cada andar, encontraria cômodos, quartos e gente. Quando alcançou o primeiro patamar não encontrou ninguém, mas ouviu vozes
que vinham em sua direção. Mergulhou na sombra do primeiro aposento, esperando encontrá-lo vazio.
A sorte, ao que parecia, ainda estava do seu lado. O aposento, localizado na face leste e ainda iluminado pelo poente, parecia ser o quarto de algum membro menos
importante da família. Era simples e sóbrio, parecido com o que possuía em Huntington, mas as paredes estavam guarnecidas de armas, brasões e escudos. Havia ainda
uma faixa escocesa verde e vermelha, bem como uma daquelas típicas boinas, que os homens do clã gostavam de usar com orgulho. Continuando a silenciosa inspeção,
Alex deparou com um nicho escondido na parede, perto da janela. E seus olhos brilharam de alegria imediatamente. Encontrara uma jarra com água e, sobre ela, um pedaço
de aço polido, que certamente o morador utilizava como espelho. Rapidamente, sem pensar duas vezes, umedeceu a barba, tirou um dos punhais da cinta e livrou-se do
incômodo tufo de pêlos com golpes leves e precisos. Em seguida colocou a boina e olhou-se no espelho. Ainda estava longe de parecer um Ker, principalmente com aqueles
cabelos crescidos e luzidiamente negros. Impaciente, atufou-os como pôde dentro do boné, enterrando-o quase até os olhos.
Depois, decidiu-se a esperar até que anoitecesse por completo. Talvez conseguisse se esgueirar pelos corredores e quartos enquanto a família estivesse reunida
para jantar. Contava com uma pequena vantagem: ninguém examinaria alguém que estivesse com as roupas do clã. Nutria também esperanças de que houvesse convidados
para jantar. Isso significaria mais pessoas diferentes. E mais trabalho para os serviçais, que não se afastariam da mesa.
Sentou-se, os nervos em permanente estado de alerta. O sol sumiu no horizonte, e a tão esperada escuridão envolveu-o. De vez em quando ouvia vozes, mas elas
logo se afastavam em murmúrios abafados. Finalmente, fez-se silêncio naquele andar. Alex deslizou para fora do quarto, colando-se às paredes. Rapidamente, mas com
muito cuidado, desceu mais dois lances de escada, sempre parando para sondar o silêncio e a escuridão. Agora havia uma luz fraca iluminando aquele andar. Uma criada
veio em sua direção. A primeira reação que teve foi fugir, mas depois pensou melhor e resolveu testar o disfarce. Assumiu a postura descuidada de alguém bastante
familiarizado com o castelo e diminuiu o passo. Prendeu a respiração. A jovem passou por ele sem lhe dar a menor atenção, levando um jarro de metal. Mais relaxado,
Alex desceu mais um lance. Ouviu um barulho animado de vozes vindo do térreo, a sua direita. Os Ker deviam estar reunidos lá, e pelo tinido de pratos sabia que,
efetivamente, jantavam. Não havia outro jeito; teria de passar pela entrada do salão.
Servos iam e vinham, num vaivém de levar e trazer pratos cheios, mas nenhum lhe dava atenção, absorvidos que estavam em suas tarefas. Aproveitou quando uma gorda
criada passava com uma grande travessa e, escondendo-se atrás dela, conseguiu passar pela entrada do salão, de onde vinham risos acompanhados de animada conversa.
Apressou o passo. Finalmente, conseguiu atingir a porta da torre. Destrancou-a rapidamente e foi dar em outro corredor, onde havia uma segunda porta. Abriu-a e,
sem acreditar ainda na sorte que tinha tido até então, achou-se fora da temível e sombria torre. O ar frio da noite atingiu-o, parecendo uma lufada de liberda-de
perdida e recuperada. Teve vontade de saltar e rir, rolar na grama molhada. Mas ainda era cedo para cantar vitória, sabia disso.
Sorveu o ar em longos e sedentos haustos. Depois procurou os estábulos com os olhos. Talvez até conseguisse roubar Gideon de volta. Hesitou, sabendo que não
devia correr mais esse risco. Mas Gideon seria essencial em sua fuga.
Achou os estábulos sem maiores problemas, mas deu de cara com um rapazinho, cujos olhos se arregalaram de espanto e evidente medo.
Alex logo adivinhou que o menino o havia reconhecido. Em duas passadas alcançou-o e tapou-lhe a boca com a mão, olhando-o ameaçado-ramente. O menino não teria
mais de quinze anos; Alexander não teria coragem de matá-lo a sangue-frio. Praguejando, olhou em volta, pensando furiosamente. Levaria muito tempo amordaçar o garoto
e amarrá-lo. E tempo era a coisa mais preciosa que tinha no momento.
Fez o menino dar-lhe as costas, apesar dos movimentos frenéticos do pequeno, na tentativa de se soltar. Com uma mão ainda colada na boca do rapaz, Alex usou
a outra, com relutância e pena, dando-lhe um murro bem calculado, na altura do ouvido. O corpo do rapazinho amoleceu imediatamente, inerte. Deitou-o quase com carinho
num monte de feno, certificando-se de que ele respirava, e depois endireitou-se.
E ficou paralisado.
Recortadas pelo luar, duas silhuetas acabavam de entrar no estábulo. Dois homens. Vestiam trajes de viagem e estavam pesadamente armados. Instantaneamente Alex
reconheceu Patrick. Seus olhos experimentados sabiam que esse era muito mais perigoso que o outro. Por um momento, os três se entreolharam em ansiosa expectativa.
Mas já uma espada era desem- bainhada pelo escocês, que se aproximava lentamente, um sorriso mau brincando-lhe na face.
Surpreendido, Alex percebeu que o líder do clã esperava que ele também puxasse da espada. Então seria uma luta justa! Um frêmito de excitação percorreu-lhe a
espinha. Aqueles escoceses malditos haviam-no humilhado, insultado e maltratado. E agora lhe davam uma chance de revide.
- Inglês filho de uma cadela - rosnou Patrick.
Alex sabia que ele tentava provocá-lo, fazê-lo perder a cabeça. Lançou um breve olhar para o outro escocês, que, de mão na espada embainhada, contemplava a cena
com evidente satisfação. Isso o fez ter certeza de que tinha pela frente um soberbo e temível adversário. Tanto melhor!
A espada de Patrick se ergueu, e a de Alex aparou-a no ar, enquanto o barulho de metal ecoava nas paredes do estábulo. Os antagonistas não tiravam os olhos um
do outro, vigiando-se, avaliando-se. Novo clangor se ouviu, e uma faísca pulou das lâminas, efêmera.
Alex sabia que estava em desvantagem. Já fora ótimo espadachim, mas havia anos que não se exercitava nessa difícil arte, a não ser em jogos amistosos com Warwick,
quando voltara à Inglaterra. Contudo, confiava em seu físico, e sabia que poderia agüentar melhor que ninguém o cansaço. Devia isso aos franceses. Que ironia!
Patrick tentou uma investida direta, mas Alex aparou o golpe, recuando até colidir numa baia, que o impediu de prosseguir. Ouviu o cavalo patear nervosamente
dentro da baia e desviou-se agilmente, simulando atacar. Só queria testar o adversário.
O moreno defendeu-se com facilidade, mas Alex viu a surpresa estam-pada no rosto do inimigo. Estava mais que claro que Patrick esperava vencer depressa. A surpresa
mudou para carrancuda determinação.
O estábulo estava às escuras, mas cheio de animais assustados. Patrick foi recuando até a entrada, com passos cautelosos, observando cada movi-mento do adversário,
até que ambos se acharam no pátio.
Ouviu-se um grito vindo da torre, e Alex soube que sua chance de escapar estava perdida. Faixas verdes e vermelhas surgiram de toda a parte, como por encanto.
Patrick e o inglês batiam-se agora dentro de um círculo de escoceses, todos tensos de expectativa. Alex perguntou-se se Elsbeth estaria entre eles, mas não ousou
tirar os olhos de Patrick. O homem era hábil, sem dúvida.
Tentou contra golpear e levar Patrick de volta ao estábulo, mas no segundo seguinte o escocês revidou. Alex pulou para o lado, mas calculou mal a distância.
A lâmina escocesa rasgou-lhe o antebraço, perto do cotovelo. O sangue começou a escorrer, misturado com suor.
Novamente as espadas se embateram e se separaram, à medida que a noite se adensava. A respiração dos dois se fez mais curta, os passos tornaram-se mais lerdos.
Os minutos se passavam, tornando a luta mais árdua e cansativa. Alex conseguia atacar com perícia, mas não lograva achar uma abertura na defesa do escocês. Por outro
lado, não fora sua incrível resistência física, já teria perecido nas mãos do adversário, cuja destreza era inegável. Alexander não teve dúvida de que Patrick seria,
seguramente, a melhor espada da região. O mais leve deslize de sua parte seria fatal. Podia ver o ódio crescer nos olhos escuros do oponente, a fria determinação
de matá-lo.
Era um duelo de vida e morte, extenuante e impiedosa. Alex julgou ter visto uma brecha na defesa adversária e investiu novamente, mas Patrick aparou o golpe
com perícia. Desta vez, a espada saltou-lhe das mãos e foi cair com um ruído metálico no chão de pedra. Alex mergulhou como um raio para apanhá-la, rolando o corpo
para fugir de nova e fulminante investida do escocês. No instante seguinte estava de pé, como que impelido por molas. Mal ouviu o murmúrio de admirada excitação
que percorreu a platéia.
Patrick começara a respirar ruidosamente, e Alex sentiu que talvez conseguisse alguma coisa se exaurisse o adversário. A essa altura, já sabia que lhe seria
impossível vencer o escocês pelo ataque direto; além de ter perdido muito de sua antiga capacidade no manejo da espada, encontrara pela frente um espadachim de extrema
astúcia e habilidade. Começou então a mover-se com toda a rapidez que podia, embora estivesse, ele próprio, à beira da exaustão. Mas era, muito simplesmente, uma
questão de sobrevivência.
A cada ataque de Patrick, saltava de banda; logo, como um mosquito impertinente, provocava o oponente do outro lado. E assim prosseguiu, sem mais tentar atacar,
economizando o que ainda lhe restava de forças.
Enraivecido com o evasivo inglês, cujos floreios lembravam-lhe os de uma enguia, Patrick passou a atacar com violência redobrada. Alex só fazia se defender,
não querendo gastar as últimas energias. Sabia que estaria morto caso deixasse a espada cair novamente. Ou se ele próprio escorregasse e fosse ao chão. Uma chama
de esperança brilhou em seus olhos quando ouviu o resfolegar penoso e rouco do antagonista. Mas redobrou a atenção; sabia que Patrick decidira encerrar aquela luta
a qualquer custo.
O escocês investiu novamente. Alex desviou-se, pulando seguidamente para trás, provocando e irritando. Quando percebeu que Patrick, num pequeno erro de cálculo,
baixara a guarda por breves instantes, não perdeu tempo. Disparou para frente e levou a espada diretamente para o coração do escocês. No último momento, porém,
a espada se desviou, em busca do braço armado do adversário.
Esse louco momento de hesitação foi um sério erro.
Patrick captara a breve indecisão nos olhos de Alex, e esse único segundo deu-lhe o tempo que necessitava. Brandindo a espada como se fosse um prolongamento
de seu braço, fez a de Alex voar pelos ares, encostando-lhe imediatamente a lâmina no peito. Alexander Carey leu a morte nos olhos tenebrosamente vitoriosos do escocês
e fitou-o em silêncio. Esperando.
- Não!
Ouviu o grito de Elsbeth cortando os ares, mas não tirou os olhos de cima de Patrick. Sabia que o adversário queria sua morte, acima de qualquer coisa. Talvez
mesmo acima da vontade de sua chefe. Esperou ainda, adivi-nhando que o escocês estudava a desobediência direta à ordem, gritada de forma curta e desesperada. Ambos,
exaustos e tensos, fitavam-se com ódio.
- Não! - repetiu ela, dessa vez em tom cortantemente imperioso. - Não lhe dou permissão, Patrick Ker!
Vagarosamente, o moreno baixou a espada e colocou-a no estojo, sem tirar os olhos de Alex, avisando-o com o olhar que somente a ordem de mila-dy o detivera de
matá-lo como a um verme maldito. Mas ainda encontraria outra ocasião para satisfazer sua sede de vingança.
Patrick cuspiu no chão e virou-lhe as costas.
Alexander exalou um longo suspiro, o coração batendo violentamente. De cansaço e da tensão que sentira na hora em que se vira perdido.
O silêncio dominava o pátio, quebrado apenas pela respiração arquejante dos dois combatentes. Então um homem se adiantou, o mesmo que entrara no estábulo com
Patrick. Ele se curvou e apanhou a espada de Alex, um sorriso brincando nos lábios e nos olhos desbotados.
- Até que você foi bem, para um inglês - disse, com secura. - Poucos agüentam tanto tempo a espada de meu primo.
O conde estava exausto demais para responder. E não havia resposta a dar. Nada conseguira naquele dia, exceto pôr seus captores mais alertas e cuidadosos.
O suor empapava-lhe a camisa e pingava de seu rosto. Baixou a vista para o braço, que somente agora começava a doer, e viu que a ferida sangrava abundantemente.
Apertou-a com a outra mão, a fim de estancar o fluxo quente e vermelho.
Quando alçou a vista, deu com dezenas de pares de olhos fixando-o com curiosidade. Buscou e encontrou os de Elsbeth Ker. Curvou levemente a cabeça, com um sorriso
fraco.
- Levem-no de volta para a torre! - gritou ela, tomada de fúria, enquanto se encaminhava para Patrick. - Já!
Alex sentiu uma pontada de ciúme ao ver o modo como a castelã olhava para o primo. Mãos vigorosas puxaram-no com brutalidade, empurrando-o em direção à torre.
Mas ele se livrou, com um repelão. Estava farto de ser prisioneiro, farto de ser maltratado. Farto da vida, afinal. Por um momento, acalentou a idéia de se atirar,
num gesto suicida, contra todos. Seria uma morte bonita, pelo menos. Tudo lhe parecia tão inútil agora.
Mas seus olhos deram com os do outro Ker, o loiro, que o fitava com ar zombeteiro. Era como se ele tivesse lido seu pensamento, e apenas aguar-dasse que o conde
perdesse a cabeça. Foi o quanto bastou para Alexander Carey endireitar os ombros e erguer o queixo. Não, eles jamais teriam o prazer de vê-lo admitir sua derrota.
Isso nunca acontecera antes, e nunca aconteceria.
Ignorando a dor e o cansaço, reuniu toda a dignidade que podia e caminhou sozinho. Havia orgulho em sua postura quando abriu caminho entre os escoceses e se
dirigiu para a torre, solitário e desafiador.
Mesmo ao subir os intermináveis degraus da escada em caracol, Alex não se permitiu sequer curvar os ombros. O Ker loiro acompanhava-o, mantendo discreta distância.
Ao chegarem à cela, Ian descobriu que a porta estava fechada e que a chave sumira. Seus olhos claros dançaram divertidos quando viram o carcereiro dentro do
cubículo, ainda tonto com a pancada que levara. Ian experimentou a porta e franziu o cenho quando percebeu que havia sido trancada. Voltou-se para Alex:
- A chave?
O conde limitou-se a dar de ombros.
- Parece que gosta de viver perigosamente, inglês.
- Não gosto, em absoluto - respondeu Alex, com frieza estudada. - Acontece que também não gosto de sua hospitalidade.
- Dê graças aos céus por não ser acorrentado. Minha doce priminha não quer, seja feita sua santa vontade. Mas sugiro que não a provoque muito. Ela tem um gênio
danado.
Alexander não gostou do modo terno com que o escocês se referia a Elsbeth.
- Você é Ian Ker?
O homem fitou-o com hostilidade.
- A chave. Não tenho mais tempo a perder. Posso chamar o ferreiro, mas se isso for necessário, previno-o que pedirei a ele que faça uns servici-nhos extras na
cela.
Alex entendeu a mensagem. Correntes. Eram suas velhas inimigas, sempre lembradas, nunca esquecidas. Tirou a bota esquerda e virou-a de cabeça para baixo, sacudindo-a.
A chave pulou e caiu tilintando.
Ian apanhou-a, enquanto seu sorriso voltava. Abriu a porta e lançou um olhar de repugnância para os dois guardas, já refeitos e assustados.
- Devia deixar esses dois aqui, junto com você. Este foi um dia negro e triste para os Ker.
E depois, voltando-se de punhos cerrados para os guardas:
- Com mil demônios do inferno! Vocês são dois! Dois escoceses, que se deixaram bater por um único inglês, e pelo mal dos pecados que terei de pur-gar no inferno,
um Carey! Andem, seus idiotas, saiam desta cela fedorenta!
Os rapazes saíram com humildade, não sem antes lançar olhares ferozes para Alex.
Este esperava que Ian os seguisse, mas em lugar disso o escocês encostou-se preguiçosamente na parede, rodando a chave no indicador.
- O que você quer mais? - perguntou o conde, com raiva cansada. - Me gozar um pouco? Previno-o que hoje estou de pavio curto.
- Não. Não tenho razão para isso. Você me surpreende, inglês.
- Não vejo por quê.
O maldito braço queimava como fogo. Como gostaria de se ver sozinho!
- Por que você poupou Patrick?
- Foi isso que eu fiz? - indagou Alex, fingindo inocência.
- Não se faça de imbecil, que eu não sou burro. Você o teve nas mãos e não o matou. Por quê?
Alex virou-lhe as costas e foi se sentar no catre. Estava quase desmai-ando de cansaço e dor.
- Huntington! - rugiu o escocês.
A boca de Alex curvou-se num simulacro de sorriso.
- Se eu o tivesse matado não estaria em posição melhor que agora.
- E o prazer da vingança?
- A morte de um homem me dá pouco prazer.
- Mas a sua daria muito gosto a Patrick.
- E a você.
- Talvez. Para todos os Ker.
- Então aceite minhas desculpas por não entregá-la numa bandeja de prata.
Ian fez uma careta.
- Acho que até poderia chegar a gostar de você.
Alex fitou-o com azedume.
- Vou mandar trazer água para cá.
O conde continuou a olhá-lo, sem se dar o trabalho de responder. Só queria livrar-se do homem. De todo o mundo.
Ian sorriu-lhe brevemente e saiu, aferrolhando cuidadosamente a porta. Deu algumas ordens aos novos guardas que o haviam acompanhado e depois Alex ouviu-o descer
a escada.
Finalmente só, o conde de Huntington examinou a ferida.
Nada grave, mas dolorosa. Contudo, considerou a dor um presente dos céus, porque afastaria sua mente do fracasso que acabara de sofrer. E da irritante consciência
de que já não era mais tão bom quanto antes. Havia perdido uma oportunidade preciosa, e agora os novos guardas seriam muito mais cautelosos que os anteriores.
E ele chegara tão perto da ansiada liberdade.
Tão perto.
Capítulo VII
Patrick e Ian partiram uma hora depois, o primeiro rumo ao castelo Homes, e o segundo, ao da família Douglas. Mas, antes disso, enquanto Ian conduzia o conde
para a cela, Patrick teve uma conversa com Elsbeth, enquanto lavava o rosto suado num barril do pátio.
Não era o tipo de conversa que ela apreciava, e isso era visível na expressão aborrecida, claramente estampada na face da castelã.
- Mantenha-se longe dele, Elsbeth. É um demônio esperto e perigoso. Aquela cela não vai segurá-lo por muito tempo, estou avisando.
A prima não respondeu, em obstinado silêncio. Patrick enxugou o rosto.
- A idéia do rapto não foi das melhores, prima.
- É. Mas agora estamos tão presos quanto ele.
-Precisamos tomar muito mais cuidado. Lembre-se de que agora Huntington conhece a torre e o castelo todo. Sabe onde estão localizados os quartos, os salões.
Transformou-se num sério perigo para nós! Não creio que seja uma boa idéia libertá-lo. Nunca mais.
- Muitos outros vizinhos conhecem nosso castelo; A verdade é que os Carey, se quiserem, podem arranjar até uma planta de nossos porões. Têm espiões, como nós.
- Mesmo assim, não gosto de deixar você sozinha com ele.
- Como assim, sozinha? Há muitos Ker aqui, valentes como você. Nem mesmo lord Huntington conseguiria vencer todos de uma vez. Que inferno, Patrick, você está
vendo problemas onde não existem.
- Por que não o põe a ferros? Eu ficaria mais sossegado. Essa idéia era abominável para Elsbeth, embora ela não soubesse precisar por quê. Não devia se importar
nem um pingo com o conforto do prisioneiro, arquiinimigo do clã. Afinal, ele tinha acabado de atentar contra a vida de Patrick.
Ou não?
Ora, certamente. Aquele momento de hesitação do conde fora puro fruto de sua fértil imaginação.
Reviu o rosto de Alex naquele momento, iluminado pelas centenas de tochas acesas às pressas pela platéia curiosa. O suor escorrendo em grossas gotas, os olhos
lembrando o mar da Escócia em dia de tempestade. E o braço mortífero hesitando, desviando-se inesperadamente do alvo certeiro. Fora o primeiro e único deslize que
ele cometera na batalha inteira. Reviu o sangue escorrendo. O modo orgulhoso como ele caminhara de volta, sozinho, para a humilhante prisão.
Foi um choque quando se deu conta de que admirava o conde. Admirava sua coragem, sua presença de espírito, seu orgulho.
Mas era um Carey! Não podia sentir admiração por um Carey, nem nada parecido. Precisava enterrar seus sentimentos de uma vez por todas. Era uma vergonha que
o sangue corresse mais depressa em suas veias só de pensar nele. Tinha de sentir ódio, apenas ódio.
- Vou pensar no que disse, primo - falou por fim. - Adio que está na hora de você partir.
- Está bem. Mas, por favor, tome muito cuidado - pediu Patrick, num tom mais suave que o habitual.
Sua mão tocou de leve o rosto da prima, com gentileza. E repetiu, baixinho:
- Muito cuidado.
A expressão de Elsbeth se suavizou. Era sempre assim. Patrick lhe era tão querido, especialmente quando sua concha se abria, nem que fosse por instantes, para
revelar um coração muito menos duro do que parecia. Sempre tivera certa dúvida em relação ao nascimento de Patrick. Como poderia ter sido gerado por alguém como
Joan? Joan, a gralha lamurienta e amarga, que espalhava veneno por onde passava?
Seus pensamentos foram interrompidos com a chegada de Ian, que voltava sorridente da entrevista com o prisioneiro.
- Como está ele? - perguntou Elsbeth, apontando para cima.
- Mais arrogante que nunca, prima. Essa parece ser a única qualidade dos ingleses, mas eles a praticam com perfeição.
Curvou-se e depositou um beijo na mão de Elsbeth.
- Vou sentir sua falta, prima bonita.
Ela retribuiu o sorriso. A contagiante simpatia de Ian nunca falhava, e tinha o poder de devolver-lhe o bom humor em questão de segundos. Era um homem atraente,
capaz de fazer suspirar muitas mulheres, mas vivia decla-rando que somente se casaria com Elsbeth. Se andava tendo relações com outras, mantinha-as em segredo.
Patrick, por seu turno, era famoso pelos inúmeros namoros, todos incon-seqüentes. Sua proposta de casamento com Elsbeth baseava-se em sua lide-rança e em sua
capacidade de proteger o clã. Nada de suspiros amorosos, olhos revirados. Com ele era pão, pão, queijo, queijo. Ainda assim, ele e a prima eram muito afeiçoados
um ao outro, uma vez que haviam sido criados juntos.
Impossível que um deles fosse um traidor. Impossível!
Caso houvesse um judas no clã, certamente não seria nenhum dos dois.
Sorriu-lhes:
- Que Deus os acompanhe.
- Amém, prima. Pretendo voltar breve - falou Ian.
- Lembre-se do que lhe disse - acrescentou Patrick. - Todo o cuidado é pouco.
Ian virou-se, com seu jeito descuidado e negligente, e montou no cavalo que o esperava perto do estábulo, junto com o de Patrick. Este deixou-se ficar mais um
pouco, como que querendo dizer alguma coisa. Elsbeth aguardou pacientemente, mas alguns minutos se passaram e o primo continuava em silêncio.
- Já está recuperado da briga? Sente-se bem para viajar? - perguntou ela, solícita.
- É preciso mais de um Carey para atrasar minhas viagens.
- Claro, eu sei - ela disse, observando-o com atenção.
Patrick era insuperável na espada, por causa da incrível capacidade de não se distrair com nada. Sabia, como ninguém, guardar seus pensamentos para si. E era
o que fazia agora.
- Com sua permissão, prima - disse ele, finalmente.
- Vá com Deus.
Com crescente remorso, observou-o afastar-se. Envergonhava-se de ter suspeitado dos primos, ainda que fosse o mais tênue fio de desconfiança.
Depois de acenar-lhe mais uma vez, os dois esporearam os cavalos e embrenharam-se na floresta vizinha. Era uma bela noite de lua, boa para viagens. Os primos
ficariam juntos ainda por uma hora, depois seguiriam caminhos diferentes.
Sentiu-se só e triste. Ian e Patrick constituíam seu único arrimo, desde que o pai morrera. Estavam constantemente a seu lado, ajudando-a a tomar decisões, confortando-a
nos momentos de saudade. Agora deixavam-na sozinha, e por culpa dela mesma. Porque se permitira ter alguma dúvida quanto à lealdade deles.
Maldito Huntington! Fora ele que plantara aquela insidiosa semente em sua cabeça. Mas estava enganado! Ou então planejara tudo astutamente. Não importava mais;
os primos já haviam ido. Até que seria uma boa idéia obter o apoio dos Homes e dos Douglas. A viagem dos dois poderia ajudar o clã; não seria em vão. Mas não mais
se deixaria influenciar daquele modo pelo maldito inglês, que a praga o levasse.
Pensou no braço ferido, considerando a possibilidade de ir até lá e fazer um curativo, mas descartou a idéia em seguida. Não parecia grave, e Ian dissera que
o prisioneiro estava "mais arrogante que nunca", o que significava que devia estar se sentindo bem. Além disso, o conde só faria destilar veneno, confundindo-a mais
ainda.
De repente, lembrou-se de Hugh. Deus! A tentativa de fuga e a eletrizante luta haviam-na feito esquecer completamente Hugh, que já devia estar a sua espera.
Então, quisesse ou não quisesse, teria de subir à prisão de qualquer forma. Maldito inglês! Precisava saber o nome do homem de confiança do conde e depois passar
essa informação a Hugh. Afinal, fora essa sua intenção quando mandara os primos viajar. Agora, melhor seria levar a idéia até o fim.
Poderia até aproveitar a visita e cuidar do ferimento de Alex, concedeu, sem contudo admitir que havia outra razão por trás da facilidade com que mudara de idéia.
Voltou para o castelo, onde Louisa a esperava com expres-são ansiosa e pálida.
- Que foi, Louisa? Está doente?
- Não, estou bem. Só queria saber de... de Patrick. Soube que ele lutou com o inglês e... Está tudo bem agora, não é verdade?
Elsbeth olhou-a, surpresa e divertida. Louisa, apaixonada por Patrick? Sim, não havia sombra de dúvida. Aqueles olhos brilhantes e submissos não a enganavam
nem por um segundo. O que mais a intrigava agora era como ainda não o percebera.
- Patrick não sofreu nem sequer um arranhão, Louisa - falou, com doçura e gentileza.
O rosto da moça se iluminou de alívio.
- Eu... eu...
Mas Louisa não conseguiu continuar. Suas faces tingiram-se de vermelho e ela fugiu da sala.
Elsbeth ficou sorrindo, pensativa. Louisa morava no castelo havia dois anos, desde que o pai dela morrera em combate. Robert Ker achara-se na obrigação de tomar
a órfã sob sua proteção e recomendara a Elsbeth que procurasse fazer amizade com ela. Era uma jovem encantadora, mas terrivelmente tímida. Toda a vez que Elsbeth
se aproximava, ela fugia.
Agora se censurava por não ter travado amizade mais profunda com Louisa. Mas vira-se às voltas com inúmeras responsabilidades; tivera de visitar outros clãs,
viajar para Edinburgh, cuidar do bem-estar da família. Deixara-a aos cuidados de Joan, que se prontificara a ensinar-lhe a bordar, costurar e cozinhar.
Sim, definitivamente negligenciara seus deveres de anfitriã. Perdera-se nos intrincados labirintos da estratégia guerreira, dos cuidados com o clã. E o pior
é que se sentia cada vez mais desajeitada nessas tarefas. Tinha medo de não poder proteger de forma adequada sua família e seus imensos domínios. Parecia-lhe um
fardo pesado demais, fazer tudo sozinha.
Talvez os mais velhos tivessem razão. Talvez devesse se decidir a casar. Com quem? Ian? Patrick? Um dos vários pretendentes que haviam surgido para pedir-lhe
a mão? A idéia de aliar-se a outro clã, a fim de reforçar a solidez do seu, não lhe era de todo repulsiva.
Mas, passando em revista cada um dos pretendentes, sentiu-se perdida. Achava-os elegantes demais, afetados demais. E nenhum conseguira produ-zir nela o mesmo
efeito devastador dos olhos do conde de Huntington.
Sua única esperança era livrar-se do prisioneiro o quanto antes e depois escolher conscienciosamente um marido. Por mais que não gostasse da idéia, sentia que
devia isso ao clã.
Chamou uma das criadas e ordenou-lhe que preparasse um tacho de água quente. Preparou algumas ataduras, untando-as com linimento e linhaça. Enquanto providenciava
os preparativos, tratava de se convencer de que fazia isso simplesmente porque um refém morto de nada valia, e também porque tinha de extrair informações para passar
a Hugh Armstrong. Mas não foi capaz de acalmar as apressadas batidas do coração nem de diminuir a relutante expectativa de rever Alexander Carey.
Encontrou dois guardas novos vigiando a cela, ambos de expressão dura e selvagem. Quando pediu que abrissem a porta, notou que se entreolharam com inquietação.
- Annie virá ter comigo daqui a pouco, não se preocupem. Um deles se adiantou e colocou a chave na fechadura, não sem antes desembainhar o punhal.
- Os senhores podem esperar aqui fora mesmo - ordenou.
- Mas, senhora - começou um, detendo-se em seguida diante do olhar imperioso da castelã.
- Aqui fora, senhores. Por favor, passem-me aquela tocha. O guarda alcançou a tocha que ardia na parede, entregando-a em silêncio.
Elsbeth entrou, logo encontrando uma saliência na parede, onde pousou a tocha. Depois virou-se para o inglês, que já se erguia do catre. Viu os olhos cinzentos
brilharem por alguns instantes, para se apagarem logo em seguida.
Apesar do frio que fazia, Alex estava nu da cintura para cima, uma tira de cobertor atada firmemente ao pescoço, fazendo às vezes de tipóia. Elsbeth notou manchas
feias e escuras em volta da ferida, e não pôde deixar de ter pena do esforço que ele fazia para dissimular a dor.
- Estava com pressa de sair daqui, conde?
Ele não sorriu, capturando-lhe o olhar.
- Pensei em livrá-la de um peso inútil.
- E quase conseguiu, milord. Quase.
-Vejo que está desapontada. É porque não morri ou porque não conse-gui escapar?
- Quero o resgate. Nada mais, inglês.
Ele deu um passo para enxergá-la melhor à luz da tocha, mas tropeçou na jaqueta estendida no chão, e instintivamente esticou o braço doente para se equilibrar.
Uma pontada de dor levou-o a gemer involuntariamente. Elsbeth viu uma mancha vermelha se alargar no pedaço de cobertor. O conde encostou-se à parede, olhos fechados,
respiração suspensa.
- Sente-se, por favor. Vou fazer um curativo nesse ferimento.
Elsbeth falara com inesperada suavidade, o que o fez deslizar pela pare-de até cair sentado no catre, ainda de olhos fechados. Ao abri-los, sentiu-se plenamente
recompensado da lancinante dor que o surpreendera. Elsbeth aproximara-se, envolvendo-o com seu perfume de rosas, e começara a desenrolar as tiras de pano sujo que
Alex atara em volta da ferida, com expressão sinceramente preocupada.
Mãos de fada, pensou.
Nesse instante, Annie entrou com uma bacia cheia de água quente. Arregalou os olhos quando viu Elsbeth de joelhos naquele chão imundo, cuidando do braço do inimigo.
- Deixai-me fazer isso, senhora.
- Não, Annie. Ponha a bacia no chão.
A criada obedeceu, em silenciosa e revoltada desaprovação. Alex não pôde deixar de sorrir, apesar de o braço estar queimando e latejando. A castelã sabia ser
temível quando queria. Mulher extraordinária!
A voz dela abrandou-se:
- Trouxe as ataduras untadas?
- Estão aqui, minha senhora.
- Ótimo. Agora, minha boa Annie, desça e prepare um banho para mim. Daqueles que só você sabe preparar. Irei para lá logo, assim que terminar aqui.
Annie inclinou-se e saiu com indignada relutância sob o olhar levemente arrependido de Elsbeth. Por um momento, a escocesa pensou em levantar-se e correr atrás
da proteção da criada. Não entendia por que quisera ficar sozinha com o prisioneiro. Não entendia por que tremia, por que sentia uma secura estranha na boca. Eram
os olhos, os malditos olhos de borrasca. Dois cristais, dois prismas que jamais permaneciam os mesmos, em constante mutação de mistérios.
- Por que não "matou Patrick naquela hora?
A pergunta apanhou-o desprevenido. Aquele momento durante a batalha fora tão fugaz que ele próprio se perguntara se sua decisão fora consciente. Mas tanto Ian
quanto Elsbeth haviam-no percebido. Ela, uma mulher! Seria entendida também em esgrima?
- Por quê? - insistiu ela. - Se os papéis se invertessem, Patrick não teria hesitado em matá-lo.
- Sei disso.
- Então?
Ele deu de ombros, observando-a desenrolar as ataduras e colocá-las ao lado uma da outra.
- Não vi vantagem em matar Patrick.
- Você não seria castigado por isso. Nós escoceses sabemos honrar os vencedores.
Alex teve vontade de explicar que andava cansado de violência, de sangue, de ódio. Mas ela não acreditaria nas palavras ditas por um Carey. Manteve-se calado,
enquanto as ataduras iam sendo enroladas em seu braço, uma a uma.
Terminado o trabalho, Elsbeth examinou-o com atenção e deu-se por satisfeita. Seus olhos pousaram na grande cicatriz do ombro. Era recente e estranha a seus
olhos experimentados. Não provinha de espada nem de pistola.
Tocou-a de leve.
- Que...?
Mas a pergunta ficou no ar. Elsbeth notara instantaneamente que Alex assumira uma expressão dura e fechada. Assunto proibido, pensou. Recuou um pouco, assustada
com a tempestade cinzenta que se formara nos olhos do conde.
Reteve a mão no ar, incapaz de tirar os olhos dos de Alex, até que este relaxou um pouco, enquanto seus músculos se distendiam novamente.
- Obrigado, milady.
Embora estivesse sorrindo, seus olhos mantinham uma expressão sombria que ela não pôde decifrar.
- Milorde luta bem.
- Faz tempo que não treino.
- Ninguém nunca conseguiu vencer Patrick.
- Acredito.
Elsbeth fitou-o com curiosidade. Ainda não compreendia porque o inglês não enterrara a espada no coração de Patrick; qualquer outro em seu lugar não teria hesitado.
Positivamente não compreendia.
Olhou para o saco de couro que lhe trouxera dois dias antes, cheio de vinho. Estava jogado no chão, quase vazio.
- Patrick acha que você deve ser posto a ferros.
Mais uma vez a escuridão invadiu os olhos do conde, que nada respondeu.
Uma parte dele queria implorar à castelã que não fizesse isso, mas a outra foi mais forte. Jamais se humilharia diante do inimigo. Contudo, não sabia se suportaria
novamente verse acorrentado; achava que enlouqueceria. Precisou de uma vontade férrea para aparentar indiferença, embora Elsbeth notasse ura pequeno músculo, sob
o olho esquerdo, tremer quase imperceptivelmente.
- E o que pensa milady?
- Penso que esses guardas são mais cuidadosos que os outros. Você não conseguirá enganá-los com tanta facilidade.
- Não houve facilidade nenhuma da primeira vez. Elsbeth olhou-o, sentindo a força pujante daquele físico.
Era algo tão poderoso que parecia arrastá-la para o meio de um abismo em torvelinho. Teve que se conter para não se aproximar mais e tocá-lo.
Mas Alexander Carey não tinha tantos escrúpulos. Ao vê-la corar de maneira tão feminina e encantadora, não resistiu mais e tocou de leve a mão branca e pequenina,
que se achava voltada para baixo. Não encontrando resistência, virou-a para cima e acariciou a palma macia.
Elsbeth tremia com as ondas de doce sensação que varriam seu corpo todo, apenas através daquele simples toque. Os dedos de Alex transmitiam um calor que atravessava
sua pele e atingia a alma. Cada toque despertava-lhe a vontade de ter mais. Mais o quê? Não sabia, mas era alguma coisa ligada a Alexander Carey, lorde inglês, pirata,
aventureiro e destruidor. Puxou a mão com mais violência do que desejava.
- Parece que as correntes vão lhe fazer bem, milorde. Os olhos cinzentos fizeram-se gelo.
- Meu mais humilde perdão, senhora, mas estou diante de uma mulher linda, que me fez perder a cabeça.
A frase, conquanto falasse em humildade, saiu com um toque de irônico desdém, como se a lembrasse de que ela praticamente pedira aquela carícia. O que, em parte,
era verdade. Elsbeth sentiu que precisava sair dali antes que fizesse papel de boba.
Levantou-se:
- O homem de quem me falou, aquele de Huntington. Como se chama?
Alex levou algum tempo para entender a pergunta, e fitou-a inquisidoramente. Quando entendeu, seus olhos se suavizaram.
- David Garrick.
Ela se encaminhou para a porta.
- Lady Ker?
Alex tirou alguma coisa do dedo e, levantando-se com alguma dificuldade, aproximou-se, tomou-lhe uma mão e depositou o objeto entre seus dedos.
Elsbeth examinou o anel à luz da tocha. Era grande e pesado, onde brilhava enorme rubi encimado pelo brasão de Huntington.
- Envie-lhe isto. David saberá que fui eu que mandei. Ele deverá passá-lo ao duque de Northumberland. Com isso, qualquer resgate que milady pedir será pago imediatamente.
Elsbeth sabia que John Dudley, conde de Warwick, fora recentemente nomeado duque de Northumberland e protetor do rei. Ian já lhe dissera que Alexander Carey
tinha amigos influentes na corte, inclusive a proteção de Northumberland; pelo visto, essa amizade devia ser bastante forte, mais do que Ian imaginara.
- Tem amigos importantes, milorde.
- Mas poucos.
- Ele pagará o resgate?
- Acredito que sim.
Elsbeth hesitou. Esse rapto tornava-se mais perigoso a cada momento. Se era verdade que o conde era amigo de Northumberland, então seu clã estava em maus lençóis.
Nem os Ker nem nenhuma família da região tinha condi-ções de enfrentar a temível armada inglesa.
Alex viu a hesitação e adivinhou a causa. Praguejou, irritado. Acabara de dar uma boa razão para que a bela castelã, em vez de contatar David, mandasse matá-lo
rápida e discretamente. Sabia que Elsbeth estudava as conseqüências que poderia sofrer, mantendo-o prisioneiro. Para ela, mais fácil seria mandar soltá-lo para depois
acabar silenciosamente com sua vida.
- Gostaria de nunca tê-lo conhecido, inglês - explodiu ela, a voz cheia de raiva e frustração.
A porta se abriu para deixá-la passar. Ouviu-se o rangido da tranca e do ferrolho. Alex percebeu que cambaleava de fraqueza, e deixou-se cair na cama. Elsbeth
esquecera-se da tocha, talvez devido à sua raiva repentina. Como que escarnecendo dele, as chamas se altearam agitadas, produzindo sombras dançantes nas pedras limosas.
Antes de adormecer, Alex se perguntou o que faria a furiosa lady Ker.
Lady Ker perguntava-se a mesma coisa.
Para qualquer direção que se voltasse, o caminho se afigurava mais perigoso ainda.
Levou as mãos às têmporas, apertando-as. Queria se livrar da imagem do prisioneiro, para poder se concentrar melhor no raciocínio.
Pensou no pai com amargura. Ele jamais teria raptado alguém como Alexander Carey.
Não mesmo? Afinal, o conde era seu inimigo. Poderoso, rico e perigoso.
Elsbeth fora criada odiando os Carey. Aprendera que eles encarnavam o diabo; só os que estavam debaixo da terra é que não lhe fariam mal.
Mas por que Alex não matara Patrick?
E Patrick, teria percebido que não morrera por obra e graça do inimigo? Certamente sim. Ótimo esgrimista como era, seguramente percebera a hesitação do inglês.
Mesmo assim,mostrara-se pronto - não, ansioso era a palavra mais adequada - para matar o inglês.
Seria ele o traidor? Bom Deus haveria mesmo um traidor em seu clã?
A única pessoa que poderia ajudá-la, no momento, era Hugh Armstrong. Dispensou Annie e saiu do castelo, ainda afivelando o pesado manto com capuz. Havia dois
guardas perfilados na porta, novidade introduzida por Patrick depois da tentativa de fuga. Aborrecia-a ter de se identificar perante seu próprio pessoal. Tudo por
causa do inglês!
- Que ninguém me acompanhe - ordenou, depois de se identificar. - Pretendo visitar Hugh Armstrong e voltar em meia hora.
Pouco depois estava diante da casa. Seus olhos fatigados encontraram conforto nas luzes acesas, na fumaça que se enrolava em espirais pela chaminé.
Mais confortante ainda foi o sorriso de Hugh, que se levantou prontamente da cadeira e, coxeando, adiantou-se para dar-lhe as boas-vindas. Elsbeth sentiu agudamente
a própria solidão quando viu as crianças brin-cando no tapete, cercados pelo carinho da mãe.
Hugh levou-a para um canto afastado, longe de ouvidos indiscretos.
- Ouvi falar da luta. Esse tal de Carey deve ser a ovelha branca entre as pretas, hem!
- Realmente - respondeu ela, tentando ser irônica. - O melhor de todos.
- Ah, pequena! Precisa aprender a medir um homem pelo que ele é, não pela família.
Mas Elsbeth ficou sério, o que fez Hugh suspirar resignado.
- Falou com ele?
- O homem de Huntington chama-se David Garrick.
- Já ouvi falar. Dizem que é ótimo guerreiro. Os Carey costumam emprestá-lo a outras famílias.
- Ele me pediu para entregar-lhe isto - disse ela, entregando-lhe o anel.
Elsbeth observou-o examinar o anel e depois guardá-lo no bolso.
- O conde me disse outra coisa ainda.
Hugh levantou a cabeça, notando preocupação no tom de Elsbeth.
- Que disse ele, pequena?
- Pediu que... que esse tal Garrick levasse a informação a John Dudley.
- Northumberland?!
- É. Ele mesmo.
Hugh assobiou baixinho.
- Sabia que Huntington tinha alguns amigos na corte, mas não tão importantes assim.
- Isso pode significar a guerra para nós.
- Pode.
No silêncio que se seguiu, Hugh lembrou-se de que, havia dois anos apenas, ocorrera uma sangrenta invasão inglesa na fronteira, quando muitos escoceses foram
capturados e enforcados.
- Não vai ser difícil para John Carey jogar a culpa nos Ker, se alguma coisa acontecer com o irmão. Por isso ele não paga o resgate. Para que matemos o prisioneiro.
- Não sei... Droga, Hugh, esse caminho é o mais complicado. John poderia tê-lo matado e depois atirado o corpo num rio perto daqui. Seria fácil jogar a culpa
em nós do mesmo jeito.
- Muito arriscado, pequena. Todo o mundo sabe da inveja que John tem do irmão mais velho. As suspeitas recairiam sobre ele, tanto quanto dois mais dois são quatro.
Agora, com o envolvimento do clã Ker, a coisa fica mais fácil para ele. É, parece que foi tudo planejado.
- E um dos nossos ajudou. É isso que está querendo me dizer?
- Não afirmo nada, pequena. Mas tudo aponta nessa direção. Veja: John Carey contata alguém de nosso clã. Pede que raptemos o conde, em troca de favores especiais,
que ainda desconheço. E ordena que o matem assim que o capturem.
- Não foi o que aconteceu.
- Porque você não deixou, pequena.
Elsbeth pensou na noite do seqüestro. Tanto Patrick quanto Ian não queriam deixá-la ir, alegando mil e uma dificuldades. Naquele dia, sentira que um dos primos
- talvez os dois - estava a fim de acabar com a vida do inglês.
Naquela hora deveria ter desistido da idéia do rapto. Ah, se tivesse mantido a cabeça fria... Mas seu orgulho e seu espírito de vingança haviam falado mais alto.
Agora achava-se num rodamoinho, e não sabia como se safar antes que ele a destruísse, juntamente com o clã.
- Que devemos fazer Hugh?
- Exatamente como planejamos. Levarei a mensagem a David Garrick, mas nada direi a respeito de Northumberland. Não ainda.
- Esse David... pode estar mancomunado com John Carey.
- Não, pequena. Seu prisioneiro não cometeria um erro desse tamanho.
Elsbeth examinou Hugh atentamente.
- Você respeita o inglês, não é mesmo?
- Não o conheço, mas a julgar pelo que ouvi, o homem é muito cora-joso. E o simples fato de John Carey querer a morte dele já me é suficiente para pensar boas
coisas de seu inglês.
- Hugh, responda com franqueza. Acredita mesmo que um de nós está nos traindo?
- Eu não acho impossível, querida.
- Sabe que Patrick quase o matou hoje?
- Seu primo tem sangue quente. É difícil detê-lo quando está com raiva.
- Bons céus, Hugh, será que essas brigas nunca vão ter um fim?
Nos últimos dias, a vida de Elsbeth virará de cabeça para baixo. Ela não conseguia mais acreditar em ninguém, nem nela mesma, nem no clã. E não tinha mais certeza
de se os Carey eram mesmo tão maus como se dizia. Todos os dogmas em que acreditara a vida inteira escorriam entre seus dedos como areia.
- Um dia, quem sabe, pequena.
Elsbeth dirigiu-lhe um olhar angustiado, que enterneceu o velho.
- Desejo-lhe boa viagem, Hugh. E vou rezar para que volte são e salvo.
- Reze também para tudo dar certo, minha pequena.
Os dois cavaleiros encontraram-se na escuridão. Ambos tinham pressa e dispensaram a cerimônia dos cumprimentos; nem mesmo desmontaram.
O homem do clã Ker atrasara-se muito. Fora por pura sorte que haviam estabelecido um encontro naquele dia.
John Carey olhou furioso para o vulto embuçado.
- Está muito atrasado.
- Dê graças a Deus por eu estar aqui. Mandaram-me para o norte hoje. Tenho de aliciar outros clãs para se juntarem a nós numa batalha aqui na fronteira. Devo
viajar a noite inteira, com mil demônios.
- E meu irmão?
- Infeliz e descontente como sempre, na torre.
- Mas vocês não vão matá-lo?
- Elsbeth não permitirá. Ela ainda espera receber o dinheiro do resgate.
- Então ele terá de fugir, como planejamos antes.
- Sim, mas só quando eu voltar.
- Com ele vivo, cada dia que passa fica mais perigoso para nós dois.
- Ninguém sabe disso melhor do que eu.
- Quando você volta?
- Quatro dias, no máximo.
- Então, na quinta noite...
Houve um silêncio. O embuçado concordou, relutante.
- Está bem. Na quinta noite.
- E eu vou preparar uma bela emboscada para meu querido irmão.
Nada mais foi dito. Ambos incitaram os cavalos e afastaram-se em direções diferentes, sem terem percebido um terceiro vulto, posicionado de forma a ouvir perfeitamente
o que diziam.
Quando se certificou de que os dois haviam sumido na noite, David Garrick deixou o esconderijo e caminhou vagarosamente em busca do cavalo, que ocultara longe
dali. Havia seguido John Carey durante dias, mas agora se sentia recompensado. E cheio de maus pressentimentos também.
Agora sabia o que havia acontecido com o amigo. Os Ker haviam-no seqüestrado, com a conivência de John Carey. E, por algum milagre incompreensível, Alex estava
vivo ainda.
Mas por pouco tempo.
David xingou John Carey com os nomes mais feios e profanos que conhecia. Como qualquer outro mercenário, não tinha escrúpulos em matar inimigos durante uma batalha;
mas acreditava firmemente na lealdade e na coragem, odiando traições. Seu coração honesto e sincero jamais se esqueceria do que lord Huntington havia feito por ele.
Estava pronto a até morrer pelo amo.
Cinco dias, Qual seria o plano de John Carey? O maldito não cometeria o erro de envolver muita gente na tal emboscada, pois isso seria perigoso demais para ele.
Carey era bom em emboscadas, mas desta vez o feitiço se viraria contra o feiticeiro. Cuidaria disso pessoalmente!
E o escocês? Quem seria, e que papel desempenharia nessa trama execrável?
As perguntas iam se avolumando na mente de David enquanto ele voltava a passo lento para Huntington. Cinco dias para tentar encontrar as respostas.
Capítulo VIII
No decurso do dia seguinte, Elsbeth tentou desesperadamente tirar Alexander Carey da cabeça.
Foi visitar Cara, a filha de um dos mensageiros que havia sido enviado a Huntington dez dias antes e nunca voltara da missão. A garota, de pouco mais de doze
anos, fora recolhida por uma vizinha que se prontificara a cuidar dela por algum tempo.
O coração de Elsbeth confrangeu-se diante da menina, que lutava para não chorar, mas olhava-a com esperança mesclada de admiração e respeito. Ao vê-la, Elsbeth
pensou com raiva nos Carey, embora não pudesse deixar de sentir certo remorso. Era a responsável pelo malfadado seqüestro; assim, achava-se também responsável pela
perda de três homens do clã, todos trabalhadores e fiéis a sua família.
Essa foi uma das poucas vezes em que Elsbeth se sentiu pouco confortável na posição de guardiã do clã, ao mesmo tempo que o sentimento de culpa fazia-a duvidar
das decisões que tomara. O rapto de lord Huntington causara sérios estragos não só ao clã como a ela própria.
O derramamento de sangue não se fizera esperar, e ela sabia que se tratava apenas do começo. Quantas vidas mais seriam perdidas?
Esforçou-se, porém, para não transmitir sua ansiedade à pequena Cara, a quem já julgava órfã abandonada, uma vez que a mãe morrera havia dois anos.
- Gostaria de ir morar no castelo conosco? - perguntou, procurando ser o mais delicada possível. - Você conhece a Annie, não é? Quer trabalhar com ela?
Um rápido lampejo percorreu o rostinho triste. Era uma honra trabalhar no castelo, e além disso lady Elsbeth era conhecida pela bondade e paciência com que tratava
os serviçais.
- Quero, sim, senhora.
Elsbeth abaixou-se e abraçou-a com doçura.
- Cuidaremos de você, Cara. Tudo correrá bem, tenho certeza.
Em poucas horas, Cara já estava instalada numa das alas do castelo, num quartinho apertado, mas limpo e agradável. Elsbeth pediu a Annie que ensinasse bordado
e costura à menina, poupando-a de serviços pesados. Ainda assim, não se deu por satisfeita; os olhos da garotinha pareciam carregar toda a tristeza do mundo. Numa
inspiração súbita, Elsbeth resolveu confiá-la aos cuidados de Louisa, e alegrou-se ao ver a animação nos olhos da prima e de Cara. As duas se deram bem no primeiro
instante.
Talvez fosse isso que fazia falta a Louisa - sentir-se necessária e importante no castelo. Um pouco da timidez e da reserva da prima esvaiu-se de seus olhos
quando ela tomou a garotinha pela mão.
A mãe de Patrick, Joan, pôs-se a resmungar quando viu a nova hóspede.
- Mais uma boca para alimentar! Era só o que faltava! Não temos criadas que cuidem de nós, e agora você traz mais uma criança para ser cuidada. Temos de contratar
novas serviçais, mais trabalhadeiras, mais eficientes. Este castelo está uma ruína, Elsbeth.
- Joan, não me venha com a eterna cantilena. Não podemos contratar mais ninguém. Estamos sem dinheiro, você sabe muito bem disso.
A gralha esticou o bico:
- Não parece, uma vez que estamos alimentando o maldito Carey lá em cima. Comida desperdiçada aquela! É preciso mandar matá-lo, Elsbeth. O clã inteiro pensa
assim. Estamos dando um exemplo de fraqueza, conservando-o vivo, dando-lhe comida. É nossa ruína, esse homem.
Normalmente Joan não conseguia aborrecer Elsbeth em demasia, mas dessa vez a castelã sabia que a velha não estava sozinha. Não era a única Ker a pensar desse
modo. As reclamações da família toda vinham se avolumando, sempre batendo na mesma tecla. "Mate o inglês. Enforque o inglês".
E Joan alimentava esse ódio, jogando mais lenha na fogueira. Não gostara do fato de que Huntington quase vencera o filho, e, por instinto, sabia que o conde
inglês poderia ameaçar de alguma forma o ambicionado casamento de Elsbeth com Patrick.
Através de Annie, Elsbeth se inteirava do que se passava nos bastidores do castelo, e afligia-se com os crescentes rumores de descontentamento. Cada membro do
clã tinha alguma conta a ajustar com um Carey, e a paciência dos Ker estava se esgotando rapidamente.
Perguntou-se por quanto tempo ainda conseguiria controlar a situação. Ainda por cima, Ian e Patrick não estariam a seu lado por três ou quatro dias, o que piorava
consideravelmente a questão.
Passou o resto do dia resolvendo pequenas disputas entre os colonos, decidindo e autorizando pagamentos, recebendo vendedores ambulantes e supervisionando a
despensa. Os cofres do castelo, outrora cheios, guardavam agora poucas moedas, suficientes apenas para as primeiras necessidades. Sua única salvação estava em receber
o dinheiro do resgate; com ele poderia repor o que fora roubado e saqueado pelos próprios Carey. Contudo, bem lá no fundo, sabia que dificilmente esse resgate seria
pago.
Que Alexander Carey fosse para o inferno! A melhor coisa a fazer era mergulhar de cabeça no trabalho. E foi o que fez.
Já começava a se sentir orgulhosa do que realizara no dia, quando a insidiosa necessidade de rever lord Huntington começou a atormentá-la, insinuando-se em sua
mente. Quanto mais se concentrava no trabalho, mais a estranha compulsão de vê-lo a assaltava. Por fim, desistiu de atender os colonos e dispensou-os. Mandou encilhar
o cavalo e saiu para visitar os campos devastados pela queimada, que ficavam do lado de fora dos muros.
Os raios rubros do poente já tingiam os campos quando ela e a escolta de cinco homens voltaram, acompanhados por uma família cujos campos haviam sido totalmente
arrasados. Elsbeth arranjaria um lugar onde acomodá-la.
Ao adentrar o portão principal, encontrou um dos guardas que vigiava a cela de Huntington esperando-a ansiosamente.
- Ele está doente, senhora. A ferida está que é um pus só. Não sabemos o que fazer.
O coração de Elsbeth parou.
- Mandaram chamar Magdalene?
Magdalene era a curandeira do clã, mulher esperta e vivaz, grande conhecedora de ervas.
- Não. Achamos melhor esperar a senhora.
- Então vá chamá-la imediatamente. Descreva a aparência da ferida o melhor que puder, e peça que ela traga tudo o que for preciso. Ele tem febre?
- Muita.
- Bem, vá depressa - ordenou, desmontando e entregando o cavalo a um jovem e pressuroso serviçal.
Com o coração batendo desordenadamente, Elsbeth arrepanhou as saias e galgou rapidamente a escada em caracol, cheia de maus pressentimentos. Se alguma coisa
acontecesse ao inglês dentro de seu castelo, o clã estaria perdido.
O prisioneiro jazia no catre, olhos opacos e vidrados, banhado em suor. Sua respiração era curta e ofegante.
- Traga bastante água quente e panos limpos. Depressa! - comandou ao vigia que lhe abrira a porta.
Curvou-se para Alex, tocando-lhe a testa escaldante.
- Lord Huntington? - chamou baixinho.
Mas não houve resposta. Os belos olhos cinzentos fitavam vagamente o vazio.
Elsbeth correu a vista pela cela escura e úmida. Um rato passou correndo por ela, perdendo-se assustado entre as frestas da parede. Outro guarda aproximou-se,
erguendo a tocha para melhor iluminar Alex.
- O prisioneiro não pode mais ficar aqui, pelo menos por enquanto. Quero que ele seja removido para o quarto de Patrick.
- Minha senhora?!
- Ande, mexa-se, homem de Deus. Refém morto não paga resgate.
Pouco depois o guarda voltava com dois companheiros. Os três, não sem dificuldade, conseguiram transportar Alex para o grande e arejado quarto de Patrick, dois
andares abaixo. Depositaram o corpo mole e quente no colchão de penas e ficaram à espera de novas instruções. Nesse meio tempo, outro guarda chegou, trazendo nos
braços uma tina cheia de água fumegante. Um balaio cheio de pedaços de linho branco equilibrava-se sobre sua cabeça.
- Vede, senhora, a mudança já fez algum efeito. O inglês parece dormir agora.
Com efeito, Alex fechara os olhos e sua expressão tornara-se calma, quase inocente como a de um adolescente.
- Onde demônios se meteu Magdalene?
- Deve estar chegando, senhora.
Elsbeth curvou-se para o doente, examinando-o.
- Ajudem-me a tirar a jaqueta do prisioneiro. Está ensopada de suor.
Os guardas ajudaram-na, disfarçando como podiam a má vontade. Era óbvio que desaprovavam profundamente a atitude da castelã.
Com muito cuidado, Elsbeth desatou os pensos que enrolara no braço de Alex. A ferida transformara-se em chaga intumescida e quente. Delicada-mente, começou a
lavar o rosto e o peito do doente. Não ousava tocar no braço ferido; preferia deixar essa tarefa para Magdalene.
- Milorde? - tentou novamente.
Dessa vez os olhos do conde se abriram e focalizaram Elsbeth com custo.
- Nadine?
Uma pontada atingiu-a no peito.
- Sim, sou eu... Nadine - respondeu, sem entender o vazio que se fizera em seu coração.
- Nadine! - repetiu ele, num espasmo de dor. Elsbeth se inclinou, colocando a mão no rosto fervente. Mas esse gesto pareceu perturbá-lo ainda mais. O inglês
tentou agarrar-se àquela mão fresca, agitando-se e batendo com a cabeça de um lado para o outro. Elsbeth recuou, amedrontada com a dor que, também ela, sentia como
punhal.
- Estou aqui, sou Nadine - repetiu.
Ele pareceu entender e acalmou-se, deixando Elsbeth retomar o trabalho de livrá-lo do pó e do suor. Enquanto fazia isso, perguntava-se onde estaria o pensamento
do inglês. Quem era essa Nadine? E por que essa dor infinita que lia em seus olhos, talvez mesmo maior que a dor infligida pelo ferimento?
Encouraçou-se contra a tristeza dele, contra o grito mesclado de saudade e sofrimento que ele deixara escapar ao chamar um nome de mulher. Elsbeth tentou conter
a dor. Tudo fora culpa sua. Nunca devia tê-lo trazido ao castelo, nunca devia ter consentido naquele malfadado seqüestro. Pior ainda, nunca devia ter encarado o
ferimento como coisa banal e sem importância. Por mais limpa e brilhante que estivesse a espada, a lâmina sempre teria sujeira e ferrugem. Sabia disso bem, pois
aprendera os segredos da esgrima com seu pai.
Finalmente chegou Magdalene, trazendo uma cesta cheia de potes e ervas.
Elsbeth observou-a misturar, com dedos experientes, pós, cremes e ervas maceradas, até formar uma pasta homogênea, de odor agradável e penetrante. Escolhendo
uma espátula, Magdalene cobriu generosamente a lesão com essa pasta, e em seguida envolveu-a com os linhos. Depois preparou outra mistura e pediu a Elsbeth que a
ajudasse a instilar a beberagem, gota por gota, na boca do doente.
Ao fazê-lo, inconscientemente Elsbeth correu os dedos pelo cabelo preto e denso, tocando a nuca empapada de suor. Ele estava tão quente, tão assustadoramente
quente. Tão quieto e distante daquele homem vibrante, arrogante e brincalhão com quem tinha terçado armas.
"Bom Deus, protegei-o. Não o deixeis morrer."
- Milady? - chamou Magdalene, fitando-a com curiosidade.
Elsbeth desprendeu os olhos do conde, retirando rapidamente a mão de sob sua cabeça.
- Ele vai viver, Magdalene?
- Precisa de cuidados especiais.
- Providenciarei para que tenha.
- Não tenho dúvida quanto a isso, minha senhora.
O tom da curandeira pôs Elsbeth imediatamente na defensiva.
- Reféns mortos não pagam resgate, Magdalene.
A outra baixou a vista, ajeitando os frascos de volta na cesta. Era uma simples curandeira e não estava ali para julgar ninguém. Elsbeth sempre fora gentil e
atenciosa; por que aborreceria a castelã? Magdalene, como os outros Ker, temia a família Carey, mas achava que Elsbeth teria uma boa razão para se preocupar com
o importante prisioneiro. Talvez esse homem não fosse tão ruim como diziam, afinal.
- Sim, minha senhora, na verdade não pagam. Tomai, deixo-vos o resto da poção que preparei. É preciso que o inglês tome às colheradas. Dai-lhe também este pó
misturado com água, à noite e pela manhã. Quando ele acordar, cuidai para que a pomada seja passada novamente na ferida. Voltarei amanhã à tardinha.
- Mais alguma coisa?
- Continuai como começastes. Dai-lhe conforto e bem-estar. Isso é muito importante para um doente.
Magdalene fez uma rápida reverência e retirou-se, intrigada. Os Ker queriam que Elsbeth se casasse o mais depressa possível, mas a castelã até agora não lhes
dera ouvidos. No entanto, agora havia qualquer coisa no ar. Seria possível que ela tivesse entregado o coração a um Carey? Se fosse assim, haveria guerra. Como nunca
houvera antes na fronteira.
Elsbeth não saiu da cabeceira a noite toda. Annie apareceu diversas vezes a fim de trazer água para refrescar a testa febril do conde, e não parou de exortar
a ama para que esta fosse descansar. Os dois guardas ficaram no posto, mais para ajudar Elsbeth que para vigiar. Pelo menos desta vez o inglês não oferecia perigo
nenhum.
Altas horas, o conde se agitou. Pôs-se a delirar e a falar coisas desconexas, entremeadas de "Henri" e "Nadine". Mas também gritava, como se algo ou alguém o
estivesse maltratando horrivelmente. O coração de Elsbeth se apertava, embora ela soubesse que não devia sentir nada por aquele Carey. Mas o doente parecia-lhe tão
vulnerável, tão perdido, tão... bonito. Bons céus, como seria bom se ele não fosse lord Huntington!
Mas o destino resolvera de outro modo, e ela devia pensar nele apenas como um refém, nada mais. Porém, a cada vez que o tocava, seus dedos fremiam. E a cada
vez que seus olhos pousavam na grande cicatriz, sentia se avolumar o desejo de saber mais sobre aquela vida misteriosa. Tinha vontade de saber tudo sobre Alexander
Carey, penetrar seus segredos envoltos nos olhos de bruma cinzenta.
Alex acordou lentamente, os olhos custando a focalizar. Achou-se num quarto intensamente iluminado pela lareira e por tochas acesas alinhadas ao longo da parede.
Sua cabeça doía; o braço parecia envolto em chamas, o corpo ardia em febre e a fraqueza que se apossara dele parecia que nunca mais o deixaria.
Não sabia onde estava, e de momento isso não o interessava. Porque acabara de notar um par de olhos dourados estudando-o com preocupação. Imediatamente, esqueceu
a dor e a fraqueza diante daqueles olhos adoráveis.
A castelã achegou o lençol e afofou o travesseiro, erguendo-lhe a cabeça com delicadeza. Fazia muito tempo que ele não experimentava o prazer de se ver cercado
de atenção, e alguma coisa nele agarrou-se ao calor humano que lhe era ofertado.
Mesmo sabendo que era bobagem sua, não conseguia evitar isso. Mas nada havia mudado; era ainda um prisioneiro, com pouca probabilidade de escapar vivo daquela
aventura. Esse momento de atenção e carinho era tão fugaz como a duração de um relâmpago. Sabia muito bem que os Ker mantinham-no vivo por interesse.
Forçou-se a sorrir, fitando-a com seus olhos cinzentos como o oceano depois da tempestade.
- Eu devia ter ficado doente antes, milady. Fui pouco inteligente.
Tomada de surpresa, Elsbeth silenciou. Como é que ele conseguia deixá-la confusa daquele jeito? Suas frases pareciam sempre ter um duplo sentido.
- De nada adiantaria - retorquiu por fim, só para ter o que falar. - Milorde está sempre nos causando problemas.
- Estou?
- Está. Muitos problemas.
- Ainda assim, milady cuida de mim. Como um anjo.
- Para combater o demônio.
Ele riu baixinho, sem se importar com a pontada súbita.
- Anjo contra demônio... então sabe como a luta terminará.
- Sei como deveria terminar, pelo menos.
- Não sou seu inimigo, milady.
- Qualquer Carey é meu inimigo.
- Isso pode ser mudado.
Elsbeth sacudiu a cabeça, forçando-se a desviar o olhar. Que estranho poder tinha Alex sobre ela? Sim, demônio era um nome bastante apropriado para o maldito
inglês.
Alex correu os olhos pelo quarto.
- Onde estou?
- No quarto de Patrick.
Dessa vez ele quase riu alto.
- O bom e velho Patrick! Que é que ele acha disso?
-Nada.Ele está viajando.
O conde ergueu uma sobrancelha, subitamente interessado.
Tentou sentar-se, mas a fraqueza logo acabou com essa presunção, forçando sua cabeça, povoada de zumbidos estranhos, a afundar-se de volta no travesseiro.
- Deus, acho que instalaram uma oficina de ferreiro bem dentro de minha cabeça.
Dizendo isso, Alex fez novo esforço para se erguer. Sem se aperceber do que fazia, Elsbeth correu e obrigou-o a deitar-se com firme gentileza, colocando a mão
fresca na testa suada.
- Milord não deve falar.
Perturbada com a expressão de dor e cansaço do inglês, virou-lhe as costas e começou a preparar um pouco da poção. Em um momento, voltou e ajudou-o a erguer
um pouco a cabeça.
- Beba o mais que puder.
O conde estudou a ordem por um tempo, mas resolveu-se a obedecer. Precisava recuperar as energias, e depressa.
- Parece que estive bastante doente.
- Sim. Seu braço criou pus.
- E ainda dói como a fúria do inferno. De qualquer modo, obrigado.
- Foi Magdalene.
- Quem é ela?
- Nossa curandeira.
- Mesmo assim, obrigado. Por ter mandado buscar Magdalene.
Elsbeth ficou perturbada e inquieta. Preferia mil vezes que o conde fosse antipático, nojento e irritante. Pelo menos não teria de ficar lutando consigo mesma
o tempo todo.
- Reféns mortos não pagam resgate - disse ela sem noção de quantas vezes repetira a frase naquele dia.
- Bem, parece que este aqui, mesmo vivo, não vai pagar também.
Apesar das palavras jocosas e brincalhonas, havia um toque de melan-colia que não escapou aos ouvidos afiados de Elsbeth. Um fluxo de angústia perpassou-lhe
o olhar, mas virou-se depressa, a fim de escondê-lo do arguto prisioneiro.
Este, como se tivesse adivinhado, curvou a boca num sorriso irônico.
- Vai ser um desperdício de sua parte, milady. Tanto cuidado e trabalho para mandar me enforcar depois.
- Sempre servirá para aumentar a diversão.
Mas a expressão de Elsbeth não combinava com a dureza daquelas palavras.
- E toda esta mordomia - disse ele, olhando em volta - é por pouco tempo, pelo que vejo.
- Correto.
Alexander fitou-a por entre as pálpebras semicerradas. Tinha o ar de um garotinho mimado a quem haviam tirado o doce.
- Sabia que é muito bonita? - murmurou ele baixinho, enquanto seus olhos se fechavam com relutância.
Pouco tempo depois, ressonava suavemente.
Elsbeth observou-o por um longo tempo, enquanto de seus olhos caíam lágrimas silenciosas. Ele é que era um belo homem. Belo e desejável.
Velou por Alex a noite toda, embora cochilasse vez por outra. Sempre que acordava, punha a mão na testa do inglês, a fim de checar a febre, que aos poucos cedia.
A mágica de Magdalene surtira efeito novamente. O sono do conde agora era calmo e tranqüilo.
"Sabia que é muito bonita?"
Elsbeth nunca se achara realmente bonita, talvez porque nunca havia se preocupado com isso. Seus cuidados voltavam-se sempre para outras coisas que lhe pareciam
mais importantes: a equitação, a esgrima, o castelo. Recebera inúmeros pedidos de casamento, mas isso nada significava. Na Escócia, e na Inglaterra também, casamento
pouco tinha que ver com amor, e menos ainda com a aparência. Era apenas um meio de se aumentar riqueza, fortalecer famílias, terminar brigas. Terminar brigas! Tais
casamentos aconteciam muito raramente, porque o ódio ancestral entre famílias era tão grande que a idéia desse tipo de união era quase inconcebível. Principalmente
entre escoceses e ingleses; a amargura e o rancor eram profundos demais para serem neutralizados por um simples casamento.
Mesmo reconhecendo que era uma idéia absurda, Elsbeth não podia deixar de imaginar-se entre os braços de Alexander Carey. E esse pensamento acendia-lhe os nervos.
Bastava observar o peito subindo e descendo regularmente para ter vontade de acariciá-lo. Esse homem devia ser feiticeiro, no mínimo.
Um Carey feiticeiro.
Sentiu um bolo no estômago quando se lembrou que breve, muito breve, Alex se iria para sempre de sua vida, levando consigo a estranha e misteriosa magia que
o envolvia. Acontecesse o que acontecesse, porém, Elsbeth estava resolvida a não permitir que o matassem. Se a tentativa de receber o resgate se frustrasse, ajudaria
pessoalmente o prisioneiro a escapar. Antes, claro, extrairia dele a promessa de que não haveria revide.
E depois... depois nunca mais o veria. Ela se casaria com um dos primos. Os dois eram de seu sangue, e deviam ter prioridade sobre qualquer outro pretendente.
E Elsbeth ainda não se convencera de que um deles poderia ser traidor.
Era triste aceitar a verdade, mas o fato é que, sozinha, ela não poderia ganhar o respeito do clã. O que acontecera com Alexander Carey era uma prova eloqüente
disso; sua família exigia dela desumanidade e crueldade, coisa que não se sentia capaz de lhes dar. Era uma mulher e tinha sentimentos. Levara muito tempo para aceitar
isso, e mesmo lutara contra o que considerava uma fraqueza de seu caráter. Mas não podia mudar sua própria natureza.
E, para ser inteiramente honesta consigo mesma, tinha de admitir que não ordenara um ataque aos Carey logo depois da morte do pai por detestar a violência. Não
fora por causa do luto, como alegara.
Baixou a cabeça, deixando as lágrimas correrem livremente. Nunca se permitira chorar assim, nem com a morte do pai. As lágrimas, quentes e silenciosas, rolavam
pelo rosto sofrido, libertando-a de uma opressão que vinha sentindo havia muito tempo.
Alex nunca soube porque acordou naquele exato instante. Vinha de um sono pesado e sem sonhos; ao abrir os olhos, custou a se situar, meio ofuscado pelas chamas
brilhantes que iluminavam o quarto. Quando conseguiu focalizar Elsbeth, porém, teve um sentimento indizível de pena. A castelã parecia carregar todo o peso do mundo
nos ombros.
Instintivamente, esticou a mão e tocou de leve os dedos de Elsbeth. Sem uma palavra, ela o olhou entre as lágrimas.
O tempo parou, suspenso no ar. Sem tirar os olhos dela, Alex levou a mão delicada aos lábios, depositando um beijo tão suave e doce que ela novamente desatou
a chorar em silêncio.
- Venha - pediu ele, num sussurro, puxando-a.
Ela não tinha mais escolha. Viu-se sentada na cama, ao lado do prisioneiro, sentindo seus dedos fazerem-lhe carícias ternas e leves.
Inclinou-se sobre ele, vencida, totalmente rendida. E suas lágrimas foram sendo recolhidas, uma a uma, pelos beijos doces e quentes, pela língua morna que as
lambia devagarinho. Sentiu-se envolvida por um calor, uma gentileza e uma compreensão que nunca provara antes, que nunca sonhara existir.
Os lábios se encontraram em meiga exploração, mesclada da exigente e imperiosa paixão que se avolumava, crescente e impetuosa. Ambos precisavam desse beijo,
e por ele ansiavam como as flores precisam do sol. Precisavam desse raro e único sentimento de compartilhar e dar. Tocaram-se, buscaram-se, conheceram-se, numa troca
maravilhosa de bem-querer, de ternura, de entendimento mútuo. Era como se nada mais existisse no mundo além dos dois, como se a vida pertencesse somente a eles,
e a eles se entregasse, envolta num nimbo de luz dourada.
Elsbeth abriu os olhos, que se haviam fechado ao primeiro toque da boca de Alex. Ele lhe sorria, os olhos cinzentos cheios de uma chama nova e irresistível.
Os beijos em seu rosto se sucediam em carícias quase torturantes, despertando sensações a um tempo delicadas e violentas, até que novamente as bocas se encontraram,
e os lábios dele abriram os dela. O beijo, quente, molhado, sensual, tornou-se mais exigente. Ainda assim, Alex delicadamente controlou sua paixão crescente, querendo
dar a Elsbeth conforto e paz.
Nunca antes Alex sentira algo semelhante. Elsbeth Ker havia atingido o mais fundo de seu âmago e desvendara-lhe fontes de emoções e sentimentos que nem ele próprio
pensava existir dentro de si. Tão intensos que o assombravam e maravilhavam ao mesmo tempo.
Envolveu-a entre os braços, apertando-a com doçura, querendo transmitir-lhe sua vontade de mover céus e terras por ela, de fazê-la entender que sacrificaria
qualquer coisa para tê-la junto de si.
- Elsbeth - murmurou -, confie em mim. Por favor.
As palavras penetraram na alma de Elsbeth. Ela queria confiar. Queria segui-lo, deixar-se seduzir pelos olhos cinzentos. Esticou a mão e acariciou-lhe o queixo
largo, a boca firme e decidida. Explorou as curvas com volúpia, traçando com os dedos palavras invisíveis de amor em cada linha de seu rosto.
Mas era tudo o que podia fazer. As palavras nunca seriam ditas, permaneceriam sempre esquivas e fugidias, porque não podia haver mais que isso. Por mais que
seu corpo e seu coração gritassem de desejo. Alex era um Carey, e como tal tinha de ser tratado. Tudo o que ele queria era a liberdade, nada mais. E uma vozinha
irritante martelava-lhe o cérebro: jamais confie num Carey... jamais confie num Carey... jamais.
As mãos do conde penderam para um lado, como se ele tivesse ouvido o alerta, e seus olhos subitamente refletiram uma tristeza tão grande que Elsbeth sentiu o
coração trespassado por ela. As carícias apaixonadas se interromperam, e Alex simplesmente reteve-a entre os braços, em silenciosa compreensão. Elsbeth deixou-se
ficar, metade de seu ser deleitando-se com o confortante aconchego, a outra fremindo de desejo... e medo.
Ficaram assim unidos por um longo tempo, sem se mover, sem se falar. Elsbeth sentia-se incapaz de identificar os complicados sentimentos que se entrechocavam
em seu coração. Sabia que não podia atender ao pedido do inglês. Era-lhe impossível confiar nele. Mas gostava da suave quentura de seu corpo, do toque de mel e fogo
de seus dedos, do hálito que cheirava a vento da floresta. Gostava do aroma que emanava de seu corpo, acentuadamente masculino, e sabia que guardaria na lembrança,
para sempre, as emoções contraditórias que experimentara em seus braços. Mas nunca mais permitiria que isso voltasse a acontecer.
Contudo, relutava em sair dos braços de Alex.
Foi somente quando ouviu um movimento fora do quarto, provável-mente dos guardas, que ela se forçou a deixar o calor daquele abraço. A mão de Alex segurou a
dela por algum tempo ainda, antes de soltá-la.
- Nunca lhe farei mal, Elsbeth. Sei que você não acredita em mim. Ainda não, talvez nunca. Mas...
Alguém bateu na porta, e a criada que ele já conhecia, uma velhota gorda e bonachona, entrou com uma vasilha nas mãos. Seus olhos fitaram Elsbeth com afeição
materna.
- Senhora, deveis descansar agora. Caso contrário, dentro em breve terei de cuidar de vós também.
Dizendo isso, lançou um olhar de franca e desgostosa desaprovação ao inglês.
- Até que ele está com aparência um pouco melhor - disse, deixando subentendido que preferia que acontecesse o contrário. - Deveis ir para vosso quarto agora,
minha senhora.
Elsbeth concordou. Estava exausta. E queria se livrar dos olhos cinzentos, feitos de ímã e luar.
- Está bem, Annie. Não se esqueça da pomada. Perguntou-se, em meio ao cansaço, se Annie também não se veria irresistivelmente atraída pelo charme de Alex.
Por trás da criada, Alex piscou-lhe um olho, ao que ela respondeu com um sorriso.
- Precisamos tirar o inglês daqui depressa - falou Annie, com a impertinência própria de quem mantinha boas relações com os amos. - Master Patrick não vai gostar
muito de encontrar esse... senhor no quarto dele.
- Quando Magdalene concordar.
- É bom que seja logo. Patrick vai armar uma confusão - continuou Annie, esquecendo-se da fala formal, o que fez Alex sorrir. - Eu também não gosto, para falar
a verdade. Tratar um Carey a pão-de-ló...
- Annie!
- Desculpai-me, senhora. Fiquei meio esquentada, é só.
Elsbeth estava cansada demais para replicar. Sem nada dizer, deixou o quarto, a mente num torvelinho, revolvendo o que acontecera, procurando ordenar os estranhos
sentimentos que experimentava. Cumprimentou breve-mente os dois guardas e correu a refugiar-se no seu quarto, onde poderia pensar melhor. E estudar e examinar a
situação.
Aquele demônio inglês, com um simples olhar, era capaz de fazê-la esquecer-se do clã, de suas obrigações, de sua posição. Os beijos de fogo eram capazes de fazê-la
esquecer-se do covarde assassinato de seu pai.
"Confie em mim."
Mais fácil seria confiar numa cobra venenosa.
Lembrou-se da pungente tristeza que assomara aos olhos de Alex quando ela lhe negara sua confiança. Do conforto que encontrara em seus braços, num momento de
aflição e solidão.
O conforto de um Carey.
Precisava odiá-lo, bom Deus. Não podia confiar nele. Tinha de suspeitar, desconfiar. Porque certamente o inglês tinha tudo para ganhar e nada para perder, tentando
seduzi-la.
Despiu-se e escolheu uma camisola quente, bordada a ouro nos punhos. Deitou-se, mas o sono não veio. Levantou-se e foi até a janela, olhando a floresta que mergulhava
os ramos na escuridão da noite. Ao fundo, as grandes montanhas da fronteira. As montanhas que separavam os Ker dos Carey.
Lembrou-se então do primeiro sinal de alerta que vira na vida. Era menininha ainda. No alto da montanha, vira uma fogueira brilhar intensamente. E, na sua inocência,
mostrara-a ao pai, encantada. Robert Ker simplesmente dissera, com ar cansado e sofrido:
- Essa fogueira, minha filha, é sinal de alarme. Breve seremos atacados. Nem tudo que é bonito traz coisas boas, minha filha.
Ainda se lembrava do horror que sentira ao ver os campos em chamas, os gritos dos camponeses correndo da morte, as crianças chorando. Podia ouvir os lamentos
das viúvas, dos órfãos.
Nada mudara.
Ordenaria que lord Huntington voltasse a sua cela tão logo estivesse curado. Esse simples ato serviria para reforçar a barreira que os separava.
Escocesa e inglês.
Ker e Carey.
Raptora e refém.
Inimiga e inimigo.
Não havia olhos cinzentos nem braços confortantes que pudessem modificar isso.
Elsbeth voltou para a cama. Mas sabia que não conseguiria adormecer. E perguntou-se se, algum dia, voltaria a ter a mesma tranqüilidade que desfrutava antes
de conhecer Alexander Carey.
Capítulo IX
Embalado pela poção de Magdalene, Alex dormiu o dia inteiro. Ao cair da tarde a febre havia sumido, e já um pouco das forças começavam a voltar.
Tomou um gole do vinho que fora deixado ao lado da cama e perguntou-se se lady Elsbeth viria visitá-lo antes de enviá-lo de volta à sinistra e temida cela. Não
tinha a menor dúvida de que ela faria exatamente isso, e logo.
Devia ter-lhe perguntado se o mensageiro havia sido enviado a David, mas acabara se distraindo com outras coisas. E que outras coisas, bom Deus!
Quando vira lágrimas rolando daqueles olhos dourados, perdera a cabeça e o juízo. Bebera as lágrimas uma a uma, embriagando-se de arrebatamento mesclado de compaixão.
Com a chegada de Annie, a realidade caíra-lhe como um raio sobre a cabeça. Se todos os membros do clã alimentassem o mesmo rancor contra ele, suas esperanças de
misericórdia reduziam-se a quase nada.
Correu os olhos pelo quarto, tentando descobrir algum detalhe que revelasse os hábitos de Patrick Ker, mas nada lhe chamou a atenção. Era um quarto severo, quase
tão austero quanto o seu em Huntington. Havia uma armadura antiga num canto e uma mesa com poucos e práticos objetos pessoais, além de um espelho de aço polido.
De grande e confortável, apenas a cama de colchão de penas.
A noite começava a descer quando uma mulherzinha baixa e enérgica entrou em seu quarto, acompanhada de um vigia do clã. Alex imaginou que fosse a curandeira
mencionada por Elsbeth, mas preferiu não fazer muitas perguntas.
Em vez disso, tratou de brincar e jogar toda a simpatia para cima da mulher, demonstrando-lhe gratidão e entusiasmo. Seus esforços foram recompensados, pois
logo ela estava tagarelando e rindo enquanto cuidava do ferimento.
Quando terminou de tratá-lo, sacudiu a cabeça com ar preocupado.
- Está assim tão ruim? - indagou Alex. - Pensei que tivesse melhorado, bastante.
- E melhorou, milorde. Tem uma saúde de ferro, o senhor.
- Então, por que essa cara?
- É que milady me disse que o senhor teria de voltar para a cela assim que eu o desse por curado.
- E já estou curado?
Ela deu uma risada alegre, sem se importar de exibir a boca desdentada. Tinha um par de vivos olhos pretos e feições não de todo feias; na realidade, Alex seria
capaz de jurar que Magdalene fora uma linda jovem. Antes de responder, ela se certificou de que o guarda não a ouvia. Baixou a voz, num tom cúmplice:
- Não, milorde. Ainda precisa de muito cuidado, de conforto e sol. É o que direi à patroinha.
- Mesmo sabendo que sou um Carey?
- Mesmo. Milorde é diferente dos outros.
- Acho que é a única pessoa do clã que pensa assim.
- Por enquanto, por enquanto. Tenha fé.
Alex suspirou com melancolia. Seria mesmo diferente do pai e dos irmãos? Começava a duvidar até disso.
Como se tivesse adivinhado, a mulher continuou, enquanto arrumava os potes:
- Não tenha dúvidas, milorde. É muito diferente de sua família. Sou ótima para ler olhos, e os seus são bondosos. Os outros têm olhos maus.
- Conhece minha família?
- Se conheço! Foi seu pai que matou meu Johnny.
A fisionomia de Alex ensombreceu.
- Seu filho?
- Marido. Já faz mais de vinte anos. Queimaram tudo, mataram todos. Deixaram-me viva porque pensaram que eu estava morta.
Alex não encontrou nada para responder. Bons céus, essas brigas nunca teriam um fim?
- O pai de milady era um homem bom e honrado, mas o avô dela... esse era tão ruim quanto os Carey. As brigas e os ataques começaram por causa dele.
Alex apertou os lábios com amargura. Desde pequeno ouvira falar nas atrocidades cometidas pelos Ker. Por isso concordara em participar dos ataques noturnos.
Seu entusiasmo combativo, porém, fora decrescendo à medida em que via aumentar a quantidade de gente inocente pagando caro por uma briga familiar.
- Acredite, eu daria minha vida para pôr um ponto final nisso tudo - disse, certo de que ela daria uma gostosa e incrédula gargalhada.
Para seu espanto, a mulher fitou-o muito séria.
- Já disse isso para lady Elsbeth?
- De nada adiantaria. Elsbeth acha que todos os Carey têm sangue assassino nas veias. Nunca acreditaria em mim.
- Vai acreditar. Tenha paciência.
- Não há tempo para isso.
- Há, sim. Acho que esperamos um tempo longo demais pelo senhor.
Alex ergueu a cabeça vivamente, intrigado com as misteriosas palavras. Os olhos pretos fitavam-no com placidez, transmitindo-lhe segurança.
- Diga, o que sabe sobre o dono deste quarto?
- Patrick Ker? É meio parecido com o senhor. Tem seus mistérios.
- E Ian Ker?
- Esse vive rindo. Todo o mundo gosta dele.
- Há quanto tempo moram aqui?
- Desde sempre. Sobrinhos de Robert Ker. Foram armados cavaleiros pelo velho, logo que cresceram.
- Nenhum dos dois se casou?
- Não. Querem se casar com lady Elsbeth.
- E ela?
A mulher contemplou-o em silêncio, parecendo penetrar no âmago de sua alma.
- Ela espera, milorde.
Magdalene enfiou a cesta no braço, voltando a sorrir.
- Bem, eu tenho um parto para fazer hoje. A hora deve estar chegando. Amanhã cedinho volto para fazer novo curativo.
Alex não sabia o que dizer para expressar sua enorme gratidão, não só por ela lhe salvar a vida, mas por lhe restituir a confiança no futuro. Magdalene demonstrara
sem rodeios sua confiança nele, e não se fizera de rogada para expressar seus sentimentos.
- Não precisa dizer nada, milorde. Eu acho que entendi tudo. Sou boa para ler olhos, lembra-se?
Quando ela saiu, Alex sentiu-se esperançoso pela primeira vez desde o rapto.
David Garrick aguardava sua oportunidade pacientemente.
Seguira John Carey durante dias, até que o vira encontrar-se com alguém do clã Ker. Ainda não sabia quem era, mas isso pouco importava no momento; havia ouvido
o suficiente para poder começar a pôr um plano em andamento. Continuara a seguir John Carey, e presenciara outro encontro, dessa vez com Simon, um homem malvado
e inescrupuloso, conhecido pelas bebedeiras e fanfarronices que praticava amiúde no condado.
Inúmeras vezes, David se perguntara como uma pessoa cuidadosa e precavida como Alexander Carey se deixara apanhar pelos Ker. Alimentava poucas esperanças de
rever o querido amo, pois tinha perfeita consciência do amargo rancor que separava as duas famílias. Lutar era sua profissão, e a experiência demonstrara que raramente
um prisioneiro importante era libertado ou tinha a vida poupada pelo inimigo.
Gostava de uma boa briga, e orgulhava-se de ter matado muitos guerreiros valorosos em combate. Mas abominava a traição com todas as forças de seu coração honesto.
A duplicidade de John Carey punha-o fora de si. Decidira, portanto, que faria o possível e o impossível para impedir que tal homem assumisse o comando de Huntington.
Para isso, porém, necessitava de ajuda, e não sabia como fazer para obtê-la. Não passava de um suboficial do exército dos Carey; os arqueiros e soldados da milícia
eram todos novos, recrutados a dedo por John, que os dominava com braço de ferro. David também não tinha ilusões quanto a ele próprio; se John Carey desconfiasse
de sua conspiração, seria um homem morto.
Estudou a possibilidade de enviar uma mensagem à corte inglesa, mas logo a descartou. Não possuía prova nenhuma da traição de John; seria sua palavra contra
a dele. A palavra de um soldado contra a de um nobre... David não se iludia, acabaria apodrecendo numa prisão.
Não, o melhor seria estar presente na tal emboscada. Ainda não sabia muito a respeito, mas já era um começo.
David agia de modo direto. Não gostava de planos complicados, de emboscadas, armadilhas traiçoeiras. Era homem de ataque frontal que oferecia lealdade absoluta
a quem estava servindo, exceto a John Carey. Não gostava dos escoceses porque era inglês, e todo o inglês que se prezasse encarava os escoceses como inimigos mortais.
Desconfiava de tudo e de todos, menos de si próprio. E de Alexander Carey, o homem que o ajudara a galgar a posição de respeito que agora ocupava. Mas gostaria de
ter alguém em quem confiar. Alguém que pudesse levar uma mensagem sua a Alexander Carey. Suspirou desalentado. Tinha apenas três dias pela frente.
David estava no meio de um treinamento quando um garotinho veio ao seu encontro.
- Tem um homem procurando pelo senhor. É vendedor ambulante.
- Mas eu não quero comprar nada, Larry. Como é o nome dele?
- Não sei, fiquei com medo de perguntar. O homem tem uma faca grande, bonita, e disse que veio de longe para mostrar ao senhor. Eu vi a faca. É um baita punhal,
todo enfeitado. Uma beleza!
- Não, Larry, já tenho armas demais. Diga ao homem que...
David parou, subitamente alerta. Com os diabos o mascate teria ouvido falar nele? Era homem de poucas posses, fato bastante conhecido nas redondezas.
- Espere aí, Larry, diga ao homem que quero ver a arma. Corra!
Enquanto o garoto se afastava, David chamou o auxiliar e pediu-lhe que o substituísse por algumas horas. Depois livrou-se da pesada cota de malha e correu para
sua casa.
O mascate esperava-o com um carrinho de mão atulhado de quinqui-lharias baratas. Era um homem de estatura mediana, cabelos ruivos entremeados de mechas grisalhas.
Por um momento, David pensou que o conhecia de algum lugar, mas foi incapaz de localizá-lo.
- Meu bom senhor, estou contente por ter se interessado por minha humilde mercadoria. Disseram-me que talvez gostasse especialmente de um objeto. Este, meu senhor.
E entregou a David um saquinho de pano grosseiro.
- Queira abrir.
Intrigado, David abriu a bolsinha e sacudiu o conteúdo na palma da mão. O anel de Huntington brilhou sob os raios do sol.
- Onde conseguiu isto? - perguntou David, depois que se refez do susto.
O mascate olhou à volta, cauteloso.
- Lord Huntington pediu-me que lhe entregasse esse anel. E que avisasse que ele está preso, à espera de que paguem um resgate por sua vida.
David olhou-o, desconfiado.
- Por que eu? Por que não pediu para você ir falar com o próprio irmão?
- Três mensagens foram enviadas para cá. Nenhuma das três foi respondida. E os três mensageiros nunca voltaram.
A expressão de David Garrick era de franca hostilidade.
- Você é um Ker?
- Sou um Armstrong - respondeu o outro, com orgulho desafiador. - Mas luto do lado dos Ker.
David estudou o velho atentamente. O homem fora corajoso. Entrara em campo inimigo armado de um simples disfarce.
- Como posso ter certeza de que lord Huntington está vivo?
- Foi ele que me pediu para vir aqui.
Hugh começou a se impacientar. Não gostava de pedir nada a um inglês. Quando mais a um lacaio dos Ker.
- Lord Huntington está passando bem?
- Está vivo.
Os dois homens se fitaram, avaliando-se.
Foi Garrick quem quebrou o silêncio.
- Que ele quer de mim?
- Quer saber se o irmão recebeu o pedido de resgate.
- Se recebeu, não contou nada para ninguém.
Garrick podia ter dito mais, mas preferiu calar-se por enquanto. E se tudo aquilo fosse uma armadilha preparada pelos Ker?
Mais uma vez se fez silêncio, a desconfiança pairando entre os dois.
- Mas que diabo! - explodiu David, por fim. - Como é que os Ker acreditaram que haveria pagamento em troca da vida do conde? John Carey só espera ver o herdeiro
morto para ganhar o condado!
- Julgamos que ele seria obrigado a pagar. Pensamos que ele não teria muita escolha.
- Vocês têm um traidor em seu clã - disparou Garrick, esperando desnortear o outro.
- E vocês também - rosnou Hugh. - Está na hora de desmascarar os dois, se é que tem estômago para isso.
David sorriu, e toda a sua desconfiança se evaporou. Um farsante jamais teria respondido daquele modo.
- Vamos dar um passeio pela floresta. Conversaremos num lugar mais protegido.
Horas depois, David Garrick, trajado com roupas escuras, cavalgava ao lado daquele a quem tomara por inimigo. E que provavelmente terçaria armas com ele no futuro.
Mergulhados em pensamentos sombrios, os dois ruminavam o que tinham ouvido.
Hugh tivera suas piores suspeitas confirmadas. Havia um Ker tramando traição com um Carey. Ah, se conseguisse deitar-lhe as mãos! Faria picadinho dele, comeria
seu fígado, jogaria seu coração aos urubus.
Mas era preciso agir com cautela.
- Creio ser essencial que o conde de Huntington saiba do que se passa em seu condado - falou David.
- Claro. Cuidarei disso.
- E milorde deverá conseguir escapar da torre.
- Sim, foi o que discutimos até agora. Mas continuo achando que é uma temeridade você ir.
- Se eu não for junto, corremos o risco de milorde não acreditar no que você disser.
- É... afinal, sou um Ker, ou pelo menos faço parte do clã. Huntington terá todo o direito de desconfiar de minha palavra.
- E vice-versa.
- E vice-versa.
- Bem, vamos recapitular nossa pequena encenação. Sou seu primo, e acabo de chegar para visitar você e sua família.
- Garrick, tem certeza de que ninguém do clã o conhece?
- Quase - retorquiu David, fingindo mais segurança do que sentia. - Já me bati com os Ker, mas sempre estava de capacete. Acho que por aí está tudo bem.
- Talvez seja melhor disfarçar a voz.
- Não precisa. Meu sotaque é o mais comum da fronteira.
Apesar da aliança temporária, a desconfiança continuava no ar. Pouco se falaram durante a viagem, que se prolongou pelo resto do dia e pela noite toda. Era
madrugada quando chegaram à fronteira.
- Chegamos, David. Minha casa fica a umas horas daqui, mas, como o combinado, fique aqui e me espere. Não é conveniente que você me acompa-nhe a esta hora; despertará
suspeitas desnecessárias. Tudo bem?
Embora exausto, Garrick aquiesceu e deixou-se ficar na sombra densa, algo ansioso por achar-se só em pleno território inimigo. Mastigou um pedaço de salame que
trouxera no embornal e sentou-se sob uma árvore, atento ao menor ruído. Perguntava-se se não tinha sido um louco de confiar num escocês. E do clã Ker!
O sol já ia mais alto e brilhante quando David ouviu os cascos de um cavalo que se aproximava. Por precaução, empunhou a pistola e esperou.
- Garrick, está aí?
Mas a pistola continuou apontando para o vulto que se aproximava. David não se predisporia a ser apanhado de surpresa.
Hugh esboçou um sorriso irônico quando viu a arma, mas nada disse. Abaixou o capuz para se deixar ver e atirou uma faixa de lã xadrez para David.
- É a faixa dos Armstrong - informou, à guisa de explicação. - E não pense que estou contente de emprestá-la a um inglês.
- Nem eu em usá-la - retorquiu David, ajustando a faixa atravessada no peito.
- Francamente, você não tem cara de escocês.
- Obrigado.
- De nada. Monte em seu cavalo e vamos embora.
Perto do meio-dia chegaram à casa de Hugh. David Garrick foi apresen-tado como um homem que se dizia primo distante dos Armstrong, e, como Hugh, vinha em busca
de proteção e segurança junto aos Ker. Hugh teve o cuidado de explicar que não conhecia aquele primo, para se proteger caso a verdadeira identidade de David fosse
descoberta. A mulher de Hugh acolheu-o com simpatia, não aparentando saber de nada.
- Bem, primo - declarou Armstrong, em tom levemente irônico -, tenho de cuidar de minha vida. Ponha-se à vontade em minha casa.
Pouco depois, David viu-se rodeado de um bando de escocesinhos que, sem a menor cerimônia, encarapitaram-se em seu colo, examinando-o com inocente curiosidade.
Uma garotinha de seus dois anos instalou-se entre seus joelhos, enquanto dois menininhos metralhavam-no com perguntas atro-peladas.
Pela primeira vez na vida, David Garrick se questionou sobre o que aprendera ao longo dos anos. Talvez os escoceses não fossem, afinal, filhos do inferno. Devagar,
com muita relutância, e quase sem perceber, deixou que seus braços envolvessem os pequeninos inimigos.
Elsbeth não conseguia se conter. Por mais que fizesse, simplesmente não podia se manter longe do inglês. Quanto mais tentava exorcizá-lo da mente, mais sua imagem
crescia, arrastando-a, puxando-a para o quarto de Patrick.
Magdalene dissera-lhe que o prisioneiro devia ficar ainda algum tempo longe da cela úmida e escura, ao que ela aquiescera, grata por alguém tomar a decisão em
seu lugar.
Mas Joan, indignada com o uso do quarto de seu filho, viera atormentá-la pela manhã.
- É uma afronta, Elsbeth. Meu filho jamais concordaria com isso, é um insulto que você lhe faz em sua ausência. Além do mais, que importa um inglês a menos neste
mundo? Qual o Ker que se incomodaria com isso?
E arrematara, esticando o bico de gralha maldosa:
- A menos que você se incomode...
Elsbeth deixara escapar algo que tinha atravessado na garganta havia tempos:
- A senhora tem total liberdade para sair daqui quando quiser, madame, mas se quiser ficar conosco, terá de respeitar minhas decisões.
Agora tinha certeza de que comprara uma inimiga perigosa e traiçoeira. Seu relacionamento com Patrick estava definitivamente prejudicado.
Patrick. Ian. Robert Ker e ela própria viveram anos a fio juntos com esses dois, deles dependendo para dirigir os domínios. E agora um inglês - um Carey - vinha
dividi-los. O pior é que ela deixara que isso acontecesse, acreditara nas insinuações de Huntington. Meu Deus, como ela o odiava por isso!
Mesmo assim, não conseguia manter-se longe daqueles olhos cinzentos. Era quase como se sua mente e seus pés obedecessem ao comando de outra pessoa. Ia ao quarto
de Patrick, enquanto a cabeça ordenava-lhe que tomasse a direção oposta.
Alex estava sentado na cama, o braço enfaixado e preso junto ao peito nu. Elsbeth não cansava de admirar a formidável massa de músculos e tinha de forçar-se
a desviar a vista. Seus olhos detiveram-se por alguns instantes na cicatriz misteriosa e depois pousaram nos dele.
A princípio, Alex pareceu não vê-la. Seus olhos estavam vazios e pareciam hipnotizados, fixos numa cena que ela não podia ver.
- Milorde?
Os olhos cinzentos finalmente ganharam a habitual vivacidade. Alex abriu um sorriso que pareceu iluminar o quarto.
- Lady Elsbeth... Bom dia. Estava pensando em milady.
- Magdalene disse que milorde está melhor.
Ele inclinou a cabeça para o lado, em atitude de expectativa. A castelã não sorria e parecia preocupada. Alex se indagou se havia sonhado com aqueles momentos
em que a tivera nos braços, tão frágil e feminina. Momentos em que ambos haviam compartilhado calor e emoção. Agora só existia hostilidade no ar.
- A curandeira é mágica, milady.
-É. Mas tem gente que não está muito contente com o que ela conseguiu.
- Milady se inclui entre eles?
- Eu só me preocupo com o pagamento do resgate. Alex teve vontade de provocá-la um pouco, de induzi-la a admitir que ela se preocupava com ele. Mas não queria
que Elsbeth se afastasse dali.
- Não haverá pagamento nenhum - disse, em voz amarga. - Não da parte de meu irmão.
Era uma isca que lançava. Talvez agora Elsbeth lhe informasse alguma coisa sobre David Garrick.
- Não posso esperar muito tempo mais. Meus homens estão ficando impacientes e inquietos com sua presença aqui.
- Sei. Olho por olho, dente por dente, não é assim? Mas vocês raptaram o Carey errado. Se tivessem raptado John, eu pagaria o resgate sem pestanejar.
Ela o fitou surpresa.
- Mesmo sabendo que ele não quer pagar o seu?
- Não sou meu irmão - replicou Alex, repetindo uma frase que já se cansara de dizer.
Quantas vezes mais teria de repeti-la para que acreditassem nele?
- Milorde é um Carey.
- Milady é uma Ker, mas isso não a faz igual aos outros membros do clã - replicou ele, com delicadeza. - Lembro-me de ter ouvido falar de uma ou duas atrocidades
cometidas por seu avô. Nem por isso jogo a culpa em cima de milady, nem penso que milady tem o mesmo caráter do avô.
- Talvez esteja enganado. Talvez eu seja igual a ele.
- É por isso que passou a noite toda a meu lado, quando estive doente?
- Milorde pode significar dinheiro para nosso clã.
- A mensagem foi enviada a David Garrick?
A pergunta apanhou Elsbeth desprevenida. Absorvida no duelo de palavras que travavam mal se apercebeu que respondia:
- Foi, mas ainda não recebi resposta.
A tensão de Alex afrouxou-se um pouco. Havia anos que se separara de David, mas tinha absoluta certeza de que o amigo em nada mudara. Ainda assim, não podia
subestimar o perigo que corria. Na ausência de Patrick e Ian sua sobrevivência estava relativamente assegurada; mas no momento em que eles chegassem, sua vida não
valeria um centavo. Patrick quase o matara depois da luta; poupara-o por um verdadeiro milagre. Quanto a Ian, seus modos brincalhões não o enganavam. Havia qualquer
coisa de maligno também nele.
- Quando seus primos voltam? - perguntou, à queima-roupa. -
- Amanhã cedo.
Elsbeth também tinha consciência do perigo que Alex corria com a chegada dos primos. Quando voltaria Hugh?
- Elsbeth.
Seu nome foi dito num tom macio, como uma melodia brincando no vento. Ela queria repreendê-lo por tê-la chamado pelo nome, mas não pôde. Queria fugir dali, mas
seus pés levaram-na para perto da cama. Queria...
Elsbeth se ajoelhou ao lado do leito, tomada de transe, enfeitiçada pelo modo acariciante com que ele pronunciara seu nome. Alex tomou-lhe as mãos, fitando-a
intensamente, mergulhando o cinza de seus olhos nos abis-mos dourados dos dela.
Queria dizer-lhe que estavam ambos unidos por algo mais forte que o ódio, mais forte que a vingança. Teve vontade de contar a ela o quanto suas mãos o acalmavam
e tornavam o mundo mais bonito. De falar que, juntos, poderiam curar as feridas um do outro. Mas não se achou no direito de dizer nada, pois estava fraco e doente.
Elsbeth poderia tomar suas palavras como pura chantagem.
Por isso ficou calado, deixando que os sentimentos passassem de um para o outro numa corrente pulsante. Sabia que ela ainda duvidava de sua sinceridade, mas
bastava-lhe o fato de que não tivesse fugido do quarto, como o fizera tantas vezes.
O breve momento de paz foi interrompido por pancadas fortes e impacientes na porta. Elsbeth levantou-se depressa, as faces queimando. Ajeitou a saia e abriu
a porta.
- Hugh!
- O próprio, pequena - respondeu o escocês, entrando sem cerimônia.
Hugh adiantou-se e examinou com curiosidade o doente, de quem tanto ouvira falar. Huntington pusera-se alerta no instante em que o vira, mas seus olhos não revelavam
medo, apenas uma certa beligerância. No fundo, Hugh gostou do que viu, mas nada demonstrou.
Resolvera-se a vir apenas para encarar de frente o conde inglês; seu faro lhe diria se valia a pena todo o trabalho que estava tendo. Satisfeito, virou-se para
Elsbeth:
- Posso falar com você?
Elsbeth concordou, aliviada pela interrupção, mas ao mesmo tempo aborrecida pela mesma razão. Esses sentimentos contraditórios já haviam se tornado parte de
sua vida.
Deixaram o quarto sem olhar para Alexander Carey.
- Vamos sair daqui, pequena. Prefiro conversar lá fora. Desceram em silêncio, atravessaram o saguão e ganharam o pátio, onde o cavalo de Hugh esperava.
- Vamos dar um passeio? - convidou Hugh, olhando significa-tivamente para o cavalariço que se aproximava.
Elsbeth entendeu o recado e virou-se para o rapazinho:
- Perry, prepare meu cavalo. Vou passear com sir Armstrong.
Pouco depois os dois cavalos atravessavam as amuradas do castelo e ganhavam a floresta.
- David Garrick veio comigo - declarou Hugh de chofre. Elsbeth encarou-o, incrédula.
- Ele está aqui? Mas por quê? Ele devia levar a mensagem a Londres, Hugh!
- Não temos tempo, pequena. Garrick me contou umas coisas que você não vai gostar de ouvir.
- Hugh, você me assusta. Diga logo o que tem para dizer.
- Seu inglês tinha razão sobre Garrick. O homem é leal e parece hones-to. Garrick seguiu John Carey durante dias, atrás de uma pista sobre o paradeiro do conde.
- E daí?
- John Carey se encontrou numa noite destas com um escocês. Um Ker, sem dúvida nenhuma. Os dois estavam tramando alguma coisa; o escocês falou que tinha dado
cabo dos três mensageiros, mas que não conseguira convencer você, Elsbeth, a matar Huntington. Então eles planejaram dar um jeito de ajudar seu inglês a escapar
da prisão. Amanhã de noite, diz Garrick. John estará à espera numa emboscada, e matará nosso Carey. A culpa, claro está, cairá sobre os Ker. Pequena, já imaginou
a guerra que vai se travar nestas fronteiras perdidas? É capaz de a armada inglesa invadir nossas terras.
- Então... então temos mesmo um traidor no clã - murmurou Elsbeth, aterrada.
Apesar de todos os avisos de Alex, ainda não se acostumara à terrível idéia. Um Ker traidor.
- Temos. E parece que ele teve um papel importante na morte de seu pai.
- Quem é, Hugh? Quem é, pelo amor de Deus?
- O homem estava metido numa capa com capuz. E um não chamou o outro pelo nome. Mas Garrick diz que o escocês devia ser alguém importante, pelo jeito autoritário
de falar.
- Quando foi isso?
- Há três dias. De noite.
Ela empalideceu.
- Ian e Patrick saíram daqui nesse dia. Antes de eles partirem, o conde conseguiu escapar e Patrick o encontrou por acaso, na hora em quê foi buscar o cavalo.
Lutaram, lembra-se? E Patrick quase o matou, Hugh. Eu é que não deixei.
- Tanto Patrick como Ian têm o que ganhar com a morte de nosso inglês - Hugh comentou pensativo. - Ou pelo menos pensam que têm. Veja, pequena, com a morte do
velho Robert, o clã ficou sem líder.
- E eu, Hugh? Eu sou a líder!
- Sim, mas não é homem e não comanda exércitos. A família pratica-mente vai forçar você a se casar, e é quase certo que você escolha um dos primos. O feliz escolhido,
minha cara, ficaria dono de tudo. Além de ganhar uma linda mulher, devo acrescentar. Enfim, é isso que o clã quer. Um líder, para comandar as lutas nas fronteiras.
- Qual dos dois eles preferem? Ian ou Patrick?
Hugh deu de ombros.
- Bem, Patrick é melhor soldado. Contudo, Ian é mais querido.
- Hugh, eu não suporto a idéia de que um deles seja traidor. Não suporto!
- Coragem, pequena. Enfrente a realidade, como eu enfrentei. Estou convencido de que um dos dois é nosso judas.
- Que... que vamos fazer?
- Se lord Huntington morrer em nossas mãos, ou se os ingleses pensarem que nós o matamos, o clã não terá a menor chance. Será dizimado.
- Sei disso, Hugh! Mas, e o traidor? Sabendo que o clã corre perigo, de que lhe servirá a traição?
- Ele deve ter tramado alguma saída. Por exemplo, jogar a culpa da morte do inglês nas costas de John Carey.
- É um plano arriscado.
- Mas, pelo visto, nosso judas acha que vale correr o risco.
Elsbeth endireitou os ombros e ergueu o queixo.
- Pois ele está enganado.
- Ah, agora estou ouvindo minha querida lady Elsbeth. Assim se fala, pequena corajosa!
- Se o traidor - disse ela, com os olhos cheios de intensa força interior - vai ajudar lord Huntington a fugir, terá uma bela surpresa. Porque eu farei isso
antes dele.
Hugh sorriu, admirado da argúcia de sua jovem líder.
- Essa é a idéia.
- Foi por isso que trouxe o soldado inglês junto?
- Não. Na realidade, achei que lord Huntington poderia ficar meio desconfiado com nossa repentina generosidade. A presença de Garrick vai ajudar nisso.
Elsbeth deu um sorriso irônico.
- Desconfiado, o inglês? Duvido. Ele aceitaria até um pacto com o diabo, para sair daqui.
- Ainda assim, Garrick pode ajudar.
- Não quero ninguém de meu clã ferido ou morto. Não por causa desse... desse inglês.
- Lembre-se, querida, se ele morrer, será mil vezes pior para nos. Um rapto é uma coisa; mas o assassinato de um favorito da corte... isso é muito, muito diferente.
- Então temos de planejar tudo com muito cuidado Antes de mais nada, onde está o soldado inglês?
Capítulo X
Elsbeth esperou até que todo o castelo estivesse mergulhado no silêncio da noite.
Se ajudasse abertamente lord Huntington, perderia por completo a lealdade do clã. De modo nenhum poderiam desconfiar de seu envolvimento, e isso se aplicava
a Hugh.
Mesmo que argumentasse sobre as retaliações que o clã sofreria com a morte de Alexander Carey, ninguém lhe daria ouvidos. Vingança e honra estavam em jogo; nada
mais importava. Os membros do clã somente se acalmariam com o dinheiro do resgate ou com o sangue do inglês. Sua cabeça doía. E o coração também. Porque, fosse
como fosse, o que ia fazer era uma espécie de traição ao clã. E com a ajuda de um traidor.
Tudo virará às avessas, agora se dava conta. O certo estava errado, o errado, certo. Inimigos transformavam-se em aliados, aliados em inimigos.
A decisão fora tomada, mas ainda se torturava com dúvidas atrozes. Estaria agindo certo? Que Deus a ajudasse.
Naquela tarde conhecera David Garrick, o lendário e temível guerreiro do campo inglês, de quem não gostara muito, apesar da expressão franca e decidida. Um homem
que havia matado alguns dos melhores homens do clã não merecia sua atenção.
O primeiro problema que tinha pela frente era cuidar dos guardas que vigiavam o prisioneiro. Repassou mentalmente os passos que teria de dar, planejados por
Hugh e pelo escocês Garrick. Ainda bem que o inglês estava no quarto de Patrick; seriam menos escadas para descer, menos perigo de o encontrarem pelo caminho.
Depois que Annie e as outras criadas se recolheram, Elsbeth foi à cozinha. Gostava daquele lugar sempre aquecido, do aroma de especiarias misturado ao de massa
fresca de pães assados, carne defumada e cereais na debulha. Correntes de ferro sustinham pelas asas um grande caldeirão de ferro sobre cinzas mortas.
A um canto, um barril repleto de cerveja descansava. A hora da troca de guardas se aproximava; os dois vigias que iriam render os outros em frente ao quarto
de Patrick já deviam estar chegando. Como sempre, viriam primeiro à cozinha a fim de beber uma caneca de cerveja e comer um sanduíche de carne fria. Elsbeth entornou
quase todo o conteúdo do barril sobre o ralo, deixando apenas um fundo de cerveja no tonel. Tirou de sob a saia o vidro que Magdalene lhe dera, observando-o com
hesitação.
- Este pó é para o inglês dormir bem, milady - dissera Magdalene. - Mas não lhe dê muito; basta uma colherinha num copo de água. Ele dormirá como um cordeirinho.
Elsbeth não sabia a quantidade que devia usar. De modo algum queria fazer mal aos dois fiéis vigias. Por outro lado, não podia correr nenhum risco. Eles tinham
de adormecer no posto, e depressa.
Suspirando, despejou todo o conteúdo do vidro no barril e mexeu o líquido com uma colher de pau, até que o pó se diluísse por completo.
Terminada a tarefa, Elsbeth subiu para seu quarto. Se tudo corresse bem, dentro de duas horas os dois vigias estariam "dormindo como cordeirinhos". Tirou de
sob o colchão uma faixa escocesa e um capacete de couro com as armas dos Armstrong. Eram peças da família de Hugh, que lhe foram dadas à tarde. Lord Huntington deveria
usá-las para fingir-se primo de Hugh, o mesmo que chegara naquele dia para visitar os parentes; com isso, poderia passar pelos portões do castelo. O capacete, grande
e largo, serviria para esconder o mais possível as feições do prisioneiro.
Era um plano audacioso e de alto risco para Hugh. Todo ele se baseava na idéia de que o "primo" não passava de um embusteiro; restava a Hugh a esperança de que
os Ker engolissem a história. Para deixá-la mais plausível, Hugh seria ferido e deixado inconsciente.
Depois que Garrick e lord Huntington partissem, Elsbeth daria um jeito de descobrir quem era o traidor. Ainda não sabia como; mas jurara a si mesma que não descansaria
enquanto não o desmascarasse. Também não tinha a menor idéia do que faria quando descobrisse a verdade; só tinha como certo que jamais poderia ordenar a morte de
Ian ou Patrick, não importa o que tivessem feito.
Uma lágrima desceu silenciosa pelo seu rosto. O futuro não podia ser mais negro e ameaçador. Sentiu um vazio doloroso e seco ao pensar que dentro de pouco tempo
o inglês deixaria o castelo para não mais voltar. E a dor de saber que um dos primos a traía era ainda mais pungente.
Os minutos se arrastavam numa lentidão exasperante. Elsbeth vestiu o manto mais simples e velho que tinha e ficou à espera, sentada na poltrona do quarto. A
lua flutuava sobre o céu, impassível ao ninho de tramas que se armava em baixo. Quando achou que dera tempo suficiente, levantou-se e foi ao quarto de Patrick, cuidando
para não fazer nenhum ruído. No corredor, parou à escuta. O silêncio era absoluto, indicando-lhe que a poção de Magdalene fizera efeito. Guiada apenas pela luz leitosa
da lua, Elsbeth dirigiu-se à porta cautelosamente. Com efeito, os dois vigias ressonavam tranqüilamente no chão, as cabeças apoiadas nas pedras da parede. Elsbeth
abriu a porta devagar, piscando a cada vez que os gonzos rangiam. Um toco de vela perto da cabeceira do prisioneiro jogava sombras sobre o vulto deitado na cama.
Com muito cuidado, a castelã sacudiu-o levemente pelo ombro. Alex reagiu quase de imediato, como um guerreiro treinado para o perigo. Elsbeth pôs-lhe um dedo
nos lábios e viu-o franzir a testa em surpresa e perple-xidade. Ele se sentou, correndo a vista pelo quarto, em busca de explicação. Em seguida os olhos cinzentos
pousaram em Elsbeth, numa pergunta silenciosa.
Ela apontou para os dois homens estirados em frente à porta e depois entregou-lhe uma pilha de roupa. Alexander pegou-a e dispôs-se a sair da cama, mas logo
seus lábios se apertaram numa expressão de contrariedade: estava completamente nu. Havia dias que dormia sem roupa, pois suas velhas calças malcheirosas deixavam-no
nauseado.
Elsbeth fez-lhe um sinal impaciente. Ele hesitou ainda, mas depois deu de ombros e saiu da cama, observando-a de esguelha. Sob a tênue luz da vela, viu os olhos
dourados se arregalarem de espanto, e sorriu. Seria capaz de jurar que a castelã estava mais vermelha que um tomate maduro.
Apesar da situação perigosa em que se encontravam, Alex experimentou um sentimento de estranha satisfação por se mostrar a Elsbeth. Os olhos dourados pareciam
hipnotizados, varrendo-o de alto a baixo, incapazes de se desviar. De repente, Alexander sentiu que sua masculinidade respondia ao olhar intenso de Elsbeth. Entre
desconcertado e excitado, deixou-a ver sua ereção, pondo-se deliberadamente de frente para ela.
Mas, ao ver a expressão angustiada da castelã, sentiu vergonha e culpa. Elsbeth tentava ajudá-lo, e ele correspondia agindo de forma animalesca. Virou-se de
costas e vestiu-se o mais depressa que lhe permitia o braço ainda dolorido. Depois que colocou o capacete, virou-se para Elsbeth, na expectativa.
Esta fez-lhe sinal para acompanhá-la e dirigiu-se para o corredor, com passo ágil e gracioso. Em absoluto silêncio, os dois ganharam o pátio do castelo, colando-se
de encontro às paredes. Nas altas ameias os guardas passeavam de cá para lá, bocejando e trocando piadinhas sem graça.
Em minutos estavam no estábulo. Alex ia começar a crivar Elsbeth de perguntas quando sentiu uma mão agarrar-lhe o ombro. Girou rapidamente nos calcanhares, todos
os sentidos alertas, pronto a lutar. Mas sua surpresa não teve limites quando topou com o sorriso malicioso e brincalhão de David Garrick.
- Com mil demônios, homem de Deus! Como veio parar aqui?
- Não há tempo para histórias agora, meu velho. Temos de dar o fora daqui.
Alex viu dois cavalos arreados e olhou para o amigo. Ele também osten-tava uma faixa dos Armstrong e tinha um capacete na mão. Subitamente, outro vulto emergiu
das sombras. Alex o reconheceu e esticou-lhe a mão:
- Sou Alexander Carey - disse, dispensando o título. - Acho que lhe devo meus agradecimentos.
Hugh se surpreendeu. Pelo que dissera Elsbeth, esperava arrogância, mas só viu gratidão nos olhos do conde inglês.
- O que estou fazendo não é por vós, milorde.
Alex deu um de seus sorrisos irônicos, daqueles que haviam fascinado Elsbeth.
- Sei disso muito bem. Contudo, o resultado será o mesmo, portanto sou-lhe grato do mesmo modo. Não me esquecerei de seu gesto.
- Então não haverá mais ataques dos Carey por aqui?
- Não contra vocês ou contra o clã - afirmou Alex com determinação.
Hugh, impressionado, acenou com a cabeça. Naquele momento soube que não gostaria de ter aquele homem como inimigo.
- Deus guie vossos passos então.
Alex voltou-se para Elsbeth, envolvendo-a com seu olhar.
- E milady? Por que se arriscou tanto?
- Não quero ser responsável pelo extermínio de meu clã.
- Só isso? - provocou ele, os olhos perdidos num sorriso travesso.
- Não. Também estou livrando meu castelo da presença de um Carey.
O sorriso morreu e Alex voltou-se para David.
- E você, que novidades me conta?
- John está tramando sua morte, juntamente com alguém do clã Ker. Milorde deveria ser assassinado, não raptado. Foi pura sorte lady Elsbeth ter resolvido de
modo diferente.
- E qual é o Ker traidor?
- Não sabemos. Segui John uma noite e ouvi-o confabular com um Ker, mas não pude identificá-lo.
- Bem, então não podemos mais perder tempo aqui. Eu... Alex deteve-se, subitamente tenso. Iria deixar Elsbeth à mercê de um porco traidor. Pior ainda seria se
descobrissem o que ela fizera. A mais leve suspeita poderia levá-la à morte.
A esse pensamento retraiu-se, tomado de receio. Havia ainda outro problema para atormentar sua mente: a existência de dois traidores, um em cada família. Jamais
haveria paz nas fronteiras enquanto ambos não fossem desmascarados. Era preciso planejar uma armadilha para apanhá-los o quanto antes.
Mas primeiro tinha de proteger a vida da castelã, que se portara com bravura e coragem durante a sua estada em campo inimigo. Fitou Elsbeth, admirando-lhe o
rosto bonito e determinado.
- Precisa ir, milorde - disse ela.
- Você virá comigo.
Ela recuou, cobrindo a boca com a mão.
- Está louco!
- Não, é você que não estará segura aqui.
- E certamente estarei muito segura nas mãos de um Carey!
- Depende do Carey. Sim, milady ficará segura comigo.
- Sua inteligência falha, milorde. Lembre-se, não fui eu que me deixei apanhar no meio de um ridículo banho no lago.
O sorriso irônico voltou.
- Foi uma lição que aprendi e da qual não me esquecerei jamais.
- Então comece a pô-la em prática, antes que se torne nosso prisioneiro outra vez. Estou perdendo a paciência, milorde.
- O que lhe acontecerá se seu clã descobrir que você me ajudou a fugir?
Elsbeth apertou os lábios. Sabia muito bem quais seriam as conseqüên-cias de seus atos; o castigo seria terrível.
- Não é de sua conta.
Alex sabia que não a convenceria. A aurora não tardaria a raiar. Seus olhos encontraram os de David, num pedido de auxílio. O amigo entendeu e acenou levemente
com a cabeça.
David e Hugh haviam combinado que este último seria ferido e atacado, para não despertar dúvidas quanto a sua lealdade ao clã. Contudo, naquele instante em que
mensagens silenciosas foram transmitidas entre os ingleses, Hugh percebeu o que iria acontecer. Com um rugido, desembainhou a espada.
- Ninguém levará minha lady contra sua vontade! Demônios ingleses!
David enfrentou-o, já de espada na mão. As duas tilintaram no embate inicial, quebrando a quietude da noite. Alex recuou, puxando Elsbeth, que se debatia na
tentativa de se desvencilhar das garras firmes do conde.
Sob o ruído da luta, Alexander conseguiu prender com uma só mão os pulsos de Elsbeth nas costas. Com a outra, agarrou uma corda que pendia do teto e amarrou
os pulsos da castelã. E, rápido como o raio, amordaçou-a antes que ela começasse a gritar. Mergulhou os olhos nos dela e piscou-lhe com ar maroto, ignorando sua
fúria. Então virou-se para os dois combatentes, pensando depressa, um vinco de preocupação na testa.
O clangor das armas era estridente; eles não podiam perder tempo nem fazer todo aquele barulho. O escocês dificultava a situação atacando com fúria, determinado
a matar o oponente, enquanto David só aparava os golpes. Alex teria de intervir, embora seu senso de justiça condenasse esse gesto, que violava todas as lições de
boa cavalaria. Não havia alternativa, porém.
Quando Hugh recuou em sua direção, Huntington agarrou-o por trás e golpeou-o com força na nuca. David mal teve tempo de jogar a espada no chão e correr para
aparar o corpo inerte.
- Amarre-o - ordenou Alex, evitando olhar para Elsbeth.
Na realidade, detestava o que estava fazendo, embora fosse pelo bem da valente inimiga. Tinham de passar pelos portões da fortaleza do castelo, e era absolutamente
indispensável que ficasse bem claro que lady Ker estava sendo raptada contra sua vontade.
Adiantou-se para ela, sustentando-lhe o olhar.
- Desculpe, milady. Mas terá de ir comigo da mesma maneira como eu cheguei aqui.
E, voltando-se para David:
- Pegue uma daquelas mantas penduradas ali.
Elsbeth debateu-se violentamente, os olhos muito abertos.
De sua boca amordaçada saíam ruídos abafados, que Alex supunha serem insultos e pragas.
- Calma, eu não vou lhe fazer mal. Quero sua palavra de que não se mexerá, nem fará nenhum barulho quando sairmos daqui.
Ela sacudiu a cabeça vigorosamente, os olhos dardejando chispas. Não acreditava que o conde pudesse pregar-lhe aquela tremenda peça. Não depois do que fizera
por ele. Ah, mas fora uma louca, uma idiota completa. Ele era um Carey, afinal, tão desprezível quanto o pior deles. Mais ainda. Cheia de raiva impotente, Elsbeth
começou a atacá-lo a pontapés e empurrões.
Suspirando, Alex viu que não tinha mais opção. Aproximou-se dela e, em silêncio, pediu-lhe perdão pelo que iria fazer. Elsbeth estava tão furiosa que nem reparou
quando ele ergueu a mão e, com um golpe certeiro, a fez desabar inconsciente.
Mas Alex não perdeu tempo se recriminando. Ajudado por David, trabalhou depressa, enrolando-a na manta firmemente. Com pedaços de corda ataram-lhe os pés e fecharam
a abertura por sobre a cabeça, formando um casulo. Alex montou e David colocou o precioso fardo em seu colo, prendendo-o bem perto do santo - antônio.
- Depressa, Davey, monte em seu cavalo. Perdemos um tempo precioso, que Deus nos ajude!
Os dois saíram do estábulo e ganharam o pátio, rumo aos temidos portões da amurada. David seguia na frente; a faixa escocesa e o capacete ajudavam-no a parecer-se
com Hugh Armstrong, que, acompanhado do "primo", havia pouco tempo entrara pelos mesmos portões.
Quatro homens vigiavam a grande entrada da fortaleza, dois de cada lado. Quando avistaram os cavaleiros, imediatamente os tomaram por Hugh e o "parente". Com
ar indiferente, adiantaram-se para abrir o grande portão.
Um deles, porém, olhou para o fardo e fez Alex parar.
- Que é que tem aí dentro, meu velho?
- Roupas. Lady Ker mandou para minha mulher e meus filhos - respondeu Alex, engrossando a voz e imitando o sotaque escocês da melhor maneira que podia. - Os
malditos ingleses queimaram tudo o que tínhamos.
O guarda balançou a cabeça, compreensivo.
- Milady é sempre generosa. Tudo bem, podem passar.
- Obrigado - respondeu Alex, mal acreditando na sua sorte.
Minutos depois achavam-se trotando fora da fortaleza. Alex respirava com volúpia o ar da noite, olhando quase com reverencia para as árvores e a lua. Para a
liberdade.
- Aonde vamos agora? - perguntou David, quando se sentiu em segurança. - A Huntington?
- Não, ainda não. Primeiro, conte-me a conversa que ouviu entre meu irmão e o escocês.
David fez um relato minucioso do sinistro encontro, sem omitir nem mesmo uma descrição detalhada do local.
- Então o escocês também se meteu na morte de lord Ker?
- É o que parece.
- Lady Elsbeth nunca acreditará nisso.
- E com razão. Também me custou acreditar, que dirá ela!
- A menos que consigamos provar tudo. Para as duas famílias.
David ergueu a cabeça, reconhecendo o tom determinado do amo.
- Qual é o plano?
- Desnortear nossos dois conspiradores, Davey. Lady Elsbeth e eu vamos sumir de circulação por algum tempo. Isso os desorientará. Serão forçados a se encontrar
de novo, para reajustar os planos.
David deu uma risadinha curta.
- Já estava com saudades de meu velho amigo.
- E eu de você, David. Bem, creio que já estamos a uma boa distância. Vamos deixar esta moça mais confortável?
Pararam, e Alex desmontou. Deu algumas palmadinhas no pescoço do animal, que relinchou amistosamente.
- Gideon, pensei que tinha perdido você para sempre. Ainda bem que Patrick não o levou junto.
Com muito cuidado, David desprendou as cordas que atavam o fardo ao arreio e depositou-o no chão. Depois, com o punhal que havia tirado de Hugh, cortou os cordões
e abriu a manta. Elsbeth estava ainda inconsciente, o que facilitava a tarefa dos dois.
- Posso soltar os pulsos, milorde?
- Claro. Eles terão pouca serventia agora, a não ser para me encher de socos...
- Menina valente, esta. Nem parece escocesa.
Alex debruçou-se sobre ela, sentindo um vago perfume de rosas.
- Elsbeth? - chamou, baixinho.
- Tome, milorde - interveio David, entregando-lhe o embornal de vinho. - Talvez isto sirva para reanimá-la.
O conde forçou-a a beber alguns goles e esperou. Instantes depois, Elsbeth começou a piscar, para logo em seguida abrir desmesuradamente os olhos. Havia pânico
e angústia neles, o que fez Alexander sentir-se o último dos homens. Finalmente ela o fitou num silêncio acusador.
- Por favor, lady Elsbeth, queira me perdoar. Não havia outro jeito de convencê-la a me acompanhar.
- Você é um Carey - falou ela, com supremo desdém. - E está mentindo. Agora está como o diabo gosta. Sou sua prisioneira, como você foi o meu. Está satisfeito?
- Prisioneira não - retorquiu ele, com gentileza.
- Então leve-me de volta para meu castelo.
- Não.
Elsbeth virou-lhe o rosto, como se não suportasse mais vê-lo. E esse gesto foi para o conde mais doloroso que a ponta de uma espada atravessando-lhe o peito.
- Precisamos ir embora - falou, estendendo-lhe a mão.
Mas a castelã não a aceitou. Mordendo os lábios, firmou-se no chão e levantou-se com alguma dificuldade, parecendo ainda tonta. Alex admirou o modo como ela
se aprumava e limpava a saia; tinha a elegância e a imponência de uma rainha.
- Aonde vão me levar?
- Para um lugar onde possamos conversar sossegados.
Ela o fitou com fria repulsa.
- Não quero ir.
- Eu sei.
Houve um silêncio.
- Pensei que fosse diferente, milorde.
A dor em sua voz causou a Alex o efeito de uma punhalada. Os lábios dele se apertaram diante daquela frase cheia de desapontamento.
- Vamos, milady.
- Prefiro ir com ele. - Elsbeth indicou David. - Ou ir andando.
- E uma longa caminhada.
- Não me importo.
- Basta, milady. Cada momento perdido é um perigo a mais que acrescentamos a nossas vidas. Você me ofereceu pouca escolha, e agora é a minha vez de retribuir.
Você virá comigo, no meu cavalo.
Esticou a mão e agarrou-a com força, obrigando-a a montar. Depois pulou para o lombo do cavalo, não ocupando a sela, mas cavalgando atrás, sobre o pêlo. Ambos
teriam uma viagem incômoda e desconfortável naquela noite,
David ia na frente, guiando-os por caminhos escondidos que ela nunca julgara existir. O tempo todo Elsbeth permaneceu tensa, tomando cuidado para não deixar
seu corpo encostar no do inglês. Sentia-se humilhada e ultrajada; o mínimo que podia fazer era demonstrar ao arrogante conde o quanto o detestava pelo seu ato.
Contudo, os braços de Alexander eram firmes e quentes, convidando ao aconchego. A proximidade de seu calor a atraía ainda do mesmo jeito que antes, e a consciência
disso assustava-a mais que nunca.
Foi uma longa viagem. Elsbeth estava quase esgotada; por vezes, chegava a cabecear. E nesses momentos sua cabeça repousava involun-tariamente no peito de Alex,
sentindo as batidas firmes e compassadas de seu coração. Ela não queria estar ali. Não queria.
Alexander Carey era um escorpião traiçoeiro. Acabara de demonstrá-lo de forma cabal. Ela o odiava. E no entanto nunca se sentira tão segura como agora. Não entendia
esse mistério, nem queria entender. Sabia apenas que tinha de fugir, de voltar para casa onde havia outro tipo de segurança.
Mas haveria mesmo segurança lá?
Nos últimos dias que passara no castelo, nunca se sentira tão solitária e desamparada. Mas não seria esse homem que confortaria. Nunca.
Teve vontade de voltar-se para encarar de frente o rosto que em tão pouco tempo tinha virado sua vida de cabeça para baixo. Mas não ousava. Havia alguma coisa
naquela boca - provocante, pensativa, irônica - que a enfeitiçava, deixando-a indiferente a tudo o mais. E ela precisava fugir disso. Logo. Finalmente, o cansaço
a venceu. Alex sentiu o corpo de Elizabeth relaxar mansamente, e teve de lutar para não embalá-la como gostaria. Era-lhe suficiente, por ora, sentir a cabeça dela
em seu peito, sentir-lhe o corpo moldado docemente ao seu.
Quando ouviu a respiração compassada e teve certeza de que ela dormia, beijou suavemente os cabelos ruivos, aspirando-lhes o perfume inebriante. Apertou-a contra
si possessivamente, dando livre freio ao desejo que o atormentava desde o começo da jornada. Pouco lhe importava que ela o rejeitasse quando acordada. Agora a tinha
nos braços!
Teria alguns dias para passar a seu lado. Tentaria fazê-la acreditar nele, confiar nele. Queria que Elsbeth o olhasse sem rancor nem tristeza. Isso já havia
acontecido, naquela noite adorável em que a abraçara por breves e fugidios instantes. Nessa ocasião, experimentara sensações novas e deliciosas. Queria experimentá-las
de novo.
Desejava isso mais que o condado de Huntington inteiro, mais que o esperado e adiado confronto com John Carey. Naquele momento, nada mais lhe interessava.
Detiveram os cavalos quando os primeiros raios da aurora começavam a tingir de vermelho a copa das árvores. Estavam a caminho de uma cabana escondida na floresta,
uma cabana pequenina que ele e David haviam achado por acaso, muitos anos atrás. Na ocasião, julgaram que se tratasse do esconderijo de algum caçador furtivo, pois
era perfeitamente camuflado entre árvores e barrancos. David e ele tinham quase certeza de que ninguém sabia da existência desse abrigo.
A cabana devia estar em mau estado e ofereceria pouco conforto. Mas Davey poderia trazer algumas mantas e peles para aquecê-los durante a noite.
A parada foi breve, suficiente apenas para alimentar os cavalos e dar-lhes algum descanso. Elsbeth despertou e desmontou sozinha; sua expressão retomara o ar
hostil e distante.
Sentada na relva, a castelã observava o conde cuidar de Gideon, enquanto sua mente divagava. Acreditara quando ele lhe dissera que havia um traidor no clã, mas
agora já começava a duvidar de novo. Alexander Carey havia tecido uma teia de desconfiança, devagar, cuidadosamente. Hugh também Creditara naquela história, e agora
jazia inconsciente no meio do estábulo. Tudo parecia ter sido planejado e estudado. E quanto mais pensava nisso, mais aflita ficava. Seus olhos se encheram de lágrimas.
Confiara no inglês, que a praga o levasse. Desviou o rosto, não querendo que ele a visse chorando.
Mas Alexander já pressentira sua tristeza. Ele se aproximou e tomou-a pelo queixo, forçando-a a olhá-lo.
- Eu já disse, milady, que não vou magoá-la. Fui sincero, pode acreditar.
- Já estou magoada, milorde. E agora sei o que vale a palavra de um Carey.
- Precisamos um do outro, pelo menos por enquanto.
- Você pode precisar de mim, mas eu não preciso de você. A única coisa que preciso é livrar-me de você, não vê-lo nunca mais. Mas, no fim das contas, a culpa
foi minha. Porque confiei na palavra de um Carey. Agora, se me der licença, quero ficar sozinha. Quero dizer, completamente sozinha.
Alex fitou-a, considerando o pedido. Elsbeth não tinha como fugir, a menos que conseguisse um cavalo.
- Ali adiante há um bosquezinho. Pode ir.
Com toda a dignidade que conseguiu reunir, Elsbeth caminhou orgulhosamente para um aglomerado de carvalhos, cuja sombra parecia acolhedora e tranqüila. Quando
se viu só, deu livre curso às lágrimas, que correram quentes e tristes. Não sabia se chorava por causa do profundo desapontamento que sentira com a traição do conde,
ou se por causa da imensa solidão em que se achava no momento.
Não havia mais ninguém em quem podia confiar. Julgara Alex Carey um homem honesto e leal, embora de família inimiga; pois bem, enganara-se redondamente. Nunca
mais cometeria enganos desse tipo, nunca mais.
Que queria o conde? Essa era a pergunta que martelava sua cabeça sem cessar. Pediria resgate por ela? Ou ficaria prisioneira em Huntington? E por quanto tempo?
Rapidamente, fez uma breve toalete e recompôs as roupas, alisando os cabelos com os dedos. Quando terminou, voltou à clareira, mergulhada em pensamentos. Talvez
pudesse roubar um cavalo; jamais conseguiria escapar a pé, principalmente num local desconhecido como aquele. Elsbeth conhecia muito bem os perigos da região - pântanos,
areias movediças, florestas intrincadas.
David Garrick, porém, mantinha ambas as rédeas na mão, enquanto conversava em voz baixa com lord Huntington.
Elsbeth tinha quase certeza de que seus homens também desconheciam aquele caminho; não podia, pois, ter esperanças de que eles viessem em seu encalço. De qualquer
modo, quando dessem pela sua falta, esperariam a chegada de Ian e Patrick antes de tomar qualquer providência. E isso levaria algum tempo ainda.
Os primos deviam retornar a Ker naquele mesmo dia. Que pensariam eles? E se imaginassem que ela tinha vindo de livre e espontânea vontade? Que ela havia traído
o clã?
O pensamento foi aterrador.
Quando se aproximou dos dois homens, seu rosto estava lívido e desfei-to. Alex estendeu-lhe a mão para ajudá-la a montar, mas ela novamente a recusou.
Momentos depois, ambos cavalgavam do mesmo modo: ela na frente, muito empertigada, ele atrás da sela.
- Sei que está cansada, milady. A viagem está chegando ao fim.
A voz dele soou aveludada, gentil e hipócrita. Elsbeth tinha certeza de que Alexander Carey pouco se importava com seu cansaço, com sua tristeza, com seu desespero.
Na verdade, Elsbeth não queria que a viagem terminasse nunca. Porque seria obrigada a ficar sozinha com o conde. E achava que não seria capaz de suportar isso.
Inadvertidamente as costas dela bateram contra o peito de Alex, que imediatamente a amparou pela cintura. Sua mão era quente e protetora. Mas ela não queria
sentir o calor de Alex, nem desejava sua proteção. Contorceu o corpo, como Que para se livrar de um peso inútil, e ficou aliviada quando a mão dele se retraiu. O
cavalo tropeçou, e o corpo de Alex colou-se ao dela por alguns instantes, para logo se afastar. Habilmente, o conde guiou Gideon para uma vereda menos acidentada
e diminuiu o trote.
Elsbeth não pôde deixar de admirar a perícia com que ele manejava o cavalo, ainda arisco e bravio. Mas descartou logo esse pensamento, por considerá-lo traiçoeiro
e perigoso. Alexander Carey era um patife da pior laia, um mentiroso, um impostor. Um Carey, enfim. Não, não podia e não devia pensar em nada que lhe fosse favorável.
Ele a usara e a Hugh também. Agora seu clã estava numa situação precária de equilíbrio, sem líder, ameaçado de retaliação por parte dos ingleses.
Tinha de fugir. Mesmo que ela própria se tornasse uma mentirosa e impostora; não importava, pagaria na mesma moeda.
Sim, era o que faria. Fugiria, a qualquer custo. E Alexander Carey, conde de Huntington, pagaria caro pelo que fizera.
Capítulo XI
Ian Ker estava completamente esgotado.
Mas cumprira a missão a contento; os Douglas haviam-no recebido muito bem, prometendo dar todo o apoio aos Ker.
No momento, Ian só pensava em voltar ao castelo, rever Elsbeth e pôr ura ponto final no problema do conde de Huntington. A farsa fora longe demais.
Sendo um homem experiente e arguto, logo se apercebera do inesperado interesse da prima pelo prisioneiro inglês, fato que o aborrecia e instigava-o a voltar
depressa. O maldito Carey tinha excelente aparência, era forçado a admitir. E lutara muito bem com Patrick.
Mas o bem-estar e a honra do clã estavam em jogo. E o futuro de Ian também.
Amava Elsbeth desde pequeno; quando brincavam juntos, costumava imaginar-se casado com ela, mesmo sem saber direito o que isso significava. Estava convencido
de que um dia Elsbeth retribuiria seus sentimentos, pois ambos tinham coisas demais em comum.
Sabiam rir, beber, brincar, apostar corridas alegres pelos campos. Ambos poderiam dirigir o clã com facilidade, pois conheciam os segredos do bom relacionamento
e da simpatia.
Ian traria um toque de severidade ao clã, enfraquecido nos últimos anos por um velho lord benevolente demais. Elsbeth Puxara ao pai, e às vezes mostrava-se mais
compassiva do que devia. Não era disso que o clã precisava, e sim de força, disciplina rigorosa e dedicação nos estudos da arte da cavalaria.
Não ignorava as pretensões de Patrick, mas achava que a ambição do primo repousava mais no poder que propriamente no amor. Patrick gostava de namorar, ao passo
que Ian, não querendo escândalos envolvendo seu nome, mantivera-se a distância das mulheres. Bem ao contrário, o sombrio primo metera-se nas mais escabrosas aventuras
e nunca se importara com falatórios. Na verdade, Ian atribuía a Joan todo o interesse de Patrick em Elsbeth; certamente a velha gralha enchia os ouvidos do filho
noite e dia, acenando-lhe com a posse dos domínios Ker.
Por tudo isso, Ian não considerava Patrick um rival perigoso, ainda que o vigiasse de longe. O objetivo de obter a mão de Elsbeth criara uma rivalidade entre
os dois, embora eles nunca tivessem sido amigos; eram competitivos demais para isso. Protegidos do clã e bastardos, ambos tiveram de abrir caminho por trilhas diferentes:
Patrick através da perícia no manejo de armas, e Ian através da simpatia e do charme discreto. E ambos conseguiram atingir seus objetivos, cada um na sua especialidade.
Ian mantivera-se calmo e esperara chegar sua vez sem forçar Elsbeth, mas agora sentia que o tempo o pressionava. A aparente indecisão da prima com relação ao
inglês causara irritação e descontentamento entre os Ker, que cada vez mais clamavam por um líder. E a única maneira de atingir esse objetivo era ver Elsbeth Ker,
chefe única do clã, casada com alguém em quem confiassem.
Ian sabia que tinha boas chances, pois seu nome corria à boca pequena entre os membros do clã, avessos à idéia de se submeterem às ordens de um estranho; era,
em suma, o favorito de todos. Verdade que Patrick também tinha seus adeptos, mas Ian confiava no seu poder de persuasão.
No alto das colinas que ondulavam diante do castelo, Ian fez o cavalo parar e contemplou a paisagem. Aquelas terras significavam tudo para ele. A festa de São
Miguel já passara, e a colheita terminara; o gado pastava tranqüilamente, servindo-se do restolho. Aqui e ali a terra vermelha mostrava sulcos deixados pelos arados,
onde camponeses semeavam. Logo mais seria tempo de abate, e o cheiro de carne defumada substituiria o aroma de terra recém-revolvida.
Os ataques noturnos recomeçariam também, pois o período de luto estava chegando ao fim. Ele e Patrick retomariam o comando e dirigiriam os homens nas rápidas
e breves incursões de invasão, dentro das mais antigas tradições da fronteira. Eram incursões divertidas, quando não havia derramamento de sangue. O problema maior
residia do lado dos odiados Ca-rey. Eram eles, somente eles, os culpados de a fronteira tingir-se de vermelho.
Fincou com dureza as esporas na anca do cavalo. Chegaria em casa a tempo para jantar em companhia de Elsbeth e dos parentes. E como ansiava por isso!
Patrick chegara três horas antes, apenas para dar com tudo de pernas para o ar. Gritara e vituperara contra Hugh Armstrong, proferira blasfêmia sobre blasfêmia,
perseguira cada serviçal que passava a sua frente com implacáveis imprecações.
Mas a realidade estava ali, negra e intoleravelmente irritante. O prisioneiro fugira; Elsbeth desaparecera. E Hugh, com um grande galo na cabeça, só fazia se
desculpar com ar imbecil.
Patrick voltara para o castelo já de mau humor. Os Homes não se haviam mostrado nada receptivos. "O tempo é de paz, não de guerra", haviam dito. Só quando Patrick
enumerara as injustiças que o clã vinha sofrendo é que os Homes, não sem relutância, concordaram em apoiá-los, mesmo assim em caso de absoluta necessidade. Bastardos!
Quando chegara, mal desarreara o cavalo e a mãe acorrera ao seu encontro, agitando os braços raquíticos no ar, girando os olhos globulosos em frenética excitação.
- Ele roubou lady Ker!
- Elsbeth? Quem...?
- Ora, quem! Lord Huntington, é claro, o maldito demônio inglês.
- Mas como?!
- Não sei, meu filho. Ele conseguiu fugir e raptar Elsbeth. Hugh tentou impedi-lo, mas não conseguiu. Está até ferido. Não sei como o inglês não o matou!
Os olhos negros de Patrick faiscaram.
- Hugh Armstrong? Onde estava ele?
- No estábulo. O primo dele também fugiu.
Com todas as brasas do inferno, ele não estava entendendo nada! Precisava encontrar alguém que lhe contasse a maldita história.
- Onde está Hugh?
No castelo, esperando por você e Ian.
- Quando aconteceu isso?
- Ontem à noite.
Patrick praguejou, chutando com raiva a palha do chão. Era muito tarde para tentar seguir os rastros; certamente o inglês já estaria em Huntington, rindo-se
dele e de Ian. Atacar o condado era algo em que não podia nem pensar; a fortaleza que o cercava era quase instransponível. Mas talvez o rapto de uma jovem castelã
servisse para unir os escoceses da fronteira.
Cerrou os punhos quando pensou na prima, à mercê de um Carey. Sua única esperança era relativamente frágil: a de que o inglês, mesmo sendo um Carey, não ousasse
fazer mal a uma dama com a reputação e a posição de Elsbeth.
Como errara ao não ter acabado com a vida do maldito inglês naquele dia! Arrependimento, ódio e indignação ferviam em seu cérebro. Todos esses acontecimentos
serviam apenas para confirmar a necessidade que o clã tinha de poder contar com um líder digno e valente.
A voz estridente de Joan veio cortar seus pensamentos.
- Que é que você pretende fazer?
- Por enquanto, nada. Primeiro preciso saber onde ela está e o que os Carey querem. Não posso arriscar a vida de Elsbeth.
- Eu bem que avisei! Você devia insistir no casamento com ela, devia ter feito a corte como faz um cavalheiro de bem. Mas não, preferiu "esperar". Agora, aí
está o resultado!
Patrick rilhou os dentes para não gritar. Gostava de Elsbeth, chegava a amá-la, de certo modo. Mas como forçá-la a se casar? Só na cabeça de Joan isso era possível.
- A insistência só assustaria Elsbeth, mãe.
- Então raptasse a moça. Podia até forçá-la ao casamento depois. Muito simples e muito fácil.
- Não é com vinagre que se apanham moscas, mãe.
- Então use azeite, mel, qualquer coisa. O resultado está aí, você não apanhou nenhuma mosca e ficou a ver navios.
Patrick mal conteve um gesto impaciente às vezes chegava a invejar Ian, cuja mãe morrera cedo. Mas logo se arrependia; Joan era amarga e aborrecida, mas tinha
razão para ser assim. O irmão de Robert Ker havia-lhe prometido casamento e jamais cumprira sua promessa. Joan fora usada e des-cartada como um pedaço de trapo velho.
Patrick compreendia sua amargura, embora se cansasse facilmente da eterna choradeira.
- Vamos, mãe, não é hora de falar nisso - disse em voz cansada, dirigindo-se para a saída do estábulo.
- Sabia que Elsbeth deixou que o inglês ficasse no seu quarto? - gritou a velha, com voz aguda.
Patrick deteve-se.
- Meu quarto?
- É, seu quarto, Patrick. A ferida que você fez nele arruinou. O demônio teve febre. E Elsbeth mandou descer o homem para seu quarto. E quer saber do pior? Ela
cuidou dele! Tratou da ferida, ia sempre ver como é que ele estava. Uma pouca vergonha!
- Cuidado com o que diz, mãe!
- Acho que ela não foi raptada coisa nenhuma. Acho que ela foi porque quis.
Patrick deu dois passos, plantando-se de pernas abertas diante da mãe. Esta recuou um pouco, assustada com a súbita ira do filho.
- Guarde esses pensamentos odiosos para si mesma. Conheço Elsbeth, sei como ela é. É uma mulher generosa, tão generosa que seria incapaz de deixar um ferido
morrer sem tratamento. Mas essa foi única razão de ter feito o que fez; Elsbeth, mais que qualquer um de nós, tem todos os motivos do mundo para odiar os Carey.
- Ela é mulher - teimou Joan. - E o conde não é de se jogar aos cães, embora seja um Carey.
- Não quero ouvir nem mais uma palavra! - trovejou o escocês, girando nos calcanhares e dirigindo-se para a saída. - Volte para suas costuras e deixe-me em paz.
Estava ainda fazendo perguntas a Hugh quando Ian chegou.
Armstrong tinha um feio talhe na cabeça, que ainda lhe doía terrivelmente. Não precisava fingir indignação; fora vilmente enganado pelos dois ingleses, em quem
depositara confiança. Obviamente precipitara-se em seu julgamento; subestimara o Poder traiçoeiro que se ocultava sob a máscara de simpatia cortesia. Elsbeth, por
sua causa, estava agora correndo perigo de vida. Contudo, ainda suspeitava que um dos dois rapazes que estavam a sua frente era traidor. Por essa razão, Hugh absteve-se
de contar a verdade.
- Quem era esse parente que você trouxe aqui? - perguntou Patrick.
- Para dizer a verdade, nem eu sei direito. O homem veio a minha casa e se apresentou como parente afastado. Disse que precisava de ajuda, que era foragido,
que os ingleses haviam atacado sua família. Contou um monte de coisas tristes. Ora, faz anos que eu não vejo minha gente; achei muito natural não tê-lo reconhecido.
Além do mais, ele usava a faixa do meu clã. Fiquei com dó das misérias que ele desfiou e ofereci-lhe trabalho aqui. Disse a ele que talvez vocês precisassem de mais
um guerreiro e trouxe-o ao castelo para conversar com lady Elsbeth.
- Um espião inglês! - cuspiu Patrick, com ódio.
- Só pode ser isso - concordou Armstrong. - A certa altura, o homem sumiu de vista. Fui procurá-lo, e encontrei-os no estábulo. Lady Elsbeth estava arnarrada.
Puxei a espada e... não sei dizer mais nada. Acho que me atingiram por trás.
- Amarrada? - inquiriu Patrick. - Tem certeza?
- Tenho. A moça é valente, lutou e arranhou como uma gata selvagem. E depois, mesmo amarrada, caiu de pontapés em cima do inglês.
Hugh se consolou pensando que pelo menos essa parte da história era verdadeira.
- Mas e os guardas que vigiavam o quarto?
- Bem, quando me refiz, corri para cima. Achei os dois deitados no chão, dormindo como um par de anjinhos. Drogados, certamente.
A voz de Ian denotava raiva e preocupação:
- Acha que vão fazer mal a nossa prima?
- Não - disse Hugh, depois de pensar um pouco. - Eles podem ser maus, mas não são burros. Sabem que Elsbeth é a única proteção que têm.
- Então... então talvez a soltem logo.
- Um Carey, primo? - sibilou Patrick. - Impossível. Ian deu um soco na mesa.
- Ah, mas eles hão de pagar! E caro, garanto por minha honra!
- Pela minha também, primo - acrescentou Patrick. Hugh estudou os dois homens. A expressão de ambos era igualmente determinada e vingativa.
- Vamos enviar um espião a Huntington - disse Ian.
- De nada adiantaria - opinou Patrick. - Tenho certeza de que Elsbeth não está lá.
- Como assim?
- O administrador inglês não teria outro remédio senão ordenar a devolução de Elsbeth. Caso contrário, ele sabe muito bem que estaremos a um passo da guerra.
Não, primo, Elsbeth não está em Huntington.
- Mesmo assim, um espião pode nos ajudar. Talvez consiga ouvir alguma coisa a respeito de Elsbeth.
- Está bem, Ian, se assim quer. Arranje um espião. Eu, de meu lado, vou fazer umas pesquisas sozinho.
Os primos foram ao pátio, onde se achava reunida uma centena de homens do clã. Todos demonstravam preocupação e disposição para atacar o condado inglês naquele
momento. Depois de conseguir abafar o vozerio, Ian falou:
- Meus bons homens, é preciso cautela nessa situação delicada. Temos de esperar que o inimigo se manifeste, talvez com um pedido de resgate. Nada devemos fazer
por enquanto, ou a vida de lady Elsbeth poderá correr perigo.
- Vingança! Queremos vingança! - gritavam os homens.
Patrick desembainhou a espada e a ergueu no ar. Todos silenciaram diante daquele que admiravam e respeitavam como o melhor guerreiro da fronteira.
- Irmãos, a desforra virá, eu o juro! Mas por enquanto o mais importante é protegermos lady Elsbeth. Tenho certeza que ninguém aqui quer que ela seja sacrificada.
Suplico-lhes que tenham paciência por algum tempo. Mantenham-se alertas, prontos a atender ao meu chamado, que não tardará muito. Agora, vão em paz.
Finalmente os ânimos se acalmaram. Os homens concordaram em esperar, desde que ficassem de prontidão, acampados ao longo da amurada da fortaleza.
Ian e Patrick não puderam descansar da longa jornada; jantaram rapidamente, mudaram de roupa e reuniram-se para placar os próximos passos. Ian iria atrás de
um caçador que já estivera em Huntington e que talvez aceitasse a missão de espionar o condado inglês. Patrick pretendia visitar todos os clãs da fronteira e contar-lhes
o que se passara. A idéia era fazer renascer o velho ódio e aliciar mais gente para ajudá-los a proteger o castelo, pois Huntington poderia vir atacá-lo, em represália
ao seu rapto. Depois de discutirem brevemente o que cada um faria, os dois se despediram e desapareceram na noite.
John Carey estava cada vez mais inquieto. Ele e Simon achavam-se escondidos entre a folhagem havia mais de quatro horas, mas Alex ainda não dera sinal de vida.
A mata permanecia silenciosa e negra.
Fora loucura confiar no escocês, mas agora não podia mais voltar atrás. Tinha de matar o irmão, e de tal forma que a suspeita jamais recaísse sobre ele.
Maldito Alexander! Por que voltara a Huntington?
Depois que ele desaparecera, John planejara cuidadosamente a morte do pai e do irmão mais velho. Afeição era algo que não existia entre eles; tinham apenas a
cobiça em comum.
Na qualidade de caçula, John fora negligenciado e relegado ao segundo plano. Ocasionalmente, o pai aplicava-lhe uma surra quando estava de mau humor. Por outro
lado, o pequeno aprendera a odiar os irmãos, que manejavam bem as armas e cavalgavam ainda melhor. John, por mais que tentasse, nunca conseguira fazer nada disso.
E a inveja começara a corroer-lhe as entranhas.
Quando finalmente William, o morgado, morrera, John começara a acreditar que já tinha o poder nas mãos. Mas Alexander viera e arrebatara-o de suas mãos. Maldito
Alexander!
Mas ele recuperaria tudo, palmo por palmo daquela terra que era sua, só sua. E faria de Huntington o condado mais forte de toda a Inglaterra. Ninguém mais ousaria
incomodá-lo com perguntas sobre a morte do pai e de William.
Mas onde diabos estaria Alex? O escocês havia-lhe prometido que, naquela noite, daria um jeito de fazê-lo escapar da torre. Não havia dúvida; esse seria o caminho
que o irmão tomaria. Enfim, nunca se podia confiar num escocês... Ah, mas depois que Alex estivesse morto, o escocês maldito também o acompanharia ao inferno.
Mais animado com essa idéia, John verificou a pistola novamente. Encontrava-se bem próximo à trilha, e arranjara um lugar onde não havia perigo de errar o alvo.
Se o tiro não fosse fatal, então Simon se encarregaria de dar o golpe de misericórdia. O corpo de Alex seria atirado ao rio que passava ali perto, e cuja cabeceira
ficava nos domínios dos Ker. Assim, quando o corpo fosse bater no pequeno vilarejo mais adiante, todos imediatamente suporiam que Alex fora assassinado pelos Ker.
Era um plano perfeito. Mas, pelo sangue de Deus, onde estava o maldito?
Súbito, ouviu o piar de uma coruja. Enrijeceu: era o escocês que o chamava. Alguma coisa saíra errada.
John devolveu o chamado, mas não saiu do esconderijo até se certificar de que o vulto que se aproximava era o do escocês.
- Onde está Alexander?
O outro soltou uma risadinha desagradável.
- Meu caro ex-futuro conde, nossa rola escapou da prisão ontem à noite. Parece que você está meio atrasado...
A mão de John procurou a espada.
- Você me traiu, seu patife!
- Não. Não tive nada que ver com essa história. Seu irmão fez tudo sozinho, ou então foi ajudado por outra pessoa.
John ficou em silêncio, fitando o outro com olhar esgazeado.
De sua parte, o escocês havia conseguido uma preciosa informação. O conde não tinha voltado para Huntington; soube disso no momento em que viu John Carey esperando
pelo irmão.
- O conde levou milady junto.
- Lady Ker?!
- Exato. Quero-a de volta, John. Tão viva e sã como saiu do castelo.
John absorveu a novidade, digerindo-a penosamente.
- Eles não estão no condado, escocês.
- Sei disso. Seu irmão sabe que correria perigo por lá.
- É, ele não é burro - rosnou John. - Já adivinhou que o resgate não foi pago.
- Onde acha que eles estão?
Os olhos de John reluziram no escuro, lembrando os de um chacal.
- É preciso encontrá-lo de qualquer modo, escocês. Ou estaremos os dois numa enrascada dos demônios.
- Quero milady de volta.
- Isso não me interessa.
- É bom que interesse. Ou faço toicinho de suas banhas.
John estremeceu. Não duvidava da ameaça do outro, nem subestimava o perigo que corria. Se a corte inglesa descobrisse o que fizera, estaria perdido. Por muito
menos vira gente esquartejada e enforcada.
- Ouviu o que eu disse, inglês?
- Ele tem de morrer - repetiu John teimosamente.
- Que morra, não estou nem aí. Mas minha dama não.
- E como é que vamos achá-los?
- Só podem estar escondidos perto da fronteira. Vou começar minhas buscas. Ocupe-se de descobrir qual de seus homens poderia ajudar lord Huntington escondido
de você. Havia alguém envolvido na história. E não era de nosso clã.
John engoliu a nova informação, raciocinando em cima dela. Havia mais de oito anos que Alex deixara o condado. Todos os oficiais de armas tinham sido contratados
depois, pelo pai ou por ele mesmo. Alex não tivera tempo suficiente para obter a lealdade de nenhum deles. A imagem de David Garrick passou rapidamente pela sua
cabeça. David havia servido o irmão, mas estivera trabalhando para outras famílias até recentemente. Além disso, era um mercenário muito bem pago, tão inescrupuloso
quanto ele próprio. A imagem de David foi descartada.
- Então meu querido irmão levou sua dama... Por que teria feito isso? Qual o objetivo dele?
- Quem sabe? Vingança, resgate, proteção, não sei. Mas se alguma coisa acontecer à minha senhora - rosnou, arreganhando os dentes - nenhum Carey escapará vivo
desta história indecente.
Mais uma vez John estremeceu. Seus olhos voltaram-se para o lugar onde Simon esperava. Talvez fosse uma boa idéia despachar o escocês deste mundo. Agora.
Virou-se para dar o sinal combinado, mas no mesmo instante sentiu a ponta dura de uma espada na nuca.
- Em seu lugar eu não faria isso, inglês. Diga a seu homem que saia de lá.
John perdeu a voz, enquanto sentia um fio quente de sangue começando a escorrer devagarinho do pescoço.
- Chame seu homem, vamos!
A ponta penetrou um pouco mais fundo.
- Simon.
O homenzarrão emergiu das sombras lentamente, com relutância.
- Ora, ora! - zombou o escocês. - Quanta confiança entre camaradas, hem? Uma pena eu não cortar seu pescoço branquela agora. Mas quero milady. Ela deve estar
em suas terras, e por isso ainda preciso de você.
John apalpou o ferimento, apertando-o para estancar o sangue.
- Escocês bastardo!
O outro se conteve para não enterrar a espada no peito de John.
- Da próxima vez não será seu pescoço, inglês. Arranco-lhe os colhões fora.
E, antes de dar-lhe as costas, completou com frio desdém:
- Encontre-me naquele lugar daqui a duas noites. Dizendo isso, mergulhou nas trevas densas da floresta.
Capítulo XII
David Garrick separou-se de Alex e Elsbeth um pouco antes da madrugada, depois de ter prometido que viria encontrá-los tão logo pudesse; traria, entre outras
coisas, tinta e pergaminho para Alex escrever uma mensagem.
Elsbeth observou-o afastar-se, sentindo o coração apertado de apreensão e ansiedade. Não que temesse violências físicas da parte de Alex; o que a assustava era
a proximidade do conde. Não confiava em si própria.
Os braços dele envolviam-na com firme gentileza. Qualquer movimento mais brusco do cavalo a levava a encostar-se em Alex, e isso bastava para despertar nela
um anseio desconhecido. Sua pele queimava, nesses breves momentos e depois parecia arder onde ele a tocava.
Por essa razão, esmerava-se em manter o corpo reto, inclinado para a frente, bem afastado do dele. Tinha de lutar constantemente contra a estranha e encantadora
gentileza do conde, pois essa era sua maior inimiga.
Meu Deus, como estava cansada! Seu corpo ansiava por repouso, e mais de uma vez ela se pilhou cabeceando, quase se aconchegando no traiçoeiro ninho. Endireitava-se,
então, disposta a não se deixar render pela exaustão. E logo depois recomeçava a cochilar, e a lutar contra o sono incoercível que a obrigava a fechar os olhos,
por mais que quisesse mantê-los abertos.
- Esta viagem vai durar apenas algumas horas, milady - falou Alexander, com inusitada doçura na voz.
- Aonde vamos?
- A uma cabana de caçador. É rústica, mas pelo menos teremos um teto sobre a cabeça.
Elsbeth lembrou-se da cela onde Alex passara os últimos dias. Olho por olho, dente por dente.
Mas, como se lesse os pensamentos dela, o conde continuou:
- Se eu pudesse, ofereceria coisa muito melhor a milady.
- Com sua presença, até um palácio de ouro seria ruim para mim.
- Sinto muito por aborrecê-la tanto, mas nós dois temos muito o que conversar.
- Engana-se. Não quero conversar com você.
- Pois bem, então basta me ouvir. Eu falarei o tempo todo.
- Não. Também não quero ouvi-lo.
- Você ficará comigo nessa cabana até se resolver a me escutar, Elsbeth. Pouco me importa que isso leve semanas ou meses.
O conde falara com suavidade, mas havia determinação em suas palavras. Elsbeth sentiu o sangue ferver de indignação.
- Cão inglês! Pena eu ter detido a espada de Patrick!
- É um pouco tarde para lamentar isso, milady. Mas sossegue, talvez sua oportunidade apareça de novo. Pode acontecer que ele e eu tenhamos de nos enfrentar de
novo.
- Aposto minha vida nisso. Patrick não é homem de deixar insultos no ar. E é melhor que você na espada, muito melhor.
- Não nego. Contudo, seu primo é mais nervoso que eu, e isso pode ser fatal para ele.
- Patrick não está com o braço machucado. Vencer você, para ele, será como comer um belo pedaço de pudim.
Dessa vez Elsbeth ouviu perfeitamente o risinho irônico que tanto a irritava.
- Talvez meu braço não esteja tão machucado quanto pensa, milady. Quem diz que eu não fingi, para ser bem tratado por uma bela castelã?
Elsbeth corou violentamente, lembrando-se do momento de fraqueza que tivera ao se deixar beijar e acariciar. E alegrou-se por ele não poder ver seu rosto afogueado.
- Tudo o que fiz foi tratar de um cão ferido. Não passei disso.
- Não mesmo, Elsbeth? - sussurrou ele baixinho ao ouvido.
Seu nome soou como uma chuva de pétalas macias tocadas Pelo vento, fazendo-a arrepiar-se da cabeça aos pés.
- Eu... eu odeio você, conde Huntington. Desprezo o chão por onde passa!
- Tanto melhor. Meu trabalho de persuadi-la do contrário será mais interessante.
- Isso é fácil. Basta que me leve de volta ao meu castelo.
- Qualquer coisa menos isso, milady.
De novo as palavras destilavam mel venenoso. Mas Elsbeth não se deixaria levar por essa falsa doçura. Nunca mais.
- Então deixe-me ir a pé.
- Não é esse meu desejo, milady. Estou gostando deste passeio.
- Mas eu não.
- Reservo-me o direito de não acreditar no que diz - disse ele com segurança. - De momento, milady terá de me obedecer, goste ou não goste.
Mais uma vez o conde lembrava-lhe, embora com gentileza, que os papéis haviam se invertido. Elsbeth lembrou-se de como o levara para a prisão, amarrado como
um saco de batatas. Lembrou-se da miserável cela onde o mandara atirar. Lord Huntington retribuía-lhe na mesma moeda, embora com muito menos severidade. O que a
esperava nos dias seguintes? Afinal, esse inglês era... inglês. E podia fazer dela o que bem quisesse. Estava inteiramente em suas mãos. Sentiu uma onda de medo
atravessar seu corpo; não era covarde, mas conhecia as próprias limitações físicas. Suas mãos apertaram o santo-antônio, tensas e nervosas.
Alex, atento ao menor movimento da castelã, adivinhou-lhe a tensão. E logo imaginou qual seria a causa.
- Nada farei que possa magoá-la, milady. Empenho minha palavra nisso. Só quero discutir com você nossa situação. Quero convencê-la de que não pretendo fazer-lhe
mal.
- E para isso me raptou. É um belo começo, milorde.
- Foi o mesmo que fez comigo.
- Minha intenção era outra, não discutir com você.
- Verdade - aquiesceu o conde, com alguma tristeza na voz. - Milady deixou isso bem claro inúmeras vezes.
- Afinal de contas, o que quer de mim?
Alex não pôde responder, porque nem ele mesmo sabia ao certo a resposta. Tentara convencer-se que arrastara Elsbeth consigo a fim de usá-la como isca para atrair
o irmão e o tal escocês traidor. Não inteiramente satis-feito com essa idéia, apresentara a si mesmo outro argumento. Raptara Elsbeth porque ela estaria em perigo
de vida, caso descobrissem que o ajudara a fugir. E, de argumento em argumento, chegara à conclusão de que estava apenas tentando mascarar a única razão de trazê-la.
Na verdade, só queria Elsbeth. Contudo, não era hora de dizer-lhe isso; viva e inteligente como era, Elsbeth saberia tirar partido desse seu ponto fraco.
Calou-se, pois. E para evitar mais perguntas, incitou o cavalo a andar mais ligeiro. O hálito úmido do vento envolveu-os num sopro mais forte, impedindo com
seu zumbido que a conversa prosseguisse.
Era perto do meio-dia quando Alex fez o cavalo sair da trilha e enveredar por uma picada quase imperceptível entre a densa mata. Os ramos das árvores arranhavam-lhes
a pele, quebrando-se com estalidos secos à passagem de Gideon. Finalmente, quando o animal não tinha mais possibilidade de atravessar a mata espessa, Alex o fez
parar e desmontou. Elsbeth também se preparou para descer.
- Não, continue montada, milady - disse Alex, tirando o punhal da cintura.
Com golpes secos e precisos, a faca começou a abrir uma picada rústica e estreita. Huntington trabalhava com habilidade e rapidez; enquanto abria caminho com
a mão direita, com a esquerda puxava Gideon pela rédea.
- A trilha está quase encoberta, mas ainda se pode vê-la -- disse ele, apontando para o chão. - Isso é um bom sinal. Creio que ninguém nos encontrará aqui.
Elsbeth não respondeu. De fato, vinha pensando que nem Ian nem Patrick seriam capazes de localizá-la, e isso a deixava num confuso estado de tristeza, medo e
expectativa. Mergulhada em pensamentos sombrios, nem se dava conta dos inúmeros arranhões que os galhos produziam em seu rosto. Afastava-os do caminho instintivamente,
enquanto sua mente trabalhava em vão, procurando um meio de escapar dali. Mas como? O maldito inglês escolhera o esconderijo mais bem escondido sobre a face da terra.
Depois de uns vinte minutos chegaram a uma pequena clareira. Alex ofereceu a mão a Elsbeth, mas esta, uma vez mais, desdenhou a ajuda. Desmontou, olhando com
desgosto para aquilo que seria sua casa. O desgosto aumentou muito quando Huntington abriu a porta velha e empenada, cujos gonzos enferrujados protestaram com rangidos.
Alex correu os olhos pelo interior da cabana, de coração confrangido. O abrigo era ainda mais rústico do que suas lembranças lhe contavam. O tempo se encarregara
de cavar fendas no adobe grosseiro, feito de argila e palha seca. O chão era de terra nua, forrada de caniços carcomidos. O cheiro de estrume indicava que a cabana
servira de abrigo a animais selvagens.
Huntington suspirou. Escolhera o lugar menos adequado do mundo para conquistar o coração de uma valente castelã. Contudo, não podia se dar ao luxo de arrumar
outro; teria de transformá-lo no santuário de ambos.
- Nós vamos ficar aqui? - perguntou Elsbeth, entre incrédula e indignada.
Alexander sabia muito bem no que ela pensava. A castelã dera-lhe uma cela miserável para viver; o conde agora tirava sua desforra.
- Por pouco tempo, Elsbeth.
A vontade de Elsbeth foi agarrá-lo pelo pescoço, porém suspeitava que, a despeito do braço, o conde poderia facilmente subjugá-la. Além disso, queria preservar
seu orgulho ferido.
- Ainda não lhe dei permissão para me chamar pelo nome, milorde.
- Então por que me trata de você às vezes?
- Porque não lhe devo respeito nenhum.
O sorriso irônico voltou, e Elsbeth de novo se viu curiosa para saber por que ele sempre vinha acompanhado de um toque de melancolia.
Um súbito mal-estar tomou-a de assalto. Encostou-se na porta, sentindo uma estranha tontura. Só então deu-se conta de que estava esgotada. Também, pudera! Há
quanto tempo não dormia? Um riso amargo escapou-lhe da boca, ao se lembrar da razão. Uma noite em claro bancando a enfermeira de Alexander Carey; outra noite em
claro ajudando-o a fugir; e mais outra cavalgando, prisioneira dele. Estúpida, pateta, imbecil.
Levou as mãos ao rosto coberto de frio suor e fechou os olhos. Nesse momento, sentiu as mãos do conde nos ombros.
- Não me toque! - gritou, empurrando-o com violência.
Mas seu coração pedia exatamente o contrário. Exasperada, Elsbeth virou-lhe as costas, ignorando os olhos cinzentos que a fitavam com tristeza.
Quando se voltou, o conde recolhia os caniços do chão.
- Que vai fazer com isso?
- Limpá-los - respondeu ele, com simplicidade.
Elsbeth contemplou a cena estupefata. Nunca vira um homem fazer esse trabalho. Um lorde, limpando excremento? Um conde?
Alex entendeu a surpresa da castelã e sorriu. Dessa vez o sorriso saiu aberto, encantador, enquanto os olhos se iluminavam pela primeira vez depois de muito
tempo. Na verdade, Elsbeth não se lembrava de ter visto os olhos cinzentos e a boca firme sorrirem juntos, em harmoniosa sintonia. Fechou os olhos para se defender
do impacto que sentiu.
Quando se viu sozinha, aventurou-se a espiá-lo pela janela sem vidro. O conde raspava com um graveto cada caniço, e ia alinhando-os ao sol que se filtrava entre
as árvores. Ele podia ter-lhe ordenado que fizesse esse trabalho; era serviço que só as mulheres faziam. Observou-o trabalhar absorto, ajoelhado no chão, dando pouca
importância à terra que sujava as calças. Havia graça e força em cada movimento. Era um prazer vê-lo mover-se de cá para lá, os músculos ondulando como os de um
felino.
Bons deuses, que loucura pensar desse modo! Devia estar planejando a fuga, não admirando o maldito demônio. Relutante, desviou os olhos da janela e correu-os
pelo interior do abrigo. Numa das paredes havia uma espécie de lareira, que ela adivinhou ser o "fogão", encimado por uma chaminé rústica, que perfurava o telhado
de sapé. A única mobília compunha-se de duas cadeiras desconjuntadas e capengas.
Ainda havia alguns caniços no chão, e seu odor era repugnante. Elsbeth hesitou um pouco, mas depois decidiu-se. Abaixou-se e empilhou-os no colo. Se ele, um
conde, podia executar tarefa tão humilhante, então ela, Elsbeth Ker, também podia. Se tinha de passar alguns dias ali, o melhor remédio seria amenizar as provocações
dessa estada o mais possível. Até que conseguisse fugir.
Fugir...
Os olhos cinzentos fitaram-na atônitos quando a viram sair da cabana equilibrando a pilha de caniços. Alex nada disse, mas sorriu de prazer e aprovação. Foi
o quanto bastou para que Elsbeth trabalhasse com mais afinco.
Quando terminou, ficou consternada ao constatar que parte da sujeira dos caniços viera instalar-se, sem cerimônia, na saia do vestido que, aliás, achava-se manchado
e amarrotado desde a véspera. O casquete que lhe prendia os cabelos se perdera havia muito, e agora os cachos caíam em cascata sobre os ombros, perdendo-se entre
as dobras do vestido. Não tinha sequer um pente para arrumá-los. Elsbeth não era vaidosa, mas gostava de asseio e ordem. E, pela primeira vez na vida, sentiu-se
insegura e feia.
- Estais bela, lady Elsbeth.
Ela ficou surpresa. Era a primeira vez que o conde a tratava como devia um verdadeiro cavalheiro; pensara mesmo que ele nunca lhe daria esse gostinho. Mas não
o trataria por vós; seria demais. O inglês não merecia seu respeito, como ela mesma frisara. Contudo, sentiu uma ponta de saudades do jeito delicado e gentil com
que ele a tratava de você.
- Não é preciso tratar-me por vós - disse, sem entender por que o fazia. - Basta não se esquecer de meu título.
Envergonhada pelo que julgava ser mais uma fraqueza de sua parte, Elsbeth curvou-se sobre os caniços. O maldito inglês adivinhara, mais uma vez, seu pensamento.
Percebera sua insegurança e consternação quando vira o vestido sujo e amarrotado. Era um bruxo, o demônio.
Precisava fugir dali. Precisava. Quase inconscientemente, procurou Gideon com os olhos, mas não o viu por perto.
- Gideon está escondido, milady - disse Alex, com o olhar travesso. - E se aceita meu conselho, não se afaste mais de dez metros do abrigo. Há javalis nesta
floresta, como sabe. Sem falar nos outros perigos.
- Como você, por exemplo - observou ela, louca da vida por ele ter lido, mais uma vez, seu pensamento. - Prefiro a companhia de um leão à sua.
- Ah, doce senhora! Por mais doce que seja, porém, prometo-lhe que não vou tentar comê-la de sobremesa, como faria um leão.
- E por que tenho de acreditar no que diz?
Ele a examinou de alto a baixo, aprovativamente.
- A bem da verdade, milady parece ser... apetitosa, digamos assim. Mas estou um tanto cansado; asseguro-lhe, que milady estará a salvo desta fera que lhe fala...
por enquanto.
Elsbeth ergueu-se, furiosa.
- Não quero ficar aqui! - gritou, em desespero.
- Não tem escolha, milady. Eu não gostaria de amarrá-la, mas não hesitaria em fazê-lo, caso fosse necessário.
A voz de Alex tornara-se ríspida.
- Basta-me sua palavra, milady. Diga que não tentará fugir.
- Eu não confio na sua palavra. Mesmo assim confiará na minha?
- Tenho mais fé na bondade humana que milady.
- Milorde...
- Alex. Prefiro que me chame pelo nome.
- Mas eu não.
- Milady não me respondeu.
Elsbeth sentiu-se confusa. Mas, afinal, não era isso o que sempre acontecia quando trocava palavras com esse maldito inglês?
- Sua palavra. Aceitarei sua palavra - explicou ele, com ar de quem ensinava a lição a uma garotinha teimosa.
- Não!
- Então terei de amarrá-la junto a mim, para eu poder dormir sossegado - decidiu ele, com evidente prazer.
Elsbeth fitou-o aterrada. Ondas de calor começaram a correr pelo seu corpo, só de se imaginar deitada ao lado dele. Amarrada a ele. Junto dele.
- Patife! Você não faria isso!
Alex arqueou as sobrancelhas. Foi o bastante para Elsbeth saber que ele estava pensando naquela noite, no quarto de Patrick.
- Você estava doente - disse, na defensiva.
- E milady estava bem mais dócil - respondeu o conde, gentil de novo.
As repentinas e bruscas mudanças de comportamento do inglês a desnorteavam, tiravam-lhe toda e qualquer segurança que porventura tivesse.
Resolveu não responder. Envergonhava-se do modo como sucumbira aos encantos dele naquela noite. Contudo, e estranhamente, não se arrependia do que fizera. Nem
um pouco.
- Milady deve estar cansada - disse Alex com doçura, tocando-lhe de leve o rosto.
Elsbeth desviou o olhar. Alexander Carey era como Proteus, o deus grego capaz de assumir qualquer forma para escapar de quem quisesse capturá-lo e conhecer seus
segredos. Não podia e não queria confiar nesse homem, especialmente quando se mostrava terno e gentil.
Sem dizer mais nada, Alex deu-lhe as costas e embrenhou-se na floresta. Pouco depois voltou, trazendo a manta do cavalo nos braços. Elsbeth perscrutou a floresta,
franzindo a testa.
- Gideon não está escondido ali, milady. Por favor, não tente fugir com ele. É um cavalo bravio, e ainda não foi domado de todo. Pode ser muito perigoso.
- Não mais que você.
- Já lhe disse mais de cem vezes, mas vou repetir... não pretendo lhe fazer mal nenhum. Gideon pode machucá-la, para não dizer coisa pior.
Em silêncio, Elsbeth apontou para o pescoço, no local onde Alex a havia golpeado no estábulo.
- Peço-lhe desculpas por isso. Foi necessário, milady.
- Milorde pede desculpas por tudo. Depois que faz o que quer.
Os olhos cinzentos ensombreceram uma sombra de nuvem escura. Elsbeth gostaria de poder entender as misteriosas mudanças de cor daqueles olhos, mas descobrira
que poucas pessoas conseguiam dissimular os próprios sentimentos como esse homem perturbador.
A mão dele parecia feita de veludo quando tocou no local atingido.
- Acredite, milady, foi a coisa mais difícil de fazer em toda a minha vida.
Ah, como ela gostaria de não acreditar! Elsbeth queria insultar, odiar, desprezar. Contudo, quando ele a tocava daquele modo, com tanta ternura, não havia como
duvidar de sua sinceridade. Involuntariamente, lembrou-se de tudo o que fizera contra o conde - a emboscada no lago, a humilhante jornada ao castelo, a cela miserável
que lhe dera. Engoliu em seco, para dissolver o nó que se formara na garganta. E afastou-se de Alex, para que ele não lesse em seus olhos a tristeza que sentia.
Tomando aquele gesto como de rejeição, o conde curvou os ombros, sentindo-se vencido. Elsbeth fora sentar-se sob uma árvore, o belo rosto virado para o outro
lado.
Não havia mais o que fazer; tentara de todas as maneiras ganhar-lhe a confiança, mas fora tudo em vão. Na verdade, Elsbeth Ker havia-o ajudado e, em troca, recebera
um golpe na cabeça, um rapto, uma jornada interminável e cansativa. E viera dar naquela cabana miserável e malcheirosa, mil vezes pior que a cela da torre. Era natural
que ela o odiasse. Mas como esse ódio doía, grande Deus.
Com a morte de Nadine e Henri Marchand, e depois dos anos cruéis que havia passado nas galés, Alex chegara a acreditar que estava livre para sempre da dor. Mas
sentira dor com a traição do irmão, e agora sentia mais pungente diante da rejeição de Elsbeth.
Um vazio profundo e avassalador apossou-se dele quando pensou no futuro sem calor, sem consolo e cheio de ódio, desconfiança e guerras constantes. Sonhara com
paz, com uma vida diferente, no entanto só conseguira aprofundar a solidão.
Não sabia onde encontrar uma ponte que o levaria a Elsbeth. Contara com seu poder de persuasão, contudo dessa vez falhara. A castelã jamais o ouviria.
E ele não suportava mais a eterna acusação que via nos olhos dela. A máscara ironia que costumava usar não era mais que uma tênue camada de verniz, reconhecia-o
agora. Sentia-se tão vulnerável quanto o fora na mais tenra infância. Talvez até mais. Subitamente, teve a certeza de que a dor que sentia agora era a mais forte
de quantas tivera. Passara toda a vida ao largo do amor, mas naquele instante achava-se faminto de sua luz.
Louco!
Não havia como forçar Elsbeth Ker a escutar, a confiar, a entender. Como ela mesma dissera, suas palavras contradiziam seus atos. O melhor a fazer era livrar
a castelã daquele martírio infinito, que não os levava a lugar algum. Talvez assim, ela acreditasse em suas boas intenções.
Entretanto alguma coisa lá no fundo dizia-lhe para esperar um pouco. Mais um dia só, e talvez...
Talvez ela o fitasse do mesmo modo que naquela noite, no quarto de Patrick. Era um fiozinho tênue de esperança ao qual precisava se agarrar. Mas era melhor que
nada.
Voltou os olhos para a árvore. Lady Elsbeth Ker ainda estava lá, agora de olhos fechados. Parecia jovem e vulnerável, o rosto lanhado pelos galhos, o nariz manchado
de terra. O vestido, amarrotado e enlameado, contrastava com as longas mechas vermelhas, brilhantes como o pôr-do-sol. As linhas duras do rosto desdenhoso haviam
cedido lugar a curvas harmoniosas e bem-proporcionadas. Alex admirou-lhe a beleza, a valentia, o orgulho. Sem se conter, aproximou-se e pôs um joelho no chão, em
atitude de adoração. Tomou um dos cachos entre os dedos, acariciando-o com volúpia.
Elsbeth, semi-adormecida, percebeu a presença do conde pelo aroma característico do corpo cheio de virilidade, um aroma mesclado de couro, terra, vento. Forçou-se
a fingir que dormia, mesmo quando em que sentiu a mão de Alex nos cabelos. E continuou de olhos fechados quando ele a tocou de leve no local onde fora atingida duramente
pela mesma mão, agora macia e aveludada.
- Durma bem, minha senhora - ouviu. - Durma bem, moça bonita.
Elsbeth teve vontade de abrir os olhos, mas, para sua surpresa, não conseguiu. Estava muito cansada. Tão cansada... Podia sentir os raios do sol aquecendo-lhe
as mãos. As palavras do conde ainda ressoavam em seu coração, fazendo-o derreter-se. Alex não estava fingindo, não dessa vez. E falara com tanto abandono, tanta
tristeza... e tanta esperança. Uma sensação de satisfação encheu-lhe a alma. A raiva esvaiu-se, dando lugar a algo gostoso e quente. Devagar, sentindo-se protegida
pela presença do conde, deslizou para um sono profundo, embalada pela imagem do rosto que lhe sorria, irônico, dos olhos que a fitaram com carinho.
Quando acordou, Alexander não estava à vista. De um salto pôs-se de pé e foi inspecionar a cabana. Vazia.
Elsbeth olhou para cima. O céu nebuloso já principiava a escurecer. O silêncio cercava-a com sua mortalha sinistra. Havia uma certa hesitação no ar, um quê de
interrupção da vida.
Onde estava Alex Carey? Teria ido embora?
Nesse momento, percebeu que estava só e livre, embora uma estranha angústia a assaltasse: Angústia por quê, se estava livre?
Não era hora de se analisar. Tinha de aproveitar a ocasião; era agora ou nunca. Nervosa, começou a unir os pensamentos que lhe vinham em fragmentos. Estava num
lugar totalmente desconhecido, mas tinha certeza de que a essa altura já havia gente em sua busca. Poderia orientar-se pelo sol; seguiria para o norte. O aviso de
lord Huntington fora claro, porém, e ela hesitou ainda. Mas lembrou-se das estranhas sensações que experimentava a seu lado e convenceu-se de que elas representavam
um perigo maior que qualquer outro. Precisava fugir, antes que traísse tudo o que mais amava e compreendia.
Reuniu toda a coragem e embrenhou-se por entre as árvores, rezando para conseguir afastar-se o mais possível da cabana antes que a primeira estrela surgisse
no céu.
Embora ainda estivesse cansada, forçou os pés a correrem o mais que podiam. A floresta era fechada e ameaçadora, mas se encontrasse uma trilha rumo ao norte,
a empreitada não seria tão difícil. Corria, escorregava, levantava-se, corria de novo. Sobre sua cabeça as copas se adensavam, ameaçadoras. Elsbeth nunca fora medrosa;
seu pai ensinara-lhe que os medrosos jamais sobreviviam. Quando criança, perdera-se inúmeras vezes nos recônditos da fronteira, mas nunca sentira medo.
Contudo, à medida que a noite descia, as garras frias do Pânico começaram a oprimir seu peito. O piar lúgubre de uma coruja feriu os ares, como que a avisá-la
de perigos insondáveis.
Bom Deus, que fizera? De repente, o rumor de folhas pisadas petrificaram-na. Seu coração deu um salto mesmo antes que ela visse os olhos brilhantes e assustados
de uma lebre. Como duas estátuas de pedra, os olhos fixos uma na outra, ficaram em expectativa amedrontada por alguns instantes. Depois, como um raio, a lebre se
voltou e sumiu de vista.
Elsbeth sentiu os joelhos fraquejarem. Queria voltar, mas não sabia mais o caminho. A noite começava a ficar mais fria, e as nuvens se acumulavam, prenunciando
chuva. Mas quando quis prosseguir, viu que não tinha como. Não havia mais sol; as nuvens escondiam a lua e nenhuma estrela luzia para orientá-la. A sua volta, apenas
a mortalha da noite negra e vazia.
Frio. Estava ficando com tanto frio, santo Deus. E fome. E cansaço. Encostou-se numa árvore, com medo de seguir adiante. Nem sabia se estava longe da cabana.
Que o senhor se apiedasse de sua alma!
Alexander Carey, lord Huntington. Era dele que mais precisava no momento. Quanta ironia! Ela, Elsbeth Ker, líder do clã mais poderoso da região, precisando do
seu pior inimigo!
Deixou-se sentar e ficar mais algum tempo, mas o frio úmido insinuava-se fazendo-a gelar até os ossos. Precisava continuar andando para não morrer enregelada.
Esforçando-se, pôs-se de pé e tentou se orientar pelo instinto, rio ainda depositava alguma confiança. Sabia, entretanto, que os melhores mateiros podiam se perder
numa noite sem lua.
A chuva começou a cair, misturando-se às suas lágrimas. Por que acreditara que encontraria uma trilha? Durante todo o tempo procurara desesperadamente por uma,
em vão. Só encontrara urtigas que lhe feriam os pés. Havia cortado o rosto e as mãos com cortado os galhos pontudos, e agora os ferimentos começavam a sangrar. Forçou-se
a seguir e começou a cantarolar em voz alta para espantar o medo.
Nesse momento, ao dar mais um passo, sentiu o pé afundar-se em algo escuro e pegajoso. Assustada, tentou livrar-se da lama. Perdeu o equilíbrio e caiu, o corpo
tombando pesadamente sobre o lodaçal. Elsbeth esticou as mãos, tentando desesperadamente agarrar-se ao galho de uma árvore. Sentia-se puxada para baixo, cada vez
mais para baixo. Finalmente, soluçando e cuspindo lama, conseguiu segurar-se num galho novo.
Caíra num atoleiro de areia movediça. Desesperada, agarrou-se com mais força ao galho, firmando os dedos arranhados contra a madeira áspera. A areia puxava-a
de mansinho, traiçoeiramente macia.
Um pânico brutal apossou-se dela quando o galho, incapaz de agüentar a carga inesperada, vergou-se, enquanto a areia começava a engolir seu corpo lenta, inexoravelmente.
Elsbeth gritou. E gritou. E gritou.
Capítulo XIII
Convencido de que Elsbeth dormiria a tarde toda, Alex decidira preparar armadilhas nas imediações da cabana, utilizando-se de algumas cordas que David lhe dera.
Preocupava-se com a alimentação; havia apenas um pouco de aveia e pão que o previdente amigo colocara no embornal.
Planejara colocar as armadilhas perto do abrigo, mas depois pensara melhor; Elsbeth poderia se machucar inadvertidamente. Assim, afastou-se um pouco e pôs mãos
à obra. Quando terminou a segunda, notou que o crepúsculo se aproximava. Resolveu então voltar; deixaria a terceira para o dia seguinte. À idéia de rever Elsbeth,
seus passos ganharam mais leveza e rapidez.
Mas, ao chegar à clareira, o silêncio envolveu-o num manto de sinistra apreensão. Nem precisou ir até a cabana para ter certeza. Elsbeth fugira.
Correu para Gideon, sem sequer se dar ao trabalho de arreá-lo. Agarrando-se à crina do animal, montou ligeiro, sem saber por onde começar a busca.
De que lado ela seguira, bom Deus?
Para o norte, talvez. Elsbeth tentaria se orientar pelo sol, a louca! A noite não tardaria a descer, e Alex sabia que não haveria lua. Talvez até chovesse.
- Vamos, Gideon. Nunca precisei tanto de você como agora, meu amigo - disse, com voz estrangulada. - Que Deus me ajude. Para o norte!
As sombras da tarde logo se fecharam em noite espessa. Alex fazia o cavalo andar em círculos cada vez maiores, examinando com ansiedade cada centímetro do chão
em busca de algum sinal, alguma pegada, um fio de cabelo que fosse. Esporadicamente desmontava e inspecionava os arbustos, galhos quebrados, folhas caídas. Caíram
os primeiros pingos de chuva gelada. Elsbeth congelaria, se não fosse encontrada logo; o vestido pouco a protegeria.
Prosseguiu obstinadamente, não querendo admitir que seria quase impossível achá-la naquela floresta desconhecida e pouco hospitaleira. Pânico e desespero instalaram-se
no fundo de sua alma. Elsbeth, minha Elsbeth! Era só isso que pensava.
Súbito, puxou a crina de Gideon, fazendo-o parar. Ouvira alguma coisa, parecia um grito vindo de longe. Esperou alguns segundos, todos os sentidos em nervoso
alerta. Novo grito, desta vez mais claro.
Alex soltou um brado selvagem de vitória e alívio, enquanto lágrimas quentes começaram a correr-lhe pelo rosto tenso. Fustigou as ancas de Gideon com desespero,
sabendo que de nada adiantaria; a floresta era densa demais para correr. Mas o valente animal sentiu a ansiedade do amo e estugou o passo. Orientavam-se pelos gritos,
cada vez mais fracos e espaçados. O pântano! Alex conhecia-o bem demais. Certa vez tivera de observar, impotente, as areias engolirem um indefeso veadinho. Seu peito
parecia estourar.
- Vou indo, Elsbeth! - murmurava Alex baixinho, quase soluçando. - Coragem, minha pequena!
Mais um grito soou perto, desesperado.
- Elsbeth! - gritou entre lágrimas.
A resposta veio no instante seguinte, num eco aflito.
- Alexander!
- Continue chamando, Elsbeth! O mais forte que puder! - pediu ele, em meio ao barulho da chuva que o cegava.
Mas Gideon parou. Não havia como continuar em meio ao cipoal que sé adensava. Alex desmontou.
- Espere-me aqui, amigão. Não tenho como amarrar você, mas confio na sua lealdade.
À medida que se aproximava do pântano, Huntington tinha de testar o terreno passo a passo. Aquilo o enervava, mas era necessário. Os chamados de Elsbeth agora
eram quase sussurros roucos entrecortados pelo vento.
Finalmente avistou um vulto na beira do pântano, cujas areias tinham o brilho enganoso de água calma. Elsbeth estava atolada até a cintura, as mãos agarradas
a um ramo perigosamente vergado, próximo da margem.
- Elsbeth! - ecoou ele. - Tenha calma agora. Vou tirá-la daí, está me ouvindo?
No meio da chuva e dos vapores emanados do pântano, Alex divisou a cabeça de Elsbeth voltada para ele.
- Você está perto da margem, pequena. Não será difícil, mas precisa agüentar firme mais um pouco. Certo?
Ela assentiu com a cabeça.
Alex testou o chão cuidadosamente. Quando encontrou um ponto firme, passou o braço direito no tronco de uma árvore, enlaçando-o firmemente. Estendeu então a
mão esquerda, quase conseguindo alcançá-la.
- Largue o galho e pegue minha mão!
Mas as mãos de Elsbeth recusavam-se a deixar a única âncora que lhe restava.
- Coragem, pequena - disse ele, com gentileza. - Você consegue!
A voz parecia tomada da mesma mágica persuasão que sempre a compelia a acreditar nele. Elsbeth tomou alento e largou o galho, buscando desesperadamente a mão
salvadora, que se apertou em volta de seu pulso com firmeza.
- Agora a outra mão, Elsbeth. Segure com força em meu braço.
Soluçando, ela obedeceu. O braço de Alex, molhado de chuva e lama, estava escorregadio. Depois de algumas tentativas, Elsbeth conseguiu firmar-se, enquanto ele
começava a puxá-la. Ela sentiu o visgo do pântano atraindo para baixo seus pés, suas pernas, numa voragem infernal, até que o corpo pareceu rasgar-se em dois. Devagar,
com exasperante lentidão, o pântano começou a render-se. Centímetro a centímetro, foi deixando que a presa escapasse.
Finalmente, Elsbeth viu-se livre do pesadelo. E desmoronou nos braços de Alex, semidesfalecida.
- Graças a Deus - murmurou ele.
Estava fraca demais, assustada demais para responder. Os braços de Alex ofereciam-lhe um paraíso de conforto e proteção. Durante a jornada, ela se recusara a
deixar-se envolver por eles, mas agora abandonava-se sem reservas ao seu aconchego. Seu corpo tremia em convulsões de frio e soluços, numa reação própria do alívio
depois de horas de terror.
- Está tudo bem - murmurou ele, embalando-a como a uma criança. - Você está comigo agora. Graças a Deus a encontrei.
Ela se aconchegou mais. O ressentimento e a raiva perderam-se em imensa gratidão, em intenso desejo de sentir o calor do homem que a salvara. Estremeceu mais
uma vez. Alex apertou mais o abraço, como que tentando transmitir calor e força. Elsbeth deixou-se embalar, sem se lembrar do abismo que os separara até então. Alex
beijou-lhe a testa com suavidade, com infinita ternura.
- Vamos, Elsbeth. Preciso aquecê-la.
Dizendo isso, suspendeu-a no colo. Elsbeth repousou a cabeça no ombro daquele que, pouco antes, era seu maior inimigo.
Gideon não desapontara o dono; esperava-o no mesmo lugar, e seus grandes olhos pareciam quase humanos quando o viram chegar.
- Acha que consegue ficar de pé sozinha, Elsbeth? - perguntou o conde.
Ela anuiu, alheia à chuva que continuava a açoitar sem tréguas. Sim, ficaria de pé sozinha, nem que isso fosse a última coisa que faria.
Alex depositou-a no chão com cuidado. Depois saltou agilmente para o lombo de Gideon, baixou os braços e ergueu Elsbeth como se ela fosse uma pluma, acomodando-a
na frente.
- Encoste-se bem em mim, Elsbeth. Você está gelada.
Ela sorriu. Alexander Carey não precisava ter pedido; seu corpo ansiava pelo dele. O que antes recusara com teimosia. Estava cansada demais para pensar. Por
ora queria usufruir do calor e da proteção de Alex.
Não demorou muito para chegarem ao abrigo que agora lhe pareceu um palácio acolhedor. Mais uma vez viu-se carregada pelos braços potentes, e deixou-se levar
em dócil silêncio Para dentro da cabana. Notou que Alex forrara o chão com °s caniços, agora limpos. O conde deitou-a sobre eles, ajeitando as dobras de seu vestido.
Depois começou a esfregar dois Pauzinhos, um no outro, até conseguir fogo. Admirada, Elsbeth viu que ele havia arranjado troncos e galhos secos durante a tarde,
certamente enquanto ela dormia. Num instante, o fogo crepitava na lareira e Elsbeth aproximou-se dela, em busca de calor.
Olhou para o inglês que tanto tumulto causara em sua vida. O rosto, recortado contra as chamas tinha a força e determinação de uma escultura em pedra. Fitava
o fogo como que hipnotizado, mergulhado em meditação.
Elsbeth voltou a atenção para o vestido, horrorizada. Ele se reduzira a um trapo, coberto de lama escura. Imaginou que seu rosto estaria igual, bem como os cabelos.
Tentou alisá-los com os dedos, mas as mechas estavam coladas com lama seca. Como fariam no dia seguinte, com aquelas roupas imprestáveis, nem sequer conseguia imaginar.
Bom Deus, que fizera?
Tinha vontade de que a terra a tragasse. Observou com atenção o perfil voluntarioso do homem que ocupava agora o centro de sua vida. Um pequeno músculo, logo
abaixo do olho esquerdo, tremia quase imperceptivelmente. Elsbeth sabia que ele lutava para se controlar.
Por quê? Raiva e decepção, certamente. Mas, por estranho que fosse, não sentia medo; apenas um imenso vazio no coração, como se o tivessem arrancado do peito.
Alex devia desprezá-la, tanto quanto ela o desprezara antes. Fora humilhado e maltratado em suas mãos.
Em troca, o conde inglês salvara sua vida, arriscando a própria sem pensar duas vezes. Oferecera, sem pestanejar, a vida de um Carey em troca da de uma Ker.
Um movimento em falso naquele pântano sinistro seria o suficiente para matá-lo. Elsbeth sentiu uma onda de vergonha, profunda, insidiosa. Desde o começo adivinhara
que havia algo de bom no caráter desse Carey, mas obrigara-se a se convencer do contrário. Forçara-se a odiá-lo, contra todos os seus instintos.
Uma lágrima começou a deslizar lentamente, formando uma trilha na lama escura que lhe cobria o rosto. Nesse momento, Alex virou-se para ela. Instintivamente,
Elsbeth ergueu a mão para limpar a lágrima, mas ele se ajoelhou e deteve seu braço no meio do caminho. E, delicadamente, tomou-lhe o rosto com ambas as mãos, fitando-a
com olhos brilhantes, também marejados de lágrimas.
Nenhuma palavra foi trocada. Alex enxugou suavemente o rosto de Elsbeth, passando de leve o dedo na trilha úmida. Depois estendeu-lhe a manta que tirara do cavalo.
Ela aceitou de bom grado, pois ainda sentia muito frio, e enrolou-se no tecido grosseiro.
- Tire o vestido - disse ele, o meio sorriso já armado diante dos olhos arregalados de Elsbeth. - Não se aflija, lady Elsbeth, eu espero lá fora. Mas não deixe
de tirar essa roupa molhada, porque não estou preparado para cuidar de uma pneumonia.
Dizendo isso, Alexander virou-se e abriu a porta. A chuva caía torren-cialmente, formando uma cortina em volta da cabana.
- Não saia! - gritou ela, sem pensar.
O conde parou, a mão hesitando no trinco enferrujado.
- Preciso ver como está Gideon - disse, sem se voltar. E desapareceu na chuva.
Elsbeth livrou-se do vestido imundo com alívio. Depois enrolou-se na manta e sentou-se ao lado do fogo, sentindo-se miseravelmente sozinha e infeliz. Preocupava-se
com Alex sob a forte chuva, e ao mesmo tempo se surpreendia por se preocupar com alguém que ela mesma seqüestrara. Lembrou-se da primeira vez que o vira, de seu
olhar insolente e de sua dignidade altiva, a despeito das mãos atadas nas costas.
Quando doente, Alex chamara por Nadine. Quem seria? A idéia de que se tratasse de uma amante era-lhe intolerável, agoniante.
Subitamente, Elsbeth deu-se conta de que estava com ciúme. Um ciúme possessivo e feroz.
"Meu Deus, estou apaixonada!"
Mal conteve o grito, sufocando-o na garganta. Jamais poderia deixá-lo perceber, de forma nenhuma. Enovelou-se na manta, aproximando-se do fogo o mais que podia.
Tentaria dormir. E sonharia com o único homem do mundo que desejava, mas que não podia tomar como marido.
Acordou com o som de vozes, mas manteve os olhos fechados, os sentidos alertas. Logo reconheceu a voz de David Garrick.
- Trouxe pergaminho, tinta, algumas peles... Acho que não me esqueci de nada.
- E meu irmão?
- Num mau humor dos diabos, embora ninguém saiba por quê. Na minha opinião, ele já sabe o que aconteceu. Deve ter se encontrado com o Ker traidor.
- Ele não suspeita de você, Davey?
- Que nada. Devo ser um ótimo ator - riu Garrick. - Ele nos reuniu e advertiu-nos que havia bandidos perigosos nas redondezas, ordenando que não hesitássemos
em matar qualquer desconhecido. Simon sumiu do condado; provavelmente anda atrás de vós.
- Já disse, David, não me trate por vós. Você é meu amigo, agora mais que nunca.
- É o costume, amo.
- Amo?! Você não se corrige, meu velho!
Os dois riram, em franco entendimento, levando Elsbeth a invejar essa amizade profunda, rica de bons eflúvios.
- Que desculpa deu para deixar o condado?
- Caça. Por falar nisso, preciso achar um veado no caminho de volta. Não quero dar margem a suspeitas.
- Não há muitos por aqui, mas perto do rio será mais fácil.
- E... e lady Ker, como está?
- Bem. Tentou fugir e quase morreu no pântano, ontem à noite.
- Cuidado, amo... Alex. Acha que pode segurá-la aqui por algum tempo?
- Posso, mas não quero mais. Elsbeth tentará fugir de novo, estou certo. Não quero ser responsável pela morte dela.
Houve um silêncio curto, seguido do barulho de passos se afastando. A conversa recomeçou, mas as vozes estavam mais distantes.
Elsbeth levantou-se sem ruído e colou o ouvido na porta. Tinha certeza de que os dois falavam dela.
- É uma mulher valente, heim? Escocesa danada, essa.
- É - foi a curta resposta de Alex.
- Que pretende fazer com ela?
-Devolvê-la em segurança.
E logo. Houve um silêncio mais prolongado.
- Tem certeza, meu senhor? Lady Ker seria uma excelente isca para apanhar os dois tratantes.
Elsbeth empertigou-se, furiosa. Estava sendo usada de novo. Malditos bastardos!
- Mudei de idéia, Davey. Elsbeth não confia em mim, e eu não estou disposto a arriscar sua vida. Nós, os Carey já fizemos mal o bastante para o clã que ela chefia.
E eu também já a atormentei demais.
- Mas é o único modo de conseguir apanhá-los, milorde.
- Acharemos outro caminho.
- Está bem, milorde manda. Que vai fazer então?
- Antes de mais nada, enviá-la de volta ao castelo. Por intermédio daquele escocês, como se chama? Armstrong.
- Milorde...
- David, basta. Pensei longamente no caso e já me decidi.
- Mas...
- Não posso depender de uma mulher, David.
- Uma pena ela ser escocesa, milorde. E, ainda por cima, da família Ker.
De novo veio um silêncio carregado.
- Talvez haja um meio de acabar com essas brigas insanas, David.
- Milorde!
- Eu sei, eu sei. É uma esperança duvidosa, mas vale à pena tentar. Primeiro, tenho de cuidar de meu irmão.
- E o traidor do lado de lá?
- Por enquanto, nada posso fazer quanto a isso. Elsbeth jamais acreditará que um dos primos é traidor. Principalmente através de mim.
- Mas se deixá-la ir, pode ser que ela nunca venha a saber dessa trama indecente.
- Não adianta insistir, David. Não vou segurá-la à força aqui, isso é contra todos os meus princípios. Diabos, homem, eu acabo de escapar de uma prisão fedorenta,
e senti na pele exatamente o que ela está sentindo agora. É uma mulher de valor, e não merece o que está recebendo de mim.
- E milord, quanto tempo pretende ficar por aqui?
- Ainda não sei. O suficiente para provocar uma apoplexia em meu irmão, acho.
A risada de Alex soou amarga e melancólica.
- De qualquer modo, ainda ficarei escondido por uns tempos. Este abrigo é perfeitamente seguro. Enquanto isso, pode ser que John cometa algum deslize. Ele está
por demais envolvido, e terá de se encontrar com o outro judas, queira ou não queira. Muita coisa está em jogo agora.
- Por que não vai a Londres?
- É uma idéia - anuiu Alex, depois de algum tempo. - Não posso acusar meu irmão sem provas, mas Northumberland ficará sabendo das atrocidades que são cometidas
neste lado do mundo. Além disso, preciso impedir John de invadir a Escócia, e se não estou enganado, é precisamente isso que ele tem em mente. Usará,meu desaparecimento
como pretexto. E eu não quero que nada aconteça aos Ker.
- É muito generoso, Milorde - falou Garrick, a voz cheia de admiração. - Eles o teriam matado sem hesitar.
- Têm lá suas razões. Minha família causou muitos estragos à deles; é natural que me odeiem.
O coração de Elsbeth se confrangeu ao ouvir mais uma risada amarga. Alex continuou:
- Pelo menos o ódio dos Ker é direto, sem subterfúgios. Bem diferente do ódio que meu irmão tem de mim.
- Os Ker não conhecem milorde direito.
- Nem querem conhecer. Sou um Carey, e para eles isso é mais que suficiente.
- É assim que tem sido, desde o começo do mundo, milorde. Não há saída.
- Demônios, David, estou tão cansado disso tudo! Ódios, vinganças, violência. Houve um tempo em que cheguei a acreditar que poderia pôr um ponto final nessas
brigas intermináveis. Santa ingenuidade!
Toda a arrogância se fora da voz de Alex. Elsbeth só percebia cansaço em seu tom. E se antes não quisera acreditar em suas intenções, agora acreditava, com todas
as forças da alma.
As vozes elevaram o tom, falando despreocupadamente sobre os alimen-tos que David trouxera. Elsbeth percebeu que eles iam entrar e, rapidamente, voltou a deitar-se.
Dentro em pouco, com efeito, o conde entrava na cabana, seguido do amigo.
Ela ficou imóvel, enquanto sua mente entrava num turbilhão de pensa-mentos. Mal podia acreditar no que ouvira. Alexander Carey preocupava-se mais com o clã Ker
do que com a própria vida.
Ouviu os dois amigos se despedirem com carinhosa afeição, ouviu David gritar mais um adeus de longe. Quando o ruído dos cascos se distanciou, abriu vagarosamente
os olhos. Alex, sentado numa cadeira, observava-a atentamente. Ele sorriu.
Elsbeth mantinha-se enrolada na manta. Seu vestido jazia no chão, no mesmo lugar em que fora deixado na véspera. Huntington, de sua parte, trajava calças de
couro e uma camisa de lenhador. Tinha a aparência de um trabalhador rude e afeito à lide do campo.
- Tenho fome, milorde. Pretende me matar de fome? - disse ela, forçando secura no tom de voz.
- Não. Mas penso que devia se vestir primeiro.
Elsbeth olhou para o vestido com repugnância. Ele assumiu um ar moleque.
- David trouxe um vestido da mulher dele. Previdente, o nosso amigo.
Alex saiu por alguns minutos, retornando com um vestido simples, mas limpo.
- Obrigada - disse ela, timidamente.
Pensava agora no rosto sujo e nos cabelos. Mais tarde cuidaria deles.
- Precisa de ajuda?
- Não!
Ele riu diante da veemência, mas se absteve de fazer maiores comentários. Apanhando o punhal, colocou-o na cintura e saiu.
Instantes depois, Elsbeth estava vestida. Rasgou uma tira do vestido velho e com ela limpou o melhor que pôde o rosto. Devia estar um lixo, com os cabelos emplastrados
daquele jeito.
Por fim, abriu a porta e saiu. Era um dia claro, muito azul, enfeitado por fofas nuvens de algodão. O sol tingia de tons cítricos o horizonte, indicando que
à tarde já ia alta. Elsbeth se surpreendeu ao perceber que dormira a manhã toda e quase metade da tarde.
Alex havia trazido um tronco caído para a clareira e estava sentado nele, à guisa de banco. A sua frente, um cobertor estendido fazia às vezes de toalha.
Ao vê-la, levantou-se e fez uma reverência profunda, indicando-lhe o pão e as fatias de carne fria.
- Peço-lhe desculpas, milady, mas isto é o melhor que posso oferecer no momento.
- Eu... eu não lhe dei nada melhor no meu castelo.
- Engana-se, milady.
Ela o olhou sem entender.
- Comparando-se com certas refeições que eu costumava receber, as suas foram verdadeiros banquetes, milady.
Elsbeth queria mais explicações, com os olhos, mas a expressão dele endureceu.
Foi como se uma cortina tivesse descido sobre os olhos cinzentos; as linhas do rosto se tornaram tensas, e os vincos ao lado da boca firme se aprofundaram mais
um pouco. Elsbeth se perguntou se o conde conseguira dormir à noite. E, onde?
Deu de ombros e atirou-se com voracidade ao pão, comendo-o com satisfação. Apanhava largos nacos e neles equilibrava, queijo e carne, alternando um e outro,
como uma garotinha esfomeada depois de brincar.
Alex também se serviu de pão, mas não o comeu. Limitou-se a contemplar o quadro vivo que Elsbeth lhe oferecia. Que mosquito a picara? O queixo continuava tão
voluntarioso como sempre, mas sua expressão estava mais doce, mais... mais terna? Impossível. Estava sonhando.
Subitamente, teve uma desconfiança. Teria ela ouvido alguma coisa da conversa que mantivera com David? Ora, claro que não. Quando entrara na cabana, Elsbeth
estava no mesmo lugar, na mesma posição, e parecia ainda dormir profundamente.
Podia ser por causa do descanso. Ou por causa do acidente no pântano. A verdade é que sua fisionomia parecia doce, tão maravilhosamente doce.
- Por que não me levou para seu condado? - perguntou ela, de chofre.
- Porque aqui milady estaria mais segura. Pelo menos, foi esse meu julgamento - disse ele, buscando proteção na polidez estudada. - Mas não sabia que milady
iria nadar no primeiro pântano que aparecesse.
Ela estremeceu, à lembrança do inferno por que passara.
- Por que não manda prender John Carey? Parece simples.
- Não tenho nenhuma prova do que ele fez.
- Precisa de prova, milorde?
- A Inglaterra é um país de leis, milady.
- Não aos olhos de seu irmão, ao que parece.
- Eu não sou...
- Meu irmão - completou ela, unindo sua voz à do conde. - Já ouvi essa frase um par de vezes. Mas você é conde, e amigo do homem mais importante da Inglaterra.
- O importante de hoje pode ser o prisioneiro de amanhã - retorquiu Alex. - Veja Somerset, por exemplo. Era Lorde Protetor há um ano, exata-mente. E agora é
prisioneiro da Torre de Londres. Warwick é meu amigo, e tenho orgulho disso; sei que ele me ajudará naquilo que puder. Mas não há como condenar alguém sem as provas
necessárias; Warwick jamais torceria a lei para me favorecer.
Elsbeth mudou de assunto, erguendo o queixo num desafio.
- E eu? Que pretende fazer comigo?
Ele sorriu.
- Bem, parece que nosso destino é copiar um ao outro. Milady me raptou e depois me ajudou a escapar. Eu, de minha parte, raptei milady e agora pretendo ajudá-la
a fugir também. Desse modo, seu clã nem por sombra desconfiará que milady me auxiliou na fuga.
- Foi esse o seu plano desde o começo?
Ele a fitou, hesitando um pouco.
- Não.
Sua mão buscou a dela e acariciou-a de leve.
- Mas acabei decidindo que não devo envolvê-la nessa trama sórdida.
- Eu tenho um problema igual ao seu, milorde.
O conde ergueu a cabeça vivamente. Era sua vez de olhá-la interrogativamente.
- Também tenho um traidor no meu clã.
- Tem, milady. Fico feliz por admitir isso, finalmente.
- E preciso descobrir quem é.
Alex olhou-a, a surpresa estampada no rosto. De repente, entendeu o que ela queria dizer, e seus olhos se escureceram.
- Não, milady. Quero levá-la de volta ao seu castelo.
Por um momento, Elsbeth ficou muda de espanto. Depois começou a rir, um riso claro e cristalino, como Alex nunca ouvira antes. Ela nunca se permitira rir daquele
modo com estranhos, mas simplesmente não conseguia se conter. A situação era comicamente absurda, inacreditavelmente absurda. Agora, era ela quem queria continuar
prisioneira. Enquanto o próprio raptor desejava o contrário! Era demais! Elsbeth dobrou-se sobre os joelhos, perdida no riso.
A princípio, Alex apertou os lábios, contrariado. Depois, aos poucos, os cantos da boca foram se alargando. Primeiro deixou escapar um risinho desconcertado,
que logo se transformou em estrondosa gargalhada. Inadvertidamente, as mãos se encontraram e se entrelaçaram. Riam um riso que se alçava no ar, um riso cheio de
alegria, denso de prazer,um riso de pessoas que sabiam que alguma coisa de muito bonita estava para acontecer.
E nenhum dos dois queria deter essa onda de alegria.
Capítulo XIV
O riso foi diminuindo aos poucos, até morrer.
Os olhos se encontraram, livres de preocupação.
Os dele estavam límpidos, brilhantes.
Os dela emanavam calor, ternura, desejo.
A magia que sempre estivera latente entre os dois explodiu em sentimentos há muito refreados.
Elsbeth ansiava pela carícia gentil, pelo sorriso brilhante que vislumbrara certa vez; ansiava por ver-se de novo entre os seus braços potentes, protetores,
que lhe transmitiam conforto, paz.
Ainda assim, nenhum dos dois se movia. As emoções eram fortes demais, avassaladoras demais. Ambos tinham consciência das conseqüências que um gesto de amor poderia
trazer-lhes.
Elsbeth olhou para a mão de Alex, que ainda se fechava sobre a sua, acalentando-a. Virou a palma para cima, deixando que os dedos dele se entrelaçassem nos seus.
Perdidos em mútua contemplação, maravilhados com a força do que sentiam, eram donos do mundo, pairando sobre ele num vôo rumo ao infinito.
Uma veia saltou nas têmporas de Alex, pulsando de vida, e Elsbeth soube que ele se controlava para não arrebatá-la nos braços.
Parte dele recuava, parte dele se perdia em júbilo. O desejo crescia, avolumava-se em seu corpo. Mas não queria, não devia assustá-la. Elsbeth deveria se aproximar
de vontade própria.
E foi o que ela fez.
Como que imantada pelo magnetismo dos olhos cinzentos, achegou-se, hipnotizada. Os corpos se uniram, amoldando-se enquanto a respiração de ambos se tornava ofegante
e as batidas de coração entravam num único e melodioso compasso. As mãos de Elsbeth tocaram o rosto de Alex, e seus dedos Percorreram suavemente as linhas fundas,
como que querendo amenizar a dor ali gravada a ferro e fogo. Sob os dedos sentiu a resposta que esperava, a tensão se esvaindo aos poucos daquele rosto querido.
Sentiu que ele não a arrebatava nos braços porque a respeitava. E sentiu que ele lutava contra o desejo animal que o possuía.
- Elsbeth - sussurrou Alexander, com voz rouca.
Era quase uma súplica, um desesperado grito de uma alma cansada, ao qual ela não quis e não pôde resistir. Entreabriu os lábios e ofereceu-os a Alex, em doce
abandono. Ele aceitou a oferenda, colhendo o beijo como se colhe uma flor, com doçura, com reverência. Bom Deus, como gostaria de envolvê-la nos braços! Mas seu
desejo era forte demais. Não podia, não queria assustá-la.
Logo a ternura cedeu lugar a uma paixão selvagem, e o beijo se aprofundou, quente, sequioso, explorador.
Elsbeth sentiu o sangue em fogo, percorrer-lhe o corpo em ondas quentes, lentas e langorosas. Quanto mais o beijo se aprofundava, mais mergulhava nas profundezas
desconhecidas do próprio ser. Enlaçou-o pelo pescoço, os dedos buscando uma mecha daqueles cabelos negros que tanto quisera afagar. Com um gemido, Alex finalmente
capitulou, aconchegando-a ao corpo.
Como fizera com o beijo, Alexander a prendia nos braços com cuidado infinito, como se temesse a rejeição de Elsbeth. Envolveu-a como se ela fosse a coisa mais
preciosa do mundo, a jóia mais cara que possuía, o vaso mais frágil que existia - e que se quebraria, caso apertasse demais.
Foi essa delicadeza, essa paixão controlada, que fez desabar a última defesa de Elsbeth. Ela queria mais, queria sentir-lhe a energia, a força, livrá-lo das
correntes que o atavam, deixá-lo soltar a fera que, sabia, havia dentro daquele corpo forte e viril.
Alex finalmente subjugado deu rédeas soltas ao desejo e à paixão que fervia em seu corpo, há longo tempo contida. Mergulhou naquele corpo que se oferecia, abrindo-lhe
a boca com os lábios, introduzindo sua língua quente, buscando, explorando, pedindo.
Elsbeth a tudo atendia, entre maravilhada e assustada. Nunca ninguém a preparara para o que acontecia naquele momento.Eram doces explosões do corpo, uma vontade
incoercível, fagulhas de excitamento que ondulavam brilhantes em seu corpo. A boca de Alex provocava-lhe um prazer indes-critível, quase intolerável.
Os dedos dele brincavam em seu pescoço, subiam, voltavam. E eram macios, tão macios. Elsbeth já notara calos nas mãos de Alex, e sempre julgara que elas deviam
ser ásperas e grosseiras, mas enganara-se. Como podia seu toque ser tão delicado?
Agora os dedos viajavam pelas suas costas, deixando uma trilha quente por onde passavam, trazendo sensações novas, boas de sentir.
A princípio timidamente, a mão de Elsbeth procurou imitar os movi-mentos dele. Queria que Alex sentisse o mesmo que ela; queria que ele expe-rimentasse a mesma
sensação de fogo percorrendo-lhe o corpo. Devagar, correu os dedos nas costas de Alex, comprimindo-os suavemente. Um gemi-do rouco de prazer foi a resposta que
Elsbeth esperava.
Ele se afastou um pouco para contemplá-la. Os olhos cinzentos, atormen-tados, fixaram-se nos dela.
- Você é linda, Elsbeth. Tão linda! - Tocou-lhe o queixo, acariciando-o.
- E você parece um guerreiro sondando o terreno.
Ele sorriu.
- Aprendi a minha lição.
- Por quê? - perguntou ela, recostando-se no peito largo, os olhos brilhantes de desejo.
- Escocesinha feiticeira, sabe muito bem por quê. Da última vez que não fui cauteloso, terminei amarrado no lombo de um cavalo.
Elsbeth corou.
Alex pegou um cacho de cabelos vermelhos entre os dedos, admirando os reflexos de ouro e rubi.
Desejava-a, mais do que desejara qualquer coisa na vida. Mas havia um abismo de ressentimento e desconfiança entre os dois. Não podia tomar Elsbeth para si agora;
sabia que ela estava pronta para se entregar, mas temia que viesse a odiá-lo depois, acusando-o de se ter aproveitado de um momen-to de fraqueza.
Ela o fitava extasiada de desejo. Alex, atormentado entre a paixão e a ra-zão, lutava consigo mesmo.
Olhou-a em muda admiração. Elsbeth era linda, uma princesa, uma deusa.
Seu olhar deixou-a exultante. Era um olhar grave, apaixonado, como ela nunca vira antes. Não escondia segredos, mas a tristeza ainda estava presente, a mesma
tristeza que às vezes ela conseguia detectar por baixo da ironia.
Pegou a mão de Alex e levou-a à boca, beijando-a docemente. Perguntou-se como um conde poderia ter calos na mão. Não importava; eram mãos de quem sabia dirigir
e comandar.
Os olhos dourados mergulharam nas profundezas cinzentas dos olhos dele. E de novo Elsbeth sentiu-se em comunhão com a alma de Alex.
Pouco lhe importava que ele fosse inglês.
Ou Carey.
Ou seu raptor.
Para ele, pouco importava que ela fosse escocesa.
Ou Ker.
Ou sua prisioneira.
Um era prisioneiro do outro, da magia que os atava num cordão de ouro e seda, macio mas indestrutível.
Nenhum dos dois falou nisso, porém; tinham receio de quebrar o encanto, afugentar alguma coisa que lhes era infinitamente caro e precioso.
Em vez de falar, Alex enlaçou-a pela cintura, fazendo-a descansar a cabeça em seu peito, entrelaçando os dedos da mão livre nos dela.
Elsbeth desejava-o com desespero, queria que ele se tornasse parte de si mesma, que conhecesse o mais íntimo de seu corpo. Entendia, contudo, a hesitação de
Alex, e amava-o ainda mais por isso. Outro homem qualquer não teria um segundo de indecisão.
Que espécie de homem era Alexander Carey?
Exatamente o contrário do que ela sempre julgara. Mas duvidava que um dia chegasse a conhecê-lo pôr completo.
Aninhada em seus braços, observou o último matiz dourado do sol se esconder no horizonte. "O sol em seu esplendor". Essa era a divisa dos Ker. E nunca o sol
lhe parecera tão esplendoroso como nesse dia, quente, luminoso, cheio de promessas que a queimavam e consumiam.
As primeiras estrelas começaram a brilhar timidamente no céu, cujo azul tornou-se violeta com nuanças rosadas. Uma fatia de lua parecia boiar no veludo lilás
da tarde, que silenciou de repente, como que em respeito aos dois enamorados.
Elsbeth ergueu os olhos para Alex.
- Que vamos fazer?
Ele a apertou um pouco mais.
- Já fui apanhado em poucas e boas armadilhas. É hora de eu preparar uma.
- Seu irmão?
- E outros.
Elsbeth sentiu uma pontada no peito.
- O homem de meu clã?
- Acertou. Nunca teremos paz enquanto não soubermos a identidade desse tratante.
- Ele nunca me faria mal, seja quem for.
- Talvez tenha tomado parte na emboscada que matou seu pai - disse ele, cauteloso.
Elsbeth deixou cair os braços.
- Não quero acreditar nisso.
Alex puxou-lhe o queixo carinhosamente.
- Mas acredita, não é?
Os olhos dourados se tornaram quase negros, quando ela, assentiu.
Alex suspirou, cheio de pena diante da dor de sua pequena guerreira. Ia ser difícil para ela, muito difícil. Ele tivera afeto pelo irmão e ainda assim doía-lhe
a traição de John. E sua dor seria mil vezes pior caso amasse o irmão como Elsbeth amava os primos.
- É uma mulher corajosa em admiti-lo. Por isso a admiro tanto.
Apertou-a contra si, sentindo-lhe a tensão e a tristeza.
- Você agora vai para sua casa, meu amor.
Até o momento, Alex evitara insistir na partida de Elsbeth, na esperança de encontrar um meio de mantê-la em segurança. Mas era perigoso demais. Tão perigoso
quanto os sentimentos que nutria pela castelã; que não conse-guiria controlá-los por muito tempo. Contudo, ao pronunciar aquelas pala-vras, seu coração se apertava
de tristeza. Não queria se apartar de Elsbeth; temia vê-la fora de seu alcance, de sua proteção, de seu amor. Mas ela corria um perigo terrível ali; se John Carey
os encontrasse, mataria os dois sem pestanejar. John jamais deixaria uma testemunha viva. Muito menos da família Ker.
- Não - foi a resposta, curta e seca.
Ele sorriu. Bonita e valente, a escocesa.
- Eu adoraria mantê-la aqui, milady. Mas ficará mais segura nas terras de sua família.
- Interessante. Só agora milorde vem me dizer isso?! Depois de me forçar a vir para cá? Depois de...
Uma risada interrompeu-a.
Elsbeth correu os dedos pelo braço nu de Alexander, sentindo-o novamente tenso e alerta.
- Milady tem de ir.
- Não.
- Mas...
- Não, já disse. É meu dever ficar e ajudá-lo a desmascarar o traidor, seja ele quem for.
- Milady vai - insistiu ele, os lábios apertados.
- E como, quer fazer o favor de me explicar? A menos que me leve amarrada. E você não pode nem chegar perto da fronteira, sabe muito bem.
- Então, quer mesmo ficar? De sua livre e espontânea vontade?
Elsbeth riu baixinho.
- Estranho, não acha?
- Muito estranho - concordou ele.
Mas no fundo de seu coração sentia-se feliz. Voltou a cabeça para o abrigo, estudando-o. Não era lugar para uma dama, muito menos para Elsbeth, mas o calor de
sua voz, o desejo que tinha de ficar a seu lado, tudo isso o obcecava e cegava. Não queria enviá-la de volta ao castelo Ker, na verdade; tinha receio do traidor
desconhecido. Contudo ali, naquele fim de mundo, também não era seguro ficar com ela.
Uma idéia começou a germinar em seu cérebro. Quanto mais os dois permanecessem escondidos, mais os dois traidores se desesperariam. E acabariam cometendo um
erro. Enquanto os Ker não soubessem do paradeiro de Elsbeth, não atacariam Huntington. E tinha quase certeza de que John não ousaria atacar os Ker enquanto não soubesse,
com certeza, onde Alex se escondia.
- Que tal irmos a Londres? - perguntou, de repente.
Elsbeth hesitou. A idéia de conviver com ingleses não lhe era nada atraente. Havia crescido ouvindo que precisava temê-los, odiá-los. Contudo, estava nos braços
de um deles.
Alexander era estranho, contraditório e misterioso. Mas, sabia-o agora, tinha uma das almas mais nobres do mundo.
- Por quê? - perguntou. - Por que não ficamos aqui mesmo?
- Já disse, aqui é perigoso para você. Em Londres estará segura. Além disso, lá é o melhor lugar para eu trabalhar a favor de seu clã. Se alguma coisa me acontecer,
meu amigo saberá que a culpa é de meu irmão, e não do clã. Ele pode lhe dar uma proteção mil vezes superior à minha.
- Northumberland?
- Exato. Ele precisa saber da história inteira, tim-tim por tim-tim.
- Peça a David Garrick que vá em seu lugar.
Alex suspirou. Dessa vez, não poderia dar a resposta correta. Porque, bons deuses, ele não agüentaria mais ficar sozinho com Elsbeth sem... sem tê-la. Em Londres,
pelo menos, teria mais gente, mais distração. Era do que mais precisava: distração. Caso contrário, sucumbiria aos apelos de seu corpo, que chamara por Elsbeth Ker.
- Chega de perguntas, milady. Escolha: ou seu castelo ou Londres.
Vagarosamente, com alguma relutância, Elsbeth concordou. E alçou para ele seus magníficos olhos de ouro reluzente, cheios de total confiança.
Alex fechou os olhos, lutando contra as ondas de calor que o assaltavam. Não havia mais dúvida quanto ao amor que senha por Elsbeth; era forte, profundo, avassalador.
Tão forte que chegava a doer. Mas duvidava dos sentimentos da castelã; ela podia estar confundindo proteção com amor.
Além disso, Elsbeth precisava dele para encontrar o traidor- Quando esse problema se resolvesse, teria ela forças para superar séculos de ódio e guerras? Era
querer demais.
Toda a vez que alimentara uma esperança, Alex se vira desapontado e maltratado pela vida.
Bastava lembrar o que acontecera a Nadine. A imagem de chamas envolvendo-lhe o corpo turvou sua mente torturada. E Alexander Carey sentiu a alma cheia de medo
pelo destino de Elsbeth. Não podia deixar que algo semelhante lhe acontecesse. Não podia!
Afastou-se bruscamente dela, como que temendo sua proximidade. E viu perplexidade nos olhos dela.
- Milorde? - perguntou Elsbeth, timidamente.
Alex não respondeu. Não sabia o que responder.
A castelã aprumou os ombros e ergueu o queixo. Muito bem, se Alexander Carey queria bancar o difícil, ela não deixaria por menos.
Alex sorriu ante o gesto, que agora lhe era familiar. Adorava essa postura que Elsbeth assumia, como a de uma rainha ofendida.
Ajoelhou-se a seu lado e tomou-lhe a mão.
- Não quero que milady se machuque. Nunca.
Havia tanta intensidade em sua voz, que Elsbeth vagamente compreendeu. Alexander devia ter sofrido muito no passado, e agora temia que lhe acontecesse o mesmo.
Se ao menos ela soubesse de que se tratava...
- Quem é Nadine?
O conde franziu a testa. Como sabia sobre Nadine? Logo recebeu a resposta.
- Quando você teve febre, começou a delirar. E chamou por Nadine uma dúzia de vezes.
Elsbeth quase recuou diante da furiosa tempestade que lia nos olhos cinzentos. Mas precisava saber, antes de entregar completamente a alma ao conde.
- Alex?
Era a primeira vez que ela o chamava pelo nome. O coração dele encheu-se de gratidão. Seu nome soava melodioso e terno nos lábios de Elsbeth.
- Era... era uma francesa - disse por fim, os olhos cheios de angústia. - Uma mulher maravilhosa e valente.
Era. Elsbeth teve vergonha do alívio que sentiu ao ouvir o verbo no passado.
- O que aconteceu com ela?
De súbito, Alex pareceu não vê-la mais; os olhos esgazeados fixavam-se num ponto distante, num quadro que ela não conseguia penetrar.
- Eles a queimaram. Nadine foi queimada viva.
De um salto, o conde se ergueu, as têmporas latejando, os punhos crispa-dos. Segundos depois ele se embrenhava na floresta, deixando Elsbeth sozinha.
Surpresa e compaixão apossaram-se dela. Por que Nadine fora queima-da? Onde estava Alex nesse momento terrível?
Ninguém sabia o que havia acontecido com Alexander Carey quando este, inesperadamente, deixara o condado de Huntington. Anos depois, correu a notícia que ele
havia morrido, e Elsbeth, como todos os Ker, pouco se interessou. Até seu imprevisível e súbito retorno. As perguntas se acumu-lavam, todas sem resposta. Mas Elsbeth
sentia que não devia mais pressioná-lo. As lembranças do conde eram por demais dolorosas.
Uma tristeza assaltou Elsbeth. Alexander devia ter amado profun-damente a francesa. Maravilhosa e valente, dissera ele. Como podia ela competir com uma imagem
tão viva e presente?
Devagar, começou a recolher as sobras de alimento, embrulhando-as em grandes folhas que Alex havia escolhido e apanhado para esse fim. Notou que ele mal havia
beliscado um pedaço de pão, e suspeitava que o objetivo fora economizar alimento para ela. Mas o gesto não a surpreendeu mais. Alexander era uma pessoa única no
mundo; irradiava uma generosidade e força incomuns, embora às vezes se mostrasse tão vulnerável como um pássaro ferido.
A noite se fechou, mas não trouxe Alex de volta. O vento começou a soprar seu hálito gelado, forçando-a a entrar na cabana. O frio e a escuridão não ajudaram
a reanimá-la. Teve vontade de entregar os pontos, sentar-se e chorar. Quase o fez; mas a lembrança dos beijos e da ternura de Alex foram mais fortes. Ele chegaria
cansado e com frio; por que não esperá-lo com um bom fogo na lareira?
Minutos depois línguas de fogo dançavam entre as toras, lançando sombras nas paredes. Elsbeth lembrou-se do perfil de Alex recortado contra a luz da lareira,
o olhar fixo e ausente, e de novo seu coração se apertou. Estava pensando em Nadine, certamente. Se a francesa estivesse viva, talvez ela pudesse lutar de igual
para igual. Mas contra um fantasma, uma lembrança? Alexander passaria o resto da vida alimentando-se desse sonho. E certamente compararia Nadine com ela. Sempre.
Triste, deixou-se ficar num canto. Só lhe restava esperar por Alex. Volte, Alex. Volte depressa, por favor.
Alexander errava pela floresta, perdido em pensamentos sombrios. No fundo, não passava de um covarde. Queria Elsbeth, desejava-a. E tinha medo de deixá-la entrar
em seu coração, em sua alma. Porque poderia perder, mais uma vez, aquilo que se tornara seu bem mais precioso. Como acontecera com tudo que tocara. Era um Midas
às avessas.
Sentira um alívio selvagem e estranho ao contar-lhe sobre Nadine, como se parte do peso que carregava já não existisse. Certa vez, levado pelas lembranças torturantes,
contara a Warwick toda a história, pedindo-lhe que guardasse segredo. Eram memórias dolorosas demais; não queria partilhá-las com ninguém.
Que diria Elsbeth se soubesse que ele passara anos acorrentado como um cão, batido, humilhado, ofendido? Tinha as mãos cheias de calos por causa dos pesados
remos; as cicatrizes dos pulsos e dos tornozelos, produzidas pelos ferros, haviam levado meses para diminuir.
"Condenado às galés para sempre." Quando ouvira a sentença, julgara que seria melhor que a morte na fogueira. Mas logo vira que estava enganado; mil vezes a
sorte de Nadine. A falta de coisas simples como ver o sol, esticar-se numa cama, tomar banho, tornara sua vida um verdadeiro inferno. Podia sentir ainda o fedor
dos corpos suados, da morte e do medo. Ainda ouvia o chiado de sua própria carne queimando sob o ferro em brasa, marcando-o como se marcava gado. A única lembrança
que o consolava era a de Nadine, sempre presente, sempre amiga.
Um cirurgião inglês, amigo de Warwick, cortara e removera a humilhante marca. Mas a cicatriz ficara para sempre, no corpo e na alma. Assim como a imagem de Nadine.
Até que um rosto petulante e sardento veio substituí-la. O rosto de uma escocesinha.
E ainda não sabia se ela viera para lhe trazer a bênção de vida por que tanto ansiara, ou para lhe trazer novo inferno.
Elsbeth nunca soube quanto tempo o conde se demorara na floresta. Cansada de esperar, terminara por adormecer, cheia de tristes apreensões. Tarde da noite, acordou
com o lamento dos gonzos enferrujados. Permaneceu deitada, olhando-o em silêncio, lamentando ter adormecido. A cabana ainda estava aquecida, mas o fogo já se reduzira
a brasas. Alexander reavivou-o com mais lenha, e depois virou-se para ela.
E quando a viu acordada, presenteou-a com um belo sorriso. Ele tirou as botas e sentou-se a seu lado, em silêncio.
E em silêncio abriu os braços, convidando-a. Elsbeth deslizou para dentro deles, numa alegria calma e confortadora. Alex voltara para ela; pouco lhe importava
conviver com fantasmas, lembranças e mistérios. Colou seu corpo ao dele, desta vez sem sensualidade, só ternura e paz. Seu coração quase explodiu de quieta felicidade
quando ele a embalou num abraço.
Colou seus lábios nos dele, dizendo-lhe, sem falar, que ele não mais estava sozinho. Alexander tinha Elsbeth.
Os dois eram um só agora. Contra o resto do mundo.
Nenhum deles conseguiu dormir. Nem queriam. Experimentavam um sentimento novo e raro de comunhão total; era bonito demais, precioso demais para ser desperdiçado.
Apesar do desejo latente que se avolumava, ambos sabiam que sua consumação não era importante naquele momento. Mil vezes mais importante era essa união, essa compreensão
pura. Suas almas se fundiram envoltas no espírito do verdadeiro amor.
- Eu te amo - sussurrou ela, arrebatada pelo desejo de compartilhar aquele momento raro e único de sua vida.
- Meu amor - respondeu Alex. Não havia mais diferença entre eles.
Capítulo XV
Cavalgavam em silêncio, lado a lado, conduzidos por dois velhos pangarés que, conforme dissera Alex, não despertariam a cobiça de nenhum bandido. Por isso mesmo,
a viagem era cansativa e penosa.
O conde sorriu para o garoto montado no outro pangaré. Um moleque, quase. Terra e fuligem escondiam um rosto pintado de sardas e um par de vivos olhos castanhos.
O garoto sorriu-lhe de volta.
Assim fora durante aqueles dois exaustivos dias de viagem, durante a qual eles haviam se misturado com mercadores, soldados, camponeses, em busca das ilusões
da grande cidade - Londres. Quando seus olhares se cruzavam, quando suas mãos se tocavam, todo o desconforto parecia-lhes valer a pena.
Haviam deixado os domínios de Huntington já disfarçados daquele mesmo modo; David entregara ao garoto todo o dinheiro que possuía, a fim de que pudessem comprar
os cavalos e se alimentar. Ele os acompanhara até a primeira cidadezinha, onde os deixara.
Alex e Elsbeth passearam por entre a multidão, compraram os cavalos e jantaram na estalagem mais humilde que encontraram. Nenhum dos dois foi reconhecido.
Para poder passar por menino, Elsbeth deixara uma massa vermelha e brilhante de cabelos no chão da cabana. Antes de cortá-los com o punhal de Alex, hesitara.
Sempre se orgulhara dos cabelos, e sabia que ele os adorava. Mas agora não mais se arrependia; fora uma decisão sensata, cujos resultados já sentia. Ninguém parecia
suspeitar do garotinho que viajava em companhia do irmão mais velho.
Garrick não questionara a decisão de Alex. O humor de John Carey tinha piorado nos últimos dias, e David não tinha dúvida de que, cedo ou tarde, as florestas
de Huntington seriam devassadas com pente fino.
Elsbeth sentia-se à vontade, confiante no engenhoso disfarce. Para ela, o que estava fazendo era uma maravilhosa e excitante aventura ao lado do homem que se
tornara a razão de sua existência. Examinou-o de esguelha, feliz ao vê-lo feliz. Alex até cantarolava uma canção engraçada, os olhos muito claros, duas reluzentes
moedas de prata.
Nem sempre era assim, porém; às vezes, se bem que muito raramente, Elsbeth notava um véu triste toldando-lhe o olhar. Na maior parte das vezes, entretanto, parecia
livre como um pássaro em pleno vôo.
Nas duas noites anteriores, a rotina fora a mesma; procuravam abrigo em celeiros de fazendas e, depois de tomarem uma sopa de origem bastante duvidosa, dormiam
felizes, um nos braços do outro. Contudo, os carinhos não passavam de afagos, embora amorosos e, às vezes, escaldantes. Até que as coisas não fossem resolvidas entre
ambas as famílias, Alex achava que não poderia arriscar-se a engravidar Elsbeth.
De sua parte, Elsbeth achava-se cada vez mais apaixonada. Adorava, idolatrava Alexander Carey, aquele que um dia julgara ser seu mais ferrenho e temido inimigo.
Por vezes, tinha vontade de tê-lo seu prisioneiro de novo. Para trancá-lo numa cela e trancar-se com ele, jogando longe a chave. Viveriam juntos, distantes do mundo...
Quando contara sua fantasia a Alex, ele dera um daqueles sorrisos, tingidos de tristeza, e nada comentara.
Nessa noite, depois de improvisarem uma cama com feno e palha, Alex piscou-lhe um olho:
- Amanhã vai ser muito melhor, prometo.
- Quer dizer que vamos chegar em Northumberland? Amanhã?
- Lá pelo meio-dia, minha querida.
Elsbeth não pôde evitar uma pontada de apreensão. Tudo dependia desse importante duque inglês, um figurão da corte que ela julgava inacessível. O futuro de seu
clã, a bem dizer, estava nas mãos dele. E ela não confiava em ingleses, não conseguia confiar em nenhum - exceto, é claro, em seu Alex.
Como sempre, o conde leu seus pensamentos.
- Muita gente não gosta dele, Elsbeth. É um homem poderoso, e por isso mesmo fez muitas inimizades. Mas foi ele que me salvou do desespero, da vontade de morrer.
É meu melhor amigo.
Os olhos de mel fixaram-se nos dele.
- Conte-me como foi isso, Alex.
Houve um silêncio prolongado. Elsbeth já o conhecia bem; esse silêncio vinha sempre que ela lhe fazia perguntas sobre seu passado. Mais uma vez percebeu a tensão
do conde e achou que não teria resposta. Contudo, ele tomou-lhe a mão, como que buscando apoio, e começou a falar. Devagar, cada palavra carregada de melancólica
nostalgia.
- Fui feito escravo das galés na França, Elsbeth.
Ela abafou uma exclamação de dor.
- Quando Warwick soube disso, conseguiu que me soltassem imedia-tamente. Mas já se haviam passado três anos. Foram três anos de torturas, chicotadas, ratos,
podridão. Eu estava mais morto que vivo. Na verdade, eu não vivia mais; vegetava. Warwick cuidou de mim como não cuidaria do irmão caçula. E me ajudou a voltar à
vida.
Elsbeth fitou-o, os olhos cheios de lágrimas. Bom Deus, como fizera mal a esse homem! Só agora compreendia a extensão do horror que ele devia ter sentido, aprisionado
naquela cela apertada e úmida. Apertou a mão de Alex.
- Três anos!
- Quase quatro. Quatro anos de inferno, minha Elsbeth. Se não fosse por Warwick, eu... eu...
Não precisou continuar. Elsbeth compreendeu.
- Você... você deve ter me odiado, Alex.
- Por uns tempos, sim. Mas não durou muito. Você parecia ser impossível de odiar - disse, com o meio sorriso que ela adorava. - Principalmente quando se zangava.
Seus olhos brilhavam e seu queixo ia lá para cima. Era um espetáculo simplesmente adorável.
- Pelo visto, não alcancei meu objetivo. Eu queria meter medo em você.
- Isso seria impossível, minha querida.
- Estou desapontada, milorde - fez ela, sorrindo.
Depois ficou séria e pensativa.
- Na verdade, eu me desapontei com você o tempo todo. Seus modos eram... não eram os de um prisioneiro. Pelo menos, não como os outros.
- E você, então? Metendo-se em pântanos...
Ela riu.
- Acho que nós dois não temos vocação para prisioneiros.
- Verdade.
A expressão de Alex se ensombreceu. Elsbeth adivinhou que ele estava pensando na outra prisão, a da França.
- Quer me contar mais sobre isso? - perguntou com' doçura.
- Não há o que contar, meu amor. Dias vazios e intermináveis, estôma-go roncando, dor nas costas. Mas acabou-se o pesadelo, e eu prefiro não falar mais nisso.
Elsbeth calou-se, sufocando as perguntas na cabeça. Nadine, galés... Que outros segredos tinha ele? Ainda não conhecia todos. Alex tinha estado fora mais que
quatro anos.
No momento, porém, interessava-lhe o aqui e o agora, não o passado. Nem o futuro. Temia o dia seguinte. Passara dois dias maravilhosos viajando com Alex, e sabia
que teria problemas na Inglaterra. Não queria intrusos entre ambos, principalmente um intruso inglês. Northumberland jamais aprovaria o casamento; ninguém aprovaria,
fosse inglês ou escocês. Essa mistura de sangues era muito malvista nas duas cortes. E Alexander Carey era um conde, enquanto ela não passava da herdeira de um clã.
Tudo isso era um sonho. Do qual acordaria no dia seguinte.
Correu para o aconchego dos braços fortes, em busca de proteção. Quase que imediatamente, sentiu que o corpo de Alex respondia, tenso, desejoso, receptivo. Nos
últimos dias, ele se esforçara em cuidar para não possuir Elsbeth, mas agora parecia que, como ela, receava acordar daquele sonho no dia seguinte.
A língua dele buscou a de Elsbeth, deixando-a em agonizante desejo de ser possuída, penetrada. Com um soluço, Elsbeth colou o corpo ao dele, pedindo, implorando
por algo que não sabia ainda o que era.
- Ah, minha Elsbeth - murmurou ele.
Era uma canção de amor que ele sussurrava em seu ouvido, embri-agadora e cativante.
Alex aspirou o perfume feminino dos cabelos ruivos e fechou os olhos. As memórias do inferno faziam dela um paraíso, ao qual se deixou levar e mergulhar, incapaz
de tirar as mãos daquela pele acetinada e macia, daquele corpo que o enlouquecia.
Os grandes olhos castanhos fitavam-no provocantes, desafiadores, convidativos. Princípios, honra e bom senso digladiavam-se com seu desejo de possuí-la ali mesmo,
sobre o feno úmido. A suavidade de Elsbeth, o brilho dourado e submisso de seus olhos transformavam o feio celeiro num peda-cinho do céu.
Contudo, o medo persistia. Receava perder Elsbeth, receava vê-la brutalmente arrancada de suas mãos... igual ao que acontecera com Nadine. Não suportaria mais
essa perda. Não sobreviveria a ela.
John Carey poderia matá-lo; ainda havia esse perigo. Imaginou-se morto, enquanto Elsbeth seria obrigada a carregar no ventre um filho... um Carey bastardo.
Não, não podia fazer isso com aquela criança inocente, que lhe pedia com os olhos algo que ela mesma não sabia o que era. Não podia. E não faria.
Elsbeth, como que adivinhando os conflitos de Alex, achegou-se mais, e sua boca procurou a dele.
O conde inclinou-se e beijou-a com ternura, querendo afastá-la e dizer que aquilo era tudo o que podia lhe dar no momento. Mas Elsbeth, dessa vez, não se contentou.
Sua língua brincou nos lábios dele por uns instantes e depois forçou-os a se abrirem. Alex teve um segundo para apreciar o quanto a aluna aprendera a lição, e depois
a chama consumiu em cinzas todas as suas pretensões de honestidade. O beijo se aprofundou, o desejo aflorando por todos os poros.
Os corpos se uniram apaixonadamente. As línguas buscavam, explora-vam, exigiam. O desejo explodia. Alex sentiu-se na beira de um precipício, pronto a rolar na
maciez enganosa de nuvens brilhantes.
- Por Deus, Elsbeth, não sou de ferro.
Ela não estava pensando em conseqüência nenhuma, em futuro nenhum, em nenhum amanhã. Só pensava em acalmar aquela vontade imensa, avassaladora.
- Só sei que te amo - disse ela, baixinho.
- Sou um Carey...
- Sim. Um Carey, um inglês.
- Seu clã nunca a perdoará, Elsbeth.
Elsbeth queria dizer que não se importava. Chegou a formular a respos-ta, mas refreou a língua. Seria uma mentira. Desde pequena haviam-lhe ensinado: primeiro
o clã. Primeiro o clã.
Ele sorriu, daquele jeito desconcertado com que costumava disfarçar as mais profundas emoções.
- Não podemos fugir de nossas obrigações, Elsbeth. Você com o clã, eu com Huntington.
Uma farpa aguda de medo cravou-se na alma de Elsbeth. Não por ela, mas por Alex.
- Não volte para Huntington, eu lhe imploro! Por favor, não volte para lá!
- E vou para onde, minha escocesinha? Para as terras dos Ker?
- Podemos nos casar! - disse ela, em desespero.
- Maravilha! E eu vou ser o príncipe consorte da castelã, e viverei feliz no meio do ódio de todos... Elsbeth, você também acabaria me detestando.
- Nunca!
- Mesmo assim, jamais poderia dar certo, não desse modo. Já fui maltratado a vida toda, fizeram de mim gato e sapato. Ouça, escocesa bonita: tenho meu direito
de progenitura, e dele não abrirei mão. Meu povo precisa de mim, e não desse tratamento desumano que está recebendo. Fiz disso o objetivo de minha vida, e por ele
pretendo morrer, se for necessário.
- Seu povo, como diz, pouco se interessa por você. Sabe disso tão bem quanto eu!
- Por enquanto. Eles não têm uma boa razão para acreditar numa vida melhor.
- Então por quê...
- Porque eu tenho uma boa razão, minha adorável e linda Elsbeth, para acreditar numa vida melhor. E se abrir mão de Huntington, estarei dando um chute em minha
própria vida. Não terei mais nada.
- Terá a mim! - teimou ela, lutando desesperadamente para conter as lágrimas.
- Não, querida. Você é que me teria - volveu ele, com tristeza. - Quando fui escravo, minha esperança se reduzia a receber um pedaço de pão que me desse força
suficiente para trabalhar no dia seguinte. Eu não tinha nenhuma perspectiva, nenhuma razão para continuar a viver. Contudo, alguma coisa me fez seguir em frente,
alguma coisa mais forte que o chicote. Não sabia que força estranha era essa, Elsbeth, até que, já na Inglaterra, fiquei sabendo que me tornara o herdeiro legítimo
de Huntington. Estou absolu-tamente convencido de que era essa a força estranha. Uma premonição, talvez, não sei dizer. Mas sei que meu destino é cuidar de Huntington,
das fronteiras, até mesmo de seu clã. Não quero, e não vou dar as costas à razão de minha vida.
Elsbeth sentiu a intensidade daquelas palavras cheias de esperança e força. Sua mão buscou a dele. Sabia que o sonho de Alex poderia afastá-lo para sempre de
sua vida, mas não podia mais tentar impedi-lo. Curvou a cabeça, vencida.
- Quando tudo isto acabar, minha Elsbeth, você... acha que estaria preparada para deixar seu clã?
Era uma pergunta que ela se fizera mil vezes.
- Eu... eu não sei.
As mãos grandes e calosas acariciaram-lhe as faces com ternura.
- Sois bela, milady.
- Sois admirável, milorde.
Ele deu um risinho.
- Gostei do adjetivo. É a primeira vez que alguém me diz isso.
Elsbeth não conseguiu rir. Queria-o tanto... e ele nunca estivera tão distante como agora. Aninhou a cabeça no peito de Alex, fingindo um sono que, sabia, não
chegaria naquela noite.
Como ela já imaginara, as terras de John Dudley, conde de Warwick e duque de Northumberland, eram imensas, magníficas e ricas. Sentiu-se pobre diante daquela
vastidão.
Alex, contudo, modificara sua postura assim que avistara o imponente castelo. Apesar das roupas esfarrapadas, tinha o porte de um nobre e orgu-lhoso conde. Exatamente
como ela o conhecera, à beira do lago. Um cavala-riço acudiu, reconhecendo Alex.
- Milorde - disse ele, descobrindo-se.
Ao ver as roupas do sempre elegante Alexander e o velho pangaré, o pobre homem gaguejou.
- Este... onde está Gideon?
- Em casa, muito bem tratado, Richie - respondeu Alex.
Ele se voltou para Elsbeth, que ainda trajava roupas masculinas:
- Richie me ajudou a treinar Gideon. É a melhor montaria das redondezas.
Elsbeth inclinou a cabeça levemente, não sem antes perceber o sorriso largo e orgulhoso do cavalariço. Alexander, evidentemente, conquistara com sua mágica simpatia
as boas graças daquele homem.
- Pode me fazer um enorme favor, Richie?
- Claro, milorde. Qualquer coisa.
- Não conte a ninguém que estou aqui.
Os olhos do cavalariço brilharam de um jeito que incomodou Elsbeth.
- Nem mesmo para...
- Para ninguém, Richie - cortou Alex, piscando-lhe um olho maroto.
Elsbeth sentiu um baque no coração. Seria uma mulher? Disfarça-damente, correu os olhos por sua roupa velha e amarrotada. Pensou nos cabelos tosados. E sentiu
um frio gelado invadir sua alma.
- O duque está aqui?
- No momento acha-se na corte, mas deve estar chegando.
- Acha que Smithwyck vai me reconhecer?
O outro deu uma risada.
- Impossível não reconhecer milorde.
- Então voltaremos mais tarde. Não quero que ninguém mais me veja.
O cavalariço avaliou Elsbeth com olho crítico.
- Vosso auxiliar me parece meio fraquinho, milorde. Gostaríeis de trocá-lo por outro mais forte?
Alex soltou uma gargalhada gostosa.
- Não, meu bom Richie, obrigado. Este me serve perfeitamente. Apenas cuide de alimentar nossos cavalos.
Richie olhou com desgosto para os dois animais. Não mereciam sequer entrar nos estábulos de lord Warwick.
Huntington entendeu e deu um sorriso encantador.
- Como queirais, milorde - respondeu Richie, apanhando as rédeas na mão e afastando-se com alguma relutância.
Elsbeth chegou perto de Alexander, intimidada.
- Calma, escocesa. Esse homem só come católicos.
- E como sabe que não sou católica?
Poucos escoceses da fronteira haviam preservado a fé católica, embora fosse diferente no resto do país.
- Eu não sei. É católica?
- Importa-se com isso, Alex?
- De modo nenhum. Só se importar a você, minha Elsbeth. Acredito no direito de cada um ter a própria crença.
Ela nunca pensara nisso antes. Protestantes e católicos costumavam ser queimados na Escócia e na Inglaterra por causa de suas crenças. Lembrou-se da misteriosa
Nadine. Ela morrera na fogueira, na França. Isso queria dizer que era protestante. Uma mártir!
Mordeu os lábios, despeitada. Como poderia competir com uma mártir?
Nesse momento, a expressão de Alex se iluminou. Elsbeth virou-se para ver o cavaleiro que se aproximava. Pela riqueza das roupas, pelo porte soberbo do cavalo
e do cavaleiro, logo identificou o desconhecido, e seu coração se confrangeu. Jamais deparara com alguém de olhar tão frio e penetrante. O cavaleiro contemplou-os
com arrogante dureza, examinando-os de alto a baixo. Logo em seguida, porém, um lento sorriso começou a formar-se em seu rosto. Um sorriso acolhedor, quente, que
o transformou completamente.
- Huntington?! Mas que diabos...
O olhar dele baixou para Elsbeth e voltou-se para o conde, interrogativo.
- Lady Elsbeth Ker - explicou Alex, com uma reverência que a Elsbeth pareceu um tanto afetada.
Os olhos do homem mais importante da Inglaterra estudaram-na com atenção, fazendo-a corar.
- Ker, você disse? Da família escocesa?
- Exatamente.
- Hum... Estou cheirando histórias por aqui.
- E problemas, Vossa Graça.
- Meu caro Alex, isso não é de estranhar. Quando vem para cá, sempre me traz pelo menos um problema!
- E um desafio, Vossa Graça. Sempre trago um desafio também.
Northumberland sorriu novamente.
- É verdade, não nego. Mas primeiro, acho que estão precisando de um banho. E de roupas, bom Deus, roupas limpas!
- Seriam muito bem vindas, obrigado. Mas vos suplico que não conteis a ninguém que estamos aqui. Isso é muito, muito importante.
- Richie?
- Ele não falará. Já cuidei disso.
- Então, no meu pavilhão de caça. Confio totalmente nos empregados de lá.
Alex conhecia bem o pavilhão. Era perfeito.
- Sou a vós muito grato.
O duque concentrou a atenção em Elsbeth por algum tempo. Depois fez o cavalo virar para o castelo.
- Peça dois cavalos a Richie, Alex. Estarei com vocês amanhã cedo. Hoje, infelizmente, tenho de presidir uma daquelas reuniões maçantes.
Dizendo isso, Northumberland piscou um olho para o amigo, que retri-buiu. Elsbeth viu que havia perfeito entendimento entre ambos.
Algum tempo depois, confortavelmente montados em dois cavalos brancos, Alex e Elsbeth dirigiam-se para o local escolhido pelo duque.
Huntington passara grande parte de sua convalescença nesse pavilhão, e conhecia o caminho como a palma da mão. Era confortável, bem mobiliado, embora com simplicidade.
Acima de tudo, era um esconderijo perfeito e seguro.
Olhou para Elsbeth, com novo aperto no coração. O pavilhão era român-tico, no meio de um bosquezinho adorável, com um lago tranqüilo, ponte-zinhas, flores...
Bom Deus, seria ainda mais difícil passar uma noite com Elsbeth num lugar como aquele. Sentiu um movimento nas virilhas e ajeitou-se, apreensivo. Mais uma noite
de agonia!
E Mary, será que ainda estaria lá? Mary era uma criadinha jeitosa que cuidara dele enquanto doente, e daí... Bem, quase. A imagem de Nadine impedira-o de ir
muito adiante. Na verdade, isso vinha acontecendo com regularidade impressionante. Alex chegara a julgar que se tornara impotente para o resto da vida.
Contudo, com Elsbeth tudo fora diferente. Com ela, o fantasma da impo-tência deixara de existir. Quantos anos, bom Deus? Quatro... Não, cinco. Havia cinco anos
que não mergulhava seu corpo no de uma mulher. Nadine era virgem, e ele nunca tentara seduzi-la. Por que seria? Certamente porque não havia aquela urgência, aquela
sensualidade que experimentava com Elsbeth.
Nadine era, para Alex, uma espécie de santa, algo intocável, digno de veneração e respeito.
Ao passo que Elsbeth... ah, Elsbeth. Mulher, mulher,mulher.
Súbito, foi como se um véu caísse de seus olhos. Nunca amara Nadine. Afeiçoara-se à francesa, apegara-se ao conforto que ela sabia lhe dar; mas daí a amar verdadeiramente
havia enorme distância. Com Elsbeth, havia aquela urgência, aquela vontade de possuí-la, mesclada ao mesmo sentimento que nutria antes por Nadine... Isso, sim, era
o amor.
Feliz e excitado com a descoberta, fez o cavalo parar e esperou Elsbeth, que vinha um pouco atrás. Quando ela se aproximou, Alex inclinou-se e segurou-lhe o
rosto com as duas mãos, mergulhando os olhos nos dela. E beijou-a com uma paixão nova e desconhecida, uma paixão que vinha refreando havia tempo e quase o deixara
maluco. Mordia, lambia, beijava, voltava a mordiscar. Deixou que sua língua penetrasse fundo, quente, úmida.
Elsbeth, a princípio surpresa, deixou-se tomar de júbilo indescritível. Percebeu que Alex se livrara de uma parte das correntes que ainda o atavam. Já era um
bom começo.
Ao chegarem ao pavilhão, Elsbeth quase bateu palmas de contentamento. Era muito, mil vezes melhor que o castelo de Northumberland, cujo tamanho e imponência
haviam-na feito tremer. Era um lugar amplo, confortável, erigido em pedra e madeira.
Um homem alto, ostentando as armas de Northumberland, veio recebê-los com cortesias dignas de um príncipe.
- Sede bem-vindo, milorde - disse, numa mesura empertigada.
Contrariamente ao que fizera Richie, ignorou as roupas esfarrapadas e tratou Alex como se ele estivesse coberto de ouro e veludo.
- Stanson! É um prazer rever você! - exclamou Alex, esbanjando simpatia e calor.
Elsbeth sorriu-se toda, deleitada. Também este era escravo cativo do charme de Alexander Carey.
- Apresento-lhe lady Elsbeth Ker.
Stanson se curvou com o mesmo respeito diante do menino sujo e maltrapilho, não se deixando trair pela surpresa.
- Milady.
- Creio que estamos precisando de um bom banho, Stanson. E de roupas também. Hã... acha que tem alguma coisa para ela?
- Deixai comigo, senhor. Devo preparar o mesmo quarto?
- Por favor.
- E lady Ker?
- Em quarto separado, Stanson.
Nada no rosto do mordomo indicava curiosidade; apenas a grande afei-ção que tinha por Alex. Ele chamou uma empregada, e Alex suspirou, aliviado. Não era Mary,
e sim outra moça, jovem e sorridente.
- Leve milady ao quarto azul.
A menina fez uma cortesia bem estudada, mas dessa vez o espanto e a curiosidade tiveram de ser disfarçados. Alex sorriu. A turma de Warwick era, realmente, muito
bem treinada.
Com a familiaridade de quem se sentia em casa, Alexander subiu para seu velho quarto, o corpo todo ansiando por um banho.
Ao chegar, sua primeira providência foi olhar pela janela. Quanto tempo ficara assim, olhando para o infinito, sem gosto pela vida? Nunca se esque-ceria da amizade
de Northumberland, de sua paciência, de sua compreensão. O duque era implacável com quem não se dava bem, um inimigo temível, mas para ele isso não tinha importância.
Era grato a Northumberland, e isso lhe bastava.
Na realidade, não sabia como tivera início a amizade. Talvez porque Alex jamais pedira um favor ao então conde de Warwick. Quando se conheceram, descobriram
que tinham o mesmo interesse e gosto por cavalos. Warwick mencionou na conversa que possuía um garanhão que ninguém conseguia domar, e Alex aceitou o desafio. Passou
semanas na casa de campo de Warwick, indo todas as manhãs ao descampado com o garanhão. Gradualmente foi ganhando a confiança tanto do animal quanto de Warwick;
ao fim de algum tempo, ambos estavam domados.
Os laços de amizade estreitaram-se mais quando Nadine e Henri falaram com Warwick. Ele detestava católicos, e a idéia de resgatar protestantes perseguidos pareceu-lhe
tentadora. Alex não compactuava com esse senti-mento contra os católicos, mas seu espírito aventureiro encantou-se com a idéia de proteger os protestantes da perseguição
implacável. Verdade que Nadine era linda; isso contribuíra grandemente para reforçar a generosidade de Warwick. Alex, longe de se ofender com os pendores galanteadores
do amigo, encontrara no fato mais um elo que os unia.
Só quando fora libertado das galés Huntington ficara sabendo que Warwick se tornara o homem mais importante da Inglaterra, duque de Northumberland e lorde presidente
do Conselho Inglês. E fora ele que, com sua poderosa influência, negociara a liberdade de Alex com os franceses.
Alex voltara para a Inglaterra num dos navios de Warwick; e fora Warwick quem mais o ajudara no tratamento de saúde, tanto física quanto mental. Fora Warwick,
ainda, que conseguira tirar Alex do marasmo, desafiando-o a domar Gideon.
Enfim, Alexander Carey devia praticamente a vida a Warwick. Era-lhe difícil pensar em Warwick como sendo o duque de Northumberland. Não invejava a posição do
amigo nem um pouco; por importante que fosse,era de equilíbrio precário e dava margem a intrigas invejosas.
Finalmente, a esperada água chegou. Baldes imensos e fumegantes foram despejados na grande banheira de madeira, onde Alexander deixou-se submergir. Um pedaço
de sabão, feito de cinzas e banha de cabra, foi-lhe entregue.
Alex pôs-se a esfregar vigorosamente o rosto, os braços, as pernas. A vida era boa. E Elsbeth estava a dois passos dali. Linda, esperta, valente, adorável Elsbeth.
Sua Elsbeth.
Elsbeth gastara pelo menos uma hora no banho. Deixara-se ficar imersa na água quente, perfumada de pétalas de rosas, incapaz de se decidir a sair. Sylvie ajudou-a
a lavar a cabeça, esfregando-a vigorosamente com o sabão, similar ao de Alex, porém perfumado com alguma flor que ela não pôde identificar.
Finalmente, resolvera-se a deixar a tina de madeira. Sentia-se nova e revigorada; ao lembrar-se do beijo inesperado de Alex começou a rir e brincar com Sylvie.
- Vossos cabelos têm a cor do fogo, milady - disse a jovem, evitando prudentemente falar no inusitado corte.
Elsbeth sorriu.
- O corte é estranho, Sylvie. Vai ser um desafio para você, penteá-los.
- Como os quereis?
- Como você quiser. Confio no seu gosto.
Sylvie gostou do que ouviu, e sentiu seu orgulho atiçado. Além do mais, estava começando a apreciar aquela escocesinha sardenta e simpática.
Meia hora depois, entregou o espelho a Elsbeth, que soltou uma excla-mação de prazer. Sylvie puxara os cabelos para cima, formando pequenos cachos enrolados
que lhe emolduravam a testa e a nuca num halo encantadoramente feminino.
Elsbeth hesitou, diante dos vestidos que repousavam sobre a cama, um mais bonito que o outro. De onde viriam? Suspeitava, porém, que era melhor não fazer perguntas
a respeito. Decidiu-se, por fim, por um de veludo amarelo, que devia combinar bem com seus olhos.
A diligente Sylvie ajudou-a, prendeu os ganchos nas costas, ajeitou a barra e deu um ponto na cintura, pois o vestido estava ligeiramente folgado. Depois inclinou
a cabeça de um lado, contemplando o resultado.
- Sois linda, milady.
Elsbeth sorriu, agradecida. Na verdade, ela se sentia linda. Imaginou-se jantando com Alex na grande sala, à luz de velas, e seu coração disparou. Pelo menos
nesse dia, sabia que não perderia para Nadine, que devia ter sido lindíssima.
- Obrigada, Sylvie. Por enquanto é só.
A criada fez nova reverência, tagarelou mais um pouco e deixou-a só.
Elsbeth foi até a janela. A floresta era parecida com as de Ker, mas faltavam as montanhas, as suas queridas montanhas. Uma tristeza saudosa apossou-se dela
ao lembrar-se do castelo, do clã, Patrick, Ian, Hugh. Teria cometido um erro vindo com Alex? Talvez devesse ter aceito a oferta de Huntington. Estaria agora no castelo,
cuidando do clã.
Mas essa preocupação, embora viesse atormentando sua cabeça havia algum tempo, desvaneceu-se quando ela ouviu uma batida na porta, acompanhada do chamado de
Alexander Carey.
Capítulo XVI
- Elsbeth?
Ela correu para a porta, um sorriso iluminando-lhe o rosto fremente de expectativa. Deus, como gostava da voz de Alex!
Os dois se fitaram entre admirados e espantados, em maravilhada surpresa. Elsbeth já conhecia bem o conde de Huntington, mas nunca o vira tão devastador em sua
pujante virilidade. O veludo azul-marinho do elegante traje realçava a intensidade do cinzento dos olhos, acentuando as profun-dezas insondáveis.
- Elsbeth! - murmurou ele, arrebatado em muda contemplação.
Ela corou. Alex capturou seus olhos, tomando-lhe a mão quase com veneração, afastando-a um pouco para examiná-la melhor.
- Sabia que minha lady era bonita - e sua voz se fez rouca e cheia... - mas não tanto assim.
- Então não achava bonito o moleque que viajou com você até aqui?
- Muito, muito bonito. Mas a mulher que se escondia nele é arrebatadora. Minhas homenagens, senhora!
Dizendo isso, inclinou-se profundamente, como fizera no pátio do castelo no dia do rapto. Desta vez, porém, não havia ironia no gesto; era, ao contrário, um
evidente tributo à beleza de Elsbeth, que sentiu uma onda de prazer afoguear-lhe o rosto.
- Temos um jantar a nossa espera, minha querida, embora meus olhos já tenham se banqueteado o suficiente para tirar minha fome.
Ela deu uma risada cristalina.
- Que elogio mais extravagante! Bem, de qualquer forma, eu estou com uma fome arrasadora.
- Ora, você me desaponta. Pensei que também a tivesse perdido quando me viu.
- Infelizmente, meu estômago acha que a vista de um belo homem não o satisfaz - respondeu ela, gostando da brincadeira.
- Então seu estômago é pouco inteligente - volveu o conde, oferecendo-lhe o braço. - Vamos descer?
- Com prazer, milorde.
- Northumberland é um comilão famoso. Metade dos inimigos que tem são nobres a quem ele roubou o cozinheiro. Espere só para ver os quitutes que nos aguardam.
Como Elsbeth imaginara, não havia outros hóspedes no pavilhão. Candelabros dourados faziam talheres e copos de prata reluzir sobre o linho branco da toalha.
Tão logo chegaram e se sentaram, uma travessa fumegante foi destampada diante deles.
E depois veio outra, e mais outra. Codorna tostada, carneiro e ostras foram servidos de entrada, logo seguidos de pasta de amêndoas, mel, frutas e nozes.
A primeira garrafa de vinho desceu facilmente. Na segunda, Elsbeth sentiu uma moleza gostosa, uma tontura agradável, que a deixava mais tagarela que de costume.
Finalmente, os licores foram servidos. A um sinal discreto de Stanson, os criados se retiraram, deixando-os sozinhos.
- Alex? Não sei se é o vinho ou essa comida deliciosa, mas estou me sentindo tão bem aqui! Não é estranho?
- Nem tanto, querida.
- Quero dizer, estou num país estranho, no meio de gente estranha, gente que sempre julguei ser inimiga...
Alex enlaçou-a pela cintura, e Elsbeth aninhou a cabeça no ombro protetor.
- Alex? Acho que esse Stanson é bruxo.
- Por quê?
- Ele afastou as cadeiras e nos instalou num banco que não faz parte da mobília.
O conde riu baixinho.
- Escocesinha esperta. É verdade, este banco é da varanda. Ela ergueu a cabeça, fitando-o desconfiada.
- Você que pediu?
- Não. Stanson não é bruxo, mas é uma raposa experiente - respondeu Alex, brincando com um bolinho de fina massa folhada.
Carinhosamente, ofereceu o doce a Elsbeth, que o mordiscou de leve. Alexander fitou os lábios vermelhos salpicados de açúcar. Inclinou-se e, devagar, começou
a lamber o açúcar.
Elsbeth entreabriu os lábios, oferecendo-os sem reserva. O beijo veio sôfrego, apaixonado. Ela acariciou-lhe a nuca, brincando com os cabelos ainda molhados,
enrolando-os entre os dedos. Saboreava o beijo com delícia, sentindo o aroma de terra e vento que vinha do corpo quente de Alex. Mais uma vez percebeu que a respiração
dele se tornava entrecortada e ofegante, e adivinhou que novo combate se travava entre o desejo e a razão, pela tensão que se evidenciava num controle de ferro.
Mas não permitiria que Alex se afastasse dela, não dessa vez. Sua mão buscou a orelha do conde, acariciando-a docemente, enquanto sua língua se encontrava com
a dele, em movimentos ondulantes.
O vinho, o calor da lareira, o aroma cheio e denso de pinho queimado misturavam-se ao gosto do beijo escaldante, fundindo-lhes a alma num desejo intenso, quase
agoniante. Alex levantou-se, puxando-a suavemente. Elsbeth percebeu que abrira uma brecha na tremenda resistência que ele teimava em opor ao desejo, e deixou-se
abraçar, tomada de inebriante vertigem.
Subiram as escadas abraçados, sem mais se importar com nada no mundo.
Alex depositou-a sobre o macio colchão de plumas, fitando-a bebendo com os olhos a visão gloriosa de Elsbeth, seus cabelos de fogo, sua pele de cetim, os reluzentes
reflexos dourados das pupilas.
Sua reação masculina foi instantânea. Espirais de desejo subiam-lhe às virilhas em turbilhão, intumescendo-as. Mergulhada em anos de solidão, amargura e dor,
a alma de Alex forcejava para subir à superfície em um pouco de luz.
Quando ele estendeu a mão para Elsbeth, havia uma decisão atormen-tada nos olhos cinzentos.
Ansiosa para apagar os vestígios da culpa torturante que o assaltava, Elsbeth puxou-o com delicadeza para baixo, os olhos claros e dourados dizendo-lhe que estava
tudo bem, que ela estava feliz por se entregar ao homem que amava. E quando os lábios se encontraram, uma infinita ternura os envolveu, dissolvendo em gotas de mel
as duras arestas da amargura. Ela aspirou o hálito de terra e vento, mesclado de vinho, e fechou os olhos, deixando que Alex soltasse os colchetes do vestido. A
respiração dele se acelerou quando Elsbeth o imitou e começou a desabotoar-lhe a camisa. Instantes depois o vestido era atirado ao chão, seguido das anáguas de fina
seda. Os seios firmes saltaram, livres, nas mãos de Alex.
Alex deu um gemido rouco ao ver os seios firmes. Enterrou a cabeça entre eles, beijando enlouquecido o vale branco e acetinado. Sua boca procurou o bico rosado
e sugou-o, passando depois para o outro, insaciável. Elsbeth arquejava, acariciando os cabelos negros. Sem poder se conter, ela segurou a cabeça de Alex e puxou-a
para cima, guiando-a para que ele a beijasse no colo, no pescoço, na boca, mais, sempre mais, até seus nervos parecerem explodir de anseio palpitante.
Alex, sem tirar os olhos de Elsbeth, levantou-se e começou a se despir. Ela retribuiu o olhar com a mesma intensidade, consciente do desejo que lhe minava a
resistência.
Quando o viu nu, seu coração deu um salto diante da pujante força masculina. Alexander Carey era um homem absolutamente soberbo, os músculos firmes e retesados,
as pernas bem torneadas. E a ereção, onipresente, promissora, fê-la tremer de excitação e expectativa quase dolorosa.
Pareceu-lhe, por um momento, que Alex hesitava. De pé, os cabelos revoltos caídos na testa, assemelhava-se a um rapazinho prestes a receber a primeira lição
de esgrima. Elsbeth sabia que ele não queria possuí-la; já havia deixado isso bem claro.Contudo, um não podia mais viver sem o outro, assim como a lua não podia
deixar de existir. Para o inferno com a prudência.
Meiga, Elsbeth estendeu-lhe os braços. Alex sorriu e dessa vez ela identificou no sorriso a rendição do amante. Alex voltou para a cama, estiran-do-se ao lado
de Elsbeth, e sua mão logo começou a passear pelas curvas da cintura delgada. E, por onde passava, reavivava, uma a uma, as chamas que havia acendido antes. Seus
beijos não eram mais eram hesitantes; buscavam-na sequiosamente, com confiante segurança. Elsbeth notou que a ereção se acentuava, quente, exigente.
Ela também ansiava pelo momento de ser penetrada. Mas, como ele, adiava-o. Gostava do que sentia, do desejo avassalador que aos poucos se apossava de ambos até
se tornar intolerável. Entregou-se aos beijos e carícias com ardor redobrado, seu corpo agradecendo e respondendo a cada toque das mãos fortes, macias e protetoras
de Alex.
Ele deslizou para cima do corpo de Elsbeth, estonteado de gozo antecipado. E delicadamente, com infinita paciência e ternura, a fez abrir as pernas. Elsbeth
obedeceu docemente, o corpo todo ansiando para atingir a dimensão de sonho e luz que estava para conhecer.
- Não quero machucá-la, minha rainha - sussurrou ele baixinho.
Ela sorriu, cobrindo-lhe a boca com um beijo, puxando-o, ajeitando-o, indicando-lhe que tudo estava bem, muito bem. Alex começou a se mover devagar, avançando
centímetro por centímetro, forçando-se a conter o ímpeto que o deixava à beira do desespero.
Elsbeth sentia-se subindo, alçando vôo num céu de azul infinito e luminoso, quando, de repente, uma dor cruciante pareceu rasgá-la. Não pôde conter um grito
selvagem e alucinado mas logo começou a ser dominada por outra sensação.
Ondas de excitação começaram a arrastá-la. A princípio eram fracas e espaçadas, por causa da dor; mas logo os movimentos de Alex, carinho-samente controlados,
fizeram com que aumentassem de intensidade, atra-indo-a, puxando-a para mares desconhecidos num louco torvelinho. Entre amedrontada e maravilhada, Elsbeth se aproximava,
pouco a pouco, dessa voragem do desejo.
Alex finalmente sentiu que não mais precisava conter-se. Gemendo, uniu-se ao corpo de Elsbeth numa vertiginosa cavalgada.
Grandes vagas, irresistíveis, levavam Elsbeth a pedir mais, mais. Enlaçou dorso com as pernas, trazendo-o mais fundo Para dentro de si, enquanto as vagas se
sucediam, cada vez mais intensas.
De repente, arqueou o corpo sob o de Alex, e o delírio da sensação nova, avassaladora, a fez gritar.
Abraçou-se a Alex, querendo que aquilo nunca mais terminasse, nunca mais.
- Bom e querido Deus - murmurou ele, ofegante ainda.
Elsbeth sorriu, feliz. Teve absoluta certeza de que ele também nunca experimentara sensação semelhante. Podia já ter feito amor com outras, mas nunca como naquele
momento. E ficou grata a Alex por ele lhe ter dado a entender que esse momento fora único em sua vida.
Ele deixou-se rolar para o lado, embalando-a entre os braços, mimando-a com carícias ternas.
Elsbeth arriscou-se a erguer a cabeça, temendo encontrar os olhos cinzentos atormentados e reservados, mas teve a alegria de encontrá-los claros, cheios de uma
felicidade calma e profunda.
Era o que mais desejava no momento: fazê-lo feliz. Pensando bem, era uma idéia nova e surpreendente. Sua própria felicidade parecia-lhe de menor importância
agora. Nada mais lhe importava, a não ser Alexander Carey, conde de Huntington. Inimigo dos Ker.
Inimigo.
Amado.
Não queria, nunca mais, que aquele sorriso cheio de ternura deixasse o rosto de Alex. Nem que seus olhos perdessem o brilho claro e prateado que tinham naquele
momento. Ela, Elsbeth Ker, tinha conseguido o milagre. E cuidaria para que ele se perpetuasse.
Os lábios dela tocaram-lhe de leve os pêlos do peito, mordiscando. Alex suspirava, satisfeito. Sorrindo, levou os dedos aos lábios de Alex, acompanhando os contornos
da boca voluntariosa, provocando-a a abrir-se num sorriso, que não tardou a se transformar num riso sincero e aberto.
- Você é a criatura mais tentadora do mundo Elsbeth.
- E como sabe? Já experimentou todas as outras mulheres do mundo?
Ele arreganhou os dentes e rosnou, imitando um lobo.
- Prefiro não responder a essa pergunta, senhora minha.
Havia tanta ternura na brincadeira, que Elsbeth sentiu o coração palpitar de alegria.
- Fera!
- Bruxa.
- Patife!
- Feiticeira.
- Selvagem!
- Circe.
- Circe?! Dessa eu não gostei. Não é a feiticeira que transformava os homens em porcos?
Ele deu uma gargalhada gostosa.
- Além de bonita e tentadora, milady é culta. Está bem, concedo. Acho que perdi o duelo de xingamentos...
- Não há disputa comigo. Eu sempre ganho, milorde.
- Mulher culta, língua de víbora. Conhece o ditado?
- Inventado por quem não tem mais o que fazer. Milorde gostaria que eu fosse burrinha então?
- Nunca. Quero você exatamente como é, minha feiticeira encan-tadora...
Não pôde continuar. Os lábios dela colaram-se aos seus, calando-o. Alex começou a sentir, quase instantaneamente, a resposta do corpo faminto. Na primeira vez,
fora cuidadoso e contivera o mais que pudera seu desejo desen-freado. Mas agora não temia mais causar dor a Elsbeth. Seu membro ergueu-se, ereto, exigindo mais.
Mergulhou de corpo e alma dessa vez, sabendo que o primeiro encontro fora apenas um prelúdio do que estava para vir.
Juntos, e para mundos inexplorados, de sonho e êxtase. Deram de si, tomaram de cada um, até que o arrebatamento, glorioso e abrupto, brindou-os com um único
e raro instante supremo.
A manhã veio depressa demais, pelo menos para o gosto de Elsbeth, aninhada nos braços do conde. Um beijo suave em seus cabelos contou-lhe que ele também despertara.
Elsbeth sentiu uma pontada de medo. Esperava, com todas as forças do coração, que ele não estivesse arrependido. Não sabia se suportaria ver a tempestade atormentada
novamente instalada nos olhos do conde.
A mão dele acariciou-a delicadamente, quase com reverência, explo-rando as curvas de seu corpo nu. Elsbeth se aconchegou, cada sentido alerta, respondendo às
lembranças das maravilhosas sensações da véspera.
Contudo, e apesar da evidente excitação dele, Alex se afastou com firme-za gentil.
- Northumberland costuma ser madrugador - disse ele, com doçura, não querendo magoá-la. - Ele chegará daqui a pouco.
Elsbeth sentiu uma pontada de apreensão. Toda ela se rebelava ante a idéia de saírem dali; tinha a sensação de que, uma vez fora daquela magia, Alex voltaria
a apresentar o antigo sorriso triste e reservado.
- Eu te amo, Elsbeth - falou ele, como se ouvisse seu pensamento. - Nunca mais nos separaremos.
Os olhos dourados fixaram-se nele, em muda interrogação.
- Está disposta a casar-se com um Carey?
- É um Carey bastante diferente, milorde.
- E milady, uma Ker bastante diferente.
- Então seremos um casal diferente.
- Sem dúvida. Aceita este marido diferente?
- Aceito, Alex - respondeu ela, num misto de felicidade e apreensão.
- Elsbeth, nos dois vamos enfrentar muita resistência. Sabe disso, não é?
- Sim, mas meu clã...
- Você terá de deixar seu clã - atalhou ele, gentilmente.
Ela o encarou, uma semente de dúvida começando a crescer em seu coração. Huntington ficava a poucas milhas de seu castelo; era, contudo, parte de uma nação inimiga.
Elsbeth acostumara-se a associar Alex às suas terras, não às dele. Fora lá que nascera o amor entre eles. Além disso, tinha suas responsabilidades.
Bom Deus! Responsabilidades! Vergonha, culpa, auto-recriminações tomaram conta dela, substituindo o sentimento de felicidade que vinha experimentando nos últimos
dias. Contudo, não substituía o amor.
Alex mudara de expressão, consciente da luta que se travava no íntimo da jovem e guerreira líder.
O olhar luminoso de Alex perdeu a cor, e o sorriso encantador transformou-se num esgar meio irônico, meio triste. Elsbeth adivinhava que o conde jamais tentaria
persuadi-la de nada; a decisão teria de ser sua, apenas sua. Era óbvio que ele já sabia a resposta.
- Alex...
- Vista-se, Elsbeth. Vou ajudá-la - cortou ele, não querendo ouvir mais.
Ela sabia que Alex se trancara em si mesmo, deixando-a do lado de fora. Mas nada podia fazer. Bom Deus, como poderia conviver com ingleses, com os Huntington?
Como fazer do condado um lar, sabendo que os soldados de Huntington haviam matado seu pai e quase trucidado todo seu clã?
Silenciosamente, deixou-se vestir, admirando a suavidade das mãos calosas enquanto ajustavam os pequenos colchetes.
Quando ela se viu pronta, Alex deu-lhe as costas e começou a se vestir. Elsbeth sabia que devia ir para baixo, mas quis ficar mais alguns minutos com o homem
que amava. Observou-o escolher uma roupa clara, de fina lã. Alex se vestiu em instantes; tudo o que fazia era assim. Eficiente e preciso.
Quando terminou, os olhos cinzentos estavam cruelmente inexpressivos.
- Ainda está aqui, milady?
Elsbeth recuou, sentindo o golpe. Alex sabia que ela não deixara o quarto; aquela pergunta fora uma alfinetada que não era própria do homem que tanto admirava.
Nesse instante, estremeceu ao ouvir uma pancada seca e imperiosa na porta. Sem esperar resposta, Sua Graça o duque de Northumberland entrou, sorrindo para Alex.
Mas o sorriso se transformou em divertida surpresa quando seus olhos depararam com Elsbeth, cujos trajes eram obviamente mais apropriados para a noite.
O duque dirigiu um olhar carregado de significação para Alex e curvou-se diante de Elsbeth.
- Minhas desculpas, senhora. Pensei que Alex estivesse sozinho.
O rosto dela se fez escarlate. Vasculhou na mente uma desculpa apropriada para estar ali, mas não a encontrou.
E então, movida por seu orgulho escocês, ergueu o queixo, em desafio. Não tinha nada que dar desculpas àquele velho empapuçado. Encarou-o com frio desdém e perguntou,
olhando para a porta:
- Tenho vossa permissão para sair?
- Mas é claro, lady... Ker, não é assim?
Elsbeth teve ganas de estapeá-lo. Melhor ainda, de enfiar uma espada naquele peito arrogante.
Alex percebeu o brilho perigoso nos olhos de Elsbeth, quase negros agora. Conhecia-o bem; era melhor tomar alguma providência, e depressa.
- Milady passou pelo meu quarto apenas para perguntar quando eu poderia soltá-la.
- Como é que disse? - inquiriu Northumberland, confuso.
- Não tive tempo de explicar-vos ontem. Lady Ker é minha... prisioneira. Minha refém.
Não fora essa, obviamente, a impressão do duque. Mas ele adivinhou a súplica dissimulada no sorriso de Alex e abriu caminho para Elsbeth.
Esta passou por ele vagarosamente, de cabeça erguida, mais digna que uma rainha. E sumiu no corredor.
- Uau! Ufa, meu velho, que mulher! Nem de leve imaginei isso ontem, quando vi aquele garotinho maltrapilho. Agora, vamos a sua história. Que negócio é esse?
Prisioneira, refém?
- Primeiro estou precisando de ar fresco - disse Alex, tentando ordenar os pensamentos. - Sei que Vossa Graça acaba de chegar de Londres, mas mesmo assim...
- Muito bem, vamos cavalgar um pouco. Aliás, estou com alguns cavalos novos no estábulo. Vamos experimentá-los?
- É um prazer e uma honra - disse Huntington, com alívio evidente.
Seria ótimo dissipar um pouco de sua frustração e amargura no lombo de um cavalo.
Uma vez no bosque, longe de ouvidos indiscretos, Northumberland virou-se para Alex, que cavalgava distraidamente ao seu lado.
- Vamos lá, meu rapaz, que negócio é esse de prisioneira? Bem sabe que quero paz por aquelas bandas.
- Não mais que eu, Vossa Graça.
- Então, comece a se explicar.
- Eu era prisioneiro dessa moça. Faz duas semanas.
Northumberland encarou o amigo. Seu sorriso se acentuou.
- Ela não me parece muito assustadora, Alex.
- Mas é, quando quer. Especialmente quando está num cavalo, e eu quase nu diante dela.
O duque esperou que Alex continuasse, mas este se calara.
- Quer continuar a história ou prefere que eu adivinhe?
- Numa manhã eu saí para nadar no lago. Os Ker estavam a minha espera, emboscados. Ninguém conhecia esse hábito meu, a não ser John. Fui apanhado e aprisionado.
Os Ker enviaram um pedido de resgate, mas não houve resposta nenhuma.
Northumberland já não sorria.
- Demônios, Alex! Eu sabia que esse seu irmão era um tratante, mas nunca um assassino. Porque ele sabia que você seria morto, caso não hou-vesse resgate. É,
meu amigo, dessa vez John foi longe demais. Que pretende fazer agora?
- Não tenho provas contra John, e ele tem amigos espalhados ao longo da fronteira. Meu irmão tem conseguido pôr a culpa de tudo nas costas dos Ker, mas essa
não é a verdade.
Houve um silêncio, cortado apenas pelo barulho surdo dos cascos na terra fofa.
- Como conseguiu escapar? E raptar nossa bela herdeira?
- Os Ker têm um traidor. Não sei quem é. Lady Elsbeth quer saber de quem se trata.
- Entendo. Então vocês se uniram para apanhar os dois traidores. John Carey de um lado, um Ker do outro. Parece enredo de romance, dos mais fascinantes, meu
jovem. Como conseguiu convencer a moça a acompanhá-lo?
- A princípio foi difícil. Tentei fugir certa ocasião, mas fui ferido. Creio que lady Ker, sabendo que Vossa Graça é meu amigo, adivinhou que minha morte poderia
provocar uma invasão inglesa na fronteira, e isso significaria a destruição do clã. Ela só queria um resgate. Porém, quando o dinheiro não veio, os homens do clã
começaram a exigir que eu fosse enforcado.
- Com mil demônios, essa história está complicada demais Para minha pobre cabeça de estadista. Você foi ferido? Não acredito. Você, o melhor espadachim que conheço?
- O outro era melhor. Foi uma luta honesta, eu vos asseguro.
- Meu bom e velho Alex. Nunca se cansa de aventuras?
- Estou cansado agora, Vossa Graça. Mas parece que tenho pouca escolha. Para onde me viro, há brigas e violência.
- E a moça, a tal prisioneira... Ela consentiu em ser raptada?
- Não, Vossa Graça - respondeu Alex, contente de poder dizer a verdade. - Ela me auxiliou a fugir, mas não queria ir comigo. Eu... tive de deixá-la inconsciente.
Northumberland encarou-o, assombrado. Alex seria incapaz de bater numa mulher; conhecia-o bem demais. Aliás, o duque não conhecia ninguém que desse mais valor
à honra do que Alexander Carey. Era uma qualidade que apreciava e admirava. Porque ele próprio, admitia-o tranqüilamente, nem sempre punha a honra em primeiro plano.
- Bem, meu rapaz, acho que você tinha lá suas razões para fazer isso. Elas não me interessam no momento, embora algo me diga que têm muito que ver com nossa
charmosa prisioneira. E agora, qual é sua idéia?
- A idéia é lady Ker me ajudar a atrair meu irmão e o traidor Ker para alguma armadilha.
- Nada mais?
- Bem, talvez - admitiu Alex, depois de uma breve pausa. - O problema é que lady Ker não consegue se esquecer de que sua família é inimiga da minha.
- É um problema, admito - concedeu o duque, fazendo uma careta. - Mas você ainda não me disse qual é seu plano. Em que posso ajudá-lo, meu filho?
- Antes de mais nada, quero que estejais bem ciente de que tudo o que está acontecendo na fronteira é culpa de meu irmão. Se alguma coisa me acontecer, não quero
que os Ker sofram por minha causa.
A expressão de Northumberland endureceu.
- Eles raptaram você, um conde de meu reino.
- Depois de muita provocação, Vossa Graça. Meu pai e meus irmãos mataram o pai de lady Ker numa vergonhosa emboscada.
- Alex, às vezes sua honestidade é irritante. Por isso não tem futuro como político...
- Suplico-vos que sustenhais qualquer retaliação contra os Ker.
- Nesse assunto, e somente nesse, concordo.
- Por enquanto isso me é suficiente. Obrigado, Vossa Graça.
- Que mais deseja?
- Meu plano é o seguinte: forçar um encontro entre meu irmão e o Ker traidor, em frente das duas famílias. Só assim conseguirei a paz nas fronteiras; é o único
modo de uma deixar de jogar a culpa na outra. Vede, Vossa Graça; se eu desmascarar somente meu irmão, os Ker julgarão que a culpa é toda dos Huntington. E vice-versa.
Northumberland assobiou baixinho.
- É um plano perigoso, Alex. Ambicioso demais.
- Não vejo outra solução.
- E nossa feroz pantera lá em cima?
Ao duque não passou despercebida a mudança da expressão do amigo.
- Pelo que entendi, ela quer ficar com o clã.
- No entanto, ela o ajudou. Agiu contra o clã - disse Northumberland, cocando o queixo. - Quer saber de uma coisa, meu filho? Acho que um casamento entre vocês
vem mesmo a calhar. Servirá para unir escoceses e ingleses, pelo menos na fronteira. Aprovo inteiramente!
- Duvido que lady Ker aprove.
- Hum... - fez o duque, com ar de dúvida.
Mas não quis dizer mais nada. Com um aceno, desafiou Alex para uma corrida.
Capítulo XVII
Na hora do almoço, Elsbeth olhou sem apetite para a multidão de pratos que se sucediam, cada um mais extravagante que o outro. Toda a vez que se voltava para
Alex, sentia um vazio no lugar do coração. E não gostara nem um pouco do arrogante duque de Northumberland, cuja frieza se suavizava somente quando seus olhos mortiços
pousavam em Alex.
Tentava se convencer de que estava enganada; afinal, Alex não seria amigo de quem não lhe merecesse a confiança. Mas o sorriso do duque parecia-lhe falso e enganoso.
- Então, minha jovem, Alex me disse que não teremos o prazer de sua companhia por muito tempo?
Elsbeth encarou o conde, mas o olhar cinzento permaneceu impene-trável.
- A decisão está nas mãos de lord Huntington, Vossa Graça. E ele ainda não teve a gentileza de me contar seus planos.
- Bem, você é prisioneira dele.
- É o que parece.
Ele deu um risinho.
- Gostaria de saber quem é prisioneiro de quem aqui.
- De outra forma eu não estaria na Inglaterra, Vossa Graça.
- Sim, sim. Já soube de tudo.
- Tudo? - Elsbeth corou até a raiz dos cabelos.
- Contei a ele, milady - acudiu Alex -, que fui seu prisioneiro durante algum tempo, antes de os papéis se inverterem. Contei também que pedi a milady que me
ajudasse a desmascarar os dois traidores de nossas famílias.
- São poucas palavras para descrever um caso complicado - disse ela, com frieza. - E quando posso voltar então, por favor?
- Está tão impaciente assim, milady?
- Estou, milorde.
"Mentira! Eu quero ficar com você para sempre!"
- Amanhã, então - retrucou Alex, impassível.
"Não vê meu desespero, Elsbeth? Quero que você fique!" Alex levantou-se brusco, empurrando os talheres.
- Preciso de ar, meu senhor. Tenho vossa permissão?
Elsbeth fechou os olhos. Não queria que ele saísse dali, mas seu orgulho a impedia de falar. Não na frente daquele duque de araque. Quando abriu os olhos, achava-se
sozinha diante do homem mais importante da Inglaterra.
- Milady?
Ela ergueu vivamente os olhos fulgurantes. Não gostava do duque, agora tinha certeza.
- Eu não gostaria de ver Huntington ferido.
Apesar da gentileza com que falara, havia um toque de ameaça no tom de voz. Elsbeth era uma escocesa. E não gostava de ameaças feitas por um inglês arrogante.
- Que interesse tendes nele, posso saber? Já ouvi falar que vosso inte-resse se resume numa única palavra: poder.
Northumberland sorriu. A pantera mostrava suas garras, afinal. Estava começando a admirar a coragem daquela moça, sozinha num país hostil.
- Milady ouviu corretamente. Poucas coisas me interessam, além de manter a pessoa certa no trono inglês. E a religião mais adequada ao país que sirvo.
- Então não...
- Alex é uma exceção. Parte por minha causa, esse rapaz comeu o pão que o diabo amassou. E ele conseguiu superar tudo, tendo vencido onde muitos outros falhariam.
- Por vossa causa?
- Que lhe contou ele, lady Ker?
- Ele... só me disse que esteve nas galés.
- Não lhe contou por quê?
- Não, Vossa Graça.
Northumberland considerou-a em silêncio, sem saber se tinha o direito de falar mais. Contudo, os olhares desesperados dos dois hóspedes não haviam escapado a
sua arguta observação. Tinha pena deles. Mais que isso: invejava-os.
- Ele esteve na França por muitos anos, milady. Passou os primeiros tentando resgatar os huguenotes das garras do rei católico. Os demais, passou-os pagando
pelo bem que tentara fazer.
- Dissestes que parte disso era culpa vossa?
- Sim. Porque eu queria que Alex fosse à França, não para consertar o que estava errado, e sim para ajudar a acirrar o ódio entre a França e a Escócia.
- Desculpai-me, mas não entendi bem.
- Essas rusgas são boas para enfraquecer. Enquanto isso, a Inglaterra se fortalece. Simples, minha cara. Milady é protestante?
- Sim. Metade dos escoceses da fronteira é protestante.
- Contudo, dentro dessas fronteiras a maioria é católica.
- Sim, mas não entendo...
- Pense, lady Ker. A perseguição francesa aos huguenotes serviria para aprofundar o antagonismo entre católicos e protestantes na sua Escócia. Lembre-se, sua
rainha Mary tem um meio-irmão que é protestante.
Elsbeth começou a compreender. O irmão da rainha, sendo protestante, seria muito mais bem aceito na corte inglesa do que a rainha, que, além de católica, ainda
reivindicava o trono inglês. Mas por que o duque lhe contava tudo isso?
- Alex era vosso espião?
- Nunca. Ele queria ir; ansiava por aventuras e tinha intenções nobres. Ainda assim, eu tinha plena consciência de que ele se meteria num inferno. Encorajei-o
a ir por interesse próprio, sem pensar no dele.
- Sentis remorso agora?
- Remorso, eu? Não. Fiz o que achava que seria melhor para minha pátria, milady. E faria de novo, se fosse necessário. Mas, no meio dessas intri-gas todas, terminei
por admirar tremendamente nosso conde de Huntington. Aprendi a respeitá-lo. Alex pode ajudar muito a Inglaterra, tomando conta das fronteiras. Precisamos de alguém
como ele lá, honesto, leal, bom guerreiro.
- Leal, principalmente - ecoou Elsbeth, com uma nota irônica.
Agora sabia por que não gostava do duque. Ele se preocupava apenas em ter gente leal na fronteira. Isto é, leal à Inglaterra.
- Sim, milady. Quando Alex entrega sua amizade a alguém, ou mesmo seu... amor, não há mais volta para ele.
- Por que achais que eu não vou contar tudo isso para o conde de Huntington?
- Milady pode contar, se quiser. Mas então eu não estaria mais em condições de ajudá-lo, porque ele mesmo não deixaria. É isso o que quer?
- Alex... Isto é, o conde de Huntington acabará sabendo quem é seu melhor amigo.
- Não se engane comigo, milady. Eu gosto de Alex. Sempre gostei, e sempre tive pena de meus filhos não se parecerem com ele. Tem uma força de caráter admirável.
E eu não estou disposto a perdê-lo, nem como meu guer-reiro, nem como meu amigo. Não deixarei, não permitirei que lhe façam mal.
Elsbeth atirou a cabeça para trás, num gesto altivo.
- Exceto vós mesmo.
Northumberland voltou a sorrir. A pequena tinha fibra. Daria uma exce-lente companheira para Alexander Carey.
- Exceto eu. Tem língua ferina, milady. Bem, vou me juntar a meu amigo e traçar os planos para providenciar sua volta à Escócia.
Inclinou-se e deixou-a sozinha.
Elsbeth rodou a taça vazia entre os dedos, sentindo-se miseravelmente solitária. Num ímpeto de raiva, arrojou-a contra a parede.
Depois do almoço, Elsbeth resolveu dar uma volta nos arredores e visitar o estábulo. Precisava ordenar seus pensamentos, cada vez mais confusos.
Estava indignada com a cínica complacência com que Northumberland confessara ter-se servido de Alex apenas para satisfazer seus obscuros propósitos políticos.
Velho inglês maldito. Contudo, suspeitava que Alex, mesmo sabendo desses propósitos, teria ido do mesmo jeito à França. Qual teria sido a participação de Nadine
nessa história?
Northumberland não mencionara a francesa nenhuma vez, e Elsbeth não quisera perguntar nada sobre esse assunto, embora fervesse de curiosidade.
Voltar para a Escócia. Precisava pensar nisso, não em Nadine, huguenotes e católicos.
Seu coração parecia apertar-se no peito a cada vez que pensava em deixar Alexander. Voltaria a ver o sorriso dele claro, iluminado e apaixonado? Nesse dia Alex
voltara à antiga reserva, desde que haviam conversado pela manhã. Uma reserva dolorida, cheia de sombras.
E com razão, bom Deus. Uma família desinteressada, a mulher amada queimada numa fogueira, as galés, o irmão traidor. Era o suficiente para desanimar qualquer
um. De repente, os problemas e desenganos dela pareceram-lhe ínfimos e mesquinhos. Tivera um pai amoroso e sua infância fora feliz. Vivia rodeada de respeito e afeto;
nada lhe faltava. Pobre Alex! Reviu-o na biblioteca, de olhos vendados. Lembrou-se de como ele a espantara quando, num sorriso zombeteiro, pedira-lhe vinho e livros.
Agora espantava-se mais ainda. Alexander havia acabado de deixar um inferno, e contudo ainda encontrava forças para ironizar e brincar consigo mesmo.
O sol espalhava fogo em seus cabelos, os passarinhos cantavam, o lago parecia adormecido dentro de um espelho. Mas Elsbeth nada via, concentrada em seus pensamentos.
Rememorou a conversa da manhã. Sentira uma dor pungente atravessar-lhe o peito quando os olhos cor de prata mudaram para um cinza escuro e sofrido. E isso acontecera
por sua causa. Minutos depois de ela ter decidido que não deixaria mais acontecer.
Bem, um dos primos cuidaria do clã. Ambos tinham boas qualificações; qualquer que fosse o traidor, o outro poderia substituí-lo sem prejudicar sua gente. Era
duro de admitir, contudo ela não era insubstituível. O clã viveria muito bem sem sua liderança.
Claro, teria de primeiro desmascarar o traidor. Mas depois se casaria com Alex, inglês ou não, Carey ou não. Se ele ainda a quisesse.
Se ele ainda a quisesse, bom Deus...
Pouco antes do jantar, Sylvie veio perguntar se ela gostaria de fazer a refeição no quarto.
- Onde estão Huntington e Northumberland?
- Fechados na sala já faz um bom tempo. Não acredito que saiam para jantar, milady.
- Pode deixar, Sylvie, obrigada. Eu estou sem fome mesmo.
Elsbeth afundou-se na poltrona, em solitário abandono. Precisava conversar com Alex. Precisava dizer-lhe que o amava, que queria se casar com ele. Alegremente,
sem reservas, sem medos.
Olhou melancolicamente para o vestido cinza-prateado que escolhera com tanto cuidado, pensando em prestar uma delicada homenagem aos olhos de Alex.
"Muito bem, Elsbeth Ker, se o inglês não vier até você, você irá até ele."
Mais sossegada com a decisão, dispôs-se a ler um pouco. O duque tinha uma biblioteca reduzida, mas de qualidade. Contudo, sua atenção desviava-se constantemente
a cada ruído. Esperou. E esperou.
Quando o pavilhão todo parecia mergulhado em profundo sono, Elsbeth deslizou silenciosamente pelo corredor, parando em frente ao quarto do conde de Huntington,
sem hesitação. Abriu a porta sem bater antes.
Alex, da mesma forma que ela, achava-se ainda vestido, um livro aberto na mão, o olhar perdido na janela. Sob a luz bruxuleante do toco de vela, seu rosto parecia
entalhado em granito.
- Elsbeth?
O tom neutro e distante feriu-a profundamente. Elsbeth perdeu a segu-rança e começou a amassar a saia entre os dedos.
- Alex, eu...
- Dois homens da confiança de Northumberland irão acompanhá-la até a fronteira amanhã. Acalme-se, milady. Pode se gabar de ter escapado deste vilão inglês.
- E o plano?
- Ah, sim, o plano. Deixei para contar amanhã, mas já que você está aqui...
Elsbeth esperou, observando-o levantar-se e ir até a janela. Notou que ele se empenhava em manter-se afastado, como se sua presença lhe causasse mal-estar. Finalmente,
o conde se virou para ela.
- Ainda quer se envolver nessa história?
- Quero.
Alexander começou a falar, observando-a enquanto expunha a idéia que tivera naquela tarde. Às vezes, distraído na contemplação da esguia silhueta recortada na
sombra, perdia o fio do pensamento. Quando terminou, perguntou:
- Acha que pode fazer isso?
- Posso.
A vontade contida de correr até ela, aninhá-la nos braços, enchê-la de beijos doía-lhe no peito. Contudo, sabia que isso só serviria para tornar as coisas mais
difíceis. Para ambos.
Elsbeth, no entanto, não partilhava os mesmos escrúpulos. Adiantou-se e fitou-o com olhos meigos e suplicantes.
- Se ainda quer se casar com esta Ker escocesa, saiba que ela se sentirá muito honrada.
Falou baixinho, com uma timidez que nunca sentira antes, e aguardou em ansiosa expectativa.
A transformação foi instantânea. A reserva e a belicosidade transfor-maram-se num sorriso arrasadoramente iluminado, cheio de ternura e gratidão.
Mas ele não se mexeu. Nem ela, ainda enleada.
- Tem certeza, Elsbeth?
Bom Deus, ela nunca tivera tanta certeza na vida como agora, particularmente naquele momento em que a emoção fluía em correntezas devastadoras entre ambos. Como
os rios da Escócia depois da tempestade. Eram torrentes que arrastavam consigo todos os detritos de tristeza e ressentimento, lavando-os e deixando-os na margem,
para prosseguir em frente, sempre em frente.
Elsbeth tremia do esforço que fazia para não enchê-lo de beijos. Precisava de Alex de tantas formas, gostava dele de tantos modos diferentes!
Apaixonadamente.
Ternamente.
Espiritualmente.
Eram duas almas fundidas numa só, desde o primeiro dia. Queria a alma e o coração de Alex, e sabia que os tinha dentro de si. Assim como ele tinha sua alma e
seu coração.
Não foi preciso responder; Alexander Carey sabia ler seu pensamento.
Então, ele abriu os braços, fitando-a intensamente.
Elsbeth sufocou um soluço e correu para ele, fazendo-se pequenina entre os braços protetores.
- Eu te amo, Alex. Para sempre, mesmo depois da morte, na eternidade.
- Tudo isso, meu amor? É um tempo muito longo.
Era um pouco da velha ironia que voltava. Elsbeth sentiu um aperto na boca do estômago. O conde de Huntington ainda não confiava na sua deci-são. Confiaria algum
dia?
- Não precisa me prometer nada, Alex.
Alex afastou-a um pouco, mergulhando seus olhos nos dela. Elsbeth lhe oferecia um presente, um tesouro, que ele não sabia se estava preparado para receber. Queria
o tesouro, só Deus sabia como. Mas hesitava em acreditar nesse milagre da boa fortuna. Tinha receio de perder seu tesouro. Tinha medo de que esse sonho se desvanecesse,
como a neblina da noite aos primeiros clarões da aurora.
Sem dizer nada, apertou-a de novo contra o peito. Inquieta, Elsbeth perguntou:
- Quer voltar atrás, Alex?
- Não - disse ele, sentindo o músculo logo abaixo do olho tremer incontrolavelmente. - Mas não quero que você se arrependa dessa decisão. Eu não suportaria o
golpe.
- A única coisa de que me arrependo é dos dias e horas perdidos para nós dois.
- Elsbeth, minha Elsbeth, eu te amo tanto... Não quero que vá para a Escócia. Tenho medo, minha querida.
- É preciso, Alex. De outra forma, nunca teremos paz.
O conde fechou os olhos.
- Meu consolo é a esperança que tenho de que nada vai lhe acontecer, minha rainha e senhora.
Buscou sofregamente a boca de Elsbeth. Ela entreabriu os lábios para receber o beijo, respondendo com a mesma ânsia arrebatada.
O conde suspendeu-a no colo e levou-a para a cama, beijando-a com paixão nos olhos, na testa, nos cabelos. Arrancou as roupas enquanto a fitava, como que temeroso
de que a visão estonteante da linda mulher que o espe-rava se dissolvesse no ar. O vestido prateado fundia-se com a luz do luar, realçando a brancura acetinada da
pele, o fogo dos cabelos. Que linda ela era, aquela sua escocesa.
Insinuou a mão sob o veludo macio, em busca dos seios, dos bicos rosados. Com a outra, desatou os colchetes que os aprisionavam, antego-zando a visão do corpo
nu de Elsbeth. Quando o viu, seus olhos-se esgaze-aram, fixos em muda adoração.
- Elsbeth... minha rainha...
Deitou-se sobre o corpo dela, saboreando o calor perfumado, a maciez da pele, o gosto de morango silvestre da boca que se oferecia sem resistência.
Devagar, começou a lamber-lhe os seios, mordiscando os bicos, envolvendo-os com a língua. Quando os sentiu firmes e intumescidos, levou a cabeça para baixo,
depositando pequenos beijos ao longo do ventre liso. Ouviu Elsbeth gemer baixinho quando sua língua viajou mais para baixo e atingiu o triângulo sedoso do púbis.
Os dedos acariciaram com volúpia ardente a parte mais íntima e secreta de Elsbeth, em movimentos suaves. Elsbeth gritou de êxtase e delírio, arqueando o corpo para
receber os carinhos.
E então ele a cobriu com seu corpo, penetrando-a com firmeza, criando um desejo urgente em Elsbeth, que se abria para recebê-lo mais fundo, o corpo respondendo
instintivamente, puxando-o para o abismo do prazer. Alex arremeteu com furor, com investidas rápidas e fortes, até que os dois alçaram uma onda impetuosa e gigantesca
que os varreu, juntos, para as profundezas da voragem das sensações, explodindo num gozo quase insuportável.
Elsbeth sentiu que Alex, numa última e agoniada remetida, se desfazia em lava quente dentro de seu ventre. E soube que ele estava saciado e feliz quando seu
corpo deixou-se cair sobre o dela, ofegante, tomado de pequenas convulsões.
Alex rolou de costas e fez com que Elsbeth se deitasse sobre ele. Ainda queria sentir o calor e o perfume daquele corpo que tão facilmente o enlou-quecia.
- Insaciável! - brincou ela, ainda trêmula pelos efeitos da maravilhosa invasão que sofrerá.
- Hum...
As bocas se encontraram, ainda ávidas. Levada pelo instinto, Elsbeth pôs-se a mover o corpo sensualmente sobre o dele, enquanto seu beijo se tornava mais exigente,
mais quente e prolongado.
Alex reagiu de imediato embora minutos atrás julgasse que isso seria impossível.
Incitada pela resposta quente e urgente, Elsbeth moveu-se mais depres-sa, sentindo o desejo voltar em ondas, apagando qualquer traço de timidez de seus gestos.
Com paciente ternura, Alex ensinou-a a cavalgar sobre a ereção, guiando seus movimentos com doçura.
Elsbeth viu-se penetrada e invadida como nunca o fora, até os recônditos da alma, num gozo novo e desconhecido. Passou a mover-se lentamente, enquanto observava
os olhos do amado escurecerem-se de paixão e desejo irrefreável.
Espasmos de prazer fizeram-na contorcer-se sobre o corpo dele, cavalgando-o em galope desenfreado rumo a um nirvana que ainda lhe era desconhecido, mas que ela
sabia estar ali, logo adiante. Ambos moviam-se em perfeita harmonia de ritmo, uma dança selvagem e frenética, de mãos dadas, em busca da estrela mais distante do
céu.
Quando finalmente a alcançaram, o êxtase colheu-os, levando-os para um turbilhão onde as cores do arco-íris giravam doidamente em volta da estrela que os cegava
e ofuscava. E ambos gritaram, enquanto o corpo de Alex expelia novamente um rio morno de mel.
Nada mais disseram. Não era preciso. Enovelaram-se num abraço terno, cheios de grata exaustão. Algum tempo depois Elsbeth adormeceu, enquanto Alex acariciava
sua cabeça.
Ele ajeitou o travesseiro para vê-la melhor. Aquela mulher maravilhosa era sua. Faria tudo o que pudesse para suavizar o caminho de pedras que ela teria de percorrer
a partir do dia seguinte.
Tocou o ventre liso e macio, agora cheio de seu sêmen. Pensou numa criança, e seu rosto se iluminou de prazer. Uma? Não. Uma dúzia. Todos sardentos e ruivos.
Engoliu o grande nó que se instalou em sua garganta. Bom Deus o que aconteceria se ele morresse? Elbeth daria à luz um filho bastardo.
Porque tinha absoluta certeza de que fizera um filho. Absoluta. O amor, a comunhão, a compreensão mútua foram grandes demais, imensos.
Alex sorriu na madrugada que se avizinhava. Iria se casar com ela naquela manhã. Northumberland providenciaria tudo; bastava-lhe pedir ao amigo.
O sorriso se alargou e os braços de Alex apertaram mais o corpo de Elsbeth. Depositou um beijo suave na orelha dela e fechou os olhos. Feliz.
Capítulo XVIII
O pouco de civilidade que os dois fingiam deixara de existir por completo.
- Inglês bastardo!
- Cão escocês!
- Imbecil rematado!
- Covarde!
A luz leitosa da lua não escondia os rostos avermelhados, inchados de ódio. Ambos previam a ruína. Um deles temia o desmascaramento mais que a própria morte;
o outro, não.
O escocês, conhecendo as conseqüências que sofreria ao ser descoberto, quase se expunha de peito aberto ao inglês. Era quase como se cortejasse a morte, convidando-a
a levá-lo.
Elsbeth se fora, raptada pelo conde inglês. O fato de não saberem de seu paradeiro era suspeito demais. Demônios, que fizera?
Até então, o escocês costumava achar muitas e boas razões para os passos que dera. O velho Robert Ker só fazia falar em paz, paz, paz. Para ele, isso significava
a lenta desintegração do clã. Guerreiros deviam viver para a guerra, não para a paz.
Desprezava a fraqueza e sentia que poderia dar um bom líder. Ao lado de Elsbeth, tudo fazia sentido para ele.
Mas não havia mais Elsbeth. Talvez estivesse morta. Ou violentada pelo maldito bastardo, aquele inglês filho de uma cadela.
Gradualmente, o desespero fora se instalando em sua alma. Amava Elsbeth; tivera outras mulheres, mas nunca lhe passara pela cabeça casar-se com nenhuma delas.
Amava-a desde Que era pequenino, e desde essa época vinha fazendo o possível e o impossível para tornar-se seu marido. E herdeiro do castelo Ker.
Por sua culpa, agora Elsbeth corria perigo.
Levado pela cobiça,subestimara o poder belicoso do conde de Hunting-ton. Apesar da quase vitória de Alexander Ca-rey naquele dia da luta, ainda assim atribuíra
o fato ao capricho da sorte. Louco que fora!
Pensamentos semelhantes atravessavam a mente de John Carey. A frustração corroía-o por dentro, devorando-lhe as entranhas. Ambos tinham devassado as florestas
densas, palmo a palmo, árvore por árvore, rastro por rastro, durante dias seguidos. E noites seguidas. Em vão.
John havia contratado espiões para vigiarem as estradas para Londres, mas ninguém conseguira identificar o conde e a jovem castelã.
- E agora, que pretende fazer? - rosnou o inglês.
- Não sei ainda. Só sei que se minha dama estiver... com um só arranhão, matarei você e seu irmão bastardo.
- Pode ser que ela tenha feito aliança com Alexander.
- Um Carey? - cuspiu o outro, com desprezo. - Ela odeia sua família mais do que eu.
- Meu irmão sabe ser insinuante e atraente quando quer, escocês.
- Elsbeth está acima disso. .
- Ainda assim, acho que alguém o ajudou a fugir.
- Não tenho tanta certeza assim. Ele quase conseguiu fugir uma vez, e estava sozinho e desarmado. O maldito fingiu-se de bonzinho e honesto; conseguiu ludibriar
os guardas de novo. Sou forçado a admitir que seu irmão está longe de ser burro.
- Pura sorte.
- Que aconteceu com ele durante todos esses anos? Todos pensávamos que já estava comendo grama pela raiz.
- Não sei e nem quero saber. Alexander nunca me contou nada.
- Você subestima seu irmão. Cuidado, inglês! Que pretende fazer agora?
- Continuar procurando. Alguém o está ajudando, tão certo como dois e dois são quatro.
- Então procure entre seus homens.
- Vou mandar reforçar as buscas. Com mil demônios do fundo do inferno, hei de achá-los! Eles não podem desaparecer no ar! Diabos me levem!
- Lembre-se de que eu avisei, inglês. Minha dama. Quero-a de volta sã e salva. Não lhe faça mal nenhum, está ouvindo, maldito?
John mirou-o de alto a baixo com desdém.
- Farei o que deve ser feito. E você, fique de olhos e ouvidos bem atentos. Se alguma coisa me acontecer, Ker dos infernos, tudo o que você tem feito até agora
será revelado ao seu precioso clã. Tenho a ligeira impressão de que aquela lambisgóia vermelha que você chama de minha dama não gostará nem um pouquinho da história.
O escocês tirou a espada da bainha, mas John foi mais rápido. De pistola em punho, fuzilou o inimigo com os olhos:
- Guarde essa espada, escocês maldito. Ainda preciso de você, infeliz-mente. Por enquanto.
- Quando essa história terminar, terei prazer em fazer picadinho de você.
- Somos dois.
E com essas gentilezas, os dois se separaram na noite.
Não era aquele, exatamente, o tipo de casamento que gostaria de ter. Cinco pessoas apenas estavam presentes: o ministro, Northumberland, o mordomo Stanson, ela
e Alex.
Um ministro inglês, que obviamente fora subornado para casá-los sem maiores formalidades; um duque inglês de testemunha e padrinho. Era o suficiente para toldar
a felicidade de Elsbeth.
Mas quando a mão de Alex procurou a sua, apertando-a com fervor, Elsbeth se esqueceu de tudo.
- Os noivos podem se beijar agora - disse o ministro, com ar risonho.
Elsbeth voltou-se para Alex:
- Eu te amo.
Em resposta, o conde tomou-a nos braços e beijou-a.
Terminada a rápida cerimônia e assinados os papéis, Northumberland aproximou-se para cumprimentar a noiva, dando-lhe um beijo afetuoso nas bochechas sardentas.
Sabia que lady Ker não gostava dele; provavelmente jamais gostaria, principalmente depois da conversa da véspera. Mas admirava-a; era uma jovem valente, que não
se impressionava à toa, nem temia enfrentar o político mais importante da Inglaterra. Virou-se para Alex.
- Mandei preparar um almoço especial para os dois, mas não poderei ficar mais com vocês. Os papéis do casamento ficarão guardados comigo por enquanto. É mais
seguro.
- Obrigado, Vossa Graça - respondeu Alex, estendendo-lhe a mão.
- Gostaria de fazer um pouco mais que isso, meu filho. Eu poderia mandar alguns homens para a fronteira.
- Agradeço-vos do fundo do coração, mas prefiro cuidar de tudo sozi-nho. A presença da guarda inglesa poderia suscitar desconfianças desne-cessárias. E poderia
assustar os Ker. Não, Vossa Graça, prefiro ir só.
- Bem, nós já havíamos discutido esse assunto à exaustão. Foi só mais uma tentativa que fiz. Meu coração dói, mas sou obrigado a dar-lhe razão. No entanto, como
lhe prometi, Elsbeth ficará sob minha proteção, caso... caso lhe aconteça alguma coisa. E seu filho herdará Huntington, juro-lhe.
- Obrigado, milorde.
- Boa sorte. Amanhã enviarei dois homens para escoltar você e sua linda mulher. Pode confiar neles inteiramente.
Atenta, Elsbeth ouvia o diálogo. Temia o que estava para vir e não igno-rava o perigo que esperava Alexander Carey. Seu amado. Seu amante. Seu marido.
Puxou-o pela manga.
Northumberland entendeu o gesto e piscou um olho para Alex:
- Acho que estou sendo demais por aqui. Adeus, e boa sorte para os dois. Vocês merecem.
Elsbeth observou-o afastar-se, os olhos suavizando-se quase impercep-tivelmente. Depois ela se virou para olhar o marido. Bom Deus! Alex era seu marido!
Lembrou-se do modo como ele a acordara pela manhã. Cobrira seu rosto de beijos curtos e doces, pacientemente, até que ela abrira os olhos, feliz.
- Quer se casar comigo agora?
Assim. Simplesmente assim. E ali estavam os dois, já casados, unidos para sempre.
Como as coisas podiam mudar tão depressa? O ódio transformara-se em amor; a desconfiança, em fé total.
- Finalmente sós, senhor meu marido.
Os olhos cinzentos fitaram-na significativamente.
- Estou ao seu dispor, senhora minha... para o que quiser de mim.
- Mas o almoço...
- Bem, esse será o primeiro passo. Depois...
Ela riu, maliciosa.
- Se meu marido quiser, podemos inverter a ordem.
- Pensando bem, é melhor não - respondeu ele, parecendo um rapazinho de dezoito anos. - Estou precisando de reforço para os músculos.
Ela suspirou, perdida de felicidade. Seria sempre assim? Estariam sem-pre unidos daquela forma espontânea e maravilhosa?
- Para sempre, milady - disse ele, lendo-lhe o pensamento mais uma vez. - Minha escocesa...
Elsbeth mal tocou no prato, embora a comida estivesse deliciosa. Os criados, depois de terem servido, haviam sumido de vista discretamente. Ela e Alex provaram
faisão, veado e carneiro. Riram e brindaram o tempo todo, esvaziando três garrafas de vinho doce e inebriante. Alex estava sempre atento, servindo-a, obrigando-a
a comer. Dava-lhe comida na boca, lambia as migalhas que caíam em seu queixo.
Evitaram falar na iminente separação; para eles o que contava era o presente, em todo o esplendor do dia ensolarado.
Haviam combinado de partir apenas no dia seguinte, por causa do casa-mento. E faziam o que podiam para aproveitar aqueles últimos momentos de terna paixão, um
vendo o paraíso nos olhos do outro.
Quando o fogo da lareira se reduziu a cinzas, Alex levantou-se e tomou Elsbeth no colo, carregando-a com a mesma facilidade com que carregaria uma folha dourada
de outono. Enquanto subiam as escadas, Elsbeth ia mordiscando a nuca do marido, fazendo-lhe cócegas.
Horas mais tarde, saciados, envoltos na paz do depois, conversavam animadamente. Haviam feito amor com vagar e ternura mesclada de tristeza, quase com desespero
pelo receio do tempo que teriam de ficar longe um do outro. E fizeram de cada toque, de cada beijo, um tesouro bem guardado na memória.
Elsbeth passou os dedos de leve pela cicatriz, ali depositando um beijo amoroso. Sentia respeito e reverência por tudo o que aquela marca representava.
- Como foi isto? - perguntou. - Isto é, se quiser responder, meu querido. Não quero ver seus olhos tristes de novo, nunca mais. Mas gostaria de saber tudo o
que aconteceu com você. Gostaria de compartilhar seu passado e ajudá-lo a esquecer. Posso?
- Você é tão doce, minha pequena! Não só pode como deve.
Ela se apoiou sobre um cotovelo, em atitude de expectativa.
- Eles me marcaram com ferro em brasa, Elsbeth - começou ele, parecendo lutar contra a eterna angústia que assomava a seus olhos sempre que tocava no passado.
- Os franceses costumam marcar assim todos os escravos das galés.
- Por que fazem isso? É uma barbaridade sem nome!
- Para o caso de algum conseguir escapar, o que, aliás, é praticamente impossível. Mas, se acontecer de um conseguir fugir, com essa marca ele será facilmente
reconhecido. E devolvido às galés.
Elsbeth escondeu o horror que sentia. Prometera que o ajudaria a encarar o passado como... como coisa do passado. E julgava que uma forma de ajudar seria não
se mostrar espantada com nada; ao contrário, encarar tudo como se fosse banal e sem importância.
Alex buscou sua mão e pôs-se a acariciá-la, procurando conforto e consolo. Elsbeth viu que o músculo do rosto começava a tremer, e beijou-o.
- Nas galés você perde todo e qualquer senso de dignidade. É tratado como um animal, o mais imundo e sórdido animal. Você luta com seu companheiro por um simples
pedaço de pão seco. Mesmo assim, não pode lutar muito, por causa das correntes atadas nos pés. E nas mãos. Eu ficava preso ao banco e aos remos; não podia me levantar
para nada. Era obrigado a fazer minhas necessidades ali mesmo, como meus companheiros. Elsbeth continuou a acariciá-lo, os olhos rasos de água.
- Vou continuar, minha Elsbeth, porque quero que você entenda minha solidão, minha angústia. Talvez possa compreender porque às vezes me mostro mais reservado
do que devia.
- Sim, Alex - disse ela, com doçura. - Estou ouvindo.
- Por dias a fio fiquei naqueles porões infectos, sem ter visto a luz do sol nem uma única vez.
Alex parou um pouco. Sabia que era importante contar, desabafar. Mas havia coisas que não podia dizer. As buscas dolorosas dentro de seu corpo. Os piolhos. A
cabeça rapada. Os humilhantes desfiles nas ruas da França, todos acorrentados uns aos outros.
- Não sei como não sucumbi. Não queria mais viver, não acreditava mais na bondade humana. Certo dia, vi-me ao lado de um prisioneiro diferente; chamava-se John
Knox, e era ministro religioso. Ele tinha uma paixão, uma fome de viver, uma crença inabalável na raça humana. E me alimentou com palavras, sempre instigantes, sempre
desafiantes. Um dia, John foi solto. Vi-me só e miserável novamente... Meus companheiros, quase todos franceses, não gostavam de mim. Voltei para minha concha e
escudei-me no silêncio.
Elsbeth beijou de novo a cicatriz, fazendo de seus lábios um bálsamo.
- John Knox conseguiu falar com Northumberland a meu respeito, e então minha liberdade foi negociada com a corte francesa. Quando voltei à Inglaterra, era uma
sombra de mim mesmo. Northumberland providenciou que um cirurgião removesse a marca da escravidão.
Uma lágrima deslizou pelo rosto de Elsbeth e Alex a secou com um beijo.
- Não chore, meu amor. Tudo isso me ensinou a ser mais forte. Acima de tudo, aprendi a não desperdiçar a vida.
- Estou chorando, Alexander, por causa do que eu lhe fiz. Aquela cela úmida, a comida que lhe dei, as humilhações que fiz você passar... Eu queria que você sofresse,
por causa de meu pai...
- Shh! Onde está minha valente guerreira? Se não tivesse me raptado, não estaríamos aqui, assim juntos. É preciso encarar cada coisa que nos acontece como uma
bênção, do contrário ela se transforma em maldição. E, para mim, conhecer você foi uma bênção.
- Oh, Alex!
- Chega de coisas tristes. Esta noite não é para lembranças, queixas ou arrependimento. É nossa noite, Elsbeth.
Ela sorriu por entre as lágrimas, enquanto ele dava um risinho maroto.
- Quando a vi pela primeira vez, à beira do lago, soube que um dia você seria minha. E mais tarde, na biblioteca, quando você mal pôde conter o riso, lembra-se?
Quando eu pedi vinho... Naquela hora eu decidi que você se casaria comigo.
Ela se sentou, indignada.
- Ah, é?! Decidiu?
- Sim, minha senhora. E perdi todas as dúvidas que ainda tinha, quando despertei no quarto de Patrick e dei com você tratando de mim.
- Grande coisa! - fez ela, ressentida. - Eu teria feito a mesma coisa com um cachorrinho doente.
- Não com aquele olhar amoroso que você tentava disfarçar de qual-quer maneira... Você nunca conseguiu me enganar, se quer saber.
- Peste! - gritou ela, entre risonha e ofendida. - Não sabia que era assim tão transparente.
- Para mim, era. De qualquer modo, a melhor coisa que me aconteceu na vida foi ser raptado.
- Alex?
- Repita, por favor.
- Alex - repetiu ela, feliz.
- Ninguém nunca disse meu nome desse jeito. Parece música vinda do céu, minha Elsbeth.
- Nem... Nadine?
No mesmo instante, Elsbeth se arrependeu da pergunta. Baixou os olhos, constrangida. Imbecil, burra. Por que não refreara a língua?
Alex puxou-lhe o queixo, fazendo-a encará-lo.
- Não, meu amor. Nem mesmo Nadine. A princípio, pensei que esti-vesse apaixonado por ela, mas agora sei que era simples admiração e não amor o que sentia. A
casa dela era acolhedora, e Nadine uma mulher culta. Com ela e o pai, Henri, aprendi o que era um lar. Apeguei-me a eles como uma criança abandonada. Na verdade,
Nadine tratava-me como irmão, nada mais. Havia se dedicado de corpo e alma ao trabalho de resgatar compa-nheiros huguenotes. Em seu coração não havia lugar para
amor carnal, acho.
Huntington acariciou os cabelos de Elsbeth, enrolando-os entre os dedos.
- Eu gostava profundamente de Nadine, e quero deixar isso bem claro. Parte dela sempre estará comigo; era uma alma pura e generosa. Sua luz vai me ajudar a encontrar
o caminho certo. Mas gostar não é amar, Elsbeth. Meu amor é todo seu, só seu. Você me devolveu a alegria de viver. Nunca amei ninguém dessa forma, e sei que nunca
mais amarei.
Elsbeth emudeceu, tomada de alegria. Queria chorar, queria rir. Queria abraçá-lo, cobri-lo de beijos. Queria...
Achegou-se a ele, amorosa, colocando os dedos de Alex dentro da boca, um a um. Depois começou a mordiscar de leve os pêlos do peito, os mamilos. Sua boca moveu-se
para baixo, mais para baixo, deixando um rastro morno e úmido, rumo ao sexo do marido. Ele gemeu baixinho.
Minutos depois o fantasma de Nadine diluía-se em chamas de gozo.
No dia seguinte, Elsbeth notou consternada que o marido acordara com expressão novamente tensa e sombria.
Não era para menos; Alex estava prestes a enfrentar a mais dura batalha de sua vida, cujo único resultado seria a morte. Do irmão ou dele próprio.
Pouco importava se John era velhaco e tratante; para Alexander Carey, a perspectiva de derramar o sangue do irmão devia ser algo próximo ao inferno.
Sua tarefa, por outro lado, não era muito melhor: encurralar um traidor que fora seu companheiro de infância.
Em silêncio, vestiu-se com a roupa nova que Northumberland lhe enviara: uma camisa simples de algodão cru, um par de calças rasgadas e um boné remendado, bem
largo, onde ela escondeu os cabelos vermelhos e rebeldes que começavam a crescer.
Alex contemplou o jovem rapazinho com tristeza. Elsbeth parecia tão pequena, tão frágil naquelas roupas. Tocou o rosto sardento com carinho.
- Pense bem agora, Elsbeth. Sempre podemos sumir juntos.
- Quer dizer fugir?
- É, fugir.
- E deixar nossas terras para aqueles dois patifes?
Ele deixou escapar o eterno meio sorriso.
- Bem, é uma idéia não de todo má.
- É simplesmente péssima - sentenciou ela.
- Não suporto a idéia de você correr tamanho risco, Elsbeth.
- O perigo é muito maior para você, Alex. Eu aceitaria a proposta de fugirmos, se soubesse que você ficaria satisfeito. Mas não é o caso, sabemos disso muito
bem. E eu quero você, não uma sombra que desistiu das responsabilidades por minha causa.
Ele pousou a cabeça sobre a dela, os cabelos pretos se misturando aos vermelhos. Como amava aquela escocesinha, bom Deus.
Ouviram uma batida na porta, e logo depois Stanson entrava com uma bandeja.
- Café, milorde?
- Obrigado, Stanson. Os homens já chegaram?
- Já. Aguardam-vos lá embaixo.
Elsbeth sentiu uma pontada no peito. Chegara a hora tão temida e adiada.
Mal conseguiram engolir um pedaço de pão, que, apesar de quente e macio, descia-lhes como areia. Haviam decidido que viajariam separados; seria mais seguro.
Tão logo ela chegasse, Hugh seria enviado até o condado de Huntington, em busca de David Garrick, levando-lhe todos os detalhes do plano.
- A certidão de casamento? - perguntou Elsbeth.
- Northumberland guardou. Se um de nós for apanhado com ela antes de o plano seguir adiante, podemos pôr tudo a perder.
- Alex, eu... eu... não confio nele.
Pronto. Dissera o que vinha atravessado na garganta havia algum tempo. Esperou a reação de Alex, quase tremendo. Mas ele apenas sorriu com tristeza.
- Tem boa intuição, meu amor. Não pense que subestimo o talento especial que ele tem para intrigas. Meu amigo faria qualquer coisa para atingir seus objetivos,
bem sei. Mas, minha querida, eu não represento nenhu-ma ameaça ao poder de Northumberland. Não ambiciono altas posições e não gosto de política. Por outro lado,
ele precisa de mim. Para manter a paz em nossa região.
- Mas...
- Eu gosto dele, Elsbeth. Não me pergunte por quê; eu não saberia explicar. De sua parte, Northumberland gosta de mim como se eu fosse seu filho. Ele manterá
a palavra, estou certo. Se alguma coisa me acontecer, cuida-rá de proteger você. Quero que me prometa que correrá para cá, caso nosso plano não der certo.
O rosto de Elsbeth ficou sombrio.
- Se alguma coisa acontecer a Alexander Carey, prefiro não viver.
Ele a tomou nos braços, os olhos cheios de angústia.
- Não diga isso, minha querida. Nunca mais.
- Mas é verdade!
- Então... então cuidarei para que nada me aconteça, meu amor - disse Alex, num misto de receio e apreensão.
Então ele a olhou e deu uma gostosa risada.
- Que a praga o leve, Alexander Carey! - explodiu ela. - Quer parar de ler meus pensamentos?
Perdidos de riso, fitaram-se, bêbados de amor.
- Sua feiticeira. Acaba de me dar uma vontade daquelas!
- Ainda há tempo...
- Não, não há minha querida.
Alex cobriu a boca de Elsbeth, num beijo cheio de promessas e esperan-ça. Uma batida na porta trouxe-os de volta ao presente. Antes de soltá-la, Alex exigiu:
- Sua promessa, Elsbeth.
No momento, Elsbeth seria incapaz de negar-lhe qualquer coisa. Capitulou:
- Prometo Alex.
Foi recompensada por um sorriso luminoso, mas não resistiu a demons-trar sua rebeldia:
- Mas não de boa vontade.
- Eu sei querida. No entanto essa promessa é muito, muito importante para mim. Obrigado, meu amor.
- Não desça comigo, Alex, por favor. Prefiro ir sozinha.
Ele assentiu, preso de uma emoção que não o deixava falar.
- Será por pouco tempo, Alex.
- Sim, minha escocesa. Depois teremos toda a vida pela frente.
- E muitos molequinhos de cabelos pretos.
- Nunca! Ruivinhos, isso sim.
- Bem... meio a meio, está bom assim?
Ele não sorriu. Apenas fitou-a com ternura. E murmurou:
- Eu te amo, Elsbeth.
Uma lágrima deslizou mansamente pelo rosto dela.
- Eu te amo, Alex.
Fitou-o como que se quisesse decorar cada traço de Alex. Então deu-lhe as costas e deixou o quarto.
Capítulo XIX
Ao cabo de dois dias de viagem quase ininterrupta, Elsbeth sentia-se tão exausta que mal tinha ânimo para lamentar a ausência de Alexander. Nessa noite, pararam
para acampar na floresta. E mal ela encostou a cabeça no cobertor, adormeceu.
A princípio, William e Tate - os dois homens de Northumberland - perguntavam a toda hora se ela gostaria de parar para descansar. Mas depois de várias recusas
obstinadas, respeitaram sua vontade de chegar logo, e não mais ofereceram descanso. Apenas recomendaram-lhe que os avisasse, caso quisesse parar em alguma estalagem
- coisa que Elsbeth nunca fez.
William e Tate estavam disfarçados de simples mercenários desempre-gados, embora Elsbeth soubesse que se tratava de importantes oficiais da guarda pessoal de
Northumberland. Portavam armas leves, apenas para afastar possíveis bandidos. De seu lado, Elsbeth fazia às vezes de auxiliar dos mercenários; em cada hospedaria
que paravam ela cumpria seus "deveres", escovando e alimentando os cavalos. E tomava o cuidado de chamar os dois de "amo".
Não encontrara dificuldade para logo travar um bom relacionamento com William e Tate; Elsbeth qualificara os dois oficiais de "ingleses galantes", o que os fizera
rir.
No começo, ela sentira uma espécie de ressentimento em ambos, como se o fato de escoltar uma escocesa fosse uma missão desprezível para quem ocupava importantes
postos militares. Aos poucos, entretanto, acabaram se rendendo ao charme de Elsbeth; passaram a respeitar a valente escocesa que nunca se queixava e estava sempre
pronta a sorrir.
Se por acaso a identidade do rapazinho fosse descoberta, os dois tinham instruções de declarar que haviam encontrado a castelã na floresta, sozinha e desorientada,
e pretendiam levá-la de volta ao castelo Ker por serem dois cavaleiros honrados.
Quando atingiram a região das fronteiras, Elsbeth trocou as roupas masculinas pelo mesmo vestido que usara no dia em que fora raptada. Estava quase irreconhecível,
rasgado e sujo, perfeito para os seus propósitos. A lama do pântano fora lavada pela diligente Sylvie, que queria consertá-lo a todo o custo. Mas Elsbeth não deixara,
pensando que o guardaria como relíquia. Agora o vestido o ajudava em seus planos.
Tate olhou-a assim vestida e não pôde conter uma exclamação desgos-tosa.
- Milady precisa mesmo usar esse... essa coisa?
- Preciso Tate.
- Não gosto da idéia de levar milady a um lugar onde é preciso tanta encenação. Deve ser um lugar terrível de perigoso.
- Também acho - anuiu William.
- Por que não nos leva junto, milady? Pode fingir que nos encontrou sem trabalho e...
- Nos contratou - completou o outro.
Elsbeth considerou-os por algum tempo. Os dois haviam se tornado mais que simples acompanhantes; eram quase seus amigos. Talvez os ingleses não fossem tão ruins,
afinal de contas.
- Seria muito estranho uma Ker contratar mercenários ingleses. Como explicar isso a minha família? E o duque, o que pensaria disso?
- Ele nos instruiu que a protegêssemos, custasse o que custasse - foi a pronta resposta.
- Bem, empregar vocês é impossível, mas... talvez possam descansar em meu castelo por uns dias...
Sua mente trabalhava depressa. O traidor ficaria desconfiado, possível-mente amedrontado com a chegada de dois mercenários ingleses. Além do mais, Tate e William
captariam detalhes que ela, mais envolvida com o clã, poderia não perceber. A desculpa que daria para mantê-los no castelo era óbvia; afinal, eles é que a tinham
encontrado errando pela floresta.
- É isso, Tate - disse ela, depois que expôs seu singelo plano. - E agora, vamos para o castelo. Não fica longe daqui.
Quando o trio passou pela primeira amurada que circundava o castelo, houve tumulto e alvoroço.
- Deus seja louvado! - gritou um soldado que caminhava sobre as ameias da torre. - Lady Elsbeth! Abram depressa os portões! Lady Elsbeth vem vindo!
O grito correu de boca em boca, num clamor de alívio. Chegando ao grande portão da entrada, Elsbeth ouviu os brados de vitória do clã, em meio a um alegre tilintar
de armas. E quando os portões se abriram para lhe dar passagem, ela se viu rodeada por um bando de mulheres, guerreiros, crianças e velhos, todos festejando entre
palmas e vivas.
Ian esperava-a à entrada do castelo, um largo e aliviado sorriso brincando nos lábios. Com duas grandes passadas, aproximou-se do cavalo que trazia Elsbeth e
estendeu-lhe a mão para ajudá-la a apear. Em segundos, apertava-a entre os braços.
- Você está bem, priminha?
Não havia dúvida quanto a sua sinceridade. Ian parecia ter-se acabado naqueles dias de busca.
- Estou bem, apenas cansada - replicou ela, com toda a honestidade.
Queria escapar para o aconchego de seu quarto o quanto antes. Precisava descansar antes de pôr em prática o plano de Alex; do contrário, não teria força nem
coragem.
- O que aconteceu? De onde você vem, prima? Quem são esses homens?
- Eu... consegui escapar, Ian.
- E esses homens?
- Eles me acharam no caminho de volta para cá. Não fossem eles, eu...
- São ingleses?
- Infelizmente. Em todo o caso, cuidaram de mim e me trouxeram. Querem dinheiro, é evidente.
Ian engoliu o desgosto que sentia e voltou-se para os dois ingleses.
- Obrigado, cavalheiros, por trazerem nossa dama de volta.
Dizendo isso, começou a remexer na bolsa. Era óbvio que pretendia despachá-los naquele momento.
- Eu prometi alojamento aos dois, Ian. Estão cansadíssimos - explicou Elsbeth.
Mesmo exausta, pôde detectar os lábios de Ian se comprimindo com visí-vel contrariedade. Mas ele se voltou novamente para os homens:
- São bem-vindos, então.
Chamou um cavalariço e ordenou-lhe que alimentasse os animais e conduzisse os dois mercenários ao oficial da guarda.
Finalmente conseguiu concentrar a atenção em Elsbeth, cujo desalinho o surpreendeu.
- Seu cabelo, Elsbeth...
- Ele... foi ele que cortou.
- Huntington?
- Disse que eu não seria reconhecida desse modo.
Ian segurou-lhe o braço e conduziu-a para dentro. Não queria que os outros escutassem as outras perguntas que pretendia fazer.
- Que mais ele fez Elsbeth?
Ela contemplou a expressão ansiosa do primo. E de repente sentiu-se miseravelmente mesquinha.
- Nada. Apenas me manteve presa, nada mais.
- Nem tentou...
- Não. Disse que não queria saber de escocesas vagabundas.
- O cão maldito! - bradou ele, furioso.
Pôs-se a imprecar contra Alex, despejando uma torrente de palavrões que deixou Elsbeth atordoada. Nunca vira Ian, geralmente alegre e descui-dado, perder a cabeça
daquele jeito,
Então ele notou seu cansaço e parou, pegando-a pela mão.
- Desculpe, prima. Você deve estar nos ossos, hem? Mas primeiro... é capaz de me dizer onde esteve? Onde está o maldito inglês?
- Acho que... que não. Ele vendou meus olhos. Por favor, Ian, quero um banho agora. E dormir, dormir, dormir.
- Claro, falaremos mais tarde. Enquanto isso, trate de se lembrar de alguma pista. Qualquer coisa.
Ela assentiu em silêncio e começou a sair. Nesse instante, a porta da entrada se escancarou com estrondo e Patrick irrompeu na sala. Primeiro encarou-a com expressão
de incredulidade e alívio. E depois deu-lhe um abraço tão apertado que Elsbeth comparou-o a um urso desajeitado.
- Com mil demônios! Procuramos você por todo o maldito mundo e agora... cá está minha prima. Inglês bastardo! Ele pagará por isso, esteja certa.
- Ele... não me fez mal nenhum, Patrick. Exceto ferir meu orgulho.
- Seus lindos cabelos...
- Vão crescer de novo - retorquiu ela, algo impaciente. Os primos teimavam em se concentrar no que menos tinha importância.
- Conte-nos tudo, prima - disse ele, num tom bem mais imperioso que o de Ian. - Onde está o maldito? Vou chamar os homens imediatamente.
- Não sei - respondeu ela, sacudindo a cabeça. - Meus olhos ficaram vendados o tempo todo.
- Mas era um castelo? Uma casa? A viagem durou muito tempo?
Elsbeth abriu muito os olhos dourados, encarando-o com firmeza.
- Patrick, eu estou cansada demais para pensar. Por favor, estou precisando de repouso agora. Mais tarde respondo a todas as perguntas.
A voz dele se tornou menos dura.
- Desculpe, Elsbeth. Mas sinto muito ódio quando penso naquele filho de uma cadela.
- Eu também - juntou Ian. - Cada membro do clã está doido para pôr as mãos naquele condeco decorativo.
Elsbeth sentiu-se nauseada.
- Por favor, eu quero descansar - explodiu, num tom que nunca usara com os primos.
Ao ver a expressão de ressentida surpresa nos dois, procurou amenizar a agressividade.
- Desculpem. Acho que vou acabar maluca se não cair já numa cama bem macia. Amanhã, primos. Amanhã bem cedinho vamos conversar bastan-te. De acordo?
Ian parecia um servo humilde.
- Desculpe, priminha. Vamos sair daqui, Patrick.
Este dardejou um olhar desdenhoso a Ian, mas não ousou enfrentar Elsbeth no momento. Achava, porém, essencial caçar o inglês até os confins do mundo. E a prima
poderia dar informações preciosas.
- Amanhã, Elsbeth?
- Prometido.
Ian se retirou, mas Patrick ainda hesitava. Nesse momento, Annie entrou por outra porta.
- Vosso banho está quase pronto, menina.
- Maravilha, Annie - murmurou Elsbeth, espreguiçando-se.
Ela estava, de fato, à beira da exaustão. Queria o sossego do quarto para poder pensar em Alex. Seu doce Alex.
- Elsbeth! - gritou Louisa, entrando esbaforida, de mãos postas. - Você está bem?
- Estou, minha bela priminha. Mas não agüento de canseira e fome.
- Eles não... quero dizer, o inglês não...
- Não - atalhou Elsbeth, gentilmente.
- Graças a Deus! Elsbeth, há alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-la? Qualquer coisa?
A expressão de Louisa demonstrava tamanha afeição e solicitude, que o coração da castelã deu uma reviravolta dolorida. Essa era a sua gente, o seu povo. Que
estava fazendo, meu bom Deus? Mentia sem parar, desconfiava dos primos... Estaria agindo certo?
Súbito, uma névoa toldou-lhe a vista. Sentiu que o chão lhe fugia dos pés, e cambaleou. Patrick, que ainda não se retirara, acorreu prontamente e suspendeu-a
no colo antes que ela caísse no chão. Rapidamente subiu as escadas, enquanto Louisa os seguia com gritinhos histéricos.
- Eu estou bem, Patrick - balbuciou Elsbeth, ainda zonza. - Foi só um momento de fraqueza.
Ele a depositou com cuidado sobre a cama.
- Amanhã conversaremos, prima. Por enquanto, Louisa ficará em sua companhia.
Quando Patrick saiu, Elsbeth notou como a prima o seguia com o olhar. Também não lhe passou despercebido que Patrick lançou um breve, mas doce sorriso para Louisa
antes de desaparecer.
Annie aproximou-se, preocupada.
- Estais bem, senhora? A tina está cheia de água quentinha, mas se preferirdes tomar banho depois...
- Não, Annie, eu estou muito bem. Estou louca por um banho.
A boa velha ajudou-a a levantar-se, amparando-a nos braços roliços. Elsbeth abraçou-a com ternura.
- Tive saudades de minha Annie.
A velha fungou disfarçadamente e pôs-se a tirar o vestido da patroa. Louisa interveio:
- Annie, por que não vai buscar a comida de Elsbeth? Deixe que eu cuido do banho.
Annie olhou-a, hesitando em deixar sua preciosa ama. Enfim, gostava de Louisa. A patroinha estaria em boas mãos. Quando Elsbeth se viu dentro da água, suspirou
de prazer.
- Quer que eu esfregue suas costas? - perguntou Louisa.
A castelã teve vontade de recusar, pois queria estar sozinha.
Mas a prima estava ansiosa por se sentir útil; por que lhe negaria esse prazer?
- Aceito, prima. Obrigada.
Entregou-se aos dedos suaves de Louisa, que a ensaboavam diligen-temente.
- Que aconteceu enquanto estive fora?
- Patrick e Ian ficaram feito doidos. Saíam todos os dias, um para cada lado. Não tiveram um momento de descanso.
- Nenhum ataque aos Carey?
- Nenhum prima.
Sentindo-se muito melhor, Elsbeth saiu da banheira e deixou Louisa esfregar seu corpo com uma toalha macia, vigorosamente, até que a circulação começou a ser
ativada, dando um tom rosado a sua pele.
- Obrigada, Louisa. Tem mãos de fada, sabia? Abraçou a prima com ternura, notando que ela corava de prazer com o elogio.
- Agora, se me der licença, gostaria de ficar sozinha. Quero dormir.
- Annie vai trazer seu jantar. Não vai esperar? Elsbeth soltou uma risada, enquanto se enfiava entre as cobertas.
- Se ela demorar, acho que não vou agüentar.
Mas Annie entrou ao mesmo tempo que Louisa saía. Trazia uma bandeja com vinho e tortas de carne.
- Estão quentinhas, fada - disse ela, ajeitando a bandeja no colo de Elsbeth. - Precisais comer, senhora.
- Primeiro, o vinho. Oh, Annie, estou sem fome nenhuma.
- É o cansaço. Tentai ao menos um pedacinho. Eu mesma preparei.
Elsbeth mordiscou uma fatia, para não magoar a querida Annie, mas logo empurrou a bandeja.
- Não consigo, Annie. Sinto muito.
- Estais mais fraquinha que um passarinho ferido. Precisais comer!
- Amanhã, minha boa Annie, amanhã vou comer como uma leoa - disse ela, sorrindo ante a comparação que a velha fizera. - Pode levar a bandeja.
- Então boa noite - respondeu a outra, erguendo a bandeja no ar. - É... é um prazer ver-vos de volta. E inteira, graças aos céus. Pensei que o inglês maldito
ia maltratar-vos. E vós fostes tão bondosa com ele!
- Nós é que começamos tudo, Annie. Eu o raptei em primeiro lugar.
Elsbeth estava cansada de ouvir falar mal do marido.
- Mas também fostes enfermeira quando ele adoeceu. É um inglês como qualquer outro, é o que acho. No começo, pensei que fosse diferente... um pouquinho só.
- Ele não me fez mal nenhum. Foi muito... educado comigo.
- Ha! E vossa reputação, como fica? Ele nem ligou para isso, o sem-vergonha. E vossos cabelos... os ricos cabelos de fogo!
Elsbeth fechou os olhos, desesperada.
- Estais cansada, bem vejo. Dormi, então. Eu velarei por vós um pouco.
Era a última coisa que ela queria. Conteve-se para não enxotar a boa Annie com dois berros. Em vez disso, preferiu fingir que dormia.
Nas pálpebras fechadas surgiu a imagem de Alex, dominadora. Cabelos pretos, cheios. Olhos cinzentos e preguiçosos como os de um gato. E o sorriso, meu Deus...
Onde estava seu marido? Teria chegado já ao abrigo? Assim haviam combinado. Alex voltaria sozinho àquela cabana miserável, que agora lhe parecia um palácio de
nuvens douradas. Lá crescera o amor de ambos. Teria já chegado? Conseguira falar com David Garrick?
Alex. Meu marido. Alexander Carey.
Complicado, amoroso, valente Alex.
Annie observou a querida patroa sorrir, e seu coração leal se encheu de alegria. Julgou que Elsbeth sorria de contentamento por estar de volta ao lar, e suspirou.
Agora ela se casaria com master Ian. Ou master Patrick. E daria um herdeiro ao clã.
Alex enfiou a cabeça no regato para saciar a sede e refrescar-se. Nos três dias de viagem não se atrevera a pedir abrigo em nenhum lugar; preferira dormir sob
as árvores, e assim mesmo apenas o mínimo necessário para restaurar as forças.
Sentia-se terrivelmente solitário e apreensivo com o destino de Elsbeth. Acostumara-se de tal forma ao sorriso travesso, quase infantil, que agora a sua simples
lembrança doía-lhe fundo na alma.
À medida que se aproximava do condado de Huntington, seus passos foram se tornando mais e mais cautelosos. Não podia, de forma alguma, chamar a atenção. Trajava
roupas simples de lenhador, e montava um cavalo que, apesar de novo e forte, fora cuidadosamente escolhido para parecer velho e rocim. Quando Northumberland lhe
enviara essa montaria, Alex, embora experiente conhecedor, desconfiara do tino do duque. Mas assim que o experimentou no galope, abençoou intimamente a argúcia do
amigo. O cavalo parecia criar asas ao mais leve incitamento. E voltava à aparência humilde de velho pangaré quando a passo lento.
A barba crescida e o boné puxado até as orelhas ajudavam bastante o disfarce. Ainda assim, Alex tomava todas as precauções que podia. Comia pouco, economizando
o queijo e o pão que trouxera consigo, a fim de não ter de comprar comida. Nessa noite, já estava dentro dos domínios do condado. Movia-se devagar na floresta, aproveitando-se
da lua minguante e das nuvens que a escondiam. Ao menor ruído parava, alerta, a mão na bainha do punhal.
O abrigo estava a poucos metros agora. Alex rezou para que ninguém o tivesse descoberto ainda; disso dependia todo o plano.
De repente, ouviu um ruído fofo de cascos na terra. Pensou que fosse algum veado perdido, mas o cavalo empinou as orelhas, alertando-o. Alex firmou-se nos estribos
e alçou os braços, agarrando-se ao galho de uma árvore. Suspendeu o corpo e depois incitou o cavalo a continuar caminho. Cuidadosamente, esticou-se sobre o galho,
costurando-se a ele na escuridão. O visitante teria uma bela surpresa dali a pouco!
O barulho dos cascos aumentou, e logo em seguida Alex divisou a silhueta de um cavaleiro se aproximando. Esperou mais um pouco, para ver se vinha mais alguém.
Quando se certificou de que o cavaleiro estava sozinho, preparou o punhal e...
- David! - murmurou, com inacreditável alívio.
O amigo quase caiu da montaria, tamanho susto levou.
- Milorde!
Alex pulou para o chão e começou a rir incontrolavelmente, tapando a boca com as mãos para não fazer barulho.
- Ora essa, assustando um pobre caçador indefeso desse jeito... - resmungou David. - Dia desses milord ainda leva uma facada por causa de brincadeiras desse
tipo.
- Alô, Davey - falou Alex, ainda abafando o riso. Ao ouvi-lo chamar pelo apelido carinhoso, os resmungos de David se transformaram num sorriso afetuoso de boas-vindas.
- É bom vê-lo de volta a nossa terra, milorde. A viagem deu resultado?
- Pensei que tivesse esquecido essa história de milorde, homem de Deus. Sou seu amigo, acima de tudo.
- É o hábito, é o hábito... Então, como foi sua viagem? Correu tudo como esperava?
- Em parte.
David franziu a testa, apreensivo.
- Bem, é que eu não esperava voltar casado.
- Quem... Pelos anjos do céu, não vai me dizer que é alguém que eu ajudei a raptar...
- Na mosca, meu velho.
- Pela vontade dela?
- Lógico!
David custou a digerir a novidade. Um Carey casado com uma Ker? O mundo estava de pernas para o ar, com mil demônios!
Não pôde deixar de imaginar qual seria a reação das duas famílias. E achou que Alex Carey estava louco varrido. Mas era seu amo e senhor. E seu amigo.
- Como é, não vai me desejar felicidades?
- Posso... posso ser franco?
- Por favor.
- Ela é muito bonita, mas...
- Mas o quê?
David preferiu não continuar e deu de ombros. Agora era tarde para lamentações. Alex, seguramente, sabia o passo que estava dando; não lhe cabia fazer comentário
nenhum.
Alex ficou sério.
- Ninguém sabe de nada, Davey, além de Northumberland, que guar-dou a certidão. Quis contar para você, porque preciso de um favor seu.
- Estou ao seu dispor, milorde... quero dizer, Alex.
- Se alguma coisa der errado, se eu... se meu plano falhar, quero que cuide dela. Leve-a a Northumberland. Pode ser que ela esteja grávida. Quero ambos protegidos,
ela e a criança.
David encarou-o, mudo.
- Sua palavra, David.
- É claro, tem minha palavra, mas...
- Se tudo correr como planejei, vamos nos casar de novo aqui, em Hun-tington. E os Ker serão nossos convidados de honra. Todo o clã.
- Vai haver guerra, meu senhor.
- Talvez não. Minha família e a dela vão saber quem são os traidores. Vão saber que eles é que fomentaram as guerras e os ataques que estão arruinando as duas
famílias.
- Certo, mas há muita brasa por baixo das cinzas ainda. Vai ser difícil apagá-la.
- Concordo. Não se pode transformar o ódio em amor de uma hora para outra. Mas esse será o primeiro passo entre muitos que pretendo dar.
David fechou-se em silêncio.
- Por exemplo, você e Hugh até que se deram muito bem.
- Até a hora em que o deixei fora de combate e raptei a senhora dele. A esta altura, o homem está querendo me ver morto.
Alex abriu um sorriso luminoso, desconhecido para David.
- Logo saberemos se ele está ou não zangado como diz. Assim que lady Elsbeth chegue ao castelo, ela enviará Hugh a sua casa, David.
- Para quê? - grunhiu o outro, cocando a cabeça. - Acho que não estou entendendo mais nada.
- Vamos, meu amigo. Temos muito que conversar.
Num instante eles estavam no interior do abrigo.
- Como tem se portado meu irmão?
- Só faz cavalgar o dia todo. E sempre volta com um humor de fazer a terra tremer. Acho que muita gente vai gostar quando ele sumir daqui.
- Ele falou com você?
- Só para avisar que há espiões dos Ker escondidos por aqui. E que devemos atirar ao menor movimento estranho.
- E que desculpa ele dá para meu desaparecimento?
- Diz que os Ker devem tê-lo matado. E agora muita gente pergunta por que ele ainda não ordenou um ataque ao clã Ker, para se vingar do irmão.
Alex soltou um suspiro aliviado. Tudo corria como esperara. Contudo, seu coração se enchia de tristeza, porque sua vida significava a morte do irmão. Em todo
o caso, agora não havia mais caminho de volta.
- Mantenha-se perto de John o mais que puder. Elsbeth dará aos primos informações sobre onde eles podem me encontrar, mas indicará direções dife-rentes para
cada um. O culpado deverá então marcar um encontro com John. Parece lógico, não?
- Parece - assentiu David. - E então?
- Então ele e John virão me procurar, a fim de me assassinar silencio-samente, às escondidas. Isso é quase certo, pois nenhum dos dois pode permitir que eu seja
capturado vivo.
- E o inocente?
- Esse vai arrebanhar os homens primeiro, para depois tentar me pegar. Fará a coisa abertamente, entende o que quero dizer?
David começava a entender o plano. Seus olhos brilhavam de excitação.
- Sua tarefa é descobrir qual dos dois é o traidor. Logo que souber, procure Hugh Armstrong e conte-lhe tudo. Ele saberá o que fazer. E você também, David.
- Mas pode acontecer de os Ker não se importarem de ter um traidor entre eles. E se os dois clãs começarem a brigar entre si?
- Acho que isso não vai acontecer. Todos vão ficar desorientados com a idéia de terem um traidor na família, Davey. Humilhados, até.
Garrick balançou a cabeça.
- Alex - gaguejou ele, hesitando em chamá-lo assim. - Alex, você está julgando os Ker por você mesmo. Eles não têm o seu bom senso.
- Bem, essa é minha única esperança, e eu não quero perdê-la com idéias negativas. Preciso acreditar que ainda hei de ser feliz com Elsbeth.
- Ela vale tanto assim para você?
- Mais, meu amigo. Muito mais.
O outro fez um muxoxo de desgosto.
- Amor, amor... É a desgraça de muita gente boa.
- Inclui-se nessa gente, David?
- Claro.
E os dois riram baixinho.
Capítulo XX
Elsbeth foi acordada com insistentes batidas na porta. Tonta de sono, levantou-se e cobriu-se com um roupão de veludo orlado de pele. Não podia ser Ian, nem
Patrick; por mais impacientes que estivessem, nenhum dos dois se atreveria a invadir sua ala do castelo. As batidas persistiam, martelando a porta e seu cérebro.
Que aquele dia ia ser um dos mais difíceis de sua vida, não havia dúvida - um dia de mentiras e desconfianças.
Quando abriu a porta, Joan se preparava para bater de novo, a mão nodosa fechada no ar. Não houve nenhuma frase de boas-vindas, nem um sorriso quando ela entrou.
- Tentei vir falar com você ontem à noite, mas Annie não deixou. Essa mulher está ultrapassando os limites, Elsbeth. Precisa ser mais severa com ela.
- Annie simplesmente obedeceu minhas ordens, Joan.
- Não acredito. Então você se recusou a ver sua própria família, depois de tudo o que nós passamos?
Elsbeth trincou os dentes, engolindo a resposta ferina que tinha na ponta da língua. Ergueu o queixo e cruzou as mãos, esperando. O silêncio era sempre a melhor
arma contra Joan.
- É preciso resolver logo seu casamento com Patrick.
- Desculpe, eu não ouvi bem.
- É para seu bem, Elsbeth. Sua reputação está arruinada, sabia? Depois de tanto tempo com aquele... aquela criatura. Dê graças aos céus por Patrick ainda concordar
em ser seu marido.
A raiva coloriu as faces de Elsbeth, que, entretanto, forçou-se a manter a mesma pose.
- E isso que ele disse, Joan?
- Não, de jeito nenhum. Sou eu que estou falando, como amiga. Os falatórios podem ser muito prejudiciais ao clã.
- Fico muito agradecida com tanta generosidade, Joan. Mas sou de opinião que Patrick deveria dizer essas coisas ele mesmo. Talvez não tenha o coração tão generoso
quanto o seu; certamente não lhe agradaria se casar com uma mulher desonrada como eu.
- Patrick nunca...
- E eu estou passando bem, obrigada pelo seu interesse.
Joan ficou vermelha como um pimentão.
- Claro, eu sei. Ontem fui a primeira a perguntar sobre sua saúde, e fiquei muito contente de saber que estava... inteira.
- Então para que essa história de casamento?
- É que os falatórios... Ninguém vai acreditar...
- Acha que estou mentindo?
- Não... mas você esteve fora quase um mês!
- Joan - disse Elsbeth, cada palavra escorrendo mel e rosas - eu jamais sobrecarregaria os ombros de Patrick com mais esse peso.
- Mas ele gosta de você. Idolatra você!
- Será mesmo? Tenho minhas dúvidas. Eu diria até que ele tem uma certa quedinha por Louisa.
- Patrick é muito amável e bondoso com ela, claro. Mas Louisa não significa nada para ele. Patrick só tem olhos para você, Elsbeth.
- Então deixe que ele mesmo me diga tudo isso. Annie veio salvá-la, entrando com uma bandeja. Ao ver o rosto contrariado da patroa, imedia-tamente brindou Joan
com um olhar fulminante.
- Minha ama precisa descansar, lady Joan.
- Eu só estava tentando ajudar - retorquiu Joan, irritada com a inesperada intrusão da criada.
- Muito obrigada - interveio Elsbeth, ainda de mãos cruzadas. - Agora, se me der licença, preciso me vestir.
Joan não percebeu o sarcasmo da castelã, como sempre. Mergulhada no eterno egoísmo que a caracterizava, nunca se interessava pelos sentimentos dos outros.
- Pois não, pois não. Vamos nos encontrar de novo na hora do almoço?
- Acho que sim, Joan.
A velha cacarejou um risinho esganiçado.
- Adeusinho então, Elsbeth. E um prazer vê-la de volta. Quando ela saiu, Annie correu para passar a tranca na porta.
- Projeto de corvo! - resmungou. - Que é que essa... essa uma queria?
- Salvar minha preciosa reputação.
- Casando-vos com Patrick?
- Acertou.
Annie começou a arrumar a cama, estudando Elsbeth com o canto dos olhos. Via qualquer coisa diferente na expressão da patroa, um brilho novo nos olhos dourados,
por trás da preocupação e do cansaço.
- Acho que não é má idéia casar-vos.
- Qual deles prefere, Annie? Ian ou Patrick?
- Master Patrick - foi a resposta, depois de alguma hesitação.
- Por quê?
Annie deu de ombros. Ela mesma não sabia explicar; talvez Patrick fosse mais forte, mais severo que Ian. Desde a volta de Elsbeth, o pessoal do castelo só falava
em vingança. Era uma questão de honra para o clã. Logo o sangue começaria a correr como água por aquelas bandas. Patrick serviria melhor por causa disso.
- Por que não Ian?
Annie sorriu. Sua ama parecia realmente interessada no assunto, e isso era bom sinal.
- Master Ian também seria um ótimo marido para vós.
- Ora esta, Annie! Você não está me ajudando em nada.
Elsbeth suspirou. Lançara uma isca no ar, para ver se a criada lhe diria alguma coisa a respeito de Ian ou Patrick, mas em vão.
- Deveis comer agora, senhora. Estais muito pálida.
A castelã sentou-se era frente da bandeja. Continuava sem fome, mas beliscaria um pouco.
- Diga a Patrick que eu quero me encontrar a sós com ele logo depois do café.
O sorriso de Annie se alargou, cúmplice.
- Sim, minha senhora.
Patrick parecia mais inflexível que nunca quando Elsbeth foi ter com ele no parlatório.
- Estou convocando os homens - anunciou, assim que a viu. - E quero sua permissão para atacar Huntington.
Os olhos de Elsbeth pareciam duas espirais de fogo.
- Quando?
- Dentro de quatro dias, o mais tardar.
- Lord Huntington não estará no condado, Patrick - disse ela, sondando cautelosamente o terreno. - Ele sabe que John Carey não pagou nenhum resgate.
- Mas ele não tem mais para onde ir. A menos, prima, que você saiba de alguma coisa.
- O conde não tem certeza da lealdade de seus homens, depois de tantos anos de ausência. Andou maquinando alguns planos, mas eu não sei dizer mais nada.
- Lembra-se de alguma coisa sobre o lugar onde ficaram?
- Perto de um riacho. Ele me deixou usá-lo algumas vezes.
- A que distância daqui?
- Não sei bem. Fiquei de olhos vendados o tempo todo. Mas foi uma viagem bastante longa.
- Por favor, Elsbeth, tente se lembrar de alguma coisa. Quantos rios tiveram de atravessar? E quando você conseguiu fugir, que caminho tomou?
- Dois rios - disse ela, franzindo a testa. - Atravessamos dois rios rasos.
- E na volta?
- Impossível dizer. Perdi-me na floresta e fiquei andando em círculos. Havia um pântano... desse eu me lembro bem.
- O conde estava sozinho o tempo todo?
- Pelo menos nunca ouvi nem vi ninguém mais.
- Onde ficaram?
- Era uma cabana pequena e horrorosa. Não havia janelas nem porta. Por vezes eu ficava absolutamente sozinha lá.
- Onde ele dormia?
- Não faço idéia. O conde nunca ficava na cabana.
Patrick pareceu satisfeito com essa resposta.
- Os dois riachos, Elsbeth, ficavam longe um do outro?
- Perto, acho.
Elsbeth perscrutou o rosto severo, mas não encontrou nenhum traço de culpa. O que ela via, ou melhor, sentia, era a rapidez com que ele pensava. Dois riachos
convergentes, no meio dos quais havia uma cabana de caçador abandonada. E perto de um pântano. Não descrevera a mesma, cabana onde ficara com Alex, e sim outra,
um pouco mais abaixo, cuja existência era do conhecimento do marido. Tinha quase certeza de que Patrick engolira a isca e já localizara a cabana na mente.
- Elsbeth, aqueles dois mercenários ingleses devem ir embora daqui o quanto antes. Podem ser espiões.
Ela balançou a cabeça.
- Não, Patrick. Foram muito bondosos comigo, e estão realmente cansados. Prometi que lhes daria abrigo por algum tempo, e pretendo manter a palavra.
O primo manteve-se em silêncio por instantes.
- Você tem coração mole demais, prima. Mas será como quer.
- Obrigada, Patrick.
Ele se aproximou, pondo as mãos nos ombros de Elsbeth com um carinho inusitado.
- O bastardo vai pagar caro por essa afronta, minha prima. Ele e toda a família Carey. Juro.
Abaixou-se e depositou um beijo leve no rosto de Elsbeth.
Ian aguardava impacientemente a sua vez. Sentira-se algo humilhado quando soube que Patrick fora chamado antes, mas depois se consolara com o pensamento de que
estivera fora a manhã inteira. Certamente Patrick fora chamado antes por causa disso.
Nem ele nem Patrick se surpreenderam quando souberam que Elsbeth queria falar-lhes separadamente. A prima já empregara essa tática várias vezes; era seu modo
de conhecer a opinião de cada um, sem terceiros para influenciar. E sempre que Elsbeth tinha de tomar uma decisão, chamava-os desse modo. Juntos, ele e Patrick sempre
terminavam numa discussão acesa, e não a ajudavam em nada.
De qualquer maneira, ainda receava que Elsbeth estivesse favorecendo Patrick de algum modo. E passeava de cá para lá, a ponta da espada riscando o chão de pedra.
Mas quando viu o sorriso luminoso de Elsbeth, seus receios se dissiparam imediatamente. Tomou-lhe a mão galantemente e beijou-a.
- Pelo Sacro Império Romano, Elsbeth! É bom tê-la de novo aqui.
Sentou-se ao lado da prima, esticando as pernas para frente.
- E agora vamos derramar um pouco de sangue inglês, hem? - disse, com entusiasmo. - Patrick já está convocando o clã.
- Eu sei, mas antes quero que você peça ajuda aos Rutheford. Precisa-mos aumentar nossa força de combate.
- Tudo bem. Mas onde vamos achar Carey?
- Como eu disse a Patrick, certamente não no condado. Não por enquanto. O conde tem um plano armado na cabeça, que eu desconheço, mas acho que tem alguma coisa
que ver com Londres. Talvez pedir auxílio na corte, não sei. Precisamos atacar antes que ele consiga esse auxílio, Ian.
Este começou a desenrolar um pergaminho diante dela.
- Trouxe este mapa da fronteira. Talvez você possa localizar onde ficou durante esse tempo.
Elsbeth nunca vira aquele mapa antes, e foi-lhe fácil fingir que se concentrava nos traçados. Num instante encontrou o segundo ponto selecionado por Alex; ficava
próximo de uma cachoeira.
- Eu... acho que ouvi o ruído de uma cachoeira ao longe. Ian fitava a prima em ansiosa expectativa, o que a fez sentir-se abominável.
"É para o bem de todos os Ker, pensou." Menos o traidor, é lógico.
Mas como acreditar que Ian era traidor, bons céus?
Ou Patrick?
Talvez nenhum dos dois, louvado seja Deus. Um outro membro qual-quer, mas não um dos primos, por favor, por favor!
Dispunha de quatro dias, quatro míseros dias. Prometera a Alex que usaria todos os recursos para evitar um ataque a Huntington, mas agora já se sentia insegura.
Seus homens estavam inquietos e irritadiços. A única espe-rança que tinha era desmascarar o traidor antes disso.
Ian não perdeu tempo com mais perguntas. Não queria aborrecer a prima, e tinha certeza de que Patrick fizera uma porção de indagações sobre temas que, para ele,
eram secundários.
- Bem, prima, eu já vou indo. Gosto muito de você, Elsbeth - disse ele, contemplando-a com os risonhos olhos azuis. - E vou fazer picadinho daquele condeco.
Elsbeth abriu o sorriso mais cativante que podia.
Faltava agora visitar mais uma pessoa.
Hugh Armstrong.
A tarefa não seria fácil; na última vez em que o vira, Hugh jazia no chão do estábulo com um galo na cabeça. Devia estar louco da vida com os Carey. Principalmente
com Alexander Carey.
Mandou selar o cavalo e partiu sozinha, dizendo-se preocupada com o velho amigo que lutara com tanta valentia para defendê-la. Iria visitá-lo rapidamente e pretendia
voltar dentro de uma hora.
Quando chegou, Hugh correu mancando para recebê-la e ajudá-la a desmontar. Os olhos argutos fixaram-se em Elsbeth.
- Minha pequena não parece muito maltratada.
Ela piscou um olho, maliciosa.
- Nem você, Hugh.
Ele apalpou o local onde tinha sido atingido por David Garrick.
- Fiquei com uma dor de cabeça danada, mas foi só. Pelas barbas do profeta, lady Elsbeth! Não sei como é que fui confiar num Carey! Eu devia estar fora de juízo.
- Mas confia em mim, não é, Hugh?
Ele recuou, desconfiado.
- Lógico, pequena, mas...
O sorriso de Elsbeth parecia iluminar a sala. Havia combinado com Alex que não contariam nada a ninguém por enquanto, mas podia contar a Hugh que pretendia se
casar com Alexander Carey. Desse modo, talvez abrandasse a resistência do velho guerreiro.
- Ficamos noivos em segredo, Hugh.
Armstrong deixou cair os braços ao lado do corpo e curvou os ombros.
- Bem que adivinhei antes... mas não quis acreditar. Noivos, pequena? Um Carey e uma Ker?
- Você desaprova?
- Preciso de tempo para pensar - respondeu ele, desnorteado.
Elsbeth tornou-se séria.
- Eu amo Alexander Carey.
- É, eu sabia, eu sabia...
- Está bravo comigo?
- Não, pequena. Estou vendo uns pontinhos dourados nesses olhos, e acho que o tal Carey tem muito que ver com isso. Não há briga neste mundo que valha sua felicidade,
lady Elsbeth.
Ela se comoveu com a ternura do amigo.
- Obrigada, Hugh. Sua aprovação era muito importante para mim.
Foi a vez de ele se comover. Fungou, pigarreou e começou a escarvar o chão com a perna manca, olhando para baixo.
- Bem, bem. Acho que minha pequena tem uma ou duas idéias na cabeça, não é assim?
- Acertou.
- Então vamos dar uma volta. O tempo está uma delícia!
Tudo estava correndo conforme os planos.
Elsbeth pedira a Patrick e Ian que adiassem a viagem para o dia seguinte, alegando estar com saudade dos dois. Fizera isso para garantir uma boa dianteira a
Hugh, que precisava se avistar com David Garrick o quanto antes.
Foi difícil agüentar o jantar todo ostentando um sorriso que, ao menos para ela, parecia que ia desmontar do rosto a qualquer momento. Elsbeth mostrou-se alegre,
receptiva, brincalhona, encantando os primos e os outros.
No entanto, examinava os rostos queridos, um a um, a semente da dúvida firmemente enraizada no coração. Estaria agindo certo? Ian e Patrick cumulavam-na de atenções
e gentilezas, um parecendo mais feliz que o outro com sua volta. Louisa, ao lado de Ian, lançava olhares compridos para o outro lado da mesa, onde Patrick conversava
com Joan. Os demais, como sempre, estavam acomodados pela ordem de importância.
Ninguém mais lhe fez perguntas sobre seu suposto cativeiro, o que era um grande alívio. Era como se tivessem feito um acordo tácito de que, naquela noite, nada
empanaria o brilho do banquete. Até Joan mostrava-se cordial e atenciosa.
O vinho, generoso e leve, corria solto. Elsbeth mergulhou nele com vontade, para ver se acalmava as agulhadas de tristeza e apreensão. Receava a hora em que
conheceria o traidor. Receava a solidão. Receava não ver Alex nunca mais. E, enquanto ouvia atentamente a conversa familiar, sua mente corria para outras paragens,
para outro jantar... onde dedos haviam se encontrado e duas almas haviam se unido para sempre.
Trovadores e saltimbancos vieram alegrar o ruidoso banquete, na hora da sobremesa. Elsbeth bateu palmas, cantou e dançou com eles, enterrando suas tristezas
o mais fundo que podia. Ian, ligeiramente embriagado, fitava-a com tamanha paixão que ela sentiu uma punhalada de culpa atravessá-la. Que estava fazendo com sua
família?
Finalmente, quando julgou adequada a hora, Elsbeth declarou que estava fatigada e com sono. Ian e Patrick precipitaram-se para acompanhá-la até o quarto, apesar
de seus protestos. Mas quando sentiu o braço de Ian amparando-a na escadaria, agradeceu efusivamente. Seu riso tornara-se meio bobo, e Elsbeth sabia que não estava
fazendo uma bela figura. Mas o vinho ajudara-a a atravessar uma noite de pesadelo.
Faltavam três ainda. Mais três noites de pesadelo.
Uma ajudante de Annie esperava-a no quarto, ao lado da lareira acesa.
- Onde está Annie? - perguntou. Elsbeth, lutando para desabotoar o primeiro colchete.
- Deixai-me fazer isso, senhora - acudiu a mocinha. - Annie está muito ocupada na cozinha. O banquete de hoje foi trabalhoso!
- Hum... - fez ela, sentindo tudo rodar a sua volta.
Desmoronou na cama, deixando-se despir meio adormecida. Uma multidão de rostos girava em rodopio. Dos Carey e dos Ker. Ian e Patrick, que de repente se transformavam
em feios monstros. Hugh, banhado em sangue. E Alex, montado num cavalo preto, observando a tudo impassível. Até que uma flecha trespassou-lhe o peito.
- Calma, menina, minha pobre menina...
A voz de Annie era doce e penetrava no pesadelo como um raio de luz nas sombras. Elsbeth agarrou-se às mãos da criada, do mesmo modo como se agarrara a Alex
no dia do pântano.
"Alex! Preciso de você, meu Alex!"
Alex acordou sobressaltado. Os cobertores que encontrara na cabana ainda tinham o cheiro de Elsbeth, e ele se aconchegou mais. Acordara com a nítida impressão
de ter ouvido o grito de Elsbeth, chamando-o.
Ela já devia estar no castelo. Alegre? Saudosa? Bons deuses, agira certo mandando-a para lá?
Sabia que sua parte do plano era muito menos dolorosa que a dela. Devia ser terrível gostar de uma pessoa que dentro de pouco tempo seria desmascarada como traidora
do clã.
Sorriu na escuridão. Elsbeth tinha tanta coragem, tanta vitalidade. Tivera a sorte de conhecer duas mulheres maravilhosas; e sua sorte se duplicara quando recebera
a amizade de uma e o amor de outra.
Contudo, sua alma se envenenava cada vez que pensava em Elsbeth sozinha, necessitada de sua companhia. Porque não tinha dúvida de que Elsbeth o chamara. O grito
ainda ecoava vividamente em seus ouvidos.
Só mais alguns dias, era tudo de que precisava. Depois se uniria a Elsbeth, para nunca mais se separarem.
Brincou com a idéia de se disfarçar e ir até o castelo, a fim de ver Elsbeth, nem que fosse de longe. Mas logo afastou o pensamento; seria loucura, e poderia
pôr tudo a perder.
Pelo sangue de Deus, o plano tinha de dar certo. Era absolutamente necessário que desse. Se John Carey desconfiasse do casamento e do bebê, não descansaria enquanto
não eliminasse os três. E então... então só Deus poderia dizer a quantidade de sangue que correria entre as duas famílias.
Alex suspirou, passando a mão nos olhos cansados. Seu papel, por ora, limitava-se a esperar. Esperar, temer e ter esperança. Estava atado àquela cabana como
estivera atado aos bancos das galés.
"Elsbeth, tenha fé. Eu te amo, minha escocesa valente." A quilômetros de distância, Elsbeth finalmente relaxou e conseguiu dormir em paz.
David Garrick trocava piadinhas com os guardas, enquanto seus olhos vigilantes esquadrinhavam o pátio. Sentado no chão de pedra, as pernas cruzadas e uma caneca
de cerveja na mão, parecia apenas mais um oficial em merecido repouso naquele fim de dia.
Os grandes portões da fortaleza se fechariam dentro de minutos. David vigiava discretamente a multidão que entrava e saía no movimento rotineiro do crepúsculo:
servos do castelo que voltavam para suas choupanas, soldados em busca das barracas, mendigos esperançosos que entravam, em busca de um abrigo seguro. Havia outra
saída, mas ninguém a conhecia, exceto John, Alexander e David. Era um túnel escavado sob o chão, escuro e tortuoso; Alex mostrara-lhe a saída certo dia, depois de
ambos terem esvaziado algumas garrafas de vinho. Era, a bem dizer, uma saída secreta de emergência, dando direto numa caverna no meio da floresta. E fora por essa
saída que David seguira John Carey no dia em que o pilhara em entrevista com o traidor Ker.
Contudo, David tinha absoluta certeza de que John jamais se atreveria a revelar o segredo dessa passagem a ninguém. O esperado mensageiro deveria entrar pelos
portões principais, sem sombra de dúvida.
Os olhos experientes capturaram a visão fugidia de um rosto desconhecido em meio à multidão que entrava. O desconhecido escondia-se, fazendo o possível para
se misturar à turba. David viu-o inclinar-se para outro passante e dizer-lhe alguma coisa. O outro apontou uma das barracas e seguiu caminho.
Garrick levantou-se preguiçosamente, soltando uma gargalhada estrepitosa quando o companheiro terminou de contar a piada, que, aliás, seria incapaz de reproduzir.
E, como quem não quer nada, seguiu o estranho. Ouviu-o então perguntar a um mercenário onde podia encontrar um homem chamado Simon. Escutou distintamente quando
o estranho falou:
- Tenho de falar com esse Simon. Morreu uma pessoa da família dele.
David soltou um grunhido satisfeito. Então lady Elsbeth já se achava no castelo, e o plano corria bem. Era hora de vigiar a passagem secreta.
Levaria ainda algum tempo até que a mensagem chegasse aos ouvidos de John Carey; podia se dar o luxo de comer um pouco e descansar. Porque a noite seria longa,
muito longa.
Tendo ocultado bem o cavalo, David agora se enregelava em seu esconderijo, situado bem acima da saída secreta. As horas arrastavam-se penosamente e nada se movia,
à exceção do vento cortante. Aos primeiros raios da aurora, convenceu-se de que perdera tempo. John não saíra pára se avistar com o traidor, e provavelmente não
se atreveria a encontrá-lo à luz do dia.
O melhor era ir para casa e descansar os ossos enferrujados. E jantar. E buscar conforto nos braços de sua mulher.
No dia seguinte à noite. Só podia ser no dia seguinte.
Capítulo XXI
Mas o sono de David foi interrompido logo cedo pelo alegre tilintar de um sininho. Era um mascate que chegava com seu carrinho atulhado de quinquilharias.
Sua mulher Judith já estava do lado de fora, soltando exclamações de prazer com as mercadorias: agulhas, linhas, xales coloridos, pentes.
O vendedor tinha o rosto coberto por um capuz e se apoiava num cajado tosco. Ao ver David se aproximando, assumiu uma expressão carrancuda.
Garrick vacilou, desconcertado. Havia atacado aquele homem durante uma trégua - embora forçada - e não gostava do sentimento de culpa que o assaltou. Tratou
de receber o visitante com amabilidade:
- Seja bem-vindo, mascate. Parece estar em boa forma.
- Não muito, graças a um golpe que recebi de um salafrário - retrucou o outro, os olhos cheios de belicosidade. - Não se pode mais confiar em ninguém hoje em
dia.
David não gostou da provocação. Mas, enfim, até que não faltava razão a Hugh Armstrong.
- Também acho. Hoje é difícil distinguir quem é amigo e quem é inimigo.
Judith ergueu a vista, espantada com a visível ,e inesperada hostilidade entre os dois.
- David?
- Quer comprar alguma coisa, Judith?
Ela sorriu, envergonhada.
- Se não se importa...
- Claro que não. Vá buscar a bolsa de moedas. Pode escolher o que quiser.
Judith agradeceu com um olhar amoroso e sumiu dentro da casa.
- Tem uma mulher simpática - observou Hugh, fixando os olhos no dono da casa.
David olhou o chão, sem jeito. Nunca pedira desculpas a ninguém, particularmente a um inimigo. Mas por mais que relutasse, sua honra de cavaleiro falava mais
alto.
- Eu... - começou, louco da vida por gaguejar na frente do outro. - Sinto muito pelo que aconteceu. Era absolutamente necessário.
Para seu espanto, o outro sorriu.
- Ora, não foi nada. Só um belo e doloroso galo na cabeça.
Houve um breve silêncio. Hugh arrematou, subitamente sério:
- Mas se tivessem tocado num só fio de cabelo de minha senhora...
- Ou de meu senhor.
Pronto. A belicosidade voltara, deixando claro que a trégua que existia entre eles era puramente temporária.
- Seu senhor já voltou?
- Já. E lady Elsbeth?
- Também.
- É uma mulher corajosa - concedeu David.
- Muito. E lord Huntington é mais ainda, mesmo sendo inglês. E Carey, ainda por cima. Sou capaz de jurar que ele tem um pouco de sangue escocês.
David preferiu ignorar o sarcasmo. Olhou para dentro, certificando-se de que Judith ainda não voltava.
- Um estranho chegou ontem à noite com uma mensagem para Simon, o confidente de John.
- Acha que a mensagem é da parte do traidor?
- Sem dúvida. Devia ser mensagem codificada, mas avisava que lady Elsbeth havia voltado ao castelo.
- E marcava uma nova entrevista com John Carey?
- Seguramente.
- Quando?
- Hoje à noite. Aposto minha vida nisso. Sempre se encontram no meio da noite, para não serem vistos. Como dois cães covardes.
- Cães, concordo. Mas não covardes. Não subestime a coragem de Ian ou de Patrick Ker, se é que um deles é realmente traidor.
- Logo mais terei a resposta a isso.
- Eu vou com você.
- Não! - cortou David rispidamente. - Arranjarei um lugar seguro onde possa ficar me esperando. Se eu não voltar pela manhã, é porque fui descoberto. Nesse caso,
você volta ao castelo para discutir outro plano com lady Elsbeth. Muito pior seria sermos descobertos juntos.
Havia sentido nas palavras do inglês. Por outro lado, Hugh sabia que já não tinha a mesma agilidade de antes.
Judith voltava, os olhos mais brilhantes que a moeda de ouro que apertava entre os dedos.
Dessa vez David viu sua paciência recompensada. A sua frente, John Carey cavalgava silenciosamente, escoltado por Simon.
Apesar de ter trazido montaria, David decidira segui-los a pé, uma vez que Simon também ia a pé; seria, assim, pouco provável que John Carey fizesse o cavalo
seguir mais ligeiro. Além do mais, seus movimentos ficavam mais livres e silenciosos.
Passadas algumas horas, John Carey deteve o cavalo. David deitou-se de bruços, arrastando-se como cobra, procurando chegar o mais perto possível. Um olho vigiava
John, enquanto o outro cuidava de Simon, que se escondera parcialmente. Logo se ouviu o farfalhar de ramos que se abriam para dar passagem a um cavaleiro, envolto
num manto negro que o tornava quase invisível.
Não houve nenhum cumprimento.
- Já sei onde ele está - começou o Ker, desmontando.
- Podemos pegá-lo ainda esta noite?
- Não. O esconderijo fica muito longe, do outro lado de seu condado, e eu tenho de voltar depressa ao castelo, para não levantar suspeitas.
- Amanhã à noite, então.
- Feito. Quero agora a morte dele tanto quanto você. E quero que seja uma morte longa e dolorosa.
- Deixe de ser imbecil! Se der a menor chance ao conde, você está frito. Temos de matá-lo de surpresa.
- Quero encontrá-lo cara a cara. E fazê-lo sofrer bastante, pelo que fez a Elsbeth.
- Louco maldito!
- Terá de concordar com essa condição, caso contrário não conto onde ele está.
Houve um longo silêncio hesitante.
- Fechado - disse John Carey. - Onde é o esconderijo?
O Ker apanhou um graveto seco e abaixou-se para desenhar no chão.
- Elsbeth descreveu este local. Disse que há uma cabana abandonada por perto.
David ouviu John sufocar uma exclamação.
- Sei onde é. Mas eu estive lá pessoalmente, escocês. Não havia nem traço de meu irmão.
- O conde não é bobo e sabe apagar rastros. Elsbeth lembra-se muito bem da cachoeira.
David encostou-se mais contra o chão, de puro medo que ouvissem seu coração batendo desordenadamente. Acabara de saber qual dos primos era o traidor.
Quietamente, muito devagar, arrastou-se para trás. Já ouvira o suficiente; agora era voltar o mais depressa possível para comunicar a descoberta a Hugh.
Hugh deixara de lado todas as precauções e tomara um cavalo emprestado de David para voltar. O pobre animal, suado e arrebentado, dizia a Elsbeth que Hugh galopara
a noite inteira.
- Você já sabe - murmurou ela, o receio e a tristeza espelhados nos olhos desmesuradamente abertos.
- Sei, pequena. E não estou nada feliz com isso.
Elsbeth o fez entrar no parlatório e trancou as portas. Já era fim de tarde; Ian deixara-a pela manhã, rumo ao castelo Rutherford, e Patrick agora dava aulas
de cavalaria no pátio. Deixou as lágrimas correrem livres, enquanto Hugh falava em voz baixa. Durante os últimos dias alimentara a louca esperança de que poderia
haver outra explicação. Ou outro traidor. Agora era obrigada a aceitar a verdade. A tremenda, horripilante e nauseante verdade.
- Por quê, Hugh? Por quê, Deus todo-poderoso?
- Creio que ele julgou que daria um bom líder para o clã, Elsbeth - respondeu o leal escocês, penalizado diante do evidente e sincero sofrimento da castelã.
- Ele também planejou a morte de meu pai? Acha mesmo, Hugh?
- Bem, Garrick diz que sim. Ele ouviu os dois falarem nisso, naquela noite.
- Acredita nesse inglês?
- Minha pequena, é duro de admitir que um inglês esteja certo ao acu-sar alguém de nosso sangue. Mas sim, acredito. Sempre desconfiei daquela emboscada; parecia-me
quase impossível os Carey saberem aonde seu pai tinha ido caçar. Hoje, sou capaz de jurar que eles obtiveram informações detalhadas sobre o local. .
Elsbeth ficou transtornada. Soluçava convulsivamente, agarrando-se ao pescoço de Hugh, que começou a embaia-ia nos braços. Também ele tinha os olhos rasos de
água.
- Chore, minha criança. Livre-se das lágrimas que apertam esse coraçãozinho meigo. Também sinto tanto, lady Elsbeth...
Elsbeth deixou-se levar pelo carinho de Hugh e deu livre curso à imensa tristeza. Chorou por sua inocência perdida chorou pelas três crianças que costumavam
brincar juntas, chorou pelo pai, por Alex, por séculos de ódio que culminavam num mar de intrigas e decepções.
"Escocesinha valente. Onde está minha guerreira?"
A voz de Alex chegou-lhe viva, quase palpável. Enxugou as lágrimas e endireitou os ombros. Os olhos dourados enegreceram-se em altiva determi-nação.
- Chame Patrick.
David escolheu a dedo cinco de seus melhores homens. Eram bem trei-nados, corajosos e razoavelmente honrados tão honrados quanto um mercenário podia sê-lo. Esperava
que esses homens não negassem apoio ao verdadeiro e legítimo conde de Huntington.
David reuniu o pequeno grupo numa barraca mais afastada.
- Ouvi dizer que há bandidos perigosos nas florestas a Leste deste condado, perto da cachoeira grande. Vamos apanhá-los de surpresa, mas ou-çam com atenção:
ninguém mata ninguém sem meu consentimento, a menos que seja para defender a vida de vocês. O líder deve ser capturado vivo; isso é de importância vital. Entenderam?
Os homens assentiram, entusiasmados. Fazia tempo que não havia um bom divertimento desse tipo.
- Vocês fiquem de tocaia, a minha espera. Chegarei lá ao cair da noite, para dar mais explicações. Lembrem-se: não ataquem ninguém antes, seja bandido, seja
Ker. Agora vão com
Deus. Restava a David esperar que Hugh e Elsbeth conseguissem convencer os Ker a estarem presentes também.
Particularmente, muito escondido no fundo de seu coração, receava que as duas famílias começassem a se devorar antes que os dois principais prota-gonistas chegassem.
O ódio entre os Ker e os Huntington era forte demais.
Logo pela manhã David, pretextando que soubera da existência de bandidos e saíra para capturá-los. Em vez disso, encontrara-se rapidamente com Alexander e contara-lhe
o que havia acontecido na véspera. Ambos discutiram bastante sobre a sensatez de Alex servir de isca aos conspiradores, mas o conde se mostrara irredutível.
- Sem minha presença, eles podem inventar milhões de desculpas, David. Eu preciso estar aqui. E preciso que eles tentem me matar. Só assim as provas serão satisfatórias
para as duas famílias.
- Pelo sangue de Cristo, Alex! - explodira David. - Como você é teimoso! Parece que está doido para morrer...
- Não mais, Davey. Não mais - respondera Alex. - Porque agora tenho Elsbeth.
David soltara um grunhido de desgosto e voltara ao condado, o coração cheio de apreensão.
O plano era bem concebido, mas... sempre podia não dar certo. Na realidade, via um punhado de pontos obscuros naquele plano maluco. E o maior problema, para
ele, residia no ódio ancestral entre os dois clãs.
Suspirando, preparou-se para ir ao encontro de Alexander.
A princípio, Patrick simplesmente recusara-se a ouvir. Ele e Ian nunca haviam sido grandes amigos, mas julgava conhecer bem o primo. E ambos sempre se respeitaram
mutuamente. Diante do que Elsbeth e Hugh lhe conta-ram, não teve dúvida de que ambos tinham caído numa armadilha diabo-licamente bem planejada.
- Deixe de bobagem, Elsbeth - gritou, enfurecido. - Isso é um truque dos Carey para nos dividir, não vê?
- Muito bem, meu caro - volveu ela. - Então me explique: como é que um Carey sabe onde o conde de Huntington está? Eu só revelei a Ian esse lugar, a mais ninguém.
- Engana-se, Elsbeth. Você contou para mim também.
Ela hesitou; esse era o momento mais difícil e temido. Patrick saberia que a prima desconfiara dele também.
- Eu indiquei dois locais diferentes para vocês, Patrick.
Patrick vacilou, custando a entender.
- E depois ficou esperando para saber qual de nós dois ia bater com a língua nos dentes? - explodiu, surpreso e amargurado. - Por quem me toma, Elsbeth?
Elsbeth sentiu enorme e avassaladora tristeza, mas manteve-se firme.
- Tomo-o por meu primo, Patrick. Tanto quanto tomava Ian.
- E seu rapto? Foi um truque também?
Havia dor e decepção na pergunta, e Elsbeth se perguntou se alguma vez conhecera Patrick direito. Porque Ian ela certamente jamais conhecera.
- Não. Eu fui forçada.
- Mas você o ajudou a escapar daqui.
- Sim.
- Um Carey!
- Patrick...
- E diz que Ian é traidor?!
A acusação partiu como flecha envenenada. Elsbeth cambaleou, sentindo-a quase fisicamente.
- Eu também ajudei, Patrick - acudiu Hugh, ao vê-la empalidecer. - O conde é diferente dos outros Carey, pode acreditar. Ele quer a paz na fron-teira. De nada
adiantaria matá-lo, e era isso o que aconteceria. Ou estou enga-nado?
Patrick deu-lhe as costas, apertando a cabeça entre as mãos. Tudo aquilo em que acreditava, todos em quem confiava, tudo desmoronava em ruínas a sua volta. Ian.
Elsbeth. Hugh. Os Carey eram inimigo houvesse o que houvesse.
-Quero que todos vocês se danem no inferno- murmurou, explodindo de raiva e frustração, enquanto abria e fechava os punhos erraticamente.
Elsbeth adiantou-se, embora de coração apertado.Precisava agora demonstrar serenidade e firmeza, nunca hesitação.
- É hora de acabar com essas brigas insanas, com essas mortes sem sentido, Patrick.Meu clã precisa de você. Eu preciso de você.
Também precisa dele? Afinal de contas,
- E Huntington ? Também precisa dele? Afinal de contas, Elsbeth, o que aconteceu durante todo o tempo em que ficou com o inglês?
"Casei-me com ele."
- Descobri que tipo de homem era o conde- respondeu, calma.
- Com mil demônios, Elsbeth! Você foi raptada por ele!
- Exatamente o mesmo que fizemos.
- Mas era a guerra, nos tínhamos uma boa razão! Além do quê, Huntigton é um homem, não uma criança indefesa...
- Está me chamando de criança indefesa, Patrick?É assim que me enxerga? Não fui eu que conduzi vocês até ele?Não fui eu que dei ordens do rapto?
- Foi diferente- gritou ele, agarrando-se ao argumento com unhas e dentes - Foi muito diferente!
- Nem tanto- retorquiu Elsbeth, cruzando as mãos.
Sentia-se mais serena agora.
- O conde queria pôr um ponto final nas matanças e nos ataques - dis-se, admirada com a própria firmeza. - Tentou me convencer disso mas nada adiantou; eu
não queria ouvi-lo, e jamais o ouviria enquanto ele fosse meu prisioneiro. E por quê? Porque eu julgaria que ele seria capaz de mentir e inventar qualquer coisa,
para se ver livre da prisão.
Patrick pôs-se a andar nervosamente pela sala. Mas ouvia com atenção, o cenho franzido. Seus punhos já não se crispavam mais.
- Ele sabia que Jonh queria sua morte, e adivinhou que alguém do clã ajudara o irmão a emboscá-lo no lago; ninguém a não ser o próprio John, conhecia seu hábito
de tomar banho naquele local, àquela hora. E, apesar de termos enviado três mensageiros com pedidos de resgate, nenhum dos três conseguiu chegar a Huntington. E
isso agora é muito claro, Patrick: John não podia deixar ninguém saber que havia se recusado a pagar o resgate do irmão, causando assim sua morte.
- A morte de um Carey! Que me interessa ela?
- Talvez mais do que você pensa, primo - disse ela, chamando-o assim pela primeira vez naquele dia. - Pense, Patrick. Se nosso gado puder pastar e engordar em
paz, que vida feliz e pacífica não viveria nossa gente? Sem sustos, sem mortes, sem incêndios... Todos nós ganharíamos com isso.
- Não posso confiar num Carey, não posso!
- E em mim, Patrick?
A dúvida do primo estava presente, latente nos olhos muito negros que a fitavam com angústia.
- Não consigo acreditar que Ian seja um traidor, Elsbeth.
- E se eu puder provar?
Elsbeth hesitava desesperadamente. Mas queria que Alex vivesse, a qual-quer preço. Pensou no riso fácil de Ian, na boca sensual e brincalhona, nos olhos azuis
enganosamente sinceros.
- Como?
A pergunta seca reboou nas paredes como um tiro de pistola, desafiador.
Hugh assistia a tudo, tomado de aflição. Ao ver gotas de suor no rosto de Elsbeth, apressou-se a intervir.
- John Carey e Ian se encontraram ontem à noite, Patrick. Ian contou a John onde o irmão está agora escondido, numa cabana de caçador, perto da cachoeira. Planejaram
ir hoje à noite até lá para assassiná-lo.
- Bobagem. Ian foi ao castelo Rutherford. Está lá agora.
Hugh e Elsbeth fecharam-se num mutismo eloqüente.
- É outro truque infame dos Carey - insistiu Patrick. - Eles querem nos apanhar numa armadilha. Todos os Ker de uma vez.
- Quero que você vá até o esconderijo do conde comigo hoje à noite, Patrick - disse Elsbeth, com suavidade. - Eu irei junto. E juntos saberemos quem está querendo
pegar quem.
- Você está enfeitiçada. O inglês é... é um bruxo.
- O inglês é meu marido.
No pesado silêncio que se seguiu, Elsbeth estremeceu. No decurso do diálogo com Patrick, havia resolvido que revelaria o segredo. Não havia outra forma de vencer
a teimosia do primo.
Tanto ele quanto Hugh emudeceram, estupefatos. Elsbeth ergueu o quei-xo, atirando altivamente a cabeça para trás. E esperou que eles se recobras-sem do susto.
- Acaba de me dar mais uma razão para eu matar esse cão maldito - rosnou Patrick, fora de si.
- Então vai ter de me matar primeiro.
Patrick sabia que ela não estava brincando; conhecia-a bem demais.
- Eu o amo, Patrick - disse ela, aproximando-se.
Patrick deu-lhe as costas.
- Há tanta coisa que você não sabe, meu Deus. O conde é uma pessoa generosa e leal. Esqueça por um segundo só que ele é da família Carey. Lembra-se de como ele
o poupou no dia da luta?
- Não adianta, Elsbeth. Não consigo me esquecer de que ele é um Carey. Que diabos você fez conosco, Elsbeth? Com sua família? Seu clã?
- Ajude-me, Patrick, eu lhe imploro.
Não havia mais altivez na castelã. Apenas um pedido de socorro aflito, feito por um coração destroçado. Elsbeth sabia que não podia abrir mão da ajuda de Patrick;
arriscara tudo ao contar-lhe tudo.
Ele a fitou por alguns instantes. Percebeu a tristeza, o medo e a angústia nos olhos dourados e límpidos que se esforçavam para não chorar. Lembrou-se da menininha
ruiva que costumava chorar de tristeza quando um veadi-nho perdido caía nas armadilhas preparadas por ele e por Ian.
- Você ama o inglês, Elsbeth?
- Muito, Patrick.
-Seu coração é mole demais, prima. Mas geralmente sua cabeça funciona bem.
Pela primeira vez, a chama da esperança brilhou no coração de Elsbeth.
- Ainda não estou convencido - advertiu Patrick. - Mas se for verdade que Ian nos traiu...
Interrompeu-se, incapaz de continuar. Não era preciso; Elsbeth e Hugh compreenderam.
- Vou juntar meus homens.
Elsbeth rezou intimamente. Faltava a segunda barreira para transpor.
- Não podemos levar mais de seis, Patrick.
Ele se virou devagar para ela, de novo não querendo acreditar no que ouvia.
- Está doida, Elsbeth? Seis? Nas terras de Huntington?
- Não estou doida, Patrick. Se levarmos um exército, poderemos espan-tar nossa caça. Alex também não levará mais que cinco homens dele.
- Alex? Alex! Ele é um Carey! Lembre-se de seu pai, Elsbeth.
Ela se empertigou.
- Muito bem, se você tem medo de ir com apenas seis homens, eu vou sozinha com Hugh.
Patrick corou violentamente.
- Vou escolher meia dúzia de homens.
- Hugh e eu também vamos. Seremos oito, então.
Patrick lançou-lhe um último olhar sombrio, cheio de maus presságios.
- Que Deus tenha piedade de você, se não estiver dizendo a verdade.
Não muito tempo depois, os oito se reuniram no pátio. Patrick conservava uma expressão obstinadamente incrédula, e seu rosto parecia mais sombrio e fechado que
nunca. Elsbeth explicou a direção que deveriam tomar, tentando mostrar-se carinhosa e agradecida. Mas Patrick repeliu todas as tentativas de aproximação, fechando-se
em si mesmo.
Os outros homens mantinham-se igualmente silenciosos. Não conheciam sua missão, mas a tensão entre Patrick e Elsbeth era evidente. Havia algo de sinistro no
ar algo que afetava a todos.
Emoções desencontradas varriam o espírito de Elsbeth, como água penetrando aos borbotões num navio rachado de alto a baixo. Logo estaria com Alex, e para sempre
- pelo menos era o que esperava. Mas antes que isso acontecesse, era necessário que ocorresse mais uma morte. Pelo menos. Não se iludia quanto aos resultados dessa
empresa; se Ian fosse apanhado, seu clã jamais o perdoaria. E certamente John encontraria o mesmo destino.
Já derramara muitas lágrimas por Ian, mas isso em nada amenizava sua tristeza. E sabia que Alex também choraria pela morte do irmão.
À medida que a pequena comitiva se aproximava dos domínios de Huntington, a inquietação dos homens ia crescendo. Elsbeth notava que o mais leve ruído fazia-os
levar a mão à espada, num instinto antigo e ancestral. Todos estavam pesadamente armados e Patrick trouxera sua pistola.
O pânico apoderou-se de Elsbeth. Sentia uma premonição fatal, algo mortal e perverso pairando no ar, envolvendo-a numa mortalha sinistra. Nesse momento, como
que para confirmar seus pensamentos, uma grande nuvem interpôs-se entre eles e a lua. A escuridão tenebrosa envolveu o grupo. Toda a floresta parecia mergulhada
num silêncio agourento, exceto pelo ruído surdo das patas dos animais, presos por tiras de couro.
Elsbeth estremeceu. Alguma coisa de ruim estava para acontecer. Algu-ma coisa que não estava nos planos. Sabia-o agora.
"Alex, cuidado. Pelo amor que tem por mim, cuidado!"
Pouco mais tarde, Hugh aproximou sua montaria da de Patrick. Ouviu-se um pio de coruja, imediatamente respondido por Hugh. Ele fez um sinal para que todos parassem
e esperassem. Após um momento de ansiante expectativa, dois vultos se aproximaram. Elsbeth reconheceu Alex e David Garrick.
Se havia tensão antes, agora ela se tornara insuportável. Todas as mãos fecharam-se sobre os cabos das espadas. Murmúrios descontentes saíram de todas as bocas.
Alex e Garrick se adiantaram, tomando o cuidado de manter os braços afastados do corpo. Demonstravam, desse modo, que não pensavam em desembainhar a espada.
A nuvem afastou-se da lua, e sob sua luz leitosa Elsbeth divisou antagonismo e aspereza na expressão de todos. Não houve nenhum sinal de amabilidade ou de simples
cortesia formal; limitaram-se a se estudar uns aos outros, desconfiados e alertas.
- Lord Huntington? - chamou ela.
O sorriso dele foi terno, mas carregado de preocupação. Patrick detestou o mútuo entendimento que pressentiu entre os dois. Curvou as costas, numa atitude de
raiva e desprazer.
- Pelo que entendi, um de nós, um Ker, virá até aqui sem nosso conheci-mento? - perguntou ele, sem disfarçar a total descrença no que dizia.
Alex olhou para Elsbeth.
- Vai ser uma noite longa e difícil para todos. Creio que lady Elsbeth deveria esperar aqui, e não seguir conosco.
- Não - cortou ela. - Sou parte de meu clã. Ficarei com vocês.
Patrick imediatamente percebeu as vibrações que fluíam entre a prima e o conde inglês. Despeitado, teve vontade de discordar do homem que consi-derava seu pior
inimigo. Mas, diabos o levassem, o maldito tinha razão.
- Elsbeth - começou.
- Não. Ainda sou a líder do clã, Patrick. Você me deve obediência.
Patrick considerou a possibilidade de se rebelar. Seus homens o apóia-riam e manteriam Elsbeth ali; contudo, precisava deles. Porque ainda achava que tudo não
passava de uma armadilha.
Notou a contrariedade estampada no rosto de Alex e falou-lhe, com rispidez:
- Pode tentar mantê-la aqui, inglês. Verá o que é lidar com uma escoce-sa decidida.
Elsbeth notou um breve traço de zombaria na frase, e uma pequena chama de esperança surgiu em seu coração. Talvez...
Mas foi uma impressão fugaz. Patrick voltara ao tom hostil e reservado quando perguntou:
- Qual é sua pretensão? Que quer nos mostrar, inglês?
Alex mirou Patrick, adivinhando que este não acreditava na traição do primo. Elsbeth devia ter passado maus momentos para convencê-lo a vir.
- Há cinco homens meus escondidos aqui - disse ele, medindo cuidadosamente as palavras. - Minha sugestão é que amarrem seus animais aqui e prossigam a pé conosco.
- Só com minha pistola encostada em suas costas.
Alex deu de ombros, concordando tacitamente. Nada faria para detonar a explosão que via latente nos escoceses.
Enquanto andavam, a pistola de Patrick cutucava suas costelas, e a única coisa que Alex podia fazer era rezar para que o escocês não tropeçasse. Ninguém se dispunha
a confiar nele. Enfim, agiam exatamente como desconfiara que agiriam.
Voltou a cabeça para Elsbeth, e seus olhares se cruzaram. Ansiava por tocar-lhe a mão, mas só de ver a expressão fechada e pouco amistosa dos outros escoceses,
sabia que agora não era o momento adequado.
Quando alcançaram a clareira, David assobiou baixinho. Quase de imediato, Alex viu cinco homens de sua própria guarda se aproximarem. A pistola de Patrick pressionou-lhe
as costas com mais força. Os homens de David, surpresos com a comitiva inimiga, levaram a mão às armas. E os homens de Patrick fizeram o mesmo.
O silêncio foi mortal. Nisso, um dos homens de Garrick exclamou, cutucando um companheiro:
- É lord Huntington! David nos disse a verdade, então!
Os outros, entre surpresos e hesitantes, chegaram mais perto para se certificar. Não havia dúvida: era Alexander Carey.
David fez um sinal para que se calassem e ordenou-lhes, com gestos, que recuassem para os esconderijos. Alex confirmou a ordem, acenando-lhes com a cabeça.
Patrick também ordenou aos escoceses que se escondessem. Sua mão, contudo, não largou a pistola.
A fraca luz da lua mal iluminava a clareira agora. A sombra da cabana erguia-se negra e fantasmagórica, um rolo de fumaça escapando de sua chaminé rumo ao veludo
da noite. Ouviu-se o pio de uma coruja, e Elsbeth pressentiu a chegada de mais gente. Achegou seu corpo ao de Alex, buscando calor e força.
Um homem a cavalo saiu de entre as árvores, parecendo sondar o terreno. Não vendo nada de anormal, levantou um braço, e, em poucos minutos, mais dois homens
surgiram.
Quando os raios difusos da lua fizeram brilhar uma cabeça loura e conhecida, Alex sentiu a pistola de Patrick vacilar. Ouviu-o soltar um grunhi-do rouco, mesclado
de fúria e humilhação. Os três agora eram claramente reconhecíveis: Ian, Simon e John Carey.
Os outros escoceses ofegaram baixinho, mas os ingleses mantiveram-se calmos. David se encarregara de prepará-los.
De pistola em punho, os três se aproximaram da cabana. Todos observa-ram-nos entrar; e todos ouviram a descarga de um tiro, depois outra. Os cobertores que Alex
deixara enrolados no chão da cabana haviam funcionado bem. Não havia mais como duvidar das intenções de John Carey ou de Ian. Finalmente, ouviram-se exclamações
de frustração e raiva, enquanto os três deixavam a cabana apressadamente, esticando o pescoço em todas as direções.
Alex virou-se para Patrick, que, lentamente, baixou a pistola. Tinha a expressão torturada e amargurada. Instintivamente o conde tocou-lhe a manga de leve. Mas
Patrick puxou o braço com brusquidão; seu orgulho estava por demais ferido. Alex não se ofendeu; compreendia, e muito bem, o que se passava na mente atormentada
do escocês.
- Está procurando por mim, John?
A voz de Alex soou nítida como um clarim. Lentamente, o conde deixou o esconderijo, aproximando-se do irmão. Este puxou a espada no ar. Não tinha tempo para
recarregar a pistola.
- Adivinhou, irmãozinho. Foi uma caçada comprida e cansativa, mas acabei encontrando você. Felizmente.
- Não tão felizmente assim, John.
Ian apontou sua pistola para Alex, que, num átimo, se lembrou que ouvira somente duas descargas.
- Nem tente, Ian - soou a voz de Patrick, perigosamente macia. - Largue essa arma.
Ian avançou, perscrutando incerto as árvores. E viu o vulto do primo se adiantando, juntamente com alguns membros do clã. Um breve sorriso se formou em seus
lábios crispados quando deu com a figura esbelta de Elsbeth. Deixou cair a pistola e curvou-se numa reverência, como se nada tivesse acontecido.
- Minha adorável, encantadora priminha.
Os homens de Huntington também avançaram, apertando o cerco sobre os três assassinos. O silêncio era sepulcral. A clareira tomou ares de uma are-na grega, onde
se desenrolava o ato final de uma tragédia que, todos sabiam, nunca mais seria esquecida. John Carey foi o primeiro a se recuperar.
- A mim, meus bravos! - gritou, dirigindo-se aos homens que David trouxera.
Tinha certeza de que eles o atenderiam; afinal, quem lhes dava comida e trabalho? Contudo, sua certeza logo se esvaneceu. Os cinco mantiveram-se ao lado de Alex,
em silêncio.
- A mim! A mim, estou mandando! - berrou, frenético.
- Terá de lutar sozinho, John - falou Alex, empunhando sua espada e avançando devagar.
Com um bramido de fera acuada, John deu um salto para frente, a espada luzindo no ar.
- Com prazer!
As duas espadas se encontraram, num tinido de prata estridente. Os antagonistas se testavam mutuamente, como mandavam as regras da boa cavalaria. Alex recuou
um pouco, baixando a espada, e depois arremeteu novamente. O golpe foi aparado facilmente por John.
Ambos já haviam lutado quando pequenos, mas obviamente não com a intenção de matar. John sabia que sua única chance seria matar Alex e tentar recuperar a confiança
dos homens. Mesmo que o conseguisse, a razão lhe dizia que agora era um homem desonrado na corte. Essa consciência redobrou suas forças, transformando-o num esgrimista
melhor do que costumava ser.
O clangor de aço contra aço feriu novamente a noite. Elsbeth sentiu a mão paternal de Hugh em seu ombro. Com o canto do olho, observou Patrick, que segurava
firmemente Ian pelo braço, a pistola apontada para a cabeça loura. Dois escoceses vigiavam o terceiro conspirador.
Ninguém conseguia desprender os olhos daquela luta mortal entre irmãos de sangue. A despeito do ar gelado, Alex já transpirava abundante-mente. O ferimento de
seu braço, não de todo cicatrizado, tornava seus movimentos mais pesados e lentos.
Ao tentar uma arremetida mais violenta, Alex sentiu uma onda de dor cruciante perpassar pelo braço. Recuou cambaleando, tentando recuperar o equilíbrio. Com
um rugido de vitória, John se arrojou de espada em riste, pronta para atingir o peito sem resguardo que se abria para ele, como presente caído do céu. Elsbeth soltou
um grito agudo e correu para proteger Alex, mas nesse instante os papéis se inverteram. John, achando que já tinha vencido a batalha, abrira uma brecha em sua defesa.
A espada de Alex, ágil e precisa, atingiu o punho de John. A arma do irmão saltou-lhe das mãos, rodopiou loucamente no ar e caiu com estrondo, causando um arrepio
na platéia. Novamente a espada de Alex arremeteu e abriu enorme ferida no braço direito de John, que tombou na terra fria urrando de dor.
Alex se aproximou calmamente e colocou a ponta da espada no pescoço do irmão vencido.
- Renda-se, John.
- Nunca! - cuspiu o outro, a boca retorcida de ódio. - Filho de uma cadela!
Alex sabia que devia matá-lo; era seu direito, e quase seu dever. Mas não encontrou forças para dar o golpe final. A espada tremeu-lhe nas mãos. Por mais que
tentasse enterrá-la, algo o impedia de seguir adiante.
- Você vai partir daqui, John. E nunca mais voltará à Inglaterra.
Recuou um pouco, enxugando a testa, sem tirar os olhos do verme desprezível que um dia chamara de irmão.
- E que Deus tenha piedade de você, se ousar pisar em solo inglês novamente. Há provas suficientes agora para que seja esquartejado em praça pública.
Voltou-lhe as costas com desgosto e amargura, dizendo para David Garrick:
- Vigiem-no.
Alex virou-se para Elsbeth, que imediatamente se atirou em seus braços, totalmente alheia aos olhares surpresos dos dois lados.
- Que cena mais comovente!
Era a voz de Ian, mais aguda e sarcástica que de costume.
- Traidor! - vociferou Patrick.
- Foi um jogo, primo - falou Ian, numa voz estranhamente patética. - Um jogo onde arrisquei tudo o que tinha. Pensei que daria um bom líder para nosso clã. Ainda
penso, se quer saber.
- Um traidor jamais seria bom líder! - gritou Patrick, fora de si. - Bom líder, você? Matando nosso velho Robert Ker? Aliando-se aos inimigos?
- Você sempre disse primo que os fins justificam os meios.
- Mas não esses meios, com mil demônios!
A voz de Patrick tornou-se desesperada, estrangulada com a tremenda decepção.
Elsbeth tentou escapar dos braços de Alex, mas este a segurava com firmeza. Ela sabia o que estava para vir. Não podia deixar, não podia! Talvez fizesse o mesmo
que Alex; talvez pudesse enviar Ian para bem longe dali.
- Não há volta agora, minha escocesa - sussurrou Alex a seu ouvido. - Eu pude poupar meu irmão, porque a traição foi só comigo. A decisão foi minha, só minha.
Não tem o direito de interferir na decisão de seu clã, Elsbeth.
Ela enterrou a cabeça no ombro do marido, não querendo ver. E mais uma vez o clangor de espadas apunhalou-lhe o coração, mas foi curto e seco. Quase no mesmo
instante ela ouviu o ruído apavorante de aço penetrando na carne, seguido de um gemido.
Arrancou-se dos braços de Alex, e correu para Ian, que cambaleava erraticamente, em pequenos círculos. Ele a fitou com os olhos já vidrados.
- Sinto muito, Elsbeth. Eu... eu... amava você.
E lentamente deixou-se escorregar para o chão.
Elsbeth ajoelhou-se, colocando a cabeça loira em seu regaço.
- Oh, Ian! Ian, Ian!
- Por pouco - sussurrou ele, tão baixinho quanto o sopro leve da brisa. - Você quase... quase me amou.
O olhar azul se congelou no ar, e a mão escorregou do vestido de Elsbeth para a terra encharcada de sangue.
Patrick também se ajoelhou.
- Ele me deixou ganhar, Elsbeth. Nem... nem sequer tentou reagir.
Sua voz estava rouca e entrecortada, quase irreconhecível. Patrick cerrou os olhos do primo quase com doçura.
Foi quando seu olhar experiente capturou um movimento rápido, quase imperceptível.
- Huntington! - bradou, enquanto sua mão buscava freneticamente pela pistola.
Elsbeth virou-se em tempo de ver Simon, de quem todos haviam se esquecido, chutar a pistola de Ian para John Carey. E viu quando John pegava a arma com sorriso
demoníaco e apontava para a cabeça de Alex.
- Alex! - Elsbeth gritou desesperada, correndo para o marido, enquanto as armas de John Carey e de Patrick eram disparadas simulta-neamente.
John Carey ergueu os braços para cima, numa dança macabra, parte dos miolos balançando no ar. E desabou como um saco de areia.
Ingleses e escoceses, terrificados, observaram em mudo espanto o sangue de Alexander Carey escorrer mansamente para se encontrar com o de Elsbeth Ker, misturando-se
num só. Hipnotizados, viram o filete brilhante formar um pequeno círculo, no centro do qual o casal, num último e desesperado abraço, tombou inerte.
Capítulo XXII
Alex despertou com uma dor de cabeça cegante, a mente cortada por cenas rápidas. John, Ian, tiros varando a noite, Elsbeth correndo para ele. Elsbeth?
- Elsbeth! - gritou, desesperado, lutando contra as bolinhas luminosas que dançavam diante dos olhos.
No meio das bolinhas, focalizou com dificuldade a figura de um escocês alto, moreno e de expressão severa.
- Milorde tem constituição forte - disse Patrick, com humildade obviamente fingida. - Por pouco!
- Elsbeth?
- Está no quarto ao lado, dormindo. Tivemos de forçá-la a tomar um calmante. Foi o único jeito de arrancá-la daqui.
- Está ferida?
- Não tanto quanto milorde. Um arranhão, quase. Mas foi por causa dela que a bala desviou o trajeto e não atingiu o coração de milorde.
- Quero vê-la - disse Alex, sentando-se.
- Você ainda está fraco, inglês.
Alex ignorou-o e tentou pôr-se de pé. Ondas de dor vararam-no, deixan-do-o zonzo. Firmou-se com uma mão na borda da cama e falou, com simplicidade:
- Seu braço. Por favor.
Depois de breve hesitação, Patrick viu-se amparando o conde e condu-zindo-o para o quarto contíguo.
Alex mal se apercebeu que fora colocado no quarto principal de seu castelo, o mesmo que John ocupava. E que Elsbeth se achava no quarto usual-mente reservado
para a dona do castelo. A dor impedia-o de dar importância ao fato.
Magdalene, que velava o sono de Elsbeth, ergueu-se quando os dois entraram.
- Milorde, devia estar deitado!
Alex nem se deu ao trabalho de responder, concentrando toda a atenção na figura frágil de Elsbeth, cuja testa estava envolvida em pensos de linho. Apoiando todo
o seu peso no braço de Patrick, forçou-se a caminhar penosamente até õ leito. Curvou-se para acariciar o rosto querido e sentir sua respiração compassada.
- Satisfeito, Huntington? Está quase quebrando meu braço.
- Era essa minha intenção - respondeu Alex, endireitando-se.
Nova onda de dor o fez oscilar e empalidecer.
- Molengão! - disse Magdalene para Patrick, sem a menor cerimônia. - Por que o trouxe aqui?
- Ele viria engatinhando, se eu não ajudasse - replicou o escocês, enquanto literalmente arrastava Alex de volta para o quarto.
Alexander afundou no colchão, amaldiçoando a fraqueza que sentia.
- John?
- Bem morto, nos porões do inferno. Seu coração é mais mole ainda que o de minha prima. Acho que não vou achar divertido lutar com você.
- Mas eu não pretendo medir armas de novo com você. Não sou covar-de, mas também não sou louco. Você é bom demais com a espada.
Patrick olhou para o chão.
- Tem um hábito mau de poupar seus oponentes justo quando lhe aparece a chance de matá-los.
- Ao menos numa dessas vezes parece-me que fiz bem - volveu Alex, sem poder resistir à ironia.
- Não fosse por Elsbeth, eu o teria matado.
- Eu sei.
- Continue assim, e vai prestar um favor a Elsbeth, deixando-a viúva.
Alex encarou-o, espantado.
- É, eu estou sabendo. Elsbeth me contou. Foi a única forma de me convencer a acompanhá-la ontem à noite. E, mesmo assim, pensei que se tratasse de um truque
sujo de sua parte.
- E agora?
- Continuo achando que você tem o maldito hábito de enganar todo o mundo. Só vou confiar um pouquinho, insisto, um pouquinho, quando você e ela se casarem de
verdade. Nada desses arranjos ingleses de araque.
O espanto e a surpresa de Alex não tinham mais limite.
- Acho que estou delirando, Patrick. Deve ser a dor.
- Não pense que estou feliz com esse maldito casamento. Preferia que Elsbeth escolhesse um escocês forte e valente, como eu, por exemplo... Mas conheço minha
prima. Ela pode ser tão teimosa quanto um javali ferido.
- Patrick...
O escocês não sorriu.
- Quando ela correu para seu lado, estava disposta a trocar a vida pela sua. Compreendi que você devia valer alguma coisa, Carey ou não. Repito, não gosto dessa
união. Mas será como ela quer.
A conversa foi interrompida com a chegada de Magdalene.
- Minha boa Magdalene! Como diabos está aqui em minhas terras?
Patrick franziu o cenho, carrancudo.
- Acha que eu ia entregar Elsbeth nas mãos de um curandeiro Carey? Mandei chamar Magdalene. Nela eu confio.
- E o que meus homens estão achando dessa invasão dos Ker? - perguntou Alex, o sorriso irônico desenhando-se pela primeira vez em seu rosto.
- Devem estar gostando tanto quanto nós. Mas Garrick andou gastando saliva com eles, acho. Enfim, meus homens estão se sentindo um tantinho inferiores aqui.
- Um tantinho?!
O sorriso transformou-se num esgar retorcido de dor, e Alex teve de se agarrar à cabeceira da cama, à espera de que as pontadas cessassem de agulhar-lhe as costelas.
Um tantinho! Mais de trezentos contra seis...
- Nós seis poderíamos acabar com a raça de todos os Carey - sentenciou Patrick, solenemente, adivinhando o que o outro estava pensando.
- Não duvido. Onde está Davey?
- Tratando de acalmar os ânimos, pode apostar.
Magdalene empurrou Patrick e curvou-se sobre Alex, desenrolando destramente os panos que escondiam parcialmente sua cabeça.
- Como se sente, milorde?
Alex considerou a pergunta, e achou que um pouquinho de seu velho charme não faria mal naquela hora.
- Graças aos Ker, acho que vou sobreviver mais esta vez.
- Nada disso - interveio Patrick, acidamente. - É sua pele que é mais dura que a de um hipopótamo. Nada de jogar a culpa para cima de nós.
- Fora daqui! - sibilou Magdalene, mal contendo o riso.
Patrick, depois de lançar um olhar gelado para a curandeira, fez um breve cumprimento com a cabeça e saiu. Da porta, fulminou:
- Cuide de minha prima, Magdalene. Não perca mais seu tempo com esse aí.
Ela não respondeu. Limitou-se a sorrir, balançando a cabeça, e começou a limpar o ferimento com um líquido claro, de aroma penetrante. Alex fez uma careta.
- Vai ficar com uma bela cicatriz, milorde. Mais uma para sua coleção...
- Elsbeth?
- Também. Só que a dela vai ficar longe de olhares indiscretos. E é bem menor que a sua.
- Ela está bem, não está?
- Ótima, mas inquieta e aflita com milorde. Não havia quem a tirasse daqui. Por fim, coloquei um vidro inteiro de calmante dentro do vinho, às escondidas. Milorde
e ela se parecem em muitas coisas. Que casalzinho mais teimoso... Agora, milorde vai ficar bem quietinho, que este negócio arde.
Alex mal sufocou um gemido quando um novo cataplasma foi aplicado na ferida.
- Precisa ficar forte, milorde. Para cuidar de Lady Elsbeth. Porque ela vai precisar de muita, muita força.
- Não aprova nosso casamento, Magdalene?
- Eu acho bom. Mas tem muita gente que pensa de forma diferente.
O olhar do conde se entristeceu.
- Não se pode apagar um ódio como esses da noite para o dia, milorde. Enfim, o primeiro passo foi dado ontem. Agora, beba isto.
Pensativo, Alex sorveu o líquido. A dor começou a ceder imediatamente. Logo sua cabeça pendia, imersa em sono sem sonhos.
Vagarosamente os olhos de Alex se abriram, para encontrar os de Elsbeth, curvada sobre ele. Deu um sorriso preguiçoso, lento, apaixonado.
Sem dizer nada, estendeu-lhe os braços. Elsbeth se aninhou meigamente, em feliz abandono.
- Seu primo acha que devemos nos casar de novo. À moda escocesa.
Elsbeth ergueu a cabeça, espantada.
- Patrick?!
- Com alguma relutância, é claro. Ele disse que preferia ver você casada com um "escocês forte e valente, como eu, por exemplo" - imitou ele, torcen-do a boca
do jeito que Patrick fazia.
Ela riu.
- Igualzinho! É bem assim que ele gosta de provocar. Mas acho que ele nunca me amou. Não de verdade.
- Mas eu sim, minha escocesinha...
Elsbeth acariciou-lhe o rosto.
- Magdalene disse que sua cicatriz vai ficar bem escondida... acho que só eu vou poder vê-la. Mas você, minha querida, vai ter de conviver com um marido feio
e deformado.
- Nunca mais brinque assim, Alexander Carey. Primeiro, porque está exagerando; a cicatriz vai marcar um pouco seu rosto, e é só. Segundo, para mim você é a pessoa
mais linda deste mundo, com ou sem cicatrizes. As que você tinha na alma, meu querido, essas sim, poderiam ser feias. Mas elas já não existem mais, não é?
- Não, Elsbeth - disse ele, puxando-a.
Os lábios se tocaram ternamente. Elsbeth tentou se erguer, mas ele a prendeu em novo e apaixonado beijo. A respiração de ambos começou a se acelerar, e de repente
ela se soltou, perdida de riso, louca de felicidade.
- Alexander Carey!
Ele olhou para baixo, consternado. Bem no lugar onde estavam suas virilhas, o lençol se erguera, formando uma cabana.
- Que é que eu posso fazer, se me casei com uma mulher estonteante? Venha cá.
- Não- volveu ela, rindo ainda.
- Então diga de novo que me ama.
- Eu te amo, Alex.
O casamento aconteceu três semanas mais tarde, num dia ensolarado de outono. Tendas e barracas espalhavam-se por todo o condado de Huntington, pois Alex fizera
questão de convidar todas as famílias da fronteira.
William e Tate, os dois oficiais ingleses que tinham escoltado Elsbeth, apreciavam o espetáculo do alto das grandes ameias do castelo, satisfeitos com o resultado.
Acabavam de voltar de Londres, onde haviam passado dois dias com Nortnumberland, a fim de contar-lhe as novidades. O duque, muito contente, enviara uma magnífica
égua negra de presente para Elsbeth. Aquela vasta região da fronteira, uma das mais agitadas, teria paz dali para a frente.
Ambos contemplavam as bandeiras que tremulavam ao vento, colorindo alegremente a paisagem. Ingleses e escoceses se misturavam e se digladiavam em lutas e justas,
às vezes mais esquentadas, mas razoavelmente pacíficas. De modo geral, todos se mostravam aliviados com o fim da terrível e secular briga entre as duas famílias
mais fortes da região.
Os dois oficiais ingleses sabiam que poucas pessoas conheciam a verdade sobre o que acontecera aquela noite, na clareira. Tanto os Ker quanto os Huntington haviam
decidido silenciar sobre a traição que grassara no seio de ambas as famílias. Limitaram- se, pois, a anunciar que John Carey e Ian Ker haviam perecido nas mãos de
bandidos forasteiros, e, em honra as suas mortes Alexander e Elsbeth haviam resolvido unir as duas tradicionais famílias inimigas, visando a paz na fronteira.
Era uma história inverossímil e mal costurada, mas tanto ingleses quanto escoceses, ansiosos pelo fim da guerra, pareciam tê-la digerido.
- Uma pena termos de deixar lady Elsbeth - suspirou Tate. - Foi uma aventura danada de boa, essa.
- Também acho. Ei, mas nós não vamos assistir ao casamento?
- Nossa missão terminou, William.
- É... terminou. Olhe só os ingleses e os escoceses reunidos, rindo e bebendo. Rapaz, se me contassem, eu não teria acreditado.
- É o poder do amor, meu velho - disse Tate, suspirando. - Quanto tempo vai durar essa paz? Ela me parece meio artificial.
- Não sei, mas de qualquer modo isso não faz mais parte de nossa missão. O problema é deles.
- Não vamos nos despedir de lady Elsbeth?
- Melhor não. Ela deve ter outras coisas mais importantes na cabeça.
Duas horas depois os dois estavam a caminho de Londres.
De fato, Elsbeth tinha outras coisas mais importantes na cabeça. Iria se casar no dia seguinte. Mais uma vez.
E tinha o presente mais bonito do mundo para dar a Alex. Lembrou-se do dia em que tiveram de se separar, ainda em Londres, e da amorosa discussão que haviam
mantido acerca da cor dos cabelos do primeiro filho. Logo tirariam suas dúvidas... Uma alegria imensa tomou conta de todo o seu ser, enterrando no esquecimento a
pavorosa noite da clareira. Decidiu que não mais pensaria no passado, e sim no futuro. Que prometia ser claro e luminoso.
Annie, convidada por Elsbeth para ajudá-la nos preparativos das bodas, apressara-se a vir ter com a jovem patroa. Estava entretida no arranjo dos delicados lençóis
do enxoval quando, ao erguer a cabeça, deparou com Elsbeth acariciando o ventre, um sorriso diferente e terno iluminando seu rosto.
- Elsbeth! Vós não...não estais...
- Acho que sim, Annie! Meu Deus, não é maravilhoso?
- É, acho que sim... um Careyzinho.
- Acima de tudo, Annie, é também um Kerzinho. E faça-me o favor de não contar para ninguém. Por enquanto.
- Está bem. Vejo-vos tão feliz, tão diferente, que... que acabo achando que milorde Huntington talvez não seja tão ruim como penso. É, acho que vou conceder
um pouco de minha afeição a ele também. Um pouco só.
Elsbeth olhou para o céu claro. Era como se Deus tivesse conspirado com a natureza para tornar seu casamento mais brilhante.
Patrick, nos trajes mais vistosos que tinha, conduzia-a vagarosamente para a pequena capela. Sua fisionomia reservada dizia a Elsbeth que ele ainda não sentia
prazer com esse casamento. Louisa caminhava atrás, segurando a cauda do vestido bordado de pérolas e pequeninos diamantes que faiscavam à luz do sol. Elsbeth percebeu
os olhares furtivos que Patrick lançava à bela dama de honra e sorriu. Suspeitava que o primo logo conheceria os encantos do amor.
Apertou seu braço, cheia de gratidão. Patrick fora uma verdadeira fortaleza nos últimos dias. Persuadira o clã a aceitar o casamento e a assistir à cerimônia.
Fora ele quem decidira não deixar se espalhar a notícia da traição de Ian. E fora ele quem aconselhara a Alex e Elsbeth que não contassem sobre o casamento em solo
inglês; fora ele, finalmente, quem arranjara tudo para que o casamento fosse celebrado por dois ministros, um inglês e um escocês.
Quando entraram na capela, Elsbeth sentiu as pernas tremerem enquanto passava, sorridente, pelos representantes das famílias da fronteira. Lordes e ladies inclinavam
a cabeça a sua passagem, e Elsbeth sentiu que transpunha, finalmente, uma ponte que pensara não mais existir. A ponte entre ingleses e escoceses.
Alex a esperava, magnífico dentro de um traje de veludo azul orlado de ouro. Seus olhos se encontraram, maravilhados com o que viam. Dando-se as mãos, puseram-se
em frente aos ministros e ouviram as palavras que os uniriam mais uma vez. Para sempre.
Quando a cerimônia terminou, Elsbeth voltou-se para o marido, fremente de expectativa. O beijo foi longo, terno e apaixonado, e mais uma vez foi,como se não
existisse mais ninguém no mundo. Desde a vinda dela a Huntington não mais haviam feito amor, e agora o desejo os envolvia numa agoniante expectativa.
Do fundo de uma névoa brilhante, ela ouviu alguém pigarrear atrás; depois ouviu outro pigarro mais forte, e finalmente algumas risadinhas nervosas. Relutante,
Alex descolou seus lábios do dela, mas manteve-a nos braços. Juntos atravessaram novamente a nave, felizes, acenando com prazer para as pessoas que os cumprimentavam.
As horas seguintes foram torturantes para Elsbeth e Alex. Eles dançaram, comeram, conversaram, aceitaram cumprimentos, o tempo todo doidos para estar sozinhos.
Perdidos de felicidade, não notaram os olhares vigilantes e desconfiados que as duas famílias trocavam entre si. Patrick e David Garrick tudo faziam para manter
alguma harmonia no imenso jardim enfeitado.
Os convidados, cheios de vinho, começavam a se insultar mais pesadamente. Num desses incidentes, enquanto Patrick corria para acalmar a discussão, Elsbeth e
Alex escapuliram sorrateiramente.
Chegando ao quarto, Elsbeth lançou um olhar preocupado para o marido.
- Acha que vai haver briga lá embaixo?
- Tenho fé em David e Patrick, minha bela - respondeu ele, enterrando a cabeça no decote de Elsbeth.
Ouviu-se um ruído de cadeiras viradas, seguido de um alarido mais forte. Elsbeth piscou.
Mas Alex continuou a beijá-la, enquanto suas mãos começavam a passear pelos colchetes do vestido.
Outro ruído, mais forte que o primeiro.
- Alex...
Ele a beijava com sofreguidão, entregue às asas ligeiras do desejo que se avolumava.
- Alex...
- Hum...
- Alex!
Ele se afastou um pouco.
- Acho... acho melhor você ir ver o que está acontecendo.
Ele suspirou.
- Tem razão, minha escocesa. Volto logo.
Quando ele chegou ao jardim, teve uma surpresa dolorosa. Dois homens lutavam sobre uma grande mesa virada, enquanto membros da família Ker, agrupados do lado
direito, torciam e faziam apostas, desafiando o grupo Huntington, acantonado do lado esquerdo. Os dois lutadores eram nada mais, nada menos que Patrick e David,
cujos rostos estavam sujos e cobertos de arranhões. À chegada de Alex, o silêncio baixou sobre todos.
- Empate! - gritou alguém.
- David! - gritou Alex, com voz incomumente autoritária.
Sua boca apertada denunciava profundo aborrecimento. Esperava que David mantivesse a paz, bom Deus, e agora o amigo o recompensava com... com...
Patrick encarou-o com a habitual insolência, um filete de sangue escor-rendo de seus lábios.
- Foi uma briga necessária, inglês. Melhor dois que todos.
A mão de Patrick estendeu-se para David, que a apertou com vigor, piscando um olho maroto.
- Excelente briga, companheiro.
Alex segurou-se para não estourar na gargalhada. David e Patrick haviam, a seu modo, único e peculiar, acabado com a hostilidade latente. A tensão havia se
reduzido a apostas e desafios bem-humorados.
Mantendo um ar severo, Alex se voltou para os dois.
- As damas têm de se convencer que todos temos intenções pacíficas por aqui, senhores.
- Eh! - gritou-lhe David. - Tudo o que fizemos foi atrasar um pouquinho a parte mais importante de sua... sua bela noitada!
Houve uma gargalhada geral.
Patrick pulou da mesa:
- Venha, Garrick. Vamos levar seu amo para cima e convencer a minha lady de que somos dois cordeirinhos pacíficos!
Sob uma saraivada de aplausos e gargalhadas, os dois ergueram Alex nos ombros, enquanto este se debatia, lutando para manter o equilíbrio.
- Vocês estão bêbados, seus loucos! - gritava ele, rindo.
- Antes bêbados que mortos - sentenciou David, em meio a soluços e risadas.
Ao chegarem diante da porta do quarto, Patrick esmurrou-a com von-tade. E quando uma preocupada e pálida Elsbeth a abriu, o quadro que tinha à frente a fez
paralisar de susto. Patrick e David equilibravam perigosamente Alex nos ombros, rindo a mais não poder, enquanto muitos Ker e Huntington vinham atrás, ansiosos por
não perder o espetáculo.
- Aí o tem, prima, são e salvo - fez Patrick, oscilando nas pernas.
Dessa vez Alex se viu literalmente atirado ao chão, mas conseguiu evi-tar cair sobre a surpreendida Elsbeth.
- Demônios, os dois! - exclamou ele, limpando risonhamente a rou-pa. - Raspem-se daqui, todos!
- À cerveja, meu povo! - bradou Patrick.
- À cerveja! À cerveja! - responderam todos, tomados de renovado entusiasmo.
Alex olhou para Elsbeth. Elsbeth olhou para Alex. Juntos, devorando-se com os olhos, fecharam a porta.
Epílogo
Os Ker e os Huntington reuniram-se novamente, oito meses mais tarde. Dessa vez, porém, não havia hostilidades nem brigas.
Havia lulas, jogos e justas, isso sim. Disputas de luta romana também, a preferida. Insultos jocosos eram trocados de um lado para o outro, regados a vinho.
Naquela manhã clara de maio, enquanto assistia a uma acalorada justa, Elsbeth correu os olhos pela platéia, encantada. Era assim a fronteira agora.
Quando um clamor se elevou mais agitado da boca dos assistentes, o pequenino fardo que trazia no colo pôs-se a berrar freneticamente. Elsbeth suspendeu-o carinhosamente,
enchendo o rostinho vermelho de beijos.
- Calma, Alexander Patrick, meu amorzinho... Shh.
Alexander Patrick Carey seria batizado naquela mesma tarde. Patrick seria o padrinho, enquanto sua mulher, Louisa, fora convidada para madri-nha.
Elsbeth procurou o primo entre os contendores que se espalhavam na arena, um pouco mais abaixo. Lá estava ele, o valoroso primo e amigo, os olhos de ônix muito
brilhantes pelo ardor da competição. Quando Patrick atirou um beijo de longe para Louisa, já em adiantada gravidez, Elsbeth se espantou com a mudança que se operara
nele. Patrick transformara-se num marido dedicado e apaixonado, e rodeava Louisa de afeição. Tudo o que ele precisara na vida, agora Elsbeth o sabia, era de gentileza
e amor.
Ele era agora o líder e chefe oficial do clã. Elsbeth abdicara de sua posição e solicitara à rainha Mary que reconhecesse Patrick, o mais próximo em linha de
sucessão dos Ker, como seu legítimo herdeiro. E, uma vez assumido o posto, o primo se revelara excelente chefe, esquecendo de vez a antiga amargura que sentia quando
se via tratado como simples bastardo. Talvez por isso mesmo, ele trabalhava com afinco para mostrar seu valor.
Desde o casamento, nunca mais houve ataques noturnos, nem diurnos, nem de qualquer espécie. O gado engordava no pasto, as colheitas prome-tiam boas safras. Alex
fizera questão de pagar todos os prejuízos - pelo menos os prejuízos materiais - que os Ker haviam sofrido devido aos contínuos ataques dos Carey. Com esse dinheiro,
Patrick mandara reconstruir casas e fazendas, acrescentando-lhes poços e estábulos.
O pequeno Alexander soltou um arroto sonoro. Elsbeth sentia-se estou-rar de felicidade, o coração inundado de luz e paz. Quando a mão de Alex pousou em seu ombro,
ela ergueu os olhos meigos, onde dançavam flocos de ouro e mel.
A cicatriz fizera com que o meio sorriso se perpetuasse no rosto do amado, que continuava, ao menos para ela, tão bonito quanto antes. Inclinou a cabeça e depositou
um beijo na mão calosa, que tanto prazer lhe dava, e de novo o fitou, deixando que somente o olhar ardente que trocaram falasse do grande, imenso amor que os unia.
Alex sentou-se a seu lado e a fez encostar a cabeça em seu ombro. E ambos riram quando os gritos de Alexander Patrick se uniram à gritaria animada que subia
da arena de paz.
fim
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