quinta-feira, 6 de outubro de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> Richard Zimler - O último cabalista de Lisboa


Richard Zimler

O Último Cabalista de Lisboa

O Último Cabalista de Lisboa é um romance cuja acção decorre
em 1506 entre os judeus forçados a converter-se ao
cristianismo, no reinado de D. Manuel I. Em Abril desse ano,
durante as celebrações da Páscoa, cerca de 2000 cristãos-novos
foram assassinados num pogrom e os seus corpos queimados no
Rossio. As principais personagens pertencem a uma família de
cristãos-novos residente em Alfama, cujo patriarca, Abraão
Zarco, é um iluminador e membro da célebre escola cabalística
de Lisboa. Depois do pogrom, ele e uma jovem rapariga são
encontrados mortos na cave, com a porta fechada por dentro.
Estão ambos nus e envoltos num mar de sangue; as suas
gargantas parecem ter sido ritualmente cortadas por um
talhante judeu, um shoet. A mais recente obra de Abraão Zarco,
um manuscrito iluminado em que os rostos dos seus vizinhos e
amigos representam personagens bíblicas, desapareceu do seu
esconderijo secreto. O assassino terá sido um cristão ou, como
os indícios fazem crer, outro judeu? Quem seria a rapariga
morta? Como é que o assassino escapou, se a porta estava
fechada por dentro? Teria o manuscrito roubado o retrato do
assassino? Estes os mistérios que terão de ser resolvidos por
Berequias Zarco, sobrinho de Abraão e seu discípulo no estudo
da cabala. O último Cabalista de Lisboa, sendo embora uma
ficção e não uma reconstituição histórica, tem como pano de
fundo os eventos verídicos desse mês de Abril de 1506 e pode
ser lido a vários níveis na tradição de um verdadeiro texto
cabalístico.

Nascido em 1956 em Nova Iorque, Richard Zimler recebeu
nos últimos dois anos três prémios literários em inglaterra e
nos Estados Unidos pelos seus contos. Em 1994 foi o único
americano residente
fora dos Estados Unidos a receber o prestigiado "National
Endowment for the
Arts Fellowship"
em Literatura. Vive no Porto desde 1990, onde é professor
de jornalismo, tendo obtido um mestrado em Comunicação pela
Universidade de
Stanford. Trabalhou como jornalista em
São Francisco e Paris. O Último Cabalista de Lisboa é o
seu primeiro romance. O segundo, Unholly Ghosts, deverá ser
publicado em
Inglaterra e nos Estados Unidos em Julho de 1996.
É também tradutor de escritores de língua portuguesa, como
Miguel Torga, Alberto, Nuno Júdice, Pepetela, Ilse Losa, António Botto, Clara
Pinto Correia e
Fernando Echevarria.

Richard C. Zimler

O último Cabalista de Lisboa


Tradução
de
José Lima

Quetzal Editores

Lisboa/ 1996

Dedicatória

Para o Alexandre Quintanilha

Agradecimentos a:

Alexandre Quintanilha, Ruth G. Zimler, Nat
Sobel,
Nancv Fioritto Piazza, José Lima.

Nota do Autor

A DESCOBERTA DO MANUSCRITO
DE BEREQUIAS ZARCO

Abraham Vital, advogado particular em Istambul, ganha a sua
vida apresentando petições ao Governo turco para conseguir
subsídios para as pessoas que, devido a acidente ou doença,
deixaram de poder trabalhar. Em 1981, travou com sucesso uma
batalha legal em nome de um velho carpinteiro de cinquenta e
nove anos chamado Ayaz Lugo, que tinha ficado com o braço e a
mão direita paralisados num acidente de carro.
Lugo morreu em Junho de 1988. A mulher falecera seis anos
antes e não tinham filhos. No seu testamento, Lugo,
agradecido, deixara a sua casa a Abraham Vital.
Vim a ficar na casa de Lugo durante a minha estadia de sete
meses em Istambul, quando aí estive em 1990 a estudar a poesia
sefardita, especialmente as baladas. Foi-me gentilmente cedida
por Abraham Vital sem aceitar qualquer paga. Tínhamo-nos
conhecido através de um amigo comum, o meu orientador de tese,
Doutor Isaac Silva Rosa, da Universidade de Berkeley, antes, e
agora da Universidade do Porto, em Portugal.
Tanto Vital como Lugo são sefarditas, descendentes da vaga
de judeus fugidos às perseguições em Espanha e Portugal no
correr dos séculos Xv, xvI, xvII e xvIII. Os seus antepassados
tinham recebido refúgio em Istambul, então conhecida entre os
judeus e os cristãos como Constantinopla, logo a partir de
1492. Nesse ano, o sultão turco Bejazet II acolhera no seu
reino milhares de judeus sefarditas que cumpriam uma ordem de
expulsão decretada pelo rei Dom Fernando e pela rainha Dona
Isabel de Espanha.
Num abafado dia dos princípios de Maio, Vital conduziu-me à
antiga casa de Ayaz Lugo nos arredores de Balat, o bairro
judeu medieval de Istambul. Dois andares de pedra e estuque
lascado emergiam como uma torre de vigia abandonada entre uma
padaria e uma loja de discos.
Mudei-me para lá no dia 9 de Maio de 1990. No interior, tudo
me parecia cinzento e castanho, como uma velha fotografia
sépia, até ter começado a remover a poeira.
Era possível tocar no tecto dos dois andares da casa sem ter
de me pôr em bicos de pés. Janelas ovais do tamanho de uma
bandeja filtravam cones de luz para o interior do meu quarto.
A mobília, de madeira pesada e gasta pelo tempo, agora uma
antiguidade, tinha sido comprada manifestamente quando Lugo
era ainda criança.
No armário do quarto encontrei milhares de cubos de açúcar
impecavelmente acamados em malas de couro. Ao que tudo indica
era um bem escasso durante a Segunda Guerra Mundial. Estaria o
açúcar assim arrumado para o caso de Lugo ter de escapar à
pressa? "Talvez os judeus devam ter sempre preparada pelo
menos uma mala" - pensei.
Num guarda-roupa carcomido pelo caruncho, encontrei, debaixo
de roupa interior de algodão, algumas barras de chocolate
turco rançoso, o que me deu alguma satisfação: Lugo e eu
partilhávamos inegavelmente uma fraqueza pelos doces.
A minha cama consistia numa armação de ferro com um colchão
comprimido fabricado em Konya. A etiqueta estava escrita em
árabe, o que revelava ter mais de setenta anos; nos anos vinte
o alfabeto latino substituiu o árabe em toda a Turquia. Não
havia duche, apenas uma tina e um fiozinho de água fria e a
acastanhada que cheirava a cloro e ferrugem. Lugo e a mulher
deviam frequentar os balneários públicos.
Tinha inúmeros ratos a fazer-me companhia. Mas,
miraculosamente, não havia formigas nem percevejos.
Nesse mês de Julho, Abraham Vital decidiu começar a pôr a
casa de acordo com os padrões ocidentais do século xx. A
remodelação começou pela cave, de modo que eu não fosse
incomodado. A 18 de Julho, os operários deram com um
esconderijo secreto, uma abertura quadrada com quatro pés e
uma profundidade de dois, que tinha sido tapada com tábuas de
madeira e uma cobertura de cimento. Dentro do esconderijo
estava um tik, o pequeno cofre cilíndrico que os judeus
sefarditas usavam para guardar a Tora, os primeiros cinco
livros do Antigo Testamento. Decorada com uma elaborada
filigrana de prata e pavões de esmalte, verificou-se conter
não a Tora, mas vários manuscritos encadernados a couro, nove
ao todo.
Os manuscritos estavam escritos na escrita hebraica angular
típica da Ibéria, a linguagem fundamentalmente
judaico-portuguesa, um português antigo escrito em caracteres
hebraicos. Parte dos primeiros escritos, porém, estavam em
hebraico medieval. Tinham sido escritos com um cálamo, a pena
de junco usada na Ibéria. O papel estava em excelentes
condições.
A não ser três deles, todos os manuscritos exibiam capas de
velino polido com o título desenhado com iluminuras de letras
com cabeças de aves. Predominavam as poupas, as corujas, os
tordos, os pintassilgos europeus e os pavões. Via-se também
uma espécie de beija-flor, o que é notável, por se tratar de
uma família de aves do Novo Mundo. Um intrincado rendilhado
de figuras geométricas e de arabescos serve de fundo aos
títulos. A folha de ouro é usada com prodigalidade. As cores
dominantes são o carmim brilhante e o azul do lápis-lazuli.
Reparei que todos os manuscritos exibiam uma assinatura em
forma de íbis egípcia de um homem de nome Zacarias Zarco. Das
datas inscritas junto da assinatura e das referências
incluídas no texto, sabemos terem sido escritos no decurso de
vinte e três anos, de 5267 a 5290 do calendário judeu, ou seja
de 1507 a 1530 da era cristã.
Na noite de 18 de Julho de 1990 comecei a ler a sua obra.
O que encontrei consistia em seis tratados sobre vários
aspectos da Cabala, a filosofia mística que a partir da
Provença se propagou pela diáspora judaica no início da Idade
Média e que tinha sobrevivido ao longo dos séculos seguintes
tanto oralmente como por escrito. Os textos cabalísticos mais
conhecidos são o Bahir- e o Zohar.
Três dos manuscritos de Berequias, os que não têm título,
têm uma natureza mais secular, porém. Unidos por uma tira de
couro, o primeiro data de 1507 e os dois últimos de 1530. Logo
à primeira vista, pareceu-me evidente que tratavam do massacre
de Lisboa de Abril de 1506. Cerca de dois mil cristãos-novos,
os judeus forçados à conversão ao cristianismo em 1497,
perderam a vida nesses motins, muitos deles queimados no
Rossio, a praça que ainda hoje é o centro da capital
portuguesa.
Infelizmente, numerosas secções e mesmo simples páginas dos
manuscritos de Berequias tinham sido reunidos fora da ordem
por alguém manifestamente incapaz de ler o judeu-português.
Era de enlouquecer. Levei dois meses para voltar a pôr tudo
por ordem. Mas uma vez isso feito, o livro de Berequias Zarco
lia-se perfeitamente.
Os três manuscritos históricos no seu conjunto formam uma
obra única, narrando a odisseia da família de Berequias
durante os trágicos acontecimentos de Abril de 1506. Contam,
em particular, a perseguição que Berequias moveu ao assassino
do seu amado tio Abraão, um famoso cabalista provavelmente
responsável por algumas das obras da Escola de Lisboa, até
hoje consideradas anónimas, incluindo, por razões que a
narrativa torna claras, Batendo às Portas e o Livro do Fruto
Divino.
São vários os breves relatos da matança que chegaram até
nós, incluindo um de Salomão Ben Verga referido por Berequias,
e não pode haver dúvidas quanto à veracidade da crónica de
Berequias. Todos os principais acontecimentos aí relatados
foram confirmados por escritos contemporâneos. Muitas das
pessoas mencionadas, como Didi Molcho, Dom João de Mascarenhas
e Isaac Ben Farraj são nossos conhecidos através das suas
obras assim como através de documentos da Igreja e da Coroa
portuguesa.

Alguns leitores menos familiarizados com a literatura
sefardita e novo-cristã do século xvI poderão estranhar a
minha reprodução da história de Berequias sob a forma de um
mistério e o uso da linguagem coloquial. Berequias Zarco é,
porém, como tantos dos seus contemporâneos, um autor moderno
tanto na visão como no estilo. O segundo manuscrito, em
especial, manifesta uma técnica directa que se assemelha à da
novela picaresca espanhola, que começava a aparecer
aproximadamente na mesma época dos manuscritos de Berequias.
Curiosamente, muitos dos autores picarescos espanhóis eram
também judeus convertidos. Berequias Zarco estava
inegavelmente familiarizado com esses contemporâneos
castelhanos.
Ao contrário das novelas picarescas, porém, o tom de
Berequias quase nunca é irónico e nunca burlesco. Além disso,
o seu personagem principal, ele próprio, não é nem um vilão
nem um herói. É simplesmente aquilo que Berequias deve ter
sido: um jovem inteligente e confuso, que fazia iluminuras,
que vendia fruta e era cabalista; um jovem destroçado pela
morte de seu tio.
A linguagem franca de Berequias recorre a palavrões,
afirmações claramente blasfemas e mesmo calão, que tentei
manter na íntegra.
Parece-me evidente que se a intenção de Berequias tivesse
sido a de escrever mais um documento místico ou mesmo um texto
histórico mais circunspecto, tê-lo-ia feito. Tinha talento e
conhecimentos para tanto. A verdade é que não o fez. Escreveu
um mistério em três partes, a última das quais poderia ser
considerada pelos críticos contemporâneos como um epílogo.
Tendo em atenção o leitor moderno, dividi essas três partes em
vinte capítulos. Os capítulos I a VIII correspondem ao
primeiro dos manuscritos de Berequias; do IX ao XX, ao segundo
manuscrito; e o XXI ao terceiro.
Apesar de O último Cabalista de Lisboa, ser mais que uma
tradução, mantive-me rigorosamente fiel ao conteúdo do escrito
de Berequias, a não ser em dois casos: quando ele inclui
extensas recitações de orações e de cânticos; e quando faz
digressões sobre pontos espirituais associados aos arcanos
essenciais relacionados com a Cabala. Apesar de se revestirem
de interesse académico, seriam provavelmente dificultosos e
aborrecidos para o leitor, e excluí-os por isso da minha
transcrição. Do mesmo modo, várias secções foram reordenadas
segundo a ordem cronológica, quando antes estavam ligadas
segundo a tese espiritual que Berequias procurava demonstrar.
Creio que também este facto não altera de modo substancial a
obra de Berequias, e a estrutura que adoptei fará certamente
mais sentido para o leitor moderno.
De um modo geral, procurei estabelecer um equilíbrio entre a
linguagem contemporânea e o uso ocasional de uma ou outra
palavra ou frase mais antiga. No seu conjunto, a obra
permanece, assim o espero, fiel ao espírito do autor.
Berequias não é sempre coerente na grafia do português,
talvez devido à dificuldade de transcrever a língua da sua
terra em caracteres hebraicos. Por isso mesmo, as transcrições
do português são feitas de acordo com as convenções actuais.
Sempre que se transcrevem palavras hebraicas, recorre-se aos
caracteres latinos, de modo a poderem ser pronunciados pelos
leitores americanos e europeus.
Os manuscritos de Berequias levantam algumas questões
importantes sobre a história dos livros hebraicos na Ibéria.
Será a Tora ilustrada que ele descobre na geniza de seu tio a
chamada "Bíblia de Kennicott", que hoje pertence à Biblioteca
Bodleian da Universidade de Oxford? A referência às letras em
forma de animal e a Isaac Bracarense (indubitavelmente Isaac
de Braga, por quem o manuscrito foi ilustrado) parece indicar
nessa direcção. Nada se sabe da história da Bíblia desde a
data do seu acabamento em 1476, até à sua aquisição em 1771
por Oxford, a conselho do bibliotecário, Dr. Kennicott. Talvez
tenha de facto sido salva por Abraão e Berequias Zarco.
Quanto à versão hebraica e árabe da ,Fonte da Vida detida
por Frei Carlos: teria sido realmente passada para Salónica?
Que lhe terá, então, acontecido? Nunca foi encontrado nenhum
original árabe, apenas traduções latinas.
O Ultimo Cabalista de Lisboa" é, em si, um pouco um enigma.
Porque terá sido escondido na cave de Ayaz Lugo? Porque será
que não é referido pelos manuscritos judaicos seus
contemporâneos? Nunca terá sido publicado? Dado o seu
objectivo de alertar os cristãos-novos e os judeus para o
permanente perigo que corriam na Europa, Berequias devia ter
tentado seguramente dar-lhe a maior divulgação possível.
Várias explicações me foram propostas pela Doutora Ruth
Pimentel, da Universidade de Paris, que mais tarde foram
seguidas pela maior parte dos demais especialistas no campo da
literatura sefardita medieval que consultei.
Antes de mais nada, a depreciativa caracterização que
Berequias faz dos cristãos-novos e o seu declarado apelo aos
judeus e aos cristãos-novos para que abandonem a Europa
haveria certamente de enfurecer os reis europeus e as
autoridades religiosas, em particular os inquisidores de
Portugal e de Espanha. Se ele levasse a sua obra para a Europa
cristã, as cópias que fossem descobertas haveriam de ser
eliminadas e queimadas.
É também provável que a sua ardente defesa da migração
judaica haveria de irritar os dirigentes das enfraquecidas
comunidades judaicas da região, tanto os agrupamentos secretos
sefarditas em Portugal e em Espanha como as comunidades mais
abertas dos asquenazins nos países do Norte da Europa. Estes
judeus ou cristãos-novos, que tinham um interesse espiritual,
emocional ou monetário para permanecer na Europa, poderiam
igualmente suprimir os seus escritos.
Para mais, o modo como Berequias trata questões como o sexo
e o cisma entre cabalistas e autoridades rabínicas poderia ser
considerado demasiado directo para que certos leitores o
pudessem apreciar. Os seus escritos seriam certamente
considerados tabu por muitos dirigentes judaicos
conservadores que procuravam resistir à era do judeu secular
que se aproximava.
Apesar de me suscitar dúvidas, não posso deixar de referir
uma outra teoria: é possível que o próprio Berequias tivesse
suprimido os seus escritos; não só por não ter querido expor a
perseguições os judeus secretos mencionados no texto, como
também porque a excomunhão por alegada heresia não era nada de
desconhecido. Apesar da veemente necessidade de avisar os
judeus da Europa do destino que seu tio pressagiava, pode ter
receado ver-se cortado da sua comunidade, como o foi outro
judeu de origem portuguesa um século mais tarde, Baruch
Espinosa. Talvez tenha feito circular em segredo cópias do seu
livro, pedindo aos seus leitores que não revelassem o conteúdo
nem mencionassem sequer a sua existência. Será talvez essa a
razão por que não tem título.
Outra razão, bem mais desencorajante: quem sabe se não o
mataram ao tentar reentrar em Portugal e salvar a sua prima
Reza? As cópias das suas obras que tivesse escrito e levado
para a Ibéria teriam assim certamente perecido com ele. Apenas
as que tinham ficado escondidas em Constantinopla teriam
sobrevivido.
Quanto ao esconderijo, o mais provável é que os manuscritos
tivessem sido ocultados para os proteger durante o período
nazi; a cobertura de cimento data desse tempo. Lembremo-nos
que os cristãos-novos portugueses emigraram em massa ao longo
dos séculos xvi, xVII e xVIII, sobretudo para a Turquia,
Grécia, Norte de África, Holanda e Itália, regiões que mais
tarde se veriam ameaçadas ou ocupadas pelo Reich alemão. Por
exemplo, nos finais do século xvi, como resultado da emigração
dos cristãos-novos, só Constantinopla contava com uma
comunidade judaica de 30.000 pessoas e 54 sinagogas, a maior
da Europa.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos judeus
ibéricos que viviam na Grécia, Bulgária e Jugoslávia, 200.000
ou mais, foram presos e morreram nas câmaras de gás. Se
considerarmos o apelo de Berequias para que os judeus e
cristãos-novos deixassem os países cristãos, é interessante
notar que a comunidade judaica na Turquia muçulmana contava
com a protecção do Governo e escapou inteiramente à
destruição. Apesar disso, o proprietário ou proprietários dos
manuscritos de Berequias, talvez os pais de Lugo, teriam
justamente receado o alastramento das perseguições à Turquia,
tal como Berequias temera o alastramento da Inquisição de
Castela a Portugal quatro séculos antes. A Inquisição foi
definitivamente estabelecida em Portugal em 1536, cerca de 50
anos depois de ter sido criada em Espanha e apenas seis anos
depois de Berequias ter completado o último dos seus
manuscritos.
Teria Ayaz Lugo sabido da existência dos manuscritos? No seu
testamento não lhes faz referência. Possivelmente tinham sido
escondidos pelos seus pais, sem que ele o tivesse sabido.
Cabe-me agradecer, antes de mais, a Abraham Vital, que me
ofereceu generosamente a sua casa e, posteriormente, me
permitiu utilizar os textos de Berequias Zarco. Gostaria
igualmente de manifestar o meu apreço a sua mulher, Miriam
Rosencrancz-Vital, que muitas vezes me valeu durante os meus
tardios serões com um copo de vinho do Porto e os seus cuscuz
caseiros.
Os meus agradecimentos, também, a Isaac Silva Rosa, por me
ter encorajado a roubar algum tempo à minha tese para
trabalhar neste manuscrito; a Ruth Pimentel pela sua ajuda nas
referências históricas: e a Joseph Amaro Marctis, um profundo
conhecedor da cabala portuguesa e espanhola, por ter decifrado
o indecifrável.
Este livro é publicado em memória de Berequias Zarco,
família e amigos.

Glossário

de alguns termos hebraicos utilizados
(figuram em itálico no texto)


Aman - Cortesão persa que conspirou para massacrar os judeus
(Livro de Ester).
Anusim - Judeus forçados a converterem-se ao cristianismo.
Asmodeu - Rei dos demónios judeus.
Av - Décimo primeiro mês do calendário lunar hebraico,
geralmente parte de Julho e parte de Agosto.
Baál Shem - Título aplicado, nos textos cabalísticos, aos
místicos que possuem o conhecimento secreto dos nomes sagrados
de Deus e que podem fazer um uso mágico de tal conhecimento.
Bahir - Livro da Luz,, um importante texto cabalístico
descoberto na Provença no século XII.
Casher - Próprio para consumo humano segundo as regras
alimentares judaicas.
Challa - Pão judeu feito com ovos.
Chametz - Alimentos interditos aos judeus durante a Passagem
(Páscoa), especialmente o pão levedado.
Em Sof - O Deus oculto que não pode ser apreendido, descrito
ou abordado. A existência e a natureza de Deus apenas se pode
deduzir das suas emanações ou atributos reflectidos no nosso
mundo.
Elohim - Um dos nomes de Deus.
Gematria - Técnica utilizada pelos místicos judeus para
discernir os significados secretos contidos na Tora e noutros
textos sagrados. Neste sistema, a cada letra hebraica
corresponde um determinado valor numérico. Os estudiosos e os
místicos judeus analisam os textos para descobrir conexões
matemáticas entre diferentes nomes, palavras ou frases.
Geniza - Um depósito para guardar textos sagrados.
Gilgul - O conceito cabalístico de transmigração das almas
ou de reencarnação.
Golem - Criatura, normalmente de forma humana, criada por
processos mágicos através do uso de nomes sagrados,
particularmente o Tetragramaton.
Haggada - Texto que inclui a história do ëxodo e o
cerimonial da refeição ritual da comemoração da Passagem
(Páscoa).
Haliza - Cerimónia prescrita pela Bíblia, que se realiza
quando um homem recusa casar-se com a viúva sem filhos de um
irmão.
Harzukka - Festa judaica que se realiza no Inverno, que
celebra a vitória dos Macabeus, uma tribo judaica, contra os
sírios em 15 A.C.
Hazam - Sacerdote que conduz as orações e é o cantor
principal nas liturgias realizadas na Sinagoga.
Heslavan - Segundo mês do calendário lunar judaico, que em
geral coincide com parte de Outubro e parte de Novembro.
Haroset - mistura de pedaços de fruta, nozes e especiarias,
que se come na Passagem (Páscoa) e que representa a argamassa
utilizada pelos judeus nas construções ordenadas pelos faraós
durante o cativeiro no Egipto.
Ibbur - Um mau espírito ou alma penada de uma pessoa morta
que entra no corpo de um vivo passando a comandar o seu
comportamento.
Kaddirh - Oração pelos mortos recitada pelos enlutados.
kétuba - Contrato de casamento que estabelece os direitos e
deveres do futuro marido.
Kisleo - Terceiro mês do calendário lunar judaico,
correspondente a parte de Novembro e parte de Dezembro.
Lez - Um demónio judeu traquinas ou um poltergeisr.
Levita - Pessoa pertencente à casta religiosa de sacerdotes
descendentes de Levi, filho de Jacob.
Lilit - Demónio fêmea, que, segundo as lendas judaicas,
estrangula as crianças e seduz os homens. Muitas vezes
considerada como a rainha do Mal.
Maimon - Poderoso demónio judaico.
Mardoqueu - Cortesão judeu que frustrou o plano de Aman para
massacrar os judeus persas (I Livro de Ester).
Matza - Pão ázimo cozido pelos israelitas durante o ëxodo do
Egipto, que leva farinha e água como únicos ingredientes, e
que se come durante as festas da Passagem (Páscoa).
Menora - Candelabro de nove braços que se acende para
celebrar a festa de Hanukka.
Metraton - O anjo celeste que regista as boas acções.
Nezuza - Pequena caixa que contém uma folha de pergaminho no
qual foi escrita a oração judaica que começa com Ouve, ó
Israel. Esta caixa encontra-se no umbral das casas judaicas e
era frequentemente considerada uma protecção contra os ataques
dos demónios.
Nliva - Banho ritual de imersão, praticado pelas mulheres a
seguir à menstruação. Também praticado pelos homens em rituais
de purificação.
Nitzva - Mandamento divino. Há 613 mandamentos na Tora. Pode
também significar uma boa acção.
Nohel - Pessoa apta para realizar circuncisões rituais. As
crianças judias do sexo masculino são geralmente circuncidadas
no oitavo dia a seguirão nascimento.
Nislhama - A centelha divina de Deus que existe no homem; a
alma.
Neza - Resistência divina.
Nisan - Sétimo mês do calendário lunar hebraico, em geral
correspondente a parte de Março e parte de Abril.
Passagem - Festas judaicas que comemoram a fuga do povo
hebraico da escravidão no Egipto, tradicionalmente celebrada
durante oito dias na Primavera. Páscoa judaica (Pessá).
Purim - Festa judaica que celebra a derrota do plano de Aman
para massacrar os judeus persas.
Rahamin - Compaixão divina.
Samael - Nome de Satã para o judaísmo.
Seder - Refeição ritual tradicional que tem lugar na
primeira e por vezes segunda noite da Páscoa. A última ceia de
Cristo era uma seder judaica.
Sefer - Livro, em hebraico.
Sefirot - Os dez aspectos das manifestações de Deus, por
vezes representados como luzes divinas e frequentemente
associados com a árvore Cósmica, os nomes de Deus e as várias
partes do corpo humano.
Sitra Ahra - Termo cabalístico que designa o domínio das
emanações maléficas e os poderes demoníacos (o Outro Lado).
Shefa - Influxo divino ou um momento de presença divina.
Shevat - Quinto mês do calendário lunar hebraico, que em
geral coincide com parte de Janeiro e parte de Fevereiro.
Shofar Chifre - que se sopra para produzir um som semelhante
ao da trom beta durante certos rituais judaicos.
Shohet - Talhante judeu especialmente apto nas técnicas de
abate de ani mais.
Tallit - Xaile ritual de forma rectangular.
Tefellim - Tira estreita de pergaminho, que tinha escrita
uma passagem da Escritura, e que os Judeus traziam enrolada no
braço ou sobre a testa.
Talmud - Antiga compilação da Lei oral judaica que inclui
comentários rabí nicos.
Tishri - Primeiro mês do calendário lunar judeu,
correspondente a parte de Setembro e parte de Outubro.
Tora - O Pentateuco, ou seja os cinco primeiros livros do
Antigo Testamento. Numa acepção mais lata, pode referir-se a
todo o Antigo Testamento ou mesmo a todos os ensinamentos
judaicos.
Tref - Alimento impróprio para consumo humano e que deve ser
rejei tado, segundo as regras alimentares judaicas.
Tzitzit - Franjas que pendem dos quatro cantos do xaile
ritual judaico (Tallit).
Tu Bisvat - Festa judaica relacionada com a årvore da Vida e
os frutos comestíveis associados à terra de Israel.
Yom Kippur - A mais sagrada das festas judaicas, na qual os
judeus jejuam para expiar os seus pecados.
Zedec - Justiça divina.
Zohar - O Livro do Esplendor,. O livro fundamental do
misticismo cabalístico, escrito em Guadalajara, Espanha, entre
1280 e 1286, pelo místico judeu, Moisés de Léon.

Nota histórica

Em Dezembro de 1496, quatro anos depois de expulsarem do seu
reino todos os judeus, os soberanos de Espanha, D. Fernando e
Dona Isabel, convenceram o rei de Portugal, D. Manuel, a fazer
o mesmo. Em troca, os monarcas espanhóis concediam-lhe em
casamento a mão de sua filha. Pouco antes de a ordem de
expulsão ser aplicada, D. Manuel, que não queria perder tão
preciosos súbditos, decidiu converter os judeus portugueses.
Em Março de 1497, mandou encerrar todos os portos de embarque
e ordenou que se reunissem todos os judeus e os conduzissem à
força à pia baptismal. Embora os relatos que chegaram até aos
nossos dias refiram judeus que preferiram dar-se a morte e
matar os filhos a converterem-se, a maior parte deles acabaram
por se ver forçados a aceitar Jesus como o Messias. Apelidados
de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para
abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que
se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de
intolerância e perseguições que se seguiram. Mesmo assim,
muitos dos novos cristãos persistiram nas suas crenças.
Em segredo e ao preço de riscos enormes, continuaram a
recitar as suas orações hebraicas e a praticar os seus
rituais, sobretudo os do Sabbat e das festas judaicas. Um
desses judeus clandestinos era Berequias Zarco, o narrador do
último Cabalista de Lisboa.
As circunstâncias que rodearam a descoberta do manuscrito de
Zarco em Istambul, em 1990, constam de uma nota do Autor,
incluída no início do texto.
Dessa mesma nota constam igualmente algumas observações
quanto ao estilo adoptado na transcrição do texto original. No
entanto, os leitores deverão desde já ter presente que, ao
preparar o trabalho para publicação, esforcei-me por preservar
o tom extremamente natural e directo do autor.

Prólogo


Uma mágoa contida recobria o aparo da pena com que escrevia
quando iniciei a narração da nossa história. Estávamos no ano
hebraico de 5267, 1507 da era cristã.
Egoisticamente, abandonei o manuscrito, por Deus não me ter
recompensado com a tranquilidade da alma.
Hoje, passados que são vinte e três anos desta magra
tentativa de registar aminha busca de vingança, voltei a
afagar as páginas abertas do pergaminho.
O que me terá levado a romper a jura de silêncio?
Ontem, por volta do meio-dia, bateram à porta, aqui, na
nossa casa deConstantinopla. Mais ninguém da família se
encontrava em casa e fui ver quem era. À entrada
perfilava-se um jovem de pequena estatura, cabelo escuro
comprido, olhos cansados, envolvido numa bela capa ibérica às
riscas verdes e escarlates. Num tom hesitante, entrecortado,
perguntou em português: Acaso tenho a honra de falar com
Mestre Berequias Zarco?
- Assim é, meu rapaz - respondi -. E tu poderás dizer-me com
quem falo?
Curvando-se numa vénia, respondeu: Lourenço Paiva. Cheguei
agora mesmo de Lisboa e vinha com a esperança de vos
encontrar.
Murmurando aquele nome para mim próprio, recordei-me ser ele
o filho mais novo de uma velha amiga cristã, a lavadeira a
quem tínhamos deixado a nossa casa em Lisboa, momentos antes
de fugirmos daquela cidade tenebrosa há mais de duas décadas.
Interrompi com um aceno a desnecessária apresentação que ainda
desfiava e fi-lo entrar na nossa cozinha. Sentámo-nos nos
bancos junto à janela que dava para uma roda de arbustos de
alfazema e de murta no jardim. Quando perguntei pela mãe dele,
entristeceu-me saber que tinha sido há pouco chamada por Deus.
Numa voz melancólica mas orgulhosa ficou uns momentos a
gabar-lhe as qualidades. Depois, partilhámos deliciados uma
garrafita de vinho da Anatólia, enquanto me contava a sua
viagem por mar desde Portugal e as suas primeiras e pasmadas
impressões da capital turca. Mas a minha despreocupação havia
de me deixar desprevenido para o que se seguiu: quando lhe
perguntei a que devia o prazer da sua visita. sacou da sua
capa duas chaves de ferro pendentes de uma corrente de prata.
Instantaneamente, percorreu-me um estremecimento de temor.
Antes que eu pudesse falar, exibindo o radioso sorriso de um
jovem oferecendo um presente a alguém mais velho, depositou as
chaves nas minhas mãos e disse: Se quiser voltar, Mestre
Berequias, tem à sua espera a sua casa de Lisboa."
Agarrei-Lhe o braço para me segurar; o meu coração batia ao
ritmo desta única palavra: lar. Sentia os dentes das chaves a
morder-me o punho em que as tinha envolvido, abri a mão e
inclinei-me para aspirar o cheiro a moeda antiga do metal.
Memórias de ruas labirínticas e de olivais varriam-me de cima
a baixo. Eriçavam-se-me os pêlos do pescoço e dos braços. Uma
porta interior abria-se dentro de mim, dando acesso a uma
visão: estava em pé do lado de fora da cancela de ferro que
dava para o quintal nas traseiras da nossa velha casa de
Alfama. Emoldurado pelo arco da cancela e erguendo-se no meio
do quintal estava o meu tio Abraão, o meu mestre espiritual.
Envolvido na sua túnica de viagem de lã inglesa de uma cor
vermelho-viva, colhia limões do nosso limoeiro, cantarolando
baixinho com um ar feliz. A sua pele morena, cor de canela,
brilhava como ouro, como se a iluminasse a luz que precede o
pôr do sol, e a mecha rebelde do seu cabelo de prata e os
tufos das sobrancelhas cintilavam como por um poder mágico.
Pressentindo a minha presença, suspendeu a melodia, voltou-se
com um sorriso de boas-vindas e caminhou em minha direcção com
o passo balanceado que normalmente só adoptava na sinagoga. Os
seus olhos verdes calorosos, bem abertos, pareciam
envolver-me. Com um trejeito divertido nos lábios, sem deixar
de caminhar, começou a desapertar a faixa que rodeava a
túnica, deixando a roupa cair sobre as lajes de ardósia que
pavimentavam o quintal. Estava completamente nu, só com um
xaile ritual a cobrir-Lhe os ombros. Enquanto se aproximava de
mim, o seu corpo começou a irradiar feixes de luz. O seu vulto
tornou-se tão brilhante que os meus olhos se cobriram de
lágrimas. Assim que a primeira gota salgada deslizou até ao
canto dos meus lábios, parou e chamou-me pelo nome do meu
irmão mais velho: Mardoqueu! Sempre acabaste por ouvir as
minhas preces! Uma aura de chamas alvas envolvia a sua face.
Com um gesto solene, como se me estendesse um versículo da
antiga sabedoria, atirou-me um limão. Apanhei-o. Mas quando o
meu olhar pousou sobre o fruto, o que vi foi uma cadeia de
palavras portuguesas meio delidas: as nossas andorinhas ainda
estão nas mãos do faraó. Ao passar uma segunda vez os meus
olhos por esta mensagem escrita no código dos cristãos-novos,
ela elevou-se nos ares e depois quebrou-se com um ruído
tilintante.
Surpreendi-me a olhar novamente as chaves que tinha na mão.
Lágrimas cálidas enevoavam-me a vista. A porta para a visão
tinha-se fechado.
Lourenço segurava-me pelos ombros, empalidecido e assustado.
Inconscientemente, os meus lábios murmuravam palavras
tranquilizadoras.
Para se poder compreender a revelação que me atingira, terei
de explicar as palavras hebraicas mesiras nefesh. O seu
significado é certamente a disposição para o sacrifício. O
seu poder oculto reside na tradição dos cabalistas de estarem
dispostos a arriscar-se nem que seja a uma visita aos infernos
se com isso puderem ajudar não só a aliviar o sofrimento do
mundo como também a proporcionar uma reparação na Esfera
Celeste.
Com as chaves a palpitar na minha mão, comecei a compreender
pela primeira vez o sacrifício de meu tio Abraão e como a
ideia de mesiras nefesh tinha feito bater o seu coração
naquele ritmo tão apaixonado, se bem que frágil. E, por razões
que no correr desta narrativa se tornarão claras, vi também
que a minha visão era uma ordem sua para voltar para Portugal
a cumprir a missão que ele me tinha destinado desde sempre -
um destino que eu não tinha seguido e nem sequer, antes,
entendido.
Começava ao mesmo tempo a compreender que, ao voltar para
Lisboa, me era dada a possibilidade de reparar o desvio do meu
destino, de me entregar ao meu voto de mesiras nefesh, pois o
regresso haveria seguramente de pôr em risco a minha vida. Com
a Espanha nas garras da Inquisição e Portugal cada vez mais
próximo das suas fogueiras, o meu retorno poderia bem
significar o fim da minha vida com a minha mulher, Letiça, e
os meus filhos, Zuli e Ari.
Assim, foi com eles no espírito que voltei a pegar na pena.
Queria que todas as pessoas da minha família ficassem a saber
as minhas razões para os deixar e o que se tinha passado vinte
e quatro anos atrás e imposto tais razões ao meu coração. A
história do crime que para sempre tinha coberto de trevas as
nossas vidas e a perseguição do misterioso assassino era
demasiado longa e intrincada para a ouvirem dos meus lábios.
Nem eu queria correr o risco de deixar por dizer o que quer
que seja.
Escrevo ainda para afastar de nossa casa o ar gelado do
segredo, para que Zuli e Ari possam finalmente compreender as
minhas respostas vagas quando, sendo eles crianças e
adolescentes, me questionavam sobre os acontecimentos que
tinham precedido a minha fuga de Lisboa. Não era fácil para
eles aceitar que o pai fosse alguém com um passado que muitos
na nossa comunidade de emigrantes judeus envolviam em sórdidas
especulações. Com lágrimas nos olhos e os punhos raivosamente
cerrados, ouviram chamar-me de homicida e de herético. Quantas
vezes, também, tinha a minha mulher sofrido com os rumores de
que eu tinha sido seduzido em Lisboa por Lilit disfarçada de
fidalga castelhana e que ainda hoje esse demónio reinava no
meu coração?
Homicida, tinha-o sido. Confesso ter matado um homem e ter
encurtado os dias de outro. Os meus filhos poderão ler em que
circunstâncias o fiz e formar o seu próprio juízo. São já
bastante crescidos para saberem tudo. Herético, acho que não.
Mas que o seja, terão sido então os acontecimentos que
brevemente relatarei que cravaram as setas da heresia na minha
carne. Quanto ao meu coração, deixo àqueles que amo o dizer
quem nele é a rainha. Possa a verdade, através destas páginas,
vir sem receios ao de cima, como o apelo da trombeta de um
shofar saudando Rosh Hashona. E possa eu, também, libertar-me
finalmente dos meus derradeiros enganos e dos restos da
máscara que usei para esconder o meu judaísmo quando novo. É
verdade, espero ainda aprender muito sobre mim próprio à
medida que a pena siga as minhas recordações; não será certo
que sempre que damos livre curso à memória para sondar o
passado somos sempre recompensados com tal conhecimento da
nossa alma?
É certo que a culpa pela minha ignorância e pelos meus erros
- e outros pecados meus mais terríveis - que me acompanhou até
ao meu exílio em Constantinopla ainda hoje me persegue. Haverá
os que dirão ser até essa a minha mais profunda motivação.
Mas, ao mesmo tempo que vou gravando estes caracteres neste
pergaminho polido, compreendo que o que me inspira é antes a
possibilidade de falar através da distância de décadas para
outros mais, ainda por nomear - os meus netos ainda não
nascidos e os de minha irmã Cinfa. A estes nossos
descendentes, gostaria de dizer: lede esta história e vereis
porque saíram de Portugal os vossos antepassados; o enorme
sacrifício que por vós fez o meu mestre; o que aconteceu aos
judeus de Lisboa quando este século não ia além dos seis anos
cristãos. Para que vivais, as vossas memórias deveriam
apegar-se como órfãos a tais acontecimentos.
E mais importante ainda: se seguirdes a melodia e o ritmo
destas palavras até à sua cadência Final, compreendereis
porque não devereis pôr os pés na Europa cristã.
Não vos deixeis iludir: sob a superfície desta história
corre o gume de uma parábola de advertência. Estou persuadido
de ter sido a vossa segurança que levou meu tio Abraão a
aparecer-me e a mandar-me a Portugal. Renunciasse eu a
escrever, deixasse eu que a memória se apagasse em tépido
silêncio, e poderiam pesar-me nas mãos também as vossas
mortes.
Quanto à ceia de mistérios que desenrolarei perante vós,
haverá inimigos meus que dirão que não passa de arabescos
intrincados nascidos do desejo de ocultar as manchas de sangue
das minhas próprias mãos. A evidência porém haverá de apontar
noutra direcção. Meu tio Abraão concedeu-me esta oportunidade
de viver plenamente a minha própria vida e não hei-de
desapontá-lo de novo. Se pois vos parecer complicado - ou
mesmo contraditório - o que surge de entre a malha da mais
modesta das minhas frases, sabereis que isso se deve ao meu
desejo de vos apresentar os acontecimentos tal como eles
verdadeiramente ocorreram, para que me vejais tal como sou.
Pois o judeu não é nunca a criatura simples em que os cristãos
sempre pretenderam fazer-nos acreditar. E um herético judeu
não é nunca tão falho de espírito como pretendem os nossos
rabinos. Somos antes tão profundos e abertos que nos pode
caber na alma todo um rio de paradoxos e de enigmas.
Há ainda uma última confissão que deverei fazer: não tenho a
menor ideia porque é que na visão meu tio Abraão me chamou
pelo nome de meu irmão mais velho, Mardoqueu, e esta minha
ignorância inquieta-me. É como se a aparição do meu mestre
escondesse um mais profundo significado, uma camada interior a
dar sentido às mortes de há vinte e quatro anos e que eu não
consigo ainda apreender. Por que razão, por exemplo, só agora
o meu tio me terá aparecido? Preciso seguramente de mais tempo
para considerar o assunto. A não ser que ele pensasse que a
luz do entendimento iria penetrando as minhas trevas à medida
que fosse escrevendo a nossa história. Será que só atingirei a
compreensão das subtis conexões entre passado e presente assim
que o meu manuscrito chegar ao fim? Uma tal possibilidade
faz-me sorrir, acalma um pouco as minhas dúvidas; é como se
meu tio me exigisse um dia e uma noite de trabalho terreno
antes de me abrir o derradeiro reduto do seu significado
celeste! Continuo, pois, adiante...
A primeira vez que me ocorreu traçar as nossas atribulações
numa página manuscrita, escondia-me, juntamente com a minha
família, numa cave. O mistério, em toda a sua complexidade,
acabava apenas de se me revelar. Foi aí que iniciei a minha
história de vinte e três anos antes. E será aí que também
agora começaremos.
Há três acontecimentos de que deverei falar antes de chegar
à morte que mudou as nossas vidas: a procissão dos penitentes;
a injúria a um amigo querido; e a prisão de uma pessoa da
família. Tivesse eu entendido o alcance de tais presságios,
tivesse-os eu lido como versos de um poema único escrito pelo
Anjo da Morte, e teria talvez salvo muitas vidas. Mas a
ignorância traiu-me. Talvez que, lendo as minhas palavras ao
fio destas páginas, sejais vós melhor sucedidos. Assim vos
seja concedida a visão clara.
Sentai-vos pois no sossego de uma sala alindada por uma
cercadura de plantas ou flores fragrantes. Voltai-vos para
oriente, para a amada Jerusalém. Desatai com cânticos os nós
do espírito. E deixai a luz ténue de uma candeia lançar a
penumbra sobre as páginas que ides passando.
Bruheem kol demuyay eloha.Abençoados sejam todos os que são
feitos à imagem e semelhança do Senhor!

Berequias Zarco, Constantinopla

Sexto de Av 5290 (1530 da era cristã)

Capítulo I


NO ano de 1494 da era cristã, tinha eu oito anos, li a
história dos íbis sagrados que tinham ajudado Moisés a
atravessar um pântano etíope infestado de cobras. Com as
tintas e corantes de meu tio Abraão desenhei um animal
vermelho e negro com um bico em forma de foice. O meu tio
pegou no desenho para o observar. Olhos de prata?" -
perguntou.
- Para reflectirem Moisés, de que outra cor poderiam ser?
Meu tio beijou a minha fronte. De hoje em diante serás meu
aprendiz. Eu te ajudarei a transformar espinhos em rosas e
juro proteger-te dos perigos que espreitam o caminho. As
páginas, que são outras tantas portas, hão-de abrir-se ao
nosso toque.
Como poderia então saber que um dia haveria de o negar tão
completamente?
Imagine-se que alguém se encontra fora do tempo. Que o
passado e o futuro evoluem à sua volta e o impedem de se
situar precisamente. Que o seu corpo, o seu receptáculo,
ficou tolhido, liberto da História. Porque é assim que me
sinto. Consigo ver claramente quando e onde o mal se
desencadeou: quatro dias antes, no vigésimo segundo dia de
Nisan, na Judiaria Pequena no bairro de Alfama em Lisboa.
Estava uma manhã resplandecente, como uma pérola opalina do
colar daquele mês primaveril. Era o ano de 5266 para os
cristãos-novos. O sexto dia de Abril de 1506 para os malditos
cristãos de alma e coração.
Da escuridão do amanhecer desta quarta-feira, escondido
nesta cave, recordo a alvorada de sexta-feira, os primeiros
raios de sol como que anunciando as notas iniciais de uma fuga
insana.
Escondida atrás de tais notas, disfarçada na memória,
encontra-se a face que procuro.
O dia do nosso primeiro seder da Páscoa ergueu-se fusco e
seco, como todas as manhãs ultimamente. Há mais de onze
semanas que não recebíamos a bênção da chuva. E também hoje
não choveria.
A peste, essa, assediava-nos com calafrios os corpos e as
almas já desde a segunda semana de Heslavan - há mais de onze
semanas.
Os médicos feitos à pressa de El-Rei D. Manuel acharam que o
gado era o ideal para absorver as essências que pairavam no ar
e a que atribuíam a epidemia, e assim duas centenas
de vacas entontecidas pelo calor foram deixadas à solta a
vaguear pelas ruas.
O próprio rei já há muito que descerrara desta desolação,
juntamente com a maior parte dos fidalgos. De Abrantes, três
semanas antes, tinha promulgado um decreto ordenando a
construção de dois novos cemitérios fora das muralhas da
cidade para receber os que todas as semanas eram chamados pelo
Senhor.
As almas dos mortos não se sentiam seguramente mais animadas
com tal gesto. E não se podia levar a mal se os vivos não
vissem neste decreto senão mais um sinal do vão pragmatismo e
da cobardia do rei. Teria sido aí que as coisas começaram a
mudar? Certamente. O dia-a-dia começou a revestir-se de uma
ponta de cruel e desesperante loucura. Nos últimos três dias,
vi um burro caído que o dono cegou com a sua adaga, com os
olhos a esguichar sangue e vi uma menina que não tinha mais
que cinco anos atirada aos guinchos do telhado de uma casa de
quatro andares.
Os pobres, para atenuarem os tormentos da fome, tinham dado
em comer uma papa de linhaça com água.
Tinha acabado de fazer vinte anos e era um pouco mais devoto
do que seria desejável como prova a minha crença de que a
nossa cidade tinha sido generosamente dotada com o grande
significado da Tora. Para mim, em tudo havia uma terrível,
eterna beleza e horror. Mesmo os pés imundos dos mortos
recentes que emergiam das serapilheiras onde eram
transportados nos carros pestilentos dos empestados possuíam
uma graça triste e reverente. Através deles os nossos
pensamentos voltavam-se para a mortalidade do Homem e para a
nossa aliança com Deus.
Meu tio Abraão era o único que tranquilamente ignorava os
pregadores escanzelados que corriam as ruas guinchando que
Deus tinha abandonado Portugal e que não faltavam mais que
cinco semanas para o fim do mundo (que poderia porém ser
adiado, concediam, se as nossas dádivas em moedas fossem
generosas). O cenho franzido pela irritação, disse-me : Não
achas que o Senhor me haveria de dar um sinal se estivesse
para fechar o último portão da Esfera Terrena.
Frei Carlos, um padre amigo da família, não podia ainda
contar-se entre esses desgraçados que tinham sucumbido
completamente à demência que se apoderara da cidade. Mas
parecia ser apenas uma questão de dias. A seca e a peste...
são filhos gémeos do Demónio! - confidenciou-me ele num
sussurro conspiratório, estávamos nós na arcada da Igreja de
São Pedro.
Essa manhã tinha-lhe trazido o meu irmão mais pequeno,
Judas, para a lição de doutrina cristã. Estávamos os três a
apreciar uma procissão de velas de flagelados que fustigavam
as próprias costas com açoites de couro com bolas de cera nas
pontas cheias de pedaços de lata e cacos de vidro colorido.
Seguiam-se os frades dos conventos de Lisboa desfraldando
estandartes azuis e amarelos bordados com imagens do Nazareno
crucificado. Atrás, com um ar imponente, os membros dos
grémios, as roupagens de seda enfunadas, sustentavam os
andores com imagens de santos.
De ambos os lados da rua, apinhava-se uma multidão formando
duas fitas irregulares recortadas contra as poeirentas
fachadas brancas do casario que se estende até à Sé. Gritos
a pedir água e misericórdia soavam como um coro antifonário.
Podiam aí ver-se as muitas e desvairadas gentes da nossa
cidade: cavaleiros e camponeses, barregãs e freiras, pedintes
e escravos pretos, e mesmo marinheiros do Norte de olhos
azuis.
Subitamente, bandos de cães vadios desataram a correr,
sempre a ladrar, atrás de mim, Frei Carlos e Judas,
dirigindo-se para ocidente, acompanhando o espectáculo. O
padre semicerrava os olhos e murmurava orações agitadamente.
Eu aspirava profundamente o gélido perfume de ameaça que
pairava no ar.
E esta noite - pensei - estaremos a lançar à imprevisível
corrente deste mar de loucura o barco proibido da Passagem.
Assim era: as nossas comemorações deveriam ter começado
exactamente há uma semana. Mas a maior parte dos judeus
clandestinos, incluindo a nossa família, tinham adiado a
Páscoa na esperança de navegar a salvo por entre as águas
corruptas da maledicência dos cristãos-velhos à nossa volta.
Perto de nós, um lenhador imundo, com o cabelo desgrenhado,
de repente desatou a gritar com quantas forças tinha: Para
termos a chuva dos céus, temos de ter mais sangue! Lisboa tem
de se tornar numa Veneza de sangue.
Judas encostava-se às minhas pernas e eu apertei-lhe o
ombro. Frei Carlos esfregava as mãos na sua testa abaulada,
como para se proteger. Era um homem corpulento, atarracado,
com uma pele suave e pálida, um nariz carnudo, uma rede de
veias vermelhas nas duas faces, da muita bebida. Poucos o
levavam a sério, mas eu considerava-o um bom amigo. Os seus
olhos desolados poisaram-se em mim: Não há nada de que os
homens mais gostem do que profanar o sagrado, meu filho., De
súbito invadiu-me um sentimento de tristeza pelo nosso fado. O
cheiro da pimenta das Índias entontecia-me, borrifos de sangue
salpicaram as minhas calças e a cara de Judas. Um dos
flagelados, soltando guinchos, tinha arrancado restos da pele
dos ombros e espargia especiarias sobre si próprio para
merecer o aguilhão do amor de Deus. Pareceu-me reconhecer nos
olhos aterrorizados de meu irmão o olhar de uma criança judia
prestes a lançar-se na travessia do mar Vermelho. Fui
percorrido por uma premonição fulgurante, inusual pela sua
convicção: Esperámos demasiado, os judeus de Lisboa, para
reviver o ëxodo e o Faraó apercebeu-se dos nossos planos.
Quando voltei a mim, Frei Carlos, disfarçando o olhar sob
uma franja da sua capa, alertou-me em voz baixa:
- Ouve os lamentos daquele moço flagelado... é como se
fossem os gemidos dos filhos do Diabo!
Judas fitava-me com uma curiosidade assombrada e expectante.
Quando as lágrimas assomaram aos seus olhos, peguei nele,
limpei-o, desfiz-lhe os compactos anéis do seu cabelo negro
como carvão. O meu irmãozito passou-me os braços em torno do
pescoço e eu respondi a Frei Carlos: Muito obrigado. Consigo e
com estes loucos, acho que por hoje já recebemos instrução
religiosa que chegue., Passei o capuz do manto de Judas por
cima da sua cabeça e consolei-o enquanto ele soluçava e
fungava. Depois do último penitente se ter arrastado além da
nossa antiga sinagoga, Frei Carlos acompanhou-nos através do
largo. Na esquina ficava a nossa casa, uma construção baixa de
estuque branco, com um rodapé azul-escuro a toda a volta. A
afinidade entre as cores fez-me erguer o olhar para a gaze
turquesa do céu da manhã e depois para a espinha do telhado,
um horizonte de telhas fulvas mosqueadas, interrompido a meio
pela chaminé, um cone branco escurecido pela fuligem com
aberturas de ventilação. No pino destacava-se a silhueta de um
trovador de chapa apontando o oriente, para Jerusalém. Um fino
véu de fumo da nossa lareira pairava em torno dele e
desenrolava-se na brisa meridional em direcção ao rio.
- Ainda bem que não temos lição hoje - disse Frei Carlos,
quando abri a cancela de recortes de ferro que dava para a
nossa casa e para a do meu querido amigo Farid e seu pai -.
Tenho de tratar com teu tio de umas coisas tristes que tenho
andado a adiar.
Entrámos no recinto resguardado do nosso pátio. Rodeado de
alvas fachadas e muros, pavimentado com lousas cinzentas,
ostentava no meio um limoeiro circundado de moitas de
loendros. Farid estava encostado ao alpendre, vestido com um
camisão comprido, descalço, passando as mãos pelos negros
anéis do seu cabelo que lhe pendia para os ombros. A mim,
sempre me parecera ter sido dotado com todos os atributos de
um guerreiro poeta dos desertos da Arábia - delgado,
musculoso, de agudos olhos verdes de falcão, uma pele suave
morena e uma inteligência ágil e imprevisível. A penugem que
sempre Lhe cobria o rosto fazia-o parecer ensonado mas
atraente, e tanto homens como mulheres eram frequentemente
cativados pela sua beleza escura. Fez-me um aceno de saudação
com um gesto das mãos vigorosas habituadas a tecer tapetes.
Apesar de ser surdo-mudo de nascença, nunca tinha sentido a
mínima dificuldade em comunicar deste modo comigo; já de
pequenos tínhamos inventado uma linguagem feita de gestos,
talvez por termos nascido apenas com dois dias de intervalo e
termos crescido juntos.
Ao mesmo tempo que respondia à saudação do meu amigo,
conduzi Frei Carlos para a porta da cozinha, um arco em ogiva
exuberantemente decorado com um rebordo de mosaicos com
estrelas verdes e cor de ferrugem. Numa voz hesitante, o frade
murmurou: Esperemos que o assunto fique arrumado., Poderá uma
casa ter um corpo, uma alma? A nossa parecia derribada e
fatigada por séculos de chuva e de sol, mas protegendo
tenazmente os que nela habitavam.
No nosso trabalho de iluministas, tanto eu como meu tio
Abraão tínhamos frequentemente utilizado a nossa casa como
modelo para desenhar as casas bíblicas. Para as paredes
usávamos um alvaiade leitoso e para dar uma ideia dos tectos
baixos e abatidos de avelaneira que rangiam de modo
inquietante durante as chuvadas de Av e Tishri usávamos o rico
castanho feito de vinagre, limalha de prata e enxofre.
As rachas nos alicerces tinham causado uma inclinação do
soalho para o lado do quarto de minha mãe, tão reduzido que
pouco mais era que um corredor estreito, mas com a vantagem de
possuir uma entrada para a Rua da Sinagoga, para as suas
freguesas da costura. Virado a nascente, ficava o quarto de
meus tios, acolhedor e cheio de luz. Entre os dois quartos,
havia a cozinha, onde a nossa vida decorria à volta da enorme
mesa de carvalho, e o quarto que eu partilhava com Judas e a
minha irmãzita Cinfa. A nossa loja de fruta, que a julgar pela
alvenaria tinha sido acrescentada dois séculos atrás, irrompia
daqui e projectava-se sobre a Rua da Sinagoga.
Ao entrarmos, Frei Carlos fez uma careta ao sentir o cheiro
acre das paredes Pintadas de fresco. Enquanto ele e o meu
irmão se dirigiam à cave à procura de meu tio, fui dar uma
olhadela à loja da janela interior do meu quarto. Em baixo, no
meio de cestos de figos e tâmaras, uvas e passas, laranjas
amargas, avelãs e nozes e toda a espécie de frutos existentes
em Portugal, estavam Cinfa e a minha mãe, Mira, a tirar
azeitonas de barris de madeira com uma concha para as disporem
em malgas de barro. Inclinei-me para fora da janela e gritei:
"Abençoado seja Aquele que ilumina as manhãs da nossa Lisboa!"
Cinfa resPondeu-me com um breve sorriso. Era uma rapariga
desengonçada, estouvada, com uma voz quase aos guinchos que
mais parecia sair-lhe por entre os dedos metidos na boca, mas
que ultimamente se tornava graciosa. Tinha a bem dizer doze
anos e era como se à medida que os seus lábios se tornavam
discretamente mais carnudos com eles despertasse a beleza de
uma mulher adulta. A menina que tinha passado horas a correr
atrás dos coelhos e a apanhar rãs, tinha cedido o lugar a
outra mais interessada em devanear em frente da sua tímida
gémea de olhos de avelã que o espelho Lhe apresentava.
Ao ver-me beijar Cinfa, minha mãe lançou-me um olhar seco,
desagradado. Era uma mulher pequena, roliça, de olhar baixo e
ombros curvados, com as formas dissimuladas como sempre numa
larga túnica esverdeada e um avental preto. O cabelo
castanho-escuro, salpicado de ténues mechas acinzentadas na
fronte, estava coberto por uma touca de renda escura e
apanhado num rolo atrás da cabeça, preso com uma fita de
veludo de Jerusalém que seu irmão mais velho, meu tio Abraão,
lhe tinha dado anos antes. O seu aspecto severo parecia
retirar a cor às suas faces, que nos últimos tempos se tinham
transformado numa expressão de vão desafio a qualquer
possibilidade de felicidade; para sempre haveria de chorar o
seu marido há muito tempo enterrado e o meu irmão mais velho,
Mardoqueu. Para todos aqueles que tinham conhecido a jovem mãe
que ela tinha sido, sempre na brincadeira, o seu ar consumido
de agora era como uma prova de que a vida poupa as suas
frechas mais aguçadas para as mulheres, que trazem - e
choram... - os filhos que se vão.
- Alguma de vós viu o tio? - perguntei.
Cinfa encolheu os ombros. A minha mãe passou a língua pelos
seus lábios fendidos como se enfadada com a minha interrupção
e abanou a cabeça.
Frei Carlos e Judas vieram ter comigo à cozinha. Não há
sinais dele - disse o frade.
Sentámo-nos à mesa à espera. Subitamente vimos aparecer à
porta do pátio minha tia Ester. Trazia um vestido preto de
gola subida que parecia iluminar a sua face trigueira. Os seus
expressivos olhos amendoados abriram-se horrorizados:
- Que manchas são essas? - perguntou, apontando para as
minhas calças -. Judas esteve a chorar?! - Cerrou os queixos
numa expressão de crítica, fitando-me, enquanto ajeitava
debaixo do lenço carmesim as madeixas dos seus cabelos
tingidos de hena. Delgada e alta, de uma beleza feita de
linhas e sombras cavadas, podia dominar uma sala com um único
relance lançado do alto do seu elegante nariz.
- Um nadinha de sangue - comecei a explicar -. Os flagelados
tal...
Sacudiu as mãos, chupando as faces de um modo que a fazia
parecer uma dançarina mourisca.
- Não digas nada! Nem quero ouvir! ƒ Senhor! Não se podiam
ao menos lavar? Faz lá como quiseres, mas que a tua mãe não
veja Judas nestes preparos, Nunca mais se calava!
- Vai, vai-te lavar - concordou Frei Carlos, acenando-me
para que me retirasse -. Já Lhe tinha dito que era a primeira
coisa que devia ter feito quando chegou a casa - acrescentou,
dirigindo-se a tia Ester.
Lancei-Lhe um olhar furibundo. Ele torceu os lábios num
sorriso de soslaio e levantou as sobrancelhas, como se
fôssemos rivais na disputa da afeição de minha tia.
Voltando-se para ela, disse:
- Agora, quanto ao meu problemazito...
Levei Judas comigo para o quarto, tirei-lhe as roupas e
despi as minhas. Limpei-o com a solução de água e vinagre que
a minha mãe tanto prezava, sentindo o seu corpo brando entre
as minhas mãos. Era um miúdo de cinco anos, sólido, já
musculoso e dono de uns sedutores olhos cinzento-azulados, que
parecia destinado a tornar-se num Sansão de pele leitosa.
Pouco dado a abluções, disparou para a cozinha mal acabei de
o vestir. Quando aí voltei, ao mesmo tempo que acariciava o
seu pião, arrepanhava a fímbria do vestido de tia Ester,
enquanto ela preparava o seu adorado café com leite de amêndoa
e mel à moda da sua Pérsia natal.
Lá fora, o surdo estrondear e o ranger dos carros do entulho
foi repentinamente abafado pela gritaria de uma mulher.
Abrindo as portadas para ouvir, avistei uma carruagem vermelha
que me era familiar desembalada pela rua abaixo. Como sempre,
os cavalos estavam arreados com um tecido prateado de franjas
azuis. Mas o cocheiro, habitualmente um cristão-velho com a
cara picada das bexigas, tinha sido substituído por um Golias
loiro com um chapéu de aba larga de cor de ametista.
- Adivinhem quem aí vem - disse eu.
Tia Ester afastou-me ligeiramente com o cotovelo e espreitou
para fora.
- Oh, Senhor! Dona Meneses. Mais trabalho para a Zira -
resmoneou -. Vê se não ficas aqui especado a olhar para ela -
disse-me, apertando-me a mão.
Como resposta, fitei-a trucando os olhos. A carruagem
suspendeu a carreira e ouviu-se a porta guinchar nos gonzos.
Ouviu-se o ruído surdo dos passos de Dona Meneses na Rua da
Sinagoga em direcção à salinha de minha mãe. Mal entrou em
casa desatou a descrever num falso tom lírico a qualidade do
tecido que tinha trazido. A sua voz transformou-se num
murmúrio abafado quando minha mãe fechou a porta do quarto.
Tia Ester inclinou-se para nós, como quem vai confidenciar
um segredo e disse:
- Só por milagre é que ZIra pode tornar aquele horrível
veludo cor de pulga em alguma coisa de apresentável! - E
avançando para a lareira, trouxe para a mesa o nosso pão de
challa, utilizando uma pega de linho.
- Sempre dá para pagarmos o que devemos - disse eu.
- Isso é. E com a seca...
- É o demónio! - exclamou subitamente Frei Carlos numa voz
de advertência.
- Isso não, Dona Meneses pode não ser amável, mas também não
se pode dizer que pertença ao Outro Lado - repliquei.
O padre contraiu os olhos e fitou-me. A língua dardejou
entre os seus lábios espessos e moles:
- Não falo dela, tolo! É o demónio que está por trás da
peste e da seca!
- Você saiu-me um bom lunático! - disse-lhe tia Ester em
hebreu, com aquele olhar de desdém capaz de gelar a água do
banho -. E veja se fala baixo, que não queremos espantá-la!
Os sinos de São Pedro começaram a tocar as terças. Frei
Carlos murmurou qualquer coisa para si próprio, como cedendo
ao apelo da fé, pronunciou uma rápida acção de graças e
serviu-se de um pedaço de pão quente com os seus dedos
roliços. Num tom de desaprovação, prosseguiu, falando na
língua sagrada, de modo que Judas não pudesse compreender:
- Quer dizer, cara Ester, que o demónio não existe?
- O que quero dizer é que se volta a assustar o meu
sobrinhito com os seus disparates... - e neste ponto tia Ester
retirou da lareira o atiçador e apontou a sua ponta
incandescente ao nariz carnudo do padre -... hei-de fazer com
que encontre o seu salvador cristão mais cedo do que contava!
Vá assustar outro!
- A tua tia sempre teve jeito para ameaças - sussurrou-me
Frei Carlos com um sorriso maldoso -. Lembras-te do dia em que
te levaram à força para te baptizarem na Sé? Lançou-Lhes
pragas em sete línguas diferentes... Hebreu, persa, árabe,
português...
- Lembramos, lembramos - interrompi, erguendo a mão num
Gesto de desaprovação, tentando poupar-nos à evocação. Tarde
de mais. Os olhos de tia Ester tinham-se tornado distantes e
opacos, mergulhados numa paisagem interior. A sua mão
deslizara sob o lenço carmesim e traçava o contorno da
cicatriz cruciforme que lhe tinha sido imposta naquela
amaldiçoada manhã do nosso baptismo forçado. Nessa ocasião,
mais que nenhuma outra, tinha resistido aos beleguins mandados
pelo rei para arrastarem os judeus até à Sé. Um dos guardas,
querendo dá-la como exemplo, atirou-a ao chão e prendeu-Lhe as
mãos e os pés ao empedrado da Rua de São Pedro. Um frade
dominicano empunhando um ferro incandescente tinha então
gravado uma cruz na sua fronte, enquanto gritava, para que
todos pudessem ouvir: "Eu te abençoo com o sino de Deus, Nosso
Senhor!" A mim, por meu turno, as crianças cristãs cobriram-me
de sangue de porco e de serrim durante o caminho da cerimónia
do baptismo até minha casa. Mas não podiam adivinhar a dádiva
que me fizeram: esta humilhação abrasadora mereceu-me o olhar
misericordioso do Senhor e tive então a primeira das minhas
visões.
Este acontecimento maravilhoso ocorreu quando Farid me
avistou no pátio. Rubro de vergonha, fugi dele. Assim que
atingi a porta da cozinha, porém, o pressentimento de que um
par de olhos me observava obrigou-me a parar. Quando me
voltei, avistei uma luz branca no céu, ao longe, por cima do
castelo mourisco. À medida que se aproximava, brotavam-Lhe
asas e vi então que aquela luminescência era um ovo etéreo.
Uma garça resplandecente cor de rubi e negra e branca tomou
forma e ao voar sobre a Judiaria Pequena, o vento causado pelo
bater das suas asas soprava impetuoso em torno a mim. Quando
me olhei, o sangue e o serrim tinham desaparecido.
Meu tio disse-me que Deus me mostrara a minha pureza
intocada e me revelara que o labéu cristão não passava de uma
ilusão. Eu respondi:
- Não era Deus, era só uma ave.
- Não, Berequias - respondeu. - Deus aparece a cada um de
nós sob a forma com que nós melhor O podemos apreender. Para
ti, nesse momento, era uma garça. Para outro, pode surgir-lhe
como uma flor ou mesmo uma brisa.
E tinha razão. Nos momentos de maior desalento, o Senhor
sempre me apareceu na forma de uma ave, talvez por me ser mais
fácil ver a beleza da criação nessas criaturas dotadas da
capacidade de voar.
Recordando a sabedoria de outras palavras de meu tio, disse
então a tia Ester:
- O demónio não passa de uma metáfora. É um modo de falar da
religião. ,As palavras não podem ter sempre um significado
corrente.
- Valha-me Deus, é ainda muito cedo para filosofias
cabalísticas! - respondeu ela.
O tom áspero de tia Ester levou Judas a subir para o banco
para junto de mim. Tinha os lábios cerrados naquela fenda de
silêncio forçado que os brados e as palmadas de minha mãe Lhe
tinham ensinado. Ultimamente, tinha aprendido tudo o que
pudesse evitar-Lhe vir a ser o último, o mais pesado fardo
para ela - atravessava na ponta dos pés, sem correr, a sua
infância.
O alçapão da cave, num dos cantos da cozinha, abriu-se
subitamente. Meu tio Abraão, o meu mestre espiritual, surgiu
ao topo das escadas, a fronte banhada em suor e o cabelo
despenteado apontando para cem diferentes direcções, como se
tivesse atravessado alguma tempestade espiritual. Parecia um
pequeno tentilhão, de movimentos rápidos, com o seu rosto
pontiagudo dividido ao meio por um nariz comprido e anguloso
que Lhe dava um ar que divertia os estranhos, mas que aqueles
que o conheciam associavam à sua inteligência penetrante. A
sua suave pele morena, cor de canela, parecia fazer sobressair
o tufo rebelde de cabelos prateados e as suas sobrancelhas
espessas. Uma barba grisalha adoçava-Lhe as faces, que ao se
afundarem um pouco acrescentavam ao seu rosto a sombra da
sageza da idade. Os seus olhos, particularmente depois das
orações, luziam com aquela secreta luz verde, o subtil
mistério que o marcava imediatamente como sendo um mestre
cabalista.
- Quem temos por cá: - interrogou-se, semicerrando os olhos
-. Ah, é o nosso amigo frade!
- Mas de onde virá ele? - interrogou-se Frei Carlos, que
nunca se habituara a ver meu tio aparecer saído do nada -.
Ainda há momentos andámos a ver na cave. Às vezes chego a
pensar que é um lez.
- O que é um lez? - perguntou Judas.
- Um espírito que volta à terra para pregar partidas, um
espírito brincalhão - respondi.
Meu tio fez um sorriso divertido e abanou a mão direita para
mostrar que tinha cinco dedos - as lendas judaicas diziam que
os lziyn só tinham quatro dedos.
- Os meus movimentos acompanham os mistérios da vida - disse
ele com um gesto displicente. Erguendo as sobrancelhas, fez um
aceno inquisitivo em direcção às vozes abafadas que nos
chegavam das traseiras.
- Dona Meneses - expliquei -. Trouxe tecido para outro
vestido. Desta vez púrpura.
Bebeu o café e, depois de breve bênção, devorou um ovo
cozido. Soaharit, as orações da manhã, já haviam passado, mas
voltou a dar-me os bons dias com um beijo nos lábios. Pondo
Judas no colo, perseguia-o com beijos repenicados e rosnadelas
de brincadeira. Habitualmente discreto, ao chegar o tempo da
Páscoa, meu tio parecia aturdido de afeição.
- Vim cá só para dizer que decidi não vender a safìra -
disse Frei Carlos com um suspiro que parecia um pedido de
desculpa.
Os lábios de meu tio franziram- se na expressão que o fazia
parecer ameaçador.
- Acho que devia reconsiderar - disse ele.
- Agora compra pedras preciosas? - perguntei. Fitei minha
tia esperando vê-la protestar. Mas ela estava ocupada, com os
olhos postos no Livro de Salmos, que recentemente tinha
copiado para um fidalgo cristão-velho, relendo-o atentamente.
- Se tivéssemos dinheiro para isso, podíamos fechar a loja e
deixar este deserto por umas semanas - acrescentei,
voltando-me para meu tio.
- Uma safira talhada no tempo do Rabi Salomão Ben Gabirol -
respondeu, dirigindo-me um olhar desafiador e exprimindo-se em
hebreu, mas dizendo em português a palavra safira.
Salomão Ben Gabirol era um grande poeta judeu do século II,
de fílaga. - Acho que não estou a ver que caminho seguem os
seus pensamentos -- disse eu.
- Ptal etatsmahah liefee shetiftah delet. Bate em ti como se
batesses a uma porta - retorquiu meu tio.
Era um modo condescendente de me dizer para ficar calado e
procurar dentro de mim uma resposta.
- Ainda é cedo para os seus conselhos místicos - repliquei.
Como resposta, limitou-se a deitar água na minha tigela.
- Bebe que já não te zangas. Os fluidos limpam a bílis
branca do teu sistema.
- Mais líquido e ainda me afogo - respondi.
- Hás-de afogar-te, mas é só quando desapareceres no oceano
de Deus - disse, levando aos lábios um dedo a pedir silêncio.
Depois, voltando-se para Frei Carlos, acrescentou num tom
mais grave: - A safira pode perder-se, não sei se sabe.
- A responsabilidade é minha.
O meu mestre levantou Judas do colo e sentou-o numa almofada
persa.
- Senta agora aí - disse. E continuou, para Frei Carlos: -
Perder-se para sempre, queria eu dizer. A sua posição põe-no
em risco.
Ouvindo-o, compreendi que não era de pedras preciosas que se
estava a falar. Safira, era um nome de código para Seféz-,
livro, em hebraico. Estava sem dúvida a tentar comprar uma
obra de Rabi -Salomão Gabirol para o fazer sair
clandestinamente de Portugal. Mas porque haveriam de falar em
código dentro de nossa casa, onde estávamos a salvo dos olhos
e ouvidos dos cristãos-velhos?
Frei Carlos aceitou com um gesto de desculpa e levantou-se
para se despedir.
- Só te aviso: vou continuar a tentar convencê-lo - disse o
meu mestre com uma firme determinação na sua voz.
O padre persignou-se com a mão tremente. No intuito de
aplacar meu tio, num tosco esforço para fazer uma graça,
replicou:
- Os seus bruxedos cabalísticos não me assustam...
O meu mestre pôs-se em pé num salto, fitando Frei Carlos.
Todos os movimentos na sala pareciam suspensos da sua cólera.
- Nunca pratiquei maia! - disse, recorrendo ao termo
hebraico kabbalah maizsit, a cabala prática, para designar
estas práticas proibidas -. E o meu amigo bem o deve saber.
Referia-se a uma ocasião em que Frei Carlos Lhe tinha pedido
um amuleto para matar um caluniador que andava a espalhar
boatos sobre a fidelidade do padre à fé de Moisés. Meu tio
tinha recusado, como é evidente, mas tinha recorrido
pessoalmente ao Rabi Abraão Zanito, o astrónomo do rei, para
ver se não seria possível calar o celerado.
Meu tio avançou para a lareira e ficou a observar as unhas
contra o lume. O anel de topázio com o sinete em forma de
íbis, símbolo do divino escriba, faiscou com um brilho
interior.
- Quando Adão e Eva nasceram no Éden tinham o corpo, dos pés
à cabeça, protegido por uma carapaça, como uma armadura -
disse ele -. Agora, as unhas são tudo o que nos resta dessa
protecção original. Uma ponta insignificante, não acha? De
pouco vale contra as armas da Igreja - acrescentou,
voltando-se para Frei Carlos.
O padre encolheu os ombros, sacudindo a insinuação, e baixou
os olhos.
- De nada lhe servirão se eles vêm a saber da safìra.
- Preciso dela - disse Frei Carlos, com uma nota de tristeza
na voz -. Estou certo que me compreende. É a última... - As
palavras foram-se diluindo. Levantando-se, acrescentou
secamente - Tenho de me ir preparar para a missa.
- Ah, bastardo! - gritou-lhe meu tio -. A ficar com uma
safira que há-de fazer falta a nossos filhos!
Quando voltou a muralha das suas costas a Frei Carlos, o
padre baixou a cabeça como que a pedir o perdão dos restantes
e saiu.
- Também podia ser mais compreensivo - disse a meu tio. Ele
repeliu a censura e então acrescentei: - Porque estavam a
falar em código? Não era possível que Dona Meneses nos ouvisse
lá atrás. Além do mais, ela deve saber muito bem que
continuamos a praticar o judaísmo. Se isso a incomodasse, há
muito que nos tinha denunciado às autoridades.
- O frade não confia em ninguém. Até os mortos usam
máscara,;, diz ele. E pelo meu lado, quanto mais aprendo, mais
acho que ele tem razão - coçou a cabeça e franziu o sobrolho
-. Vou apresentar os meus cumprimentos a Dona Meneses.
Lançou-me um olhar imperativo e saiu.
- As pessoas esquecem muito depressa - suspirou tia Ester.
- Que quer dizer com isso?
Aspergiu o pescoço com água de rosas, atando-lhe depois em
torno um lenço de linho.
- A peste. Desaparece por uns anos e as pessoas já imaginam
que é qualquer nova maldição do Demónio - passou a mão
tremente pela fronte e pareceu meditar nas suas palavras -.
Talvez seja uma bênção o podermos esquecer. Imagina se...
- Eu não esqueço Nem uma palavra, nem um gesto, nem uma
única ferida!
O rosto de tia Ester contraiu-se; sabia que me referia a meu
pai e a meu irmão mais velho, Mardoqueu. No inverno de 523,
pouco mais que três anos antes, a faca da peste tinha-Lhes
arrancado a pele, deixando-os expostos aos ventos húmidos de
Kisleo. Meu pai, agonizando cheio de feridas e pústulas
abertas, tiritava de morte no sexto dia de Harzukah. Passado
um mês, o esqueleto do que tinha sido Mardoqueu morria-me nos
braços.
Ficámos em silêncio, minha tia e eu. Instantes depois, Dona
Meness deixava a nossa casa com o habitual cesto de fruta que
sempre levava destas visitas.
- Vou ver se Cinfa precisa de ajuda na loja - disse tia
Ester, e saiu da sala no seu passo rígido, ligeiramente
inclinada para diante. Fiquei a observar Judas que brincava na
entrada com o pião até que meu tio se voltou para mim e me
disse: "Preciso da tua ajuda na cave." Passando o alçapão,
descemos os cinco degraus de pedra grosseira, um por cada
livro da Tora, até um pequeno patamar com uma ynerLora de
mosaicos verdes e amarelos no meio. Depois de outra passagem,
descemos ainda doze pequenos degraus de alvenaria, um por cada
livro dos profetas. Desde o encerramento forçado da nossa
sinagoga no ano cristão de 1497, tínhamos aqui o nosso templo.
Ao descermos, tirei de uma prateleira um kipá azul e pu-lo na
cabeça. Meu tio puxou dos ombros o seu xaile ritual e cobriu a
cabeça com ele, formando um capuz. Juntos entoámos um cântico:
"Pela Tua infinita misericórdia, entrarei em tua casa".
Era uma cave baixa, com um pavimento de cinco passos de
largo e o dobro de comprido, revestido com as mesmas toscas
lajes de xisto da entrada. Poderia testemunhar pelo menos mil
anos de cânticos e no ar gélido e bafiento, hermeticamente
contido naquelas paredes onde mal se vislumbravam os azulejos
com formas entrelaçadas em azul e amarelo, parecia pairar o
perfume de memórias antigas. No topo da parede a norte, à
altura do pavimento da entrada, uns postigos em ilhó deixavam
entrar uma luz suave e pálida. Ao fundo das escadas, que
ladeavam a parede a oriente, ficava o círculo do nosso tapete
de orações. Em torno dispunham-se sete tufos de plantas
verdejantes em vasos de barro, um por cada dia da Criação.
Três eram de murta, três de alfazema e o restante,
simbolizando o Shabat, era uma mistura dessas duas plantas. A
metade da sala além do tapete, virada a poente, era o termo
dos nossos trabalhos terrenos, onde tia Ester copiava
manuscritos e eu e meu tio os decorávamos com iluminuras. As
nossas três escrivaninhas de castanho finamente polido ficavam
face à parede a norte, a reduzida distância umas das outras,
de modo que podíamos ver o trabalho uns dos outros. Cada um de
nós dispunha de uma cadeira de espaldar alto. No lado oposto,
face à parede a sul, viam-se dois lavatórios de granito
cavados no solo. No meio ficava o tosco armário de carvalho
onde guardávamos o material. tinha uns pés em forma de patas
de leão e oito fiadas de dez gavetas, baixas e compridas, como
as caixas de tipos das oficinas de impressor. A última fiada,
em baixo, tem só duas gavetas, onde guardamos as folhas de
ouro e o lápis-lazúli.
O que de mais estranho havia na sala, era sem dúvida o
espelho redondo, como uma bandeja, colocado na parede, por
cima da escrivaninha do meio, onde se sentava meu tio. O
espelho, com uma moldura de castanho, possuía uma superfície
de prata, côncava, o que tornava achatadas e distorcidas as
imagens que reflectia. Costumávamos mirá-lo vezes sem conta ao
iniciarmos as nossas meditações, como um meio de libertarmos o
espírito da vista habitual, especialmente da imagem familiar
do corpo. Este espelho tinha-se tornado de certo modo famoso
nas imediações por se dizer que no dia seis de Junho de 1391
da era cristã tinha ressumado sangue pela morte de dezenas de
milhares de judeus mortos nas perseguições que então assolavam
a Ibéria. A verdade é que o bisavô Abraão sustentava que o
espelho vertia uma ínfima lágrima de sangue, invisível ao
olhar, sempre que um único judeu morria. Acreditava que o
sangue se tinha tornado visível na época das perseguições
contra os judeus por então terem matado tantos dos nossos. Foi
assim que desde então passaram a chamá-lo o espelho que
sangra.
Todos esperávamos que nunca mais tivesse ocasião de nos
revelar os seus poderes.
- Precisava que mijasses - disse meu tio, encaminhando-me
para os lavatórios no chão.
- Agora? - perguntei.
- Aqui - disse, pegando numa infusa que estava à beira da
bacia -. É Primavera. Preciso do mijo de alguém virgem.
Todos os anos, exactamente antes da Páscoa, meu mestre
fabricava novos corantes e tintas para as nossas iluminuras. O
ácido da urina, ao atacar certos elementos criava cores
diferentes, em especial um rosa finíssimo, quando se misturava
com pau-brasil, alúmen e alvaiade, e um carmim brilhante se
combinado com cinzas de videira e cal viva.
- Há muito que deixei de ser virgem - disse eu, enquanto a
imagem de Helena se tornava presente tal como a vira nas
colinas que dominam o grande convento em construção a ocidente
de Lisboa. Tinha esperado tão longamente pela sua decisão! Até
quase pensar que o amor e a vida seriam para mim diferentes do
que eram para os demais. E de um momento para o outro, quando
tudo parecia perdido e o barco que a deveria levar para Corfu
estava já ancorado em Lisboa, os braços dela abriram-se para
mim como os porões da graça de Deus.
- Alguma barregã na Estalagem da Flor da Rapariga? -
perguntou meu tio, despertando-me do meu devaneio. Vezes sem
conta tinha-me recomendado uma casa de má nota fora das
muralhas da cidade.
Assim que respondi Helena, levantou as sobrancelhas numa
expressão maliciosa:
- Seja como for, és o que posso arranjar de mais parecido
com alguém virgem, sem ter de revelar que continuamos a fazer
iluminuras de livros hebraicos. Judas é ainda pequeno, eu
demasiado velho e a urina das mulheres é forte de mais,
especialmente a de tua tia. Usei-a há muitos anos quando nos
casámos: ficou tudo preto como a alma de Asmodeu.
Trocámos um sorriso de troça.
- Agora percebo porque esteve a encher-me de líquidos -
disse eu.
Enquanto as minhas águas jorravam quentes e espumosas nos
jarros, meu tio dirigiu-se para as escrivaninhas no Passo
bamboleante que costumava adoptar nas sinagogas e começou a
espanejá-las.
Depois de ter urinado em seis dos jarros de barro e de os
ter tapado cuidadosamente, coloquei-os nos lavatórios. Meu tio
lavou as mãos e sacudiu-as para o tufo de murta e alfazema do
Shabat.
- Diego está atrasado. Não percebo - disse, com um ar
espantado.
Diego, o impressor, era um amigo da família que meu tio
andava a introduzir no círculo de iniciados, o seu grupo de
místicos que se reuniam secretamente para discutir a Cabala.
Apesar de ser um homem robusto, de barba grisalha:... e uns
olhos castanhos dominadores como de um patriarca, as fogueiras
da Inquisição de Sevilha tinham-lhe reduzido o coração a
cinzas quatro anos antes, levando-Lhe a mulher e a filha; e
ele próprio só a muito custo conseguira escapar. Tanto eu como
meu tio procurávamos por todos os meios animá-lo e nesse mesmo
dia tínhamo-lo convencido a ir dar um passeio até à mata de
Sintra, de maneira a podermos ainda desenhar os grandes grous
brancos antes de eles migrarem para o Norte.
- Talvez se tenha demorado em casa da família da Senhora
Belmira - disse eu. Era uma vizinha e amiga de Diego que dois
meses antes tinha sido espancada até à morte em Xabregas, na
parte oriental da cidade. Ultimamente, Diego costumava passar
bastante tempo com os seus familiares. Meu tio encolheu os
ombros e pôs as suas mãos em concha no meu nariz.
- É para te refrescar - disse, enquanto eu aspirava o odor
da murta nos seus dedos -. Se daqui a pouco não tiver chegado,
vamos a casa dele ver o que se passa. Ah, e quando saírmos
tenho de passar na Rua Nova dos Mercadores. Prometi a Ester ir
entregar o Livro de Salmos, que ela terminou.
- Dou-lhe só o tempo de eu e Diego bebermos um copo de vinho
na Taverna do Sótão!
Eram umas águas-furtadas prestes a desabar, mas onde serviam
vinho casher às escondidas. Os lábios de meu tio desenharam
uma vaga mas divertida repreensão.
- Olha, agora também me quer dar ordens! - observou.
Como única resposta compus a expressão de enfado com que
irritava meu pai quando ele se punha a falar-me das aulas de
Talmud - Está bem, só meia hora - concordou meu tio.
Inclinou-se para mim de modo a poder passar as mãos em bênção
sobre mim. Seguidamente, enquanto eu tirava corantes e tintas
do armário, retirou o ferrolho da geniza, o local onde
tradicionalmente se guardavam os livros antigos nas sinagogas.
A nossa era um poço, aí de três pés de largura por quatro de
comprimento, aberto no pavimento na orla do tapete de orações.
O conteúdo estava sempre a mudar: os livros levados para fora
de Portugal depressa eram substituídos por outros descobertos
por meu mestre e que ele logo comprava ou pedia.
Meu tio entrou na geniza para trazer o nosso trabalho.
Quando voltou a subir, já eu estava a arranjar os meus pincéis
e as cores. Colocando cuidadosamente o meu manuscrito no tampo
ligeiramente inclinado da minha escrivaninha, passou a mão à
roda da minha nuca enquanto me contava uma parábola que era
também uma sugestão sobre o modo de colorir a minha mais
recente iluminura, um dos contos das famosas Fábulas da
Raposa,. Quando tentei começar a interpretar as suas palavras,
os seus lábios desataram a tremer e senti na pele a sua mão
gelada.
- Que foi, meu tio? - perguntei.
Esfregou os olhos com ambas as mãos, como uma criança,
respirou profundamente como que a tomar fôlego:
- Estás tão crescido - disse suavemente -. Já meu igual em
tantas coisas. Se bem que noutras - abanou a cabeça, sorrindo
melancolicamente -... Há tantas coisas que queria dizer-te...
Bem, Deus poderá em breve pedir-nos que sigamos rumos
diferentes - enfiou a mão na algibeira e sacou um rolo de
pergaminho -. Peço-te que aceites este pequeno presente -
disse, estendendo-mo.
O rolo desenrolou-se numa fita de pergaminho onde estavam
gravados em hebraico ambos os nossos nomes em finas letras
douradas.
- Foi Ester quem mo fez - continuou. Segurou-me pela nuca e
numa voz ansiosa acrescentou: - Se alguma vez precisares de
mim, onde quer que estejas por mais longe que seja e por mais
desesperadas que sejam as circunstâncias, envia-me esta fita
que eu vou ter onde estiveres - pôs a outra mão na minha
cabeça, fixando-me nos olhos com insistência -. E se, por
qualquer razão, não me encontrares ao teu alcance na terra,
segura-o nas mãos e reza que eu hei-de fazer tudo para
reaparecer.
Sentia-me tão tocado com tal mercê, com a generosidade de
meu mestre que a minha garganta parecia queimar como que em
ânsias desesperadas. As lágrimas embaciavam-me a sala. Tive de
engolir por diversas vezes antes de poder sussurrar:
- Mas nunca havemos de nos separar. Hei-de sempre...
- Mais tarde ou mais cedo, os mais novos têm de se separar
dos mais velhos - disse meu tio -. Hás-de seguir o teu caminho
e hás-de depois voltar. Mas não há-de haver nenhum demónio
capaz de me travar se estiveres em perigo! - retirou a mão da
minha cabeça e acariciou-me no rosto -, Aqui sim, temos de
trabalhar.
- Mas não há nada que eu possa...?
Estendeu a mão e apontou para o meu manuscrito:
- Ai do mestre de Cabala que responda a todas as perguntas
do seu aprendiz! Toca a trabalhar!
Momentos depois, quando avivava as patas de um cãozito na
minha iluminura com pequenos toques de tinta negra, um berro
como vidro a partir-se cortou o ar. "Corre!" - gritou meu
mestre.
Subi as escadas de um pulo. A cozinha estava vazia. De fora,
vozes alteradas ressoavam contra os muros. Saltei do meu
quarto Para a loja, precipitei-me para a Rua da Sinagoga.
Enquanto guardava o meu kipá, avistei tia Ester ajoelhada
junto ao nosso amigo Diego, que gemia. De um corte no seu
queixo barbudo o sangue corria para as mãos de minha tia.

Capítulo II

impressor Diego foi o primeiro a contribuir para o rio de
sangue que durante os dias que se seguiram haveria de nos
conduzir à paisagem de um deserto apenas rodeado de mágoa. Mas
por enquanto essa geografia de morte era ainda um segredo para
nós. Pela sua fronte corriam torrentes de suor e as faces
estavam sujas das marcas da eterna poeira da cidade. O sangue
do corte no queixo fluía pelo pescoço. Por entre ataques de
tosse, procurava recuperar o fôlego. - Andava a passear por
aqui... "só um passeio" - disse ele em português -. Parei
perto do rio, no Chafariz dEl-Rei a lavar as mãos.
Tia Ester desapertou-Lhe a gola do gibão enodoado e
limpou-lhe o peito com um farrapo que rasgou da sua blusa.
Reparei no traço escuro de uma cicatriz antiga que tinha no
peito, por baixo da clavícula, que parecia ter sido escavada
por algum bicho. Em torno a nós, começaram a juntar-se
vizinhos, a bisbilhotar entre si.
- Dois rapazes... - continuou Diego -. Começaram aos berros
que eu estava a envenenar o poço com essência de peste.
Desataram a correr atrás de mim. Caí. Atiraram-me pedras.
Apanhem o rabino de rabicho! Apanhem o rabino..." Quem me
salvou foi um homem moreno com um gorro azul. Era alto,
forte...
No seu desespero, as últimas palavras procuravam o socorro
do hebraico. Fala português - murmurei-lhe, enquanto o
deitávamos no empedrado da rua.
O turbante de Diego tombou e recuei então pela primeira vez,
por entre os tufos de cabelo que lhe cobriam as orelhas e que
começava a rarear e a ficar grisalho, os sinais que cobriam a
sua cabeça. Tinha-lhe caído um papel dobrado. Pensando que
podia ser alguma mensagem ou alguma fórmula de orações que o
poderiam incriminar como judeu praticante, apanhei-o e
enfiei-o na grande bolsa que sempre trazia pendurada ao
pescoço e me servia como uma espécie de bornal. Judas
encostava-se a mim, gelado de medo, e tive de o sacudir para
que fosse chamar o Doutor Montesinhos.
Meu tio reuniu-se a nós e, depois de uma breve oração,
disse:
- Vou lá dentro ver se posso arranjar algum remédio.
Ainda tentei manter fechado o lanho, com os dedos
apertados em torno da ligadura improvisada de minha tia, mas o
tecido depressa ficou tinto de sangue. Tia Ester foi a correr
buscar água limpa, enquanto eu rasgava tiras da minha camisa
para substituir as ligaduras. Meu tio chegou com Farid.
Traziam extractos de consolda, bagas de loureiro, gerânio,
goma e argila, goma arábica e água sulfurosa. Mas apesar de
todas estas substâncias adstringentes, o sangue não coagulava.
- É esta maldita barba! - resmungou meu tio -. Não consigo
chegar à ferida. O Doutor Montesinhos vai ter de te cortar a
barba - disse ele para o ferido.
Diego, que pertencia à casta sacerdotal de Levi, ao ouvir
isto, deu-nos um empurrão:
- Não o permitirei! - gritou em hebraico -. Tenho de ter
barba. É proibido...
- Há levitas sem barba - observei, mas Diego limitou-se a
gemer. Dirigindo-me a meu tio, sussurrei: - Um ataque em pleno
dia. É mau sinal. Mais umas semanas de seca e...
- Como podes ter a certeza que não foi planeado? - disse meu
tio num tom irado.
Ia a perguntar o que queria dizer, mas uma sombra
projectando-se sobre nós suspendeu as minhas palavras. Dois
homens a cavalo conduzindo uma carruagem branca e dourada
fitavam-nos do alto. Os capacetes prateados e as grevas
cintilavam com os raios do sol. Pendões escarlates e verdes
decorados com as armas do rei drapejavam na brisa seca.
- Que desordem vem a ser esta? - perguntou asperamente um
deles.
Foi só nesse momento que reparei que meu mestre envergava
ainda as suas vestes rituais, com um xaile azul e branco por
cima dos ombros, o braço esquerdo envolvido nas fitas dos seus
tefelins e uma caixinha de orações em couro colocada na fronte
por cima do seu olho espiritual. Tal infracção podia valer-lhe
o exílio como escravo na África portuguesa. Através de gestos
nas costas, fiz sinal a Farid para o levar dali.
- Feriram este homem - disse eu.
- És cristão-novo?! - perguntou o cavaleiro.
O meu coração deu um salto, quase me forçando a negar. Pelo
canto do olho, avistei Farid arrastando consigo meu tio
através da multidão.
- Perguntei-te se eras cristão-novo! - repetiu o cavaleiro
num tom ameaçador.
Atrás dele, a porta da carruagem abriu-se. Um silêncio
cobriu a multidão. Vimos sair um homem magro, delicado, com
uma túnica violeta e calças soladas de duas cores, preta e
branca. A gola franzida de seda dourada parecia oferecer a
sua face descarnada e maléfica como se fosse uma bandeja. Os
seus olhos negros vigiavam a multidão como à procura de um
inocente para o punir.
- Levamo-lo connosco. Deve haver um hospital perto dos
Estaus - disse num castelhano imperioso, agitando a mão onde
se viam dois anéis de cabuchão de esmeralda do tamanho de
amêndoas.
O Palácio dos Estaus, uma construção torreada de pedra
cintilante, servia de pousada aos nobres em visita oficial a
Lisboa.
- Senhoria, o novo Hospital de Todos-os-Santos fica já ali
no Rossio - disse eu -. A menos de cem jardas do vosso
destino.
Diego tinha uma compleição de urso, com mais de seis pés de
altura, e foi preciso um guarda e um dos cocheiros de ar
mourisco para o conseguir levantar. No interior da carruagem,
face ao fidalgo castelhano, sentava-se uma dama jovem com uma
trança arranjada em bico e com um vestido de seda cor-de-rosa.
Era loira, de tez clara e face redonda. Inclinou-se para Diego
com uma expressão de genuína inquietação e o seu olhar
inteligente fitou-me à procura de uma explicação.
- Assaltado por marinheiros estrangeiros - menti.
Impressionou-me o seu súbito olhar de surpresa, a impotência
do seu desespero, e a familiaridade do seu rosto baniu a noção
de tempo, tal uma intuição penetrante - uma sefit, um influxo
da graça de Deus. Semelhava um versículo da Tora que
subitamente se tivesse despojado das suas roupagens e se nos
revelasse num rasgo de nu entendimento.
Ao lado da jovem estava um mastim, vestido com uma
indumentária de trovador azul e amarela. No fundo vermelho da
carruagem repousava um cofre de prata. Mas só me apercebi
destes últimos pormenores quando o castelhano ordenou ao
cocheiro para seguir. Afastei-me a observar a cena, como
muitas vezes faço para a imprimir vividamente no que meu tio
chama a minha memória de Tora. Quando a porta se fechou, o
fidalgo inclinou-se para mim através da janela e murmurou numa
voz com cheiro a vinho:
- Não tenhas medo. O teu amigo não morre durante as festas
-. E para os cocheiros gritou: - Toca a andar! Trazemos aqui
um ferido!
No meu coração a curiosidade e a apreensão disputavam-se
enquanto os cocheiros chicoteavam os cavalos. Quem seriam
aqueles castelhanos: Saberiam que éramos judeus secretos?!
Estaria o fidalgo a troçar de mim ou antes a revelar-me a sua
afinidade? Por instantes, ainda vi uns dedos tão delicados
como os de uma criança agarrados à janela da carruagem até ela
desaparecer ao fundo da rua. Correram então uma cortina que
silenciou as minhas questões.
Encontrei meu tio no pátio, a jogar xadrez com Farid. tinha
no regaço o xaile cuidadosamente dobrado, com os tefelins por
cima.
- Antes que as minhas forças sejam dizimadas por este
pagão, vamos ao hospital ver se Diego está a ser bem tratado -
disse-me, mal me avistou. Farid,
lendo-lhe os lábios, riu-se. Como queríamos vestir roupas para
sair, dirigimo-nos a casa e, ao entrar na cozinha,
perguntei-lhe porque dissera que o ataque a Diego podia ter
sido planeado.
- O que é que vive durante séculos, mas que pode morrer
ainda antes de nascer? - perguntou, à laia de resposta.
- Nada de enigmas, queria era que me respondesse - disse eu,
rolando os olhos.
Ele franziu o sobrolho e dirigiu-se para o seu quarto.
Uma semana mais tarde, descobri a resposta ao paradoxo de
meu tio. Tivesse eu compreendido mais cedo, teria podido
mudar em ouro o nosso destino de chumbo?

Escolhemos um caminho que bordejava o rio, pois a
inconstância do vento atormentava-nos agora com o cheiro de
uma das esterqueiras da cidade fora das muralhas. Os
cemitérios estavam a abarrotar e ultimamente o escravos
africanos que morriam eram atirados para cima dos montes de
esterco. Tudo o que os abutres e os lobos não conseguiam
apanhar a tempo entrava em putrefação, o que, misturado aos
excrementos, produzia um fedor de pesadelo que nos causticava
a pele e os ossos como algum ácido desconhecido.
Ao passarmos na Porta do Chafariz dos Cavalos, ocorreu-me ao
espírito o arrepio metálico que os portões da Judiaria Pequena
provocavam quando encerravam os judeus durante a noite. Um
brado vindo de cima fez-nos voltar. Do cimo dos degraus da
Sinagoga, o nosso antigo rabino, Fernando Losa, fazia-nos
sinal para esperarmos. Depois da sua conversão, tinha-se
tornado num mercador de alfaias do culto cristão, sendo mesmo
o fornecedor do bispo de Lisboa, maldito seja.
- Só nos faltava mais este - resmunguei -. Que terrível
pecado estaremos a expiar?
Meu tio deu uma gargalhada. De repente ouviu-se uma mulher
gritar "Aí vai água!" e encostámo-nos à parede enquanto uma
chuva de porcaria se precipitava de uma janela do terceiro
andar.
Losa reuniu-se a nós, a resfolegar, exibindo sobre os seus
ombros estreitos uma bela capa escarlate bordada com uma
gargantilha de pérolas. Magro, de nariz ponteagudo, com uns
olhos cavados traiçoeiros, uma calva brilhante e uma fenda
torcida como boca, mais me parecia um títere sinistro que
tivesse sido concebido para perseguir ratos nos subterrâneos.
Quando era pequeno julgava que ele tinha garras em vez de
dedos e nos meus sonhos silvava, nunca falava.
- Estas danadas vacas nojentas andam por todo o lado! -
disse com um falso sotaque aristocrático.
- Pelo menos são casher- observou o meu mestre.
O Rabino Losa fungou e disse: "Este azar do impressor Diego
é o que acontece quando se fala da Fonte convosco." Esta alusão
em código à Cabala mostrava que não ignorava que meu tio
pretendia associar Diego ao seu círculo de iniciados.
Meu mestre curvou-se numa reverência e murmurou em hebraico:
"Hakhsam mufla ve-rav rabanan, sois um grande sábio e o rabi
dos rabis." Lançou-me um olhar para se assegurar que eu tinha
entendido o jogo de palavras: ao acentuar as letras h, a, m e
r estava a insultar Losa, chamando-Lhe burro em hebraico.
Meu tio voltou-se, para se ir embora, mas o rabi chamou-o:
- Esperai um pouco! - lambeu os lábios como se saboreasse um
molho suculento -. Vim para vos fazer uma advertência. Eurico
Damas manda-vos dizer que vos livreis de pronunciar o nome
dele, ainda que seja a dormir, ou vos esfrangalha e faz
chouriços com os vossos restos. Será melhor não meter o nariz
em assuntos privados, tiozinho!
Senti faltar-me o coração. Damas era um cristão-novo
mercador de armas que recebera encomendas do Rei graças às
denúncias que fazia contra os seus semelhantes de antigamente.
Duas semanas antes, meu tio tinha irrompido numa reunião
secreta do tribunal judaico e exigido o julgamento dele por
ter afogado um recém-nascido, filho de uma florista que tinha
violado e com quem se recusara a casar. A investigação cessara
há uma semana, devido ao misterioso desaparecimento da
própria florista. O nome de meu tio deveria ter sido mantido
em segredo pelo tribunal rabínico, mas ao que parece alguém -
provavelmente o próprio Losa - o revelara a Damas.
- É tudo o que tendes para me dizer? - perguntou o meu
mestre.
- Espero que seja o bastante. Se não fosse a minha
intervenção, teria vindo ele próprio.
- Muito obrigado, ó grande sábio, ó rabi dos rabis -
respondeu meu tio com uma vénia zombeteira.
Losa encolheu o queixo como uma galinha, ficando a
observar-nos com ar
rancoroso mas conformado, como de alguém que perdeu uma
batalha mas que
não deixa de prosseguir a guerra.
Apressando o passo em direcção ao centro da cidade, para o
hospital, o meu
espírito devaneava em projectos para proteger meu tio de
uma enfiada de demónios cabalísticos e de gigantes bíblicos.
Provavelmente nunca hei-de superar tais
fantasias. E no entanto, ao atravessarmos o clamor do grande
mercado de peixe e do porto de Lisboa, elas pareciam-me
subitamente adequadas. Ao fim e ao cabo, meu tio tinha jurado
proteger-me enquanto fosse moço, assumindo a minha orientação
mística. Não implicaria isso uma promessa recíproca, de que
antes eu não tinha tomado consciência?
O guarda do Hospital de Todos-os-Santos a quem explicámos
a nossa missão informou-nos com orgulho que o fidalgo que
trouxera diego não era outro senão o Conde de Almira. O nome
não me dizia nada, mas a minha atracção pela sua companhia de
viagem levou-me a registá-lo a otiro na minha memória de Tora.
Uma monia ameninada conduziu-nos ao aposento onde se
encontrava Diego, um sítio escuro e baixo, a tresandar a
vinagre, âmbar e morte. Por cima de cada um dos doze catres
pendia a imagem sangrenta do crucificado. Através das cortinas
entreabertas de tecido amarelecido viam-se homens amarrados às
camas por tiras de couro, espreitando com os olhos em alvo e
sedentos de vida, envolvidos em ligaduras, fedendo como
estrume. Das portadas parcialmente abertas avistava-se a
Igreja dos Dominicanos do outro lado da praça.
Diego estava no último leito. Ao reconhecer os seus grandes
olhos escuros e o turbante cor de açafrão, sorri de alegria e
inquietação. Estava completamente diferente. O seu rosto
barbeado parecia de mármore branco, com marcas de cortes aqui
e ali. As papadas que antes se escondiam emprestavam à sua
face um ar grave, cauteloso. Subitamente, aparecia-nos como
aquele género de pessoas amáveis sempre prestes a dar
presentes, a amimar as crianças, mas que pagavam um preço por
não cuidarem de si próprios - o género de pessoa que talvez
ele tenha sido antes do exílio e do seu isolamento.
O corte no queixo tinha sido cauterizado e cozido. Quando
nos avistou, começou a ofegar e sentou-se. Involuntariamente,
voltou o rosto para a parede, como quem se prepara para
morrer.
Meu tio deteve-se, enquanto os seus olhos penetrantes
procuravam encontrar os de Diego. Empurrei-o ligeiramente e
ele avançou para o amigo, dirigindo-Lhe um sorriso
encorajador. De onde nos encontrávamos, podíamos ver que
estava a suar de febre. Rezei para que não fosse peste.
- Pareces melhor, o sangue deixou de correr - disse o meu
mestre.
- Não deviam ter vindo ver-me nesta figura - disse Diego,
voltando-se de novo para a parede e fechando os olhos.
- Podes começar a deixar crescer a barba outra vez, logo que
o queixo tenha sarado - observei.
- Estou-lhes agradecido por terem vindo, mas agora peço-Lhes
que se vão - murmurou.
Meu tio fez-me um aceno para obedecer. Quando cheguei ao
vestíbulo, meu tio estava sentado aos pés da cama de Diego. A
conversa sussurrada entre eles, provocava a meu tio gestos
furiosos, agitados. Diego escondia os olhos entre as mãos e
descaía tristemente a cabeça. Fui recitando orações enquanto
esperava por meu tio, que ao chegar suspirava de desânimo.
- Uma situação nada boa. Diego tem de sofrer um bocado.
- Pelo que vejo, ainda bem que nem todos estamos sujeitos
às restrições dos levitas - repliquei.
- Todos nós estamos sujeitos a influências externas. Ou nos
acomodamos ou temos de viver no deserto como um eremita. E
mesmo aí... - a voz de meu mestre decaiu, ao mesmo tempo que
coçava a cabeça -. Vamos embora desta masmorra - disse -.
Estou a Ficar com comichões no corpo todo.
- Talvez uns manuscritos o animassem - disse eu -. Podíamos
pedir emprestados aqueles tratados em latim que ele tanto
ambicionava e...
- Nada de livros! - disse meu tio, levantando as mãos como
a deter uma carruagem desenfreada.
No exterior, o ar quente do Rossio estremecia com um
cantochão monótono: a procissão diária dos penitentes
dirigia-se para os Paços da Ribeira. A luz do sol revelava no
olhar abatido de meu tio que a sua alma tinha sido perturbada
pelo desespero de Diego.
- A verdade não veio nua ao mundo, mas vestida com imagens e
nomes. E a mentira? Que roupagens vestirá a mentira? -
exclamou meu tio.
- As mesmas da verdade - disse eu -. Cabe-nos a nós
distingui-las.
- Pois é - concordou numa voz seca -. E serão todos os
crimes vistos por Deus?
- Quer dizer, se os moços que atacaram Diego serão punidos?
- perguntei.
- Se assim quiseres.
(Comecei a considerar a resposta que devia dar, quando meu
tio me apertou a mão:
- Desculpa, prefiro não falar mais nisto. Vamos dar o
passeio que tínhamos pensado.
- Mas não trouxe nada para desenhar -- repliquei.
- Desenha as aves na rua, memória de Tora, meu filho.
Passámos uma tarde agradável observando os nossos adorados
grous. Era de nos cortar o fôlego ver aquelas criaturas tão
grandes e desajeitadas, tão brancas, romper do azul como se
fossem peixas. A brisa acariciava-nos com a delicadeza de
pétalas e quando meu tio me disse que eram horas de voltar
surpreendi-me ao me sentir tão alheio ao correr do tempo.
Quando chegámos a casa, Cinfa e tia Ester estavam na cozinha
a preparar a nossa seder- da Páscoa e tinham espalhado por
cima da nossa melhor toalha de mesa uma infinidade de grãos de
arroz para a purificar. A casa rescendia com cheiros húmidos e
densos; um borrego magnífico assava lentamente no espeto da
lareira, largando uma gordura cheirosa que pingava com um
cicio sobre as brasas. Pelo seu aroma delicioso adivinhei que
tinha sido regado com a banha da
gordura capitosa que a cauda das ovelhas contém, um segredo
culinário que tia Ester tinha trazido da Pérsia.
- Que cheirinho divino! - disse eu.
- Oração de antes da refeição - zombou meu tio. E
esgueirou-se para a cave.
Peguei no almofariz, pilão, maçãs, nozes, tâmaras e mel e
fui para a loja; ia preparando o haroset entre dois fregueses.
Vendo que eu me ocupava da loja, minha mãe foi para a
cozinha ajudar Cinfa e tia Ester. Não havia grande movimento
até que me ocorreu a ideia de pendurar junto à porta as
bananas que recentemente nos tinham chegado de África. Talvez
fosse coincidência, mas de um momento para o outro a nossa
loja encheu-se de um mundo de gente. Passei toda a tarde
ocupado com as encomendas de última hora dos judeus que
preparavam secretamente a seder da Páscoa. Quando as nuvens
começaram a acender-se com a luz rósea e dourada que
anunciava o pôr do sol, estava exausto. Tranquei as portas,
puxei as cortinas e deixei-me ficar sentado em oração
silenciosa até que meu tio me chamou para a
cozinha. Estava com um aspecto magnífico com as suas vestes
brancas, o cabelo puxado para diante no seu penteado do
Shabat.
- A Reza passou na loja, por acaso? - perguntou numa voz
esperançada.
Minha prima Reza, a única filha ainda viva de meus tios,
tinha-se casado recentemente e ia passar as festas com a
família do marido.
- Não - respondi -. Era para passar? Pareceu-me que tinha
dito que não tinha a certeza se podia vir cá hoje.
- Foi só por pensar que talvez... - Pegou-me na mão e foi
com tristeza que continuou -. Já achei uma cara para o Aman
da minha Haggada. Talvez o nosso trabalho comece a avançar
mais agora.
Meu mestre andava a ilustrar uma Haggada para uma família de
judeus ocultos de Barcelona e enfrentava grandes dificuldades
para encontrar entre as pessoas que conhecia alguma que
pudesse servir de modelo para a iluminura de Aman. Mas porque
estaria triste? Seria a ausência de Reza? Antes que Lho
pudesse perguntar, começou a abençoar-me. Abracei-o e, pela
primeira vez, que me lembre, ele deixou-se abandonar à minha
afeição. Teria merecido da parte dele uma maior confiança
nestes últimos dias? Subitamente possuído da sua força
resoluta, como se tivesse bebido da minha energia e cuidados,
beijou os meus lábios e agarrou-me pelos ombros.
- Estamos na Pessá! A festa da Páscoa da Passagem! -
exclamou num murmúrio. Trocámos um sorriso exuberante.
Cinfa e Judas puseram a mesa. A travessa de cerâmica cor de
açafrão que o nosso vizinho Samir tinha feito para nós estava
enfeitada com cilantro, alface, ovos assados e um osso de
borrego grelhado, que tinham um valor simbólico nesta
refeição. Com a aprovação de tia Ester, acrescentei uma
colherada do meu haroset, representando a argamassa com que
os israelitas, quando escravos, tinham construído túmulos,
palácios e pirâmides no Egipto. A nossa maua estava debaixo
de um guardanapo de linho. O cálice de prata, que
tradicionalmente se punha na mesa para Elias, presidia a uma
ponta, junto do lugar de meu tio.
Como descrever esta primeira noite da Páscoa? As palavras e
rostos tranquilos? A alegria estonteante? A tristeza pelos que
nos tinham deixado? Ocupámos os nossos lugares unidos pela
aura comum dos preparativos. Meu tio, como sempre, era o
nosso guia no ritual. Mesmo sendo a Páscoa uma festa que tem
o centro na recordação, uma rememoração da história de como
Deus retirou os judeus da escravidão, possui também uma
essência secreta. No interior do corpo da Tora, encolhida como
uma fénix no ovo, esconde-se a história da jornada espiritual
que todos nós podemos fazer, da escravidão para a
bem-aventurança. A Haggada da Páscoa é um sino de ouro que ao
repicar nos diz: "Lembra-te que a terra Prometida está dentro
de ti!"
Foi portanto meu tio, no seu papel de nosso guia, quem abriu
a porta inicial, a mais sagrada, das festas, entoando uma
bênção do primeiro dos quatro copos de vinho que de acordo com
a tradição bebemos. ,Na presença dos seres que nos são
queridos e de todos os amigos, tendo perante nós os símbolos
do júbilo, reunimo-nos para a nossa celebração sagrada" -
cantou meu tio em hebraico, erguendo a sua voz suave como um
eco enternecido do apelo da trombeta com que costumava iniciar
o ritual nos tempos em que não temíamos os denunciantes
cristãos. Depois de repetir os versos em português para que
Judas, que ainda andava atrasado nas lições de hebraico,
pudesse compreender, tio Abraão prosseguiu em vernáculo: "Com
a família de Israel, os nossos anciãos e os nossos filhos,
unindo o passado com o futuro, respondemos à chamada divina à
prece. Revivendo a nossa história contada a todos os povos,
cujo final brilhante está ainda por realizar, reunimo-nos para
observar a Páscoa, como está escrito..."
As nossas vozes entrelaçaram-se para formar o tecido unido
da resposta: "Deves guardar a Festa da maua, pois nesse mesmo
dia Eu trouxe os teus pais do Egipto. Deves observar este dia
através de geração em geração como uma prática para todos os
tempos."
Minha mãe acendeu na lareira uma candeia e pouco depois
havia uma chama a dançar nos candelabros colocados a cada
ponta da mesa. O passado e o presente ligavam-se. Éramos os
israelitas à espera de Moisés no Sinai, assim como a mesa,
vestida de branco, se tornara no nosso altar e a cozinha no
nosso templo no deserto.
Meu tio, ao mesmo tempo que ia distribuindo fatias
fumegantes de borrego por cima das nossas mauas, ia
comentando que cada letra do alfabeto hebraico é governada por
um anjo e que são os anjos, reunidos pelas nossas palavras
escritas e faladas, que realizam os prodígios que tanto
maravilham o comum dos mortais.
As nossas orações e histórias possuíam indubitavelmente uma
graça alada, essa noite. E no entanto como são frágeis os
anjos. Bastou um momento para que a sua magia se dissipasse.
Cinfa tinha ido abrir a porta do pátio a Elias, o profeta,
cujo espírito, dizia-se, entrava em todas as casas durante a
Páscoa. Com a lufada de ar fresco que irrompeu, chegaram até
nós gritos roucos soando ao longe. Meu mestre deu um salto: os
gritos eram em hebraico. De novo, ecoou um brado distante.
Seguiu-se o silêncio.
- Que seria? - perguntou minha mãe.
Meu tio estava pálido. "Nada" - disse de modo ausente, como
se possuído por uma visão. E durante o resto da refeição não
pronunciou um único som, a não ser para encerrar a cerimónia.
"Para o ano em Jerusalém" - eram as palavras do eterno
regresso com que sempre concluíamos, mas caíram vazias entre
nós.
No dia seguinte, ao cantar do galo, um recado
misteriosamente atirado para o nosso pátio respondia à
pergunta de minha mãe. Em código novo-cristão rezava:
"Dezasseis andorinhas não regressaram ao ninho na noite
passada e foram apanhadas pelo Faraó. O teu passarinho, Reza,
contava-se entre elas." Como viemos a saber, minha prima Reza
e todos os outros convivas da sua seder secreta tinham sido
presos na noite anterior e levados para a cadeia da cidade.
Quem os terá denunciado. E, meu tio? Será que o presenciou
através de alguma janela mística ou terá simplesmente
pressentido que alguma coisa de terrível se passava?
Vendo-me ler o recado essa manhã, minha mãe anunciou-me:
- Os tios foram à procura dos nobres cristãos-novos que
servem na corte. Estão esperançados que algum deles possa dar
uma ajuda.
Estávamos no Shabat, o dia antes da segunda noite sagrada da
Páscoa, e como naquele tempo era profundamente devoto, resolvi
contribuir para a ráPida libertação de Reza entoando cânticos
ao longo de toda a manhã e toda a tarde. Mas de nada valeu;
pouco antes do crepúsculo, meus tios regressaram a casa
cobertos de poeira e de desânimo.
- Um dos cortesãos judeus vai tentar intervir - disse meu
tio sem convicção, coçando a cabeça furiosamente -. Os
demais... vertem lágrimas e murmuram palavras falsas.
Na noite seguinte, Reza ainda continuava presa e meu tio
completamente desfeito veio ter comigo à cave e pela primeira
vez mencionou a possibilidade de sair de Portugal.
- Se te pedisse para deixar para sempre este país,
aceitavas? - perguntou.
- Aceitava, se tivesse de ser - respondi eu.
- Está bem. Mas a tua mãe... será que podia ir?
- Tem medo. Um inimigo que já conhecemos é mais fácil de
suportar que um outro desconhecido.
- Certo. E se a tua mãe não partir, duvido que Ester o faça.
Ou Reza, agora que casou e que quer criar uma família. Oxalá
conseguíssemos que ela voltasse para casa.
- É isso que o traz tão transtornado? Quer ir embora daqui?
Mas se tivesse pedido que...
Meu tio fez um gesto a evitar as minhas perguntas e começou
a entoar a oração da Rainha Ester, versos que assumiam para
nós um especial significado, pois também ela se vira forçada a
esconder o seu judaísmo. "Ajudai aquele que não tem outra
ajuda senão o Senhor. Pois tomarei a minha vida nas minhas
mãos..."
As mãos de meu tio tinham-se cerrado num punho convulso e os
lábios tremiam-lhe. Erguendo-me num pulo, poisei as mãos nos
seus ombros. Os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. "Pobre
tio" - pensei -, "Portugal está a arrastá-lo até aos limites
da sua resistência física."
- Os judeus da corte hão-de conseguir a libertação de Reza -
disse eu -. Nessa altura, se quiser, havemos de Pensar em ir
embora daqui. Havemos de arranjar maneira de os convencermos
a todos. Mas agora tem de descansar. Vá, vamos para cima.
Pode apoiar-se em mim até sairmos do deserto.
- Vamos ficar aqui - disse ele -. Faz-me esse favor. Anda
comigo até ao tapete de orações. Aquele ambiente ajuda-me -
disse ele, ao mesmo tempo que acenava a aceitar o meu apoio.
Ficámos sentados em silêncio, enquanto limpava os olhos com
a manga das suas vestes. Pondo a mão na minha cabeça, murmurou
numa voz quebrantada:
- Onde tens a fita de pergaminho que te dei, com os nossos
nomes?
- Trago-a ao peito, para maior segurança.
- Está bem - sorriu meigamente -. Faz-me bem saber que a
trazes contigo.
- Oiça, meu tio, o que quer que seja que... - disse,
agarrando-lhe o braço.
Impôs-me silêncio, pondo-me a mão na fronte.
- És um herdeiro condigno - disse -. Apesar de poder ter
ralhado contigo, nunca lamentei o ter-te tomado como aprendiz.
Nunca. Quando tiveres vivido mais e posto mais em actos as
tuas orações, hás-de tornar-te num grande artista de
iluminuras. Teu pai uma vez disse-me: "No coração do meu Beri
mora um leão da Cabala." E assim é. É certo que é uma bênção
trazer em ti um tal leão. Mas um animal feroz, ainda que
nascido da Cabala, pode por vezes tornar-se incómodo. Ouve
pois atentamente. Até agora, não havia motivo para
preocupações, pois tens levado uma vida de estudo. Mas
quando saíres para o mundo, quando as tuas acções na Esfera
Terrena tomarem o lugar a que têm direito ao lado da oração,
podes ter de enfrentar algumas dificuldades. Nunca hás-de ser
capaz de usar máscaras como nós. Cada vez que tentares enfiar
uma, hás-de ouvir o rugido do leão dentro de ti. É por isso
que sentias aquele desespero tão grande na altura da
conversão. Foi por isso, talvez, que Deus te premiou com uma
visão. A vida não te será fácil. Talvez venhas a ter de viver
apartado dos demais. Ou que suportar os seus juízos
comezinhos. Mas não desistas e abraça-te ao leão dentro de ti.
Compreendes o que te digo? -. E tendo eu acenado que sim,
continuou: - Então basta de palavreado. Ai do guia espiritual
que contribui para encher de orgulho o seu aprendiz. Estamos a
ser atraiçoados por todos os lados e se queremos sobreviver
temos de trabalhar muito. Isso é mais importante que o
talento natural ou a inclinação. O teu leão precisa de
trabalhar!
Sentámo-nos à escrivaninha e enquanto desenhava Aman e
Mardoqueu, começou a analisar-me com um olhar enternecido.
Senti que percorria carinhosamente a minha figura como para
se lembrar que, apesar do cativeiro de Reza, havia ainda algo
de bom e de belo no mundo.

No dia seguinte, domingo, momentos depois de os sinos da Sé
terem soado as nonas, ouviu-se bater na porta que dava para os
aposentos de minha mãe. Ela bradou por mim. Saí a correr da
cave, empunhando absurdamente um pincel de arminho. Deparei no
quarto com um escravo negro, belo como a noite. Usava um
casaco de seda azul fina e calças soladas amarelas. Segurava
uma mensagem selada com uma cera vermelha espessa. "Da parte
de Dom João" - disse num português hesitante, referindo-se a
um dos judeus da corte a quem tínhamos recorrido a pedir
ajuda.
Tia Ester apareceu a correr, tendo imediatamente
compreendido. Fez-me sinal para aceitar a mensagem e, cobrindo
a boca com as mãos enclavinhadas, começou a murmurar em persa.
Peguei no recado e abri-o. "Seduzimos o Faraó com ouro. As
andorinhas estarão em casa antes do cair da noite", rezava o
texto.
Enquanto eu insistia com o escravo para levar algumas passas
que tinham sobrado das minhas entregas de fruta essa manhã,
tia Ester saiu a anunciar as novas a meu tio. Quando entrei na
cozinha encontrei-os abraçados.
- Muito gostava de lá estar quando ela saísse da cadeia -
dizia meu mestre.
- Vou aquecer um bocado de borrego para ela - disse tia
Ester, acariciando-o no rosto. De repente, fitando-o,
apontou-lhe um dedo ameaçador -. Mas assim que chegares a
casa, vais dormir!
Meu tio cerrou os olhos e assentiu como um rapazinho.
Voltando-se para mim, disse-me:
- Beri, queria que me fizesses dois recados -. Tirou um
manuscrito da algibeira e estendeu-mo -. Primeiro, entregar
este Livro de Salmos". Sabes onde vive o fidalgo que o
encomendou? - acenei afirmativamente e ele prosseguiu --. Meti
no meio um recado - fixou-me com um olhar grave -. Só o
entregas ao dono da casa. Só a ele! E vê que ele o leia diante
de ti - e prosseguindo, num tom mais ligeiro, acrescentou: -
Depois passa pelo Sansão Tijolo e traz algum vinho casher -
passou-me um rolo atado com uma fita vermelha -. Esta carta é
para ele.
Saímos juntos de casa, meu tio e eu, mas ele virou para
norte, em direcção à cadeia, ao passo que eu rumava para
ocidente. Demos um beijo. Nada mais. Tivesse eu adivinhado que
depois dos acontecimentos que se iriam seguir não mais poderia
sentir estar a viver num mundo sob o olhar de Deus e nenhum
homem ou demónio me haveria de impedir de agarrar meu tio e
Lhe implorar que usasse todos os seus poderes para mudar o
futuro. Teria ele podido, com alguma mistura de pós e poções,
criar um destino diferente para nós? Como receio bater à minha
porta interior e ouvir a resposta!
Para começar fui entregar o Livro de Salmos, mas não o
fiz porque o dono da casa não estava. Depois, ao sair de
Lisboa para comprar o vinho, Deus abençoou-me com a ideia de
comprar, para a nossa celebração, ;alheiras, que eram um
enchido que tinha sido inventado na época da conversão forçada
para salvar os nossos pescoços e as regras da dieta judaica.
Embora semelhantes no gosto e na forma aos enchidos de carne
de porco, eram feitas com pão, especiarias e carne fumada de
perdiz, codorniz ou galinha.
Deixei a cidade pela Porta de SantAna e passadas duas
horas, a julgar pela altura do sol, estava a bater à porta da
taverna de Sansão Tijolo. Como ninguém respondia, dei a
volta até à porta da adega. Estava aberta. Entrei e peguei
num barrilito de vinho. Não tendo nem tinta nem pena para
escrever, limitei-me a deixar o dinheiro em cima da mesa
perto da porta. À guisa de sinais, deixei um pouco de maua
que trazia na algibeira - Sansão iria entender que era eu
quem tinha passado e levado o vinho.
Eram umas boas cinco milhas até Lisboa e no caminho de
regresso com o meu fardo não demorei muito a ficar todo sujo
de suor e poeira. Por duas vezes, antes de chegar à cidade,
deitei-me a repousar debaixo das oliveiras tremulantes,
aproveitando a sombra que o entardecer alongava. Ao chegar a
um pinhal, cerca de meia milha da Porta de SantAna, tirei os
sapatos para sentir os picos da caruma seca nos pés. No meu
bornal, quando procurava um bocado de ynua, para trincar,
voltou-me às mãos o recado que tinha caído do turbante de
Diego. Desenrolava-se em forma de Estrela de David e tinha
escrito: "Isaac, Madre, vigésimo nono de Nisan." Estávamos
então no vigésimo quarto.
Nesse momento, a mensagem não me chamou a atenção.
Pelos meus cálculos, seria a quarta hora depois do meio dia
quando avistei de novo os muros de Lisboa. Teria passado uma
hora depois das nonas, pois enquanto caminhava tinha ouvido os
sinos das igrejas das aldeias vizinhas chamar os fiéis para as
orações. Ao entrar na cidade, chegou-me um cheiro
penetrante, enfumado. um vago murmúrio como de uma multidão
numa arena distante. Estranho: as casas de portadas cerradas,
as lojas fechadas, como se fosse já noite. Em meu redor as
ruas estavam todas desertas, cobertas pelas sombras do
entardecer. Fui avançando, sentindo os pés na calçada. Ao
passar as muralhas de granito do castelo mourisco, dois moços
jornaleiros correram para mim brandindo foices. Ia a correr,
mas apercebi-me que seria inútil. Um deles encostou a lâmina
curva ao meu pescoço. :a mão segurava pelos cabelos a cabeça
decapitada de uma mulher, gotejante de sangue. Não a
reconheci.
- És marrano? -- perguntou, para saber se eu era um
judeu convertido. O seu olho direito de um branco leitoso,
esbugalhado, reflectia o meu medo com um brilho maldoso. -
Porque desta vez vamos dar cabo de todos os marranos!
O meu coração batia desesperadamente numa prece pela vida.
Abanei a cabeça e estendi-lhe a minha sacola.
- Olha!
Passou-a ao seu comparsa barbudo, que espreitando para
dentro e farejando-a, rosnou: "Chouriços!" e devolveu-ma.
Enquanto eu agradecia a Deus, o cegueta baixou a foice e
perguntou: "Isso é vinho?" Acenei que sim e ele tirou-mo das
mãos. A minha respiração tornou-se ansiosa e hesitante.
- Aquele fumo... onde é?
- Uma pira sagrada no Rossio. Os dominicanos querem fazer
chegar até Deus um sinal com as chamas da carne dos judeus.
O temor pelo destino do meu povo a apertar-me as entranhas
impediu-me de fazer mais perguntas. Os dois homens beberam
até fartar e depois fecharam o batoque. Eu não podia desviar
os olhos da cabeça da mulher. Os olhos não pareciam sem vida.
Que via neles então? O alheamento deste mundo? Ao pegar no
barril que me estendiam, percorreu-me o peito um calafrio como
se provocado por um espírito fugitivo. O barbudo levantou a
cabeça decapitada, lambendo-lhe as faces como se saboreasse o
suor de uma amante. Puxando a corda que lhe segurava as
calças, expôs as suas imundas partes sem circuncisão. Com os
seus dedos cheios de porcaria mantinha aberta a boca
enegrecida da mulher. segurando-a à altura da cintura. E
começou a fazer algo de inenarrável. O outro observava-o, ao
mesmo tempo que comprimia contra si a mão espalmada. Eu
não ousava fechar os olhos, mas virei a cara. Quando
cessaram os seus grunhidos, voltou a apertar as calças e
exclamou:
- Vê lá por onde andas. Há quem confunda as pessoas com
judeus!
Quando se foram, agachei-me debaixo de um toldo. O meu
estonteamento foi diminuindo. Uns goles de vinho dissiparam um
pouco o gosto repulsivo, ácido que sentia na boca. Andariam à
caça de todos os antigos judeus?
Desatei a correr pelas escadarias e becos de Alfama abaixo
até à Rua de São Pedro. A cancela do pátio estava arrancada,
no meio da rua, toda dobrada e torcida. O nosso burro tinha
fugido. A porta da cozinha escancarada. Precipitei-me para
dentro de casa, que parecia um cenário de uma debandada. O
silêncio avolumava-se à volta do meu olhar. Da lareira
adormecida mais não restava que o borralho, na mesa repousavam
duas taças. Junto a uma delas, via-se uma maua partida ao
meio. O alçapão da cave continuava tapado pelo habitual
tapete esfarrapado. "Tio! Mãe!" - gritei. Estupefacto,
confuso, subi ao meu quarto para encontrar uma cena de camas
pisadas e armários pilhados. Espreitando para a loja, deparei
com as barricas derrubadas. As azeitonas derramadas formavam
um tapete verde e preto que saía pela porta fora até à Rua da
Sinagoga.
O quarto de minha mãe estava vazio, intocado. Passando a mão
pelo talismã de pergaminho em forma de águia que ela guardava
junto à almofada, pensei: "Na cave. Devem estar todos
escondidos na cave."
Puxei o tapete de cima do alçapão devagarinho para não
romper o cordão que permitia voltar a pô-lo no sítio lá de
dentro. Depois, enfiando-me pela abertura, desci as escadas
até ao patamar. A porta da cave estava trancada. "Sou eu" -
gritei junto da linha escura entre a porta e o umbral. "Tio,
abram!" Silêncio. Bati à porta. "Sou eu" - bradei. "Mãe, ou
quem aí estiver... sou eu!" Quando olhei para cima, para a
cozinha silenciosa, as minhas pernas começaram a tremer sob
o peso da ansiedade. Desatei a bater desesperadamente à porta,
a gritar. Não houve resposta.
Estava certo que nada podia ter acontecido a meu tio, homem
de prodígios, o mestre da Cabala capaz de tocar fugas com a
Tora e o Talmud e o Zohar. Ninguém poderia matar um tal
conhecedor do místico com armas fabricadas pelo homem. Mas
quanto a Judas e Cinfa... E se eles estivessem lá dentro, tão
aterrorizados que não fossem capazes de gritar? Ou estaria a
cave vazia? Teriam fugido? Talvez o meu mestre tivesse um
modo secreto de trancar a porta do lado de fora. Para proteger
os livros. Era isso, de certeza!
Seria uma premonição? Ou mero raciocínio? Senti-me abalado
por um tremor ao me ocorrer a possibilidade de que algo de
horrível pudesse ter acontecido a meu tio. Fincado na menora
de mosaico, atirei-me à porta num repente tentando
arrombá-la com quantas forças tinha, até que a tranqueta
metálica saltou da madeira.
Entrei.
Um cheiro intenso, acre, de alfazema e excrementos,
invadiu-me as narinas. O meu olhar fixava estarrecido dois
corpos nus cobertos de sangue. Meu tio e uma moça. Jaziam a
curta distância um do outro, ela de lado, ele de costas. As
suas mãos quase se tocavam. Como se os seus dedos entrelaçados
se tivessem separado ao mergulharem no sono.

Capítulo III

ASSIm que os avistei, o ar faltou-me de repente e todo o
meu corpo recuou. Precipitei-me pelas escadas abaixo para
aquela caverna tépida rodeada de ruídos abafados e de luz
vacilante, respirando ao ritmo da oscilação das paredes. Ali
estava meu tio, nu. Um véu de sangue envolvia-Lhe o peito. A
moça a seu lado, também sem nada que a cobrisse, estava
igualmente ensopada em sangue.
O fedor nauseabundo que me envolvia parecia humedecer-me
os olhos. Gemendo, ajoelhado junto a meu mestre, peguei-Lhe
no pulso, esperando ainda uma palpitação, mas em resposta
nada mais havia que um frígido silêncio.
Os arruaceiros cristãos tinham-no roubado à vida!
O meu olhar passava de um corpo ao outro, como se
observasse alguma escrita desconhecida. Teriam eles dormido
carnalmente? Quem seria ela?
Traços acastanhados riscavam o pescoço e o torso de ambos.
Agachei-me junto à cabeça de meu tio. No pescoço notavam-se
duas pontas de pele arrancada de um talho ainda húmido de
sangue.
"Que alguém me acuda", - pensei. "Meu Deus, por favor,
ajudai-me!".
Um terror gélido percorreu-me as tripas fixando-se contra o
peito quando tomei consciência que estava só, que nunca mais
teria comigo o meu mestre. Senti subir dentro de mim uma onda
de náusea e vomitei em cima das lousas do pavimento até sentir
um líquido acre pingar do nariz.
Como aconchego, cruzei os braços sobre os ombros. "Não tocar
em nada" - pensei. "Pelo menos até que tudo se imprima na
minha memória de Tora como se fosse uma cena bíblica. Não
posso esmorecer!"
Havia manchas vermelhas no tapete de orações, embebido na
seiva vital que eles tinham vertido.
Mas a porta estava firmemente trancada. Como teria saído o
assassino?
Ou estaria ainda cá dentro?
Pus-me em pé de um salto, peguei no meu punhal. Segurando-o
diante de mim como uma candeia no escuro, voltei às escadas e
seguidamente girei em redor. Sentia as pernas trementes com o
silêncio da ansiedade.
Mas os azulejos das paredes e os ilhós das janelas, os
bancos e as escrivaninhas devolviam o meu olhar sem o mais
pequeno estremecimento de emoção.

A sala estava vazia, como se fosse oca, como a caixa do
peito de um animal a quem o coração tivesse subitamente
deixado de bater.
A imagem de meu tio dando-me a fita de pergaminho gravada
com os nossos nomes veio-me ao espírito envolvida pelo
silêncio que se segue aos cânticos de Inverno. "Vê-se que ele
devia saber que o Anjo da Morte se aproximava" pensei. "Por
isso me avisou que estava próxima a nossa separação."
De costas contra a parede da cave que dá para sul,
encostei-me firmemente, sentindo a imensidão da minha perda,
sem despregar os olhos dos dois
corpos.
Hoje, passados que são vinte e quatro anos, todos os
pormenores continuam a ser tão nítidos para mim como as
primeiras linhas do Génesis.
Meu mestre jazia estendido de costas, a cabeça ligeiramente
voltada para a esquerda numa atitude solene e repousada. A
moça estava deitada sobre o lado esquerdo, separada dele a
distância de um braço.
Meu tio ficava com os pés no centro do tapete circular, a
cabeça tocando quase a orla. Os olhos abertos, mais escuros e
vítreos que em vida, fixavam o vácuo; tinha sangue espalhado
nas faces e nos tufos de cabelo prateado acima da orelha
esquerda. O braço esquerdo caído para o lado, a palma da mão
voltada para cima, os dedos curvados. O braço direito,
todavia, parecia esticado em direcção à moça, os dedos a duas
escassas polegadas da mão estendida dela.
Mas se, momentos antes da morte, tivesse procurado tocá-la
para de algum modo a confortar, não deveria então ter a cabeça
e o corpo voltados para o lado direito para assim alcançar
mais longe?
Concluí que já devia estar morto quando ficou nesta posição
e imaginei um frade dominicano encapuçado segurando-o por
trás, despindo-o, talhando-Lhe a garganta e ele caindo-Lhe aos
pés, o sangue salpicando-lhe o peito. Seguidamente, por
qualquer oculta razão, deixando descer o corpo devagar, até
com respeito, para o depositar no chão. O braço direito teria
acidentalmente ficado estendido para a moça. Ou teria sido
posto nessa posição para criar a aparência de ele estar a
tentar suavizar-Lhe a agonia. E porquê? Seriam os homens que
lhe roubaram a vida artistas da morte?
As ancas de meu tio estavam sujas de excrementos, que,
misturados com sangue, ainda que não pisados, manchavam também
as franjas do tapete de orações junto do vaso do Shabat, de
murta e alfazema.
O cheiro fétido que pairava na sala era um atroz casamento
entre as flores e a putrefacção.
A moça não teria mais que vinte anos. Era magra e pálida, de
fraca figura. Os cabelos castanhos compridos estavam
empastados com crostas de sangue. Teria uns cinco pés de altura, seios
pequenos e firmes, brancos de mármore e igualmente raiados de
sangue.
Era tão raro poder contemplar o corpo de uma mulher
desembaraçado de roupagens que o efeito que me causavam as
suas formas graciosas e sombras profundas mais contribuia para
me distanciar do presente. Meio entorpecido e ainda incrédulo
fixava-a como que esquecido de todo o meu passado.
As coxas e os artelhos estavam sujos de excrementos. Tal
como meu tio, também ela apresentava as mesmas duas pontas de
pele arrancadas de um corte comprido na garganta, mas parecia
ter sido tratada com menos cuidado e, assim que a lâmina
libertara a sua alma do seu envoltório, devem tê-la atirado
para o chão como trepadeira de modo pesado e repentino,
batendo com o nariz numa das plantas de alfazema; junto à sua
cabeça via-se um dos vasos partido e havia terra e cacos de
barro espalhados até às escadas. Tinha o nariz partido,
grotescamente torcido para o lado e com crostas de sangue.
Deitada sobre o lado esquerdo, tinha a cabeça enfiada na
axila, como se fosse a tapar os olhos. Estendia o braço
esquerdo em direcção a meu tio; o direito parecia deslocado,
desajeitadamente atrás das costas. As pernas estavam
ligeiramente encolhidas, como quem procura refugiar-se no sono
protector da infância.
Dei por mim a fixar uma fiada de pisaduras em torno do
seu pescoço, algumas delas umas duas polegadas acima do golpe
onde o sangue já formara crostas. Assemelhavam-se a nódoas
provocadas por um fio de pérolas e, a princípio, sem qualquer
motivo, cheguei mesmo a pensar que tinham sido causadas por
algum colar de atavio.
Reparei então em meu tio, que exibia as mesmas nódoas
escuras. As pisaduras rodeavam o pescoço pouco acima da sua
maçã de Adão.
Tê-los-ão estrangulado com uma corda com nós?
Aninhei-me junto da moça, pegando-lhe na mão esquerda.
Estava gelada, mas não rígida ainda. Trazia no indicador uma
aliança de casamento de fios de ouro entrançados. Retirei-Lha
e enfiei-a na minha bolsa. "Oxalá o marido esteja ainda vivo
para a poder guardar", - murmurei.
Foi o som da minha própria voz que subitamente rompeu as
trevas da minha incredulidade inicial: o meu sobressalto
tornou-se audível ao compreender que lhes tinham cortado as
gargantas exactamente abaixo do anel da traqueia, tal um
shohet ao matar um animal segundo o ritual dos talhantes
judeus.
Teria algum cristão-novo traiçoeiro guiado os seguidores do
Nazareno até ao meu tio e logo cortado a sua garganta?
Imaginei um frade dominicano a amotinar a multidão para
penetrar na cave, o meu mestre dominado e atirado para as mãos
de um mercenário judeu como um cordeiro para um sacrifício.
Dentro de mim ecoava o nome de Eurico Damas, o comerciante
de armas. Ainda há pouco, o Rabi Losa nos tinha transmitido as
suas ameaças de morte contra meu tio: "Livrai-vos de murmurar
o seu nome, a dormir que seja..."
Terá Damas recebido dos dominicanos uma bolsa de soberanos
de ouro para revelar os esconderijos dos membros mais
considerados da nossa comunidade? Terá ele inscrito o nome de
Abraão Zarco no topo da sua lista?
Mas poderia Damas ter matado como um shohet?
O meu olhar foi atraído pelas escadas. A luz escorrendo do
alto fazia brilhar os azulejos que enfeitavam a parede a
ocidente, revelando-me o desenho de uma estrela de doze pontas
que parecia esconder um segredo. Estrelas. Luz. Desenhos.
Segredos. Anos de aprendizagem da Tora e do Talmud tinham-me
adestrado a perceber quando o meu espírito se desviava do
caminho do raciocínio, fosse ele grego ou judeu, e o meu
espírito procurava agora um desenho nos azulejos que o pudesse
reconduzir. Fixando as volutas brilhantes de azul, branco e
dourado, comecei a murmurar a palavra azulejo" até o
significado da palavra se desvanecer, até nada mais existir
senão os meus olhos fixos na superfície luzidia. Graças à
libertação que tal vazio proporciona, foi como uma revelação
que me fez cair de joelhos quando compreendi que meu tio não
podia ter sido roubado à ida por arruaceiros cristãos: o
alçapão estava fechado, o velho tapete persa estava no sítio.
Embriagados como estariam pelo sangue judeu que ainda lhes
aqueceria as mãos, teriam debandado daqui destruindo tudo que
estivesse à vista. A nossa cave haveria de parecer um
matadouro!
Olhei em redor certificando-me que a sala não tinha sido
pisada por pés cristãos. As escrivaninhas e o armário do
material pareciam intactos. De todos os móveis, apenas o
espelho acima da escrivaninha de meu tio exibia uma mancha de
sangue. Do topo da moldura descia um Fio de sangue acastanhado
através da superfície côncava.
Teria o assassino segurado com a mão manchada de sangue a
moldura do espelho para mirar a sua imagem distorcida? Ou
seria verdade a lenda do Espelho que Sangra.
De todo o modo, nenhum cristão aí penetrara; tinham sido
ludibriados na sua busca pela entrada secreta do alçapão.
"Tão-pouco aqui entraram talhantes judeus", - concluí
interiormente. Nenhum deles conhecia a existência da nossa
entrada secreta. Nem Eurico Damas poderia ter conhecimento
dela. Ou então o alçapão teria ficado aberto. Seria possível
que meu tio fosse descuidado a tal ponto?
Coloquei a palma da minha mão sobre o seu peito, como à
procura de uma resposta. Um ténue resíduo de calor paralisou a
minha respiração. Examinando-o para ver se teria outros
ferimentos, apenas descobri uma ferida escurecida no ombro
esquerdo, com um ligeiro inchaço em torno. Sentia nos dedos a
sua pele inteiriçada, como couro, mas retendo ainda um
terrível traço da ligeireza da vida.
Não me era difícil calcular que não decorrera muito tempo
depois da sua morte, talvez pouco antes que fossem passadas
quatro horas depois do meio dia. E que teria havido uma curta
contenda.
Agarrei a sua mão direita, a da bênção e da
iluminação, para observar os poros e as linhas, como para
decifrar a escrita de um pergaminho antigo. Subitamente, pela
primeira vez na minha vida, pude sentir a presença de Deus a
abandonar o meu corpo. Rezei para que o véu de sangue que
cobria meu tio não passasse de um sonho. Contei até cinco, o
número de livros da Tora, e voltei a olhar... O ar jorrou-me
da garganta como se um punho se tivesse fechado. Não conseguia
olhar para meu tio. E comecei a soluçar: soluços pungentes,
profundos, intermináveis.
Quanto tempo chorei? O tempo deixa de contar com a tensão de
tais emoções.
Assim que a bênção do silêncio de novo caiu sobre mim,
sentei-me e fiquei ali a balançar-me de trás para diante.
Lembrei-me de um gaiato surdo e cego que uma vez vira na rua a
balançar-se desta arte. Compreendia agora porque o fazia: o
desamparo e a solidão podem tornar-se tão grandes, tão fora de
quaisquer limites, que o nosso corpo pode ser levado a buscar
consolo na graça do seu próprio movimento.
Tornando a mim, surpreendi-me segurando na mão um caco do
vaso quebrado. Sentei-me ao lado do peito de meu mestre.
Rasguei a minha camisa e comecei a limpar o sangue da sua
máscara contorcida. Os meus lábios invocavam o seu nome como
num encantamento. Reparei no seu xaile ensanguentado enrolado
junto a uma das plantas de murta e cobri os ombros com ele.
Como uma recordação. De quê, não o poderia dizer. Sentado, de
peito nu, a tiritar, ia limpando com a minha camisa os seus
dedos da mão direita. Retirei-lhe o anel de sinete; a coroa de
Deus tinha apreendido o brilho esmeralda do interior dos olhos
de meu mestre e eu queria comigo aquela luz para sempre.
Depois de ter murmurado um kadish por ele e outro pela moça,
peguei na sua mão esquerda para a começar a limpar. Reparei
numa linha presa na unha do polegar. Erguendo-a à altura dos
olhos, vi que era de seda negra. Um nome pairou hesitante à
borda dos meus ouvidos, desenhado pelo sussurro dos meus
lábios: Simão Eanes, o importador de tecidos.
Era um amigo nosso, que meu tio resgatara à Inquisição uns
anos atrás em Sevilha, e que era membro do grupo de iniciados.
As suas mãos surgiam perante mim, apertadas numas luvas de
seda negra que minha mãe tinha feito com os restos de um
tecido de Dona Meneses para proteger dos calos as suas mãos
delicadas. Tinha só a perna esquerda - a direita tinha-lhe
sido amputada na sua juventude - e caminhava pesadamente
apoiado em muletas de pau.
Viria aquela linha das suas luvas? Como membro do grupo
conhecia obviamente a existência da cave e a localização do
alçapão. Mas será que um homem só com uma perna teria a força
e o equilíbrio necessários para matar como um shohet?
Enfiei o fio na minha bolsa e examinei as unhas de meu
mestre à procura de vestígios de pele ou de cabelos. Nada.
Ao examinar a face, reparei que nos seus lábios os capilares
se tinham rompido e formavam uma teia irregular. Limpei-lhe
as pálpebras fechadas, escuras, manifestamente feridas.
O sentir o xaile ensanguentado de meu mestre sobre os
ombros fez com que o meu olhar percorresse as nossas
escrivaninhas, o lugar das nossas ocupações terrenas. As
chinelas e a túnica branca estavam no chão. Dirigindo-me para
aí, reparei que uma das chinelas estava virada. outra estava a
uma distância de uns bons quatro pés. Tudo indicava que tinham
sido atiradas de longe descuidadamente.
Todas as outras roupas estavam profundamente tintas de
sangue. Tinham-no matado com elas vestidas e só depois
desnudado.
Pus-me às voltas pela cave à procura de outras peças de
roupa, detendo-me apenas por momentos diante do meu reflexo
atrofiado no espelho de Sangue, - como parecia feio e
desprezível - uma criatura de braços enelhados e olhos
viperinos, com o cabelo emaranhado como uma górgona.
Não encontrei em toda a casa nada que pertencesse à moça.
Nem uma blusa, nem um lenço, nem uma simples fita.
Uma possibilidade cruamente iluminada pela vergonha
obrigou-me a fechar os olhos. Ultimamente meu tio andava
profundamente perturbado, por razões que nunca explicou muito
bem. E se aquela moça estivesse na origem dos seus cuidados?
Se fosse uma amante que tivesse vindo informá-lo que seria
aquele o último dos seus encontros secretos? Ou estivesse
grávida e lhe apresentasse um ultimato: "deixa a tua mulher ou
conto-lhe quem é o pai da criança!"
Poderia meu tio tê-la despido lá em cima, conduzindo-a
depois para a cave, pôr o ferrolho na porta, matá-la e
matando-se ele próprio em seguida. Mas aquele talho na
garganta... Poderia alguém infligir-se um corte daqueles?
Seria meu tio capaz de tirar a vida a uma criatura que
trouxesse no peito uma centelha de Deus? E onde estava a
faca?! Tê-la-ia feito desaparecer com algumas palavras
mágicas? Contendo a respiração, passei as mãos à procura
debaixo dos corpos. Mas não havia nada, a não ser a sensação
desagradável do peso gélido dos mortos à espera de serem
enterrados.
Não consegui encontrar a faca em parte nenhuma. O que
descobri é que nas gavetas do fundo do armário do material as
tampas das nossas caixas de ébano tinham sido forçadas. A
nossa magra fortuna em folhas de ouro e lápis-lazúli tinha
desaparecido - o assassino, ou qualquer ladrão, tinham
simplesmente ignorado as coisas de menor valia e tinham ido
directamente aos nossos materiais mais preciosos.
O que contava, porém, não era tanto o que o assassino tinha
levado, mas sim o ele saber precisamente onde podia encontrar
os nossos tesouros. O número de pessoas que conheciam o
segredo do nosso armário de materiais podia contar-se pelos
dedos da mão: a nossa família, Farid e Samir e os membros do
círculo de iniciados.
O assassino tinha de ser um deles. Os nomes dos quatro
membros do grupo de meu tio soava aos meus ouvidos como se
lidos por um arauto de um decreto real: Simão Eanes, o
importador de tecidos que também fazia iluminuras em
manuscritos.
Frei Carlos, a pessoa a quem tínhamos confiado a educação
cristã de Judas. Não tinha ele discutido com meu tio acerca de
um manuscrito de Salomão Ben Gabirol que o padre se recusava a
ceder? Diego Gonçalves, o impressor e devoto levita que dias
antes, na manhã de sexta-feira, tinha sido apedrejado por uns
rapazes.
Sansão Tijolo, o vigoroso taberneiro, onde eu tinha ido de
manhã para comprar vinho casher. Com o nome de Sansão a
ressoar no interior, lembrei-me com amargura da nota que meu
tio lhe tinha enviado e amaldiçoei-me em voz alta por não a
ter lido.
Ao fixar os desenhos dos azulejos da parede do lado
oriental, apercebi-me pela primeira vez dos poderes de
disfarce com que era dotado o homem que queria levar à justiça
e compreendi que nos tinha enganado a todos com a máscara da
amizade. Para o apanhar teria de saber tudo o de se tinha
passado naquela cave.
Cuidadosamente, com os movimentos cuidadosos de um
louva-a-deus, comecei a gatinhar pela cave, registando a cena
no espírito, polegada a polegada, como se passasse os dedos
por um texto inédito da Tora.
Deparei então com uma conta com restos de sangue, escondida
atrás da perna de uma das escrivaninhas. Era escura, decorada
com finos anéis em serpentina. Quando a apanhei, pensei num
rosário ou num terço passado em torno do pescoço de meu tio.
Seria de Frei Carlos? Enfiei a conta na minha bolsa.
Um dos dois ornatos de couro que enfeitavam a parede a
ocidente tinha a franja de baixo suja com espessas marcas de
sangue. O assassino terá certamente dobrado o couro em torno
da lâmina, puxando seguidamente a faca com força para limpar o
gume.
Havia marcas de sandálias sujas de sangue de um lado para o
outro entre a parede ocidental, o tapete de orações e as
escadas, mas que não subiam. O assassino tinha-se sentido
acossado, procurado uma saída e então simplesmente
desaparecido.
Quantas pessoas tinham deixado pegadas? As de meu tio e da
moça eram facilmente visíveis no tapete de orações. Ao que me
parecia, o assassino usava sandálias e tinha os pés uma
polegada mais compridos e mais largos que os de meu tio. Bem
poderiam pertencer a Diego ou a Sansão: ambos tinham pés de
Golias.
Ou teria havido mais que um assassino? As marcas na
superfície rugosa do tapete não eram muito nítidas e nas lajes
negras do pavimento seria impossível distinguir as pegadas de
dois ou mesmo três pessoas se fossem semelhantes na forma e no
tamanho.
O importador de tecidos Simão... voltei a pensar nele. Mesmo
alguém só com uma perna poderia matar como um shohet se usasse
a surpresa como uma arma contra um cabalista entoando
cânticos. Mas nesse caso haveria apenas pegadas do pé esquerdo
e ali havia claramente pelo menos duas marcas de sandálias do
pé direito que não pertenciam a meu tio. Portanto, se Simão
estava envolvido, teria havido também um cúmplice.
Mas estava a ir longe de mais. A linha poderia ter sido ali
deixada para comprometer Simão e a conta poderia muito
facilmente ter sido deixada por uma mão astuta que quisesse
lançar a luz pálida da dúvida sobre FRei Carlos. Mesmo as
pegadas podiam ter sido fingidas.
Inclinado sobre meu tio, peguei-lhe na mão para atentar na
unha do polegar. Obedecendo aos mandamentos, estava
esmeradamente polida, a não ser a ínfima fenda com sangue seco
onde a linha tinha ficado presa. Não era portanto de pensar
que ali tivesse sido colocada por um dos iniciados que
quisesse comprometer Simão? Sem pensar no que fazia, levantei
a mão e levei-a aos lábios, para receber pela última vez a
bênção de meu tio. Puxando-o para mim, comecei a beijar-lhe o
rosto e os lábios.
Estava coberto de sangue, tingido de sangue, como uma
iluminura que ganhasse vida. Quando fechei os olhos, senti-me
varrido para o chão pelo vento frio de um pressentimento. O
suor perlava-me a fronte. Todos os pêlos do corpo se tinham
eriçado. Do meu peito escapou-se um grito, abrindo alguma
porta interior por onde a visão entrou: Estava rodeado por uma
paisagem árida de montes pedregosos. O poente lançava sombras
irregulares sobre ravinas e encostas, dando à cena a pura
claridade da Tora. Ao longe, a oriente do horizonte, erguia-se
uma luz branca que se aproximava. Continuando a subir no céu,
refulgia, como num código secreto e pareceu-me que devia
trazer-me uma mensagem. Eu permanecia em pé, numa atitude de
oração, enquanto em torno de mim se começou a ouvir um
sussurro. Semelhava a respiração de uma criatura invisível, ou
do próprio ar. De repente, dessa luz branca brotaram asas e
foi-se desenhando a forma de um íbis grande e luminoso. Era
como se o pigmento da sua plumagem branca tivesse sido
destilado pela própria lua. Esticando os pés negros em frente
de si, desceu num voo picado até junto de mim, correndo um
pouco para recuperar o equilíbrio, fechou as asas e depois
enfiou o seu bico recurvado no peito para tufar as penas.
Tinha o tamanho de um homem. Erguendo-se soberano diante de
mim, era como se os seus olhos prateados fossem de mercúrio
líquido e possuíssem a energia espiritual de Moisés. Abrindo e
fechando o bico, dirigiu-se-me com a voz de meu tio:
"Volta-te!" Obedeci e descobri então que estava na margem de
um lençol de água, aí com uma milha de extensão, e que a
estranha respiração que ouvia em torno a mim era simplesmente
o ruído das ondas a quebrarem e a enrolarem-se. Na margem
oposta, dezenas de milhares de homens formando filas como
formigas, subiam a correr as encostas das colinas que se viam
ao longe. "Agora vira-te outra vez para mim!", - disse o íbis.
Obedeci de novo. "Como já suspeitavas, este ano chegaste tarde
para o ëxodo, e deixaram-te ficar. Agora, se quiseres
atravessar vais ter de voar, já não podes esperar que Moisés
volte." Quando repliquei: "Mas eu não tenho asas!", o íbis
disse: "Um cabalista não precisa de asas para voar, basta-lhe
a vontade.", A maneira como pronunciou a palavra vontade era
propositadamente ambígua e podia também entender-se bondade.
Disse então: "Volta-te para sul." Ao mesmo tempo que o fazia,
a paisagem ficou suspensa no tempo. O cheiro de velino pairava
a toda a volta e vi então que o mar, as colinas e o próprio
íbis não passavam de figuras pintadas na iluminura de uma
Haggada. Eu estava num painel que representava o ëxodo, numa
praia egípcia. Tinham-me deixado ficar para trás com o Faraó.
Fui chamado ao presente pelos gritos que se ouviam na rua.
"Agora compreendo" - pensei - "a premonição que tive há dois
dias ao ver os penitentes era uma precursora desta visão.
Desde sexta-feira que Detis tem procurado acesso a mim para me
revelar o que agora vi. Quão desatento andei, quando tão
necessário me seria!", O problema agora era o de saber se eu
teria a vontade e a bondade para guiar a minha família em
segurança até à Terra Prometida.
Subitamente, movido por um instinto físico de medo, a minha
mão parecia ansiar a concisa evidência do punhal, sacando-o da
minha bolsa. Judas e Cinfa... Mãe, tia Ester... As minhas mãos
cerravam-se num punho em torno destes nomes. A urgência de os
encontrar cresceu dentro de mim com tal intensidade que cada
hausto de ar parecia pular-me dentro dos pulmões.
Precipitando-me para as escadas, tirei da bolsa o Livro de
Salmos, que meu tio me pedira para entregar; aquele peso
irritava-me muito para além do seu significado. Ocorreu-me
então um pensamento que me fez encostar à parede: o recado que
meu tio tinha escrito para o fidalgo e metido dentro do livro!
Não estaria aí a resposta a grande parte das minhas dúvidas?
Encontrei-o entre a capa e a primeira página do manuscrito. Em
pé, nas escadas da cave, possuído por um sentimento de temor,
rasguei o selo de lacre: "Estimado e venerado Dom Miguel,
Aí tendes diante de vós o vosso Livro de Salmos e o meu
sobrinho Berequias. Pergunto-vos: serão assim tão diferentes?
Ambos são belos. Ambos transportam mundos dignos de ser
celebrados.
Se tendes dúvidas, reparai nos olhos de meu sobrinho.
Seríeis capaz de condenar à morte um olhar tão bom e
inteligente? Disse-vos uma vez que há criaturas criadas à
imagem de Deus que não têm pés, apenas páginas. Depois
calei-me, para não ter de vos fazer perguntas que vos poderiam
assustar. Mas o desespero empurra-me a pena ao longo desta
página e desta vez não posso calar tais questões.
Podereis estar certo de que um livro não respira? Podereis
estar certo de que não se reproduz? Se não neste baixo mundo
de disfarces, Talvez pelo menos na Esfera Celeste?
Podereis sequer estar certo de que os anjos não são livros
dotados de forma por Deus? Não será a própria Tora o corpo
de Deus? ,Deixai-me dizer-vos um nome: Metatron.
Repeti interiormente este nome. Dizei-o cento e sessenta e
nove vezes se o ousais.
Será que o anjo Metatron registará ainda as vossas boas
obras ou deixará que o seu olhar passe o vosso nome? Sois um
náufrago acuado numa ilha. E eu um barco que vos atira uma
corda. Não sendo a corda que esperáveis, nem eu o salvador que
queríeis, ficareis a lamentar o vosso fado e a deplorar o
vosso desapontamento até que eu levante ferro e vos abandone?
Ou compreendereis que nenhum de nós recebe nesta vida
exactamente aquilo que quereria? Não vos contentareis com o
que Deus vos der? Ao fim e ao cabo, uma corda lançada por um
judeu de um barco capaz de atravessar o Mar Vermelho na Páscoa
não é nada para desprezar! Podereis mesmo concluir que
viajar vos agrada.
Reparai na aliança que sempre vos acompanha, se ainda tendes
dúvidas. Que Deus vos abençoe, qualquer que seja a vossa
decisão.

Abraão Zarco


Post scriptum: Estava a ver se agora me iríeis dizer que os
doutores cristãos poderiam restituir À minha mulher, à minha
querida Ester, a sua virgindade".


Foi como se dentro de mim uma porta se abrisse, assim que
acabei a carta. Miguel Ribeiro, o reputado fidalgo cristão,
deveria também ser um judeu secreto! Que outra coisa poderia
querer dizer meu tio com "a aliança que sempre vos acompanha",
a não ser o sinal da circuncisão?
Tudo indicava que meu tio teria feito a Dom Miguel um pedido
difícil de satisfazer e que ele recusara. A não ser assim, meu
mestre não teria feito referência a Metatron, o anjo talmúdico
que regista as boas obras de Israel. Quanto à sugestão de
repetir o nome do anjo cento e sessenta e nove vezes, era bem
característica de meu tio. Era o número de vezes que o verbo
zaklar, lembrar, nas suas variadas formas, aparece no Antigo
Testamento. Sempre que meu tio pretendia que alguém pouco
experimentado em filosofia compreendesse uma passagem difícil
da Tora, dava-lhes uma frase sagrada desse versículo para que
a repetissem esse número de vezes. Mentalmente, através de
canais cabalísticos, o entendimento começaria a surgir no seu
espírito.
Que o pedido de meu tio a Dom Miguel tinha alguma coisa a
ver com livros, parecia-me certo. Seria a solicitar-lhe uma
contribuição para a compra de algum manuscrito recentemente
descoberto? Teria ele descoberto algum livro Tão especial, tão
valioso, que a cobiça começara a surgir no seio do grupo de
iniciados? Seria essa a relação entre o recado e os mestres
da Cabala? Ao retomar a subida das escadas, sentia pela
primeira vez que estava a caminhar por uma vereda que me
conduzia à verdade. Havia um iniciado envolvido! Talvez com
alguém exterior ao grupo. Mataram meu tio pelo manuscrito
valiosíssimo que ele encontrara, algo tão valioso, com tais
poderes mágicos que era capaz de tornar em ferro o coração de
ouro de um dos amigos de meu tio. Ao chegar ao topo das
escadas, relanceei os olhos pelo corpo de meu mestre e da
moça. Ambos jazendo sobre o tapete. Inclinados um para o outro
como O pensamento de que pudesse realmente haver trato entre
eles assaltou o meu espírito e a dúvida acrescentou uma enorme
profundidade ao abismo de morte que me separava de meu tio.
Tê-lo-ia conhecido verdadeiramente ou será que apenas o
vislumbrei através de uma máscara? De repente, ouviu-se um
grito de mulher vindo da Rua da Sinagoga. Num sussurro disse
adeus aos corpos ao fundo das escadas, como se me despedisse
de crianças adormecidas. Na cozinha, chegavam-me as vozes
dispersas de uma multidão na rua perto do quarto de minha mãe.
Espreitando para fora, avistei um miúdo franzino, descalço, o
cabelo castanho como um esfregão, colhendo limões do nosso
limoeiro. Saindo da porta, lancei-lhe num sibilo: "Já fora
daqui!". Atabalhoado, voltou-se e saiu disparado pela cancela
fora. Fui espreitar por cima da parede para ver se o via, mas
recolhi-me imediatamente; à minha direita, descendo a Rua da
Sinagoga em direcção ao rio, apinhava-se uma centena ou mais
de aldeões em filas irregulares, empunhando foices e enxadas,
alviões e espadas. O bater do meu coração balançava-me de um
lado para o outro. Sentei-me por uns instantes até me passar a
vertigem e depois precipitei-me para o telheiro à procura de
pregos e de um martelo. Lancei-me ao trabalho com a energia
do desespero e preguei o alçapão ao caixilho onde encaixava e
voltei a pôr o tapete esburacado por cima, sempre com
o pensamento de que não podia permitir que ninguém profanasse
os corpos.
Subi ao meu quarto para mudar a roupa; apesar do baú ter
sido pilhado, ainda encontrei uma camisa esfiapada de linho e
umas calças que ficaram no fundo. As roupas impregnadas da
seiva vital de meu tio foram parar ao fundo malcheiroso do
poço do quintal.
Antes de sair para a rua, passei pela casa de Farid. Como
ele era surdo, era escusado pôr-me aos berros para que
aparecesse, por isso, em voz baixa, chamei Samir, o pai dele.
Mas deparei apenas com o silêncio dos azulejos e da pedra.
Espreitei na cozinha e nos quartos. A casa tinha sido
saqueada, o tear feito em pedaços, e não havia sinais de
nenhum deles. Deviam ter fugido, mas para me certificar bati
com o pé no chão três vezes, depois uma, depois mais quatro
vezes, formando assim o pi, o número mágico egípcio, que eu e
Farid usávamos como sinal nos momentos de perigo. Se ali
estivesse, haveria de sentir as batidas na sola dos seus pés.
Mas não houve resposta.
Voltando ao pátio, fui seguido pela nossa gata, Roseta, com
as duas cerejas que minha mãe lhe tinha pendurado ao pescoço a
balançar descompassadamente. Arqueando o dorso numa
espreguiçadela voluptuosa, começou a ronronar esfregando a sua
pelagem cinza nas minhas pernas. Enxotei-a com o pé e
dirigi-me à cancela. Ao sair para a Rua de São Pedro, reparei
que o céu a ocidente, sobre o centro da cidade, estava coberto
de fumo. Apertei na mão o punhal, pensando na minha família.
Mas em vez de prosseguir, fiquei a olhar para a casa de dois
andares do outro lado do largo vazio por trás do arco de São
Pedro. Os aposentos de Frei Carlos ficavam no andar de cima,
mas as portadas estavam firmemente fechadas. Sendo ele um
membro do grupo de iniciados, estaria também implicado na
morte de meu tio? Ou seria possível que a minha família se
estivesse escondendo em casa dele? Precipitei-me para a
escadaria da casa, saltando três degraus de cada vez, para
encontrar a porta fechada. Chamei por ele.
- Abra - dizia eu -. Comigo estará mais seguro. Diga-me só
se Judas está aí consigo. Com os diabos, responda-me! Nada. No
meu coração insinuou-se o pecado de desejar que alguém
estivesse morto para que não pudesse ser responsável de ter
matado.
De novo no exterior, no largo sinistramente vazio, ouvindo
os gritos vindos da beira-rio, os meus pés começaram a
conduzir-me para as proximidades da nuvem de fumo que subia do
centro de Lisboa. Como a casca de um ser vivo, fui-me deixando
arrastar, a minha sombra alongando-se atrás de mim como se os
meus passos deixassem um rasto.
Junto à Sé, passou por mim um grupo de mulheres como se
fugissem de alguma invasão, mas nenhuma delas fez nada para me
deter ou me avisar. Seriam andorinhas a fugir do faraó? Não
reparei nos rostos e, apesar de tudo o que os bispos possam
dizer, o ruído que faz um judeu a fugir à morte não é
diferente do de um cristão.
No exterior da Igreja da Madalena estava um grupo de rapazes
empunhando enxadas e alviões. Acabei por dar por mim na Rua
Nova de El-Rei, junto à Igreja da Misericórdia. A loja de
Simão, o importador de tecidos, ficava a uns escassos
cinquenta passos dali. Quando para lá me dirigia a toda a
pressa, quatro homens trajando como mercadores, que
conversavam à porta do outro lado da rua, olharam para mim,
mas não esboçaram nenhum movimento em minha direcção. Mais
adiante, um grupo de vagabundos dava pontapés num cesto de um
lado para outro, como se fosse uma péla de couro.
Como explicar o efeito de ver todas as portadas da rua
cerradas, as varandas vazias, as ruas sem carruagens? "Deve
ser este o aspecto de uma cidade exposta a uma invasão a
partir de dentro" - pensei. - NUma cidade sem futuro Parecia
que me tornara num espectro. Cogitava se o meu punho faria
algum ruído ao bater à porta da loja de Simão. Fez, claro. Por
cima da minha cabeça, ouvi as portadas abrirem-se. Um homem de
barbas com um chapéu azul de abas largas espreitou para baixo.
Era Mestre João, o senhorio de Simão, cristão-velho.
- Pára lá com essa batidela! - gritou ele.
- Não sei se se lembra de mim. o sobrinho de Mestre Abraão
Zarco. Vim ver se Simão Eanes cá estava. Preciso de lhe falar.
Ele está?
- Chegaste umas horas atrasado. Os dominicanos vieram
buscá-lo. Abriram-lhe a barriga e depois arrastaram-no para. -
acenou com a mão em direcção à coluna de fumo acima do Rossio
-. Agora segue o teu caminho. Se tivesses algum juízo ias mas
era esconder-te!
- Então ele está morto.
- Tu não tens olhos, tolo? Não vês o fumo? É ele! Sai-me da
minha frente, seu cão marrano, antes que os dominicanos te
venham buscar também! - e bateu as portadas.
Enquanto me afastava, os nomes dos restantes iniciados
soavam dentro de mim num sussurro, como se me citassem para
algum deserto bíblico: o taberneiro Sansão, o impressor Diego
e Frei Carlos. Antes de mais nada, iria procurar Sansão. Rana,
a sua mulher, era uma velha amiga da nossa vizinhança e não
seria capaz de me esconder a verdade. Se o marido tivesse
voltado a casa ensopado no sangue de meu tio, os olhos dela
haveriam de trair o segredo.
O Rossio abria-se como uma ferida infectada inchada de
enxames de pessoas vociferantes. Apinhavam-se em volta de
carruagens enfeitadas, giravam pelas grandes arcadas do
Hospital de Todos-os-Santos, debruçavam-se em risadas das
varandas e dos beirais das janelas. As gaivotas descreviam
grandes círculos no céu, soltando gritos agudos. Um
maltrapilho dançava, fazendo com que o pus das suas pústulas
cheias de crostas lhe escorresse para os pés. "Mordido por uma
tarântula!" - gritou-me uma velha de pele curtida -.
"Não pode parar, nem sequer para aquilo!", E riu-se até se
engasgar com um furioso acesso de tosse.
Acima das cabeças da multidão, viam-se subir colunas de fumo
espesso em frente da igreja dos Dominicanos. Foi o calor da
emoção que me fez avançar.
Voltar atrás nessa altura seria como fugir de Deus em
pessoa. Ou do Demónio no momento em que ataca. E só os santos
possuem esse poder.
De repente avistei Mestre Salomão, o ourives, na orla da
multidão. Tinha as mãos amarradas atrás das costas por um
gigante corpulento com a musculatura lustrosa de um ferreiro.
O cabelo e o pescoço do ourives estavam sujos de fezes. As
pernas tremiam-lhe quando me fez um esgar de reconhecimento. O
seu olhar dardejante implorava-me que fugisse dali. Imaginei
a sua voz: "Foge, Berequias, antes que seja tarde!", Depois
empurraram-no para diante e foi engolido pela multidão.
Enfiei-me entre as pessoas para o seguir e fui arrastado
para o centro por uma corrente inesperada. Sentia-me
invadido pelo temor de ir encontrar a minha família no meio
da turba. E apesar disso, sentia-me despojado de forças por
um calor próximo do desejo no amor. Continuando a avançar,
incessantemente, como quem cai dos braços de um sonho, atingi
finalmente uma clareira.
Uma pira. Chamas crepitantes. Gavinhas de fogo laranja e
verdes desenrolando-se em direcção ao telhado da igreja. No
campanário, um frade dominicano com uma grande papada
empunhava uma espada com uma cabeça decepada na ponta e
exortava a populaça com uma voz irosa:
- Morte aos heréticos! Matai esses judeus do demónio! Que a
justiça do Senhor caia sobre eles! Fazei-os pagar pelos crimes
contra as crianças cristãs! Fazei-os...
O fogo causava um calor infernal, alimentado pela massa dos
corpos dos judeus que lhe tinham sido lançados. Completamente
entorpecido, não conseguia desviar os olhos, até que reconheci
Necim Farol, o intérprete e prestamista, que parecia espreitar
para mim através de uma janela de labaredas. Tinha a cabeça
carbonizada e uns olhos brancos de peixe. Perante esta visão
insuportável, baixei o olhar, mas junto aos meus pés deparei
com a cabeça de Moisés Almal, o cordoeiro, repousando como um
busto de João Baptista no meio de uma bandeja líquida
vermelho-viva. A toda a volta da pira havia poças de sangue de
onde emergiam corpos mutilados.
Não sei quanto tempo se teria passado, pois tal cena desafia
toda a memória, até ver a cabeça de Almal ser levantada e
levada por um vulto barbudo que passou fugindo. Quando
desatei a seguir a sua louca correria através da multidão,
avistei um homem sem camisa, suando como um mineiro, que
começou à machadada ao corpo de uma velha estendido no chão.
Primeiro decepou-lhe a mão esquerda, depois a direita. Reparei
no anel: a água-marinha da senhora Rosamonte, uma nossa
vizinha idosa que me oferecia sempre limões. O homem
do machado estava tão entregue à alegria de matar que nem
reparou na jóia. Ria-se e gritava: "As cinzas dos judeus devem
dar um bom adubo para as nossas terras!", Ouviram-se aplausos
quando ele atirou as mãos para o meio da multidão.
Corri a apanhá-las. Um marinheiro do Norte, pálido e cheio
de borbulhas, tinha posto na cabeça a mão do anel e dançava,
cantando uma cantiga de bêbados numa linguagem que parecia
jorrar-lhe das tripas. Quando o fitei, parou de gingar.
Atirei-lhe aos pés as moedas que trazia e apontei para o seu
troféu. Fez um sinal de assentimento, cuspiu algumas palavras
guturais e, como se visasse as gaivotas, atirou ao ar a mão,
que caiu salpicando de sangue a calçada. Apanhei-a e
enfiei-a na minha bolsa. Fui atraído pelos brados que da
escadaria da igreja dos Dominicanos me chegavam numa voz de
juízo Final: "Morte aos heréticos! Matai-os todos hoje!" Era
um frade atarracado, com olhos de coruja, envolvido nos seus
trajos amaldiçoados. Agitava face à multidão uma imagem
sangrenta do Nazareno, que empunhava como se fosse algum
escudo heráldico. Salomão, o ourives, jazia na calçada ao
fundo da escadaria, de costas, esvaindo-se em sangue como um
cão ferido. Fios de sangue riscavam a sua túnica branca.
Quando me ia a aproximar, ouvi-o gritar o meu nome uma vez,
claramente. Dois homens ensopados em suor e sangue,
praguejavam e, armados de pranchas de madeira formando a cruz
nazarena e cravejadas de pregos, batiam em Salomão. Salomão,
capaz de moldar folhas de ouro em murmúrios de Deus.
Salomão, que beijou os meus lábios e soluçou de emoção ao ver
as iluminuras do Livro de Ester que eu tinha feito para ele.
Salomão, que...
Que fera tarefa, a desta matança. A cada golpe, jorros de
vida irrompiam do ourives como de fontes avistadas do céu. A
carne dilacerada das suas mãos perfuradas estendia-se a
implorar que parassem. Brados. Gritos em hebraico chamando por
El-Rei Dom Manuel. Depois por Abraão, Moisés. Deus. Mandai-os
parar! Meu Deus! Fazei com que párem, Até que foi sufocado
pelo sangue que Lhe brotava da boca.
- Vamos rapar o judeu antes dele morrer! - gritou um dos
homens. Tirando da pira um ramo em fogo, chegou fogo às barbas
de Salomão. Os olhos do martirizado ourives escancararam-se de
dor, olhando furiosamente em torno à procura de socorro. Como
um dardo que me fendesse o espírito, ocorreu-me um pensamento
herético: É uma falha de Deus o não podermos retirar tal
sofrimento a outro ser humano e torná-lo nosso., Um colosso
disforme com uma cruz pintada a vermelho na testa, empunhando
um machado ferrugento, saltou de repente para a frente
bradando por misericórdia e chuva. Descrevendo com o machado
um grande círculo acima da sua cabeça, atirou-o, despedaçando
o pescoço de Salomão com a sua lâmina grosseira. Pedaços de
vida foram projectados até ao sítio onde me encontrava e o seu
corpo atormentado tombou como se fosse um boneco, com o
pescoço esvaindo-se em sangue como vinho novo jorrando de um
tonel.
Quando dei por mim, havia vários cristãos com os olhos
cravados em mim. Era uma loucura, mas no meio do meu terror,
tinha começado involuntariamente a murmurar orações em
hebraico! De repente senti-me agarrado por uma mão e puxado
para trás. Sacudiram-me violentamente. Um rosto conhecido.
David Moisés? Fugimos ao longo de uma muralha de braços
estendidos com a leve rapidez dos pesadelos. Corremos através
de uma floresta de movimento. Passámos esquinas. Subimos
escadarias. Descemos becos sombrios. Entrámos numa casa.
Franqueámos uma porta fechada, até à segurança da escuridão.
Senti uma mão a tapar-me a boca. Senti uma respiração ofegante
junto ao meu rosto. Uma voz conhecida sussurrou o meu nome:
"Caluda, Beri!".
Era David Moisés, o nosso antigo hazam.
- Mestre David, também viu Salomão, o ourives? -
perguntei.
- Vi muitos dos nossos - replicou.
- Mas Salomão... Viu...
Chegavam-nos gritos da rua: Lá em baixo no rio! "Vamos!
Tragam a carroça!", Mestre David tapou-me a boca com a mão.
Agachámo-nos. A nossa respiração foi-se acalmando ao mesmo
ritmo.
- Viu a minha família? Minha mãe, Judas...
- Não. Mas podiam estar noutro sítio.
- Tenho de voltar... talvez tenham conseguido chegar a casa.
Tenho de os encontrar e...
- Ouve - disse ele, agarrando-me pelo colarinho. - A única
maneira de os encontrares é continuares vivo. Tens de sair
daqui.
- Como é que isto tudo começou? Quem é que teve a culpa
disto:
- Foi na igreja dos Dominicanos. Um crucifixo com um
buraco escavado e tapado com um espelho. Os frades puseram por
trás uma candeia acesa e começaram a dizer a todos que a luz
era um sinal do Nazareno, um milagre. Há cerca de uma hora, um
cristão-novo, o alfaiate Jacob Chaveirol, estava a...
- O filho dele, Menni, andava na escola comigo. É muito bom
na Tora e faz maravilhas. Tem uma loja ali...
- É mas é um idiota! Começou a dizer que era muito melhor
que Cristo nos desse chuva em vez de lume!
- E depois?
- E depois mataram-no à pancada. Abriram-Lhe a barriga e
arrancaram-Lhe o... Dois padres apelaram aos fiéis para que
matassem os judeus. Mataram Isaac, o irmão dele. Fizeram-no em
pedaços. A cabeça que está no campanário é a dele. Os
marinheiros do Norte deram dinheiro para se fazer uma pira de
lenha. E, daí a pouco... daí a pouco... - David não conseguia
articular as palavras.
- E o rei, porque não vem ele defender-nos? Tinham-nos dado
vinte anos para...
- Dom Manuel? - Mestre David suspirou -. Talvez não seja
estúpido, mas é um fraco. Sabe que se mandar tropas em nosso
auxílio, a multidão há-de pedir a sua cabeça. O povo odeia-o
quase tanto como aos judeus. Vai esperar que os motins se
acalmem e depois voltar a tomar conta da cidade. Ficámos
abraçados em silêncio. Não conseguia falar-lhe de meu tio; era
como se as minhas revelações fossem uma confirmação de que
nunca mais voltaria para junto de mim. E não podia confiar em
nenhum cristão-novo até saber mais sobre a morte de meu tio.
Perguntei-lhe:
- Sabe alguma coisa da sorte de Frei Carlos ou de Diego, o
impressor?
Acenou negativamente e acrescentei: - E do taberneiro
Sansão?
- Nada - replicou.
Os meus olhos começaram a habituar-se às trevas. Estávamos
numa escada em espiral. por cima de nós, espalhava-se uma luz
ténue filtrada por uma frágil portada coberta por uma grade.
De repente, reparei num rosto que nos observava através do
poço formado pela escada. Estiquei-me e agarrei uma perna Com
a mão. abafei um grito. Era uma rapariga. Debatia-se, mas com
a força do meu medo acumulado consegui segurá-la.
- Quieta, que não te faço mal - disse eu.
Ainda me resistiu mais uns momentos, mas depois o medo
passou-lhe. O sopro dela aquecia-me a mão.
- Maldita! - praguejou num murmúrio o hazan.
- Não podemos ficar aqui - disse eu -. Estamos muito perto
do Rossio. Vá andando, que eu vou ter consigo fora da Porta de
SantAna. Depois do mosteiro, no topo da colina em frente, há
um grande carvalho isolado. Encontramo-nos lá. Eu aguento-a
calada até se afastar. - Começava a distinguir mais claramente
o meu amigo. Com os puxões, o xaile ritual via-se através da
capa rasgada. - E por amor de Deus, tire-me esse seu tallit.
- Mas... e tu? - inquietou-se ele.
- Já me salvou uma vez. Agora deixe o resto por minha conta.
Já percebi o que se está a passar e vou-me escapar daqui. Mas
livre-se desse xaile.
- Não posso - disse ele, voltando a tapá-lo com o mantelote.
- E ainda acha que o alfaiate Jacob era louco! Pronto,
encontramo-nos fora de SantAna. Então vá.
Mestre David deteve-se como se fosse dizer alguma coisa,
depois apertou-me o braço e desapareceu pela porta fora.
O poder e o medo produzem um matiz de emoções diferente de
todos os demais; com a rapariga agarrada, sentia o meu corpo
como se fosse prata, um reflector, sem quaisquer restrições.
- Largo-te já - disse eu.
Sentia-lhe o bafo quente. Quando abri as mãos, ela
endireitou-se e voltou a meter os meus dedos na sua boca.
Sentia a sua língua palpitar na palma da minha mão como uma
prece apaixonada, traçando linhas de desejo nos meus dedos. Os
dedos dela insinuaram-se até às minhas partes íntimas,
cingindo-as com a ligeira pressão da curiosidade. As nossas
respirações ofegantes entrelaçadas ditavam ritmo às nossas
línguas que dançavam unidas. Que dois desgraçados lunáticos
éramos os dois, em tais gozos no vão de uma escada com um
motim lá fora.
- Lá em cima! - sussurrou, pegando-me na mão.
Terá o corpo uma vida própria, independente do espírito?
Como pude deixar-me levar por ela depois de ter visto meu tio?
Ou será que a paixão tem um poder de sarar que nos recusamos a
admitir? Seguia-a até um quarto mergulhado na penumbra de uma
cortina corrida. A fechadura da porta deu um estalido como uma
mola nos sonhos. Afastei-me dela ao vislumbrar os raios de luz
da janela. Dali, podia ver que nos encontrávamos numa rua
lateral a uns cinquenta passos do Rossio, já na Mouraria. A
gritaria chegava até nós como que Filtrada por um tecido
espesso. De repente, senti um baque no coração; perante mim
estava a cabeça flamejante de Mestre Salomão. Mas os olhos
eram os de meu tio - vazios, frios, fixando o vácuo. Tanta
morte! Tanto sangue! As mãos da rapariga afagavam-me as
costas. Voltei-me à procura da sua boca, mas ela baixou-se e
começou a acariciar o meu desejo com um calor húmido,
contorcendo-se num ansiar impetuoso, encerrando-me numa sombra
devorante sem forma e toda sôfrega, gemendo, desesperadamente
quando a puxei para mim e fiz redemoinhar o seu cabelo sobre o
meu peito e lambi as pétalas das suas orelhas. Como se
montasse os contornos da própria escuridão, agarrei-a pelos
ombros e afaguei o desejo aceso dos seus seios, penetrando
mais firmemente e mais longe na quente e húmida escuridão, até
a sentir suspirar como num choro, e eu explodi, como quem cai
numa caverna sem fundo.
Assim que acabou de tirar tudo de mim com o desvairo da
ponta da sua língua palpitante, pôs-se a acariciar-me o rosto.
- Vou-me lavar - ouvi-a sussurrar como uma brisa. A porta
abriu-se, enquanto eu permanecia deitado. Ouvi os passos
precipitados pelas escadas abaixo. - Um marrano! - gritou -.
Está um judeu no meu quarto!
Apertei o cordão das calças e abri a cortina. Avistei-a em
baixo, na rua, junto de uma carruagem, rodeada de homens de
capa, apontando para cima em minha direcção. Peguei na minha
bolsa e saltei para o patamar, atravessei o telhado e deslizei
para uma varanda do lado oposto. Sentia-me impelido pela
gritaria atrás de mim. Corri pelas telhas fora, desci, por
algerozes. As vozes que me chegavam da casa em baixo silvavam
aos meus ouvidos como rajadas de vento. Até que deparei com um
último beiral, tão repentino como o fechar de um livro.
Perante mim abria-se o vazio de uma queda de quarenta pés até
à calçada, separado do telhado seguinte por uma altura de dois
homens. "Agarrem o judeu!" Voltei-me
como para defrontar toda a cristandade. Um jovem fidalgo de
cabelo comprido cambaleava desajeitadamente pelo telhado. Era
alto, magro, com uma face descarnada, um queixo proeminente,
com a arrogância dos bem-nascidos. As suas perneiras amarelas
apresentavam manchas de sangue, como signos de uma escrita
demoníaca. Nas mãos compridas e elegantes trazia um chicote.
"Aqui temos um jovem caçador desejoso de provar a sua
valentia aos seus amigos e à família" - pensei -. "E a mim
cabe-me sacrificar-me a bem da sua arrogância". Enquanto o
esperava, os meus pés procuravam um apoio seguro. Parou a uns
vinte pés e fitou-me com um olhar confuso. Estranhamente,
sentia-me em vantagem.
- Isto vai ser um regalo! - comentou numa voz de falso
à-vontade. Firmou os pés, arqueou o chicote para trás e depois
lançou-o para diante com um berro. Acertou perto dos meus pés,
fazendo estalar duas telhas. O fragor dos cacos na rua fizeram
abrir um olhar de satisfação no seu rosto afectado. Um ímpeto
como um espectro percorreu-me desde os pés até ao peito e à
cabeça: como se a graça de Deus se elevasse. E eu agarrei com
força o seu poder.
- Dizem que se batermos com força num judeu podemos ouvir o
ouro a tilintar-lhe no peito - disse ele, com um sorriso
malicioso -. Sempre quero ver isso!
Era uma lenda, que infelizmente tinha um fundo de verdade.
Os judeus expulsos de Espanha em 1492 foram proibidos de levar
consigo quaisquer valores. Muitos de entre as dezenas de
milhares que atravessaram a fronteira portuguesa correram o
risco de engolir moedas.
Ao subir para o pico do telhado, fiz saltar uma telha.
Apanhei-a e segurei-a como um escudo diante do peito.
Passou-me pelo espírito a imagem de Moisés e as tábuas da lei.
O sol escaldante da era da Tora parecia impelir-me para o céu.
O meu perseguidor ria-se. Deu umas passadas desastradas para
vir ao meu encontro no cimo. Olhámos um para o outro através
do silêncio de dez pés. O seu rosto contorcia-se de desdém.
Entoei um cântico com os nomes do Inominável.
- Isso é algum bruxedo dos marranos? - interrogou.
Como defesa, senti-me tentado a invocar uma fórmula
cabalística pela sua morte. Forçando-me ao silêncio, suspendi
todos os meus pensamentos até mais não haver que uma ligeira
presença com o peso da minha alma.
- Tolo de judeu! - disse ele -. Havemos de vos matar a
todos. Esfolar-vos e sacar-vos do corpo o vosso ouro!
Senti-me empurrado por uma súbita força visceral. Avancei.
Ele levantou o chicote com lentidão, como se atolado num tempo
líquido. Estaria surpreendido por ver um judeu atacar sem
aviso? Não procurou esquivar-se, enquanto eu, empunhando a
telha como um escudo, mergulhei em direcção a ele como um
touro, deixando-o sem respiração.
Foi atirado para o fundo do telhado, escorregou no beiral e
precipitou-se no vazio soltando um grande brado. Quando
atingiu o chão, chegou-me um som abafado como o de um punho
enluvado batendo a uma porta. Quando espreitei para baixo,
vi-o estendido na calçada numa posição bizarra, desconjuntado
como um bonifrate que tivessem atirado fora.
Para escapar, tinha ainda de saltar de um telhado para
outro. Mas parecia que o espaço se alargava diante de mim
quando eu saltava. Embatendo na parede, senti-me cair sem
apoio, até aterrar numa varanda às ripinhas que ficava por
baixo. Tinha o braço bastante pisado e sentia a cara a arder
com o sangue. A casa devia ter pertencido a antigos muçulmanos
ortodoxos, a julgar pelo corredor que ficava por baixo de mim
e de onde, antes de a sua religião ser também proibida, as
mulheres deviam observar sem serem vistas o mundo lá em baixo.
Com os pés, fui batendo nas ripas azuis até elas cederem e
deixei-me então cair para dentro de casa. Sentia-me
estranhamente calmo, ali onde não me podiam ver. Estava num
quarto com alguns catres e tapetes de couro. Quando me dirigia
para uma parede caiada, ouvi vozes. Em torno de uma lareira
onde as brasas ainda ardiam, estava reunida uma família. Um
homem alto, cor de canela de vestes verdes e um kipá branco,
tinha os olhos fitos em mim. Possuía uns ombros largos e
possantes. Os olhos castanho-claros pareciam ameaçadores como
os de uma águia. Entre as sobrancelhas emergia um tufo de
pêlos escuros, emprestando-lhe um ar misterioso. Um único
pensamento me dominava: "Estou cansado de mais para lutar. Se
este homem decidir tirar-me a vida, ofereço-lha como uma
oração".
- Procuras refúgio? - perguntou num português hesitante
- Andam atrás de mim - respondi no meu árabe de sotaque
hebraico -. Ambos os nossos olhares se dirigiram para o sangue
que pingava no tapete de couro. Aparei-o com a minha mão -.
Desculpe estar a sujar o...
Chamou a mulher. Ela acorreu imediatamente, com uma menina
agarrada aos vestidos. Tinha os cabelos e as unhas
avermelhados, tingidos de hena. Depois de aplicar um unguento
verde na ferida, envolveu-me o braço numa ligadura de linho.
Os seus olhos negros, sombreados com um traço espesso,
fitavam-me com temor, até me ouvir gabar a graça de sua filha
com uma copla árabe que Farid tinha escrito.
O ombro direito tinha ficado deslocado com a queda e, agora
que me sentia mais calmo, apercebi-me de que mal o conseguia
mexer. Falecia com as dores e começou a ficar embotado.
- Chamo-me Attar - disse o homem -. Sou oleiro. Vim de
Tavira.
- E eu Berequias Zarco. Vendo fruta e sempre vivi em
Lisboa.
Disse-me para me sentar numa almofada e deu-me água. Quando
falei em Samir, o pai de Farid, vi acender-se-lhe no rosto um
sorriso. Eram conhecidos e
Tinham andado juntos a estudar o Alcorão em Granada, quando
ainda era a capital do reino islâmico.
- Vou buscar mais água - disse ele, assim que acabei o copo.
Ao passar por trás de mim, agarrou-me subitamente. Deu-me um
forte puxão. O meu ombro deu um estalido. Fui percorrido por
uma vaga de dor, que depois recuou. - Vais ver que te sentes
melhor agora - disse ele -. Mas nada de andar aos Saltos pelos
telhados durante algum tempo.
A mulher dele limpou-me a cara com água quente, enquanto eu
experimentava o braço.
- Se quiseres podes ficar aqui até passar a confusão - disse
Attar.
- Tenho de ver se encontro um amigo e depois tenho de voltar
para casa.
As minhas calças apresentavam um grande rasgão nas costuras.
Attar mandou-me mudá-las e vestir um albornoz de cor parda com
uma orla na gola enfeitada com delicados arabescos de cor
verde-amarelada.
- Como lhe hei-de pagar tudo isto? - perguntei.
- Os bens dos nómadas não são para lhes ficar nas mãos -
respondeu, com um gesto a afastar o meu cuidado -. Melhor
assim. Tudo o que não tem asas arranja maneira de nos ditar os
pensamentos - e com estas palavras colocou-me um kipá de malha
na cabeça -. Que Alá vá contigo - disse-me ele à porta, em
despedida.
Repeti a saudação e inclinei-me em agradecimento.
- Devolvo as roupas logo que possa.
Ele puxou-me para a cabeça o capuz do albornoz e por sua vez
inclinou-se também. A rua estava vazia quando saí. Caminhando
apressadamente, procurava em vão abafar o ruído dos meus
passos na calçada. O cheiro acre da carne queimada dos judeus
pairava agora por toda a parte. Estava certo de que acima da
minha cabeça se elevava uma pluma de fumo, mas não olhei.
Cheguei ofegante à Porta da Mouraria, sob o olhar de desprezo
de duas sentinelas a cavalo. Mas com as roupas que envergava,
aqueles representantes da Coroa nunca ousariam tocar-me; as
violências contra antigos muçulmanos seriam vingadas com igual
tratamento aos cristãos que se encontravam nas mãos dos turcos
no Norte de África. Quanto à populaça, a única coisa com que
contava era o meu punhal.
Rezava para não ter de o usar.
Assim que saí da cidade, baixei o capuz e desatei a correr
pelos campos diante do Convento de SantAna, enfiei pelas
moitas de giesta e de ervas ressequidas em direcção ao enorme
carvalho que coroava a colina que dali se avistava.
Mas Mestre David não estava lá. Um pequeno grupo de
cristãos-velhos apreensivos concentrava-se junto à ponte
romana mais abaixo. Indignados, contavam como a populaça se
tinha atirado a quem quer que parecesse ainda que remotamente
relacionado com os judeus. "Alguns cobardes" - diziam -
"chegaram a servir-se do motim para vinganças pessoais ou para se verem
livres de dívidas".
- A culpa é dos cristãos-novos. Eles é que causaram a seca!
- grasnava uma velha encarquilhada para quem a queria ouvir.
Um grupo de aldeões armados de martelos e de barras de ferro
que tinham pilhado na oficina de um ferreiro avançaram para a
Porta de SantAna à caça de marranos, acirrando-se mutuamente
com as chalaças de caçadores que tivessem farejado sangue.
Encostei o peito ao chão e fiquei à espera. O sol já se tinha
posto e o crepúsculo espalhava no céu tons de madrepérola. Os
corvos esvoaçavam na ramaria do carvalho solitário por cima de
mim. Imaginava a morte como um charco fluindo do meu estômago
para as mãos e para os pés. "Que pecado estaríamos a expiar,"
- cogitava - "para que Deus nos privasse assim do melhor de
Israel? Porque teria Ele recorrido aos cristãos de Lisboa para
nos punir?" Em breve, as vozes dos nazarenos tinham-se
dissipado. O medo só voltou a tomar conta de mim quando me
lembrei da mão da Senhora Rosamontes que tinha na bolsa. A
nota que tinha caído do turbante de Diego, agora manchada de
sangue, encontrava-se junto aos seus dedos.
Ao ler aquelas palavras: - Isaac, Madre, vinte e nove de Nisan
- perguntei a mim mesmo se aquilo não teria a ver com a morte
de meu tio. Será que o crime tinha sido originariamente
premeditado por Diego para cinco dias mais tarde, sexta-feira
vinte e nove? Seria Isaac o nome do criminoso comprado com
meia dúzia de moedas roubadas de um cofre do culto, da
Mãe-Igreja, da Madre? Apercebia-me, claro, que estava a tecer
uma história complicada servindo-me de alguns meros fios de
provas e que uma tal hipótese não passava de remota
possibilidade. Mas sentia-me tão só, tão longe da minha
família e de Lisboa e do amor de Deus, que sentia a
necessidade de acreditar numa fábula, por mais inverosímil que
fosse, que desse alguma ordem aos acontecimentos daquele dia
terrível.
Tal é o poder da solidão. E compreendi então que uma
liberdade assim, a que é deixada aos órfãos abandonados e
aprendizes sem mestre, pode ser o mais temível de todos os
estados.

Capítulo IV

Passava já da meia-noite desse domingo, a terceira noite
sagrada da Páscoa, e Mestre David não tinha aparecido, quem
sabe se estaria morto ou escondido. À Porta de SantAna
apinhava-se uma turba de cristãos ainda mais compacta. à Porta
dos Monges, mais a oriente, estavam menos. Depois de ter
passado uns quantos aldeões sonolentos que comiam com sorvos
ruidosos um caldo em gamelas de pau, atravessei a ponte
visigótica fortificada de regresso a Lisboa, com a mão cerrada
em torno do punhal que trazia dentro da bolsa. O crescente da
lua deslizava sobre a corrente lá em baixo como um bote
celestial.
Sentia-me aguilhoado por ferroadas de ruídos como agulhas de
marfim. Apercebi-me apavorado que estava apanhado de febre. E
no entanto, teria eu alguma vez estado mais vivo? Cada um dos
nervos do meu corpo procurava içar-se para o presente à
procura do toque da sensação. Será que a cidade já era segura?
A resposta parecia não contar; uma saudade pungente no peito,
tão poderosa quanto um cântico da Tora entoado por meu tio,
empurrava-me para casa.
Para além da porta, uma vaga música de trompas em
contraponto parecia dançar como uma sombra ao longo das
muralhas mouriscas que rodeavam a parte mais antiga da cidade.
À medida que subia, via erguer-se perante mim o Palácio da
Alcáçova, com as suas torres em forma de bolbo brilhando com
uma luz alaranjada, que se diluía nas trevas como uma névoa.
Centenas de pés mais abaixo, como um protesto contra os meus
movimentos, dormia o coração de Lisboa e o maior bairro judeu,
conhecido entre nós por Pequena Jerusalém, vinte mil casas que
o luar revelava aninhadas pelas faldas das colinas e pelos
vales e recolhendo-se numa curva do Tejo. Rezava pela minha
família e o brando palor do luar sob as minhas pálpebras
destacou-se e fundiu-se como movido por anjos.
Desci pelo íngreme labirinto sinuoso das velhas escadarias e
vielas. Ao passar pela Igreja de São Martinho, fiquei
paralisado pelo cheiro de fumo. Abrandei o passo, avancei
encostado às paredes caiadas. Diante de mim abria-se o Largo
dos Loios. Face às inseguras arcadas do convento, crepitava
uma fogueira que lançava sobre a turba caprichosas borboletas
de luz e sombra. No meio, via-se um grupo de cristãos-novos da
Judiaria Pequena com os braços e pés amarrados com cordas da
marinharia. Em pé, em filas irregulares, com as roupas
esfarrapadas, as cabeças pendentes de exaustão. Sem uma
palavra. O olhar vazio, perdido de toda a esperança, revelava
que tinham sido arrastados pela cidade durante horas e horas.
Homens brutais, armados de espadas e alabardas, impediam-nos
de se mexer. Rastejei de volta e escondi-me atrás da parede
fendida da taberna da esquina.
- Por favor, não me façam nada! - Matem-me se quiserem, mas
poupem os meus filhinhos! - Estas súplicas atingiam-me como
punhadas, enquanto o meu olhar procurava o rosto dos meus
familiares à crua luminosidade das tochas. Abençoado seja o
Senhor, não via nenhum deles. Mas reconheci todos os presos
manietados, gravei os seus rostos na minha memória de Tora.
Um monge de nariz aquilino balançava um turíbulo fumegante
de prata e amaldiçoava os judeus em latim. Quantos teriam já
sido arrastados da nossa vizinhança e feitos em cinza? O
pequeno Didi Molcho, que todos pensávamos que viria a ser um
grande poeta? Teria o seu futuro sido arrancado das mãos de
sua mãe? Ou Murça Benjamim, que por trás de São Vicente me
tinha mostrado pela primeira vez o escuro segredo das
raparigas? Seria o seu corpo de assombro que no meio daquela
coroa de chamas estaria agora a ser? "Por piedade"! -
supliquei - "que esta noite mais ninguém seja queimado". Mas
por entre o respirar da minha prece uma pergunta assomava:
"como é possível Ele ter permitido a profanação de alguém
feito à sua imagem?"
Samuel Bispo, o ferreiro, atado à monumental cruz de pedra
no meio do largo, estava a ser chicoteado. Recuei para as
trevas, sem olhar para trás. Ruas vazias ecoavam as batidas
soturnas do meu coração. Sentia-me um cobarde de proporções
bíblicas por o ter abandonado a ele e ao resto dos nossos
prisioneiros. O meu peito e o ombro magoado doíam-me com
guinadas sucessivas e eu sentia-me envergonhado do meu terror.
Agachei-me até recuperar o fôlego e rezei pelo meu alívio.
Senti um cheiro adocicado a picar-me as narinas. Levei a mão
ao nariz e vi que sangrava. Vinha aí gente na minha peugada?
Pus-me em pé num pulo e encostado a uma porta de ripas fiquei
à escuta.
Chegava-me o rumor de água a pingar. Um morcego cortou o ar
e mergulhou numa janela aberta do outro lado da rua e senti-me
atingido por um terror tão violento como o rufar de um tambor
mourisco. Prossegui a caminhada. Vagabundos andrajosos dormiam
no meio de ovelhas no Largo do Limoeiro. Um deles, que estava
acordado, fixou-me com os seus olhos curiosos de idiota. Ao
atalhar pela frente da nossa antiga estalagem e hospedaria,
desci as escadas depois da malfadada casa onde Isaac Ben
Zachim se tinha dado a morte e aos seus filhos, depois da
conversão. Cortei para o beco por trás da Igreja de São Miguel
e, como quem vem de cair de escantilhão, vi-me de repente a
calcorrear a Rua de São Pedro. A meus pés espalhavam-se
milhares de cebolas e alhos, de uma carroça que tinha sido
derrubada. Uma ilha palpitante de ratazanas escuras formava-se
em torno do corpo despido e esventrado de um homem
decapitado. Corri para casa. Desde a última vez que ali tinha
estado, meio dia antes, o nosso mundo tinha sido profanado.
Havia fezes atiradas contra as paredes, lojas pilhadas, portas
e portadas derribadas. À entrada da nossa antiga escola pendia
o corpo do Doutor Montesinhos. Tinham-lhe pintado no peito com
os dedos uma cruz de sangue. Da boca surdia um soberano de
ouro: deve ter sido algum judeu mais corajoso que a pôs lá
para pagar a travessia do Rio Jordão. Uma das sandálias
caía-lhe solta, com um galho de loendro pendente da presilha
do calcanhar. Peguei nela. Dirigi-me para casa, esgueirei-me
pela cancela. No pátio, duas galinhas que se tinham escapado
da capoeira dos vizinhos cacarejavam correndo de um lado para
o outro. O limoeiro tinha sido derrubado à machadada. No meu
espírito, entoei o preceito sagrado do Deuteronómio que
condena o derrube das árvores de fruto mesmo durante
um assédio: "Podeis comer dos seus frutos, mas está-vos
vedado cortá-las". Em voz alta, "chamei: Cinfa! Judas! Ester!" Estive
quase a chamar por meu tio, mas a imagem dele estirado, rígido
e branco, selou o silêncio dos meus lábios. Quando agarrei a
maçaneta da porta, o vulto cinzento e misterioso de Roseta deu
um pulo para o muro baixo junto de mim. As cerejas tinham
desaparecido da coleira. "Espera" - sussurrei. Mas ela saltou
para dentro mal viu a porta entreaberta.
- Mãe! Tia Ester! - chamei em voz baixa.
As trevas da noite contiveram a respiração.
A lareira estava apagada. Tacteei a tijoleira do chão.
Estava molhada. Sangue? Levei os dedos à boca. Era só água.
Cortei a mão na ponta de uma faca que tinha tombado,
praguejei, e seguidamente bendisse Aquele que dá poder ao
ferro. Empunhei-a enquanto caminhava às apalpadelas para o
quarto que partilhava com Judas e Cinfa. Acariciando o pobre
colchão vazio onde costumavam dormir, fiz uma prece pela
segurança deles. Pé ante pé dirigi-me para o quarto de minha
mãe, chamei-a em voz baixa, palpei com a ponta dos dedos a
nudez vazia da sua cama. Enrolei o cobertor em volta dos
ombros para ver se deixava de sentir arrepios.
Onde estariam todos eles? O meu baú tinha sido pilhado outra
vez, mas ainda tinham deixado a maior parte da roupa usada e
já puída que tinha herdado. Libertando-me do cobertor de cima
dos ombros e despindo o albornoz de Attar, que me dificultava
os movimentos, vesti um par de calças de linho de meu pai e
uma das camisas do meu irmão mais velho. No baú de meu tio,
encontrei a sua antiga capa de lã. Estaria eu agora só, o
herdeiro de toda esta roupa, o narrador desta história?
Atravessando o pátio, dirigi-me a casa de Farid e chamei em
voz baixa por seu pai. Ao ouvir pesadas passadas no lado de
fora, escondi-me. Espreitei pela janela e avistei dois homens
armados de espadas, que giravam o olhar em redor a vigiar o
pátio. De repente, as solas dos meus pés reconheceram três
batidas no chão de tijoleira. Mais uma. Depois quatro. Era
Farid a formar o número pi nas traseiras da casa. Rastejei da
sala da frente para a cozinha. Senti uma mão suada a
agarrar-me o braço. Saudámo-nos com um beijo e depois agarrei
Farid enquanto os seus soluços silenciosos pareciam
dissolver-se através da minha pele no meu coração. Não podia
permitir-me abrir-me a emoções e afastei-o. Não encontrei
ninguém - informei-o na nossa linguagem de sinais, com os
dedos na palma da sua mão. Pensei em o pôr ao corrente da
morte de meu tio, mas fui retido pela reserva de que poderia
não ser verdade. Seria o meu mestre um cabalista tão poderoso
ao ponto de poder criar uma tal ilusão? Farid começou a fazer
sinais em movimentos agitados, frenéticos, mas eu não estava
habituado a ler as suas palavras na palma das mãos.
- Mais devagar - pedi-lhe.
- Quando os cristãos vieram, tentei fugir da Judiaria
Pequena - começou Farid -. Mas eram muitos. Parecia uma nuvem
de gafanhotos. Voltei para cá para me esconder. Houve um
momento em que vi Judas. Só o vi a ele. Frei Carlos ia a
correr pela rua abaixo com ele. Depois desapareceram na
igreja. Ainda tentei chamá-los, mas a minha voz.
Então Frei Carlos estava vivo! Se calhar estava mesmo
escondido quando lhe fui bater à porta! Mas que se passaria
com Judas? Sentia a palma da mão de Farid achatada e
comprimida contra a minha. O pulso dele batia descompassado.
O espaço e o tempo dissiparam-se até mais não haver que duas
presenças reunidas numa terna fronteira.
- Fiz o sinal pi, para ti, esta tarde, uma hora ou duas
depois do bater das nonas, mas ninguém respondeu - inquiri no
nosso código.
- Andava à procura de Samir.
- Soubeste alguma coisa? - Estava numa das mesquitas
secretas da Mouraria quando eles vieram, - fez ele, abanando a
cabeça -. Não consegui chegar lá. Não sei nada.
- Dois homens com espadas violaram a santidade do nosso
pátio - assinalei -. Vamos escapar-nos e vamos a São Pedro ver
se vemos Judas e Frei Carlos.
Farid levantou-se e conduziu-me através de quadrados de luz
e sombra para a porta das traseiras. Assim que pusémos um pé
fora, um homem de cabelo comprido armado de uma lança
surpreendeu-nos. A arma voou em minha direcção. Atirei-me para
o chão. O meu braço direito ardia - o sangue começou a correr
da lançada que me atingiu no cotovelo. Farid deu-me um puxão
para me levantar e desatámos a correr como loucos em direcção
ao rio. Na Escada dos Judeus percebi que o nosso perseguidor
continuava atrás de nós aos berros, a pedir ajuda, e acabaria
por atrair uma chusma se não o fizéssemos calar. Detive-me,
agarrei Farid e comuniquei-lhe o meu plano por sinais.
Assentiu com um aceno, continuou a correr pelas escadas abaixo
e cortou para o beco depois da botica do Senhor Benadife.
Com o sangue a pingar da mão, esperei o meu perseguidor no
topo das escadas. Atirei fora as sandálias para não escorregar
na calçada. Chegou ofegante ao sítio onde eu estava. Reparei
que era mais novo do que eu, com uma cara redonda, de
quinteiro, e uma grenha de cabelo preto revolto. Apesar de
toda a sua ferocidade, tinha uns olhos amedrontados. No cinto,
ao dependurão, viam-se orelhas humanas; numa delas, um brinco
de filigrana tilintava sempre que batia na sua anca. Noutro
tempo e noutro lugar, tê-lo-ia descrito como um dos
aterrorizados filhos de Saul. Que sentido vinha a ter tudo
isto? Era como se Lisboa tivesse escancarado as suas portas a
uma crescente epidemia de insânia. O fôlego ia-me chegando,
como se de uma terra estranha para além do medo.
- Volta para o teu milho e para o teu centeio - disse-lhe
eu.
- Roubastes os melhores campos a meu pai! - respondeu,
agachando-se como quem se prepara para saltar -. Não te mexas!
- ordenou. A lança balançava desajeitadamente; via-se que não
estava habituado a usar tal arma.
- Trabalho a fazer iluminuras e a vender fruta. Nunca roubei
nada! É estranho como o sentido de humor nos pode visitar,
mesmo nas ocasiões mais sérias. Nesse momento pensei:
"Bem, a verdade, verdadinha. uma vez um pão-de-ló com um
amigo".
- Marranos! Acudam! - gritou com quantas forças tinha. Numa
voz cheia de ódio, acrescentou: - A terra é nossa há séculos!
O vosso povo. Viveis apartados de nós, trazeis-nos a peste,
bebeis o sangue das nossas crianças!
- Devias queixar-te é de quem te tirou as terras! - disse
eu.
- Vós andais às ordens deles! Governais-lhes as
propriedades, cobrais-lhes os impostos! - Por trás dele, Farid
deslizou por um telhado como um gato e avançou com pezinhos de
lã.
- Larga a lança e vai-te embora, que não te acontece nada -
disse eu.
Num movimento brusco, ele investiu. Desviei-me, mas senti
uma ferida abrir-se no meu ombro são, como se o tivessem
esfolado. Ao ver correr o sangue, pensei: "Nunca mais hei-de
deixar que um cristão me faça mal", Farid apanhou-o por trás.
Com os seus braços possantes rodeou o pescoço do moço e
encostou-lhe ao rosto a lâmina curva da sua adaga mourisca. Eu
recolhi a lança e disse: - "Se em vez de nos atacares a nós,
atacasses os nobres, as coisas andavam melhor!" Do fundo da
rua chegavam até nós brados medonhos: "Segura-os, meu valente!
Vamos já aí!". Fiz sinal a Farid para o soltar; tínhamos que o
trocar pelas nossas próprias vidas. Ao sentir-se livre, o moço
cuspiu-me na cara.
- Quando te apanharmos, hei-de arrancar-te os tomates e
pendurá-los ao cinto! - ameaçou.
Dei-lhe um golpe com a lança na anca, que o tombou. O sangue
envolveu-lhe a perna, como que a abafar os seus gritos
dilacerantes. Farid agarrou-me e fez-me dar meia volta.
Precipitámo-nos pela Escada dos Judeus abaixo em direcção ao
rio. Atirei às águas de prata aquela maldita arma onde o meu
sangue se confundia com o de um cristão-velho. Enquanto
corria, pensava na violência que parecia irromper em mim com
tamanha facilidade. Não teria também eu muito simplesmente
andado todos estes anos a usar uma máscara de devoção e de
docilidade? Não haveria um Berequias que eu apenas vislumbrara
em momentos de raiva e de desespero? A madrugada surdia em
tons de rosa e de ouro velho. Estávamos escondidos num banco
de areia de uma lagoa de caniços entre Lisboa e Santa Iria.
Acordei de um sono sem sonhos nos braços de Farid, espantado,
surpreendido com o regresso do sol. Enquanto ele me limpava a
testa e me obrigava a sentar, senti-me impressionado pela sua
beleza singela, especialmente pelo escuro buço juvenil que lhe
despontava no rosto, contrastando como um adorno com a sua
pele azeitonada. As espessas madeixas de cabelo negro como
carvão emolduravam-lhe as faces como uma juba, cobrindo-lhe a
fronte e caindo em cascata sobre os seus ombros largos. Que
tinha um ar de mágico, acusavam as pessoas que temiam o seu
silêncio e o juízo dos seus olhos verdes luminosos e que na
sua ignorância criam que o surdo era maligno. Mas as únicas
magias com que Farid cismava tinham a ver unicamente com os
seus versos. Era um poeta nato e as mais das vezes o seu olhar
estava simplesmente concentrado no seu interior, avaliando
apenas a curva de uma frase ou o contorno de um ritmo. Neste
momento, os seus lábios adelgaçaram-se numa fenda pensativa.
Apertava com os dedos o comprido lóbulo da orelha direita,
como era seu costume sempre que estava preocupado. Parecia que
ansiava por falar, mas claro que tal era impossível. Impelido
pela beleza de Farid, fui levado a observar a minha própria
imagem nas águas calmas que nos rodeavam. Comparada com a
dele, a minha figura era desgraciosa, e era como se me fosse
impossível reconhecer-me neste gémeo que via reflectido
mirando-me com o seu olhar acossado, o cabelo emporcalhado e
emaranhado caindo-lhe sobre os ombros. O jovem estudioso de
perfil inquiridor, em tudo semelhante a tio Abraão, parecia
ter sido engolido pelo jovem rústico, descarnado, de face
agreste, um Pã vingativo. Ter-me-ia tornado numa criatura
meio-humana, como os dominicanos nos concebiam? Farid bateu-me
no ombro, oferecendo-me do pão que tinha na sacola. Recusei,
pois estávamos ainda no terceiro dia da Páscoa e celebrando o
ëxodo, apenas me sendo permitido o pão ázimo.
- A tua febre baixou durante a noite - disse por gestos -.
Sentes-te melhor? - O meu ombro deslocado estava rígido, com a
mesma dor surda, nodosa, que para sempre haveria de associar
àquela Páscoa de morte. A ferida no braço estava mole,
com crostas de sangue. Tinha o pé direito a latejar, com os
dedos cheios de golpes.
- Fomos abandonados por Moisés - comentei por gestos -.
Temos de chegar à outra margem do Mar Vermelho à nossa custa.
Estamos completamente sós.
Enquanto Farid comia, os juncos em torno a nós balouçavam em
harmonia com a ligeira maré. O som da água lambendo a areia
era como o de gamos a beber. Tudo estava tranquilo, como
sempre deveria ser. Comecei a chorar, como se estivesse
perante as portas da compaixão de Deus e com os meus gestos
interroguei o meu amigo: - Qual será o mundo real? Este ou...
- Paraíso e Inferno são o mar e o céu - acenou em resposta
-. E tu és o horizonte.
Nesse momento as suas palavras não me diziam nada. Era antes
a elegante dança das suas mãos possantes que de tão bela se
tornava quase insuportável. E quando ele me acariciou no
rosto, os soluços que retinha na garganta romperam. A
lembrança da fogueira irrompeu como lava impetuosa sobre
ambos. Mas mesmo então não fui capaz de lhe falar em meu tio.
Farid pegou na mão da Senhora Rosamonte. Como estava
assustado! Tremia. E porém deixou aqueles dedos de mármore
ensanguentado pousados sobre as suas pálpebras enquanto
rezava. Só então reparei nas feridas e nódoas negras que tinha
no pescoço.
- Vamos enterrá-la num limoal - diziam os seus gestos -.
Assim pode continuar a presentear-nos com limões.
- Que foi isso? - inquiri, apontando as feridas.
- Nada - respondeu.
- Diz.
- Foi a noite passada no beco. Um homem que tentou deter-me.
Matei-o.
Era a primeira vez que um de nós usava o verbo matar" na
primeira pessoa. Ambos compreendemos que a nossa linguagem de
gestos tinha de mudar para poder acompanhar este novo século
cristão-velho. Como se nos parecesse despropositado, nenhum de
nós disse mais nada enquanto caminhávamos ao longo do Tejo, de
regresso a Lisboa. Sentindo-me distante das minhas próprias
emoções, lembrei-me do jovem fidalgo que tinha empurrado do
telhado. Onde haveria de encontrar perdão por ter tirado a
vida a um ser que recebera uma centelha do amor de Deus? No
exterior da Porta de Santa Cruz deparámos com alguns barcos do
sal atracados. Mulheres de pés nodosos e cheios de bolhas,
balançando com potes de cristais alvos à cabeça, sorriram para
nós. As crianças brincavam, os cães abanavam a cauda. Um
mercador numa indumentária escarlate e verde levou a mão ao
barrete saudando-nos, sem qualquer razão que se pudesse
vislumbrar. Farid comprou arroz doce e sardinhas assadas a
uma das mulheres que vendia comida junto à margem. Foi ele
quem devorou tudo, pois eu não o podia fazer.
Entrar na Judiaria Pequena era como sair de um teatro. De
repente, a imagem não surgia da negação ou da separação, mas
sim como era, rodeada de fezes e fedendo a violência;
cauterizada com o ladrido de cães a desfazerem-se em baba, em
torno de ilhas oscilantes de ratos e ratazanas.
Os sobreviventes, de olhar vago, limpavam o sangue das suas
soleiras, ostentando máscaras sem lágrimas, arrastando os pés
nus e desencantados. íamos dando conta dos corpos inertes:
Saul Ha-Kohen dobrado sobre as ripas da janela do quarto, com
um braço, rígido como carne em salmoura, agitado pelo vento de
um lado para o outro, batendo um código estranho numa portada.
Raziela Mor, esventrada, com uma cebola na boca, que sua filha
Nafa procurava extrair, estava coberta de moscas que punham
os seus ovos no ventre dela. O Doutor Montesinhos pendia
rígido e intumescido do ornato espiralado que encimava a porta
da nossa escola. Sentado numa pá, via-se um recém-nascido
desconhecido a quem tinham arrancado a cabeça.
Face ao impensável, que assim tomara forma, nenhum de nós
ousava falar.
Alguém pode imaginar o que significa ver uma criança
decapitada sentada numa pá? É como se todas as línguas do
mundo ficassem esquecidas, como se todos os livros escritos se
tivessem reduzido a pó. E como se alguém pudesse ficar feliz
com tal coisa. Por pessoas como nós não terem direito a falar
ou escrever ou deixar qualquer traço na História.
As portas da nossa loja jaziam agora sobre a calçada
voltadas uma para a outra em ângulos oblíquos, como a entrada
para um mundo torvo, subterrâneo. Do outro lado da rua, da
casa da Senhora Faiam, chegavam-nos queixumes abafados em
hebraico. Os olhos azuis do seu cão Belo fixavam-me
suplicantes por cima do muro. Segurava na boca um velho osso
lascado, amarelecido pelo tempo; ao que parece, tinha voltado
a encontrar os despojos da pata esquerda dianteira que
recentemente lhe tinha sido amputada e que a Senhora Faiam
tinha enterrado atrás da Igreja de São Pedro. As narinas
fremiam como se estivesse no rasto de alguém a quem mostrar a
sua presa.
Minha mãe e Cinfa vieram ao meu encontro no pátio. Tinham
andado a apanhar os pedaços de ardósia partidos. Cinfa gritou
o meu nome e deu uma corrida aferrando-se ao meu braço como se
tivesse medo de escorregar. Minha mãe deixou-se cair de
joelhos e começou a gemer. Do pescoço pendiam-lhe dois
talismãs de pergaminho. Quando a levantei, agarrou-se a mim
com tal desespero que os nós dos dedos ficaram brancos e
soluçava num modo que parecia estar a vomitar. Quando
recuperou o fôlego, disse: - Não sabemos do Judas. Não sei o
que...
Estreitava-me tão fortemente que tinha a impressão que o seu
coração batia dentro do meu peito. Cinfa abraçava-se a Farid
- Não te fizeram mal? - perguntou minha mãe -. Não houve
nada que não...
- Não. Estou bem. E tia Ester? E Reza?
- Ester está magoada, mas viva. Reza não sabemos.
Voltou-se para Farid. Apesar de não lhe agradar muito a
minha amizade com ele e de se sentir atemorizada com o seu
silêncio, fitava-o com ansiedade. Levantou a mão e tentou
imitar o nosso gesto de saudação. "O Farid está bem? -
perguntou-lhe.
Farid sorriu amavelmente e inclinou a cabeça em
agradecimento.
- Está bem, também - disse eu -. Onde é que estavam todos
ontem à noite? Vim cá, mas a casa estava vazia.
- Estávamos cá! Estava escondida na loja com a Cinfa. A
primeira vez que os cristãos cá vieram tínhamos ido fazer a
sesta com a Didi e a mãe. Viemos a correr para casa e demos
com.
- E não me ouviram? - interrompi.
- Estávamos no meio dos barris de feijão e tapadas com
cestos de figos meio podres - disse minha mãe, abrindo as mãos
com manchas cor de púrpura -. Não nos mexemos dali até não
podermos mais. Não se ouvia grande coisa.
Assim sujas, com a pele violeta dos figos e a cheirar a
açúcar fermentado, tanto ela como Cinfa me pareciam de repente
possuídas de uma beleza etérea; resplandeciam como quem
regressa à vida. Agora ria-me, com um absurdo alívio. Beijei-a
na testa. Linda menina - disse eu, como se fosse o meu pai.
- Os cristãos-velhos pregaram Ester ao chão diante da Igreja
de Santo Estêvão - disse ela num tom conspirativo -. E depois.
Acenei a mostrar que entendia e ela baixou os olhos.
- Mãe, viu algum dos iniciados? Frei Carlos, Diego, Sansão.
- Ninguém.
Depois de ter verificado por toda a casa, Farid informou-me
que Samir não tinha voltado. Entrámos para minha casa. Tia
Ester estava sentada na cozinha com a mão entalada entre as
pernas, os pés descalços numa poça de água. Beijei-a na testa.
Estava fria. Em silêncio. Cobri-a com um cobertor da cama de
Cinfa e de Judas. A medo, sussurrei a minha mãe: - Então.
então ainda não viu o tio?
- Não. Pensei que devia estar na cave. Mas o alçapão está
fechado com pregos. Deve tê-lo selado. E as cortinas dos
postigos estão corridas. Não se vê nada para dentro. Batemos e
gritámos por ele dúzias de vezes, mas não há resposta. E tenho
medo de forçar a entrada. Ele lá terá as suas razões para a
querer fechada, para proteger os livros ou outra coisa mais.
mais oculta. Espero que esteja bem. Se calhar foi ver se nos
encontrava e não pôde voltar para casa.
- Quando foi a última vez que o viu? - perguntei
- No domingo, depois do almoço. Pouco tempo antes. antes de
eles chegarem. Tinha ido para a cave para os cânticos. E a
Cinfa e eu saímos para.
- Mãe, fui eu quem pregou o alçapão - disse eu secamente.
- Tu? E porquê?
- Quando vim a casa. Fui lá abaixo e. espere! - Dirigi-me ao
telheiro do pátio, trouxe um martelo e atirei-me ao alçapão
até ver saltar a última tábua, que se rachou com um som que
parecia implicar um fim terrível, como se nunca mais nos fosse
possível sentirmo-nos seguros na nossa casa.
- Não desça ainda - disse a minha mãe, enquanto descia as
escadas -, Deixe-me dar uma vista de olhos.
Era insensato, mas queria ser o primeiro a ver meu tio
porque naquele tempo eram poucas as coisas que eu considerava
fora dos poderes de um mestre da Cabala. Não poderia dar-se o
caso de antes de lhe terem cortado a garganta ele ter engolido
um pedaço de papel com alguma fórmula ritual particular, com
um dos nomes secretos de Deus, que o poderia trazer de novo à
vida?
- Porquê? O que é que. - Minha mãe agarrou-me o braço -.
Passa-se alguma coisa? Ele está aí em baixo?!
- Pronto, venha daí então - disse eu, sentindo no
estremecimento da minha própria voz a simples verdade do seu
desaparecimento para sempre da Esfera Terrena -. Mas mais vale
que saiba que o tio nos deixou.
Minha mãe levou a mão à boca para abafar um grito. Estendi
as mãos para ela, mas afastou-me como se eu estivesse
conspurcado. Começou a descer as escadas, com uma das mãos em
venda sobre os olhos e a outra agarrada aos talismãs que lhe
pendiam do pescoço. Mas não chorava. Um único gemido quando
avistou meu tio. A respiração arquejante, como quem perdeu o
fôlego. Mais nada.
Quando se ajoelhou para levar os dedos de meu tio ao rosto,
começou a puxar os cabelos. O rosto abriu-se em soluços. Saí;
era um momento que não deveria contar com testemunhas.

Capítulo V

O tempo é como um selo a atestar a existência. E,
tal como o selo, é artificial. Como meu tio costumava dizer, o
passado, o presente e o futuro são realmente versos do mesmo
poema. O nosso fim é traçar a disposição da sua rima de
regresso a Deus.
E no entanto estávamos já na tarde de segunda-feira, passado
um dia da morte de meu tio.
Começava a cair a quarta noite de Páscoa. Minha mãe tinha
acabado de sair da cave e dissera-me que nunca vira antes a
rapariga.
- Tem a certeza? - perguntei.
- Nunca - sussurrou envergonhada. Percebi que devia estar a
pensar: "Foi o pecado carnal que chamou a morte dele". Estava
em pé, junto dos corpos, tendo a meu lado minha tia. Esta não
gritava nem chorava, tinha-se limitado a pegar num caco de
vaso partido e com o gume arranhava os dedos.
- Tia Ester, páre com isso! - disse eu.
O seu olhar inexpressivo, distante e infantil, mostrava não
se resignar à fatalidade da morte de meu tio, que aos poucos
ia penetrando os nossos corações. Um lamento cresceu então do
seu ventre, estalando subitamente em soluços. Os seus olhos
passavam dele para a moça. Inclinou-se para diante como se ele
a puxasse para si e desatou a golpear o indicador, o dedo da
aliança de casamento. Corri para ela e tirei-lhe o caco dos
dedos. Um sangue ardente jorrou, cobrindo-me as mãos.
Farid precipitou-se das escadas e passou o braço em torno da
cintura de tia Ester. Ao sair amparada a ele, voltou-se e
olhou para mim por cima do ombro como quem se despede antes de
uma longa viagem. Com Farid seguindo-a de perto, vi-a subir as
escadas com uma graça etérea.
Apesar de a sua rota nos ser oculta, o caminho entre a
tristeza e a clarividência deve ser cuidadosamente arranjado
pelo Senhor; de repente compreendi que o criminoso, que
conhecia intimamente o conteúdo do nosso armário do material,
conhecia também provavelmente a nossa geniza. Pegando na chave
que estava dentro de uma bexiga de enguia pendurada por trás
do Espelho que Sangra, levantei a orla do tapete de orações
junto à parede que dava para norte e retirei
uma ripa, deixando à mostra uma fechadura. Dei meia volta para
a direita. Ouviu-se um estalido. Ergui um alçapão de madeira,
de três pés por quatro, disfarçado com ardósia. A geniza
abriu-se com um gemido de protesto. Tinha acertado! Viam-se
nódoas de sangue sobre dois dos manuscritos que estavam por
cima: As Fábulas da Raposa, que eu andava a ilustrar, e o
Livro de Ester que minha tia copiava. Por baixo, quase tudo
limpo, a não ser aqui e acolá as dedadas vermelhas do
assassino. Havia Toras familiares, Haggadas e livros de
orações; um mapa do Mediterrâneo de Judas Abenzara;
comentários religiosos de um amigo de meu tio, Abraão Sabah;
obras poéticas de Farid ud-din Attar; e dois manuais
espirituais de Abraão Abulafia, o nosso pai espiritual, que
meu mestre ainda não tivera a coragem de confiar aos seus
secretos emissários. Por baixo destes, aparentemente intocada,
repousava uma Tora com iluminuras de monstros míticos, legada
a meu tio pelo seu falecido amigo Isaac Bracarense; um Alcorão
da Pérsia; três maços de correspondência pessoal de meu
mestre; o nosso saco de lã com moedas, ainda com algumas de
cobre e de prata; e finalmente o contrato de casamento de meus
tios, escrito por ela e ilustrado por ele. Voltei a encerrar
tudo dentro da geniza.
Parecia-me evidente que o intruso tinha interrompido a sua
busca antes de atingir os manuscritos do fundo, que estavam
ainda sem manchas de sangue. Se tivesse chegado lá, teria
certamente roubado o dinheiro. A única obra que faltava abria
as pétalas de um novo mistério: era a Haggada que meu tio
tinha andado a completar pouco antes da sua morte. Apesar da
ousadia dos seus motivos decorativos e das suas letras com
cabeças de aves, o seu valor em nada se comparava com os
manuscritos de Abulafia, alguns dos quais contavam séculos e
tinham sido escritos pela mão do próprio mestre. Concluía-se
que a Haggada de meu tio devia possuir um secreto valor para o
salteador.
Com esta certeza veio-me uma outra, que me fez voltar e
virar-me para as escrivaninhas: o ladrão tinha achado a chave
da geniza dentro da bexiga escondida atrás do espelho. Isto
era uma confirmação de que havia um membro do grupo de
iniciados envolvido. Mas porque teria voltado a fechar a
geniza? Seria meramente por querer manter tudo em ordem?
O impulso de buscar um poder capaz de reforçar o meu,
levou-me a procurar na bolsa o anel de íbis de meu tio e
enfiá-lo no meu indicador direito.
Farid, regressado à cave, estava postado entre os dois
cadáveres, observando as duas marcas com crostas de sangue que
vincavam o pescoço de meu tio. Subitamente começou a oscilar
como quem perde o apoio. Quando me fitou, algo que ele viu, Os
olhos rolaram-Lhe nas órbitas, revelando uma cor alvacenta,
doentia. O corpo como que se fundia. Dei um salto e estendi os
braços para Lhe amparar a queda e segurei-o até voltar a si.
Cinfa tinha assomado ao patamar. Os olhos dela, como
ponteiros da Tora, fixavam-se em meu tio, com as mãos agarrava
o cabelo na nuca e um líquido corria-lhe pelas pernas das
calças. Receando que não estivesse preparada para enfrentar a
morte vista de tão perto, gritei-Lhe: - Vai lá para cima e
fica a vigiar a porta! Não deixes ninguém descer! Enquanto ela
seguia as minhas instruções, Farid despertou. Comecei a
enxugar a sua testa com a minha manga e ele soergueu-se até
ficar sentado. - Já estou fino - diziam os seus gestos -. Foi
só porque era tudo de mais a poder aguentar. E reparei numa
coisa.
- Que foi?
- Ali, na coxa direita do teu tio. - Farid apertava as mãos
uma contra a outra e respirou fundo.
- O quê?! - perguntei.
- Semente branca - respondeu Farid, usando o termo da Cabala
para designar o sémen.
- Mas que é que estás a dizer?
- Anda cá - ordenou ele. Acocorámo-nos os dois. Na parte de
dentro da calça de meu tio, confundindo-se com manchas de
sangue, viam-se umas crostas, - São lascas de mica.
- Isso pode muito bem ser outra coisa! - repliquei com
gestos vivos -. mel, ou leite de amêndoa que tivesse caído.
Meu tio era um descuidado com.
- É semente branca! - repetiu Farid, com um gesto impaciente
-. Cheirei e. - antes que o pudesse deter, retirou uma
película e colocou-a na língua. Provou-a como quem ensaia uma
nova especiaria. De repente, começou a cuspirlhar, deitou-a
fora nas mãos, limpando-as às calças seguidamente -. Tinham
acabado de ter comércio carnal - afirmou com gestos
terminantes.
Não foi tanto o choque de ver que meu tio podia juntar-se
com outra mulher que não minha tia Ester que me deixou a
arquejar, mas antes o ele ter levado aquela mulher para a cave
onde rezávamos, para a nossa sinagoga. Era impossível! Tudo se
tornava diferente! E no entanto.
- Tens de me ajudar - pedi a Farid, compreendendo que tinha
chegado o momento em que tinha de recorrer aos seus
particulares talentos. Retirei à rapariga o tapete de orações
e revelei-lhe o que sabia e o que suspeitava, mostrando-lhe o
recado que meu tio tinha escrito para Dom Miguel Ribeiro, o
fidalgo para quem minha tia Ester copiara o Livro de Salmos.
Quando acabou de o ler, tomei as suas mãos e pu-las no meu
peito para que sentisse o bater do meu coração.
- Farid, estive a pensar que talvez Deus nos tenha juntado
por causa desta páscoa. Talvez Ele queira que encontremos
juntos o assassino de meu tio. Vou ter de ir à procura de
Judas. Mas agora o que eu queria é que desses uma volta a esta
cave, sondasses todas as coisas, todas as sombras, e me
dissesses se vês alguma coisa que eu não tenha visto. Tudo!
Quero que me digas o que pensas sobre o que se passou.
Farid fez o que Lhe dissera. E assim que se sentiu preparado
para me comunicar o que tinha descoberto, fez-me deslocar
para junto de meu tio. Agachámo -nos junto à sua cabeça.
"Quando será possível enterrá-lo?" - pensei subitamente,
lembrando-me que tínhamos de o levar para chão sagrado o mais
depressa possível.
- O corte na garganta é ligeiramente inclinado - mostrou-me
Farid - A meu ver o criminoso torceu a cabeça de teu tio para
a esquerda, agarrando-o por trás, e com uma faca bem afiada na
mão direita. - e Farid passou o braço pelo peito indicando o
movimento que deve ter posto termo à vida de meu tio.
Ergueu-se, passou por cima da moça, baixou-se junto às mãos
dela, inclinou-se e cheirou-as avidamente, resfolegando como
um cão. Erguendo os olhos para mim, comunicou-me:
- O trabalho dela tinha a ver com azeite e rosmaninho. Há
ainda mais qualquer coisa que já quase não se dá Por ela,
talvez essência de limão - esfregou o polegar no indicador -.
Tem aqui uns restos de cinza. Iria jurar que era padeira. A
cinza deve ser do forno.
Assenti com um aceno. Seria bem mais louco do que o que sou
se desprezasse o faro ou os olhos de Farid.
- E repara na fonte direita dela - indicou com um gesto -.
Tem ali um entalhezito circular. E do lado esquerdo também.
- E que achas que seja isso?
- Não faço ideia. Mas a simetria é bastante esquisita. Agora
anda cá!
Conduziu-me ao enfeite de couro onde tinham passado a faca.
Levantando a ponta acima da sua cabeça, mostrou-me cinco
dedadas de sangue que terminavam abruptamente no rebordo limpo
de um azulejo, como se tivessem roçado ali os dedos. Poderia o
intruso ser dotado do poder de desaparecer recorrendo a
símbolos cabalísticos pintados com dedos de sangue? Teria um
dos iniciados invocado algum demónio ou algum espírito para
matar meu tio? Poderia tal criatura do Outro Lado através da
mezuza ter franqueado a nossa porta?
- Que é que isto te diz? - perguntou Farid, com um gesto
veemente. E vendo-me abanar a cabeça, deixou cair a cortina de
couro e ordenou-me, - Agora passa-me a conta do rosário e o
fio.
Tirei-os da bolsa e dei-lhos. Cheirou-os e Passou-Lhes a
língua.
- A conta é de alfarrobeira, bem polida. Cara e feita cá,
parece-me. Mas não pertence a Frei Carlos. Pelo menos não é do
rosário que costuma trazer, que esse conheço-o bem. O fio,
como sabes, é de seda. De muito boa qualidade. Precisava de
ver as luvas de Simão para perceber se são iguais. E mesmo
nesse caso. Deve haver mais milhas de seda preta em Lisboa do
que ruas calcetadas - e, ao dizer isto, deixou pender as mãos
ao longo do corpo.
- Nada mais? - perguntei.
- Só que tinhas razão quando dizias que o teu tio deve ter
sido morto com as roupas ainda vestidas. Tem marcas de
excrementos e de semente branca por dentro da túnica.
Era como se o corpo de meu tio tivesse libertado todos os
seus humores. É possível que, face a uma morte violenta, o
corpo procure purificar-se para que a alma possa partir
depressa para junto de Deus.
- É tudo o que descobriste? - perguntei. E quando assentiu,
insisti. -- Mas como será que se escapou? Tenho a certeza que a
entrada estava bem trancada do lado de dentro. Só se passasse
através das paredes da cave. Não tinha modo de.
- Só me ocorre uma magra ideia para ver se consigo desfazer
a minha ignorância - diziam os seus gestos.
- O quê?
Farid apontou para os postigos. Eram três, de forma oval,
não mais compridos que dez polegadas nem mais largos que uma
mão travessa, e estavam tapados com pequenas portadas que se
podiam trancar e vendas de pele bem polida que apenas deixavam
entrar um fio de luz.
- Nem uma criança ou um anão conseguiam passar por ali -
repliquei -. A não ser que o assassino fosse uma marta ou uma
víbora.
- Eu tinha dito que era uma magra ideia - Farid encolheu os
ombros, levou o polegar e o indicador aos lábios, descrevendo
seguidamente com eles um arco gracioso. Queria assim dizer que
teríamos de esperar que Alá nos desse uma resposta.
- Não posso ficar à espera dEle - repliquei.
Encaminhei-me para as escadas e sentei-me a cismar no
mistério. "É estranho sentir só este vago vazio e a fraqueza
do corpo" - pensei. Era como se o meu amor tivesse morrido com
o meu tio. Como se, desligado do meu passado e presente,
flutuasse livre de tudo, a não ser da insistente necessidade
de descobrir o culpado.
Subitamente, o meu coração parecia querer saltar-me do
peito: ouvia-se alguém arranhar a portada de um dos postigos
de que tínhamos estado a falar. Corri pelas escadas acima,
precipitei-me através da cozinha para o pátio. Mas era Roseta
que sacudia com a pata um novelo de lã vermelha que meu tio
tinha feito há pouco tempo para ela brincar. Estava toda
molhada, parecia que a tinham atirado a um poço.
- Estúpido animal! - sibilei eu furioso.
Respirei fundo, pedi-lhe perdão e saí para a rua. A uns cem
passos para oriente, ao fundo da Rua de São Pedro, o corpo do
doutor Montesinhos pendia ainda do umbral da nossa antiga
escola. Diante dele estava um homem baixo, com uma comprida
capa violeta, com a mão direita erguida como que
numa bênção. Só lhe via o perfil, mas parecia-me distinguir os
cabelos grisalhos, rebeldes e a cor de canela de meu tio. "É o
tio!" - pensei de repente, como se todas as minhas anteriores
conclusões sobre a sua morte não passassem de pura tolice -. É
claro! É um mágico capaz de nos enganar a todos!, Era uma
loucura, bem sei, mas fui percorrido por um grande alívio e
encaminhei-me para ele. Acho que até me comecei a rir. Mas ao
ouvir aproximarem-se os meus passos, o homenzinho escuro
virou-se para mim, ficou hirto e depois desapareceu na esquina
em direcção às traseiras da Igreja de São Miguel. Quando
atingi o local, já ele se tinha desvanecido. Profundamente
confuso, voltei até junto do corpo do doutor Montesinhos. O
soberano de ouro que Lhe tinham posto na boca para pagar a
travessia sagrada do Rio Jordão já lá não estava. Com um
sobressalto, como se tivesse acabado de me despenhar de algum
muro, pensei:
"O homem da capa violeta não era o meu tio e não estava nada
a abençoar o morto, estava mas era a roubar a moeda". Não
passava de algum reles ladrão Ao regressar a casa, sentia-me
invadido pela impressão de que a história tinha enveredado por
algum ínvio atalho ignorado até por Deus. Todos nós, em
Lisboa, tanto judeus como cristãos, dependíamos agora apenas
de nós próprios para sobreviver. E foi nesse momento que me
ocorreu um pensamento terrificante que nunca imaginei que
pudesse atravessar o meu espírito: "Nunca houve Deus nenhum a
vigiar-nos! Mesmo na sua essência cabalística, a Tora não
passava de ficção. Não existe aliança nenhuma. Dediquei toda a
minha vida a uma mentira". Tendo descido à cave, sentei-me
novamente no último degrau das escadas, com a cara enterrada
nas mãos. Farid sentou-se a meu lado e pôs-me a mão na cabeça.
- Neste momento todos duvidamos de Deus - consolou-me ele -.
Não penses nos problemas maiores que todos enfrentamos. Temos
nas mãos um homicídio. Vamos lá a ver outra vez. Qual seria o
valor tão especial que a Haggada do teu tio tinha para o
assassino?
Lembrei a Farid que meu tio tinha o hábito de desenhar os
personagens bíblicos inspirando-se em pessoas conhecidas de
Lisboa, vizinhos e amigos, incluindo os seus adorados
confrades do círculo de iniciados. E como é evidente,
procurava sempre encontrar-Lhes personagens que partilhassem
dos mesmos interesses e predilecções.
- Algum desses iniciados tinha servido para ilustrar um
homem vil? - inquiriu Farid.
- Não - respondi -. Não me parece que suspeitasse de algum
deles. Ou então só há muito pouco tempo é que tinha descoberto
a traição de algum deles. O mais certo era não voltar atrás
para refazer as iluminuras. Era um trabalho demasiado
laborioso para resultados.
Parei a meio da minha frase: tudo se ajustava! Sexta-feira
passada, pouco antes da nossa seder da Páscoa, meu tio
tinha-me dito que tinha encontrado o rosto de Aman para o seu
último manuscrito. Na sua voz entreteciam-se a tristeza e o
alívio. Dirigindo-me a Farid, por meio da nossa linguagem de
gestos, expliquei-Lhe que meu tio devia ter descoberto uma
espécie de conjura contra ele nesse próprio dia.
- Estou convencido que terá usado o rosto do seu principal
inimigo para retratar o vil Aman. o rosto do homem que o
haveria de matar. É a única explicação. Foi por isso que
roubaram a Haggada. O assassino sabia que tinha sido
retratado. Ou suspeitava. Ou até o terá descoberto
acidentalmente ao folhear apressadamente os manuscritos da
geniza. Entrou em pânico e levou-a. Por isso é que não deixou
manchas de sangue nos manuscritos do fundo nem levou as
moedas.
Farid repuxava o lóbulo da orelha e o seu olhar fitava-me
gravemente do canto do seu nariz largo.
- Temos de estudar os iniciados um a um - propôs -. Frei
Carlos, qual poderia ter sido o seu móbil? Poderia Aman ser
ele?
- Meu tio tinha tido uma discussão com ele sobre uma safira
de Salomão Ben Gabirol que Frei Carlos se recusava a ceder.
- E Sansão Tijolo? Teu tio tinha falado nele ultimamente?
- Momentos antes de eu ir a casa dele comprar vinho, meu tio
tinha-me dito que precisava de falar com ele e deu-me um
recado para lhe entregar.
- O que é que Lhe queria dizer?
- Não sei - respondi com um gesto -. Mas há outra coisa. É
que eles a bem dizer não se viam nas reuniões de iniciados.
Seria só por causa da distância a que ficam as duas casas? Às
vezes ficava a pensar nisso.
- Haveria ali uma pinta de aversão?
- Mais uma espécie de porfia. Eram dois cabalistas
inteligentes e prestigiosos. Mesmo entre anjos pode haver
rivalidade.
- E temos ainda Diego - retomou Farid.
- Não sei se já teria sido informado do segredo da geniza -
repliquei, pois sabia que Diego não tinha ainda concluído a
sua iniciação no grupo.
- Podias perguntar isso a um dos iniciados.
Peguei na folha que tinha caído do turbante de Diego e
passei-a a Farid, explicando-lhe como me tinha chegado às
mãos.
- Que me dizes a isto? - perguntei.
- Madre quer dizer mãe, claro, sobretudo quando se fala de
Nossa Senhora. Iria dizer que deve ser algum talismã meio
judeu, meio cristão. Alguma oração à Virgem a pedir que alguma
coisa corra bem a um Isaac no vigésimo nono dia. - devolveu-me
a mensagem -. Os marranos andam a fazer coisas muito estranhas
estes últimos tempos. Sois como esfinges com coração de judeu
e cabeça de cristão.
- Mais uma coisa, Farid: nessa altura Diego estava ferido.
Achas que depois de ter sido apedrejado e perseguido ainda
teria forças para talhar a garganta a duas pessoas?
- Se visse que tinha de ser. Diego é um sobrevivente, que
fugiu de Castela com os inquisidores a saborear a sua captura
iminente. Os ferimentos seriam a sua melhor desculpa, caso
alguém começasse a suspeitar dele.
- Mas ele vive longe daqui. Achas que se ia arriscar à
travessia de um mar de cristãos para chegar a nossa casa? Não
me parece.
- E se estivesse ajustado com Eurico Damas?
- Ou com o Rabino Losa - observei. - Esse sempre teve um
ódio tremendo pelo meu tio. E negoceia em artigos religiosos,
rosários também, de certeza.
- E para acabar temos Dom Miguel Ribeiro - concluiu Farid
com um profundo suspiro.
- Parece-me que meu tio tinha ido ver Dom Miguel para lhe
pedir ajuda para comprar um manuscrito valiosíssimo, um livro
que ao que parece provocou uma disputa no círculo de
iniciados. Desta vez, a paixão de meu tio de salvar a mínima
página hebraica da destruição talvez o tenha conduzido à
morte.
- E o marido da rapariga? - interrogaram os gestos de Farid
-. Que é que achas? - Agarrou-me nas mãos para suster o meu
protesto -. Bem sei que é quase impossível que entre ela e teu
tio houvesse comércio carnal - explicou -. Mas nem todos foram
abençoados com a tua fé. Talvez o marido se convencesse de que
ela o andava a mimosear com um belo par de cornos. Por
qualquer motivo, ela podia ter recorrido à ajuda de teu tio,
podia querer esclarecer alguma dúvida religiosa. O marido
podia tê-la seguido a pensar que ela se ia encontrar com quem
andava amigada e ao vê-la entrar no alçapão entrou também e
saltou sobre o teu tio. Depois levou as roupas da mulher para
que ninguém seguisse a pista até ele.
- Um marido cego pelo ciúme, iroso, sem fé nem confiança.
- Lisboa está cheia dessa praga até às torres. Quantos
homens não conhecemos nós que são incapazes de entender os
caminhos do amor?
- Mas não podia deixar de perceber que o próprio rosto da
mulher o haveria de denunciar. Levar as roupas era um gesto
absurdo.
- A não ser que tivessem um valor desconhecido - replicou
Farid -, uma jóia ou algum sinal de crédito. Beri, há outra
possibilidade! - interrompeu-se Farid, passando a língua
nervosamente pelos lábios.
- Quem?
- Parecemos apicultores principiantes às voltas de um enxame
enfurecido. Temos andado a evitar falar de tua tia
Ester - com um gesto afastou os meus protestos -. Não sei de
ninguém mais dada a fúrias do que ela, é ou não é verdade? -
perguntou.
Assenti.
- O silêncio dela é bastante estranho. Talvez que quando
descobriu o teu tio com a rapariga na cave.
- Não sejas ridículo - interrompi -. Achas que ela os
estrangulou num acesso de ciúme com um rosário que por acaso
encontrou por ali no pátio?! E que depois lhes cortou a
garganta, roubou o nosso lápis-lazúli e o ouro e fugiu daqui a
correr para ainda poder ser violada lá fora? Farid, isso não
passa de um castelo de cartas em cima de uma mesa bamba! O
silêncio dela não é nada estranho. Posso-o entender
perfeitamente. Nasceu da sua descrença para todo o sempre e
não da culpa.
- Um castelo de cartas numa mesa bamba. no meio de uma
tempestade de areia - retorquiu Farid imprimindo às mãos a
graça de um gesto de desculpa -. Mas tinha de largar no ar o
pensamento, para que ele possa voar livremente para longe de
nós. Agora diz-me uma coisa, Beri. O que poderia levar um dos
iniciados a colaborar com Eurico Damas ou com outra pessoa
exterior ao grupo?
Ameaças? A palavra insinuou-se tão violentamente no meu
espírito que dei um pulo.
- Que foi? - inquiriu Farid -. Ouviste alguma coisa? Vem aí
alguém?!
- Não é o que ouvi.
E fiz-lhe um sinal para esperar um momento, para poder pôr
ordem nas minhas ideias. Poderia dar-se que Eurico Damas tenha
ameaçado um dos membros do círculo de iniciados e conseguido
que ele o ajudasse a matar meu tio e roubar o nosso armário de
material e a geniza? Talvez imaginasse que tínhamos barricas
de ouro e cofres cheios de rubis. E se tivesse trazido com ele
a rapariga para a matar ali e nos levar a pensar que tinha
havido comércio carnal entre ela e meu tio e nos convencer que
tinha sido o marido a fazer o mal? Ocorreu-me então um outro
pensamento horrível: que podia ter sido o assassino a derramar
o seu próprio sémen sobre o meu tio! Seria qualquer coisa de
abominável! Mas ainda que nos dois dias anteriores não nos
fosse dado aprender mais nada, tínhamos compreendido que tal
infâmia não distava senão um cabelo do tempo presente.
- Ameaças - concluí, dirigindo-me a Farid -. Neste maldito
reino de máscaras em que vivemos, todos têm um ou dois
segredos que lhes podem custar caro!
- Isso agora também nos pode pôr um dilema - explicou,
levantando-se e tomando-me pelo ombro -. Se todos têm um
segredo a esconder, também qualquer um podia ter sido
ameaçado. Que podemos fazer se vemos que todos trazem o véu da
suspeita?
Nesse momento senti um terror inimaginável derramar-se nas
minhas entranhas. O suor perlava-me a fronte. Sentia náuseas e
soltava gemidos. Tão perturbado estava que me pus a falar com
Farid em vez de usar a nossa linguagem gestual.
- Frei Carlos estava com Judas! E se o catraio tivesse
assistido ao crime? Frei Carlos não teve a coragem de lhe
acabar com a vida e levou-o com ele!
Farid leu esta suspeita nos meus lábios, cerrou os olhos
como que para afastar tal possibilidade.
- Não tinha pensado nisso - assinalou timidamente. As mãos
giraram conjuntas numa dança de súplica. Tomei-o pelo ombro e
perguntei:
- Reparaste se Frei Carlos tinha marcas de sangue?
- Só os vi ao longe. Acho que não, mas não posso ter a
certeza.
Um grave silêncio selou os nossos lábios. Restavam-nos
Eurico Damas, o Rabino Losa e Dom Miguel Ribeiro. Um deles ou
mais tinham conjugado esforços com um dos membros do círculo
de iniciados.
- Temos de falar com todos eles - decidiu Farid.
Ao mesmo tempo que assentia, no meu espírito começou a
desenhar-se uma explicação para as pistas que tínhamos
reunido: Meu tio estava só em casa, tinha recebido a visita de
uma moça que conhecera anos antes, uma aprendiza de padeira,
talvez filha de um velho amigo. Chegara bastante perturbada. O
marido tinha-lhe batido. Que devia fazer? Meu tio mandou-a
sentar à mesa da cozinha e deitou-Lhe um copo de vinho
temperado com água e ofereceu-lhe uma matza. Ficaram a falar
dos problemas dela até que os gritos vindos da rua os
interromperam. Compreendendo imediatamente o que se estava a
passar, meu tio disse-Lhe para não fazer barulho, dirigiu-se
em bicos de pés ao pátio e seguidamente à loja à procura do
resto da família. Mas eu ainda vinha a caminho da minha ida a
comprar vinho e tia Ester tinha ido ao mercado em frente a
Santo Estêvão. Judas estava com Frei Carlos, minha mãe e Cinfa
tinham ido fazer a sesta em casa de uma vizinha. Quando os
cristãos desataram a arrombar as portas da loja, levou a
rapariga para a cave, puxou de dentro o velho tapete persa
para cima da porta do alçapão, correu as cortinas dos postigos
da parede norte para que não se pudesse ver para dentro e
trancou as pequenas portadas. Momentos mais tarde, durante uma
breve acalmia do motim, alguém bateu à entrada do alçapão.
Ouviu-se uma voz familiar a pedir socorro. Precipitando-se
para cima, meu tio abriu a entrada da nossa sinagoga a um
irmão do círculo de iniciados. Alguém com quem meu tio se
disputara a propósito de um manuscrito precioso, ou que teria
mesmo conspirado para o comprar nas costas de meu tio.
Qualquer que fosse a natureza do seu pecado, tinha-Lhe valido
tornar-se no rosto de Aman. Porém, com o tumulto que lavrava
lá fora, todo o ressentimento fora esquecido nesse momento.
Eurico Damas irrompera abruptamente de trás do iniciado. Sem
qualquer aviso lançara-se para a frente, empurrando meu tio
pelas escadas abaixo. Daí a ferida profunda que apresentava no
ombro. Assim que meu mestre, apoiando-se num joelho, se
ergueu, foi agarrado por trás. Passaram-Lhe um rosário à volta
do pescoço. "Se não ofereceres resistência, juro sobre a Tora
que poupo a rapariga!" - gritou Damas. Meu tio cedeu,
compreendendo nesse instante ser esse o sacrifício que lhe
tinha sido destinado. A vida foi-lhe então retirada. O
iniciado, um antigo shohet, apoderou-se do corpo de meu tio e
talhou-lhe a garganta para estar certo de que não reviveria.
Depositou-o cuidadosamente no chão. O sangue jorrava
livremente sobre o tapete de orações. à volta da unha do
polegar puseram um fio negro de modo a implicar Simão.
A rapariga tinha recuado para a parede do lado oriental e
estava agachada, dominada pelo terror, suplicando que a
deixassem viver. Damas rompeu a promessa que fizera a meu tio,
agarrou-a, mas, ao tentar estrangulá-la, o seu rosário
rompeu-se. Abriu-Lhe a garganta e atirou-a para o chão. A
cabeça ficou esmagada num dos vasos de plantas. O nariz
partiu-se, ficando fora do sítio numa posição grotesca. Em
poucos momentos, acabou por morrer exangue. As contas do
rosário espalharam-se pelo pavimento de lajes da cave. Damas
ordenou ao iniciado que as apanhasse, mas uma delas ficou
esquecida debaixo de uma escrivaninha. O iniciado foi então
buscar à bexiga de enguia a chave da geniza e abriu a tampa
disfarçada. Descobriu a Haggada de meu tio que estava por
cima, folheou-a avidamente acabando por deparar com a sua
própria cara personificando Aman. Aterrado, escondeu o
manuscrito debaixo da capa e disse a Damas que tinham de sair
dali rapidamente. Sabia onde podia encontrar as folhas de ouro
e o lápis-lazúli e limitou-se a retirá-los da caixa de ébano
onde se encontravam.
Juntos, despiram os corpos para dar a impressão que meu tio
e a rapariga se tinham conhecido carnalmente. Pensavam assim
infligir um derradeiro achincaLho à minha família. E ainda
certamente pôr as culpas no marido da rapariga. Talvez o
iniciado tenha protestado. Mas foi-lhe recordado o seu segredo
aparentemente tão terrível que pairava sobre ele como uma
ameaça. Todo este massacre tinha provocado em Damas uma grande
excitação, pois há homens para quem a lascívia está
intimamente associada à violência. Ou ter-Lhe-á parecido que
faltava àquela cena um último toque perversamente poético e
quis aviltar o corpo de meu tio ainda mais perfidamente.
Expondo as suas partes vergonhosas, derramou o seu próprio
sémen sobre meu tio.
A rapariga era também vagamente conhecida do iniciado. O pai
dela era não só um bom amigo de meu tio, mas também dele. Por
haver nas roupas dela algo que poderia denunciar esta ligação,
arrancou-Lhe o vestido e a blusa e mesmo a roupa de baixo.
Teria Judas assistido a tudo isto do topo das escadas? Teria
o assassino passado os braços à volta dele, levando-o dali
consigo?
O iniciado traçara então um dos nomes secretos de Deus na
sua própria testa e na de Eurico Damas. Talvez também na de
Judas. Um nome com grande poder, retirado de algum manual da
prática da Cabala, que Lhes permitia passar através das
paredes.
E então desvaneceram-se.

Capítulo VI

AO repetir a Farid a minha versão, ouvi uma voz de homem
vinda do pátio. Trepei as escadas a correr. Era um vizinho, o
rabino Salomão Ben Verga. A sua face barbuda aparecia-me
emoldurada pelo umbral da cozinha e estava a falar a Cinfa da
misericórdia divina num tom de consolação. Trazia três lajes
de lousa numa mão e um cesto de cebolas na outra.
- Escapaste, rapaz! - disse ele com um sorriso. Como quem
receasse franquear a entrada de nossa casa, não avançou para
mim.
- Mas muitos de nós não conseguiram. Judas desapareceu. E
meu tio.
- Eu sei, Cinfa estava-me a contar - pousou o cesto e fez-me
sinal para me aproximar. Tomando-me pelo ombro como alguém
mais velho, continuou: - Nunca esqueças que a vida te foi
poupada para que te possas lembrar. Pelo meu lado, estes vis
motins hão-de ser o culminar do livro que ando a escrever
sobre a história dos judeus.
- Um livro de História? - perguntei, pois nunca ouvira falar
de tais livros escritos por um judeu desde os tempos de José.
- Isso mesmo - respondeu o rabino -. Um relato de todas as
sendas de urtigas que temos atravessado na nossa caminhada
para o Monte das Oliveiras.
"Estamos realmente a entrar numa nova era" - pensei -.
"Serão mais os textos de História a descrevê-la do que as
obras de Deus. Os rabinos e os cabalistas virão a tornar-se
obsoletos".
- Gostava de te sugerir que usasses nas tuas iluminuras tudo
o que viste nestes dois últimos dias - acrescentou o rabino -.
Traduz em imagens o que viveste. É assim que nós, judeus,
usamos a arte - estendeu-me as lousas -. São do vosso pátio,
acho eu. Encontrei-as na rua.
Agradeci. Ele desejou-me que ficasse em paz e ao voltar-se
para sair acrescentou:
- É verdade, se precisares de cebolas. - E exibiu o cesto. -
Derrubaram uma carroça. Não são grande coisa, mas ficam-nos
por uma verdadeira pechincha.
Era difícil imaginar que alguém conservasse o sentido de
humor em momentos destes. E no entanto trocámos um sorriso.
Será que a demência, tal como a visão interior, nos vem por
lampejos?
Foi então que os ouvi. A primeira das vagas ululantes de
cristãos que se aproximava. Empurrei para o lado a nossa
visita e corri para a cancela. A julgar pelo rumor e pelos
gritos que se agigantavam, concluí que vinham de ocidente, da
Sé. E apressadamente.
- O que é, rapaz? - perguntou o rabino Salomão.
- É melhor ir para casa, rabi - disse-lhe eu -. Parece-me
que ainda não acabou tudo.
Puxou o capuz da capa para a cabeça e, ao passar por mim,
parafraseou um versículo do Livro dos Provérbios:
- Deus castiga a quem ama, como o pai o filho preferido.
Somos o Seu povo eleito. Haveremos ainda de ver o Templo
reconstruído.
Reuni a família e disse-Lhes que não tinham mais que uns
instantes para reunir alguns pertences. Precipitando-me para
fora, apanhei uns montões de estrume numa gamela de pau,
espalhando-o seguidamente por cima do tapete esfiapado que
cobria o alçapão. EsPerava assim desencorajar os ladrões ou
intrusos. Fui ao meu quarto buscar uma vela e uma pederneira,
vários cobertores e um púcaro de água. Tirei do bolso secreto
por baixo do peito a fita de pergaminho onde estavam gravados
o meu nome e o de meu tio e enrolei-a no meu pulso, virando
para dentro o lado dourado escrito para que não o pudessem
ler. Seguidamente, conduzi toda a gente para a cave,
praguejando durante todo esse tempo por ter passado tanto
tempo à conversa com Farid em vez de ter ido à Procura de
Judas. E agora.
Em voz baixa, ergui a Deus uma prece pedindo perdão ao
perceber que não poderíamos ainda nesse dia enterrar meu tio.
Com os olhos cerrados, o corpo balançando ao ritmo do bater do
meu coração, supliquei que esta nossa falta aos preceitos não
fosse de modo algum impedimento para a viagem da sua alma.
Passámos o resto de segunda-feira à espera, minha mãe, tia
Ester, Farid, Cinfa e eu. Ficámos sentados, cada um no seu
próprio mundo, num silêncio quase total.
O azul vivo do tapete de orações que cobria o corpo da
rapariga, o cálido e denso perfume do cabelo de Cinfa quando
meteu a cabeça debaixo da minha camisa com o seu hálito quente
na minha pele, a zoada enervante das cigarras no pátio, a
mínima traiçoeira sensação levantava a mesma questão: por que
razão podia eu ainda ver, ouvir, cheirar, quando tantos tinham
morrido?
- Quase preferia ter morrido com eles - confidenciei a minha
mãe.
- A culpa agarra-se a nós como Deus - respondeu ela -. Nem
podia ser de outro modo.
Sempre que me ocorria que minha mãe era uma pessoa sem
interesse, acabava por me surpreender com tiradas destas.
- Vivemos para recordar - disse Cinfa, repetindo as palavras
do rabino Salomão.
Será a imitação dos adultos a maneira de as crianças se
agarrarem à esperança?
De repente, chegaram-nos gritos da rua, acusando os marranos
de terem usado a feitiçaria para chamar a seca. Foi a primeira
das três ocasiões em que nesse dia ouvimos os seguidores do
Nazareno. Abateram-se sobre nós às centenas em vagas
sucessivas, conduzidos pelos frades dominicanos, bradando em
gritos estridentes, num falsete de eunucos, que viéssemos para
fora para nos purificarem pelas chamas e berrando insultos
contra os judeus demoníacos. Bichos meio-humanos -
chamavam-nos eles. Certa vez, pela tardinha, ouvimos a música
de gaitas de foles que faziam vibrar os barrotes de castanho
do tecto da cave, como se nos chamassem para alguma festa. A
última dessas vezes, umas três horas depois do cair da quarta
noite da nossa Páscoa, pelos meus cálculos, chegaram até ao
escuro onde nos escondíamos gritos penetrantes, como se
andassem a fustigar um porco pelas ruas. Rezei para que não
passasse disso mesmo. Por duas vezes penetraram em nossa casa,
despedaçando o que restava da nossa mobília.
Cinfa aconchegava-se entre mim e Farid. Tia Ester permanecia
estoicamente sentada, os olhos já sem pintura, os cabelos
grisalhos descuidadamente pendendo sobre os ombros. "Uma
actriz a quem morreram todos os demais actores, seus
companheiros, a quem derribaram o teatro pelo fogo", - pensei.
Minha mãe aferrava-se aos seus talismãs e rezava em silêncio.
Cada vez que me fitava, podia aperceber-me que meditava nas
minhas parecenças com Judas.
Tivessem os cristãos descoberto o alçapão e tudo estaria
perdido. As tábuas tinham sido apressadamente pregadas no
sítio e o ferrolho da verdadeira porta da cave tinha-se
partido quando o arrombei à procura de meu tio. Bastava alguém
dar um passo em falso no meio do tapete de cima para
literalmente cair em cima de nós.
Depois do cair da noite, aspergi meu tio e a rapariga com
mirra, para atenuar os crescentes odores que anunciavam a
partida da alma. Seguidamente cobri-os de novo com os tapetes
de orações.
O corte no braço causado pela lança tinha acabado por
fechar, graças a um extracto de consolda. Untei-o com uma
camada de suco de calêndula para sarar completamente e
liguei-o com um lenço de linho. Reunindo toda a minha coragem,
uma vez ciciei a tia Ester: "Já alguma vez tinha visto a
moça?" Minha tia estava sentada num mocho que tínhamos trazido
da cozinha, com a pesada mantilha castanha de lã da Flandres
de minha mãe a proteger-Lhe os ombros. A mão direita,
envolvida numa toalha de linho ensopada de sangue, estava
entalada entre as pernas protegendo a sua intimidade
profanada. Não pronunciou o mínimo som e compreendi que a sua
alma voara até ao mais profundo de si própria.
Fora cruel pôr-lhe tal pergunta? Pouco me importava: tinha
de apurar se ela sabia, o que nada tinha a ver com qualquer
curiosidade doentia, como ela provavelmente imaginava.
Conservava ainda na bolsa a aliança da rapariga para a
entregar ao marido esperando que ainda estivesse vivo para a
venerar. O anel de sinete de meu tio, beijei-o e guardei-o na
caixinha de ébano onde antes tínhamos as folhas de ouro, por
imaginar que poderia ser penoso para minha tia Ester vê-lo no
meu dedo.
Quando minha mãe me questionou sobre o paradeiro desta
lembrança, achei que era a ocasião propícia para falar com
ela.
- Quem é que sabia da nossa geniza?- perguntei-Lhe.
Encolheu a cabeça, como fazem as galinhas, e fitou-me como
se eu tivesse endoidecido.
Depois do bater da meia-noite na Sé, ouvimos Brites, a nossa
lavadeira, que era cristã, a chamar-nos desesperadamente do
pátio, com a voz estrídula de uma gaivota perdida. Ia a gritar
por ela em resposta, quando minha mãe pôs as mãos em cruz
diante de mim.
Compreendi então a insegurança do inferno de ter um irmão
pequeno nas garras de verdugos que não respeitavam nem a
beleza do corpo humano nem a santidade da alma. E fiquei a
cismar quem seria que figurava na Tábua Eterna da tradição
muçulmana como assassino de meu tio e fiz votos para que
pudesse descobrir quem era a rapariga. Mais que nunca
convenci-me que era ela a chave.
Na terça-feira, de manhã cedinho, achei que já bastava de
trevas e de hesitações. Sentia as pernas e os braços tolhidos
pela necessidade de ar livre e de movimento. Contemplando a
cerração arroxeada que precede a madrugada decidi começar a
procurar Judas, Reza e os membros do círculo de iniciados.
Calculei que não devia haver muitos cristãos a pé a horas
tão matutinas.
- Não vás! - ciciou minha mãe: Fincou as unhas na minha
carne -. É perigoso! E tens de recitar as tuas orações da
manhã. O tio havia de se zangar se não cumpres os teus deveres
para com Deus.
- As orações da manhã vão ter de esperar! - disse eu,
libertando-me das suas mãos. Enfiei na bolsa tudo o que
precisava, excepto o meu punhal que deixei a Farid. Aceitou a
minha oferta sem um gesto. Tinha os olhos raiados de sangue e
corriam-Lhe fios de suor pelo rosto. Quando Lhe beijei a
fronte, senti que queimava e tinha o sabor de uma doença má.
Ao voltar-se para evitar o meu olhar interrogativo, reparei
que as feridas do pescoço tinham piorado e pareciam agora
negras e amarelas.
- Como te sentes? - perguntei-Lhe com as mãos.
- É como se um bicho coberto de espinhos me arranhasse as
entranhas a tentar sair - diziam os seus gestos débeis.
Seria peste? Se ele se fosse, quem me poderia depois falar
na minha linguagem interior? Quem me ajudaria a descobrir o
assassino de meu tio? Imobilizado pela desesperança, fiquei a
observá-lo, lembrando-me que fora a nossa velha amiga Murça
Benjamim quem primeiro dissera que éramos irmãos gémeos
entregues a pais diferentes. Aquela querida Murça que em breve
se iria casar!
Teria ela sobrevivido?
Ao iniciar a minha busca, fui ao telheiro buscar um martelo
e murmurei para Deus: "Dá-nos Judas de volta e toma-me a mim
em vez dele". Segui cantando interiormente versos do Zohar,
como um escudo para me proteger dos cristãos. Diante de mim
estendia-se a Rua de São Pedro, completamente vazia. Uma névoa
escura e algodoada recobria a cidade. As raras portadas que
tinham resistido à fúria da turba estavam trancadas como se
nunca mais se devessem abrir. Por cima de mim voejavam
gaivotas, luminescentes, como se prestes a irromper em chamas.
Nas imediações da Porta de São Pedro, uma mulher corpulenta
com um cesto de vime à cabeça começou a correr num passo
esforçado e sacudido. Muito acima dela, por trás das torres
gémeas da Sé, viam-se volutas de fumo elevando-se nos ares: a
fogueira do Rossio devia ainda crepitar.
A porta de Frei Carlos estava ainda fechada. No interior da
Igreja de São Pedro, ouvia-se o crepitar dos pavios das
lamparinas acesas. Na nave jaziam corpos atirados ao acaso
como marinheiros afogados que tivessem dado à praia.
Reconheci a senhora Telo, a costureira, deitada de costas
debaixo do fresco da Anunciação que enfeita o transepto. Tinha
o rosto branco de cera e os olhos fechados. Sem sangue Nenhum.
Sobre o ombro, pendia-Lhe o apito de lata com que costumava
chamar os filhos. Voltei-me ao ouvir rosnar. Era um rafeiro de
focinho rosado com as patas na barriga de um homem que tinha o
peito empapado num líquido escuro. Com as orelhas esticadas,
levantava os beiços latejantes e encrostados deixando à mostra
os colmilhos afiados, fazia ouvir um ronco que lhe nascia das
tripas como se temesse que Lhe disputasse o cadáver.
Encaminhei-me para a Igreja de São Miguel. Havia vários
corpos hirtos e silenciosos diante do altar do Nazareno.
Peguei numa lamparina de uma capela lateral e comecei à
procura. Judas não se encontrava entre eles. Em Santo Estêvão
deparei com o corpo de uma adolescente no jardim do adro, no
meio de um canteiro circular de belíssimos malmequeres. Um
abutre corcovado picava-a metodicamente com um ar indiferente.
Observando-o, reparei que estes rapaces atacam primeiro os
tecidos macios, os lábios, a língua, os olhos. A rapariga
ficara irreconhecível. O sacristão da igreja, um
cristão-velho, emergiu do seu esconderijo numa capela lateral
antes de eu sair. Respondendo à minha pergunta, disse-me:
"Não, Frei Carlos não. Outros. A maior parte foram para os
barcos que andavam a passar judeus para a outra banda".
Descobri que a única coisa que ainda me podia perturbar era a
bondade. Quando ele me abraçou, a minha carapaça desfez-se.
Afastei-o e apoiei-me numa parede. Depois desatei a correr.
O alvorecer estendia uma luz diáfana pelo horizonte. As
andorinhas descreviam grandes arcos em torno de mim,
chilreando como numa fala atabalhoada. Cortando para o Tejo,
dirigi-me às peixeiras que montavam as tendas para vender a
pesca da noite anterior e fiz-Lhes uma descrição de Judas, mas
elas não tinham visto nada. "Mataram alguns judeus?" -
perguntou uma delas e bocejou, como se a mera ideia disso a
enfadasse. Quando Lhe derrubei a banca desatou a berrar como
um papagaio. Mas ninguém ousou fazer-me frente: as pessoas
sabem reconhecer a loucura e afastam-se.
Caminhei então para o centro da cidade, até atingir o arco
de dentro do Terreiro do Trigo, sem me arriscar a ir mais
além. Do lado do cais, dois mareantes portugueses e um grupo
de marinheiros loiros do Norte praguejavam ruidosamente uns
com os outros. No meio deles, estavam estendidos os corpos de
quatro homens mortos. Um monte de cães abatidos jaziam
espalhados em torno do cruzeiro que ornamentava o largo e o
sangue ensopava o feno que se escapava dos fardos recentemente
desfeitos. Mais adiante, num dos ancoradouros usados para a
reparação dos barcos, um ajuntamento jubiloso observava a
violação de uma escrava africana. Com o rosto encostado às
pranchas lodosas, a rapariga gemia sob a crua loucura de um
homem atarracado que a arremetia pelas costas. De dentro da
cidade flutuante das embarcações, marinheiros e mercadores
observavam a cena rindo-se. Voltei então para a relativa
segurança da Judiaria Pequena. As minhas passadas pareciam
pontuar a pergunta: "Será que os cristãos-velhos nos odeiam
tão feramente por lhes termos dado Jesus, o salvador que nunca
tinham deveras desejado?"
A casa rasa que Reza partilhava com os parentes ficava no
meio do perímetro do lado norte do Largo do Limoeiro. O sol
acabara de espreitar a oriente quando lá cheguei. A porta
estava cerrada, mas sem o ferrolho. A grande mesa de
avelaneira ajoelhava-se no meio da cozinha: tinha perdido duas
pernas. Um vizinho que me tinha ouvido andar à procura
fitava-me do umbral da porta da frente. Era um homem delgado
de olhos sonolentos e com as faces avermelhadas de quem acabou
de se escanhoar. Quando Lhe perguntei se tinha visto Reza,
cuspiu na minha direcção. "Mas será que estes cristãos estão
sempre à espera que limpemos o seu desprezo com uma mão mansa
e continuemos a arrastar-nos para algum incerto futuro?"
Dei-Lhe um tal empurrão que se estatelou no chão com um
guincho.
Uma menina nua de uns quatro anos estava impassivelmente
sentada numa almofada na horta de Reza. Na fronte, tinham-lhe
pintado com os dedos uma cruz a carvão. Debicava uvas passas,
tinha o cabelo cortado rente aos ombros, uns olhos escuros
cingidos por longas pestanas delicadas. Faltava-lhe a unha do
polegar direito.
- Fugi - disse ela.
- Como te chamas? - perguntei.
Fitou-me com um olhar distante e abanou a cabeça.
- E onde estão os teus pais?
Meteu na boca algumas passas. Rasguei em dois um lençol e
tapei-a.
- Vou-te levar para minha casa - disse eu -. Lá ninguém te
faz mal, - Pediu-me para a levar aos ombros. Era tão estranho
ouvir o riso de uma criança! Pu-la de novo no chão e fez a pé
o resto do caminho.
Ao chegar a casa reparei pela primeira vez que a cozinha
parecia um campo de batalha. Umas poucas preciosas gotas de
vinagre tinham ficado no fundo de uma bilha partida junto à
lareira apagada. Deitei-as na mão e esfreguei a fronte da
menina até fazer desaparecer completamente a cruz. Descemos à
cave.
- Quem é? - perguntou minha mãe, fixando a criança como se
fosse uma afronta à sua mágoa.
- Encontrei-a em casa da Reza. Mas a Reza não estava. Só
esta menina.
Minha mãe praguejou em voz baixa, depois pegou na criança e
apertou-a contra si.
- E Judas? - perguntou.
- Perdi-lhe o rasto - respondi, abanando a cabeça.
Desviou o olhar para a parede. Reconheci o mesmo movimento
martirizado que vira fazer meu irmão mais velho, Mardoqueu,
momentos antes de morrer. Quando finalmente deixou de
respirar, colhi a sua última lágrima na ponta do dedo e
levei-a aos lábios. Como um vento do deserto, percorreu-me um
alívio doloroso ao sentir o seu gosto salgado. Foi então que
tive uma nova visão, a primeira depois da nossa conversão
forçada. Irrompeu dos meus pés para a cabeça e soltou-se pela
boca como um grito. Eu estava no pátio. Mardoqueu estava
sentado no telhado, perto do trovador de lata que servia de
catavento. Eu queria ir para o pé dele, dominado pelas
saudades. O meu olhar era atraído pela mesma luz distante que
sempre aparece nas minhas visões. À medida que se aproximava,
ia-se transformando numa águia enorme, de cauda em leque e
cores flamejantes. A cabeça era de um branco espectral e os
olhos cintilavam, passando do violeta para o vermelho, como
cristais prismáticos. A garganta era de um amarelo-esverdeado,
a asa direita prateada, a esquerda dourada. O peito de um
púrpura de múrice. Descendo vertiginosamente para o nosso
telhado, a grande ave esticou as garras e arrebatou Mardoqueu
sem qualquer esforço. Gritei-Lhe: "Então, e eu?" Mardoqueu
respondeu: "Daqui a anos vamos precisar da tua ajuda. Deus
ainda tem uma tarefa para te dar". Bem firme entre as garras
poderosas da águia, prosseguiu para oriente, em direcção a
Jerusalém e ao Monte das Oliveiras. Seria então desde sempre a
minha verdadeira tarefa libertar do faraó a minha família e
levá-los em segurança para fora de Portugal? Caberá a todos os
homens cumprir um grande objectivo durante a sua vida?
Dirigindo-me a minha mãe, perguntei-lhe:
- Alguma vez ouviu o tio dizer alguma coisa esquisita sobre
os membros do círculo de iniciados nestas últimas semanas?
Alguma suspeita. alguma fúria?
Não respondeu e começou a torcer e a puxar o cabelo da
fronte.
A menina que eu tinha encontrado na horta de Reza tinha
pulado para o chão e tinha os olhos cravados em mim. Cinfa, em
pé, observava-a, fixando-a com os olhos semicerrados,
agarrando o cabelo da nuca. Antes que o desespero se
apoderasse de mim, precipitei-me para a rua, para ir à procura
dos iniciados.
Diego vivia só, nuns aposentos junto à Igreja de São Tomé, a
menos de cem passos da muralha oriental da cidade, numa parte
de Alfama habitada sobretudo por cristãos. Enquanto subia a
rua nessa direcção, começou a ouvir-se o estrépito das
portadas que se abriam. Alguns moradores de gorros puxados
para a frente observavam-me, bocejando e piscando os olhos.
Artesãos sombrios saíam arrastadamente para o trabalho. O meu
estômago começou a roncar, implorando uma queijada ou um pouco
de matza. Mas tinha-me esquecido do dinheiro. Podia talvez
pedir uma côdea de pão levedado, mas estávamos no dia antes da
quinta noite de Páscoa. Chametz, é claro, continuava a
estar-me vedado. Uma linda rapariga com restos de feno nos
cabelos emaranhados destacava-se no umbral de uma porta
fechada, envolta num cobertor. Não devia ser mais velha que
Cinfa. Chamando-me com um sussurro, abriu por momentos a sua
cobertura, exibindo-se nua, os seus seios minúsculos e as
ancas magras arrapazadas. "Por dois ovos, levo-te ao meu
esconderijo" - sussurrou ela. - Porque não. É o que acontece
quando se abandonam as crianças ao Deus da Desafeição nesta
nossa mui nobre e leal cidade.
Um pouco adiante, ao subir a íngreme aba da colina fronteira
ao larguito junto da Igreja de São Bartolomeu, pensei em dar
uma olhada pelo centro de Lisboa a ver se a tormenta cristã já
tinha amainado. Era preciso ser ingénuo só para ter uma ideia
destas! No meio do vale que dali se avistava ficava o Rossio,
a uma distância de cerca de uma milha. Havia pelo menos um
milhar de cristãos que já ali estavam reunidos e duas
fogueiras enormes cresciam para os céus. Do ponto elevado onde
me encontrava no topo da colina, os cristãos-velhos despiam-se
por momentos dos seus disfarces humanos e surgiam-me como
formigas à volta da comida num enxame raivoso.
Receando que em breve começassem a surgir pequenos grupos de
saqueadores para se espalharem pela cidade, apressei-me a
chegar a casa de Diego. A porta da rua estava fechada e como
ele morava no segundo andar comecei a chamar por ele. Do outro
lado da rua, um velho sapateiro esquelético, com dois malhos
seguros nas mãos semelhantes a garras, mirava-me com um olhar
suspeitoso. Quando por meu turno o fixei, desviou o olhar
abruptamente.
Comecei a apanhar seixos do chão e a atirá-los às portadas
de Diego. Uma velha descorada com olhos raiados de sangue e um
queixo ponteagudo semeado de pêlos escuros deitou a cabeça
fora da janela do terceiro andar. Um lenço negro cingia-lhe a
cabeça, evidenciando o seu nariz achatado quase inteiramente
ratado por alguma doença.
- Qué que quer?! - vociferou com um sotaque de Navarra.
- Diego Gonçalves. Viu-o?
Abanou a cabeça com movimentos exagerados e deu um estalo
com os lábios. Numa voz que parecia colar as palavras umas às
outras, respondeu:
- Eu cá ná tenho tempo pra mandar a meter na vida dos
outros. Sabe Deus só pra mocupar do meu marido todo o santo
dia. Porque Deus tudo vê e se nós não.
Parecia-me bêbada ou demente.
- Ele está cá ou não? - interrompi.
- Ojos! - disse ela grave e lentamente, como se por trás
dessa simples palavra houvesse anos de experiência.
- Como? - Olhos! Estes portugueses têm olhos do tamanho de
uma noz. E olham para nós como quem nos quer ver a cor da
alma. Sabe-se lá se o problema ná é esse mesmo.
- Oiça, sabe se Diego esteve cá hoje? - perguntei.
- Deus está sempre a ver-nos. O Diabo está sempre a ver-nos.
E com esses portugueses de olhos de noz por toda a parte, ná
podemos escapar. Quando eu era.
"Vai pentear macacos, bruxa!" - murmurei para mim. Apanhando
mais algumas pedrinhas, pus-me a atirá-las com mais força às
portadas de Diego.
- Ná está cá! - gritou ela em desafio.
- Então onde está? Não tenho tempo a perder!
- As pessoas dessa casa foram ontem levadas de lá -
cacarejou ela, pondo os olhos no céu e persignando-se -.
Levaram-nas os homens com olhos portugueses.
- Posso ir lá dar uma espreitadela? - pedi.
- E quem é vocemecê?
- O sobrinho dele - menti.
Inclinou-se para fora e correu os olhos pela rua, com o
lábio superior levantado como um burro zangado. O sapateiro
deve ter estado a observá-la, pois ergueu o punho em direcção
dele e gritou-Lhe: "Vai mas é trabalhar, meu preguiçoso de um
raio!" Ele acenou a mão em direcção dela, a dizer-Lhe que era
maluca, piscou os olhos e fez-lhe o gesto de mau olhado com o
indicador e o mindinho esticados. Ela persignou-se para evitar
o enguiço e desatou aos berros para ele novamente. Tirando de
dentro da blusa uma chave, atirou-a para eu a aparar com as
mãos em concha.
- Agora não ma comas - avisou ela -. É a única que tenho!
Fiquei à espera do cacarejo, mas pareceu-me estar a falar
absolutamente a sério.
- Pode estar sossegada - tranquilizei-a.
Quando cheguei ao segundo andar, rodei a maçaneta dos
aposentos de Diego, mas a porta estava fechada. A porta do
vizinho do lado, porém, tinha sido completamente espatifada.
De lá de dentro vinha um cheiro estranho que parecia de água
salobra. Antes de entrar a ver, subi as escadas para devolver
a chave.
- Vocemecê é judeu? - perguntou a velha -. Porque os judeus,
já sabe como é.
- Sou sim - assenti secamente.
Agarrou-se ao meu braço e disse:
- Agora pergunte-me a mim se eu também sou.
- Tenho de ir embora - disse eu.
- Pergunte! - insistiu ela, ferrando-me as unhas na pele e
cuspinhando-me o rosto com o acesso da sua cólera.
- É judia? - perguntei eu num tom indiferente.
Antes que eu pudesse afastar-me, deu-me uma bofetada com a
sua velha mão calejada.
- Ah, danados portugueses, que nunca hesitais em insultar
uma dama de Navarra! - gritou ela -. Mas não julguem que vou.
Ainda estava aos gritos quando voltei aos aposentos de
Diego. Bati à porta e chamei por ele, mas só me respondeu o
silêncio. Cada vez mais inquieto, com medo do que lhe poderia
ter acontecido, desatei a berrar: - Diego! Diego! Sou o
Berequias!
Não se ouviu nenhuma resposta.
Entrei na casa do lado, onde vivia o velho Levi Califa,
antigo farmacêutico e estudioso do Talmude com o seu filho
viúvo e dois netos. O estado em que a habitação se encontrava
não augurava nada de bom sobre a segurança de Diego. A cama de
dossel do quarto da frente tinha sido espatifada. Tinham
pintado com os dedos uma cruz de sangue na parede oriental e
por baixo em letras enormes tinham escrito Vincado por
Cristo!. Furioso com tais legiões de cristãos ignorantes que
manchavam a terra de Portugal, não pude deixar de notar que a
palavra vingado estava mal escrita. Como podiam esperar
merecer um mero relance do olhar de Deus quando nem sequer
sabiam escrever correctamente ou ler com algum entendimento?
- Mestre Levi! - chamei temeroso.
Silêncio.
Na parede oposta, a porta que dava para o resto da casa
jazia no chão. Passando por cima dela e esgueirando-me pela
entrada escancarada, penetrei num quartinho minúsculo,
quadrado, que não tinha mais que três passos de largura nem de
comprimento, com um soalho de carvalho tosco e uma única
cadeira como mobília. E no entanto nunca eu entrara num espaço
tão repleto. Compreendi imediatamente que tinha penetrado num
limiar sagrado. Nas paredes caiadas de branco, escrito a
negro, em pequeníssimos caracteres hebraicos, estava o ëxodo,
Integralmente. Desde os nomes dos israelitas que entraram na
Terra Prometida com Isaac, passando pela fuga dos escravos
hebreus através do Mar Vermelho e até à construção do
tabernáculo por Moisés. Os versículos começavam no topo da
parede do lado oriental, prosseguiam para sul numa linha recta
horizontal, dePois para ocidente e para norte até formar um
círculo. A meu ver, avia mais de duzentos círculos. desses, Os
caracteres cobriam toda a parte de cima do quarto como uma
pérgula sagrada. O Levítico tinha sido iniciado, mas acabava
abruptamente com o preceito de não se queimar mel em oferta ao
Senhor. Deve ter sido nessa altura que os cristãos irromperam
no quarto e levaram o escriba. Nem era preciso pôr-me a pensar
quem seria o autor. Tinha a certeza que só podia ter sido o
velho Levi Califa. Quem senão ele poderia ser tão dedicado
para passar todo aquele tempo escondido para recontar a
história fundamental da Páscoa? Sentia-me tão maravilhado que
simplesmente me pus a ler, o olhar avivando o seu compasso
como um derviche à procura do ritmo da dança.
Nunca pensara que iria encontrar Califa em pessoa. Mas no
chão da cozinha, num pedaço de prato partido, havia uma mão
decepada. Sabia que era a dele pois o anel de sinete de
cornalina que sempre usava na mão direita tinha-lhe sido
arrancado. Ao lado via-se o último pedaço de carvão com que
tinha escrito e que devia ter caído das mãos.
Uma mão decepada não parece real. Mas porquê? Será porque o
nosso espírito se recusa a crer possível uma tal crueldade? E
porque será que os cristãos não se limitam a matar-nos e têm
de nos cortar aos bocados? Será na tentativa de nos tornarem
inumanos, de nos forçar a corresPonder à sua imaginação que
faz de nós demónios?
Não muito longe dos dedos da mão, viam-se as cabeças
azul-de-hissopo dos adorados papagaios brasileiros de Califa,
a que dera o nome de Ternura e de Empatia, as duas palavras
que compunham a divisa do estudioso do Talmud.
Deviam ter roubado as preciosas penas dos corpos de Ternura e
de Empatia. Tal vez enfeitassem agora o chapéu de algum
fidalgo cristão.
Quando me curvei para recolher a mão para a enterrar, o
estalido de uma tábua a ser pisada fez-me voltar. No quarto da
frente estava o velho sapateiro que vira na rua, com os seus
pacientes olhos cinzentos fixos em mim. Era magro e moreno,
vestindo apenas uma camisola manchada de suor e umas calças de
linhc das mais toscas. Devia ter Pelo menos cinquenta anos,
possuía uns pulsos finos e ombros estreitos e curvados. De
trás das orelhas emergiam uns tufos de cabelo grisalho
emaranhado. Segurava numa das mãos um cinzel e na outra um
malho. Agarrei o punhal e agitei-o diante de mim. "Vão
forçar-me a lutar novamente" - pensei. Para evitar vê-lo
entrar no antro sagrado da Tora escrita, Passei para o quarto
da frente. Numa voz cava disse-me então:
- Não tem muito temPo.
Não respondi e pensei: "Porque será que os cristãos estão
sempre à espera que os judeus comecem a falar antes da luta?"
A fúria crescia dentro de mim. fazendo-me sentir como se
tivesse mercúrio fervente a correr-me nas veias. Avançando até
ficar a três passos dele, fiquei à esPera que atacasse,
Pensando que viria abater-se sobre o meu punhal. APesar de
tudo, não Pretendia feri-lo. Diz-se que a distância entre o
direito de tirar uma vida e um homicídio a sangue-frio não é
maior que um cabelo e eu não tenho a pretensão de Possuir a
devida visão Para perceber semPre essa diferença.
O sapateiro coçou a clareira calva no meio da cabeça com o
cabo do malho.
- Não está a perceber o que estou a dizer. Sou um amigo -
disse ele.
- Então largue as armas.
Para grande surPresa minha, pousou-as delicadamente aos seus
pés. Com rugas de inquietação na fronte, disse:
- Não tem muito tempo. Estão a chegar do rio. Tem de voltar
Para sua casa. Vim só avisá-lo.
- Porquê? - perguntei.
- Digamos que Mestre Levi era um bom amigo.
- Quando o viu pela última vez?
- Vá, amigo - disse ele, estendendo a mão Para mim.
- Por favor, diga-me quando foi a última vez que o viu.
Preciso de o saber.
- Ontem - replicou o sapateiro -. Os dominicanos vieram
buscá-lo a ele e à família. - estendeu de novo a mão,
pousando-a no meu braço.
Involuntariamente recuei.
- E Diego Gonçalves? Estava com Mestre Levi?
- Oiça, tem de ir já embora! - exclamou, olhando
nervosamente Para a porta -. Não percebe?
- Viu Diego Gonçalves?
- Não. Não dei por que estivesse cá. Talvez tenha sido
apanhado. - EncoLheu os ombros e acrescentou num tom irritado
- Oiça, vou-me embora. Pode sair comigo ou ficar aqui à espera
que eles venham e o apanhem, faça como quiser. E não se aflija
que aquela bruxa navarresa há-de arranjar maneira de eles o
encontrarem depressa. Foi ela que abriu a porta para eles
poderem apanhar Mestre Levi sem terem de suar muito.
Curvou-se para recolher o malho e o cinzel. Atravessou-me o
súbito impulso de o apunhalar na nuca. Que sentido faria ferir
este cristão justo? Será que o mercúrio que me corria nas
veias possuía os seus próprios quereres?
- Vamos! - disse ele, endireitando-se. A sua voz ganhara o
tom suplicante de meu pai chamando-me Para ir estudar.
Subitamente chegou até nós um grito nas traseiras da casa. O
sapateiro levou aos lábios um dedo curvado a pedir silêncio.
Esgueirámo-nos para o vão das escadas como duas crianças a
fugir Para uma escapada cheia de Perigos. A bruxa navarresa,
como ele Lhe chamava, estava especada acima de nós, com uma
expressão de desaprovação que lhe contorcia a face rugosa. O
velhote levantou o malho e bateu com ele devagarinho na sua
PróPria cabeça, para lhe mostrar o que Lhe faria se ela nos
denunciasse. Descemos as escadas como gatos vigiando a Presa.
Agora só pensava em encontrar Sansão e ler a carta que meu tio
lhe tinha mandado. A minha ideia era apanhar a Porta de São
Vicente, sair da cidade e seguir para noroeste para casa dele.
Na rua, as andorinhas continuavam a voltear estouvadamente
pelo fresco da manhã. O rumor que nos vinha de ocidente era
romPido Pelo riso cáustico de rapazolas que traziam o perigo
no coração. O sapateiro aPontou a rua Para oriente, em
direcção do olho rutilante do sol.
- Vai com Deus - disse ele, segurando-me pelo ombro.
Tartamudeei o meu agradecimento. E desatei a correr.
Nunca poderei realçar o bastante até que ponto a morte de
meu tio abalou o meu senso. Qualquer judeu que estivesse no
meu lugar teria calculado que os dominicanos iriam fechar as
portas da cidade ao primeiro apelo religioso da manhã. E
também correr era um erro. As minhas passadas abafavam-se ao
rumor dos cristãos e denunciaram a minha posição. Em frente da
Porta de São Vicente havia uma multidão de uma centena ou mais
de pessoas. Quando me avistaram, todos os braços me apontaram
como se fossem flechas.
Detive-me, as entranhas contraídas de medo. A sensação de
deslizar para a perdição levou-me a estender o braço como para
procurar o apoio de um corrimão ou de uma parede. Claro que só
encontrei o vazio e então, instintivamente, Busquei a
protecção do punhal. Durante alguns momentos sufocantes,
cheguei a abeirar-me da tentação de me dar a morte. Teria sido
fácil: nesse tempo acreditava ainda num Deus Pessoal e não
temia a morte. Morrer sim. Mas não a gloriosa viagem Para a
Esfera Celeste. Uma última oração, um único golpe e ver-me-ia
liberto. Era o que pensava: Antes as minhas próprias mãos a
libertar a minha alma, do que as de homens que tenham
empunhado uma cruz, Claro que a minha simples aparência
exterior não Lhes Podia indicar com toda a certeza que eu era
cristão-novo. Mas se me despissem, a minha aliança com o
Senhor haveria de tornar óbvia a minha crença.
O instinto vital é mais Poderoso que o pensamento. Ou talvez
a obrigação de encontrar Judas fosse igualmente forte.
Voltei-me e corri como quem não tem por onde escolher. Os meus
inimigos viriam atrás de mim? Não o poderia dizer, de tal modo
os meus sentidos se tinham embotado pela precipitação.
Imagine-se alguém que ficasse ao pé de um sino pesado a dobrar
destemperadamente no meio do uivar de um vendaval. Assim era o
bater do meu coração e o meu resfolegar.
Neste momento não me recordo de mais nada senão de descer
escadarias e o odor do meu Próprio terror. A imagem que
seguidamente fere a minha memória de Tora é a de um
campanário. Chegara diante da Igreja de São Miguel, a uns
duzentos passos de casa. Imprevistamente, a torre parecia
abater-se para um dos lados. Eu tinha sido atirado pelos ares
e ficado deitado de costas no emPedrado da rua. Embora
arquejante, não sentia dores, apenas uma confusão silenciosa.
A minha cabeça parecia encerrada numa ânfora de vidro. Era
como se a mão de Deus, sem qualquer aviso me tivesse
simPlesmente deslocado no espaço. A imagem fugaz de um nenúfar
rodeado de areia, rompendo subitamente em chamas, queimou-me o
olhar. Mais tarde, haveria de compreender que por breves
momentos ficara inconsciente e ao acordar captara um relance
do mundo dos sonhos que fluía sob a corrente do meu
pensamento. Mesmo então, porém, aquela imagem de uma flor em
chamas pareceu-me vital, um dom de Deus a que deveria
apegar-me. Um dia, em ConstantinoPla, estando eu a trabalhar
nas iluminuras de um Livro de Ester, deparei com a chave da
interpretação desta visão, ao compreender que o Senhor deve
ter visto Lisboa como uma flor ardente durante essa Páscoa
fatal.
À minha esquerda, afastado uns seis ou sete pés, apercebi-me
de um homem ajoelhado, com uma capa de couro tratado, agarrado
ao ombro como se estivesse ferido. Compreendi que se deve ter
lançado sobre mim de algum umbral invisível embatendo em mim
nesse voo e ficando simultaneamente ferido. Dois homens
escanzelados, de roupas esfiapadas, corriam na minha direcção
do fundo da rua. Pareciam-se como dois gémeos idênticos. Os
cabelos cortados rente coroavam-lhes a cabeça. Ambos
empunhavam machados e tive a impressão de que me queriam
partir ao meio como um cepo de lenha. Por trás deles, corria
em minha direcção uma massa esbracejante de homens e mulheres.
Tudo se confundia num rodopiar de ruído e vento, sombras e
formas. Quando subitamente os dois homens se fundiram num só,
deixei de entender de todo. E então saltou-me aos olhos a
evidência: ao cair ficara com a visão distorcida.
O frio cintilar do ferro tem artes de apelar às armas todo o
nosso corpo. Num abrir e fechar de olhos, já eu estava em pé,
de punhal na mão. O labirinto de becos e ruelas de Alfama
desde há muito que faziam parte do meu mapa interior. Atalhei
para ocidente ainda mal o meu atacante meio tolhido tentava
erguer-se. Não demorei a chegar às íngremes escadas que dão
para o Largo da Cantina. Do alto dos degraus pode-se saltar
facilmente Para os telhados vizinhos. Atentei no salto e
depois de algumas voltas de um lado para o outro por quatro
telhados atingi a viela seguinte. Seguiam-me três homens; dois
deles, os mais próximos, empunhavam espadas. O terceiro era um
frade de cruz na mão como um bastão. "Agarrem o marrano!" -
gritava ele numa voz rouca -. "Quero que me tragam a aliança
que fez com o Diabo!" Devia querer as minhas partes como
troféu, imaginei. Educado a ver o mundo simbolicamente,
interrogava-me se o dominicano não quereria Pôr termo de uma
vez por todas às nossas possibilidades de reprodução.
Desci do telhado e escalei um muro baixo que dava Para o
pátio do Senhor Pinto. Tal como suspeitara, a porta da cozinha
tinha sido arrombada. A casa estava virada do avesso.
Atravessei a cozinha que dava para a esquina da Rua de São
Pedro com a Rua da Adiça. A casa de Farid ficava do outro lado
da rua. Num salto vi-me em cima do muro que rodeava o pátio,
dali saltei para dentro e entrei a correr na nossa cozinha.
Depois de me certificar que não tinha sido seguido,
dirigi-me ao quarto de meus tios e ergui uma tampa falsa da
arca, de onde retirei uma bexiga seca de enguia que continha
algumas moedas previstas para uma emergência. Esperei uns
instantes até se dissiparem os gritos que me chegavam da Rua
da Sinagoga. Depois, quando já só ouvia o bater do meu
coração, encaminhei-me para o rio. Perto da margem, um
pescador que desde criança sempre ali vi, mas que nunca ouvi
Pronunciar uma palavra, estava sentado num barco azul, a
remos, cortando um naco de queijo com uma faca ferrugenta.
Parecia velho, teria uns cinquenta anos, baixo, com um rosto
tisnado como couro e os olhos pardos da ignorância. Quando me
fitou, mostrei-lhe uma moeda e apontei Para ocidente, a
jusante. A minha ideia era seguir dali, passadas as portas da
cidade, para a vinha de Sansão Tijolo, percorrendo a pé as
cinco milhas que distavam. O pescador assentiu, remou para o
sítio onde me encontrava, acostando junto à margem.
- Tenho de sair da cidade - disse-lhe eu.
Atirando as duas moedas de cobre que Lhe tinha dado para o
monte fervilhante de minhocas do isco, o pescador remou uns
cem pés para o meio do rio, ofegando e praguejando. No pé
direito, por cima do dedo grande, uma ferida de um vermelho
vivo rasgava-Lhe a pele escurecida e encharcada.
- Mordidela de caranguejo - resmoneou -. Nunca sarou em
termos.
Enfiando-se por entre dois grandes barcos de pesca e
contornando uma gal onde flutuava a cruz de Cristo portuguesa,
girou o barco até apanharmos a correnteza. À medida que as
remadelas ganhavam ritmo, as muralhas de Lisboa iam ficando
para trás até se reduzirem a uma fita que se desenrolava em
torno das torres das igrejas, para lá da massa confusa dos
bairros exteriores da cidade. O pescador atracou por trás de
uns rochedos junto à margem e ergueu a mão para me desejar boa
sorte. Acenei a agradecer, arregacei as calças e decidi-me a
chapinhar na água fria.
Na margem, dois peregrinos andaluzes que se dirigiam a
Santiago de Compostela e usavam chapéus enfeitados com
vieirinhas aproximaram-se e perguntaram-me se sabia de alguma
taberna ali perto. Fingi que não compreendia a língua deles e
continuei o meu caminho.

Capítulo VII

DuaS horas depois, tinha diante de mim Rana, a mulher de
Sansão Tijolo, velha amiga da nossa vizinhança, que viera à
porta dando o peito ao filhito recém-nascido.
- Beri!. Deus seja louvado! Estás vivo! Entra, entra! -
agarrou-me e puxou-me para dentro, fechando a porta atrás de
mim e correndo o ferrolho -. Nem posso acreditar! - dizia
sorrindo.
Demos um beijo e eu afaguei o cabelinho penugento do menino.
Era ainda tão pequenino que tinha os olhos firmemente
fechados, como se nunca os devesse abrir. "Coisinha mais
linda!" - disse eu, que não ia agora pôr-me a falar a alguém
que é mãe pela primeira vez do ar de esquilo que as
criancinhas têm durante pelo menos o primeiro mês.
- Lindo? - replicou Rana -. Deves ter andado outra vez a
meditar de mais!
Tentou sorrir, mas as lágrimas assomaram-lhe aos olhos. O
seu olhar cabisbaixo revelava o desespero da solidão e
compreendi que também Sansão se perdera no vendaval cristão.
Sentámo-nos à lareira.
- Como soubeste dos motins? - perguntei.
- Vieram cá uns vizinhos avisar-me.
- Devias vir comigo. Porque não voltas para.
- Bem sabes que não posso - interrompeu-me ela.
Para proteger o filho dos perigos do Outro Lado, Rana nunca
sairia de casa depois do nascimento de Miguel, durante os
primeiros quarenta dias. Tal era o número de anos que os
judeus vaguearam no deserto e os dias do dilúvio bíblico.
- Quando foi a última vez que tiveste notícias de Sansão? -
perguntei.
- Desde domingo que não sei nada. Tinha ido à Pequena
Jerusalém para comprar pano que era preciso para. - e apontou
Miguel com a cabeça -. Deve ter ido à loja de Simão Eanes. Não
o viste nem ouviste dizer nada? E não falaste com Simão?
- Não, nada. Mas duvido que Simão tenha escapado.
Voltou o rosto para a parede, enquanto dos seus lábios se
escapava o murmúrio de uma oração.
- Ainda há uma esperança de ele ter chegado a porto seguro.
Sansão é esperto. E é forte. Bem capaz de meter medo a muitos
cristãos. Até eu tinha medo dele quando era miúdo. Vais ver
que ainda volta - disse eu, segurando-a pelo braço para lhe
incutir coragem. Mas no fundo apercebi-me que tentava
convencer-me a mim próprio de que Judas poderia estar são e
salvo.
- Não - ripostou -. Se estivesse vivo, já tinha voltado.
- Pode ser que esteja escondido.
- Sansão esconder-se? Beri, um pai que é pai pela primeira
vez depois de ter esperado cinquenta e sete anos não vai agora
esconder-se sabendo que a vida do filho pode estar em perigo.
Rana era uma das raras pessoas que se recusam a mentir a si
próprias. Era por isso que muita gente a achava rude, ou mesmo
desapiedada. Abanava resignadamente a cabeça e passava pelos
cabelos castanhos riçados a mão que tinha livre. "Se tiver de
ficar só" As suas palavras desvaneceram-se e mordeu os lábios
para não chorar. "É só comer e dormir" - exclamou, indicando
Miguel e esboçando um sorriso. O mamilo tinha-se escapado da
boca do menino e ela voltou a enfiá-lo na sua boquinha,
enquanto ele brincava com os braços. Ao mamar fazia um som
contente e consolado. Rana olhou-me com uma esperança nos
olhos:
- Beri, sabes alguma coisa dos meus pais?
- Não. Desculpa, devia ter perguntado antes de vir cá. Não
sei nada.
- Não faz mal. Penso que hão de vir ver-me logo que possam.
se puderem.
- Rana, vim cá sexta-feira passada comprar vinho. Levei um
barrilito e deixei um sinal.
- Já sei. Vimos logo que tinhas sido tu por causa da matza -
deu-me uma palmadinha no braço -. É bom saber que há coisas
que nunca hão-de mudar. Devia estar a dormir. Não costumo
dormir muito, mas quando me chega o sono podem deitar a casa
abaixo que não acordo. Só quando o Miguel chora. Isso é como
se um caçador me acertasse com uma seta no coração.
- Ouve, ainda tens a carta que cá deixei outro dia?
- Não sei - disse, encolhendo os ombros -. É importante?
- Tenho de a ler. Pode ser que alguma coisa que meu tio
dizia a Sansão. Onde é que ele a pode ter deixado?
- Talvez no quarto.
- Podemos dar uma vista de olhos?
- Pega nele! - disse ela, erguendo Miguel e passando-o para
os meus braços.
Enquanto Rana procurava nas arcas e gavetas, eu segurava ao
colo o menino e lembrava-me da doce sensação de quando
embalava Judas. Tantas vezes que eu e Mardoqueu passámos
noites a passeá-lo de um lado para o outro para que não
chorasse! Não tinha sido uma criança fácil, tinha nascido com
um fluído nos pulmões que lhe causava uma tosse persistente.
Fechei os olhos. Os dedos latejavam ao tocar a pele tão suave
da criança. "Judas, querido Judas" - murmurei para mim -. "Por
favor, meu Deus, fazei com que esteja vivo". Para não ser
invadido pela ansiedade, comecei a conversar com Rana enquanto
ela prosseguia a busca. Falámos dos problemas de estômago de
Miguel.
- A caca dele parece caganitas de pombo - dizia ela num tom
preocupado -. O doutor Montesinhos disse-nos que não era nada
sério.
- Não te aflijas - disse eu, com um gesto tranquilizador -.
O nosso Judas era a mesma coisa. A mim parece-me que todas as
crianças têm alguma coisa de pássaro.
Ela riu-se, mas o silêncio que se seguiu revelava ainda mais
claramente o ânimo sombrio que tornava pesado o ar que se
respirava naquela casa. Trocámos um olhar onde se lia que
Sansão talvez nunca mais voltasse e ela estendeu as mãos para
me afagar. Querido Beri - disse ela -. Tenho tantas saudades
dos nossos vizinhos. - O nosso olhar estava ligado pela
recordação dos muitos demónios que combatemos juntos com o
nosso exército de crianças. Ela voltou à sua busca, e
rebuscando um armário de gavetas ao pé da cama Tirou uma
caixinha de madeira com uma fechadura de metal de onde retirou
um rolo.
- Achei-o - disse ela num tom de triunfo, passando-me o
recado -. É isso, não é?
- Deve ser.
Passei-lhe Miguel para os braços. O rolo desfez-se em cinco
folhas de papel. Com o ar de me estar a convidar para
partilharmos uma aventura, Rana disse:
- Ouve, Beri, dá uma vista de olhos ao recado que eu vou
buscar pão de challa e um pouco de vinho. Se calhar não podes.
ainda deves estar a festejar o êxodo. Então só o vinho, está
bem? Podes ficar, não podes? Pelo menos até veres o recado.
Fica lá.
- Só fico até o ler. Depois tenho de voltar para casa. Mas
então, Rana. se tens chametz em casa, quer dizer que ainda não
festejaste a Páscoa?
- Ainda não. Estávamos a esperar mais algum tempo, para não
termos problemas.
Conduziu-me de volta para a mesa da cozinha, serviu-me um
copo de vinho e pegou na mão que tinha livre, enquanto eu lia
o recado de meu tio:
"Caro Sansão, Miguel Ribeiro recusou. Por isso vou-te contar
uma história. Por ela verás a minha esperança em que
compreendas a necessidade que todos temos de fazer algum
sacrifício neste momento decisivo. Se não conseguirmos fazer o
que fez o Rabi Graviel neste fulcro do tempo, então talvez
tudo esteja perdido. Ainda que a tua fé se esboroe, o que
conta são os teus actos. Será que Samael ganhará o seu dia?"
No topo da página seguinte, estava escrito: "História da
Crestadura do Sol do Rabi Graviel". Era a mesma história que o
meu mestre me tinha contado no seu último Shabat e, ao
murmurar o título, parecia sentir as suas mãos segurar-me
a nuca. A sua voz ciciava-me: "Lê, lê-a novamente, Berequias.
Talvez possa também entender o seu significado. Não foi por
acaso que ofereci esta história a ambos, a ti e a Sansão", - O
que é? - perguntou Rana, sentindo a minha súbita agitação.
- Um conto. É sobre o Rabi Graviel, um dos meus
antepassados, de como ele teve de sofrer o cativeiro em
Espanha para que a filha dele continuasse a viver. . Julgo que
meu tio teve uma visão de que também ele teria de fazer um
grande sacrifício. Foi isso. Para que poupassem a rapariga que
estava na cave, teria de dar em troca a sua vida. Era esse o
trato. Mas o criminoso não respeitou a palavra dada.
- Beri, quer dizer que o teu tio. Ah, meu Deus!
Ao compreender pela primeira vez que meu tio tinha morrido,
os ombros de Rana recuaram. Depositou Miguel em cima da mesa,
levantou-se e tapou os ouvidos com as mãos, fixando-me
horrorizada. Vendo que começara a tremer, aproximei-me dela e
puxei-lhe as mãos para baixo. "Rana! Rana!" Ela olhava para
mim como se tentasse decifrar o meu rosto, decidir quem eu
era. Num tom monótono, despido de qualquer aparente emoção,
disse:
- Sansão. Agora Mestre Abraão. E Ester, também?
- Não. Essa está bem. Com a minha mãe e Cinfa. O Judas não
sabemos onde está.
Fi-la sentar-se e deitei-lhe vinho. Pegou no copo com ambas
as mãos, como fazem as crianças, bebeu em pequenos goles e
começou a divagar falando sobre os poços da vinha. Quando o
silêncio caiu de novo entre nós, perguntei:
- Sansão alguma vez falou em algum problema entre os membros
do círculo de iniciados?
Ela abanou a cabeça.
- Uma discussão com meu tio, talvez?
- Nada - replicou ela.
- Mas então, porque é que meu tio fala na perda de fé de
Sansão? Ele andava metido em algum sarilho?
- Sansão achava que o menino devia receber uma educação
cristã - sussurrou Rana, agarrando-me o braço -. Dizia que
agora o ser judeu não servia de nada. Este ano não festejámos
a Páscoa. Mesmo se.
Abriu a dobra da fralda de Miguel para me mostrar as suas
partes, sem a circuncisão, que devia ter sido feita no oitavo
dia depois do nascimento. Fechou os olhos com ar desesperado,
as pestanas banhadas de lágrimas. Como para fazer coro com a
mãe, Miguel desatou a chorar também. Peguei nele e embalei-o
carinhosamente, mas sem grandes resultados. Subitamente, as
palavras de Rana jorraram como que disparadas em todas as
direcções.
- Se eu soubesse. Como é que ele pode ter mudado tanto?
Quando nos casámos. e depois chegou o menino. Vivíamos tão.
tão bem. Lembras-te como era a Páscoa? Lembras-te, Beri?!
Antes de. Espera, deixa-me mostrar-te uma coisa.
De uma abertura por cima da lareira, tirou um livro espesso.
O rendilhado intrincado que bordejava a capa revelava
tratar-se da primeira versão do Antigo Testamento, feito por
Eliezer Toledano no meu tempo de rapaz. Estendeu-mo.
- Vê! - ordenou.
- Que queres dizer? Vejo o quê? - perguntei eu, pegando no
livro.
- Num sítio qualquer. Abre num sítio qualquer.
Passei-lhe o menino para os braços e abri ao acaso o
manuscrito. Aos meus olhos surgiu o Livro de Ezra, os
versículos sobre a reconstrução do Templo. Todos os nomes de
Deus tinham sido riscados um a um com uma tinta castanha. Era
aterrador, como um talismã do mal. Rana falou numa voz
apressada, como se a perseguissem.
- Sansão disse-me que tínhamos de enterrar o deus judeu.
Depois da Páscoa tínhamos de rezar ao Senhor e depois
enterrá-Lo e esquecê-Lo. Sansão riscou todos os Seus nomes!
Com os olhos fixos na profanação, passei as mãos pelas
páginas riscadas, rezando para não ter de as ver novamente, e
pousei o livro na mesa.
- Nunca hei-de ser cristã! - gritou Rana subitamente -.
Preferia matar-me!
Era como se o seu grito fendesse o ar entre nós.
- E o teu filho? - perguntei -. Quem há-de olhar por ele?
Agora que.
- Preferia vê-lo morto!
Nove anos antes, alguns judeus tinham matado os filhos,
matando-se depois, para não terem de se converter à força, que
é uma coisa que me parece escrita numa linguagem
incompreensível.
- Não falas a sério - protestei.
Rana inclinou-se para diante, passou o filho para os meus
braços e, com um brilho assustador nos olhos, pegou numa
pesada faca do pão, ergueu-se de um salto e apontou-a para
mim, com o corpo retesado pela fúria.
- Fazia-o neste momento se me dissesses que tenho de coser a
mortalha do meu Senhor!
- Fazias um grande pecado se alguma vez fizesses mal a este
menino. É um embaixador de Deus para nós. Eras capaz de matar
Abraão, Isaac ou Moisés se eles aqui estivessem?
Continuava com a faca nas mãos.
- Esta criança é Abraão, Isaac e Moisés. É o Senhor nosso
Deus! - exclamei eu.
Rana deixou tombar a arma e desatou a soluçar. Fi-la sentar
e afaguei-Lhe os cabelos. O menino parecia fascinado pelos
gemidos dela. Mas assim que ela se calou, começou a agitar as
pernas e a protestar. Desisti de tentar consolá-lo e passei-o
à mãe. Sem me dar tempo para reflectir, peguei no Antigo
Testamento profanado, contive a respiração e atirei-o para a
lareira.
- Berequias! Pára! Olha o que fizeste. - exclamou Rana,
gaguejando.
Enquanto o fumo e as chamas crepitavam com as páginas que se
enrolavam e amareleciam, repliquei numa voz que parecia vir de
meu tio:
- As palavras escritas não me são necessárias. Nem mesmo a
Tora. Nem tão-pouco a ti. Guarda a tua religião dentro de ti.
Deus virá aí ao teu encontro, aí onde falas contigo própria.
Se Sansão voltar. e havemos todos de rezar para que esteja
bem, deixa que fale de cristianismo. Respira tu judaísmo. O
teu filho há-de conhecer a diferença. E quando ele tiver idade
bastante para guardar segredos, deves falar-lhe na noiva que é
o shabat e que dentro dele esperou pacientemente durante toda
a sua infância. E celebrareis então juntos a boda.
O menino procurava de novo o seio da mãe. Rana deu-lho,
fixando-o atentamente, como que procurando antever essa
cerimónia futura. "Como deve ser maravilhoso" - pensei com
incontida inveja - "poder oferecer-se a si próprio como
alimento a outro ser. Será possível que o objectivo da vida de
alguém surja inesperadamente, no espaço de um único momento?"
Pois compreendi então que também eu haveria de, antes de
morrer, procurar entregar-me a alguém tão inteiramente como
Rana o fazia.
- Veremos. - murmurou Rana, com um encolher de ombros, como
quem não está inteiramente convencida.
Demos um beijo.
- Rana, Sansão andava zangado com meu tio ou com algum dos
iniciados? Teria isso alguma coisa a ver com a sua perda de
fé?
- Não. Era por causa do menino. Uma coisa é vivermos
aterrorizados, e outra muito diferente é condenarmos alguém a
um fado semelhante. Ele esteve a cismar no futuro do menino
como judeu e não gostou do que viu.
- Não queres vir comigo? - perguntei -. Já sabes que podes
ficar em nossa casa o tempo que quiseres. E não tens de ter
medo do Outro Lado. Não passa de uma superstição. Não tens de
ter medo de sair de casa.
- Não, obrigado - disse, afagando-me no braço -. Os meus
pais hão-de aparecer por cá. Se puderem.
- Compreendo. Não te esqueças, tens de fazer um jardim
interior onde te possas esconder e para onde possas convidar o
Miguel quando ele tiver idade. - alisei de novo as farripas do
cabelo do menino -. E se Sansão voltar, diz-lhe que preciso de
o ver. Ainda podemos usar o futuro para falar dos judeus em
Portugal. Talvez ele ainda volte à fé.
Despedimo-nos com um beijo. Mas mal eu partira, já ela me
chamava. A mão tremente sobre os lábios, perguntou-me:
- Achas que o Senhor levou Sansão como vingança. pelo que
ele fez ao Velho Testamento?
Fechei os olhos à procura de uma resposta, mas percorreu-me
um calafrio ao comPreender que deixara de confiar em Deus.
Refugiei-me no gesto com que eu e Farid exprimimos o
insondável.

Capítulo VIII

Ao sair de casa de Rana, a minha descida a um mundo vazio e
abandonado por Deus fez com que me agarrasse obstinadamente à
história de meu tio sobre o Rabi Graviel. Ao ler de novo as
suas palavras, recordei a última lição que nos tinha dado, a
Judas e a mim, quando o meu mestre falou também na necessidade
de fazer um sacrifício. Foi durante a nossa seder de Páscoa,
na sexta-feira anterior. Enquanto tia Ester enchia as nossas
escudelas de sopa de nabo com açafrão, meu tio fez-me um aceno
e disse: "O Senhor mostrou-se agradado com Sara" Com estas
palavras estava a dar-me uma deixa para um cântico de memória,
que começava com aquele versículo do Génesis. Em português,
para que Judas pudesse compreender, comecei: "O Senhor
mostrou-se agradado com Sara como Ele tinha prometido e fez
tudo o que tinha prometido acerca dela. Concebeu e gerou um
filho a Abraão para a sua velhice". numa época Meu tio
deixou-me continuar durante os cinquenta e dois versículos que
se seguiam. Interrompendo-me apenas para molhar os lábios com
um gole de vinho, contei assim a história de Isaac, filho de
Abraão e de Sara, cujo nome em hebreu quer dizer ele riu-se,
que é uma alusão à grande alegria de Abraão por ser capaz de
gerar um filho apesar dos seus cem anos de idade. Ao chegar ao
versículo que diz "Chegou o tempo em que Deus quis
experimentar Abraão", meu tio, franzindo as sobrancelhas,
fez-me sinal para que falasse directamente para Judas.
Pegando-lhe no queixo, senti o seu olhar pousar-se sobre mim.
Na minha voz mais teatral, continuei a história: "Abraão! -
chamou o Senhor. E Abraão respondeu: Aqui estou!" E Deus
disse: Toma o teu amado filho Isaac e vai para a terra de
Moria. Quando lá chegares deves oferecer-me teu filho em
sacrifício numa das colinas que te hei-de mostrar". Judas
contorcia-se no seu lugar e mordia os lábios, perturbado ao
sentir aproximar-se a morte de Isaac. Podia senti-lo
estremecer ao recordar as pragas que minha mãe rogava, ferido
na sua alma com o modo como Lhe negava um lugar na vida dela.
Tomei as suas mãos nas minhas e contei como Abraão atara Isaac
e o colocara em cima do altar que fizera com lenha e como, mal
erguera a faca para tirar a vida ao seu filho, Deus interviera
na figura de um anjo: "Não ergas a mão contra o menino, não o
toques! Agora sei que és temente a Deus. Não me sonegaste o
teu filho, o teu único filho. Hei-de abençoar-te
abundantemente e dar-te descendência tão numerosa como as
estrelas do céu e os grãos da areia da praia". Judas não tinha
ficado completamente tranquilizado com este final afortunado.
Na sua face lia-se uma ânsia enorme de ser apaziguado. Senti
um aperto nas entranhas ao perceber como era cruel da nossa
parte enfiar a espada da Tora através das suas frágeis
defesas. Apoiei a minha mão na sua nuca, enquanto ele punha os
olhos no chão, e procurei incutir-lhe coragem. "Come mais um
pouco de sopa" - disse eu -, "senão fica fria". Meu tio
carregou o sobrolho e, sem atender aos meus protestos, disse:
- Ouve, Judas, meu querido, tinha pedido ao Beri para te
contar esta história por uma razão. Diz lá o que pensas dela.
Todos os olhares se fixaram no rapazinho. Mas os seus lábios
mantinham -se firmemente selados. Dei-lhe uma palmadinha nas
costas para o encorajar, mas ele estava prestes a rebentar em
lágrimas. Fitei meu tio com ar de reprovação, com vontade de
lhe gritar: "Não acha que já sofreu bastante nestes curtos
cinco anos? Deixe Judas em paz!"
- Quero saber a tua opinião - insistiu meu tio -. Nunca te
hei-de querer mal se me disseres a verdade. Nunca! Tens a
minha palavra. , - Diz lá, Judas - pediu tia Ester, sorrindo
maternalmente.
Minha mãe fitava-o com um rosto de pedra e começara a
repuxar nervosamente as farripas de cabelo da fronte. Quando
Lhe belisquei o pescoço para acabar com aquilo, Judas
balbuciou:
- Não gostei da história.
- Eu também não - exclamei.
- Porque é que não gostaste? - perguntou meu tio, rejeitando
a minha ajuda com um gesto.
Judas esfregou os olhos com os punhos fechados.
- Porque. porque. Não sei. Porque não!
- Mas diz-me porquê - disse meu tio suavemente.
- Porque Isaac não fez mal nenhum - deixou escapar Judas.
- Isso mesmo! - disse meu tio, levantando-se e inclinando-se
para o menino, com os braços apoiados na mesa -. Agora vou-te
dizer um segredo, Judas. E olha que os segredos são uma coisa
muito importante. É por isso que não se devem contar a
ninguém. Fica só entre nós, está bem?
Judas assentiu com um aceno, a boca aberta como se tivesse
entrado em transe, pois adorava os segredos que meu tio Lhe
confiava.
- Muita gente pensa que esta história quer dizer que por
vezes é necessário fazer sacrifícios por Deus - começou o meu
mestre -. Um sacrifício tremendo, se preciso for. E até certo
ponto têm razão. Abraão estava disposto a sacrificar o seu
filho. E também há pessoas que acham que não estava certo que
Deus exigisse tal coisa a um homem. E não estava certo que
esse homem tivesse tentado. Talvez tenham também razão. Até eu
muitas vezes penso o mesmo. Mas é aqui que está o segredo. -
Meu tio inclinou-se mais sobre a mesa, até o seu rosto ficar
quase a tocar o de Judas. Os seus olhos cintilavam. Levando um
dedo aos lábios, ciciou: - Não te esqueças de que Isaac quer
dizer ele riu-se. Isso é a prova segura de que a Tora fala por
metáforas, por enigmas muito particulares. Isaac não é o filho
de Abraão neste mundo. É uma espécie de filho do próprio
interior de Abraão. É um filho nascido do riso e da mágoa de
Abraão, da sua cólera e da sua ternura, dos seus medos e dos
seus sonhos. Então o que é que Deus lhe pediu? Que renunciasse
a isso. Que renunciasse às suas emoções e pensamentos mais
íntimos, aos seus bens mais preciosos. Que desatasse os nós do
seu espírito. Que extinguisse uma parte de si próprio. E
porquê? Para que dentro dele se pudesse abrir uma porta por
onde Deus pudesse entrar. Meu querido Judas, esta história é
um apelo para te abrires a Deus e nada mais. - meu tio levou a
mão à cabeça do sobrinho, desgrenhando-lhe os cabelos e
seguidamente apertou-lhe o nariz -. O amor de Deus por ti é
tão grande que não hesitou em contar uma história terrível e
deixou que pensasses mal dEle. Tudo para que um dia O possas
encontrar dentro de ti. Tudo o que Ele pretende é poder
abraçar-te, nada mais. Está bem?
Judas, ainda fascinado, fez um grande aceno de assentimento.
Reparei, com um sentimento de gratidão, que o humor das
crianças pode mudar tão facilmente. A lição que, nessa
ocasião, tirei de tudo aquilo foi a de pensar duas vezes antes
de duvidar de meu tio. Mas agora, a caminho de casa, pus-me a
pensar no que ele nos tinha dito sobre o sacrifício. Deus
tinha pedido a Abraão que renunciasse ao seu bem mais
precioso. Teria Ele pedido a meu tio que renunciasse à sua
própria vida? Porquê? Por desse modo se puderem salvar mais
livros das chamas cristãs? O meu cismar foi interrompido daí a
pouco por um homem que gritava o meu nome. A intuição de Rana
sobre os seus pais parecia estar certa: eram eles, Benjamim e
Raquel, que eu avistava no cimo mais próximo, caminhando na
minha direcção.
- Beri! - gritou Benjamim, correndo para mim, com a
ansiedade espeLhada nos seus olhos escuros -. Viste a Rana?
Ela está.
- Está boa. E o Miguel também. Estão os dois livres de
perigo.
- Graças a Deus - disse ele, pondo as mãos sobre o meu peito
-. Ouve, não nos podemos demorar, temos de a ir ver. Dá as
nossas lembranças a toda a tua família.
- Lá serão entregues - disse eu, segurando-lhe o braço -. Só
mais uma coisa: viram o Sansão? Tinha ido a Lisboa para
comprar.
Benjamim levou os dedos aos lábios:
- Desde domingo que minha filha é viúva - balbuciou ele -.
Sansão foi apanhado quando os motins começaram. Foi colhido de
surpresa.
- Fumo. Fumo, é tudo o que resta de Sansão - disse Raquel,
fazendo um gesto para o ar com a mão.
- E ainda há fogueiras no Rossio? - indaguei.
- Nem nunca as hão-de apagar - disse ele, abanando a cabeça
-. enquanto nós continuarmos os mesmos.
Estas palavras queimavam através do torpor que parecia subir
e descer dentro de mim ao seu próprio ritmo e senti então que
já há muito tempo que não via a minha família. Apressando o
passo, rumei a Lisboa, para encontrar as portas da cidade,
tanto a norte como a oriente, obstruídas por grande soma de
cristãos e de frades dominicanos. Os mais moços de entre eles
excitavam-se mutuamente, batendo-se e praguejando, como
filhotes de ursos à espera de uma oportunidade de mostrarem o
que valiam. A ocidente, porém, na Porta de Santa Catarina,
havia apenas um reduzido ajuntamento de velhotes bêbados. Mais
tarde, vim a saber que corria o boato de que o rei ia mandar
entrar as suas tropas pela parte oriental da cidade para
restabelecer a ordem na capital. Por isso é que as portas
ocidentais estavam menos vigiadas.
Pelos vistos, parecia menos um marrano do que minha mãe
imaginava: os cristãos com quem me cruzei não disseram uma
única palavra e até me arrastaram para me juntar a eles e rir
com as suas chalaças alvares sobre mulheres e judeus. Que Deus
me perdoe, mas lá me deixei levar, para não pôr em risco a
minha vida.
- Sabes qual é a semelhança entre um judeu e um
louva-a-deus? - perguntou um homem, de rosto magro cavado.
Vendo-me abanar a cabeça negativamente, atalhou
imediatamente:
- Se lhe cospes, continua a rezar. Se o prendes, continua a
rezar. E só pára: se pegares na espada e lhe cortares a
cabeça!
Custa a crer que alguém pudesse achar graça a tais coisas.
Mas os cristãos conspurcavam o ar com as suas gargalhadas
desdentadas e eu procurava imitá-los o melhor que podia.
Enquanto me afastava, comecei a pensar que talvez Deus
tivesse permitido que eu entrasse na cidade por esta porta
para poder ir visitar o negociante de armas Eurico Damas no
meu caminho para Alfama. A casa dele ficava na parte rica do
Bairro Alto, no topo da colina, acima das barracas miseráveis
que ficavam em frente. Quando Damas e meu tio ainda se
falavam, antes da conversão do negociante, ele explicara ao
meu mestre a razão desta localização invejável. E para que
nunca esqueça de onde vim, Nenhum crente cristão-novo o deve
esquecer, Nobre sentimento esse. Mas assim que ele
desapareceu, meu tio
arrancou-me um cabelo e, calando o meu protesto, disse:
"Berequias, as nobres palavras que esse homem acabou de
pronunciar estão tão profundamente ancoradas na sua alma como
este cabelo estava na tua cabeça. Um puxãozinho - abriu as
mãos para o alto e fingiu-se surpreendido com o
desaparecimento do cabelo -. Nunca dês crédito a alguém que
ganha com a morte de outrem. Especialmente quando depois o
vires a exibir em público o seu xaile de orações.
Baixava já o sol no céu quando comecei a subir o emaranhado
de vielas de terra batida que trepavam sinuosas para o Bairro
Alto através das encostas a ocidente. Ao passar pelo meio do
amontoado de barracas de madeira onde os mais pobres se
consumiam numa vida de desencantada servidão, alguns rostos
sujos observavam-me disfarçadamente como se fosse um
espectáculo pouco habitual. Crianças, cheias de moscas ao
canto dos olhos, faziam grande poeirada a correr atrás de
galinhas e gatos. Um escravo africano enorme preso pelo
tornozelo a uma âncora enferrujada fixou-me com o olhar
intenso de um contador de histórias que visse passar uma das
suas personagens. Reconheci nele alguma afinidade e saudei-o
com um aceno de cabeça, mas ele voltou-me as costas como se eu
fosse algum suspeito de um crime. Pairavam no ar os odores da
humilhação, da raiva. E no entanto aqui e ali viam-se
jardinzinhos com malmequeres e alfazema, couves, nabos e
favas.
Um largo empedrado abrigado por castanheiros frondosos
assinalava o termo da tolerância real: para além daquele
ponto, deixavam de se ver as pranchas de pinheiro e os trapos
do povo miserável e começava a surgir a pedra de cantaria da
nobreza lisboeta. Reconheci imediatamente a casa de Damas: de
cada uma das cornijas emergiam gárgulas horrendas, de cornos e
bocas enormes, que em criança me deixavam petrificado. Por
trás do telhado, possivelmente vindo do quintal, subiam
penachos de fumo. Enfiei a mão na bolsa, saquei o punhal e
escondi-o na cinta das calças.
Respondendo às minhas pancadas na grade de ferro em frente
da porta, acorreu um rapaz delicado, de rosto suave
arredondado, que estacou à entrada com as mãos nas ancas. A
camisa de seda verde e uma túnica escarlate sobravam-lhe no
peito, possivelmente por serem herdadas de um irmão mais
velho. Com um gesto de irritação, afastou do rosto uma longa
madeixa de cabelo fulvo e enfiou-a sob a orla da boina azul.
Trazia as mãos sujas de cinza. Parecia tomar-me por um
vendedor ambulante e com uma voz cantante disse em tom calmo,
mas terminante:
- Não precisamos de nada do que anda a vender. . Esfregou o
queixo, deixando uma marca negra de fuligem.
- Não ando a vender nada. Queria falar com Eurico Damas.
Olhou para o céu com um ar céptico, depois para o chão, e
encolheu os ombros. - Se fosse a si, começava a cavar - torceu
os lábios num jeito de mofa e apontou para o ar com o polegar
-. Ali é que ele não deve entrar, se quer saber a minha
opinião.
- Morreu? - perguntei.
- Mais morto não pode estar - respondeu, batendo no umbral
da porta.
- Tem a certeza?
- Vi-o com os meus próprios olhos. Até lhe abri a boca e lhe
cuspi dentro para ter a certeza.
- Mataram-no nos motins contra os cristãos-novos?
- Oiça - disse, com um encolher de ombros -, Mestre Eurico
tinha grande soma de inimigos. Acha a sério que ele escapava?
Não devia ter-se escondido dentro do colchão como um
percevejo -. E apontando-me com um gesto da cabeça, perguntou:
- Mas afinal quem é vossemecê?
- Pedro Zarco - respondi, usando o nome cristão que me tinha
sido imposto pela espada da conversão -. Moro na.
- Ah, o sobrinho de Mestre Abraão!
- Como sabe quem eu sou?!
O moço aproximou-se de mim e passou os dedos pelas grades do
portão como quem fosse saltar. Ao perto, percebi que eram as
feridas e arranhadelas que tinha no rosto que o faziam parecer
tão corado.
- Mestre Eurico odiava o seu tio - disse ele -. Estava
sempre a falar em prendê-lo e de lhe aplicar a pinga, só para
ver as pragas e os disparates que diria, Pode parecer
estranho, mas de certo modo também gostava dele. À maneira
dele. Mas achava que o seu tio era um pouco doido. e perigoso.
A tortura da pinga consistia em deixar cair azeite fervente
gota a gota sobre o corpo da vítima, por vezes desenhando as
letras do seu nome com as queimadelas. Os nomes portugueses
são muitas vezes bastante longos e a maior parte dos
torturados confessavam o que quer que fosse muito antes de as
Pingas de fogo chegarem aos apelidos.
- Eras criado dele? - perguntei.
- Mandei os criados embora.
Retirou a boina com o sorriso de quem revela um tesouro
escondido. Uma cascata de cabelos fulvos e sedosos caiu-lhe
sobre os ombros. Era uma rapariga, - Sou a viúva - disse ela,
com uma vénia. Encolheu os ombros como que a desculpar-se do
disfarce com que me aparecera e correu o ferrolho do portão:
Tomou-me pelo braço, como se estivesse a convidar-me para uma
dança. - Entra!
Era então a jovem esposada de Damas! Entrámos numa cozinha
toda suja de sangue e empurrou-me através da despensa para o
quintal, à sombra de laranjeiras carregadas de frutos. No
terraço de tijoleira nas traseiras da casa, rugia uma fogueira
de roupas e lenha. Perto, via-se um monte colorido de camisas,
gibões e calças. A fogueira lançava nos ares faúlhas, que
depois caíam como plumas.
- Passei a noite a queimar estas coisas - disse ela com um
desabafo de triunfo -. Para começar foram as botas. Oito
pares! Era um para cada dia da semana e ainda tinha outro em
pele de tubarão para ir à missa ao domingo. Quando achava que
eu não as tinha engraxado bem, urinava-lhes em cima e
obrigava-me a limpá-las de novo. E deixe-me que lhe diga que o
mijo daquele homem cheirava pior do que o dos gatos! Agora o
único problema com elas é que largam um fedor tremendo quando
as queimamos. E ele também!
As gavinhas das chamas vibravam como se fossem bonifrates
que alguém manipulasse.
- Atirou Eurico Damas para a fogueira?! - perguntei.
- Se procurar bem, é capaz de ainda encontrar os dentes
dele! - respondeu ela, rindo-se. Passou a língua pelos lábios
como quem saboreia um pitéu -. Tinha mais do que os que
precisava, por isso estou certa que há-de haver muitos por aí
-. Considerou o meu olhar de espanto com um ar divertido e
desatou a rir-se: - Não sei se sabe que ele ia raptar o seu
tio.
- Sabe se ele o encontrou? O que é que ele.
- Não. Vinha a rosnar quando voltou. Que não tinha
conseguido descobrir onde é que Mestre Abraão se tinha
escondido. Ouvi-o a dizer isso.
Então a minha suposição estava errada: Eurico Damas não
estava implicado. E Sansão estava morto. O que deixava Frei
Carlos e Diego como os únicos iniciados que podiam ter traído
meu tio; e Miguel Ribeiro e o Rabino Losa como os que lhe
tinham feito ameaças.
- Ele fazia tenções de impor a pinga a todos os cabalistas
amigos do seu tio - continuou a rapariga -. Queria obrigá-los
a confessar que tudo aquilo não passava de uma mentira. Estes
últimos tempos andava obcecado com isso. Devia ser da idade,
acho eu. Não acreditava nesse género de coisas, não sei se
está a ver.
- Que género de coisas? Não estou a ver nada.
Riu-se, como que a troçar de mim, e puxou com evidente
orgulho a bainha da túnica de seda.
- Num Deus omnipresente, estúpido!
Enquanto ela falava, um moço delgado, de cabelos negros e um
princípio de bigode, saiu a correr de dentro de casa,
arrastando uma espada suja de sangue, com o olhar fixo em mim.
- Deixa estar, José - disse ela -. É o sobrinho de Mestre
Abraão - E voltando-se para mim sussurrou: - Foi o José quem o
matou. Não é lá grande coisa com a espada, mas quando um homem
está mais bêbado que um porco numa gamela de uvas, basta um
pequeno espeto para. - E fez um gesto com as mãos a imitar uma
espadeirada fatal. Sorriu e foi deitar um gibão para a
fogueira.
José agraciou-me com o acenar grave de um adolescente que
assumiu o papel de um protector e num silêncio soturno e
solene ficámos os três a observar as vestimentas a fumegar e
torcer-se até ficarem completamente negras. A expressão da
rapariga endureceu. Esfregava o rosto, como quem procura
limpar alguma nódoa.
- Estou cheia de marcas nas costas, sabe? - exclamou,
voltando-se para mim -. Durante um ano fartei-me de apanhar
com o chicote. Agarrava-se às partes e ficava ali a abanar-se
enquanto me batia, não sei se percebe o que estou a dizer -
sorriu novamente -. Queria apagar até a lembrança dele -
pegou-me na mão, antes de continuar -. Compreende, não
compreende? - Acenei que sim e ela fitou-me gravemente e
apontou para o peito. - Os cabalistas acreditam realmente que
Deus mora aqui?
- Aí e em toda a parte. E em parte nenhuma. Deus aparece-nos
sob a forma com que melhor O podemos perceber, revestido de
modo que O possamos ver. Depende da Sua graça. e da nossa
visão.
- Então a mim não me há-de aparecer na forma de homem, não
preciso de um Deus macho. Já tive um e fiquei a odiá-lo. Mato
o próximo deus macho que me apareça a exibir-me as suas
vergonhas!
- Nesse caso poderá ser uma emanação feminina. Ou nem uma
coisa nem outra. Ou ambas, mais possivelmente.
- Uma mulher. Prefiro uma mulher - com os punhos fechados e
rangendo os dentes, gritou: - Nunca mais nenhum homem entrará
em mim! -- com um olhar altivo voltou a pôr a boina e enfiou nela
a cabeleira -. Pega nas roupas que quiseres e depois vai-te
embora!
Ficámos a olhar um para o outro, como quem procura medir a
crueldade do mundo.
- Era uma vez uma rapariga feliz que nadava no Tejo, que
espiavam de longe e a quem os pais venderam como escrava -
recitou ela numa voz tremente, fechando depois os olhos e
cruzando os braços no peito como a confortar-se do seu próprio
desespero.
- E um rapaz que perdeu o seu tio e um irmãozinho -
repliquei.
Abriu os olhos em sinal de compreensão e acenámos um ao
outro como familiares obrigados a separarem-se. O peso da
nossa afinidade prendeu-me ainda um momento no mesmo lugar,
depois voltei-me e fui embora.
O crepúsculo lavara um céu róseo e acobreado. Olhando de
longe o ajuntamento compacto do Rossio, senti a mão de meu tio
segurar-me o pescoço. "Se pintares de vermelho as tuas mãos
ninguém se meterá contigo" - sussurrou ele. Compreendi o que
me queria dizer e arranquei a crosta que se tinha formado na
ferida do ombro, deixando correr o sangue pelos dedos. Cobri
com ele as mãos e os braços. "Agora desce até ao rio" -
continuou -. "Caminha ao longo da margem e a quem te
interpelar diz-lhe que andas à caça de marranos".
Tal como eu imaginara, cheguei a casa sem nenhum incidente.
O tapete sujo de excrementos que cobria o alçapão continuava
no sítio. Mas quando desci para a cave era como se entrasse na
prisão. Era então jovem e altivo e um tal esconderijo só
despertava em mim um sentimento de humilhação.
Cinfa correu para mim quando atingi o fundo das escadas e
disse-me que ainda há pouco tempo tinham entrado homens na
cozinha, prometendo clemência aos marranos que se entregassem.
- Não voltes a sair! - implorou.
- E Judas? - perguntou minha mãe arquejante.
- Nada - respondi.
Farid e a cachopita sem unha do polegar estavam a dormir
enrolados em cobertores, junto às escrivaninhas. Tia Ester
continuava sentada e em silêncio, o perfil como uma estátua de
pedra.
Depois de ter apaziguado Cinfa, levantei o tapete de orações
que cobria meu tio. Um cheiro pútrido feriu-me as narinas.
"Senhor, quanto tempo passará até que possa descansar sob a
terra?" - pensei. Aspergi-o novamente com mirra e de cada vez
dizia para mim próprio: "Fixa bem a sua face. Tens de te
lembrar de tudo para te poderes vingar".
Enquanto entoava cânticos interiormente, o meu corpo,
prodigiosamente, começou a libertar-se da sua frustração
acumulada e a vibrar e a mover-se com uma energia sagrada. Tal
é o poder da Tora, ou tão grande a minha capacidade de me
iludir a mim próprio, que estava cada vez mais convencido que
me cabia a mim a missão de salvar Israel dos filisteus de
Lisboa e que ao resolver o mistério da morte de meu tio
estaria de certo modo a rodar a chave da porta da nossa
salvação. Qual fosse a relação entre a morte de meu tio e a
salvação dos judeus portugueses não fazia então a mínima
ideia.
Observando as cortinas de couro corridas sobre os postigos
do topo da parede do lado norte, entrei de novo a cismar no
modo como o intruso se teria escapado. "Tem de haver uma saída
escondida" - pensei -. "Algum túnel, qualquer saída apenas
conhecida dos iniciados". Seria por isso que meu tio não
queria que eu entrasse na cela sem a sua permissão. Por eu não
ter sido ainda iniciado nos segredos do nosso templo. - -
Trouxeste comida? - perguntou Cinfa de repente -. Ela tem
fome.
A cachopita, ao lado de Cinfa, contemplava-me num silêncio
eloquente.
- Desculpa, esqueci-me - respondi -. Vou já lá acima ver o
que se pode arranjar na loja. Deve haver.
- Não. Ficas aí sentado! - ordenou minha mãe. Tinha os
punhos cerrados e os olhos a faiscar -. Agora esperamos até
tudo estar bem acabado.
Cinfa e a menina começaram a tasquinhar uma matza que eu
tinha deixado. Ainda tinha umas manchas de sangue, mas
desapareceu num abrir e fechar de olhos. Assim, também a fome
passou a fazer-nos companhia.
Precisava de ter as mãos ocupadas e ansiava por saber quem
era a rapariga, por isso peguei numa folha de papel do nosso
armário de material e comecei a desenhá-la. Farid acordou
algum tempo depois, já eu acabara de desenhar o rosto e
começara as mãos. Cinfa bateu-me no ombro e disse-me que ele
queria falar comigo.
Levei-lhe uma escudela com água, que lhe segurei junto aos
lábios e que ele sorveu avidamente. Suava profusamente e ardia
de febre. As calças estavam sujas de sangue e de excrementos.
- Como te sentes? - perguntei.
- É como se estivessem a arrancar-me a pele por dentro. E
acho que não consegui reter-me. As calças. Devo feder tanto
que até Alá deve tapar o nariz.
Apesar dos seus protestos, limpei-lhe o traseiro e as pernas
e voltei a cobri-lo com um cobertor. Como não tínhamos mais
almofadas, fiz um apoio para a cabeça com vários manuscritos
da geniza. Que melhor propósito poderiam servir nesta ocasião
os escritos hebraicos? Assim que ele mergulhou no sono,
sentei-me apoiado à parede oriental, no local onde
possivelmente a rapariga suplicara que a poupassem. Com os
joelhos encostados ao peito, deixei-me ficar numa posição de
recolhimento e solidão, sentindo que algo de frio e calculista
me afastava da minha família. Seria o meu desejo de vingança?
Todos falavam agora em murmúrios, mas eu não conseguia.
Precisava de correr, de gritar para que todos ouvissem que
havia de vingar meu tio. Não podia continuar a viver
enclausurado em murmúrios, acorrentado por conversações
cifradas. O meu mestre tinha razão: o leão da Cabala dentro de
mim não me deixaria continuar a viver como um judeu
clandestino. Compreendi então que a minha jornada espiritual
daquela Páscoa seria o desvendar da minha verdadeira face.
Voltei aos meus desenhos e, enquanto duraram as horas de
luz, mergulhei nos contornos da rapariga, primeiro, e depois
de meu tio. Quando chegou a noite, senti-me incapaz de sequer
dizer as minhas orações. A cachopita dormia nas minhas pernas,
fazendo almofada das minhas coxas. Cinfa aconchegava-se entre
nós, enrolada num cobertor.
Nessa noite, foram os meus próprios gritos que ouvi nos
sonhos: tinham-me atado ao chafariz do Rossio e baptizavam-me
com um ramo de palmeira. Acordei no escuro com o cheiro do
fumo que impregnava as minhas roupas. Era impossível, bem sei,
pois as calças e a camisa que usava não tinham presenciado
a fogueira do Rossio. Do ponto de vista da Cabala, porém, tais
ilusões não devem ser ignoradas e, tempos depois, haveria de
compreender que aquele odor revelava que uma parte de mim não
passara além do domingo. Mas neste momento limitei-me a
despir-me e a ensopar as roupas em água de erva doce do nosso
armário de material. Mas o odor, mais teimoso que uma carraça
ávida, persistia ainda.
Não conseguia voltar a adormecer. No escuro, do brilho do
luar nasciam formas amarelas e violeta que se enrolavam em
torno de mim e da minha família como lençóis gelados, se bem
que fosse reconfortante o seu toque. Era como se nos
envolvesse uma coberta que selava conjuntamente os nossos
destinos. Como gostaria que me tivesse antes ocorrido a imagem
de uma coberta legada por Deus", mas sentia-me então avesso a
tal linguagem poética.
Foi assim que atingimos as primeiras horas da manhã de
quarta-feira, a manhã antes da sexta noite da Páscoa.
A ansiedade conduziu-me até junto de Farid. Senti o seu
hálito bafejar-me os dedos, regular mas fraco. Recordei como,
quando crianças, ele chorava ao sentir o cheiro das chuvas de
Primavera fustigando as moitas de loendros do pátio:
aquele cheiro suave era para ele devastador. É bem verdade
que sempre fora mais sensível do que eu. E lembrei-me ainda
como quando Judas nasceu ele e eu dançámos as nossas orações à
beira-rio.
Judas. Farid. Tio Abraão.
Nomes. Serão apenas signos arbitrários ou algo de maior
significado?
No tempo em que andava abatido com a mudança forçada do meu
nome de Berequias para Pedro, meu tio cobriu-me a cabeça com o
xaile de orações e sussurrou-me: "São muitos os nomes de Deus.
Assim, também nós, que fomos feitos à sua imagem e semelhança
deveremos ter muitos nomes. E aquilo que o teu nome encobre
não muda nunca. Meu mestre disse-me muitas vezes que éramos
todos retratos de Deus". Mas. também o seu assassino o seria?
Agora que vira com os meus olhos as volutas de uma fogueira de
chamas judaicas subir acima da escadaria da Igreja dos
Dominicanos, poderia ser levado a pensar que a vida de uma
pessoa, a vida de meu tio, não contava grande coisa. Mas
talvez o horror deva concentrar-se numa única alma, como num
diamante de sofrimento.
Os meus pensamentos suspenderam-se num repentino impasse, ao
contemplar a luz da madrugada que os postigos começavam a
filtrar. Bebi um gole de água da infusa que estava no armário
e dei os bons dias a minha mãe que tinha acabado de despertar.
Cinfa dormia encostada a ela e minha mãe começou a
acariciar-lhe os cabelos com um ar ausente. Tia Ester dormia
na sua cadeira, a cabeça caída sobre o ombro direito, os
braços pendendo molemente. Também Farid dormia ainda. A sua
fronte continuava ardente. Molhei-a ligeiramente com água, mas
ele nem acordou.
Levantando o tapete de cima da rapariga, ajoelhei junto ao
seu rosto e acertei alguns pormenores do meu desenho:
tinha-lhe posto uma boca grande de mais, demasiado dramática.
O desenho de uma pessoa tem um grande poder: ao contemplá-la,
a sua imagem ganhava os contornos de um talismã contendo todas
as suas esperanças por realizar.
Pouco depois, estando eu ainda ocupado a corrigir os lábios,
ouvi Reza e José, o marido, chamarem por nós no pátio. Minha
mãe sentou-se, a boca pendendo-lhe aberta. Mas não se pôs em
pé. Era como se não pudesse crer nos seus ouvidos. Corri ao
encontro deles, seguido por Cinfa. Quando cheguei ao topo,
Reza estava a abrir o alçapão. Fiz-lhe sinal para me deixar
sair. "Procurei-te por todo o lado", - disse eu, abraçando-a.
Como era bom sentir a sua maciça solidez feminina. E eu estava
a precisar de ar e de luz. Mas Reza tinha o ar de quem era
perseguida. Os seus grandes olhos cinzentos, habitualmente tão
altivos, mesmo distantes como alguns diziam, luziam de ardente
ansiedade. José, que não ia ao barbeiro há vários dias,
parecia doente, possuído por uma espécie de terror contido. Os
seus olhos pareciam estar dentro de covas profundas e escuras
e os lábios profundamente gretados.
- Estás bem, Beri? - perguntou Reza hesitante.
- Estou, estou. Mas onde é que têm andado? Fui a vossa casa,
mas estava.
- Tentámos ir para lá, mas o caminho estava cortado - disse
José, segurando-me pelos ombros -. Por isso saímos da cidade e
fomos para o Sobral. Ficámos lá. Todas as vezes que tentámos
voltar, as portas. - ao falar, abanava a cabeça -. Não
podíamos correr o risco.
Reza tirou o gorro que trazia e perguntou numa voz ansiosa:
- Estão. estão todos bem?
- Não sei onde está o Judas - respondi. O meu coração
latejava dentro do meu peito como se quisesse escapar-se
quando acrescentei: - E o teu pai, Reza. renunciou ao seu
corpo e voltou para o Senhor.
O gorro tombou-lhe das mãos. Abriu os olhos como se tentasse
compreender. Adiantei-me para lhe tomar as mãos, mas ela
desviou-se.
- O que antes foi o corpo de teu pai jaz ali na cave -
murmurei.
A sua face tornara-se repentinamente pálida, os olhos
vítreos. Desceu a vê-lo como que violentada por um jugo. Em
baixo, minha mãe, Cinfa, José e eu permanecemos atrás,
enquanto ela se ajoelhava para tocar a medo com a ponta dos
dedos o corpo do pai. Se alguém tem de se resignar à morte,
então deixemos que esse encontro se faça a sós. Quando ela
começou a pender para o chão como uma criança, deixei a minha
mão repousar na sua cabeça. Sentia as suas lágrimas
penetrar-me como se através de um sussurro.
- Quando é que foi, mãe? - perguntou, voltando-se para tia
Ester.
Minha tia não respondeu, ainda refugiada dentro de si
própria.
- Sabes se El-Rei restabeleceu a ordem na cidade? -
perguntei a José.
- Ainda não. Dizem que está com medo de voltar. O povo
começou a clamar pela sua morte.
Reza orava por meu tio. Quando se voltou, minha tia Ester
levantou-se como um espectro, deslizou para junto do corpo
dele e voltou a tapá-lo com o tapete. Depois voltou a
sentar-se e a ficar na mesma atitude de pedra.
Quando Reza pegou nela, foi como se um muro interior tivesse
desabado dentro da menina sem unha, que desatou a gemer como
se lhe estivessem a torcer as entranhas.
- Conhece-la? - perguntei.
- É a Aviboa. É filha da minha vizinha Graça. Sabes se ela.
- Só lá estava a menina - respondi, com um encolher de
ombros.
É um pecado, sei-o bem, mas ao responder pensava: Porque é
que em vez dela não encontrei antes meu irmão Judas?

LIVRO SEGUNDO

Capítulo IX

É quase meio-dia de quarta-feira, estamos a sete horas do
cair da sexta noite da Páscoa, e eu terminei já todos os
desenhos de que preciso. Reza assegurara-nos que a cidade se
aquietara e por isso saímos, minha mãe, Reza, José, Cinfa,
Aviboa e eu, em fila, com o passo ainda inseguro, deste nosso
longo exílio. Levo Farid para o quarto de minha mãe, para
estar mais fresco, lavo-lhe o rosto com aguardente e
aplico-lhe uma compressa na fronte. Os olhos não podem
resistir a cerrar-se, mas continua desperto, tacteando
incessantemente o meu braço com os dedos que me questionam
acerca de Samir.
Tia Ester tinha ficado em baixo em comunhão com as trevas
que reinavam na cave.
Começamos a preparar os corpos de meu tio e da rapariga para
o enterro, entoando cânticos enquanto os lavamos. Lavo o rosto
de meu tio sete vezes com água fria e três vezes com água
quente. E, segundo o preceituado, primeiro a barriga, depois
os ombros, depois os braços, o pescoço, as partes, dedos dos
pés, dedos das mãos, olhos e narinas. Percorre-me uma cálida
onda de tristeza e de alegria ao segurar nas minhas as mãos de
mármore da velha couraça de meu tio. Tinha-nos fugido para
Deus. Estou, assim, novamente a sós com um homem que tinham
matado. A visão interior chega-nos em relâmpagos, diz o Zohar.
E assim é.
O corte que lhe divide o pescoço tinha-se tornado escuro. O
sangue tinha coagulado em crostas de cerâmica. Quatro vezes
lhe lavo os dedos da mão, e de todas as vezes ficam ainda
sujos de tinta. Que é como um artista deve comparecer perante
Deus. Tia Ester leva as tesouras ao cabelo e corta uma das
suas madeixas tingidas de hena que depois coloca sobre o peito
de meu tio.
Qual o poeta hebraico que disse que a madeixa cortada de uma
viúva é feita de filamentos de lágrimas de sangue?
Depois de vestirmos meu mestre com as suas vestes alvas,
minha mãe polvilha a simbólica poeira de Jerusalém sobre os
seus olhos e as suas partes íntimas. Dou a mão a Cinfa,
enquanto ela acena um adeus.
- Nunca mais o vemos - diz ela, os olhos cansados e raiados
de sangue, muito abertos e curiosos, mais que tristes ou
assustados.
- Assim, não - assinto -. A próxima vez que o vires será com
as mãos estendidas para ti a receber-te junto de Deus.
As minhas palavras confiantes contradizem o profundo terror
que leva os meus olhos a cerrarem-se: esquecera a sensação do
abraço de meu mestre.
Depomo-lo sobre o seu xaile ritual e cobrimo-lo com a
mortalha de linho que Reza e minha mãe tinham cosido. Quando
pela derradeira vez a sua face se aparta de mim, fecho os
olhos para o reter nessa escuridão. Torna-se assim numa
simples sombra violeta e eu já não consigo invocar o seu halo.
Será que irá desvanecer-se antes ainda que eu deixe de poder
invocar a sua voz?
Lavamos a rapariga com igual cuidado. Reza ajuda agora
também, depois de mandar Aviboa brincar com Roseta no pátio.
Brites, a nossa lavadeira, aparece inesperadamente à porta da
cozinha. Dotada de uma natureza alegre, apresenta em geral um
rosto desanuviado. Hoje, porém, chega com uma expressão
sombria e fala com uma voz enrouquecida. Traz-nos na sua
carrocita o último rol de roupa, lavada e engomada e, como
prenda, um bacalhau salgado do tamanho de um braço de homem.
Beijamo-nos e nem precisamos de trocar qualquer palavra. O
silêncio da nossa dor compartilhada assenta-me no peito como
uma pedra pesada.
- Vim cá chamá-los à noite - sussurra, finalmente.
- Não podíamos responder, mas agradeço-lhe - digo, levando
de novo os lábios à sua face, deixando-a depois com minha mãe,
para que, juntas, as lágrimas de ambas se confundissem.
Não conseguimos encontrar um único caixão para vender nas
imediações. Não ficara vivo nenhum carpinteiro judeu que os
pudesse fazer. E recuso-me a recorrer para tal a um
cristão-velho. Levamos pois meu tio e a rapariga nas suas
mortalhas para a carroça que pedimos à viúva do Doutor
Montesinhos. O burro é o de Brites, que ela insistiu em ceder.
Face às minhas escusas, sussurrou-me: Por favor, Beri, podias
ser meu filho.
Sinto um premente impulso de escapar do tempo presente para
um passado mais feliz, a que tenho de me opor para conseguir
levar a cabo as minhas obrigações religiosas. E acima de tudo
descobrir quem matou meu tio.
Tia Ester toma lugar na carroça sentada no banco de pau, as
mãos cruzadas no regaço, o cabelo cortado com tesouradas à
toa. Minha mãe, Reza e eu caminhamos à ilharga do burrinho.
Saímos de Lisboa por oriente. Olhares cristãos vêem-nos
partir, sem perguntas: sabem bem onde nos dirigimos. Cinfa
fica em casa com José, o marido de Reza.
Muitos judeus dirigem-se também para a Quinta das
Amendoeiras, como é conhecida a grande propriedade com uma
impressionante torre de cantaria roída pelo tempo no meio, que
fica a cerca de duas milhas a oriente da cidade. Aarão Poejo
o seu dono, era um judeu vindo das serranias de Bragança, pois
a sua noiva algarvia se vira atacada de tremores mortais com
os ares gélidos do nordeste. A lembrar-Lhe a sua terra natal,
trouxera consigo pés de amendoeira e de castanheiro que aqui
plantara. A casa inicial, agora reduzida a umas poucas fiadas
de blocos de pedra à altura da cintura de uma pessoa e a
desmoronar-se, tinha sido trocada por uma torre octogonal
construída segundo uma das visões de Poejo. Ao que se conta,
tinha visto marinheiros de cabelos compridos e máscaras de
ferro saqueando Lisboa e lançando fogo aos bairros dos judeus.
A rude estrutura tinha sido dotada de um torreão de três
andares a servir de torre de vigia. Dali, como o descobrimos,
eu e Farid, durante uma das nossas missões de espionagem
quando crianças, podia avistar-se o Tejo com os seus próprios
postos de atalaia e conseguir assim um aviso antecipado em
caso de ataque. Por ironia da sorte, anos mais tarde, no tempo
da conversão, a mulher de Poejo foi apedrejada até à morte
pelos vizinhos escuros e atarracados que conhecera durante
anos. De qualquer modo, conta a história que Poejo e as filhas
tentaram em vão deitar abaixo a casa da torre na própria noite
em que lhe tinham matado a mulher. De manhã, exaustos,
desesperados, escavaram um enorme tronco de castanheiro,
içaram para lá o corpo e aí o inumaram. Apesar de entretanto o
tronco se ter voltado a fechar com o correr dos anos, aquela
árvore, exactamente a sul da torre, ainda hoje não dá mais que
uns ramos denegridos e desnudados, como que roída pelo
remorso. Diz-se também que exala um cheiro pestilento no tempo
do Yom Kippur. Daí a fama que a quinta ganhou nas redondezas
de lugar de poderes ocultos, adequada para receber os que
foram martirizados por causa do seu judaísmo.
Quanto a Poejo, depois de assim ter dado pousada ao corpo da
mulher, mais uma vez colheu estacas das suas árvores e
juntamente com as filhas rumou para sul através do Algarve,
sobreviveu à travessia do mar e instalou-se em Marrocos, nas
proximidades de Tetuão. Deste modo, as amendoeiras da quinta,
como tantas outras em Portugal, ficaram durante muito tempo ao
abandono. Ainda agora, ao passar, se podem ver os seus frutos
verdes desafiando o esquecimento e pontuando como notas de
música os ramos descarnados e demasiado longos.
Da Pequena Jerusalém e da Judiaria Pequena e mesmo da
ruazinha judaica do outro lado da cidade perto da Igreja das
Carmelitas, todos carregam os seus mortos. Uns, como nós, em
carroças puxadas a burros; outros, a maior parte,
transportando os seus entes amados em carros de mão de
madeira. Os mais velhos orientam-nos para os terrenos que
ainda não foram usados como cemitério. Ao passar saúdo os que
vou encontrando, sem trocar nenhuma palavra, a não ser para
perguntar se alguém teria visto Judas ou algum dos iniciados
ainda vivos, Frei Carlos e Diego. Ninguém os vira.
Cavo duas covas com a ajuda de três jornaleiros mouros, que
ali andavam para ganharem algumas moedas. Têm uns olhos
escuros silenciosos e não fazem nenhuma pergunta. Reza insiste
em ajudar. "Tenho de fazer alguma coisa, Be" - diz ela -. "Se
fico quieta, é como se sentisse o mundo a afundar-se". Fita-me
com um olhar perdido e chupa nervosamente a ponta do cabelo,
um hábito de quando era pequena e que agora lhe voltava.
Para meu tio, minha mãe escolhe um sitio junto a uma pequena
amendoeira com os braços em candelabro erguidos para o céu
turquesa. A rapariga fica a repousar ao pé de um sobreiro
possante de ramos estendidos como um avô a recebê-la nos
braços. O escriba Isaac Ben Farraj junta-se aos nossos
cânticos. Veio cá enterrar a cabeça de Moisés Almal.
Compreendo então que era Isaac o louco que eu vira nas
fogueiras do Rossio correr a salvar das chamas o que restava
do seu amigo, para poupar o seu espectro ao vaguear eterno na
Esfera Terrena.
- Já vi cristãos que baste para uma vida - confidencia-me
ele -. Ando a aprender turco. É fácil, escreve-se com
caracteres árabes. Vou apanhar o primeiro barco para Salonica
que cá aparecer. Dizem que se está a tornar numa cidade de
judeus. De qualquer modo, era o que tu devias fazer também.
- E a sua casa aqui?
- Daqui a pouco todos os nossos amigos se terão ido de
Portugal, ao fim e ao cabo. E de uma coisa podes estar certo:
não hei-de cometer o mesmo erro que a mulher de Lot!
Lembrando-me da mensagem caída do turbante de Diego, que
tinha o nome Isaac, pergunto-lhe:
- Tinha marcado algum encontro com Diego, o impressor, antes
de os motins começarem?
- Não, que me lembre.
- E o vigésimo nono deste mês, a próxima sexta-feira,
diz-lhe alguma coisa de especial?
Isaac coça os pêlos brancos e ralos do queixo, alongando o
lábio inferior:
- Se calhar tens algum problema e precisas de ajuda. Mas
tens de ser mais claro se queres que eu perceba - diz-me,
pegando-me na mão e pondo os olhos em mim carinhosamente.
Compreendo imediatamente como era tolice o ter-me ocorrido
que ele pudesse ser o Isaac a que se referia a mensagem: pois
se nunca tivera nenhuma relação com o círculo de iniciados nem
nenhuma razão de disputa com meu tio!
- Não é nada - respondo. Peço-lhe então que procure chamar à
vida minha tia Ester, rogando-lho em persa. Mas ela replica
com um olhar glacial.
Sete vezes dou a volta ao túmulo de meu tio rezando, tal
como deveria ser para um Baál Shem, Mestre do Divino Nome.
A voz da minha oração em hebraico, elevando-se e caindo como
água sobre muros de grés gasto pelo tempo, deve ter origem num
passado remoto. Sinto-me impelido a caminhar e afasto-me da
minha família para enterrar debaixo de um limoeiro a mão da
senhora Rosamonte. Ao mesmo tempo que lho agradeço, pego no
anel de água-marinha como uma sua última dádiva e guardo-o na
minha bolsa, juntamente com a mensagem de Diego e a aliança da
rapariga. Talvez que o anel possa ainda vir a resgatar a vida
de outra andorinha retida pelo faraó.
Voltando para junto da minha família, detenho-me por
instantes com a minha mão espalmada no tronco maciço de um
sobreiro, a que recentemente tinham retirado a sua casca
preciosa. Por qualquer ignota razão, talvez para melhor sentir
a energia daquele gigante verdejante, fechei os olhos. De
imediato, uma luz intensa abrasa a escuridão com um fogo
laranja e negro, enquanto um calor húmido parece
atravessar-me. Ouço um grande restolho das folhas por cima de
mim, como se uma águia ou uma garça tivesse vindo pousar-se
nos ramos cimeiros. "É verdade, estamos aqui" - ouve-se a voz
de meu tio -. "Mas não abras os olhos. O nosso resplendor
poderia ofuscar-te". Comprimo as pálpebras como protecção,
enquanto a voz prossegue: "Berequias, a casca de uma árvore
não é uma mera imagem poética. É também uma presença real que
contigo partilha a Esfera Terrena. Cresce, morre, e pode ser
retirada por um corticeiro. Palpa com a tua mão a solidez que
existe debaixo da casca". Aperto o tronco entre as minhas duas
mãos, sentindo um poder fluido subir da terra e espalhar-se
pelas minhas pernas e pela minha cabeça. "Sentiste-te atraído
por esta árvore porque ela te fez recordar que uma máscara
pode ser mais que uma metáfora" - diz ele -. "Pode ser também
um adorno verdadeiro". Penso então: "Por favor, tio,
suplico-te, fala-me do modo mais simples possível". Num tom
impetuoso, ele responde: "Falamos na linguagem da Esfera
Celeste e não conhecemos outro modo de comunicar!" Depois,
voltando ao mesmo tom compreensivo, prosseguiu: "Lembra-te: a
nossa sombra é a tua luz. A nossa maior simplicidade é o teu
maior paradoxo. Escuta, Berequias. Não deves nunca enviar as
tuas iluminuras por um portador que não seja capaz de se
reconhecer a si próprio ao espelho de um dia para o outro. E
lembra-te da visão daquele que fala com dez línguas". Com
isto, sinto um estremecimento das minhas mãos e um adejar por
cima de mim. As trevas incandescentes sob as minhas pálpebras
esmorecem até se tornarem cinzentas: a ave, meu tio, voara
para longe. Abrindo os olhos, fixo o dossel vazio das folhas
que me cobrem, desenhado contra o vasto céu cinzento. As
palavras de meu tio ecoam dentro de mim: "Não deves nunca
enviar as tuas iluminuras por um portador que não seja capaz
de se reconhecer a si próprio ao espelho de um dia para o
outro". Seria uma alusão a alguém destituído do conhecimento
de si próprio? Ou a alguém, talvez, sem memória, que procure
deixar para trás o seu passado, negar a sua existência? Alguém
que não é capaz de se reconhecer porque não quer recordar
a história que fez com que seja o que hoje é? "E lembra-te da
visão daquele que fala com dez línguas Farid!" Só podia ser
uma referência aos seus dez dedos, as suas dez línguas. O meu
mestre queria aconselhar-me a confiar na visão de Farid para
descobrir a identidade do homem que não era capaz de se
reconhecer a si próprio. Por um instante, sinto-me tentado a
invocar meu tio novamente usando a fita de pergaminho que
trago no pulso e pedir-lhe uma resposta mais clara na
linguagem da Esfera Terrena. Mas, no profundo das minhas
entranhas, temo entrar nos domínios da Cabala prática. Meu tio
devia ter as suas razões para me falar por enigmas!
- Beri! - chamou minha mãe do fundo do campo.
Dirigindo-me para ela, penso: O mundo interfere sempre mais
e mais na minha vida interior de contemplação. Tal como meu
tio o previra Reza e eu lavamos as mãos num regato próximo e
saímos logo de seguida da Quinta das Amendoeiras, pois receio
pela vida de Farid. E havia também o perigo de os
cristãos-velhos atacarem como gafanhotos a todo o momento.
Antes de chegarmos a casa, salto da carroça para perguntar
por Frei Carlos na Igreja de São Pedro. Não há ainda sinais
dele e os seus aposentos continuam fechados. Subo pois as ruas
e escadas de Alfama que levam a casa de Diego. O sapateiro que
no dia anterior me ajudara a escapar chama-me da sua porta e
faz-me sinal para ir ter com ele.
- Não entre! - murmura ele.
- Porquê?
- Veio cá um homem à procura do seu amigo Diego. Saiu há
bocadinho. Mas antes andou por aqui a espreitar. Se calhar
ainda está à espera, escondido. Faça de conta que agradece e
se despede e vá-se embora daqui!
Faço ainda melhor: finjo que me rio e pergunto:
- E quem é ele?
- Não faço ideia. É do Norte. É forte e loiro.
Agradeço com uma vénia e parto, a cadência dos passos
repetindo a pergunta: Será que o mesmo homem que matou meu
tio, persegue agora Diego?
Em casa, Reza está a fazer ovos cozidos para o almoço. De
costume, seria tarefa dos vizinhos cozinhar as nossas
refeições durante os sete dias de luto, mas não há ninguém que
não esteja por sua vez de luto. Os cacos de louça tinham sido
varridos para o pátio e o chão esfregado. Até a perna da mesa
que tinham partido estava pregada no sítio.
- Foi a Brites que fez tudo, enquanto nós saímos - explica
Reza -. Anda agora com os outros a limpar a loja.
- A tia Ester também está lá? - pergunto.
- Não. Está a olhar pelo Farid no quarto de tua mãe. - E a
Aviboa?
- Está lá, também. Anda a ajudar a limpar. Não sai da beira
da Cinfa -. chupa as pontas do cabelo e suspira -. Sabes? Vou
ter de ficar com ela. Não a posso deixar entregue a si
própria. Graça, a mãe dela, era viúva e filha.
- Ela é judia?
- Uma menina de quatro anos!? - exclamou Reza, com os olhos
coruscantes -. Que homem és tu, Berequias Zarco, para
perguntares uma coisa dessas sobre uma órfã? Julgas que as
crianças já nascem a saber hebraico, ou quê? Que diferença
achas que fazia.
- Reza, não me estás a compreender. Isso pouco me importa. É
só porque pode trazer complicações.
- Complicações é o que menos me falta - suspira novamente e
põe-me a mão no braço para se desculpar -. O pai dela era
cristão-novo, a Graça era.
- Mais vale não dizer a minha mãe que. pelo menos por agora.
Reza assente com um aceno e eu dou-Lhe um beijo no rosto.
Abrindo suavemente a porta do quarto de minha mãe, deparo com
Farid deitado de lado, tapado com dois pesados cobertores, a
tiritar. Tia Ester está sentada na sua cadeira aos pés da
cama, continuando a fitar o vazio, com as mãos cruzadas no
regaço. Dou-Lhe um beijo na sua fronte gelada.
Um lençol amarrotado e sujo de sangue tinha sido retirado da
cama e atirado a um canto. Farid abre os olhos, mas não sorri
nem mostra qualquer outro sinal de reconhecimento. Tiro um
cobertor de lã da minha cama e deito-o para cima dele,
ajoelho-me a seu lado, faço menção de Lhe pegar na mão.
Afasta-me com um gesto:
- Pode ser peste - dizem os seus gestos.
- Já mexes as mãos com mais força - minto. Apertamo-nos os
dedos e ele fEcha de novo os olhos.
Sento-me desenhando os contornos do mapa de Portugal, da
Grécia e da Turquia como formas de um jogo de xadrez onde eu e
a minha família servíssemos de peões. Assim que o tremor de
Farid diminui e ele adormece, fico durante uns instantes a
acariciar-lhe o cabelo. Recolho o lençol sujo, que entrouxo
debaixo do braço, saio em ponta dos pés pelo meu quarto para
esconder de minha mãe a incontinência do meu amigo, temendo
que ela decida que o abandonemos por estar a piorar. Reza
estremece quando me vê, mas depois a sua expressão mostra-me
que está comigo. Escondo o lençol atrás de uma moita de
loendros junto ao telheiro. Mais tarde, digo a Brites onde
está e que tenha cuidado com os humores da doença quando o
lavar. Como não temos vinagre, lavo as mãos com sabão preto e
água e vou para a cave fazer a minha lista de suspeitos,
a começar pelos dois iniciados ainda vivos, num pedaço de
velino em caracteres minúsculos, formando o nome hebraico de
meu tio:

Frei Carlos Diego Gonçalves Rabino Losa Miguel Ribeiro

Ao escrever a última letra, acode-me um pensamento: A
rapariga que enterrámos há-de apontar como um catavento em
direcção ao nome certo. Pego no desenho que fizera dela, enfio
o martelo na bolsa e corro todas as padarias à roda de Alfama
e da Graça, pressentindo que ela seria a chave, que se
conseguir descobrir quem ela é, descobrirei também quem é que
destruiu o meu futuro.
Agora que a calma voltou de novo, os meus olhos apercebem-se
de como Lisboa se tornou numa cidade de olhos cristãos à
espreita, de estrume e esterco de madeira em estilhaços, de
pedras ensanguentadas.
Nenhum da meia dúzia de Padeiros ou aprendizes a quem
perguntei conhece a rapariga. Atalho pela Sé e encaminho-me
para a Pequena Jerusalém. As lojas estão fechadas, as ruas
sujas de detritos. As mulheres lavam do sangue as soleiras das
portas. Uma can fumega no meio do Largo da Sinagoga, como que
à espera do seu dono. A padaria de Simão Kol, por trás dos
Paços da Ribeira, está entaipada. Contorno-a, passando Por um
montão de couves podres e cebolas disputadas por bandos de
gatos vadios, entre os quais avisto um com os testículos
peludos inchados com o tamanho de limões. Quando bato à porta
da casa de Mestre Kol, ele assoma à janelA, cara por barbear e
os olhares acossados são os sintomas de uma doença que nos
consome a todos.
- Pedro Zarco? - Pergunta ele.
Quando confirmo, aponta para o pátio e eu espero à cancela.
Manda-me entrar e abraça-me e dá-me um beijo. O peito arqueja
como um fole quando soluça. Veste o áspero linho de luto. -
"Kiri?" - pergunto, ciciando o nome do seu único filho, tão
transido de medo como se fosse um dos secretos nomes de Deus.
- Sim - responde, dando-me a mão -. Como está a tua família?
- pergunta.
- Meu tio Abraão morreu.
- Como é possível que.
Mas as suas palavras desvanecem-se, pois sabe, tal como eu,
que no mundo, mesmo um gaon, um génio, um homem de prodígios,
pode ser trespassado por uma simples lâmina. Em resposta às
minhas perguntas sobre Judas, responde-me apenas com um abano
da cabeça.
- Desapareceu muita gente - diz ele -. E nunca mais os
encontramos, Engolidos pelo Leviatã. E lembra-te do que te
digo. - diz ele num tom profético -. O monstro só estará
saciado quando nos tiver levado a todos nós. verás!
- Alguma vez viu esta rapariga? - pergunto, estendendo-lhe o
meu desenho -. Parece-me que trabalhava numa padaria.
- É parecida com a Meda Forjaj quando era nova - diz ele,
estudando o retrato com os olhos semicerrados -. As mesmas
sobrancelhas curvas a juntar na ponta do nariz, como asas de
borboleta. Mas não a conheço.
- Quem é essa Meda Forjaj?
- Fugiu da Pequena Jerusalém nos tempos da conversão. Mas
hoje deve ter uns cinquenta anos. É viúva. Não Pode ser ela.
- Para onde é que se mudou?
- Para os lados de Belém, acho eu - disse ele, referindo-se
à povoação próxima, de onde as caravelas portuguesas partiam
para África, Para a Índia e para o Novo Mundo -. Acho que
andava a ver se conhecia algum mercador com, não sei se estás
a ver o que quero dizer - acrescenta. Encolhe os ombros, faz
um gesto a afastar qualquer juízo -. Faz-se o que se Pode Pela
vida.
- Uma mulher da idade dela, não pode viver só disso -
observei eu.
- O marido importava tecidos de lã da Flandres e ela
ajudava, fazia as contas. Talvez faça costura para fora, como
a tua mãe.
- Obrigado - abraçamo-nos brevemente, como que receosos de
admitir que nos separávamos para sempre -. Não volta a abrir a
padaria, pois não?
- Não quero voltar a alimentar este país - respondeu Simão,
abanando a cabeça -. Sangrador - sussurrou ele -. Isso é que é
uma boa profissão em Portugal.

O olhar concentrado dos cristãos-velhos que se amontoam
junto da Porta Santa Catarina eriça-me os cabelos da nuca, mas
esta pronta disposição do meu corpo para encetar a fuga é
desnecessária: os seus olhos são tranquilos, o ar ameno. O
medo da peste e da seca e de toda a miríade de demónios que
governam os seus espíritos tacanhos foram purgados, pelo menos
de momento. Chego aos arredores de Belém, demorado pouco
tempo. Aí, centenas de africais e de jornaleiros, dirigidos a
chicote, trabalham arduamente na construção do novo mosteiro
monumental de El-Rei Dom Manuel, que se calhar só lá Para o
próximo século é que estará pronto. Um canteiro coberto de pó
indica-me uma padaria ali perto. Sou recebido Por uma mulher
magra, com um ar ressentido e que pergunta num português
áspero:
- Precisa de alguma coisa, senhor?
Pela entoação, compreendo que se trata de uma cristã-nova
castelhana, uma das milhares que fugiram a Dom Fernando e Dona
Isabel, os reis de Espanha que
expulsaram os judeus em 1492. Nos seus olhos enfurecidos, vejo
que detesta que a vejam em companhia de alguém do seu povo.
Mostro-Lhe o desenho:
- Ando à procura desta rapariga.
Ela volta-me as costas e começa a passar uns doces de uns
tabuleiros de madeira para sacos.
- É importante - acrescento.
- Se não quer comprar nada, desande daqui.
- Morreu - disse eu -. Queria dizer isso aos pais dela.
Volta-se e mira-me com uns olhos desconfiados.
- É a filha da senhora Monteiro. Porque é que.
- E onde mora a senhora Monteiro? - interrompo-a, sem
paciência para tantos medos, mesmo quando vêm de alguém judeu.
- Ao fundo da rua, à direita. A casa de rodaPé amarelo. Mas
se calhar é melhor...
- Diga-me uma coisa, a senhora Monteiro tem alguma coisa a
ver com Meda Forjaj?
- É cunhada dela - responde -. Como é que.
- Sobrancelhas abertas como asas de borboleta. E a memória
de um velho judeu.
Ao fundo da rua, uma mulherzinha atarracada, com olhos de
Peixe e uma face escamosa e curtida, observa-me da porta como
se eu tivesse interrompido algum jogo de cartas. Usa uma
cabeleira informe, feita de linho preto entrançado e
engraxado.
- A senhora Monteiro é vocemecê?
- E quem é que Pergunta?
- O meu nome não Lhe diz nada - estendo-lhe o meu desenho -.
Conhece esta rapariga?
- É a Teresa. O que anda a fazer com isto?
O marido dela, um homem baixo, com ar de coelho, surge das
traseiras da casa. Vem coberto de um pó branco, talvez cal,
que se escapa em baforadas a cada passada que dá para se
dirigir a nós. Sobre os seus olhos cinzentos, despontam umas
sobrancelhas aladas.
- Tem aqui um desenho da Teresa. Olha - diz a mulher.
A reacção dele fica suspensa, como se nunca tivesse visto
nenhum trabalho artístico, ou como se tivesse entendido.
Quando me forço a pronunciar algumas palavras hesitantes sobre
a morte dela, leva os punhos ao rosto. As lágrimas brotam-Lhe
dos olhos. Estendo os braços para ele, mas a senhora Monteiro
agarra-me os pulsos.
- Que está para aí a dizer? - Pergunta ela.
- Mataram-na durante os motins de Lisboa. No domingo.
A mulher leva a mão à boca a abafar os soluços, com o terror
espelhado nos olhos. O silêncio reúne-nos todos três, até que
se ouviu o seu grito: - Eu sabia que havia de acabar assim.
Mataram-na com aqueles judeus todos, não foi?!
O marido dá-Lhe um empurrão, corre para dentro de casa antes
que eu chegue a responder. Ela vai de encontro à parede e cai
no chão.
- Seu bastardo! - guincha ela, casquinando e cusPindo em
direcção dele. Ajudo-a a erguer-se e apanho do chão o meu
desenho. Como ela não tem lágrimas que possa chorar, digo-Lhe:
- Foi morta na Judiaria Pequena. Sabe o que ela andava a
fazer lá?
Ela arranca o desenho das minhas mãos e observa-o, como quem
o está a admirar.
- É ela chapada. Foi vocemecê quem o fez?
- Fui - respondi.
- Com que então artista?! Essa cabra nojenta nunca devia ter
fugido. Mas filhos de misturas de sangue. porque era isso que
ela era, não sei se sabe. Eu cá não sou judia. Graças a Deus -
faz um gesto em direcção às traseiras da casa como quem enxota
moscas -. Ele é que é judeu. era, quero eu dizer. É a mistura
de sangues. Faz com que as raparigas desatem logo a querer um
homem desde que começam a ter as luas. Dizem que é a lua que
causa essas coisas nos filhos desses casamentos - esfrega as
mãos calosas uma na outra -. Toda essa misturada de sangues, o
Puro com o impuro. - abana a cabeça -. Vocemecê é um talento,
sabe? Não é judeu, pois não?
- Fui. Mas agora estou só a ver se consigo continuar vivo.
Como muito boa gente neste monte de lixo.
O seu olhar tornou-se fixo, com uma viva repugnância.
Procuro lembrar-me que também ela é uma emanação de Deus, uma
ondulação da safira de amor lançada por Ele no nosso mundo
muitas eras antes. Mas só consigo ver o cusPo nos seus lábios
e a sua cabeleira de negro carregado.
- Podia-me dizer o que é que a Teresa estava a fazer na
Judiaria Pequena? - pergunto.
- Não ouviu o que Lhe disse? Andava por lá a abrir as
pernas! Queria um sarinho circuncidado! - aPercebe-se de que
me desagrada aquele tom, ri-se, e mexe as mãos -. Gostava que
um daqueles grandes Passarões judeus gordos corresse para ela
aos saltos e começasse a sair a...
- Quem é o marido dela? - interrompi.
- Um importador com muito miolo, e grandes tomates também,
ao que vem. Peludos... como lã... A saberem a tâmaras de
Marrocos - lambe os beiços gulosamente -. Mas sem dinheiro.
Nem todos têm jeito Para fazer dinheiro. ! Descobri isso Por
duas vezes na minha vida! Aquele meu marido. E agora
o de Teresa - abana a cabeça e franze as sobrancelhas -.
Chama-se Mani Monchique. Bem podia ao menos ter encontrado um
que...
O coração parece querer saltar-me do peito. "É evidente" -
penso eu - "O antigo aluno de meu tio. Teresa era a sua noiva
cristã!, Ainda há cerca de um mês tínhamos sabido que Manuel
tinha conseguido uma certidão de sangue puro do Rei, para
apagar a mancha do seu passa judeu. Recentemente meu tio
tinha-o descomposto na Rua da Sinagoga por causa dessa sua
traição. Agora, olhando-a à luz da revelação da senhora
Monteiro, aquela disputa surge tingida de cores bem mais
sinistras". Sinto uns dedos gelados a afagar-me o braço, que
me trazem de novo ao presente. A senhora Monteiro, enquanto me
olha com um sorriso, levanta a saia e passa a mão por entre as
pernas. Arranco-Lhe a cabeleira e atiro-a para longe, deixando
à mostra o seu crânio infestado de piolhos, onde despontam uns
tufos mirrados de cabelo. O seu r cacarejante acompanha a
minha retirada. As ruas de Belém, depois os arredores de
Lisboa abrem-se diante de mim, se bem que me pareça correr
apenas atrás do mistério da morte de meu mestre. Quem sabe se
Manuel não terá descoberto meu tio com Teresa, sacado de um
punhal e... Mas deparo sempre com uma barreira intransponível
a vedar o meu caminho para uma resposta: como pode Manuel
saber o sítio do alçaPão e da geniza?
Abençoado seja Aquele que nos abre os braços da Sua graça:
diante de mim tenho a Porta de São Lourenço guardada apenas
por um ajuntamento preguiçoso da populaça. Atravesso-a e
ladeio as ruelas desmazeladas da colina que no topo sustém as
muralhas do castelo mourisco e desço apressadamente para
Alfama. Estou impaciente por ver como está Farid, antes de ir
ter com Man Monchique. Encontro minha mãe na cozinha. Um pouco
atrás dela estava Diego. O corte no queixo está já meio tapado
por uma barba de vários dias, os pontos mal se vêem. Traz a
cabeça coberta pelo seu turbante cor de açafrão. O seu olhar
fixa-se em mim por trás do seu largo nariz como se esperasse
poder adivinhar os meus pensamentos e avança para mim a coxear
como um cão ferido. Abraçamo-nos. Mas a ideia de que ele pode
ter conspirado contra meu mestre torna os meus movimentos
rígidos e estudados como os de um mau actor.
- Fiquei desolado com o que aconteceu a teu tio - diz ele -.
E ser mesmo por essa ralé dos cristãos. Até custa a acreditar!
As palavras de Diego não conseguem penetrar as cancelas
inflexíveis que levantei em torno a mim. Não só por não
confiar nele, mas também por me ter apercebido de que estava
um desconhecido ao canto da cozinha, junto à lareira e não
queria desvendar a minha alma dilacerada perante olhos
estranhos. homem de peito possante e rosto de pedra,
envergando a farda grosseira dos nercenários, escuta
atentamente, com ambas as mãos no punho da espada embainhada.
Faço um aceno interrogativo em direcção dele.
- É o meu guarda-costas - responde Diego.
- Cristão-novo?
- É. Mas tem carta de perdão. Pensei que era mais seguro. E
agora que a turba matou o teu tio e tantos outros, acho que...
- O meu mestre foi morto por um judeu! - declaro.
- O quê?
- A garganta dele foi cortada por um shohet.
Era a primeira vez que minha mãe ouvia o que eu pensava.
Agarra-se à mesa como se o mundo lhe fugisse debaixo dos pés.
Diego respira ofegante. Cobre a nuca com as mãos como se
quisesse evitar que tal possibilidade de traição entrasse
nele. Será uma manifestação do choque sentido por um filósofo
ou a explosão de cólera fingida de um criminoso?
- Mas porque é que um judeu tiraria a vida a teu tio?! -
pergunta ele.
- Pode ter sido por ciúmes, pode ter sido para o roubar -
minto eu, para ver a sua reacção.
- Mas de que raio estás tu a falar, Berequias?! - grita
minha mãe inesperadamente -. Como te pode ter passado pela
cabeça que alguém do teu próprio povo podia tirar a vida a meu
irmão?!
A voz dela possui aquele tom exaltado que indica que daí a
nada estará a acusar-me de ser um mau judeu. Bebo um gole de
uma infusa que está por cima da lareira, fito-a nos olhos e
digo:
- Roubaram um manuscrito. Nenhum cristão-velho sabia sequer
que tínhamos tal coisa em casa.
Minha mãe começa a puxar o cabelo.
- Tens a certeza? - pergunta Diego.
Quando confirmo com um aceno, ele agarra o meu braço.
- Onde é que estava o manuscrito?
- Na cave.
- Ele tinha livros na cave! O que é que...
- A sua última Haggada - explico.
- Ele tinha livros judaicos escondidos?
- Tinha.
- Será que não tinha juízo nenhum?
Ou Diego é habilidoso a fingir ignorância ou então é porque
realmente não tinha recebido uma iniciação completa e não
sabia ainda da existência da geniza. Tenho de perguntar isso a
Frei Carlos, se ainda estiver vivo. Mas não se sabe se ele não
será capaz de mentir para imPlicar o seu irmão filósofo.
- Andava empenhado em levar os livros para fora de Portugal
- explico a Diego -. Para os salvar da fogueira.
- Meu Deus. E com quem?
- Não sei. Ouve uma coisa, quando foi a última vez que viste
meu tio?
- Sexta-feira. No hospital. Também estavas lá. Mas que estás
a...
- E no domingo? - pergunto -. Viste-o?
- Não... Mas para que são essas perguntas todas?
- Estou a ver se reconstituo os passos dele - minto -. Onde
estiveste desde domingo até hoje?
- Escondido. Com um amigo - a expressão de Diego torna-se
mais dura. e assume o ar ríspido que ele toma quando quer
repreender alguém -. Berequias, acho que me deves uma
explicação. O que te leva a pensar que...
- Não devo explicação nenhuma a ninguém! - exclamo com
rudeza =" A morte de meu tio dá-me todos os direitos. E um
deles é o de não atentar as caras enfadadas como essa tua a
ver se me abrandas. Pensa o que quiseres. Zanga-te, reza,
invoca a Tora contra mim. Pouco me importa!
- Devia importar-te. E se...
- Está mas é calado, Diego. Diz-me só se sabes quem é o
homem que anda a fazer perguntas sobre ti no sítio onde moras.
- Que homem?! De que é que estás a falar?
- Quando fui à tua procura hoje de manhã, o sapateiro que
mora do outro lado da rua disse-me que tinha andado por lá um
homem a perguntar por ti.
- É loiro, forte. talvez do Norte!
Os olhos de Diego denunciavam terror.
- Sabes porque é que andarão à tua procura? - pergunto. -
- Não - sussurra ele. Segura-me pelos ombros, aferrando-se a
eles - A não ser... a não ser que seja o mesmo que matou o teu
tio!
- Também pensei nisso. Mas porque é que alguém havia de vos
querer matar a ambos?
Abana a cabeça.
- Pensa bem.
- Não vejo nada - resmunga ele -. Que poderíamos nós saber
que...
- O meu tio tinha falado em algum livro especial que ele
tivesse descoberto? Uma coisa qualquer? - Quando ele abana a
cabeça, pego no retrato da rapariga morta. - E esta? -
pergunto desenrolando o desenho - reconhece-la?
- Não. Quem é ela?
- Não interessa - volto a guardar o retrato na bolsa -. E
Dom Miguel Ribeiro? Que é que sabes dele?
- É um fidalgo, não é? É o filho do velho Rodrigo Ribeiro, o
mercador de vinhos, se bem me lembro.
- E esse, é... Meu tio falava nele? - pergunto.
- Comigo não. Mas diz-me uma coisa, Beri, tu não tens outras
pistas sobre quem é o assassino? Que é que achaste na cave?
Não achaste nada que denuncie esse tal homem do Norte que anda
à minha procura? Preciso de saber. Se anda atrás de mim, tenho
de...
- Nada - minto, sem querer ainda confiar-lhe tudo o que
tinha descoberto. Afasto-me do seu olhar desconfiado e
dirijo-me a minha mãe, que fita a dança das chamas na lareira.
Bato-lhe no braço -. Como está o Farid? - pergunto em voz
baixa.
Ele volta-se para mim com um olhar inquieto.
- Berequias, quero que me digas tudo. A Haggada foi o único
livro que roubaram?
- Acho que sim. Diga lá como está o Farid.
- Não achas que devíamos...
- Mãe, diga-me lá se o Farid está...
Minha mãe encolhe o queixo e volta-se com um ar de desafio.
- Será que ensandeceu? - grito -. Sempre com devíamos assim,
devíamos assado, sempre com regras de conduta. De que é que
isso lhe serviu?
Com os olhos marejados de lágrimas, grita com a força do
desespero:
- Como podes tratar-me assim, quando Judas?
- Quero lá saber! - berro eu.
Saio de junto deles, apercebendo-me com uma mistura de
remorso e satisfação que fui eu a começar esta disputa. A
morte de meu tio libertara-me da minha passada personalidade e
do meu futuro e ao que parece a única herança que me restava
era feita de raiva e de frustração. Uou espreitar Farid no
quarto de minha mãe. Está a dormir, respira agitadamente e
sobressalta-se como que possuído por algum pesadelo.
Esfrego-lhe o pescoço e os braços com uma toalha humedecida,
até que o seu combate interior parece acalmar-se. Consumido de
medo pelo seu estado, saio precipitadamente de casa.
- Onde é que vais?! - grita-me minha mãe.
- Embora!
Diego diz-me para esperar, atravessa o pátio a coxear,
coçando pensativamente a barba curta do queixo.
- Se o que dizes do teu tio está certo, então talvez também
tu corras perigo.
- Não faz mal. Nenhum cristão-velho volta a tocar-me! - e
fixando-o nos olhos acrescento: - Nem nenhum judeu, se queres
saber!
- Como és inocente, meu amigo - diz ele, tomando-me o braço
carinhosamente -. Não sabes do que são capazes. Berequias, na
minha opinião, tu e a tua família deviam fazer as trouxas e ir
embora daqui. É o que penso fazer. Ando a arrumar uns
negócios, a vender o que posso e depois vou-me daqui da
maneira que puder. O Rei não nos pode deter, agora que...
- Vai em paz - interrompo. E lembrando-me da mensagem dele,
tiro-a da bolsa e ponho-lha na mão -. Isto escapou-se do teu
turbante quando caíste ao chão.
Se calhar ficou um pouco suja com o sangue da Senhora
Rosamonte. Desculpa.
- Diego lê e acena compreensivamente.
- Pois. O Isaac. É um velho conhecido meu da Andaluzia. De
Ronda. Era para me lembrar de ir ter com ele nessa data. Já
não tenho a mesma memória de antes. O teu tio conhecia-o.
- E que quer dizer Madre?
- O Chafariz da Madre de Deus. Era o sítio do encontro.
íamos... - ficou suspenso e subitamente agarrou-me o braço,
como se possuído pelo terror -. Mas se calhar já entendo tudo!
O Isaac falou-me em vender um livro a teu tio! Na altura
pensei que era em castelhano, mas se me dizes que ele tinha
livros judaicos escondidos.
- Quando?
- Dias antes da sua... antes de domingo. Encontrámo-nos
aqui. Tu estavas na loja, acho eu. Isaac disse que tinha uma
cópia do Livro dos Khazars de Judas Ha-Levi e o teu tio
aspirou como se estivesse a cheirar mirto.
- Gostava de falar com ele - disse eu.
- Vou ver se o encontro e venho cá com ele hoje depois do
jantar. - Quando lhe agradeço, Diego acrescenta: - Se calhar é
melhor não andares por aí às voltas por Lisboa agora.
Devias...
Faço um gesto a esquivar-me, saio pelo pátio fora e começo a
descer a Rua de São Pedro. Quando olho para trás uma última
vez, vejo a cabeça de Diego a despontar acima do muro do
quintal enquanto coxeia de regresso à cozinha. Será que os
rapazes que o apedrejaram foram pagos por alguém, por um dos
iniciados talvez? "Não há acasos, nem coincidências" - ouço a
voz de meu tio -. "Tudo tem um significado".
Um homem de branco irrompe inesperadamente de uma porta e
enfia um livro de couro diante de mim. O meu punhal está-Lhe
já apontado à garganta quando ele berra o meu nome:
- Beri! Que estás a fazer?!
Baixo a arma. Era só António Escaravelho e o seu Novo
Testamento comido pela traça. Era um antigo elemento do
Conselho Judeu e um ourives de uma destreza incrível, que se
tornara num cristão fervoroso depois da conversão forçada e um
lunático ainda mais fervoroso muito pouco tempo depois.
António fede mais que o estrume. A barba grisalha está
encrostada de porcaria, e a sua pele curtida semeada de
borbulhas vermelhas. Os seus Evangelhos exalam um cheiro de
anis e de esterco, uma combinação repelente, que me leva a
apertar o nariz.
- Que Deus esteja contigo - crocita ele, assim que afasto o
punhal. Pisca os seus olhos loucos faiscantes e empurra o meu
queixo com o livro, como que a corrigir a minha posição.

15
- Era melhor não me abordares deste modo - respondo,
afastando o livro e suspiro ao reparar nas lêndeas que Lhe
polvilham as farripas do cabelo. Na esperança que ele me possa
avançar um pouco na pista do assassino de meu tio,
pergunto-lhe: - Estavas ali no teu posto do costume perto de
minha casa quando os motins começaram?
Sem atender à minha pergunta, replica com um riso
desdentado:
-Apresentei mais uma petição para ir a Roma ver o Papa.
Parece que desta vez sempre me vão dar carta de saída.
- Ainda não vai ser desta! - grito-lhe eu, pois há anos que
ando a pedir autorização para sair de Portugal, depois de o
Rei ter publicado um decreto em 22 de Abril de 1499 que veda a
passagem das fronteiras a todos os cristãos-novos.
- Isso é que vai! - exclama ele, como se picado pela minha
falta de esperança -. E tu devias juntar-te a mim, meu rapaz.
Tu e Mestre Abraão!
- Para o meu mestre acabaram-se as viagens - murmuro para
mim próprio, sem me arriscar a ver a reacção de António à
morte de meu tio. "Porque fazer uma tão grande jornada para
ver um homem tão falho de santidade?" penso. Para minha
própria surpresa, repito em voz alta para o pedinte uma frase
de meu tio: - Só a ideia de ver o Papa me faz comichão na
cabeça!
Será que agora vou começar a imitar os ditos de meu tio?
Será desse modo que pretendo mantê-lo dentro de mim?
- Acho que ias achar redentora a visita ao Papa Júlio II -
observa António -. Os muçulmanos da Península Itálica são
amistosos, sabes?
Muçulmanos em Itália? Imagino que a seca deve ter ressequido
o seu sentido da geografia.
- Ouve agora isto, amigo. Onde é que estavas no domingo, no
primeiro dia dos motins? - pergunto-Lhe de novo.
- Aqui perto. escondido - responde ele, levando um dedo aos
lábios -. Com um amigo de quatro patas.
- Via-se de lá o nosso pátio?
- Via - replica ele -. Desde o chão até ao céu, tudo faz
parte do...
- E viste alguém entrar? Com uma faca. ou um rosário,
talvez. O Manuel Monchique? Lembras-te dele, um dos alunos de
meu tio?
- Deve ter passado uma libelinha ou duas - diz ele -. E uns
quantos sapos. Nem sempre é fácil topá-los quando saltam para
dentro do...
- E um homem, não viste? - Ele abana negativamente a cabeça
e eu insisto -. Tens a certeza? Nem o Diego Gonçalves? Sabes
quem é. um impressor, um amigo de meu tio.
- Não.
- E Frei Carlos? Ou o Rabino Losa?
Nega com a cabeça, a cada um destes nomes. - O assassino
deve ter entrado e saído pela loja, ou pela entrada separada
de minha mãe que dá para a Rua do Templo. Então, que a paz
seja contigo - despeço-me com uma vénia.
Vendo-me partir, lança-me num guincho:
- Ainda ficou algum borrego da Páscoa? Tenho um buraco na
barriga maior que o da minha alma!
- Vai ter com a Cinfa - grito-lhe eu -. Ela que te dê a
fruta que quiseres.
- Deus te abençoe, rapaz.
Mais à frente, ouço os clamores dos mendigos junto dos muros
da Sé. Apesar das ameaças de morte da Coroa, tinham abatido
uma das vacas que o Rei largara à solta. Um homem escanzelado
está a arrancar-lhe o couro com uma espada ferrugenta,
enquanto um malabar ensopado em suor atrai o fascínio de um
ajuntamento de vagabundos e cães fazendo voltear no ar três
dos cascos sangrentos.

A casa de Manuel Monchique, depois da esquina, mantém-se em
silêncio quando bato à porta. Inesperadamente, na portada de
uma janela abre-se uma fresta. "Sou o Pedro Zarco" - digo,
usando o meu nome cristão por precaução: Como ninguém
responde, esgueiro-me para um dos lados. Atiro o martelo por
cima do muro do pátio e iço-me para cima e dali salto para
dentro. Deparo com a figura de duende da mãe de Manuel
especada no umbral da porta das traseiras, vestida de negro,
apertando nas mãos ásperas uma bilha de barro azul. Tem o ar
ansioso de um bicho assustado, uma face curtida pregueada pela
idade. "Sou o Pedro" - digo -. "Andei na escola com o Manuel.
Sou sobrinho de mestre Abraão", Quando vou a recolher o meu
martelo, atira-me com a bilha, que se parte aos meus pés em
duas metades perfeitas. Ela entra precipitadamente em casa.
Manuel surge à porta embrulhado numa capa escarlate de
franja preta.
A lâmina de uma espada que ele segura ao alto com ambas as
mãos divide ao meio o seu rosto corado ainda jovem. Parece-me
mais uma das grandes surpresas desta era de falsidade que pesa
sobre nós. Nunca poderia imaginar que tinha diante de mim
aquele rapaz tão frágil que os olhos se lhe marejavam ao
mínimo sinal de vento, sempre abatido pela mais insignificante
corrida nas matas à caça das suas adoradas borboletas. Agora,
incha o peito como um pavão, desenhando no ar com a ponta da
espada a letra yod e diz-me numa falsa voz de comando:
- Não faço ideia que dívida pensas que vieste cá cobrar, mas
não levas nada de mim nem da minha família!
- Vai para o diabo que te carregue! - digo -. Poupa as tuas
bravatas cristãs para as virgens que seduzes durante o Yom
Kippur. Só vim cá por causa disto,
- e tirando o rolo com o retrato de dentro da bolsa,
atirei-lho -. Dá-lhe uma olhada, meu valente e belo cruzado de
Cristo.
Manuel baixa-se e apanha o desenho com uma mão cautelosa. De
imediato, os olhos luzem-lhe de surpresa.
- Onde é que arranjaste isto? - pergunta.
- Desenhei-o.
- Viste-a? - embainha a espada, precipita-se para mim.
Pegando-me nas mãos como um velho amigo, pergunta: - Onde?
Quando? Ela está bem?
À medida que lhe conto, sinto o seu contacto esfriar. A
desconfiança ecoa na sua respiração agitada. Ou o seu talento
para mentir é grande ou esta é a primeira vez que ouve falar
na morte dela.
- Não podia ser ela - diz ele -. Mesmo a tua mão pode
enganar-se no desenho de um olho, a curva de um queixo, um.
- Ela era lavadeira ou padeira? - pergunto.
- Nem uma coisa nem outra - diz, com um sorriso -.
Enganas-te com. - vendo-me tirar da bolsa a aliança de ouro
entrançado, arranca-ma das mãos. A segurança na voz começa a
faltar-lhe -. É do mesmo género. Mas no fundo não prova nada.
Conheço mais mulheres que têm alianças destas.
- As mãos dela cheiravam a azeite, alecrim e essência de
limão e tinham manchas de cinza. E tinha nas fontes duas
marcas, como se tivessem sido feitas por.
O rosto de Manuel perdeu o sangue. Dobrou-se para não
desmaiar. Fecha os olhos como quem vai adormecer e começa a
soluçar. Recobrando o fôlego por instantes, diz:
- Velas. Trabalha para o Mestre Bento. Fazem velas
aromáticas. Com essências de flores. Quando a cera arrefece,
cobrem-nas com azeite para ficarem frescas.
- E as marcas na testa?
- São de nascença - responde ele, com um aceno de
assentimento -. Teve de ser tirada a ferros pela parteira. Ela
não saía. Sempre com medo de dar o primeiro passo. Sempre tão
temerosa, como se o mundo fosse uma escada íngreme para alguma
masmorra. Eu bem tentava ajudá-la a perceber que havia um
jardim lá em baixo. Queria ajudá-la a entrar nele. Éramos.
éramos.
Enquanto espero que cessem as suas lágrimas, compreendo ser
impossível a conjectura de uma rapariga tão recatada achada
despida depois de ter tido ajuntamento com meu tio.
Subitamente, Manuel diz numa voz frouxa:
- Como é que morreu? Foi violada pelos cristãos?
- Não sei se foi violada. Acho que não. Mas tinha a garganta
cortada, Manuel.
- Meu Deus. - esconde a cara nas mãos por momentos. Quando
volt a olhar-me, diz: - Penso que. que já a enterraram.
- Não podíamos esperar mais, desculpa. Está na Quinta das
Amendoeiras. Mostro-te o sítio exacto, logo que possa. E
havemos de entoar juntos um kadish por ela. Mas fazes alguma
ideia do que andaria a fazer Para os meus lados?
- Saiu de casa no domingo para ir visitar o Tomás, o irmão
dela, que vive perto de ti. Se calhar, ao fugir do tropel da
multidão foi dar por acaso a vossa casa.
- Ela conhecia meu tio?
- Conhecia de nome, claro. Mas que eu saiba nunca o tinha
visto.
- E os membros do grupo de iniciados. Diego, Frei Carlos?
- Acho que nem sequer sabia que existiam.
- Ela considerava-se judia?
- A bem dizer, não - responde, abanando a cabeça -. A lei de
Moisés de que a mãe deve ser judia e essas coisas. A mãe dela
era cristã-velha, nasceu em Segóvia, mas desde pequena que
vivia em Lisboa. No fundo uma aldeã. Mas não tentes sequer
dizer-lhe isso. O pai de Teresa é um cristão-novo português,
de Chaves. Quando ela se decidiu a casar comigo, eles disseram
que não queriam ter nada a ver com ela. Por isso, que é que eu
fiz? Arranjei uma certidão de sangue puro. Que é que querias
que fizesse? Julgas que aquela megera se importa? Diz-me que
um judeu é como uma romã, o sangue que tem dentro suja tudo
onde cai. Tem resposta para tudo. Como o Demónio - Manuel
ergue-se e afasta o rosto contorcido pela angústia -. E o teu
tio nunca pôde compreender o peso que eu trazia em cima.
- Manuel, mestre Abraão também está morto.
Ele sobressalta-se, inclina-se para mim. Nos seus olhos
lê-se o pânico. Aceno com a cabeça a confirmar que é verdade.
- Minha tia Ester foi violada e deixou de falar. Judas
desapareceu. E meu tio deixou-nos. Minha mãe, Cinfa e Reza
estão a salvo.
Manuel volta-se para esconder as lágrimas. Ou seria por já o
saber?
- Então, Mestre Abraão nunca me perdoou - disse ele num
murmúrio.
- O perdão dele era assim tão importante? - pergunto.
Volta-se num rompante e fixa-me como se fosse um crime pôr
tal pergunta.
- Berequias, uma certidão do Rei não mata o coração de uma
pessoa!
- Eu falei com ele sobre ti. Depois de te ter tratado tão
mal quando te encontrou na rua. Disse-me que da Próxima vez
que te visse havia de te mostrar a sua amizade. Ficava fora de
si só com a ideia de sangue puro. Mas compreendeu que tinha
agido mal. Podes crer que tinha uma grande estima por ti.
Dos olhos de Manuel correm lágrimas silenciosas. Apanha as
metades da bilha partida.
- Como é que os cristãos o encontraram? Ele não saiu
contigo?
Ainda pensei em Lhe mentir, mas considerei que a verdade já
bastava como enigma. Ao ouvir a minha descrição, esconde de
novo o rosto entre as mãos. É impossível!, - diz ele. Murmura
a palavra uma e outra vez até a voz se tornar num cicio
diluindo-se num oceano de silêncio. Avanço para ele e
digo-lhe:
- Temos de descobrir ao certo como é que ela entrou na cave.
Talvez o irmão dela saiba.
- Se ainda estiver vivo.
Enquanto caminhamos para casa de Tomás, Manuel murmura o
nome de sua mulher como numa invocação mágica. Compõe uma
exPressão rígida de contenção, agarrado ao punho da espada.
Que em nada lhe convém. Em vez do ferro polido, Manuel deveria
antes empunhar uma rede de apanhar borboletas e um caderno de
observações. O nosso destino é um terceiro andar de uma
moradia sórdida do casario pobre abaixo do outeiro coroado
pela Igreja de Santo Estêvão. Os sinos fanados estão a dar as
vésperas quando chegamos e alguns cristãos-velhos arrastam-se
para dentro da igreja. O sacristão enxota para longe um bando
de cães aos pulos que pretendem associar-se à cerimónia. O pôr
do sol abrasa o horizonte. As trevas da sexta noite da Páscoa
quase se podem tocar.
O cunhado de Manuel é estofador e está a enfiar plumas numa
tela quando nós chegamos. O sótão onde se encontra tresanda
como uma capoeira. O pescoço é inexistente, tem umas faces
sulcadas de veias como Frei Carlos e na cabeça uma franja
quase sumida de cabelo castanho todo sujo. Tem estampada na
cara uma expressão bovina de uma raiva obsessiva e cega,
recebe as informações que trazemos sem nos olhar. Uma breve
pausa nos movimentos da mão mais nada.
- Disse que ia sair - resmunga -. Queixava-se da falta de
limpeza durante o tempo das luas das mulheres.
Empurro Manuel para fora. Já sabíamos tudo o que
precisávamos.
- Que me dizes ao homem?
- Ainda perguntas? A metade cristã tem os modos e a
inteligência de um suíno. Já podes imaginar a sandice que deve
reinar na metade judia. Teresa deve ser uma filha adoptiva. É
a única explicação.
Olho para cima e vejo Tomás que se desvia da janela. Teria
ele seguido a irmã e matado os dois, guiado por qualquer
informe sentido de virtude religiosa herdado da mãe? Seria
possível que ele e um dos iniciados que conheciam o segredo da
geniza tivessem aparecido exactamente ao mesmo temPo para
matar o meu tio? Será que uma tal coincidência é possível?
Duas penas descem a flutuar sobre nós. Estico-me para
apanhar uma.
- Estou convencido de que Teresa se considerava mais judia
do que pensas - digo, agarrando-o vivamente. Ao ver o olhar
surpreendido de Manu pergunto: - Onde é que iria uma mulher
judia assim que acaba o seu ritmo de luas?
- A um balneário - replica.
- E onde é o balneário mais próximo?
- Na Rua de São Pedro. Ao fundo da rua da vossa.
- Isso mesmo.

Capítulo X

A nossa sinagoga na Judiaria Pequena tinha sido construída
no ano cristão de 1374 numa pequena elevação no flanco da
porte a sul das muralhas defensivas de Lisboa. No fundo dessa
encosta fica um largozinho com uma grande Pereira no meio,
irmã de uma outra gigantesca que antes cobria de sombra o adro
do nosso temPlo principal na Pequena Jerusalém. Uma escadaria
de pedra polida sobe a vinte pés num primeiro lanço desde o
emaranhado de raízes até à loja de curtumes de Samuel Aurico,
seguindo-se um segundo lanço até à sinagoga. Do outro lado da
sinagoga fica a Rua de São Pedro. Foi aí que os nossos
antepassados puseram a entrada para a nossa micva, uma série
de piscinas em cascata, duas delas destinadas aos banhos
rituais, cavadas na rocha aí existente e alimentando-se numa
corrente subterrânea. As hábeis negociações conduzidas pelo
rabino Zacuto e outros judeus da corte pouparam-na aos
confiscos de 1497 e possibilitaram que o nosso hazan, David
Moisés, continuasse à sua frente. Claro que já ninguém
esperava que os homens e rapazes da nossa crença fossem
mergulhar nas suas águas antes do Shabat. Mas eu persistira.
Ao fim e ao cabo, um banho não passa de um banho e
possivelmente nem o próprio Papa poderia adivinhar o que vai
na cabeça de cada um. Agora tudo mudara, já se sabe. A
maldição portuguesa tinha-nos manietado os pulsos e as provas
deixaram de ter qualquer importância. Por toda a Espanha,
tomar banho à sexta-feira era considerado prova suficiente
para tornar um homem em fumo. E que Lisboa tinha começado a
sentir-se bem com o calor das fogueiras da Inquisição era uma
coisa que desde a semana anterior já não deixava dúvidas a
ninguém.
Naturalmente, a mesma proibição pesava sobre as nossas
mulheres desde os tempos da conversão, que assim se viam
impedidas de se purificarem depois de Passada a sua maré que a
lua governa. Mas Teresa, a mulher de Manuel, parecia ser mais
fiel e corajosa do que ele imaginara. Teria ela sido
surpreendida pelos cristãos quando se banhava? Pode dar-se que
ela se tenha escapado antes de ter tido tempo de se vestir,
atravessando a correr a rua para se refugiar em nossa casa,
quatro portas a oriente da micva, no triângulo formado pela
Rua de São Pedro com a Rua da Sinagoga.
A porta do balneário está fechada e ninguém responde quando
batemos. "Não creio que Mestre David tenha sido poupado
no domingo" - digo a Manuel, e contei-lhe como o hazan tinha
faltado ao encontro que naquela tarde tínhamos marcado na
Porta de SantAna. Mesmo assim, Manuel chama por ele colando-se
à fresta do umbral. A sexta noite da Páscoa caíra já sobre a
cidade cinzenta e puxada pelo vento, que levanta redemoinhos
de poeira na calçada. Não se ouve nenhuma resposta. Manuel
pergunta:
- E agora, onde havemos de ir?
- A casa dele - respondo -. Sei onde é que ele guarda as
chaves.
- Nunca percebi - diz ele, quando nos pomos a caminho -
porque é que Mestre Abraão apreciava tanto morar assim perto
do balneário e da sinagoga Com as disputas permanentes que
havia entre ele e o Rabino Losa, isso só piorava as coisas.
- Meu tio estava sempre a dizer que a nossa situação era
excelente para nos desvanecermos para junto de Deus. A Rua da
Sinagoga e a Rua de São Pedro convergem para nossa casa. Ele
achava que um cabalista devia procurar viver numa intersecção
de linhas, onde dois se tornam em um.
- Imagino que deve ser uma bênção viver na convicção de que
a vida feita de padrões definidos e perceptíveis - observa
Manuel com um sorriso melancólico, que me deixa adivinhar que,
também ele, interroga Deus.
Subimos a rua lateral até à morada do hazan e batemos à
porta. Empoleirado no beiral do telhado, vê-se um falcão de
caça fugido, alerta e agitado, com uma tira de couro
pendendo-Lhe das garras. Quando uma mulher desengonçada, de
queixo ponteagudo nos grita do cimo das escadas, a ave levanta
voo.
- Aqui somos todos cristãos tementes a Deus - diz a mulher
numa voz tremente -. Todos cristãos-velhos, sempre com o
Senhor Jesus nos nossos corações - e leva as mãos postas ao
peito numa posição de oração.
Mesmo do sítio onde me encontro consigo ver as unhas roídas
até fazer sangue. Deve pensar que também nós andamos à caça de
marranos.
- Viemos só para falar com Mestre David - digo eu numa voz
apaziguadora -. Não há problemas. Só queríamos saber se o viu.
- Ai, meu Deus, eu já calculava. Mas aqui não o encontram.
Desde domingo que não o vejo. Acho que esse dia estava
destinado a aquecer o coração de Deus nas fogueiras do Rossio.
"Destinado esse dia a aquecer o coração de Deus?" - pensei.
"Os lisboetas com o esforço que fazem para falar por
eufemismos acabam muitas vezes por usar as expressões mais
absurdas e monstruosas. Haveria outro povo à face da Terra
mais capaz de tornar com a sua linguagem um escorpião numa
rosa?"
- Por acaso tem a chave de casa dele? - pergunto.
- Tenho, tenho - responde ela.
- Podemos dar uma vista de olhos?
- Só um momento, que eu já desço.
Surge ao fundo das escadas alisando o avental escuro com
mãos nervosas. Não levanta os olhos, evitando o nosso olhar.
Numa voz hesitante, diz:
- Quando o senhor David aqui apareceu pela primeira vez
pensámos que ele. era uma pessoa de bem. Foi por isso que lhe
alugámos a casa. Só depois é que percebemos que era marrano.
Mas ele prometeu-nos sair no fim deste mês.
Fazia um esforço patético para se distanciar do seu
inquilino. Na sua voz tranquila, Manuel diz: Ele era o hazan
desta parte da cidade, não sei se sabia. - Usa estas palavras
próprias porque suspeita, tal como eu, que também ela era uma
judia secreta. Usar a palavra hebraica hazan é uma maneira de
Manuel Lhe dar a entender que também sabemos hebreu e que
somos cristãos-novos que não deve temer. Mas a mulher confunde
hazan, pelo modo como soa, com a palavra portuguesa azango,
mau augúrio ou enguiço. Faz um grande aceno de cabeça e
replica num tom excitado: "Pois, pois, tem Vossa Senhoria toda
a razão, todos os judeus são azango!"
Uma semana antes teríamos rido da sua ignorância. Mas neste
momento, ambos respiramos fundo como quem cobra forças para
uma luta que pode durar as nossas vidas. Encorajada pela
aprovação que pensa ter conseguido, corre a abrir a porta. "Já
está" - diz ela ao ouvir-se o estalido da fechadura. Quando a
porta se abre, a guinchar nos gonzos, escapa-se um odor
bafiento. Numa voz humilde, a mulher diz-nos: "Ficava-Lhes
muito agradecida se não ficassem muito tempo" - enfrenta o meu
olhar por momentos -. "Não queria ser mal educada, caros
senhores, mas as estrelas e os planetas dizem que hoje não
devemos receber estranhos em casa. Estou certa que
compreenderão". Uma passadeira gasta de couro leva da entrada
de Mestre David à lareira apagada, a uma distância de cinco
passos. Mas não ousamos mover-nos: a todo o seu comprimento
vê-se a sua preciosa colecção de alaúdes, esventrados e
despedaçados. Uma cítara feita da mais bela madeira de roseira
e cerejeira, como uma ágata talhada pela música, tinha sido
partida em duas e pende de um prego na lareira como um
caranguejo morto. Debaixo, jaz um pequeno monte de vidros e
cacos de barro, encimado por um emaranhado de tallit que nunca
mais sentirão o pulsar de nenhum braço. A senhoria aponta-nos
um dedo espetado:
- Deviam ter visto isto antes de eu ter dado uma limpeza. As
favas dele já tinham barbas. Como os rabinos deles! E o
cheirete. Santo Deus, o fedor desse povo, não acham?
- Diga-me só se viu os tamancos dele - pergunto eu.
Ela alisa de novo a frente do avental.
- Desculpe, mas não sei onde é que ele tem as coisas dele.
Não era pessoa das minhas relações. A verdade é que nunca nos.
Dirijo-me à arca da roupa, enquanto ela continua a parolar
sobre a fria distância que ela insistia em manter com o
judeuzito da música, como agora se refere a David. Encontro os
tamancos juntos debaixo de um amontoado de velhos gorros
de veludo do tempo de El-Rei D. João. Depois de uma breve
invocação e uma praga em hebraico, o tacão gira para o lado,
deixando cair três chaves. A senhoria observa-me embasbacada.
- Muito antes de vocemecê morar aqui, vim a este quarto
durante quatro anos para estudar a cultura grega e árabe com
Mestre David. Não viu logo o meu cheirete?
- Ah, compreendo - murmurou ela, respirando sofregamente. Na
sua voz lê-se uma admiração invejosa: - Vocemecês sabem
disfarçar tão bem!
- Não é disfarce nenhum - digo eu -. e bruxedo Recordando um
velho truque que meu tio me ensinara, mostro-lhe uma mão vazia
e logo em seguida saco do seu nariz as chaves de Mestre David.
Ela engasga-se e persigna-se, caindo de joelhos numa posição
de oração:
- Por favor, não me façam mal - geme, com as lágrimas nos
olhos.
- Se o judeuzito da música voltar, diga-lhe que Pedro Zarco
passou por cá.
- Sim, senhor - diz ela, fazendo uma vénia com a cabeça -.
Mas se calhar era melhor dizer-Lho à noite nos seus sonhos.
Nesta altura deve ser o único modo de Vossa Senhoria lhe fazer
chegar uma mensagem.
A micva está húmida e viscosa, e as suas janelas foram
fechadas com pregos por algum judeu previdente. Ao descermos,
sinto faltar-me o pé, naquela total escuridão. O meu traseiro
toma rudemente conhecimento com as arestas de granito dos
degraus, ao mesmo tempo que uma dor aguda me perfura o ombro.
Solto um grito.
- É melhor ir buscar uma candeia antes que te aleijes a
sério - diz Manuel, voltando para trás e saindo, encostando a
porta atrás de si. Fico sentado
mergulhado no conforto desta escura solidão, enquanto à minha
volta formas violetas se condensam, para de imediato se
encolherem em sombras mosqueadas. "O barro da escuridão dá
forma aos nossos medos e desejos" - ouço meu tio dizer.
Espero, pois. Envolto no meu respirar leve, aparece-me
Mardoqueu quando jovem, dissipando-se depois numa dança com o
seu passo de corço. Um estalido arranca-me ao meu devaneio,
fazendo-me sobressaltar. Som de pés? O meu coração bate num
código de alerta. Meu tio surge-me subitamente, azul iriado de
ouro, como uma iluminura pintada pela minha memória. A sua
expressão é hesitante, pensativa, como se considerasse o
significado de algum versículo difícil. Sem se deter a
saudar-me, continua a flutuar, subindo e afastando-se da falsa
noite do tecto até desaparecer. "Não lhe dês atenção" - penso
-. "Não era uma visão, mas uma ilusão". Uma ligeira respiração
vinda de baixo impele-me a avançar. Ou será apenas o vento
escapando-se por alguma passagem invisível do subterrâneo?
Diz-se que há dúzias de túneis e passagens que vêm dar aqui,
os restos de uma rede subterrânea criada pelos nossos
antepassados, para prepararem a vinda do Messias. "Judeu ou
cristão?" - grito em português. Nestes tempos, parece ser a
única pergunta que interessa. A respiração extingue-se. "Venho
em paz" - digo. Só um silêncio expectante desafia o meu medo.
Decido lançar um enigma à escuridão: um judeu saberá o que
quer dizer. "Qual é o anjo que dá a mão a Abraão?", A resposta
"é Raziel. Os dois nomes juntos, o de Abraão e do anjo, somam
288 em hebraico, uma língua em que as letras são também
números. As mãos de Raziel são o sinal igual que os liga".
Subo silenciosamente dois degraus, para me defender de algum
vulto que, guiado pela minha voz, subitamente se precipitasse
para mim. Mas nenhum movimento fende a escuridão. De novo,
lanço o meu enigma e subo mais alguns degraus. Ouve-se uma
porta ranger e surge o rosto de Manuel alumiado por uma chama.
A escadaria abre-se em penumbra abaixo de mim.
- Desculpa a demora - diz ele -. Mas ninguém.
- Schch. Parece-me que está aqui alguém. Ouvi uma
respiração, e um passo, pareceu-me.
- Judeu ou cristão? - pergunta num sussurro, enquanto desce
desce em pontas dos pés - Os passos não têm fé.
- Mas o que é. Raziel - ouve-se um sussurro rouco -. Raziel.
- Que diz ele? - pergunta Manuel.
Levo um dedo aos lábios a pedir-Lhe silêncio.
- Aparece! - grito para baixo, em hebraico.
Um homem descarnado, olhos piscos e umas farripas ralas de
cabelo por cima das orelhas surge descalço ao fundo das
escadas. A grossa toalha que traz atada em volta da cintura
faz parecer o seu peito mais encolhido. É o cirurgião Salomão
Eli. Sem reflectir, precipito-me para ele.
- É impossível! - exclamo -. Vi-o no Largo do Limoeiro,
manietado juntamente com a sua mulher e.
Ele dá-me palmadas no ombro, manifestando a sua alegria.
- vida! Shalaat Chalom! - grita ele -. Um dos meus
rapazinhos escapou com Salomão. costuma pôr nomes a todas as
crianças que circuncida. A mim chamou-me sempre Shalaat
Chalom, sonho realizado, uma referência às preces de meu pai,
suplicando outro filho.
- Mas eu vi-o com.
Salomão interrompe as minhas palavras com um dedo nos
lábios.
- A minha querida esposa Reina está morta - diz ele num
cicio, atirando a mão para o céu imitando o fumo -. Só eu
escapei.
- Mas como foi isso?
- Como foi, perguntas? Foi um quisto, meu querido Shalaat.
Operei um quisto a um dos celerados que nos levaram. Um
pedreiro. Há cerca de um ano.
Ele reconheceu-me, já Reina tinha. Obrigaram-me a assistir.
Eu disse-lhe que queria ir atravessar com ela o Rio Jordão.
Ele sorriu furtivamente e deu-me uma pancada. Quando
despertei, estava deitado no telhado de uma casa acima da
Igreja de São Miguel. Vi as flores silvestres que cresciam por
entre as telhas debaixo das minhas pernas e pensei que era
estranho. Julgava que estava morto.
Era de noite. Mas quando vi a lua. Quer dizer, eu nunca
tinha ouvido dizer que o paraíso estivesse cercado de corpos
celestes. Ou será a sahar, só uma outra sohar, será a lua uma
mera prisão? - Salomão encolhe os ombros e força-se a sorrir
-. Talvez o tal pedreiro tivesse pensado que deixar-me vivo
seria uma maior punição. Quando despertei estava sem roupas.
Para onde havia de ir? Para casa não, já não havia lá ninguém.
Vim dar aqui. A porta estava aberta. Passado algum tempo veio
cá alguém que a fechou.
- Esteve cá mais alguém? - pergunta Manuel -. Uma rapariga?
- Ninguém - replica o cirurgião.
- Pode ter morrido antes da chegada de Salomão - digo eu a
Manuel -. E de qualquer modo, deve ter ido daqui até minha.
- Que rapariga?! - pergunta o Mohel -. A Cinfa? Ela?
- Não. Está bem -. Pego nas mãos de Salomão, explico-lhe o
que aconteceu a meu tio e o objectivo da nossa busca -. Então
não viu nada, nada mesmo? Nem jóias, ou roupas, ou comida? -
insisto.
- Anda daí - diz ele numa voz grave.
O cirurgião conduz-nos, através da piscina ritual dos
homens, até aos compartimentos onde as mulheres se vestem, que
estão cobertos de azulejos com o símbolo de seis pontas do Rei
David. Avança com passos atentos, infantis, próprios de alguém
que não come há vários dias. Mas ainda assim, o eco dos seus
passos soa nestas cavernas como um tambor. Chegados à pequena
sala de vestir onde Salomão tem dormido, Manuel pega numa
toalha que Lhe serve de coberta. Levanta uma túnica enrolada a
servir de almofada e sacode-a ao alto.
- Da Teresa? - pergunto.
Um véu de sombra fecha-se sobre a face de Manuel quando ele
baixa a candeia. Cai de joelhos e um amargo soluçar ecoa por
todo o gélido lençol de azulejos.
- Estava nua quando a encontrámos - murmuro a Salomão -. Não
me parece que ela fosse atravessar assim a rua, se houvesse
outro meio. Como é que.
Inesperadamente, Manuel passa a porta, descendo em seguida
para a passagem que dá para o átrio central. Chamo por ele
repetidamente em vão. O meu eco vibra em torno a nós como uma
voz a desvendar segredos. Seguindo para oriente, passa a
correr uma rampa com uma sala de meditação ao fundo, descendo
depois através de balneários há muito abandonados e grutas a
tresandar a humidade. Finalmente atingimos a sala que serviu
de escritório a Mestre David. As suas estantes torreadas estão
derrubadas, com os registos do balneário espaLhados pelo chão.
No canto oposto, vê-se uma candeia no chão. Enquanto Manuel a
observa, Salomão deixa-se cair no chão empedrado. Ouve-se a
palpitação do seu peito no ar pesado e húmido do
compartimento.
- Estou cansado das pernas - diz, com um encolher dos
ombros.
- Já lhe damos de comer, logo que sairmos daqui -
tranquilizo-o.
Ele levanta as mãos a mostrar que não há pressa.
- O que é que te deu? - pergunto a Manuel.
- Era a ver por onde teria descido a minha mulher ao fugir
dos cristãos.
Salomão olha em torno, fareja o ar como um coelho,
inclina-se para o chão, levanta-se e põe-se em pontas dos pés
como um gamo a esticar-se para chegar a um ramo mais alto.
- Há um cheiro a podre no ar - resmunga, pondo a língua de
fora -. Parece de estrume.
É verdade. Há uma fibra do mal a vibrar no ar.
- Algum esquilo morto, ou um rato - diz Manuel -. Para aí
afogados.
Dentro de mim roda a chave do entendimento.
- Não, não é animal morto nenhum. Agora percebo. Já lhes
mostro o que é quando voltarmos à nossa cave.
Descemos, Manuel, Salomão e eu, as escadas debaixo do nosso
alçapão secreto. O mohel aconchega-se sob o cobertor que lhe
dei e estende a mão ao longo da parede para se amparar. Nunca
estivera antes na nossa cave e pergunta numa voz curiosa:
- Desde quando têm isto aqui, rapaz?
- Já ninguém se lembra há quanto tempo - respondo.
O tapete de orações e as plantas de mirto dão a entender a
Salomão que a cave se tinha tornado na nossa sinagoga secreta
e ouvimo-lo entoar um cântico: "Abençoado seja Aquele que
salva o Seu templo dos idólatras". Tia Ester está sentada à
escrivaninha de meu tio ao fundo da cave, com os olhos fixos
no Espelho que Sangra que Lhe fica em frente. Tem a cabeça
descoberta e o seu cabelo com hena, cortado ao acaso, dá-lhe
uma aparência aterradora.
- Etti - chama Salomão, que gosta de chamar toda a gente
pela alcunha.
Ela não responde, nem estremece. Salomão estica os lábios e
olha-me interrogativamente.
- Por agora não responde. Temos de Lhe dar tempo.
O mohel acena compreensivamente, depois fareja o ar.
- O tal cheiro vinha desta cave - diz ele -. Este sítio
cheira a... - Cala-se ao lembrar-se do invólucro do corpo
putrefacto que meu tio abandonou ao deixar-nos.
Avancei direito aos ornatos de couro de Córdova que pendiam
da parede ocidental da cave, por trás de tia Ester. Enrolando
para cima um deles, desprendi-o dos ganchos e pu-lo no chão.
Seguidamente fiz a mesma coisa com o outro, Manuel acende os
dois candelabros de prata com a sua candeia. Apalpando a
parede com a ponta dos dedos debaixo das manchas de sangue que
se interrompem abruptamente na borda de um dos azulejos, digo:
-Se Samir ou o meu tio aqui estivessem, poupávamos algum
tempo. Ou um dos iniciados.
- O que procuras? - pergunta Manuel.
- Já vais ver - digo eu -. Acabo de descobrir como é que um
homem, ou até vários, pode desaparecer desta cave. E como é
que um cheiro pode passar de um lado para o outro.
Comecei a bater com o punho em todos os azulejos ao longo de
uma linha e até à altura da minha cabeça, do canto a sul da
cave perto das cavidades aí existentes para norte, até onde
estava tia Ester. Salomão murmura para Manuel:
- Pobre rapaz. A morte de Mestre Abraão deixou-o a pensar da
esquerda para a direita.
É um dito judaico, para dar a entender que não tinha o siso
todo.
- Garanto-Lhes que não me entrou no ouvido nenhum mosquito -
replico, aludindo à história de como o Rei Nimrod perdeu o
siso -. Costumava ficar muito admirado como é que meu tio
estava sempre a aparecer vindo de parte nenhuma. Frei Carlos
às vezes até dava a entender que meu tio era um daqueles
espíritos brincalhões. Mas agora já sei como é que ele fazia.
E porque é que ele nunca me deixava entrar na cave sem
autorização dele.
Continuei a bater e se até ao fim de cada fiada não ouvisse
o som que procurava, passava para a fiada de baixo. Na quarta
fiada de baixo, a que atravessa a parede à altura do meu
pescoço, encontrei o que procurava: o som oco de um azulejo,
que mal se apoiava na parede.
Neste momento, Cinfa surge a correr ao fundo das escadas e
fita-me com olhos atentos. Mais uns vinte toques e acabo por
encontrar o contorno de azulejos que dão o mesmo som a falso.
Se se confirmar o que penso, um dos azulejos perto da borda de
um dos lados deve mover-se quando o empurram. Passados uns
momentos, acabo por o descobrir. Arranco-o, e parto mesmo a
unha do polegar nessa tarefa, e passo-o a Cinfa. Por baixo,
vê-se uma pega circular de ferro, na qual se lê toscamente
gravada a palavra hebraica rechiza, banhos. Depois de respirar
profundamente e de uma rápida oração pelo sucesso, agarrei-a e
dei-Lhe um empurrão. Imediatamente, a racha na parede torna-se
numa porta que gira em torno de um eixo central. Perante nós
surge um compartimento da mais pura
escuridão. Salomão reúne-se a mim, põe-se de cócoras como um
piedoso muçulmano e espreita para o interior com uma expressão
de curiosidade.
- Dá cá a candeia - digo, voltando-me para Manuel -. Vou ver
lá dentro.
- Para onde dá? - pergunta ele.
- É o que já vamos ver. Mas para já, dá cá a candeia.
Passa-ma e à nossa frente começa a vislumbrar-se um corredor
de pedra.
- Vou atrás de ti - diz ele.
- Eu fico aqui - diz-me Salomão com uma palmadinha no ombro.
E voltando-se para minha irmã pergunta-lhe: - Cinfa, porque
não vais buscar um Pouco de matza e água? E um copo de vinho
casher também. E já agora a almofada mais fofinha que
encontrares!
Guiados pela candeia de Manuel, penetramos na escuridão,
enquanto Cinfa se precipita pelas escadas acima. A passagem
húmida que se abre perante nós exala um cheiro a pedra fria e
a solidão e vai-se estreitando à medida que o tecto baixa até
nos vermos obrigados a caminhar de gatas. Avançamos como
toupeiras e, depois de uns vinte pés, quando a passagem se
alarga, levantamo-nos. De uma laje de pedra a fazer de porta,
emerge uma argola de ferro ferrugento, igualmente gravada com
a palavra rechiza. Manuel empurra-a, abrindo-a em torno do seu
eixo. Somos recebidos por uma lufada de ar gélido. Levanto a
candeia, fazendo brilhar os azulejos azuis e verdes. Pelo chão
espalha-se uma infinidade de papéis. Estamos no escritório do
hazan nos balneários.
Depois de Manuel e Salomão se terem recolhido a suas casas,
vou ter com minha mãe, armado agora da certeza de que o
assassino não era nenhum feiticeiro, mas sim um dos iniciados.
Encontro-a na loja, a esfregar o chão à luz de uma candeia e
de joelhos e mãos no chão. Conto-lhe o que acabo de descobrir.
- Conhecia a passagem secreta? - pergunto.
Ela afasta a escova e põe-se de joelhos.
- Antes de tu teres nascido - começa ela -, quando os
cristãos-novos desta cidade eram judeus e o teu pai andava a
ver se conseguia.
Fecho os olhos. Parece que a vejo abrir a primeira página de
uma história infindável sobre meu pai e as suas tentativas de
se estabelecer com um negócio rentável. Mas, sentindo a minha
irritação, corta abruptamente:
- A nossa cave era parte da micva! -- As nossas tinas faziam
parte dela.
- Porque é que nunca mo disse?
Volta-me as costas como se a minha presença a enfastiasse.
Os músculos do rosto palpitam-lhe com a cólera:
- Julgas se calhar que tens direito a saber tudo?! A vida
não é assim, seja o que for que meu irmão te dizia.
Observo-a com desagrado, ainda que compreenda que tem razão.
- Talvez ele pensasse que tu sabias e que não tinha de te
falar no caso - acrescenta num tom conciliatório, recuperando
a escova -. De qualquer modo, não era importante - o breve
gesto de desinteresse que ela me dirige denota o seu cansaço.
De súbito, baixa o olhar e franze o cenho. Um sapo acastanhado
todo inchado pula de algum esconderijo. - Que é que quer agora
este, não me dizes?
- Comida. alguma mosca. Quer viver. Deixe-o lá.
- Deixá-lo? Uma porcaria destas? Uma das dez pragas da
Páscoa?! Que Deus enviou para punir os egípcios que nos
mantinham na escravidão e eu ia deixá-lo na minha casa?!
Minha mãe parecia balançar entre o sonambulismo e uma
espécie de loucura intermitente. Vendo-a agarrar a vassoura,
tento voltar a sua atenção para questões mais importantes e
digo:
- Sempre pensei que ele se deve ter escondido na geniza no
meio dos livros. Como ele gostava de os tocar e de os cheirar!
- Quem? - pergunta ela, e franze as sobrancelhas como se eu
tivesse ensandecido.
De repente possuiu-me o pressentimento de que era capaz de a
esbofetear. Ela abre uma das portas desengonçadas da loja e
varre o pobre sapo pelos ares para a Rua da Sinagoga.
- Por favor, não podia... - começo, mas interrompo-me,
compreendendo que era inútil. A sua simples presença parece
minar a minha energia. Observo-a a fitar o céu sonhadoramente.
O desorientado sapo endireita-se cambaleante. Roseta surge não
se sabe de onde, avança sorrateiramente, as garras prontas.
"Não, nada disso!" - digo, saltando para a rua, agarrando o
sapo e enfiando-o na minha bolsa. Preparo-me para ouvir os
ralhos de minha mãe contra a porcaria. Mas as nuvens prateadas
que rolam do ocidente, deixaram-na pregada ao chão: a noite,
como tudo o resto, recordou-lhe Judas.
Liberto o sapo nos campos acima do rio, lavo as mãos,
mordisco uma matza, e volto para casa a ver como está Farid.
Uma fatia do crescente da lua ergue-se acima do horizonte e eu
começo a delinear uma história, enquanto observo o seu palor.
A mulher de Manuel está a banhar-se na micva. Ouve os brados
dos cristãos-novos a serem massacrados na rua de cima.
Correndo através do dédalo de piscinas e compartimentos,
atinge o frio muro de estrelas do escritório do hazan. Estarão
as portas de ligação abertas? Estará também meu tio nos
balneários a purificar-se para as suas orações? Ou terá ela
gritado ao aperceber-se da luz das tochas empunhadas pelos
cristãos? Talvez meu tio a tenha ouvido, aberto a porta
secreta, penetrado nos balneários e a tenha puxado para lugar
seguro. Juntos, meu tio e a rapariga, esperam na cave o fim da
loucura de Lisboa. Mas os criminosos, um iniciado e alguém que
faz pesar sobre ele uma ameaça, chegam primeiro. Depois de
terem atraído a morte a nossa casa, esgueiram-se através
da passagem secreta para os balneários. Um deles passa a mão
pela porta fechada, deixando o rasto de sangue dos seus dedos,
e escapa-se através do túnel.
Quando entro, Farid está sentado na cozinha. A sua face
parece causticada e pálida pelo esforço. Sei que deveria
correr para ele, mas as minhas próprias energias tinham-se
eclipsado pelo desespero.
- Não devias estar deitado? - pergunto com os nossos sinais,
ao chegar à entrada.
- A minha casa estava vazia - explica o meu amigo com gestos
pesados -. Não sabes nada de meu pai, pois não? - os braços
pendem-lhe brancos, como se os anjos o vestissem já para.
- Não. Perguntei por aqui, mas ninguém o viu. Amanhã de
manhã cedinho vou à procura dele. As coisas agora acalmaram-se
um pouco.
- Trouxeram uma mensagem para ti - indica ele, exibindo um
rolo -. Para o teu tio, mais exactamente.
Desfaço o selo. É da Senhora Tamara, uma alfarrabista da
Pequena Jerusalém, com quem muitas vezes fazíamos negócio.
"Mestre Abraão" - dizia a mensagem -, "um rapazinho tentou
vender-me um livro que me parece ser uma história do Egipto
recentemente descoberto por ter sido roubado durante os
motins? Desculpe, se calhar devia tê-lo comprado, mas eu não
tinha a cabeça no sítio e expulsei-o da loja aos berros. Mas
posso descrever o tal rapaz que veio cá. Talvez alguém saiba
quem é". recuo como se tivesse pescado um grande peixe para o
Shabat: a história é o código para a Haggada de meu tio que
desapareceu! Esta informação, mostra que o assassino fez um
movimento em falso. E agora que sei como se escapou. Parece
que há uma balança na Esfera Celeste que começa agora a pesar
a meu favor. E, no entanto, antes ainda que as minhas
descobertas possam sequer começar a encher os meus pulmões com
o ar fresco da esperança, Farid conduz-me novamente ao
desespero. Depois de Lhe ter lido com as mãos o recado da
Senhora Tamara, ele observa:
- Temos pela frente um novo obstáculo. Quando chegou o
recado, fui à cave para ver se te encontrava e vi a passagem
secreta na parede. Bem sei o que estás a pensar. Mas o
assassino não saiu por ali.
- O quê?!
- Vai lá ver. Olha para o sangue. Vais ver que há marcas até
ao ponto em que a passagem estreita. Como se ele fosse a
apalpar a parede para achar o caminho. Mas as marcas acabam
quando se é obrigado a avançar agachado. O assassino não
conseguiu passar e voltou para a cave.
- Tens a certeza? - pergunto, respirando profundamente.
- Com o nascer do sol, podes verificar melhor o que estou a
dizer. À luz da candeia, os teus olhos não conseguem
distinguir o que eu vi. Mas é a verdade, não pode haver
engano.
Mais uma vez me ocorre que não foi um acaso que Deus me
tenha agraciado com Farid. Ele sabe que preciso da ajuda de um
dos Seus retratos mais talentosos.
- Mas porque haveria o assassino de voltar para a cave,
sabendo que tem uma porta por onde pode escapar? - perguntam
os meus gestos.
- Talvez tenha ouvido vozes nos balneários. Mais cristãos.
Ou então. talvez ele fosse demasiado grande ou desajeitado
para conseguir penetrar na passagem. Quase de certeza que
nunca tinha usado aquela saída antes e deve ter pensado que
cabia lá. Só depois descobriu.
As mãos de Farid descaem-Lhe para o lado. Faz-me um débil
sinal de que a sua diarreia piorou. Com pejo da minha boa
saúde, levo-o para fora. O ar da noite atinge-nos, seco e
gélido. A face de Farid contorce-se de dor, enquanto eu lhe
limpo o seu fraco traseiro. Para combater o meu medo, penso:
"Não só não sei como escapou o intruso, como tenho de combater
novamente pela vida de outrem", Medindo interiormente a vida
de Farid, vejo o Anjo da Morte, uma sombra com mil olhos
abertos, especado à ilharga da cama do meu amigo. Umas mãos
esqueléticas empunham uma espada com uma gota amarga suspensa
na ponta estendida. Assim que Farid põe os olhos neste ser
horrível diante dele, abre a boca aterrorizado e desenha o
grito de estentor de um mudo. Num ápice, o Anjo da Morte
enfia-Lhe dentro a sua oferta corrompida. E com aquela gota
Farid morre e empalidece e decompõe-se.
Não pode haver escapatória.
O corpo de meu amigo, como um boneco desconjuntado, repousa
sobre mim quando nos arrastamos para dentro.
- Farid, mas então onde raio se meteu o assassino quando eu
entrei de rompante? A porta estava fechada. Não estava ninguém
na cave. Juro! Ninguém!
Vendo-o a gesticular uma frase poética sobre a vontade de
Alá, agarro a candeia que pende da trave do tecto e enfio para
baixo. Tal como ele dissera, há gotas de sangue e pegadas no
chão e nas paredes do túnel e há dedadas, com marcas de cinco
dedos, nos sítios onde o fugitivo pôs as mãos à procura da
passagem. Assim que começa a ser preciso rastejar, vê-se um
emaranhado de manchas de sangue, revelando as marcas da malha
de um tecido, que devem ter sido impressas pelos joelhos
contra a pedra. No ponto mais apertado, uma outra marca parece
mostrar que uma mão, tentou desesperadamente tactear o caminho
para diante. Quando o túnel começa de novo a alargar-se, e eu
posso caminhar em pé, já não há nada. Nem marcas de passos,
nem dedadas com sangue.
O assassino voltara para trás. Ou desaparecera.

Capítulo XI

Farid apoia-se na parede para amparar os seus frágeis passos
ao descer para a cave. Aproxima-se de mim, baixa-se e fica
acocorado para evitar a dor que Lhe trespassa as entranhas.
- Agora que sabemos que o assassino não saiu pela porta
secreta, tenta lembrar-te da sequência dos teus movimentos
depois de teres descoberto o corpo de teu tio. Tudo!
Foi a magia das palavras desenhadas pelos gestos do meu
amigo que me dotaram de visão interior: depois de lhe ter
contado tudo, a solução apareceu-me naturalmente. É como se
desde sempre estivesse dentro de mim, escondida, enroscada
como um gato adormecido num canto ignorado: "A geniza!"
Farid assente como se lesse um versículo de sabedoria.
- O assassino deve ter-se escondido lá - dizem as suas mãos
- quando chamaste a tua família da porta. Quando irrompeste na
cave, estava ele metido no meio dos livros, confundido com a
escuridão. Depois, quando subiste para ir buscar os pregos e o
martelo, demoraste a afastar um gatuno e a observar a turba ao
fundo da rua. Como te sentias com vertigens, sentaste-te
durante uns momentos. Foi quanto bastou para ele se escapar
pela porta do quarto de tua mãe, que dá para a Rua da
Sinagoga.
- Meu Deus. Nem reparei. Quer dizer, nem me passou pela
cabeça ir ver, porque ao princípio pensei que tinham sido os
cristãos quem o matara e esses não sabiam da geniza.
- Vamos confirmar - propõe Farid -. Não podemos dar-nos ao
luxo de cometer qualquer erro.
Abrindo a tampa do esconderijo com a chave guardada atrás do
Espelho que Sangra, levanto os nossos manuscritos e cartas, e
também o saco de moedas. Dentro da cavidade assim esvaziada
vêem-se facilmente as marcas de sangue, que cobrem o fundo
como sombras castanhas de folhas caídas, com a textura de um
tecido gravada.
Quando me volto para Farid, dou-Lhe por sinais a minha
interpretação das manchas:
- O assassino estava deitado sobre o lado direito, com o
corpo dobrado em torno da pilha de manuscritos. Por isso é que
todas as manchas de sangue têm a marca das roupas.
As pernas estavam encolhidas junto ao peito e as pontas das
sandálias fizeram as nódoas na base do lado oriental. Tinha o
cotovelo contra a parede do lado norte, o que deixou aquela
marca do tecido do tamanho de uma pétala perto da borda de
cima. O braço direito, saído para fora, empunhava o cutelo de
shohet. Enquanto ali estava, esperando que eu saísse, deve ter
passado o gume algumas vezes na parede do lado sul, o que
deixou aquelas linhas de sangue finas no revestimento.
Farid faz um sinal de aprovação.
Para mim próPrio, murmuro:
- Diego!
- Diego, o quê? - pergunta o meu amigo, lendo os meus
lábios.
- Com o tamanho dele, não podia atravessar a passagem
estreita que dá para os balneários.
- Sim, mas mesmo a Frei Carlos não seria fácil.
- Talvez não. Mas repara, Diego disse que voltava cá esta
noite com um homem que queria vender a meu tio um manuscrito
hebraico. E se me tivesse dito isso só Para ganhar algum
tempo? Tenho de o encontrar. Talvez neste mesmo momento esteja
a tentar escapar-se. E prometo não me esquecer de teu pai. Vou
passar na mesquita secreta, dePois de ir à morada de Diego.
Quando volto a colocar os livros e as cartas na geniza,
Farid desliza até mim e toma-me pelo braço:
- Não devias aproximar-te do Rossio.
- Desço para a Mouraria pelos lados da Graça. Vai correr
tudo bem!
- Fala só português. - Aceno que sim e as suas mãos
insistem. - E leva a minha melhor adaga. Aquela de Bagdad que
pode partir em dois mesmo o mais fino pensamento de um Suei.
Vai buscá-la ao meu quarto.
- E tu com o que ficas? - pergunto.
- Com uma do meu Pai. Aquela comprida de Safe. Ele gostava
que...
Aceno compreensivamente, vendo os gestos de Farid caírem num
silêncio marcado pela mágoa. Olhamos um para o outro através
da distância da morte. Ambos sabemos que não demorará muito a
que as minhas mãos já não o possam tocar. Ele ter-se-á
despenhado, tal como aconteceu a Mardoqueu e a meu pai, nas
chamas negras das mãos de Duma, o guardião das almas do mundo
de lá. Farid leva as mãos ao ventre, o nosso sinal de terror,
e depois bate no peito com um punho enfraquecido: é um modo de
indicar que os seus diques espirituais estão a ceder e que não
pode continuar só.
Quando nos abraçamos, é como se ele me comunicasse o mesmo
brando sentimento de pétala de Mardoqueu. As suas costelas,
duras e frias, ondeiam-lhe a pele como se quisessem despontar.
Conduzo-o de volta ao quarto de minha mãe, ouço o aviso de meu
tio: "Berequias, não abandones os vivos por causa dos
mortos!", e volto-me para Farid:
- Vou procurar um doutor. A busca de Diego pode esperar. Se
te acontece...
- Doutores não! interrompe Farid -. Tudo o que os cristãos
sabem é fazer sangrias.
- Vou procurar um muçulmano.
- Onde? - leio nos seus gestos cépticos.
- Onde os houver. Vou onde for preciso.
Discutimos durante alguns instantes. Mas é só para nos
iludirmos: ambos sabemos que o Doutor Montesinhos era um dos
últimos que seguiam fielmente os ensinamentos de Avicena e de
Galeno. Quem iria eu agora encontrar capaz de se arriscar ao
contágio, para ver um pobre surdo tecelão de tapetes? Farid
afasta as minhas palavras com movimentos alados, e pede-me por
ar fresco. Arrastamo-nos pois novamente para o exterior e
sentamo-nos no fresco do pátio. Ele resmunga quando lhe lavo
os braços e as pernas com água. Não tem chagas nenhumas,
portanto peste não é. Está a ser sugado da sua vida.
- Vai procurar Diego! - diz subitamente, com um empurrão -.
Estás só a perder tempo comigo.
- Farid, fazes o que eu te disser? - perguntam as minhas
mãos.
Ele detém o meu pedido com uma onda de gestos de desânimo:
- Não tens o óleo da vida que possas deitar na minha candeia.
- A tua poesia não vem nada a propósito neste momento -
replico.
E como ele continua a protestar, levanto a mão contra ele, a
fingir que lhe bato. Ele sorri do absurdo. Deixando-me decair
para o inevitável, penso: É esta a última vez que o vejo
feliz, Fecho a geniza e ponho a chave de novo na bexiga de
enguia.
- Anda daí comigo! - ordeno a Farid.
- O que é que te passou pela cabeça? - pergunta.
- Caluda!
Na cozinha, faço um ovo cozido, ponho-Lhe sal e forço Farid
a comê-lo com chá de buxo e lúcia-lima. Fico ali durante
longos momentos, assistindo ao seu mastigar maquinal e aos
seus arquejos agonizantes. Dou-Lhe cinzas de carvão e mais
líquidos até ver a barriga distender-se. Seguindo as minhas
instruções, dobra as pernas contra o peito, enquanto eu lhe
dou um bom clister de uma decocção de linhaça em água de aveia
e outro de água de aveia com uma única gota de arsénico. Uma
vez assim limpo, Cinfa traz-nos da cave um incenso especial de
papoilas e cânfora, muito bom para adormecer. Farid espirra
quando o inala e eu arrasto-o para o sono com as fábulas de
Kalila e Duma que minha tia Ester me contava quando eu era
criança.
Depois de ter tirado de debaixo do colchão de Farid a sua
adaga de Bagdad, comecei a trepar no ar fresco da sexta noite
da Páscoa as ruelas íngremes de Alfama para encontrar Diego.
Mas, antes de chegar à morada, avistei um homem de estatura
gigantesca recortado na escuridão do outro lado da rua. Está
encostado à parede esbarrondada da oficina do sapateiro, usa
um chapéu de aba larga e uma capa escura que lhe esconde o
corpo até às botas. Tem pelo menos uma mão a mais da minha
altura, bem acima dos seis pés, uma altura que quase nunca se
vê entre portugueses. O cabelo escorrido cai-lhe sobre os
ombros. A mão direita empunha um chicote de couro cru. Só pode
ser o tal homem do Norte de que me falaram. Levanta a cabeça
subitamente e endireita-se assim que me avista. Trocamos um
olhar em que sinto que ele sabe quem sou. Mas nenhum de nós
faz qualquer movimento. Parece que mil perguntas me colam à
calçada: "estará ele aqui para matar Diego ou simplesmente à
espera que ele lhe pague o prometido pela morte de meu tio?
Que estará ele a pensar de mim?"
Não permaneço ali para saber as respostas. Essas, devem-me
vir do próprio Diego. Mas, naturalmente não deve estar em
casa, senão o homem do Norte não estaria ali tão
diligentemente à espera. Recuo e dirijo-me apressadamente para
a Mouraria, olhando de quando em vez por cima do ombro para
ter a certeza de não ser seguido.
Nas ruas nocturnas de Lisboa, escoam-se das janelas das
tabernas e dos bordéis uma luz crua alaranjada. Sempre que
ouço um ruído, o meu coração dá um salto, como que à procura
de um refúgio secreto. É aquela parte da noite em que todos os
sons e objectos parecem ter-se tornado em oráculos a anunciar
a morte.
A mesquita secreta que Samir costuma frequentar fica no
segundo andar de uma oficina de ferreiro, perto do antigo
bazar mourisco. A grande porta de madeira, gravada com um
motivo entrançado tem uma ferradura no meio a servir de
aldraba. Na calçada em baixo, vê-se um tentilhão morto, com
uma gota de sangue no bico. Depois de bater uma segunda vez,
na janela de cima despontou a luz de uma candeia.
- Quem é? - ouve-se o cicio sibilante de uma mulher.
- Pedro Zarco. Procuro Mestre Samir.
As portadas fecham-se com um estrondo. Instantes depois, um
homem num camisão, de compleição delgada, os olhos furtivos de
um asceta Suei, aparece numa fenda duvidosa da porta.
Alumiadas pela chama vacilante da candeia, as suas faces
surgem cavadas debaixo da meia lua dos seus maxilares.
- Procuro Mestre Samir - começo -. Ele costuma vir...
- Quem é vocemecê? - pergunta ele em português, com uma voz
profunda, sonora, como se cortada em granito.
- Um amigo. Pedro Zarco. Vivemos um em frente ao outro. Se
ele está cá, diga-lhe que...
- Não está cá - fala asperamente, como se ser visto comigo
representasse um risco.
- Sabe onde é que ele foi?
- Quando as fogueiras começaram, dispersámo-nos. Ele correu
para casa a ver Farid. Espere... - Fechou a porta e correu o
ferrolho. Ouvem-se as passadas a afastar-se, depois a voltar
apressadamente. Quando a porta se abre com um rangido,
estende-me umas sandálias pendentes. - Samir foi-se embora com
tanta pressa que se esqueceu delas - explica ele.
Ao perceber que o pai de Samir pode também estar morto,
decido-me a estugar o passo para ir ter com a Senhora Tamara,
à casa onde mora e onde vende os livros na Pequena Jerusalém,
a ver se descubro mais alguma coisa sobre a história do Egipto
que Lhe tentaram vender. Mas as minhas pancadas na porta não
recebem qualquer resposta. Os meus pés levam-me de volta a
casa. Sinto o meu corpo oco como uma caverna e o ar da noite
ressoa-me dentro do peito como dentro de um sino de chumbo.
Tenho de comer qualquer coisa e rezar a pedir a nezu, a
inesgotável resistência que a todo o momento emana de Deus
para a Esfera Terrena.
Chegado a casa, lavo o rosto, como um pouco de matza já
atrasada e duas maçãs, sentando-me depois à lareira a entoar
cânticos. Sobrepondo-se às minhas preces, a solidão e a
sonolência descem sobre mim e apanham-me na sua rede.
Subitamente, vejo diante de mim as mãos de meu tio,
gesticulando atrás da lareira numa linguagem que não atinjo. O
suor perla a minha fronte. Uma face inclina-se para mim.
Alongada pelas sombras dançantes, arde com uma luz alaranjada.
O meu coração dá um salto. Recuo e ponho-me em pé de um pulo.
- Berequias, trouxe comigo o homem de que te falei. - Ouço
Diego, que me surge à luz da lareira. Estende a mão: - Este é
Isaac de Ronda.
Respiro profundamente para me acalmar. Reparo que o
guarda-costas de Diego está à entrada da cozinha de costas
voltadas para nós. Isaac tem a mesma face descarnada, baça, de
tantos mercadores cristãos-novos. Vestido com uma túnica
escarlate, o cabelo que lhe dá pelo pescoço está coberto por
um boné púrpura de crista de onde emerge uma pluma voltada
para trás. Quando nos saudamos, ele fita-me ostensivamente nos
olhos, como a tentar convencer-me do seu poder ou a acenar-me
para a cama dele. Os camponeses têm muitas vezes este
comportamento, e apercebo-me que também ele só há pouco tempo
se deve ter metido em negócios com dinheiro.
A minha descida repentina do reino dos sonhos meio-acordados
deixaram-me embotado. Acendo mais duas candeias em cima da
mesa para ganhar tempo e recuperar da minha sonolência.
- Viste a minha mãe ou minha tia Ester? - pergunto a Diego,
ainda confuso quanto ao tempo e ao lugar onde me encontro.
- De certeza que estão a dormir - diz ele -. Não falta muito
para a madrugada, mas pensei que era mais seguro vir agora.
Pensei que podias ainda estar acordado.
A luz das candeias tinham dado às nossas sombras proporções
menos assustadoras, mais humanas. Convido os meus hóspedes a
sentarem-se.
- Um pouco de aguardente?
Aceitam a oferta. Isaac ferra os lábios na taça, deita a
cabeça para trás, emborca a bebida como se fosse água.
- Dores de dentes - diz ele -. Alivia o sofrimento.
- Tenho ali óleo de cravo, se prefere - digo eu.
- Obrigado, mas também trago algum comigo. - Mete a mão na
bolsa, tira um frasco e esfrega o líquido nas gengivas. Tem as
mãos finas, elegantes, com as unhas imaculadamente polidas.
Pelos vistos, parece que só as mãos é que tiveram tempo de se
adaptar à nova riqueza. Em breve, os seus lábios hão-de
aprender a acariciar o vinho no copo e a saudar, deixando a
sua vontade pairar como uma pena de faisão numa brisa suave.
- Diego, onde tens andado? - pergunto -. Andei à tua
procura.
- Estive com um amigo. Achei que era mais seguro do que ir
para casa.
- E era. O tal homem do Norte. Vi-o à porta de tua casa.
- Um homem do Norte? - pergunta Isaac num tom surpreendido.
- Loiro, alto, com um chicote de couro cru daqueles que
fazem em Castela - replico.
- É melhor não ir para casa - diz Diego com um encolher de
ombros - Talvez se canse de esperar por mim e se vá embora.
- Que quererá ele? - pergunta Isaac.
Diego ergue as mãos diante do rosto e estremece, fixa-me
directamente, os olhos com uma expressão de terror.
- Suspeitamos que me quer matar. Deve ser algum inimigo que
nós, amigos de Mestre Abraão, arranjámos sem dar por ela.
Isaac brinca nervosamente com o cabelo que lhe cai sobre as
orelhas.
- Fez-me pena saber da morte de seu tio - diz ele. Tem um
sotaque pronunciado, uma voz profunda, lenta e rolada, como
tantos dos seus conterrâneos. - Disseram-me que tem para
vender uma safira, talhada por Judas Levi.
"Não descansarei até o sangue do profeta Zacarias encontrar
repouso" diz, parafraseando um dos versos mais famosos do
poeta. E fita-me com um olhar de desafio, que parece procurar
compreender os meus próprios motivos.
- Meu tio estava interessado? - pergunto, pensando como
deveria considerar este Isaac de Ronda.
- Muito - responde Diego. - Disse que ia ver se arranjava o
dinheiro para me pagar nestes dias - acrescenta Isaac -. Mas
agora, eu...
- Como trouxe a safira para Portugal? - indago.
- Sempre cá esteve. Comprei-a a um amigo no Porto. Ia
queimá-la. Não ia permitir tal coisa, como bem compreende.
- Se não a compras, Berequias, acaba por ir parar às mãos de
alguém que tem a mesma compreensão da sua importância -
observa Diego.
- Então tu já não estás interessado? - pergunta Isaac a
Diego.
- Eu a bem dizer só estava interessado para ajudar Mestre
Abraão até ele arranjar dinheiro suficiente. Por mim, prefiro
manuscritos em latim. É muito seguro. Dou a vez ao Berequias.
- Havia mais alguém interessado no livro? - pergunto.
- Fiz vários contactos - replica Isaac -. Mas não vejo
ninguém disposto a fazer uma oferta.
- Nem sequer a Senhora Tamara, a livreira da Pequena
Jerusalém?
- Não quis saber dele para nada. Não está a comprar nada em
hebraico, no momento. Nem sequer traduções. Depois do que se
passou, compreende?
- Simão e outros - diz Diego - acha que podiam dar por ele
um preço elevado noutro sítio qualquer. Em Génova, ou
Constantinopla, ou Ragusa. Ou mesmo em Marrocos.
- Simão Eanes, o importador de tecidos? - pergunto.
- Sim - responde Diego.
O meu coração balança-me de um lado para outro. Andariam
eles à porfia, por causa dos livros? Seria isso? Nas minhas
entranhas debate-se um desejo perverso, que me sobe à boca
numa prece diabólica para que o culpado não seja cristão, e
assim não me seja roubado o prazer da vingança. Diego bate-me
no ombro e prossegue num tom melancólico:
- Custa a crer, todo este trabalho por manuscritos que ainda
há pouco podíamos encontrar nas nossas bibliotecas. A nossa
herança parece que está a cair em mãos privadas. Um dia, todos
os nossos escritos estarão nas mãos de fidalgos cristãos e
encerrados em cofres dourados ou em mostruários de...
- Estou disposto a vendê-lo barato - diz Isaac, alteando o
tom da voz como para me tentar -. Ou até a fazer uma troca. Já
me contentava com um candelabro de prata. Não quero perder
mais tempo, para voltar para
- Como compreende, não posso responder por nenhum acordo
verbal feito por meu tio - explico -. Precisamos de tudo o que
temos só para comer. Mas diga-me uma coisa, ele alguma vez lhe
falou em quem o ajudava a comprar e a levar de Portugal os
manuscritos?
- Vocemecê não sabe? - pergunta Isaac.
- Não. Meu tio não mo dizia, para o caso de o descobrirem.
Quanto menos sabemos, melhor, era a opinião dele.
Inesperadamente, Farid surge na cozinha.
- Não fazia ideia. - desculpa-se ele com as mãos.
- Não faz mal - respondo -. Senta-te connosco se te sentes
com forças.
Diego e Isaac levantam-se e fazem uma vénia a Farid. Ele
inclina a cabeça, deixa-se cair junto de mim e fica com a mão
no meu braço.
- O meu amigo é surdo - explico -. Mas pode ler nos nossos
lábios. Não há nada do que me dizem que ele não possa saber.
- Parece-me que ainda não falámos dos métodos de seu tio -
retoma Isaac. Levanta-se. O seu sorriso parece ensaiado -. E
se não está interessado em comprar o livro.
- Não.
- Nesse caso, parece-me que o nosso encontro chegou ao fim.
Obrigado pela aguardente.
Chegado à porta, aferra-me o braço. Num brando sussurro,
como quem procura induzir uma criança a adormecer, recita-me
os versos de um poema de Moisés Ben BEzerra: "A minha noite
está mergulhada num mar de escuridão silencioso e sem ondas,
um mar que não tem costa, nem porto para aqueles que viajam.
Não sei se a viagem é longa ou curta. Como o poderia saber um
homem oprimido pela mágoa?" E de modo que só eu o possa ouvir,
murmura: "Coragem!"
A rara cortesia deste estranho de quem eu duvidava deixa-me
agarrado à minha tristeza como um viúvo solitário. Assim que
Diego e Isaac se foram, levo Farid para a cama. Minha mãe
dorme na cama de meus tios, enrolada num novelo, com uma
respiração irregular. Das mãos caíra-lhe um boião rolhado.
Apanho-o das dobras do cobertor e deposito uma gota viscosa no
dedo. Tem o gosto amargo de um extracto de meimendro e
mandrágora. Para se libertar tanto das suas próprias portas
como das de Lisboa, minha mãe tinha provocado o seu sono
crepuscular Próximo do transe. Talvez seja melhor.
Na cave, deparo com tia Ester ainda sentada à escrivaninha
de meu tio, tal uma estátua, com Cinfa a tiritar a seus pés.
Trago de cima um cobertor para tapar a menina. Os seus olhos
revelam o abandono, o medo. Porém, ao tentar tocá-la afasta-se
com irritação. No meu quarto, sentado na cama, rezo pelo
regresso de Judas são e salvo antes de ousar encaminhar-me
novamente para a Pequena Jerusalém a ver se acordo a Senhora
Tamara. Mas antes que eu consiga convencer as pernas a
obedecer-me, o meu cântico é envolvido pelo sono e cai como
uma manta de lã sobre mim.
Acordo na cama. Cego a tudo o que me rodeia. A escuridão em
redor parece um esconderijo do mal. Sinto contra o meu flanco
um encosto tépido. Estremeço. É Cinfa, com o rosto velado pelo
cabelo. À medida que me recomponho, ela acorda.
- Onde vais? - rabuja ela.
- Vou falar com a Senhora Tamara.
- Não vás!
- Não há perigo - digo, acariciando-Lhe o rosto -. Não te
aflijas. - Ela senta-se, enfia a cabeça debaixo da minha
camisa, fazendo-me sentir o seu hálito quente, como costuma
fazer desde pequenina para se refugiar. - Volto pouco depois
de amanhecer. Lembras-te de quando eu te levava à loja da
Senhora Tamara para leres As Fábulas da Raposa enquanto eu
fazia as entregas da manhã?
Ela acena a cabeça contra o meu peito.
- Ainda havemos de voltar a fazer isso. Agora, enquanto
estou fora, olhas-me pelo Farid?
Ela tira a cabeça Para fora, pronta Para a tarefa, como eu
tinha pensado.
- E faço o quê? - pergunta.
- Dá-Lhe mais chá de buxo quando ele acordar. Está na
cantarinha azul da mãe. E dá-Lhe um ovo se ele puder comer. E
lava as mãos a seguir com sabão.
Cinfa acena pensativamente, põe-se em pé em cima do colchão.
Erguendo-se acima de mim, mostra-me uns olhos cientes, de
adulta, com o ar grave de minha mãe. Será que secretamente a
menina me odiará por estar assim a roubá-la à sua infância?
Lá fora, o alvorecer da quinta-feira ergue-se sobre nós. O
carro do Sol começou já a subir no céu. Quando atingir o
horizonte a ocidente, rogará à sétima noite de Páscoa que
proteja a humanidade com a sua descida abençoada. A caminho da
morada da Senhora Tamara, paro junto das lojas dos
cristãos-novos na Rua dos Douradores para ver se Passou alguém
a tentar vender as folhas de ouro ou o lápis-lazúli roubados.
Ao bater às portas, sou recebido por viúvas e órfãos recentes
que me beijam e apertam as suas mãos nas minhas, como se eu
tivesse o poder de convencer Deus a trazer-Lhes de volta os
seus entes queridos. Nestes últimos dias não Passou ninguém a
oferecer ouro ou lápis-lazúli, mas prometem manter-me a par,
quando me liberto dos seus braços para me desPedir.
Entorpecido, com medo de me ver arrastado para grandes
emoções, afasto-me em direcção ao nascente.
Quando toco a sineta da Senhora Tamara, ouço-a gritar: "A
tinta está quase seca!" É o seu modo antigo de dizer que não
demora. Ouve-se o correr de meia dúzia de ferrolhos. Uns olhos
pálidos a encimar grandes olheiras espreitam por uma frincha
da porta.
- Berequias!
A Senhora Tamara mostra-me um sorriso desdentado, desenfia a
última corrente e puxa-me para dentro, como um catraio que
quisesse arrastar o pai a ver um tesouro. A sua face mirrada é
emoldurada por uma cabeleira grisalha.
- Deixa-me ver-te bem! - exclama, recuando em passinhos de
rato e piscando os olhos para me fixar, enrugando as suas
pálpebras pesadas. O buço escuro sobre o lábio superior
eriça-se enquanto ela, ofegante, me diz: - Vê se vais ao
barbeiro e se dormes um pouco - e volta o rosto de lado para
um beijo.
- Acordei-a? - pergunto.
- A mim? Estás a brincar?! Uma velha como eu nunca dorme
profundamente - abana a mão amargamente -. É a maldição da
velhice, todas estas lembranças a chocalhar mantêm-nos longe
do sono!
- Então onde estava? Vim cá a meio da noite e ninguém
respondeu.
- Na porta ao lado - replica -. A dormir com uma vizinha.
Nos dias que correm, um judeu que ainda se arrisca a dormir
sozinho está a pôr um pé na cova!
Falamos da minha família. Suspira ao saber da morte de meu
tio. "Anda!" - convida ela, propondo-me o banco junto à
lareira. "Senta-te nesse mocho". Mostra-me um rosto severo,
mas distante como se procurasse conciliar esta morte com a
ideia da presença de Deus. Com mãos trementes, põe de lado um
tratado latino sobre flores que devia estar a ler. Conduz-me
ao meu lugar, acende duas velas nos braços de uma menora de
prata com sete braços. Manuscritos em diferentes estádios de
ruína alinham-se em estantes que se erguem até ao tecto, e
formam torres vacilantes no chão. Puxa uma cadeira para junto
de mim e senta-se com as mãos no regaço como que a espremer a
força que lhe falta para evitar as lágrimas. Tanto ela como a
sala tresandam a velino e ao cheiro particular que os livros
antigos têm, talvez por as janelas se manterem sempre fechadas
para evitar que se estraguem os seus livros gregos, romanos,
bizantinos, persas e europeus. Como eu adorava a oculta
estranheza desta loja quando era criança, como se ela
albergasse a minha herança.
- Não passava de uma criança - diz ela com uma energia
insistente.
- Quem? - pergunto.
- O catraio que veio cá vender-me a Haggada de teu tio.
- Tinha algum sotaque?
- Não, era de Lisboa.
- Moreno?
Inclina-se para mim, as queixadas a remoer. O cheiro intenso
de cardamomo paira em torno dela; está a mastigar sementes.
- De pele clara - diz -. Miúdo, magro. Com cabelos rebeldes.
Como cardos - roda em torno da sala como uma galinha, pega em
papel, num aparo de junco, num tinteiro, depositando-os à
minha frente -. Começa a desenhar, - Beri - diz ela, e
posta-se como um mestre da Tora atrás de mim, sobre o meu
ombro, enquanto me orienta o meu esboço: - "Não, não, o nariz
mais fino, as narinas como as hastes de uma lira, muito
elegantes, percebes? E os lábios mais cheios, como se
estivesse amuado. Mais curvos. mais forma." - Aperta-me o
músculo tenso entre o pescoço e os ombros sempre que apanho
qualquer pormenor e sussurra "perfeito!", como se desenhasse a
palavra em fio de seda. Algum tempo depois, retira a mão
satisfeita com o resultado.
- E as roupas? - pergunto.
- Pobres. Um pacóvio maltrapilho. O género de rapaz que anda
pelos cais a apregoar esparto. Disse-me que vinha vender a
Haggada para o amo. Dei-lhe um livro de fábulas para ele ver
enquanto eu a examinava. Mas o desgraçado não sabia ler. -
Franze as sobrancelhas como se não saber ler fosse um pecado
cristão demasiado grave para poder ser tolerado. Conduz-me à
porta com a sua mão na minha. - Desculpa, devia tê-la
comprado. Mas deu-me um rompante e desatei aos berros como um
papagaio! Sabes bem como eu sou! - Obriga-me a baixar-me para
ficar com o rosto perto do seu, e fala com uma voz
conspirativa - Berequias, depois disto tudo. Quando achas que
El-Rei D. Manuel ganha juízo e nos autoriza outra vez a ter
livros judeus?
- Nunca mais - respondo.
- Então vou ter de me dedicar também a desviá-los - conclui
ela num sussurro.
- Quando descobrir como meu tio o fazia, digo-Lhe.
Enrolo o desenho e meto-o na bolsa. Damos um beijo de
despedida. Já na rua, ao olhar os telhados fulvos que se
avistam à distância, ponho-me a imaginar quem poderia ser tão
ousado ou tolo para mandar um mocinho iletrado vender uma
Haggada roubada a uma livreira experiente da Pequena
Jerusalém. O murmúrio da voz de meu tio ergue-se de um
remoinho de poeira, ecoando o nome de Miguel Ribeiro, o nobre
para quem minha tia Ester tinha há pouco copiado um Livro dos
Salmos. Quando pergunto "Ele, porquê?", chega-me a resposta:
"Exactamente porque os actos de um fidalgo português não podem
ser postos em causa por um judeu".

Capítulo XII

AtraVeSSar a Rua Nova dEl-Rei é um inferno, com o fedor a
suor dos vendilhões e dos animais e das especiarias. Abro
caminho por entre a turba rumo à Rua dos Douradores e viro em
direcção ao solar de Miguel Ribeiro. No exterior perfilam-se
dois guardas de armadura, com as alabardas empunhadas por mãos
enluvadas. O mais baixo dos dois, um homem de ar doentio com
um lábio leporino, segue-me com um olhar suspeitoso. Planto-me
em frente dele e peço-lhe: "Vai dizer a teu amo que Pedro
Zarco lhe quer falar", Chamam um lacaio negro de cabeça rapada
para levar o recado lá dentro. Volta a trote. O guarda abre o
portão. Nos degraus da frontaria, um criado atarracado, de
cabelos oleosos, acobreados e uma testa suada cheia de
borbulhas corre para mim. Usa perneiras azuis demasiado
apertadas para as suas nádegas carnudas e o gibão de brocado
verde está rasgado na gola. Toma-me pelo braço, como que a
defender-me do perigo. De perto, apercebo-me de que o seu
pescoço gordo tem umas arranhadelas abertas e vermelhentas.
Estará atacado de sarna? Cheira a metal, como uma velha moeda.
Talvez ande a tomar pílulas de antimónio, um tratamento
receitado a torto e a direito pelos doutores cristãos feitos à
pressa.
- Para dentro. Para dentro! - sussurra, agitando vivamente
as mãos.
Introduz-me numa sala de espera abobadada, pintada com
frescos de deuses e deusas rosados num estilo florentino,
depois observa-me de cima a baixo com um ar extasiado, e olhos
maliciosos. Num murmúrio conspirativo, pergunta-me:
- Deus é realmente um boi?
- O quê?
- O deus dos judeus é um boi? - Forma uns cornos sobre a
cabeça com as mãos, fala como se eu não compreendesse o
português. - Sabe?... O macho da vaca... O marido da vaca...
Boi...
Já tinha ouvido falar de mestres de Coimbra que acreditavam
que tínhamos caudas preênseis, de bispos de Braga que clamavam
que usávamos sangue fresco de crianças cristãs nos nossos
rituais da Páscoa, de doutores do Porto que diziam que
tínhamos um odor idêntico ao da carne podre de baleia, o
foetor juduicus. Mas a crença de que rezávamos a um boi era
uma calúnia nova. Só algumas semanas depois compreendi a origem de tal desacerto: o criado tinha confundido a palavra
touro com Tora. Limitei-me a dizer-Lhe:
- Vai chamar o teu amo. Ele sabe quem eu sou.
Ele limpa a fronte com a manga e diz numa voz premente:
- Não sabe onde ele está? Ele disse que precisava de
encontrar Mestre Abraão Zarco. É o seu tio, não é?
- É.
- Então devia sabê-lo.
- Estou-Lhe a dizer que não - replico -. E não creio que
possa encontrar o meu tio. Morreu.
- Oh, meu Deus - diz, levando as mãos à cabeça.
- Que foi? - pergunto.
Ele olha-me implorante e sussurra:
- Dom Miguel não aparece desde domingo. Ele tinha falado no
nome de seu tio. Pensei que...
- Não o procuraram?
- E sair? Sair desta casa?! - o criado passeia na sala,
aperta as mãos juntas, cruza e descruza os braços.
- Quando foi a última vez que o viu? - pergunto.
- Oh, meu Deus. No domingo à tarde. Estavam a começar os
motins, Vieram cá uns homens à procura de marranos. Ele falou
com eles e depois foi para Benfica. Tem lá uns estábulos. Mas
desde então nem uma Palavra. Não me parece que lá tenha
chegado.
- Quem estava com ele?
- Ninguém. Mandei lá um homem. Mas ninguém o viu. - Começa
mexer no pescoço e desata a coçar com a ferocidade de um gato
uma cicatriz irritada. Baixa-se como se preparasse para
aliviar as tripas ali mesmo no assento da calças e continua a
coçar-se. - Se ele fosse judeu, ainda compreendia - resmunga
-. Mas ele está inocente! Completamente inocente!
Lembro-me do comentário de meu tio sobre a aliança de Dom
Miguel com o Senhor. Aparentemente, nem sequer o seu pessoal
sabe que ele é um judeu secreto.
- Vai para o diabo que te carregue, seu campónio ignorante!
- digo-Lhe voltando-me para sair.
O criado endireita-se, num pulo e agarra-me pelo braço.
Sacudo-o Furioso, os olhos saltam-Lhe das órbitas como um
peixe e lança-me com um silvo:
- Pois, tu és um deles! Até à ponta dos cornos!
- Não tenhas medo que não te vou mandar para o nosso deus
touro - digo-lhe com um riso escarninho.
Arqueia o dorso numa pose de comando, acima do seu nariz
achatado olha-me de baixo:
- Fora daqui, marrano! - grita numa voz arrogante.
Mas sinto-me acima do desagrado de qualquer mortal. Quando
lhe volto as costas, volta a chamar-me com uma voz
aterrorizada:
- Não te vais embora, pois não?!
Observo os seus olhos suplicantes. Está de novo agachado, a
coçar o pescoço, que agora começa a sangrar. Olho-o de uma
distância que, para minha surpresa, não me permite nenhuma
simpatia pela angústia de um cristão.

A estrada de Benfica contorna a pedreira de Campolide, onde
centenas de africanos de olhos amarelados extraem pedra de
encostas esventradas. Tinham-se formado duas classes de
escravos: os portadores, com cestos de vime atados às costas,
que gemiam e se arrastavam sob o carrego de pedras; e os
picadores, de ombros largos e músculos ágeis, que com as suas
mãos rosadas empunhavam os cabos dos alviões que a pouco e
pouco iam abatendo as colinas. Uma terceira classe vivia num
nível mais baixo: as lebres, uns rapazitos escravizados,
extremamente rápidos, que limpam os detritos e os retiram da
área de trabalho em cestos de junco.
No largo principal de Benfica, uma mulher de idade, de olhos
murchos e embrulhada numa mantilha negra, vende marmelada na
escadaria da Igreja de São Domingos.
- Sabe onde são os estábulos de Dom Miguel Ribeiro? -
pergunto-lhe.
- Nunca ouvi esse nome - replica.
- O ferreiro do sítio deve saber - digo eu -. Podia dizer-me
onde é que ele trabalha?
Ela aponta para o fundo de uma rua, para uma barraca coberta
de pó e cacareja:
- Então é o basco que você quer, é isso! - curva os ombros e
ri-se sozinha como se Lhe tivessem contado alguma indiscrição.
Um burro com um ar infeliz está preso à pega da porta da
barraca. As moscas zumbem numa nuvem em torno de uma ferida
assanhada no focinho do pobre animal. No interior, um gigante
de cor pálida com um cabelo negro espesso e braços como ramos
de carvalho está a dar ao fole, do tamanho de uma carruagem.
Como única indumentária, umas sandálias e um avental comprido
de couro, que deixa à mostra dos lados as suas pernas
possantes e mesmo as nádegas. A boca cilíndrica do fole brilha
incandescente quando entra na forja. O ar cheira a fumo e a
trabalho árduo. Dou uma tossidela para chamar a atenção do
ferreiro para Lhe perguntar: "Sabe quem é Dom Miguel Ribeiro?
Disseram-me que tem uns estábulos para aqui". Ele volta-se e
com um sotaque basco cerrado inquire: "Quem o quer saber?" O
encordoado de uma cicatriz percorre-lhe o rosto do lado
esquerdo desde a orelha, do queixo pendem-lhe gotículas de
suor, que, uma a uma, pingam para o chão.
- O meu nome é Pedro Zarco - digo -. Trago um recado de
Lisboa para ele. Da irmã dele.
Ele afasta-se e volta ao seu trabalho. Numa voz irritada,
responde:
- Se trabalha para a irmã dele, então deve saber onde é que
ele mora.
- Ela sofre de cataratas desde pequena e não me soube
descrever o caminho.
A minha dificuldade em mentir de modo convincente está
implícita no ar paciente e resignado com que ele baixa os
braços e limpa o suor das mãos no avental. Não é preciso ver
para saber o caminho para os estábulos do irmão -- diz ele.
- Oiça, ela veio de Coimbra depois dos motins e está aflita.
A única coisa que ela sabe é que o irmão está por aqui por
Benfica. Tenho de lhe mostrar a minha árvore genealógica só
para me responder? Ou bastará ver-me os dentes?
Ele solta uma boa gargalhada, mira-me de alto a baixo:
- Nunca Lhe disseram que é um rapaz bastante bem parecido? -
Afasta as pernas, inclina-se para trás e com a sua mão enorme
agarra as suas partes por baixo do avental. Enquanto se vai
fazendo estes tagatés, o seu olhar de lado revela claramente o
que Pretende. - Por um preço jeitoso, pode ser que Lho diga.
- Por um preço jeitoso posso eu comprar a informação a
outro.
- Tenho aqui um pássaro bem jeitoso - diz ele com um riso,
que deixa à mostra os restos de uns dentes acastanhados -.
Grande como um corvo. E se visse a maneira como ele beija as
faces traseiras! Acho que ia gostar, jovem amigo!
- Tenho um amigo que talvez gostasse. Mas eu não estou
interessado.
Ele desaperta o avental e atira-o Para o lado. Por baixo,
está completamente nu, todo suado, todo pêlos e músculos. O
seu membro viril desponta erecto do seu ventre, grande e
redondo como um rolo da massa.
- Podia ter-te sem a tua permissão - diz ele, como quem me
concede uma advertência. Os olhos brilham-Lhe com a antevisão
tentadora.
- E eu podia cortar-lha - digo, exibindo a adaga de Farid.
Ele ri-se, insinua-se para diante como um animal furtivo,
passa o dedo convidativamente ao longo da cicatriz da cara.
- Como sabes que não ias gostar, se nunca provaste? -
pergunta.
O meu coração começa a bater num código de medo, à medida
que recuo.
- Provei uma vez, com o tal meu amigo. Mas prefiro outro
género de relações. E faço muitíssima questão em ter o meu
traseiro numa única peça, se não se importa.
Não sorri, mas leva os dedos aos lábios e molha-os de cuspo.
Recuo para a porta aberta. Tentando seduzir-me com a sua
luxúria, começa a afagar o seu membro viril. Eu canto:
"Abençoado seja Aquele que me permitiu escapar dos sátiros", e
corro para fora. Olhando para trás, avisto-o ao lado do burro,
revelando ao pobre animal e a uma boa parte de Benfica as suas
partes íntimas.
De regresso ao largo principal, não consegui saber nem de um
vendedor de sabão nem de um cesteiro onde Dom Miguel Ribeiro
tinha os cavalos. "Ninguém se importa com o ferreiro andar
assim a exibir-se?" - pergunto-lhes, apontando para o fundo da
estrada poeirenta. "É bom para o negócio" - comenta o vendedor
de sabão -. "Vem gente de todo o lado para o ver. Todos dizem:
o ferreiro basco tem um falo que é maior que o de um cavalo!"
Um vendedor de carqueja junta-se à conversa e informa-me que
há vários estábulos no correr da estrada de Sintra. Dirijo-me
pois para lá, e, depois de uma enfiada de moitas de sumagre,
vejo surgir uma capela da Virgem Maria a abrir uma estrada
empoeirada para norte. Uma mulher toda entrapada de negro reza
de joelhos à imagem condescendente. A criança nazarena, nos
braços de Maria, tem um ar frágil e solitário. A suplicante
volta para mim um rosto delicado que revela a sua afabilidade:
"Santo António rezou aqui uma vez" - diz ela.
se fôssemos a somar tudo o que os cristãos afirmam sobre o seu
Santo António, havíamos de chegar rapidamente à conclusão que
ele cobriu com os seus joelhos um território mais vasto que o
percorrido pelos barcos de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e
Colombo todos juntos. Então é um lugar sagrado - replico numa
voz suave, benzendo-me. Diga-me, minha senhora, sabe onde é
que Dom Miguel Ribeiro terá os estábulos?"
- Acho que é mesmo ao fundo desta estrada - responde ela,
apontando para norte -. Para a esquerda aí a umas duzentas
jardas. Passa-se primeiro o ribeiro onde há anos se afogou o
filho do Melo durante as cheias, depois há aqueles gobos de
granito que o padre Vasco diz que eram um templo das bruxas
nos tempos antes de Ele nascer. É logo a seguir".
Benzo-me de novo e agradeço-lhe. Passo os sinais de que ela
falou. Chega-me um cheiro húmido e pútrido. Torna-se cada vez
mais insuportável, depois de passar a sombra nodosa de um
roble gigantesco onde gravaram a caveira de olhos vazios que
de costume se pinta nas casas dos leprosos. De súbito, uma
lebre passa disParada por entre os meus pés. Com os sentidos
concentrados no presente, tropeço numa roda de carroça no meio
da estrada. Num dos lados do caminho, um laranjal dá lugar a
um pasto e avisto finalmente os estábulos, seis arcadas
flanqueando uma casa de quinta caiada a branco e azul. No muro
baixo que bordeja a propriedade, uma cancela de madeira
franqueia a entrada e gira com um rangido quando a empurro. A
meio do caminho imundo, chamo em voz alta: "Dom Miguel! Sou o
sobrinho de Mestre Abraão! Venho por bem!", A minha voz parece
cortar perigosamente o ar fétido. Apenas o monótono rufo do
martelar de um pica-pau ao longe ousa insinuar-se no silêncio
reinante. Atravesso o campo seco fronteiro aos estábulos
lutando contra a vontade de vomitar, respirando o menos
profundamente possível. Todos os telheiros estão vazios, com
excepção de um, onde se encontra a fonte do fedor, um cavalo
de olhos arrancados comido por uma vaga fervilhante de vermes.
A porta da entrada da casa está fechada. Quando toco a
aldraba, chega até mim uma voz abafada. A minha mão desliza a
abrir a minha bolsa, acaricia o punho da adaga de Farid. A
porta abre-se e um homem descarnado, de nariz curvo, com uma
capa de linho áspero dá um passo para fora e aponta-me uma
besta ao coração.
- Cristão velho ou novo? - pergunta.
- Velho - respondo.
Surgem mais dois homens de dentro de casa. Braços agarram-me
por trás, uma dor lanceia-me o ombro.
- Fideputa! - cospe-me uma voz ao ouvido.
- Se a minha mãe fosse uma zonà, andava muito mais bem
vestido! -. replico, dizendo a palavra puta em hebraico.
- Como é que disseste? - diz o homem descarnado, baixando a
besta e aproximando-se.
As franjas azuis e brancas do seu xaile de orações
pendem-lhe sob a capa. "O seu tzitzit está-se a ver - digo -.
Assim não vai enganar muita gente".
- Não quero enganar ninguém - diz ele. - Jacob, deixa-o.
Uma vez livre, saudamo-nos um ao outro e trocamos nomes.
-Ando à procura de Dom Miguel Ribeiro - explico -. São estes
os estábulos dele?
- São - responde, apontando com o braço para a porta.
Lá dentro, um homem pouco mais velho que eu, de cabelo
espetado e uma barba de vários dias a sombrear-lhe a cara,
está sentado no chão ao fundo da entrada. Usa um gibão de
brocado azul aberto no pescoço, calças de montar de couro
dobradas na anca e umas botas alentejanas das mais grosseiras.
Uma delas sem tacão. Com uma aceno de saudação, levanta-se e
dirige-se para mim, manquejando ligeiramente por causa da bota
sem salto.
- Dom Miguel Ribeiro? - pergunto.
Faz um gesto de confirmação. Vou para me apresentar, mas o
guarda de nariz aquilino que empunhava a besta, e que agora se
encontra a meu lado, exclama:
- É o sobrinho de Mestre Abraão Zarco!
Dom Miguel abre os olhos desmesuradamente e pega-me nas
mãos. Sinto o seu toque gelado.
- Entra! - diz ele, a voz tremendo-lhe de impaciência.
Conduz-me para uma cozinha aquecida onde paira o cheiro de
carne grelhada e sentamo-nos os dois a uma mesa de granito
junto da lareira de brasas crepitantes.
- Onde está o teu tio? - inquire ele.
Quando lhe conto o que se passou, volta-se para a parede e
benze-se.
- Para que é que ele o foi visitar há pouco tempo? -
pergunto.
Mas Dom Miguel continua a desviar o olhar.
- Talvez seja a falta de sono, mas ando confuso - acabo por
dizer -. Sabe que é judeu? Ou pelo menos que meu tio assim o
considerava? Isso tinha alguma coisa a ver com a tal visita?
O fidalgo parece subitamente sobressaltado e pega num odre
de vinho de cima da lareira. Enche duas taças de barro e
mistura um pouco de água em ambas. Passa-me uma delas e diz:
- À tua saúde! - quase esvazia a taça de um só gole e
deixa-se cair pesadamente na cadeira -. Bebe! - convida-me ele
com um gesto da mão, citando seguidamente um poema hebraico
famoso -. Bebe ao longo do dia todo, até que o dia se
desvaneça e o sol banhe de ouro a sua prata - Vendo-me beber
um gole, observa: - "O vinho é ainda a única coisa que me
permite continuar. Já deve ter substituído todo o meu sangue
-. E respondendo ao meu olhar interrogativo, prossegue: - Não,
não acho que seja judeu. ainda não, mas estou a aprender. E de
facto essa era uma das razões para a visita de teu tio.
- Não percebo bem.
- Nem eu - ri-se ele numa risada isolada, irónica -. Para
termos a certeza tínhamos de perguntar outra vez ao teu tio. E
isso agora é impossível. Mas pelo que ele me disse, nasci em
Ciudad Real de pais judeus. - No ano de 1482. faz estalar os
dedos -. Foi como ganhei dois anos. Um milagre da sorte.
Disse-me o teu tio que em 1484 os meus pais foram queimados no
segundo auto-de-fé realizado em Ciudad Real - engole as
últimas gotas da sua taça, coça a barbicha do queixo -. Tinham
sido considerados negativos por se terem recusado a confessar
os nomes de outros judeus secretos. O teu tio, disse ele,
tinha tudo arranjado para me trazerem para Portugal às
escondidas. Parece que tinha andado a estudar com o meu pai,
conhecia bem os meus pais. Disse-me que a minha mãe o forçou a
jurar que eu seria educado como um verdadeiro cristão, e que
nunca me revelariam as minhas verdadeiras origens a não ser
que algum dia mais tarde se tornasse absolutamente essencial.
O teu tio disse-me que a atitude dele em relação a mim nessa
altura era "Uma vez que te vais tornar num deles, ao menos
que aproveites com isso o mais possível". Por isso ficou à
espera até saber de uns fidalgos que não tinham filhos, que
queriam um menino para lhes herdar os bens e que não punham
muitas perguntas a saber as razões da minha circuncisão. Só há
uma semana é que soube disto tudo, quando o teu tio foi a
minha casa para me informar que o "Livro de Salmos" que a tua
tia andava a copiar para mim estava quase pronto - Dom Miguel
serve-nos mais vinho - Ele Deu-me uma carta assinada por quem
me serviu de pai, como prova.
- Porque acha que meu tio, depois de tantos anos, só agora
lhe contou? - pergunto.
- Não sei. - Inclina-se para mim e fixa-me nos olhos como
se procurasse obter uma resposta tranquilizadora. Eu encolho
os ombros, incapaz de lhe responder. Arrota ruidosamente e
afasta o seu olhar. - Berequias, pensei muito nisto - diz ele
sem se voltar -. Achas que ele sabia que os cristãos iam
desatar a matar os judeus de Lisboa... que estava preocupado
pela minha segurança?
- Ele possuía poderes, mas eu...
Um calafrio serpenteia pela minha espinha acima, impondo
silêncio às minhas palavras. Dom Miguel levanta as mãos como a
evitar entrar no perigoso terreno da profecia.
- De qualquer modo, perdi a calma. Depois desse tempo todo,
descobrir aquilo... Agora gostaria de ter a possibilidade de
lhe pôr mais algumas perguntas. Não sei se estás a ver, quando
penso no caso, não duvido da palavra dele. Suponho que agora
nunca mais poderei saber nada sobre os meus verdadeiros pais.
É engraçado como é que a compreensão às vezes chega um pouco
tarde de mais - mais dois goles e a sua taça fica vazia mais
uma vez -. Anda - diz ele, levantando-se -. Estão ali umas
pessoas que gostava de te apresentar.
Observando os seus olhos ébrios, compreendo que meu tio
presenteou este jovem fidalgo com uma verdade terrível. Seria
a morte a sua punição por ter destruído uma ilusão?
- Mas antes, só umas perguntas - digo.
- Como queiras - diz, com uma vénia, como se fosse um
criado meu.
- Disse-me que ficou furioso quando ele lho disse - começo
eu.
- Fiquei. Tu não ficavas? - replica ele.
- Por agora, Dom Miguel, o que eu possa responder é
irrelevante. Onde estava no domingo quando começaram os
motins?
- Ah, estou a ver onde queres chegar - finge arrancar uma
flecha espetada no peito, e ri-se com vigor exagerado -.
Muito bem. Estava em casa. Depois, quando os dominicanos
começaram as fogueiras no Rossio, vim para aqui. Berequias,
acabavam de me dizer que era judeu. Se fosses tu, o...
- Quem veio consigo?
- Ninguém.
- Então, não há testemunhas que possam confirmar o que me
disse.
Dom Miguel sorri, endireita-se e desata os atilhos fortes da
braguilha de couro com a inépcia própria de quem tem o
estômago afogado em vinho. Põe à mostra o seu membro, levanta
a sua ponta circuncidada, como se me oferecesse uma rosa e
diz:
- Este pode servir de testemunha!
- Não é o bastante. Esse não fala.
Dom Miguel ri-se, um riso que lhe sobe das tripas. Rolo os
olhos com a tolice deste bêbado. Despreocupadamente, começa a
apertar o cordão da braguilha, os olhos piscos fixos nos dedos
embaraçados a cumprir a tarefa. Seguidamente, deixa-se cair na
cadeira com um grande suspiro, fita-me com uma expressão
ansiosa durante um longo momento, como se tentasse penetrar
nos meus pensamentos. Tudo neste fidalgo devasso me irritava.
O que mais me desagradava era ele não ter nenhuma ideia de
quem era realmente. Como disparado por uma flecha, ocorreu-me
um pensamento: "É este o homem a quem meu tio se referia
quando me disse para me precaver de um portador que não se
reconhecesse a si próprio de um dia para o outro." Dando um
pulo, gritei-lhe:
- O que o poderia impedir de matar meu tio com toda a
impunidade, sendo um nobre como é?
- Ouve, meu amigo - começa ele -. Achas que ia matar o
único homem que me poderia dizer a verdade sobre os meus pais?
Se pensas uma coisa dessas, és parvo!
- Meu tio era o único que sabia que era judeu... que o
podia provar! Bastava matá-lo e a sua vida secreta ficava a
salvo!
- Berequias, será preciso mostrar-te outra vez a minha
aliança com o Senhor? Além disso, havia outros que também
sabiam. Um rapaz que cresceu com criados... o povo vê. Não
falam nisso, mas vêem. De facto, a aliança é uma prova mais
certa que todos os arquivos reais - levanta-se, bate com o
punho na mesa -. Não matei o teu tio! Se tivesse sido eu,
então porque não te mataria agora a ti?
A isto, não tenho nada de jeito a contrapor.
- Anda daí! - diz ele -. Quero mostrar-te uma coisa.
Dom Miguel conduz-me a uma sala cheia de gente. Homens com
olheiras, mulheres e crianças que me dirigem acenos solenes de
saudação. Despontam sorrisos fugidios, que logo secam e se
desvanecem. O meu anfitrião diz-me num sussurro:

- Não tens nada a temer, somos todos cristãos-novos aqui -
e dirigindo-se a eles, anuncia: - Este é o Berequias, um
amigo da Judiaria Pequena.
Um homem moreno, de olhos amendoados, com uma barba
descuidada, salpicada de flocos de aveia, levanta-se e
pergunta:
- Conhece a Mira e a Luna Alvalade? Devem viver perto de
si.
- Conheço, mas não as vejo há algum tempo - replico.
- São minhas primas. Elas... Eu... - as palavras apagam-se
na sua garganta.
- Assim que voltar a Lisboa, vou ver como estão e mando-lhe
dizer por Dom Miguel.
- E o Doutor Montesinhos? - pergunta uma formosa mulher
com umxaile de renda castanho-avermelhada protegendo-lhe a
cabeça.
- Lamento dizê-lo, mas morreu.
Com vozes trementes, quase todos eles acabaram por reunir a
coragem para perguntar pelos seus amigos e familiares. Fui
dando as informações que possuo: e gravando na minha memória de
Tora os nomes, para tirar inculcas sobre ele quando
desembarcasse finalmente nas margens da vingança. Dom Miguel
toma-me pelos ombros e sussurra-me:
- São todos de Carnide, da Pontinha e das aldeias vizinhas.
Quando os motins estalaram, vieram para aqui à procura de
refúgio. Fiz saber em redor que não recusaria ninguém e armei
alguns dos homens assim que cá chegaram.
- E aquele cavalo nos estábulos? - quero eu saber.
- É para desencorajar os curiosos e os atrevidos - ri-se
ele -. Assim como a caveira no carvalho. - Volta a arrotar.
Bate no próprio peito. Estende a mão a mostrar os seus
hóspedes e abana a cabeça. Chega-se ao meu ouvido cicia-me: -
Não querem ir-se embora. Um destes dias, se calhar, vou ter de
os pôr a andar.
- E já acabou a mortandade em Lisboa? - pergunta
inesperadamente uma rapariga de ar vivo.
Por instantes, foi como se Deus a tivesse escolhido para me
pôr tal pergunta. a sala torna-se estranhamente silenciosa.
Era como se nos tivéssemos tornado numa congregação reunida à
espera de uma resposta do próprio Deus.
- Está razoavelmente segura - respondo. Bem sei que não é
esta a resposta que pretendem, mas é o que posso arranjar.
- O que é que razoavelmente quer dizer hoje em dia?! -
pergunta nuto irado o homem de barba hirsuta.
- Tão segura como o vai ser durante uns tempos - replico
-. Tão segura quanto o mundo o pode ser para os judeus até à
vinda do Messias.
Um murmúrio percorre a sala, como se agora tivesse dado a
resposta correcta. E então se a nossa fé na Sua vinda não for
mais que a esperança dos eternos náufragos?
Dom Miguel e eu instalamo-nos num tapete perto da lareira
enquanto os hóspedes voltam às conversas entre si.
- Se tivesse matado o teu tio - sussurra ele - achas que
me punha a salvar toda esta gente?
- Para expiar o pecado de ter matado seria capaz de salvar
todo o povo de Israel - replico.
Fecha os olhos com força, como quem procura ignorar o mundo.
Compreendo que o feri. Mas no estado em que me encontro a
angústia dos demais pouco significa para mim e qualquer que
seja a simpatia que ainda me palpita no coração não vai além
da minha voz.
- Meu tio escreveu-Lhe uma carta - digo secamente -.
Levei-Lha ao seu palácio na sexta-feira, mas tinha saído. Ele
disse-me para só a mostrar a si.
O meu anfitrião abre os olhos. Estão vermelhos e cansados.
- Ele disse-te o que lá estava escrito? - pergunta-me num
desencantado tom monocórdico.
- Trago a carta guardada na memória - respondo, e
repito-lha palavra por palavra.
Inexplicavelmente, assim que acabei ele soltou uma
gargalhada que Lhe saía das entranhas.
- O teu tio perguntava se eu estaria interessado em entrar
num negócio com ele - exclama. Fixa-me como se de repente a
minha presença o surpreendesse -. É verdade que és donairoso.
Seria difícil dar-te uma recusa. Era esperto, o teu tio. A
pergunta dele tinha alguma coisa a ver com encomendas. E com o
anjo Metraton referido na carta. E viagens a Génova, acho eu.
Algures na península itálica. Estou certo de ter respondido
que não, mas nem sequer me lembra o que ele me propôs. O meu
espírito corria entre o passado e o presente. Havia tantas
coisas que começavam a fazer sentido - agarra-me pelos ombros
-. Berequias, sabes como é quando a certa altura deixas de
traduzir uma língua estrangeira na tua cabeça e começas a
compreender as palavras sem teres de pensar? Era a mesma
coisa. De um momento para o outro compreendia a frieza dos
meus pais adoptivos, as suas reticências em viajar comigo, os
sussurros abafados atrás das portas fechadas assim que me
deitavam.
- Então quando os motins estalaram...
- Entrei em pânico. Quer dizer, mal tinha acabado de
descobrir que era judeu, começaram aquelas fogueiras no Rossio
a erguer-se sobre os telhados de Lisboa. Até parecia que as
tinham acendido por minha causa. Como são estranhos os nossos
sentimentos quando o passado deixa de nos pertencer... quando
mudou e a nossa história foi reescrita. Por isso é que me
escapei para cá.


- O meu tio falou em mais alguém quando falou consigo...
noutros nomes?
Dom Miguel abana a cabeça com exagerada energia.
- Ninguém? Um frade... outros judeus? Pense bem.
- Eu não estava muito atento. Queria que eu fizesse umas
viagens para ele. Com as minhas relações, não me é difícil
viajar. Para Lhe levar umas encomendas. Ah, era isso mesmo!
Servir de correio... era isso que ele pretendia de mim.
- Foi essa a palavra que ele usou, correio? - pergunto. -
- Foi.
- E o que é que ele queria que levasse?
- Anjos - responde Dom Miguel com um sorriso -. O teu tio
disse-me, lembro-me agora, que era para levar anjos para um
lugar seguro. Não faço ideia do que queria dizer com aquilo.
- Manuscritos judaicos - respondo -. Provavelmente não
queria dizer- -Lhe toda a verdade até descobrir como se sentia
por ser judeu.... se a sua fidelidade poderia falhar.
- Não percebo... anjos... livros?
- Os livros são criados por letras sagradas. Tal como o são
os anjos, há quem diga. Deste ponto de vista, através da
janela da Cabala, digamos, um anjo não é mais do que um livro
a que foi dada a forma celeste... a que foram dadas asas, para
usar uma metáfora corrente. Ao que parece, era a si que iria
caber a tarefa de salvar das chamas esses manuscritos alados.
Meu tio não queria chamá-lo de passador e usou uma palavra
mais agradável, correio. O que suponho que quer dizer...
As minhas palavras abriram-me o caminho para uma melhor
compreensão da traição que conduziu à morte de meu tio.
- O quê?! - pergunta Dom Miguel.
- O que quer dizer que havia alguém que lhe andava a
transportar os livros e que o andava a trair. O correio da
altura. Por isso é que meu tio tinha de arranjar um
substituto. E devia andar desesperado, para se ter arriscado a
revelar-lhe as suas origens judaicas. Se calhar o correio até
conhecia a localização da nossa cave e da geniza. Ou se calhar
trabalhava com um dos iniciados. Talvez tenham recrutado o
homem do Norte que tem andado a vigiar a casa de Diego
Gonçalves. - A expressão atónita de Dom Miguel revela-me que
devo tê-lo confundido com as minhas explicações. - É simples.
Meu tio precisava de si porque o correio que tinha andava a
traí-lo. Como, não faço ideia. Nem porquê. Mas o correio, o
passador, pode ser a chave.
- E quem era ele, até agora? - pergunta ele.
- Não sei. Mas hei-de descobri-lo! - levanto-me -. Agora
tenho de voltar para Lisboa. Se precisar de lhe falar,
encontro-o aqui ou vai voltar para o palácio?
- Fico aqui, que é onde faço falta - solta uma gargalhada
-. E é onde há vinho. Não é casher, mas o efeito é o mesmo.
Já na entrada, uma pergunta que hesitava em fazer retém-me
junto à porta.
- Será que teria salvo todos aqueles judeus se não tivesse
descoberto o meu verdadeiro passado? Era isso que querias
saber, não era? - diz Dom Miguel.
- É uma pergunta desleal. O seu comportamento foi louvável,
mais do que...
- Não, não tinha. Não é que aprovasse a mortandade, não
penses. Não sou uma pessoa cruel, e nunca considerei os judeus
diferentes de... ia a dizer de nós. É um caso de uma
descoberta um pouco tardia, não é? O que eu faria era ficar
sentadinho no meu palácio em Lisboa a ler à luz dos
candelabros. E quando os gritos atravessassem as janelas,
mandava muito simplesmente fechar as portadas.

De volta a Alfama, irritado com o suado cansaço que me
invadia e o sol ardente do entardecer de Lisboa, bato
inutilmente à porta de Frei Carlos, depois pergunto por ele na
Igreja de São Pedro. Mas ao que diz o sacristão, continua sem
se saber nada dele.
Quanto a Diego, não faço ideia por onde começar à procura
dele; com aquele estrangeiro possante à espreita à porta dele,
não estava em casa de certeza. E os únicos amigos que lhe
conhecia eram os membros do grupo de iniciados.
Incitado pela esperança de descobrir os nomes dos passadores
de meu tio ou pelo menos alguma referência menos clara a algum
conhecido, decido ver a correspondência de meu tio que tinha
descoberto no fundo da geniza. Mas perto da Igreja de São
Miguel, ao passar pela casa do Rabi Losa, as dúvidas sobre o
seu paradeiro no domingo empurraram-me em direcção à porta
dele. Em resposta às minhas pancadas enérgicas, a sua face
descarnada, tal uma gárgula, assomou à janela do segundo
andar.
- Que queres? - pergunta num tom desagradável.
É estranho, mas sinto-me tranquilizado ao ver aquele rosto e
ao ouvir a sua voz ríspida.
- Era só para lhe falar, caríssimo Rabi - respondo.
- Volta mas é para a tua maldita Cabala! - corta ele,
pensando talvez que estou a ser sarcástico.


Atira com as portadas. Bato à porta e, ao sentir defraudados
os meus bons sentimentos, grito: "Não me vou embora sem termos
falado!" Enquanto espero, uma fúria irracional começa a
revolver-me as entranhas. Desato aos pontapés à porta. "Vou
dar cabo de tudo! Juro que dou cabo desta danada porta!" A
raiva sobe-me à cabeça, queima-me o rosto e a testa. É como um
álcool a ferver que tivesse subido ao cimo do alambique de um
alquimista, e não posso parar com os pontapés. Era evidente
que qualquer que fosse a ocasional construção que me sustinha,
ela tinha subitamente derruído. Crianças maltrapilhas
rodeavam-me a observar a cena. Um carreteiro de lenha
andrajoso atira-me um olhar de desprezo e atreve-se a dizer:
"Eh, marrano, que andas por aqui a fazer?!" Abaixa-se para
pousar os cestos no chão. Os olhos, onde não se vêem nenhumas
pestanas, são baços, sugerem apenas uma mais que vaga
parecença com o entendimento humano. Quando se põe em pé,
cruza os braços magros sobre o peito e inclina-se para trás
numa pose de desdém. Devo ter enlouquecido porque avanço para
ele atrás do prateado da lâmina da minha adaga. "Vou-te cortar
essas orelhas!" - digo, com veneno a espirrar de cada uma das
minhas palavras. "É isso que ando por aqui a fazer!" Num
instante de lucidez, compreendo que estou a imitar Farid,
presente nos meus pensamentos. Será deste modo que nos
tornamos bravos, abraçando-nos a uma imagem da coragem e
tornando-a parte de nós?
Será que aprendemos passando para dentro de nós o que antes
nos era exterior?
O carreteiro continua com os olhos fitos em mim mas não diz
palavra. O medo e o ódio emprestam-Lhe um cheiro nauseabundo e
coram-Lhe as faces. Volto-me para a casa do rabino. Uma
criança cor de oliva com mechas de cabelo como uma cortina a
cair-lhe sobre a fronte olha-me e faz um aceno. Ocorre-me
nesse momento que é Didi Molcho, filho de um dos nossos
vizinhos. Abençoado seja Aquele que salva as crianças.
Aceno-Lhe em resposta. De repente, sobressaltado, aponta para
trás de mim. Volto-me, a tempo de me desviar do voo de uma
acha. Logo a seguir, uma outra avança já em direcção aos meus
olhos. Apanha-me a orelha de résvés. Caio. O sangue mancha-me
os dedos ao tocar o ferimento. O meu agressor deita-se para
trás e ri-se contente de satisfação. A boca é uma ruína escura
e bafienta. Cospe e tosse. Levanto-me, a fingir-me estonteado.
Quando o vejo rir-se, corro para diante, de corpo feito para
ele. É mais fraco do que eu pensava, Só pele e osso e cabelo.
Atirado ao chão, arqueja para respirar, depois grita: "Ah, cão
marrano."
De pé por cima dele em ar ameaçador, levo um dedo aos
lábios: "Ainda tens as orelhas. Se queres continuar com elas é
melhor ficares no silêncio de Deus."
Levanta-se, sacode as calças, corre os olhos pelos
circunstantes. "Não passa de um judeu" - diz ele, para salvar
a face -. "Para que me hei-de arreliar?"
Quando me volto para me ir embora, surpreendo o olhar de
Didi. Ele compreende que me deve fazer sinal se o carreteiro
de lenha se aproximar. Quando chego junto dele, acena a dizer
que está tudo bem. "Já se foi embora?" pergunto. - "Já lá vai
ao fundo da rua. Mas olha uma coisa, Beri, o Rabino Losa
pôs-se a andar enquanto andavas à porrada. Saiu de casa a
correr.

Ao chegar a casa, avisto minha mãe a varrer as lajes do
pátio. Não me pergunta onde estive. "Só porcaria por todo o
lado!" - exclama, em resposta ao meu olhar interrogativo.
"Reza está à lareira a cozinhar ovos com bacalhau."
- Por acaso deste uma olhadela ao Farid? - pergunto.
- Ainda está na cama da mãe. Ah, olha o que está em cima da
mesa - acrescenta -. É uma coisa que Mestre Salomão te
trouxe.
Salomão, o mohel que descobri quando se escondia na micva,
tinha-me deixado uma enorme tradução latina dos comentários de
Averroes sobre Aristóteles, "De Anima", talvez como
agradecimento por o ter libertado dos balneários.
"Quando é que ele passou por cá?," - pergunto.
- Não há muito tempo.
- Ele disse porque é que deixou isto?
Reza esboça um ligeiro sorriso: "Um presente para o meu
pequeno Shalaat Chalom, foi o que ele disse." Levo o livro
para o meu quarto e atiro-o para cima da cama. Através da
janela interior, vejo Cinfa a esfregar o chão da loja:
lança-me um olhar cansado quando entro.
- Dei água ao Farid durante a noite, como tu me pediste -
diz ela num tom seco -. E comeu dois ovos que eu cozinhei.
- Obrigado. És muito bondosa. E tu como estás?
- Bem. Porque não ficas por casa durante uns tempos? Come
alguma coisa.
- Ouve, vou lá abaixo à cave. Podes vir comigo se quiseres.
Mas depois vou ter de sair outra vez.
- Para descobrir quem matou o tio? - pergunta.
- Quem é que to disse?
- Beri, não sou estúpida nenhuma. Ouço as conversas e sei o
que...
Uma pancada na porta suspende a explicação. Sem esperar pela
nossa resposta, a Senhora Faiam, a vizinha da frente, da Rua
da Sinagoga, precipita-se para dentro. Traz o vestido preto
rasgado na gola e a face apresenta o arco de um arranhão que
vai até ao lábio.
- Os cristãos-velhos?! - grito, correndo para ela,
pensando que a tinham atacado.
- Não, não - diz ela - nada disso -. Agarra a minha mão. Os
olhos baços estão vermelhos a toda a volta, de insónia, e com
olheiras. - Vi-te de minha casa - continua ela -. Lamento o
que aconteceu a Mestre Abraão. - Quando ela colhe a minha mão
para a levar aos lábios e lhe dar um beijo afectuoso, sinto o
odor da ansiedade. - Beri, precisamos de ti - diz ela -. Podes
vir a minha casa? - E para que Cinfa não possa ouvir, puxa-me
para junto de si e sussurra-me ao ouvido: - Traz talismãs. A
minha Gemila está possessa por um ibbur e agora não a larga
nem por nada - agarra-me a mão -. E mais, Beri, o
ibbur sabe quem é que matou o teu tio!

Capítulo XIII

Na cave, retiro do armário do material tudo o que me era
necessário para exorcisar um ibbur e dirijo-me a casa da
senhora Faiam. Gemila, a sua enteada, está sentada, atada com
cordas a um banco na cozinha. Tem as mãos manietadas, respira
às golfadas, ávida de ar. Como descrever uma vítima de
possessão? Já por duas vezes me tinha sido dado presenciar os
sintomas: a pele branca como um pergaminho empapado, os olhos
atormentados, os lábios e as narinas debruados a crostas de
sangue. O caso de Gemila não é diferente, ou talvez seja até
pior, pois cedeu já uma boa parte do seu envoltório humano,
começando a tomar a forma do demónio. As madeixas cor de avelã
estão encrostadas de excrementos, que se colam também ao rosto
e ao pescoço. O mindinho da mão esquerda, partido, estica-se
para o lado num ângulo impossível. A túnica branca solta, com
nódoas por toda a parte, mais parece ter andado a nadar com
ela numa poça de lama e sangue. "Um ser do Outro Lado
insinuou-se na alma dela" - penso, e o meu primeiro impulso é
fugir dali. Mas meu tio ensinou-me que o ibbur não passa de
uma metáfora, muito poderosa, é certo, mas que não chega a
constituir um desafio para um cabalista, mesmo principiante. E
se este demónio sabe realmente quem matou o meu mestre...
Inesperadamente, Gemila deita a cabeça para trás como se
fosse demasiado pesada para a poder dominar. Quando me fita,
os olhos perdem o ar aterrorizado e apenas denotam a
contemplativa profundidade da visão, fixando-se nas tranças de
fumo do incenso que sobe do turíbulo.
Bento, marido de Gemila, toca-me no ombro e exibe um pálido
sorriso como quem pede socorro. Tem o cabelo escuro
rigidamente atado atrás com uma fita azul e o rosto semeado
dos pêlos intonsos da barba de uma semana. A fronte e as mãos,
calças e camisa, tudo revela os vestígios enegrecidos do suor
e da gordura da tosquia. Ganha a vida como tosquiador
ambulante e deve ter conseguido voltar a salvo para Lisboa
para vir encontrar a mulher neste estado.
Belo, o cão deles, que tem apenas três patas, ligado a
Gemila por uma fidelidade veemente, recua até à porta do
quarto e fita-a com os olhos assustados.
- Sente-se bem? - pergunto a Gemila, em português.
É uma pergunta estúpida, tenho de reconhecer, que apenas
recebe o silêncio dela como resposta. Uns olhos gélidos como
obsidiana resistem à minha insistência.
Levanto-Lhe as mãos atadas. O pulso palpita descompassado,
como se os seus humores corressem em todas as direcções.
Carrega o sobrolho e fita- -me desgostada ao sentir-se tocada.
Respira de novo em largos haustos. Encolhendo-se de medo,
grita em hebraico: "É um sino que vai a cair dentro do meu
peito!" Os olhos rolam em alvo até se fixarem gelidamente em
mim.
- É como se andasse de ricochete entre o nosso mundo e a
esfera demoníaca - sussurra a senhora Faiam. E, perante o meu
assentimento, acrescenta: - Já percebemos que o ibbur não
fala português, só hebraico.
- Quando começaram estas dores? - pergunto a Gemila na
língua sagrada.
O peito começa a arfar, depois acalma-se.
- Não são dores; este barco é pequeno, mas adequado -
ouve-se uma voz, mas não a de Gemila. É um som monótono, vazio
de qualquer calor. O hebraico tem um sotaque castelhano.
- Quem és tu? -pergunto.
- O Maimon Branco de Duas Bocas.
Afasto momentaneamente o olhar para recuperar energias; o
que tenho pela frente não é um comum ibbur, mas um demónio.
- Porquê de duas bocas? - pergunto.
- Uma para devorar os filhos dos Anusim, os convertidos
forçados. Feita de sangue. Com agulhas por dentes.
Mordendo o ar para respirar, subitamente lança-me um cuspo
vermelho. A senhora Faiam sobressalta-se. Ao mesmo tempo que
limpo o Pescoço, Gemila abre a boca. Vêem-se-lhe os dentes
destroçados cobertos de sangue, enquanto ela se ri.
- Deus lhe perdoe - geme a senhora Faiam -. Esteve a
comer vidro pouco antes de eu te ir chamar. Ainda tentei
detê-la, mas o ibbur só se alimenta de minerais. É um...
Suspendo a cascata de palavras da senhora e volto-me para
Gemila.
- Porque vieste? - pergunto.
- Zedec separou-se de Rahamin.
Este demónio conhece a Cabala! O que ele diz alude ao
rompimento entre a justiça fêmea e a compaixão macho que deu
origem ao reino do mal na nossa era.
- Trago comigo Rahamin - digo -. Juntos, Rahamin e eu
vamos casar esta mulher.
- Poderás entrar e montar-me, mas não conseguirás emergir!
- adverte o demónio.
É um jogo de palavras entre a condição de Gemila e o coche
da visão mística; poucos dos que para ele sobem conseguem
voltar ilesos. Pensando num sábio judeu do século II que
regressou a salvo ao nosso mundo depois da viagem no coche,
digo: "Venho em paz, como o Rabi Akiva." Passo o dedo médio
por cima da rapariga e invoco o poder de Moisés. Ela recua.
Com o desafio a sustentar-Lhe a voz, o demónio dispara: - Nem
sou amalecita nem víbora nenhuma! E Moisés está morto!
- É sempre Páscoa, a festa da Passagem - replico -. Mesmo
no momento em que falamos, Moisés separa as águas do mar
Vermelho.
- Então, também ele em breve estará no outro lado e não te
poderá ajudar.
- Recusas-te então a deixar que a mulher conduza o seu
próprio barco? - pergunto.
- Ela deixou-me entrar, e eu hei-de ficar com ela e dar-Lhe
a consolação que o teu Deus Lhe recusou. Senão seria um
hóspede ingrato, não achas?
- Como queiras - volto-me então para Bento -. Vou
precisar de três coisas: água fresca do Tejo, enche a maior
tina ou caldeiro que encontrares; uma coisa onde caiba a
Gemila. Nós temos uma, se não...
- Também há cá uma! Que mais?
- Uma solha. Traz-me a mais pequena que arranjares. E por
amor de Deus trá-la viva. E depois vai ter com a Cinfa e
diz-lhe que te mostre onde está a nossa tinta mágica. Traz-ma
e deita um pouco numa bandeja.
- Que vamos fazer? - pergunta a senhora Faiam.
- Tudo o que é impuro e sujo fortalece o Outro Lado. Está
escrito no Zohar. E o demónio sabe-o. Temos de purificar a
Gemila.
- Podes até aparar-me as unhas, não te vale de nada! -
sibila o ibbur - O Shabat é só mais um crepúsculo para mim, e
tu não passas de uma sombra a tentar deter o fogo.
- E a solha? - sussurra a senhora Faiam, para que o
demónio não a ouça.
- Os peixes são imunes aos semelhantes de Maimon -
respondo -. Serve-nos de ajuda neste combate.
Depois de Bento sair, ensino a senhora Faiam a cantar o
salmo noventa e um para prepararmos Gemila. Enquanto me
escuta, agarra o incensório com ambas as mãos.
- Tira-me daqui esse fedor, cabra de merda! - grita
repentinamente o demónio -. E ficas já a saber, Berequias
Zarco, se tentas arrancar-me de minha casa nunca mais hás-de
encontrar o assassino de teu tio!
As palavras da criatura do mal deixam-me sem palavras. Fixo
os olhos escuros de Gemila para entrar em comunicação. A
cabeça gira-lhe num círculo lento, como se atacada de um sono
irresistível. Ao endireitar-se, é sacudida por um riso que Lhe
sai das entranhas.
- Então, viste o assassino?! - pergunto.
- Vi! Mas se levantas de novo contra mim o dedo de Moisés,
hei-de agarrar-me ao segredo com tanta força como agora a esta
mulher.
- E dizes-me quem foi que matou se te deixar em paz? -
pergunto.
- Digo.
- Sei lá se me posso fiar em ti.
- Maimon não mente - diz ele -. Ousei mesmo dizer a
verdade ao teu Senhor. Não o temo. Nada tenho a perder. Só os
judeus como esta barregã pecadora precisam de mentir ao seu
Senhor!
- Vais dar ouvidos a um ibbur, Berequias? - diz a senhora
Faiam, pegando-me no braço.
- Mas ele sabe! - grito -. Ele sabe quem foi!
- Desata-me! - pede o demónio.
Liberto-me do aperto febril da senhora Faiam. Com os punhos
erguidos à altura do rosto, ela grita:
- Será que servirás a Samael, o Diabo, para vingar o teu
tio?!
A minha confissão aperta-me a garganta: É verdade! Faria
tudo para o descobrir! Tudo!
Então, que será que me retém? A própria Gemila? Põe-se em pé
com um grunhido, o pescoço esticado, levantando o banco a que
está atada. Quando o deixa cair com grande ruído, contorce-se
para se livrar dos liames como se empalada por uma espada em
brasa. Morde o ar ofegante. Quando a maré dentro de si começa
a baixar, fita-me com os seus olhos impenetráveis.
"Desata-me!,- pede.
Volto-me ao ouvir ladridos. Belo arranha desesperadamente a
porta que dá para o pátio com a sua única pata dianteira.
A voz de meu tio ressoa dentro de mim: "Não abandones os
vivos pelos mortos!", As suas mãos agarram o meu ombro como a
voltar-me para o demónio. Começo a entoar o salmo noventa e
um: "Ele te há-de proteger, debaixo das suas asas encontrarás
refúgio. Não temas a armadilha do caçador à noite, nem a seta
que voa durante o dia; nem a peste que alastra nas trevas ou o
flagelo que assola ao meio dia..."
- Nunca mais descobrirás o assassino! - grita Maimon. -
Nunca!
A senhora Faiam secunda-me e as pregas das nossas vozes
distintas são reunidas pela roca do salmo. Cantamos juntos:
"Verás o castigo dos ímpios.
O Senhor é o teu único refúgio. Nenhum mal te acontecerá, a
epidemia não tocará a tua tenda. Pois Ele ordenou aos Seus
anjos que te protejam por onde quer que vás..."
Para além das minhas palavras, afasto-me interiormente do
demónio, ascendo os degraus da oração silenciosa. Ao chegar ao
topo, a um patamar refulgente de vibração interior, suportado
pelo arco do meu peito, levanto novamente o dedo por cima de
Gemila. Ela olha em redor com os olhos dardejantes, luta com
as cordas que a prendem, murmura obscenidades em hebraico,
guincha.
Ora solta gargalhadas, ora me fita com um sorriso de
encantadora sedução rasgado pela sua língua vibrante. Mas
vejo-a ao longe, abaixo, enredada na melodia do salmo que
agora confio à senhora Faiam. Da minha garganta erguem-se os
nomes secretos de Deus, fluindo fora e dentro das minhas
narinas ao mesmo tempo que combino a respiração com o ritmo
das palavras. A luz e as trevas confundem-se, separando-se
depois num imenso alívio. Acende-se o mundo como que por uma
chama negra. O tempo desaparece na distância e, no elevado
estado em que me encontro, vejo que é o medo do abandono que
está na origem do riso de Gemila. Subindo ainda mais alto na
melodia alada do salmo, estendo as mãos para lhe acariciar a
face. Dor. Uma garra do mal. Vento gélido. Sangue correndo- me
da mão. Guinchos. A senhora Faiam limpa-me.
- O demónio mordeu-te! - grita ela.
Afasto-a com um gesto, retomo o cântico até o quarto se
assombrear e Mai- mon e eu ficarmos de olhos fitos um no outro
através de um espaço carregado que respira vagarosamente.
Bento aproxima-se do meu corpo, toca-o no ombro. "O banho está
pronto," - diz ele.
Gemila defende-se como um animal quando a despimos. Volto-me
para o quarto onde se encontra Menachim, o filhito de Gemila,
sentado, abraçado a Belo, a chorar. "Tens de sair daqui!," -
digo-Lhe. Ele ergue-se de um salto, passa por nós a correr
seguido pelo cão. Saem ambos disparados para fora de casa.
A água do rio está límpida e frígida. Os guinchos de Gemila
cortam o ar. Fecha os punhos, os tendões do pescoço
retesam-se. Os braços gesticulam libertos das cordas, apanham
a senhora Faiam que se estatela no chão. A face de Gemila
contorce-se de uma alegria diabólica. Da sua boca escorre
sangue, que mancha de fiapos róseos a água agitada. A rapariga
contorce-se quando a seguramos, todos os músculos concentrados
na fuga.
Encharcado de água glacial, mas aquecido pela oração
interior, continuo os cânticos enquanto Bento segura a mulher
mergulhada na tina até que o frio e a falta de ar Lhe embotam
o espírito de luta e ela fica a bater os dentes. Mantenho o
fumo do incenso sob o seu rosto. Os lábios dela começam a
ficar turvos e os olhos faíscam. Tiramo-la da água. A senhora
Faiam enxuga-lhe o cabelo com uma toalha, enquanto Lhe
sussurra palavras tranquilizadoras. Bento beija-Lhe as mãos.
- Retirem-se, por favor - digo.
Retiro o peixe do jarro onde está, com uma prece do Bahir.
Mergulho-o a estrebuchar na tinta mágica. Gemila está a
tiritar sentada numa cadeira. Pego na solha que se debate,
tinta de vermelho, e encosto-a à linha da vida na sua testa.
Gemila estremece como se a queimassem. Rapidamente, esfrego o
peixe pelos seus ombros e pelo peito, pelo abdómen, pelas
partes e pelos pés, até cobrir de tinta cada um dos dez
sefzrot, os pontos essenciais. Depois do peixe se ter embebido
das suas essências simbólicas, atiro-o para o chão. Enquanto

ele se agita nos tijolos, fecho os olhos e entoo as palavras
mágicas de Josué: "Sol, detém-te sobre Gabaon, e tu, ó Lua,
pára sobre o vale de Aialon." Com os olhos fechados, giro as
pupilas até começar a ver as cores interiores, respiro
sacudindo o ar para dentro e para fora até o sopro das asas de
Metraton me fazer revolutear. Quando abro os olhos, as guelras
da solha pulsam como um fole. Meto-a de novo no jarro de água;
em troca da sua vida, o peixe escreveu uma mensagem na
tijoleira, que eu leio o mais depressa que me é possível. Numa
imagem fugaz da escrita arábica, decifro a palavra tair,
pássaro. Neste caso, é uma referência velada à abertura por
onde o demónio poderá ser extraído.
Chegam-me de trás os sons de passos. Frei Carlos aparece
junto de mim. Acabado de descer do topo da montanha no vento
interior das preces e dos cânticos, parece-me natural vê-lo
aqui. Levo o dedo aos lábios. Os seus olhos requerem um
parecer. Com um aceno confirmo a minha elevação. Ele volta-se
para Gemila, ergue o dedo médio por cima dela e começa a
entoar o nosso salmo na sua voz imperativa.
Com o sangue da ponta do meu dedo, gravo ao longo da linha
do Destino na testa da moça o nome de Deus, Elohim, na escrita
dos anjos, ketav einayim, numa versão que aprendi com meu tio.
A cabeça cai-Lhe para trás, como se o pescoço tivesse
murchado, ficando com os olhos em alvo. Antes que ela
adormeça, seguro-Lhe o nariz entre o polegar e o indicador.
"Ordeno-te - grito - em nome do Deus de Israel que saias
deste corpo e o libertes!" Em aramaico, grito a sequência dos
nomes divinos.
E arranco o demónio do seu corpo. Ela guincha. Jorra-lhe
sangue das narinas. Tomba para mim, com a respiração opressa.
Limpo-lhe o rosto com a manga. Estás livre" - murmuro -. O
demónio já se foi.", Tenta falar, mas cai inconsciente.
Frei Carlos e eu ficamos de vigília, juntamente com a
senhora Faiam e Bento. O nariz de Gemila secou. Esfregámo-la
com água quente e sabão. O marido carregou-a para a cama como
a um recém-nascido. O pulso tornou-se sereno e regular e a cor
voltou ao seu rosto. Menachim, o filho dela, ajoelha-se a seu
lado e afaga-Lhe o cabelo. O monte de cobertores que respira
suavemente a seus pés é Belo que se enroscou debaixo da
coberta. Frei Carlos está sentado numa cadeira a rezar em voz
baixa. Quando me é possível enfrentar a possibilidade de outra
morte, pergunto-lhe num sussurro: "E Judas?", Abana a cabeça,
o rosto contorce-se num esgar.
-Não sei onde está. Assim que ela acordar, explico-te onde
é que o vi pela última vez.
Fecha os olhos e as lágrimas assomam-Lhe aos olhos e
pendem-lhe das pestanas. O desaparecimento do meu irmãozito e
as palavras de tentação do demónio assombram-me com um
calafrio gelado. Sento-me no chão no canto oriental do quarto,
entoando a Tora como se fosse um mapa capaz de guiar Gemila e
a mim próprio de regresso a Deus. Pouco depois, Frei Carlos
abre as portadas de uma janela a ocidente. Uma luz pálida
ilumina o céu. O sol, desaparecendo no horizonte, parece
procurar um esconderijo para sempre.
É já perto da meia-noite quando Gemila desperta. Senta-se,
fita com uma complacência maternal o filho Menachim que dorme
a seu lado. Estremece quando me vê.
- Beri, que estás aqui a fazer? - pergunta.
- Não te lembras? - pergunto eu.
- Não. Que... que é que queres dizer?
Sinto como que um eclipse a cobrir o meu coração; a
informação do demónio sobre a pessoa do assassino de meu tio
esfumou-se.
- Foi um sonho do Outro Lado, minha querida - diz a
senhora Faiam, que se precipitou para a cama e acaricia as
faces de Gemila -. Estavas com um pesadelo e eu pedi ao Beri
que viesse ver-te.
- Pois é - diz ela, evocando com um olhar vago alguns
fragmentos esfumados -. Foi um sonho.
- Agora já passou - diz Bento, comprimindo os lábios
contra as mãos da esposa.
- Mas... mas no meu sonho aparecias tu - diz ela,
voltando-se confusa para mim -. Eu ia arrastada por um rio de
sangue abaixo. Como o Nilo quando Moisés o tocou com... E
estava frio... tão frio. - Fala com cuidado, como se recuasse
passo a passo para o pesadelo. - E tu e o teu tio estavam na
margem a chamar por mim. Mas ambos vocês eram aves... íbis. E
então começaram a grasnar qualquer coisa com força. E a bater
as asas. Eu fui apanhada pela corrente e batia nos rochedos. E
então, também eu, tornei-me num íbis. Voei para a margem, para
os teus braços. - Fica de olhar vago. Encolhe os ombros, e
faz-me um sorriso de escusa. - Acabou. É tudo de que me
lembro.
- O mais importante é que já passou - digo.
- Nunca mais te pago isto - diz a senhora Faiam,
beijando-me as mãos.
- Já estou pago - digo. Mas as minhas palavras são falsas
e voltam-me como um eco vão. A caverna da morte de meu tio
abre-se de novo diante de mim. Cada passo que der doravante
será sempre a descer. Frei Carlos dá-me o braço.
- Vamos, temos de falar de Judas, agora - diz ele.
Será que se sente aliviado por ver que a rapariga não o
poderá nomear como sendo o assassino?
- Está bem, vamos lá conversar - respondo secamente.
Quando vamos a passar a porta, Gemila chama por mim.


- Beri, há outra coisa que vi no meu sonho - diz ela -.
Um ser branco com rosto humano. E uma parte de abutre,
parece-me. Mas com duas bocas. A de baixo fechada com força e
rodeada de sangue. Como o demónio Maimon, parece-me. Quando tu
estavas a chamar por mim da praia, ele pôs-se a arranhar-te
com as garras a ti e ao teu tio. E outra coisa, Berequias,
Maimon tinha saído de tua casa, pela porta da loja. Eu não
estava no rio. Estava a olhar por cima do nosso muro para a
Rua da Sinagoga. A calçada estava coberta de sangue e eu
amaldiçoava Deus por deixar tal coisa acontecer!

Capítulo XIV

Detive-me com Frei Carlos à porta da casa da senhora Faiam.
Os recentes pecados de Lisboa parecem por agora adormecidos,
velados pela graça sombria da sétima noite de Páscoa. Anelante
de calor humano, mas sem querer desvendar a minha fragilidade
a um homem que terá talvez ajudado a matar meu tio, puxo a
campânula de uma das mangas da sua longa capa e digo:
- Fale-me de Judas. Preciso de saber tudo.
- Levaram-no. Um bando de cristãos-velhos. No domingo.
- Há alguma esperança de estar a salvo... de estar vivo?
- Quem me dera que estivesse. Mas... - o frade junta as
mãos, no gesto de oração dos cristãos -. Levei-o para São
Pedro quando começou a matança. Escondemo-nos ambos em baixo,
na cripta. Já lá estiveste. É onde estão as relíquias. Estavam
lá muitos cristãos-novos. Mas chegou aquele bando. E começaram
a... - Frei Carlos faz um esgar e a voz, que vibra entre nós
como uma chama soprada pelo vento, extingue-se num sopro de
horror. Pega-me nas mãos, coloca os meus dedos sobre os seus
olhos, suspira como se banhasse a sua alma no odor revigorante
do mirto, e deixa-as cair de novo. - Enfiei-me com o miúdo
pela saída que dá para o adro e encaminhámo-nos para o Tejo -
continua ele -. Moisés Jagos e a família juntaram-se a nós.
Ele tinha na ideia alugar um barco para atravessar o rio, para
o Barreiro. Tirou uns soberanos de ouro de dentro do gorro e
um barqueiro aceitou levar-nos. Mas mal íamos a largar,
apareceram mais cristãos-velhos. E... e então levaram Judas e
os outros. Ainda tentei opor-me, podes crer em mim. Mas eles
atiraram-me ao rio. Nessa altura...
Encolhe-se, Põe os braços à volta do corpo como se
subitamente se sentisse gelado.
- Diga-me só para onde é que levaram o meu irmão -
pergunto-Lhe com um abanão -. Para as fogueiras do Rossio?!
- Não sei. Valha-me Deus, não faço ideia. Primeiro foram
para o Palácio da Ribeira. Fui a correr atrás deles. Tinha de
recuperar Judas fosse como fosse. Aquele menino... aquele
lindo menino. Berequias, o teu lindo irmãozinho... Sabes onde
é a taberna dos barqueiros, por trás da Igreja da
Misericórdia? Encontrei-os lá à porta. Judas viu-me. Sorriu-me
e pôs a língua de fora como quando era para receber uma
prenda. Não achas isto incrível? Que é que estaria a pensar?
Corri para o dominicano que comandava o grupo. Disse-lhe que
tinham levado um cristão-velho por engano, e apontei para
Judas, e que aquele miúdo estava à minha guarda e que não era
judeu. O frade respondeu-me que Deus nunca se engana! Era como
Herodes, aquele cristão, revestido daquela espécie de poder
dos loucos. Mandou despir Judas. Os homens riam-se mostrando o
sinal da circuncisão. Mas Judas não chorava. Parecia o teu
tio. Fitava-me para além de um silêncio que dir-se-ia jurado,
como para me dizer que tudo estava a correr conforme previsto.
Mestre Abraão e Judas. Não compreendo. - Frei Carlos
estremece, afasta uma recordação que lhe afoga a respiração.
- Então já sabe do meu tio. Como?!
- Cinfa contou-me, claro. Antes de vir ter contigo a casa da
senhora Faiam. Contou-me o que aconteceu a Mestre Abraão e
disse-me o que estavas a fazer - Pega-se a mim e sussurra-me
num tom confidencial: - Eles violaram-me, Berequias. Estavam
bêbados. Abaixaram-me contra os rochedos à beira-rio enquanto
eles... O riso deles era-me insuportável. Quando consegui
aguentar-me em pé, corri para o Rossio. Mas não vi Judas em
parte nenhuma.
- Porque não veio logo dizer-nos?
- Estava aterrorizado. Estava magoado. Os ossos doíam-me, e
então o cheiro avinhado deles. o fumo. Corri a refugiar-me no
mosteiro das carmelitas. Berequias, eu não sou um homem de
coragem. Olha-me para este hábito, estes ídolos - tira do
peito o crucifixo, puxa-o até rebentar o fecho -. olha-me para
este lenho de traição que me queima por dentro! - As suas mãos
contorcidas, enclavinhadas, arrancam com um sacão o Nazareno
da cruz. Jesus, contorcido e rígido, tomba como um judeu
inválido na calçada. Um grunhido animal sobe das entranhas de
Frei Carlos e ele lança a cruz desnudada contra as paredes
caiadas de minha casa. Mais calmo, ofegante, contempla os
telhados e o espelho escuro do rio que se vê ao fundo. -
Segunda-feira - murmura - andei à procura dele. Cheguei até a
ir ao covil de leões de São Domingos. Berequias, pela primeira
vez em nove anos não sentia medo dos cristãos. Talvez fosse
isso que sentia Judas. Mas como é possível? Um miudito não
pode sentir coisas dessas. Até pensei que se calhar ele ia
simplesmente vir ter a casa. Que de qualquer modo...
A esperança é estranha; desafia toda a razão. Enquanto Frei
Carlos continuava a falar, começo a pensar: "Não é, pois,
certo que Judas esteja morto. Há-de estar escondido aí em
qualquer canto." Perguntei então ao frade:
- Porque havia de acreditar no que me está a contar?
- Que queres dizer com isso? - pergunta ele.
- Como pode provar onde andou todos estes dias?
- Queres dizer que suspeitas de mim?!
- Suspeito de toda a gente até ao regresso do Messias -
respondo.
- Podes perguntar às carmelitas - suspira ele, como quem
cede a uma verdade que longamente se recusara a admitir.
Decido pô-lo à prova, lançando a acusação sobre Simão.
- Havia um fio de seda numa unha de meu tio. Seda preta.
como a das luvas de Simão.
- Simão? Queres dizer que?
- Isso mesmo. Porque não havia de ser ele?
- Meu caro Berequias, está-me a parecer que a morte te
deixou a ler da esquerda para a direita. Simão estimava muito
teu tio. Nunca levantaria uma mão para ele.
- Mas pode ser que tenham tido alguma discussão grave no
grupo de iniciados - observo.
- Uma discussão sobre o Talmud ou a Tora - contrapõe o frade
com um gesto de recusa - pode desviar-nos para algumas
palavras mais esbraseadas mas nunca para o sangue. Já devias
saber isso.
Frei Carlos tinha passado esta pequena prova. Mas, e se ele
suspeitasse que eu sei que o fio de seda foi lá posto, não
seria esta mesma a sua reacção? - E contou a minha mãe isto
sobre Judas? - pergunto.
- Contei. Agora está sossegada. Cinfa está com ela. Quando a
menina me disse que estavas a lutar com um ibbur em casa da
senhora Faiam, pensei que podias precisar de ajuda - o frade
inclina a cabeça -. Berequias, sabes quem morreu?
Dá-me uma absurda vontade de rir.
-Frei Carlos, nunca há-de deixar de me surpreender. Neste
momento era-me mais fácil dizer quem não morreu.
- Dom João de Mascarenhas - diz ele.
- Claro - aceno compreensivamente. Dom João dirigia o porto
e a casa da fazenda do rei, tinha sido ele o judeu da corte
que pagou a ouro para tirar Reza da cadeia do Limoeiro no
domingo anterior.
Os cristãos-velhos sempre se sentiram ressentidos com a
ideia de um cristão-novo a enriquecer com os impostos sobre as
suas mercadorias e de entre todo o nosso povo devia ser ele o
mais odiado.
- Como é que se passou? - pergunto.
- Como? Como todos os demais. Apareceu um bando em casa
dele. Deitaram abaixo os portões. Ele escapou pelos telhados
da Pequena Jerusalém. Imagina, ele a fugir como qualquer
judeu. Conseguiu.
- Frei Carlos, custa-me a crer que não perceba! - berro-lhe
eu -. Para eles, todos nós temos cornos e caudas. Não há
nenhum que escape. Não interessa se adubamos a sopa com folhas
de ouro ou só com gema de ovo!
As nossas vozes unem-se numa prece pela alma de Dom João.
- Bem, basta de devoções - digo -. Só umas perguntas. Sabe
quem é que ajudava meu tio a levar livros hebraicos para fora
de Portugal?
Frei Carlos abana a cabeça.
- Mas não tem nenhuma ideia? - pergunto.
- Nenhuma. A não ser que fosse algum dos iniciados. Mestre
Abraão dizia que era melhor que ninguém soubesse. Para o caso
de sermos apanhados.
- Isso quer dizer que só resta Diego. Simão e Sansão foram
mortos. E meu tio disse...
- Mortos?! - interrompe o frade -. Mas ainda agora disseste
que suspeitavas de Simão!
- Não, estão mortos. Era... era só para o pôr à prova.
- Berequias, tenho de saber a verdade. Os meus irmãos da
Cabala estão mortos ou vivos? Agora diz-me a verdade!
- O patrão de Simão disse-me que tinha sido levado pela
turba e feito em cinzas. O sogro de Sansão disse-me que o
tinha visto preso pela populaça.
Frei Carlos deixa descair os ombros, esfrega os olhos.
- Meu tio nunca lhe disse nada a propósito de Aman? -
pergunto -. Nem nunca mencionou nada de estranho sobre Diego?
- Agora também o Diego? - replica ele -. Também achas que
ele podia estar envolvido na...
- Meu tio foi morto com um cutelo de shohet. Por alguém que
sabe onde fica o alçapão e a geniza. Só pode ter sido um dos
iniciados. Ou algum dos passadores secretos de meu tio, se é
que ele alguma vez lhes confiou também a eles o segredo.
- E a que vem isso de Aman? - pergunta o frade.
- A última Haggada de meu tio foi roubada. E eu estou
convencido que ele tinha desenhado Aman com o rosto do
passador que o andava a trair. ou que ele suspeitava de
traição.
- Nunca me falou nisso - diz Frei Carlos.
- Alguma vez se queixou de alguém ultimamente?
- Não, de ninguém.
- Diego tinha recebido a iniciação completa no círculo? -
pergunto.
- Queres saber se ele conhecia a existência da geniza?
- Isso e a passagem secreta da nossa cave para a micva.
- Ai descobriste?! Como? Ou foi alguém que te disse?
- Demorava muito a explicar, Frei Carlos. Foi uma outra
morte que me levou lá. Diga-me só se Diego sabia disso - peço.
- Que eu saiba não - replica.
- E da geniza?
- Não. Mestre Abraão deixou bem claro que não devíamos falar
nisso com ele por enquanto.
Isso tornava quase impossível que tivesse sido Diego quem
empunhou o cutelo de shohet. Portanto, se Frei Carlos dizia a
verdade, todos os iniciados estavam inocentes. O assassino só
podia ser um ou vários dos passadores secretos.
- Usavam muitas vezes a passagem secreta? - pergunto.
- A bem dizer nunca - responde o frade.
- ƒptimo - comento.
- ƒptimo o quê?
- Isso pode explicar porque é que o assassino ignorava que
não cabia lá. A passagem vai-se estreitando. Eu mal pude
passar. Uma pessoa mais larga. Por isso ele deve ter recuado à
pressa para a cave e quando me ouviu chamar lá em cima
escondeu-se na geniza. Depois, quando eu fui ao pátio buscar
pregos para fechar o alçapão, subiu as escadas e saiu de casa
pela porta de minha mãe. Gemila viu-o na Rua do Templo,
amaldiçoou o Senhor e abriu assim o caminho à intrusão de um
ibbur. O assassino devia ter uma aparência demoníaca, porque
ela chamou-o Maimon Branco de Duas Bocas. Devia ter um aspecto
ligeiro. Talvez estivesse embuçado. Ou talvez se tapasse com
um chapéu com uma presilha para o queixo que ela confundiu com
outra boca - seguro o frade pelos ombros -. Frei Carlos, tenho
de ir ler a correspondência de meu tio a ver se ele fala nos
passadores. E tenho um desenho que lhe quero mostrar. De um
catraio que andou a ver se vendia a Haggada roubada. Mas
precisamos de mais luz.
Vou a começar a subir a rua em direcção à nossa cancela, mas
Frei Carlos segura-me pelo braço.
- E a teu ver quem é que teria a coragem de levar livros
para fora do país?
- Não sei. Mas provavelmente é alguém nosso conhecido. Pode
ser até que eles fingissem detestar-se.
Ao pronunciar estas palavras, ocorre-me um pensamento
perverso. Quem é que, à parte El-Rei Dom Manuel e certos
padres cristãos, meu tio mais desprezava neste mundo? O
querido Rabi Losa! Mas, e se aquela animosidade não passasse
de uma máscara? Com os seus negócios florescentes como
fornecedor oficial do clero, Losa viajava para onde quisesse e
podia muito bem transPortar consigo manuscritos hebraicos para
lugar seguro.
- Meu tio alguma vez se referiu ao Rabino Losa no círculo de
iniciados? - pergunto ao frade.
- Muito raramente. E quase sempre com desagrado.
- Frei Carlos, era capaz de vir agora comigo a casa do Rabi
Losa? As cartas podem esperar por agora. Por qualquer maldosa
razão que eu ignoro, o rabino sempre gostou de si. E eu
preciso muitíssimo de falar com ele.
- Gosta de mim porque me vê tão assustado como ele - observa
Frei Carlos -. De vez em quando gostamos de tremer juntos. - E
quando nos dirigimos para casa do rabino, pergunta numa voz
temerosa: - Então sempre me perdoas?
- Perdoo de quê? - pergunto.
- De não ter protegido Judas. Tenho de o saber.
- Claro que perdoo. Você é tanto vítima como... Oiça, Frei
Carlos, não estou certo que ainda seja judeu, mas também não
sou nenhum inquisidor cristão.
- Não és judeu?! Berequias, em alguma coisa tens de
acreditar!
- Ai tenho? Acha que tenho?!
- Claro.
Detenho-me. Do fundo das tripas até ao topo do meu peito
aspiro os perfumes nocturnos que sobem da cerrada natureza que
rodeia esta desgraçada povoação chamada Lisboa.
- Respire esta escuridão, Frei Carlos - digo -. Há qualquer
coisa de diferente nela, entre o cheiro a merda e a fumo, e a
bosque. Está a formar-se uma nova paisagem, uma região secular
que nos dará refúgio das costas em chamas da religião. Para já
só nos chega uma brisa. Mas está a chegar... E nada que os
cristãos-velhos possam fazer há-de impedir que aí encontremos
refúgio.
Frei Carlos responde num tom oratório, céptico:
- Diz-me uma coisa, meu caro Berequias, quais hão-de ser os
alicerces dessa tal nova paisagem a não ser a religião?
- Não faço a menor ideia, Frei Carlos. Essa nova paisagem
ainda não se definiu. Haverá místicos e cépticos, disso não
tenho dúvidas. Mas não padres nem frades, nem os diáconos ou
os bispos ou os papas hão-de lá ter lugar. Se derem um passo
para a nossa terra, deitamo-los logo ao chão. Também não
haverá rabinos doutorais. No momento em que começarem a
estender o rolo dos mandamentos, cortamos-lhes a garganta!
- Devias pedir perdão a Deus pelo que estás a dizer! -
repreende-me Frei Carlos.
- Vá pentear macacos! Estou farto de implorar! O meu Deus
nada tem que perdoar nem que punir.
- Ein Sof? - pergunta o frade, aludindo ao conceito
cabalístico de um Deus incognoscível que não possui quaisquer
atributos reconhecíveis. E vendo o meu assentimento, continua:
- É pouco o conforto de um Deus que está para além de todas as
coisas.
- Ah, conforto. Para isso, meu caro amigo, o que preciso é
de uma mulher que se deite à noite comigo e filhos para
abraçar, não um Deus. Pode ficar com o Senhor escrito nas
páginas do Velho e do Novo Testamento para si. Eu fico com o
que não está escrito.
Frei Carlos abana a cabeça como quem me abandona a um mundo
que ele nunca compreenderá. Entretanto chegamos a casa do Rabi
Losa. Fico à espera à esquina. O frade bate à porta e pouco
depois Ester Maria, a filha moça de Losa, abre as portadas de
cima, afasta o cabelo que lhe cai por cima dos olhos cansados.
- Perdoa ter-te acordado. O teu pai está? - pergunta Frei
Carlos.
- Saiu. - responde ela.
- Para onde?
- Não sei.
- Podes dizer-Lhe que preciso de falar com ele? Estou em
casa de Pedro Zarco ou então em São Pedro. Diz-Lhe que venha
logo que possa. Mesmo que tenha de nos acordar. E diz-Lhe que
não é para Lhe causar trabalhos.
Ela assente com um aceno. O frade e eu encaminhamo-nos para
casa e sentamo-nos no pátio. Como uma mórbida melodia,
invade-nos o sentimento de culpa por nos terem deixado viver.
Penetro no interior para trazer uma candeia de azeite,
desenrolo o desenho do catraio que andou a tentar vender a
última Haggada de meu tio à senhora Tamara. Lançando um
círculo de luz sobre o desenho, pergunto:
- Conhece-o de algum lado?
- Não - responde Frei Carlos, erguendo o desenho à altura do
rosto. Vendo-me recolher o rolo, pergunta numa voz implorante:
- Posso ficar aqui até amanhã? Não consigo estar sozinho.
- Não há por onde escolher. É melhor não aparecer por perto
de onde mora ou em São Pedro. Anda por aí um mercenário, um
homem loiro dos países do Norte, a mando do assassino para
matar Diego. Pode também andar atrás de si.
- De mim?! - o frade estremece e os seus olhos fatigados
abrem-se como se tivesse engolido veneno -. Então, talvez isso
explique... - Tira da capa um quadrado de pergaminho com umas
pontas de fita cozida nos cantos como um tzitzit. Assemelha-se
a um brinquedo de crianças. - Lê - diz ele, estendendo-mo.
Vejo uma figura tosca de homem contornado por caracteres
hebraicos minúsculos, não maiores que uma formiga. Escrita
numa estranha mistura de hebraico e português, lêem-se as
palavras do Livro de Job: "Ela abandona os seus ovos no chão,
deixando que a areia os aqueça. Esquece que um pé os pode
esmagar, ou algum animal bravio os espezinhar".
- Desde quando tem isto? - pergunto.
- Sexta-feira. Tinham-no enfiado por baixo da minha porta. A
princípio pensei que fosse de teu tio. Pensei que era para ver
se me assustava para conseguir o livro que queria que eu Lhe
cedesse - Frei Carlos sorri e continua - Depois pensei que
fosses tu.
- E agora que o seu espírito assentou depois da sua viagem à
toa? - pergunto, com uma expressão de ironia.
- Agora não sei. Mas se alguém matou o teu tio e agora me
quer matar a mim... Talvez este talismã seja dele. Talvez o
meu livro tenha a ver com a morte de teu tio! Talvez seja mais
valioso do que pensávamos.
- Pode mostrar-mo?
- Não. Está no meu quarto. E o homem do Norte. Beri, era a
minha última página de judaísmo. Guardei-o porque tinha de
ser. O teu tio estava a pedir-me que ficasse sem nada do que
eu tinha sido.
- Está bem, Frei Carlos. Mas tem alguma ideia porque é que
será tão valioso?
- Existem outras cópias - diz ele, abanando a cabeça -. Não
é de modo nenhum um exemplar único.
- E está anotado nas margens?
- Não. Se calhar o passador do teu tio tinha pensado
simplesmente em ficar com o livro para si próprio e não queria
que saísse do país.
- Não me parece provável. Depois de ter passado cento e tal
livros preciosos na fronteira, não vejo nenhuma razão para de
repente se voltar contra meu tio só por causa do seu
manuscrito. E não é só isso; havia vários manuscritos valiosos
na geniza que o assassino folheou antes de chegar à Haggada de
meu tio. - Pego no talismã para o observar, reparo que a
palavra areia está mal escrita. - Isto foi feito à pressa,
provavelmente às escondidas - comento -. Por alguém que não
possui uma formação completa na Tora. E que não tem um
verdadeiro treino como escriba. Embora a tinta seja de muito
boa qualidade. Um escriba amador que tem acesso ao melhor que
há, diria eu. Escreve com a dextra, é evidente, por causa da
inclinação das letras. Quanto à fita. cheiro-a, rolo-a nos
dedos -. Um pouco antiga, diria. Cheira a cedro. Talvez
estivesse guardada numa caixa. Para sabermos mais precisamos
da ajuda de Farid. Se calhar até a tinta tem algum cheiro
particular - olho para Frei Carlos -. Quem fez este talismã é
porque o queria ver assustado. Mas se o quisesse matar, não se
tinha dado à canseira de Lhe mandar um aviso. Posso ficar com
ele?
- Leva-o para longe de mim - exclama, assentindo.
Inesperadamente deita a cabeça para trás e boceja -. Às vezes
penso que podia dormir durante um século ou dois - diz ele.
- Oiça, digo eu - pode ficar na minha cama. Tire mais um
cobertor do baú.
- O pátio serve bem.
- O seu sacrifício não traz ninguém de volta.
- Beri, preciso de ver o céu, as estrelas. Deixa-me ficar
aqui sentado. Hei-de adormecer quando Deus me der a sua graça.
Com um encolher de ombros enfastiado, desejo-lhe que durma
bem. Quando me dirijo para a cave, avisto minha mãe em pé no
quarto, como uma sombra de vigília a Farid. Vou ter com ela,
vejo-a apertar contra o peito um talismã em forma de magreifa,
uma flauta mítica de dez furos. Olhamos um para o outro,
transportados para um mundo que está para além das palavras.
De comum acordo, desviamos o olhar para Farid. Respira já à
vontade, como se reentrasse no nosso mundo: Terá havido uma
espécie de troca? Farid por Judas? Será por isso que minha mãe
não tira os olhos dele?
- Obrigado por Lhe ter dado a sua cama e por olhar por ele -
digo-Lhe num sussurro.
Toma-me a mão, aperta-a. Está impregnada do odor de
meimendro. Na sua voz dolente, diz:
- Se ao menos fosse um dos nossos.
- Isso deixou de ter importância - digo.
- Enganas-te, Berequias. Tem mais importância do que nunca.
Parecemos espécimes de raças diferentes. Beijo-a no pescoço
e deslizo para a cave. Mas nas cartas de meu tio pouco há que
me dê esperança. Só duas das cartas me parecem prometedoras,
ambas da mesma pessoa. A primeira está datada do terceiro de
Shevat deste ano e está escrita em árabe. Meu tio deve tê-la
recebido pouco antes da sua morte. Está assinada numa escrita
floreada em forma de menora. Tanto quanto posso perceber, pois
a geração de cabalistas mais velhos gostam de confundir o
leitor ocasional, o nome do correspondente é Tu Bisvat. É
evidente que se trata de um pseudónimo, pois Tu Bisvat é o
nome de uma festa judaica que os nossos místicos associam à
árvore da Vida e a certas reparações operadas neste mundo e na
Esfera Celeste de Deus. Infelizmente, os meus conhecimentos de
árabe são tristemente insuficientes perante o estilo floreado
da carta. Mas não há dúvidas que o autor faz pelo menos uma
referência à safira que meu tio lhe enviava. A segunda carta
data quase exactamente de um ano antes e está também em árabe,
mas não consigo decifrar nada que faça sentido. Se me
obrigassem a fazer uma tradução, diria que meu tio andava a
negociar a compra de um azulejo para decorar o centro de um
pôr-do-sol.
Vou precisar da ajuda de Farid para remover o emaranhado de
gavinhas da cifra árabe em ambas as cartas.
Antes de fechar a geniza, volto a examinar todas as cartas,
desta vez para comparar a letra com a do talismã de Frei
Carlos. Mas não há nenhuma semelhante.
Em cima, dou com Farid a ressonar. A testa já não queima.
Embora me sinta tentado a fazê-lo, decido não o acordar; é o
seu primeiro sono a sério nos últimos dias. Vou para a cozinha
à espera que ele se levante, levando as cartas na bolsa. Atiro
umas pitadas de canela para o borralho ainda quente.
Levanta-se uma chuva de faúlhas rubras cintilantes como
estrelas cadentes. Apercebo-me de que estou todo sujo de pó e
fuligem, mas sinto algum conforto neste fedor húmido. É como
se fosse um cheiro judeu, como se tivesse acedido a morar para
sempre na dor, como se a vingança, assim que encontrar o
assassino de meu tio, tornasse mais intenso este odor
almiscarado e o fizesse divinal.

Acordo cedo na manhã de sexta-feira à mesa da cozinha com o
cheiro de água salgada salobra: enormes postas de bacalhau
estão de molho num caldeiro de água junto à minha cabeça.
Ouvem-se os galos a anunciar a alva. Cinfa e Frei Carlos
preparam o chá de lúcia-lima.
Estamos no sétimo dia da Páscoa, e com o chegar da noite
acabará o último dia das festas. O medo de se me ir o tempo
sem ter apanhado o assassino acaba por me despertar
completamente como se me abanassem. Cinfa fixa o meu olhar
com uma face prazenteira. "A mãe diz que se consegue viver
como um rei só com bacalhau e ovos" - comenta. Os seus olhos
implorantes procuram uma confirmação para as suas fantasias de
felicidade. Mas eu sinto o peso do sentimento de uma cilada. A
casa é uma prisão; Cinfa e Frei Carlos improváveis profetas da
sobrevida. Erguendo-me com um pulo, pergunto:
- O Rabi Losa ainda não veio, pois não?
- Ainda não - responde o frade.
- E Farid?
- Ainda ressona.
- Já dormiu que chegue! Vou acordá-lo.
Assim que vou a sair, Cinfa corre para mim e aperta-se
carinhosamente contra o meu peito.
- Por favor, não voltes a sair! Há uma coisa terrível que te
vai acontecer hoje, pressinto-o!
Devia sentir-me comovido, mas a única coisa que quero é
afastar de mim a menina. Encaminho-a para junto da lareira.
- Não me vai acontecer nada - murmuro -. Prometo-te que
nunca mais hei-de deixar que algum cristão me faça mal.
Posso ver na sua expressão vaga que a espessa camada de
desconfiança que a protegia da mágoa tinha desaparecido.
Seguro a mão dela, enquanto conduzo as orações da manhã dela e
de Frei Carlos.
- Vou voltar a São Domingos - diz seguidamente o frade -
para tirar mais umas inculcas sobre Judas.
- Desista, Frei Carlos - aconselho -. Se estiver vivo, há-de
voltar. Eles não lhe vão dizer nada. Para eles não passa de
mais um pouco de fumo judeu.
- Não, tenho de ir lá.
- Mas é perigoso. O homem do Norte pode andar à espreita.
- Se me esperar será em casa. Vou sair pela Rua da Sinagoga
e descer até ao rio. Não há-de ser nada.
Frei Carlos faz-me um aceno como se necessitasse da minha
aprovação. Parece que a coragem visitou finalmente o frade.
- Muito bem - digo com um aceno de assentimento.
Ele inclina-se numa saudação e desaparece. A sós com Cinfa,
digo-lhe:
- Deixa-me ficar com o Farid só por um momento, depois volto
para junto de ti.
O seu rosto fica corado e entumescido. Fita-me como quem
está prestes a rebentar em lágrimas. Estendo as mãos, mas ela
afasta-se de mim e sai a correr pela porta da cozinha.
Farid está ainda a dormir, mas as cores voltaram-lhe ao
rosto. A pele dos braços e das pernas é suave, tépida. Os
talismãs de minha mãe balançam-se por cima dele como absurdas
confirmações da sua saúde. Compreendendo que os anjos
recuaram, uma grata plenitude acode-me aos olhos, impele-me
para a janela a oferecer a Deus os meus agradecimentos. Belo,
de orelhas espetadas, observa a rua por cima do muro da casa
da senhora Faiam, com a sua pata dianteira sustentando-o
firmemente. "Benditos sejam os homens e as mulheres, as
crianças e os cães" - penso -. "Com tanta beleza no mundo,
será que a existência de um Deus pessoal interessa assim
tanto? Não poderemos satisfazer-nos com o que temos?", Quando
olho para baixo, descubro o Nazareno de Frei Carlos, arrancado
da sua cruz, ainda abandonado na calçada. A imagem e eu
interrogamo-nos sobre um futuro impenetrável. Farid acorda,
bate duas vezes na cama para atrair a minha atenção.
- Ouviste alguma coisa sobre meu pai? - quer saber.
- Nada. Perdoa-me. Só um momento. - Vou buscar as sandálias
de Samir ao meu quarto, ajoelho-me junto ao meu amigo e
estendo-Lhas.
- Não me pareceu bem mostrá-las antes, quando ainda estavas
tão... O homem da mesquita disse que o teu pai saiu tão à
pressa depois dos motins que se esqueceu delas - digo-Lhe por
gestos.
Quando Farid agarra as sandálias, os seus olhos cerram-se
energicamente. Os polegares traçam o contorno das presilhas,
enquanto ele cheira o couro. Ao sentir o odor de Samir, a sua
face parece abrir-se. Os tendões do pescoço esticam-se como se
dirigidos ao julgamento da ira de Deus. Começa a gemer. Enlaço
as minhas mãos nas dele e procuro libertá-lo pela força do meu
amor. Aos poucos, as vagas de mágoa de Farid vão minguando até
a um fluxo silencioso. Quando se ergue apoiado num cotovelo e
limpa os olhos ao lençol, eu limito-me a fazer um gesto para
lhe dizer: "Lamento".
Ele acena com a cabeça e assoa-se à manga da camisa.
Sento-me a seu lado.
- Tiveste disenteria. Com tantas coisas à mistura, quase me
enganei no diagnóstico. Acho que foi aquele arroz que
compraste quando voltámos para Lisboa na segunda-feira.
Passa a mão pelos lábios para me agradecer, depois leva-a ao
alto para louvar a generosidade de Alá. Os seus movimentos são
seguros, tecidos pela sua fé recuperada. A inveja pela sua
crença num Deus generoso impele-me a levantar-me.
- Que dia é hoje? - pergunta ele.
- Sexta-feira.
- Estamos já perto do Shabat. - Abana a cabeça e respira
profundamente como se a despertar as energias do seu corpo
longamente adormecidas. - Que mais descobriste sobre o
assassino de teu tio?
Mostro-Lhe o desenho do rapazelho que tentou vender a
Haggada de meu tio e depois passo-lhe as cartas de Tu Bisvat.
- Agora temos qualquer coisa - acena ele, enquanto passa os
olhos pela primeira carta, e traduz as importantes informações
que ela contém com uma facilidade cantante: "Esperei para lhe
escrever, Mestre Abraão, na esperança de que
chegassem mais "safiras". Mas como ultimamente não chegou
nada, isso tem-me dado que pensar. Será que aconteceu alguma
coisa ao nosso Zorobabel? Ou talvez você esteja doente. Por
favor, mande-me dizer. Começo a estar preocupado."
Há um momento em que o mundo em miniatura de um manuscrito
se torna real, quando os contornos da mão de um profeta ou o
brilho nos olhos de uma heroína voltam a refulgir no interior
do eterno presente que é a Tora. Um sentimento semelhante de
suspensão do tempo apodera-se agora de mim, a minha visão
torna-se interior. Perante mim desenrola-se uma vereda.
Partindo de Lisboa, através de Espanha e de Itália, conduz ao
Oriente. Meu tio caminha ao longo dela, transportando os seus
amados manuscritos, sorrindo com a alegria de quem leva
presentes. Estas imagens descem sobre mim porque esta carta
parece revelar que o caminho dos livros escondidos de meu tio
leva a Constantinopla. E que o seu cúmplice na capital turca,
Tu Bisvat, não recebeu as encomendas combinadas e estava com
medo que tivesse acontecido alguma coisa a meu tio. Estas
informações devem tê-lo alertado para a possibilidade de andar
a ser traído por um ou mais dos seus correios. Provavelmente,
meu mestre guardou para si esta informação até poder estar
certo da identidade do criminoso. Entretanto, foi ver Dom
Miguel Ribeiro para tentar recrutar um novo cúmplice que
pudesse levar os manuscritos para fora das fronteiras
portuguesas com relativa facilidade. Quando o fidalgo se
recusou a colaborar, meu tio escreveu a Sansão Tijolo, que,
devido ao seu negócio de vinhos, podia também conseguir
autorização para viajar para o estrangeiro.
Quanto a Zorobabel, referia-se, claro, a um dos personagens
do Livro de Esdras, que quando era guarda do rei Dario da
Pérsia convenceu o seu monarca a deixar reconstruir o Templo
de Jerusalém, então em ruínas. Conseguiu tal decisão alegando
que as mulheres eram mais fortes que o vinho e os
legisladores, e que mais forte que as mulheres só a própria
verdade. Depois da reconstrução do Templo, tornara-se num rico
governador de Jerusalém.
Mas quem seria ele neste contexto? Um nome de código do
homem que levava escondidos os manuscritos de meu tio para
Constantinopla?
Na segunda carta, Tu Bisvat faz uma referência ao zulecha,
azulejo, que anda a comprar para meu tio em Constantinopla.
- Não compreendo - digo a Farid.
- Neste contexto - explicam-me os seus gestos -, penso que é
uma referência velada à construção de uma casa. O teu tio pode
ter começado a negociar a compra de uma casa no ládo europeu
do Bósforo, o lado do pôr-do-sol de Constantinopla.

Capítulo XV

- Com que então meu tio nunca deixou de pensar em se mudar -
comento, por sinais, dirigindo-me a Farid -. Estava à espera
que o negócio se concluísse antes de nos falar em
Constantinopla. Bizâncio, imagine-se. Uma terra muçulmana. Se
ao menos tivesse falado disso comigo. Tenho a certeza que
havíamos de trabalhar todos a sério para conseguir o dinheiro.
Mas talvez tivesse medo de ser apanhado e ter de fazer
compromissos.
A cascata de gestos de surpresa é interrompida pela voz de
tia Ester chamando-me da cozinha. "Graças a Deus, a alma
voltou-lhe ao corpo" - murmuro. Farid lê os meus lábios e faz
um gesto instante: "Vai ter com ela! Pode ser que precise de
ti para a puxares de volta ao nosso mundo!"
Quando me precipito para a cozinha, reparo que minha tia não
está só. Segura Cinfa diante dela como um escudo humano. Ao
lado, está um homem de idade. É descarnado e alto, muito
pálido, de cabelo branco espetado e sobrancelhas espessas. Um
homem feito de neve, dir-se-ia. Os olhos de tia Ester
seguem-me com gravidade.
- Deves estar recordado de Afonso Verdinho - diz ela -. Era
do grupo de iniciados do tio.
O Sinistro, o homem do Lado Esquerdo, como costumávamos
chamar-lhe com uma certa afeição ambígua. Havia nisto um duplo
sentido, que jogava com uma referência em italiano ao facto de
Dom Afonso ser canhoto e com a sua estranheza austera. Meu tio
apreciava-o como uma curiosidade, e costumava dizer que ele
lia a Tora como se estivesse fixada com cola de peixe,
aludindo ao ascetismo inflexível que ele adoptara quando andou
a estudar com os Sufis na Pérsia. Mas agora onde estava tudo
isso? Agora que sabia de quem se tratava, parecia-me ainda
mais velho e definhado, como se tivesse vivido encerrado sem
comer e apertado numa cela sem luz. Vêem-se manchas amareladas
de suor debaixo dos braços da sua camisa branca amarrotada.
Traz no braço uma capa preta rota forrada a seda azul poída.
Quando os nossos olhares se encontram, os lábios
contorcem-se-Lhe desagradavelmente. Nenhum de nós faz um gesto
de saudação.
- Lembras-te dele, não lembras? - sugere tia Ester -. Eras
ainda um rapazinho quando...
- Lembro - respondo abruptamente. O pressentimento de uma
catástrofe iminente imobiliza-me como se fosse de cristal.
- Berequias, vou ficar com Afonso durante algum tempo -
continua ela, falando lentamente e com delicadeza -. Ele veio
para cá assim que chegaram a Tomar notícias dos motins. Está
alojado na estalagem do senhor Duarte, perto da casa de Reza.
Ficamos lá. Por favor, diz isso a tua mãe. Não queria
acordá-la. Mas se precisar de mim, pode vir ter comigo.
- Não percebo - digo.
Minha tia passa as mãos pela fronte, esfregando-a como quem
tenta fixar os pensamentos dispersos. Cinfa volta-se para a
observar, depois dá um pulo para fora de casa. Tia Ester
chama-a em vão. A expressão de Afonso assume um ar de delicada
simpatia ao se dirigir em persa em voz baixa a minha tia. O
seu braço protector rodeia os ombros dela. Ela abraça-o
chamando-o a si. Falando para mim, diz numa voz seca:
- Tens de dar algum tempo a tua tia. Tenta compreender que a
viagem é muito mais complexa do que sempre pensaste.
Dom Afonso conduz tia Ester para o pátio e vejo-os
desaparecer enlaçados pelo portão. O ciúme, espesso e quente
como pez, jorra-me pelo peito; é cruel a conclusão de que um
quase desconhecido pode fazer reviver minha tia quando a mim
não me foi possível fazer nada. E que ela fosse capaz de
abandonar a família numa altura destas, parecia-me impossível!
Dom Afonso. será que a sua presença muda tudo? Estará
envolvido na morte de meu tio, como passador dos livros? Mas
ele saiu de Lisboa antes das conversões forçadas, muito antes
de meu mestre e de meu pai terem cavado a geniza.
Sinto um absurdo desapontamento penetrar-me as entranhas,
associado à descoberta de que a vida não é um livro, não tem
notas à margem a explicar os acontecimentos mais difíceis. Se
assim fosse, Dom Afonso teria ficado em Tomar sentado em
frente à lareira. A sua vinda só serve para complicar o que já
me escapa.
Ouço meu tio dizer-me: Caro Berequias, a vida propõe-nos
muitas veredas que não levam a lado nenhum, portas que se
abrem sobre meros abismos, escadas que sobem até portões
fechados a cadeado". E recordo que ele costumava dizer-me que
todas as vidas são uma peregrinação ao Shabat. "Mesmo que
assim seja" - Penso -, "então todos nós tomamos as estradas
com mais desvios para lá chegar."
Volto para junto de Farid em passadas vagarosas.
- As pessoas são criaturas muito estranhas - comento.
- Porquê? Que aconteceu?
Quando Lhe explico, ele pergunta com os seus sinais:
- Não sabes, pois não?
- Não sei o quê? - pergunto.
- Em tempos, foram amantes. Foi meu pai quem mo disse.
- Estás doido! Afonso e...
- Há anos que tinham acabado. Não quer dizer nada.
As suas palavras são demasiado simples para serem
entendidas. O chão fica escorregadio, desliza como águas
lamacentas. Os gestos de Farid servem-me de âncora num mundo
que rodopia. Seria possível que tia Ester afinal pudesse estar
envolvida na morte de meu tio? Talvez que inadvertidamente
tenha confiado a Dom Afonso a existência da nossa geniza. Ele
podia ter actuado por sua própria iniciativa levado pela sua
infatigável paixão por ela.
Farid adivinha os meus pensamentos e comenta:
- Um castelo de cartas numa mesa inclinada no meio de uma
tempestade de areia."
- Mas não se ela não soubesse dos planos de Dom Afonso.
Talvez ele lhe tenha escondido a sua trama. Mesmo agora, não
suspeita que o homem que a conforta é o assassino do seu
marido!
- Mas nós sabemos pelas cartas de Tu Bisvat que muito
provavelmente há um dos iniciados imPlicado nisto. A não ser
que aches que Dom Afonso era um deles. que Zorobabel era ele.
Ficamos os dois sentados em silêncio durante algum tempo.
Continuo estupefacto com a partida de tia Ester. O meu amigo
faz-me sinais de quando em vez, mas não lhe presto atenção até
que ele me agarra o braço.
- Entrou alguém em casa com um passo esquisito - adverte -.
Sinto as vibrações.
De repente ouço a voz de um homem chamar-me da cozinha.
Corro para lá. À porta da cozinha, avisto o iniciado morto, o
importador de tecidos Simão Eanes, pesadamente apoiado nas
suas muletas, com o seu xaile de veludo negro atirado sobre os
ombros. Vê-se que não se lavou nem fez a barba e apresenta uma
grande crosta na testa como um olho ferido. Cinfa está junto
dele, abraçando-o como a uma criança abandonada. Enquanto
passa a sua mão enluvada pelos seus cabelos, faz-me um aceno
de simpatia.
- Berequias, contaram-me o que aconteceu a teu tio - diz
ele.
Involuntariamente, olho para o seu pé para ver se seria
humano.
- Você não morreu! - exclamo.
Abana a cabeça e sorri, um sorriso louco, grande de mais,
como se os lábios tivessem sido repuxados Por fios invisíveis
manipulados por algum bonecreiro. O poder da experiência comum
de termos escapado vivos é algo que nos liga e dou um passo
para ele. Mas as luvas! A da mão direita está rasgada nas
costas. "Será possível que o fio de seda na unha de meu tio
seja realmente..." Recuo com desconfiança. Ele exibe no rosto
uma nova caricatura de um sorriso.
- Como se sente? - pergunto -. Que aconteceu? O seu senhorio
disse que...
- Estou bem - acena ele -. Fui eu que Lhe pedi para dizer a
quem me procurasse que tinha morrido. Pareceu-me mais seguro
naquela ocasião. Depois fugi de Lisboa. Acabei de voltar
agora.
"Meu Deus" - penso -, "será que também Judas voltará dos
mortos? Ou será esperar demasiado?"
Simão aceita a matza seca que Lhe ofereço com uma vénia
graciosa.
- Meu tio não é o único membro do grupo que morreu - digo -.
Sansão também.
- Já sei. Tinha estado na minha loja. Disse-Lhe para ficar,
para se esconder comigo. Mas ele queria voltar para junto de
Rana e do menino. Foi apanhado a menos de cinquenta passos da
porta. não podia escapar com toda aquela populaça dos cristãos
por toda a parte.
O meu corpo parece ausente. Procuro uma maneira de o
ludibriar, mas o que me sai da boca é apenas a verdade:
- Diego e Frei Carlos escaparam. E agora Dom Afonso Verdinho
voltou para Lisboa.
Simão assente, sorri fugazmente como se não me tivesse
ouvido e estivesse apenas a ser cortês. Estamos sentados um em
frente ao outro. Cinfa murmura para si própria qualquer coisa
sobre afazeres para me dar a entender que não tem estado a
ouvir a nossa conversa. O meu olhar irritado força-a a
escapar-se para o pátio. Na face de Simão desenha-se um
sorriso tenso que mais parece desenhado por um iluminista sem
talento.
- O que é que tem tanta graça? -pergunto.
- Nada.
- Está ferido - digo, apontando para a sua testa -. Alguém
Lhe bateu?
Simão leva a mão à crosta, explica-me que tropeçou numa
carreta quando se escondia na loja de um estofador, ri-se
mostrando-me mais feridas no joelho. Depois põe-se a contar
uma graçola estúpida sobre um cão que mijou numa perna falsa
que ele experimentou em tempos, ri-se e pisca os olhos,
continua a rir-se. Os olhos movem-se nervosamente em torno da
cozinha quando o silêncio acaba por se impor às suas palavras.
Na sua mágoa decidira tornar-se o bobo da corte de um Deus
tirano.
- Estamos sem vinho - digo-Lhe -. Só se quiser aguardente.
Temos ali um pouco de incenso de Goa que ainda escapou que
pode...
- Não, não. Estou bem.
Farid entra, aninha-se perto de mim. Responde ao sorriso de
Simão com um aceno desconcertado, interrogativo. Não tendo
recebido qualquer resposta, meu amigo comenta com os seus
gestos: "É como um jasmim fanado que floresce antes de
morrer."
Mais para dissipar o seu falso contentamento do que por
qualquer outra razão, conto a Simão o que se passa com minha
mãe e com tia Ester e o desaparecimento de Judas e de Samir.
Ele abana a cabeça como se tivesse já ouvido as minhas novas.
Para experimentar as suas reacções, digo-Lhe:
- Achei uma conta de rosário perto do corpo de meu tio.
Estou convencido que foi Frei Carlos quem matou meu tio.
- Frei Carlos? Mas que razões poderia ele ter para matar
Mestre Abraão?
- pergunta ele.
- Tiveram uma discussão sobre um manuscrito que o frade não
queria dar a meu tio - replico.
Simão sorri como se condescendesse comigo, passeia os dedos
como uma aranha por cima da mesa.
- Então, que é que me diz? - pergunto em tom irritado.
- Que queres que te diga? Acho que é um absurdo. Mas se é
isso que queres acreditar, quem serei eu para te desfazer a
ilusão? Estou cansado de procurar a verdade. As ilusões são
maravilhosas. Todos deveríamos ser abençoados com um jardim de
ilusões em flor, é muito mais fácil viver desse modo.
Cinfa volta para dentro. Aconchega-se nos braços de Farid.
- Não deves dar-me atenção - diz Simão com um suspiro -. Não
passo de um velho louco que já não tem muita coragem. Mas em
honra de Mestre Abraão vou tentar encarar a verdade, se
quiseres. Diz-me uma coisa, achas que ele foi morto por alguém
que o conhecia. por um cristão-novo?
Parece que os seus olhos inquisitivos quase o desejam, como
se meu tio pudesse preferir a morte pela mão de um judeu a ser
assassinado por um seguidor do Nazareno.
- É muito provável - respondo.
Quando lhe falo no cutelo de shohete novo que nos roubaram,
Simão morde os lábios. Olha furtivamente para Cinfa até eu
perceber a sua intenção. Peço à menina que vá à loja buscar
alguns frutos que tenham escapado para o nosso hóspede.
- Já percebi - diz ela agitadamente -. Mas lembra-te que ele
também era meu tio! - fixa os olhos em mim -. Vou buscar fruta
para ajudar o Farid a ficar bom. Mas não é por tu me teres
pedido!
Quando estendo as mãos, ela desvia-se e sai a correr.
- Não sei que faça com ela - confesso -. Num instante tem
medo de mim, instantes depois já...
- O tempo encarrega-se disso - diz Simão com um sorriso.
- Você já me parece Dom Afonso Verdinho.
- Ah, é verdade, quando é que ele voltou?
- Acabou de chegar - digo eu -. É curioso, não é?
- Que queres dizer? Também achas que ele pode ter sido.
- É possível.
- Conta-me o resto sobre a partida de Mestre Abraão daqui da
Esfera Terrena.
Num tom que caminha um passo adiante da emoção, descrevo a
Simão como encontrei meu tio e a rapariga, a posição dos
corpos, os golpes no pescoço. Como resposta, sorri, mas os
lábios tremem-lhe, como se dentro dele se travasse uma batalha
pelas suas emoções. Interrompendo-me abruptamente, diz-me num
tom instante:
- E não havia mais nada de invulgar no corpo de teu tio?
O meu coração começa a bater a um ritmo que soletra as
palavras fio de seda, mas limito-me a dizer:
- Como por exemplo...
- Semente branca - conclui Simão num murmúrio, usando o
termo cabalista para sémen, e encolhendo os ombros como que a
rejeitar as suas palavras.
- Como é que ele? - Com um gesto da mão suspende a minha
pergunta.
- Em Sevilha, fui denunciado por um membro da comunidade
judaica. Nunca vim a saber quem foi. Os inquisidores não dizem
isso aos presos, é claro. Eu bem neguei, mas eles meteram-me
dentro na mesma. Essas marcas no pescoço de teu tio eram
feridas. Já vi o mesmo noutras ocasiões. Quando enforcam ou
quando garrotam alguém - põe os olhos no chão, o sorriso
esvai-se; limpa os olhos à manga da camisa -. o sémen aparece
como uma reacção do corpo ao aperto da garganta e da traqueia
- continua -. Não é em todos os casos. Mas acontece. Tenho cá
na ideia que quando Deus se aproxima para recolher os justos,
a felicidade sobe. Há um orgasmo. Talvez o próprio Deus tenha
um orgasmo nesse preciso momento. O teu tio devia saber isso.
De qualquer modo, a vítima vê-se em face do Criador no momento
em que o êxtase aumenta para vencer a dor. Como Mestre dos
Nomes de Deus, o teu tio deve ter alcançado sem dúvida um
poderoso orgasmo quase de imediato.
- Quer-me dizer que primeiro o enforcaram? Mas não havia
nenhuma corda, nem...
- Ou garrotado, ou até estrangulado. Com uma corda ou com as
mãos.
E...
- Foi com um rosário - interrompo -. Não estava a mentir
quando falei na conta do rosário que achei.
- E então o teu shohet cortou-lhe a garganta - continua
Simão -. Como que por hábito. Ou para ter a certeza. Nunca se
pode estar completamente seguro com um cabalista daquela
envergadura. Há maneiras de...
- Tinha de ser alguém - dizem os gestos de Farid - que ele
deixasse aproximar-se dele o bastante para o poder atingir.
Zorobabel. quem quer que ele seja deve ter vindo cá.
Como pretendia manter o segredo sobre a minha descoberta de
que um dos passadores que trabalhavam para meu tio devia estar
implicado na morte, refreei o impulso de traduzir para Simão
esta última frase. Solta uma gargalhada.
- Um homem como eu, quer dizer o Farid...
A hesitação de gamo que Simão exibia desaparecera
completamente para dar lugar a esta sua nova personalidade.
- Isso mesmo - digo -. Como você.
- Berequias, não me vou sequer defender. O teu tio
resgatou-me da morte cristã. Mais depressa me mataria a mim do
que...
- E no entanto encontrámos uma coisa que talvez lhe pertença
- digo.
- O quê?
- Passe-me uma das suas luvas e já lhe digo.
Encolhe os ombros como se acedesse a uma extravagância, saca
a luva rasgada e estende-ma. Meto a mão na bolsa e retiro o
fio de seda. São semelhantes: a mesma seda preta, sem o mínimo
matiz de diferença.
- Estava preso numa das unhas de meu tio. É seu.
Depois de examinar o fio, Simão apoia-se na mesa para se
levantar, lança-me um sorriso de simpatia.
- Pode ser que seja o mesmo, não sou um entendido. Mas podia
ter sido obtido na minha loja, ou em qualquer uma das muitas
lojas da Pequena Jerusalém. Mas tenho a certeza que te
perguntas como é que as minhas luvas se rasgaram. - E vendo o
meu aceno de assentimento, prossegue num tom melancólico: -
Quando andamos numa só perna, temos uma certa tendência para
cair. Quando caímos na pedra, a seda rasga-se. É um material
maravilhoso, este tecido que os bichos fazem, mas quando o
tecem para fazer casulos não adivinham a parvoíce dos homens.
Pega nas muletas, enfia as almofadas de couro debaixo dos
braços. A vergonha que sinto de assim atormentar um homem
estimado de meu tio mistura-se com o perverso desejo de
prosseguir o meu assédio até ter arrancado da sua alma a
mínima possibilidade de felicidade.
- Simão - digo -, vivemos num tempo de máscaras. E na
realidade não sei o que se esconde debaixo da sua. Assim como
você não sabe o que a minha esconde. Tanto quanto sei, o homem
que você realmente é deve agora estar a dar-se palmadinhas nas
costas por me ter enganado.
- A minha velha máscara - diz ele, ajustando as muletas com
um pequeno salto - há muito tempo que ardeu na pira que
queimou a minha mulher. A nova. não faço sequer ideia com o
que ela se parece. - Põe a luva com um ar resignado. - Talvez
tenha tido uma terrível contenda com teu tio
numa altura em que ninguém estava a ver. Era isso que um
inquisidor haveria de presumir. Mas será nisso que te
tornaste? Um místico judeu transformado em inquisidor?! -
sobe-lhe das entranhas um riso amargo -. Não eras o primeiro,
pois não? Tudo é possível em Portugal e Espanha. Abençoadas
terras de milagres!
Será isto a cínica defesa dos cansados da vida ou a
impostura de um assassino?
- Sabe quem passava para o estrangeiro os livros de meu tio?
- pergunto. E quando ele abana a cabeça, continuo: - Nem tem
nenhuma ideia?
- Nenhuma. Tornei-me muito habilidoso em não pensar certos
pensamentos. De facto, não pensar é um talento especial que
desenvolvemos em Castela e na Andaluzia. Se lá fores um dia
vais ver como isso é apreciado nos bons cidadãos dessas
negregadas províncias.
Desenrolo o desenho do miúdo que tentou vender a última
Haggada de meu tio à senhora Támara.
- Conhece-o?
- Não que me lembre - replica.
- E Tu Bisvat?
- Que é isso?
- Não é isso. É um homem de Constantinopla que assina com
este nome. e que recebia os manuscritos que meu tio fazia
passar a fronteira.
- Deve haver uma centena de cabalistas em Constantinopla -
diz Simão, abanando a cabeça -. Esse tal Tu Bisvat pode ser um
deles. Mestre Abraão dizia-nos que era melhor não nos metermos
nessas suas actividades. E nós respeitávamos a sua vontade.
Tal como tu, meu caro Berequias.
Quando mais uma vez ele exibe o seu sorriso lastimoso, a
vontade de Lhe dar uma estalada queima-me o peito.
- E Aman? - pergunto asperamente.
- Que é que tem?
-Alguma vez meu tio lhe disse que rosto tinha dado a Aman na
sua última Haggada?
Simão abana a cabeça e caminha apoiado nas muletas em
direcção à porta. Volta-se para mim com a mão a proteger-Lhe
os olhos. O bobo tinha desaparecido; tinha agora o olhar vazio
de um homem cujas esperanças se tinham desvanecido. Numa voz
veemente murmura:
- Berequias, vim cá dizer-te uma coisa. Há um fidalgo
espanhol que está alojado no Palácio dos Estaus que anda por
aí a procurar livros hebraicos, em especial manuscritos com
iluminuras. No Shabat antes da morte de teu tio, fui abordado
a ver se tinha algum para vender. Não sei onde é que soube o
meu nome. Não me quis dizer. Desconfia de todos nós se
quiseres. Mas desconfia sobretudo dele. Podes sentir-te
tentado a vender alguns dos livros de teu tio para
arranjar algum dinheiro para pagar as peitas para sair de
Portugal. Mas não tenho confiança neste homem.
- E o nome dele?
- Intitula-se conde, Conde de Almira, mas cá para mim é
mentira.
Depois de ter explicado a Simão e Farid que se tratava nem
mais nem menos que do homem que levou Diego para o hospital
quando o apedrejaram, ambos insistiram em me acompanhar para
falar com ele. Caminhamos em silêncio, lentamente, de modo a
que Simão possa seguir o nosso passo com as suas muletas. Tudo
o que agora resta dos motins são os olhares astutos dos
cristãos; suspeitosos, como quem marca o território, dizem-nos
que não somos como eles. Como se não o soubéssemos já. Começam
então com os seus murmúrios e desviam os olhos de nós como se
fôssemos mortos-vivos. Como se não o soubéssemos já, também.
Ao entrarmos na sombra inclinada da manhã projectada pelas
duas torres sineiras da Sé, Farid assinala-me que somos
seguidos por um homem. "Desde que saímos" - revelam os seus
gestos -. "É um homem dos países do Norte. Mas não olhes
agora". Recomeçamos a caminhar descendo em direcção da Igreja
da Madalena rumo à Pequena Jerusalém. Aqui, mais do que
caminhar, torneamos os bolos secos de excrementos atirados
para a rua pelos cristãos. Ao longo da calçada, desenham-se
linhas acastanhadas sinuosas e apagadas, rastos sangrentos
deixados pelos corpos dos judeus arrastados para as fogueiras.
Zumbem moscas à nossa volta, enfiam-se nas nossas narinas,
pousam nos nossos olhos. Porém, os meus pensamentos continuam
presos ao homem do Norte que nos segue. É como se uma corda
invisível nos ligasse e me puxasse para trás pelos ombros. Ao
passar na antiga escola, dou uma olhadela. O nosso perseguidor
caminha em passadas largas junto às carretas de peixe seco. É
o mesmo gigante loiro que avistei à porta da casa de Diego,
estou certo disso.
Será ele o Maimon Branco de Duas Bocas, como parece indicar
o seu aspecto pálido?
Tomo Simão pelo braço, falo-lhe nessa sombra que nos
persegue.
- Deve andar atrás de mim - observo -. Talvez alguma coisa
que eu saiba sobre a morte de meu tio. sobre a trama para o
matar. É melhor separar-se de mim.
Simão fita-me com um sorriso de aquiescência; deixara de se
opor ao destino.
- Não era melhor fazer-lhe frente? - observa Farid -. Somos
três contra um.
- Não me parece boa ideia - digo, apontando as muletas de
Simão com um aceno -. Sozinho, posso despistá-lo nos becos da
Pequena Jerusalém. Ele não é de cá. Nem sabe por onde anda.
Vou ter com vocês ao Palácio dos Estaus. Esperem lá por mim.
Fazem um aceno de acordo e continuam em direcção ao Rossio.
Eu volto-me para o nosso espia para me assegurar que me vê,
depois atalho pelas lojas de passamanaria rumo ao antigo
hospital judeu. Com um pulo, escondo-me no limiar da porta da
Estalagem dos Dois Irmãos. Daqui posso passar por uma viela
das traseiras para a Rua da Ferraria. Enquanto estou assim com
as costas pregadas à porta, observo uma revoada de borboletas
cor de creme a voltear para poisar nos excrementos recentes de
cavalo. O homem do Norte estaca de repente no cruzamento
adiante. Tira o chapéu, enquanto me fita. É alto, de maçãs do
rosto proeminentes e olhos traiçoeiros. Passa a mão pelas
mechas da frente do seu cabelo oleoso e volta a pôr o chapéu.
Mas o seu primeiro movimento é errado; passa por mim e
prossegue em direcção a Farid e Simão.
Sinto nas entranhas insinuar-se o gelo do meu erro. Deslizo
para fora, silencioso como um gato. O perseguidor, no entanto,
lança-me um olhar directo por cima do ombro, como se fosse
dotado dos poderes de um bruxo. Fita-me com um olhar
determinado e depois desata a correr. Corro atrás dele.
Cai-Lhe o chapéu. Um lampejo cintilante passa-Lhe para o punho
cerrado no momento em que retira algo da sua capa. Farid,
também, pressentiu o perigo. Uns cem passos ao cimo da rua,
vejo-o fazer sinais frenéticos para Simão. Arremetem pela
Porta Setentrional da Pequena Jerusalém, através da sombra
recortada pela cúpula da Igreja de São Nicolau. O andar
manquejante de Simão torna-se desajeitado, desesperado.
"Corra, Simão!" - grito. Mas é impossível. Volta-se, larga uma
das muletas. Vejo-o como que através de um tempo com a textura
do mel: o rosto abrindo-se no momento em que o nosso
perseguidor se atira a ele; o seu derradeiro apoio
escapando-se-lhe, o corpo embatendo numa parede. Farid
ajoelha-se junto dele, e o assassino louro escapa-se correndo
com a capa drapejando atrás de si.

Capítulo XVI

SimãO não consegue falar. Ou talvez já não valha a pena.
Repousa nos braços de Farid e despede-se do mundo com os
olhos. Uma adaga com um punho de ébano enfiada nas costelas
separa-lhe agora o corpo da alma. Por sinais, digo a Farid:
"Mais um que não verá o Shabat de hoje à noite". A mão
esquerda de Simão segura o punho da adaga. "Tira-a!" - geme
ele. Farid puxa-a para fora. Como vinho que se escapasse de um
batoque, o sangue jorra sobre nós. O velho iniciado solta um
suspiro de alívio. "Obrigado" - murmura. Farid empunha a
lâmina enquanto mete o braço por baixo da cabeça de Simão a
servir-Lhe de almofada. "Aguçada", - dizem os seus sinais.
Aceno a confirmar a observação; a lâmina dos shohet é
tradicionalmente quadrada na ponta, mas esta arma está
cuidadosamente afiada.
- Desculpe ter suspeitado de si - murmuro em hebraico para
Simão -. Devia ter...
Ele acena como quem afasta a necessidade de falar em
remorsos, deixa poisar a sua mão delicada no meu braço. Olha
para o céu e sussurra orações. Reconheço nomes de Deus, depois
os da sua família desaparecida. "Graça" - desenham os seus
lábios.
Os dedos de Simão afagam o meu braço como se me consolasse.
No instante em que a sua alma parte, ouve-se um gorgulhar no
seu peito e há um estremecimento a percorrer-Lhe as mãos como
um bater de asas. Delicadamente, fecho-lhe as pálpebras.
É seguramente um pecado para um homem como eu ver-se como
sendo um profeta, ainda que por um instante. No entanto,
aponho os meus lábios em Simão, os meus olhos nos seus olhos,
as minhas mãos nas suas mãos. Deixo-me cair sobre ele como
Eliseu sobre o filho morto da Sunamita. Depois, inserindo o
polegar e o indicador na sua boca, mantive-a aberta ao meu
sopro. Insuflei-lhe vida com a minha vida por sete vezes. Uma
dor no ombro desce por mim em vagas enquanto os meus pulmões
se esvaziam para dentro dele. Farid puxa-me para trás. Os seus
olhos denotam desagrado, mas porém beija-me na testa. "Basta"
- dizem os seus gestos.
Quando olho para Simão, perpassa um ligeiro movimento pelos
seus cabelos tal a carícia de um anjo. "Estás a ver?!" - digo
em voz alta.
- Está morto! - replica Farid com gestos enérgicos -. Nunca
mais acordará.
Puxa-me para os seus braços. O bater do seu coração cresce
dentro de mim.
A tepidez encerra-me na escuridão atrás das minhas
pálpebras.
Esperamos juntos. Choro por momentos. Depois a morte de
Simão seca nos meus pensamentos, revela-me a realidade de
Lisboa. À nossa volta, fecha-se um círculo de gente, todo
curiosidade e cochichos, pois não há nada que fascine tanto os
cristãos como o infortúnio dos judeus. Olho para o fundo da
rua, faço sinal a Farid que não demoro. Recupero o chapéu do
assassino. Um rapazito sem camisa com o mesmo olhar inocente
de Judas veio-mo entregar.
Volto para junto de Farid, comunico-Lhe:
- Vou ver que caminho ele tomou. Podes fazer frente a estes
filisteus sozinho?
Acena que sim. Como se fosse empurrado de algum cimo gelado,
saio a correr. À entrada do Largo do Rossio, paro, paralisado
pela convulsa confluência de homens e mulheres, carruagens e
cavalos. A ridícula vida do largo escondeu-mo. Um velho
barbeiro num gibão esfarrapado chama-me numa voz preguiçosa
com sotaque algarvio: "O senhor parece um pouco desmazelado.
Não quer fazer a barba e cortar o cabelo? Estas mãos são tão
ligeiras que era capaz de roubar a cor a um morcego". - "Não
viu um estrangeiro loiro?!" - pergunto.
- Talvez a seca acabe com o mês novo - replica. Exibe a
alegre indiferença dos surdos, agarra-me a mão e tenta
conduzir-me à sua cadeira. Liberto-me dele. A mulher, a quem
uma rapariguita cata as lêndeas do cabelo tufado, aponta um
dedo recurvo em direcção à esquina a norte do largo. "Foi para
ali" - indica ela.
Interrogo em vão os lojistas próximos, até que um vendedor
ambulante de tapetes aponta, com modos saltitantes e efusivos,
"para a esquerda da Igreja de São Domingos."
Corro pela rua poeirenta que costumávamos chamar Rua da
Bruxa, por lá morar uma velha megera de olhos de gato que a
troco de dinheiro reparava a virgindade das mulheres. Um
aguadeiro de cabelo ruivo que se entretém a jogar cartas
sozinho boceja indicando o caminho seguido pelo homem do
Norte: Por ali! - grita ele, apontando para oriente. Entro na
Mouraria, continuo a corrida até as casas azuis e brancas
começarem a dar lugar a barracas de madeira. No ponto em que a
rua acaba, deparo com os degraus de granito que conduzem como
uma fita pregueada à grande cruz de pedra que assinala o
limite inferior do Convento da Graça. Duzentos pés acima de
uma encosta árida e batida fica a coroa de pedra das torres e
muros que constitui o convento propriamente dito. Tinha
atingido um impasse.
Vagabundos esfarrapados, de rostos sujos, falsos, mais anões
do que crianças, dão pontapés numa péla de couro nas escadas.
No topo, na crista da encosta, uma freira minúscula, a mais
raquítica de entre todo o lixo religioso da sua espécie,
invectiva-os aos guinchos com um sotaque galego:
- Xôô! Fora daqui, bando de ratos! Haveis de arder no
Inferno antes de ter tempo de pedir perdão a Deus!
Aparentemente, o desrespeitoso objectivo do jogo dos rapazes
é acertar em cheio na sua adorada cruz de pedra.
Ao dar pela minha presença, um rapaz escanzelado de olhos
esverdeados grita para ela num tom de desafio:
- Vai-te foder, vaca!
Os rapazelhos riem-se. A freira continua a guinchar: "Os
vossos pecados hão-de levar-vos a casar com barregãs do Diabo!
E os vossos filhos hão-de todos nascer sem olhos e surdos, com
cornos e rabo. E haveis de..."
Parece ser uma litania que tem de memória, com que responde
dia após dia àquela tortura. Talvez seja esse o seu penar.
Agarro a bola que me passa perto.
- Eh, atira isso! - gritam os catraios, as faces tumefactas
e furiosas.
- Então digam-me se viram um estrangeiro - replico.
- Por aqui não há estrangeiros coisa nenhuma. Atira mas é a
merda da bola!
- Um homem de cabelo loiro pelos ombros. De capa com...
- Subiu pela encosta acima como uma aranha - diz um deles,
apontando um dedo curto e sujo.
Dou um pontapé na bola visando a cruz. Falha por pouco. Os
miúdos festejam, depois correm atrás dela aos gritos, enquanto
a bola rola pelo penhasco abaixo.
No topo da colina, ofegante, deparo com os contrafortes do
Convento da Graça, como se me visse perante as Portas do
Mistério. No lado fronteiro da rua há uma feira. Interrogo os
tripeiros e mercadores de peneiras, vendedores de pentes,
gaioleiros, e até uma família de corcundas castelhanos que vão
em peregrinação a Santiago, mas ninguém o viu. Como último
recurso, lá me atrevo a aproximar-me da freira vociferante.
Tem um dente acastanhado espetado como uma adaga podre no
lábio inferior, pálpebras como ameixas e um nariz cheio de
escaras. Faz uma pausa na sua ladainha suficiente para
exclamar num tom de sábio conselho: Procura Deus, não
estrangeiros. Quando repito o que o miúdo vadio lhe mandou
fazer, desata aos guinchos como um papagaio brasileiro.
De volta à Pequena Jerusalém, discuto com Farid o que havemos
de fazer do corpo de Simão. Desgraçadamente, não sabemos ao
certo onde fica a sua casa.
A partir das suas descrições ocasionais das vistas sobre o
Tejo, sempre pensámos que morava nas escarpas encimadas pela
Igreja de Santa Catarina fora das portas a ocidente da cidade.
Pedimos pois um carro de mão a uma amiga de minha tia, e
começamos a transportar o corpo ao sol da tarde.
As pessoas observam-nos quando passamos? Não sei; um mundo
interior de perguntas e remorsos serve-me de refúgio. Farid
conduz-nos. Tudo o que sinto é a penosa subida da colina, uma
vaga, incómoda sensação de calor e suor, sol e poeira.
Desperto apenas para os alvos ângulos estridentes de Lisboa
quando se ouve gritar o nome de Simão. Para oriente, a torre
sineira de Santa Catarina parece trespassar o céu azul. Uma
mulher robusta de rosto sombrio, com um lenço branco pela
cabeça, corre para nós aos berros. Detém-se horrorizada à
vista do sangue nas roupas de Simão. Ajoelha-se aos vómitos.
"É a irmã mais velha da mulher de Simão", diz-me uma velhota.
Aponta para uma casa a cair: "Moram no segundo andar". O meu
sentimento de desesperança afunda-se e parece fazer-me
desaparecer da cena. A mulher que vivia com Simão é magra, de
pele escura, e mostra uma elegância natural e precisa quando
nos convida a entrar, revelando um perfil inesperadamente
decidido numa mulher tão jovem. Possui um olhar inteligente;
veste uma túnica larga cor-de-rosa pálido. Emana uma dignidade
que me faz pensar em Reza. Mas é ainda quase uma rapariga.
"Esta é a Graça, a mulher de Simão" - diz-nos a irmã.
Graça corre para a janela para ver Simão quando Lhe conto o
que Lhe aconteceu. As suas mãos agarram-se ao parapeito. Os
seus uivos tornam-se quase animais na sua intensidade, como se
estivesse a chamar o seu filhote perdido numa linguagem saída
das tripas.
Agarra o ventre, e num momento de desespero profundo
comPreendo que está grávida. Assim que as primeiras vagas de
horror diminuem, digo-lhe: "Foi o seu o derradeiro nome que os
lábios dele desenharam". Descemos para a rua. As pessoas
afastam-se. Graça deixa-se cair de joelhos e afaga o rosto de
Simão. Consola-o a falar-lhe de Cristo e da criança por
nascer. Compreendo então o que devia ser evidente: era
cristã-velha. Com uma energia desesperada, protectora, a irmã
de Graça afasta-a, empurrando-a para Farid e para mim.
"Conta-nos todos os pormenores da morte de Simão!", - pede
ela.
Com uma voz que parece pertencer a outra pessoa, explico o
que se passou; Berequias tinha-se escondido no fundo da
couraça do meu corpo. Graça é incapaz de falar. A sua boca
fica aberta, os olhos revelam um desespero cavo. A irmã
pergunta, cerrando os punhos: "Onde havemos de ir pedir
justiça?"
- Quando encontrar aquele estrangeiro - digo, abanando a
cabeça -, logo lho direi.
Farid e eu estamos cobertos de sangue. Vizinhos amigáveis
ajudam-nos a limparmo-nos, dão-nos camisas lavadas e bolsas,
dão-nos queijo e vinho. Demasiado fracos para recusar,
aceitamos as ofertas. Entorpecidos pela bebida, com o passo
balançado, descemos para o centro de Lisboa como quem abandona
uma paisagem bíblica.
Depois de termos devolvido o carro de mão, vagueamos como
espectros pela Pequena Jerusalém. Em frente da tinturaria onde
dantes era o nosso tribunal judaico, comecei a soletrar com os
meus passos Abraão. Depois Judas. Farid ao fim de algum tempo
começa a ficar inquieto. Detém-se, volta-se Para oriente como
um catavento. "Vamos para casa" - acena ele.
Volto-me para oeste para seguir a descida do sol sobre esta
cidade maldita. Esta noite, uma semana depois do começo da
Páscoa, deveríamos escoltar o Zohar até à madrugada com as
nossas leituras. Mas já não temos nenhuma cópia do texto
sagrado. E ainda que tivéssemos. "Não, Para casa não" - grito
na minha voz avinhada. Continuo em Passadas arrastadas até
ficar em cima das manchas do sangue de Simão na calçada da
Pequena Jerusalém. "Ainda não há muito, estas crostas
castanhas corriam no corpo dele" - dizem os meus gestos para
Farid. Abana a cabeça, a confirmar o que lhe parece evidente.
Mas eu não consigo simplesmente acreditar nisso e recordo o
dia de trás para a frente, como quem lê um texto às avessas. A
advertência de Simão sobre o Conde de Almira soa-me aos
ouvidos como se acompanhada pela cadência de pandeiretas
mouriscas.
- Voltemos para Alfama - pedem as mãos de Farid -. Temos de
arranjar maneira de falar com Diego. avisá-lo de que o homem
do Norte o mata de certeza se o conseguir encontrar.
- Não, Diego não vai aparecer por perto de casa e nós também
não vamos conseguir localizá-lo. Vamos para o Palácio dos
Estaus. - Ele abana a cabeça e eu tomo-o pelo braço. - Preciso
que venhas comigo. Escusas de protestar.
Quando Farid e eu chegamos ao Rossio, as cinzas e lascas de
lenha das fogueiras onde queimaram os judeus rodopiam em torno
a nós. A princípio parece ser o único vestígio que resta da
montanha dos pecados cristãos e eu penso: "Os nossos mortos
moram agora apenas na nossa memória". Farid no entanto repara
que não é bem assim. "Olha!" - e aponta com o pé uma fenda
entre as pedras. "Dentes humanos. Deve haver milhares deles
espalhados por todo o largo, enfiados nas rachas da calçada."
Apercebo-me então que por toda a parte se vêem mulheres e
crianças ajoelhados a apanhar estes restos, como se fosse a
época das colheitas. Sem dúvida devem querer guardá-los como
talismãs contra a peste.
Em frente de nós, na borda a nordeste do largo, um regimento
de soldados do rei rodeiam a Igreja de São Domingos formando
um semicírculo diante da entrada. Atrás deles, vê-se uma fila
de cavaleiros, ao todo talvez uns vinte.
- Deve ter havido um acordo qualquer entre o governador e a
hierarquia dos dominicanos para poderem ficar em Lisboa -
comenta por gestos Farid.
- Quando a matança acaba, a Coroa manda as tropas - replico
-. É um grande conforto saber que ele nos apoia com tanta
coragem, não achas?
Enquanto caminhamos, observamos a atitude respeitosa do povo
da cidade, o mesmo povo que um dia ou dois antes era capaz de
exigir a cabeça do rei. "Esta passividade está profundamente
entranhada nas almas dos cristãos portugueses" - penso -.
"Nunca nenhuma revolta há-de aqui ter sucesso." Uma velhota de
olhar astuto à procura de meter conversa como é costume das
pessoas perante a autoridade real, detém-nos e diz:
- Dois dos frades dominicanos foram presos. Não é terrível?
- Que a tua alma amaldiçoada vagueie para sempre pela Esfera
Terrena! - entoo eu passando o meu dedo médio por cima dela.
E vendo o desdém que os seus olhos cristãos me manifestam,
cuspo-lhe aos pés. Apressamos o passo. Em frente do portão do
Palácio dos Estaus, deparamos com dois besteiros corpulentos
ladeando um porteiro todo ataviado, com uma pena no gorro.
Atrás do gradeado do portão, à sombra de um laranjal, vêem-se
três coches. Um deles, pintado a dourado, é o veículo do dia
em que Diego foi ferido.
- O Conde de Almira há-de receber-me - digo ao porteiro -.
Por favor, informai-o que Pedro Zarco está aqui.
- Tendes alguma correspondência para o efeito? - pergunta, a
face contorcida, como se tivesse cheirado alguma coisa podre.
Apercebo-me então que devemos ter o aspecto de vilãos
regressados de um dia de labor nos campos.
- Não tenho cartas, mas ele há-de querer ver-me.
Como ele me olha de alto a baixo, seguro o chapéu cor de
ametista do homem do Norte contra o meu peito e exibo uma pose
de superioridade de um proprietário rural enfadado com a má
criação de um criado. Volto-me para Farid e resmungo qualquer
coisa no meu melhor sotaque castelhano sobre um anunciado
banquete com um amigo fictício chamado Diaz; os castelhanos
irritam, mas impressionam os portugueses, especialmente quando
se podem dar ao luxo de ter criados. O meu esforço parece
forçado, mas pelo canto do olho apercebo-me que o porteiro
passa o recado a um criado de dentro. Esperamos sob o sol
monstruoso de Lisboa, observando os lagartos a deslizar por
entre as falhas da calçada. Farid lança um olhar saudoso para
oriente sobre os telhados da Mouraria.
- Depois de sairmos daqui, vamos outra vez à oficina do
ferreiro perguntar por Samir - digo-lhe por sinais -. Talvez
encontremos alguém que saiba alguma coisa.
Um criado só com uma mão dirige-se a mim: "Venho escoltar o
Senhor Zarco até aos aposentos do Senhor Conde" - diz ele.
- Anda - digo a Farid, e juntos atravessamos o portão.
Dentro do palácio, combinam-se o cheiro de mofo e do âmbar.
Atravessamos um átrio pavimentado com mosaicos a imitar um
tapete persa. As paredes são caiadas e não damos três passos
sem que surja um nicho côncavo. No centro de cada nicho vê-se
um pedestal suportando um grande jarro azul enfeitado com
rosas vermelhas e brancas.
Por cima das nossas cabeças, os tectos abobadados estão
pintados com arabescos dourados e brancos a servir de fundo
aos desenhos finamente executados de pegas, poupas, rouxinóis
e outros pássaros comuns. Não faço ideia do que pensará o
criado dos movimentos floreados das nossas mãos enquanto eu e
Farid desfiamos os nomes locais das várias espécies de aves.
Os seus olhos denotam apenas um interesse passageiro.
Dentro de uma imensa gaiola de rede ao fundo da entrada
vê-se uma árvore contorcida. Quando nos aproximamos,
apercebemo-nos de que em torno dela voejam como setas de
amarelo, laranja e negro, tentilhões da Índia portuguesa e de
África que nela têm ninho. Aponto para o monte de excrementos
esbranquiçados com que eles desfeiam a beleza da exposição.
Mostrando ter percebido a minha observação e considerando-a um
caso perdido, Farid limita-se a replicar com os seus gestos:
"Até um rei pode entender alguma coisa da beleza." - "Se assim
fosse, então não os metia em gaiolas" - digo.
- Para um rei, liberdade e beleza nunca andam juntas! -
responde avisadamente o meu amigo.
Os aposentos do conde ficam no segundo andar. A antecâmara
está pavimentada num padrão em xadrez. No centro da sala está
uma mesa de mármore cor-de-rosa, rodeada por quatro cadeiras
decoradas com as esferas armilares do rei. Somos convidados a
sentarmo-nos, mas na parede à direita da entrada avistamos um
tríptico perturbante que atrai a nossa atenção. Representa um
santo barbudo, prostrado, esmolando numa cidade em ruínas e
povoada por padres com cabeça de rato e todo o género de
esfinges. Com um sorriso disfarçado, Farid comenta: "Alguém
que conhece bem Lisboa." De súbito a porta que dá para os
quartos de dentro abre-se.
- Ah, vejo que gostam da minha pinturazita - diz o conde em
castelhano. Franze os lábios como quem espera uma resposta
interessante. O nariz recurvo e o cabelo negro espesso dão-Lhe
o perfil astuto, esperto, de um asceta, e também um ar
enganadoramente jovem.
- Ainda não sei dizer se me agrada ou não - respondo -. Mas
não há dúvida que o artista tem talento.
- Gosto das pessoas que não se decidem depressa de mais.
Correm menos riscos de ser aldrabadas, não é?
- Não estou interessado em o regatear - digo.
Ri-se com boa disposição. Não mostra sinais de me ter
reconhecido do nosso anterior encontro. Inclina-se para o
painel principal do tríptico depois de ter despedido o guarda
com um aceno imperceptível.
- É terrível o que os santos têm de passar - diz ele -. Não
vale a pena, acho eu. É de um flamengo chamado Bosch. El-rei
Dom Manuel recebeu-o de presente, mas como o detesta, manda-o
pendurar aqui quando venho a Lisboa. - Faz estalar os lábios.
- Sempre gostámos dos restos do rei.
Faz-nos um gesto a convidar-nos a entrar na sala de estar,
como alguém mais velho que convidasse a juventude para a
prudência. Os dois anéis de esmeralda que coroam o seu
indicador e o médio da mão direita parecem de súbito
mergulhados num halo sagrado.
No interior, a rapariga do coche está em pé junto da janela
fechada da parede oposta, com uma mão atrás das costas. Usa
uma gona de seda cor de creme encimada por uma gargantilha de
renda e uma gola franzida. Uma crespina violeta repuxa para
trás os cabelos formando um cone cingido de filigrana de
prata. O seu rosto pálido e suave, curiosamente ameninado,
desenha-se em torno de uns olhos inquiridores. Talvez impelida
pelo meu olhar de afectuosa simpatia, exibe o seu braço
escondido. É pequeno, tosco e grosso, apenas lhe chegando à
cintura. Um estremecimento dos seus dedos minúsculos, que
agarram as suas pérolas, revelam a sua profunda hesitação, mas
quanto mais longamente a fito, mais se define a sua expressão
enternecida. Adivinho que gostaria de passar a ponta dos dedos
pelos meus lábios.
- Minha filha Joana - diz o conde.
Com um misto de gratidão e de desejo, penso: "Louvado seja
Deus por não ser mulher dele." Faço uma vénia e declino o meu
nome. Estendo o braço para Farid e apresento-o. "É surdo e não
pode falar. Mas pode ler nos nossos lábios." Farid inclina-se
com uma profunda graça islâmica herdada de Samir, que se
destina a recordar-nos que somos representantes de Alá e
devemos tratar-nos com a seriedade correspondente às nossas
origens.
- É uma grande alegria tê-los aqui - diz o conde -.
Pouparam-me uma viagem a essa Alfama pestilenta. Mas vamos
instalar-nos convenientemente, está bem?
Segura a filha pelo cotovelo do braço mais comprido e
condu-la através da sala como se para uma dança. Farid e eu
deixamo-nos afundar numas desconfortáveis cadeiras de brocado
dourado e escarlate à volta de uma mesa de mármore com
embutidos. Numa bandeja de estanho vê-se um jarro de cerâmica
cor-de-rosa e quatro cálices de prata. Joana serve-nos vinho.
O conde estuda-nos com um olhar insistente. Nós os dois
parecemos pouco à vontade, hesitantes, como gaivotas em terra.
Farid gesticula: "Quanto mais depressa daqui sairmos, melhor."
- Imagino que quando fazem esses gestos estão a falar um com
o outro - observa o conde. Volta o corpo de lado como fazem
muitas vezes as pessoas desconfiadas, fitando-me por cima do
nariz com um olhar tão curioso como sobranceiro.
- Crescemos juntos e inventámos esta linguagem - explico.
- A linguagem das mãos. E por razões óbvias - diz ele,
acenando a cabeça para Joana - as mãos fascinam-me. Diga-me
uma coisa, soletram as palavras?
- Algumas. Mas temos um sinal para a maior parte das
palavras.
- E quando as soletram, fazem-no em português ou em
hebraico?
Perante o meu silêncio, o conde esboça um sorriso manhoso. O
riso de um homem que gosta de se exibir e de perseguir,
confundir a sua vítima antes de... Inesperadamente solta uma
gargalhada e bate as palmas. "Vejam" - diz ele. Inclina-se
para a frente e coloca um objecto invisível sobre a mesa, como
quem desfaz um embrulho puxa para o lado as pontas, tal como
se estivesse a descobrir alguma peça de metal precioso. Com
uma vénia da cabeça e murmurando algumas palavras, cobre-se
até aos ombros com um xaile imaginário. Volta-se para oriente,
entoa num murmúrio apagado o início das preces vespertinas
judaicas. Assim que as suas palavras se desvanecem, volta-se
com uma expressão delicada pedindo paciência. Diz num
castelhano sussurrado: "Deste século em diante, a
representação será uma boa profissão a estudar pelos judeus.
Predigo que seremos os melhores, em todos os países, em todas
as línguas, até à vinda do Messias, altura em que nunca mais
representaremos papel nenhum." Sorri com os lábios franzidos e
acena como quem aprova a sua própria teoria, endireita-se e
atira ao ar o seu xaile invisível como um mágico. "Por mais
lucrativos que sejam tais papéis. Por isso perdoem esta
pequena comédia. Um actor sem audiência não é nada, e eu tenho
de aproveitar todas as oportunidades que se me deparam."
Faz-me um aceno, depois a Farid. "Lembro-me muito bem de
vocês, de os ter visto na rua. E o seu tio de abençoada
memória, quase a ser apanhado pelos guardas reais com os seus
tefelins à mostra." Inclina-se sobre a mesa para me pegar na
mão. "De nada serve escondermo-nos quando nos encontramos
entre os nossos." - observa.
- Então é cristão-novo? - pergunto, esquivando-me ao seu
contacto frio e suado.
- É - responde Joana.
- E em parte não - acrescenta o conde com um encolher de
ombros de quem se escusa.
Será que a rapariga respondeu por sentir que não confio no
pai? Sentindo o meu fraco por ela, Farid adverte:
- Não ponhas a tua confiança em nenhum deles.
deixo a minha mão no braço de Farid para o tranquilizar, e
voltando-me para o conde, digo:
- Terá de ser mais claro ao falar comigo.
- É muito simples - diz o conde -. Somos e não somos
cristãos-novos.
Temos umas encantadoras cartinhas de perdão de El-rei Dom
Fernando. Louvado seja O que cria uma mancha e a remove. E
conferiu-me também, como é evidente, um belo titulozinho. Como
é que consegui este delicioso pedaço de poderoso nada? Pelo
casamento, meu jovem amigo. Lembre-se disso quando chegar a
altura de semear a sua semente. A mãe de Joana, que Deus lá
tem, brotou dos ramos da árvore de uma família importantíssima
- acena em direcção a sua filha e ergue um dedo como quem se
propõe dizer alguma verdade -.
Importantíssima mas desendinheiradíssima. Foi assim, pelo
dinheiro, que me tornei conde. Não me olhem como se fosse
coisa de somenos. Não, senhor. De maneira nenhuma! Não sou em
nada diferente do próprio rei de Castela. Todos os nobres são
falsos. Olhem por baixo das suas finezas e encontram um aldeão
invejoso excitado com o ver-se aninhado entre as pernas de
alguma criada.
E sempre a gastar de mais. Não se esqueçam disso! Eles nunca
hão-de aprender. É um dos modos de descobrir que não são
judeus. Se forem capazes de aprender alguma coisa, então os
desmiolados dos nossos frades dominicanos hão-de exclamar:
"Ah! Temos judeu!" e fazem-no em fumo. Por isso façam um
montão de dinheiro e comprem o que lhes der na gana, e nunca
cuidem de aprender o que quer que seja, e então, também vocês,
se poderão tornar condes!, - humedece os lábios com um gole de
vinho -. Mas ao fim e ao cabo qual é o vosso negócio?
- Pai - diz Joana -. de certeza que não é necessário...
- Claro que isso é o que tu pensas, minha querida. Para uma
jovem como tu, tudo, a não ser o amor, é desnecessário.
- Isso é o que em Castela consideram ter espírito - dizem os
sinais de Farid -. Se calhar espera-se de nós um sorriso de
admiração.
O conde volta-se para mim com as sobrancelhas erguidas
interrogativamente:
- Perguntei-lhe a sua profissão, Senhor Zarco.
- A minha família possui uma loja de fruta. Mas eu na
realidade...
- Por favor! - exclama, com um gesto de protesto. - Não me
venha com a sua família! Os laços de família são a maldição de
Portugal e de Espanha. Deve pôr-se a andar. ou antes a correr
para longe dela, meu caro!
Olho para Farid a pedir-Lhe uma opinião sobre o que devo
responder. Ele suspira e comenta:
- Está a tentar confundir-nos por qualquer motivo.
- Tem razão - digo, levantando-me.
- Tem razão o quê? - pergunta o conde, confuso.
- Diga-nos só porque é que queria comprar manuscritos a
Simão Eanes - digo eu.
- Mas já Lhe disse, meu filho! Maravedis, cruzados, pretos,
reis! Diga-me lá se o seu coração não bate um bocadinho mais
depressa ao ouvir os gloriosos nomes do dinheiro! São como os
nomes de Deus. Só que nada secretos. Louvado seja O que criou
o óbvio. - Inclina-se para mim, sussurra: - Talvez não devesse
falar nisto, mas... o seu tio sabia-o. Oiça, meu caro, compro
cá os manuscritos por uma ninharia. Vocês, pobres desgraçados,
estão mortinhos por se verem livres deles. E depois vendo-os
por uma fortuna em Alexandria, Salonica, Constantinopla,
Veneza. Até o Papa Júlio, louvada seja a pedra da Igreja, está
interessado. Não há limites para os ganhos que se podem
conseguir. Até sei que tem uns quantos belos poemas
escondidos. Porque não os vende? Assim já podia deixar este
inferno. Até o podia ajudar. Tenho alguns bons conhecimentos
entre os mercadores. Em Faro há um...
Como é que este ratoneiro, este fuinha escorregadio saberá
que meu tio tinha manuscritos hebraicos?
- É mesmo verdade? É tudo por dinheiro? - pergunto,
dirigindo-me a Joana.
Ela fixa os olhos em mim com uma exPressão grave e acena
afirmativamente.
Então este ricaço alvar quer sugerir que meu tio andava a
levar para fora de Portugal as obras de Abulafia e de Moisés
de Leão apenas pelo ouro? Como se tais obras da Cabala
tivessem sequer um preço na Esfera Terrena!
- É tempo de falarmos claramente - digo ao conde, como se
ditasse uma ordem -. Mandou matar o meu tio?
Inclina-se para trás, ofendido, mas recupera e faz um gesto
de apaziguamento.
- Claro que não. Nunca.
- Mas se o que diz é verdade, então devia considerá-lo sem
dúvida um adversário. Podia ter tentado. - a raiva aumenta à
medida que me faltam as Palavras.
- Então, não me quer vender nada? - pergunta ele -. Nem
sequer uma Haggada? Um Livro de Ester? Ou até um...
- Pai, por favor - implora Joana.
- Nada! - digo -. E se descubro que matou o meu tio, juro
que lhe hei-de cortar a garganta.
- Que emocionante ser ameaçado. Espero que me tenha dado um
pouco mais de cor ao rosto.
- Você mete-me nojo - digo.

Capítulo XVII

De perto, o perfume do cabelo de Joana era como um
prolongamento invisível dos meus próprios desejos. Ela
estreitou a minha mão e depois saiu a correr. De dentro da
sala, chegou-me o ruído de uma estalada. "Isto é uma coisa
séria!" - rosnou o pai dela -. "O que é que lhe disseste?!",
Voltei-me para ela, mas os seus olhos flamejaram a advertir-me
que devia partir. Fora dos portões do palácio, respirando à
luz dourada do crepúsculo, repeti por gestos a Farid as
palavras dela. Ele respondeu:
- Cada nome acrescenta uma página ao nosso livro de
mistérios.
- Pois é. E temos de ver a Haggada de meu tio para ver que
página será. Agora começo a compreender. Zorobabel deve lá
estar. E a Rainha Ester também. E quando os encontrarmos,
estou convencido que hão-de ter o rosto dos passadores.
- Há uma coisa que tens que saber - dizem os gestos de Farid
-. Este conde é o mesmo Isaac que te queria vender um
manuscrito hebraico.
- O quê?!
- São uma e a mesma pessoa, Isaac de Ronda e o conde de
Almira.
- Porque dizes isso?
- Porque sim. Para já, os olhos. Não os pode mudar. E alguns
gestos. Deves ter reparado nas mãos finas de Isaac de Ronda.
Ele diz que é um bom actor. Deve ser capaz de mudar a voz,
senão tinhas dado por ela. E o disfarce é excelente. Mas não é
perfeito. E por baixo de todos os seus cheiros, há um que não
desaparece. Essência de cravinho.
- Aquela abençoada dor de dentes! - gesticulo. Quando Farid
aquiesce, continuo: - Mas porque haveria ele de querer vender
um manuscrito numa altura e noutra comprar livros de meu tio?
- Não temos ainda versos suficientes para perceber o sistema
da rima.
- Farid, vamos. temos de voltar a casa para vermos a velha
Haggada de meu tio!
- Preciso de ficar - respondem as suas mãos, enquanto ele
pede escusa inclinando a cabeça -. Agora que me sinto melhor,
queria continuar a procurar meu pai. Vou ter contigo logo que
possa.
Os seus dedos acariciam o meu braço, com a delicadeza de uma
pétala. Recordo-me como os anjos o tinham vestido de branco e
as palavras de meu tio: "Não abandones os vivos pelos mortos."
Mas ainda assim não posso impedir-me de insistir.
- Preciso da tua ajuda. Agora estamos tão perto.
- Beri, por favor não penses só em ti - gesticula Farid.
- Em mim?! Meu tio está morto! Que queres que eu faça? Que é
que todos vocês querem que eu faça?
- Não quero que faças nada, mas deixa-me ir à procura de meu
pai! É melhor ires embora!
Os gestos de Farid cortam o ar entre nós. Apesar disso,
livre de culpa e de medo, sigo atrás dele até casa dos seus
amigos na vizinhança. "Não demoro nada" - diz ele.
Mas os seus esforços para me aplacar apenas servem para
derramar ácido sobre a minha fúria.
Começamos a busca com o silêncio cravado entre nós. A única
pista para o paradeiro de Samir vem de uma fabricante de
anzóis desdentada que vive do lado oposto à antiga mesquita
que foi confiscada. Num árabe que amalgama todas as
consoantes, diz-nos ter visto Samir a rezar em cima do seu
tapete azul na encosta abaixo do castelo. Teria ele parado uns
instantes na sua corrida para casa a fim de pedir a Alá que
poupasse o filho? A mulher aponta um dedo vermelho das
cicatrizes, quase reduzido ao osso, a indicar o caminho
seguido por ele. Umas plantas poeirentas e malmequeres
mirrados assinalam o local. Farid pisa-os e olha, além dos
telhados da Pequena Jerusalém e do centro de Lisboa, para o
Tejo.
- É largo de mais - comentam os seus gestos.
- O quê? - pergunto.
- O rio. Devíamos poder ver o outro lado. Como em Tavira ou
Coimbra. Mesmo o Porto. Aqui não há intimidade. Não podemos
abraçar esta cidade. A amplidão do rio faz-nos sentir que
apenas estamos de visita. Que somos todos insignificantes. É a
maldição da cidade.
- Vamos continuar a busca até encontrarmos mais pistas -
digo. As minhas palavras cautelosas escondem a impaciência que
me consome as entranhas. "Meu tio está morto e eis que este se
põe a arengar sobre abraçar rios" - penso.
Os olhos negros de Farid dardejam com um brilho apagado que
esconde a sua raiva. Apercebo-me de que ambos voltámos a pôr
máscaras. De um para o outro. Pela primeira vez em muitos
anos. Mesmo assim, a despeito de toda a desilusão oculta nas
minhas faces afogueadas, sinto cair sobre mim a certeza
tranquilizante de que a nossa ligação não poderá nunca
romper-se. Nesse momento, e durante muitos dias desde então,
por várias vezes me acudiu o pensamento de que a minha
vida teria sido muito mais simples se eu tivesse sido capaz de
achar satisfação física nos seus braços.
Apressamo-nos a caminho de casa, absortos nos nossos
pensamentos separados. A possibilidade de o conde de Almira
ter estado a fazer de nós bonifrates torna a cidade nos
bastidores recortados de um palco cinzento. Seria a voz
segredada de Joana, também, apenas parte de uma intriga de
bonecreiro?
À entrada da nossa loja, Farid afasta-se em direcção a sua
casa sem sequer um gesto de despedida. Minha mãe e Cinfa estão
a cuidar da fruta nas traseiras da loja. Miraculosamente, as
portas que dão para a Rua da Sinagoga estão repostas nos
gonzos e foram pintadas de azul-marinho. Vou a perguntar como
foi, quando minha mãe diz num tom fatigado:
- Temos estado à tua espera. Estás pronto para dizer as
orações?
Tem o cabelo em desalinho, os olhos modorrentos. Deve ser do
extracto de meimendro.
- Daqui a um bocado - respondo.
- O Shabatjá esperou tempo que chegue! - grita ela.
- Eu venho já!
Na cozinha, Aviboa está adormecida em cima de uma almofada.
Reza está a cozer bacalhau num caldeirão de cobre.
- Esteve cá a Brites - diz ela em voz baixa -. Dei-lhe o
lençol sujo que tinhas escondido no pátio.
- Deus te abençoe - digo, beijando-a no rosto -. Por acaso
apareceu por cá o Rabi Losa?
- Não.
- Quem pintou as portas da loja e as pôs no sítio?
- O Bento. Pediu-me para te dizer que era parte do
agradecimento por teres expulsado o ibbur da Gemila.
- Está bem. Olha, podes ver se acalmas a minha mãe por uns
momentos?
Reza faz que sim com a cabeça. Precipitando-me para a cave,
tiro a chave da geniza da bexiga de enguia e pego na Haggada
de meu tio. Sento-me com ela no colo, o coração a bater como
um tambor, folheio as ilustrações à procura de Zorobabel. A
gravura encima a sexta página das iluminuras que prefaciam o
texto. Na versão de meu tio, é um jovem de longos cabelos
negros e olhos ardentes. Aparece numa atitude de justo orgulho
perante o rei Dario, que tem a expressão decidida do Infante
Dom Henrique, o Navegador. Ambos os personagens surgem diante
da torre de pedra da Quinta das Amendoeiras. Zorobabel segura
na mão direita o rolo da Tora, a essência da verdade.
Na esquerda tem a letra hebraica Hé, um símbolo da mulher
divina, Bina. No indicador e no médio da mão direita brilham
dois anéis de esmeralda. As pedras preciosas revelam-me a
verdadeira identidade de Zorobabel; o rosto dos homens
pode envelhecer, mas não as esmeraldas. Zorobabel não é outro
senão o Conde de Almira.
- A carruagem do sol está quase a desaparecer no horizonte -
grita Reza para baixo -. Estás a fazer esperar a noiva do
Shabat pelos seus esponsais. E hoje é a última noite da
Páscoa. Anda lá!
- Ela que se case sem mim! - grito.
- Não sejas casmurro!
- Reza, tu sabes as orações, não sabes? E também tens boca.
Então fá-lo tu!
- Que serpente te terá engolido a razão, Berequias Zarco?
Bem sabes que não posso ser eu a conduzir as orações.
- Então diz à minha mãe. - digo -. Deixa-me em paz. Por
favor!
- Precisamos de um homem, meu estúpido!
É blasfemo, mas grito:
- A noiva do Shabat precisa da fala, não de um falo! A Cinfa
que conduza, se tu tens medo.
Reza bate com a porta do alçapão. Agora reina a paz. Passo
as gravuras da Haggada à procura da Rainha Ester. O seu rosto
real fita-me logo na página seguinte. A sua identidade faz
bater o meu coração apressadamente; Ester, a rainha judia que
manteve secreta a sua religião e que mais tarde salvou o seu
povo da ira do celerado cortesão Aman não é outra senão Dona
Meneses! A gravura representa-a levando a Tora a Mardoqueu,
o seu pai adoptivo. Sob o braço, parcialmente escondido, vê-se
um manuscrito, provavelmente o Bahir, o Livro da Luz, pois
meu tio mostra-o com um halo brilhante. A face de Mardoqueu é
de alguém que não conheço. Mas usa uma cruz bizantina, um
xaile ritual judaico e um albornoz azul debruado com
arabescos verdes. Será uma referência a alguém da Igreja
Oriental? Um amigo judeu num reino mouro? Um derviche turco?
"Alguém que reconcilia todas as religiões da Terra Santa" -
ouço meu tio dizer. Para mim próprio murmuro: "Ou um homem que
usa as três máscaras."
"Talvez" - penso - "seja Tu Bisvat."
Todos estes achados esvaziaram-me de outros pensamentos
durante algum tempo. Mas compreendi então que descobertas tão
importantes precisavam da confirmação dos olhos de falcão de
Farid. Assim que a minha cabeça apareceu de fora do alçapão,
Reza diz: "Então, Berequias Zarco, sempre ganhaste juízo?"
Passo a correr por ela, desviando o olhar da cerimónia do
Saabat. Farid está no seu quarto. De joelhos, voltado para
Meca, os olhos cerrados, inclina-se para o chão como uma folha
de palmeira curvada pela brisa. Os olhos porém mantêm-se
fechados. Inclina-se de novo. Sinto-me ficar rígido de fúria,
vendo como se recusa a reconhecer a minha presença com algum
gesto. A palavra traição grava-se no meu espírito.
Com o calcanhar, bato três vezes no chão, depois uma, depois
mais quatro vezes. Ele senta-se. Abre uns olhos passivos. Com
um gesto peço. "Por favor, preciso da tua visão clara".
Levanta-se, o rosto fechado numa expressão seca de fingido
desinteresse. Deslizando como um espectro, segue-me até minha
casa. Reza diz numa voz delicada: "Ficas connosco agora?" Não
a olho nem respondo. Enfiamo-nos na cave.
Farid dá uma olhadela a Zorobabel e comenta: "É o conde de
Almira!" Quanto à Rainha Ester, não está tão seguro até lhe
apontar o colar de esmeraldas e safiras que ela traz sempre ao
pescoço. "É ela, é" - confirmam os seus gestos.
"Uma alquimia imprevisível para meu tio" - penso -
"transformou o amor destes amigos em medo. Depois em ódio e
finalmente em morte E quem poderia ser mais medroso que os
cristãos-novos? E mais odiosos que os nobres portugueses? Quem
mais indicado, pois, para trair meu tio senão os nobres
antigos judeus que Lhe serviam de passadores dos livros
hebraicos, Zorobabel e Rainha Ester?
Teria alguma coisa corrido mal entre eles recentemente? Tu
Bisvat escreveu que uma safira que meu tio lhe tinha enviado
não tinha chegado ao destino. Talvez Dona Meneses tivesse
começado a desviar os ganhos, destinados a comprar novos
manuscritos. Ou talvez os juízos desassombrados de meu tio
tivessem começado a constranger os métodos de negociar de
Zorobabel. Teria ele começado a vender os livros noutra parte?
O vil Aman, então, estaria retratado por meu tio na sua última
Haggada, a que fora roubada da geniza, como um conde de Almira
alguns anos mais velho. Era esse o rosto que meu tio
procurava, e que ele tinha finalmente encontrado exactamente
antes da ceia de Páscoa.
E no entanto, se o conde era culpado, se tivesse querido
silenciar Simão e os demais iniciados que poderiam conhecer a
sua identidade, então porque teria aceitado conduzir Diego ao
hospital?
- Temos de encontrar a Haggada roubada para provarmos que o
conde matou ou mandou matar meu tio - comunico por gestos a
Farid.
- Como? - pergunta.
- Temos de arranjar um ardil qualquer para apanhar Dona
Meneses e o conde. São eles quem a deve ter.
- Berequias! - chama Reza de súbito - tens aqui uma visita.
"Frei Carlos! Será uma artimanha de minha mãe para me obrigar
a subir?"
- Diz-lhe que desça!" - grito.
- Quem é? - pergunta Farid.
- O frade - respondo.
Enfio a Haggada e as cartas no esconderijo, fecho a tampa e
meto a chave da geniza na bexiga de enguia. Frei Carlos desce
as escadas às apalpadelas. Tem a fronte perlada de suor e a
respiração é custosa, como se tivesse vindo a correr.
- O Judas? - pergunto.
- Nada. - Aproxima-se de mim, toma-me as mãos. Numa voz
tremente, diz: - Tens de me ajudar!
- É o estrangeiro? Anda atrás de si?!
- Não, não... não é isso. Mas, santo Deus. Estive a falar
com os dominicanos. Devem ter invocado algum demónio para me
matar. Berequias, cheguei a uma conclusão, é que o mal é
invejoso. O Demónio quer destruir tudo o que há de bom. E a
bondade de teu tio tinha tal poder que sarava tanto a Esfera
Terrena como a Esfera Celeste. Se o Demónio quisesse... Acho
que ele e os dominicanos mandaram outros demónios
perseguir-nos. Maimon Branco. Gemila viu-o. Ela tinha razão!
Nos seus olhos frenéticos podia ver que a insânia de Lisboa
tinha acabado por dominar o frade.
- Frei Carlos, por favor, pare com isso! Não tenho tempo
para discursos por metáforas.
- Então olha-me para isto! - grita ele.
Saca de outro talismã. Num quadrado de velino polido, letras
hebraicas minúsculas formam dois círculos desenhados
toscamente com citações dos Provérbios. No círculo de fora
pode ler-se: "A violência é o alimento e a bebida do traidor";
e no de dentro: "As brasas do ímpio apagar-se-ão."
- Encontrei-o no forro da capa! - grita Frei Carlos -. Na
minha capa! Como explicas uma coisa destas?! Como!?
- Caluda! - digo. Tiro da bolsa o talismã que ele me dera
outro dia. A escrita deste, tal como o anterior, apresenta a
mesma letra, precisa em certos pontos e noutros menos segura,
como se executado por alguém enfraquecido pela doença ou por
vinho a mais. Quando o passo a Farid, ele cheira-o, lambendo-o
depois.
- Parece a tua tinta - dizem os seus gestos.
- A minha tinta?! - Ao dizer isto, a solução desce sobre mim
e faz-me subir um ronco das tripas. Andei a evitar a resposta
óbvia. - Frei Carlos, estes rabiscos nada têm a ver com a
morte de meu tio - digo. Giro o pergaminho nas mãos,
confirmando pela sua textura a identidade do artista. - Venha!
- digo ao frade.
Ele e Farid seguem-me para a cozinha. Minha mãe está a dizer
as orações numa voz fraca. Detém-se para me fitar com olhos
resignados, pesados. Reza preenche o silêncio com o olhar fixo
da sua justa desaprovação, uma expressão que Cinfa copia.
Precipitamo-nos para o quarto de minha mãe. Do painel secreto
por cima do umbral da porta, retiro os talismãs que ela anda a
fazer. A escrita minúscula é idêntica.
- Não entendo - diz Frei Carlos.
- Minha mãe deve ter ouvido a sua discussão com meu tio.
Pensou que podia ajudar. A razão assombrada pela mágoa e os
cuidados provoca tais monstros. Este último, deve tê-lo
enfiado na sua capa quando ficou cá a dormir a noite passada.
Andou a tomar extracto de meimendro, por isso não consegue
escrever normalmente, nem pensar com acerto. Perdoe. Tenho a
certeza que não fez por mal. Era só para conseguir o livro de
Salomão Ben Gabirol que meu tio tanto queria. No estado em que
se encontra, pode até ter imaginado que isso lhe podia trazer
o irmão de volta. Entrelaçaram-se dois mistérios e nós
pensámos que eram uma e única coisa.
Se tivesse prestado bem atenção às minhas próprias palavras,
talvez não viesse a cometer o erro em que estava prestes a
cair.
Farid, Frei Carlos e eu próprio dirigimo-nos à loja onde não
podíamos ser ouvidos pela minha família a discutir o que havia
a fazer. Depois de ter explicado a Frei Carlos as identidades
dadas a Zorobabel e à Rainha Ester na Haggada de meu tio,
Farid diz com gestos decididos:
- Vamos voltar ao Palácio dos Estaus, enfrentar novamente o
conde de Almira, e forçá-lo a reconhecer-se culpado.
- E se o conde recusa? - pergunta o frade quando lhe traduzo
os gestos.
Farid retira da sua bolsa a mais terrível adaga da sua
colecção, seis polegadas de ferro mortalmente afiado, curvo
como uma foice. Roda-o ameaçadoramente debaixo do nariz do
frade.
- O conde não vai recusar! - assinala ele -. E sabe porquê?
Porque um actor precisa da sua voz. Encosto-lhe a ponta à maçã
de Adão e se ele não nos responder a verdade tiro-lhe o caroço
com um único golpe.
O frade dobra-se para trás e afasta a mão de Farid.
- Não sei o que é que ele esteve a dizer, mas não gosto
disto - diz ele, voltando-se para mim -. Dona Meneses. É mais
capaz de nos dizer a verdade.
- Porquê? Por ser mulher? - replico, com sarcasmo -. Se for
judia secreta e tiver de esconder a sua identidade, não há-de
hesitar em mandar os seus homens de armas cortar-nos a cabeça!
- Joana, a filha do conde - diz Farid com os seus gestos -.
Ela ajuda-nos.
- Se conseguirmos chegar até ela.
Traduzo a nossa conversa para Frei Carlos, quando se ouve
bater à porta de minha mãe que dá para a Rua da Sinagoga.
Corremos para abrir e deparamos com um miudito de cara redonda
e olhos protuberantes. Tira um bilhete da sua bolsa e
estende-mo. "Um recado" - diz ele. Mal pego nele, desaparece a
correr.
"Berequias" - lê-se no recado - "vem ter comigo à Estrada
Real que vai para Sintra, mesmo antes de Benfica. Estou à tua
espera junto das duas azenhas que ficam por trás das ruínas da
igreja visigótica. Vem sozinho. Não fales nisto a ninguém. E
vem imediatamente. Descobri uma coisa que tenho de te dizer
sobre a morte de Mestre Abraão." O recado está assinado com a
escrita recortada de Diego.
Frei Carlos tira-me o recado das mãos. Depois de o ler,
diz-me:
- Não vás, meu filho. É ainda muito perigoso andar sozinho
em Lisboa.
O dever de pôr Diego de sobreaviso quanto aos passadores e
de o informar das suas identidades pesa-me no peito. E talvez
também ele tenha descoberto alguma coisa que me ajude a
encurralar Zorobabel e a Rainha Ester.
- Não, tenho de ir - digo -. É noite e agora também não há
muito que eu possa fazer. - Volto-me para Farid, tomo-o pelo
ombro e esboço uma desculpa pelo meu comportamento anterior. E
acrescento: - Não me apetece nada ir sozinho, se me concederes
a tua companhia.
Farid fecha os olhos e faz-me uma inclinação de anuência.
Saímos antes de as súplicas da minha família se tornarem em
choradeiras e maldições, antes de Cinfa me poder fixar
completamente no interior do abandono dos seus olhos. Farid
passa em sua casa para enfiar as sandálias do pai.
Esta noite de sexta-feira adensa-se com o áspero vento de
leste, da amaldiçoada Espanha. Na estrada de Sintra, passados
os arcos descobertos da igreja visigótica, começamos a descer
uma vereda de terra batida que vai dar às azenhas abandonadas.
As suas formas surgem estranhas e lúgubres ao luar. A seis
léguas, a serra de Sintra recorta-se no horizonte como uma
nuvem caída a apontar no céu uma resposta fora de alcance.
Farid fareja o ar como um coeLho, vigia as vizinhanças. Um
falcão branco voa em círculos por cima de nós, pairando nas
correntes de ar, uma criatura liberta da terra, para além da
história.
- A atracção pelas aves será porque nos fazem antever a
nossa libertação deste mundo? - pergunto por gestos ao meu
amigo.
- Talvez porque partilham e ao mesmo tempo escapam à nossa
jornadas - respondem as suas mãos. Fareja de novo em torno. -
Passaram por aqui veados há pouco tempo. - E com movimentos
reflectidos, cautos, acrescenta: - E mais alguma coisa. - Dá
mais uns passos, agacha-se, passa os dedos por uma marca que
os seus olhos de surdo enxergaram no chão. - Homens - conclui.
Aponta para uma marca que os meus olhos não distinguiram -. Um
de botas. Corpulento, com passadas pesadas.
- Talvez o Diego - digo.
- E mais dois homens. Um pequeno que coxeia. O outro
hesitante, sempre a voltar-se para olhar em torno.
- Esse é que é o Diego - sorrio eu -. Os outros são
provavelmente os seus guardas.
Apressamo-nos. Uma figura em forma de barril na vereda antes
de chegar às azenhas toma formas angulares, move-se
repentinamente. A forma de um homem caído por terra começa a
desenhar-se à luz argêntea do luar. De cabelos compridos e
ombros largos, arrasta-se como uma lagarta, com a perna
esquerda aparentemente ferida a arrastar-se atrás
lastimosamente. A agonia dos seus roncos cortam os sons do
vento na noite.
- É o homem do Norte que tirou Simão da sua concha! - diz
Farid com gestos agitados. - Vendo-o de perto, as suas feições
toscas, duras, não mentem. É ele mesmo.
Estacamos junto dele como torres. É enorme, corpulento, como
um touro tornado humano. Ergue-se nos joelhos. Recuamos. As
nossas adagas assomam aos nossos punhos. Uma mancha de
humidade escura ensopa-lhe as coxas.
- Mataste o meu amigo - digo -. Porquê?
Responde numa língua estrangeira que não compreendo.
- Inglês, francês, holandês? - pergunto.
- Flamenco - responde num castelhano estropiado -. De
Bruges.
"Terá ele aprendido como shohet entre os judeus asquenazins
do Norte?" Aponto para ele e pergunto:
- Nuevo Cristiano?
- Viejo - responde ele, com uma gargalhada curta. Aponta
para si próprio e murmura: - Muy viejo cristiano.
- Porque mataste Simão? - E face ao seu encolher de ombros
indecifrável, encolhe a perna, com o pé encostado ao traseiro,
a imitar o coto de uma perna. - Porcué él?
Solta uma risada, que lhe provoca um acesso de tosse. Fecha
os olhos e dá um jeito à cabeça a indicar que era inevitável.
- Dona Meneses? - pergunto -. Conhece-la?
Sorri e acena afirmativamente. Quando me volto para perceber
os gestos de Farid, o flamengo atira-se a mim. Sou derrubado
pelo seu peso taurino. Esbracejo, mas as suas mãos calosas
apertam-me a garganta. A minha faca enterra-se a fundo no seu
ombro. Grito por Farid. Lutamos. Mas ele é muito forte. O
torno das suas garras aperta-se. Arquejo. A tosse retida na
garganta explode inundando de lágrimas os meus olhos. E apesar
disso consigo ver claramente. Como um escaravelho apanhado no
âmbar: olhos salientes, rosto congestionado, a boca contorcida
de ódio.
Compreendo que há um momento em que a morte é aceite como
inevitável. As minhas mãos abrandam o aperto em torno dos seus
pulsos. Não me possui nem a raiva nem o medo. Só a distância.
Como se me visse atrás de mim próprio e me voltasse para me ir
embora. Como se meu tio me chamasse do outro lado da Rua da
Sinagoga: "Berequias, vê se me ouves! Estou aqui à tua
espera..."
Uma dor acutilante. Queima-me a garganta uma constrição como
a de uma corda. Da boca do flamengo saem esguichos de um
líquido salgado. Vejo-me derrubado de costas. Os olhos
ardem-me, os meus lábios estão ensopados de sangue. As suas
mãos apartam-se como uma cancela que se abrisse. Sinto que
retiram aquele peso de cima de mim. A face de Farid
aproxima-se. Uma mão segura-me, a outra desenha o meu nome.
Respirando em largos haustos, reparo na adaga de Farid
enterrada na nuca do flamengo. "Estou bem" - digo com as mãos.
- Matei-o - dizem os seus gestos. Desta vez não há hesitação
nas mãos de Farid: os dedos espetados, um punho cerrado,
depois gira as mãos com as palmas para baixo como quem corta
um ramo de um tronco de árvore.
Farid retira as nossas armas do corpo do assassino, limpa-as
às calças. Suspendemo-nos sem gestos, a não ser os dos meus
agradecimentos. Que mais dizer? Caminhamos para as azenhas.
Junto à base da mais próxima, na vereda, jaz um homem com a
cara voltada para cima, os olhos de peixe esbugalhados fixando
a fatia da lua no alto do céu. O pescoço está ainda quente da
vida eclipsada. Quando me agacho para o ver mais de perto,
desenha-se um rosto que eu reconheço: o do guarda que
acompanhou Diego a minha casa. Murmuro uma prece para que
Diego não tenha sido igualmente chamado à presença de Deus.
- Ouves alguma coisa? - perguntam os sinais de Farid -.
Sinto mexer aqui perto.
- Não.
Subitamente, Diego surge de detrás da azenha. Traz uma capa
grossa, forrada a pele que Lhe cai até aos tornozelos. Mesmo a
esta luz pálida, posso ver que o rosto está perlado de suor.
- Estás salvo - digo -. Porque não...
- Berequias, eles... eles andam a matar todos os do grupo de
iniciados! - diz numa lamúria - Todos nós... Não se está
seguro em parte nenhuma. Temos... temos de...
- Calma. Matámos o flamengo lá atrás na vereda.
- Isso não basta - diz Diego, agarrando-me pelos ombros -.
Já apanharam o teu tio e Sansão e Simão, e agora vieram atrás
de mim! Não vês? O grupo de iniciados... Todos nós!
- Não te aflijas - digo, colocando as minhas mãos no seu
peito -. Agora sabemos quem eles são. É Dona Meneses. Ela e o
conde de Almira estão por trás disto tudo. Devem pensar que os
membros do grupo sabem quem eles são e podem acusá-los às
autoridades reais.
- Dona Meneses?! É impossível! Ela nunca...
- Era ela quem passava os livros de meu tio lá para fora -
digo.
- Mas ela é uma fidalga!
- Ainda melhor para passar livros hebraicos em segurança
para fora de Portugal, não achas?
Diego fita a noite ao longe como se a sua resposta pudesse
estar algures na escuridão do horizonte. Voltando-se novamente
para mim, diz:
- Não sei. Nunca me passou pela cabeça. - põe os olhos no
guarda morto -. Fernando feriu o flamengo na perna, mas aquele
sacana loiro tinha jeito para o punhal. Meu Deus! Não posso
voltar para Lisboa.
- Então contas ficar aqui o resto da tua vida?
- Não vou deixar-me apanhar! Quando nos deitam em cima
aquelas gotas de óleo fervente é como se nos tirassem a pele
com uma lâmina enferrujada. Rezamos para que a nossa vida
acabe. Estamos prontos a aceitar tudo. Não posso deixar que
isso me volte a acontecer. Nunca! Estás a ouvir? Nunca mais!
Subitamente, recordo a linha espessa da cicatriz que lhe
atravessa o peito que vi quando ele tombou na rua.
- Sofreste a tortura da pinga? - pergunto.
- Em Sevilha - responde ele -, havia um especialista que era
capaz de fazer desenhos no nosso corpo com azeite a ferver e
cinzas que ele esfregava nas feridas. Uma vez desenhou gota a
gota toda uma cena da Paixão no peito de uma rapariga de
dezanove anos que tinha cometido o crime de pôr lençóis
lavados à sexta-feira. Mas sem que ela morresse. Os peitos
dela tornaram-se nas colinas de Jerusalém, o umbigo o coração
de Cristo. Era demasiado para...
- Diego, ouve. Eles também podem muito bem mandar alguém
atrás de ti. Onde quer que vás. Estavas mais seguro na cidade.
Com pessoas de confiança.
- Em minha casa não - irrompe ele aterrorizado. O vento
despenteia-o e apercebo-me de que deixou de usar turbante.
Estamos a perder cada vez mais a aparência de judeus, nestes
últimos tempos. - Eles hão-de ir lá ver. E quando perceberem
que o assassino que mandaram atrás de mim está morto, hão-de
mandar outro.
- O que eu queria dizer é que ficas em nossa casa - digo eu.
Observo-o, enquanto ele, de olhos no chão, considera a
proposta. Dir-se-ia que a aceita, e por isso pergunto: - Já
agora, porque me mandaste chamar para vir aqui?
- Berequias, lembrei-me de uma coisa importante. Aquele Dom
Miguel Ribeiro, o fidalgo para quem tua tia Ester copiou o
Livro dos Salmos, teve uma discussão com teu tio há uma semana
- toma-me pela mão, prossegue num murmúrio -. O teu mestre
referiu-se a isso por acaso no nosso grupo. Tirei inculcas e
descobri que Dom Miguel está escondido nuns estábulos não
muito longe daqui. Nos arredores de Benfica. Pensava mandar o
meu guarda contigo. Para o apanhar durante a noite. Mas agora,
não sei se... - As palavras desvanecem-se, enquanto ele olha
em torno.
- Diego, sei tudo sobre essa discussão. Dom Miguel e o meu
tio tiveram uma disputa por ele se recusar a aceitar o seu
verdadeiro passado, o seu judaísmo. Soube-o por...
- Não é isso! Foi por causa do livro. o Livro dos Salmos que
tua tia copiou. Ele não queria pagar o preço combinado. Ao que
parece, ameaçava contar às autoridades que os teus tios tinham
manuscritos hebraicos escondidos se não lhe dessem o livro.
Agora estou a pensar que talvez estivesse ligado a Dona
Meneses. Deve haver uma ligação qualquer.
- Não, não. Meu tio mandou-lhe um recado a pedir-Lhe que
servisse de passador - digo.
No escuro, Farid não consegue ler os lábios. Quando traduzo
por gestos as palavras de Diego, ele contrapõe:
- Mas Dom Miguel é rico. Tinha meios para pagar o trabalho
de tia Ester. E poupou-te a vida quando foste à procura dele.
Podia ter-te matado com toda a impunidade.
- Que está ele a dizer? - pergunta Diego.
- Que isso não faz sentido.
O iniciado solta uma risadinha irónica e toma-me pela mão:
- Achas que há alguma coisa que faça sentido ao longo da
semana que passou? Deixa que te diga uma coisa, meu rapaz. A
Esfera Terrena não é guiada por lógica nenhuma que tu possas
encontrar escrita na Cabala.
Diego passa por cima do corpo do flamengo. Cospe-Lhe na
cabeça e dá-lhe um pontapé. Depois prossegue, suando como um
animal de carga. No seu tom erudito, vai divagando sobre
partir para Rodes e Constantinopla num barco que vai sair de
Faro daqui a uma semana. Quer deixar Lisboa e começar a
jornada para sul amanhã à noitinha.
- E Constantinopla é uma cidade tão bonita - diz ele -. Nada
que se pareça com Lisboa. Até lá chove... Grandes e belas
gotas de chuva. Como pérolas. E boa para os cabalistas,
também. É onde a Ásia se encontra com a Europa, onde dois se
tornam em um, como dizia o teu tio. Lembras-te quando...
A poeira e a noite e a voz errática de Diego entrelaçam-se
como uma corda em torno dos meus pensamentos. Por cima de nós
volteiam abutres, que nos seguem até Lisboa. Quando
descansamos, passadas as portas da cidade, no Chafariz
da Esperança, molho a cara e o cabelo. Cogito qual poderia ser
a secreta ligação entre Dom Miguel Ribeiro e os passadores.
Fito Diego através da cortina de água que escorre. Penteia a
barba recente que já lhe cobre as faces e o queixo. "A limpeza
é uma tarefa sagrada" - lembra ele.
Talvez seja. Mas o que define o seu ser interior? Será ele o
Judeu Errante em pessoa, um ser aterrorizado algo menos que
humano, pronto para mais uma migração para mais uma terra
hostil? Será nisso que todos nos tornámos, personagens
inventados pela mitologia cristã?
Quando chegamos a minha casa, o pequeno Didi Molcho corre ao
nosso encontro da nossa cancela.
- Encontrei-o, Beri! Encontrei-o! - grita.
- Quem?
- O Rabi Losa!
- Onde está ele?! - pergunto.
- Na micva. É o casamento de Murça Benjamim.
- O quê. agora? Era para ser amanhã. Já deve passar bastante
da meia-noite. E ainda estamos no Shabat.
- É para enganar os cristãos - murmura ele -. Mudaram a boda
para hoje à noite.
Caminhamos juntos para o pátio. Frei Carlos sai ao nosso
encontro. Ele, Didi, Diego, Farid e eu, encontramo-nos junto
do tronco decepado do nosso limoeiro.
- Tenho de tirar a limpo umas coisas com o Rabi Losa,
certificar-me que não tem nada a ver com isto. Não demoro.
Começam todos a tentar dissuadir-me.
- É perigoso para os judeus estarem juntos em rituais -
conclui Diego, falando em nome dos demais -. E se os cristãos
te descobrem?!
A minha falta de confiança em Losa é tão grande que não
posso resistir ao impulso de o enfrentar.
- Mesmo assim - digo - "tenho de ir. Além disso, não podemos
fazer nada quanto à Rainha Ester e a Zorobabel durante a
noite. Assim que romper a madrugada, começo a tirá-los da
toca."
Deixo os meus amigos e dirijo-me à micva e à cerimónia do
casamento de Murça Benjamim. Sendo uma viúva sem filhos,
viu-se obrigada pela lei do casamento levítico a casar com o
irmão mais velho do defunto marido agora que ele aceitara
tomá-la como noiva.
Um homem magríssimo com o rosto escondido num capuz vigia a
porta do balneário.
- Posso entrar? - pergunto -. Sou amigo de Murça.
- Mexe-te.
As escadas são alumiadas por tochas nas paredes. Um pequeno
grupo de testemunhas, com capas bruxuleantes de sombras e luz,
está reunido no compartimento central, os homens à frente, as
mulheres atrás. Mas à medida que desço, reparo que há qualquer
coisa de anormal. O Rabi Losa está sentado no centro de um
tribunal de cinco juízes. Estremece como se alguma coisa o
queimasse quando me avista. Os seus olhos maldosos revelam um
terror gélido. A raiva aperta-me as virilhas, quente e
imperiosa.
Mas, afinal, que se passava? Murça está em pé em frente do
seu cunhado Efraim. Tem o cabelo apanhado, protegido por um
lenço de burel. Mostra um rosto cansado, desanimado e as mãos
tremem-Lhe. Entre os dois vê-se um prato de barro preto no
chão. A haliza! Oh, meu Deus, quando nos alcançará enfim a Tua
misericórdia? Depois dos motins contra os judeus, Efraim deve
ter renegado o seu acordo de casamento. Vai já longa a
cerimónia que o libertará dessa obrigação. Quanto a Murça,
também ela, se verá libertada. Mas para que futuro? Com um
dote reduzido e com metade dos jovens judeus de Lisboa feitos
em cinza, são escassas as probabilidades de encontrar a
felicidade que merece.
Efraim anuncia numa voz solene a sua recusa em casar com
Murça. Com sílabas hesitantes, trementes, Murça replica em
hebraico: "Meén yebami lehakim leahiv shem beyisrael lo aba
yabmi" e seguidamente repete as suas palavras em português,
para que todos possam entender: "O irmão de meu marido
recusou-se a firmar um nome em Israel para o seu irmão e não
quer tomar-me em casamento segundo o ritual levítico", Ouve-se
um suspiro saído do fundo das entranhas, quando acaba.
- Compreendes o que ela disse? - pergunta o Rabi Losa a
Efraim.
- Compreendo.
Os juízes levantam-se. Murça caminha lentamente para Efraim,
agacha-se, e com a mão direita começa a desapertar as
presilhas da sandália de couro que dão três voltas à perna
dele. A sua respiração arquejante arranha o ar. Quando as
correias pendem livres, levanta-Lhe o pé e descalça-o.
Erguendo-se, inclina-se para trás para ganhar balanço e atira
a sandália para o espaço entre Efraim e os juízes. O Rabi Saba
dá uma cotovelada a Losa e murmura qualquer coisa ao seu
ouvido; aquele renegado idiota tinha-se esquecido do seu papel
na cerimónia, tal o medo que me tem. Numa voz precipitada, diz
a Efraim: "Repara no cuspo que sai da boca dela." até chegar
ao chão Murça treme, inclina-se para trás com um grande
esforço e cospe no prato negro para simbolicamente humilhar o
cunhado por se recusar a dar-Lhe filhos. Com ar desafiador,
Efraim recupera a sua sandália e passa-a ao Rabi Losa como
quem estende uma convocação. Todos os cinco juízes entoam em
uníssono: "Que seja vontade de Deus que as filhas de Israel
nunca venham a precisar da haliza ou do casamento levítico."
Acabada a cerimónia, Murça pende para o chão. Quando as
mulheres se precipitam para ela, Losa rompe em direcção às
escadas. "Todos os rabinos sabem como se mata como um shohet"
- penso -. "Era ele quem andava a atemorizar os passadores de
meu tio. Foi essa a razão por que Deus me fez assistir a esta
cerimónia!"
Empurro os homens da galeria, precipito-me atrás dele. No
exterior, avisto-o a arrastar-se para sua casa. Alcanço-o em
poucos instantes. As minhas mãos apertam-se em torno da seda
da sua gola. Quando o esfrego contra a parede da casa de
Samir, digo:
- Um grande sábio e o rabi dos rabis como você é não deve
ter tanta pressa para se ir embora.
- Deixa-me passar, sodomita! - diz ele, procurando
empurrar-me.
- Está a confundir-me com Farid, alguém que gosta de homens,
mas você não é digno sequer de Lhe pronunciar o nome.
- Será que me queres bater aqui mesmo na rua em frente de
toda a gente? - olha em torno para me forçar a reparar no
pequeno grupo que se formou em volta de nós.
- Isso mesmo - digo eu -. Não me interessa o que os outros
pensam de mim. Mas vou ser justo. Não o mato pelos seus crimes
contra o nosso povo, a não ser que chegue à conclusão que foi
você quem matou meu tio.
- Matar o teu tio? Eu?!
- Que tem isso de surpreendente? Você traiu-o! Ousa negá-lo?
Pegou no seu cutelo de shohet e cortou-lhe a garganta.
- Claro que nego. É certo que não gostávamos um do outro.
Mas há todo o Mar Vermelho entre detestar e matar. E eu não o
atravessei.
- Onde estava no domingo dos motins? - pergunto.
- Em casa a rezar. Tenho uma filha doente.
- A Deus ou ao Demónio?
- Pudesse um javali selvagem pôr a língua em...
Bato com a cabeça dele na parede. Guincha e rosna.
- E testemunhas?! - pergunto.
- Ambas as minhas filhas passaram o dia comigo!
- O dia todo?
- Sim.
- Então porque é que os dominicanos o pouparam?
- Porque agora trabalho para a Igreja, estúpido! - grita
ele.
- As suas filhas estão em casa?
- Não te atrevas.
Uma semana a dormir pouco e a comer menos começa a cobrar o
seu preço sobre a minha razão e comedimento. Puxo o
aterrorizado rabino pela Rua de São Pedro abaixo em direcção a
sua casa. Uma parte recuada de mim apercebe-se que
permiti que o meu desespero levasse a melhor de mim próprio.
"Estarei com medo de enfrentar a verdade, de ligar todas as
pistas entre si até formarem um verso facilmente inteligível?
Estão todas cuidadosamente guardadas na minha memória de Tora:
o Maimon Branco de Duas Bocas; o apedrejamento de Diego; o
golpe de shohet na garganta de meu tio; as cartas de Tu
Bisvat. Se fossem citações da Tora ou da Cabala, poderia tecer
com elas um comentário sensato, uma resposta. Estarei apenas
com medo de acabar a jornada para a vingança e passar através
do último Portão do Vazio para a morte de meu mestre?

Capítulo XVIII

Segundo a Cabala, o mel possui a sexagésima parte da doçura
do maná; o sonho a sexagésima parte do poder da profecia; o
Shabat a sexagésima parte da glória do mundo que há-de vir.
E o sono da doença, que fracção da morte possuirá?
Raquel, a filha mais nova do Rabi Losa, está estendida sob
um cobertor de lã, de lado, com as costas da mão curvada como
uma barbatana sobre a fronte como se procurasse proteger-se de
algum ogre. Tem os olhos fechados, mas estremece a todo o
momento, Parecendo que afasta uma algidez interior.
Ester-Maria, a irmã mais velha, está sentada de vela aos pés
da cama com os olhos tristes avermelhados da determinação que
esmorece. Passa por entre os dedos um rosário. Saúda-me, como
costumam fazer aqueles que estão para além das palavras, com
um aceno, que parece de reconhecimento, mas também de
distância. Observo a fraqueza do corpo da criança como que
réplica da recusa de Murça por Efraim. As promessas romPidas
da traição parecem constituir a cola que sela as nossas vidas
conjuntamente.
- Há quanto tempo está assim? - pergunto.
- Desde sexta-feira passada - replica Ester-Maria -. Mas a
princípio não estava assim tão mal.
- E seu pai esteve com ela todo o dia de domingo?
- Isto é absurdo! - resfolega Losa. - A interrogar a minha
própria...
- Esteve - murmura Ester-Maria, erguendo a mão a aquietar
seu pai -. Todo o dia e toda a noite.
Levanta-se, comprime os punhos contra alguma parte dorida no
fundo das costas - Pergunto por causa do que aconteceu a meu
tio. Foi...
- Todos ouvimos falar no caso - interrompe ela, com um aceno
de compreensão -. Não precisa de dar explicações. Oiça, quando
os cristãos-velhos vieram, ficámos escondidos em casa. Meu pai
disse que seríamos poupados, mas quem Pode confiar em
criminosos? Até... seria terça-feira? Parece que já nem sei
bem os dias.
- Então porque não me deixou entrar quando cá vim
procurá-lo? - pergunto, voltando-me para o Rabi Losa. - Ou
porque não passou em minha casa? E ainda agora na micva,
quando...
- Estás a delirar?! Estavas aos pontapés à minha porta.
Tinha aqui uma criança doente. Toda a gente sabe que queres
vingar o teu tio. E agora se tu... Mas espera. - Losa
atravessa o quarto, desprega da parede um espelho baço e
põe-no à minha frente. - Vê! - pede ele -. Tu também não
fugias disto?
Na prata fosca, à luz fraca da candeia, vislumbro uma figura
cansada e aviltada com uma barba de dias a despontar nas faces
e os cabelos desgrenhados e sujos.
- Tem razão - reconheço -. Estou um susto. - Tiro da bolsa o
desenho do rapazelho que andou a ver se vendia a Haggada de
meu tio. - Algum de vocês conhece este rapaz?
Ester-Maria inclina-se para a auréola que rodeia a chama da
candeia e estuda o desenho. Não - diz ela e passa-o ao pai.
Ele abana a cabeça.
- Então nunca ajudou o meu tio a passar livros hebraicos
para fora de Portugal? - pergunto ao rabino. Quando ele nega,
acrescento: - Tem de o jurar sobre a Tora.
Ele jura. Ouve-se Raquel ofegar no sono como um fole
rasgado.
- Posso tocá-la? - pergunto. Losa acede. O pulso palpita
freneticamente. A testa queima, mas curiosamente não
transpira. - Que outros sintomas tem ela?
- Não consegue comer - diz Ester-Maria -. E sangra dos
intestinos quando vai... - A rapariga inclina-se para mim e os
seus olhos expectantes mostram que o meu interesse despertou
involuntariamente a sua esperança.
- Ou é disenteria ou febre espanhola - digo -. Transmitida
pelo ar viciado e pelo esterco. - Pelas páginas da minha
memória de Tora perpassam passagens de Avicena: - chá de buxo
e lúcia-lima, mas bastante - recomendo -. Precisa de líquidos
para suar os humores. E dêem-lhe clisteres de arsénico diluído
em sumo de romã e água. Mas com pouco veneno. Umas gotas
apenas. - Losa espreita-me por cima do seu nariz achatado de
coruja com um olhar capaz de irritar até um profeta. E no
entanto, depois de tudo o que se passou a sua atitude
surpreende-me por me parecer mais graciosa que insolente. -
Poupe os seus olhares de louco para as cerimónias do Shabat-
digo-Lhe.
- Nunca mais farei essas cerimónias - diz ele tristemente -.
Nunca mais...
- Ainda bem - respondo sarcástico.
- Que é que tu podes saber?! - grita ele. - A que
renunciaste tu, a não ser ao teu nome judeu?! Eras capaz de
fazer a promessa de nunca mais pores pé numa sinagoga se o
Senhor salvasse o teu povo? Tiveste de renunciar a tudo o que
tinhas de mais querido? Que podes tu saber do sacrifício?! Não
passavas de um catraio de onze anos. Sim, ainda me lembro de
ti agarrado ao teu pai. E tu lembras-te de mim a correr para a
pia do baptismo. Alguma vez te interrogaste porquê? Ou o teu
tio? Serias capaz de entender que era para evitar que mais dos
nossos morressem ou matassem os nossos filhos? Tinha feito um
pacto com o Senhor: se Ele salvasse os judeus de Lisboa eu
convertia-me. Seria errado? Quem o poderá dizer? Podes, tu?
Poderia o teu tio?!
Losa limpa a saliva da boca com a manga, fita-me com anos de
raiva a queimarem-lhe as faces. Ester-Maria aproxima-se dele.
Afaga-lhe os ombros e murmura:
- Acalme-se, meu pai.
- Meu tio está morto e não Lhe poderá responder - replico
numa voz calma e seca que esconde a minha fúria -. E se eu
fosse um cabalista mais fiel do que o que sou, talvez não o
julgasse. Talvez nos tenha renegado por uma lealdade superior.
Ou talvez seja isso que disse a si próprio para poder
continuar a viver. Seja como for, os seus motivos já não me
interessam. São as suas acções que contam tantos anos atrás, e
que contam agora. Cheguei à conclusão que para pessoas como
você e como eu, os nossos actos são mais importantes que as
nossas palavras, que todos os nossos pactos secretos e orações
sussurradas. Com meu tio, era diferente. Os seus cânticos
chamavam os anjos ao nosso mundo. Para homens de prodígios
como ele. -As minhas palavras apagam-se; o Rabi Losa, a
explodir de fúria, tinha dado meia volta. As palavras de nada
serviam. Toco Ester-Maria no ombro para chamar a sua atenção:
- Mantenha a Raquel limpa com água de rosas fervida com
lúcia-lima e gema de ovo. E por amor de Deus, mude esses
lençóis contaminados. Ou ainda melhor, queime-os! - Ponho a
mão sobre a sua cabeça e abençoo-a.
- A minha irmã vai morrer? - pergunta.
- Só Ele o poderá dizer - entoa o pai dela. O seu olhar
piedoso para o Céu dos cristãos tem por fim recordar-me o
sacrifício que ele alega ter feito.
- Provavelmente morrerá - respondo num tom endurecido de
desafio; nesta altura, afirmações sobre a existência de um
Deus morando no cimo das nuvens a vigiar-nos parecem-me cruéis
e absurdas. Para Ester-Maria, para mim próprio, acrescento: -
Mas se fizer o que Lhe disse, ainda haverá alguma esperança.
A rapariga faz-me um aceno de agradecimento. O Rabi Losa
dobra o queixo como sempre faz quando estou presente e suporta
com desdém a minha vénia de despedida. Caminho lentamente de
volta a casa olhando as constelações dispersas que enfeitam o
céu, doravante consciente de que ele e todos os rabinos que a
si próprios se consideram como justos deixaram de ter poder
sobre mim. Para sempre. Isso, também, fora a minha jornada
desta Passagem.
Por mais que se pense ter percebido a verdadeira forma de
um versículo da Tora, há sempre uma maneira de rasgar as
roupagens que o revestem e revelar novas camadas interiores. O
mesmo se passa com os acontecimentos da vida de todos os dias.
Diego, Frei Carlos e Farid vieram ter comigo à cozinha com
uma carta de Salomão Eli, o mohel que descobrira o segredo da
entrada de nossa casa para os balneários. Num tosco papel de
linho mal fabricado cuja superfície tem impresso um arco,
lê-se rabiscado o meu nome Berequias Zarco.
- Chegaram más notícias, enquanto estiveste lá fora - diz
Diego -. Salomão, o mohel, foi encontrado pendurado pelo seu
tallitde uma das vigas da casa. Matou-se. Farid, Frei Carlos e
eu fomos lá. Deixou um bilhete para ti.
- Mas ele tinha sobrevivido! - grito. As minhas palavras
soam vãs entre nós. Afinal, que resistência tem o corpo
comparado com a fragilidade de uma alma dolorida? - O bilhete
não está selado - observo -. E escreveu o nome que me foi
dado, Berequias. Ele nunca me chamou assim. Para ele, fui
sempre Shaalat Chalom.
- Foi, assim que nos foi entregue - diz Frei Carlos, com um
encolher de ombros.
- Por quem?
- Pela irmã dele, Lena - responde Diego -. Parece que foi
ela quem encontrou o corpo e quando estava a ver as coisas
dele encontrou o bilhete.
As palavras de Mestre Salomão surgem numa escrita apressada,
quase infantil, emolduradas por uma impressão circular gravada
no papel:
"Poderá a aprendizagem como mohel tornar-nos insensíveis ao
sofrimento da carne? Isto prova alguma coisa. O meu corpo é
fraco. O Novo Mundo nunca chegará a sentir os meus passos.
Demasiadas descobertas neste século. Seria bom que certas
coisas permanecessem secretas. Denunciei cristãos-novos.
Também denunciei Reza. Mas tinha de o fazer, a sério. A ameaça
da pinga é uma sombra ardente, e o corpo é um tremendo cobarde
quando revestido de trevas. Uma simples gota de azeite
lançam-no numa fuga para os gritos que sobem das tripas como
serpentes despeladas e. Mestre Abraão jurou que havia de me
conduzir perante um tribunal judaico. Que acharia maneira de
me ver punido. Discutimos nesse domingo de manhã. Medo. Deve
ter sentido o seu cheiro em mim. Disse-me: "Trazes um cutelo e
mesmo assim estás com medo?" E sorriu-me como se me convidasse
para sua casa. "O ferro da tua lâmina irá fortalecer-me
perante Deus e talvez sirva mesmo um propósito mais elevado,
mas esta rapariga não está ainda pronta. Salomão; poupa-a e eu
irei para ti como uma noiva." Mas a rapariga respira o fogo da
Inquisição tanto como um homem. Ser como Adão. se ao menos
fosse possível. Não queria roubar-lhe a vida. Nem à rapariga,
de que ainda não sei o nome. Não posso pedir o teu perdão, nem
o perdão de Ester e de Mira, mas quando eu tiver partido,
digam por favor um kaddish por mim para que eu possa deixar a
Esfera Terrena. Poderá haver paz para um homem como eu?
Bênçãos para ti. Salomão."
- O que é que diz? - pergunta Diego, vendo-me ler.
Os meus lábios estão selados por aquela confissão
desordenada e pelas suas falhas. A morte explica o livro que
ele me deixou como presente. Mas porquê as inesperadas dúvidas
quanto à profissão que ele amava? Porque não havia nenhuma
referência à sua mulher? Será que não estava lúcido nos seus
últimos momentos? Será isto, então, um bilhete falso feito por
Zorobabel ou pela Rainha Ester? Suspeitarão que caminho já nas
suas sombras?
- Há quanto tempo tinha morrido quando a irmã o encontrou? -
pergunto por sinais a Farid.
- Ela disse que o encontrou esta manhã. Mas o bilhete só
agora... Não tinha coragem para mexer nas coisas dele antes.
- Que estão para aí os dois a gesticular? - pergunta Frei
Carlos -. E o que é que isso diz, caramba?!
Depois de eu ler em voz alta as palavras de Salomão, Farid
toma o bilhete das minhas mãos e cheira-o, lambe-Lhe as
bordas.
- De muito má qualidade - diz ele.
- Como mohel Salomão era muito hábil com facas - observa o
frade.
- Isso pode explicar algumas coisas - acrescenta Diego -. É
certo que nunca desconfiámos que ele trabalhava com Mestre
Abraão. Era isso mesmo que ambos pretendiam.
Tem razão. Mas ainda assim, será possível que Gemila tenha
confundido um homem meio calvo, aquela fraca figura de homem
escuro, com o Maimon Branco de Duas Bocas? E por que razão
haveria ele de pagar ao flamengo para matar Simão e Diego?
"Abriste outra porta" - ouço meu tio dizer-me -. "Agora,
Berequias, enche os pulmões com o fôlego da Esfera Terrena e
salta através dela antes que tenha tempo de se cerrar de
novo."
Recuperei a carta das mãos de Farid. Os meus passos
conduzem-me à cave, onde posso meditar sobre aquilo. "Sozinho"
- murmuro, e Farid deixa a minha mão deslizar pela sua.
Em baixo, tiro do armário do material o anel de sinete de
topázio de meu tio e enfio-o no indicador direito. Sento-me no
tapete de orações por cima da mancha do seu sangue. Depois de
abrir as portas do meu espírito com alguns exercícios
propiciatórios, transponho as letras escritas na nota de
Salomão recorrendo à monotonia do cântico. Assim que as suas
palavras se elevam do papel e se torcem no ar como as argolas
de um malabar, começam a largar o seu significado como se
fosse um peso inútil. Os meus braços e as minhas pernas
tornam-se com a graça cada vez mais ligeiros.
Imagine-se que olhamos uma placa com caracteres cuneiformes.
Quando os nós do espírito se desatam, o hebraico torna-se
igualmente estranho. As letras surgem como formas
desemparelhadas; música sem melodia; animais a que Adão não
deu nome. A solidez do mundo torna-se translúcida e finalmente
abre-se.
Através do maior espaço que Deus nos deu, o do vazio para
além do pensamento, começaram a chegar-me palavras com a
certeza da oração: Esta deve ser a escrita do assassino de meu
tio; é a confissão dele, não a de Salomão. Deixou-a na casa do
mohel depois de ele se ter matado. Para que a sua irmã ou
outra pessoa o encontrassem e mo trouxessem. para me tentar a
abandonar a sua pista. Talvez tenha até matado o pobre Salomão
para adiantar de algum modo os seus planos!
Fico sentado sozinho; o esforço em convocar a visão interior
foi difícil para o meu corpo enfraquecido. As minhas mãos têm
um peso de chumbo. "Descansa até amanhã" - penso para comigo.
Como resposta, as minhas pálpebras cerram-se. Meu tio fala
comigo. "Dorme" - diz ele na sua voz plangente, sedutora.
"Tens de dormir em silêncio se queres completar a jornada."
- Não, agora não - respondo em voz alta. Abrindo os olhos,
penso: "Tenho de ir ver a casa de Salomão, falar com a irmã
dele. Depois voltar ao Palácio dos Estaus. Tenho de tentar
falar com Joana, a filha do Conde."
- Sempre desafiador" - replica meu tio. Fecho os olhos para
ver o seu sorriso -. "Tens de ceder caminho ao sonho" -
prossegue ele -. "O deserto de Lisboa passou sob os teus pés.
Estás realmente perto. Descansa a tua cabeça no meu regaço.
Usa os teus sonhos para fazeres uma pergunta."
- Não será pecado? - pergunto -. "Não devemos interrogar os
mortos", diz o profeta.
- Podemos sempre falar com Deus. É no Seu oceano que esta
simples gota agora está. Tira do pulso a fita com os nossos
nomes escritos a dourado e põe-na em cima dos olhos. Depois
dorme.
Obedeço ao meu mestre. E na verdade um sonho desce sobre
mim.
Sinto-me envolvido por uma tepidez próxima de uma saudação
de boas-vindas. Meu mestre está em pé diante de mim,
enquadrado pelos azulejos da parede da cave, com o xaile
ritual deitado sobre a cabeça e os ombros.
- Não acredito que Dom Miguel Ribeiro ou qualquer homem de
armas vindo do Norte pago pelos seus passadores secretos tenha
enfiado um fio de seda na sua unha ou o tenham matado como um
shohet- digo -. Mas quem mais poderá estar envolvido? Quem é
que a Rainha Ester enviou para o matar?
- Já sabes quem separou o meu corpo da minha alma - responde
ele com um sorriso vivo -. A questão é onde e quando te
aperceberás disso.
- Como sempre, tio, quer que eu me esforce para encontrar a
resposta. Pois bem. Onde e quando saberei o nome dele?
Ao mesmo tempo que a asa alva das suas vestes se abre, uma
brisa perfumada de mirto sopra sobre nós. O tecto adelgaça-se
e desvanece-se. As paredes desaparecem. O céu abre-se, tingido
de cor-de-rosa e violeta no horizonte a ocidente. Estamos
ambos sentados na parte de baixo da torre da Quinta das
Amendoeiras.
- Porquê aqui? - pergunto. - Porquê ao pôr do sol?
Meu tio lança-me um olhar dardejante, a indicar que o devo
ouvir atentamente. Ergue a sua mão em bênção sobre mim e diz:
- O mapa de uma cidade está nos pés de um mendigo cego
Uma luz dourada brilha através dos postigos na extremidade do
lado norte da cave. Estamos na manhã de sábado. O oitavo e
último dia da Páscoa. Levanto-me e considero
retrospectivamente o meu sonho como quem olha para um hóspede
que se despede. Abrindo a geniza, procuro em vão uma escrita
que se assemelhe à do falso bilhete de Salomão. Seguidamente,
só para confirmar o meu raciocínio, folheio a Haggada pessoal
de meu tio. Salomão, o mohel, não recebeu nenhum
correspondente bíblico. Ao que tudo indica, não poderia estar
envolvido em passar livros juntamente com Zorobabel e a Rainha
Ester.
Em cima, Reza está a acender a lareira, com Aviboa ao colo,
apoiada na sua ilharga. A menina tem um grande malmequer cor
de laranja preso no cabelo. Diego e Frei Carlos estão sentados
em frente um do outro à mesa da cozinha a beberricar umas
taças de barro com água de cevada fumegante. Reza é a primeira
a ver-me. O seu olhar trai o seu amuo por eu me ter recusado a
conduzir as orações do Shabat na noite anterior.
- Vejo que dormiste - diz Frei Carlos -. Ainda bem.
Trocamos bênçãos.
- Onde está Farid -pergunto.
- Em casa, a fazer as suas orações - responde Diego.
Dirijo-me à porta que dá para o pátio.
- Onde pensas que vais assim? - pergunta Frei Carlos.
- Vou sair - replico.
- Vais a casa do mohel Salomão, não é isso? - pergunta Reza
com azedume. Antes de Lhe poder dizer o meu verdadeiro
destino, acrescenta: - Não Podes deixar as coisas como estão?
Agora está morto. Já temos a nossa vingança. Temos mas é de
arranjar maneira de continuarmos, de cuidar da família que nos
resta. Era isso que o teu mestre haveria de desejar. E
acredita no que te digo, Berequias Zarco, há aí todo um barco
de coisas para fazeres se quisesses unir-te ao mundo dos
vivos!
Reza fita-me como se eu Lhe fosse dar a resposta que ela
espera.
- O meu destino é diferente do teu - digo -. Se não sigo
agora o meu, nunca mais poderei reunir-me a ti mais tarde.
- O caminho que ela me apontou serve-me de mentira muito a
propósito, por isso acrescento: - Além do mais, vou só lá
apresentar condolências. Mesmo um homicida é digno das nossas
orações.
Diego levanta-se e diz:
- Parto hoje ao fim da tarde para Faro a apanhar o barco
para Constantinopla. Talvez seja melhor fazermos as nossas
despedidas.
- Volto já. Agora não tenho tempo para adeuses.
Farid está a rezar no quarto da frente quando entro em sua
casa. Quando me avista, levanta-se de um salto como que puxado
pelas mãos de Alá.

Capítulo XIX

Quando Farid e eu subimos os caminhos coleantes da encosta
salpicada de tufos de vegetação que leva às torres do Convento
da Graça e ao sol nascente de Lisboa, a freira anã do dente
espetado que vigia o cruzeiro de granito do santuário dá uma
volta para nos observar.
O palacete de Dona Meneses está empoleirado no topo da
estrada poeirenta que contorna a encosta a norte da colina.
Uma fortaleza de pedra adaptada a partir de umas muralhas
românicas abandonadas, cuja única fantasia moderna é uma
varanda de mármore suportada por quatro contrafortes apoiados
no calcário que a encosta em baixo deixa à mostra. Já cá vim
duas vezes, para entregar vestidos de seda que ela tinha
encomendado a minha mãe. Encaminhamo-nos para a entrada
lateral da casa guardada por dois portões, protegidos pela
sombra de dois enormes cedros marroquinos. Daqui, podemos ver
o canto da varanda nas traseiras. No extremo oposto vê-se um
homem descarnado, com um gorro azul de plumas. Tem na mão um
copo de vidro vermelho e conversa tranquilamente com alguém
que não consigo ver do sítio onde me encontro. Quando se volta
para o seu lado esquerdo para assinalar qualquer coisa ao
longe, reconheço-o: o conde de Almira.
Zorobabel e a Rainha Ester estão reunidos.
No portão, um guarda loiro com o característico chapéu cor
de ametista dos homens de Dona Meneses leva o meu recado para
o interior da casa. Quando nos afastamos, Farid comenta por
gestos: "Talvez ela consiga um abatimento por encomendar todos
estes monstros flamengos a granel." Gostaria de me rir, mais
que não fosse para confirmar que sou ainda o jovem moço que
antes era, mas parece que perdi essa capacidade. Ao passarmos
pela freira saturnina que continua de guarda ao convento, o
coração parece querer saltar-me do peito. "Se a minha vida
tivesse de acabar aqui" - penso -, "que sentido poderia ter
ela?" Não há tempo para estudar uma réplica. Desatamos a
descer a colina num verdadeiro corre-escorrega-corre. O
alucinante emaranhado das ruas de Lisboa recebe-nos com
indiferença.
De regresso a casa, tiro da geniza dois valiosos tratados
filosóficos de Abraão Abulafia, A Vida no Mundo do Futuro e O

27
Tesouro do Paraíso Escondido. Ambos possuem notas à margem
escritas pela mão do próprio mestre.
- Que estás a fazer? - pergunta Diego das escadas. Está ao
lado de Frei Carlos, ao topo das escadas, contemplando-me com
um olhar protector.
- Agora compreendo o que meu tio quer que eu faça. Se o que
Dona Meneses pretende é comprar manuscritos hebraicos, então
vou-Lhos arranjar. Mas por um preço bastante alto. Quero a
última Haggada de meu mestre. É a prova que preciso.
- Mas disseste-nos - observa o frade - que pensavas que
tinha sido Salomão o responsável por...
- Que interessa o que eu disse?! - interrompo. - Acredita em
tudo aquilo que ouve?!
Ele franze o sobrolho como se tivesse cheirado alguma coisa
podre.
- Uma troca? Os livros de Mestre Abraão por uma Haggada?-
pergunta Diego.
- Isso mesmo.
- Tens a astúcia do teu tio - diz Frei Carlos, no seu tom
cansado -. Isso não se discute. Mas talvez sejas um pouco
esperto de mais.
- Estás a tentar o Diabo, não sei se sabes - adverte Diego.
- Vocês os dois começam a soar-me muito parecidos - observo
-. Acho que o medo faz todos os judeus dizerem as mesmas
coisas. E começa a ser fatigante. De qualquer modo, não estou
a tentar nada o Diabo. Dona Meneses não passa de uma judia tão
assustada como o resto de nós.
- Judia?! - exclama Diego. - Ela não é nada judia!
- É ela que está retratada como sendo a Rainha Ester na
Haggada de meu tio. está representada a trazer a Tora a
Mardoqueu.
- Isso não prova nada! - zomba ele.
- Para mim prova!
- Mesmo que tenhas razão - diz Diego no tom de alguém mais
velho e conhecedor -, ela não é judia. É cristã-nova. E de dia
para dia a diferença entre as duas coisas é maior. - E vendo o
meu gesto de indiferença, prossegue: - Seja como for, as facas
não têm religião. E os guardas dela têm algumas bem afiadas.
Todos nós pudemos ver isso de perto ainda há pouco.
- E que queres que te diga? Sei isso tudo muito bem.
O frade desce até ao fundo das escadas e aproxima-se de mim.
Com olhos suplicantes, diz-me:
- Berequias, agora que perdeste o teu pai e o teu tio...
- É escusado, Frei Carlos! Não preciso da sua protecção.
Ele solta o mesmo suspiro sofrido que tenho ouvido toda a
minha vida, querendo significar que para meu mal sou demasiado
teimoso. Enfio os manuscritos na caixa de couro que meu tio
costumava levar para as suas digressões espirituais na Serra
de Sintra.
- Então onde a vais encontrar? - pergunta Diego,
aproximando-se.
- Na Quinta das Amendoeiras - replico.
- Porquê aí?
- Foi onde meu tio me mandou que fosse.
Frei Carlos sobressalta-se. Ao passar por ele, agarra-me o
braço:
- Mestre Abraão apareceu-te? - Aceno que sim e ele
pergunta-me num murmúrio: - E falaste com ele?
- Fiz uma pergunta a Deus num sonho e meu tio apareceu-me.
- E... e que te disse ele?
- Que o último portão seria atravessado na Quinta das
Amendoeiras.
- Berequias - diz Diego -, se o que dizes está certo, então
foram Dona Meneses e o conde de Almira quem mandou matar
Mestre Abraão e Simão. Não devias ir. Vou chamar a tua mãe.
Vejo que a nós não nos dás ouvidos.
- Não vás! Ela não é para aqui chamada! Simão não estava
preparado. Nem, ao que parece, meu tio. Não sabiam até que
ponto ela era realmente perigosa. Mas eu sei. - Ele continua a
protestar num tom que se torna descomedido. Levanto a mão a
pedir silêncio. - Se dizes a minha mãe, ela desata a fazer
mais uns quantos desses horríveis talismãs. Deixa-a estar na
loja. Vamos despedir-nos agora. Se calhar já estarás longe
quando eu voltar.
Abraçamo-nos, mas é impossível às minhas emoções
abeirarem-se das suas lágrimas; há em mim uma indiferença
endurecida ligada à ideia de vingança.
- Espero que encontres as tais pérolas de chuva que querias
dos céus de Constantinopla - digo, sorrindo o melhor que posso
-. E não te esqueças dos tratados que querias da Senhora
Tamara. Não os consegues arranjar em mais parte nenhuma. Se
precisares de dinheiro... - Pego na minha bolsa e estendo-Lhe
o anel de água-marinha da Senhora Rosamonte.
- Berequias - diz Diego, pegando no anel -, não sei o que...
- Não digas nada. Espero que tudo te corra bem na Turquia.
- Vou ter saudades das maravilhas de Portugal. E mais que
tudo, dos judeus de Lisboa - abençoa-me colocando a mão sobre
mim -. Que tu e a tua família encontrem a paz que tanto
merecem.

Quando eu e Farid nos dirigimos para a Quinta das
Amendoeiras, a erva cor de âmbar e as árvores em flor de
Portugal parecem insinuar uma separação. Estamos, nós, os
judeus, a dispersarmo-nos de novo, e estes tufos de silvas e
de alfazema, estas papoilas e estas pegas não ouvirão durante
os próximos séculos os seus nomes em hebraico, talvez para
nunca mais. Talvez seja até uma boa coisa para elas.
O grande número de campas continuam livres de ervas por
causa da seca. As tabuletas de madeira rabiscadas em português
brotam como mãos estendidas para a vida. Entramos na torre e
subimos as escadas em espiral. Damos voltas e mais voltas
sempre a subir, até à vigia, agora vazia, a não ser um
amontoado de excrementos de pássaro. Contemplamos os tapetes
de aveia dourada e a terra lavrada separada por fieiras de
sobreiros, com os seus nobres troncos contorcidos descascados,
deixando à mostra um vermelho vulnerável.
E esperamos.
O pôr-do-sol que assinala o fim da Páscoa surge com reflexos
das grandes folhas de palmeira cor de topázio que recobrem o
paraíso. Momentos depois, tal como pedira no meu recado, o
coche de Dona Meneses aproxima-se, detendo-se no extremo da
quinta. Sozinha, caminha em direcção a nós através do velho
pomar de amendoeiras, segurando um guarda-sol escarlate
aberto. Não traz, porém, nenhum manuscrito nas mãos. Os gestos
de Farid dizem: "Chegou a altura, Mete a adaga no cós das
calças." Fazendo o possível por me manter calmo, levanto o
pacote com os manuscritos de Abulafia. Descemos da torre, a
mão de meu tio a guiar-me num passo mesurado completamente
descompassado com a minha respiração nervosa.
Quando chegamos a baixo, Farid e eu estacamos no meio das
pedras que aí estão e esperamos a fidalga.
Dona Meneses não nos desilude. Avança confiadamente pela
entrada da torre e saúda-me com um aceno rígido, o género de
gesto real que ela usa para mandar seguir os seus cocheiros. O
rosto, ainda que não seja desagradável ao olhar, parece
demasiado redondo e pequeno, talvez por as suas tranças
castanhas estarem rigidamente puxadas para trás e enfiadas num
grande cone negro debruado com uma fita amarela. As suas
vestes de seda ondulantes, às riscas azul-marinho e
verde-brilhante, estão tufadas à moda, à frente, para dar a
impressão de prenhez. Ao olhá-la, era como se antes nunca a
tivesse visto; tenho a impressão que a aterroriza o avançar da
idade. As suas sobrancelhas arqueadas e as longas pestanas
estão sublinhadas com um traço espesso, e um pó
desagradavelmente rosado apaga a sua pele esverdeada. O
franzido dos seus lábios de um vermelho de rubi denota a
impaciência que a possui. Subitamente fecha a sombrinha,
acaricia o seu colar de esmeraldas e safiras com delicada
circunspecção. Dardeja um olhar sobre Farid. Voltando-se para
mim, assume uma atitude de falsa e instante simpatia.
- Vim como me pediu - diz ela -. Quer fazer o favor de me
explicar o que...
- Não trouxe a Haggada de meu tio? - pergunto.
- Mas que brusco! - exclama, como se essa fosse a resposta
adequada à minha pergunta.
- Onde está ela? - repito.
- Não sei - franze as sobrancelhas como se espantada com a
minha preocupação -. Mas pode estar certo de que eu não a
tenho.
- É impossível - digo.
- Mas verdadeiro - replica -. Diga-me uma coisa, falou em
mim a alguém, sobre...
- Não se preocupe, Não vamos enviar nenhuns espias para a
sua porta. Tanto quanto as pessoas sabem, a senhora é uma
cristã tão velha como o próprio Grande Inquisidor de Castela.
- Pode-me dizer como é que descobriu? - pergunta. - A sua
mãe, talvez?
- Ela sabe?!
- Ah, então a minha querida Mira respeitou a palavra e não
disse nada - Passa os dedos pelo pescoço com evidente alívio.
- Não, não foi ela que me disse - ao mesmo tempo que dizia
estas palavras, compreendo tudo repentinamente -. O cesto de
fruta com que a senhora saía sempre da loja - digo -. os
livros estavam escondidos no fundo. Ela sabia tudo.
- Uma vez o Concílio dos Pássaros de Attar ficou manchado
das uvas. O seu tio ficou furioso. - Dona Meneses exibe um
sorriso falso, ensaiado. Vendo que não correspondo,
pergunta-me numa voz arrogante: - Então como é que descobriu
quem eu sou?
- A senhora está representada numa iluminura da Haggada
pessoal de meu tio como sendo a Rainha Ester. Não deixava
nenhuma dúvida quanto às suas origens religiosas. E na
gravura, não só leva a Tora a Mardoqueu, como esconde uma
cópia do Bahir debaixo do braço.
- Muito esperto - declama ela com uma vénia, palpando o
colar -. Os meus parabéns. Mas tenho de concluir que o seu tio
arriscou muito na sua obra.
- Foi por isso que o matou?
- Matá-lo?! - sobressalta-se ela - Eu?!
- A sua surpresa é tão falsa como essas contas à volta do
pescoço.
- Dá-se o caso de estas jóias valerem mais do que as vossas
duas vidas juntas - exclama ela.
- Nos tempos que correm, isso quer dizer que não valem
grande coisa, cara senhora.
- Estou a ver que é muito parecido com o seu tio.
- Mas não tão ingénuo -replico -. Eu sei quem a senhora é e
o que fez.
- Ai sabe? - Ela sacode a cabeça e sorri, como se divertida
com as habilidades de um cãozito. - Então diga lá o que é que
pensa que sabe!
- Não Lhe digo nada - tiro os manuscritos do pacote -. Vim
cá para Lhos dar em troca da última Haggada com iluminuras de
meu tio. Bem sei que é a senhora que a tem. E estes livros
valem muito mais. Ambos estão anotados pela própria mão de
Mestre Abraão Abulafia, que o seu nome seja abençoado.
- Se está tão convencido de ter sido eu a matar o seu tio,
porque não tentou antes tirar-me a vida?
- A sua morte não o trará de volta - digo.
-A razão nada tem a ver com a vingança. A sua hesitação deve
querer dizer que não tem a certeza absoluta da minha culpa -
faz-me um aceno como a procurar o meu assentimento.
- Preciso dessa Haggada- grito -. E não sai daqui enquanto
não ma der!
- Porquê aqui? - pergunta ela numa voz calma, ignorando a
minha ameaça -. Porquê na Quinta das Amendoeiras?
- Também fazia parte das iluminuras de meu tio, na mesma
gravura em que estava Zorobabel. No meu sonho, ele disse-me
que haveria de atravessar a última porta deste mistério neste
lugar. Agora diga lá onde.
- Ele disse-lhe isso? Mestre Abraão? - Com os dedos acaricia
os tendões esticados do pescoço. Está tão nervosa quanto eu
próprio.
- Disse. Falei com meu tio - respondo.
- Quando? - pergunta ela ansiosa.
- Isso pouco lhe interessa. A senhora está aqui apenas
para...
- Sabia que foi aqui que selámos juntos o nosso fado? -
interrompe ela numa voz que parece vinda das entranhas, do
medo -. Há quatro invernos, no décimo terceiro dia de Adar, um
dia antes do Purim. Preparávamo-nos para comemorar a antiga
vitória do povo hebreu sobre o exército sírio que se passou
nesse dia - o seu olhar recolhe-se ao recordar -. O seu tio
insistiu para que o encontrasse aqui na Quinta das Amendoeiras
para combinarmos a nossa rede de passadores.
- Porquê aqui? - pergunto eu.
- Conhece a história de Aarão Poejo e da...
- Conheço - interrompo.
- E da visão que ele teve? - pergunta ela.
- Os bárbaros de máscaras de ferro nas bocas que haviam de
vir saquear Lisboa.
- Máscaras de ferro para evitar a comunicação - diz ela,
como quem sugere uma citação de sabedoria -. Loiros porque são
cristãos. Veja se compreende. Você era o escolhido de Mestre
Abraão. Imagine-o como escritos.
- Sim. Era a visão de que os cristãos haveriam um dia de nos
tirarem as nossas palavras, os nossos livros.
- E era aqui, dizia o seu tio, que devíamos planear a queda
deles.
A resposta ao enigma que meu tio me propusera antes do seu
derradeiro Shabat desponta dentro de mim. Tinha-me perguntado:
O que é que vive durante séculos, mas pode morrer antes ainda
de ter nascido? Um livro, compreendo agora; nasce a cada vez
que algum de nós o lê. E pode morrer nas fogueiras da
Inquisição tanto quanto cada um de nós.
Dona Meneses observa-me por cima do seu nariz.
- Sabe uma coisa?, se não me tivesse pedido para vir ter
consigo aqui podia tê-lo mandado matar também. Mas há qualquer
coisa neste sítio.
- Onde está a Haggada - pergunto com renovada insistência.
- Não a tenho. Berequias, deixe-me.
- Não lhe dei permissão para usar o meu nome verdadeiro! Use
o nome cristão!
- Como queira. Pedro, eu trabalhava com o seu tio. Faz já
mais de três anos. Diga-me, lembra-se da senhora Belmira? -
pergunta ela.
- A judia que mataram à pancada no Chafariz da Madre de Deus
meses atrás?
- Essa mesmo. Já imaginou porque é que a mataram?
- Lisboa está cheia de cristãos-velhos capazes de...
- Não! Foi o meu cocheiro. Lembra-se dele? Aquele moreno que
trabaLhava para mim. Nada destes flamengos que agora tenho.
- Foi o seu cocheiro quem a matou? - pergunto.
- Foi. Tinham-me mandado um recado. Um recado de ameaça. Ou
eu entregava os livros que seu tio me ia dando ou o autor da
ameaça revelava o meu passado judeu. Uma situação que não me
agradava nada. E não só a mim, mas também à minha família.
Dizia-me que tinha de pôr um primeiro manuscrito num
esconderijo perto do Chafariz da Madre de Deus. Assim fiz. Ou
antes, fê-lo o meu cocheiro. E ficou à espera. Ao cair da noite
apareceu uma mulher. A senhora Belmira. O cocheiro apanhou-a,
tentou saber a mando de quem andava. Mas ela não falou. Por
mais que ele fizesse. Receio que se tenha excedido, levado
pela lealdade que me tinha. Era um homem rude. Mandei-o de
volta para a família em Toledo. Os castelhanos são assassinos
natos. Nunca os ponha ao seu serviço, a não ser para touradas.
- Disse alguma coisa a meu tio? - pergunto.
- Não disse a ninguém - replica.
- Não tinha confiança nele?
- Na minha posição, não me posso dar ao luxo de confiar.
Tanto quanto sei, ele é que me traiu.
- Meu tio nunca traiu ninguém.
- Talvez não. Mas num dilema daqueles... Pedro, confiar é
uma coisa que poucos de nós se podem permitir nos nossos dias.
Pode ser demasiado... demasiado caro.
Subitamente a sua face ensombra-se de tristeza ou de
remorso. Dá um passo na minha direcção, mas eu levanto a mão a
detê-la. É como se a sentisse contaminada por uma bondade
perigosa.
- Comecei a mandá-lo vigiar, e também a sua família. - As
palavras de Dona Meneses apagam-se quando ela respira fundo-
De qualquer modo, recebi mais um bilhete depois da morte da
senhora Belmira. Dessa vez ameaçavam-me de que se eu tentasse
descobrir quem era o autor das mensagens o meu segredo seria
revelado à Igreja e ao próprio rei Dom Manuel. Dizia que tinha
provas das minhas origens judias. Por isso comecei a
deixar-lhe os manuscritos que seu tio me ia entregando.
- Ainda tem essas mensagens?
- Quer ver se consegue descobrir o autor pela escrita -
assente ela com um gesto ladino -. Também pensei nisso. Os
bilhetes foram sempre garatujados, como se fossem escritos com
a mão esquerda. Ou talvez por uma criança. Mas surgiu-me uma
ideia. Tenho um velho amigo de infância, alguém acima de
qualquer suspeita, que nos tem ajudado a passar livros pela
fronteira de Espanha. Você conhece-o como...
- O conde de Almira - interrompo.
- Ele próprio. Ele veio.
- É Isaac de Ronda - acrescento.
- Ah, então também descobriu isso - diz ela, franzindo os
lábios e lançando-me um olhar atónito.
- Foi o Farid - replico.
- Como?
Farid aponta para o nariz e para os olhos.
- Parabéns - diz-Lhe ela com uma vénia -. Pensei então em
pedir ao conde que viesse a Lisboa a oferecer-se para comprar
livros num dos disfarces, e a vendê-los noutro. Esperávamos
assim de um modo ou de outro fazer sair da toca o autor das
ameaças. Para tirarmos a coisa a limpo. Eu sabia que o nosso
homem tinha tentado vender a Haggada de seu tio à senhora
Tamara. Um erro da parte dele. Deve ter entrado em pânico logo
a seguir aos motins. Infelizmente, ela assustou o rapaz que
levava o recado sem o ter feito falar. Foi então que o autor
das ameaças se apercebeu do erro e se tornou mais cuidadoso.
Seja como for, sei que se trata de alguém que pertencia, ou
tinha pertencido, ao grupo de iniciados de Mestre Abraão. Só
eles é que conheciam o segredo do tráfico de livros. Foi ele
quem mo disse quando fizemos o nosso acordo. Comecei a
trazê-los todos vigiados. O próprio conde se encarregou de
seguir um deles, esse velho inadaptado do Diego, quando foi
atacado por aqueles rapazolas cristãos na sexta-feira antes de
tudo se ter começado a desfazer em Lisboa. Um dos cocheiros do
conde salvou-o. E depois chegou o domingo. as fogueiras...
Depois disso, com toda a gente a clamar por sangue judeu, eu
já não podia esperar mais. O meu instinto dizia-me que era
Simão Eanes, o importador de tecidos. Por isso mandei-o.
relaxar.
Fala como se uma ordem para matar lhe ocorresse
naturalmente, usando os termos próprios da Inquisição; como os
eclesiásticos não podem verter sangue directamente, os
condenados pela Igreja em Espanha eram passados ou relaxados,
às autoridades civis para serem queimados.
- Pensava que os meus problemas tinham acabado, mas recebi
mais um bilhete - prossegue ela. Dá mais um passo em minha
direcção, implorando-me com uma expressão doce no olhar que
suspenda o meu juízo. - Tinha de deixar mais livros no
esconderijo do Chafariz da Madre de Deus precisamente ontem.
Mas não o fiz.
- Foi então que chegou a vez de Diego - digo.
- Foi, Deus me perdoe! - as mãos dela enrolam-se num punho
-. Que fazia você?!
- Eu?! Eu nunca mataria ninguém só por não ter coragem de
admitir ser quem sou!
- Muito valoroso. Quando a Inquisição cair sobre Portugal e
você sentir as suas garras no pescoço, veremos se ainda terá
os mesmos sentimentos.
- Vai tentar de novo apanhar Diego?
- Vou. E Frei Carlos também. Não posso correr riscos.
Depressa serão descobertos. E os meus homens têm ordens. Não
posso esperar mais. Não tenho por onde escolher.
Farid aponta para o colar e com gestos cortantes de fúria
insinua:
- Demasiadas esmeraldas em jogo, sem dúvida!
Quando traduzo esta sua condenação de Farid, ela grita:
- Você não tem coração! - Enrola os dedos no colar e puxa-o.
As contas espalham-se pelo chão. - Fique com elas! - diz ela,
oferecendo a Farid e a mim o que resta da fiada de jóias. -
Isto nada tem a ver com dinheiro. É a minha vida! É a vida de
nós todos! - Um esgar de angústia atravessa-lhe o rosto. A
pancada que sinto é do colar que me atirou ao rosto.
Ficamos os três ali especados em silêncio, como prisioneiros
que não se atrevem a escapar em palavras para longe da culpa e
da vergonha. Fecho os olhos e sigo a minha respiração. Farid
pega-me na mão e nomeia um suspeito com os seus dedos. "Pois
é!" -respondo. - "Ainda pode ser ele." Quando me volto, porém,
acontece um momento mágico; o anel de pele de um branco
marmóreo que sempre estivera escondido pelo colar de Dona
Meneses confirma uma outra possibilidade espantosa.
- Só restam duas pessoas que podem ter assassinado meu tio -
digo -. Dê-me até amanhã de manhã antes de mandar matar mais
alguém.
- É muito tempo!
- Então até à meia-noite. Anda a matar homens inocentes!
Dona Meneses faz um aceno de assentimento, fita-nos por cima
do nariz como uma princesa desafiadora a medir os homens que a
tivessem violado. Levanta a cauda do vestido, atira-a para
trás, dá meia volta e sai pela porta fora.

Capítulo XX

OS campos começam a ceder o lugar às barracas de madeira e
aos montes de lixo dos bairros limítrofes da cidade na
retirada apressada com que eu e Farid regressamos a Lisboa.
Na Estalagem do Corpo Santo, dirigimo-nos ao patrão, o
Senhor Duarte, um homem baixinho com uns tufos de cabelo
penteados para diante em franja, que está à mesa a enfiar
colheradas de sopa numa boca sem dentes. As queixadas abrem e
fecham como um fole apertado. Estacamos junto dele.
- Quando chegou Dom Afonso Verdinho? - pergunto.
Ele fita-me com uns olhinhos piscos, um naco de pão de milho
ensopado enfiado na boca.
- Quem pergunta?
- Pedro Zarco. Dom Afonso está cá com a minha tia. Quando é
que ele chegou?
- Tenho de ir ver nos livros - diz ele, contorcendo a cara e
fechando os olhos a cada colherada, a sopa a pingar-lhe dos
lábios gretados -. E como vossas senhorias podem ver, estou a
comer.
Introduzo a mão na bolsa à procura do anel da Senhora
Rosamonte, mas lembro-me com uma praga que o dera a Diego.
Farid apercebe-se com um sorriso do meu olhar desesperado,
pega numa das esmeraldas de Dona Meneses e dá-a ao homem. Os
meus dedos desenham no braço de Farid "Deus te abençoe" e digo
ao estalajadeiro:
- Esta jóia é sua se me disser quando é que chegou Dom
Afonso Verdinho.
A língua agita-se entre os seus lábios como uma cobra. Com
um aceno abjecto para mim, raspa a jóia na malga de barro. Uma
lasca de esmalte salta de uma falha minúscula da esmeralda. Os
olhos brilham-Lhe.
- É uma maravilha - exclama com um sorriso de avidez.
- Estou-Lhe a perguntar quando é que ele chegou?
- Quarta-feira - ergue a jóia contra a luz da candeia.
- Quarta-feira passada a seguir aos motins ou a da semana
anterior?
- A desta semana.
- Tem a certeza absoluta?! - pergunto.
Enfia a conta na dobra interior do lábio inferior como se
fosse uma semente de anis.
- Está a ver aqueles homens acolá? - pergunta, apontando
para uns mercadores sentados a comer.
- Estou.
- O de barbas negoceia em açúcar, mas cheira que nem couve
podre - diz ele, por entre sorvos de sopa -. Chegou ontem a
suar como um padre com cio. Gosta de mulheres de mamas grandes
e sem dentes. Aquele bem barbeado é de Évora, veio para
comprar coisas de cobre. Chegou hoje. Gosta de carne preta,
não sei se me entende - dá-me uma piscadela -. Aqui não se
passa nada que eu não saiba. O seu homem chegou quarta-feira,
com um aspecto e um pivete pior que o do cavalo dele.
- Em que quarto está ele?
- Ao cimo das escadas - aponta para uma porta aberta nas
traseiras da sala de jantar -. À esquerda. última porta do
lado direito.
Minha tia Ester responde às batidas na porta com um
sobressalto.
- Berequias! É o que mais...
Afasto-a para passar. Dom Afonso está sentado na cama por
fazer na sua longa camisa de dormir. Tem os pés rugosos e
ásperos, como raízes de mandrágora arrancada.
- Alguma vez ouviu falar de Simão, o importador de tecidos?
- pergunto.
- Um amigo de seu tio - responde -. Ester escreveu-me a
dizer.
- Ah, então ela escrevia-Lhe - volto-me para minha tia com
uma vénia -. Tem usado os seus talentos muito bem, querida
tia.
- A tua opinião fica registada - diz ela, com uma expressão
dura e fria -. Agora, fora daqui!
- Alguma vez se encontrou com ele? - pergunto a Dom Afonso.
- A que vem tudo isto? - pergunta ele, denotando no rosto o
seu choque e surpresa.
- Limite-se a responder à minha pergunta!
- Francamente, não me recordo - responde ele, enquanto minha
tia me vai empurrando -. Pode ser que sim.
Inesperadamente minha tia dá-me uma estalada na cara. Quando
Lhe agarro o pulso, Dom Afonso dá um salto:
- Deixa-a em paz! - grita ele.
Farid interpõe-se entre mim e tia Ester, afasta a minha mão.
Fixa os olhos em mim e com os seus gestos intima: "Não te
atrevas a pôr-Lhe as mãos outra vez." Em seguida leva-a para a
cama. Ela senta-se e esfrega o pulso. Tem os olhos vítreos e
as costas dobradas para diante, como se vergada ao peso de
algum medalhão que encerrasse a sua mágoa. A minha fúria é
tal, porém, que a sua imagem não extingue sequer as cinzas da
ardente dedicação que antes sentia por ela.
- Então, não podia saber se ele tinha alguma deficiência? -
digo, voltando-me para Dom Afonso. - Que usava muletas, e
luvas de seda preta para...
Farid faz-me sinal a dizer que falo de mais e de repente
atira algumas das esmeraldas e safiras de Dona Meneses para
Dom Afonso. O velho iniciado estende a mão e apanha uma. Que é
isto?! - pergunta ele, mostrando-ma.
Farid agarra-me pelo ombro.
- Não penses mais nele! - diz-me com gestos cortantes. -
Para já nem sequer estava na cidade, e depois não sei se
reparaste na mão que usou!
- A esquerda! - respondo por sinais.
- E a inclinação do corte no pescoço de teu tio, era...

Cada passada da nossa corrida de volta a casa parece fixar
no devido sítio os derradeiros versos de um poema perdido há
muito tempo. Maimon Branco de Duas Bocas Claro, Gemila tinha
razão! Na sua exaltação, quem é que ela havia de ver sob a
forma de um assassino embuçado com cicatrizes no rosto e
sangue nas mãos? Tudo encaixava: a altura em que meu tio
descobrira o modelo para Aman; a escolha da senhora Belmira
para mensageira do autor das ameaças; e mesmo as próprias
palavras do criminoso ao confessar o seu medo de ser novamente
torturado. E a data em que ele mandou Dona Meneses
entregar-lhe os últimos manuscritos que deviam ser levados de
Portugal, também isso apontava apenas para um suspeito. As
roupagens do mistério caíam uma a uma até que não resta mais
que uma face diante de mim.
No pátio, um burro com feridas abertas da sela afasta as
moscas com a cauda. Da janela de dentro do meu quarto, vejo
que Cinfa, Reza e a minha mãe estão na loja com o meu primo
Meir de Tavira. "Beri!" - grita ele e corre para mim de braços
abertos.
- Agora não! - digo eu, fazendo um gesto com as mãos para o
afastar -. "Mãe, onde estão o Diego e Frei Carlos?"
- Porquê?
- Tens sempre de fazer perguntas! Onde estão eles?!
- O frade voltou para a Igreja de São Domingos. Diego está
na cave. Foi para lá rezar as orações da noite. Que é que
tu...
- Não - interrompe Cinfa -, o Diego já subiu, enquanto
estávamos aqui. Há poucos momentos. A mãe não estava a olhar.
- Vamos! - ordenam os gestos de Farid.
- Espera, acho que sei porque é que ele foi à cave. E o que
vamos descobrir talvez nos ajude a atravessar a última porta.
Tiro do prego uma das candeias que estão penduradas na viga
mestra por cima da mesa. Depois de afastar o tapete persa,
Farid abre o alçapão. Pego no meu punhal e desço. Mas a
escuridão apenas revela o vazio. A geniza está fechada. "A
limpeza é uma tarefa sagrada" - penso. Fora o próprio
assassino a lembrá-lo. Com a chave que tirou da bexiga de
enguia, Farid abre a tampa. Alumio o esconderijo com a
candeia. Todos os manuscritos de meu tio desapareceram! Mesmo
a nossa bolsa de moedas.
Precipitamo-nos pelas escadas acima, atravessamos o pátio e
corremos para a Rua de São Pedro. Os dedos de Farid tacteiam a
minha espádua.
- Sabes de onde é que ele partia? - perguntam as suas mãos.
Abano a cabeça.
- Mas acho que sei onde é que ele foi. Não se ia arriscar a
sair de Portugal com livros hebraicos. Se fosse apanhado...
pinga com ele! Deve ter...
- Berequias!
António Escaravelho, o mendigo novo-cristão, está
esparramado no sítio do costume, do outro lado da rua, e chama
por mim.
- Viste alguém sair de minha casa, pela cancela do pátio? -
grito.
Ele acena que sim e aponta para a rua que desce para a Sé.
- Foi por ali há bocadinho.
- Então onde é que ele foi? - pergunta Farid, agarrando-me o
braço.
- Foi negociá-los. Com o que roubou mais o anel que Lhe dei,
podia ter o que quisesse. Podia até comprar os volumes de
Platão que cobiçava.

A luz suave das candeias emolduram as portadas da loja da
Senhora Tamara. "Louvado seja Aquele que abre a Porta da
Vingança" - murmuro eu, enquanto rodo a maçaneta da porta.
Farid chega ofegante. Entramos juntos.
Diego.
A surpresa cruza a sua face apenas por breves instantes.
Está em pé junto à escrivaninha ao fundo da loja, cansado, o
impenetrável silêncio de um mocho a esconder os seus
pensamentos. Os livros roubados da nossa geniza estão
empilhados junto aos seus pés. A senhora Tamara está sentada
numa cadeira, as mãos unidas no regaço. Diz qualquer coisa,
mas não consigo ouvi-la. Por trás dela vê-se um escravo
africano magríssimo com uma expressão obtusa e as faces
chupadas de alguém esfomeado. A confusão e o medo vincam o seu
cenho suado.
Fixo a cena na minha memória de Tora.
Diego e eu continuamos a olhar-nos através de um espaço
ritual de calor como que flamejante e de claridade. A Senhora
Tamara levanta-se. Os seus lábios movem-se. As sombras nas
roupagens brancas de Diego tremulam quando ele se endireita.
As minhas pernas estão tensas como se me preparasse para voar.
O bater do meu coração torna-se mais forte, quase a atingir a
graça semelhante à energia da paixão amorosa. Sob a barba,
adivinho a cicatriz no seu queixo branco de mármore.
Avermelhada, com os sinais dos pontos verticais, uma segunda
boca de traição e morte. "Maimon Branco de Duas BocaS" -
murmuro.
Retira da capa um punhal, comprido, de ponta quadrada: um
cutelo de shohet. O escravo saca um punhal fino da sua bolsa.
Com a outra mão, empunha um bastão com uma ponta em forma de
cabeça de serpente. As palavras da Senhora Tamara penetram a
minha fúria nervosa pela primeira vez: "Berequias, que é que
se passa?" Avança para mim.
- Saia! - ordeno-Lhe, com os meus olhos faiscantes fixos em
Diego.
- Que se passa, meu rapaz? Diz-me! - implora ela a Farid,
encostando as suas mãos desesperadas ao seu peito.
- Ele matou o meu tio - digo.
- Diego?! - gira num rompante para o fixar. - É verdade?!
Ele abre as mãos com as palmas para cima num gesto de
pacificação.
- Claro que não - replica.
Estendo as mãos para a Senhora Tamara e empurro-a em
direcção à porta.
- Saia! - grito.
Ela opõe-se com firmeza. Sempre com os olhos fitos em Diego,
abro a porta. Ela resiste à minha pressão, afaga-me o queixo.
- Mas, meu querido, Diego disse-me que Lhe deste permissão
para negociar os livros. que a tua mãe estava demasiado
assustada para ter livros hebraicos em casa.
- Por amor de Deus, saia! - digo.
- Que vais fazer?! - pergunta.
- Fica aqui - faço sinal a Farid. Puxo para fora da porta a
Senhora Tamara que esbraceja e guincha. Uma vez lá fora,
grita-me a exigir uma explicação. Mas um gigante de capa,
especado do outro lado da rua escondido na sombra do burel do
luar atrai a minha atenção. Reparo no seu chapéu cor de
ametista de aba larga. "Deus abençoe a Rainha Ester" - murmuro
para os meus botões.
Falo com o homem num tom apressado. Ele aceita a minha
proposta, agradece-me num castelhano hesitante.
Volto para a loja, tranco a porta atrás de mim. Diego faz
uma vénia e diz:
- Cá estás tu, Berequias! Estava agora mesmo a dizer ao
Farid como estava surpreendido e encantado por Dona Meneses
vos ter deixado a ambos com vida. Mas nunca tenho a certeza de
que ele entende o que lhe estou a dizer.
- Farid entende mais do que tu desde o dia em que nasceu -
observo.
- Sempre tão condescendente - diz ele, com um lampejo de
humor reflectido nos olhos -. Mas a sério, quem havia de
esperar que ela mostrasse piedade nesta altura? Deve ser o seu
sangue judeu a vir ao de cima.
- Porque mataste meu tio? - pergunto.
- Porquê? Quer dizer que não adivinhaste isso, também? Ao
que Parece adivinhaste todo o resto. Muito esperto, que tu és,
como eu sempre disse. Sevilha... Pensa em Sevilha.
- Sevilha o quê?
A maçaneta da porta agita-se. A Senhora Tamara desata a
bater à Porta e a chamar por mim.
- Aquela não desiste - diz Diego com um sorriso.
- Nenhum de nós desiste - replico.
- Ela deve gostar de ti. Todos nós gostamos... Apesar de
ti... Foi Por isso que me esforcei tanto Para te convencer a
abandonar esta busca tão canseirosa - Quando me vê carregar o
cenho, diz: - Onde é que eu ia?. Ah, pois, Sevilha. Foi lá,
claro. Um acidente. O teu tio tinha-me visto. Demasiado
volátil, ele, todo paixão e energia. Quando se é assim, há
acidentes. Ele tinha ido lá para salvar Simão da Inquisição.
Em minha casa, afastou os meus criados e entrou no momento
errado, trazendo o resgate de láPis-lazuli. O conselheiro em
leis do bispo estava a discutir comigo a minha... a minha
paga. Por ter denunciado Simão e todos os demais. Claro que
voltei imediatamente as costas a teu tio e saí da sala sem
dizer uma palavra. Mas ele tinha uma boa memória de Tora. Não
tão boa como a tua, mas ainda assim fora do vulgar.
- Nesse tempo não usavas barba - observo.
- Pois não. Também adivinhaste isso, não foi? A barba era
Para Lisboa. Uma máscara para cada cidade é essencial nos
tempos que correm, não achas?
- Então nem sequer és levita?
- Não, isso sou. A mentira não tem assim tantas camadas. Mas
tinhas razão. Nem todos usamos barba. Mesmo na ortodoxa
Andaluzia. Sim, bem sei que nunca lá estiveste. E agora, se
não tomas cuidado, nem sequer tens a oportunidade de lá ir. E
há lá tanto que ver. A Alhambra, a grande mesquita de Córdova.
Há lá jóias nas paredes que...
- Tu tratas do escravo e eu encarrego-me de Diego - diz a
mão de Farid passando nas minhas costas -. Será um Prazer para
mim acabar-Lhe com a vida.
- Espera - respondo com um gesto. Dirijo-me a Diego para lhe
perguntar: - Porque denunciaste Simão e os outros à
Inquisição?
- Que ingénuo que tu és! - range os dentes e cerra os Punhos
-. Quando a Igreja nos cerca, nos aperta, nós fazemos o que
nos mandam. Tudo o que nos mandam! - sorri. As mãos abrem-se
-. Os judeus portugueses nem sabem a vida de mel e leite que
têm tido!
- Mais fumo do que leite e mel nestes últimos tempos.
- Isso não passou de uma fogueirita - observa -. Espera mais
uns anos e então é que as coisas se vão acender a sério. E
nessa altura fazes o que te mandarem. - Abre o gibão,
desaperta a camisa. A linha da cicatriz no peito reflecte o
brilho da luz da candeia. - Senão tens de o pagar na carne. Já
te contei como eles queimam a pele com desenhos. A minha
gravura foi só um começo. Estás a ver a linha do horizonte? Se
te aproximares, podes ver também as portas de Jerusalém. -
Fecha a camisa. - O corpo mortal que temos é fraco. Achamos a
dor bastante desagradável.
- Quando te cortaram a barba na semana passada, meu tio
reconheceu em ti o denunciante que tinha visto em Sevilha -
digo. - Aquela discussão no hospital. os gestos desabridos de
meu tio. Por isso é que estavas tão desesperado para não
cortar a barba, por isso é que não te agradava a nossa visita.
- Isso foi outro acidente. A vida está cheia deles. Até
acabamos por nos habituar. Mas espero que o acaso ainda te
incomode. O teu tio também não o entendia. Muitas coisas
escaPavam-lhe. Não era um homem comPassivo. Para se ser
compassivo é preciso ser como os outros homens, e ele...
- Como te atreves?! - grito.
- Quem perdeu a família pode atrever-se a quase tudo! -
responde -. Olha só para ti! Vingança de um cabalista? Que
diria o teu tio?
- Diria que há muito que o caroço da tua alma se perdeu, que
mandar-te de volta Para o Outro Lado é uma mitzva. Metatron
há-de registar a tua morte como uma boa acção.
- Convém-te enganares-te a ti próprio - diz ele.
- Os enganos convenientes são a tua especialidade - observo.
- A minha especialidade é a carne e a criação - diz ele,
levantando o cutelo e fazendo uma vénia.
- Foste tu que assim quiseste.
- Não tinha por onde escolher - suspira. - A vida
empurra-nos. Como uma corrente. Podes lutar contra o oceano,
mas só durante algum tempo. Mas és novo de mais para...
- Descobriste a rapariga, Teresa, na cave, quando foste
procurar o meu tio, não foi?
- Ele tinha-a arrastado para lá para a salvar. Tinha ido aos
balneários. Havia uma fenda aberta na porta secreta que dava
para lá e ele ouviu alguém a pedir socorro. Eu tinha vindo à
procura dele quando os motins estalaram em Alfama. Andava com
uma grande cruz de madeira para me proteger, cheguei até a
abençoar uns quantos criminosos durante o caminho. É espantoso
o que as pessoas se podem abençoar uns aos outros - benze-se e
rola os olhos -. Como um cristão devoto, esgueirei-me para
dentro de tua casa.
- E então mataste-o.
- Mais devagar! Para ti as coisas são demasiado fáceis. A
vida não é a Tora. Não podes ler os versículos a toda a
velocidade e voltar a lê-los se não apreendeste o que querem
dizer. Ele não foi cordato. Disse que me havia de levar a
julgamento num tribunal judaico por ter denunciado Simão há
tantos anos, que havia de arranjar maneira de me castigar.
Conhecia o teu tio muito bem. Havia de descobrir uma maneira
de me tornar a vida num inferno. Mesmo quando lhe disse que
tinha denunciado a Reza e os parentes dela, e que se ele não
desistisse voltaria a fazê-lo, ele recusou-se a ouvir-me.
Pensei que isso o convenceria. Fui estúpido por pensar que teu
tio reagiria como um pai normal. E se ele dissesse a Dona
Meneses que era eu quem a andava a ameaçar, que eu sabia que
ela era judia, a minha vida passava a valer menos que um
caracol! Só se jurasse em cima da Tora que não revelaria o
nosso segredo é que lhe poupava a vida. Mas ele recusou.
- Então foste também tu o responsável pela prisão de Reza.
- Tudo o que a situação exige. Temos de ser flexíveis. mudar
o nosso aspecto consoante as circunstâncias. Barba e roupas
sumptuosas em Lisboa. Em Constantinopla posso até tornar-me
muçulmano: afinal, é o mesmo Deus. Não é verdade, Farid?
As mãos de Farid respondem a Diego com uma obscenidade.
Entretanto, penso: Um correio que não pode reconhecer o seu
próprio rosto. Meu tio estava a pensar em Diego, o Judeu
Errante, um correio não de livros ou mercadorias, mas da sua
própria alma" - Portanto - digo -, o que escreveste na
confissão falsa de Salomão era verdade. em relação a meu tio.
- Era. Calhou-me mesmo bem que o mohel se tivesse dado a
morte. Quando mo disseram fui para lá, paguei a um rapazito
para me ir comprar papel a uma bruxa que o faz de restos de
linho, depois deixei o bilhete de modo que a irmã de Salomão o
pudesse encontrar. A maior parte das pessoas são fáceis de
enganar.
- Prometeste a meu tio poupar a rapariga se ele se
entregasse?
- Prometi. Ele falava de sacrifício. Era uma coisa muito
importante para ele. Acho que desejava morrer. Por um maior
objectivo bom e elevado, disse ele. Tinha uns raciocínios
muito estranhos, não achas? Disse-Lhe: Podia matá-lo sem
sequer bater uma pestana! E ele respondeu-me: E eu podia
morrer sem bater a outra! Vê lá bem isto! E imagina, nos
tempos que correm, a querer reunir um conselho judeu! Ele
nunca se apercebeu que estamos no ano de mil quinhentos e seis
da era cristã, não no ano hebraico de cinco mil duzentos e
sessenta e seis. E tu, meu caro Berequias, é tempo de te
pores em dia antes que seja tarde de mais. Aceita o calendário
cristão antes que o teu tempo se esgote.
- Não foste ter com meu tio só para discutir com ele.
Deixaste lá aquele fio de seda de Simão. Devias saber já que o
ias matar.
- Temos de ter tudo planeado. Não me podes criticar por ser
prudente.
- Prudente? Querias até matar-me a mim e a Farid! Foi por
isso que mandaste aquele recado para ir ter contigo às
azenhas.
- Foi outra boa ideia que Dona Meneses e os seus homens de
armas deitaram a perder.
- E roubaste a Haggada de meu tio. O nosso lápis-lazúli e as
folhas de ouro. Como um reles ladrão!
- Porque não? Sentes-te superior a tais impulsos? Acho que
não. E os manuscritos. Pois, isso foi, afinal, como tudo isto
começou. Por isso parece-me...
- Mas como sabias deles? Simão e Frei Carlos disseram-me que
ainda não devias saber da existência da geniza.
- Mesmo um cabalista comete erros, meu caro. Os nossos
amigos estavam simplesmente enganados. O teu tio veio ter
comigo em segredo, explicou-me tudo sobre as suas actividades
de tráfico de documentos, disse-me que estava para receber
alguns manuscritos valiosos e que ia precisar da minha
vigilância para se assegurar de que os passadores não o
enganavam, especialmente Dona Meneses, de quem ele começava a
duvidar. Pensava que ela andava cada vez mais assustada com os
riscos que corria. O teu tio receava uma traição.
Comecei a segui-la, a aprender os seus métodos. Descobri
tudo sobre Zorobabel, como é que ele levava os manuscritos
para Cádis, passando a fronteira com eles. Mestre Abraão não
queria que ninguém soubesse que me tinha ensinado o segredo da
geniza e das suas actividades de passador para que eu não
atraísse as suspeitas de ninguém.
- Ele tinha confiança em ti - digo.
- Receio que sim. Foi um erro. Nos tempos que correm ninguém
merece confiança. Lembra-te disto, mesmo quando não te
lembrares de mais nada.
- Devia ter-me pedido a mim. Se ao menos ele tivesse...
- Ainda não percebeste, pois não? - pergunta Diego.
- Perceber o quê, seu bastardo?
- Ele não queria pôr a tua vida em risco. Tu devias ser o
seu herdeiro, cumprir os seus planos para sarar a Esfera
Terrena e a Esfera Celeste. o maior cabalista que Lisboa
jamais vira! Não se pode pôr a vida de um tal homem em risco,
envolvendo-o em actividades de passador. Tal como as coisas
estão, provavelmente serás tu o último cabalista de Lisboa. -
Diego encolhe os ombros, lança-me um sorriso tímido, como quem
aceita uma verdade inegável. - Acabaram-se os livros, os
cabalistas, os judeus. É pena, mas é assim a vida.
"É engraçado", penso, "este assassino foi capaz de
compreender claramente o que para mim estava oculto. Estaria
eu com medo das responsabilidades? Ou de ser o último da minha
espécie?"
- Porque não levaste todos os livros da geniza quando o
mataste?
- Estive a ver os manuscritos, a avaliá-los, com todo o
vagar. Não estava preocupado, sabia que o motim lavrava lá
fora e que sabendo o segredo da passagem para os balneários
estava em segurança. Às tantas deparei com a Haggada pessoal
de Mestre Abraão. Um belo trabalho. Folheei-a e encontrei a
minha imagem como Aman. Rasguei-a, é claro, pus o livro na
minha bolsa como precaução. Ver assim a minha face nas suas
iluminuras, foi um choque. De repente senti-me em pânico.
Estupidamente, acho eu. Ia já a entrar na passagem secreta,
quando tu começaste a gritar pela tua família lá em cima.
Avancei pelo túnel dentro, mas concluí que com esta medida de
cintura não ia conseguir. Voltei para trás, entrei de novo na
cave, fechei a porta atrás de mim. Mesmo antes de...
- Porque não te escondeste atrás da porta secreta, na
passagem?
- Nunca a tinha usado antes. Tinha medo que se fechasse a
porta, houvesse algum ferrolho secreto que a trancasse e eu
ficasse ali emparedado. Não seria um destino muito brilhante!
Por isso momentos antes de tu desceres, consegui enfiar-me na
geniza e fechar a tampa. Tenho de dar graças por toda a
barulheira que fazias. Quando desceste as escadas, já eu
estava em segurança no meu ninho. Só estava com medo que
pudesses ouvir o bater do meu coração, que tivesse que te
matar também a ti. Mas estava perfeitamente confiante que a
princípio te deixarias enganar, que irias pensar que tinham
sido os cristãos. Quando subiste, saí do esconderijo, fechei a
tampa e pus a chave novamente na bexiga de enguia.
Esgueirei-me pela entrada da tua mãe para a Rua da Sinagoga.
Pensava que ninguém me tinha visto. Mas aquela Gemila... Teve
sorte em ser uma dessas vacas alucinadas, a ver demónios por
todo o lado, senão tinha-a...
- E a Senhora Belmira? Porquê ela?
- Miriam? Tinha uma paixão por mim. Não faças essa cara de
espanto. Sou um homem bastante donairoso para quem...
Lembras-te das horas que passámos juntos a desenhar pássaros?
De qualquer modo, era mais seguro assim. Se fosse apanhada,
teria preferido morrer a denunciar-me. E foi o que aconteceu.
As mulheres são mais fortes que os homens nessa altura.
Aprendi isso nas masmorras de Sevilha. Preferiam que os
cristãos lhes derretessem os pés a trocar Moisés nos seus
corações.
- O miúdo que mandaste vender a Haggada à senhora Tamara,
quem era ele?
- Receio bem que esse tenha sido o meu erro. Estava a ficar
enervado.
Tenho as minhas fraquezas, como já reconheci. Quanto à sua
identidade, há coisas que devem continuar a ser mistério, não
achas? Chama-se Isaac. É uma bela criança, gentil... É tudo o
que te posso dizer.
- Aquela mensagem que caiu do teu turbante? Era realmente
sobre o conde de Almira ou este Isaac?
- Outro mistério que não te vou desvendar. Perdoa.
- Então, agora que conseguiste o teu Platão?
- Vou-me embora esta noite, como disse. De carruagem, para
Faro. Podes esquecer-me.
- Não te vou deixar partir - observo.
- Não tens por onde escolher - Diego bate a ponta do cutelo
no ombro do escravo -. O meu novo guarda é magro, mas
desesperado - diz -. Não lhe apetece nada voltar para o seu
antigo dono. Punha-Lhe um freio na boca.
Batia-lhe e forçava-o a relações carnais estupidamente.
Dizem que até sabe fazer feitiços. Um bom cabalista negro, se
queres saber. Talvez de uma das nossas tribos perdidas. Será
melhor afastares-te para o lado e deixar-nos sair. Ou ainda
acabas com a alma separada do corpo como Mestre Abraão.
- E uma cortina de sangue a cobrir-me o pescoço. Nunca me
hei-de esquecer do que lhe fizeste!
- Que palavras tão poéticas. Tuas ou de Farid?
Diego pega em dois volumes encadernados em carneira de cima
da escrivaninha. Manda o escravo seguir diante dele. O
africano curva-se, empunha o punhal e o bastão diante do
peito, desliza para fora.
- Encarrega-te do escravo, que eu... - propõe Farid, com os
dedos nas minhas costas.
- Não - atiro ao chão o meu punhal, dou meia volta e agarro
o braço erguido de Farid. - Mas que é que estás a fazer? -
pergunta a sua mão, enquanto me empurra.
- Vai-te! - grito para Diego - não o posso segurar por muito
tempo!
Passo os braços em torno de Farid, encosto-o a uma pilha de
livros. Embora ainda empunhe a adaga, sei que nunca a usaria
contra mim. Enquanto ele esbraceja para se libertar, grito de
novo:
- Vai-te, demónio, antes que mude de ideias!
Retenho Farid com a terrível força da minha vingança. O
escravo e Diego , precipitam-se para fora.
- Foi uma decisão ajuizada - sibila o assassino.
Os meus olhos fecham-se com força como para encerrar o
pecado e ouve-se o ferrolho da porta a abrir-se. A aragem da
noite, cortante e gelada, afaga-nos.
"Voa de volta para o inferno, Diego!" - murmuro para mim.
- Berequias! - a voz de Farid soa-me desfigurada, grasnada,
mas clara como uma oração. Ao mesmo tempo, o seu punho
atinge-me no ombro e abre a antiga ferida. Com o pé em
vassoura, faço-o perder o equilíbrio. A porta fecha-se com
estrondo. Ficamos sós. Sinto o peito invadido por uma amarga e
tépida sensação de Prazer. Farid levanta-se com um salto,
olha-me furioso. Abro as mãos num gesto de paz, seguro-o pelos
ombros.
- Falaste! - digo-Lhe por gestos, sorrindo. É como um
milagre a coroar toda esta horrível desolação, um sinal do
Senhor, talvez, a indicar ter sido boa a escolha do fado de
Diego.
- Porque ias deixá-lo partir - diz Farid, com gestos
descompassados -. Afinal não serviu para nada. Nada. A não ser
que Possamos...
- Não te aflijas - aceno-lhe -. Diego estava enganado. Há
homens em quem se pode ter confiança. Vais ver.
Lá fora a senhora Tamara treme descalça e vestida aPenas com
a sua camisa de dormir. Enquanto Farid a envolve pelos ombros
com os seus braços, avisto Diego a correr pela Rua dos
Douradores abaixo seguindo o escravo em direcção à Rua Nova
dEl-Rei. O luar ilumina-o como um animal furtivo, uma criatura
da noite fugindo aos seus perseguidores. Para mim próprio,
murmuro as palavras de Jeremias: "Temos de morar no meio das
rochas no deserto árido, numa terra salobra onde nenhum homem
pode viver."
- Mas ele vai fugir! - resmunga a senhora Tamara,
dirigindo-me um olhar implorante.
As suas palavras gravam nas minhas entranhas um traço de
dúvida ardente. Começo a caminhar, depois a correr como se à
procura de meu tio. Subitamente uma sombra escura cruza o
caminho vinda da direita. Durante alguns instantes segue
Diego, vê-se o seu Perfil, um chapéu na cabeça, aproxima-se
mais. Um brilho de metal. Um braço erguido. Ao tombar, Diego
confunde-se com a calçada. Um som como o bater à porta da mão
enluvada de Simão chega-me aos ouvidos trazido pelo vento
seco. Mas incapaz de atingir as portas da minha compaixão.
Farid que me tinha seguido a correr, estende a mão quando me
vê abrandar o passo.
- Quem foi que... - perguntam os seus gestos.
- Um dos homens de armas de Dona Meneses - respondo -.
Estava à espera de Diego. Tinha ordens para não atacar antes
da meia-noite, como tínhamos pedido - tiro da algibeira um
punhado de safiras e esmeraldas que me ficaram do colar de
Dona Meneses -. Mas consegui mudar o horário.
- Pagaste-lhe para matar Diego?!
- Era o que ele ia fazer, de todos os modos. Mas não me
podia arriscar a esperar. Que Deus me Perdoe.
- Bastou uma para o convencer a matar Diego agora - digo,
mostrando algumas das jóias da fidalga -. A vida de um judeu,
a vida de um homem, nada vale.
Aproximando-nos de Diego em passos cautelosos, deparamos com
ele agarrado aos volumes de Platão. Um fio de sangue corre-Lhe
do canto da boca para um lagarto pintalgado que dorme numa
fenda da calçada. Na bolsa encontramos o pergaminho com a
gravura de Aman.
Num silêncio de fora do temPo, contemplamos o corpo como se
estivéssemos Perante a arca vazia da Tora, que nunca será
preenchida. Quando volto a mim, avanço para o meio da luz de
um candelabro colocado a uma janela próxima e observo o
desenho de meu tio. Sim, Aman é Diego. Não há engano possível.
Um calafrio percorre-me a espinha ao pensar que o último acto
de criação artística de meu tio fora o de retratar numa
iluminura a face do seu próprio assassino.
No desenho, Diego-Aman está inclinado para diante numa
atitude de abutre com a inconfundível cicatriz no queixo. Está
representado a sussurrar ao ouvido do Rei Assuero o seu plano
de exterminação dos judeus.
Apertados na mão esquerda, como uma garra, brilham uns
quantos dos dez mil talentos de prata que Prometera Pagar ao
Tesouro real em troca da aprovação do seu monstruoso plano. Na
mão direita, simultaneamente, recebe o sinete real das mãos do
rei, um sinal da Permissão.
O trato foi feito.
A Rainha Ester não figura na gravura. Mas o seu padrasto,
Mardoqueu, está lá. Humildemente postado a um canto, cobre-o
um saco em sinal de luto, que vestira depois de ter ouvido o
decreto da destruição do seu povo. A sua atitude é de orgulho,
no entanto, e a sua expressão é maliciosa, quase jocosa. Sem
dúvida por segurar junto ao peito o laço com que mais tarde
Aman será enforcado. Um clarão esmeralda de paixão nos seus
olhos convence-me que Mardoqueu teve como modelo o meu Próprio
tio.
Farid aperta o meu braço, aponta para o desenho e assinala:
- És tu.
- Onde?
- O homem no canto. Aquele com o laço. Mardoqueu.
O coração bate-me violentamente e desamparado. Não estará
Farid enganado? Não me parece possível que meu tio me tenha
representado como salvador dos judeus. E o Mardoqueu da
gravura é simplesmente demasiado velho. As minhas mãos apertam
o Pedaço de Pergaminho. As lágrimas assomam aos meus olhos só
de imaginar que ele pudesse representar-me como um herói
judeu.
Tantas Perguntas que poderia ter-lhe feito e que ficarão sem
resposta.
O meu olhar é desviado para o céu por uma gaivota que o luar
ilumina a atravessar a noite. Sinto os mosquitos a zumbir-me
aos ouvidos como se procurassem penetrar nos meus pensamentos.
A minha prece hebraica pela paz de Diego, pela paz do mundo,
surge debruada com a textura das mãos de meu tio apertando com
força a minha nuca, largando-a seguidamente. Os seus
movimentos em direcção à ausência definitiva é tão imediato
que me sobressalto e olho em redor. Os meus olhos vigiam a rua
deserta até se fixarem na húmida luz esmeralda de duas
candeias que me espiam da mais alta janela do quarteirão.

LIVRO TERCEIRO

Capítulo XXI

NO mundo vazio que resta depois da morte de Diego, dormi uma
enfiada de dias. Protegido pelas portas aferrolhadas e as
janelas seladas do meu quarto, no meio de uma atmosfera
irrespirável a tresandar à minha própria decomposição. Só me
ergui novamente da cama perante a visão de Joana, a filha do
conde, descendo como um véu de seda sobre o meu rosto. Os
olhos brilham-Lhe com a graça do reflexo das pérolas, e o seu
cicio está para além de todo o entendimento. Como se a noite
me apelasse, os meus pés conduziram-me através das vielas
sinuosas de Lisboa, até que um destino se tornou óbvio.
Deparei comigo aos brados junto da janela do Palácio dos
Estaus que esperava que fosse a sua. Um anão com o cabelo
eriçado abriu as portadas.
- Senão acabas já com esse cantar de galo ainda te mando
castrar! - gritou.
- Procuro Dona Joana, a filha do conde de Almira - explico.
- Não é aqui! - resmungou, batendo com as portadas.
Fui seguido durante todo o caminho de regresso pelo fedor
pútrido dos montões de lixo. Ansiando pelo vazio do Ein Sof,
procurei novamente refúgio na cama. Seguiram-se dias de
margens oscilantes, de uma sucessão musgosa de luz e trevas,
até que a voz de Joana atravessou as paredes como se trazida
pelas asas de uma oração. Quando entrou no quarto, estava
vestida de negro. Eu jazia sob as cobertas.
- Não posso ficar muito tempo - disse ela. Os olhos estavam
vítreos, como se as lágrimas devessem brotar a qualquer
momento. - Estiveste doente? - perguntou ela numa voz
hesitante.
- Estive - respondo, sentando-me na cama -. Acho que sim.
Onde tens estado? Fui procurar-te.
- Aqui em Lisboa, mas não me atrevi a vir antes.
- Nunca desejei uma mulher tanto como agora te quero -
confessei -. É como se só tu me pudesses sarar. ou salvar.
Ela sentou-se na borda da cama e apoiou delicadamente a sua
minúscula mão deformada contra os meus lábios. Ia a
implorar-Lhe que ficasse comigo para sempre, mas ela abanou a
cabeça como se a impedir-me que profanasse o silêncio entre
nós. Começou a desatar o seu vestido. Eu estava já nu. Quando
se deitou a meu lado e me abriu os braços, afundei-me neles.
Confinado dentro da sua tepidez, protegido pela suavidade do
seu corpo, uma tensão vizinha da de uma corda represa rompeu
dentro de mim e vi-me romper num choro vindo de tão fundo de
mim que parecia rasgar-se nas minhas partes. Joana sussurrou:
"Não posso ficar. Estou prometida a outro. Não esperes por
mim. Parto amanhã de Lisboa. Perdoa-me e esquece-me." Quando o
bálsamo dos seus dedos se retirou do meu rosto, voltou a
dizer: "Não esperes por mim. Não negues o teu amor a uma
outra." Na minha mão, deixou o seu colar de pérolas.
Quando os que amamos partem para sempre, tudo o que nos
resta é o brilho dos seus olhos capturado nas suas jóias. Para
além da memória, é a única recordação que retemos.
Loucura: se não nos engolir inteiros, pode ser que um dia
abrande o aperto das suas garras em torno do nosso pescoço. E
ainda assim é preciso que alguma coisa, ou alguém, nos ajude a
desembaraçarmo-nos delas.
Quando de manhã emergi, vazio de Joana, Farid leu nos meus
olhos o que acontecera. Arrastou-me para a Estalagem da Flor
da Rapariga. Durante vários meses ali vivi, mergulhado no
calor das tentadoras de Lisboa, sem mais esperar, aferrando-me
e forçando o meu caminho para as suas vidas tentando recuperar
o meu. Farid ia pagando, embora não saiba dizer onde é que
arranjava o dinheiro. Talvez tenha vendido algumas das safiras
e esmeraldas de Dona Meneses; restavam apenas três quando
finalmente dissemos adeus à Judiaria Pequena.
O milagre, afinal, foi não ter sido atacado por nenhuma das
doenças dos bordéis. Talvez seja preciso ter um coração
desejoso de sofrer por amor para conhecer tais males. Quando
não estava anichado dentro de alguma mulher ou a enfiar na
boca o jorro de algum odre de vinho, caminhava. Uma vez até às
montanhas de âmbar acima de Mafra. Através de áridas estradas
poeirentas, ia parando para recitar em voz alta cada um dos
cinco livros da Tora: O Génesis diante do templo de Monte
Abraão perto de Belas; o ëxodo debaixo da ponte de um pinheiro
derrubado depois de Montelavar; o Levítico em cima de um
mosaico romano em Odrinhas; os Números enquanto me balançava
num ramo de alfarrobeira em frente da igreja visigótica de
Igreja Nova; e o Deuteronómio com um favo de mel que me foi
oferecido por uma rapariga cristã dentro dos portões de Linhó.
O ritmo dos passos é bom para rezar, descobri. Dormir também.
As estrelas saudavam-me de noite sem qualquer protesto ou
juízo.
Acordo pela manhã com as flechas dos pica-paus tamborilando
de árvore para árvore. Durante uma quinzena, senti-me a salvo
fora dos confins de Lisboa.
Gradualmente, uma energia semelhante à impetuosa expectativa
de um cântico começou a crescer dentro de mim e pareceu-me
possível trabalhar na nossa loja durante o dia. Cinfa
vigiava-me com uma dedicação feroz. Chegava a deitar-se à
noite na minha cama a meu lado, mirando-me com um olhar isento
de censura quando eu saía para ir às meninas da estalagem às
primeiras horas da madrugada.
Reza e a minha mãe travavam comigo as suas batalhas
moralizantes em silêncio, os seus olhares de condenação tão
fechados como as grades de uma prisão. Tal como o mundo para
além das minhas fronteiras.

Segunda-feira, vinte e sete de Abril, entrou no porto de
Lisboa uma flotilha de barcos de guerra, que impôs o domínio
da Coroa sobre a cidade. Nenhuma justiça foi feita, é claro.
El-Rei Dom Manuel, o nosso melekh hasi o nosso bom rei, falou
da matança como certas negligências. Mais para desenfado dos
burgueses e camponeses do que qualquer outra razão, o querido
falecido Dom Manuel, que o seu nome e a sua sombra sejam para
sempre apagados, mandou prender quarenta dos desordeiros
cristãos-velhos escolhidos ao acaso pelo seu real juiz, João
de Paiva. Perante uma multidão de vários milhares de pessoas
dispostas em bancadas em pleno sol do Rossio, os prisioneiros
foram garrotados e queimados.
O cheiro da carne queimada dos cristãos-velhos será
diferente da dos judeus? Tenho de reconhecer que não consegui
sentir nenhuma diferença. "Ah, mas se tivesses estado no
Rossio", ouvi mais de um cristão-novo dizer-me com um sorriso
cáustico no rosto.
Quanto aos eclesiásticos da Igreja de São Domingos e do
Convento, El-Rei ordenou que os bons dos frades fossem
espalhados pelo reino nos fins de Maio. Mas que ninguém tema
pelos seus corações desfeitos; pelos fins de Outubro já eles
estavam de volta para os braços das suas barregãs em Lisboa,
graças à intercessão do Papa Júlio II, que o seu nome e a sua
sombra sejam igualmente apagados para sempre. Salvo dois
deles, devo dizer. Frei João Moucho e Frei Bernaldez, os dois
que exortaram a plebe a lançar-se na matança aquela tarde
fatídica em frente da Igreja de São Domingos. Presos e levados
para Évora, ficaram durante algum tempo por lá a definhar nas
masmorras da cidade. Em Outubro, quando já poucas pessoas se
lembravam do que tinham feito, foram garrotados e feitos em
cinza.
A nove de Maio, finalmente, a chuva voltou.
Mas de pouco disto me recordo. O primeiro de Março de mil
quinhentos e sete é a única data que se recorta nitidamente no
meu espírito. Tenho de confessar que por algum tempo
habituei-me a pensar segundo o calendário nazareno. Tomo isso
como um sintoma da minha loucura. Possa eu extirpar o cristão
de dentro de mim para sempre!
Nessa manhã, o pequeno Didi Molcho puxou-me para fora da
loja como se me arrastasse para um tesouro. "Corre!" - gritava
ele. Precipitamo-nos em direcção à voz de um pregoeiro nas
escadas da Igreja de São Miguel. Estava a ler o
pergaminho de um decreto de El-Rei Dom Manuel: "Assim, será
permitido aos cristãos-novos deixar o meu reino, e não haverá
A esperança de outras paragens." orientou a minha cabeça para
o sol. Pela primeira vez depois da morte de Diego respirei a
plenos pulmões.
Um barbeiro ocupava-se da minha barba, enquanto a filha me
despiolhava. Nas suas mãos delicadas, o pente a esquadrinhar a
minha cabeleira, comecei a meditar pela primeira vez como
tinha pago pelo assassínio de Diego. Deveria ter sentido as
garras do pecado no meu peito? Não senti. Nem agora sinto.
Talvez isso faça de mim um homem privado de uma alma mais
elevada. Pouco me interessa. Não olho para os espelhos e há
algo no meu rosto que parece despertar a discrição dos
cabalistas que poderiam ser capazes de se aperceberem de
alguma terrível falha na minha aura. E no entanto um outro
pecado que cometi há muito tempo perturba-me por vezes,
chegando mesmo a interferir com as minhas orações. Aquele
jovem fidalgo que empurrei do telhado abaixo na Mouraria. Será
que sobreviveu? Duvido. Por vezes, em sonhos, vejo-o a olhar
para cima, para mim, do fundo de um poço pútrido.
Minha mãe e eu entregámos todos os livros de meu tio a Dona
Meneses. Como era de esperar, livrou-se da morte de Simão. Não
só não estava em posição de lhe poder atirar pedras, como
também sabia que quaisquer acusações que fizesse teriam
consequências nefastas para mim e para a minha família.
Guardada pela sua comitiva de loiros flamengos, continuou na
sua vida encantada de cristã-velha do cimo das suas varandas
de mármore na Graça. Pelo que me disseram, morreu há quatro
anos, na Primavera de mil quinhentos e vinte e seis, de uma
infecção causada por um sangrador idiota com dedos inábeis.
Depois de ter visto meu tio num sonho, Frei Carlos Pediu a
Dona Meneses que levasse para lugar seguro a sua cópia meio
árabe, meio hebraica da Mekor Hayim, a Fonte da Vida, de
Salomão Ben Gabirol. Tanto quanto sei, está agora em Salonica.
Será que algum dos nossos livros sobreviverá aos séculos, ou
terá sido em vão a luta de meu tio?
Com todos os cristãos-novos que deixavam Portugal, as casas
só conseguiam atingir uma pequena parte do seu real valor. Em
vez de a vendermos por uma ninharia, preferimos oferecê-la a
Brites, a nossa lavadeira, que vivia numas barracas fora da
Porta de Santa Catarina, em condições inadequadas a uma pessoa
da sua elevação espiritual. Quando lho dissemos bateu o pé e
disse:
- Não posso aceitar tal coisa!
- Tem de aceitar - insistiu tia Ester.
- Não!
- Então emprestada - sugeri -. Se Reza um dia quiser voltar,
vem cá ter.
As lágrimas corriam-lhe dos olhos. O trato foi selado com
abraços. Desde essa altura que ela lá vive.
Semanas depois, pouco antes de partir, ia eu entregar fruta
a uma loja no Bairro Alto, avistei o rapaz do meu desenho, o
que tinha tentado vender à senhora Tamara a Haggada de meu
tio. Tinha um rosto naturalmente delicado, cabelo escuro
cortado rente.
- Como te chamas? - perguntei.
- Diego - respondeu.
- O meu nome judeu é Berequias Zarco - murmurei. - Gostava
de saber como te chamam na língua sagrada.
- Isaac Belmiro Gonçalves - disse ele.
- Foste adoptado por um homem chamado Diego Gonçalves, não
foste?
- Fui - respondeu, os olhos abertos de surpresa -. Como o
sabe?
- Conhecia-o bem.
Numa estalagem próxima, falámos, diante de pão de canela
fumegante e vinho diluído em água, do amor que seu pai
adoptivo alimentara pelos pássaros e pergaminhos antigos. O
rapaz vivia com a irmã da senhora Belmira. Era tímido, mas os
seus lábios tremiam de breve paixão quando falava de combates.
Queria ser cruzado. Nunca hei-de entender por que razão os
jovens estão sempre com tanta pressa de morrer. Antes de nos
separarmos, beijei-o na fronte e abençoei-o em silêncio.
Rabi Losa, o convertido convicto e inimigo de meu tio, vive
ainda na sua casa perto da Igreja de São Miguel. À custa de
vénias e bajulação insinuou-se no coração do bispo de Lisboa e
tornou-se mesmo num dos seus conselheiros em direito canónico.
Ambas as suas filhas estão crescidas e casadas, vivendo juntas
em Santarém, ao que me consta.
Frei Carlos decidiu igualmente ficar em Portugal. "Que Deus
faça de mim um bom cristão ou um melhor actor" - disse-me ele
a última vez que o vi, há vinte e três anos. As suas palavras
fizeram-me lembrar Zorobabel, Isaac de Ronda, o conde de
Almira. Nunca soube nada do seu destino. Talvez que o seu
verdadeiro nome seja completamente diferente. Talvez não fosse
sequer castelhano ou cristão-novo. Talvez Joana não fosse
sequer sua filha.
Como é de adivinhar, nada soube dela. Se bem que, em certas
ocasiões, ainda hoje me surpreenda nos meus sonhos. A amargura
desapareceu-lhe dos lábios, porém, e eu cessei há muitos anos
de me forçar a comparações com a minha mulher. Mesmo uma
memória de Tora se funde com as lágrimas.
Nunca mais me chegaram tampouco novas de Helena, a rapariga
a quem muitos anos antes fora prometido e com quem perdi a
virgindade. Será melhor assim.
Em Maio de mil quinhentos e sete, quando fazíamos planos
para partir, apresentou-se em nossa casa um mercador de vestes
brancas e escarlate, trazendo-nos uma carta do mendigo
cristão-novo, António Escaravelho. Logo a seguir aos motins,
muito antes do decreto de El-Rei Dom Manuel permitir a saída
de Portugal aos cristãos-novos, ele conseguiu uma permissão
para ir visitar o seu amado Papa Júlio.
- Sabeis dizer-me se ele se sente bem em Roma? - perguntei
ao portador da carta.
- Mas qual Roma?! Está em Jerusalém. Já conseguiu montar uma
loja de ourives no velho bairro judeu.
Rompi o selo de cera da carta: "Meu caro Berequias, bem vos
dizia, a ti e a Mestre Abraão, que deviam pensar em vir
comigo. Este burro velho afinal não era tão louco como isso,
não achas? Ao diabo o Papa Júlio! Cuspo na Península Itálica
inteira. Que uma praga de serpentes venenosas caia sobre Roma
e morda todos os seus residentes cristãos nos seus gordos cus.
Serás sempre bem-vindo a minha casa. Até para o ano em
Jerusalém." Para o ano não, mas talvez em breve. Afinal, agora
estamos mais próximos.
E mais novo é que eu não estou a ficar. Se tenho de ir...
Em Julho de mil quinhentos e sete, Farid apanhou um barco
para Constantinopla, levando a morada de Tu Bisvat e todo o
dinheiro que pudéramos poupar. Minha mãe, Cinfa, tia Ester,
Afonso Verdinho e eu seguimo-lo em Agosto, tendo o nosso navio
largado de Belém no décimo nono dia de Av; Para surpresa
nossa, tínhamos à nossa espera uma periclitante casa de dois
andares no pequeno bairro judeu; com a ajuda de Tu Bisvat,
cujo verdadeiro nome não posso tomar a liberdade de revelar,
meu tio tinha conseguido fazer adiantar uma pequena soma para
a compra da propriedade.
Roseta foi deixada com Reza; estava à espera do seu primeiro
filho - Reza, não Roseta, entenda-se - e mudara-se com o
marido e Aviboa para uma quinta perto de Belmonte, nas
montanhas do nordeste de Portugal. Nunca mais os vi, desde que
os deixei na doca de Belém. Têm três filhos, Mardoqueu, Judas
e Berequias, e uma filha, Mira. Aviboa casou com um cultivador
de castanhas e vinho. Vive nas proximidades e tem dois filhos.
A unha nunca Lhe cresceu e nunca mais teve notícias dos seus
pais.
Rezamos para que o fogo da Inquisição esqueça o vale onde
vivem quando alastrar de Castela para Portugal. Temo que não
seja agora mais que uma questão de meses. Tão breve é o tempo
de que dispomos para a paz neste mundo.
Judas... Quando consegui arrancar a minha mãe as calças e as
camisas dele, enterrei-as na Quinta das Amendoeiras junto à
campa de meu tio. Rezámos um kaddish para assegurar que a sua
alma se libertaria da Esfera Terrena.
Vinte e quatro anos são passados desde o seu desaparecimento
e no entanto não o sinto mais longe que um sussurro. Há coisa
de três anos, pareceu-me reconhecer os seus olhos de pedra
lunar num homem envergando os trajos de um mercador português
a apanhar sol no jardim por baixo do minarete a sudoeste da
mesquita de Hagia Sophia. O meu coração batia como se
disparado de um canhão. Sentia-me entontecido. Pensei: "Foi
tudo um engano. Ele está vivo, educado por cristãos-velhos. E
agora há-de explicar por onde andou." Avancei para ele e
disse: "És tu, Judas?" Para seu grande embaraço, tomei-o pelo
braço: "Não me reconheces? Sou o Berequias. O teu irmão!"
Deu-me uma palmadinha no ombro, como se eu fosse um velho
louco bêbado. "É melhor ires para casa, antes que a tua mulher
te venha buscar" - aconselhou ele, rindo-se de mim.
É assim que a nova geração trata as nossas mágoas.
De Samir, o pai de Farid, nunca mais se ouviu nada.
Recordo o Rabi Verga dizendo-me na nossa cozinha que devemos
lembrar os mortos e de como eles perderam a vida. As suas
palavras fazem-me sorrir; haverá realmente pessoas capazes de
esquecer?
Parece que Sansão Tijolo, que riscara todos os nomes de Deus
no seu Velho Testamento, tinha razão quando dizia que os
judeus não podiam falar no futuro em Portugal. Tivesse meu tio
sobrevivido, poderia ele ter feito alguma coisa quanto a
isso? Há certos poderes que os grandes cabalistas possuem e
talvez que se ele se concentrasse...
Ou será tudo mentira? Muito da minha fé esvaiu-se-me
juntamente com o sangue de meu tio.
Rana, mulher de Sansão e minha antiga vizinha e amiga, vive
ainda na sua quinta fora de Lisboa. Miguel, o filho dela,
aprendeu o mister de ourives. Pela calada da noite, atrás das
portadas fechadas, disseram-me, "faz ponteiros para a Tora e
outros objectos sagrados."
A nossa vizinha, a senhora Faiam, morreu em mil quinhentos e
doze. Gemila e a família vivem na sua antiga casa como judeus
secretos. O cão, Belo, morreu sem nunca ter achado o osso da
perna que perdera, claro. Certos vestígios da vida nunca mais
se podem recuperar. Embora isso não nos impeça de prosseguir a
busca.
Penso muitas vezes no limoeiro que cresce sobre a mão da
senhora Rosamonte. Tão bom se me atirassem um limão!
Terá crescido muito a amendoeira de meu tio? A sua morte
cava ainda profundos sulcos dentro de mim pela madrugada,
quando o orvalho se deposita na minha fronte e a minha
resistência fraqueja. Ultimamente, compreendi que sou como uma
árvore cujos ramos principais foram cortados com um cutelo de
shohet. Lá fui conseguindo, a partir das cicatrizes, ir
lançando novos ramos o melhor que pude. Floresci até... Muitas
vezes. Mas a árvore não é exactamente a mesma que poderia ter
sido. Quão mais aprumado não teria crescido se ele...
Quarenta e quatro anos passaram por mim. Sou um homem
envelhecido, com filhos. E no entanto quanto não daria eu para
ter os olhos de esmeralda de meu tio fixos em mim, para sentir
a asa protectora das suas vestes alvas a envolver-me.
Beijar os seus lábios. Nunca será possível. Nem que eu
entoasse o Zohar todas as noites durante um ano inteiro.
Murça Benjamim insistiu depois de Lhe ser recusado
satisfazer o seu desejo de ver cumprida a obrigação do
casamento levítico. Casou com um abastado cristão-novo
tanoeiro no Porto - "um bom homem", como ela me escreveu - e
trabalha como tradutora para os mercadores de São João da Foz.
Manuel Monchique, cuja mulher, Teresa, morreu ao lado de meu
tio, emigrou para Amsterdão e é um dos directores de uma
instituição bancária local.
Contaram-me que se dedicou às viagens marítimas, tendo
viajado mesmo para o Brasil, onde fez magníficos desenhos das
borboletas nativas. E deixou-se de andar às voltas com a
espada.
Talvez seja possível, assim, encontrar a nossa própria casa
noutro país.
Antes de deixarmos Lisboa, minha mãe deu-se ao trabalho de
costurar um novo albornoz para Attar, o homem que me emprestou
roupas quando tive de fugir através da Mouraria naquele fatal
domingo de morte judaica.
Recebeu-me com um abraço. E antes que deixasse a sua casa,
tinha comido um frango inteiro num banho de ameixas e limão.
Demos as mãos para rezarmos em silêncio, e seguidamente
recitámos juntos suras do Alcorão.
Isaac Ben Farraj, o asceta que salvou da fogueira do Rossio
a cabeça do amigo, acabou por ir dar a Valona onde é um
escriba considerado. Encontrei-o uma vez acidentalmente em
Rodes depois da sua tomada pelos turcos, e parecia que não
comia desde que saíra de Lisboa. Com as costelas à mostra. Com
uma barba que parecia um fungo esbranquiçado. Aparentemente
tinha aprendido uma coisa ou outra sobre os novos frutos que
iam chegando do Novo Mundo, porque não parava de me repetir:
"Cuidado com os tomates."
Dom Miguel Ribeiro, o fidalgo que soubera das suas origens
hebraicas pelo meu tio, vive ainda em Lisboa como judeu
secreto. Perdeu um olho num desastre de caça pouco depois da
nossa partida. Ao que me parece não conseguiu abandonar aquele
último vício cristão.
Ah, aconteceu uma coisa curiosa a Didi Molcho. Foi subindo
na escala do sistema dos tribunais portugueses até se tornar
secretário real. Foi então, como ele conta, que apareceu
perante El-Rei Dom João, o sucessor de El-Rei Dom Manuel, um
judeuzito escuro com uns olhos faiscantes parecidos com os do
meu tio, declarando ser um representante da tribo de Rubem que
se perdera nos bravios desertos da Arábia. Dizia chamar-se
David Reubini e fora a Portugal na esperança de conseguir
tropas para se lançar na reconquista de Jerusalém aos turcos.
Embora El-Rei se tenha enfadado com ele, Didi ficou cativado.
Voltou a abraçar o judaísmo e circuncidou-se a si próprio. Os
seus estudos da Cabala originaram visões que resultaram em
profecia.
Usando o seu nome judaico de Salomão, Didi viajou para
Itália para pregar e a precisão das suas predições tornaram-no
famoso tanto entre cristãos como judeus.
Em Maio de mil quinhentos e vinte e nove, depois de uma troca
de correspondência, recebi-o em minha casa em Constantinopla
e, durante os seis meses que se seguiram, ajudei-o a aprender
as técnicas de Abulafia para desatar os nós do espírito. O seu
livro de sermões, parcialmente baseado nos nossos estudos
conjuntos, foi publicado em Salonica nesse mesmo ano.
Encontra-se agora de volta a Roma, seguindo as suas visões, e
ganhou mesmo os favores do Papa Clemente. Temo, porém, pela
sua vida. Os papas invejam os homens de fé genuína com a
avidez e a perfídia de um furão. E Didi, que Deus o abençoe,
ficou com a sua visão das coisas terrenas embaçada por
horizontes mais elevados.
Farid vive aqui na rua perto de nós. Conseguiu publicar e
ver bem recebida a sua poesia aqui em Constantinopla. O seu
amigo, de dezassete anos, é um ferreiro chamado Shamsi que
toca alaúde e canta com a voz de uma flauta rústica.
É um homem notável, bem humorado com músculos rijos e
pestanas semelhantes a pétalas de rosa negras. Sem ser dotado
das dimensões do ferreiro basco, é certo, parece porém trazer
Farid satisfeito. Anos atrás, adoptaram dois miúdos órfãos,
Samir e Rumi que foram sempre bons, ainda que um pouco rudes,
companheiros de brincadeira da minha filha, Zuleikha, e meu
filho, Ari.
Ceamos juntos todas as noites. É uma grande alegria para mim
poder conversar com Farid com as minhas mãos. Por vezes,
quando as lembranças me assaltam e me falta a vontade de ouvir
as minhas palavras.
A última vez que estivemos juntos em Lisboa, perguntei a
Farid:
- Estará Deus à nossa espera em Constantinopla, que achas?
Daqui de Lisboa desapareceu sem deixar rasto.
As mãos dele giraram para cima e em círculo, citando meu
tio:
- Tens de procurar em ti como quem bate a uma porta. É aí
que O encontrarás se ainda existir para ti.
Tenho estado à espera de uma resposta a todos estes anos que
continuo a bater à porta. Ao que parece, temos de ser como o
persistente pica-pau para este Deus duro de ouvido, e a mim
falta-me simplesmente o bico.
Por isso talvez tenha chegado àquelas paragens seculares que
predissera tantos anos atrás. É para aí que sinto que o mundo
se move, sem rabinos nem padres, apenas povoado por místicos e
descrentes. Qual destes grupos acabará por conquistar o trono
do meu coração, não o poderia dizer.
Minha filha Zuli tem agora dezoito anos e quer ser escriba
como tia Ester. Mas eu vejo nela mais de Reza. Naturalmente
nobre, com uns olhos apaixonados que dançam quando fala. E
quando se zanga, deixa-me intimidado com o brilho flamejante
que costuma ensaiar diante do espelho.
Ari, que tem dezasseis anos, é de compleição forte, tem o
cabelo escuro encaracolado de minha mulher, os olhos
inteligentes e penetrantes de meu tio. Estudou para desenhar
iluminuras e poderia vir um dia a tornar-se num artista
refinado. Mas desde criança que sonha navegar para a aventura
do Novo Mundo.
- Um judeu a trabalhar em iluminuras de pergaminho nas
selvas do Brasil seria como uma matza na lua - costumava
dizer-lhe.
Há dias, retorquiu-me com a sua réplica:
- Mas alguns dos índios estão circuncidados. Tu Bisvat diz
que são judeus.
Soa um pouco como eu quando tinha a idade dele, não é?
Ponho-me a adivinhar o que faria dele meu tio. Parece-me que
se ele realmente quer ir para o Brasil, talvez devesse
tornar-se num mohel.
As perdas de Judas e de meu tio condenaram minha mãe a uma
vida nas margens da emoção. Começou a costurar roupas para a
aristocracia turca de Constantinopla e ocupou-se sem falhas da
loja de frutas que abrimos, mas manteve-se afastada de
qualquer gesto de aproximação. Conversar, mesmo com tia Ester,
era coisa que fazia com dificuldade. Surpreendi-a muitas
vezes, às primeiras horas da manhã, de vigia junto da minha
cama com o inumano estoicismo de uma deusa esculpida na proa
de um navio. Sempre que eu tinha de viajar para longe de casa,
vinha dar-me uma palmadinha na mão, afastando-se em seguida
rapidamente, como se fosse já tarde de mais para ter esperança
no meu regresso. As orações e os cânticos só contribuíam para
a tornar mais ansiosa. O meimendro ajudava por vezes. Morreu
durante a Páscoa de mil quinhentos e vinte e dois.
Quanto a minha tia Ester, reconciliámo-nos um com o outro,
logo após a morte de Diego. Porque haveria de guardar rancor
contra ela e Afonso Verdinho? Teria eu o direito de lhe negar
o pouco de companhia que o mundo podia ainda oferecer-lhe?
Pouco antes de partirmos para Constantinopla, ele
precipitou-se para a Pequena Judiaria exibindo um anel de ouro
de noivado. Exactamente como um cavaleiro saído de alguma
lenda árabe. Casaram-se assim que atingimos a costa turca.
Como a minha própria vida o prova, o amor não está, pois,
limitado a um único objecto. E não tenho dúvidas que minha tia
Ester amava meu tio e teria dado a vida por ele. Certa vez,
estava ela a banhar-se, abri a tampa do seu medaLhão de prata
e deparei com alguns dos longos cabelos prateados de meu tio.
Roubei-lhe um desses fios e engoli-o.
Minha tia Ester é hoje uma mulher de avançada idade, perto
de setenta anos. Mas o seu trabalho como escriba em hebraico,
árabe, persa, castelhano e português continua a não ter igual.
Completámos recentemente, ela e eu, uma cópia do Concílio dos
Pássaros para o sultão Suleimão, o Magnífico, que Deus o
abençoe todos os dias da sua vida. Não me ficaram nenhumas
notas nem desenhos das minhas antigas expedições de observação
de aves nas montanhas fora de Lisboa, mas trago ainda na minha
memória de Tora o bastante para me inspirar a curva de um bico
de grua e os matizes do colo de um mocho. Os pavões que
incluí são da lavra de meu tio. Gosto de imaginar que haveria
de se orgulhar da nossa obra.
Cinfa... A vida não Lhe tem sido leve. Mal acabara de ser
abençoada com uma menina a que deu o nome de Mira, há seis
anos, ficou viúva. O marido era um médico dos olhos de
Alexandria. Um homem delgado e de pele suave, com o olhar doce
de quem sempre perdoa. E, porém, não demorou muito a
apercebermo-nos que bebia aguardente anisada como um
marinheiro grego. E que não gostava que eu iniciasse a mulher
na Tora e no Talmud. Nada disto era evidente antes de se
casarem. A bem dizer, tinha já esquecido o que aprendera sobre
máscaras depois de deixar Lisboa.
Quando Cinfa estava grávida de sete meses, bateu-lhe com uma
cana na cara.
- A tua irmã corrigiu as minhas orações do Shabat - disse-me
ele, quando eu observava as pisaduras de um azul e amarelo
ténues que lhe entumesciam os olhos e o rosto. O tom da sua
voz era como se insinuasse que se vira obrigado a fazê-lo.
- E fez ela muito bem, seu truão - repliquei -. O Shabat é
mais importante que o teu orgulho mesquinho!
Ele pediu-me desculpa devido à minha reputação espiritual na
comunidade de cabalista excêntrico mas culto, mas via-se nos
seus olhos desafiadores que não estava nada arrependido. Não
sou muito dado a brigas nem sou dotado para artimanhas, mas
enquanto Lhe passava a mão pela cabeça num gesto de bênção,
dei-lhe um tal pontapé nas partes que ele ficou a contorcer-se
no chão durante um bom bocado de tempo.
- E se voltas a fazer isso... - gritei-lhe.
Quando contei a tia Ester o que tinha feito, ela ironizou: E
é essa a prática onde a Cabala consegue chegar! Lindo
trabalho!
Mas talvez não devesse tê-lo tentado com aquele aviso. O
brutamontes repetiu a sua feia acção no dia a seguir. Farid
acompanhou-me então a casa deles. Apontou a sua adaga ao
queixo do médico dos olhos e disse-lhe:
- Voltas a pôr-Lhe as mãos com outra intenção que não seja a
do amor e arranco-te esses olhos!
Mais tarde, Farid haveria de me dizer: "Temos de ameaçar as
pessoas com alguma coisa de que elas conheçam o valor."
Parecia ser um bom conselho. Mas os brutos não mudam sem a
graça de Deus. Durante o seu oitavo mês, Cinfa foi precipitada
pelas escadas abaixo pelo médico dos olhos. Partiu a perna
direita e o osso do pescoço. A menina nasceu com ela assim
estatelada no chão. Os seus gritos alertaram Zuli e a
vizinhança. Se não fosse o terem andado depressa, teríamos
perdido a pequena Mira.
Acompanhado por Farid, lancei-me à procura daquele médico
danado. Não conseguia encontrá-lo em parte nenhuma, até que um
mês depois apareceu morto num bordel das imediações.
Ao que parece, tinha-se tornado um pouco atrevido com uma
apreciada iemenita. Como minha tia Ester observou "Não há
grande risco em espancar uma esposa judia. Mas erga-se a mão
contra alguma cara barregã muçulmana e não se vive por muito
mais tempo." Leci, a minha mulher, foi também dotada da mesma
maneira irónica de pensar. Não foi, porém, dessa maneira que
as coisas começaram. É filha de um sapateiro que se tornou no
nosso primeiro amigo aqui em Constantinopla. Quando a conheci,
usava cabelos compridos, negros com fulgores avermelhados de
hena, olhos verdes espelhando uma ânsia contida que pareciam
estar permanentemente receosos de fazer alguma pergunta
secreta. Os lábios selados pelo silêncio. Talvez tivesse sido
a morte da mãe quando ela não passava dos cinco anos. Vivia
angustiada quando a conheci, espiritualmente arrepiada.
Possuía no entanto a maciez sensual de um gato húmido. Quando
caminhava, parecia arrastar com ela o chão e o ar.
Fui ter com ela um dia que o seu pai tinha ido à cidade.
Surgiu-me recortada no umbral da porta. Tinha estado a ler.
Depois de trocarmos um olhar que denunciava uma secreta
aventura, ela depositou o livro sobre o peito e soprou a
candeia. Sem uma palavra, despi a camisa e desembaracei-me das
calças. Quando os nossos desejos se ergueram além das
explorações das bocas e das mãos, ela deitou-se por cima de
mim. Dispondo-se como se estivesse perante um altar, deixou-se
deslizar ao longo do meu corpo.
Poderá a perfeita concordância das íntimas partes de um
casal tornar-se num símbolo do acordo espiritual?
Sentindo-a revolver a sua humidade quente sobre o meu corpo,
revia a minha velha amiga Rana Tijolo a amamentar o seu
filhinho Miguel. Enfiei a minha cabeça no mais fundo da
tepidez dos peitos de Leci e pensei: É esta a mulher a quem me
vou entregar E assim foi. Mais que os meus manuscritos, mais
que os meus estudos da Cabala, considero que a plenitude da
minha vida foi o que lhe dei a ela e aos meus filhos. Nem
sempre foi bom, nem sequer o bastante, mas ofereci o que tinha
sem qualquer máscara.
E chego assim à razão que me levou a retomar a minha pena de
junco e a contar-vos esta história.
Como disse no início desta narrativa, recebi ontem por volta
do meio-dia uma visita: Lourenço Paiva, o filho da nossa velha
lavadeira e amiga, Brites. Antes de morrer, sua mãe pedira-lhe
que viesse e me devolvesse a propriedade da nossa velha casa
na esquina da Rua de São Pedro com a Rua da Sinagoga, para ver
se eu pretendia regressar.
Com as chaves da nossa velha casa a morder-me o interior do
meu punho cerrado, senti-me divagar numa visão de Portugal:
sobreiros e papoilas. Roseta e o seu colar de cerejas.
Mardoqueu e meu pai. As casas brancas e azuis de Lisboa. O
Rossio. O espelho do rio por trás da nossa velha sinagoga. O
doce aroma dos arbustos de loendro no nosso pátio. Judas e meu
tio. As campas na Quinta das Amendoeiras.
E então, abriu-se dentro de mim uma visão, na qual meu tio
me atirava letras portuguesas atadas em cadeia e formando uma
frase: "As nossas andorinhas ainda estão nas mãos do faraó."
Quando o meu olhar ia a passar uma segunda vez sobre estas
palavras em código novo-cristão, vi-as subir no ar e depois
quebrarem-se com um som tilintante.
Quando voltei a mim, o meu peito batia ao ritmo de um
versículo que dizia: "É uma oportunidade de voltar para casa."
E foi então que na minha memória de Tora começaram a ligar-se
alguns acontecimentos isolados numa leitura do passado que
julgo que meu tio tinha contado que eu fizesse muitos anos
antes.
Peguei no jarro de vinho e agarrei a fita de velino que
minha tia Ester tinha escrito com o meu nome e o de meu tio, a
fita que ele me dera pouco antes de morrer, prometendo vir em
minha ajuda quaisquer que fossem as circunstâncias. A sós, no
quarto de orações, recordei os terríveis versos do Génesis
sobre o sacrifício de Isaac que meu tio me tinha mandado
recitar a Judas naquela Páscoa fatídica. Tinha-nos explicado
então que para atingirmos o mais elevado dos fins, o nosso ser
tinha de se extinguir. Queria significar o seu ser.
Antes da sua morte, na cave, meu tio tinha-me questionado
sobre a minha disposição de sair de Portugal. Falou-me dos
seus temores, que minha mãe e Reza não quisessem nunca partir.
Esses receios traíam a sua motivação; estava a querer dizer-me
que só a mais terrível das tragédias poderia separar minha mãe
e Reza, a sua única filha, de Portugal.
Mesmo as palavras de meu tio que Diego citara na falsa
mensagem que escreveu na morte do mohel Salomão aludiam a uma
oculta razão para a sua morte: "O ferro da tua lâmina irá
fortalecer-me perante Deus e talvez sirva mesmo um propósito
mais elevado." A que propósito mais elevado serviu a sua
morte? Que estaria meu mestre a pensar?
Ao correr das últimas vinte e quatro horas, deixei que as
minhas especulações se confundissem com as minhas perguntas
até formarem uma rede de nós que se recusa a deixar-me livre.
Foi então que retirei da prateleira o tinteiro e comecei a
escrever a nossa história para todos vós.
Mesiras nefesh, a vontade de arriscar tudo por um objectivo
que sirva para reparar faltas na Esfera Terrena e na Esfera
Celeste. Só agora me parece compreender como essa silenciada
coragem alumiava os olhos de esmeralda de meu tio, e movia as
suas mãos numa bênção do mundo.
"Prometo proteger-te dos perigos que espreitam ao longo do
caminho" juntara ele, tinha eu oito anos. E na verdade, a sua
vida fora o cumprimento da sua palavra. Pois aqui estava eu, a
salvo, em Constantinopla!
O que estou a tentar dizer, neste modo hesitante, vacilante,
tanto pela energia que me falta como pelo demasiado vinho da
Anatólia que bebi, é que meu tio se ofereceu em sacrifício. Em
parte, talvez, para tentar salvar a rapariga, Teresa, que foi
assassinada junto a ele. Mas, o que é mais importante, creio
que se deixou matar pelas gerações vindouras. Para forçar
minha mãe e Reza, a nossa família toda, a sair de Portugal.
Para permitir que a árvore da nossa família ganhasse raiz em
segurança noutra terra. Uma terra onde pudessem aceitar os
judeus sem máscaras.
Não quero com isto dizer que meu tio tenha atraído Diego à
cave ou o tenha levado lá através de práticas cabalísticas.
Não é isso. Mas talvez meu tio suspeitasse que ia ter uma
visita. De qualquer modo, houve um momento, talvez quando
Diego descia as escadas da cave, em que o meu mestre começou a
compreender o verdadeiro significado dos motins contra nós, em
que viu as possibilidades que podiam surgir da sua morte às
mãos de um assassino. Para o melhor e para o pior, concluiu
que a nossa família, o nosso povo, tinha chegado a um terrível
impasse, e que só a sua morte violenta poderia compelir-nos a
rompê-lo.
Será esta ideia uma insanidade? Talvez o seja. Talvez só
Deus soubesse que meu tio seria sacrificado aquela Páscoa. E
ainda assim há mais provas em apoio da minha ideia, um pequeno
indício que talvez vos possa convencer de que o que digo é
pelo menos possível.
Anos atrás, Farid afirmava que o desenho de Mardoqueu na
última Haggada de meu tio se inspirara na minha própria face,
que eu fora escolhido para representar o salvador dos judeus
no Livro de Ester. Achei que não era possível; o Mardoqueu do
desenho era demasiado velho. Pensei também que mesmo que meu
tio tivesse usado o meu rosto como modelo do herói bíblico era
por ter tido uma premonição mística de que eu me haveria de
vingar do seu Aman-Diego.
Mas ontem, ao examinar a gravura da iluminura, descobri algo
de surpreendente. Mardoqueu assemelha-se muitíssimo a mim, tal
como sou hoje, vinte e quatro anos depois de meu tio o ter
desenhado. O mesmo cabelo cinzento aparado, os mesmos olhos
cansados, como sobreviventes que ambos somos, mas também
testemunhas de uma tragédia.
Estais a ver? Meu tio tinha um olhar tão perspicaz que era
capaz de me pintar com a aparência que eu viria a ter quase um
quarto de século mais tarde.
Assim, só agora comecei a aceitar que o meu mestre me
destinou um propósito elevado, tinha pressentido que eu, tal
como o antigo herói judeu, haveria um dia de salvar o nosso
povo. E estou convicto de que foi essa a razão por que,
na visão que ontem tive, meu tio me chamou Mardoqueu". Não era
o nome de meu irmão mais velho, como antes pensara, mas o do
salvador bíblico do nosso povo. Mas como poderia salvá-lo, eu,
Berequias Zarco, um homem que nem sequer já acredita num Deus
pessoal?
A resposta está nas vossas mãos: acho que meu tio pressentiu
que só o pesadelo da sua morte me poderia levar a escrever
este livro que vós agora lêdes. Que só a sua partida violenta
da Esfera Terrena poderia mostrar-me que o nosso futuro na
Europa estava acabado. Que só a mais terrível das tragédias
poderia convencer-me a pedir a todos os judeus, até ao
derradeiro de entre nós, cristão-novo ou não, que partissem
para onde estivéssemos a salvo da Inquisição ou de quaisquer
outros horrores que os reis cristãos pudessem algum dia vir a
conceber contra nós. Pois se há alguma coisa que podemos dizer
sobre os monarcas europeus é que não lhes hão-de faltar os
sonhos sobre os judeus. Assombramo-los nas trevas espirituais
em que vivem.
Se não admitis que há uma, ainda que reduzida, possibilidade
de estas especulações serem uma leitura válida das suas
acções, então desejo que passeis bem na vossa solidão; é claro
que nunca passou pela vossa vida alguém com a energia
espiritual de meu tio, com o seu desinteressado e
incondicional amor por vós, capaz de se sacrificar a si
próprio pela vossa sobrevivência.
Ou talvez seja mais apropriado lamentar a minha falta de
talento; a minha narrativa não foi suficiente para vos
convencer que Mestre Abraão Zarco era real.
Perdoai-me. Mas deixai que vos diga, e reuni a coragem de me
crer: existem homens e mulheres com uma tal apaixonada
determinação que voluntariamente darão as suas próprias vidas
pelas de gerações de filhos que nunca hão-de conhecer.
Estava pois enganado quando tantos anos antes disse à minha
amiga Rana Tijolo que meu tio acreditava que os judeus podiam
ainda conjugar o futuro em Portugal. Já então ele sabia que
não nos restava senão o tempo passado, na Ibéria e em todas as
terras cristãs da Europa. Podereis conceber que foi por mero
capricho que ele planeou a nossa mudança para uma terra
muçulmana, para a Turquia? Não há acasos, não há
coincidências. Será possível?
Até agora, apenas ousei expor estas ideias a Farid e a
resposta que os seus gestos me deram foi: "Mas não achas que
teu tio podia servir melhor o povo judeu vivo do que morto?",
Boa pergunta. Talvez os acontecimentos se tenham precipitado
tão rapidamente que o meu mestre deixou de os poder dominar.
Mas ainda que a minha ideia esteja redondamente enganada,
continuo a não ter coragem de poisar a minha pena e de rasgar
estas páginas. Não posso arriscar a vida dos judeus fiando-me
na equidade dos reis da Europa que já mostraram vezes sem
conta que desconhecem o que seja a justiça. Pois, ainda que
esteja enganado, ainda que esteja a ler da esquerda para a
direita, ainda que meu tio estivesse tão cansado da sua
vigília por causa de Reza que nem forças tinha para erguer uma
mão contra Diego, podereis estar certos que os reis cristãos
não virão um dia buscar-vos, e a todos os nossos? E que
traidores como Diego não os ajudarão?
E assim, acabamos por falar também em Diego e no real
significado que a sua traição poderá ter. Muitas vezes me
interroguei sobre isto, claro. A chave da minha interpretação
das suas acções reside na definição cabalística do mal: o bem
que se afastou do seu justo lugar. Creio que Diego era um
homem que poderia ter brilhado entre o seu próprio povo. Ao
viver com os cristãos-novos, contudo, ao ter de lutar contra o
terror que a Igreja e a Inquisição deles lhe inspiravam,
voltou-se para o mal. E por isso acredito que haverá muitos
outros como Diego que conspirarão contra nós a não ser que
deixemos a Europa. Isso, também, faz parte do significado da
morte de meu tio.
Quanto às minhas hesitações em falar de tudo isto. Não é de
surpreender que uma parte de mim gostasse de rebater as
minhas palavras como sendo tolices. Pois que se a minha fé
aponta para a verdade, então terei falhado, meu tio,
vergonhosamente. Há vinte e três anos, consenti que minha
prima Reza ficasse em Portugal. Que meu tio me perdoe. Pois se
ele está certo, se a leitura que faço dos versículos do
passado está correcta, então a família dela está condenada.
E é por isso que devo pegar nas chaves que este caro
Lourenço me deu e reentrar as portas de Portugal. Este
manuscrito é a arma que levarei comigo. Possam as suas
palavras ligarem-se umas às outras e formar o laço que possa
enforcar Aman.
Farid diz que me acompanhará, que preciso da sua protecção.
Talvez tenha razão. Juntos, iremos buscar Reza e a família e
trazê-los para Constantinopla.
Possam todos os cristãos-novos e judeus acompanhar-nos.
E possam minha mulher e meus filhos compreender as minhas
razões para partir.

Os primeiros pálidos alvores da madrugada acabaram de romper
através das portadas da minha janela, e o meu punho dói-me. É
tempo de pela última vez estender o braço para o tinteiro para
escrever algumas derradeiras palavras. Que os anjos que se
escondem sob as minhas palavras inspirem o entendimento na
minha alma e nas vossas.
Como disse logo no início desta narrativa, "vós que lêdes
estas palavras, sejais judeus ou cristãos-novos, sefarditas ou
asquenazins, se as fronteiras da Europa ainda vos rodeiam,
estareis em grande perigo. A Inquisição há-de alastrar, e
muito em breve o nosso Espelho que Sangra sangrará como nunca
antes." Foi essa a razão por que meu tio me apareceu agora: A
matança mal começou. Podeis estar certos de que os reis
europeus e os seus bispos odiosos nunca deixarão de sonhar com
o nosso povo. Nunca permitirão que vós ou os vossos filhos
possam viver. Nunca! Mais tarde ou mais cedo, este século ou
daqui a cinco séculos, hão-de vir procurar-vos ou aos vossos
descendentes. Não há aldeia, por mais longínqua que seja, que
esteja a salvo. Nenhum fidalgo ou exército estrangeiro hão-de
vir para vos socorrer. Este é o significado que atribuo à
morte de meu tio. Retirai pois as vossas máscaras. Voltai-vos
para Constantinopla e Jerusalém. E começai a caminhar.
Arrancai a Europa cristã do vosso coração e não olheis nunca
para trás!
Abençoados sejam os que são um retrato de Deus.

Berequias Zarco

- Constantinopla, Sexto dia de Av, 5290


FINIS

Setembro de 1997

(fim)










"Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores."

Cora Coralina

mmarceli2010@gmail.com
http://renovandoatitudes-marceli.blogspot.com/
http://cantinhodamarceli.blogspot.com
Skype: crmarini2333


livros - loureiro <http://groups.google.com.br/group/livros-loureiro>










--
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no
Grupo "livros-loureiro" nos Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para
livros-loureiro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para
livros-loureiro+unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em
http://groups.google.com.br/group/livros-loureiro?hl=pt-BR
 
Os nossos blogs:
http://manuloureiro.blogspot.com/
http://livros-loureiro.blogspot.com/
http://romancesdeepoca-loureiro.blogspot.com/
http://romancessobrenaturais-loureiro.blogspot.com/
http://www.loureiromania.blogspot.com/

0 comentários:

Postar um comentário

Vida de bombeiro Recipes Informatica Humor Jokes Mensagens Curiosity Saude Video Games Car Blog Animals Diario das Mensagens Eletronica Rei Jesus News Noticias da TV Artesanato Esportes Noticias Atuais Games Pets Career Religion Recreation Business Education Autos Academics Style Television Programming Motosport Humor News The Games Home Downs World News Internet Car Design Entertaimment Celebrities 1001 Games Doctor Pets Net Downs World Enter Jesus Variedade Mensagensr Android Rub Letras Dialogue cosmetics Genexus Car net Só Humor Curiosity Gifs Medical Female American Health Madeira Designer PPS Divertidas Estate Travel Estate Writing Computer Matilde Ocultos Matilde futebolcomnoticias girassol lettheworldturn topdigitalnet Bem amado enjohnny produceideas foodasticos cronicasdoimaginario downloadsdegraca compactandoletras newcuriosidades blogdoarmario arrozinhoii